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KELLY CRISTINA MEDEIROS FERREIRA
A SAGA DO BURRO E DO BOI: UM ESTUDO DE
O BURRINHO PEDRÊS E CONVERSA DE BOIS,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do título de Mestre em Literatura
Brasileira pelo Curso de Mestrado em Letras
da Universidade Federal do Ceará, sob a
orientação da Professora Doutora Maria
Neuma Barreto Cavalcante.
FORTALEZA
2009
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2
KELLY CRISTINA MEDEIROS FERREIRA
A SAGA DO BURRO E DO BOI: UM ESTUDO DE
O BURRINHO PEDRÊS E CONVERSA DE BOIS,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Literatura Brasileira.
Aprovada em ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Neuma Barreto Cavalcante (Orientadora)
______________________________________________________________________
Professora Doutora Fernanda Maria Abreu Coutinho (Examinadora)
______________________________________________________________________
Professora Doutora Gabriela Frota Reinaldo (Examinadora)
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3
À minha Mãe, responsável primeira por meu encantamento
pelas letras, porque em tudo entrevia beleza e poesia.
À minha Filha, responsável por meu deslumbramento pela
vida, porque em tudo vislumbro um milagre.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, por seu amor incondicional.
A meus pais, Adália e João, pelo amor, carinho e apoio.
A meu marido Humberto, pelo suporte.
A minha preciosa filha Mariana, porque a amo.
A minhas irmãs Caroline e Karla, pessoas especiais para mim.
Aos meus lindos sobrinhos Gabriela e Jefferson Filho, porque os adoro.
À professora Edna Carlos de Almeida Holanda, pelo incentivo e amizade.
À professora Neuma Cavalcante, pela fundamental contribuição a esse trabalho.
À professora Fernanda Coutinho, pela pertinência das contribuições no exame de
qualificação.
Aos professores do curso de Mestrado, pelas admiráveis tardes.
A todas as pessoas que de alguma forma têm auxiliado no meu processo de
amadurecimento.
5
“Todos nós passamos pela vida
unidos pelo laço da criação
e tornamo-nos irmãos
através da gratidão.
Temos muito por que estar agradecidos.
Que cada um
fale com o Ser Supremo
à sua maneira.
(...)
Houve tempos em que as pessoas sabiam viver em harmonia,
agora o silêncio da natureza
chega a poucos.
(...)
A terra é santa, os pés que caminham sobre ela, abençoados.”
Chefe dan George (Índio norte-americano)
6
RESUMO
João Guimarães Rosa definia-se como um homem do sertão e mostrava-se fortemente ligado à
terra. Ao longo de sua monumental obra encontramos densos registros sobre essa ligação. Em
1965, revela em entrevista a Gunter W. Lorenz seu peculiar interesse por animais, diplomacia,
religiões e idiomas. A biografia do escritor não se dissocia da obra. Dessa forma, evidencia-se
em O burrinho pedrês e Conversa de bois - o tratamento conspícuo dispensado aos bichos.
Assim sendo, procederemos a um exame das referidas novelas de Sagarana tendo como
escopo a estreita relação do homem com a natureza e, mais detidamente, com os animais. Para
tanto, utilizaremos textos teóricos que versem acerca da inserção humana em ambiente natural
- entre eles os de Leonardo Boff e Nancy Mangabeira Unger - e literários - mitos gregos e
latinos e lendas indígenas. Veremos ainda que as novelas selecionadas para análise
apresentam crianças e animais. Esses seres interligam-se e vivenciam a atuação de forças
sobre-humanas em suas vidas. Ao longo do trabalho relacionaremos ao tema de nossa
pesquisa os desdobramentos da autodefinição de Rosa supramencionada em sua existência
(infância em Cordisburgo, vida doméstica no Rio de Janeiro, viagens ao exterior e ao interior
de Minas Gerais, passeios) e obra (novelas de Sagarana, sobretudo).
Palavras-chave: homem-natureza, animais, crianças.
.
7
ABSTRACT
JGR was self defined as a man from backlands and was strongly linked to his country.
Through all his monumental work we will find registers of this link. In 1965, he tells in an
interview to Gunter W. Lorenz his peculiar interest in animals, diplomacy religions and
languages. His biography is not dissociated from his work. So, in O burrinho pedrês and
Conversa de bois is showed this conspicuous treatment given to the animals. From now on,
we wll make an examination of the novels in Sagarana, based on the strict
relationship between man and nature, and, hardly, with the animals. To make it we will use
theoretical texts about the human insertion in a natural environment - among them texts by
Leonardo Boff and Nancy Mangabeira Unger - and literary - Greek and Latin myths and
Indian legends. We will still see that the selected novels show children and animals. These
beings are linked up and they experience over human powers actions in their lives. Through
the presentation we will link to our search the consequences of Rosa's mentioned selfdefition
in his life (childhood in Cordisburgo, homelife in Rio de Janeiro, foreign travels and to inner
Minas Gerais, walkings) and work (novels from Sagarana, overall).
Keywords: nature man, animals, children.
8
NOTAS E ABREVIATURAS
As citações às obras do escritor João Guimarães Rosa serão feitas utilizando-se as
seguintes abreviaturas:
M - Magma
S – Sagarana
MM – Manuelzão e Miguilim
UP – No Urubuquaquá, no Pinhém
NS – Noites do sertão
GSV – Grande sertão: veredas
PE – Primeiras estórias
TU - Tutaméia
EE – Estas estórias
AP – Ave, palavra
ECB – Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................10
1 ROSA E OS ANIMAIS.. ................................... ......................................................15
1.1 Rosa e os Animais – cartas e relatos............... .....................................................15
1.2 Magma em Sagarana ............................................................................................24
1.3 Rosa e os Animais – Sagarana...............................................................................32
1.3.1 Um Sapo Chamado Lalino...................................................................................34
1.3.2 Um Jumento, Um Renascimento..........................................................................40
2. ESTÓRIAS DE BURROS E DE BOIS....................................................................49
2.1 Animais de Boa Vontade........................................................................................49
2.2 O Burro e a Água....................................................................................................52
2.3 Os Bois e a Luz........................................................................................................65
3. ESTÓRIAS DE MENINOS E BOIS........................................................................76
3.1 O Tudo em Todos...................................................................................................76
3.2 Pretinho e os Bois....................................................................................................83
3.3 Tiãozinho, o bezerro-do-homem............................................................................94
CONCLUSÃO..............................................................................................................105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................110
ANEXO.........................................................................................................................114
10
INTRODUÇÃO
Vegetal êle era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
(...)
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?
(Carlos Drummond de Andrade)
Os questionamentos de Drummond oportunizam-se. Uma vez que se referem a João
Guimarães Rosa, homem que encerra na própria denominação parentesco com o mundo
vegetal. Sob esse prisma, o sobrenome antecipa-lhe a cosmovisão capaz de agregar múltiplos
pensamentos
1
, embora a essência destes seja apenas uma: o desejo de comunhão com o todo.
Tal desejo emerge das mais de duas mil páginas de sua escritura.
A grandiosa obra de Guimarães Rosa, construída ao longo de três décadas, proporciona
extensa apreciação para diversas áreas do conhecimento. Essa riqueza temática deve-se ao
fato de que estamos diante de um estudioso contumaz
2
que se entregava a um árduo trabalho
de pesquisa antes de elaborar e concluir suas estórias. O perfeccionismo do escritor não lhe
permitia “esperdiçar” palavras. Por isso guardava seus escritos rejeitados a priori para uma
futura utilização
3
. Em carta ao tio, Vicente Guimarães (2006, p.137) escreve: “segundo
concebo arte é coisa seriíssima, tão séria quanto a natureza e a religião.” (grifo nosso)
Dessas três categorias eleitas como basilares uma sempre nos chamou especialmente a
atenção: a natureza.
Estudiosos do escritor observaram que botânicos, folcloristas, geógrafos e
historiadores, entre outros, encontrariam rico material para se debruçarem diante dos textos
1
Ver ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira,2003 p. 90-1
2
Ver NASCIMENTO, Edna Maria F. S. O texto rosiano – documentação e escrita. IN: Revista Scripta. v.2, n.3.
Belo Horizonte: PUC Minas, 1998. p. 71-9
3
Ver ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. 2 ed. Rio de Janeiro, 1999. p.
82
11
rosianos. Alargando um pouco mais essa lista, podemos incluir o ecólogo que aborda as
relações do homem com o ambiente. Todavia, interessa-nos somente um ramo dessa ciência
denominado ecologia profunda, ecologia radical, ou ainda ecologia espiritual segundo a qual
o homem não se configura “sujeito” isolado ou acima de uma realidade reduzida à condição
de objeto, antes se integra ao universo em escala espiritual. Esta corrente ambientalista
suplanta os limites científicos e funda-se nos preceitos de fontes diversas, entre elas o
taoísmo, o budismo e grandes nomes da cristandade, como São Francisco de Assis.
O próprio Guimarães Rosa em consonância com o pensamento ecológico radical ou
profundo confessa a Bizzarri (ECB: 90-1) sua preferência pelo Tao, Vedas e Upanixades, São
Paulo, Platão, Plotino e principalmente Cristo. Expressa o desejo de abarcar o mundo sob uma
perspectiva holística em busca do homem universal integrado ao cosmos.
Leonardo Boff (2001, p. 25) ressalta que tanto para indígenas, físicos quânticos,
biólogos, e ecólogos “tudo é vivo e tudo vem carregado de mensagens que importa decifrar”.
Nessa conjuntura, uma árvore, por exemplo, não é uma mera árvore, antes “tem muitos braços
que são seus ramos, tem mil línguas que são suas folhas, ela une a Terra, pelas raízes, com o
Céu, pela copa. Ela está sempre em relação com o Todo.” Igualmente, os demais seres se
correspondem, seja entre si, com os outros ou, mais amplamente, com o universo.
Guimarães Rosa interessava-se pelo mundo natural. O que exporemos para comprovar
nossa afirmação, não abarca a profundidade ou extensão da natureza na ficção rosiana, porém
demonstra-a, mesmo que em medida diminuta. Em Magma temos o poeta maravilhado diante
da beleza e mistérios das águas, conforme os poemas “Águas da serra”, Chuva”, “Toada de
chuva”, “Caboclo d’Água”, “No Araguaia I”, II,III e IV. Nas narrativas de Sagarana, as
personagens enlaçam-se a elementos naturais: o amor aos bichos transparece em Corpo
fechado; a equiparação homem/animal efetiva-se em A volta do marido pródigo; a fusão ao
ambiente processa-se de formas distintas em Sarapalha, São Marcos e A hora e vez de
Augusto Matraga; a fusão entre seres pertencentes a espécies diferentes ocorre em O
burrinho pedrês e Conversa de bois.
As sete novelas de Corpo de baile, por sua vez, são uma representação cosmológica
4
,
cada uma reportando-se a um corpo celeste. Grande sertão: veredas apresenta personagens
ligados aos rios Riobaldo e Diadorim. Em Primeiras estórias, nos contos inicial e final, o
protagonista Menino descobre o mundo através de sentimentos despertados com a aparição ou
desaparecimento de perus, vaga-lumes ou tucanos. Em Terceiras estórias o Menino em
4
Conforme ARAÚJO, Heloísa Vilhena. A raiz da alma. São Paulo: EDUSP, 1992.
12
algumas passagens desloca conceitos preestabelecidos, pondo em xeque o senso-comum,
como em “O verdadeiro gato” ou “A risada”. Em Estas Estórias, o conto Meu tio o Iauaretê
descreve uma fantástica, lenta e gradual metamorfose: o caçador transforma-se em caça
onça e nesse intervalo tomamos contato com os sentimentos dele pela canguçu Maria-Maria.
Em Ave, palavra temos poemas dedicados aos pássaros – Histórias de fadas, Uns inhos
engenheiros ; aos animais dos zoológicos e aquários – Zôo (Rio, Quinta da Boa Vista),
Aquário (Nápoles); aos jardins e riachos – Jardim fechado, O riachimho Sirimim, Recados do
Sirimim, Mais meu Sirimim.
Retornando às categorias mencionadas por Guimarães Rosa arte, natureza e religião –
podemos afirmar que as três amalgamam-se perfeitamente em sua obra. Afinal, o que são seus
textos se não uma complexa reflexão acerca da palavra e de seu poder. Pela palavra, objeto de
estudo da arte literária, Rosa expressa sua concepção religiosa a qual tem como premissa o
desejo de religar o ser humano ao universo. Nessa perspectiva, a natureza comparece como
um organismo vivo. A esse respeito, em uma carta de Hélio Pellegrino a Nancy Mangabeira
Unger (apud, UNGER: 1991, p.18-9) registra-se:
[...] Religião é coisa da terra, é antiatomização desintegradora, anti-solidão.
Somos parentes de tudo – do Outro, da terra, da água, da pedra. Somos
parentes, ligados, tecidos no tapete do Cosmos. [...] O homem, filho, neto,
bisneto, tataraneto do Cosmos, é o olho translúcido dele [...] Ser religioso é
antes e acima de tudo, acreditar no mundo e no Outro: amar o Próximo, amar
o mundo, suas colinas, seus gramados, seu peixe, seu vinho. Ser religioso é ter
a coragem de crer que o homem tem, como destino último, a vocação de ligar-
se, de encontrar-se, de afirmar sua pertinência a tudo o que existe. Este
processo de ligar-se de encontrar-se é, por sua vez, dialético. Ganha-se e
perde-se, encontra-se e desencontra-se, dia e noite, escuridão e claridade,
silêncio, palavra. Tudo são pedras para construir o encontro o presente de
Eros.
A citação encontra respaldo na existência e na literatura de Guimarães Rosa que se
insurge contra a desintegração e desagregação familiar, ao não se atrelar somente aos
membros que carregam os mesmos genes, o mesmo sangue. Evidência acentuada está no
amor devotado aos seus animais de estimação, conforme veremos adiante. Estabelecendo um
paralelo entre o escritor mineiro e Miguilim, Vilma Guimarães Rosa (1999, p. 52) informa
que na infância em Cordisburgo o pai brincava procurando ter um maior contato com as
coisas, “forcejando por ver mais de perto a forma e a substância de tudo. Examinava um elo
de cada vez, a corrente da vida” e maravilha-se a cada descoberta, a vida jorrava. A atitude de
Joãozito aponta para uma tomada de consciência de que “Somos parentes de tudo do Outro,
da terra, da água, da pedra.”
13
Sobre o dueto natureza/espiritualidade Mônica Meyer (2008, p.200) registra A
natureza é um ritual de passagem para alcançar a espiritualidade, a transcendência.” Apesar da
significativa importância do mundo natural para o escritor, um levantamento dos estudos
críticos nos indicou, conforme o viés por nós traçado, poucos volumes vinculados a essa
temática. Dentre esses, um nos foi de preciosa valia: Ser-tão natureza – a natureza em
Guimarães Rosa, de nica Meyer. Livro primoroso, nele encontramos corroboração para
muitas idéias que necessitávamos averiguar.
Se fauna e flora configuram-se como elementos constitutivos da obra rosiana, não
podemos nos furtar a um exame (ou tentativa) acerca dessa temática. Assim, após leituras
reiteradas, a imbricação das personagens ao cenário nos chamou sobremaneira a atenção.
Responde por esse trabalho, portanto, o desejo de contribuir para o aprofundamento da
questão da inserção humana na natureza em textos de Guimarães Rosa, consequentemente,
compreenderemos a natureza como um elemento de integração do ser humano ao universo.
Entretanto, tornou-se forçoso uma demarcação do tema. Dessa forma, procedemos a um
primeiro recorte optando pelo livro em prosa de estréia do escritor. Uma leitura mais
específica nos revelou que duas das nove novelas de Sagarana apresentam interessantes
convergências. Assim sendo, pretendemos verificar o vínculo homem-natureza e, mais
especificamente, homens-animais em O burrinho pedrês e Conversa de bois. Finalmente,
nosso processo de delimitação concluiu-se.
Deste modo, dividimos o texto em três capítulos. No primeiro nos detivemos na
compilação de textos críticos, cartas, relatos e a entrevista concedida por Guimarães Rosa a
Guinter W. Lorenz - material imprescindível para estudos rosianos sobre a presença dos
bichos na vida (infância em Cordisburgo, vida doméstica no Rio de Janeiro, viagens ao
exterior e ao interior de Minas Gerais, passeios) e na obra do escritor ( restringimo-nos a A
volta do marido pródigo e A hora e vez de Augusto Matraga). Destarte, será possível ressaltar
os distintos contornos assumidos pelos animais. Alem disso, procuramos apontar que muitos
temas e motivos de Sagarana acham-se em Magma, conforme estudo de Maria Célia Leonel
(2000).
Dedicar-nos-emos no segundo capítulo, à analise das figuras do burro e do boi tendo
como ponto de partida o poema “O burro e o boi no presépio”, de Ave, palavra, poema
elaborado após observação de telas medievais e renascentistas que retratam o evento maior da
cristandade: o nascimento de Jesus. Todavia, inesperadamente, Rosa volve o olhar não para a
santíssima família, mas para os “animais de boa vontade” que revestidos por uma aura
transcendental exprimem a compreensão rosiana pautada na presença de forças sobrenaturais
14
que concorrem para o encontro de todos. Essas forças atuam em O burrinho pedrês e
Conversa de bois.
Nesse enfoque, vislumbramos a construção das individualidades do burrinho Sete-de-
Ouros, protagonista da primeira narrativa em análise, cuja sabedoria formada agiganta-o
“porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no
resumo de um dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas
horas” (S: 30) e dos bois de carro da segunda novela supramencionada Brabagato, Buscapé,
Brilhante, Realejo, Canindé, Namorado, Dançador, Capitão cuja tomada de consciência
desenvolve-se de forma crescente até atingir o ponto máximo.
No terceiro capítulo, aproximaremos as figuras humanas e bovinas e nos valeremos
para tanto de textos que abordam a inserção do homem na natureza, entre eles os de Nancy
Mangabeira Unger, Leonardo Boff, Edward O. Wilson, lendas indígenas e mitos da
antiguidade clássica. Nesse contexto, compreendemos a escrita rosiana como um receptáculo
da profunda espiritualidade que une todas as criaturas entre si e com o criador. O burrinho
pedrês e Conversa de bois, oferecem além da presença dos animais, a das crianças. Juntos
esses seres, detentores do deslumbramento do literato, operarão verdadeiros milagres.
Transgredindo as margens da normalidade, conseguirão ultrapassar os próprios limites e
vencer as adversidades: a dominação (bois), o exílio forçado (menino pretinho) ou a morte do
pai (Tiãozinho). Para alcançarem tais prodígios os oprimidos enlaçam corpos e/ou mentes e
imbricados tornam possível o que parecia impraticável.
15
1 ROSA E OS ANIMAIS
1.1 Rosa e os Animais – cartas e relatos
Meu cavalo é minhas pernas,
meu arreio é meu assento,
meu capote é minha cama,
meu dinheiro é meu sustento
(Boiada)
Difícil pensar em João Guimarães Rosa (1908 1967) sem, imediatamente, vir à tona a
idéia do homem multifário que se transformou num dos maiores nomes da literatura nacional.
Trata-se de um dos brasileiros mais prestigiados no exterior, tendo sua obra vertida para
diversas línguas: francês, inglês, alemão, italiano, espanhol, sueco, tcheco e japonês entre
outras. O discreto escritor mineiro fez da breve estada neste mundo uma escalada em direção
ao conhecimento.
Foi médico, soldado, diplomata, escritor, admirador atento e sensível de cavalos e
vacas, estudioso incansável de religiões e idiomas. Tais experiências e tendências formaram
seu universo mais íntimo, conforme declara em sua célebre entrevista a Gunter W. Lorenz por
ocasião do Congresso Internacional de Escritores Latino- Americanos realizado na cidade de
Gênova em 1965. Some-se a essas experiências e tendências o fato de Guimarães Rosa
considerar-se, acima de tudo, um homem do sertão:“ É que eu sou antes de mais nada este
homem do sertão.” ( 1991, p. 65) E então, se terá certa medida de sua singular cosmovisão
determinada pela vastidão e profundidade de seu pensamento.
Ensaia os primeiros passos na carreira literária em 1929/1930 com quatro contos
premiados e publicados. Três nas edições de O Cruzeiro (Rio de Janeiro): “O Mistério de
Highmore Hills” (7 de dezembro de 1929), “Chronos Kai Anagke” (21 de junho de 1930),
Caçadores de Camurça” ( 12 de julho de 1930) e “Makiné” no também carioca O Jornal em
(09 de fevereiro de 1930). Nos primeiros contos, o escritor situa as estórias em locais
longínquos. “O Mistério de Highmore Hills” ambienta-se em terras escocesas, nos tempos dos
velhos clãs e “Chronos Kai Anagke” passa-se no sul da Alemanha. Ambos referem-se a
lugares e nomes de personagens de som extravagante como a família Glenpwy ou o castelo de
Duw-Rhoddoddag no primeiro e os personagens Zaviazline e Ephrozine no segundo. Já
16
“Caçadores de Camurça” ambienta-se nos Alpes e “Makiné”, embora tenha como cenário
terras brasileiras, mais especificamente o interior de Minas Gerais, passa-se em tempos
remotíssimos.
Para Vilma Guimarães Rosa (1999, p.71) essas preferências refletiam, provavelmente, o
desejo de transportar-se para outras paragens apenas vislumbradas nas leituras ao que
complementa: “Nem estava formado o seu estilo, nem descobrira os grandes temas que o
esperavam na sua própria terra, no sertão onde nascera.”
Em entrevista à prima Lenice, a 19 de outubro de 1966, Rosa afirma que desde muito
pequeno brincava de imaginar estórias intermináveis baseadas na geografia, matéria de que
sempre gostou, colocando personagens e cenas nas mais variadas cidades e países: “um
faroleiro na Grécia que namorava uma moça no Japão, fugiam para a Noruega, depois iam
passear no México...” (GUIMARÃES: 2006, p. 167)
O interesse do escritor pela geografia era tamanho que como presente de seu
sétimo aniversário pediu ao padrinho Luis o livro Geografia Lacerda que continha todos os
mapas, conforme Vicente Guimarães (2006, p. 43). Em Minha gente, quinto conto de
Sagarana, a tendência de imaginar estórias intermináveis e dispor personagens nos mais
variados países se manifesta na passagem em que José, durante a sesta, cochila na varanda da
casa do tio Emílio:
[...] Meu espírito fumaceou por ares de minha posse e fui, por inglas de
Inglaterra, e marcas de Dinamarca, e landas de Holanda e Irlanda. Subi à visão
de deusas, lentas apsaras de sabor de pétalas, lindas todas: Daria, da Circássia;
Ragna e Aase; e Gúdrun, a de olhos cor de fiordes ; e Vivian, violeta; e Érika,
sílfide loira; e Varvára, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Vladislava,
císnea e junoniana; e a princesinha Berengária, que vinha sutil, ao meu
encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos... (S: 238)
José sonhava com moças brancas estrangeiras, mas quem veio ao seu encontro foi a
antiga namorada, o primeiro amor, a prima Maria Irma, morena, de olhos e cabelos negros. E
tal qual o personagem o autor também se viu despertado pelas belezas sertanejas. Na infância,
Rosa se encantava com o espetáculo proporcionado pelas maravilhas do interior. Num
primeiro momento da carreira literária, escapa de seu espaço original para logo adiante voltar
a ele com interesse redobrado.
Na infância, fauna e flora despertavam-lhe a atenção. Possuidor de hábitos considerados
inapropriados pelo pai, o menino sossegado, calado, observador, lia muito e brincava
raramente. Em declaração sobre esse tempo relembra:
Armar alçapões para apanhar sanhaços – e depois tornar a soltá-los. Que
maravilha! Puxar sabugos e espigas de milho, feito boizinhos de carro,
brinquedo saudoso: atrelar um sabugo branco com outro vermelho, e mais
17
uma junta de bois pretos sabugos enegrecidos pelo fogo. Prender
formiguinhas em ilhas, que eram pedras postas num tanque raso, e unidas por
pauzinhos, pontes para formiguinhas passar. Aproveitar um fiozinho d’água,
que vinha do posto das lavadeiras e mudar-lhe duas vezes o curso, fazendo-o
de Danúbio ou de São Francisco, ou de Sapakral-lal (velho nome inventado)...
(GUIMARÃES, 2006, p. 30)
Características como sensibilidade e imaginação transparecem na afirmação acima a
propósito do amor pelos pássaros, bois, rios e geografia. Sobre o amor pelos animais, o tio,
Vicente Guimarães recorda que certa vez saíram para caçar ele, o sobrinho e Juca Bananeira
5
.
O alvo era o papa-capim, entretanto, um tico-tico pousou dentro da armadilha e espantou o
pássaro cobiçado que estava prestes a tornar-se prisioneiro. Juca, enfurecido, afinal, os
garotos haviam montado campana desde cedo, retirou a faca da cintura para matálo. Joãozito,
como era chamado, não consentiu, tomou o passarinho e depois que o outro foi capturado
soltou o intrometido indesejado. Outra vez, acompanhou o pai numa caçada. O tempo se
arrastava e Florduardo acabou adormecendo, e foi, então, que um veado apareceu. O filho
gritou e acabou assustando caça e caçada. Mais tarde, confessou à mãe a satisfação com a
fuga do bicho. Depois desse episódio, nunca mais quis participar de caçadas
6
.
Nas férias em Cordisburgo
7
sua atividade maior consistia em organizar um museu de
folhas secas e insetos, interessava-se pelos vegetais. Conseguiu um livro de botânica com
mapas e esquemas de classificação, queria saber as características e os nomes científicos e
populares das plantas, procurava informações nos livros e com pessoas mais velhas. Esse
hábito permaneceria por toda sua vida nas consultas a dicionários, enciclopédias, livros
técnicos e ao pai que se tornou um informante das coisas, pessoas e cultura do sertão.
Outra distração era assistir ao embarque de boiadas. Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte recebiam gado de corte de Cordisburgo. A chegada da boiada modificava a rotina
do arraial. Portas se fechavam ficando apenas as janelas abertas, as mulheres recolhiam as
crianças das ruas e as famílias olhavam pelas frestas o desfile dos bois e dos boiadeiros até a
estação, como poderemos verificar em O burrinho pedrês. Supõe-se que o interesse do
escritor por esses animais tenha se originado nesses eventos. Rosa tornou-se um grande
conhecedor das raças e cores, das vestimentas dos vaqueiros e até das peças componentes de
um carro-de-boi. Reportando à entrevista a Lorenz o escritor revela:
5
Conforme registrado em GUIMARÃES, Vicente. Joãozito, a infância de João Guimarães Rosa. 2 ed. São
Paulo: Panda Books, 2006. p. 31 a 33.
6
Rosa refere-se a esse episódio em entrevista a Pedro Bloch: Uma não entrevista de Guimarães Rosa. Manchete,
Rio de Janeiro, 01.06.1963.
7
IDEM. p. 65 a 69.
18
[...] As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de
quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito sobre para sua
vida e a vida dos outros. [...] quando alguém me narra um acontecimento
trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito
da tristeza do mundo!”. Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por
vaqueiros. Então tudo andaria melhor.
Na infância, segundo Vicente Guimarães (2006, p. 36-8) vários bichos o cercaram,
entre eles um veadinho que o pai trouxera de uma caçada. Rosa propôs-se a alimentá-lo,
tornaram-se grandes amigos. Também o pai trouxe três ou quatro ovos de perdizes que foram
chocados em casa, ao nascerem os filhotes receberam o carinho de Joãozito. Um casal de
sagüis viveu preso em correntes por algum tempo, depois, domesticado, viveu solto. Um dia,
a empregada distraída depositou o ferro de engomar sobre o quarto traseiro da fêmea que a
acompanhava na labuta. Horas depois morreu. Joãozito chorou essa perda e sofreu ainda mais
quando o macho mudou o comportamento. Passou a refugiar-se no alto da casa e não
correspondia mais aos carinhos das crianças. Dias depois morreu. De uma tia ganhou um
carneirinho branco que se tornou inseparável do dono. Havia ainda dois perdigueiros
afamados que eram o orgulho de Florduardo Cedem e Pivot. No quintal habitavam uma
cabra, pombos, patos, galinhas, marrecos.
João Guimarães Rosa amava os animais. Criador de gatos e cachorros, seus últimos
bichanos foram Tout-Petit, Xizinha e Boizinho. Um papagaio chamado Louro trazia alegria à
sua casa, tossia, cantava, assoviava, chorava imitando criança, aboiava, grugulejava, falava
várias palavras, segundo o autor relata em carta de quinze de julho de 1952 ao pai. Tinha uma
gaiola especial, grande e moderna. Os vizinhos também desfrutavam de sua companhia
quando ele fugia: “quando a empregada vai buscá-lo, sempre pedem deixar que fique mais um
pouco, pois ele teve tempo de agradar os novos hospedeiros. É um pândego.” (ROSA:
1999, p. 206)
Um cachorrinho felpudo Sung morreu e foi enterrado no cemitério de cães em
Mangueira. Na lápide escreveu-se apenas “Sung, Sunguinho de Deus”. Nas correspondências
do autor de Sete-de-Ouros muitas referências a esse cachorro. Na carta de 5 de julho de
1958 (ROSA: 1999, p. 222) dirigida aos pais relata, entre outros assuntos, que na visita à
Brasília, onde esteve no começo de junho, observou que desta vez não viu mais tantos bichos
e aves como em janeiro do ano anterior. Sentiu falta, então, do vôo baixo das perdizes, dos
jacus que fugiam com estardalhaço para o mato e também dos veados e seriemas. Ao final,
avisa que, em anexo, envia a foto de Sung, seu pequinês e dos gatos Boyzinho e Xizinha.
19
Escreve sobre Xizinha em várias cartas destinadas à filha Agnes, como as de 4 e
outubro de 1949, 29 de maio de 1950 e 19 de agosto de 1950. Em todas elogios à beleza,
esperteza e inteligência da gata que mais parecia um cachorrinho de tão afetuosa, segundo
Rosa: “Não gosta de ficar sozinha, acompanha a gente pela casa, e mia chamando a todos para
brincar com ela. Tem seis bolas de ping-pong, um ursinho de pano, uma velha chupeta,...”
(ROSA: 1999, p.277-9). Em entrevista a Jorge de Aquino Filho, a filha Vilma ressalta que o
pai foi um amigo dos animais tendo muitos gatos e um cachorrinho e que “o gado o enternecia
e os pássaros o alegravam” (ROSA: 1999, p. 143).
A morte de Sung causou-lhe grande abalo, entrevemos parte dessa consternação na
carta ao amigo Paulo Campos de Oliveira que havia perdido a cadelinha Mini e sabendo da
tristeza do colega escreveu-lhe dizendo que as pessoas compreendem melhor o sofrimento
alheio quando são atingidas pela mesma dor. Ao que Rosa respondeu:
[...] Compreendo o que vocês estão sentindo. Dói muito, Paulinho. E a gente
não esquece nunca. Apenas com o tempo vai ficando mais suave e calmo;
mas, tem hora, torna a apertar. Meu SUNGUINHO está no cemiteriozinho
deles, perto da Quinta da Boa Vista, e vou, sempre, ao menos uma vez ao
mês, para um preito de carinho. E o Tout-Petit, morto 13 anos, também
vige e machuca, na memória mais sentida. Mas eu creio, firmemente, que os
animais têm alma, e que, algum dia, sob não sei que forma, havemos de rever
os nossos aos quais o amor desinteressado uniu, e, ainda mais, talvez, o
sofrimento. Assim, a gente se consola. (ROSA: 1999, p. 369)
A primeira parte de Sagarana Emotiva (1975) destina-se ao depoimento de Paulo
Dantas acerca da convivência que tivera com Guimarães Rosa. Nessa seção, revela alguns
detalhes da vida doméstica do escritor mineiro. Obra composta por doze textos, em três
menção à relação de Rosa com seus animais de estimação. O primeiro desses, “Entremeio”,
alude a uma visita ao apartamento do amigo e enfatiza em vários trechos a presença dos gatos
e a satisfação do dono em estar e até se misturar a eles, (lembra o comportamento de meu tio
o Iauaretê) conforme transcrevemos a seguir:
Em casa, estava Rosa, íntimo, comungante, ao lado de belos gatos
aveludados. De olhos espertos. Rosa neles se esfregava voluptuoso.
[...]
Os gatos pastavam em cima da mesa, misturados aos troféus
colecionados. [...] com os gatos, movia-se a pessoa de Rosa. Cediça. (p.21)
Ali estava ele, aquela tarde mansa, em seu apartamento. Despojado. Ao
lado dos gatos, felinamente. (p.22)
O apartamento de Rosa era um navio e havia um gato. Angorá belo, de
olhar prateado, fixo. Mesmo em terra, sentia-me um marujo em veredas-
travessias. (p.23)
no segundo texto “Mais brincadeiras”, notamos um equívoco, Dantas refere-se a
Sung classificando-o como gato: na intimidade de sua casa nos gerais da Guanabara, no seu
20
apartamento, vi muitas vezes, Rosa cercado de aveludados gatos de raça, dentre os quais, o
seu predileto parecia ser aquele Sung, que um dia morreu deixando Rosa na maior dor desse
mundo.” (1975, p.41) O mesmo ocorre em “Estórias sonhadas” quando se evoca o impacto
provocado pela morte de Sung ao escritor: Uma tarde no Itamarati, Rosa estava por demais
“carregado”. Rezava e chorava muito. Havia morrido o seu gato de estimação, Sung –
“Sunguinho de Deus”, como ele exclamava em lágrimas.” (IDEM, p. 44)
Seus animais de estimação transformaram-se até em personagens. Em “Além da
amendoeira”, espécie de crônica, quadragésimo texto de Ave, palavra, o escritor descreve um
encontro ecológico inusitado entre ele e Carlos Drummond de Andrade, durante o habitual
passeio vespertino de Sung em que buscavam “o certo no incerto, a tão bom esmo” (AP:280).
De fato, o certo no incerto se deu, ao observar uma casa diferente das demais, que se
assemelhava à de contos de fadas, alguém lá de dentro apareceu e era Drummond que
resguardava uma pequena amendoeira da criançada malina e de arruaceiros. Assim, se
descreve a cena: “Eu com o Sung à tira, conforme ele se estendera no chão, desistente. E
Drummond de constantes olhos em seu fiozinho de amendoeira-infante. O amor é passo de
contemplação; e é sempre causa.” (AP: 283) No final do texto, o autor menciona outra
amendoeira, a que ficava em frente à sua casa, debaixo dela enterrou Tout-Petit que “era
um gato, um gato, um gato... Além. Ah, as amendoeiras.” (IDEM) Com essa frase o
escritor parece despedir-se e distanciar-se do gato.
Para Guimarães Rosa os animais têm alma e a admiração e o respeito que inspiram
transparecem em sua escritura. Sabe-se que em suas viagens perguntava aos vaqueiros se os
bois tomavam amor, se tomavam ódio; enfim, tentava extrair dos condutores de gado a
concepção de mundo que tinham. Tal como podemos perceber na entrevista-retrato Com o
vaqueiro Mariano, da qual reproduzimos uma passagem em que se descreve o amor das vacas
por seus bezerros:
[...] E, oco, rouco, ameaçador, o arroto das zebus. Todas. Enerva, o
bradar delas, se exaspera. Com seu leite, outra coisa se acumula, fluida,
expansiva, como o corpo de uma água pesando enorme na represa. O tormento
da separação trabalha-lhes um querer sabido algo que da terra à alma, precisa
do carinho da carne.
[...]
Mas, no crepúsculo da manhã, os mugidos vão pungentes; tremulam. O
que é sopro e músculos, e golpe no ar, se hospeda música nos ouvidos.
- É essa aflição sangrada... todo dia elas fazem reclamação... Ser mãe é
negócio duro...
As vacas mugem vibra no espaço, tonto, terno, quase humano, o
sentimento dos brutos. Liberta-se, doendo, o antigo amor, plantado na matéria.
(EE: 107)
21
Decorrência da sensibilidade, vivências, observações e estudos a concepção rosiana de
uma natureza animada chega ao ponto de torná-la personagem. Para apreender os aspectos
geográfico, social e cultural do sertão o escritor tornou-se um incurável pesquisador. Edna
Maria F. S. Nascimento (1998, p. 71 73) aponta algumas técnicas desenvolvidas por Rosa
para armazenar material para as estórias, como as incursões a Minas Gerais; as assíduas
consultas a dicionários; o apoio de livros especializados e de especialistas para a denominação
e descrição exata de animais, sobretudo bois e cavalos; o contato direto com animais do
zoológico; o auxílio de informantes, principalmente o pai que por cartas enviava notícias e
“causos” do sertão; os glossários construídos nas correspondências com os tradutores; o
conhecimento de idiomas; o hábito de recortar textos e fotos de animais, preferencialmente
bois e cavalos e os que com eles se relacionam carros-de-boi, vaqueiros, tropeiros etc.; a
confecção de listas de palavras, normalmente em ordem alfabética, seguidas da tradução
intralingual.
Essa tenaz pesquisa do escritor pode ser sentida, para citar apenas um exemplo, em
Cara-de-bronze, quarta novela de Corpo de baile, na passagem das reminiscências da viagem
de Grivo que figuram em apêndice ao texto, as quais deixam transparecer a devoção do
mensageiro do Urubuquaquá pela natureza. Trata-se de uma extensa nota de rodapé que se
prolonga por várias páginas.
8
Neste documento à parte, verdadeiro manual da paisagem
sertaneja, apresenta-se uma profusão de nomes de plantas e animais. A lista principia por uma
pergunta que condensa homens e vegetais num corpo: “- E que árvores, afora muitas, o
Grivo pôde ver? Com que pessoas de árvores ele topou?” (UP: 149) A resposta chega com
centenas de exemplos, entre eles: ana-sorte, sebastião-de-arruda, maria-pobre, joão-curto,
joão-correia, frei-jorge, uru-joana, capitão-cascudo, jana-uma, carrancuda. O mesmo processo
se repete com uma longa relação de carrapichos, cipós, ervas, capins e aves.
9
Enternece a leitura da longa descrição do escritor a Bizzarri (ECB: 40-2) acerca das
veredas em que começa estabelecendo os limites dos gerais ou campos gerais que se estendem
por trechos de Minas Gerais, Bahia e Goiás até chegar ao Piauí e Maranhão. As chapadas são
típicas dessa área, “(planaltos, amplas elevações de terreno, chatas, às vezes serras mais ou
menos tabulares ou chapadões grandes, imensas chapadas, às vezes séries de chapadas.) São
de terra péssima, vários tipos sobrepostos de arenito, infértil.” O solo poroso absorve
rapidamente a água das chuvas. Depois, situa as veredas que ocorrem separando as chapadas
8
Ver (UP: 149-159)
9
O apêndice referido não é uma mera relação de elementos da natureza. A economia de orações, não impede a
leitura. Nas entrelinhas, uma outra estória camuflada, confidenciada ao tradutor italiano: o encontro amoroso
de um casal. Ver (ECB: 94)
22
ou no alto destas, e em depressões no meio delas: “são vales de chão argiloso, onde aflora a
água absorvida. Nas veredas sempre o buriti. De longe, a gente avista os buritis, e se
sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis.” Diferenciam-se das chapadas pelo capim
verdinho, claro, bom, pela fertilidade e pela grande presença de animais.
Mais adiante, descreve os resfriados, “encostas que descem das chapadas para as
veredas”, caracterizados pela grama rasteira. E continua com as veredas, explicando que
pequenas, grandes, compridas e largas e que os habitantes dos gerais ou das veredas, apesar
de chamados de veredeiros, são todos geralistas. Por fim, afirma que “o centro, o íntimo
vivinho e colorido da vereda, é sempre ornado de buritis, buritiranas, sassafrás e pindaíbas, à
beira da água. As veredas são sempre belas!”
Rosa fez duas incursões a seu estado natal, uma em 1945 e outra em 1952, unindo
prazer e trabalho numa mesma expedição. O escritor declara a Pedro Bloch (1963) que ao
percorrer Minas Gerais a cavalo descreve tudo ao redor e ao final seus cadernos de anotações
estão “impregnados de folha machucada, suor de cavalo e sangue de boi.”
A última, acompanhada pela revista O Cruzeiro, registra a travessia de uma boiada -
chefiada por Manuel Nardy, o Manuelzão - por um percurso de mais de duzentos e quarenta
quilômetros que tem início na Fazenda da Sirga, perto de Pirapora até a Fazenda São
Francisco, em Araçaí, próximo de Cordisburgo. Nessa oportunidade, ele colheu material
suficiente para preencher cadernetas as quais denominou de Boiada. Tomava nota de tudo,
palavras e expressões dos vaqueiros, histórias contadas por eles, descrições de paisagens e
animais, especialmente de bois, descrevendo-lhes os berros, os nomes, o aspecto, o compasso,
o comportamento, modificações fisiológicas e morfológicas, etc.
Também lhe chamam a atenção, segundo Mônica Meyer (2008) as flores (pela cor e
perfume) e os pássaros (pela cor e som), os sentidos se entrelaçam para embriagá-lo. Os
odores fétidos se presentificam, como no relato de um negro cujo mau cheiro cujo mau cheiro
sentia-se a léguas. Reitera-se a antropomorfização da natureza e o escritor representa a
fertilidade da paisagem por metáforas femininas e masculinas, como em: “perfil de um morro:
grotas: (púbis feminino)”, tornando-a sensual e erótica. A visão dos elementos naturais ora se
processa de forma imparcial e objetiva, ora se carregada de subjetividade. Até mesmo os
insetos comparecem nesses registros, sobretudo abelhas, marimbondos e borboletas. A
marcação do tempo ocorre pela observação do movimento dos astros e dos animais e também
pela floração de certas espécies vegetais. A posição solar referencia os vaqueiros. As pessoas,
como parte integrante da natureza, são descritas de tal forma que os limites de um ser
confundem-se com o do outro:
23
Nessas anotações percebe-se que as mulheres que colhem algodão
estabelecem uma relação muito próxima e íntima com o trabalho, diminuindo
as fronteiras que separam um ser do outro. Ao ler as notas pode-se imaginar
uma figura mitológica ou encantada, mescla de algodão e mulher, ou ainda a
humanização do algodão e a “vegetalização” da mulher. O mesmo acontece
com a imagem dos homens beneficiando o milho... (MEYER: 2008, p. 144)
a primeira viagem ocorreu de forma discreta em dezembro de 1945 sob o convite do
amigo Pedro Barbosa. Em carta de seis de novembro, o escritor comunica ao pai que passará
cinco dias em Belo Horizonte para rever a família e que depois seguirá para Vila Paraopeba,
Três Barras e Cordisburgo. No trecho abaixo, (ROSA: 1999, p. 179-180) avisa que se muni
de lápis e caderno para arquivar o mais que puder:
Além do prazer de passar 5 dias em B. Hte. e revê-los, a todos, preciso de
aproveitar a oportunidade para penetrar de novo naquele interior nosso
conhecido, retomando contacto com a terra e a gente, reavivando lembranças,
reabastecendo-me de elementos, enfim, para outros livros, que tenho em
preparo. Creio que será uma excursão interessante e proveitosa, que irei fazer
de cadernos abertos e lápis em punho, para anotar tudo o que possa valer,
como fornecimento da côr local, pitoresco e exatidão documental, que são
coisas muito importantes na literatura moderna.
Um dos passeios preferidos do autor de Grande sertão: veredas era visitar animais no
jardim zoológico
10
, costume praticado no Brasil e no exterior. Quando não podia, mandava
emissários. Sua filha, Vilma relata que o pai gostava de por passear, observar os animais e
desenhá-los: “Quando eu viajava, e perguntava-lhe se queria alguma encomenda, ele me pedia
livreto do Zôo, obrigando-me assim, a uma visita.”
Em viagens, Rosa não perdia a oportunidade de admirá-los. Em carta de vinte e cinco
de novembro de 1947, (ROSA: 1999, p. 184-5), descreve ao pai seu deslumbramento diante
da fauna do Pantanal a que ele chama de “Paraíso Terrestre”, onde os animais andam
livremente em grandes bandos e a variedade deles o fascina. São jacarés, tamanduás, onças
pintadas, pretas e pardas, emas, jaburus, caitetus, capivaras, veados, porcos-do-mato, patos,
marrecos, maitacas e uma infinidade de pássaros: garças, socós, biguás, baguarís, papagaios,
araras, socós-bois, itabuiaias, biguatingas, etc. O escritor apresenta um dia dessa viagem a
partir do itinerário de 11 de junho, hora a hora, em “Ao Pantanal”, trigésimo primeiro texto de
Ave, palavra.
Em freqüentes cartas ao pai, Rosa pedia que lhe enviasse descrição de paisagens, vacas,
bezerros, costumes, vestimentas, caçadas, pescarias, tipos, palavras e expressões, cantigas,
10
O fascínio do escritor por zoológicos e também por aquários rendeu os seguintes textos reunidos em Ave,
palavra: Zôo (Whipsnade Park, Londres), Zôo (Rio, Quinta da Boa Vista), Zôo (Hagenbecks Tierpark,
Hamburgo Stellingen), Zôo ( Jardin dês Plantes) e Zoo (Parc du Bois de Vincennes), Aquário (Berlim) e
Aquário (Nápoles).
24
crimes, seqüestro de moças, métodos de trabalho, festas e cerimônias, como batizados,
casamentos, enterros, fundação de Cordisburgo, época em que as pessoas mais compravam,
demandas, questões, brigas, papel dos padres João de Santo Antônio e Pedro, lembranças do
pai como comerciante e como juiz-de-paz, entre outras. Em carta de vinte e sete de outubro de
1953, (ROSA, 1999, p. 207-8), agradece as informações sobre os ciganos e o entrudo e
solicita detalhes acerca de doze itens, entre eles: jogo de baralho, caixeiros-viajantes curiosos
ou interessantes, nomes curiosos de lugares e pessoas, história do corpo de um homem
mumificado que se desenterrou em Jequitibá e foi conduzido à igreja, época das grandes
quantidades de peixes.
1.2 Magma em Sagarana
Vi três marrecas nadando
Outras três fazendo renda;
Também vi uma perua
Caixeirando numa venda
(Dão-Lalalão)
Prosseguindo nas trilhas da arte e na invenção de um estilo próprio, Guimarães Rosa
recebe, em 1936, prêmio da Academia Brasileira de Letras por Magma, seu único livro de
poesias. Publicado postumamente em 1997, o autor
11
expressa em discurso de agradecimento
ao prêmio: “O Magma, aqui dentro, reagiu tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se
de meu desamor e se fez criatura autônoma, com quem eu já não esteja muito de acordo,...”
(M: 9) Também a Lorenz (1991, p.70) faz menção ao livro de poemas sem maiores exaltações
e relata o trajeto até escrever Sagarana:
[...] Entretanto, escrevi um livro não muito pequeno de poesias, que foi
até elogiado. Mas logo, e eu quase diria que por sorte, minha carreira
profissional começou a ocupar meu tempo. Viajei pelo mundo, conheci muita
coisa, aprendi idiomas, recebi tudo isso em mim; mas de escrever
simplesmente não me ocupava mais. Assim se passaram quase dez anos, até
eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios
líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes.
11
Alguns críticos também manifestam descontentamento em relação a Magma, como Kathrin H. Rosenfield em
“O popular e o erudito: Lirismo e reflexão na obra rosiana”, ao focalizar a difícil fusão entre lirismo e reflexão
nesse livro. A autora também aponta, entre outros aspectos, pontos de interseção entre Rosa e os poetas
populares no que diz respeito à concepção da natureza.
25
Principalmente descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la
na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso,
retornei à “saga”, à lenda, ao conto simples, pois quem escreve esses assuntos
é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas. Então comecei a escrever
Sagarana.
Outro ponto de vista apresentou o relator da comissão julgadora da A.B.L., Guilherme
de Almeida, na emissão de um parecer de louvor ao livro vencedor: Nativa, espontânea,
legítima, saída da terra com uma naturalidade livre de vegetal em ascensão, Magma é poesia
centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita do que
temos e do que somos.” (M: 6)
Partindo da terra, o poeta antecipa o discurso ecológico que mais tarde viria a se tornar
moda e necessidade. A ascendência de Rosa, nesse sentido, parece significativa, uma vez que
o nome e os sobrenomes do pai, Florduardo Pinto Rosa, apontam para elementos da fauna
[pinto] e da flora (flor e rosa). Não por acaso, João Guimarães é Rosa, a comunhão entre
pessoa e sobrenome marca mágica ou misteriosamente (nas palavras do próprio escritor a
Lorenz: “Graças a Deus tudo é mistério”) a essência do ilustre mineiro que parece abdicar de
sua condição humana para escrever poesia brotada da terra.
O Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (s.d: 481) assim registra os
significados de natureza: “1. Todos os seres que constituem o universo. 2. Força ativa que
estabeleceu e conserva a ordem natural de tudo quanto existe. 3. Temperamento do indivíduo.
4. Espécie, qualidade.” Dessa forma, teceremos breves considerações acerca da presença da
natureza no livro de poesias de Rosa, seja de acordo com os dois primeiros significados acima
transcritos que remetem ao meio ambiente, ou de acordo com os dois últimos que apontam
para a essência do ser.
A natureza em sua poética constitui um microcosmo, verdadeiro espaço totalizante
onde os seres se completam. Procuraremos levantar nessa seção alguns aspectos da aguda
presença da natureza em poemas de Magma que versem acerca da integração homem-
natureza e/ou conservam proximidade com O burrinho pedrês, primeiro conto de Sagarana.
Em Magma, temos o poeta sensibilizado diante da natureza, desejando unir-se a ela
e com ela formar um corpo, um único ser. O próprio título remete a essa aspiração de
expandir-se, sair de si, libertando-se do que encerra a matéria, exteriorizar-se e fundir-se ao
que houver pelo caminho de acordo com os significados do vocábulo registrados no Novo
dicionário de língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (s.d.):
Magma [ Do gr. Magma, “pasta de farinha de trigo amassada”, pelo lat.
Magma] S. m. 1. massa natural fluida, ígnea, de origem profunda, e que, ao
esfriar-se, se solidifica, originando a rocha magmática. 2. matéria espessa que
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fica depois de se espremer uma substância. 3. Qualquer substância pastosa e
viscosa, como a lava, o vidro derretido, etc. 4. Linimento espesso. 5. Tec.
Num cristalizador, a solução saturada de onde precipitam os cristalitos.
Os três últimos poemas “Chuva”, Integração” e “Consciência Cósmica” expõem
claramente o desejo de integração, e em “Saudade” pode-se entrever esse anseio:
Saudade de tudo!...
Saudade essencial e orgânica,
De horas passadas,
Que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
De amigos nascidos noutras terras,
De almas órfãs e irmãs,
De minha gente dispersa,
Que talvez até hoje ainda espere por mim ...
Saudade triste do passado,
Saudade gloriosa do futuro,
Saudade de todos os presentes
Vividos fora dentro de mim!...
As estrofes revelam o pensamento metafísico do eu lírico que ultrapassa os limites
espaço-temporal e não se satisfaz com o palpável, o vivido e o presente. Antes reclama uma
existência maior e plena. As idéias desenvolvidas nas estrofes transcritas surgem mais nítidas
na última estrofe:
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta ao final
da grande experiência
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha uma gota
O Oceano
Afogado no fundo de si mesmo. (M: 132-133)
O platonismo se faz presente nos versos acima quando o poeta resgata a idéia da
existência de dois planos: o mundo sensível e o mundo das idéias ou das formas perfeitas.
Nesse contexto, a alma é eterna e busca inconscientemente voltar ao plano da perfeição onde
reside a Verdade inquestionável. A alma ao desprender-se do corpo purifica-se conforme a
tradição antiga. Logo, não cabe ao poeta temer, antes anseia pelo regresso ao estado original.
Assim, procede Guimarães Rosa, ao sacudir o sentido da existência humana,
confrontando à razão, à lógica, à estabilidade e à estagnação cotidiana uma outra face a do
27
onírico, do inconsciente, do feérico, englobando o invisível no visível e vice-versa . A
subversão às leis gerais que aviltam o homem de sua condição maior e a certeza de uma outra
margem (a terceira?) permeiam os escritos rosianos.
Em “Chuva” uma bela aliteração abre o poema: “Vai chover chuva de vento”. Esse
vento faz com que logo ao amanhecer os elementos da terra aflorem e se preparem para
receber as águas do céu. Os preparativos transformam-se em festa aos olhos do eu lírico que
observa as formigas cruzarem o quintal, as minhocas brotarem do solo, o joão-de-barro abrir a
porta de sua casinha para o sul, as sementinhas dançarem na poeira, o zebu escutar com a
cabeça encostada no chão o som dos trovões, os urubus levantarem vôo lento e reto, os bois
chegarem correndo do pasto à procura das árvores dos capões e o sapo dirigir-se para um
buraco onde logo mais uma lagoa se formará.
A observação do ambiente garante ao poeta a certeza de que irá chover e os detalhes
deste acontecimento lhe são revelados pelo olfato e visão “Já estou sentindo um cheiro
d’água, / que vem do céu cinzento”, (M:142) pelo comportamento dos animais formigas,
minhocas, urubus e bois. O joão-de-barro ao abrir a porta da casa para o sul indica que a
chuva virá do lado da serra. Não podendo conter-se diante da “festa”, o eu rico a ordem
para arrearem o cavalo para poder sair e integrar-se ao evento orquestrado pela natureza, antes
porém confessa seu estado de espírito:
Vai invernar ...
Eu hoje amanheci alegre,
Querendo cantar...
[...]
- Eh aguão!
- Olá, José, arreia meu Cabiúna,
liso do casco à testa
preto do rabo à crina,
que eu vou sair pelo serrado afora,
a galopar, com a chuva correndo atrás ...
Ela já vem, branquinha, cheirando a água nova,
e a serra está clarinha, neblinando ...
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando.
- Galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
E as sementinhas do meloso seco estão dançando ...
(M: 143-144) (grifo nosso)
Em outra situação não menos poética, também numa manhã de chuva: “Manhã noiteira,
sem sol, com uma umidade de melar por dentro as roupas da gente. A serra neblinava
açucarada” (S: 31) dá-se ordem para arrearem um animal . Desta vez em O burrinho
pedrês, conto de abertura de Sagarana. O bicho selado é o velho e sábio Sete-de-Ouros,
marcado significativamente com um coração no quarto esquerdo dianteiro. Ele comete o erro
28
de aparecer às vistas de seu proprietário, Major Saulo, em dia de condução de boiada da
fazenda à cidade: “equívoco que decide do destino e ajeita o caminho à grandeza dos homens
e dos burros.” (S: 35)
Sete-de-Ouros parte com a comitiva para a grande aventura de sua vida “porque a
estória de um burrinho como a história de um homem grande é bem dada no resumo de um
dia de sua vida.” (S: 30) Nos fragmentos transcritos de O burrinho pedrês evidencia-se a
equiparação entre homens e animais, ambos integrados sem hierarquização que os distinga.
Algo parecido ocorre entre Cabiúna e seu cavaleiro em Magma que correm juntos pela serra
na chuva.
Homem e natureza confundem seus corpos num êxtase dos sentidos onde ver, ouvir e
sentir constituem etapas essenciais para alcançar a almejada imbricação de seres que se
buscam em “Integração”. Dessa forma, o poeta encontra-se deitado no chão ouvindo as folhas
respirarem e os sanhaços e gaturamos cantarem a canção viva”, ao mesmo tempo em que
admira a oscilação das pontas dos cipós, o saltito dos gafanhotos e o crescimento da
trepadeira brava avançando em seus braços.
A essa altura” o céu / limpo, azul e côncavo na altura, / é um recanto do corpo, / pronto
a se contrair, / ao primeiro contato, / num único espasmo de volúpia sóbria...’ (M:145). O céu
- signo do divino – comporta o corpo – invólucro da alma e o resultado deste contato se traduz
em sensação de conforto e proteção como o ventre materno ao receber e alojar o bebê.
E, nessa entrega, seus dedos afundam no chão amolecido pelas chuvas como raízes e
desce-lhe “ao fundo do peito a terra inteira, no cheiro molhado de poeira” (M: 145) e seus
olhos sobem, tateando o verde. Com o natural ele se integra, porque também é natureza.
Talvez esse seja o poema em que mais explicitamente se fale sobre o desejo de ser um só com
a natureza como o próprio título “Integração” já anuncia.
Num crescendo, no derradeiro poema “Consciência Cósmica”, o eu lírico integra-se
cosmicamente à natureza e não tem a posse de seu corpo que agora pertence ao universo.
Sem temor, acima do bem e do mal, sem choro ou riso, em estado de completude, ele segue
sua jornada até finalmente sua alma libertar-se das cadeias corporais:
Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
Largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
Para o centro do remoinho de grande força,
Que agora flui, feroz, dentro de mim...
Já não tenho medo de escalar os cimos
Onde o ar limpo e fino pesa para fora,
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E nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
E deitar-me na lama, o pensamento opiado...
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
A dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
Das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
Dos desastres que erraram o alvo do meu corpo... (M: 146)
O medo figura no poema como a maior ameaça à entrega do sujeito, espécie de
repressor cuja existência restringe os campos de visão e ação. Afinal, era ele que tampava o
rosto e que o impedia de ir às alturas. Ainda, limitava o auto conhecimento da própria força
física e mental. Abandonado o medo pôde, enfim, aproveitar sem risos, antes em estado
contemplativo, ele no mundo.
Em Magma, entrevemos paisagens, cores, plantas e animais do sertão em poemas
como “Águas da Serra”, “Gruta do Makiné”, “Boiada” e “Madrigal”. Sobre as cores, os
poemas “Vermelho”, “Alaranjado”, Amarelo”, “Verde”, “Azul”, “Anil” e Violeta”
representam as cores do arco-íris também chamado de arco-da-chuva, arco-da-velha, arco-
celeste ou arco-da-aliança. Na Bíblia, o arco-íris é um sinal da aliança de Deus com os
homens. No livro de Gêneses, (capítulo 9, versículo 7) após o dilúvio Deus diz a Noé: “Este é
o sinal do pacto que deveras estabeleço entre mim e toda a carne que na terra.” Guimarães
Rosa ao escrever esses poemas dispondo-os exatamente na seqüência completa acena para a
união dos homens com o Criador.
Outros aspectos visíveis do livro são o forte vínculo com o folclore em “Iara”, “Caboclo
d’água”, “Assombramento” e Luar na Mata”; revelador poder de fabulação em “Ritmos
Selvagens”, “No Araguaia” (I, II, III, IV) e “A Terrível Parábola”; temas como o amor, a
doença e a religião em “Meu Papagaio”, “Reza Brava”e “Reportagem”. Têm-se as linhas
mestras do que iria irromper vivamente na prosa posterior.
Maria Célia Leonel, em Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra, levanta e estuda
relações intertextuais entre textos rosianos selecionando para tanto poemas de Magma que
exibem proximidade com a produção ulterior, sobretudo as narrativas de Sagarana (
Sarapalha, São Marcos, O burrinho pedrês e A hora e vez de Augusto Matraga ). A autora
aproxima os poemas “Boiada” e “Chuva” classificando-os como hipotextos dos quais O
burrinho pedrês constitui hipertexto
12
. Sobre a relação intertextual entre os textos
mencionados, registra-se:
12
Segue esclarecimento acerca dos conceitos intertextuais utilizados pela autora:
30
Em “O burrinho pedrês” [...] dois planos gerais na história: um deles
constrói o trajeto revelador da sapiência do burrinho até a salvação de dois
vaqueiros na grande enchente do córrego da Fome. O segundo plano é
formado pelo percurso da boiada, da arrumação na fazenda ao desenlace
trágico. Esse plano desdobra-se em outro: a tentativa de assassinato de um
vaqueiro, Badu, por outro, Silvino. O primeiro, em estado de embriaguês
completa, é duplamente salvo: da morte por assassinato, safa-se pela enchente
e escapa da própria cheia pela sabedoria do burrinho em que vinha montado.
Nesse momento, os planos encontram-se. Para o primeiro plano – o que revela
a grandeza do burrinho o episódio da enchente é fundamental.
Evidentemente, ela decorre da chuva que se pronuncia desde a terceira página
do conto e que tem como matriz a peça de Magma que a traz como
denominação. Quanto à viagem para levar os bois, a chuva e a sua
conseqüência, a cheia, criam o clímax e o desenlace fatal para os oito
vaqueiros. “Boiada” está na raiz desse plano da narrativa. (2000, p. 202)
Entre as semelhanças transportadas de “Boiada” para o conto a autora distingue: o aboio dos
vaqueiros “Eh boi!... Eh boi!...” (verso de abertura do poema que reaparece na narrativa em
várias passagens e, às vezes, com pequenas variações), os nomes dos vaqueiros (João Nanico
e Raimundo transformam-se em João Manico e Raymundo, Grande se mantém); o tom
épico (destaca-se em ambos os textos a heroicidade do vaqueiro, enaltece-se a coragem desse
trabalhador frente a animais ameaçadores); o ritmo ( recorrência da metáfora do som de
trovão na representação da marcha da boiada). Em “Chuva”, a autora assinala as seguintes
repetições: a condição climática (em ambos os textos a presença da chuva que desce do
morro); a reprodução da fala sertaneja (“Eh aguão”).
Anos depois da publicação de Magma, começa a germinar uma prosa poética
impactante
13
marcada pelo esmero com a linguagem, voltada para a terra e com autêntico
sabor de terra, causando alvoroço o livro que “chega cheio de terra”, conforme Antônio
Cândido (1991, p. 244) no ensaio “Sagarana”, uma vez que “Guimarães Rosa despeja nomes
de tudo – plantas, bichos, passarinhos, lugares, modas.”
A hipertextualidade é definida como toda relação unindo um texto B (hipertexto) a um anterior A (hipotexto),
no qual ele se enxerta de uma maneira que não é a do comentário. Genette propõe, nesse caso, a noção de texto
de segundo grau ou derivado de outro preexistente. A derivação é tanto de ordem descritiva e intelectual em que
um texto “fala” de outro quanto de outra ordem, como quando B não fala de A, mas não poderia existir sem ele.
(2000, p. 53)
13
Em 1937, Guimarães Rosa inicia a escritura de Sagarana levando sete meses para concluí-la. Em dezembro
desse ano, concorre ao Prêmio Humberto de Campos. Entretanto, o livro Sagarana tal qual hoje o conhecemos
não foi o que se submeteu à apreciação da comissão julgadora, mas sim Contos, com o qual o autor se apresenta
sob o pseudônimo de Viator. Sagarana é a depuração deste, reduzido de quinhentas a cerca de trezentas páginas
atuais. Passou por um rigoroso processo de reescritura no qual três estórias foram suprimidas (“Questões de
família”, “Uma história de amor” e “Bicho mau”) e as demais sofreram pequenas ou grandes intervenções.
Contos saiu vencido e o resultado causou polêmica. Anos mais tarde, Rosa declara que aquela foi uma ótima
oportunidade para se testar, pois a banca examinadora era composta por Graciliano Ramos, Dias da Costa e
Peregrino Júnior (votaram a favor de Maria Perigosa, de Luís Jardim) e Prudente de Moraes e Marques Rabelo
(votaram a favor de Contos).
31
Em carta a João Condé, (S: 24) o autor de Sagarana compara o livro a um barquinho no
qual poderia embarcar sua concepção de mundo e revela que rezou para esquecer-se de
“septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas
literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições no tempo e no espaço.” Em carta ao
pai de 6 de novembro de 1945 escreve entusiasmado a respeito do novo livro:
[...] Em todo o caso, consegui a custa de horas de sono, do descanso dos
domingos e de muito esforço preparar, ou melhor, reestruturar um livro de
contos, para o qual achei imediatamente editor. Tenho muita esperança nesse
livro, pois provocou o mais exaltado entusiasmo (e sincero) da parte de 4
dos maiores escritores e intelectuais brasileiros, que lhe garantem tremendo
sucesso. Vamos ver o que dá. O Sr. Irá gostar, e muito, estou seguro, pois nele
verá muita coisa do interior, muitas cantigas, como epígrafes (ex.: “Ao meu
macho rosado, carregado de algodão, etc.”, “Negra danada, siô , é Maria, etc.”,
“Tira a barca da barreira, etc.”, “Eu quero ver a moreninha tabarôa, etc.”),
muita coisa, enfim, que lhe dará boas recordações. Estou à espera de que o
editor me mande as primeiras provas, para corrigí-las, e penso que o livro
poderá sair antes do Natal. É grande – quase 400 páginas, e terá uma bela capa
colorida. (ROSA: 2000, p.179)
Desejando apreender o inédito, Guimarães Rosa fez a língua cotidiana movimentar-se
de tal forma e com tal elasticidade e plasticidade, acrescentando-lhe elementos inusitados que
o resultado é uma linguagem literária meticulosamente esculpida pelo trabalho do artista que
realiza uma série de intervenções na estrutura fraseológica e até no interior do vocábulo,
extraindo dele a essência e adentrando num verdadeiro mundo perdido não mais visualizado
pelo uso costumeiro.
Para Eduardo F. Coutinho (1998, p. 82) a ficção rosiana “é não só um percuciente labor
de ourivesaria que desconstrói e reconstrói o signo a cada instante, mas também uma reflexão
aguda sobre a própria linguagem, que se erige frequentemente como tema de suas estórias.”
De acordo com Vilma Guimarães Rosa (1999, p. 88) uma lenda finlandesa contada pelo
pai ilustra o apreço por ele aferido à palavra: no coração do homem habita um deus o
sangue. As palavras vindas do coração têm vida e banham a língua e os dentes, com elas
constroem-se maravilhas. um pouco do sangue, da essência e da força do homem em cada
palavra: “o sangue é seiva, frutos e flores são as palavras.” Vejamos, então, esses frutos e
flores em novelas de Sagarana.
32
1.3 Rosa e os Animais – Sagarana
Pórtico: Amar os animais é aprendizado de humanidade.
[...]
Se todo animal inspira sempre ternura, que houve, então com o homem?
(Ave, palavra)
As cartas ao pai comprovam a consciência do fazer artístico e da responsabilidade que
tal trabalho implica para o escritor. Não lhe agradava a leitura fácil, antes almejava um leitor
exigente capaz de abrir as incontáveis portas que sua ficção encerra. Na fala ora ingênua dos
sertanejos ou no discurso aparentemente despretensioso do narrador divisamos referências a
pensamentos platônicos, a grandes textos literários e deuses da Antiguidade, passagens
bíblicas, reaproveitamento do folclore, menções a astronomia, sinfonias, consagradas obras,
evocações a idiomas díspares. Para ele, arte tem de ser construção literária. Dessa forma, o
descuido com a linguagem torna-se intolerável. E cada palavra por ele utilizada merece
reflexão. Cecília de Lara (1996, p.32) ressalta sobre a escolha do título Sagarana:
A respeito do nome Sagarana o escritor confessa que filou “um
sufixo nhegatu – rana – que acrescentou a ‘saga’. O livro foi escrito em 1937 e
recebeu vários nomes até chegar a este nome com que se acha nas livrarias:
Sagarana. As mudanças se fizeram, porém depois da primeira letra, pois os
outros títulos também começavam por S. Era uma superstição.” Não se
conhecem outros nomes com S, mas realmente, os dois volumes encadernados
que estão no Arquivo de João Guimarães Rosa do IEB trazem o título SEZÃO
inscrito na lombada.
Em carta ao tio, Vicente Guimarães (2006, p. 134), sentencia: “A palavra de ordem é:
construção, aprofundamento, elaboração cuidada e dolorosa da “matéria-prima” que a
inspiração fornece.” O escritor define como programa a elevação da literatura, e, por
conseguinte, do gosto popular, jamais o rebaixamento para cair nas graças do leitor
acostumado com textos frágeis e insípidos.
Toda a obra rosiana comprova o pensamento expresso acima. Dessa forma, em 1946,
surge Sagarana
14
renovando as letras brasileiras um tanto enfastiadas do regionalismo da
década de 30.
15
O regional de Rosa transcende a região descrita, o sertão mineiro alcança
14
A primeira edição de Sagarana veio pela Editora Universal (Rio de Janeiro, capa de Geraldo de Castro)
Devido ao sucesso, seguiu-se uma segunda, no mesmo ano. A partir da terceira edição, Guimarães Rosa troca de
casa e passa para a José Olympio Editora.
15
Sobre esse tema Nelly Novaes Coelho discorre em “Guimarães Rosa e o Homo Ludens”. IN: COUTINHO,
Eduardo F. (Org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1991. p. 256 263 A autora estabelece
diferenças entre o regionalismo de 30, forjado pelo homo sapiens (racionalista) que se vale da “palavra-
33
dimensões incomensuráveis. Unindo realidade e imaginação esse espaço passa a funcionar
como palco das andanças humanas em busca da autognose. Nove estórias, de árdua
classificação para a crítica. Álvaro Lins, (1991, p. 141) primeiro a se manifestar, com o artigo
“Uma grande estréia” pergunta-se: “contos, novelas, histórias estes capítulos de Sagarana?
Antes de tudo rapsódias, cantos em grande forma que trazem no seio a representação poética
do espírito e da realidade de uma região”, complementando ainda (1991, p. 139):
São bichos os personagens mais comoventes, mais simpáticos e mais bem
tratados de Sagarana. duas novelas especialmente de bichos, O burrinho
pedrês” e “Conversa de bois”, mas também em todas as outras, misturados
com as pessoas e às vezes influindo no destino delas, aparecem bois, cavalos,
burros e aves. E nesse dom de tratar os bichos como personagens, de dar-lhes
vitalidade e verossimilhança na representação literária, está uma das
faculdades mais originais e poderosas da arte do Sr. Guimarães Rosa. Não
vamos dizer que ele transmite humanidade aos bichos, pois isso seria
descaracterizá-los pelo artifício, seria torná-los seres híbridos e absurdos. Os
animais dessas admiráveis histórias de Sagarana, os bois como o burrinho
pedrês, agem, pensam e falam, não como os homens na maneira das fábulas e
histórias da carochinha, mas como podemos imaginar, com o recurso da
intuição, que eles o fariam se realmente pensassem e agissem racionalmente.
Era como se o autor se transportasse para dentro dos bichos, e não para
lhes transmitir a sua própria personalidade, mas para interpretar e
exprimir a imaginada vida interior deles. (grifo nosso)
A perspectiva de Lins norteará nosso estudo, o pensamento final do autor, por nós
grifado, se evidenciará na nossa apreciação dos bichos. As nove estórias, formalmente
classificadas como novelas, ligam-se subterraneamente. Encontramos nelas animais, plantas,
feiticeiros, valentões, vaqueiros, crianças, riachos, rios, fazendeiros, malandros, doentes,
cantigas, provérbios, anedotas, tudo em profusão, delineando o panorama de uma região.
Verificaremos nessa seção a presença de animais nas novelas A volta do marido
pródigo e A hora e vez de Augusto Matraga. Nelas, apesar de o figurarem como
protagonistas, os bichos são, retomando Lins, “bem tratados” pelo escritor.
depoimento”, e o regionalismo de Rosa que recorre ao homo ludens, desatrelado do convencionalismo do
pensamento lógico.
34
1.3.1 Um Sapo Chamado Lalino
Traços biográficos de Latino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, segunda novela
de Sagarana. na abertura animais se destacam, os primeiros dois parágrafos contêm a
descrição do encontro de dois burrinhos. O escritor parece manter a unidade da obra, pois a
estória anterior finda com o merecido descanso do burrinho Sete-de-Ouros.
Nove horas e trinta. Um cincerro tilinta. É um burrinho, que vem
sozinho, puxando o carroção. Patas em marcha matemática, andar
consciencioso e macio, ele chega, de sobremão. Pára no lugar onde tem de
parar, e fecha imediatamente os olhos. depois é que o menino, que estava
esperando, de cócoras grita: - “Issia!...” e pega-lhe na rédea e o faz volver
esquerda, e recuar cinco passos. Pronto. O preto desaferrolha o taipal da
traseira, e a terra vai caindo para o barranco. Os outros ajudam com as pás.
Seis minutos: o burrinho abre os olhos. O preto torna a prumar o tabuleiro no
eixo, e ergue o tampo de trás. O menino torna a pegar na rédea: direita, volver!
Agora nem é preciso comandar: - Vamos!...” porque o burrico saiu no
mesmo passo, em rumo reto; e as rodas cobrem sempre os mesmos sulcos no
chão.
No meio do caminho, cruza-se com o burro pêlo-de-rato, que vem com
o outro carroção. É o décimo terceiro encontro, hoje, e como ainda irão passar
um pelo outro, sem falta, umas três vezes esse tanto do aterro ao corte, do
corte ao aterro – não se cumprimentam. (S: 99-100)
A impassibilidade do burrinho é sua marca principal, como Sete-de-Ouros, conforme
veremos mais adiante, não se desgasta à toa, antes sabiamente economiza-se. Anda sem
extravagâncias, pára exatamente onde tem que parar, fecha os olhos para não consumir
energia sem precisão, depois recomeça os afazeres, sem atropelo. Aparentemente não se
importa em ser comandado, pois executa cônscio seu trabalho. Questiona o comando do
menino-guia sem que para tanto use força ou teimosia, característica habitual desses bichos
que quando decidem empacar tornam qualquer viagem bem difícil. No entanto, para
demonstrar a chefia, o menino grita para o animal estacar, puxa as rédeas e o faz recuar alguns
passos na chegada, depois torna a pegar as rédeas e a gritar, mas sem necessidade porque o
burrinho cumpre sua faina.
Depois da abertura com a descrição dos hábitos do burrico, a ênfase, explicitamente,
recai em personagens humanos, mas nos subterrâneos do texto os bichos ainda sobrevivem. O
protagonista, Eulálio de Souza Salãthiel, oriundo de um lugar chamado de Em-Pé-na-Lagoa,
reúne em si particularidades que aproximam homens e animais. Sua procedência o denota,
vem da lagoa, habitat dos sapos. Mas, sapo não é somente aquático, nem tampouco terrestre,
antes transita livremente nessas duas instâncias. Igualmente, comporta-se Lalino Salãthiel,
35
percorre com adequação dois caminhos distintos e logra êxito em ambos. Sua dubiedade
desconcerta alguns e envolve outros, a grande capacidade de adaptação constitui seu trunfo,
espécie singular de anfíbio humano.
Trata-se de um mulatinho esperto, avesso ao trabalho, prefere festas, bebidas e
mulheres, música - um violão é seu grande companheiro. Criativo, falastrão e perspicaz
sempre consegue se livrar das encrencas em que se mete. A novela relata suas aventuras e
desventuras. Um companheiro de trabalho, logo no começo da narrativa, anuncia a sorte final
do mulatinho: “– Também tudo p’ra ele sai bom, e no fim dá certo... – diz Correia, suspirando
e retomando o enxadão. P’ra uns as vacas morrem... p’ra outros até boi pega a parir...”
(S:102). E foi por causa de uma conversa acontecida na hora do trabalho Lalino proseava
mais do que labutava e gabava-se acerca das mulheres do Rio de Janeiro apesar de nunca ter
conhecido nem a cidade nem suas habitantes que formulou um pensamento que logo tomou
proporções: iria embora para o estado carioca, conhecer a capital e as mulheres de lá.
Despediu-se secretamente da mulher, a bela Maria Rita, deixando-lhe escondido algum
dinheiro e pediu demissão do emprego dizendo que em Belo Horizonte tinha uma
colocação. O empregador respondeu-lhe: “Mentira pura, a mim tu não engana... Mas deve de
ir... Em qualquer parte que tu ‘teja tu’ ta em casa... Podem te levar de noite p’ra estranja ou
p’ra China, e largar dormindo, que de-manhã acorda engazopando os japonês” (S: 113).
Antes de partir, elabora um plano para extrair dinheiro do espanhol Ramiro que sempre
demonstrou interesse por Rita. Pede dois contos de réis e consegue um conto após afiançar
que não retornaria: De certo que não. Não seja! [...] Ixe, viu sapo não querer água?”
Então, arranja o cobre, não é? Mas tem que ser é p’r’ agorinha... (S: 114) (grifo nosso) As
referências ao animal por nós destacado corroboram na construção da identidade do
protagonista e prosseguem ao longo do texto.
Enquanto o mulatinho dizia adeus a seu Miranda, que ficou imbuído de dar a notícia à
Ritinha, “também os sapos diziam adeus. Ou talvez estivessem gritando, apenas: - Não! Não!
Não!... Bão! Bão! Bão!... em notável e aquática discordância.” (S: 116) O próprio modo
como Lalino muitas vezes se senta, de cócoras, lembra o sapo. Quando ele se punha a
discorrer sobre assuntos os mais variados também em algumas passagens seus interlocutores
se acocoram, como nas reuniões de anfíbios.
Seis meses transcorreram, Rita chorou e sofreu bastante, depois foi morar com o
espanhol. As tantas aventuras amorosas de Lalino na capital o enfastiaram. A vida boêmia e
de esbórnia não o contentariam por muito tempo, sua estória assemelha-se à da “rã catacega,
que, trepando na laje e vendo o areal rebrilhante à soalheira gritou – “Eh, aguão!...” e pulou
36
com gosto, e, queimando as patinhas, deu outro pulo depressa para trás.” (S:117) Da mesma
forma, Lalino um pulo para trás e começa a pensar no arraial e na mulher. O dinheiro se
fora e a saudade chegou, pensou no susto que daria nas pessoas se regressasse e decidiu-se:
“Deu uma gargalhada de homem gordo, e, posto de lado o dinheiro para a passagem de
segunda, organizou o programa de despedida: uma semaninha inteira de esbórnia e fuzuê.” (S:
119)
A chegada ao arraial causa imediatas reações. Ao se dirigir à casa de Ramiro aproveita
para ficar a par da situação do casal. Finge vir pagar a dívida, embora não tivesse dinheiro
algum, o espanhol não aceita. Lalino sente fraqueza no rival e com valentia exige falar com a
mulher, mas desiste ao ser informado dos sentimentos adversos da esposa, demonstra
indiferença e pede então o violão. Põe-se de cócoras, (como um sapo) de costas para casa,
para debochar e não sai sem antes troçar do outro. Toma a trilha do córrego (necessita estar
perto da água, em várias passagens encontraremos o protagonista nesse ambiente) para
recolocar em ordem os pensamentos e triste canta: “Estou triste como sapo na lagoa...”,
“Estou triste como sapo na água suja...” (S: 123). Abaixo temos a transcrição de uma versão
do conto “A festa no céu”:
E, no entanto, assim como não se lembrava do lugar das trepadeiras, não
está pensando no sapo. No sapo e no cágado da estória do sapo e do cágado,
que se esconderam, juntos, dentro da viola do urubu, para poderem ir à festa
no céu. A festa foi boa, mas, os dois não tendo tido tempo para entrar na viola,
para o regresso, sobraram no céu e foram descobertos. E então São Pedro
comunicou-lhes: Vou varrer vocês dois para baixo.” Jogou primeiro o
cágado. E o concho cágado, descendo sem pára-quedas e vendo que ia bater
mesmo em cima de uma pedra, se guardou em si e gritou: “Arrreda laje, que
eu te parto!mas a pedra que era posta e própria, não se arredou, e o cágado
espatifou-se em muitos pedaços. Remendaram-no com esmero, e daí é que
hoje tem a carapaça toda soldada de placas. Mas, nessa folga, o sapo estava se
rindo. E, quando São Pedro perguntou por que, respondeu: “Estou rindo,
porque se o meu compadre cascudo soubesse voar, como eu sei, não estava
passando por tanto aperto...” E então, mais zangado, São Pedro pensou um
pouco e disse:
- “É assim? Pois nós vamos juntos em-baixo, que eu quero pinchar
você, ou na água ou no fogo!” E aí o sapo choramingou: “Na agua não, Patrão,
que eu me esqueci de aprender a nadar...” – “Pois então é para a água que você
vai!...” Mas quando o sapo caiu no poço, esticou para os lados as quatro
mãozinhas, deu uma cambalhota, foi ver se o poço tinha fundo, mandou
muitas bolhas para cima, e, quando teve tempo, veio subindo de-fasto, se
desvirou e apareceu, piscando olho, para gritar: “Isto mesmo é que sapo
quer!...”
E essa mesma que era a variante verdadeira da estória, mas Lalino
Salãthiel nem mesmo sabia que era da grei dos sapos, e já estava cochilando
também. (S: 123-4)
37
Câmara Cascudo (2000, p.292-3) registra na seção contos etiológicos a história “A festa
no céu”, porém o desfecho diverge do apresentado acima. O sapo é descoberto dentro da viola
do urubu no regresso da festa. A ave enfurecida o joga das alturas, ele cai e grita para as
pedras arredarem, infelizmente elas não obedecem. Ele espatifa-se todo, todavia Nossa
Senhora por piedade o emenda, eis o motivo do couro remendado. Mas, em outras duas
estórias narra-se a esperteza do sapo. Em “O sapo e o coelho” (2000, p. 203-4), o sapo aposta
corrida com a orgulhosa lebre. Por meio de um embuste, vence-a: combinou com os parentes
para margearem a estrada em vários pontos, sempre que a oponente o chamasse algum deles
escondido responderia. Então, ela pensaria que o adversário estava perto. Quando o coelho
cruzou a linha de chegada, encontrou o sapo sossegado esperando-o. Declarou-se perdedor.
em “O sapo com medo d’água” (2000, p.212-3), um homem captura um sapo e o leva para os
filhos. Depois de judiarem bastante com o animal, decidem matá-lo. A cada sugestão dos
meninos o sapo redargüia, dizendo que pedras, espinhos, fogo e faca não o matariam. Os
meninos decidem afogá-lo na lagoa, o animal implora para que alterem os planos porque tem
medo de água. Ao ser jogado, mergulha e satisfeito grita que é bicho da água.
A versão de Guimarães Rosa adianta fatos da narrativa. Assim como o sapo soube sair-
se de uma situação adversa, também Lalino encontrará um modo de inverter as atuais
circunstâncias, e isso porque fazia parte da grei dos sapos. E não se preocupa com o futuro,
sabe ou pressente que a sorte lhe sorri. Tal sorriso começa a delinear-se com a aproximação
de seu Oscar, filho do major Anacleto, que lhe pergunta como reaveria a mulher, ao que o
outro tranqüilo responde:
- Vou chamar no pio.
- E o espanhol?
-Vai desencostar e cair.
- Mas, de que jeito seu Laio?
- Sei não.
- E você fica aí parado de papo p’ra riba?
- Esperando sem pensar em nada, p’ra ver se alguma idéia vem...
- Hum-hum! (S: 125)
O major disputava uma dura eleição. O filho convence, a custo, o pai a contratar os
serviços do mulatinho esperto que fazia parte de “uma raça de criaturas diferentes, que os
outros não podem entender... Gente que pendura o chapéu em asa de corvo e guarda dinheiro
em boca de jia...” (S: 128-9) A condição era ele manter-se afastado dos espanhóis, protegidos
do major. A oportunidade de uma reviravolta aparece. Lalino, aos poucos, conquista a
confiança do patrão. Consegue a permissão para andar com um compenetrado guarda-costas –
Estêvam - do fazendeiro, sob o pretexto de defender-se de um possível atentado, e dessa
38
forma o povo do arraial e Ramiro souberam da posição respeitável do novo cabo eleitoral do
major.
As armações de Lalino surtem efeito e o major a cada dia ganha mais votos. Um dia,
acusado de incomodar os espanhóis (passou pelo sítio sem ser convidado, não cumprimentou
o proprietário, deu um viva ao Brasil e jogou beijos para a mulher), com voz angelical o
empregado defende-se dizendo que não tinha tempo para se ocupar com esse povo, porque
estava cuidando dos rumos da eleição, além disso, eles não o interessavam, pois eram
estrangeiros, não votavam. A frase dita aparentemente sem outras intenções, alterará a relação
do candidato à eleição com os imigrantes. E o mulatinho fazia-se presente, necessário
“pererecava ali por perto, sempre no meio dos capangas, compondo cantigas e recebendo
aplausos.” (S: 138) Mais uma vez, faz-se a justaposição entre Lalino e o sapo.
Também, as atitudes do protagonista convergem para as da cigarra, sempre cantando,
trazendo consigo a alegria. Monteiro Lobato (1982, p.7-8) registra duas versões da fábula “A
cigarra e as formigas”. Na primeira “A formiga boa” tem-se um final feliz, a formiga salva a
cigarra. Na segunda “A formiga má” tem-se o final trágico com a morte da cigarra. A
conclusão da estória traz o seguinte pensamento: “Os artistas – poetas, pintores, músicos – são
as cigarras da humanidade”.
Ramiro, consumido pelo ciúme, passa a maltratar Ritinha que ainda ama o marido.
Decide fugir e pede proteção ao major que contente a concede. Enquanto isso, Lalino bebe
com uns homens vindos da cidade na beira da lagoa. O major estava convicto de que
pertenciam à oposição, e, nesse caso, o mulatinho o havia traído e grita retirando a proteção
concedida à Rita. Começa a escurecer, a aflição toma conta de Anacleto e “a gente já ouvia os
coaxos iniciais da saparia no brejo.” (S: 146) Os coaxos coincidem com a chegada do
mulatinho e dos homens da cidade. Foi dada a ordem para fecharem as portas e as janelas e
para arrastarem o mulatinho debaixo de pancada. Mas, quando o carro pára, identifica-se a
figura do secretário do Interior, não se tratava de oposição, mas de governo “e nunca houve
maior momento de hospitalidade numa fazenda.” (S: 147) O doutor explica que foram
abordados pelo senhor Eulálio na beira da lagoa e que fora uma gentileza enviá-lo para
recepcioná-los, pois era divertidíssimo e que o major estava de parabéns por saber escolher
seus homens. Sem saber, graças às artimanhas de Laio, Anacleto garantia o resultado
favorável das eleições com o apoio dos forasteiros:
E no brejo, os sapos coaxavam agora uma estória complicada, de um
sapo velho, sapo-rei de todos os sapos, morrendo e propondo o testamento à
saparia maluca, enquanto que, como todo sapo nobre, ficava assentado,
montando guarda ao próprio ventre.
39
-“Quando eu morrer, quem é que fica com os meus filhos?”...
- “Eu não... Eu não! Eu não!...Eu não!...”
(Pausa, para o velho sapo soltar as últimas bolhas, na água de emulsão.)
-“Quando eu morrer, quem é que fica com a minha mulher?”
-“É eu! É eu! É eu! É eu! É eu!”... (S: 149)
E o major manda que chamem Ritinha para fazer as pazes com o marido e ri “porque a
mulherzinha chora de alegria e Lalino perdeu o jeito” (S: 149) E alumiado por inspiração
repentina ordena para que os bate-paus ponham os espanhóis para fora da região. Paga o valor
pelo sítio deles, mas que os estrangeiros sumam:
E os sapos se interpelam e se respondem, com alternâncias estranhas,
mas em unanimidade atordoante:
- Chico? - Nho!? – Você vai? – Vou!
- Chico? - Nho!? – Cê vai? – Vou!...
No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos
esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e
satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando sem o saber, com a
direção-escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer. E
gritou:
- Olha, Estêvam: se a espanholada miar, mete a lenha!
- De miséria, seu Major!
- E, pronto: se algum quiser resistir, berrem fogo!
- Feito, seu Major!
E no brejo friíssimo e em festa os sapos continuavam a exultar.
(S:149-150)
Lalino burla as normas que regem a existência em sociedade por o se satisfazer com
as conseqüências de uma vida social injusta: o emprego de uma determinada força no trabalho
implicará para ele indubitavelmente um valor insuficiente para suas necessidades. Freud
afiança que a eterna insatisfação humana deve-se à criação da civilização, uma vez que essa
impõe grandes sacrifícios ao indivíduo, reprimindo-o e restringindo seu campo de atuação ao
infligir sistematicamente o primado da coletividade sobre a individualidade. Nesse contexto,
“podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser nessa civilização.” (1997, p. 72)
Lalino desloca-se de ambientes civilizados que demandam esforço, sacrifício e prefere
a lagoa, o bar, o bordel. No entanto, a moral utilitária que apregoa o castigo, (como a morte da
cigarra da fábula “A formiga má”) não se aplica a ele. O personagem encerra em si algo de
Pedro Malazarte
16
cujas artimanhas caminham invariavelmente para um desfecho favorável
para o herói picaresco.
O protagonista de A volta do marido pródigo é um ser não inserido na sociedade, trata-
se de um pândego afortunado. A temática da queda e da salvação entrecorta várias narrativas
16
Câmara Cascudo (2000, p. 188-193) registra o conto “Seis aventuras de Pedro Malasartes” no qual o
protagonista logra êxito ao fim de cada aventura graças a sua esperteza.
40
rosianas. Latino Salãthiel refaz o mito bíblico da volta do filho pródigo e recupera sua posição
original, apesar dos erros cometidos. A figura paternal do major encontra paralelo com a do
Pai que reposiciona tudo em seu devido lugar. O herói de Ritinha, ironicamente, não é um
príncipe, mas um sapo. E os sapos podem finalmente exultar.
1.3.2 Um Jumento, um Renascimento
Também ocorre em A hora e vez de Augusto Matraga, última novela de Sagarana, a
temática de queda e salvação. A respeito da realização artística dessa novela, Rosa revela a
João Condé: “história mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei
sobre seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim uma vitória íntima, pois, desde o
começo do livro, o seu estilo era o que procurava descobrir.” (S:28) A bela realização
formal da novela nos conduz à verificação do pensamento do escritor sobre o fazer literário.
Rosa elenca em carta ao tio Vicente Guimarães (2006, p. 137) características próprias de um
artista:
1) humilde: trabalhará com profunda humildade, em face da arte, a fim de não
criar-se dificuldades ao escoamento da inspiração; 2) independente: para poder
obedecer com pura humildade à sua inspiração, precisa de isolar-se de
influências imediatas, ambientes: é como alguém que estivesse compondo
uma música, enquanto outros, em torno, estão assobiando outras músicas, de
ritmos diferentes; tem de fechar de vez em quando os ouvidos; 3) corajoso:
precisa de não ficar peado a fórmulas consagradas, e atirar-se para diante,
seguindo a sua inspiração, até onde ela o levar; 4) profundamente sincero: a
sua arte deve expressar-se de acordo com a totalidade do seu ser, com os seus
conhecimentos, sua cultura, sua filosofia de vida, com as palavras com as
quais pensa (assim, quando se pensa com determinado nível de erudição, em
palavras e frases, seria pecado contra o Espírito Santo, acovardar-se e, por
medo das vaias da plebe, usar da preocupação de rebaixar o seu estilo, para
ficar ao alcance de todos); 5) infinitamente paciente: a inspiração fornece
um aceno, uma formulazinha, que é preciso trabalhar, com humilde paciência,
desenvolver, podar, alterar, desbastar, transformar, enfim, em quimo artístico,
sob pena de, se o não fizer, não corresponder magnitude da própria inspiração.
Tudo isto, vai aqui muito solenemente, porque, segundo concebo, arte é
coisa seriíssima, tão séria quanto a natureza e a religião. (grifo nosso)
No final dessa declaração, o autor e em igualdade a arte, a natureza e a religião. As
três categorias consideradas matéria de maior seriedade versam a respeito de conhecimento e
auto-conhecimento e distendem os horizontes humanos apontando para o infinito, para o
transcendente.
41
Em A hora e vez de Augusto Matraga as três categorias citadas por Rosa (arte, religião
e natureza) amalgamam-se perfeitamente. Procuraremos rever os passos do protagonista
detendo-nos em sua transformação de homem desmedido a comedido, observador e amante
da natureza. Também verificaremos o vínculo entre o mundo exterior (natureza) e o interior
de Nhô Augusto. Nosso foco maior recairá nessa novela, na figura do jumento que aparece
para guiar Nhô Augusto ou Augusto Esteves, filho do coronel Afonso Esteves, ao seu destino
final.
A narrativa se inicia à noite no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego
do Murici. Depois da novena ocorre atrás da igreja um leilão que logo acabou. As pessoas
respeitáveis foram embora cedo, restando apenas os bêbados. Entretanto, o leiloeiro
permaneceu na barraca e agora duas prostitutas desprovidas de beleza, Angélica, a negra, e
Sariema, a branca, eram disputadas pela multidão bêbada. Surge, então, Nhô Augusto
acompanhado de quatro capangas e arrebata uma das mulheres dos braços de um capiau com
cara de apaixonado, a socos, para mais adiante desprezar Sariema por causa da feiúra.
Assim vivia ele à procura de contendas. Não demonstrava amor pela filha Mimita ou
pela mulher Dona Dionóra. E essa era sua existência: envolvido com capangas, mulheres,
brigas, jogo de truque e caçadas. Desregrado desde a meninice, pois como único filho fora
criado “à louca e à larga”. A morte do pai agravou seu comportamento “mais estúrdio,
estouvado e sem regra estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes, política do lado
que perde, falta de crédito, as terras no desmando” (S: 369). Entretanto, quando chega o dia
da casa cair “é um dia de chegada infalível – o dono pode estar de dentro ou de fora. É melhor
de fora (...) mas Nhô Augusto, estava deitado na cama o pior lugar que para se receber
uma surpresa má.” (S: 371).
Quim Recadeiro trouxera a notícia de que Dona Dionóra havia fugido com seu Ovídio
Moura levando Mimita consigo. Ao mandar Quim reunir os homens soube que esses
passaram a trabalhar para seu inimigo o Major Consilva. Um deles, o porta-voz, mandou
recado desaforado ao ex-patrão. Fora ainda advertido de que o Major e outros intentavam
matá-lo por vários motivos: “nunca respeitou a filha dos outros nem mulher casada, e mais
que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação” (S: 373).
Mesmo sozinho Nhô Augusto decide desafiar o Major e seus trabalhadores antes de ir
matar a mulher e o amante. Porém, ao chegar à chácara do inimigo soube que a sorte também
o havia abandonado. Ouviu o proprietário sentenciar sua morte e logo seus trabalhadores de
outrora, os quatro capangas, e o capiauzinho com cara de apaixonado caíram-lhe em cima
42
com porretes. Ainda pôde ouvir a ordem de Consilva para o arrastarem para fora da
propriedade, marcarem o corpo a ferro e depois matarem-no.
Os algozes imprimiram a marca do major na região direita glútea de Nhô Augusto. A
marca consistia num triângulo inserido numa circunferência. Julgaram que a vítima havia
morrido com a violência das pancadas e distraíram-se, mas para seu assombro o homem
levantou-se e jogou-se barranco abaixo rolando até sumir. E foi então que a sorte voltou. Um
casal de negros que residia no brejo carregou aquele homem para o casebre onde morava e
tratou dele por meses “muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para se ajuntarem, e a
fratura exposta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito dele, não arrefecendo na
dedicação.” (S: 379)
As figuras geométricas assumem significações distintas, podemos associar algumas ao
contexto da narrativa. O círculo sem começo ou fim em seu todo indiviso representa a
unidade, a eternidade, conforme, por exemplo, o formato da aliança. Uma insígnia da união
entre homem e mulher e num plano mais profundo entre homens e Deus reporta à coesão
entre corpo e alma. O triângulo corresponde ao número três, número da perfeição, da
harmonia. Três são as pessoas da Santíssima Trindade, três são as fases da existência:
nascimento, crescimento e morte ou aparecimento, evolução e destruição ou transformação. A
segunda tríade resume a vida do protagonista.
A marca do major inaugura o lento processo de renascimento de Augusto Matraga,
impressa em sua pele a fogo, elemento que assim como a água também pode atuar como
símbolo de purificação. Vendo Deus que os pecados de Sodoma e Gomorra se agravavam, fez
chover fogo e enxofre sobre as cidades destruindo-as completamente e Abraão “olhou para
Sodoma e Gomorra e para toda a terra da campina, e viu, que a fumaça da terra subia como a
de uma fornalha”, conforme Gêneses (capítulo 19, versículo 28). Dessa forma, a ligação de
pele, fogo, triângulo e rculo aos significados que em gradação anunciam a ascensão de Nhô
Augusto – corpo fenomênico, purificação, perfeição e eternidade – torna-se possível.
Com o correr do tempo, os sentimentos desse personagem transformam-se, ao ódio
sucedeu a saudade da família “e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de
menino abandonado” (S: 378). Foram as primeiras águas que lavaram a alma de Nhô
Augusto. Certa noite, às escondidas, os pretos trouxeram o padre para que o enfermo
confessasse os pecados. O conselho do sacerdote dirigiria a vida de Nhô Augusto: Reze e
trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes
custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria ...
cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.” (S: 380)
43
Meses passaram-se e Nhô Augusto já com o coração abrandado escorando-se nas
muletas que o preto fabricara propôs aos anfitriões fugirem para um sitiozinho seu distante
daquela terra para que ele pudesse entregar-se a uma nova vida ao lado do casal samaritano.
Partiram à noite sempre indo para o norte, movimentavam-se com a lua e descansavam
durante o dia, evitando dessa forma serem vistos. Antes de iniciarem a viagem Nhô Augusto
abriu os braços em cruz e jurou: “Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal” (S:
381). A fala final do padre passou a ser a frase mais utilizada e repetia-a constantemente até
quando estava sozinho.
Sete meses transcorreram e Nhô Augusto trabalhava diligentemente durante o dia e
rezava ao anoitecer. O sete simboliza um ciclo perfeito e o sentido de uma mudança depois
de um ciclo concluído e de uma renovação positiva, segundo Chevalier (1989, p. 826). O
autor informa ainda que nos contos e lendas esse número expressa as sete etapas da evolução,
os sete graus da consciência:
1. consciência do corpo físico: desejos satisfeitos de modo elementar e brutal;
2. consciência da emoção: as pulsões tornam-se mais complexas com o
sentimento e a imaginação;
3. consciência da inteligência: o sujeito classifica, organiza, raciocina;
4. consciência da intuição: as relações com o inconsciente são percebidas;
5. consciência da espiritualidade: desprendimento da vida material;
6. consciência da vontade: que faz com que o conhecimento passe para a ação;
7. consciência da vida: que dirige toda a atividade em direção à vida eterna e à
salvação.
São perceptíveis no decorrer da trama todas as etapas citadas na vida de Matraga. O
sete é recorrente em inúmeras histórias. Bruno Bettelheim (1980, p. 248-9) explica a firme
presença desse número em Branca de Neve, que foi expulsa do castelo aos sete anos pela
madrasta:
Os contos e lendas européias frequentemente eram resíduos de temas
religiosos pagãos não aceitos, porque a Cristandade não tolerava as tendências
pagãs sob forma aberta. De certo modo, a beleza perfeita de Branca de Neve
parece remotamente derivada do sol; seu nome sugere a brancura e a pureza da
luz forte. De acordo com os antigos, sete planetas circundam o sol, daí os sete
anões. Anões ou gnomos, no folclore teutônico, são trabalhadores da terra,
extraindo metais, dos quais sete eram conhecidos nos tempos antigos
outra razão destes mineiros serem sete. E cada um dos sete metais estava
relacionado a um dos sete planetas na filosofia antiga (o ouro ao sol, a prata à
lua, etc...)
O próprio Guimarães Rosa fará amplo uso do sete em Corpo de baile, começando pelo
volume estruturado em sete narrativas. Já no primeiro parágrafo de Campo Geral, Miguilim,
como Branca de Neve, parte aos sete anos. Acompanhado do tio Terêz segue em sua primeira
44
viagem, sai do Mutum em direção ao Sucuruji para ser crismado pelo bispo que visitava a
região. E como em toda travessia fará descobertas e adquirirá conhecimentos.
Na nova vida no sitiozinho o casal de negros era quem comandava a casa e não
trabalhava mais. Mas, ele não descansava, capinava para si e para os vizinhos não pedindo
nada em troca, não fumava, não bebia e não olhava mais para as mulheres, fugia de viola e de
sanfona. Fazia tudo com uma tristeza bondosa, amesmo ao riso não se permitia. Até que
pouco a pouco algo mudou, era o tempo das águas. Os sofrimentos de Nhô Augusto pareciam
ser lavados pelas águas de Deus. O mundo ao seu redor anunciava novos tempos
estabelecendo conexão entre o mundo exterior e o interior de Nhô Augusto:
[...] devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele,
a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das
águas, que vinha vindo paralela [...] e o joão-de-barro construindo casa nova, e
as sementinhas, que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em
misteriosas incubações. Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono.
(S: 387)
Nhô Augusto à semelhança das sementinha e do joão-de-barro preparava-se para entrar
em outra etapa de sua vida. E certa manhã acordou alegre “e fez uma descoberta: por que não
pitava?!... Não era pecado... Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente,
que ajudava a gente a se alegrar... (S: 388) Nhô Augusto sem saber cumpria um conselho
bíblico que em diversas passagens ensina a como viver melhor, em Filipenses (capítulo 4,
versículo 4) registra-se: “Regozijai-vos sempre no Senhor outra vez digo, regozijai-vos”,
em Tessalonicenses (capítulo 5, versículo 16) escreve-se: “Regozija-vos sempre”.
A chegada do bando do homem mais valente do sertão “o arranca-toco, o treme-terra, o
come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-
e-arrasa. Seu Joãozinho Bem-Bem”. mudaria a vida de Nhô Augusto. Todo o arraial se
apavorou com a visita inesperada, mas o protagonista ofereceu a própria casa, banquete e
bebida para os forasteiros. Instantaneamente, nasce uma amizade entre o anfitrião e o chefe
dos convidados. Armas e balas foram oferecidas a Nhô Augusto por Juruminho, ágil caboclo
franzino, rápido no manejo que o autorizou a gastar oito balas num pássaro pousado numa
pitangueira ao o que o outro se nega e argumenta: “Deixa a criaçãozinha de Deus. Vou ver só
se corto o galho...” (S: 395)
Quando amanheceu o bando partiu, antes Joãozinho Bem-Bem convida o novo amigo
para viajarem juntos, o convite é recusado. O tempo passou, veio o inverno e Nhô Augusto
passava os dias debaixo da chuva limpando o terreiro sem precisão e uma nova mudança
ocorre, ele começou a sentir saudade do corpo de mulheres. Chevalier (1989, p. 18) esclarece
45
que a água possui virtude lustral e exerce poder soteriológico, assim a imersão na água é
regeneradora e “apaga a história, pois restabelece o ser num estado novo.” Matraga ao tomar
banho de chuva deixa-se ficar, de certa forma, imerso, acenando assim para a possibilidade de
um recomeço diferente de tudo o que viveu.
Afinal, as chuvas cessaram e Nhô Augusto saiu e maravilhou-se com o que viu: o azul
do céu, o verde das plantas, era a manhã mais bonita que já vira. De repente, “a manhã
gargalhou” um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir.
E outro. E mais outro, mais baixo com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes “(S:
399). A elas juntaram-se maracanãs, periquitos, papagaios e tuins. Naquela manhã bonita e de
alegria Nhô Augusto cantou por um longo tempo uma cantiga muito antiga. Pensou nos
papagaios que passaram e que deviam estar longe. Quando encostou a enxada e parou à
porta da cozinha ainda não tinha idéia do que faria naquele dia. Mas dali a pouco decidiu
partir e não houve quem o demovesse de tal pensamento:“ Adeus, minha gente, que aqui é
que mais não fico, porque a minha vez vai chegar e eu tenho que estar por ela em outras
partes! Ofereceram-lhe um jegue que ele apenas “aceitou porque e Quitéria lhe recordou
ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado muito misturado às passagens da vida de
Jesus” (S: 401)
No Antigo Testamento, o jumento aparece em várias passagens significativas. Em I
Samuel (capítulo 9) Saul parte em busca das jumentas perdidas de seu pai e esse trajeto o
conduz a Samuel que o declara rei dos israelitas. Em Juízes (capítulo 15) Sansão derrota mil
filisteus com a queixada de um jumento. Depois, da luta sentiu sede e clamou ao Senhor que
fendeu uma cavidade na queixada e fez brotar dela água.
Em Números (capítulo 22) o profeta Balaão desobedece a uma ordem divina que o
proibiu de ir contra os israelitas e parte ao encontro desse povo montado em uma jumenta. Por
estar fascinado com as vantagens que granjearia ao amaldiçoar o povo de Deus não viu um
anjo com a espada desembainhada que o Senhor expediu para desviá-lo do caminho. Mas a
jumenta o viu e desviou. O cavaleiro então a espancou. A cena se repete três vezes. Então, o
Senhor voz ao animal que pergunta: “Que te fiz eu, que me espancaste três vezes?”, e
depois: Porventura o sou a tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo em que me
tornei tua até hoje? Acaso tem sido meu costume fazer assim contigo?” O profeta não
enxergava o anjo porque sua visão estava turvada pelos bens materiais, porém a montaria
enxerga além e Deus concede a ela a fala para examinar os sentimentos e ações do outro.
No Novo Testamento, após a visita dos reis ao menino Jesus, José, avisado em sonho
por revelação divina, parte com a família para o Egito para escapar do rei Herodes que
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intentava matar a criança. Mas o papel mais significativo desse animal se na ocasião do
domingo de Ramos quando Jesus entra triunfal em Jerusalém. O jumento, símbolo de força e
dureza como o fora para Sansão, agora se reveste de humildade como atestam os evangelhos
de Mateus (capítulo 21), de Lucas (capítulo 19) e João (capítulo 12) no qual se lê: “E achou
Jesus um jumentinho, e assentou-se sobre ele, como está escrito: Não temas, ó filha de Sião;
eis que o teu Rei vem assentado sobre o filho de uma jumenta.”
Retornando à fuga de José, Maria e Jesus do Egito, Câmara Cascudo (2000, p. 272) no
conto “Como a aranha salvou o Menino Jesus” relata o caso da aranha que teceu a teia na
porta da gruta onde a família sagrada escondeu-se dos perseguidores que chegaram guiados
pelo rasto do jumentinho que carregava Nossa Senhora. Informa ainda que F. Xavier d’Ataíde
em Contos Tradicionais do Algarve, (I, 282, Tavira, 1900) propala uma versão idêntica à
brasileira, atrelada ao ciclo popular da fuga para o Egito.
E Nhô Augusto seguiu cantando, não era pecado, pois as estradas também cantavam. E
admirava as belezas do sertão. Mais uma vez percebe-se o vínculo existente entre a natureza e
o mundo interior do personagem:
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar
um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da
caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de
um solene pau-de-óleo, que ambos conservavam muito de-fresco, os sinais da
mão de Deus. E, uma vez, teve de escapar, depressa, para a meia-encosta, e
ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel
de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a
vaqueirama encourada... (S: 402)
Nhô Augusto deixava-se conduzir pelo jumento ao mesmo tempo em que se extasiava
diante das maravilhas sertanejas. Assim, acabou estabelecendo uma relação de reciprocidade
com a natureza a ponto de senti-la: “e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava,
porque tinha agora um ramo que era de mulungu.” (S: 402)
Uma tarde deparou-se com um cego “meio maluco” puxado por um bode amarelo e
preto que o guiava decidindo os caminhos e o destino que traçariam. Por causa da fidelidade
do animal, eles andavam juntos, pois o menino que exercia o papel de guia tentou roubar o
bicho, mas não conseguiu porque aquele berrou. Agora, era aquele bicho de duas cores quem
escolhia o caminho... Sabia, sim sabia tudo! Ótimo para guiar... Companheiro de lei, que nem
gente, que nem pessoa de sua família...” (S: 403)
Em (GUIMARÃES: 2006, p.82-5), o tio relata que na infância ele e o sobrinho Joãozito
tiveram contato com o cego, seu Emílio, que costumava parar no armazém do Florduardo para
conversar e se alimentar. E que nessa época, Rosa anotava em um caderninho as palavras
47
ditas pelo deficiente visual, interessado no falar sertanejo. A canção entoada pelo cego na
novela em análise é um exemplo
17
.
Da mesma forma que o bode do cego, o jumento de Nhô Augusto era quem decidia os
caminhos:
Nhô Augusto ficava em cima, mui concorde, rezando o terço, até que o jerico
se decidisse a caminhar outra vez. E também, nas encruzilhadas, deixava que o
bendito asno escolhesse o caminho, bulindo com as conchas dos ouvidos e
ornejando. E bastava batesse no campo o pio de uma perdiz magoada, ou
viesse do mato a lália lamúria dos tucanos, para o jumento mudar de rota,
pendendo à esquerda ou se empescoçando à direita; e, por via de um gavião
casaco-de-couro cruzar-lhe à frente, já ele estacava, em concentrado prazer de
irresolução.
Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o
sul, na direção das maitacas viajoras. (S: 404)
O cavaleiro seguia com a certeza de que estava indo com Deus e assim entrou no arraial
do Rala-Coco onde uma assustada agitação sacudia o povo do lugarejo. O bando de Joãozinho
Bem-Bem se aboletou na casa de um fazendeiro onde Nhô Augusto foi recebido com
satisfação. Entretanto, o protagonista ao tomar conhecimento dos planos dos fora-da-lei não
se conteve diante da injustiça e covardia. Tudo começou quando um jagunço, Juruminho, fora
morto à traição, o chefe do bando para vingar a morte do companheiro resolveu matar um dos
irmãos do assassino e entregar as irmãs deste a seus homens. O pai do assassino pediu para
que a vingança fosse feita, mas que apenas sua própria vida fosse sacrificada. João Bem-Bem
negou, então, Nhô Augusto intercedeu em favor do mais fraco. Logo, os dois engalfinharam-
se em luta renhida da qual ambos saíram feridos mortalmente. Porém, amigos até na hora
final. O último pedido de Augusto Matraga foi que João Lomba, um conhecido, abençoasse
Mimita e Dionóra.
O emissário encarregado de dar a notícia à família do protagonista e o homem mais
valente do sertão são Joões, homônimos do escritor. No final, o personagem central não
atende mais por Nhô Augusto: “Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com
sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e do rosto subia um rio contentamento.”
(S: 413) O milagre aconteceu e ele teve a sua hora e vez. E como o eu lírico do poema
“Consciência Cósmica” ele se entrega sem temor, acima do bem e do mal, sem choro ou riso,
em estado de completude.
Retomando as três categorias enunciadas como fundamentais para a obra rosiana,(arte,
religião e natureza) o escritor declara a Lorenz (1991, p.92): “A religião é um assunto
poético” e também é expressão do ser que procura religar-se à força criadora e descobrir o
17
Ver S: 403.
48
sentido da existência. De acordo com Chauí (1995, p. 298) a palavra religião, formada pelo
prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular), estabelece o
ajuntamento da esfera profana, ou dos elementos da natureza, às entidades divinas que
habitam um lugar separado deste mundo. Para a autora as religiões objetivam explicar a
origem da ordem do mundo natural e do mundo humano, colocando em ordem as idéias, o
espaço, o tempo.
Para Riobaldo a religião tem função capital, serve para “desendoidecer, desdoidar. [...]
No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço!” (GSV: 32)
A natureza, por sua vez, é a expressão de Deus, milagres acontecem a cada instante,
no canto e vôo dos pássaros, no surgimento das águas do solo, na eclosão das flores na
primavera, no posicionamento dos astros ordenando os ciclos da vida e as estações. Fonte de
inspiração para artistas e religiosos, a natureza ensina o homem a viver em harmonia e com
sabedoria.
Em contato maior com ela, Rosa pretendia passar os últimos anos, “numa fazenda
confortável, rodeada de árvores, possuindo pomar e horta. Ouvir o gado mugir e o galo
cantar,” segundo Vilma Guimarães Rosa (1999, p. 41).
Da natureza veio a inspiração para São Francisco de Assis, em seus derradeiros anos de
vida, compor, em 1224, o “Cântico das Criaturas”
18
. Primeiro grande exemplar da poesia
italiana, que expressa a experiência espiritual do santo. Para louvar ao Criador, o poeta evoca
as criaturas - sol, lua, vento água, fogo, estrelas, terra, pois em sua concepção na criatura
aloja-se a grandeza divina.
Em italiano a palavra criatura também comporta a acepção de filho, criança. Dessa
forma, todos são irmãos e irmãs e a fraternidade se impõe como motor para conectar os seres
criados pelo Altíssimo, os quais desvendam as faces do espírito divino como milhares de
espelhos dispostos em torno de um objeto, na realidade, reflexos de Deus. Assim, reconhecer
a beleza das criaturas significa reconhecer ao Criador. Francisco de Assis, religioso e poeta (o
“jogral de Deus”) vislumbrava Deus na natureza. O mesmo pensamento de valorização e
respeito à natureza e aos seres que nela habitam evidencia-se na escritura rosiana.
18
O “Cântico das Criaturas” ou “ Cântico do Irmão Sol” está transcrito na seção Anexo.
49
2 ESTÓRIAS DE BURROS E DE BOIS
2.1 Os Animais de Boa-Vontade
Louvai ao Senhor.
Louvai a Deus no seu santuário;
No firmamento do seu poder.
Louvai-o pelos seus atos poderosos,
Louvai-o conforme a excelência
Da sua grandeza.
[...]
Tudo quanto tem fôlego louve
Ao Senhor. Louvai ao Senhor.
(Salmos)
Agigantam-se na ficção de João Guimarães Rosa as figuras do burro e do boi. Em
algumas estórias o primeiro bicho as protagoniza (O burrinho pedrês, Corpo fechado, A
simples e exata estória do burrinho do comandante), em outras o segundo detém as atenções
(Conversa de bois, Uma estória de amor, Entremeio com o vaqueiro Mariano). Porém, no
poema “O burro e o boi no presépio”
19
, de Ave, palavra, ambos igualam-se em importância.
Nesse poema, gestado a partir da observação de telas medievais e renascentistas, o escritor
registra as próprias impressões acerca da representação do nascimento de Jesus concentrando
o foco nos “animais de boa vontade”, elevados à condição de protagonistas. Retratados sob
uma visão não meramente física, mas, antes transcendental, o que se revela é a alma desses
seres.
A esse respeito Maria Neuma Barreto Cavalcante (2000) registra que nas cadernetas de
viagem o escritor em viagem à Itália dirige o olhar também para as obras de arte dos museus
cuja temática seja o nascimento de Cristo: “Tal como na descrição da paisagem, nos Presépios
destaque aos animais: cavalos, boi e burro, aos quais se refere com palavras gentis e
carinhosas, fazendo-nos lembrar o Guimarães Rosa de Sagarana, primeiro e único livro
publicado até então, no qual figura o doce e sábio burrinho pedrês”.
19
Ao longo de sua carreira diplomática, Guimarães Rosa percorreu diversas cidades do mundo. Nessas
andanças, além das visitas a zoológicos e aquários também ia a museus. Nesses passeios buscava um contato
maior com os animais, a emoção provocada por tal proximidade materializou-se sob a forma de poemas que
foram posteriormente reunidos pelo amigo Paulo Rónai e publicados em Ave, palavra (1970) pela Editora José
Olympio.
50
Geraldo França de Lima em prefácio de O burro e o boi no presépio (ROSA: 1983, p.
8) escreve que esses bichos “acendem em Rosa as lâmpadas fulgurantes de seu misticismo, e
então, num vôo retrospectivo, ressurge nele, alcandorada pela moldura polida da distância,
toda sua infância, tão visível na sua obra quanto presente na sua saudade...”
De fato, a encenação natalina mereceu espaço, por exemplo, em Campo geral: “Vovó
Izidra tinha de principiar o presépio. [...] Depois de pronto, era pôr o menino Jesus na
Lapinha, na manjedoura, com a mãe e o pai dele e o boizinho e o burro. [...] Todos os anos, o
presépio era a coisa mais enriquecida ...” (MM: 58).
O tio de Rosa (GUIMARÃES: 2006, p. 117) declara que todos e, especialmente, as
crianças aguardavam ansiosas a época de Natal, quando vovó Chiquinha, e somente ela,
armava o presépio: “ Luta grande da nossa Vó Chiquinha, com ralhação e xingas, era
desenvolvida nesse período [...] Os meninos mexiam demais. Todos queriam aflitos que os
Reis andassem mais depressa.” As lembranças da infância renderam ternas páginas na ficção
rosiana.
Em Buriti, última novela de Corpo de baile, registra-se: “Na Véspera, todos apareciam.
No Buriti Bom, Behú armava o grande presépio, no quarto-da-sala todo aromas e brilhos, e
cores amestradas que ensinavam a beleza a confusos olhos.” (B: 236) Na continuação dessa
cena descreve-se os preparativos para a grande comemoração como a reunião de muitos ovos
para as comidas especiais, entre elas o doce de buruti. Essa aura festiva era capaz de interligar
a todos e os bichos merecem tratamento distinto. Nesse dia as pessoas calavam-se para escutá-
los, pois eram alçados à condição de porta-voz dos mensageiros alados do Senhor, então suas
vozes soavam como sinais divinos:
... Era o resplendor do Nascimento, naquele dia até os bichos se saudavam.
Meio de meia-noite, a gente silenciava para ver se ouviam as vozes deles
dos bois e burros e galos dando recados dos Anjos, que à terra não vinham
mais. Uma vaca berrasse, no instante, e a fazenda estaria sendo abençoada.
Pinto que escapasse do ovo antes da madrugada íris dar em galo-músico,
cantante duma futura alegria invisível. (B: 238)
Retornando ao poema mencionado anteriormente, o burro e o boi são descritos como
verdadeiros adoradores: “Serão os pajens da virgem, / ladeiam-na / como círios de paz, /
colunas / sem esforço”. (AP: 253) Chegam, em certos momentos, a integrar-se à santa família.
Seguem alguns fragmentos à louvação a esses seres, nesse contexto, sagrados:
[...]
Por que zurra para o alto o Burro:
num pedido doloroso?
Por que se abaixa o Boi, opaco,
tão humilde, tão grande?
51
(AP: 257)
Apenas as grandes cabeças:
mas tão de joelhos
quanto os pastores
os anjos
as estrelas
a Virgem. (AP: 260)
Cabem
definitivos.
Só eles podem
de ronda e todo aproximar-se.
São os intérpretes dos humanos em volta.
Jesus ainda lhes pertence. (AP: 262)
Inclinam-se para
o jesusinho;
de seus hálitos e bafos
incubam-no.
Mais perto que São José,
que a própria Mãe Virgem.
(AP: 262)
A proximidade dos “animais de boa vontade” ao menino Jesus nas passagens acima
transcritas exprime o apreço do escritor por esses seres que são retratados com proeminência
na cena mais importante para o mundo cristão. Guimarães Rosa recorre a um tempo
longínquo em que, por instantes, seres humanos e bichos presenciam a atuação de forças
extraordinárias concorrendo para a imbricação de todos em tudo. E não homens e animais
participam do evento adorando o recém-nascido, mas também as estrelas e os anjos, numa
comunhão de criaturas jamais vista. Veremos as mesmas forças nas novelas O burrinho
pedrês e Conversa de bois.
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2.2 O Burro e a Água
O rio nasce
Toda a vida.
Dá-se
Ao mar alma vivida.
A água amadurecida,
A face. Ida.
O rio sempre renasce
A morte é vida.
(Ave, palavra)
Analisemos alguns aspectos de O burrinho pedrês, estória das uniões entre poesia-
musicalidade
20
e homem-natureza
21
. A análise se apoiará em uma paráfrase da narrativa que
de maneira alguma substitui sua leitura e serve tão somente para realçar alguns fatos da
estória interessantes para nosso estudo.
Antes, porém verificaremos algumas linhas de pensamento desenvolvidas por
Guimarães Rosa sobre sua relação com a ngua tomando por base a entrevista a Lorenz.
Nessa ocasião, o escritor atesta que o literato deve ter compromisso humanista,
consequentemente, deve pensar em eternidade e não se ater a ninharias ou a momentos.
O horror ao efêmero, conforme Emir Rodriguez Monegal (1991) manifesta-se em sua
obra pela interseção de forças (lógica–irracionalidade, bem–mal, realidade–imaginação,
consciência–inconsciência) que ao se interpenetrarem abalam a concretude do cotidiano.
Nessa conjuntura, o ato de escrever, na concepção rosiana, aponta invariavelmente para o
infinito. Segundo o autor, sua relação com a língua apóia-se em dois aspectos básicos: o
filológico e o metafísico. O primeiro diz respeito ao produto final do trabalho: a linguagem
criada. O segundo refere-se à ligação entre vida e linguagem que para ele não se desassociam,
antes caminham juntas.
Entretanto, vida e linguagem se desgastam no uso diário e perdem o sentido; forçoso,
então, redescobri-lo. E em sua demanda pelo sentido primeiro, pelo infinito, Rosa não se
satisfaz com o material fácil a língua corrente, por isso, persegue a expressão exata daquilo
que deseja comunicar nos vários idiomas que domina, exercitando uma minuciosa pesquisa.
20
Ângela Vaz Leão (IN: COUTINHO: 1991, p.248-255) em “O ritmo em O burrinho pedrês” analisa a
poeticidade conferida a essa novela por meio do ritmo.
21
Verificaremos mais adiante que em várias passagens o autor dá alma ao burrinho por meio de palavras e ações
que o colocam em igualdade de condições com o homem.
53
Rosa concebia a arte como o resultado de muito trabalho, o que justifica o fato de “uma
palavra poder ocupá-lo por horas ou até dias”. O próprio escritor explica a Lorenz (1991, p.
83):
Meu lema é linguagem e vida são uma coisa só. Quem o fizer do idioma o
espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua,
a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que como
escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o
tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o
infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta
que tenha de limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsável por
ele...
Mais adiante, o autor declama o amor que sente pela língua, o que elucida sua
dedicação ao português, espanhol, francês, alemão, inglês, italiano, latim, grego, dinamarquês,
sueco, russo, chinês, japonês e árabe, entre outras. A língua, a seu ver, equivale a uma arma
da qual se abastece para defender a dignidade humana, seu intento consiste em voltar à
“origem da língua, onde a palavra ainda está nas entranhas da alma.” (1991, p. 84) O amor
de Rosa à língua fez de sua obra um capítulo ímpar na história da literatura. Dentre as peças
de sua escritura deteremo-nos nesse ponto em O burrinho pedrês.
No conto aludido, Sete-de-Ouros, um velho burrinho salva a vida de dois bons homens
que faziam parte de uma comitiva de treze pessoas (o proprietário da fazenda - Major Saulo -
e os doze vaqueiros Leofredo, Tote, Sinoca, Benevides, Badú, Juca Bananeira, Silvino,
Raymundão, João Manico, Francolim, Sebastião e Grande) que transportavam uma boiada
de quatrocentas e sessenta cabeças para o embarque nos trens no arraial. A importância de que
se reveste a boiada para os viajantes se elucida na frase: “Sem a boiada, seriam como almas
sem corpo.” (S: 79)
Mônica Meyer (2008, p.163) sobre a relação do vaqueiro com o cavalo e os bois
esclarece:
[...] O vaqueiro montado no cavalo adquire nova forma e postura,
compondo uma nova criatura. O resultado dessa composição é um ser
híbrido meio homem e meio eqüino. O conjunto sugere um ser
imaginário formado de um só couro. Que adquire fisionomias diferentes
dependendo do ângulo em que se olha – cara de gente e perna de
cavalo, cara de gente e traseiro de cavalo, duas caras gente/cavalo.[...]
A lida do vaqueiro cria uma identidade entre cavalo/pessoa/boi e todos
se igualam como quadrúpedes num determinado espaço e tempo. O boiadeiro
traveste em boi/cavalo e o boi/cavalo traveste em vaqueiro, conversam e se
entendem por meio de aboios e assim aprendem um com o outro. A
antropomorfização do animal e a animalização do homem equalizam ambos,
que se transformam metonimicamente.
54
Em Ave, palavra, o escritor na seção, “Os de couro”, do texto “Pé-duro, chapéu-de-
couro” descreve a semelhança física entre cavalos e vaqueiros revestidos pelo mesmo tecido:
o couro. Rosa aproveita ainda para despejar seu conhecimento acerca da vestimenta dos
cavaleiros e das montarias (assunto que lhe despertava especial interesse) como veremos nos
fragmentos abaixo:
Tudo couro.
Em arnês e jaez, arreio e aprestos, bailada e peiteira amplial, no fixo os
tapa-joelhos, cara abaixo o tira-testa, sobrantes as gualdrapas e o traseiro
xaréu de sobreanca, resto de caparazão – os cavalos anacrônicos se emplacam,
remedando rinocerontes.
E, nos cavaleiros, o imbricado, impressionante repetir-se dos “couros”,
laudel completo: guarda-pés, como escarpes; grevas estrictas, encanando coxa
e perna; joelheiras de enforco; coletes assentados; guarda-peitos; peitos-de-
armas; os gibões; os chapelões; e manoplas que são menos luvas que toscos
escudos para as mãos. Tudo encardido, concolor, monocrômico, em curtido de
mateiro, guatapará, suassuapara, bode, sola ou vaqueta, cabedais silvestres.
De um couro são as rédeas, os homens, as bardas, as roupas e os
animais – como num epigrama. (AP: 176-7)
Dessa forma, Rosa nivela no mesmo patamar homens e animais. O mesmo processo
repete em O burrinho pedrês ao nomear os vaqueiros que participam da viagem, não se
esquecendo dos cavalos, entre os quais encontram-se Cabiúna (nome reaproveitado de
Magma), Rio-Grande, Cata-Brasa, Belmonte e Amor-Perfeito (nomes oriundos de elementos
da natureza: rio, flor, monte). Merecem relevância igualmente os vários nomes dados a Sete-
de-Ouros, que designam etapas de sua história, lugares em que viveu ou proprietários que
teve: Brinquinho (por ser brinquedo de crianças), Rolete (referência ao corpo roliço), Chico-
Chato (“homenagem” ao antigo dono), Capricho (rebatismo para apagar o nome anterior). O
nome confere-lhe identidade e o diferencia dos demais.
No retorno para casa, ao cair da noite, os doze empregados deparam-se com a grande
enchente que se armou no riacho da Fome acarretada pela chuva caída desde o amanhecer.
Desse total, oito vaqueiros e seus cavalos morrem tragados pela força da correnteza ( o cavalo
preto de Benevides enganchou-se com a cilha num de ingá; o amarilho bragado de Silvino
soverteu com o dono; Raymundão e Leofredo não foram encontrados; Sinoca apareceu
inchado e ligado ao cavalo porque não pôde retirar o pé do estribo; Zé Grande e Tote
morreram abraçados e Sebastião foi encontrado em lugar distante de onde ocorreu o
afogamento). Note-se a igualdade de tratamento conferida à descrição da morte de cavalos e
cavaleiros)
Dois não se atrevem a cruzar as águas e recuam (Juca Bananeira e João Manico) e
outros dois salvam-se (Francolim e Badú) graças a Sete-de-Ouros que soube deixar-
se
55
conduzir pela tormenta no momento certo e sair calmamente na ocasião apropriada livrando
da morte o cavaleiro que o montava e outro que se segurou como pôde no rabo do animal.
No entanto, durante o percurso Sete-de-Ouros transformara-se em alvo de chacota,
sendo subestimado pelos vaqueiros que consideravam um insulto montá-lo. O burrinho não
estava escalado para a viagem, apenas cometeu o erro de aparecer às vistas do Major Saulo e
foi prontamente convocado para equiparar o número de cavaleiros e montarias. Este equívoco
(destino?) e suas conseqüências agigantam a existência do pacato e ajuizado Sete-de-Ouros
que mantinha uma rotina livre de perigos desnecessários:
[...] Sete-de-Ouros parecia ainda mais velho. Velho e sábio: não mostrava
sequer sinais de bicheiras; que ele preferia evitar inúteis riscos e o dano de
pastar na orilha dos capões, onde vegeta o cafezinho, com outras ervas
venenosas, e onde fazem vôo, zumbidoras e mui comadres, a mosca do berne,
a lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul.
De que fosse bem tratado, discordar não havia, pois lhe faltavam
carrapichos ou carrapatos, na crina – reta, curta e levantada, como uma escova
de dentes. (S: 31)
Na hora da partida, João Manico, contrariado por montá-lo, resmunga ao selá-lo e bate-
lhe na cabeça. O burrinho desvia, estira o queixo, abaixa o traseiro e faz o arreio cair no chão.
O cavaleiro percebe que pela força nada conseguiria, muda a estratégia e mostra melhores
modos:
- Eh, burrinho, acerta comigo, meu negro.
Assim, Sete-de-Ouros concorda. João Manico passa-lhe a mão espalmada no
pescoço, e ele gosta e recebe bem a manta de pita. não reage, conformado.
[...] Ao aceitar o freio, arreganha os dentes num tremendo sorriso de dentes
amarelos. Mas logo regressa ao eterno cochilo, até que João Manico tenta
montar. (S: 43-4)
Alguns detalhes do trecho acima têm direito a destaque o burrinho somente se deixa
ser montado mediante demonstração de respeito, o autor reforça essa idéia quando escreve
“Assim Sete-de-Ouros concorda.” e “ao aceitar o freio”. O ato de concordar denota a
existência de uma alma. Alguns adjetivos utilizados ao longo da narrativa na descrição do
animal ratificam essa afirmação, como: “sábio”, “desgostoso”, “lúcido”, introvertido”. A
frase a seguir detalha melhor sua personalidade: “Longe dos outros, deixado num extremo, no
canto mais escuro e esquerdo do telheiro, Sete-de-Ouros estava. e sério. Sem desperdício,
sem desnorteio, cumpridor de obrigação...” (S: 76)
O burrinho desde se impõe, para logo em seguida, voltar ao seu habitual estado de
torpor “eterno cochilo”. Desperta em ocasiões especiais, para não desperdiçar energia com
fatos insignificantes, apenas o que lhe parece importante merece atenção, como ser bem
tratado e sobreviver.
56
João Manico não estava satisfeito com sua montaria: “E o burrinho se tivesse morrido
transanteontem, não estava fazendo falta a ninguém!” (S: 60) Mas, ao ser perguntado pelo
Major se eles são burros mesmo, reconhece que são ladinos demais. Sete-de-Ouros segue seu
passo costumeiro: “Que, também, burro que se preza não corre desembestado, como um
qualquer cavalo, a não ser na vez de justa pressa, a serviço do rei ou em caso de sete razões.”
(IDEM) Não é a primeira vez que se faz elogio ao burro em detrimento do cavalo. No
começo da viagem, o fazendeiro indaga: “... E o Sete-de-Ouros é velho, mas é um burro bom,
de gênio... Você não sabe que um burro vale mais do que um cavalo, Manico?...” (S: 44).
A viagem apresentará grande surpresa para João Manico e revelará seu erro em relação
ao mau julgamento que fizera a respeito de Sete-de-Ouros. O patrão anuncia (ou pressente):
“Mas, desencosta essa tristeza, João Manico meu compadre, que eu acho que estou
guardando, ao daqui a pouco, um espanto bom para você.” (S: 36) O major também parece
dar pistas, através de alguns provérbios por ele proferidos, acerca da natureza enganosamente
frágil do burrinho: “joá com flor formosa não garante terra boa”, “não é nas pintas da vaca
que se mede o leite e a espuma”.
Em várias passagens transparece a estima do major pelo burrinho, a qual não chega a
ter a proporção da consideração devotada por “Manuel Veiga vulgo Manuel Flor,
melhormente Manuel Fulô, às vezes Mané das Moças, ou ainda quando xingado Mané-minha-
égua” (S: 301), protagonista de Corpo fechado, sétima novela de Sagarana, pela burrinha
Beija-Flor. Manuel Fulô gostava de afirmar que era filho natural de Nhô Peixoto, o maior
negociante da região, mas seu motivo de gabo era a posse de Beija-Flor. A tal ponto que
titubeia ao ter que responder se amava mais a noiva ou a burrinha. E não mede elogios à
Beija-Fulô:
- Quando eu entro no arraial, amontado na minha mulinha formosa, que
custou conto e trezentos na baixa, todos ficam gemendo de inveja...” (S:302)
- Boa?! Uma santa de beleza de besta é que ela é!... Aquilo nem
dorme... Nunca vi a Beija-Fulô deitada, por Deus do céu!... Montaria assim
supimpa...” (S:305)
- E outra pessoa tem uma besta-de-primeira, mas mesmo, de que não
outra igual, manteúda e talentosa, andadeira e esperta que nem gente...”
(S:316)
Beija-Flor e Sete-de–Ouros influem no destino das pessoas que os rodeiam. Desafiado
pelo maior valentão da região, Manuel Fulô recorre a Antonico das Pedras-Águas, um
curandeiro e feiticeiro. Mas, o preço a pagar pela proteção sobrenatural - o corpo fechado -
era altíssimo - a burrinha. E as negociações se estendem. Muitos argumentos depois as
57
concluem: a vida por Beija-Flor. Mas a separação não houve porque o ex proprietário quando
ingeria cachaça, pedia-a emprestada e saía galopando e disparando tiros abraçado à mulinha.
A tradicional abertura dos contos de fadas confere a O burrinho pedrês nuances
remotas: “Era uma vez um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo,
Conceição do Serro, ou não sei de onde no sertão”. Uma feição de antiguidade permeia a
estória que se passa no mês de janeiro em um ano de grandes chuvas no umbigo do mundo,
Fazenda da Tampa, no vale das Velhas, no centro de Minas Gerais. Sabemos ainda que o ano
termina em seis, portanto “vai cair chuvinha fina, mas as enchentes vão ser bravas.” (S: 41)
O “canto e a plumagem” das palavras transparecem em O burrinho pedrês. O autor
recorre a expedientes estilísticos que confirmam a musicalidade do conto, como as rimas e o
ritmo, servindo-se deles para descrever as pelagens “pretos, fuscos, retintos, gateados, baios,
vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados, castanhos tirando a rubros, pitangas com longes
pretos; betados, listados,...” (S: 32), relacionar os cornos: “longos, curtos, rombos, achatados,
pontudos como estiletes, arqueados, pendentes, pandos, com uma duas três curvaturas,
formando ângulos de todos os graus com os eixos das frontes,...” (S: 33) e, sobretudo, marcar
a cadência da boiada.
Éderson Bustamante (2000, p. 190) estuda a novela a partir da composição musical que
está por trás, para o autor, de todos os acontecimentos narrados. Sobre a abertura, escreve:
O clarinete apresenta o tema que anuncia a humana figura de Sete-de-
Ouros e toda a sua sabedoria. O tema é retomado pelos demais instrumentos.
A orquestra executa uma música alegre e ao mesmo tempo sóbria, um “allegro
moderato”, com suavidade. Após um”tutti” estridente e vigoroso, a música
caminha para seu final e se esvai, lentamente preparando o ouvinte para um
segundo movimento.
Um “andante maestos”, onde o naipe de cordas descortina para nossos
ouvidos o latifúndio do major Saulo “onde tudo era enorme e despropositado.
[...]
A orquestra prorrompe em uníssono. Um “allegro scherzando” traz aos
ouvidos o alarido dos vaqueiros na hora da partida da boiada para o embarque
na estação do arraial. O momento é confuso, uma grande parte da cavalhada
havia fugido durante a noite que findara. Temas alegres se superpõem, vão e
voltam, se repetem, como cantigas de rodas.
O ritmo também marca o momento da integração entre homens e animais quando todos
se aglutinam formando um bicho inteiro de muitas pernas, espécie singular de centopéia:
Pouco a pouco, porém, os rostos se desempanam e os homens tomam
gesto de repouso nas selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil,
está quase pronta a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho inteiro -
centopéia - , mesmo prestes assim para surpresas más.
- Tchou!... Tchou!... Eh, booôi!...
E agora, pronta de todo está ela ficando, que cada vaqueiro pega o
balanço de busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam
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bovinamente. Devagar, mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho
trovejante pata a pata, casco a casco, soca a soca, fasta vento, rola e trota,
cabisbaixo, mexe lama, pela estrada, chifres no ar...(S: 51)
Nesse ritmo de coesão a boiada chega ao arraial. Imediatamente altera-se a rotina do
povoado: “Mulheres puxando meninos para dentro das casas. Portas batendo. Gente apinhada
nas janelas. Cavalgaduras amarradas em frente das vendas, empinando, quase rompendo os
cabrestos.” (S: 75) Bichos de menor porte também se assombram – galinhas, porcos e
cabritos. E os vaqueiros aprumam-se mais, e garbosos abóiam com maior rompante. A
partida do gado comove Sinoca: “Tomara que acabe o tempo dos embarques. O que eu não
gosto é de trazer esse gado gordo, que vai morrer... Quero mais é ir buscar boi magro no
sertão.” (S: 79)
O último parágrafo do conto, construído com frases curtas e longas, reflete o ritmo da
parada de Sete-de-Ouros após um dia de trabalho. Aliterações e onomatopéias auxiliam na
composição do ritmo, entre elas:
“e já, morro abaixo, chão a dentro, trambulhavam, emendados três trons de trovão” (p.45)
“Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando ... Dança doido, dá de duro, dá de dentro,
dá direito ... Vai ... vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai virando ...”(p.51)
“ - Eh, boi-vaca! Tchou! Thou! Tchou ... Ei! Ei!” (p.53)
“Cou! Cou! Tou! Tou!” (p.59)
Assim como as aliterações e onomatopéias, as máximas proferidas por Major Saulo
emprestam sonoridade à narrativa, da mesma forma, as quadras:
“- Olha pra mim, Francolim: ‘ joá com flor formosa não garante terra boa.’ ’’(p. 40)
“- Escuta, Francolim: ‘não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma.’ ” (p. 43)
“Suspiro de vaca não arranca estaca.” (p. 44)
“Todo passarinh’ do mato / tem seu pio diferente. / Cantiga de amor doído / não carece ter
rompante.” (p. 51)
“Chove, chuva, choverá, / Santa Clara a clarear / Santa Justa de ajustar / Santo Antônio
manda o sol / P’ra enxugar o meu lençol.” (p. 55)
“Olho e ouvido, andando por longe, é bom para dono e patrão.” (p. 61)
“Há-há, Manico velho! Escuta: ‘para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha.’ ”
O dinheiro passa como água no córrego, mas deixa poços cheios, nas beiras” (p.62)
As quadras funcionam como micro estórias inseridas na conjuntura maior. A
interposição de estórias secundárias dentro da principal advém do alto poder de fabulação do
autor, eminente contador, que a exemplo de Sherazade cativa os leitores deixando-os em
59
estado de suspensão da alma. Sabe-se que em literatura importa pouco o que se diz, mais vale
o como se diz. Guimarães Rosa faz de um enredo simples a travessia de um dia de uma
boiada – uma narrativa encantadora apinhada de simbologias e significações.
Uma das micro estórias é a do boi Calundu contada por Raymundão. Trata-se de um
garrote zebu “cor do céu que vem chuva”. Certa vez, o vaqueiro teve de recuperar uma vaca
que dera cria na beira de uma lagoa. Um jacaré comeu o bezerrinho e a mãe virou bicho do
mato, por conta disso, o trabalho de resgate demorou mais que o previsto e Raymundão teve
que dormir no mato. Era uma noite clara de lua cheia, as vacas inquietaram-se e começaram a
formar uma roda, colocando no centro os bezerros, mas Calundu postou-se na frente,
aparentava ser maior do que era e “cada vez ia ficando mais enjerizado e mais maludo,
ensaiando para ficar doido, chamando a onça para o largo e xingando todo nome feio que
tem.”
A metamorfose do animal toma maiores proporções e ele parece dobrar de tamanho e
“Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calundu mais do que as outras coisas, por respeito...”
(S: 57) Então, a onça preta que havia armado o bote, (e quando ela o faz é por que o estudo
do campo e das possibilidades aponta para o sucesso da empreitada) recuou. Calundu operou
verdadeira façanha. Interessante notar os referentes que marcam a antropomorfização das
vacas (sentimento maternal de proteção), da lua (demonstração de respeito ao iluminar mais o
boi) e de Calundu (xingamentos dirigidos à onça).
Mais adiante, o vaqueiro narra a estória da trágica morte do boi que mata um menino,
seu Vadico, o filho do fazendeiro que antes de morrer pede: Não mata o Calundu, pai, pelo
amor de Deus! Não quero que ninguém judie com o Calundu!” O boi parte para outra fazenda,
escoltado por Raymundão: Vamos para adiante, assassino!... Mas falava baixo, para ele
não me entender...” chegando, o bicho passa a noite no curral mugindo desesperadamente.
As opiniões dos vaqueiros divergem. O velho cego Valô Venâncio que não trabalhava mais
afirma que ele está tomado por um espírito maligno. O vaqueiro Leofredo afirma que ele se
arrependeu por ter matado o menino. Todos vão vê-lo, ele pára de uivar e se dirige à cerca
manso como um bezerro: “parecia que ele queria mesmo era chamar alguma pessoa.” Ao
amanhecer o encontram morto.
Em Entremeio com o vaqueiro Mariano, Guimarães Rosa disserta acerca de um “touro
jaguanê que morreu de tristeza. Era um touro de idéia, muito maneiro: saía sozinho, de
qualquer boiada, corria, entrava no mato,”... (EE: 95) Logo que laçado, não se mexeu mais,
não esboçou nenhuma reação. Deitou e ficou. Os vaqueiros bateram nele, puseram palha em
chamas embaixo dele para ver se levantava, mas ele permanecia imóvel, apesar de tremer-se
60
todo, e acabou morrendo ali mesmo, de raiva ou vergonha. Calundu parece tomado também
pela vergonha, arrependimento.
Ainda sobre a alma dos animais, em Sagarana emotiva (1975, p.22) transcrevem-se as
seguintes palavras de Rosa em referência à contribuição do vaqueiro Mariano para o
alargamento de sua visão a respeito dos bois: Aquele vaqueiro ainda existe. É meu grande
amigo. Foi com ele que aprendi muito sobre a alma dos bois...”
Vale ressalvar que a “humanização” de Calundu, de Sete-de-Ouros ou de qualquer
outro animal de Sagarana obedece ao primado da intuição. De sorte que o movimento
executado pelo autor para capturar-lhes a alma, os sentidos ocorre na direção antagônica à
clássica das fábulas e contos da carochinha ele é quem se transporta para o interior dos
animais “e não para lhes transmitir a sua própria personalidade, mas para interpretar e
exprimir a imaginada vida interior deles.” retomando o pensamento de Lins (1991, p.139).
A presença do velho vaqueiro cego responde à visão metafísica do escritor que delega aos
excluídos a tarefa de ver além. Já a compaixão do menino responde à configuração rosiana
acerca da infância, percebida como um estágio extraordinário.
A novela O burrinho pedrês descreve uma viagem, ao lado desta, outras são efetuadas,
como a de Calundu. Em “A viagem”, Benedito Nunes (1976, p. 175) explica que na prosa
rosiana “existir e viajar se confundem”, dessa forma, pessoas, coisas e animais auxiliam no
encadeamento misterioso de causas que decidirão a vida de outros seres. Observa ainda que o
ato de existir e o sertão enlaçam-se na figura da viagem que transforma e tudo repõe ao final
em seus devidos lugares. Dentro dessa ótica, compreendemos melhor o erro cometido por
Sete-de-Ouros de aparecer naquela manhã na frente do Major Saulo. Conforme salientado no
conto, trata-se de um erro que decidiria o destino e abriria caminho para a grandeza de
homens e de burros.
Vaqueiros e animais farão a travessia até alcançar seu destino. De certa forma, eles
terão “sua hora e vez” como Augusto Matraga. Para tanto, faz-se imprescindível enfrentar
obstáculos, descer encostas, resistir às estiagens, atravessar propriedades e córregos. Se
fizéssemos a transposição da máxima da Escola de Sagres tomada de empréstimo por
Fernando Pessoa: “Navegar é preciso” para a rosiana ficaria assim “Viajar é preciso”. E a
comitiva do Major Saulo precisa seguir adiante. Mais que percorrer campos, planaltos,
planícies, serras essa viagem representa a busca.
Etimologicamente, os prefixos -trans, -tra, -trás, -três significam movimento para além
de. A travessia da comitiva dá-se entre o espaço que separa a fazenda da estação ferroviária.
61
Entretanto, tal demarcação funciona como representação de uma outra travessia, de ordem
bem maior e complexa: a espiritual. Cirlot (1984, p. 598) esclarece:
Do ponto de vista espiritual a viagem nunca é a mera translação no espaço,
mas sim a tensão da busca e da mudança determinada pelo movimento e pela
experiência que deriva do mesmo. [...] o viajar é uma imagem da aspiração
diz Jung do anseio nunca saciado, que em parte alguma encontra seu objeto.
[...] Porém a verdadeira viagem nunca é uma fuga, uma submissão, é a
evolução.
Em A simples e exata estória do burrinho do comandante, primeira narrativa de Estas
Estórias, narra-se em poucas páginas a transposição de um burrinho em um rio, depois que o
barco em que ele estava adernara. A tripulação do Amazonas, navio que o socorrera, unida
ansiava pelo salvamento: “– É nosso queriam os marinheiros, e os oficiais, e todos.” (EE:
48) E como o burrinho sofria, tomando mergulho involuntário a ponto de afogar-se, várias
embarcações do Amazonas foram lançadas para ajudá-lo: a canoa do comandante, a lancha
pequena dos oficiais, o escaler pequeno de compras e o grande da guarnição, a velha chalupa.
Todas apinhadas de marujos que ladeavam o bicho ao mesmo tempo em que batiam as mãos
nas águas “partilhando o banho do animal”. Outros marujos mesmo vestidos, exclamando e
rindo nadavam: “Sendo deles a festa, não houve mais comando regrado. E, ao que, no átimo,
até o Solano, o detido de repente lampeiro compareceu” (EE: 50) Em desacordo, mas com
carinho deram-lhe vários nomes: Maciste, Gergelim, Amor. E o burrinho, tal qual Sete-de-
Ouros, seguiu vencendo a correnteza, e sabia o que fazer. Os marujos o chamavam
encorajando-o. E recorriam animados ao direito de salvagem, ou seja, de posse por se
tratar de um resgatado. Quando se encostou à embarcação, “arrimou-se contra o costado, e
parou quieto, paralelo conosco, ele e o navio, bordo a bordo, longo a longo” o içaram por uma
cinta e a alegria tomou conta de todos: “Então a nosso bordo, longe, perto, foram palmas e
clama, o mundo em emoção. [...] A alegria se espraiara por todo o nobre barco de a jô:
popa a proa.” (EE:51) Nessa estória com desfecho feliz burro e homens celebram a vida, após
vencerem os entraves representados pelas águas do rio.
Ainda acerca da riqueza de símbolos e significados encontráveis em O burrinho
pedrês, cabe evidenciar os nomes do protagonista e do córrego transmutado em rio. O
primeiro (Sete-de-Ouros) associa-se à terra, à primavera, à vida. Pois, cada naipe do baralho,
conforme Chevalier, representa uma estação do ano e o naipe ouros associa-se à estação das
flores e, consequentemente, à vida, à terra em abundância. Enquanto que o segundo (fome)
propaga a idéia de dor, fim, desespero e morte. A marca do burrinho antecipa fatos de sua
trajetória. O número de viajantes remete imediatamente ao Novo Testamento, doze vaqueiros
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e o senhor doze apóstolos e o Senhor. Também faz lembrar os doze pares da França, a tropa
de elite do rei Carlos Magno. Sobre as configurações da água, Chevalier (1989, p. 18-19)
afirma:
[...] a água também comporta um poder maléfico. Nesse caso, ela pune os
pecadores, mas não atinge os justos: estes nada têm a temer das grandes águas.
Às águas da morte concernem apenas os pecadores e se transformam em águas
da vida para os justos. Como o fogo, a água pode servir de ordálio. Os objetos
nela lançados se julgam, a água não profere sentença.
[...] Os rios podem ser correntes benéficas ou dar abrigo a monstros. As águas
agitadas significam o mal, a desordem.
As águas agitadas do córrego da Fome são comparadas à barriga faminta de uma cobra
que transforma cavaleiros e cavalos numa massa confusa: “Com um rabejo, a corrente
entornou o pessoal vivo, enrolou-o em suas roscas, espalhou, afundou, afogou e levou. Ainda
houve um tumulto de braços, avessos, homens e cavalgaduras se debatendo.” (S:95)
No Velho Testamento, dois episódios envolvendo águas apontam para a significação
desta no sentido de expurgação de pecados. A ocorrência do dilúvio em Gêneses (capítulo 6)
serve para lavar a face da Terra da corrupção do gênero humano e somente Noé e sua casa
salvam-se, por haver o Senhor achado justiça nessa família. Também em Êxodo (capítulo 14)
os egípcios perecem no mar após empreenderem perseguição aos hebreus liderados por
Moisés.
Mônica Meyer (2008, p. 132) anota que em “Boiada” a percepção rosiana acerca da
natureza sertaneja recai principalmente sobre o aspecto da sua cor. A descrição abaixo da
passagem de um rebanho bovino sobre um ribeirão concentra dois elementos intensamente
trabalhados em O burrinho pedrês: a água e a boiada:
A boiada vem no cerrado. Olha a poeira dela (por cima das árvores)
... (B2, p.11). A bela travessia do gado! O poço fica côr de terra (límpido,
em cima) (B2, p.50) 12hs.10. Córrego da Canabrava. É um verdadeiro
ribeirão. Verde e correndo muito. Ponte com guarda-mão. O gado passa mais
abaixo, num ponto de muita correnteza. Água verde, bela. Para baixo do gado
a água se suja, mas primeiro pelas margens terrosas (o meio é de fundo de
pedras). Mais abaixo os dois sujos se juntam, o ribeirão fica todo cor de barro.
(B2, p.56).
Dentre os vaqueiros que se salvam das águas do riacho da Fome, Badú tinha bom
coração, era leal, trabalhador e amava, estando prestes a se casar; Francolim mostra-se fiel ao
chefe, sempre de olho nos companheiros; João Manico é um contador de estórias figura de
maior relevância na obra rosiana, como testemunham Miguilim, Joana Xaviel, Velho Camilo
e Grivo em Corpo de baile, todos têm o dom de reunir os demais. Deste modo, a caravana
sedenta por estórias se aglomera ao redor do contador: “O grupo se uniu mais, todos querendo
63
emparelhar com João Manico. Os cavalos se entrepisavam nos cascos” (S: 81). Por fim,
realce-se o primeiro nome deste vaqueiro, homônimo do escritor.
Estórias ambientadas no sertão com vaqueiros, boiadas, rios ou riachos continuarão
dando a tônica à prosa de Guimarães Rosa que indiferente aos apelos de editores e leitores,
lança somente em 1956 duas obras de grande repercussão que o consagrariam nas letras
brasileira e mundial: Corpo de baile (janeiro) e Grande sertão: veredas (maio). As obras
posteriores confirmaram a originalidade do escritor para a invenção de personagens e enredos,
que, inesperadamente, reduziu o tamanho de suas estórias, mas não a dimensão metafísica que
elas podem atingir, trata-se de Primeiras estórias (1962), Tutaméia (Terceiras estórias)
(1967), (Estas estórias 1969) e Ave, palavra (1969).
A estreita relação do escritor com o meio ambiente pode ser sentida nas páginas de sua
obra e em suas declarações. Em uma delas, a Lorenz, expressa o desejo de ser jacaré para
viver no rio. Água e jacaré mantêm-se intimamente ligados, esse ser aquático cosmóforo,
lunar, a um só tempo símbolo de morte e renascimento “se parece temível, é por exprimir uma
força inelutável, como o é a noite para que venha o dia, ou como o é a morte para que a vida
possa voltar”, de acordo com Chevalier (1989, p. 306). O autor assinala ainda que tal animal
ocupa posição intermediária entre os elementos terra e água, o que faz dele representante da
fecundidade e destruição, erigindo-se como o senhor das águas.
O rio, por sua vez, apresenta-se profundo como a alma humana que pode ser clara e
calma na superfície, mas nas profundezas é escura como o sofrimento dos homens. A
comparação do rio à alma idéia da grandeza metafísica que as águas representam para o
escritor que ainda assevera amar grandes rios por sua eternidade. Dessa forma, o riachinho
transmutado em rio caudaloso capaz de tragar oito cavaleiros com seus cavalos expõe a
dimensão poderosa compreendida pela água na ficção rosiana. Comprovemos tal dimensão,
citando o protagonista de Grande sertão: veredas, Riobaldo, que já carrega no nome o
vocábulo rio remetendo a travessia, a fluir, a andanças, conforme Ana Maria Machado (2005,
p. 63): “nome inventado com sua etimologia introduz imediatamente os aspectos rio e baldo
(frustrado), marcando as tantas mudanças de um personagem que não se fixa... toma o rio por
modelo.”
Riobaldo afirma ainda ter o São Francisco dividido em duas partes sua vida, referindo-
se ao encontro com Diadorim quando menino. O Velho Chico invade personagens rosianas e
ajuda a garantir a ordenação da natureza onde diversos elementos dos reinos animal, vegetal
ou mineral transcendem seus limites e interagem. Nessa atmosfera, todos se igualam, pois
pertencem ao mesmo universo – o sertão – caracterizado pela interseção de seres.
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“O rio é cheio de baques” e “viver é negócio muito perigoso”, assim se inicia a saga de
Riobaldo. Assim, também se conclui a saga de Sete-de-Ouros que soube passar pelas águas:
“sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao
querer da correnteza, pouco fazia que esta o levasse de viagem, muito para baixo do lugar da
travessia.” (S: 96) Deixava-se levar, não resistia, chegando ao ponto de fazer “parentesco com
a torrente”. Prefere atinadamente integrar-se ao ambiente e “ir sem afã, à voga surda, amigo
da água, bem com o escuro, filho do fundo, poupando forças para o fim.” (S: 94)
Sete-de-Ouros fluvializa-se e um processo de imbricação de seres se estabelece. Por
breves instantes torna-se rio. Semelhantemente, guardadas as proporções, ao protagonista de
A terceira margem do rio, conto de Primeiras estórias, em que o pai lança-se às águas em
uma canoa para nunca mais voltar para casa e para a família. Lá permanece por anos
tornando-se rio até desaparecer diante do filho. A diferença entre os processos de
fluvialização dos dois personagens citados reside na duração e intensidade.
Sete-de-Ouros, sabiamente
22
, opta por não brigar contra a correnteza e nota, finalmente,
um fio de água favorável que o conduziria para a terra. Assim, o sábio herói, sem arroubos,
escapa da morte. Para Chevalier (1989, p. 21-22) “a navegação ou o viajar errático dos heróis
na superfície significa que estão expostos aos perigos da vida”. E a essa dura prova
sobreviverão aqueles que obtiverem a proteção dos deuses (Ulisses ao cruzar os mares na
volta para Ítaca), a bênção de Deus (israelitas ao atravessarem o mar Vermelho) ou que se
aclimatarem ao ambiente (Sete-de-Ouros ao interpenetrar-se ao córrego da Fome).
22
O burro apesar de retratado sob aspectos não lisonjeiros em algumas fábulas de La Fontaine, retomadas
posteriormente por Monteiro Lobato (1982) - Burrice, O burro juiz e O burro na pele do leão, O burro sábio e
Tolices de asno – em outras assume caracteres mais dignosOs dois burrinhos e O cavalo e o burro.
Provavelmente, o primeiro grupo de fábulas tenha sofrido influência do episódio mitológico grego no qual Apolo
concede orelhas de asno ao rei Midas, porque o rei preferiu o som da flauta de Pã à música do templo de Delfos,
simbolizando “uma busca mais do sensível do que do espiritual”, conforme registra Pierre Brunel (1998, p.122).
Ou ainda segundo Chevalier (1989, p. 94) “a busca de seduções materiais, em detrimento da harmonia do
espírito e da predominância da alma.” Na literatura lobatiana merece destaque ainda a figura do sábio burro
falante sempre disposto a aconselhar as crianças do Sítio do Picapau Amarelo. Também Érico Veríssimo em Os
três porquinhos pobres põe em evidência um burro falante sábio.
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2.3 Os Bois e a Luz
Meu boizim pinheiro branco
Pernas compridas demais:
De ir beber água tão longe,
Nas veredas dos Gerais...
(Cara-de-Bronze)
Em várias estórias rosianas o boi comparece de forma marcante. Verificaremos
nessa seção a presença desse animal em Conversa de bois, oitava narrativa de Sagarana.
Conversa de bois inicia-se com uma referência aos contos de fadas: “Que houve um
tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que
bem comprovado nos livros das fadas carochas” (S: 325). Estórias que, entre outras
características, têm ocorrência em tempos remotos e podem apresentar bichos falantes. Ainda
no primeiro parágrafo lança-se uma pergunta: poderiam os bichos nos dias de hoje falar e
serem entendidos por qualquer pessoa? Manuel Timborna, homem não inserido na sociedade,
que preferia falar de suas invenções - “coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem
escutar” - a trabalhar, responde afirmativamente.
Os personagens rosianos não inseridos, como velhos, loucos e crianças, são os que têm
maior consciência dos mistérios do universo, pois a racionalidade dos adultos conscientes de
seus afazeres diários pode evidenciar a realidade, mas também pode ocultá-la, ao dificultar
uma visão mais subjetiva ou menos concreta dos fatos. Timborna parece levar uma vida
ociosa e por isso mesmo dispunha de tempo para contemplar o que os demais não viam por
estarem ocupados com as tarefas cotidianas. E, assim, se estabelece o diálogo entre Manuel
Timborna e seu interlocutor, estudioso ou conhecedor do latim. À semelhança do interlocutor
de Grande sertão: veredas, o de Conversa de bois também pouco fala. Põe-se a escutar a
estória, mas pede licença para recontá-la diferente, enfeitada e acrescentada “ponto e pouco”.
Manuel esclarece que a narrativa lhe fora repassada por uma irara, testemunha ocular do
acontecido e que capturada só recuperara a liberdade a troco de minuciosa narração.
Numa atmosfera de antiguidade mítica a novela se inicia com bichos falando. Câmara
Cascudo (2000, p.283-295) na seção Contos etiológicos registra vários contos em que os
bichos possuíam características humanas em tempos remotos– “Quando Cristo andou pelo
mundo, certa vez no mar, em companhia de São Pedro...” - e até imemoriais “Houve um
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tempo em que os bichos falavam”. Mas, é sem dúvida na seção Conto de animais que eles
ganham maior espaço, embora apareçam nas demais.
Na ficção rosiana os bichos também ganham voz. Em Uma estória de amor (Festa de
Manuelzão), por exemplo, o boi também toma a palavra, no “Romanço do boi Bonito” ou “A
décima do boi e do cavalo”, estória contada pelo velho Camilo a uma multidão reunida que se
emociona com a saga do boi que tenta desvencilhar-se de um guerreiro valente, o vaqueiro
Menino, como comprova o fragmento abaixo:
“- Levanta-te, Boi Bonito,
ô meu mano,
com os chifres que Deus te deu!
Algum dia você já viu,
ô meu mano,
um vaqueiro como eu?”
Dele ganhou uma resposta séria e sentida:
- Te esperei um tempo inteiro,
ô meu mão,
por guardado e destinado.
Os chifres que são os meus,
ô meu mão,
nunca foram batizados...
Digo adeus aos belos campos,
ô meu mão,
onde criei o meu passado?
Riachim, Buriti do Mel,
ô meu mão,
amor no pasto secado?... (MM: 260-1)
Mas, em Conversa de bois o diálogo entre os animais sustenta a narrativa de forma
mais marcante. E tudo começa numa certa manhã quente no começo do mês de maio que mais
parecia com uma de setembro, época em que o sol aparece mais forte, vermelho e fumegante,
provavelmente às dez horas na encruzilhada da Ibiúva, após a cava do Mata-Quatro, uma irara
tomava banho de sol quando escutou o rangido de um carro-de-boi que se aproximava.
Pensou e decidiu aninhar-se nos buracos das rodas do carro que fariam às vezes de janela para
ela.
Esperta e curiosa segue viagem com a comitiva formada por oito bois - Buscapé e
Namorado que vinham na frente; Capitão e Brabagato, os segundos; Dançador e Brilhante, os
terceiros e Realejo e Canindé, os últimos e maiores. Os animais quanto ao tamanho
obedeciam a uma ordem crescente quanto a suas posições. Havia ainda o menino guia,
Tiãozinho, e o carreiro, Agenor Soronho. A criança “um pedaço de gente com a comprida
vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças arregaçadas e a camisa grossa de
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riscado, aberta no peito e excedendo atrás em fraldas” vinha triste e o homem era ruivo e tinha
um semblante fechado, mal encarado.
Seguem andando por um quilômetro ou mais quando o sol forte desperta a consciência
de Brilhante que começa a chamar pelos outros “Boi... Boi...” Mas, os demais não respondem
e ele continua em ritmo progressivo a formular pensamentos cada vez mais complexos.
Lembra da morte do irmão Tubarão, seu antigo par de junta, que ocorreu um mês e meio.
Depois, reflete sobre a própria condição de boi domesticado.
Enfim, Brabagato responde-lhe que os outros não sabem que são bois. Dançador, por
sua vez, fala sobre o “homem-do-pau-comprido-com-o-maribondo-na-ponta [...] O homem é
um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o
único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito” (S: 331) Mais adiante completa: O
homem, não: o homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de
forma e de jeito... O homem tem partes mágicas... São as mãos... Eu sei...” (S:350)
A fala de Dançador remete ao conto “O touro e o homem” em que um touro que vivia
nas montanhas sai em busca do homem para comprovar o que todos os animais diziam: era
ele o bicho mais valente. Segue pela estrada e encontra um velho, uma mulher e um menino,
seres aparentados ao homem. Até que o encontra e pergunta se é o mais valente. A resposta
vem em forma de um tiro que o acerta frontalmente. Perguntado depois sobre o bicho-homem,
responde numa reunião de animais; “Ah! Meu amigo, só com um espirro que ele me deu na
cara, olhe em que estado fiquei!” (CASCUDO: 2000, p. 206-7)
A importância de que se reveste o diálogo dos bois transparece na epígrafe: “–
vai! vai! vai!... / - Queremos ver... Queremos ver... / - vai o boi Cala-a-boca /
fazendo a terra tremer”. Trata-se de parte do coro do boi-bumbá
23
que anuncia a configuração
da estória: o personagem central da narrativa assim como no folguedo popular será o boi que
emergirá tal qual o Cala-a-boca, aquele que faz a terra tremer. O não direito à voz justifica o
nome do boi que não se cala e ao falar abala a estabilidade cotidiana, pois da fala advirá a
ação.
Impressiona o cuidado de Guimarães Rosa com a seleção de cada palavra: na epígrafe
temos duas que nortearão a estória: coro e boi. Assim, torna-se imprescindível registrar os
significados do primeiro vocábulo de acordo com o Dicionário Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira (s.d.):
23
Essa festa folclórica disseminou-se por praticamente todo o país adquirindo denominações variadas, todavia o
enredo mantém-se: a ressurreição do boi. O vocábulo onomatopaico bumba refere-se à queda estrondosa do
animal. A citação mais antiga data de 1791 em Recife.
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Coro: (ô) sm.1. Conjunto vocal que se expressa pelo canto e pela declamação.
2. Mús. Conjunto de cantores que executam peças em uníssono ou a várias
vozes. 3. Mús. Composição destinada a coro. 4. Mús. Coral (2). 5. Mús. Coral
(3). 6. Parte de uma igreja destinada à congregação, durante os ofícios. 7.
Balcão, nas igrejas destinado à música. 8. Grupo de coristas que se apresenta
como fundo numa produção teatral.
Se conciliarmos os significados 1, 2 e 8 aos 6 e 7 observaremos que a conversa dos bois
constituirá, no mínimo, o pano de fundo de uma peça com motivos sacros: a punição à
desobediência ao décimo mandamento “não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a
mulher do próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento,
nem coisa alguma do teu próximo.”, conforme observa-se em Êxodo , 20; e a conseqüente
vitória final do bem sobre o mal, ocorrida no desfecho da narrativa..
Brabagato reflete acerca da força do homem e do boi e conclui que o primeiro não é
mais forte e que vira um homem morrer todo amassado e pisado por “um boi-grande-que-
berra-feio-e-carrega-uma-cabaça-na-cocunda” (S: 332) em alusão ao touro, ou conforme o
narrador a um zebuíno-nelori. A fala do boi deixa entrever um discurso em que se apregoa a
supremacia da natureza sobre a cultura.
Logo adiante, avistam-se uns cavaleiros e Tiãozinho para lhes dar passagem contorna o
barranco para deter os bois. O grupo pergunta o que carregam e Agenor responde “umas
rapadurinhas pretas, mais um defunto. É o pai do meu guia, que morreu p’r’a amanhecer
hoje...” (S: 332). Explica ainda que desconhece o motivo da morte e que o homem padecia de
uma antiga doença. Uma moça apieda-se de Tiãozinho e ele que estava quase conformado,
recebe novamente o peso da tristeza. Na despedida, a moça retruca algo sobre a falta de
respeito e higiene de se amontoarem mortos em cima de alimentos.
Agenor aplica três ferroadas em Brabagato que aproveitou a parada para descansar e
todos recomeçam a marcha. Canindé opina que os bois-de-carro pensam como o homem.
Realejo objeta que podem pensar como eles e como os bois, mas é melhor não tomar o
pensamento do homem para si:
[...] É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens... as coisas ruins
são do homem: tristeza, fome, calor – tudo pensado é pior...
- Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom... É
melhor do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto,
haverá ainda boas touceiras do roxo-miúdo, que não secaram... E mesmo o
catingueiro branco está com as moitas comidas a meia altura... é bonito
poder pensar, mas só em coisas boas...
“É isso mesmo... o que é bonito... O que é manso e bonito... Eu até
queria contar uma coisa... Sabia de uma coisa... Sabia, mas não sei mais”... As
orelhas de Brilhante murcharam, e a cabeça sobe e desce. “Não encontro mais
aquilo que eu sabia... Coisa velha... Também, vem tanta coisa para a gente
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pensar!...Vêm como os mosquitos maus, da beira do mato... Perto do homem,
só tem confusão...” (S:334)
Muitos são os aspectos passíveis de verificação nesse trecho da conversa dos bois,
dentre eles optamos pelos seguintes: a valorização da visão (utilizando-se para tanto da
reiterada presença da luz) e o processo de aprendizagem (autognose). No diálogo que se
desenrola entre Brabagato, Canindé e Brilhante tem-se uma reflexão a respeito do
conhecimento de si, do outro e do mundo. Observamos em sua leitura ecos platônicos,
portanto podemos relacionar o fragmento acima com o livro VII da República (2003), o qual
contém o Mito da Caverna, alegoria do conhecimento, em que se propõe uma analogia entre
os olhos do corpo e os olhos do espírito quando passam da escuridão à luz.
Para Platão, olhos e alma destinam-se à luz: os primeiros foram feitos para ver e
necessitam da luz solar para tanto, a segunda existe para conhecer, a saída das trevas,
representada pela caverna, simboliza o alcance do conhecimento. Dessa forma, a ausência da
luz determina o aprisionamento, a ignorância, mas vislumbrá-la significa ascender. Não por
acaso, a narrativa se numa manhã ensolarada, a luz desperta a consciência de Brilhante,
como o próprio nome do boi indica, não causa espanto ser ele o primeiro a despertar.
A trajetória do prisioneiro que foge da caverna assemelha-se, nesse caso, à do boi, ser
dotado de corpo e alma, destinado ao conhecimento das idéias. A luz por ele recebida e, em
certa medida, absorvida é a luz plena do Ser, ou seja, o Bem que ilumina o mundo intelegível
como o Sol ilumina o mundo sensível. A idéia do Bem corresponde, assim, ao Sol. O título da
novela em análise remete às descobertas, se levarmos em consideração o ditado que defende a
tese da conversa como um meio para o entendimento. O boi Rodapião para contrapor a
racionalidade à ignorância declara: “Vocês não fazem como eu, só porque são bois bobos, que
vivem no escuro e nunca sabem por que é que estão fazendo as coisas. [...] É preciso pensar
cada pedaço de cada coisa, antes de cada começo de cada dia...” (S: 349).
Em Conversa de bois a possibilidade de comunhão entre os bois e o carreiro parece
remota. O pensamento reducionista de Agenor converge com o de Chico Pedro, outro carreiro
que aparece em Pé-duro, chapéu-de-couro, narrativa que faz parte de Ave, palavra. No trecho
que se segue o escritor pergunta-lhe:
Mais o amor.
Com Chico Pedro, pompeano, carreiro de desde menino, conversei um
dia na Sirga:
- Boi toma amor à gente?
- Não.
- Por quê?
- Bicho é ignorante... Bicho dorme no sereno... (AP: 191)
70
Logo em seguida, Guimarães Rosa esclarece a resposta dada: “Mas era que o Chico
Pedro não era um vaqueiro, e sim um pobre carreiro compago, dono da escravidão dos bois,
impossível ele mesmo ciente de amá-los, bebedor do trabalho deles.) (IDEM)
Agenor era apenas o dono da escravidão dos bois, não estabelecia com os animais um
diálogo, capaz somente de se desenvolver através de uma relação de proximidade, de
cumplicidade. É possível conversar com eles, saber o que desejam ou necessitam: “os sons, as
imagens e os cheiros são sinais que fazem parte de um típico sistema de comunicação entre o
vaqueiro e o boi”, conforme Meyer (2008, p. 166).
O tempo passa e os bois avançam em direção ao seu destino, encontram outro carro-de-
bois, os animais se entreolham. Agenor, “homem maligno” (S: 336), está feliz, no entanto,
insiste em implicar com os bois, até sem necessidade picava-os, inquietando-os, mas sua fúria
maior dirigia-se a Tiãozinho:
-Tu, Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!... Não que a gente
carreando defunto-morto, com essa cantoria, até Deus castiga, siô?!... Não
que é teu pai, demoninho?!... Fasta! Fasta, Canindé!... Ôa!...Ôoa!... Anda, fica
novo, bocó-sem-sorte, cara de pari sem peixe! Vai botar azeite no chumaço,
que senão agorinha mesmo pega fogo no eixo, pega fogo em tudo, com o
diabo p’r’ajudar!...
Tiãozinho veio no grito, mas se mexendo encolhido, com medo de que o
homem desse nele com a vara de ferrão. Falta de justiça, ruindade só. Foi o
carreiro mesmo quem apertou a chaveta da cantadeira, hoje cedo; e até estava
enjerizado, na hora, falando que Tiãozinho era um preguiçoso, que não
prestava nem para ajeitar o carro nem para encangar os bois.
A viagem prosseguia nesse ritmo, Agenor reclamando, xingando Tiãozinho e ferroando
os bois. A carga balançava e era seguida por moscas que estavam duplamente satisfeitas com
as rapaduras e o morto que aspergia da boca um mingau pardo que sujava tudo. Os bois de
vez em quando se desentendiam. Brabagato e Capitão principalmente. O primeiro, mal
castrado, era brioso e fogoso, o segundo, sonso. O carreiro encerrava as confusões com o
ferrão que deixava os flancos ensangüentados. Brilhante tentava encontrar o pensamento
perdido: “Estou caçando e não acho... Mas, não vamos pensar como o homem... Esperem...
Ainda não encontrei aquilo...” (S: 335) O sol mais forte e Agenor insistia nas ofensas e
ameaças ao menino:
- É, nheinhein?!... Ai, que sina, esta minha, trabalhando em sol e chuva, e inda
tendo de agüentar este mamão macho sem preceito!... Tu fala macio, mas p’ra
trabalhar comigo tu não presta... Mais em antes eu queria um rapazinho
carapuçudo e arapuado, que fosse malcriado, mas com sustância que nem eu,
p’ra trabucar... Que me importa, se a gente chega de noite no arraial?! O pai
não é meu... O pai é seu mesmo... que tu não tem aquela coisa na cara...
Mas, agora, tu vai ver... Acabou-se a boa vida... Acabou-se o pagode!... (S:
338)
71
Tiãozinho lembrava-se do pai cego e paralítico entregue à própria sorte dentro de casa,
encostado e esquecido em um quarto escuro, alimentado pelo filho, pois a esposa
impacientava-se em ter que dar comida na boca do marido que chorava à noite quando
pensava que ninguém o ouvia. O menino, porém, dormia ao lado, no chão, e escutava o
sofrimento do pai. Não o consolava, porque se envergonhava da situação, mas, agora se
arrependia e pensava que naquelas ocasiões deveria ter conversado com o pai. Já em relação à
mãe sentia raiva e indignação: “Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe da gente devia
de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito... Que não tivesse mexida com outro
homem” (S: 339).
O outro homem era Agenor Soronho sempre metido na casa, comendo as melhores
refeições aos cochichos com a esposa de Jenuário, a qual dizia a Tiãozinho para obedecer ao
carreiro, uma vez que ele sustentava a família. Mas, ele odiava o menino e a mãe permitia que
o amante mandasse no filho, xingasse e até batesse de pau, cabresto, vara-de-marmelo e sem
ter motivo. A rotina exaustiva do menino consistia em acordar cedo para capinar o dia todo,
ordenhar as vacas, buscar o gado no pasto, fazer mandado a qualquer hora entre outras
atividades.
Soronho, homem maligno, ruivo, lascivo liga-se à cor vermelha sabidamente associada
ao sangue, pecado, fogo, inferno e luxúria. Guimarães Rosa, já em Magma descreve no poema
“Vermelho”, se reunirmos os significantes isolados, os movimentos febris do ato sexual
24
.
Chevalier (1989, p. 300) informa que o ruivo “caracteriza o fogo impuro, que queima
sob a terra, o fogo do Inferno; é uma cor ctoniana” e que certos personagens de contribuição
duvidosa eram ruivos, como Set-Tifão, deus egípcio da concupiscência devastadora e Judas, o
traidor. Tiãozinho não suportava ver o carreiro junto à e, suspeitava ou sabia do
envolvimento sexual existente. Agenor agia como o dono da casa e de tudo e de todos que lá
moravam, fazendo questão de demonstrar seu poder, enquanto que a dona de casa o apoiava.
.Todavia, “Deus havia de castigar aquilo tudo. Não estava direito, não estava não!” Um
aviso de Deus? Um casal de joão-de-barro arrulha próximo aos pés de Tiãozinho: “- Cristo!
Cris-pim–cris-pim-crispim! (S: 340). A natureza denuncia a presença de Deus? Tiãozinho
recorre a Deus durante o trajeto, buscando forças naquela que era a pior travessia de sua vida.
Seu futuro parecia tenebroso, debaixo dos mandos do agora padrasto. Em vários momentos
eleva o pensamento rogando pelo socorro ou justiça divina:
24
Ver M: 34.
72
“...Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor... Ah, isso vai!...Há de
tirar desforra boa, que Deus é grande!...” (S:341)
“...Tiãozinho começa a cansar. Que calor!... E a poeira seca a goela da gente. Estará sentindo
dor-por-dentro no pescoço? São Braz! São Braz!...” (S:341-2)
“Arre! Que nunca foi tão penosa uma ida ao arraial.Também, com tudo tão triste, carreando o
pai para a cova, coitado do pai... Mas, deve de ter subido para o céu, direito, na mesma da
hora ...” (S:343-4)
“... Não quer pensar no pai em-antes. Mas não tem idéia para poder parar de pensar... O pai
gemendo... Rezando com ele... E se rezasse também agora?... Devia...” (S: 345)
Ôa,boizinho,ôa! avisou Tiãozinho, olhando para cada um deles, assustado, quase que
pedindo para passarem com modos, pelo amor-de-deus...” (S:351)
Agenor, ao contrário, clama pelo diabo, em boa parte de suas falas exterioriza seu
estado de espírito perverso e nervoso:
“- Boi ôa, boi!... Dianho!...grita seu Soronho.” (S:334)
Tu, Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!... (...) Vai botar azeite no chumaço, que
senão agorinha mesmo pega fogo no eixo, pega fogo em tudo, com o diabo p’r’ajudar!...”
(S:336)
“- Olha esses bois, aí, diabo!... Capitão! Brabagato!” (S:337)
“Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo: ...” (S: 347)
“ – Entra p’ra o lado de lá, que aí está embrejado fundo... Mais, dianho!...” (S:348)
“ – Brilhante, vaca diabo!” (S:351)
No trajeto, no encontro com o carreiro João Bala afloram-se mais facetas da
personalidade de seu Soronho. Ao avistar o carro-de-bois do colega espatifado morro abaixo
exclama excitado: “Eh, espandongado... Diabo!...” E passa a explicar para si e para Tiãozinho
as razões do acidente: a escolha boba de bois de uma cor e o despreparo do outro, afinal
“p’ra carrear fazendo zoeira, e dando ferroadas, e gritando, todo-o-mundo é fácil... Mas não
tem muita gente capaz de saber falar o gado direito, nem determinar o coice da descida, nem
espetar a guia...” (S: 352)
Clamando pelo diabo sempre, aproxima-se do outro que, segundo ele, está com cara de
cachorro que fez errado, todo sem jeito. Mira-o do alto, soberbo, pergunta o que aconteceu e
João Bala responde que partiu a cheda, o cabeçalho no encontro, que terá despesa de mais de
seiscentos e cinqüenta mil-réis para consertar parte do estrago, mas que a carga era de pouca
valia, dois pipotes de cachaça. graças-a-deus”. Agenor pede detalhes, o colega impacienta-se
um pouco: “O senhor, carreiro velho, calejado, não está vendo a vela e a sovela? Não foi
73
vergonha nenhuma p’ra mim...” (S: 354) Agenor replica com o seu tradicional “Ô diabo!” e a
conversa continua:
- Mas, aí, quando eu vi que estava ali estava morto sem santos-óleos,
clamei o nome de Nossa Senhora, porque pular é que eu podia pular mais...
Então, me deu um repente, e eu fiquei brabo e gritei ordens: - Segura,
Camurça! Segura, Melindre!... - Ai, meus boizinhos de minha junta do coice,
boizinhos bons, de peso e sujeição!...
- Sei deles... Bois de lei...
- Ara, se ara!... Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque
foram que me salvaram!... eu gritar, e eles estacando e estribando, e não
arredaram mais. Foi mesmo no lugar da ladeira a pique, ali no meio do
escorregador da descida... Sem desageração, mas era o carro fazendo peso
p’ra descer, e cortando, sem licença de aluir do lugar, porque Melindre mais
Camurça sojigavam o chão com os cascos, mas não entregavam o corpo!... Eu
mesmo nunca vi bois p’ra terem tanto poder desse jeito: aquilo eles garraram a
sapatear, virando roda, e ficaram tremendo assim. (S: 354)
João Bala em seu relato diverge de Agenor, pois clama por Nossa Senhora, além disso,
faz o elogio aos bois, concede-lhes lugar privilegiado “abaixo de Deuse reconhece-lhes o
“poder”. Mais adiante afirma enternecido: “Magina, se não fossem meus boizinhos
abençoados!” (S: 355) Na despedida, Agenor garante que confirmará a todos a versão do
colega. Mas, ao subir em seu carro, se desdiz: “Bestagem!... Patranha de violeiro ruim que
põe a culpa na viola. Tião, esperta, que eu quero mostrar p’ra esse João Bala como é que que
a gente sobe o Morro-do-Sabão!...”(S: 356) E para melhor se exibir sobe no cabeçalho.
Porém, pede a Tiãozinho para conversar com os bois por ele (atitude contraditória, pois se
julga o melhor). Reconhece, desse modo, a competência do menino por ele contestada em
toda a viagem.
Sobem o morro. Para espantar a tristeza o menino tenta desviar o pensamento e se
concentra no nome e nas características das vacas do Major Gervásio: Espadilha, Bolívia,
Azeitona, Mexerica, Porcelana, Guiamina.
Em Entremeio com o Vaqueiro Mariano, Guimarães Rosa registra um número
significativo de nomes (entre eles, Pombinha, Biela, Boliviana, Moeda, Careta, Paraguanha,
Piorra, Olho-Preto, Já-foi-Minha, Dois-Bicos, Saudade, Coca, Silina, Sarada, Cantiga,
Europa, Só-sozinha, Catarina, Jeitosa, Me-Ama, Abalha, Chumbada, Passa, Cozinheira, Bem-
feitinha, Cebola, Capivara, Senhora, De-Casa, Garrucha Lorota Rabeca, Sota Rapadura Dá-
duas, Estrela, Estrangeira) e características das vacas, ressaltando-lhes a cor, as “manias”, o
porte, os hábitos, os berros e até o leite. Descreve diferentes consistências do líquido: suco
espesso de amêndoas, gorda neve e espumada, leite cuspe e creme de luar. Além de informar
74
os ingredientes naturais que fazem bem (polpa de uacuri) ou mal (guiné-do-brejo pastado) ao
leite.
Mônica Meyer observa que a prática de nomear e emprestar características humanas aos
animais está presente na escritura de Rosa. Nesse contexto, salienta o que sugerem os nomes
dos bois da novela em apreciação:
[...] Buscapé sugere apressado, rápido, que anda ziguezagueando; Namorado,
galanteador, meigo; Capitão, dirigente, comandante, autoritário; Brabagato,
desbravador, corajoso; Dançador, festeiro, alegre, gracioso; Brilhante,
cintilante, talentoso, inteligente; Realejo, cantador, melodioso e Canindé,
barulhento como uma arara, habilidoso. Os nomes não servem para
identificar e chamar os animais: estão impregnados de significados e, mais, a
simples emissão de um deles sugere a visualização do tipo físico e
temperamental do animal. (2008, p. 216)
Outra estratégia utilizada por Tiãozinho consiste em observar a natureza e os animais.
A visão, os cheiros e os sons da fauna e flora acalmam-lhe. O escritor aproveita para dar
vazão a nomes de plantas e pássaros:
O caminho-fundo corta uma floresta de terra boa, onde cansa a gente
olhar para cima: árvores velhas, de todas as alturas – braçudas braúnas,
jequitibás esmoitados, a colher-de-vaqueiro em pirâmides verdes, o lanço
gigante de um angico-verdadeiro, timbaúbas de copas noturnas, e o paredão
dos açoita-cavalos, escuros. Cheiro bom de baunilha, sombra muito fresca,
cantos de juritis, gorjear de bicudos, o trilo batido da pomba-mineira, e, mais
longe, mais dentro, na casa do mato, o pio tristonho do nhambu-chororó.
[...]
...Enquanto a estrada sai do mato para o calorão do cerrado, com enfezadas
arvorezinhas: muricis de pernas tortas, manquebas; mangabeiras-pedidoras-de-
esmola; barbatimãos de casca rugosa e ramos de errugem; e, no raro, um
araticum teimoso, que conseguiu enfolhar e engordar. (S: 345-6)
A viagem prossegue dolorosa. E Brilhante, finalmente, encontra o que procurava:
”Achei coisa, aquilo!... Foi o boi que pensava de homem, o que-come-de-olho-aberto...” (S:
341). Referia-se a Rodapião, pequeno boi de cor vermelha, que se mantinha com os olhos
abertos para absorver o máximo de conhecimento por meio da observação e reflexão. Passou
a pensar e a agir como homem. No início, as coisas corriam bem, planejava os passos antes de
executá-los a fim de garantir o menor esforço. Cada dia aprimorava um pouco mais o
pensamento.
Certa vez, observou que o boi Carinhoso ficou parado na estrada sem querer comer.
Logo, levaram-no para o curral e o alimentaram com muito milho e sal. Rodapião resolveu
repetir o gesto de Carinhoso e ganhou tudo o que o companheiro recebera. Aconselhou os
demais a pastar longe do córrego e vir comendo achegar na água, assim não se cansariam e
sobraria mais tempo para comer mais. Também observou que não tinha dor de barriga como
75
os outros porque não comia capim navalha-de-mico no meio do jaraguá. E, desse modo, vivia
Rodapião pensando como o homem. Então, chegou a seca e ele inventou de pastar no topo do
morro, pois estava convencido de que onde tinha árvores juntas e mato comprido havia água e
no cimo do morro era assim. Antes de ir, verificou o terreno e concluiu que poderia escalá-lo,
pois a terra do barranco agüentaria, uma vez que a chuva havia levado a terra mole restando
agora apenas a firme. E foi. Quando atingiu certa altura, rolou morro abaixo, berrou triste e
morreu. A morte de Rodapião torna secundário o comparecimento do homem e de uma
singularidade sua o pensamento. Os protagonistas dessa trama são os bois e os personagens
humanos funcionam como meros figurantes. Embora, aparentemente, o drama de Tiãozinho
domine a cena, num nível mais profundo o que se desenrola é o agigantamento dos
dominados promovido pela comunhão entre seres da mesma e de diferentes espécies. Ainda
assim, seria incorreto concluir que a razão traz malefícios. O que se sugere é o cuidado com o
extremo. Afinal, o autor confidenciou a Lorenz sua aversão à “megera cartesiana”.
À semelhança de O burrinho pedrês, em Conversa de bois tem-se a presença de
micro-estórias inseridas na estória maior, uma forte particularidade da prosa rosiana. Na
novela em análise além da estória de Rodapião, há a de Didico. Tiãozinho lembra-se quando o
calor aumenta e ele teme morrer na estrada como acontecera a Didico, menino de dez anos
que trabalhava tanto quanto ele. Em um dia de muito calor se queixou de falta de fôlego, mas
não lhe deram crédito e até acusaram-no de estar com manha. Saiu, para carrear sozinho com
um carro pequeno de duas juntas. Como demorava a voltar, saíram para procurá-lo e
encontram-no caído no chão já frio. Os bois em posição de respeito estavam parados para não
pisar no corpo estendido, menos os da guia que comeram quase toda a roupinha do Didico.
A submissão de Conversa de bois ao percurso gerativo de sentido (ou a sucessão de
patamares, cada um dos quais suscetíveis de receber uma descrição adequada, que mostra
como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais
complexo), conforme Fiorin (1989, p.17) revela a difusão de uma mentalidade que posiciona
o homem em comunhão com a natureza. Os patamares citados pelo autor são o profundo (ou
fundamental), o narrativo e o discursivo. Examinamos a novela rosiana no primeiro desses
níveis, o qual abriga as categorias situadas na base da construção de um texto, que se
fundamentam numa diferença, numa oposição. A narrativa em análise estrutura-se sobre as
seguintes oposições: de um lado criança, animais, bem, sonho, vida, justiça, Deus, alegria;
e, do outro – adulto, homem, mal, realidade, injustiça, diabo, sofrimento. Os primeiros
valorados euforicamente e os segundos disforicamente. Pode-se resumir esse antagonismo
com a seguinte dualidade: natureza versus cultura.
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3. ESTÓRIAS DE MENINOS E BOIS
3.1 O Tudo em Todos
Nela reside a ordem divina,
A Santidade, o Ardor cósmico.
Sim, a Vaca dá vida aos Deuses,
A Vaca dá vida aos homens.
(Hino Védico)
O vocábulo “encontro”, entre outras, encerra duas acepções (entrechocar-se, ir de
encontro a) e (confluir). O encontro natureza versus cultura corresponde à primeira
significação mencionada, marcada pela idéia de embate ou choque. Bem poderia ser
substituído por natureza e cultura, o qual se associa ao segundo sentido citado e aponta para a
idéia de junção. Assim, duas concepções básicas historicamente nortearam a relação do
homem-natureza.
Uma focaliza o ser humano separado ou acima do ambiente, caracterizando-se por uma
postura utilitarista e antropocêntrica, em que o homem torna-se o protagonista, o sujeito
detentor do controle e a natureza figurante, mera peça alegórica, apenas simples objeto. Já na
Bíblia podemos encontrar ecos desse pensamento. Em Gêneses (capítulo1, versículo 26) lê-se:
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine
sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre
todo o réptil que se move sobre a terra.”
A outra visão enfoca o ser humano na natureza interatuando com os demais reinos
animal, vegetal e mineral, trata-se de um ser ativo e interacionista. Deixa de ser um predador
que tudo em que toca destrói, visando unicamente seu bem-estar imediato sem pensar nas
conseqüências dos próprios atos para tornar-se peça ou elo de uma cadeia muito maior. Boff
(2008, p. 77) informa que no período paleolítico (até dez mil anos antes de Cristo) a noção de
que nos integramos à terra “constituiu a experiência matriz da humanidade” e que tal atitude
“era de uma profunda união cósmica e de uma conexão com todos os elementos como
expressões do Todo.”
Para esse capítulo utilizaremos textos que abordam a inserção humana na natureza.
Sobre esse tema Guimarães Rosa escreve em Pé-duro, chapéu-de-couro: “Mas talvez
77
estejamos desnecessitados de retornar à luz daquilo que segundo Huizinga, é a condição
primordial da cultura, e que verdadeiramente a caracteriza: a dominação da natureza, mas da
natureza humana.”
Nos tempos mais remotos, os povos adoravam a face divina do universo que se
manifestava, segundo acreditavam, através de todas as coisas e seres, o sagrado estava em
tudo e em todos. Uma visão espiritual dominava a mente desses povos que julgavam estar
unidos a uma força maior, a uma fonte de luz inesgotável, em outras palavras, a Deus. Os
textos da Antiguidade Clássica revelam essa espiritualidade, neles encontramos um
concentrado conhecimento ancestral produto de longas observação e reflexão acumuladas de
geração após geração.
Na literatura grega, por exemplo, podemos citar o mito de Eros. Segundo uma versão
mais antiga, tal divindade nasceu do Caos e da Noite, de um tempo originário. A Noite pôs
um ovo do qual surgiu Eros. Das metades da casca vieram a Terra (Geia) e o Céu (Urano).
Eros fez com que seus irmãos se apaixonassem e gerassem tudo o que existe no mundo. Toda
essa criação, por sua vez, se atrai e se une em busca do amor. Dessa forma, Eros responde
pela criação, diversidade e unidade de tudo e todos. Em referência ao poder cosmogônico de
tal deus, Brunel (1998, p. 320) registra: Desse primeiro aspecto de Eros, deus primordial,
resulta a amplitude de seu poder, que se estende não apenas aos deuses e aos homens, mas aos
elementos e à própria natureza.”
Algo semelhante encontramos na tradição cristã, mas há a substituição da figura de
Eros pela de Deus, como observamos em Gêneses (capítulo 1): “No princípio criou Deus os
céus e a terra.”
Os povos indígenas, da mesma forma, expressam essa visão espiritual como
exemplifica a carta do cacique Seatle, em resposta a Franklin Pierce, décimo quarto presidente
dos Estados Unidos da América o qual governou durante o período de 1853 a 1857 e propôs
em 1854 a compra do território da tribo Duwamish, situado onde hoje se encontra o estado de
Washington:
Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é
estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como
então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo,
cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na
floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na
consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as
recordações do homem vermelho.
O homem branco esquece a sua terra natal, quando depois de morto –
vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta
formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e
ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a
78
grande águia – são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o
calor que emana do corpo de um mustang, e o homem todos pertencem à
mesma família. [...]
Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas
sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar
que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada
reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os ventos e recordações da
vida de meu povo. O rumorejar d’água é a voz do pai do meu pai. Os rios são
nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e
alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e
ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar
aos rios a afabilidade que darias a um irmão. (PERRY: 2006, p. 53)
O ato de compra de algo que não lhe pertence não faz sentido para o cacique, a terra lhe
é sagrada, assim como tudo o que está sob ou sobre ela - animais, flores, árvores, água, ar,
rocha. Uma relação de irmandade e respeito se estabelece entre os indígenas e os elementos
da natureza a partir da certeza de que todos pertencem à mesma família, e essa certeza
repassa-se de geração a geração. Dessa forma, os mortos, os vivos e os que ainda nascerão
unem-se tecendo os fios de uma vida imortal.
Mais adiante, o chefe dos Duwamish prossegue mantendo a mesma linha de
pensamento a respeito do ar: “O ar é precioso para o homem vermelho, por que todas as
criaturas respiram em comum os animais, as árvores, o homem.” Em seguida fala sobre os
cuidados que se deve dispensar aos animais:” Se todos os animais acabassem, o homem
morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo
acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.” A percepção de que uma interconexão
une tudo a todos perpassa o longo do discurso do cacique que a certa altura profere:
Tudo quanto fere a terra fere os filhos da terra. Se os homens cospem
no chão, cospem sobre eles próprios.”
De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que
pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como
o sangue que une uma família. tudo está relacionado entre si. Tudo quanto
agride à terra, agride os filhos da terra. (PERRY: 2006, p. 54)
Não esse registro documental expressa a compreensão de uma natureza mãe e irmã,
as lendas indígenas também representam a consciência coletiva desse povo. Uma delas
intitula-se “O amor e o perdão tudo alcançam”
25
.Nessa estória dos índios Keiriporã
pertencentes à rica cultura desana que significa “Gente do Universo” desenvolve-se uma
mensagem de amor a todos família, tradições, ancestrais, animais. O protagonista Baaribo,
o dono dos alimentos, homem com poderes divinos, que tirava de dentro de si as sementes
existentes no mundo e as distribuía conforme a necessidade, parte em busca de um novo
25
Ver BOFF, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001. p.32-8
79
casamento após verificar um fratricídio em sua própria família. Em sua jornada procurou uma
noiva ideal. Para tanto, abrigou-se na casa das coelhinhas, e notou “que eram bonitas, mas não
gosta delas, porque eram finas e branquinhas demais.” Então, resolveu entrar na casa das
cutias, viu que também eram belas, “mas não gostou dos seus olhos vermelhos.” Andou por
alguns dias e chegou à maloca das antas, também não as achou apropriadas, pois “tinham as
pernas muito finas”. Finalmente, chegou à casa do índio Wariro que tinha duas belas filhas e
casou-se com elas. Embora, não se case com as coelhinhas, cutias ou antas, o texto expõe o
grau de consangüinidade concebido pelos indígenas em relação aos bichos.
Todavia, nos últimos quatro séculos tal visão sofreu uma radical transformação com o
avanço da filosofia materialista, que pressupõe a matéria como única instância consistente.
Trata-se de uma teoria reducionista por amparar-se exclusivamente na razão analítica e nos
cinco sentidos. Entretanto, hoje a física quântica retoma de certa forma o pensamento antigo
ao demonstrar a interface de todos com tudo. Para esse ramo da Física não somente uma
realidade tangível, palpável, antes inexiste realidade desconectada da mente pensante, as duas
configuram-se como lados de uma realidade complexa. Assim sendo, Boff (2008, p. 24-5)
explica que o novo redimensionamento científico:
Funda uma alternativa ao realismo materialista, com capacidade de devolver
ao ser humano o sentimento de pertença à família humana, à Terra, ao
universo e ao propósito divino.
[...]
Após culos de cultura material, buscamos hoje ansiosamente uma
espiritualidade simples e sólida, baseada na percepção do mistério do universo
e do ser humano, na ética da responsabilidade, da solidariedade e da
compaixão, fundada no cuidado, no valor intrínseco de cada coisa, no trabalho
bem feito, na competência, na honestidade e na transparência das intenções.
Nesse contexto, compreendemos a obra de Guimarães Rosa como uma tentativa de
desvendar os mistérios do universo e do homem, e como um receptáculo da profunda
espiritualidade que une o homem à natureza. Assim sendo, tomaremos nesse ponto as
narrativas de Sagarana como protótipo para verificação de nossa afirmação.
Em A hora e vez de Augusto Matraga mostra-se a sincronia da hora do protagonista
com a hora do mundo natural, as chuvas adquirem assim dupla função: anunciar o tempo das
águas que acarreta mudanças na paisagem e nos hábitos dos bichos, e também marcar a
mudança de Nhô Augusto em Augusto Matraga. A natureza em si e a natureza humana
enlaçam-se gestando um único organismo, ou ainda, um super organismo. Em A volta do
marido pródigo, como vimos anteriormente, Lalino Salathiel parece pertencer a uma rara
espécie – em parte humana e em parte anfíbia.
80
Os parágrafos iniciais de Sarapalha, terceira novela, descrevem o alastramento da
malária que ao chegar faz minguar a força dos homens do arraial e do próprio arraial: “Ao
redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar esteve nos mapas, muito
antes da malária chegar.” (S: 151) Todos sofrem com o aparecimento dessa enfermidade. A
natureza enquanto extensão do homem, ou vice-versa, adoece. Os parágrafos finais são mais
incisivos:
O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida tem.
Pára, para tremer. E para pensar. Também.
Estremecem, amarelas, as flores de aroeira. um frêmito nos caules
rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas, como
folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os
ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete
de um caçununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete
à grimpa. E o oita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em
convulsões.
- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’r’a gente
deitar no chão e se acabar!...
É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão. (S: 173)
Em Duelo, quarta novela, a paisagem compartilha não do estado de saúde dos homens,
mas do estado emocional. De sorte que a paisagem se compraz se alegria ou se fecha,
escurece se ou haverá tristeza. Conforme se na passagem em que Turíbio Todo sorri,
aprovando a companhia do capiauzinho, seu futuro algoz, e a natureza devolve o sorriso
através de “um saguim, mal penteado e careteiro, fazia gatimanhas, chiando e dando pinotes”
(S:205). No desfecho, Turíbio Todo entra com aquele que virá a ser seu carrasco “num mato
fechado, onde tudo era silêncio e sombra..” (S:206)
Minha gente, quinta novela, apresenta em primeiro plano os encontros e desencontros
amorosos de José e de Maria Irma, além de reservar espaço para os jogos políticos e
transações comerciais de tio Emílio. Mas, as águas, guardadas as proporções, se destacam,
“porque todos os córregos aqui são misteriosos” somem-se debaixo da terra para de repente
ressurgirem em fendas de calcário, ou ainda viajam léguas, nos leitos subterrâneos, e apartam-
se muito adiante numa cascata, todavia, “o mais enigmático de todos é este ribeirão, que às
vezes sobe de nível, sem chuvas, sem motivo anunciado, para minguar, de pronto, menos de
uma hora depois.” (S: 231)
São Marcos, sexta novela, comporta referências ainda mais enfáticas à natureza. Em
meio às rezas e feitiçarias, temos belas descrições da mata nativa composta entre outras por
marmelinhos, canelas, jacarandás, jequitibás-rosa, avencas, cambarás, barrigudas e jacarés
novos. Outras árvores assemelham-se a moças namoradeiras como as imbaúbas “...
Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó braçadeira, que lhes galga o corpo
81
com espirais contrictas.” (S: 278) os buritis formam famílias “muito unidas, buritis
velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos.
(IDEM)
Cada recanto da mata encerra peculiaridades especiais. Nas Rendas da Yara pode-se
escutar os sete rumores do riacho” e o local convida à reflexão acerca da beleza e da
castidade, propício para a leitura das novelas do ciclo do rei Artur e dos cavaleiros da Távola
Redonda. Já no Venusberg um jequitibá´vermelho roliço e imenso homenageia o pecado,
assim como a cigana-do-mato e a mucuna, cipós libidinosos, de flores poliandras, até os
cogumelos cinzentos de aspirações mui terrenas, e a erótica catuaba”, trata-se de um local
perfeito para erigir uma estatueta e um altar a Pan (S: 279). Já no sancto dos sanctos das Três
Águas todos são bons ou maus, mas não-humanos a grande eritrina, além de bela, calma e
não-humana, é boa, mui bondosa – com ninhos e cores, açúcares e flores, e cantos e amores –
e é uma deusa, portanto.” (S: 280)
E toda essa exuberância da mata pôde não ser vista, mas, sobretudo, sentida pelo
protagonista por ocasião de sua cegueira momentânea. Procedeu desse modo o autor para
proporcionar-lhe “com intensidade maior de toda a gama de sons e melodias do mundo que o
circundava, e, para que, recobrada a vista, ele pudesse admirar com amor a grande beleza do
ambiente”, conforme afirma Braga Montenegro no ensaio Guimarães Rosa, novelista” (IN:
COUTINHO: 1998, p. 280)
Em carta a João Condé, Guimarães Rosa explana acerca dos motivos que o levaram a
situar as narrativas de Sagarana no interior de Minas Gerais:
Àquela altura, porém eu tinha de escolher o terreno onde localizar as
minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o
arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou mesmo, o pedaço de Minas
Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de
lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque
o povo do interior sem convenções, “poses” melhores personagens da
parábolas: se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: se
bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores
estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou
se estorricar com a seca. (S: 25) (grifo nosso)
Como podemos perceber tal declaração exibe a relação do escritor com sua terra natal
retratada desde Magma até seu último pronunciamento no discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras que principia e finda com a evocação a Cordisburgo. O interior mineiro,
espaço geograficamente delimitado, mas transcendentalmente incomensurável, propicia uma
visão privilegiada das ações do homem e do destino. Em, outras palavras, o ser humano
82
cumpre um destino porque está conectado ao universo. A expressão “capim humano” por nós
grifada evidencia a inserção humana na natureza.
As demais narrativas, O burrinho pedrês, Corpo fechado e Conversa de bois, vistas
anteriormente, encerram particularidades comuns, entre elas, o interesse especial por animais,
respectivamente o burro Sete-de-Ouros, a mula Beija-Flor e os bois Buscapé, Namorado,
Brabagato, Capitão, Realejo, Brilhante, Dançador, Canindé. Esses em primeiro plano, pois
outros aparecem dando mostras de suas peculiares individualidades, como Calundu e
Rodapião. Cecília de Lara (1996, p. 30) observa:
nos contos da versão inicial de Sagarana apresentado ao concurso de
1937, a presença de animais chamou a atenção de Graciliano Ramos, membro
do júri, que na ocasião não soube reconhecer o talento do novato que se
assinava “Viator”. Anos depois, escreve sobre a obra e assinala a precisão com
que Guimarães Rosa retrata os animais: “Devo acrescentar que Rosa é um
animalista notável: fervilham bichos no livro, não convenções de apólogo,
mas irracionais direitos, exibidos pela peladura, esparavões e os necessários
movimentos de orelhas e rabos”.
Todavia, o exame de O burrinho pedrês e Conversa de bois oferece além da presença
de animais a de crianças que juntos imbricam-se de tal forma que por instantes corpos e/ou
mentes unem-se e fazem virar realidade algo que parecia impossível. A concepção de
integração do homem na natureza - caracterizada pela comunhão dos seres, a qual converte os
fracos, indefesos e desprotegidos em fortes e vitoriosos - norteará nossa leitura. Desse modo,
verificaremos o enlace entre meninos e bois – criaturas extremamente bem tratadas por
Guimarães Rosa que os retrata com profundo lirismo, revestindo-os de encanto e
sobrenaturalidade. Enfim, seres transcendentais.
83
3.2 Pretinho e os Bois
Na fazenda do Burel,
Nos verdes pastos onde pastei,
Muitos vaqueiros de fama,
Nos carrascos eu deixei.
(...)
Eu no tempo de bezerra
A muitos vaqueiros logrei
Na fazenda fiz sueira,
Muitas porteiras pulei
(A vaca do Burel)
A relação das crianças com os animais se deu em várias oportunidades dentro da
escritura de Guimarães Rosa. Em uma das micro-estórias de O burrinho pedrês, João Manico,
exímio contador de estórias, relata aos companheiros de viagem um caso extraordinário
presenciado por ele na época em que Major Saulo, ainda era seu Saulinho. Então, moço,
magro, casado pela segunda vez e possuidor de hábitos estúrdios, como desperdiçar dinheiro.
Certa vez pagou mais que o combinado por uma vaca que berrava entre o canto e o gemido.
Em outra ocasião empreendeu uma longa viagem cujo desfecho lhe rendeu apenas prejuízo,
quando decidiu buscar gado em terras muito distantes, depois de Goiás, já que a peste havia se
alastrado pelas redondezas. Entretanto, a boiada era de qualidade “só bicho mazelento e
feioso: bom quase que nenhum,... com carrapatos de todo tamanho, cheios de berne e
bicheiras, com cada carne esponjosa de frieira entre as unhas” (S: 82). Além disso, o gado era
tinhoso, impaciente “só fazendo arrelia e tocaiando para querer matar gente” (IDEM)
O fazendeiro que vendeu o gado pediu a seu Saulinho que entregasse um menino
pretinho magrelo, de grandes olhos, aproximadamente sete anos a um irmão no Curvelo. A
criança pranteava ininterruptamente “todo-o-mundo inventava coisa para poder agradar o
desgraçadinho, mas nada d’ele parar de chorar... (S:83) Desse mesmo emocional sofria o
gado, a correspondência entre os animais e o menino desde se estabelece, também vinha
trotando triste, não querendo vir. Nunca vi gado para ter querência daquele jeito.” (IDEM)
Um comentário de João Manico esclarece tal correspondência: “Olha os bois também com
saudade dos pastos da fazenda... Para que foi que eu fui dizer isso. Ele abriu ainda mais
no bué” (S:84) (grifo nosso) O advérbio por nós enfatizado respalda a afirmação anterior. Seu
Saulinho recomendava insistentemente para redobrarem os cuidados, pois os bichos
desejavam voltar para casa. A combinação tristeza e doença incomodava aos vaqueiros.
84
A relação dos vaqueiros com o pretinho passa por duas etapas marcadas por
sentimentos distintos. Na primeira, o sentimento que sobressai é dó, compaixão.
- Ai, seu mocinho bom! Ai, seu mocinho bom! Me deixa ir-s’embora
para trás” Me deixa ir-s’embora para trás”...
...Bem que eu tinha pena, mas que é que eu podia fazer? Fiquei calado e
deixei o pobrezinho ir gemendo. Quando ele viu que não adiantava nada pedir
garrou a exclamar: “- Ai, seu mocinho ruim! - Ai, seu mocinho ruim eu
quero poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro que tem
no rancho,de minha mãe... Queria ver, de longe a minha mãezinha, que
deve de estar batendo feijão, no fundo do quintal!” ... E ele se abraçou
comigo, feito um doido, e eu nem podia deixar que ele visse minha cara,
porque eu estava com os olhos cheios de outras lágrimas, também... (S: 84)
João Manico comove-se ao ouvir o lamento do menino que, embalado pela saudade de
um tempo agora perdido no passado, sente-o escapar rapidamente sem que nada possa fazer
para reverter tal situação. Sua vida modificou-se em poucos instantes e percebeu horrorizado
que perdera o aconchego do lar e a proteção da mãe. Um mundo desconhecido o aguardava. O
menino vinha na garupa com João Manico, dava grandes soluços e vertia grossas e muitas
lágrimas molhando a camisa do companheiro de viagem. O desespero da criança toma
grandes proporções a ponto de fazê-la perder por instantes o juízo “se abraçou comigo, feito
um doido”.
O vaqueiro, entretanto, apesar de consternado, não permite que ninguém perceba seu
real estado emocional “eu estava com os olhos cheios de outras lágrimas”. De modo análogo,
a relação do menino com o vaqueiro também sofre alterações. Primeiro demonstra confiança e
esperança em regressar à casa materna ao caracterizá-lo como “seu mocinho bom”. Depois, ao
compreender que não retornaria, perde os sentimentos iniciais e queixa-se “Ai, seu mocinho
ruim!”. Faz ainda um último pedido, rever a mãe de longe e sentar-se na canastra de couro,
possivelmente atividades corriqueiras que adquirem valor inestimado.
Tematizando o cotidiano dos sertanejos, essa micro estória exibe a coexistência dos
opostos - a vida precária dos trabalhadores, obrigados a deixar o lar motivados pela miséria e
o sistema econômico fundado nas grandes propriedades instalado desde a colonização e que
se perpetua com os latifúndios. Em um contexto maior, podemos afirmar que a fazenda
pecuarista funciona como palco não de conflitos financeiros, mas existenciais. Não
sabemos claramente as razões que levaram ao afastamento do menino do rancho em que
morava com a mãe, mas fortes indícios de que a pobreza da família conduziu ao seu
desmembramento.
Guimarães Rosa tratará mais intensamente essa temática em Uma estória de amor
através da biografia do protagonista Manuelzão que “nascera na mais miserável pobrezazinha,
85
desde menino pelejara para dela sair, para r a cabeça fora d’água, fora dessa pobreza de
doer. Agora com sessenta anos alcançou aquele patamar meio confortado” (EA:158) .
Manuelzão nascera pobre, e cedo correu o sertão em busca de trabalho, até fixar-se na
Samarra. Na velhice, após conquistar certa tranqüilidade financeira, pôde reunir-se novamente
com a mãe.
Deise Dantas Lima em Encenações do Brasil rural em Guimarães Rosa traça um
paralelo entre três novelas de Corpo de baile: Campo Geral, Uma estória de amor e A estória
de Lélio e Lina a partir das semelhanças encontráveis na tríade mencionada referentes ao
deslocamento compulsório do homem pobre sertanejo. A esse respeito explica (2001, p.90):
“tais correspondências colocam a vida dos personagens sob o signo do precário,
demonstrando como seus projetos se organizam dentro das limitações de ordem econômica”.
Algo parecido acontece com o pretinho cujo destino apresenta-se incerto, o desejo inatingível
de regressar ao passado o desassossega, assim como ao gado. O forçoso deslocamento opera-
se em meio a sentimentos e ressentimentos:
[...] Nós tocaiamos cinco dias, sem sossego porque não havia remédio
nenhum para o gado perder aquela tristeza. A gente via que via mesmo eles
resolverem, de repente, e darem para trás todos juntos... De noite ninguém
dormia direito: a gente tinha de acender muitas fogueiras no redor, e passear
com tição de fogo na mão, que era no que eles atendiam, e assim mesmo
muita vez estavam não querendo obedecer...
Afinal, atravessamos um rio grande, e ficamos mais descansados,
porque agora decerto que eles iam tomar consolo e dar uma folga...
- E o negrinho?
-... O pretinho, a gente perdeu a paciência com ele, e Zacarias, que era o
capataz nosso, passou nele um aperto: - “Se você chorar mais, dianhinho, eu te
corto a goela, e amarro teu defuntinho preto em riba daquele boi jaguanês!...”
Então o desgraçadinho arregalou muito os olhos, parou no meio do choro,
ficou quieto e não gemeu mais. Também, não quis comer nem nada, naquele
dia, e não dava mais resposta, quando a gente queria puxar conversa... (S: 84 -
5)
Quanto aos sentimentos dos vaqueiros, após cinco dias de choro ininterrupto do
menino, a compaixão pela sorte ingrata do pequeno cede espaço à impaciência. Cabe ao
capataz, figura de maior autoridade após seu Saulinho, calar o lamento sem fim. Por outro
lado, o medo do futuro do menino cede ao medo de uma morte iminente, por isso resolve não
mais exteriorizar o sofrimento. O gado, por seu turno, não perdia a tristeza e parecia não
temer mais nada, nem mesmo o fogo. Os vaqueiros apostam, então, no poder da água, ao
atravessarem um grande rio a sensação de alívio os reconfortou.
A água em O burrinho pedrês assume variadas conotações, na passagem em análise, de
certa forma, funciona como meio para o esquecimento. O gado ao mergulhar no rio grande”
86
se acalmaria, e quem sabe até perderia as lembranças da vida passada, como as almas que
bebem abundantemente das águas do Léthe, conforme registra Platão em A República.
Ao cair da tarde, a comitiva passa por um belo campo aberto e por essa razão se viu
obrigada a pôr o rebanho numa “bocaina” e acender o fogo para que eles permanecessem
coesos e parados. Seu Saulinho ordena que apenas dois homens – Aristides e Binga –
permaneçam em vigília. E ao crepúsculo os fatos começam a desenrolar-se rapidamente. Essa
hora, segundo Chevalier (1989, p. 300) “exprime o fim de um ciclo, e, em conseqüência, a
preparação de outro... É a imagem e a hora da saudade e da melancolia.” O menino rompe o
silêncio com uma toada entrecortada por uma dor nostálgica:
[...] Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga mais triste, e que voz mais triste
de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi tirar tanta tristeza, para repartir
com a gente... Inda era pior do que o choro do em-antes...
... E, aquilo, logo que ele principiou na toada, eu vi que o gado ia
ficando desinquieto, desistindo de querer pastar, todos se mexendo e fazendo
redemoinho e berrando feio, quase que do jeito que boi berra quando o
sangue morto de outro boi...” (S:85)
O gado acompanha o canto sofrido do menino e novas mostras de agitação. Depois,
inesperadamente, pára de berrar “eu acho que para não atrapalhar a cantoria do menino” e
apenas o pretinho prossegue: Ninguém de mim / ninguém de mim / tem compaixão” (S:86)
e seu lamento uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente
ruim” (IDEM) envolve a todos. O major embalado pelo som infeliz lembra com saudade da
mulher. Retira as cartas que ela lhe envia do bolso e as contempla apesar de não saber ler,
perdia muito tempo olhando as letras, seu prazer residia em olhá-las e não permitia que
ninguém as lesse. José Gabriel canta baixinho e acompanha o canto triste com os dedos.
Aristides e João Manico choravam.
O gado, por sua vez, acompanhava o solista em coro, completando a toada quando o
menino parava para respirar “sempre alguma rês urrava ou gemia, parecendo que estavam
procurando, todos de cabeça em pé.. Então o Binga me disse: Repara só, João Manico, como
boi querenciado não se cansa de sofrer...” (S:86) Um dos vaqueiros pede a seu Saulinho para
fazê-lo calar-se ao que este responde: “Deixa o menino chorar suas goas, que o pobre está
com a alminha dele entalada na garganta” (IDEM) Assim, a noite chega juntamente com o
sono dos homens:
- Mas a gente foi cabeceando, em madorna. Sei de mim que ainda vi
uma estrelinha caindo, e pedi ao anjo uma graça, de voltar com saúde para a
casa que já foi minha, lá nas baixadas bonitas do Rio Verde...
Então, eu acho que cheguei a dormir, mas não sei... O canto do pretinho,
isso havia!...E sonhei com uma trovoada medonha, e um gado feio correndo,
desembolado, todo doido, e com um menino preto passar cantando, toda a
87
vida, toda a vida, sentado em cima do cachaço de um marruás nambuju!... (S:
86-7)
Um aspecto chama atenção nessa passagem: o estado inconsciente-consciente em que
se encontrava João Manico, combinação de realidade e fantasia. Nesse estágio, o vaqueiro
torna-se apto para acompanhar a evolução transcendental operada entre o menino e os bois,
que formam a essa altura um conjunto perfeito. O grau de completude entre tais seres segue
uma linha crescente evoluída desde a afinação do canto, reflexo do mundo interior em
ebulição.
Outro aspecto a ressaltar incide no fato de que tudo se passa à noite, hora de
acontecimentos macabros, segundo a tradição popular. Em Uma estória de amor, um
riachinho seca de repente de madrugada e torna-se emblemático na vida de Manuelzão.
Metáfora do personagem, a ruína do regato inaugura a fase de incertezas do protagonista que,
caminhando para a velhice, próximo dos sessenta anos, ao fazer uma retrospectiva de sua vida
sente-se frustrado (baldo). Seus esvaziamentos se correspondem, por isso mais do que
qualquer um ele sofreu com aquela perda. Eis mais um exemplo da intrincada simbiose
homem-natureza encontrável na escritura rosiana.
João Manico mostra-se atento aos sinais celestes e traceja uma leitura destes,
assemelhando-se aos Magos que “são os sábios, na compreensão arcaica da palavra: aqueles
que discerniam os sinais do tempo, que liam a fala oracular do Cosmos. [...] estão atentos,
receptivos e abertos ao relampejar do inesperado no cotidiano”, conforme Unger (2000: p.93).
O inesperado no cotidiano revelar-se-á em instantes e o vaqueiro atento ao ver uma estrela no
céu pede para voltar em segurança para sua terra. Parece pressentir os acontecimentos
sangrentos que advirão:
Foi de verdade? Foi visão de sonho? Eu estou velho, para querer
saber. Muita gente acha que sim, mas tem coragem de dizer que não! Sei
lá... Mas Virgem Santa Mãe de Deus! acordei, de madrugada, foi com os
gritos do patrão. Que é do gado?! o rastro da arrancada. Tinham arribado,
de noite!... Mas, ainda foi mais triste: no lugar onde deviam de ter ficado
Aristides mais Octaviano, nem cadáver! Os bois tinham passado por cima, e,
eles, mais os arreios que estavam servindo de travesseiros para eles dormirem,
estavam pisados, moídos, tinham virado bagaço vermelho... (S: 87)
A religiosidade de João Manico transparece em suas falas, ao ver uma estrela e
pedir uma graça ao anjo e ao chamar pela “Virgem Santa Mãe de Deus”. Interessante destacar
o trançado entre natureza representada pela estrela - e religião representada pelas figuras
do anjo e da santa. O vaqueiro tece uma observação sobre a dificuldade das pessoas em geral
em assumir ou admitir a presença do “inesperado no cotidiano”. A respeito da tragédia, um
88
fato nos intriga. Os mortos são Aristides e Otaviano, todavia os designados para a vigília
foram Aristides e Binga. Ficamos sem saber se houve alguma troca nos nomes ou se os
vaqueiros em serviço passaram a noite próximos aos demais.
Mais adiante João Manico comenta sobre a debandada da boiada “a pior de todas é a
arrancada do gado triste, querendo querência... Boi apaixonado, que desamana, vira fera...
Saudade em boi, eu acho que ainda dói mais do que na gente...” (S: 87) O mesmo gado triste
foi reunido com muito esforço pela comitiva somente uma semana depois. Na verdade, apenas
uma pequena parte e esses se encontravam em petição de miséria, dignos de pena “bois
náfegos, vacas descadeiradas, bezerros com torcedura de munheca ou canela partida, garrotes
com quebra de palheta ou de anca” (S: 88) Mas o menino, encantador de bois, desapareceu.
Há na literatura outras figuras encantadoras de animais, uma remete imediatamente à memória
- o flautista de Hamelin, mas o menino de O burrinho pedrês não possuía instrumento
musical, apenas a própria voz.
A estória encontra certas analogias com a do “Negrinho do Pastoreio”. Verificamos que
um transporte de muitos símbolos encontrados na lenda para a narrativa rosiana, tomando
parte no arcabouço de seus temas e motivos. A primeira delas é a cristandade. Câmara
Cascudo (2002, p.332) comenta: “O Negrinho do Pastoreio é lenda cristã, divulgada com
finalidades morais. O Negrinho é sem pecado, uma vítima. É um acessório à bondade de
Nossa Senhora, madrinha dos que não a têm”
O pequeno escravo não tinha padrinho, então se dizia afilhado de Nossa Senhora, do
mesmo modo não possuía nome, por isso tratavam-no simplesmente como Negrinho. Nos
momentos de maior aflição clama por Nossa Senhora, como ao final da fatídica corrida em
que o cavalo que montava se perdeu “-Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! Gemia
o negrinho. Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! Hip!Hip!” (IDEM, p.329).
Doravante, lembra-se dela e a santa o conforta e o socorre. Também na micro-estória de
Sagarana, alusão à santa, não evocada pelo protagonista, mas pelo narrador João Manico.
Os dois protagonistas são crianças pobres, negras e desvalidas.
A relação desenvolvida com os animais pelos meninos assemelha-se. Na lenda,
escreve-se: “Todos os anos, durante três dias, o Negrinho desaparece: está metido em algum
formigueiro grande, fazendo visita a suas amigas” (2002, p. 331). Igualmente, o pretinho
mantém laços de afinidade com os bois. Além disso, uma aura de sobrenaturalidade reveste
ambos os textos, que a morte rbara faz ressoar um movimento de misericórdia e/ou
mistério.
89
A transcendência impõe-se como uma marca constitutiva nas narrativas rosianas.
Temática tão intensamente abordada que a conhecer que para o literato tudo transcende
não o homem, mas também a natureza com sua fauna e flora exuberantemente descritas.
Em referência ao aspecto metafísico que a literatura pode alcançar, aspecto esse pesado como
basilar em sua ficção, conforme o próprio autor assevera em carta a Bizzarri, Guimarães Rosa
assim se refere à transcendência em sua obra:
Quero ficar com Tão, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São
Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff com Cristo,
principalmente. Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim
gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo:
2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.(ECB: .
90-91)
Como afirmamos no princípio dessa seção a relação das crianças com os animais se deu
em vários momentos dentro da escritura de Guimarães Rosa. Não poderíamos deixar de citar
duas ocasiões pontuais. Em Campo geral, Miguilim identifica-se com certos bichos. Logo nas
primeiras páginas, o narrador ao descrever a origem do personagem relata uma estória que
mistura dor, alegria, sofrimento, injustiça sentimentos que acompanharão a trajetória do
infante
26
no Mutúm:
Entretanto, Miguilim não era do Mutúm. Tinha nascido ainda mais
longe, também em buraco de mato, lugar chamado Pau-Rôxo, na beira do
Saririnhém. De lá, separadamente, se recordava de sumidas coisas, lembranças
que ainda hoje o assustavam. Estava numa beira de cerca, dum quintal, de
onde um menino-grande lhe fazia caretas. Naquele quintal estava um peru,
que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo o peru era a coisa
mais vistosa do mundo, importante de repente, como uma estória – e o
meninão grande dizia: “É meu!...” E: - É meu...” Miguilim repetia só para
agradar ao menino-grande. E aí o Menino-Grande levantava com as duas mãos
uma pedra, fazia uma careta pior: “Aãã!...” Depois, era uma confusão, ele
carregado, a mãe chorando: “- Acabaram com meu filho!...” – e Miguilim não
podia enxergar, uma coisa quente e peguenta escorria-lhe da testa, tapando-lhe
os olhos. (CG: 30)
Do peru, motivo inicial de encantamento, Miguilim logo encontra outro animal que se
torna motivo de amor e carinho - a cadelinha Pingo-de-Ouro
27
“uma cachorra bondosa e
26
Segundo Nunes (IN: COUTINHO: 1991, p. 157) o infante de Guimarães Rosa, chamado genericamente de
menino apresenta natureza protéica e ambivalência quanto ao sexo, possui várias configurações que vão desde a
menina encantada até o rapaz alado, sendo de espécie mitológica, arquetípica. A presença do menino se processa
com maior ou menor intensidade de Sagarana a Primeiras Estórias, livro que fornece o maior número de
personagens infantis a serem pesquisados. O volume contém vinte e um contos e destes em dez menção ao
menino, espécie de catalizador de significados humanos e estéticos profundos. Não podemos nos furtar de citar
Campo geral, novela que retrata o mundo sob a perspectiva de uma criança de oito anos Miguilim. Este
descobre novas realidades com toda a sensibilidade de um artista.
27
A revista Veja, de 24 de novembro de 2004, traz uma matéria de capa intitulada “Por que amamos os animais
a ciência explica uma amizade de mais de dez mil anos”. Um quadro ilustra o impacto provocado pela
90
pertencida de ninguém, mas que gostava mais era dele mesmo” (CG: 34) Apesar de não ser
bonita, pois era velha, magra, quase cega e pouco saudável, pariu uma ninhada da qual apenas
um sobreviveu e “nunca se tinha visto a Pingo-de-Ouro tão alegre” (IDEM). Esse
contentamento era observado por Miguilim. Mas, a alegria sempre rara e fugidia deu lugar à
tristeza quando o Pai resolveu dar mãe e filhote a um grupo de tropeiros. A injustiça de tal ato
revolta o menino que se identifica com a condição dos desvalidos, assim sente como seu o
abandono e a indiferença para com a cachorrinha.
Igualmente, incomoda a Miguilim outra lembrança, advinda da viagem empreendida
pela família para chegar ao Mutúm. Um dos irmãos tomava leite caprino, por isso, uma
cabrita branca acompanhava os viajantes amarrada à traseira do carro-de-bois enquanto que os
cabritinhos seguiam dentro berrando sempre “toda a vida. A coitada da cabrita – então ela por
fim não ficava cansada? A bem, está com os peitos cheios, de derramar...” alguém
falava. (CG:31) Todavia, ao comentário não sucedia qualquer ação para reverter a situação.
Então, a mãe andava derramando o leite inutilmente pela estrada e os filhotes berravam.
Do mesmo modo, a caçada ao tatu organizada pelo Pai angustiava-o, pois não
compreendia a lógica utilitarista paterna capaz de descartar ou sacrificar aqueles que mais
necessitam de proteção. Possivelmente porque de alguma forma o simbolize, afinal, ao nascer,
os pais o banharam com o sangue desse animal para que vingasse. Espécie de batismo não
convencional em que o sangue, um dos símbolos da vida o cobriu totalmente. A fragilidade
do menino, da cadelinha, da cabrita e do tatu aproxima criaturas tão díspares, totens dos seres
menores, indefesos. A citação abaixo esclarece tal aproximação:
[...] Então, mas por que é que o Pai e os outros se praziam tão risonhos,
doidavam, tão animados alegres, na hora de caçar atôa, de matar tatú e os
outros bichinhos desvalidos? Assim, com o gole disso, com aquela alegria
avermelhada, era que o demônio precisava de gostar de produzir os
sofrimentos da gente, nos infernos? Mais nem queriam que ele Miguilim
tivesse pena do tatu pobrezinho de Deus sozinho em seu ofício, carecido de
nenhuma amizade. Miguilim inventava outra espécie de nojo das pessôas
grandes. Crescesse que crescesse, nunca havia de poder estimar aqueles, nem
ser sincero companheiro. Aí, ele grande, os outros podiam mudar, para ser
bons – mas, sempre, um dia eles tinham gostado de matar o tatu com judiação,
e aprontando castigo, essas coisas todas, e mandando embora a Cuca Pingo-
de-Ouro,... (CG: 72)
domesticação de certos bichos. Segundo o qual, mais de dez mil anos o homem teria trocado a caça e a coleta
pela agricultura. Arqueólogos cogitam que alcatéias tenham sido atraídas pelo lixo produzido pelas famílias
recém-fixadas à terra. Uma aproximação gradual efetivou-se: o lobo aproxima-se da mão que o alimenta e o
homem valoriza a presença do predador, alçado à condição de guarda-noturno. O registro mais remoto de
domesticação consiste nos restos de uma mulher abraçada a um filhote de cão ou lobo encontrados numa região
onde hoje está Israel. A posição em que foram achados fornece a medida do grau de afetividade existente.
91
A injusta perda de Pingo-de-Ouro fere profundamente a infância de Miguilim. Todavia,
o poder de alcance desse fato não se restringe a essa época e se prolonga por toda a vida. O
poder emanado dos adultos insensíveis molda o pensamento do menino que reaparecerá em
Buriti como o veterinário Miguel, um protetor dos animais. O adulto soube resguardar em si o
menino do Mutúm. A ligação afetiva pura e mágica estabelecida nos primeiros anos com os
animais ressurge na maturidade enriquecida por uma perspectiva de contribuição e/ou doação,
como atesta a escolha da profissão. O tempo não apagou as marcas do passado. Os trechos a
seguir, extraídos, de Buriti retomam as tristes lembranças do Mutúm:
[...] Você na gosta de caçada? “Fugi de responder. O que devia de ter dito: que
odeio, de ódio. Assoante, pobre tatu, correndo da cachorrada. O tatu-peba
gorduchote, anda depressa, vai e volta, dá seu rosno baixo, quer traçar no chão
uma cruz. [...] Uma cachorra. Uma cachorrinha. Ela dava saltos,
dobrada, e rolava na folhagem das violetas, e latia e ria, com brancos dentes,
para o cachorrinho seu filhote... Ela estava quase cega...” [...] Pudesse, dizer a
ela que penso com amor nas filas de maminhas de uma cachorra. (B: 124)
[...] As pessoas mais velhas são inimigas dos meninos. Soltam e estumam
cachorros, para irem matar os bichinhos assustados o tatu que se agarra no
chão dando guinchos suplicantes, os macacos que fazem artes, o coelho que
mesmo até quando dorme todo-tempo sonha que está sendo perseguido. O tatú
levanta as mãozinhas cruzadas, ele não sabe – e os cachorros estão rasgando o
sangue dele, e ele pega a sororocar. (B: 156)
Segue-se a essa citação a descrição de uma brutal caçada a um casal de tamanduás em
que se contrapõe a ferocidade dos homens que “mataram, com foiçadas e tiros, raivavam” (B:
157) e o sofrimento da caça “semelhavam tontos, pedintes, sem mossa malícia, como fossem
receber comida à mão. Era de pôr piedade. [...] os tamanduás se abraçaram, em sangues, para
morrer” (IDEM) Descrição comovente como o aflitivo episódio dos cavalos sacrificados em
Grande sertão: veredas.
A íntima relação com a natureza projeta-se biologicamente na formação da
personalidade de Miguilim que se coliga aos seres mais próximos os bichos. Os
personagens entrelaçam-se numa grande teia que culmina na vinculação dos espaços
geográfico e psicológico. A desordem interior desenvolve-se a partir da sensação de
desterritorialização, o menino sozinho em meio às agressões das ambiências natural e social.
Já adulto, agora Miguel, carregando os cernes de outrora, reflete sobre os diferentes contornos
do amor – as maminhas de Pingo-de-Ouro.
O peru reaparecerá em As margens da alegria, primeiro conto de Primeiras Estórias.
Vânia Maria Resende (1988, p.31) observa: “certamente era imagem de grande efeito que
povoava o imaginário do escritor, localizada no inconsciente, com possíveis ligações com a
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sua experiência real de vida na infância e no sertão.” O Menino, à semelhança de Miguilim,
depara-se por ocasião do aparecimento dessa ave, com sentimentos ou estados que o
acompanharão durante sua trajetória de amadurecimento dor, alegria, tristeza, injustiça,
sofrimento.
O peru surgido lindo e imperial “tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um
transbordamento” (PE: 23) no quintal desaparece, sobrando de sua magnífica existência
algumas poucas penas no chão. Imediatamente substituído por outro em tudo menos digno
nos modos e na aparência. O Menino assustou-se ao percebê-lo bicando a cabeça do outro
morto e indefeso. A alegria reaparece sob a forma de um vaga-lume que sugestivamente
ilumina a escuridão com a luz verde, cor da esperança. Entre momentos de contentamento “as
coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja” (PE: 21) e
momentos de desilusão “ Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um
miligrama de morte” (PE:24), o Menino amadurece, oscilando entre o belo (peru, paisagem
natural, vaga-lume) e o feio (morte, destruição da natureza).
A derrubada de uma árvore o exaspera “Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar
com os olhos - o inaudito choque [...] olhou o céu atônito de azul. Ele tremia. A árvore
que morrera tanto” (PE: 25) Num átimo o horizonte largo, florido, arborizado, habitado por
malvas-do-campo, cobras, veados, orquídeas, garças, buritis, arnicas, pitangas, papagaios
alterava-se pelo trabalho humano de terraplanagem. A violência e a velocidade das
transformações são assimiladas com dificuldade, pois, analogamente, a Miguilim, rejeita a
lógica utilitarista. E assim, entre a luz e as trevas, a alegria e a dor, ele segue crescendo, e
torna-se, pouco a pouco, apto para conviver num mundo maior, até então desconhecido. As
experiências vividas o abastecem de meios para reequilibrar-se diante da nova realidade, os
sentimentos contraditórios fornecem-lhe a dimensão complexa da vida.
Posteriormente, em Os cimos, último conto de Primeiras estórias, o Menino um pouco
mais experiente, encanta-se com a aparição de um tucano “Toda a luz era dele, que borrifava-
a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso
esplendentemente” (PE:197). Mais uma vez, as faces da existência o absorvem, encontra-se
dividido entre a realidade (doença da mãe) e a fantasia (tucano). Ora um, ora outro se mostra
mais pesado na balança da vida e, dessa forma, sentimentos opostos revezam-se.
Ao final, percebe que ambas se interpenetram, seu pensamento poderia reverter o
estado de saúde da mãe: “Dentro do que era, disse e redisse: que a e nem nunca tinha
estado doente, nascera sã e salva!” Não demorou e recebeu a resposta desejada, a mãe
recuperada. A ave o auxiliou a apreender os mistérios cósmicos “o que ele era capaz de
93
entender com o coração” (PE: 200) Quando o tio declara que chegaram ao ponto final da
viagem, o menino protesta “Ah, não. Ainda não [...] Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus.
E vinha a vida” (PE:201) Duas visões se esbarram: a do tio - utilitarista e materialista - e a da
criança holística. O sorriso da criança aponta para a descoberta de uma supra realidade,
diante dessa novidade sentia-se fortalecido para enfrentar as intempéries e o convite é lançado
para que a vida se apresente.
Esse Menino, Miguilim e o menino pretinho traçam na sua jornada em direção ao
conhecimento passos fundamentais da experiência existencial. Criaturas inexperientes que
elaboram a própria realidade tendo como barro o mundo natural. Em Gêneses (capítulo 2) lê-
se” E formou o Senhor o homem do barro da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da
vida: e o homem foi feito, alma vivente” A história bíblica sobre a formação do homem expõe
a interligação de todos em tudo – Deus, natureza e homem.
As crianças rosianas parecem pressentir essa interligação e entram em contato com
forças poderosas porque se inserem numa conjuntura maior onde os reinos animal, vegetal e
mineral se agregam uns aos outros
28
. Logo, vislumbram deslumbradas facetas desconhecidas
dos adultos e encantam-se. Unger (2000, p. 56-7) explana sobre a necessidade de
redescobrirmos o mundo e assim nos reencantarmos diante dele:
O reencantamento do mundo significa redescobrirmos aquilo que nos
constitui, reencantar o mundo é poder novamente ter uma vivência da
realidade que não se reduza à reificação. É uma das riquezas da nossa língua
que a palavra real, que designa a realidade, designe também a majestade, o
majestoso. Se pensarmos o real nessa dimensão de majestoso, a palavra
realidade nos fala também de um tempo: real-idade, tempo majestoso. Pôr-se à
escuta daquilo que a palavra “real” revela nos condições para fazermos
outra experiência do Ser, da Natureza e de nós mesmos, redescobrindo a
compreensão do Universo como uma hierarquia de forças e intencionalidades
que tem seus próprios reinos, suas realezas que se manifestam também na
Natureza aqui no planeta Terra. Falamos em reino mineral, reino vegetal,
reino animal: por que não nos abrirmos para a experiência que a palavra reino
assinala – a experiência da Natureza como realeza, como majestade?
O Menino, Miguilim e o menino pretinho centaurizado admitem uma realidade
majestosa e vivenciam experiências extraordinárias porque souberam reconhecer a realeza da
natureza e a existência de forças sobre-humanas nas aparições extasiantes do peru e do
tucano, no milagre da força da vida com o nascimento do filhote de Pingo-de-Ouro e na
comunicação sensorial com os bois.
28
A interligação de todos em tudo pode ser percebida, por exemplo, nas descrições da amizade do Gato Sossõe e
de Miguilim e dos olhos do bichano que sugerem interseção de planos: “... Mas, daí, rodeando como não quem
não quer, o gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, com aquela
ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio era
uma luz dentro de outra, dentro de outra, dentro de outra, até não ter fim” (CG: 52)
94
Nesse contexto, o menino pretinho assemelha-se a um centauro particular - o sagitário.
Movido por um intento a alcançar simbolizado pela flecha em riste apresenta vigor infatigável
na busca do metafísico. Conforme Chevalier (1989, p. 796) trata-se de uma figura de
sublimação: um centauro encravado fortemente ao solo, erguendo diante do firmamento um
arco empunhado em direção às estrelas, “retrato de uma criatura plena que instala a sua vida
na maior abertura para o universo. [...] fundindo, na unidade global de uma grande síntese
terrestre e celeste, o humano e o divino, a matéria e o espírito, o consciente e o
supraconsciente...”
O menino pretinho alcançou, enfim, sua meta, capitalizando conscientemente ou não
sentimentos pertencentes a seres tão desiguais num propósito único retornar ao estado
inicial de equilíbrio. Uma comunicação com os bois ainda mais intensa opera-se em Conversa
de bois com outro menino: Tiãozinho.
3.3 Tiãozinho,o bezerro-do-homem
E são de couro.
Surgiram da “idade do couro”.
Os “encourados”.
Homo coriaceus: uma variedade humana.
(Ave, palavra)
Tendo como pedra angular a denominação de Guimarães Rosa atribuída ao vaqueiro
homo coriaceus - representante maior da unidade com os bois, estendemos o conceito para os
personagens rosianos cujo interesse maior incida no trato com tais bichos. Dessa forma, a
alcunha conferida a Tiãozinho, o bezerro-do-homem, não deixa dúvida a respeito de sua
natureza híbrida. Portanto, outro menino centaurizado, ou, utilizando um termo de Rosa, um
legítimo e incomum exemplar de “homo coriaceus” Sobre sua natureza e raridade teceremos
breves considerações a partir de duas visões – uma científica e outra mítica.
.Podemos nos apoiar no pensamento de Edward O. Wilson criador da teoria denominada
biofilia amor à vida -, segundo a qual, a evolução da sociedade humana obedece às mesmas
leis de seleção que regem o mundo natural. O biólogo acredita que nosso comportamento
condiciona-se mais pela genética que pela cultura, ou seja, os genes exercem maior influência
na tomada de decisões do que as experiências e saberes adquiridos. Essa teoria fundamenta-se
na ligação emocional inata que os seres humanos mantêm com os demais seres vivos e
95
propõe-se a contribuir para o fortalecimento de uma ética conservacionista cujo objetivo
primeiro consiste em garantir a biodiversidade. O uso do termo inato deve-se ao fato de que
esse envolvimento emocional pode estar nos nossos genes, ou seja, tornou-se hereditário,
provavelmente porque praticamente a totalidade da história da humanidade desenvolveu-se
sob a convivência íntima com a natureza. Nessa compreensão, os animais constituem-se
parceiros na marcha evolucionária do homem que necessita da manutenção de laços com a
natureza, e, por conseguinte, com os bichos para a promoção do próprio bem-estar.
Assim sendo, Tiãozinho incomoda-se com as ferroadas constantemente infligidas aos
bois e apazigua os pensamentos ao apreciar a paisagem por disposição biológica, conforme
Wilson, já Agenor Soronho teve a mesma disposição alterada por outros seres humanos e/ou
pela educação. Essa hipótese adquire fôlego se voltarmos a atenção para sua profissão que de
alguma forma contribuiu para afastá-lo dos animais. Retornando a Rosa (AP: 191) o vaqueiro
estaria apto para compreendê-los, ao passo que o carreiro não.
Quanto á raridade do personagem, um mito iroquês, nação indígena distribuída pelos
territórios do Canadá e dos Estados Unidos da América, versa a respeito da origem das
doenças e dos remédios, conseqüências do afastamento humano de suas raízes. Num tempo
remoto, os animais falavam e viviam em harmonia com os homens. Porém, a acelerada
reprodução da humanidade ocasionou a retirada dos animais para florestas e lugares desertos
A velha amizade sofreu o primeiro abalo. O estremecimento das relações se alarga por
ocasião da invenção das armas e da caçada. Uma reunião dos animais deliberou a favor de
retaliações, então cada espécie decidiu causar um tipo de doença. Todavia, as plantas ouvindo
os planos decidiram criar remédios para combater as enfermidades.
O afastamento do homem da natureza faz com que ele perca sua identidade, a ponto de
ter deformada a personalidade. A represália dos animais revela que a quebra da amizade
vitimiza o próprio homem, a atitude benevolente das plantas representa a generosidade
(realeza) da natureza. O homem realmente abandonou seu passado de convivência pacífica
com o todo. Poucos são os que demonstram disposição em resgatar os hábitos iniciais, entre
eles está Tiãozinho.
Quando o deixamos no capítulo anterior ele prosseguia em sua dura e triste caminhada
sob as injúrias de Agenor. O calor intenso convida a um banho refrescante. Tiãozinho entra
nas águas frias de um ribeirão, molha os pulsos e apara em vão com o chapéu de palha furado
um pouco do precioso líquido para matar a sede. Resolve, então, abaixar as mãozinhas em
concha e consegue beber. Os bois, do mesmo modo, aproveitam para sorver demoradamente:
96
De eis, Buscapé, e depois Namorado, acabaram; sacodem o molhado
das caras, lambem os beiços, devagar, e ficam espiando, à espera. Que santos
de grandes, e cheirando a bondade, bois companheiros, que não fazem
mal a ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos quietos de
pessoa amiga da gente!... E Tiãozinho corre os dedos pelo cenho de Buscapé,
e passa também mão de mimo no pescoço de Namorado – imóveis os dois. (S:
347) (grifo nosso)
A concepção de sacralidade dos bois exposta pelo narrador encontra paralelo na visão
de povos da Antiguidade, pois na ampla arca religiosa e cultural humana esses bichos
comparecem desde os primórdios. Nas pinturas rupestres datadas de quarenta mil anos,
aparecem em destaque - cavalos, cervos, bisões os últimos, da família bovidae são seus
parentes.
Desde então surgem em textos variados de diferentes povos que construíram o próprio
panteão animal de acordo com o imaginário e a fauna que os cercava Provavelmente, as
primeiras divindades eram zoomórficas. Mais tarde, com o refinamento das estratégias de
caça e pesca e o estabelecimento do domínio sobre as feras surgiram as antropomórficas.
Os textos sagrados indianos relatam que Krhisna em sua vida pastoril possuía uma vaca
de estimação, que por sua docilidade, tornou-se uma admirável expressão de espiritualidade.
Em sua representação pictória o animal ocupa posição privilegiada por ser a segunda mãe, a
nutriz por excelência. Para os hinduístas representa o último estágio na escala das
encarnações, portanto, um animal perfeito.
O tema da nutricidade máxima simbolizada pela vaca perpassa vários povos. Para os
egípcios, Háthor, era a deusa do céu, das mulheres, patrona do amor, da fertilidade, da alegria,
da dança, da música; designada senhora do céu e alma das árvores podia ser representada por
uma mulher usando um disco solar entre os chifres na cabeça ou uma mulher usando uma
cabeça de vaca. O culto ao boi, por seu turno, era largamente difundido nas civilizações
antigas como atesta a veneração por Ápis, divindade agrária que simbolizava a força vital da
natureza. Sua origem liga-se ao deus Ptah que sob a aparência de fogo celeste engravidou uma
vaca que o concebeu. A cultura egípcia antiga baseava-se no respeito aos animais, símbolos
de poder e mistério cujas capacidades específicas o tornavam dignos de adoração.
A mitologia grega comporta uma galeria de seres híbridos que ensejam na própria
compleição uma profunda simbiose antropozoomórfica: minotauros, centauros e sagitários.
Monstros representativos da dupla natureza humana a bestial e a divina - dependendo do
grau de espiritualidade. São imagens do inconsciente ou estados psíquicos: medo, culpa, ódio,
perversão, paixão, desejo. Por outro lado, podem simbolizar a evolução, o desapego, a
transcendência.
97
Nessa conjuntura de valoração eufórica, animais evocam o Espírito Santo (pomba) e os
evangelistas. Exceção feita a São Mateus representado pelo anjo, os demais apresentam os
seguintes símbolos: São Marcos - o leão, São João a águia e São Lucas o boi. As quatro
insígnias foram retiradas do livro Ezequiel (capítulo 1) em que se narra uma visão da glória
divina tida pelo profeta.
Nessa perspectiva, o narrador os percebe. O carinho de Tiãozinho pelos bois,
acariciando-lhes merece nota, todavia, Agenor Soronho possui atitude e ponto de vista diverso
“-Vam’bora, lerdeza! Tu é bobo e mole; tu é boi?!
29
... Carece de ficar a vida inteira, feito
estaca dentro d’água, feito esteio de moinho?!”(S:347) A fala do carreiro denota o desprezo
pela figura bovina, e, a um só tempo, desrespeita a criança e os animais
Agenor prefere não se molhar e equilibra-se no cabeçalho, pois depois da passagem, há
um alagadiço perene:
- Entra p’ra o lado de lá, que está embrejado fundo... Mais dianho!
Mas não precisa de correr, que não é sangria desatada... Tu não vai tirar o pai
da forca, vai? ...Teu pai já está morto, tu não pode pôr vida nele outra vez!...ôi,
seu mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama!... E Soronho ri, com
estrépito e satisfação.
Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr
vida nele outra vez...” Por que é que não foi seu Agenor Carreiro quem a
morte veio buscar?! Havia de ter sido tão bom!...
[...]
Enlameado até a cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o
carreiro... Deixa eu crescer!... Deixa eu ficar grande!... Hei de dar conta desse
danisco... Se uma cobra picasse seu Soronho... Tem tanta cascável nos
pastos... Tanto urubu perto de casa... Se uma onça comesse o carreiro, de
noite... Um onção grande, da pintada... Que raiva!...(S: 348)
O menino não responde aos insultos pronunciados com grande satisfação, reclama
consigo, afinal, o silenciamento normalmente atrelado ao poder, submete-o. As águas do
córrego escorregando sobre os corpos de Tiãozinho e dos bois assumem caráter iniciático.
Chevalier (1989, p. 119) atesta que as grandes etapas da vida nascimento, puberdade e
morte - são precedidas pelo banho. Apesar de não submergir, o menino e os animais entraram
em contato com a água, fato que os purifica naquele momento, mesmo que, logo adiante haja
um alagadiço e os diferencia mais uma vez do carreiro que sob gica utilitarista não se
molha. Assim, Tiãozinho começa a crescer e uma nova fase inaugura-se. Falta-lhe força física
29
A fala do carreiro choca-se com a visão de povos antigos sobre os animais. Chevalier (1989, p.59) observa que
os turcos exigiam as seguintes habilidades de um chefe: bravura de galo, castidade de galinha, coragem de leão,
agressividade de javali, astúcia de raposa, perseverança de cão, vigilância de grua, prudência de corvo, ardor em
combate do lobo, robustez do yagru. Para esse povo valentia e força são, respectivamente, características do
cavalo e do boi.
98
para combater o mal, por isso lembra-se da cobra e da onça para cumprirem seu desejo de
aniquilar o padrasto. Entretanto, a força de seu pensamento conjugada à sua mudarão os
rumos de sua vida. A partir desse ponto, seu destino transforma-se, pois os bois caminham de
forma diferente demonstrando uma tomada de consciência.
Contudo, Agenor, insensível, não se conta das mudanças em operação e reproduz
seu comportamento “zangando com Tiãozinho e caçoando dos bois” (S: 351) Do mesmo
modo, repete-se o cuidado do guia com os animais: “– Ôa, boizinho, ôa! avisou Tiãzinho,
olhando para cada um deles, assustado, quase pedindo para passarem com modos, pelo-amor-
de-deus’ (IDEM)
Toda essa aproximação entre homens e bois tornou-se possível por causa da
domesticação desses bichos ocorrida, segundo o registro mais antigo, oito mil anos, data
estimada de ossadas de bois encontrados na Turquia indicativas de vida em associação com
humanos.
A perspectiva dos bois, a partir do contato estabelecido com a espécie que os dominou,
separa Agenor e Tiãozinho em dois grupos distintos. O primeiro é o “homem-do-pau-
comprido-com-o-maribondo-na-ponta”, descrição de um ser beligerante, maligno, reportando
à figura diabólica empunhando o tridente ou à de deuses da guerra como Ares ou Marte
segurando a lança. Já o segundo “bezerro-de-homem-que caminha sempre-na-frente-dos-bois”
remete duplamente à fusão de seres. As palavras iniciais bezerro e homem situam-no num
plano não conectado totalmente à esfera humana, seja pelas oposições homem versus animal
ou adulto versus criança. As demais palavras integrantes desse enorme epíteto avalizam a
condição de líder de Tiãozinho, aquele que caminha na frente, que os conduz. O pensamento
de tristeza do guia, de alguma forma, se comunicará com os de seus guiados, assim como o
canto do menino pretinho retumbou no gado de seu Saulinho.
Nesse contexto, a viagem prossegue com Tiãozinho “babando água dos olhos” e os bois
avançam calados. Súbito, uma observação corta o silêncio: “- O homem está dormindo,
assentado bem na ponta do carro... o-pau-comprido-com-maribondo-na-ponta também está
dormindo... Por isso é que ele parou de picar a gente”(S: 357) Ressalta ainda que o bezerro do
homem caminha mais lentamente “Dorme caminhando como nós sabemos fazer” (IDEM)
Trata-se da primeira nota bovina a respeito da aproximação entre eles e o menino. Comentam
ainda sobre a grande quantidade de água babada pelos olhos de Tião. As observações
prosseguem: “o homem esta pendendo para fora do carro... Se ele cair morre.” (IDEM) Nesse
mesmo instante, Tiãozinho entra em um estado alternativo:
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- O bezerro-de-homem quase cai nos buracos...Ele está mesmo
dormindo... Daqui a pouco ele cai...Se ele cair, morre...
Mesmo meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão uma
pequena porção dele vigie, talvez. O resto flutua em lugares estranhos. Em
outra parte... E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito
alegre e leve... Não sente mais raiva... O dia desenquentou, refrescou, mesmo.
(S: 358)
Agenor e Tião dormem, mas de formas diferentes, o primeiro entrega-se totalmente, em
estado de letargia permanece sem resposta aos estímulos exteriores; o segundo, por sua vez,
está no meio do sono, “mais de meio”, uma parte flutua por lugares estranho e a outra, a que
ficou em vigília, serenou e alegrou-se. O menino transcende, a utilização recorrente das
reticências assinalam a comunicação com o infinito e um interstício para o maravilhoso e o
fantástico abre-se em meio ao caos do cotidiano, marcado pelo sofrimento. Antigos desejos
recalcados passam a tomar corpo e pouco a pouco se materializam. Todavia, o ódio, propulsor
inicial desses desejos, inexiste, em seu lugar apenas a alegria.
Talvez, na literatura rosiana a narrativa mais contundente sobre a questão da
transcendentalidade seja O espelho, décimo primeiro conto de Primeiras estórias. Localizado
exatamente no centro do livro composto por vinte e um contos como para irradiar sua
mensagem para os demais. Logo no primeiro parágrafo o narrador-personagem adverte:
“Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.” (PE: 89) O
protagonista narra sua experiência metafísica em busca do eu verdadeiro, tendo o espelho
como aliado, por ser também um portal para a magia. Porém, adverte para os perigos de uma
visão limitada: “a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e
lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...” (PE: 90). Após uma
série extenuante de experimentos, consegue desmascarar-se
30
“interpenetrar-se no disfarce do
rosto” (PE: 93) Passa por várias etapas e segue decompondo-se, ao final, descobre-se e era luz
sua essência, e seu rosto era “qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais
que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só.” (PE: 97)
30
A saber: a primeira camada removida diz respeito ao elemento animal, nesse caso, seu sósia inferior era a
onça. A segunda foi o elemento hereditário as semelhanças com pais e avós. A terceira refere-se às
manifestações cotidianas que terminam por moldar o ser física ou psicologicamente paixões, pressões
psicológicas. Depois, não se viu mais, estava sem rosto. Passados grandes sofrimentos, e tendo descoberto o
amor viu-se novamente e era luz. Finalmente, mirou seu ser: e era um menino. Enfim, a visão da alma eterna
identifica-se com o todo. Interessantes reflexões ao longo do conto são elaboradas sobre a natureza humana, em
uma delas o narrador exalta a sabedoria e a sensibilidade da criança, em outra se define como meio homem-meio
bicho. Annette Ursula Menouar em ensaio sobre a identidade em contos rosianos declara que o que impregna a
obra do escritor: “é o amor e o respeito profundos para com o indivíduo, ligando-o à criação universal que
Guimarães Rosa venera tanto, e da qual, o ser individual faz parte inseparável.” (200, p. 69)
100
O conto nos revela a extensão transcendental de que a infância alcança na ficção de
Guimarães Rosa, retratada como o estágio mais próximo da perfeição. Por isso, Tiãozinho não
precisará estudar racionalmente para descobrir seu lado solar, bastará somente sentir as forças
do universo Em Campo geral, Miguilim experimenta tais forças: “Rezava, rezava com força;
pegava um tremor, até queria que brilhos doessem, até queria que a cama pulasse” (CG: 92)
Conforme o próprio autor confessou a Bizzarri (ECB: 51) no sertão a magia é inseparável de
cada aspecto da vida
31
. As crianças pela ou pelo esquecimento momentâneo da realidade
concreta facilmente suspendem seus espíritos e vivenciam a “majestade da realidade”,
reportando a Unger.
Nota-se em Conversa de bois pontos de convergência com a Teoria da Reminiscência,
de Platão (2002), segundo a qual a alma vive no mundo das idéias (da Verdade) antes de sua
encarnação. Ao retornar ainda recorda-se do saber adquirido durante sua estada no outro
plano. Deste modo, a criança estaria mais próxima da verdade, pois o passar dos anos
determina o esquecimento das verdades profundas que regem o universo. Ronai (S: 21) em
“Rondando os segredos de Guimarães Rosa”, atenta para o fato de que o escritor: esconde,
aqui e ali, nas meditações de seus sertanejos, um pensamento de Platão ou Plotino.
Um pensamento ecológico
32
especial também se faz presente, denominado ecologia
profunda, radical, ou espiritual, o qual percebe o homem não como um “sujeito” isolado ou
acima de uma realidade reduzida à condição de objeto, antes enxerga-o como um ser
integrante de um universo em interconexão com tudo e todos. Proposta pelo filósofo
norueguês Arne Naess em 1973 como uma resposta a visão dominante sobre o uso dos
recursos naturais. Esta corrente ambientalista extrapola os limites científicos e funda-se nos
preceitos de fontes diversas, entre elas: física quântica, taoísmo, budismo, feminismo, tradição
dos ‘native american’, ou índios da América do Norte, grandes nomes da cristandade, como
São Francisco de Assis
Igualmente, a cosmologia dos Upanishads, se esconde nas narrativas rosianas, segundo
a qual a diversidade do mundo adveio de Brahman, consciência suprema criadora do universo
que decidiu se despedaçar e transformar-se em seres e objetos. O Um divino converte-se em
31
O comentário justifica a carta de ao seu tradutor italiano de 11 de outubro de 1963 em que esclarece “(Ânsia
de afã místico de Miguilim, angústia religiosa em ação.) no fervor, era como se quisesse ascender – à experiência
salvadora de BRILHOS ( a “glória de Deus”), e que esses brilhos DOESSEM:isto é, senti-los, em si, no próprio
corpo, carne, para certeza de sua realidade, supra-realidade. Na evasão da reza, Miguilim queria era
‘transcender’. (ECB:47)
32
Com base nesse pensamento selecionamos textos diversos (lendas indígenas, mitos gregos e latinos) que
versam a respeito do pertencimento humano ao cosmos, morada do homem.
101
muitos, de sorte que todos compartilham da divindade do Brahman. Sob essa ótica, leiamos o
fragmento que segue:
- O homem não sabe.
- O bezerro-de-homem não sabe... O nosso pensamento de bois é grande
e quieto... Tem o céu e o canto do carro... O homem caminha por fora. No
nosso mato-escuro não há dentro nem fora...
- É como o dia e a noite... O dia é barulhento, apressado... A noite é
enorme...
- O bezerro-de-homem não sabe mais, às vezes... Ele vive muito perto
de nós, e ainda é bezerro... Tem horas em que ele fica ainda mais perto de
nós... Quando está meio dormindo, pensa quase como nós bois... Ele está
adiante, e de repente vem aaqui... Se encosta em nós, no escuro... No mato-
escuro-de-todos-os-bois... Tenho medo de que entenda a nossa conversa... (S:
358)
À margem do conhecimento humano, o pensamento bovino desenvolve-se, trata-se de
um pensar sem limites, por ser grande e livre, um mato-escuro contínuo sem fora ou dentro.
“O homem caminha por fora”, ignora-o. Mas, é possível devassá-lo, basta chegar mais perto
como o fez Tião, também se torna necessário abster-se das idéias que não suportem o conceito
de transcendentalidade, talvez o estado mais propício para adentrar no mato-escuro em
questão seja o de semiconsciência em que se acha o menino. Nessa condição, Tiãozinho
aproxima-se dos bois.
O temor dos animais fundamenta-se, de fato, as conversas começam a se entrecruzar e
cada um dos oito bois passa a falar cosias estranhas. O número de bois não nos parece mero
acaso, lembremos que o oito é o número do equilíbrio cósmico e que o signo matemático para
o infinito é um oito deitado. Logo, eles concorrerão para contrabalançar a desordem
instaurada pela doença e morte de seu Januário. O primeiro movimento nessa direção dá-se
quando Buscapé clama pela atenção de Brabagato e Dançador ao ouvir Capitão:
-Mhú! Hmoung!... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão!...
Moung!... Não nenhum boi Capitão... Mas, todos os bois... Não há bezerro-
de-homem! Todos... Tudo...Tudo é enorme... Eu sou enorme!... Sou grande e
forte... Mais do que seu Agenor Soronho!... Posso vingar meu pai... Meu pai
era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu Agenor é o diabo grande... Bate
em todos os meninos do mundo... Mas eu sou enorme... Hmou! Hung!... Mas,
não há Tiãozinho! Sou aquele-que-tem-um-anel-branco ao-redor-das-ventas!...
Não, não, sou o bezerro-de-homem!... Sou maior que todos os bois e homens
juntos.
- Mû-ûh... Mu-ûh!... Sim, sou forte... Somos fortes... Não há bois...
Tudo... Todos... A noite é enorme... Não há bois-de-carro... Não mais
nenhum boi Namorado...
- Boi Brabagato, boi Brabagato!... Escuta o que os outros bois estão
falando. Estão doidos?!
Buhúh!... Não me chamem, não sou mais... Não existe boi Brabagato!...
Tudo é forte. Grande e forte... Escuro, enorme e brilhante... Escuro-brilhante...
Posso mais do que seu Agenor Soronho!... (S: 359)
102
O tudo em todos pode claramente ser percebido na passagem transcrita. Cada boi
interage com Tiãozinho, ou vice-versa. Tião é boi e todos se unem, todos são tudo. Dessa
forma, um começa a fala, mas outro a conclui. Capitão se apresenta, e, logo, se desdiz para,
enfim, afirmar sua nova condição: a de ser todos os bois. Depois, a identidade do menino
também passa pelo mesmo processo de negação para em seguida definir-se como o todo. O
vocábulo identidade assume dois significados díspares. O primeiro aponta para a
individualidade do ser remetendo ao eu separado. Já o segundo se reporta à identificação do
eu com o todo, com o cosmos. Os personagens do conto em análise esboçam a busca do
indivíduo por seu lugar no mundo. O trecho revela nitidamente a influência dos Upanishads
na obra rosiana. As partes do todo começam a se reagrupar para formar um único corpo
.A alusão à cor branca ou a sua variação brilhante, bem como a sua contracor, o preto,
ou escuro contribuem para a criação de uma atmosfera mítica propícia para um ritual de
passagem. Afinal, tais cores por situarem-se no extremo da gama cromática podem significar
a ausência ou a soma das demais, o início ou o fim da vida, o ponto de junção do visível e do
invisível. Nesse ponto, Tião é grande e forte, mais que Agenor Soronho e pode vingar o pai.
33
Brabagato e Namorado, por sua vez, também são grandes e fortes. Os demais bois entregam-
se ao transe paulatinamente:
- Que estão falando, todos? Estão loucos?... Eu sou o boi Dançador...
Boi Dançador... Mas, não nenhum boi Dançador!... Não o-que-tem-
cabeça-grande-e-murundu-nas-costas... Sou mais forte do que todos... Não
bois, não há homem... Somos fortes... Sou muito forte... Posso bater para todos
os lados... Bato no seu Agenor Soronho!... Bato no seu Soronho, de cabresto,
de vara de marmelo, de pau... Até tirar sangue... E ainda fico mais forte... Sou
Tião... Tiãozinho!... Matei seu Agenor Soronho... Torno a matar!... Está morto
esse carreiro do diabo!... Morto matado... Picado... Não pode entrar mais na
nossa cafua. Não deixo!... Sou Tiãozinho! Se ele quiser embocar, mato outra
vez... Mil vezes!... Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também
não deixo... Ralho com a minha mãe... Ela só pode chorar é pela morte do meu
pai... Tem de cuspir no seu Soronho morto... Tem de ajoelhar e rezar o terço
comigo, por alma do meu pai... Quem manda agora na nossa cafua sou eu...
33
A lenda indígena dos Kamayurá, povo do Xingu, Tantos pássaros, tantas vozes assemelha-se a Conversa de
bois. Nela um menino órfão vinga a morte do pai, morto por um impiedoso caçador de pássaros que matava
desnecessariamente, apenas para colecionar penas. O curumim associa-se a esses seres alados e ganha o epíteto
menino-pluma-de-águia, pois os novos amigos o revestiram com as enormes penas da harpia. Evidencia-se ao
longo da estória a concepção de integração do homem com o cosmos nas falas e ações das personagens que
mesmo pertencentes a espécies distintas utilizam os termos - vovô, vovó e meu neto - para designar o parentesco
que as une. O parentesco estende-se a todos os seres, seja animal ou vegetal, assim, a castanheira, o pau-d’arco,
os pássaros e o curumim irmanam-se. Ao final da aventura que aconteceu no meio da floresta, ele retorna à
aldeia e a cada amanhecer sai à porta para ouvir os trinados maviosos: “E com seu assobio se unia, contente, ao
cântico dos pássaros.” Essa passagem também mantém paridade com a estória do menino pretinho: ambos unem-
se aos animais através do canto. Ver BOFF, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra contos dos povos
indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001. p.43-9
103
Eu, Tiãozinho!...[...] Tiãozão... Tiãozão!... Oung... Hmong... Mûh!... (S: 359-
360)
Não podemos deixar de estabelecer analogias entre a mãe de Tiãozinho e a de
Miguilim. Assim descritas, respectivamente: “Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe
da gente devia de ser velha e feia, rezando e sendo séria” (S: 33) e “Mas sua mãe, que era
linda e com cabelos pretos e compridos” (CG: 27) Ambas belas e adúlteras, seus atos acabam
trazendo conseqüências desastrosas para os envolvidos, doença, desejo de morte e de
vingança, briga entre irmãos, rejeição paterna, cisão familiar e morte. No entanto, os
sentimentos filiais se distinguem, Tiãozinho desgostava e ansiava pela justiça divina.
Miguilim amava, embora, no decorrer da trama seus sentimentos sofram oscilações, no final,
ele a perdoa.
O ato de traição materno movimenta as tramas e favorece o crescimento ou
amadurecimento acelerado dos filhos que experimentam sentimentos diversos, no fragmento
em análise simula-se uma inversão de papéis, o filho domina a mãe: Se a minha mãe quiser
chorar por causa dele, eu também não deixo... Ralho com a minha mãe.” O ódio leva
Tiãozinho a sonhar com a morte de Agenor Soronho. A descomunal vontade de crescer o leva
a agigantar-se, dessa forma, delibera “Quem manda agora na nossa cafua sou eu... Eu,
Tiãozinho!... [...] Tiãozão... Tiãozão!... Oung... Hmong... Mûh!...”. A interseção de seres
atinge seu ápice, como ratificam a fala do personagem, permeada por onomatopéias ou
interjeições bovinas.
Algo semelhante opera-se em Meu tio o Iauaretê. Nessa estória, ironicamente, o
caçador, mestiço de branco com índia, enviado para exterminar onças, embrenha-se na mata e,
paulatinamente, adere ao modo de vida felino em detrimento do humano. Ao final,
transforma-se em onça e tem a fala reduzida a grunhidos: He... Aar-rra... Aaâh... me
arrnhou... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... ê... ê ...
(EE:198). Jair A. C. Filho (2000, p.291) observa ainda que a narrativa desde o título é uma
metáfora da ruptura com o mundo civilizado e que o protagonista por reconhecer-se como
parente das onças intenta “um retorno à primeira infância das organizações humanas: as
sociedades tribais e totêmicas. Reconhecer-se parente de onça” e reconhecer-se pertencente
a uma tradição que tem no animal um protetor e guia, um antepassado com quem se institui
um elo de parentesco...”
Todavia, Tiãozinho meio adormecido e meio vigilante segue caminhando com os bois,
apenas Soronho dorme. E as possibilidades de sua morte são inventariadas - se o carro
104
sofresse um abalo maior, se o guia gritasse e os animais se assustassem, se os bois
corressem... Então, tudo acontece:“ Namorado, vamos!!!...- Tiãozinho deu um grito e um
salto para o lado, e a vara assoviou no ar... E os oito bois das quatro juntas se jogaram para
diante, de uma vez... E o carro pulou forte, e craquejou, estrambelhado” (S:361) Num átimo, a
roda esquerda do carro corta o pescoço do carreiro.
Tiãozinho volta a si e chorando e clamando por Deus e por Nossa Senhora repete que
causou o acidente e penaliza-se diante da morte do padrasto, pensa em fazer promessas e rezar
para todos os santos. Os bois olham e esperam “Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz.” (S:
361) O desespero do menino trêmulo comove aos que vinham chegando. O corpo quase
degolado de Agenor se junta ao de seu Januário sob a luz crepuscular. Com o ar fresco, o
menino segue mais maneiro e os bois mais ligeiros “E talvez dois defuntos dêem mais para a
viagem, pois até o carro está contente renhein... nhein... e abre a goela do chumaço, numa
toada triunfal.” (S: 362)
Além do comparecimento do motivo da viagem de crianças lidando com animais e com
forças sobrenaturais em O burrinho pedrês e Conversa de bois, outra semelhança exibe-se no
último parágrafo: a musicalidade expressa pelo carro de bois que contente range “uma toada
triunfal”. E Tiãozinho e os boizinhos santos seguem em sua jornada “Vamos, va-âmos!”
105
CONCLUSÃO
Agora é que eu vou contar
o luxo da minha terra:
a vaca mansa dá leite,
cavalo rincha, boi berra...
(Ave, palavra)
O encantamento do cantador diante das belezas do mundo natural subordina-se à
ancestral relação do homem com a terra que, inserida no corpo, mente e espírito conduz à
comunhão espiritual com o cosmos. Textos antigos abordavam tal tema, como a fábula-
mito de origem latina em que Cuidado
34
molda o barro e pede a Júpiter para soprá-lo, dando
início a uma acirrada disputa acerca da nomeação da nova criatura entre Cuidado (o que
inventou), Júpiter (o que deu vida) e a Terra (a que forneceu o material). Ao final, Saturno
decide: deverá chamar-se homem, porque veio do húmus.
A narrativa encerra uma verdade constitucional: o universo está em inter-retro-
conexão
35
, já que o ser humano incorpora as naturezas terrena (barro/corpo) e celestial
(sopro/alma), advindo, portanto, de sua formação sua complexidade, atrelada originariamente
ao céu e a terra. Do mesmo barro os demais seres vivos foram confeccionados, ou seja, todos
são parentes entre si, uma vez que compartilham, essencialmente, o mesmo código genético,
como o comprova a ciência.
O vocábulo ‘terra’ possui significações variadas, quatro delas são - planeta; solo; pátria;
povoação / localidade. Guimarães Rosa ligava-se à terra de distintas formas, quer na condição
de sertanejo ou de cosmopolita. O escritor mineiro definia-se, antes de tudo, como visto
anteriormente, como um homem do sertão
36
. Nesse espaço geográfico o vaqueiro ocupa
posição privilegiada: “eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo
andaria melhor”, declara a Lorenz. Ficamos com a impressão de que pelos olhos do vaqueiro,
ser mais próximo dos bois, Rosa viveu e escreveu.
Na infância, fauna e flora despertavam-lhe particular interesse: lia livros de botânica e
informava-se com pessoas mais velhas a respeito dos nomes científico e popular e
34
A referida fábula-mito motivou a admirável exposição desenvolvida por Leonardo Boff em Saber cuidar: ética
do humano – compaixão pela terra. Ver sua transcrição: p. 45-6.
35
Expressão semelhante foi empregada por Leonardo Boff em O casamento entre e o céu e a terra contos dos
povos indígenas do Brasil.
36
Essa definição norteou nosso trabalho, a partir dela examinamos seus desdobramentos na existência (infância
em Cordisburgo, vida doméstica no Rio de Janeiro, viagens ao exterior e ao interior de Minas Gerais, passeios) e
obra (novelas de Sagarana, sobretudo) do escritor.
106
características das plantas; assistia extasiado ao embarque de boiadas; cercava-se de animais
domésticos. Tais hábitos perduraram por toda sua existência, porque Rosa era um sertanejo
que experienciava sua humanidade enquanto habitante do cosmos, cosmopolita, integrado ao
universo em transcendência ou a uma ‘realidade majestosa’, conforme Unger.
A autora enfatiza que apreender o real como majestoso nos capacita a ‘reencantar o
mundo’, ou seja, redescobrir que o que somos e o que nos cerca não se reduz à reificação.
Sucessivos cortes históricos levaram o homem a dissociar-se da natureza, dessa forma,
possibilitou-se a dessacralização de si e do outro. Torna-se imperativo retornarmos à
percepção holística de que dispunham os povos antigos, segundo a qual a face divina do
universo manifesta-se em todas as coisas e seres, o sagrado está em tudo e em todos, “o
Universo se revela... como uma tessitura de fios da qual nós fazemos parte, uma grande dança
cósmica da qual nós também somos gestos.” (2000, p.56)
Deste modo, uma intensa espiritualidade dominava a mente desses povos que julgavam
estar unidos a uma força maior ou a Deus. Sob essa ótica, a ecologia profunda, sob o eixo da
integração e interação, reconhece o homem como uma extensão da natureza, uma parte do
cosmos, enfim um ser em coesão com o todo; logo, essa consciência é espiritual ou religiosa,
por perpetrar a religação do eu com o próximo.
Vislumbramos tal consciência em tocantes passagens da obra rosiana, como em Cara-
de-bronze. Grivo, o mensageiro do Urubuquaquá, parte em viagem que durará dois anos após
vencer um torneio (ou jogos de “imaginamentos de sentimentos” em que se perguntava a
respeito de nomes sem importância, do formato do orvalho, da silhueta do mar.) realizado
pelo patrão, Segisberto Saturnino Jéia Velho, Filho - cujo nome remete imediatamente à terra
- por ser o mais dotado de sensibilidade. Sentindo as forças enfraquecerem, resolve enviar um
vaqueiro para a missão mais extraordinária confiada a alguém: buscar o sentido da vida,
perdido no passado, na terra natal e nos caminhos trilhados.
E Grivo vai em busca do quê? De uma moça formosa, de uma antiga escritura,
perguntam os vaqueiros possuidores de pensamentos conectados às conveniências do mundo
sensível. Na verdade, o tesouro empreendido eram “palavras de voz”. O relato da viagem traz
a Segisberto tanto conforto ao espírito atormentado que chorou ao ouvir as últimas palavras,
pranto de alegria. As reminiscências da jornada deixam transparecer o amor poético e suave
de Grivo pela natureza e sua em Deus: “– Passarim, todo tempo, todo o tempo, se ri nas
bochechas do vento; e a minha alma está bem guardada, vento de todas as asas...” (UP:142)
Mas o que trouxe o mensageiro ao senhor foi matéria extremamente especial: a poesia
107
reorganizadora, encontrável na paisagem, espiritualizada em seu transbordante discurso
descritivo e concretizada no belo raminho com orvalhos trazido de tão longínquas terras.
Vimos anteriormente outros personagens rosianos que sob variados aspectos e/ou
circunstâncias relacionam-se com a natureza e, mais especificamente, com os animais. Lalino
Salathiel apresenta natureza ambivalente mulato (mestiço) e espécie singular de anfíbio
humano (meio sapo e meio homem); Nhô Augusto ajusta seu relógio biológico ao tempo da
natureza vinculando o mundo interior ao exterior; Miguilim e o Menino (re)organizam o
próprio modo de percepção a partir da observação do mundo natural; Pretinho e Tiãozinho
entram em uma insólita sintonia com bois.
Esses animais vivem em associação com os homens pelo menos oito mil anos e
figuram nos campos artísticos e espirituais ocupando posição de proeminência como atestam
as pinturas rupestres, as religiões hindu e egípcia e a mitologia grega. Também em festas
folclóricas comparecem, haja vista o bumba-meu-boi. Esse folguedo recebe diferentes
nomeações dependendo da região brasileira: boi-bumbá, boi-de-mamão, pavulagem, boi-de-
reis, boi-surubim, boi-calemba, boi-mourão, boi-janeiro, boi-estrela-do-mar, boi-zumbi,
bumbá, boizinho, boi-de-jaca, dança-do-boi.
Importante ressaltar que essa brincadeira popular remonta a tempos e espaços
longínquos, a influência européia provavelmente advém do Monólogo do vaqueiro ou Auto da
visitação de Gil Vicente encenado aos reis de Portugal em 1502 por ocasião do nascimento do
futuro rei, peça claramente inspirada nos autos pastoris. Guimarães Rosa retoma essa tradição
em Grande louvação pastoril à linda Lygia Maria, em Ave, palavra, no texto fadas,
vaqueiros, caboclos, boizinhos, vaquinhas, bezerrinhos, o dr. João Rosa “(chegando
amontando no seu cavalo baio cumprimentandor )”e touros, entre outros saúdam a chegada ao
mundo de Lygia Maria, filha do escritor Franklin de Oliveira.
Na Bíblia, entre outras passagens, o boi tem a força louvada em Salmos (144) e a beleza
exaltada em Jeremias (capítulo 26), alusão aos chifres e cascos se faz em Salmos (69), além
disso, deveria descansar no sábado como todo judeu, como mostra Êxodo (capítulo 23). Surge
ao lado do burro no episódio mais importante da cristandade: o nascimento do menino Jesus,
cena poetizada por Rosa em O burro e o boi no presépio tendo-os como atores principais.
A indiscutível relação de Guimarães Rosa com o meio ambiente pode ser percebida,
portanto, em seus discursos pessoal e literário. Reportando–se à entrevista a Lorenz
revela:“As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de
vacas e cavalos”. Nosso trabalho detém-se nas figuras de dois animais tão bem tratados pelo
escritor: o burro e o boi, protagonistas de O burrinho pedrês e Conversa de bois,
108
respectivamente, cuja caracterização obedece ao primado da intuição. De sorte que o escritor
transporta-se para os animais buscando interpretar e exprimir a vida interior deles, conforme
Lins. Seu apreço especial pelos bois imortalizou-se em sua literatura. Em Campo geral, por
exemplo, lê-se:
enquanto Miguilim aboiava, o vaqueiro Saluz despendurou o berrante de
tiracolo, e tocou. A de ver: - “Eh co!...” “Huuu...huuu...” e a boiada mexe
nos capões de mato.
Rebentava aquele barulho vivo de rumor, um estremecimento ranzia,
zunindo brrrr, brrrr depois um chuá enorme, parecia golpes de bichos
dentro d’água. o gado vinha, de perto e de longe, vinham todos os mansos,
bois, vacas, garrotes, correndo, os bezerrinhos correndo alegres espinoteando,
saíam raspando moitas, quebrando galhos, vinham; e uns berravam. Bruto que
os bravos fugiam, a essa hora, numas distâncias. Quantidade! Mas o vaqueiro
Salúz ainda achava pouco: - “Um vê, Miguilim, é boiadão grande: o chão
treme! Mas isto aqui é uma boiada alheia...” Perto deles, um bezerrinho preto
abria os beiços, quase ria banguelo; esse levantava o rabinho e com ele, por
cima, dava uma laçada. Mais perto, pertinho, um novilho branco comia as
folhas do cabo-verde-do-campo – aquela moita enorme, coberta de flores
amarelas. E o sol batia nas flores e no garrote, que estava outro amarelo de
alumiado. “Miguilim, isto é o Gerais! Não é bom?” Mas o mais bonito
que tem mesmo no mundo é o boi; é não Salúz?” “- É sim, Miguilim.”
(CG:137-8)
A pergunta-afirmação de Miguilim apregoa o “luxo” da terra dos Gerais, a exposição
do aparecimento da boiada após ouvir o toque do berrante oferece genuíno espetáculo aos
sentidos o som do aboio, a resposta bovina, a descrição dos gestos e das cores do gado, os
efeitos provocados na pelagem pela luz solar. Em Campo geral e Sagarana os animais e as
crianças destacam-se.
Dessa forma, o exame de O burrinho pedrês e Conversa de bois aponta para a
existência de certas semelhanças na composição do binário acima
37
. Dentre elas, além da
firme presença dos animais a de crianças desvalidas. Juntos imbricam-se de tal forma que por
instantes corpos e/ou mentes unem-se e tornam possível o inacreditável. Estórias permeadas
pela concepção de integração do homem na natureza, caracterizada pela comunhão dos seres.
Desse modo, ocorre o enlace entre meninos e bois, percebidos com profundo lirismo e
revestidos de encanto e sobrenaturalidade.
As novelas nos revelam a extensão transcendental que a infância alcança na ficção de
Guimarães Rosa, estágio mais próximo da perfeição. Por isso, Pretinho comunica-se com os
bois através do canto e Tiãozinho através do pensamento; os sentimentos desses infantes
prolongam-se nos bois. O desfecho resulta na inevitável confluência entre seres humanos e
37
Pretendemos no futuro mapear a figura do boi e do burro em toda a obra rosiana, assim como aprofundar a
relação crianças-animais. Importa-nos, portanto, examinar com maior proficiência as categorias infância e
natureza.
109
bovinos, pois os dois meninos abrem-se a novas perspectivas e habilitam-se a sentir a atuação
das forças do universo em suas vidas.
Guimarães Rosa, o homem do sertão, soube resguardar em si o menino Joãozito,
verdadeiro admirador da natureza e dos animais. Fato esse previsto, uma vez que Rosa,
conforme o sobrenome informa, prende-se à terra assim como as plantas. Os personagens
rosianos, prolongamentos do autor,
38
ao ligarem-se ao meio ambiente, estão, na verdade
religando-se ao todo. Nesse contexto, Pretinho e Tiãozinho suplantam as adversidades em
suas jornadas, infantus viatores, vencem os males medo, solidão, separação familiar,
desterro, opressão, violência, morte - conversando
39
com seus boizinhos bons, juntos formam
um ser centaurizado: “... Sou mais forte do que todos... Não bois, não homens... Somos
fortes... Sou muito forte”.
38
Rónai (CG: 18) observa: “O autor e as personagens nunca são completamente distintos.”
39
Conversar com os animais também era uma atividade de São Francisco de Assis. Jacques Lê Goff (1995: 201)
narra que o santo, certa vez, chegou a um povoado para pregar a palavra de Deus, subiu num local mais alto para
que pudesse ser visto por todo o povo e iniciou pedindo silêncio. Quando todos se calaram, um bando de, de
andorinhas, que tinha ninhos naquele lugar, começou a fazer uma verdadeira algazarra com grande estardalhaço.
Deste modo, não conseguindo falar aos homens, São Francisco falou aos passarinhos: “Minhas irmãs andorinhas,
chegou o momento de eu também lhes falar, pois até aqui vocês já falaram bastante. Ouçam a palavra de Deus e
fiquem todas quietinhas até o fim do sermão do Senhor”. Para grande espanto e admiração as andorinhas se
calaram e sequer saíram de seus lugares, até que a pregação tivesse terminado.
110
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WILSON, Edward Osborne. Biophilia. Cambridge: Harvard University Press, 1984.
114
ANEXOS
O Cântico das Criaturas (Cântico do Irmão Sol)
Por: São Francisco de Assis
Altíssimo, onipotente, bom Senhor
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a benção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar
Louvado sejas, meu Senhor
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste as claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é muito útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
115
Pelo qual iluminas a noite,
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz,
Que por Ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.
116
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA
KELLY CRISTINA MEDEIROS FERREIRA
A SAGA DO BURRO E DO BOI: UM ESTUDO DE
O BURRINHO PEDRÊS E CONVERSA DE BOIS,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
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