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FÁBIO BALLMANN
A NONA ARTE:
HISTÓRIA, ESTÉTICA E LINGUAGEM DE QUADRINHOS
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de
Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Ciências da Linguagem.
Orientador: Prof. Dr. Jussara Bittencourt de Sá.
Tubarão
2009
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FÁBIO BALLMANN
A NONA ARTE:
HISTÓRIA, ESTÉTICA E LINGUAGEM DE QUADRINHOS
Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do
título de Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada
em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências
da Linguagem da Universidade do Sul de Santa
Catarina.
Tubarão, 09 de dezembro de 2009.
______________________________________________________
Professora e orientadora Jussara Bittencourt de Sá, Dra.
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Prof. Maicon Tenfen, Dr.
Universidade de Blumenau
______________________________________________________
Prof. Mariléia Silva dos Reis, Dra.
Universidade do Sul de Santa Catarina
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Dedico esta obra aos meus pais, que
inculcaram em mim a paixão por estudar e a
minha noiva Milane, que inculcou em mim
uma paixão maior ainda por ela mesma.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ter-me preservado até este momento e, em meio a tantos
percalços, finalmente ter chegado aqui.
Aos meus familiares, todos eles, que estiveram comigo durante este trabalho. Sem
seu apoio teria sido tudo mais difícil. Lembrança especial a minha noiva Milane, pela
compreensão e parceria. Boa parte das imagens foi coletada por ela. Quem sabe mais um
trabalho deste tema e seremos dois leitores de quadrinhos em nossa futura casa.
A todos os profissionais de quadrinhos, responsáveis pelas belíssimas histórias de
que podemos desfrutar e por manter viva essa forma de arte. Em especial Fábio Yabu, que
prestimosamente enviou exemplo de sua obra. Os Combo Rangers estão fazendo falta...
Ao meu amigo Samuel Shuna, grande desenhista, com quem em muito aprimorei
meu gosto e senso crítico para com a arte seqüencial.
Aos amigos Júlio Basch e Guilherme Roüsseng. Quando me mudei para São
Martinho, em 1986, meu pai dizia que eu era o único louco a gostar dessas “revistinhas”.
Estes dois fazem com que a assertiva não seja verdadeira. Que bom, pois é muito ruim ser
sozinho.
“Ao invés de compararmos sempre os Quadrinhos ao Cinema ou à Literatura, com
o intuito de que a respeitabilidade destes conceda àqueles mais legitimidade, não seria muito
mais produtivo concentrar a nossa atenção justamente nos aspectos e nas técnicas em que os
Quadrinhos são únicos e especiais? Em vez de insistirmos nas técnicas cinematográficas que
os Quadrinhos podem duplicar, não seria mais profíquo considerarmos mais as técnicas destes
que o cinema não pode imitar?” (Alan Moore).
RESUMO
O presente estudo procura fomentar a discussão sobre a arte em quadrinhos, a partir um
estudo sobre a história, a estética e os aspectos constitutivos dessa mídia. Justifica-se que a
opção pelo tema deu-se por entenderas as histórias em quadrinhos como são manifestações
artísticas que, perpassando as mais diversas culturas, civilizações e tempos, revelam-se
também uma rica tradição. Enquanto arte, são passíveis de análise e considerações. O objetivo
que direcionou os estudos foi apresentar uma discussão sobre a linguagem e os elementos
constitutivos da manifestação artística história em quadrinhos, procurando a essência de sua
forma e no que ela difere das outras maneiras de se contar histórias, sejam elas a literatura, a
pintura, o cinema ou outras. Como objetivos específicos empreenderam reflexões sobre
conceitos de arte, estética, visando avaliar a produção artística investigada a partir dos
pressupostos teóricos. Procurou-se enunciar alguns aspectos da história da arte em
quadrinhos, bem como suas diferentes denominações e características de sua linguagem, com
intuito de contextualizar a identificar esta arte. Empreendeu-se a elaboração de análise, a
partir do que se denominou, “quadrinhística”, de um gênero de quadrinhos em especial, o
gênero de super-heróis, a saga intitulada de Guerra Civil (Civil War), articulando os
pressupostos desenvolvidos no corpus teórico, destacando a literariedade dos HQs, inclusive
os classificados como ‘comerciais’. A metodologia desenvolvida teve como aporte teórico os
pressupostos da pesquisa bibliográfica. Recorreu-se como fontes de referência livros, revistas
e artigos sobre o tema, além da própria obra, apresentada no formato próprio das histórias em
quadrinhos consagrado pelo mercado brasileiro. O desenvolvimento deste estudo destacou
que, apesar dos diversos mecanismos que promovem certa volatilidade, a criação e edição das
HQs conseguem, a partir de sua linguagem, representar obras, cujos enredos, personagens,
imagens promovem com repercussões e valores para além no nicho comercial e artístico onde
está inserida..
Palavras-chave: Quadrinhos, Arte, Estética, Análise, Linguagem.
ABSTRACT
This study seeks to foster discussion of art books, from a study of the history, aesthetics and
the constitutive aspects of this media. It is appropriate that the choice of topic was given to
understand comics as art forms that are running through the most diverse cultures,
civilizations and times, also reveal a rich tradition. As art, are subject to review and
considerations. The objective that guided the study was to present a discussion about language
and the elements of artistic expression in history books, looking for the essence of its form
and how it differs from other ways of telling stories, whether literature, painting , film and
other. The specific objectives undertaken reflections on concepts of art, aesthetics, to evaluate
the artistic production investigated from the theoretical assumptions. Tried to spell out some
of art history books, as well as their different names, and characteristics of their language,
aiming to identify contextualize this art. He embarked on the elaboration of analysis, from
what is called “comicness”, a genre of comics in particular, the genre of superheroes, the saga
titled Civil War, articulating the assumptions developed in theoretical corpus, highlighting the
literariness of comics, including those classified as “commercial”. The methodology was
developed as the theoretical assumptions of the literature. Resorted to as reference books,
magazines and articles on the subject, beyond the work itself, presented in proper format of
comic books set in the Brazilian market. The development of this study shows that despite the
various mechanisms that promote some volatility to create and edit the work, the comic can,
from their language, represent works whose plots, characters, images with effects and
promote values beyond the niche commercial and artistic where it is located.
.
Keywords: Comics, Art, Aesthetic, Analyze, Language.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Arte Rupestre. .........................................................................................................31
Figura 2 – Arte egípcia na Tumba de Menna. ..........................................................................32
Figura 3 – Manuscrito asteca....................................................................................................32
Figura 4 – Coluna de Trajano...................................................................................................33
Figura 5 – Tapeçaria de Bayeux...............................................................................................34
Figura 6 – A Harlot's Progress, de William Hogarth................................................................35
Figura 7 – Arte de Rudolphe Töpffer. ......................................................................................36
Figura 8 – Max und Moritz, de Wilhelm Busch.......................................................................36
Figura 9 – La Famille Fenouilliard, de Christophe. .................................................................37
Figura 10 – Arte de Ângelo Agostini. ......................................................................................37
Figura 11 - The Yellow Kid and his new phonograph, de Outcault.........................................39
Figura 12 - Ach, Those Katzenjammer Kids, de Dirks. ...........................................................40
Figura 13 - Happy Hooligan, de Opper. ...................................................................................40
Figura 14 – Little Nemo in Slumberland, de McCay. ..............................................................41
Figura 15 – Krazy Kat, de Herrimann. .....................................................................................42
Figura 16 – Bringing up Father, de McManus. ........................................................................42
Figura 17 – Captain Easy, de Crane. ........................................................................................45
Figura 18 - Buck Rogers,de Nowlan e Calkins. .......................................................................46
Figura 19 - Tarzan, de Foster....................................................................................................46
Figura 20 – Fantasma, de Lee Falk. .........................................................................................46
Figura 21 – Mandrake, de Ray Moore.....................................................................................46
Figura 22 - Dick Tracy. ............................................................................................................47
Figura 23 - Prince Valiant, de Hal Foster.................................................................................47
Figura 24 - Tintin, de Hergé. ....................................................................................................48
Figura 25 - Peanuts, de Schulz. ................................................................................................48
Figura 26 – The Spirit, de Eisner..............................................................................................49
Figura 27 – Tales from the Crypt, da E.C. Comics. .................................................................50
Figura 28 - Zap Comics, de Crumb. .........................................................................................51
Figura 29 – Maus, de Spiegelman. ...........................................................................................52
Figura 30 - Arte de Carlos Zéfiro. ............................................................................................53
Figura 31 - Gullivera, de Manara. ............................................................................................53
Figura 32 - Valentina, de Crepax. ............................................................................................53
Figura 33 - Lost Girls, de Alan Moore e Melinda Gebbie. ......................................................53
Figura 34 - Asterix, de Uderzo e Goscinny..............................................................................54
Figura 35 - Corto Maltese, de Hugo Pratt. ...............................................................................54
Figura 36 - Mafalda, de Quino. ................................................................................................54
Figura 37 - Tex, dos Estúdios Bonelli. .....................................................................................55
Figura 38 - Astro Boy, de Osamu Tezuka................................................................................55
Figura 39 - Dragon Ball Z, de Akira Toriyama........................................................................56
Figura 40 - Cavaleiros do Zodíaco, de Masami Kurumada......................................................56
Figura 41 - A Turma da Mônica, de Maurício de Souza..........................................................57
Figura 42 - Menino Maluquinho & Turma do Pererê, de Ziraldo............................................57
Figura 43 - Wood e Stock, de Angeli. ......................................................................................57
Figura 44 - O Condomínio, de Laerte. .....................................................................................57
Figura 45 - 10 Pãezinhos, de Moon e Bá..................................................................................58
Figura 46 - Holy Avenger, de Cassaro e Awano......................................................................58
Figura 47 - Combo Rangers, de Yabu. .....................................................................................59
Figura 48 - Cosplays.................................................................................................................61
Figura 49 - Action Comics #01 ................................................................................................66
Figura 50 - Detective Comics #27............................................................................................67
Figura 51 - Captain America #01 .............................................................................................68
Figura 52 - Seduction of the Innocent, de Whertam ................................................................69
Figura 53 - Selo de aprovação do Comic Code........................................................................70
Figura 54 – Showcase #04, a primeira aparição do Flash da Era de Prata...............................71
Figura 55 - Fantastic Four #01, o início da moderna Marvel Comics......................................73
Figura 56 - Amazing Fantasy #15, a primeira aparição do Homem-Aranha. ..........................74
Figura 57 - Green Lantern and Green Arrow #85, onde se descobre o vício de Ricardito em
drogas. ......................................................................................................................................75
Figura 58 - Spider-Man #121, com a história “A noitem em que Gwen Stacy morreu”. ........76
Figura 59 - Luke Cage, Hero for Hire #01. ..............................................................................77
Figura 60 - Giant Size X-Men #01, com a nova formação dos X-Men. ..................................78
Figura 61 - Superman vs Spider-Man, o primeiro encontro entre Marvel e DC......................79
Figura 62 - Batman: The Dark Knight Returns. .......................................................................81
Figura 63 – Watchmen. ............................................................................................................82
Figura 64 - Capa do livro Image Comics: The road to independece, com personagens da
editora.......................................................................................................................................86
Figura 65 - Marvels #02. ..........................................................................................................87
Figura 66 - Kingdom Come #01...............................................................................................88
Figura 67 - Tom Strong #01, um resgate dos pulps. ................................................................89
Figura 68 - The League of Extraordinary Gentlemen, herois da ficção vitoriana....................89
Figura 69 - Planetary #01. ........................................................................................................90
Figura 70 - All Star Sperman #01.............................................................................................90
Figura 71 - Universo Milennium, da Marvel............................................................................91
Figura 72 - Filacteria. ...............................................................................................................94
Figura 73 - Balão-fala...............................................................................................................95
Figura 74 - Balão-pensamento..................................................................................................96
Figura 75 - Balão-telepático. ....................................................................................................96
Figura 76 - Balão-sussurro. ......................................................................................................96
Figura 77 - Balão-grito com letras em destaque.......................................................................97
Figura 78 - Balão-grito com contorno. .....................................................................................97
Figura 79 - Balão-trêmulo. .......................................................................................................97
Figura 80 - Balão-eletrônico indicando voz oriunda da televisão............................................98
Figura 81 - Balão-eletrônico da voz mecanizada pela armadura do Homem de Ferro. ...........98
Figura 82 - Balão-uníssono. .....................................................................................................98
Figura 83 - Balões-intercalados................................................................................................99
Figura 84 - Balão-mudo............................................................................................................99
Figura 85 - Balão-múltiplo. ....................................................................................................100
Figura 86 - A reunião dos Perpétuos: cada um com balão ou letreiramento singular............100
Figura 87 - Balões sem imagens em aventura da Tropa Alfa.................................................101
Figura 88 - Rabicho indicando local, sem personagem aparente. ..........................................102
Figura 89 - Balão com apêndice cortado................................................................................102
Figura 90 - Cena final de Crise de Identidade........................................................................103
Figura 91 - Letreiro de narrador onisciente............................................................................103
Figura 92 - Legenda com monólogo interior..........................................................................104
Figura 93 - Legenda como solilóquio. Ela se liga ao personagem pela cor, a mesma de seu
uniforme. ................................................................................................................................104
Figura 94 - Recordatório geográfico. .....................................................................................105
Figura 95 - Recordatório imitando página de diário...............................................................105
Figura 96 - Combinação específica da palavra.......................................................................106
Figura 97 - Combinação específica da imagem......................................................................106
Figura 98 - Combinação específica da dupla..........................................................................106
Figura 99 - Combinação interseccional..................................................................................107
Figura 100 - Combinação interdependente.............................................................................107
Figura 101 - Combinação paralela..........................................................................................108
Figura 102 - Combinação estilo montagem............................................................................108
Figura 103 - Uso de negritos enfatizando as ironias entre personagens.................................109
Figura 104 - Letreiramento da personagem Thor...................................................................109
Figura 105 - Onomatopéia em destaque.................................................................................110
Figura 106 - Múltiplas onomatopéias.....................................................................................110
Figura 107 - Onomatopéia como linha cinética......................................................................111
Figura 108 - Snap! A morte de Gwen Stacy...........................................................................112
Figura 109 - Estrelas e traços ausentes do rosto indicando emoção.......................................113
Figura 110 - Sentido de aranha...............................................................................................114
Figura 111 - Linhas cinéticas..................................................................................................114
Figura 112 - Linhas cinéticas das garras. ...............................................................................115
Figura 113 - Movimento com imagens intercaladas. .............................................................115
Figura 114 – Personagem tremido e fundo fixo. ....................................................................116
Figura 115 - Personagem fixo com fundo tremido em obra oriental......................................116
Figura 116 - Personagem fixo com fundo tremido em obra ocidental. ..................................116
Figura 117 - Transição momento-a-momento........................................................................118
Figura 118 - Transição ação-pra-ação. ...................................................................................118
Figura 119 – Transição tema-pra-tema...................................................................................118
Figura 120 - Transição cena-a-cena........................................................................................119
Figura 121 - Transição aspecto-pra-aspecto...........................................................................119
Figura 122 - Requadros redondos...........................................................................................121
Figura 123 - Requadro zero....................................................................................................121
Figura 124 - Diagramação de Promethea. À direita, o cômodo em que a personagem entre é
outra vinheta. ..........................................................................................................................122
Figura 125 - Soterrados. As falas têm posição invertida para espelhar a confusão espacial das
personagens. ...........................................................................................................................122
Figura 126 - Upside Downs. De cabeça para baixo, outra história. .......................................123
Figura 127 - Rompimento de quarta parede. ..........................................................................123
Figura 128 - Panorâmica.........................................................................................................124
Figura 129 - Plano total. .........................................................................................................124
Figura 130 - Plano médio. ......................................................................................................125
Figura 131 - Plano americano.................................................................................................125
Figura 132 - Primeiro plano. ..................................................................................................126
Figura 133 - Primeiríssimo plano. ..........................................................................................126
Figura 134 - Plano de visão médio. ........................................................................................127
Figura 135 - Visão de olho de pássaro. ..................................................................................127
Figura 136 - Visão de olho de minhoca..................................................................................127
Figura 137 - Página 10, diametralmente oposta à página 23..................................................132
Figura 138 - Página 23, mantendo mesma diagramação, tema e cenário da página 10. ........132
Figura 139 – Transição de idade e época, remetendo à década de 40....................................133
Figura 140 - Transição de idade e época, remetendo às décadas de 70-80. ...........................134
Figura 141 - Reality show dos Novos Guerreiros. .................................................................146
Figura 142 - Explosão de Stamford........................................................................................146
Figura 143 - O Homem-Aranha tira a máscara. .....................................................................148
Figura 144 - Visita ao Pantera Negra. ....................................................................................148
Figura 145 - Visita ao Dr. Estranho........................................................................................149
Figura 146 - Visita aos X-Men...............................................................................................149
Figura 147 - A morte do Golias..............................................................................................150
Figura 148 - Os vilanescos Thunderbolts...............................................................................150
Figura 149 - O Justiceiro salva o Homem-Aranha.................................................................151
Figura 150 - A grande batalha. ...............................................................................................152
Figura 151 - A rendição do Capitão América.........................................................................153
Figura 152 - Homem de Ferro, líder das forças pró-registro..................................................158
Figura 153 - Capitão América, líder da facção anti-registro. .................................................159
Figura 154 - Transição de ação-pra-ação. ..............................................................................164
Figura 155 – Transição cena-pra-cena. O uso do recordatório ajuda a situar a transição......164
Figura 156 - Carta para Reed Richards. .................................................................................164
Figura 157 - Carta para Sue Richards.....................................................................................165
Figura 158 - Recordatório.......................................................................................................165
Figura 159 - Onopatopéia.......................................................................................................166
Figura 160 - Combinação específica de imagem....................................................................166
Figura 161 - Combinação interdependente.............................................................................166
Figura 162 - Uma das raras linhas cinéticas...........................................................................167
Figura 163 - Fundo tremido emulando movimento................................................................167
Figura 164 - Splash page. .......................................................................................................168
Figura 165 - Plano de visão médio. ........................................................................................168
Figura 166 - Miriam Sharpe. ..................................................................................................169
Figura 167 - O diálogo final. ..................................................................................................170
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Possíveis origens de onomatopéias. ......................................................................111
Tabela 2 - Lista de aliterações. ...............................................................................................128
Tabela 3 – Aliterações com o nome no original.....................................................................129
Tabela 4 - Lista de personagens. ............................................................................................142
SUMÁRIO
1
INTRODUÇAO..............................................................................................................................14
2
A ARTE ..........................................................................................................................................17
2.1
O QUE É ARTE
................................................................................................................................17
2.2
ARTE E ARTESANATO
....................................................................................................................19
2.3
AS SETE
(
OU NOVE
)
ARTES
............................................................................................................23
3
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ...............................................................................................24
3.1
PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO
...........................................................................................................24
3.2
A TEORIA DOS
IDOLA
” .................................................................................................................27
3.3
PROTO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS
..............................................................................................30
3.4
O MARCO ZERO E ALÉM
.................................................................................................................38
3.5
LIBERTAÇÃO DO JORNAL E TENDÊNCIAS
.......................................................................................43
3.6
DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE
...........................................................................................52
4
CUECAS SOBRE AS CALÇAS: OS SUPER-HEROIS ............................................................60
4.1
CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO
...............................................................................................60
4.2
AS ERAS
.........................................................................................................................................64
4.2.1
A Era de Ouro..........................................................................................................................65
4.2.2
A Era de Prata..........................................................................................................................70
4.2.3
A Era de Bronze.......................................................................................................................75
4.2.4
Uma Era Moderna?.................................................................................................................79
4.2.5
Pós-modernidade .....................................................................................................................86
5
A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS ......................................................................................92
5.1
QUADRINHOS E SINESTESIA
...........................................................................................................92
5.1.1
A fala e o pensamento..............................................................................................................93
5.1.2
Onomatopéias.........................................................................................................................109
5.1.3
A emoção.................................................................................................................................113
5.1.4
O movimento ..........................................................................................................................114
5.2
A SEQUÊNCIA
...............................................................................................................................117
5.3
DIAGRAMAÇÃO
............................................................................................................................120
5.4
ENQUADRAMENTO E ÂNGULOS DE VISÃO
...................................................................................123
5.5
ALITERAÇÕES
..............................................................................................................................128
5.6
MUNDO DE POSSIBILIDADES
........................................................................................................130
5.6.1
Efeito “Temível Simetria”.....................................................................................................130
5.6.2
Efeito “Condenado pelo passado”........................................................................................132
6
METODOLOGIA........................................................................................................................135
7
GUERRA CIVIL..........................................................................................................................138
7.1
UM EVENTO MARVEL COMICS
.....................................................................................................139
7.2
O ENREDO
....................................................................................................................................141
7.3
ANÁLISE DA OBRA
.......................................................................................................................153
8
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................171
REFERÊNCIAS.................................................................................................................................173
14
1 INTRODUÇAO
Quadrinhos são uma forma de arte. O presente trabalho começou com essa
simples constatação. O pesquisador coleciona quadrinhos desde sua alfabetização, e sempre
foi de seu interesse levar o tema para as lides acadêmicas. Existia, inclusive, a preocupação
em fazer mostrar que os quadrinhos são realmente uma forma de arte. Não foi sem um certo
desapontamento que se descobriu, no diálogo com os professores, que esse tipo de bandeira
estava superada. Mesmo assim, ainda haviam motivos de sobra para se estudar quadrinhos. Se
eles são arte, resta dizer o que são, como surgiram e quais seus mecanismos de
funcionamento.
O objetivo que direciona os estudos da dissertação será discorrer sobre os
elementos constitutivos da manifestação artística chamada história em quadrinhos,
procurando a essência de sua forma e no que ela difere das outras maneiras de se contar
histórias, sejam elas a literatura, a pintura, o cinema e outras. Busca-se, assim, refletir sobre a
estética, ou sua possibilidade, nos quadrinhos. Procura-se também, como objetivos
específicos, discutir, à luz da reflexão acadêmica, sobre esse meio de expressão artística,
deveras subestimado pela própria academia. Mesmo um discurso superado sobre o que é ou
não é arte ainda encontra força quando em face a preconceitos e suposições. Não foram
poucas as vezes que expectadores externos acharam intrigante ou irrelevante tornar acadêmica
uma discussão sobre “revistinhas”. Preconceito há, sem dúvida.
É mister ressaltar que, inserido em seu tempo, este estudo compreende a
linguagem pós-moderna, e consequentemente a arte, como frutos do encontro entre o gênio
criativo humano e a miríade de ferramentas oriundas de seu engenho. Procurar-se-á, inclusive,
dirimir equívocos comuns quanto ao valor da arte frente à sua reprodutibilidade. As reflexões
apresentadas partirão de pesquisa qualitativa, acentuadamente bibliográfica, que fornece
aporte para a elaboração da fundamentação teórica.
A escolha de uma obra em especial foi necessária na tentativa de se cumprir o
proposto. Lançar mão de ferramentas de análise pareceria estéril se o pesquisador mesmo não
seguisse sua cartilha e fizesse, ainda que a título de exemplo, o trabalho que propõe. A obra
escolhida foi Guerra Civil, de Millar e McNiven. A escolha obedeceu alguns critérios. O
primeiro critério, por tratar-se de uma obra que a crítica especializada rotula como comercial,
mesmo salientando sua qualidade, foi o de encontrar o extraordinário no comum. O segundo
critério de escolha foi o da inserção da trama no ambiente geral do universo criativo do
15
gênero que se apresentará, ficção de super-heróis, o que demandou pesquisas e reflexões
também sobre este tema afim. O último critério foi a atualidade do tema proposto, com seus
aspectos sócio-políticos e suas metáforas com a condição americana e mundial depois do
choque das atrocidades de 11 de setembro de 2001.
O percurso da dissertação, entretanto, faz uma grande digressão até chegar ao
ponto onde se depara com um obra em específico. Primeiramente, considerou-se apropriado
conceituar a arte. Para esse fim recorreu-se a diversas e interessantes teorias estéticas,
traçando um perfil mais histórico do que seja a idéia de arte em si mesma. Obrigatoriamente
se falou das diferenças superadas entre arte e artesanato, bem como uma possível
catalogação das artes no manifesto de Canudo (1911), donde deriva o termo Nona Arte, título
do trabalho.
Ao deparar-se com as histórias em quadrinhos em si, o pesquisador julgou
necessário levantar as possíveis definições, delimitando o assunto a ser estudado e
contrastando-o com diversas maneiras que teóricos dos quadrinhos tem de se referir ao tema.
Isso ensejou também uma pesquisa histórica, onde se pretende mostrar que esta forma de arte
é tão ou mais antiga que a escrita, está presente nas mais diversas culturas e civilizações e
possui muitas e inovadoras formas de expressão.
Por formas de expressão pode-se entender os aspectos e características que
compõem este todo. Assumindo um aspecto desconstrutivista, os quadrinhos são analisados
em seus contextos de menor extensão e maior compreensão. Por isso se catalogam e
pormenorizam expedientes como requadros, balões, letras, sarjetas e ângulos, na expectativa
de fomentar um novo olhar dos leitores para essa mídia. Tratam-se de aspectos que muitas
vezes passam despercebidos dos leitores mas que, a exemplo do cinema, funcionam como as
mais inovadoras técnicas de filmagem e interpretação, mas ficam subjacentes ao produto
acabado.
O capítulo da análise contemplou a obra escolhida. Esta análise está configurada
como uma tentativa de aplicar os conceitos engendrados no que seria uma, por falta de termo
melhor, “análise quadrinhística”. Trata-se de uma hibridização da análise literária com a
análise das características dos quadrinhos. Uma vez que a arte é um todo formado por texto,
imagem e a combinação de ambos, não seria justo calcar uma proposta de análise de
quadrinhos baseada apenas um viés.
Trabalhar com quadrinhos envolve, além da curiosidade típica do estudioso, uma
enorme paixão pelo meio. As reflexões advindas dos estudos durante a Graduação em Letras e
Filosofia, e mesmo no Mestrado em Ciências da Linguagem, resultaram na abertura de
16
horizontes até então desconhecidos para a aplicação dos quadrinhos nas mais diversas
situações e temas. A isso pode ser somada a perplexidade em notar que, salvo algumas
exceções, tanto o grande público quanto o ambiente acadêmico menospreza a mídia em
questão, enquanto valoriza outras, seja pela historicidade das mesmas, seja pelo grande apelo
mercadológico que exercem nos atuais meios de comunicação. Cada vez mais, decresce o
número de leitores e aficcionados em histórias em quadrinhos, em grande parte porque suas
capacidades ficam desconhecidas e escamoteadas. Como afirma Scott McCloud (2006), a
opinião pública é importante. Tão importante que motivou todas as linhas que agora seguem.
17
2 A ARTE
A presente pesquisa se inicia situando o que seja arte em um contexto filosófico.
Para tanto, se vale da perspectiva da história da filosofia em geral e da estética em particular,
auferindo teorias de alguns proeminentes pensadores.
Além disso, objetiva citar uma possível classificação das diversas artes, para
poder inserir os quadrinhos em seu possível lugar.
2.1 O QUE É ARTE
É comum ao pensamento ocidental usar o termo “arte” em diversas acepções.
Assim, não só existe o universo das belas-artes como também é possível encontrar a arte de
fazer amigos”, a “arte de pensar” ou a “arte de apresentar um projeto de mestrado”. Todos
esses usos, porém, possuem seu campo semântico aproximado. Arte origina-se do vocábulo
grego techné, que foi traduzido para o latim como ars, gerando a palavra arte em português e
vocábulos aproximados nas línguas neolatinas e outras, influenciadas também pelo latim.
Ferrater Mora (2001, p. 46) lembra que as diferentes acepções da palavra têm uma razão de
ser. Na verdade, a eles interliga-se uma “ideia de fazer, em especial de produzir algo de
acordo com certos métodos e modelos”.
Por conta dessa interpretação, Platão achou por bem considerar a política como a
arte de bem ordenar a sociedade ou a filosofia como a arte de orientar a razão. Falando em
sentido estrito, diz Mondin (2003, p. 139) que a teoria da arte platônica funciona como uma
contraprova de sua teoria das ideias. Dessa forma, a arte passa a ser a imitação da natureza, ao
passo que a natureza é a imitação das ideias, eternas, imutáveis e perfeitas.
Essa concepção mimética da arte perpassará grande parte da história da filosofia.
Aristóteles, ainda que discordando da teoria das ideias, encara a arte como imitação da
natureza. Esta imitação, porém, não se reduz a simples reprodução, mas antes emulação, uma
tentativa de se recriar, representar por meios técnicos o que a mestra natureza criou de si
sozinha.
18
O encontro da filosofia grega com o pensamento cristão produziria mais uma
modificação nessa linha de pensamento. Entretanto, apropriando-se do pensamento
peripatético
1
, é mudado o objeto a ser imitado. Não é mais a natureza a ser copiada, mas sim
Deus, o criador da natureza.
Trata-se de uma modificação profunda, que não se refere somente a maior nobreza
da realidade imitada, mas também à própria natureza da imitação, pois esta se torna
imitação da atividade criadora de Deus, uma atividade que os gregos nunca
chegaram a conhecer. [...] O Deus cristão é o gênio da nova estética. (MONDIN,
2003, p. 140).
O fim da escolástica é marcado pelo Renascimento, que foi considerada por
teóricos como Voltaire e Montesquieu a época áurea das artes, em especial a pintura e a
escultura. O Renascimento buscava justamente um retorno a alguns conceitos platônicos,
inclusive por seu caráter antagônico à escolástica, marcadamente aristotélica.
O filósofo Giambattista Vico operou uma verdadeira revolução na maneira de
entender a arte. Segundo esse filósofo, a arte não é uma forma mimética de expressão, mas
sim uma maneira original e fundamental de expressão da humanidade numa determinada fase
de seu desenvolvimento. Vico lançou as bases para o que hoje se define (e teoriza) como
conhecimento artístico. Seu pensamento foi retomado e ampliado por toda a corrente idealista
e romântica, em especial Hegel e Schelling.
Outro filósofo que teorizou sobre a arte foi Kant, especialmente em sua Crítica do
juízo. Kant elabora a teoria do juízo do gosto, uma faculdade da razão que se satisfaz com o
que se chamará de prazer estético.
Até então, todas as abordagens do problema artístico tiveram um viés espiritual,
essencial. Não obstante, as linhas de pensamento mais positivistas vão encarar o problema de
outra maneira. Acena-se especialmente para o marxismo, que na arte apenas uma das
manifestações da superestrutura determinada pelos meios de produção; e a psicanálise, com
Freud, afirmando que a arte nada mais é que um impulso de sublimação do instinto sexual.
É importante notar que as correntes mais recentes da filosofia, em particular os
filósofos da linguagem e os neopositivistas, não se debruçam sobre o problema da arte em si,
mas procuram estabelecer a validade (e a possibilidade) tanto da linguagem estética quanto
dos seus critérios de validação.
1
Conforme Mondin (2003), peripatético é um dos adjetivos do pensamento de Aristóteles. Reza a tradição que o
mestre gostava de ensinar caminhando pelos jardins de seu Liceu. Peripathos pode ser traduzido como
“ensinar caminhando”.
19
Feito esse panorama filosófico sobre a arte, acena-se mais uma vez para Mondin,
que afirma:
A obra de arte não é uma simples imitação das ideias arquetípicas ou dos fatos
naturais. Para ser caracterizada como esteticamente bela, uma obra de arte deve ser
algo além e diferente daquilo que existe no mundo da natureza ou da cultura. Para
haver obra de arte é necessário originalidade, criatividade. A obra de arte é num
certo sentido (não propriamente em sentido literal) uma criação, mais exatamente
uma transformação radical dos elementos que o artista tem a sua disposição: os
elementos a ele fornecidos pela técnica, pela observação, pela inspiração. O que
resulta qualifica-se como belo se apresentar traços de absoluta novidade. (MONDIN,
2003, p. 143)
2.2 ARTE E ARTESANATO
A diferenciação conceitual entre arte e artesanato também remonta aos inícios da
reflexão estética. Como se disse anteriormente, Platão concebeu que por arte se designava um
amplo aspecto de métodos e procedimentos de levar uma obra a um bom fim, seja essa uma
empreitada intelectual, como o matemático envolvido num problema de cálculo, seja uma
empreitada mecânica, como o construtor e a edificação de uma casa. Platão distinguiria entre
dois tipos de arte: as judicativas, dedicadas exclusivamente ao conhecimento; e as
dispositivas, que orientam o intelecto para uma atividade.
Orienta Chauí (2001, p. 317) que as distinções estabelecidas por Aristóteles,
porém, foram as que moldaram e perduraram, por muito tempo, a ideia de arte no Ocidente.
Segundo a autora, a primeira das distinções é entre filosofia (entendida também como ciência)
e técnica (arte incluída nessa última). A primeira é o conhecimento do que é necessário,
enquanto o mundo da técnica ocupa-se do que é contingente. A filosofia seo conhecimento
das substâncias, ao passo que as artes e técnicas ocupar-se-ão do entendimento e manipulação
dos acidentes. Estabeleceu-se, então, uma hierarquização do saber. Continuando, houve ainda
uma segunda distinção no seio mesmo das técnicas: aquelas que se ocupam da ação, como a
política e a ética, e as que se ocupavam da fabricação, os diferentes ofícios.
Plotino, inserido no ambiente maior e mais cosmopolita do Império Romano,
separaria a teoria e a prática entre as técnicas que auxiliam a natureza, como agricultura e
20
medicina; as que fabricam a partir da natureza, como o artesanato; e as relacionadas apenas ao
próprio homem, como a música e a retórica.
Para entender o âmbito das diferenças entre arte e artesanato, é necessário lembrar
o paradigma da sociedade que fomentou estas distinções.
A classificação das cnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela sociedade
antiga e, portanto, pela estrutura social fundada na escravidão, isto é, uma sociedade
que despreza o trabalho manual. (CHAUI, 2001, p. 317).
Bosi (2004, p. 13) acrescenta que essa distinção, claramente econômico-social, era
a das chamadas artes liberales, exercidas pelos homens livres, e as artes serviles, exercidas
pelos servos e escravos. Estes seriam artífices (e posteriormente, artesãos), interessados no
aspecto pecuniários de suas obras, ao passo que aqueles, artistas, estariam livres de interesses
mundanos. Esta é a raiz da divisão moderna e distinção valorativa entre trabalho intelectual e
trabalho manual.
A ideologia medieval aproxima-se da ideologia do Império Romano. Os nobres
eram uma classe detentora de direitos e posses, mas não afeita ao trabalho manual, relegado
aos servos. Além disso, todo trabalho intelectual era creditado à razão e vontade, aspectos da
alma que, ao contrário do corpo, era livre. Cabia ao corpo mortal, cárcere da alma, o trabalho
servil.
As artes liberais eram a gramática, a retórica, a lógica, a aritmética, a geometria, a
astronomia e a música. Ferrater Mora (2001, p. 48) conta que “na Idade Média, usou-se o
termo ars na expressão ars liberales num sentido equivalente a saber”. Todas as demais
técnicas serão consideradas servis ou mecânicas, pois dirigem o trabalho do corpo, das mãos.
São elas a pintura, a escultura, a arquitetura e também a medicina, a olaria, a tecelagem e
todas as outras. Não por acaso que foi uma nova classe em ascensão que se preocuparia e
dignificaria as artes servis, justamente uma classe voltada ao trabalho e antagonista à ociosa
nobreza: a burguesia.
Mudadas as relações de poder e conhecimento, mudam também as valorações das
artes. A Renascença marca o início não apenas da dignificação do corpo como também a
dignificação do trabalho. Além disso, é a época onde afloram gênios nas artes mecânicas,
especialmente a pintura e a escultura, como Leonardo da Vinci, Donatello, Rafael,
Michelangelo e muitos outros. Além denios em seus afazeres artísticos, muitos deles
também foram teóricos de arte, combinando os conhecimentos adquiridos em seus estudos de
óptica, cromática e anatomia para a melhor resolução de suas obras.
21
A partir da Renascença, porém, trava-se uma luta pela valorização das artes
mecânicas, pois o humanismo renascentista dignifica o corpo humano e essa
dignidade se traduz na batalha pela dignidade das artes mecânicas para convertê-las
à condição de artes liberais. Além disso, à medida que o capitalismo se desenvolve,
o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das riquezas, sendo por isso
valorizado. A valorização do trabalho acarreta a das técnicas e artes mecânicas.
(CHAUI, 2001, p. 317-318).
Importa dizer que o processo de dignificação das artes mecânicas acarretará uma
nova distinção, agora entre as artes voltadas à utilidade e as que encontram sua finalidade no
belo. Esta distinção separa o universo da técnica e o universo da arte, o primeiro voltado à
fabricação ou instrumentalização do saber, sempre com fins de utilidade, e o último voltado a
um fim mais etéreo, subjetivo na busca de um conhecimento superior (como eram antes as
artes liberais).
O Romantismo, em especial, apropriou-se desta distinção entre técnico e artista,
“levando à imagem da arte como ação individual espontânea, vinda da sensibilidade e da
fantasia do artista como gênio criador”, (CHAUI, 2001, p. 318), ao passo que o universo da
utilidade cada vez mais foi confundido com a técnica e o método. No campo das artes entra o
componente da inspiração. Tanto é assim que as “artes utilitárias”, pouco a pouco, foram
transformando-se em conhecimento reprodutível, configurando-se em ciências e disciplinas,
ao passo que as belas-artes transformaram-se num campo próprio do saber (ainda que em sua
confecção entrem métodos e procedimentos técnicos): o conhecimento artístico. As belas-
artes são a pintura, a escultura, a arquitetura, a poesia, a música, o teatro e a dança.
Esta diferenciação entre arte e técnica culminou numa nova forma de depreciação,
a do artesanato. Este último é pertencente ao espectro das técnicas e, dentre todos, foi o que
mais carregou a pecha de trabalho servil. O caráter de material inspirado e original o se
conforma, em tese, com o processo de manufatura em escala, repetitivo e metódico de uma
linha de produção, seja o processo do oleiro ou o tecelão. Além disso, o produto artesanal
tem, antes do belo, o fim utilitário da parte de quem o adquire e um fim pecuniário da parte de
quem o manufaturou. Afinal, o fim primeiro do artesanato, para o artesão, é a venda.
Obviamente, tal característica diverge do ideal romântico da inspiração e da arte pela arte.
É o momento de explicitar que a reflexão moderna rejeita essa diferenciação,
embora, conforme Bosi (2004, p. 13), no jogo social o artista ainda receba um grau de
reconhecimento muito superior que o artífice. Concorrem para o pensamento moderno duas
concepções. A primeira é o caminho natural da técnica, que passa a receber estatuto de
conhecimento, transformando-se em tecnologia. Além disso, a tese romântica do gênio perdeu
22
força. A arte passa a ser concebida como expressão criadora, nas palavras de Chauí (2001, p.
318), “transfiguração do visível, do sonoro, do movimento, da linguagem, dos gestos em
obras artísticas”.
As artes são trabalho de expressão e forma de conhecimento. Em suma, são
notórias as estreitas relações da arte com as técnicas de que sempre estiveram munidas e da
ciência por detrás de todas as técnicas e obras de arte já criadas.
A arte é expressão do real, e essa expressão encontra uma infinidade de caminhos
para manifestar-se.
A arte não perde seu vínculo com a ideia de beleza, mas a subordina a um outro
valor, a verdade. A obra de arte busca caminhos de acesso ao real e de expressão da
verdade. Em outras palavras, as artes não pretendem imitar a realidade, nem
pretendem ser ilusões sobre a realidade, mas exprimir por meios artísticos a própria
realidade. O pintor deseja revelar o que é o mundo visível; o músico, o que é o
mundo sonoro; o dançarino, o que é o mundo do movimento; o escritor, o que é o
mundo da linguagem; o escultor, o que é o mundo da matéria e da forma. Para fazê-
lo, recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos (como, aliás, sempre fizeram,
apesar da imagem do gênio criador inspirado, que tira de dentro de si a obra).
(CHAUI, 2001, p. 318-319).
O artista moderno, por outro lado, não vê necessidade em esconder ou escamotear
esses vínculos. E o expectador moderno não encontra motivos para considerar mais ou menos
artístico uma pintura feita a pincel e tinta ou colorida computadorizadamente. Muito menos se
essa arte parte de um original que possa ser reproduzido e retransmitido. Nesse tocante, é
parecer de Benjamin:
Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam
sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por
discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente
por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica
da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história
intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas como
intensidade crescente. (1994, p. 166).
Cabe destacar que a arte vem mudando conceitos, quebrando paradigmas,
estabelecendo novas regras para novas formas de observar o mundo. Logo, pode-se perceber
no fenômeno artístico a verdadeira natureza da realidade; a arte é a condição de um princípio
ontológico do ser; é a chave de acesso à essência do mundo, ou seja, a arte pode ser o
caminho mais original e autêntico para a compreensão da realidade.
23
2.3 AS SETE (OU NOVE) ARTES
Partindo da tradição de categorizar e hierarquizar os diversos campos artísticos, o
teórico de cinema Riccioto Canudo propôs, em seu Manifesto das Sete Artes, de 1911, a
seguinte classificação:
1ª arte: a música;
2ª arte: a dança (ou coreografia);
3ª arte: a pintura;
4ª arte: a escultura;
5ª arte: o teatro;
6ª arte: a literatura;
7ª arte: o cinema.
Não existe necessariamente uma hierarquia nessa classificação, ao menos não nas
seis primeiras. O que segue é que a categorização de cada uma delas dá-se através de seu
elemento constitutivo. À musica cabe o som, à dança o movimento, à pintura a cor, à
escultura o volume (donde se seguiria também a arquitetura como a mesma arte), ao teatro a
representação, à literatura a palavra. Ao cinema, o autor do manifesto destaca sua capacidade
integradora de todos os elementos anteriores.
Ao estudo proposto, interessa que outras formas de expressão artística foram
acrescentadas posteriormente ao rol das artes. São elas:
8ª arte: a fotografia;
9ª arte: as histórias em quadrinhos;
10ª arte: o vídeo game.
O elemento constitutivo da fotografia seria a imagem, enquanto que o do deo
game seriam não apenas os gráficos computadorizados como também todo o processo de
programação para obtenção destes efeitos. Vale dizer que a adesão do vídeo game como arte,
individualizado de demais processos computacionais (como as realizações de um web
designer, por exemplo) ainda são discutíveis.
24
3 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Este capítulo procura aprofundar o conceito de histórias em quadrinhos,
trabalhando com seus diversos nomes e contextos de produção nas culturas, bem como
apontar definições de estudiosos ao tema.
Posto que são uma forma de arte, cabe analisar em que contextos se derem sua
produção, de modo que uma perspectiva histórica também se faz necessária.
3.1 PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO
Historicamente, a nomenclatura do que se chamará neste trabalho de história em
quadrinhos, ou simplesmente quadrinhos, ou ainda sua abreviação, HQs, são popularmente
conhecidas nas diferentes culturas mais em função de algum de seus aspectos, gêneros,
formatos ou caracteres do que de uma própria definição do termo. Nona Arte é uma possível
nomenclatura tendo-se em vista a classificação das artes proposta por Canudo. Esse, contudo,
apesar de seu caráter acadêmico (para não dizer pedante ou elitista), o é o termo mais
usado.
Nos países de língua inglesa, acentuadamente os Estados Unidos, Reino Unido e
Austrália, os quadrinhos são conhecidos por comics, em virtude das primeiras histórias
apresentadas neste formato terem sido cômicas ou satíricas.
A França as classifica por bandes-dessinées, em comum com os portugueses, que
traduzem para banda desenhada, obviamente por conta do formato. Mais uma vez, a origem
parece ser histórica, uma vez que tradicionalmente as HQs se popularizaram com as tiras
(bandas) de jornal.
Na Itália os quadrinhos são conhecidos por fumetti, que poderíamos traduzir por
“fumaças”, “fumacinhas”. Fazem alusão ao recurso para demonstrar a fala dos personagens,
que no Brasil se convencionou chamar de “balões de fala”.
25
Tebeo é o nome usado na Espanha. É derivado, por processo metonímico, de uma
importante revista infantil, onde houve larga publicação de HQs. O Brasil compartilha caso
idêntico, donde o vocábulo gibi, também nome de revista infantil. Além disso, é comum o
emprego do termo escolhido, história em quadrinhos.
O Japão se apresenta como um caso de mais especificidades. Vale ressaltar que,
na cultura nipônica, as HQs possuem um reconhecimento como bem cultural maior que suas
contrapartes ocidentais. Além disso, as HQs possuem um mercado totalmente diferente, o que
fomenta maior diversificação. O nome genérico é mangá, mas as nomenclaturas específicas
variam conforme variam seu público alvo. Os shonen são histórias voltadas a meninos
adolescentes, geralmente com temas de aventura, amizade e ação. Os shoujo são a contraparte
feminina, com acento na emoção, nos relacionamentos e na sensibilidade. Komodo são
histórias voltadas ao blico infantil, de todos os sexos. ainda uma corrente chamada
gekigá, com histórias adultas, sem os traços caricatos da iconografia japonesa. Gekigás podem
ser seinen, voltados para homens, ou josei, voltados para mulheres. Outro mercado bastante
grande é o dos hentai, quadrinhos com histórias eróticas ou pornográficas. Estes ainda
abrigam os mais específicos yuri, sobre homossexualidade feminina, e os yaoi, sobre
homossexualidade masculina.
Autores como Gubern (1979, p. 17), na contramão das rotulações, elencaram não
um termo específico, mas um conjunto de particularidades que, presentes, classificariam a
obra como história em quadrinho. São elas a narrativa seqüencial, a permanência de
protagonistas e a presença de balões. Esta última, porém, pode gerar discussão, uma vez que a
obrigatoriedade dos balões sugere a obrigatoriedade do texto escrito, e existam muitas
histórias em quadrinhos sem a ocorrência de palavra nenhuma.
Entre tantos nomes e posições díspares, alguns teóricos dos quadrinhos se
propuseram a criar uma nomenclatura mais abrangente e com caráter mais acadêmico. Will
Eisner (2001, p. 5) cunhará o termo Arte Seqüencial, exatamente para se distanciar de
definições menos abrangentes. O que Eisner procura enfatizar é o caráter seqüencial das
histórias em quadrinhos, donde se depreende que não apenas a imagem (parte do campo da
pintura), nem apenas a escrita (do campo da literatura), mas todo o conjunto que compõe o
requadro, e todos os requadros que compõem a obra, são o elemento a ser considerado. A arte
seqüencial é uma forma de comunicação. De acordo com Eisner:
Quando comecei a desvendar os componentes complexos, detendo-me em elementos
até então considerados instintivos e tentando explicar os parâmetros dessa forma
26
artística, descobri que estava envolvido mais com uma “arte de comunicação” do
que com uma simples aplicação da arte. (2001, p. 6)
Para Eisner, o lugar privilegiado das histórias em quadrinhos era a Graphic Novel,
uma sensível evolução da tira diária do jornal ou dos cadernos ilustrados dominicais. A
graphic novel era uma história sensivelmente mais longa e mais elaborada, com uma maior
preocupação tanto no desenvolvimento da trama quanto dos personagens, o que demandava
mais páginas e requadros. Era o lugar também para se experimentar novas aplicações de
técnicas e métodos, em muito limitados pelo esquema da tira.
Devedor de Eisner, uma das primeiras preocupações de Scott McCloud será
alargar a definição para “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada
destinada a transmitir informação e/ou produzir uma resposta no expectador” (MCCLOUD,
2005, p. 9 q. 5)
2
. O autor procura ser o mais específico possível na construção de seu termo
de definição. Assim, “imagens pictóricas e outras” referem-se tanto às letras quanto aos
desenhos, uma vez que quadrinhos não precisam dos primeiros para se realizar e, a rigor,
palavras escritas nada mais são que um conjunto de imagens pictóricas. Ademais, justaposto é
o que se encontra lado a lado, adjacente espacialmente. Esta diferenciação também é
importante, considerando que o desenho animado também é construído sob o artifício da
exposição em seqüência deliberada. Cabe dizer que aos quadrinhos, o espaço representa o
que, no desenho animado (e cinema, inclusive) é obtido pelo tempo. A experiência nos diz
que uma fita de cinema, se desenrolada, transformar-se-ia numa HQ muito longa.
A preocupação maior de McCloud é afastar os quadrinhos de uma generalização
por seu público, seu material ou seus autores, aspectos presentes na mídia, mas não
determinantes de sua execução.
O segredo não está no que a definição diz, mas no que ela não diz. Nenhum gênero é
listado em nossa definição, nenhum tipo de assunto, nenhum estilo de prosa ou
poesia. Nenhum material é excluído por nossa definição, nenhuma ferramenta é
proibida. Nenhuma escola de arte é banida por nossa definição, nenhuma filosofia,
nenhum movimento, nenhum modo de ver é excluído. (MCCLOUD, 2005, p. 21-
22).
É discernível que para um estudo acadêmico do fenômeno da história em
quadrinho, são válidas as nomenclaturas de McCloud e Eisner, exatamente por evidenciar o
que os quadrinhos têm de diferença específica dos demais campos da arte: o uso da
2
Para livros escritos no formato de arte seqüencial utilizar-se-á a abreviação “q.” para indicar o requadro onde o
original se encontra, quando se julgar producente.
27
justaposição. Será essa sua característica constitutiva, seu modo de entrada ao entendimento
humano e sua possibilidade de interpretação.
Considerar como cerne das HQs a justaposição (ou a seqüência espacial) também
abre duas outras janelas de especulação. Uma delas, a origem dos diversos preconceitos e
estigmas aos quais os quadrinhos estão sujeitos, bem como sua possível desmistificação.
3.2 A TEORIA DOS “IDOLA
“Estereótipos”, “preconceitos” e “estigmas” são termos comumente usados nas
comunidades discursivas que têm, por objetivo, analisar ou comentar a mídia. Com campos
semânticos aproximados, todos procuram retratar certo grau de rejeição, especialmente de
uma camada dita mais culta da sociedade, para com essa forma de comunicação e arte. Pode-
se inclusive citar também o pouco espaço que as HQs ocupam nas páginas de revistas e livros
sobre arte ou literatura, bem como cobertura televisiva ou demais formas de divulgação. Na
própria academia sua existência ainda carece de conhecimento, especialmente da parte do
corpo discente. É fato que mais e mais trabalhos de conclusão, monografias e dissertações se
ocupam do tema, seja num aspecto mais abrangente, seja num estudo específico de
determinadas obras. Ainda assim, o espaço é ínfimo se comparado com outras formas de arte
ou mesmo outros gêneros textuais.
Está se acompanhando, recentemente, um surto de interesse pelos quadrinhos
numa seara muito específica: a grande indústria cinematográfica americana ou, se preferir,
Holywood. Os chamados blockbousters de verão e de inverno, todos os anos, contam com
pelo menos uma ou duas películas inspiradas em histórias e personagens que nasceram no
ambiente da arte seqüencial. Contudo, fala-se de uma indústria, com todo seu apelo e objetivo
mercadológico. Ainda muito que se progredir para uma reflexão científica mais ampla e
isenta de, novamente posto, “estereótipos”, “preconceitos” e estigmas”. Para especular sobre
suas possíveis causas, esta dissertação se valerá de uma apropriação (talvez indevida) da
“teoria dos idola” do filósofo inglês Francis Bacon.
Bacon (1561-1626) é considerado como um dos precursores do pensamento
científico ocidental, não por descobertas científicas, mas exatamente por suas aspirações a
28
uma ciência desligada da filosofia e da teologia, o paradigma vigente da Idade Média. É
considerado, ao lado de Galileu, como responsável pelo início do pensamento científico, em
sentido estrito, da Europa. Em sua obra, intitulada Novo Organun, procura instaurar uma nova
base para o pensamento, regrada pela observação empírica da natureza e a exigência das
contraprovas das afirmações. Nessa obra, propõe que a mente humana é habitada por falsas
noções, que chama de ídolos (no latim, idola), os quais a razão deve renegar e quebrar para
poder construir sobre novo fundamento. Conforme Bacon,
Os ídolos e as falsas noções que invadiram o intelecto humano, nele lançando
profundas raízes, não sitiam a mente humana, a ponto de tornar-lhe difícil o
acesso à verdade, mas também (mesmo quando dado e concedido tal acesso)
continuam a nos incomodar durante o processo de instauração das ciências, quando
os homens, avisados disso, não se dispõem em condições de combatê-los na medida
do possível. (BACON, apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 336)
São quatro os ídolos a que a mente está aguerrida. Os ídolos da caverna (idola
specus) são oriundos de erros e deficiências dos sentidos humanos; os ídolos do mercado
(idola fori) são advindos da linguagem e das relações sociais; os ídolos do teatro (idola
theatri) originam-se da autoridade a que se está sujeito e impugna suas opiniões na forma de
leis e dogmas inquestionáveis; e os ídolos da tribo (idola tribu) são as opiniões decorrentes da
própria condição humana enquanto espécie.
Tratando-se de quadrinhos, é possível encontrar diversos ídolos que dificultam a
análise acadêmica e a percepção do grande público. Doravante serão chamados de ídolos de
assunto (ou os ídolos da Sala da Justiça
3
) a percepção errônea de que os quadrinhos prestam-
se a um único tipo de assunto: o das fantasias de pessoas com poderes sobre-humanos e
roupas de colante, no dizer de McCloud (2005) fantasias de superpoder, ou a de animais
antropomorfizados com veia cômica. Essa confusão de assunto possui uma razão de ser. Essas
duas vertentes são, de longe, os ramos mais visíveis da indústria de HQs hoje, especialmente a
primeira e mais especialmente ainda se tratando da indústria norte-americana. Tomando-se o
mercado de arte seqüencial brasileiro, que possui como lugar privilegiado a banca de jornal, a
probabilidade de um leitor leigo deparar-se com quadrinhos autorais e que fujam dessas duas
vertentes é nula. Entretanto, existe uma variedade enorme de assuntos que foram e ainda
são tratados e desenvolvidos pelas narrativas gráficas, seja o faroeste (Tex), terror (Trinta
Dias de Noite), policiais (Sin City, Dick Tracy), históricas (Príncipe Valente, Os 300 de
3
Liga da Justiça é uma referência aos quadrinhos da Liga da Justiça, da DC Comics, amplamente conhecida por
reunir os maiores “medalhões”da editora, como Superman, Batman e Mulher-Maravilha, entre outros. É o
protótipo icônico das agremiações de super-herois.
29
Esparta), relacionamentos (Estranhos no Paraíso), biografias (Maus), autobiografias
(Persépolis), crítica social (Krazy Kat), esportes (Slam Dunk) e dezenas de outras. A
capacidade das HQs em retratar quaisquer tipos de situação, em quaisquer tramas, pode
parecer óbvia, mas aos leitores leigos isso o é assim. Entretanto, o mesmo não se com a
literatura. Por mais que um determinado tema ou uma determinada escola estejam em
proeminência, ninguém afirma que a literatura produz um gênero de tramas. O mesmo não
acontece com a arte seqüencial: efeito dos ídolos de assunto.
Também é possível classificar uma segunda espécie de confusão, que se pode
nomear de ídolos de público. As histórias em quadrinhos possuem a pecha de tratar de tramas
fáceis, simplistas e sem grandes esforços criativos porque seu público seria, na totalidade, o
público infantil. A sustentação de tal argumento é falsa. Especula-se que essa generalização
indébita ganha força na comparação com o público de desenhos animados, este sim
majoritariamente infantil (embora aqui também haja ressalvas). É comum a associação de
desenhos, sejam eles quais forem, com um público pouco afeito a palavras e, portanto, ainda
incapaz de digerir a literatura culta. Todavia, cada vez mais a indústria dos quadrinhos
especializa-se num segmento que convencionou chamar de quadrinhos adultos, estes com
temas mais profundos e, inclusive, com classificação etária na capa. Ademais, todo o
segmento dos quadrinhos marginais (também chamados underground) é focado em leitores de
mais idade, além dos hentai. Editoras de super-herois, as chamadas “duas grandes” como DC
e Marvel, apostam em selos de quadrinhos adultos, sendo que a linha Vertigo, da DC Comics,
é o principal exemplo. Com isso, de maneira alguma se quer desprezar as HQs produzidas ao
público infantil, da mesma forma que a literatura não procura desprezar escritores de livros
infantis. O que se procura dizer é que a narrativa gráfica não está, jamais, limitada a nenhum
público.
Por fim, a terceira categoria a elencar são os ídolos de veículo. Por veículo
entende-se todo o aspecto material da mídia. Inicialmente, o processo de impressão das
histórias em quadrinhos era muito rudimentar, com poucas opções de cores (quando e se
haviam cores) e qualidade. Somava-se a isso a qualidade duvidosa do papel, as
encadernações baratas e os próprios preços praticados. A mídia, como um todo, ficou rotulada
de barata, para o acesso de uma classe com baixo poder de compra, não afeita a formas de arte
mais elaboradas e, obviamente, mais caras. Isso é um disparate por definição, uma vez que a
obra fala por si, independente do meio onde está inserida. Mais: as novas tecnologias
possibilitaram um enorme avanço na maneira de se fazer e materializar quadrinhos, desde a
colorização e letreiramento computadorizados aos avanços na qualidade do próprio papel.
30
Além disso, são cada vez mais constantes novas manifestações da Nona Arte em meios que
não são o papel. O mais proeminente deles são os chamados web comics, quadrinhos feitos
por e para internautas. Uma gama cada vez maior de recursos é inserida neste meio digital, na
expectativa de uma maior interatividade, de maiores percepções, de maiores possibilidades.
Uma seara que cresce exponencialmente, acompanhando o ritmo da evolução tecnológica dos
meios de comunicação.
3.3 PROTO HISTÓRIA DOS QUADRINHOS
Ainda que alguns teóricos discordem quanto à origem das histórias em
quadrinhos, tomaremos outubro de 1896 como o marco zero, por apresentar uma história em
quadrinhos com o que seriam suas principais características. Entretanto, como toda
manifestação cultural, seria ingenuidade supor que esta história específica tivesse “nascido
pronta”, sem se aproveitar da contribuição de diversas outras obras de arte que comungam de
sua estética. Toda arte é inserida no tempo, e não apenas as ideologias, mas também o próprio
desenvolvimento tecnológico, contribuem para sua evolução. É possível, portanto, através de
comparação, traçar a linha do tempo das diversas formas de arte. Levando em conta as
definições propostas do que seriam os quadrinhos, podemos reconhecer alguns de seus
preceitos estéticos em expressões artísticas surgidas muito tempo antes de seu “nascimento
oficial”. De fato, autores como McCloud (2005) e Iannone e Iannone (1994) chegam a
destacar diversas obras que partilham da ideia de seqüencialidade como precursoras das HQs.
Alguns exemplos são notáveis.
O primeiro exemplo, e provavelmente o mais controverso, seria a tentativa de
catalogar a arte rupestre dos homens pré-históricos como arte seqüencial. Importa ressaltar
que, em muitos dos sítios arqueológicos catalogados, boa parte das imagens parece sim tentar
retratar cadeias de eventos, uma espécie de seqüência e ordem definida nos desenhos.
Estudiosos apontam as inscrições que nossos antepassados deixaram nas cavernas,
no período pré-histórico, como a origem mais remota das histórias em quadrinhos.
Talvez a afirmação seja um tanto exagerada, mas o desenho é, sem dúvida, uma das
formas mais primitivas de expressão utilizada pelo homem. Precursores ou não dos
quadrinhos, os desenhos pré-históricos foram a maneira pela qual os homens,
31
desconhecendo ainda a escrita, registraram suas impressões sobre o dia-a-dia ou
fatos que consideraram importantes. (IANNONE; IANNONE, 1994, p. 10)
Figura 1 – Arte Rupestre.
Fonte: <http://infografiaembasededados.wordpress.com/2008/09/14/os-primordios-infografia>
Se de fato os quadrinhos possuem sua matriz nos registros pré-históricos, a
inexistência de um códex com o qual possam ser traduzidos deixa aberta à especulação todo o
que se aferir daqui. Situação semelhante era encontrada na escrita hieroglífica, criada na
antiga sociedade egípcia, e que encontrou tradução a partir de 1822 com a descoberta da
pedra de Rosetta. É importante ressaltar, entretanto, que a escrita em hieróglifos não seria um
antecedente para os quadrinhos, uma vez que a representação, ainda que seja em forma de
desenhos, é uma representação de sons, uma representação fonética. Ainda assim, o Egito
legou muitas formas de arte, e uma delas em especial preenche alguns requisitos do que seria
uma história em quadrinhos.
Descoberta nas terras do Xeique ‘Abd el-Qurna, nas ruínas da antiga cidade de
Tebas, próxima da moderna Luxor, a tumba do nobre Menna é um dos grandes pontos
turísticos do Egito. Menna foi um nobre egípcio que viveu nos tempos da 18ª dinastia dos
faraós (por volta de 1539 a 1075 a. C.), servindo a Tuthmosis IV e seu sucessor, Amenophis
III. Seu tulo oficial era “escriba dos campos do senhor dos dois países” (ANDREWS,
2008), o que corresponderia, muito provavelmente, à administração dos campos de
agricultura, dirigindo e contabilizando as plantações reais. Chamam a atenção a série de
pinturas encontradas nas paredes de sua tumba, uma vez que retratam, de maneira
seqüenciada, aspectos do trabalho, da vida privada e da vida pública de Menna.
32
Figura 2 – Arte egípcia na Tumba de Menna.
Fonte: <http://egyptsites.wordpress.com/2009/02/07/tomb-of-menna-tt69>
Trabalho semelhante foi encontrado por Cortez, durante a conquista dos astecas,
no ano de 1519. Trata-se de uma tela pintada em cores brilhantes, retratando a vida do heroi
militar Oito-Cervos-Garras-de-Tigre, possivelmente datada de 1049 d. C. Também composta
por imagens dispostas em seqüência, o manuscrito pré colombiano apresenta, como a pintura
egípcia, uma leitura em ziguezague. O egípcio, porém, partia do canto inferior esquerdo e
seguia até o canto superior direito, ao passo que este outro seguia da esquerda para direita,
respeitando a divisão de temas. O manuscrito ainda apresenta mbolos referentes à escrita,
funcionando como indicações de data, local e nomes dos personagens, uma espécie de
precursora das legendas da HQs modernas. Esse manuscrito pode ser compreendido com a
série de códices que restaram da arte maia, conhecidos respectivamente como Códice de
Dresden, Códice de Madrid, Códice de Paris e Códice Grolier. Fazem parte do acervo de
vários museus e são peça fundamental para a decifração da antiga cultura maia.
Figura 3 – Manuscrito asteca.
Fonte: <http://celia.cnrs.fr/FichExt/Am/A_23_07.htm>
Em forma de escultura, pode ser encontrada em Roma a Coluna de Trajano,
construída sob ordens desse imperador pelo arquiteto Apolodoro de Damasco, concluída em
133 d. C. A coluna visa ser uma comemoração pela vitória (ou massacre) deste imperador
sobre os dácios. Trata-se de uma coluna de 30 metros de altura, mais 8 metros de pedestal. É
33
formada por 20 blocos de mármore, cada um com 4 metros de diâmetro. Uma escada de 185
degraus percorre seu interior, dando acesso a uma plataforma no topo, onde originalmente
havia uma estátua de uma águia romana, que se perdeu. Em 1588 o Papa Sisto V colocou
uma estátua de São Pedro. na arte da coluna a inserção de meios artísticos revolucionários
para o período, como a utilização de uma árvore para separar as cenas, donde se aufere uma
preocupação em retratar a sequência dos fatos, o que configura a Coluna de Trajano como
uma espécie de arte sequêncial.
Figura 4 – Coluna de Trajano.
Fonte: <http://www.classica.org.br/links.asp>
Na Europa medieval, formas artísticas aparentadas aos quadrinhos serviam para a
catequização. Nessa época, a leitura e escrita era pouco disseminada, restrita ao clero e alguns
poucos nobres interessados. Assim, era função das imagens e pinturas, que retratavam cenas
bíblicas ou de devoção popular, imbuir na memória dos fiéis os ensinamentos religiosos. O
exemplo mais presente, encontrado inclusive nas igrejas modernas, é a representação da Via
Sacra: os últimos catorze estágios, também chamados estações, de Jesus antes da crucificação,
alguns deles sem citação bíblica. Comumente são dispostos ao longo das laterais do edifício,
sejam pinturas ou esculturas, numerados, para serem contemplados e, em ocasiões especiais
do ano como a quaresma, rezados em seqüência. Não é incomum encontrarmos a
representação da Via Sacra em tamanho maior, para celebrações ao ar livre.
Fora do contexto religioso, a Idade Média também legou uma obra chamada de
tapeçaria de Bayeux. Trata-se de uma tapeçaria com cerca de 70 metros de comprimento,
onde se retrata a conquista da Inglaterra por Guilherme da Normandia, iniciada em 1066. Os
eventos estão dispostos da esquerda para direita, em ordem cronológica, com legendas sobre
algumas figuras, detalhando as cenas. Não se tem muita certeza sobre sua origem ou data de
confecção. A primeira menção à peça é uma lista dos tesouros da catedral de Bayeux, na
França, no ano de 1476, que diz “a very long and narrow hanging on which are embroidered
34
figures and inscriptions comprising a representation of the conquest of England.
4
(BRITAIN’S BAYEUX TAPESTRY AT THE MUSEUM OF READING, 2008). Existem,
claro, suposições sobre sua autoria e data.
The Bayeux Tapestry was probably commissioned in the 1070s by Bishop Odo of
Bayeux, half-brother of William the Conqueror. It is over 70 metres long and
although it is called a tapestry it is in fact an embroidery, stitched not woven in
woollen yarns on linen. Some historians argue that it was embroidered in Kent,
England. The original tapestry is on display at Bayeux in Normandy, France.
(BRITAIN’S BAYEUX TAPESTRY AT THE MUSEUM OF READING, 2008).
5
Figura 5 – Tapeçaria de Bayeux.
Fonte: <http://www.bayeuxtapestry.org.uk/Bayeux1.htm>
A invenção da imprensa obviamente acarretou numa maior difusão das artes
escritas, entre elas a arte com imagens. Agora, com reduzidos custos de produção e grande
agilidade de tempo, a palavra escrita e desenhada tornava-se muito mais acessível. Com o
progresso técnico, alguns artistas desenvolveram seus trabalhos utilizando-se dos novos
meios.
No dizer de McCloud (2005, p. 16, q. 4), “a sofisticação da história com imagens
atingiu seu apogeu nas mãos de William Hogarth.” Hogarth nasceu em 1697, morrendo em
1764. Conforme é citado na Encyclopedia Britannica:
[...] the first great English-born artist to attract admiration abroad, best known for his
moral and satirical engravings and paintings—e.g., A Rake’s Progress. His attempts
to build a reputation as a history painter and portraitist, however, met with financial
4
Uma muito longa e estreita faixa na qual estão tecidas figuras e inscrições compreendendo uma representação
da conquista da Inglaterra (Tradução do pesquisador).
5
O Tapeçaria de Bayeux foi provavelmente encomendado em 1070 pelo Bispo Odo de Bayeux, meio-irmão de
William o Conquistador. Tem mais de 70 metros e, embora seja chamada de tapeçaria, na realidade, é um
bordado, tecida em fios de lã sobre linho. Alguns historiadores afirmam que foi bordado em Kent, na
Inglaterra. O original está em exposição em Bayeux, na Normandia, França (Tradução do pesquisador).
35
disappointment, and his aesthetic theories had more influence in Romantic literature
than in painting
6
(WILLIAM HOGARTH, 2008).
Dentro de uma corrente de arte moralizante, Hogarth elaborou uma série de seis
quadros intitulados A Harlot’s Progress (O Progresso de uma Prostituta), publicados em
1731. Neles, narra as vicissitudes de uma garota que se inicia na prostituição, atingindo as
maiores degradações e morre por conta de doenças venéreas. O objetivo era chocar e instruir a
sociedade para as conseqüências da prostituição. Uma segunda obra, no mesmo estilo mas em
oito quadros, chamava-se A Rake’s Progress (O Progresso de um Bandido), contando a
história de um rico mercador que perde a fortuna e a dignidade devido a seus vícios. Essas
histórias foram mostradas originalmente como uma série de pinturas, sendo mais tarde
reunidas e vendidas como um portfólio. O objetivo era que fossem expostas sequencialmente,
formando uma narrativa.
Figura 6 – A Harlot's Progress, de William Hogarth.
Fonte: <http://hogarth.chez-alice.fr/gallery01.htm>
Apontado como pai dos quadrinhos modernos” (MCCLOUD, 2005, p. 17, q. 3),
Rudolphe Töpffer (1799-1846) atingiu notoriedade com suas histórias, sendo inclusive
elogiado por Goethe. Conforme Goida (1990, p. 349), Töpffer pretendia ser pintor como seu
pai, mas se considerava sem talento, passando a lecionar artes em Genebra e, mais tarde,
escrevendo histórias. Com o tempo, passou também a ilustrá-las. Estas histórias era em
grande parte figurativas, mas algumas cenas apresentavam breves textos. Com o tempo e o
sucesso, o texto foi cedendo cada vez mais espaço às imagens. Essas histórias foram reunidas
6
[...] o primeiro grande artista inglês a atrair admiração no exterior, mais conhecido por suas gravuras e pinturas
de cunho moral e satírico, como por exemplo, "O Progresso de uma prostituta". Suas tentativas de construir
uma reputação uma reputação como um pintor histórico e retratista, no entanto, acarretaram em decepção
36
num álbum em 1847, intitulado Stories in Etchings (ou Histoires em Estampes no francês, que
se pode traduzir como “Histórias em Estampas”).
Figura 7 – Arte de Rudolphe Töpffer.
Fonte: <http://www.zompist.com/bob25.html>
Outro personagem de destaque chama-se Wilhelm Busch (1832-1908). Alemão
das cercanias de Hannover, teve formação em pintura. Sua grande criação foram histórias com
figuras e textos em rimas, precedendo as legendas. Entre elas destaca-se o sucesso
internacional das aventuras e traquinagens de Max und Moritz, dois moleques travessos,
criados em 1865. Estas histórias chegaram a ser publicadas no Brasil, na revista Tico-Tico,
onde tinham a tradução de ninguém menos que Olavo Bilac, que os rebatizou de Juca e
Chico. Eram assim apresentados:
Não tem conta as aventuras/ as peças, as travessuras/ dos dois meninos malcriados.../
_ Destes dois endiabrados/ Um é Chico; o outro é Juca: Põem toda a gente maluca/
Não querem ouvir conselhos/ Estes travessos fedelhos!/ Certo é que para a maldade/
Nunca faz falta a vontade... (GOIDA, 1990, p. 56).
Figura 8 – Max und Moritz, de Wilhelm Busch.
Fonte: <http://www.britannica.com/Max-and-Moritz-by-Wilhelm-Busch>
financeira, e suas teorias estéticas tiveram mais influência na literatura romântica do que na pintura
(Tradução do pesquisador).
37
A Busch e Töpffer, une-se o Francês Georges Colomb (1856-1945), que assinava
suas obras sob o pseudônimo Christophe. Diz-se que “fazia desenhos para contar histórias ao
filho e, quando este aprendeu a ler, juntou textos às ilustrações” (IANNONE; IANNONE,
1994, p. 29). Sua obra mais conhecida é La Famille Fenouilliard, de 1889, onde usava
divisão de quadros e breves textos. Alguns o consideram como o precursor mais bem acabado
das modernas histórias em quadrinhos.
Figura 9 – La Famille Fenouilliard, de Christophe.
Fonte: <http://lambiek.net/artists/c/christophe.htm>
Entre tantos exemplos, é impossível não citar um caso brasileiro. Trata-se de
Ângelo Agostini (?-1910). Imigrante italiano, Agostini criou As Aventuras de Nhô Quim – Um
caipira na capital, captando muito bem o espírito da pátria que adotara, publicadas no jornal
Vida Fluminense, em 30 de janeiro de 1869. Pioneiro, seus quadrinhos, conforme Patati e
Braga (2006, p. 13), sustentavam-se em enquadramentos sempre fixos e com o personagem
sempre de corpo inteiro. Agostini é considerado o precursor dos HQs brasileiros como
também das charges políticas. A maior premiação dos quadrinhos brasileiros leva seu nome,
bem como o dia do aniversário de sua primeira publicação, 30 de janeiro, é considerado como
o dia nacional dos quadrinhos.
Figura 10 – Arte de Ângelo Agostini.
Fonte: <http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp>
38
3.4 O MARCO ZERO E ALÉM
O fim do século XVIII deu à luz um novo tipo de profissional, o cartunista ou
caricaturista. Por essa época, surgiam as revistas humorísticas, onde desenhos engraçados
davam o tom e encontravam público cativo. Cartunista é a tradução de cartoonist, que por sua
vez vem da palavra cartoon, termo derivado do papel cartão usado na confecção dos
desenhos. Os cartoons começaram como charges políticas, com desenhos simples e sem texto.
Com o tempo, sobressaiam-se os cartunistas capazes de incrementar suas obras. Aqui
apareciam a maiorias das características dos quadrinhos, como seqüência de imagens, um
elenco fixo de personagens e suporte da narrativa escrita em legendas.
Nesta mesma época, os jornais diários batalhavam entre si para aumentar seu
número de leitores. A briga era mais acirrada em Nova York, mais precisamente entre os dois
maiores jornais da época, o New York World, de Joseph Pulitzer, e o Morning Journal, de
William Randolph Hearst. Acrescenta-se a isso a leva de imigrantes chegando aos EUA,
precisamente em Nova York, muitos deles mal falando o inglês. Esta massa de pessoas
encontrava nos suplementos dominicais, cada vez mais coloridos, engraçados e cheios de
desenhos, um suporte para assimilar a cultura e a língua. De sua parte, os jornais que
disponibilizavam os suplementos, chamados sundays amealhavam mais e mais leitores.
Na última cada do século passado, Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, os
mais poderosos proprietários de cadeias de jornais nos Estados Unidos, brigavam
pela conquista de um público maior. Para atraírem uma massa semi alfabetizada e
também os imigrantes, que tinham dificuldades com o inglês, criaram os
suplementos dominicais. A grande parte do material destes “sundays” era formada
por narrativas figuradas, bem ao estilo europeu (GOIDA, 1990, p. 09).
Como a intenção era atrair leitores, os periódicos dos jornais tornaram-se celeiro
para a criatividade de diversos autores. Em 1895, o New York World veiculou a obra de
Richard Felton Outcault, chamada de Down Hogan’s Alley. Tratava-se de cenas engraçadas
ambientadas nos cortiços, apresentando toda sorte de etnias que formavam a cidade. A
primeira inovação de Outcault foi espalhar as legendas pelo desenho, nos cartazes, nas
paredes das construções e não no rodapé da página. Com isso criava-se uma ideia de diálogo,
dando a impressão de que os personagens se comunicavam uns com os outros.
O principal personagem da série era um garoto de feições orientais vestido num
camisolão. Posteriormente este camisolão foi pintado de amarelo, e o personagem ganhou seu
39
nome, The Yellow Kid. No camisolão, Outcault começou a escrever mensagens ou temas
espirituosos. Em pouco tempo, o Kid “aprendeu a falar”, expressando-se através do camisolão
ou, no dizer de Patati e Braga:
[...] Richard Felton Outcault pela primeira vez fez convergir o interesse dos leitores
sobre Yellow Kid, fazendo sua fala aparecer escrita e assumida na primeira pessoa
do singular, no seu camisolão amarelo, em vez de aparecer na legenda como as falas
dos outros personagens, em discurso indireto. Daí em diante, Yellow Kid “tomou o
poder” na série, integrando falas aos desenhos (PATATI; BRAGA, 2006, p. 15).
Para efeitos de datação, considera-se como marco zero das histórias em
quadrinhos a publicação da história The Yellow Kid and his new phonograph, em 13 de
outubro de 1896, no Mourning Journal.
Figura 11 – The Yellow Kid and his new phonograph, de Outcault.
Fonte: <http://people.virginia.edu/~mmw3v/html/ykid/imagehtml/yk_phonograph.htm>
Entrementes, o novo formato não teve a receptividade esperada, e Outcault logo
voltou ao padrão de lâmina única. No ano de 1987, um jovem de apenas vinte anos chamado
Rudolph Dirks, apresentou ao Morning Journal uma nova proposta. Na verdade, o dono do
jornal, William Hearst, havia encomendado a Dirks uma série baseado nos meninos travessos
de Wilhelm Busch, Max und Moritz. Dirks apresentou os garotos Hans e Fritz, acompanhados
de seu elenco de apoio Dona Chucruts, o Coronel e o Capitão. A série chamava-se Ach, Those
Katzenjammer Kids, e apostava na rmula com balões e seqüências. Conforme Iannone e
Iannone (1994, p. 34), “[...] foi o primeiro autor a apresentar uma história em quadrinhos
completa.” O formato não agradou o público de princípio, mas a qualidade dos desenhos e
histórias acabou por consolidar o público e, consequentemente, formalizar o insipiente
gênero.
40
Em 1912 Dirks transferiu-se para o New York World, levando o direito sobre seus
personagens a uma batalha judicial, decidida favoravelmente a Hearst. No entanto, o autor
manteve o direito de utilizar seus personagens, desde que usasse outro tulo. Assim, Hans e
Fritz figuravam histórias diferentes nos dois maiores jornais da época: no Morning Journal,
ainda eram o Katzenjammer Kids, escritos por Harold Knerr, enquanto o New York ficou
com Hans und Fritz, escritos por seu criador. Com o alvorecer da I Grande Guerra, este
último foi rebatizado para The Captain and the Kids (Os sobrinhos do Capitão, no Brasil),
título que perdura até hoje.
Figura 12 – Ach, Those Katzenjammer Kids, de Dirks.
Fonte: <http://www.geocities.com/~jimlowe/knerr/knerrdex.html>
É importante destacar também a atuação de Frederick Opper, um importante
cartunista com projeção internacional em revistas de porte. Em 1899 começou a trabalhar para
Hearst, com um personagem chamado Happy Hooligan, “um esboço de Carlitos
(IANNONE; IANNONE, 1994, p. 36), mendigo desprezado por todos com uma lata vazia no
lugar de chapéu. Porém, foi apenas em março de 1990 que Opper aderiu a nova estética dos
quadrinhos, usando e abusando dos diálogos. A entrada de um artista de peso para essa
corrente resultou numa enxurrada de novos criadores copiando o estilo e a forma.
Figura 13 – Happy Hooligan, de Opper.
Fonte: <https://treasuryoffineart.osu.edu/index.cfm>
41
No ano de 1905 viu-se uma das mais belas obras do quadrinhos, Little Nemo in
Slumberland (O pequeno Nemo no país do sonho), de autoria de Winsor McCay. Narrava as
aventuras oníricas do menino personagem-título, que invariavelmente acabavam com ele
acordando e percebendo tratar-se de um sonho. Eram de uma qualidade visual incrível.
Talentoso, McCay trouxe uma preocupação com a qualidade para o seio da indústria dos
HQs. Conforme Patati e Braga:
McCay vinha do cinema de animação, então uma arte circense, onde havia realizado
As aventuras de Gertie, o dinossauro. Importava, para ele, por conta disso, não
apenas desenhar bem os personagens como sugerir sua movimentação pelos cenários
majestosos, oníricos, onde se passavam suas aventuras. [...] Foi o início de uma
enorme sofisticação visual das HQs. Embora convivendo harmonicamente com
diversos exemplos mais crus, o fato é que florescia a qualidade (PATATI; BRAGA,
2006, p. 26).
Figura 14 – Little Nemo in Slumberland, de McCay.
Fonte: <http://chawedrosin.wordpress.com/2006/12/30/little-nemo-in-slumberland/>
Na escola de McCay, que o casal Ianonne (IANONNE; IANONNE, 1994, p. 39)
vai chamar de intelectualista, seguiu o trabalho de George Herrimann, chamado de Krazy Kat.
Inovando e forçando a nova forma onde fosse possível, Herrimann procurava ultrapassar o
comum, incorporando elementos de intenso lirismo, art noveau e psicanálise. Na história,
Krazy é apaixonada pelo rato Ignatz, que sempre a desdenha. O cachorro Pupp, policial, ama
Krazy, realizando-se quando prende o rato.
42
Figura 15 – Krazy Kat, de Herrimann.
Fonte: <http://www1.assumption.edu/ahc/1920s/demotic%20art/VexedQuestion.html>
Merece destaque também um dos criadores do filão “comédias familiares”
precedido por Cristophe. É George McManus, criador de Bringing up Father, que poderia ser
traduzido como “Educando o papai”, mas no Brasil acabou adaptado como Pafúncio e
Marocas. McManus utilizou a série para satirizar os costumes americanos, apresentando um
casal de novos-ricos. Pafúncio é um ex-pedreiro que ganhou na loteria, simples e amigável,
enquanto Marocas, sua mulher, é uma ex-lavadeira, deslumbrada com a fortuna, deseja
freqüentar as altas rodas sociais. Megera e assoberbada, torna a vida de Pafúncio difícil,
enquanto ele vive montando planos para retomar o convívio simples de seus antigos amigos
de bar.
Figura 16 – Bringing up Father, de McManus.
Fonte: <http://www1.assumption.edu/ahc/1920s/demotic%20art/VexedQuestion.html>
Fato é que esses e muitos outros contribuíram com a cristalização da forma de arte
conhecida como quadrinhos. Uma vez consciente de sua existência e com criadores
procurando explorar todos os seus limites, cabia agora aos quadrinhos livrarem-se de formas
que a indústria já estigmatizara, a saber, o gênero exclusivamente comédia e o formato tira de
jornal.
43
3.5 LIBERTAÇÃO DO JORNAL E TENDÊNCIAS
Consagrada a forma, tanto os quadrinhos quanto seus criadores viviam atrelados
às amarras oriundas do meio em que nasceram: os jornais. Primeiramente inscritas no espaço
do suplemento dominical, pouco a pouco os quadrinhos migraram para o formato “tira”, strip,
em inglês. O constante surgimento de criadores, aliado à pressão por novidades que
resultassem em mais vendas fez com que os quadrinhos se consagrassem neste novo formato.
Clare Briggs, com seu personagem chamado A. Piker Clerk, um fanático por
corridas de cavalos, é considerado, conforme Iannone e Iannone (1994, p. 42), o pioneiro no
que seria a era das tiras diárias (daily strips em inglês). A. Piker Clerk surgiu em 1904, a
pedido do jornal Chicago American, e contou com uma curta publicação. Na sequência, Ham
Fisher, em 1907, para o jornal Chronicle, de São Francisco, criou seu Mr. A. Mutt,
aproveitando muitas ideias da obra de Briggs. Posteriormente, adicionou o companheiro de
Mutt, o atrapalhado Jeff, fazendo enorme sucesso e consagrando o formato tira. Obras
mencionadas anteriormente, como Little Nemo, Krazy Kat, e Bringing up Father podem ser
definidas, por seu formato, como daily strips.
Ocorre que apenas grandes jornais possuíam estrutura suficiente para manter em
seus quadros equipes próprias de quadrinistas. No meio jornalístico, entretanto, não é
incomum agências de notícias “venderem” seus trabalhos a diversos jornais, que muitas vezes
podem até publicar a notícia “terceirizada” sem nenhuma edição. Além de notícias, muitas
seções de jornais são adquiridas dessa forma, como horóscopos, passatempos, matérias de
colunistas, notícias internacionais e, claro, quadrinhos. O termo syndicate, que poderia ser
traduzido por agência, refere-se exatamente a este tipo de organização e aos serviços que
presta.
7
Este Syndicates, que representam o fim de uma fase jornalística tradicional em
benefício de um mais elevado nível capitalista de divisão do trabalho e da produção,
foram na realidade uma conseqüência lógica do prévio desenvolvimento das
agências distribuidoras de notícias na indústria jornalística: a francesa Havas (1835),
a inglesa Reuter (1851) e as norte-americanas Associated Press (1848) e a United
Press (1907). Paralelamente às agências de notícias, Irving Bacheller criou, em
1880, uma agência de representação de jornalistas, detendo os direitos exclusivos de
suas crônicas e reportagens, iniciativa esta aplicada em 1881 por S. S. McClure para
7
Prefere-se “agência” no lugar de “sindicato” pelo campo semântico que este último envolve, no que tange a ser
uma associação de classe em busca da defesa de seus direitos. Os syndicates de quadrinhos, quase sempre,
passaram longe disso.
44
a produção de novelistas [...]. Além disso, a existência de um novo e crescente
mercado para ilustrações, anedotas gráficas e comics motivou o aparecimento, desde
o início do século, de agências distribuidoras deste material [...]. O máximo impulso
que esta atividade recebeu proveio do germano-americano Moses Koenigsberg, que
desde 1905 se ocupava da distribuição de comics para a cadeia Hearst; 1915, criou a
King Features Syndicate, poderosa agência de dimensão internacional (GURBEN,
1979, p. 88).
Entretanto, se por um lado os syndicates libertavam os quadrinhos das amarras das
redações jornalísticas, impunha um processo de “industrialização”, uma vez que os criadores
estavam sujeitos a editoração de seus superiores. Os editores precisavam agradar o público e
seus clientes, na maioria das vezes apostando sempre no que estava vendendo, sem grandes
espaços para inovações. Em síntese, proliferavam entre as diversas agências a cópia do que
estava vendendo, estagnando o processo criativo. Este foi o auge das daily strips,
especialmente as comédias de costumes e familiares.
Toda fórmula, entretanto, cansa. A depressão econômica que se seguiu ao crack
da bolsa em 1929 sepultou o ar de otimismo e pujança do início do século. Além disso, as
cinzas da I Grande Guerra ainda estavam bem vivas, e o horizonte dava sinais de novos
horrores. Muitos estudiosos afirmam que este clima tenebroso foi particularmente responsável
pelos novos caminhos na literatura da banda desenhada. Uma vez que a realidade mostrava-se
adversa, crescia a ânsia pelo escapismo, que pode ser encontrado nos nascentes quadrinhos de
aventura e ficção.
Em 1924, o artistas Roy Crane criou Wash Tubbs (no Brasil, Tubinho), ainda
bebendo das fontes humorísticas. Tubinho era um sujeito baixinho, barrigudo e atrapalhado,
que vivia se metendo em confusão. Apesar da estética humorística, Roy Crane dava sinais
de evolução da fórmula, introduzindo o que se convencionou chamar de cliffhanger, ou
ganchos. As histórias eram conduzidas de tal forma que o último quadrinho terminava em
suspense, sem conclusão, com a chamada para a resolução do atual problema no próximo
episódio. Em 1929, Wash Tubbs trocou de nome para Captain Easy (Capitão César no
Brasil), tornando-se a primeira tira de aventuras. Sobre Crane, Patati e Braga afirmam que:
Ele foi o primeiro artista a urdir tramas longas e críveis, cuidadosamente
arquitetadas. Era leitor assíduo de Charles Dickens e Herman Melville, o que lhe
fornecer referências diferenciais. Em seu trabalho [...], não se tratava mais de saber o
que Pafúncio estava fazendo hoje, mas como o Capitão César, Tubinho, e pouco
depois, Tarzan, Buck Rogers, Flash Gordon ou o Príncipe Valente se livrariam das
encrencas em que estavam metidos (PATATI; BRAGA, 2006, p. 35).
45
Figura 17 – Captain Easy, de Crane.
Fonte: <http://www.comicstripfan.com/newspaper/c/captaineasy.htm>
Lançada a nova tendência, cabia aos criadores encontrar novas histórias e
personagens que correspondessem ao proposto. Para tanto, o primeiro lugar onde os escritores
de quadrinhos de ação foram procurar referências eram os folhetins marginais, conhecidos em
inglês como pulps
8
. Em 1929 estreou Buck Rogers no século 25, de Philip Nowlan e Dick
Calkins, enquanto em 1931 estreou Tarzan, adaptado por Hal Foster e posteriormente por
Burne Hogarth. Ambos os personagens tinham aventuras pregressas em pulps e romances,
sendo conhecidos do público. A estes muitos outros se seguiram, como Flash Gordon e Jim
das Selvas, de Alex Raymond, Fantasma e Mandrake, de Lee Falk e Ray Moore, para citar os
mais conhecidos. Todos esses têm em comum o uso extensivo de ganchos narrativos e o
exotismo de seus cenários, sejam eles as selvas e continentes desconhecidos, sejam os
cenários futurísticos da ficção científica. Estava criado o gênero adventure strip, que mais
tarde se especializaria em diversos outros subgêneros, como as western strips, tiras de faroeste
de personagens como The Lone Ranger (O Cavaleiro Solitário, chamado erronamente de
Zorro no Brasil); detective strips, com séries mais policiais, onde impera famosíssimo o nome
do personagem Dick Tracy; ou ainda medieval strips, com Prince Valiant (Príncipe Valente)
como principal expoente.
8
Pulp é a tradução de polpa, uma alusão ao papel barato e de qualidade em que eram publicadas estas
histórias.
46
Figura 18 – Buck Rogers,de Nowlan e Calkins.
Fonte: <http://midohiocon.blogspot.com/2008/11/sunday-comics-buck-rogers-in-25th.html>
Figura 19 – Tarzan, de Foster.
Fonte: <http://comics.cro.net/sklasici.html>
Figura 20 – Fantasma, de Lee Falk.
Fonte: <http://lambiek.net/artists/f/falk_l.htm>
Figura 21 – Mandrake, de Ray Moore.
Fonte: <http://ouvirever.blogspot.com/2008_02_01_archive.html>
47
Figura 22 – Dick Tracy.
Fonte: <http://theinvisibleagent.wordpress.com/2009/04>
Figura 23 – Prince Valiant, de Hal Foster.
Fonte: <http://underdark-tavern.com/ds/>
O surgimento dos quadrinhos de ação também possibilitou a migração das HQs do
ambiente de jornal, seja a tira diária ou o suplemento dominical, para um novo formato, a
revista de quadrinhos, o comic book. Esta migração começou propriamente na década de 30 e
inicialmente restringia-se a coletâneas de material publicado. Tamanho foi o sucesso que a
venda de quadrinhos possibilitou o surgimento de editoras voltadas exclusivamente ao
segmento. Obviamente, a compilação de material já publicado deu lugar a material original,
concebido para adequar-se ao novo formato. Consolidado o caminho, muitas foram as
vertentes por onde seguiu a banda desenhada.
A década de 40 viu o surgimento dos super-herois, dos quais se discorrerá mais
detalhadamente em outro capítulo. Nessa época, também viu-se o recrudecimento do maior
conflito da história, a II Guerra Mundial. A Europa foi o palco das maiores atrocidades e,
obviamente, foi a maior vítima da escassez de materiais e recursos humanos. Os regimes
totalitários proibiram a publicação de material estrangeiro, especialmente o que fizesse
apologia aos aliados, como no caso do material americano, de longe o maior mercado criador
de quadrinhos. Em alguns casos, personagens foram “apropriados” pelo regime fascista de
Mussolini, servindo de veículo de propaganda. Ainda assim, o mercado europeu levou anos
para se reerguer. Exceção digna de nota é o belga Hergé (seu nome real é Georges Remi),
48
com o personagem Tintin. Já em 1954, conforme diz Ianonne e Ianonne (1994, p. 86), seus
álbuns alcançaram a tiragem de 4,5 milhões de exemplares.
Figura 24 – Tintin, de Hergé.
Fonte: <http://madinkbeard.com/blog/archives/adventures-of-tintin-review>
O último ano desta década marca também um retorno ao lirismo e à fantasia.
Além disso, tornam-se constante temas relacionados à questões sociais e morais. Em 1950,
Charles Schulz cria a rie Peanuts, (Minduim como ficou conhecida no Brasil), onde um
grupo de crianças e seu cachorro, o popular Snoppy, encarnam os traumas e frustrações de
toda uma geração.
Figura 25 – Peanuts, de Schulz.
Fonte: <http://www.possibilidades.com.br/humor/hl_peanuts.asp>
Numa veia mais “heroica”, sem contudo usar do batido tema de super-poderes,
Will Eisner renovou não apenas a estética mas o conceito de histórias em quadrinhos.
Partindo da premissa de um detetive dado como morto que abdica de sua vida civil e decide
combater o crime, ajudando a polícia, The Spirit (O Espírito) continuamente atraiu mais e
mais fãs. Originalmente publicado nos suplementos dominicais, Eisner imprimiu sua marca
pessoal no trabalho, sempre primando pela qualidade e originalidade da arte e dos roteiros.
The Spirit partiu das histórias policiais e transitou por todos os gêneros concebíveis, como
humor, romance, fantasia, ficção científica, horror e histórica. Cada história era única. Prova
49
disso é que Eisner nunca repetiu nenhuma logotipia do personagem na abertura das histórias,
como reforço da originalidade da trama que se apresentava.
Ao contrário do clichê que diz que quanto mais burra e “neutra” uma publicação,
mais leitores ela encontra, o conhecido “nivelar por baixo”, Eisner, na sua “Spirit
session”, continuamente se expressou de modo ousado, embora sempre claro e
compreensível, e nem por isso menos profundo e comprometido com seus
conteúdos. Não estava nem um pouco disposto a realizar uma publicação que não
satisfizesse seu leitor mais exigente: ele mesmo. Naturalmente, cabe destacar que o
personagem e o autor eram leitores de jornal e não se centravam em seus
interesses pessoais, mas naqueles em que percebiam, por sua singularidade, seu
alcance intenso e profundo. (PATATI; BRAGA, 2006, p. 89).
Figura 26 – The Spirit, de Eisner.
Fonte: <http://www.fortunecity.com/tatooine/niven/142/tomb/tm04.htm>
Eisner também foi o cunhador do termo graphic novel, que se visava, em
princípio, a diferenciar uma obra mais assumidamente autoral dos comic books, as revistas
com forte direção editorial. Em seu caso, já na década de 70, estas obras se transformaram na
representação das memórias de Eisner dos duros tempos da repressão ou da comunidade
judaica, como Um contrato com Deus, Histórias do cortiço, O sonhador, Os invisíveis e
muitos outros. Além disso, também aventurou-se pelo campo teórico, sendo um dos pioneiros
em tratar os quadrinhos como arte e campo teórico, chegando a ministrar aulas sobre HQs.
Algumas de suas obras são parte do referencial teórico usado neste trabalho. Seu nome, ainda
em vida, era reconhecido por todos os profissionais do ramo e batizou o Eisner Awards,
prêmio americano para histórias e criadores, considerado o Oscar dos quadrinhos. Will Eisner
faleceu em 2005.
Retornando ao panorama histórico, os anos 50 foram os anos de auge dos
quadrinhos de horror, bem como o auge de uma editora em especial: a EC Comics.
Primeiramente Educational Comics, a empresa passou a se chamar Entertaining Comics e sob
a direção de William Gaines e sua equipe, alcançaram sucesso de crítica e público. No início,
o material provinha de adaptações de contos de terror clássicos, como Poe, Bradbury ou
50
Lovecraft. Os criadores da EC, ao contrário das demais, eram creditados por seus trabalhos,
recebendo salários condignos de seus esforços e ganhando mais que a concorrência. Talvez
fossem estas “disparidades” que atiçaram a intriga dos concorrentes, talvez as chamativas
capas das histórias, com monstros, sangue e alusão a violência ou sexo, mas o fato é que,
passado algum tempo, a ala conservadora da imprensa começou a acusar a EC de corromper a
juventude e fomentar a delinquência juvenil. Tamanha foi a pressão (que afetou inclusive os
quadrinhos de super-herois, como se verá adiante), que criou-se um “código de conduta” para
dos quadrinhos, chamado de Comic Code. Previa este código que palavras como “terror”,
“horror”, “violência” ou “crime” estavam proibidas. Foi a morte da editora, da vertente e, ao
menos por um tempo, do gênero.
Figura 27 – Tales from the Crypt, da E.C. Comics.
Fonte: <http://www.comixconnection.com/blog/2007_04_01_archive.html>
Como as grandes editoras estavam amarradas ao Comic Code, o sopro da
criatividade teve de encontrar outros caminhos para se manifestar. Foi justamente este o
momento e a vez do que se conhece como quadrinhos underground, ou quadrinhos marginais.
Feitos de maneira estritamente autoral, onde o autor atuava ao mesmo tempo como roteirista e
como desenhista, tinham tiragem limitadíssima, via de regra bancada pelo autor. A
modalidade de venda era quase panfletária, de porta em porta, nos parques e grandes centros.
Havia uma grande possibilidade de fracasso, encalhe e dívidas. Mas alguns trabalhos (e
autores) deram certo. Alguns deram muito certo.
Considerado “o evento seminal do movimento”, segundo Patati e Braga (2006, p.
100), a publicação de Zap Comics #1
9
, de Robert Crumb, deu-se em 25 de fevereiro de 1968,
9
O mbolo # seguido de número se refere ao número da publicação. É comumente usado em países
anglofônicos, e por influência da indústria cultural norte-americana, usado também nos meios das histórias
51
inicialmente com mil exemplares. Ajudaram na venda, em Haight-Ashburry Street, Los
Angeles, o autor, o gráfico, o dono da editora e a esposa de Crumb, grávida e carregando as
revistas num carrinho de bebê. Los Angeles aparecia como o centro de maior efervescência
hippie, um público não muito afeito as convenções vigentes. Os quadrinhos de Crumb eram
feitos especialmente para eles, anarquizando e satirizando justamente a moral conservadora da
época.
O agudo Crumb havia pescado no ar o espírito dos acontecimentos a sua volta e o
trouxera a seu crivo mordaz e hilariante. Isto se deu com um impacto cultural que as
HQs nunca mais tinham tido, desde a ascensão dos padrões conservadores de
pensamento no interior das editoras estabelecidas, onde se trabalhava com tiragens
de maior alcance e de modo supostamente mais profissional. [...] A consequência
mais imediata do impacto de seu trabalho foi a confluência de outros talentos do
traço querendo fazer aquilo também. Quadrinhos que, sem sombra de censura,
expressassem francamente o que um sujeito sentisse e pensasse. Por mais que aquilo
por vezes fosse desagradável, era honesto, ousado e feito com paixão. O espírito
rebelde da época e o avanço da tecnologia gráfica puseram os gibis sob controle, ou
descontrole, em alguns casos, de seus autores. (PATATI; BRAGA, 2006, p. 102-
103).
Figura 28 – Zap Comics, de Crumb.
Fonte: <http://www.wolfgangsvault.com/dt/zap-comics-postcard/PSY890607-PC.html>
Outro autor undergorund que obteve grande expressão foi Art Spiegelman. Suas
primeiras produções figuraram na revista Raw, mas sua obra-prima é Maus: A história de um
sobrevivente. Dividia em dois capítulos, Maus destaca-se, ao mesmo tempo, como uma
biografia e uma auto-biografia. Trata da história de seu pai, Vladek Spiegelman, um
sobrevivente dos horrores de Auschwitz. Mesmo tratando de tema tão dolorido, Art não deixa
de retratar seu pai com todos os defeitos de caráter, como “a caricatura racista do judeu
em quadrinhos. Como tratam de séries regulares, sua indicação é importante. As revistas brasileiras, que são
traduzidas e republicadas sob autorização, podem ter o mesmo título, mas dificilmente os números são os
mesmos.
52
avarento”, conforme diz o próprio autor (SPIEGELMAN, 2005, p. 133, q. 08). Na obra
também transparecem todas as dificuldades de relacionamento entre pai e filho, bem como as
próprias dúvidas e frustrações do criador. Maus foi a primeira obra em quadrinhos a ganhar o
prêmio Pulitzer, a maior premiação do meio jornalístico.
Figura 29 – Maus, de Spiegelman.
Fonte: SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
3.6 DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE
As décadas seguintes usufruem das conquistas e retrocessos oriundos das décadas
anteriores. A força do Comic Code vai caindo, especialmente devido a movimentos dentro da
indústria de quadrinhos de super-herois. Os quadrinhos de horror não tomam o mesmo vigor,
mas reaparecem.
Os quadrinhos eróticos, por sua vez, mantêm firme presença, especialmente nos
mercados europeus, menos conservadores que o americano e com grande tradição nesse
gênero. Este tipo de quadrinho, historicamente, sempre teve caráter marginal, sejam eles as
famosas Tijuana Bibles, sátiras sexuais com personagens e personas famosas, feitos por
desenhistas anônimos, ou os populares Catecismos de Carlos Zéfiro, que circulavam no
mercado negro brasileiro na década de 60. Os quadrinhos europeus são profícuos em
erotismo, com representantes de peso como Milo Manara (Click, Os Bórgia) e Guido Crepax
(Valentina). Recentemente, Alan Moore, famoso pelo mercado de super-herois, também
enveredou por este gênero, causando comoção ao colocar as personagens de histórias infantis
Dorothy (Mágico de Oz), Alice (Alice no País das Maravilhas) e Wendy (Peter Pan) numa
trama sexual chamada Lost Girls.
53
Figura 30 – Arte de Carlos Zéfiro.
Fonte: <http://ociopop.blogspot.com/2007/05/carlos-zfiro.html>
Figura 31 – Gullivera, de Manara.
Fonte: <http://forbiddenplanet.co.uk/blog/2007/11/panini-to-distribute-manara/>
Figura 32 – Valentina, de Crepax.
Fonte: <http://eurielec.etsit.upm.es/~zenzei/index.php>
Figura 33 – Lost Girls, de Alan Moore e Melinda Gebbie.
Fonte: <http://www.wordmagazine.co.uk/content/word-alan-moore>
54
As barreiras geográficas também são cada vez mais frágeis. Embora ainda exista
uma hegemonia americana, ela é sustentada mais por um gênero que pela mídia toda, o gênero
dos super-herois. Os EUA são também considerados o maior mercado consumidor desse
gênero. Mas entre todos os outros expressões nacionais, mais ou menos atuantes em seus
diversos países de origem. Muitas delas ganharam projeção internacional. São elas: Asterix,
dos franceses Albert Uderzo e René Goscinyy, Corto Maltese, do italiano Hugo Pratt,
Mafalda, do argentino Quino e toda a miríade de aventureiros, de detetives a cowboys, criados
pelo italiano Sérgio Bonelli, onde Tex e Ken Parker são os mais destacados.
Figura 34 – Asterix, de Uderzo e Goscinny.
Fonte: <http://maschamba.weblog.com.pt/arquivo/2005/01/traduzir_icones.html>
Figura 35 – Corto Maltese, de Hugo Pratt.
Fonte: <http://texwiller.blog.com/tag/homenagens_texianas/>
Figura 36 – Mafalda, de Quino.
Fonte: <http://paroquiadesalir.blogspot.com/2007/11/mafalda-by-quino.html>
55
Figura 37 – Tex, dos Estúdios Bonelli.
Fonte: <http://www.texbr.com/forum/viewtopic.php>
O Japão é considerado segundo pólo criador de quadrinhos com maior exportação
no mundo. No Japão, vale dizer, as histórias em quadrinhos gozam de um status muito
superior a de suas contraparte ocidentais. No Japão, os quadrinhos desde cedo se
especializaram em gêneros e nunca houve “rotulação” de HQs como coisa de criança, isso até
por conta dos distintos gêneros existentes. A indústria japonesa também conta com um
suporte muito grande oferecido pela indústria da animação. Os mangás que mais se destacam
facilmente são convertidos em animes, desenhos animados, que ganham o mundo e
popularizam a cultura, a arte e, consequentemente, o trabalho original. A estética própria do
mangá, com desenhos geralmente em preto e branco e leitura da direita para esquerda é
respeitada na maioria dos países do ocidente, como uma tentativa de preservar sua
particularidade. Osamu Tezuka (Astro Boy), Akira Toriyama (Dragon Ball e Dragon Ball Z) e
Masami Kurumada (Cavaleiros do Zodíaco) são nomes que se destacam, entre muitos outros,
no mercado brasileiro.
Figura 38 – Astro Boy, de Osamu Tezuka.
Fonte: <http://www.generationmechjournal.com/tag/osamu-tezuka/>
56
Figura 39 – Dragon Ball Z, de Akira Toriyama.
Fonte: <http://lettersfromyin.blogspot.com/2008/05/manga-fans-becoming-legends.html>
Figura 40 – Cavaleiros do Zodíaco, de Masami Kurumada.
Fonte: <http://akaikki.blogspot.com/2005_09_01_archive.html>
O Brasil, que é celeiro exportador de desenhistas do mercado americano,
apresenta A Turma da Mônica de Maurício de Souza, um conjunto de obras com
reconhecimento tanto no Brasil quanto no exterior. também muitos outros artistas, de
maior ou menor expressão, como Ziraldo (A Turma do Pererê, O Menino Maluquinho) e
quadrinistas quase que exclusivamente dedicados às tiras, como Caco Galhardo, Laerte,
Angeli, Alan Sieber e muitos outros. Recentemente, os irmãos gêmeos Fábio Moon e Gabriel
Ba (10 Paezinhos) ganharam projeção internacional por trabalhos premiados com o Eisner.
Rafael Grampá (Mesmo Delivery) aposta em obras autorais, disponível em livrarias
especializadas. A maior obra seqüenciada brasileira, com maior longevidade, bebeu muito da
estética manga: Holy Avenger, de Marcelo Cassaro e Érica Awano, teve 42 edições,
publicados de 1999 a 2002.
57
Figura 41 – A Turma da Mônica, de Maurício de Souza.
Fonte: <http://girlsofwar.wordpress.com/2009/05/16/turma-da-monica-e-as-3rls/>
Figura 42 – Menino Maluquinho & Turma do Pererê, de Ziraldo.
Fonte: <http://escafandro.blogtv.uol.com.br/2008/03/17/dinamico-ziraldo>
Figura 43 – Wood e Stock, de Angeli.
Fonte: <http://coisaseria.wordpress.com/page/2>
Figura 44 – O Condomínio, de Laerte.
Fonte: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/>
58
Figura 45 – 10 Pãezinhos, de Moon e Bá.
Fonte: <http://10paezinhos.blog.uol.com.br/arch2006-01-01_2006-01-31.html>
Figura 46 – Holy Avenger, de Cassaro e Awano.
Fonte: <http://cyber-ramses.blogspot.com/2008/01/holy-avenger-01-05.html>
O maior desafio da indústria de HQs hoje é conformar-se às contínuas mudanças
tecnológicas impostas ao meio. O advento dos computadores e da internet afetou em muito a
nova geração de leitores. O mundo mais, obviamente, mas é cada vez mais dependente do
computador para isso. Artistas perguntam se o suporte de papel ainda é válido, enquanto
empresários e investidores da indústria tentam barrar a proliferação de scans, cópias piratas de
revistas à disposição na internet de quem quiser baixá-las, sem pagar nada por isso. Existem
tentativas para responder o primeiro questionamento. Atualmente, pode-se encontra
facilmente criadores publicando diretamente na internet, a maioria de forma independente.
São os chamados web comics. Grandes editoras, como a Marvel Comics, possuem um braço
editorial para quadrinhos deste tipo. Vale ressaltar que, com os inexistentes custos de
publicação e editoração, os quadrinhos on-line são a melhor oportunidade para talentos
desconhecidos virem a público. Scott McCloud, criador já reconhecido no grande circuito, é
famoso promotor desta vertente. No Brasil, no início desta década, a série Combo Ragers, de
Fábio Yabu, fez sucesso. Dona de uma incrível simplicidade e criatividade, a série parodiava
antigas séries japonesas de super sentai (super-grupos), trazendo um sentimento de nostalgia
59
aos leitores antigos e aventura aos leitores jovens. Chegou a ser publicada na mídia
convencional em 2000, mantendo as mesmas qualidades que fizeram dela um sucesso na web.
Figura 47 – Combo Rangers, de Yabu.
Fonte: <http://www.omelete.com.br/cine/2577.aspx>
60
4 CUECAS SOBRE AS CALÇAS: OS SUPER-HEROIS
É forçoso dizer que o gênero de super-herois, para a história dos quadrinhos,
ocupa um capítulo a parte. Pode-se afirmar que esta é sua faceta mais conhecida, mais
divulgada e mais rentável. A atual avalanche de adaptações dos herois de quadrinhos para o
cinema serve de termômetro para o alcance do conceito. Seu sucesso, entretanto, não se deve
a uma superioridade criativa, quer nas ilustrações ou nos roteiros, perante os outros gêneros.
Quadrinhos não são apenas quadrinhos de super-herois, como muitos parecem acreditar, seja
por preferências pessoais seja por desconhecimento. Pensa-se que o capítulo anterior,
enfocando a história das HQs, tenha dirimido este equívoco.
Neste estudo empreendeu-se uma análise de uma história em especial, uma
história de super-herois. Com isso, acredita-se necessário explanar mais profundamente o
gênero em questão.
4.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO
O motivo do sucesso dos quadrinhos de herois uniformizados possui razões
objetivas e subjetivas. Teóricos como Knowles (2008) acreditam que as narrativas de herois
uniformizados fazem parte de uma corrente cultural da humanidade, que se inicia com os
relatos mitológicos de deuses e semideuses, desde a Suméria, passando pelo Egito e Grécia. É
evidente que as comparações têm um justo lugar, pois as façanhas de um Gilgamesh
10
, um
Hércules ou um Hórus
11
, se transplantadas para nossas atuais formas de contar histórias, ainda
causariam comoção. Ainda que possamos traçar uma origem comum entre os relatos de
antigos herois da mitologia e os modernos super-seres da banda desenhada, existem outras
nuances que precisam ser observadas.
10
Gilgamesh é um herói principal da mitologia Babilônica.
11
Hórus é do panteão egípcio, filho de Osíris e o primeiro e maior dos faraós. Possui a cabeça de falcão.
61
Em primeiro lugar, os antigos mitos apresentavam, ao menos em suas origens, um
componente místico-religioso. Os herois gregos, por exemplo, eram descendentes de deuses e,
como tais, representantes da religião partilhada pelos expectadores de suas aventuras. Embora
as narrativas heroicas não se prestassem à doutrinação e catequese na mesma medida que seus
correlatos cristãos, por exemplo, elas eram inegavelmente uma narrativa religiosa. Os
quadrinhos, teoricamente, não possuem essa carga cultural, dispondo apenas do aspecto de
entretenimento. Entretanto, existem semelhanças com o contexto religioso. Isso pode ser
observado no fato de muitos aficcionados, especialmente no meio super-heroístico, tratarem
suas revistas e personagens favoritos com devoção quase religiosa. Convenções sobre
quadrinhos atraem milhares de visitantes, mais ou menos extremados, a ponto de virem
travestidos na personagem com quem mais se identificam. São os chamados cosplays, uma
contração da expressão costume play, que poderia ser traduzida como “brincadeira com
uniforme”. Knowles traça o seguinte paralelo:
É exatamente o tratamento reverencial dado a esses personagens o retratamento
essencialmente religioso feito deles – que ressoa com a massa de espectadores
atuais. Temos testemunhado aí, com efeito, o surgimento de um estranho tipo de
religião. Hoje os super-herois representam para nós o papel antes representado pelos
deuses nas sociedades do passado. Hoje, os fãs não rezam para o Super-Homem ou
para o Batman ou pelo menos não admitem isso. Mas, quando fãs vestidos
como seus herois prediletos em convenções de histórias em quadrinhos, você está
testemunhando o mesmo tipo de adoração que havia no mundo antigo pagão, onde
os celebrantes se vestiam como o objeto de sua adoração e encenavam seus dramas
em festivais e cerimônias. (KNOWLES, 2008, p. 36)
Figura 48 – Cosplays.
Fonte: <http://www.flickr.com/photos/tydrix/3101947936/>
Não obstante, isso não é fenômeno apenas da indústria de quadrinhos, mas toda a
cultura pop exerce atração semelhante, criando legionários de fãs ávidos por notícias,
novidades e desdobramentos culturais e comercias da mídia com a qual se identificam. Isso
reflete outro aspecto da relação entre os mitos antigos e as modernas ficções de super-seres.
As primeiras eram relatos puramente orais, partilhados em cerimônias religiosas ou em
62
conversas informais, como uma educação de tradição. As modernas ficções fazem parte de
uma indústria cultural que objetiva, em primeiro lugar, o lucro.
Por fazerem parte de uma indústria, não é do interesse dos detentores dos direitos
das personagens que suas histórias se esgotem. São necessários dezenas de artifícios para
deixar as personagens sempre atuais, cativando cada nova geração de leitores, ávidos por
adquirir o bem de consumo. Isso implica que as histórias destes personagens não estão
acabadas, não encontraram seu fim, mas serão sempre continuadas ad infinitum, ou ao menos
enquanto gerarem lucro. Nesta progressão ao infinito de histórias é que reside uma diferença
entre as atuais HQs e os mitos antigos.
Conforme Eco (1976, p. 248), a tradição dos mitos clássicos se configurava num
determinismo, num relato do passado, comumente conhecido e aceito. Em suma, as histórias
ocorreram e o que chegava aos expectadores eram os registros. Ademais, todo mundo já
conhecia o final da história, repetida incontáveis vezes. Mesmo que este ou aquele narrador
depositasse alguma contribuição particular, fizesse esse ou aquele floreio, a linha básica da
história e da personagem já estava fixada. E este é o caráter funcional da lenda.
A narrativa preferida nas antigas civilizações era quase sempre a que referia alguma
coisa acontecida e já conhecida do público. Podia-se contar pela enésima vez a
estória do Paladino Roldão, mas o público já sabia o que havia sucedido ao seu
heroi. [...] O público não pretendia ficar sabendo nada de absolutamente novo, mas
simplesmente ouvir contar, de maneira agradável, um mito, repercorrendo o
desenrolar conhecido, no qual se podia comprazer, todas as vezes, de modo mais
intenso e mais rico. [...] Narrava-se, muitas vezes de modo dramático e conturbado,
o já acontecido. (ECO, 1976, p. 249)
O gosto do público, portanto, era escutar, de novo e de novo, a história
conhecida, respeitando este ou aquele acréscimo, mas salvaguardando a linha narrativa básica,
especialmente seu final. É extremamente lógico, portanto, que as lendas sempre se refiram a
fatos já passados, que já podem ser registrados e exijam ponto final.
A virada cultural advém com a tradição romântica. Mais uma vez, Eco nos diz que
é esta estética a responsável pela passagem da preferência do fixado pelo inesperado. Em
suma, a partir da tradição romântica se instaura o imprevisível, o inesperado como fator de
suspensão e cativamento do público. É o triunfo do enredo, da trama, sobre a narrativa. De
acordo com Eco:
A tradição romântica [...] oferece-nos, ao contrário, uma narrativa em que o interesse
principal do leitor é deslocado para a imprevisibilidade do que acontecerá, e
portanto, para a invenção do enredo, que passa para primeiro plano. O
63
acontecimento não ocorreu antes da narrativa: ocorre enquanto se narra, e,
convencionalmente, o próprio autor não sabe o que sucederá. (ECO, 1976, p. 249)
Para Eco, os herois de histórias em quadrinhos realizam em si ambas as funções,
de mitos clássicos e românticos. Por um lado, precisam manter um caráter perene, arquetípico,
devem “imobilizar-se numa fixidez emblemática que a torne facilmente reconhecível(1976,
p. 251), mas ao mesmo tempo manter também um caráter romanesco, palatável ao público e
sempre comerciável. Isso implica em diferentes recursos de enredo, pois cada curso de ação
tomado pela personagem implica em experiência e aprendizado. Cada desafio superado vai se
inscrevendo no cânone da personagem, e fica conhecido pelos leitores. E se torna
problemático aos escritores trazer novos inimigos e situações de conflitos a personagens que
aprendem com suas experiências, mas não podem envelhecer sem perderem identificação com
o público. Ao considerarmos os quadrinhos de super-herois como divisíveis em “eras”, nada
mais constatamos que os diferentes expedientes encontrados, pelas diversas gerações de
escritores, para manter-se entre a fixidez mitológica e a imprevisibilidade romanesca.
De outro lado, de se considerar características próprias do nero, algo que
partilham com os gêneros de fantasia e ficção mais diversas: a possibilidade do escapismo.
Quadrinhos de herois têm a capacidade de abrir as portas para outros mundos, mais coloridos,
ricos e aventurescos que o mundo real. Mais que isso, são portas de vazão para a imaginação,
da mesma forma que toda cultura do entretenimento que tenha na fantasia seu leitmotiv. Nos
dizeres de Wolk:
Superhero comics are, by their nature, larger than life, and what’s useful and
interesting about their characters is that they provide bold metaphors for discussing
ideas or reifying abstractions into narrative fiction. They’re the closest thing that
exists right now to the “novel of ideas”. That’s what’s kept this particular weird little
genre so closely connected to its much borader medium: a form that intrinsically
lends itself to grand metaphors and subjective interpretations of the visual world
goes well with characters who have particular allegorical values. (WOLK, 2007, p.
92)
12
12
“Quadrinhos de super-herois são, por natureza, maiores que a vida, o que é útil e interessante sobre os seus
personagens é que eles fornecem metáforas ousadas para a discussão de ideias ou para retificar abstrações em
forma de ficção narrativa. Eles são o que existe de mais próximo da novela "de ideias". Isso é o que manteve
este gênero particular pouco estranho tão intimamente ligado ao seu meio: uma fórmula que intrinsecamente
se presta a grandes metáforas e interpretações subjetivas do mundo visual, bem como personagens que m
determinados valores alegóricos.” (Tradução do pesquisador).
64
4.2 AS ERAS
O estudo da História obedece, em maior ou menor grau, um dos ditames do
método cartesiano de “dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas
partes quanto possível” (DESCARTES, 2000, p. 31). Comumente a história humana é
dividida em períodos que concentram determinadas características e possuem acontecimentos,
fatos históricos, que demarcam seu início e seu fim. Existe a pré-história, que começa num
momento de difícil precisão com o surgimento do homem, e termina também num momento
ainda não determinado, o surgimento da escrita. Segue-se a Antiguidade, que vai da escrita até
a queda do império romano, seguida pela Idade Média, que finda com o movimento
renascentista e lugar à Idade Moderna, que por sua vez termina com a Revolução Francesa
e dá início à Idade Contemporânea, que chega aos nossos dias. Alguns historiadores divergem
quanto aos acontecimentos históricos, outros ainda postulam uma nova idade, chamada de
Pós-Modernidade. Fato é que a divisão e classificação faz parte da maneira humana de
entender e estudar os fenômenos.
O poeta grego Hesíodo, conforme Smee (2008), em sua obra Os Trabalhos e os
Dias, dividia a história dos homens em períodos como Era de Ouro, de Prata, de Bronze,
Heroica e de Ferro. A ideia é que quanto mais perfeita fosse a existência humana, quanto mais
harmoniosa e mais próxima dos deuses fosse a convivência, mas raro e valioso seria o metal a
dar nome ao período. Cada uma destas eras é marcada pela criação e posterior destruição de
uma raça da humanidade pelo deus supremo em questão, seja ele Cronos ou Zeus. A exceção
é a Era Heroica, povoada pela maioria dos mitos gregos, como Héracles, Teseu, Perseu, Jasão
e os Argonautas, a Hidra de Lerna, Édipo e a Esfinge e todos os outros. Esta era termina com
a guerra de Tróia, última participação ativa dos deuses e seu afastamento para o distante
Olimpo. Segue-se a Era do Ferro, o período em que vivia o poeta, muito mais difícil e
sombria que as eras anteriores. A apropriação da cultura helênica pelos romanos, segundo
Smee (2008), fez o poeta Ovídio escrever uma obra similar, Transformações, onde repete o
mesmo ideário, subtraindo a Era Heroica.
Os quadrinhos de super-herois se apropriam desta nomenclatura e passam a
dividir sua história em eras, também com espaço para discussões e dissensões sobre datas e
fatos históricos, além de adaptar os termos conforme as necessidades. Conforme o
pesquisador Guilherme Smee:
65
A primeira menção a uma Era de Ouro referindo-se aos super-herois dos anos 40 foi
feita por Richard A. Lupoff, em um artigo chamado “Re-Birth”, no fanzine Comic
Art #1, de abril de 1960. Nos gibis, o termo foi usado pela primeira vez em 1963, na
revista Strange Tales #114, da Marvel Comics. A revista trazia na capa o retorno do
Capitão América, vindo de um período que naquele momento foi considerado a Era
de Ouro dos quadrinhos. Este Sentinela da Liberdade acabou se revelando um
embuste, mas pouco tempo depois, com a boa repercussão da história, o verdadeiro
heroi ressurgiria na clássica Avengers #4. (SMEE, 2008)
Como acontece com todo estudo histórico, uma época só pode ser compreendida e
estudada quando dela se tem determinada distância. Assim, a própria referência ao termo
“Era de Ouro” foi feita quando esta tinha passado e era possível isolar suas características.
Além disso, como na história humana, um período simplesmente não se encerra e lugar a
outro, prontamente acabado e definido. Existem circunstâncias históricas, condições e
paradigmas que vão se firmando, como que preparando terreno para a nova mentalidade. Em
suma, existem períodos de transição entre uma época e outra, que mesclam características da
corrente moribunda e da corrente ainda em gestação. Como diz Smee:
Engana-se quem imagina que um período começa onde o outro termina. Tampouco
um limite temporal demarcado e preciso, no qual se interrompem todas as
características da Era de Ouro e, uma vez transposto, encontra a Era de Prata,
instalada, a sucedê-lo. Ao pesquisar o assunto, mostra-se comum que entre o fim de
um período e o início de outro haja uma época que, de certa forma, faz a intersecção
entre eles. (SMEE, 2008)
4.2.1 A Era de Ouro
Embora o traje vistoso e o anel de caveira da personagem Phantom (Fantasma) de
Ray Moore, ou ainda o fraque e cartola do Mandrake de Phil Davis possam ser vistos como
prenúncio de uniformes, considera-se que o gênero se super-herois iniciou-se em 1938, com a
publicação da revista Action Comics #1. Sob as mãos do roteirista Jerry Siegel e do desenhista
Joe Shuster, o mundo veio a conhecer o super-heroi mais famoso de todos os tempos, o
primeiro de uma leva de super-seres: Superman. Último sobrevivente de Kripton, um planeta
a beira da destruição, o recém-nascido Kal-El é enviado em uma cápsula de fuga concebida
por seu pai e proeminente cientista Jor-El. Esta cápsula aterrisa nas cercanias da cidade de
Smallville, no estado de Kansas, onde é recolhido e adotado por um casal sem filhos,
66
Jonathan e Martha Kent. O bebê recebe o nome de Clark e, conforme cresce, descobre que a
exposição de sua fisiologia alienígena ao sol amarelo da Terra lhe concede incríveis poderes,
como voar (inicialmente era saltar), super-força, super-velocidade, invulnerabilidade, sopro
congelante, visão de calor, visão de raios X e muitos outros. Assim, ele decide usar seus
poderes na luta contra o mal, passando a adotar um uniforme colorido, azul com capa
vermelha, e se esconde sob sua identidade civil, um tímido e atrapalhado repórter de jornal da
grande cidade de Metrópolis.
Figura 49 – Action Comics #01
Fonte: <http://www.ambrosia.com.br/2008/08/24/a-nova-origem-do-superman>
O início da Era de Ouro com o Superman é o único consenso entre os estudiosos
das eras dos quadrinhos. A este personagem, seguiram-se muitos outros, como Batman, em
1939, na revista Detective Comics #4, criação de Bob Kane e Bill Finger. Herdeiro de uma
rica fortuna, o jovem Bruce Wayne, aos seis anos de idade, vê seus pais serem assassinados ao
saírem do cinema. Traumatizado com o fato, decide dedicar sua vida e fortuna ao estudo das
motivações criminosas e meios de combate-la, tornando-se um excelente lutador e detetive.
Ciente da superstição entre os criminosos, cria para si um uniforme que inspire terror, baseado
em um de seus medos de infância, morcegos. Surge o “cruzado embuçado”, terror dos
criminosos e incansável defensor de Gotham City.
Superman e Batman apresentam vários aspectos constitutivos dos super-herois como
um todo: habilidades fora do comum e uma origem traumática. Superman é exilado
interplanetário com uma série de capacidades improváveis. Batman é o sobrevivente
do assassinato de seus pais no maio da rua. Identidades secretas, motivações
centradas em episódios fundadores de mitologias pessoais, galeria de superinimigos
exóticos e de personagens coadjuvantes para o leitor se identificar enquanto o
homem de aço, ou o paladino da justiça, ou o cruzado de capa, o inocente útil e/ou o
salvador da pátria, cuidava de consertar a situação. (PATATI; BRAGA, 2006, p. 68)
67
Figura 50 – Detective Comics #27
Fonte: <http://blogdoxandro.blogspot.com/2009/07>
A estes herois icônicos, vieram se juntar muitas outras criações. São elas o
Captain Marvel de Charles Calvin Beck e Otto Binder, Wonder Man dos estúdios Eisner, o
Human Torch original e Namor the Submariner, ambos de Carl Burgos e Bill Everett. Em
maior ou menor grau, todos estes personagens sintetizam os ditames básicos acima elencados
da mitologia de um super-heroi.
A Era de Ouro possui como uma de suas principais características o maniqueísmo
moral presente nas histórias. Nota-se que isso não nasceu de pronto, pois tanto Superman
quanto Batman, especialmente este último, não se furtavam a matar criminosos. Passadas
algumas edições, porém, o dogma moral de santidade da vida foi instaurado, e servia como
sinal de distinção entre os herois e vilões o a apreço que estes e aqueles davam à vida alheia.
Os herois da Era de Ouro se instauraram, gradativamente, como modelos de moral. Era o
epíteto da justiça, da coragem e da hombridade (com uma exceção honrosa, Namor, que era
inimigo jurado dos “poluidores homens da superfície”). Estavam acima dos dilemas e
mesquinharias dos comuns, sabendo sempre o que era certo e fazendo sempre o que era certo,
verdadeiros “deuses” caminhando entre os meros mortais.
Somados a isso, o contexto histórico em que surgiram os super-herois foi propício
à sua comercialização e, em termos de vendas, foi seu auge. Os anos 30 viram surgir os
regimes totalitários europeus e o crescente militarismo que descambou na II Guerra Mundial.
Os super-herois, como seus extraordinários poderes, seus nomes espalhafatosos e seus
uniformes berrantes foram usados como propaganda de guerra, literalmente “convocados” a
servir aos Aliados contra as potências do Eixo. Não demorou muito que os inimigos se
tornassem espiões nazistas ou cientistas loucos italianos. As capas estampavam os herois
junto com os soldados, esmurrando Hitler e Mussolini. O governo americano comprava
68
centenas de revistas para enviar ao front, na expectativa de aumentar o moral das tropas.
Personagem icônico deste período é Captain America (Capitão América):
Nascido em plena euforia anti-nazista, em março de 1941, e publicado em revista
própria, o Capitão América, criado por Joe Simon e desenhado por Jack Kirby, é um
dos mais famosos herois de história em quadrihos de todo o mundo. O conhecido
cientista Professor Reinstein faz uma experiência, tendo como cobaia o praça Steve
Rogers. A experiência é um sucesso e o franzino Steve multiplicada suas forças,
tornando-o um poderoso titã. Assim nasce o Capitão América. Com meio capuz
sobre o rosto, aletas nas mporas e um “A” na testa, este personagem traz ainda no
peito e no escudo redondo, uma estrela e as listas com as cores da bandeira
americana, onde figuram uma nova imagem do Tio Sam. (CAVALCANTI, 1977, p.
41-42)
Figura 51 - Captain America #01
Fonte: <http://www.portallos.com.br/2009/07/07/captain-america>
A guerra termina em 1945, contudo, sem que fosse os herois a encerrá-la, mas o
horror do possível holocausto nuclear prenunciado pelas bombas em Hiroshima e Nagasaki.
Nos quadrinhos, o interesse pelos herois uniformizados, bem como quadrinhos de guerra,
arrefece. Muitas revistas são canceladas. Apenas grande ícones como Batman, Superman e
Wonder Woman (Mulher Maravilha) continuaram a ser publicados, e com vendagens
baixíssimas.
Para ocupar a vaga, surgiram diversos outros gêneros, desde o policial até o
romance. Mas com certeza, o maior destaque dos anos desta época foram os quadrinhos de
horror, majoritariamente publicados pela EC Comics. Como se abordou no capítulo
anterior, os quadrinhos de horror fizeram enorme sucesso, mas também atraíram a atenção de
formadores de opinião, que lançaram uma verdadeira cruzada contra as HQs.
Um destes formadores de opinião foi o psiquiatra Frederic Whertam. Em sua obra
The seduction of innocent (A sedução do inocente), de 1954, ele alega serem os quadrinhos
69
grandes responsáveis pela crescente juvenil, desvirtuando valores e denegrindo o moral
vigente. Vale ressaltar que os Estado Unidos, na década de 50, viviam a época do “terror
vermelho” e polarização dos blocos capitalistas e socialista como antagônicos. As políticas
machartistas de caça às bruxas estavam em pleno vigor. Embora o alvo principal de Wertham
fossem os quadrinhos de horror, algumas de suas críticas respingaram nos quadrinhos de
super-herois. As mais famosas delas são a alusão de um relacionamento homossexual entre
Batman e Robin e a possível homossexualidade da Mulher-Maravilha, visto sua
independência e força com relação aos homens.
Figura 52 – Seduction of the Innocent, de Whertam
Fonte: <http://www.masquemario.net/arquivo/2006/marco_2006.htm>
O maior resultado desta situação toda foi a criação Comics Code Authority, um
código de ética criado pela CMAA - Comics Magazine Association of America. Na prática, o
Comics Code era um regulamento de autocensura que limitava temas, neros, palavras e
posturas. Palavras como “crime”, “horror” e “drogas” estavam proibidas de figurar nas capas
das revistas, os mocinhos obrigatoriamente deviam vencer no final e nenhum personagem
podia ser retratado de maneira dúbia, que sugerisse conflitos internos. Por conta disso, muitos
argumentam que o Comics Code também serviu aos interesses da concorrência, literalmente
obliterando o gênero de sucesso da EC Comics.
70
Figura 53 – Selo de aprovação do Comic Code.
Fonte: <http://goodcomics.comicbookresources.com/2009/07/23>
Para efeitos de contagem se assumi que os meados da década de 50 marcam
também o fim da Era de Ouro dos quadrinhos, com um período de transição que compreende
a ascensão e queda dos quadrinhos de horror, bem como a retaliação a eles feita.
4.2.2 A Era de Prata
Embora uma parte dos teóricos não concorde, este trabalho estabelecerá como
início da Era de Prata a publicação de Showcase #4, no ano de 1956. Esta revista tem
particular importância por apresentar a repaginação de um famosa personagem da era anterior,
o Flash. Originalmente, o Flash da Era de Ouro se chamava Jay Garrick, que havia ganho
seus poderes através da descoberta de um produto miraculoso chamado água pesada”. Sua
indumentária incluía um relâmpago estilizado no peito, camisa vermelha, calça azul, sandálias
e um capacete alado na cabeça. Uma clara referência ao Mercúrio romano, tido como o
mensageiro dos deuses e, por isso, ligeiro, com asas nos pés.
Sob a direção inspirada do editor Julius Schwartz se estabelecia uma mudança de
paradigma. Os herois até então calcados na mitologia e misticismo abraçavam definitivamente
suas raízes científicas. Como acontecera com a ascensão dos quadrinhos de horror, havia
uma curiosidade para com os limites da ciência. Se os quadrinhos de horror expressavam o
medo potencial, a década seguinte é preenchida com uma esperança, um otimismo com
relação aos fenômenos e feitos científicos.
O novo Flash é Barry Allen, um cientista policial que sofre um duplo acidente:
durante uma tempestade, é banhado por produtos químicos desconhecidos e atingido por um
71
relâmpago. Deste acidente, adquire a capacidade de acionar a força da aceleração, tornando-se
o homem mais rápido do mundo. Enquanto o antigo Jay Garrick, o antigo Flash (conhecido
no Brasil como Joel Ciclione) apenas corria e lutava em super velocidade, o novo Flash
descobre uma novíssima gama de poderes: com o vácuo gerado por seu movimento, ele
consegue arrastar objetos para nocautear os inimigos; pode, usando as teorias da relatividade
de Einstein, mover-se tão rapidamente que quebra a barreira do tempo; ou ainda vibrar suas
moléculas tão velozmente que atravessa objetos sólidos e, progressivamente, alcança outras
dimensões.
Figura 54 – Showcase #04, a primeira aparição do Flash da Era de Prata.
Fonte: <
http://www.examiner.com/101-What-is-the-Silver-Age>
Schwartz também foi o responsável por resgates de personagens então seriamente
modificados pelo Comics Code. O caso mais emblemático é o Batman. Para fugir das
alegações de homossexualidade
13
, os escritores criaram para o heroi toda uma bat-família,
incluindo Batwoman, Batgirl, Robin, Alfred, Batcão e até Bat-Mirim, um duende oriundo de
outra dimensão. As histórias do Homem Morcego muitas vezes beiram ao ridículo, abusando
de artifícios da ficção científica cada vez mais estapafúrdios. Schwartz, editorando artistas
como Carmine Infantino, Neal Adams e Denny O’Neil, Batman livrou-se de sua incômoda
família (Robin incluso), ganhou uma elipse amarela sob o emblema do morcego, reencontrou
inimigos clássicos (como o Coringa) e voltou a suas raízes detetivescas.
13
Ainda que o preconceito permaneça, na época uma personagem homossexual seria inconcebível, dado o
conservadorismo da sociedade americana de então. A primeira personagem do gênero de super-herois
abertamente homossexual foi criado na década de 80, mas “saiu do armário” na década seguinte. Trata-se
de North Star (Estrela Polar), da Marvel. Depois dele, surgiram alguns outros. Atualmente tem ganhado
atenção da mídia a nova e reformulada Batwoman, uma heroína lésbica. É a primeira personagem
homossexual a ter um título próprio.
72
Em 1961 inciou-se outro movimento no univeros de super-herois que deixaria marcas
profundas em toda a indústria: o surgimento da moderna Marvel Comics. Anteriormente
chamada de Timely e posteriormente Atlas, a editora estava por fechar as portas, devido às
fracas vendas de seu segmento de horror e ficção científica. Por essa época, fazia sucesso a
revista da Justice League of America (Liga da Justiça da América), uma reunião dos herois
mais famosos da editora National Comics, que passou a se chamar DC. Era a revista onde
herois como Batman, Superman, Mulher-Maravilha, Lanterna Verde (Green Lantern no
original) e outros se reuniam para enfrentar ameaças em comum. Foi o protótipo das super-
equipes. O dono da Atlas, Martin Goodman encomendou a dois jovens artistas, Stan Lee nos
roteiros e Jack Kirby nos desenhos, uma história com uma equipe que alavancasse o mesmo
sucesso entre os leitores. Lee e Kirby foram além do pedido, e apresentaram Fantastic Four
#1. Conforme Patati e Braga:
O desafio era tornar os superseres mais próximos do leitor e mais interessantes. Uma
liga de super-herois, por exemplo, devia parecer uma família, e não se encontrar
apenas na hora de combater o mal. Essa é a raiz do Quarteto Fantástico [...].
(PATATI; BRAGA, 2006, p. 148)
O que Stan Lee e Jack Kirby fizeram foram descer os super-herois dos pedestais
que ocupavam e tornar-los cada vez mais humanos, com preocupações humanas e problemas
humanos. Alguns apresentavam inclusive falhas de caráter. No caso do Quarteto, sua origem
bebe da ficção científica. Pilotos de uma nave de teste (estamos na época da corrida espacial),
o cientista Reed Richards, seu melhor amigo Benjamim “Ben” Grimm, a noiva de Reed, Sue
Storm, e o irmão desta, Johnny Storm, são colhidos por uma tempestade de “raios cósmicos”,
voltando à Terra com incríveis poderes. Os quatro juram usar seus poderes para o bem, e já na
primeira edição se vêem as voltas com um monstro gigante. A novidade está na dinâmica de
família entre eles. Sue, a Garota-Invisível, na maioria das vezes precisa ser resgatada, e se
ressente com isso. Johnny, o novo Tocha Humana, é um garoto, impetuoso, descuidado, na
maioria das vezes mais interessado em usar seus poderes para conquistar namoradas que lutar
pelo bem. Reed, com capacidades elásticas, é um gênio científico, mas desligado das outras
coisas e um namorado pouco atencioso. Mas a ia de toda essa relação encontra-se em Ben
Grimm. Assumindo um aspecto rochoso e disforme, ele se auto-intitula como Coisa. Dos
quatro, é o único que não consegue controlar seu poder, ficando preso na forma monstruosa e
muitas vezes causando pânico entre os cidadãos comuns. É extremamente bondoso, mas tem
pavio curto e fica amargurado com sua situação, o que acarreta muitas brigas dentro do grupo.
73
Esta dinâmica familiar, nem sempre harmoniosa, mas muito real, será sempre o ponto forte do
Quarteto Fantástico.
Figura 55 – Fantastic Four #01, o início da moderna Marvel Comics.
Fonte: <http://www.perolasparaporcos.com/2009/08/era-uma-vez-conheca-as-eras-nos.html>
Na esteira do sucesso e com o intuito de fazer personagens mais humanos, em
1962, Stan Lee criou o maior sucesso da Marvel, o Homem-Aranha (Spider-Man). Aliás, reza
a lenda que o Homem-Aranha começou cancelado. Sua primeira história apareceu em
Amazing Fantasy #15, uma revista à beira do cancelamento. Stan Lee havia desenvolvido a
trama em torno de um personagem com poderes de aranha. O dono da Marvel acreditava que
um personagem baseado num animal tão repugnante jamais cativaria o público. E mais, a
personagem em questão era adolescente, sem um parceiro adulto em quem se apoiar. Pior
ainda, era frágil, franzino e deslocado, constantemente humilhado pelos colegas, vestia uma
gravata borboleta para ir à escola, não tinha dinheiro e morava com os tios, bem mais velhos.
O jovem Peter Parker ganha seus poderes num acidente de laboratório com uma aranha
irradiada. Seu primeiro impulso é lançar-se na carreira de lutador de vale-tudo, afim de
conseguir dinheiro. Enganado pelo agenciador, deixa escapar o bandido que rouba este
agenciador, como retribuição pelo logro, apenas para descobrir que, momentos depois, este
mesmo bandido é responsável pela morte de seu amado tio. Diante dessa tragédia, o heroi se
depara com a máxima que norteará sua vida, a de que “com grandes poderes vêm grandes
responsabilidades”, e se torna o defensor mascarado de Nova York.
O Homem-Aranha angariou identificação imediata com o público. Primeiro pela
idade, uma vez que tinha praticamente a mesma faixa etária que seus leitores e, diferente dos
parceiros mirins de até então, ele andava sozinho, não dependendo de ninguém. Depois, era
obrigado a conciliar sua vida heroica com problemas comuns, como trabalhar para pagar as
74
contas, esconder-se do senhorio por estar com o aluguel atrasado, namorar, estudar e cuidar da
tia doente. E na maioria das vezes, seus poderes atrapalhavam sua vida, sempre chegando
atrasado aos encontros, se machucando, perseguido pelo editor do jornal Clarim Diário como
ameaça pública, faltando a compromissos. Ao contrário do Superman, perfeito e infalível,
Peter era obrigado a escolher entre prender os bandidos ou levar os remédios da tia doente,
entre enfrentar o vilão ou fugir para chegar a tempo de frequentar a aula. Um verdadeiro heroi
imperfeito.
Figura 56 – Amazing Fantasy #15, a primeira aparição do Homem-Aranha.
Fonte: <http://www.historyguy.com/comicshistory/>
O surgimento desta tendência exposta pela Marvel Comics fez com que alguns
teóricos se inclinassem em dizer que 1961 inaugurou o que seria a Era Marvel dos
quadrinhos. Esta é uma interpretação um tanto exclusivista, mas conforme Smee:
de se concordar em parte com os marvetes, pois apenas com alguns elementos
dos herois da Casa das Ideias é que se completaria o paradigma da Era de Prata. A
Marvel trouxe um sentido de cronologia mais arraigado e um universo comum para
seus herois, onde o que acontecia na história do primeiro refletia na do segundo, mas
foram as fraquezas dos herois e dos vilões os principais fatores que conquistaram o
público. Anos mais tarde, a National contrataria alguns freelancers da Marvel para
aproximar seus herois do modelo criado pela concorrente (SMEE, 2008).
Outro aspecto da Era de Prata, e agora se aproximando mais da fase de transição
que início a outra era, foi a crescente consciência social. Em 1970, na revista Green
Lantern/Green Arrow #76, as personagens Lanterna Verde e Arqueiro Verde iniciavam uma
viagem pelo país. Na verdade, o Arqueiro Verde sempre teve tendências mais radicais, de
esquerda, e acusava seu amigo Lanterna Verde de ser indiferente a essas mazelas sociais. Em
sua viagem, eles se deparam com coisas piores que invasões alienígenas ou cientistas
75
malucos, como exclusão social, racismo, miséria e o problema das drogas. É emblemático
diálogo sobre racismo, que consta já na primeira história, proferido por um velho negro de um
bairro pobre, dirigindo-se ao Lanterna Verde:
li a seu respeito... de como você trabalha para os peles azuis... de como, em certo
planeta, ajudou os peles laranjas... sem falar no que já fez pelos peles púrpuras!
que peles com a qual vo nunca se importou... como os de pele negra! Eu
gostaria de saber porquê. Responda-me, Sr. Lanterna Verde! (O’NEIL; ADAMS;
apud GUEDES, 2008, p. 85)
Mazelas sociais como as drogas também foram trabalhadas na revista do Homem-
Aranha, em Amazing Spider-Man #96-98, retratando as viagens de LSD do amigo de Peter,
Harry Osborn. Assuntos fugiam um pouco do que decretava o Comics Code. As revistas do
Aranha, por exemplo, chegaram a sair sem o selo do código na capa. Era o sinal de que
mudanças mais drásticas estavam por vir.
Figura 57 – Green Lantern and Green Arrow #85, onde se descobre o vício de Ricardito em drogas.
Fonte: <http://oprotagonista.com/2008/10/23/um-cacador-entre-cacadores/>
4.2.3 A Era de Bronze
A década de 70, por conseguinte, também foi o alvorecer de uma nova era para o
gênero de super-herois. O próprio sentimento com relação ao mundo mudava. Nos EUA,
jovens cada vez mais jovens encaminhavam-se a um dos conflitos mais sangrentos do século,
a Guerra do Vietnã. Na política, o escândalo de Watergate fez de Richard Nixon um dos
76
primeiros presidentes a renunciar. Os americanos encaravam a vida com mais cinismo e as
minorias estavam mais ávidas por espaço e representação.
Cronologicamente, a Era de Bronze começa com a publicação de Amazing
Spider-Man #121, em junho de 1973. Esta revista é basilar por condenar à morte, pela
primeira vez, uma coadjuvante de peso. Trata-se de Gwen Stacy, a então namorada do
Homem-Aranha e personagem muito querida dos leitores. Era sem dúvida uma mudança no
status quo das histórias: a busca pela verossimilhança era tal que os leitores deviam estar
preparados para, como na vida, suportar as tragédias.
Os motivos da morte de Gwen Stacy ultrapassam os puramente de enredo. Existe
também a confirmação do que Umberto Eco (1979) diz, abordado no início deste capítulo,
sobre a imutabilidade básica do heroi. O romance de Peter e Gwen se arrastava
indefinidamente, e a ele se insinuava um triângulo amoroso com outra personagem, Mary
Jane. Para resolver este impasse, os editores preferiram ver o heroi viúvo que casado,
constituindo família. A história causou comoção e reações indignadas por parte dos fãs, que
idolatravam a personagem.
Figura 58 – Spider-Man #121, com a história “A noitem em que Gwen Stacy morreu”.
Fonte: <http://www.weeklycrisis.com/2008/08/top-10-tuesdays-10-shocking-comic-book.html>
O Comic Code sofreu alterações em 1971, impulsionado pelo sucesso de histórias
que abordavam temas “perigosos”. Assim, álcool e drogas podiam figurar entre os super-
herois, desde que retratados como danosos à saúde. Exemplo disso é o instigante arco Demon
in a bottle (O demônio da garrafa) do Homem de Ferro. Tony Stark, o alter ego do Homem de
Ferro, é um rico industrial que se compraz nos prazeres que seu dinheiro lhe proporciona. O
demônio da garrafa em questão é o alcoolismo: Stark sucumbe ao vício frente a enorme
pressão que sofre no mundo dos negócios, na vida pessoal e na vida heroica. Manipulado, ele
77
perde sua fortuna, seus amigos, é acusado de assassinato e quase acaba causando mais mortes
quando, completamente bêbado, sai a voar com sua armadura. Sua queda e recuperação fazem
desta uma fase emblemática da personagem.
Da mesma forma, as minorias ganham sua retratação durante a Era de Bronze.
Embora o primeira personagem negro seja o Pantera Negra, datado de 1961, Luke Cage,
Hero for Hire (Luke Cage, Heroi de Aluguel) é o primeira personagem negro a ganhar revista
própria. Cage é um malandro de rua condenado injustamente. Na prisão, é submetido a uma
experiência que lhe confere super-força e pele invulnerável. Então, ele se sedia no Harlem,
bairro de maioria negra em Nova York, e começa a prestar serviços para a comunidade em
troca de dinheiro. Na maioria das vezes, por força da situação, acaba trabalhando de graça. No
dizer de Guedes:
Cage era um marginal de rua preso por um crime que não cometera. Na prisão, foi
voluntário em um experimento científico que lhe conferiu uma força prodigiosa e
pele quase invulnerável. Ao escapar da prisão, tornou-se um mercenário... um
verdadeiro heroi de aluguel, que cobrava pelos serviços prestados. Uma crítica social
aberta, pois mostrava que mesmo no reino “encantado” dos quadrinhos, o caminho
do bem para os negros era sempre mais difícil. É claro que, invariavelmente, Cage
acabava levando calote ou então arriscando a vida pelos outros por simples
altruísmo. (GUEDES, 2008, p. 140)
Figura 59 – Luke Cage, Hero for Hire #01.
Fonte: <http://scoop.diamondgalleries.com>
Ainda apostando no tema de minorias, esta foi a época da ascensão do atual maior
fenômeno de vendas da história em quadrinhos de super-herois: X-Men. Criados por Stan Lee
e Jack Kirby em 1963, X-Men trazia a premissa de seres que nasciam com poderes que se
desenvolveriam na adolescência, uma espécie de evolução da raça humana. Os seres humanos
normais, portanto, desconfiavam desses novos seres, chamados mutantes. Nada mais que uma
metáfora tanto para a puberdade (pelas transformações) quanto para as diferenças étnicas. Em
78
1970, porém, o título beirava ao cancelamento, com baixas vendas. Aproveitando-se da
situação, a Marvel idealizava uma equipe com personagens transnacionais, oriundos de
diversas partes do mundo. Nasciam os novos X-Men: Ciclope e Professor Xavier da formação
antiga, o russo Colossus, o alemão Noturno, o irlandês Banshee, o índio apache Pássaro
Trovejante, o japonês Solaris, a queniana Tempestade e o carismático “baixinho canadense”,
que roubaria os holofotes para si, Wolwerine. As primeiras histórias deste novo grupo
versavam, sobretudo, sobre tolerância e ódio racial, atingindo vendas expressivas que, na
década de 80, tornaram-se astronômicas.
Figura 60 – Giant Size X-Men #01, com a nova formação dos X-Men.
Fonte: <http://www.omelete.com.br/Os_X_Men_de_Chris_Claremont_e_John_Byrne.aspx>
Gradualmente, os X-Men foram deixando a tutela do Professor Xavier, buscando
cada vez mais autonomia, até o momento em quem Xavier nem figurava mais em seu quadro.
Na DC Comics, coisa parecida acontecia com a equipe Teen Titans (Jovens Titãs), formada
por ex-parceiros de super-herois. Integravam a equipe Robin (parceiro do Batman), Kid Flash
(parceiro do Flash), Mutano (antigo Rapaz-Fera, da Patrulha do Destino), Moça-Maravilha
(parceira da Mulher Maravilha), Cyborg e Ravena. Era uma equipe formada por jovens,
dispensando a vigilância e sanção oficial de seus respectivos mentores. Eram os tempos da
autonomia, da auto-consciência e tomada de decisão, que se refletiam também nos
quadrinhos.
A Era de Bronze também viu renascer o interesse por quadrinhos de terror, uma
vez que haviam mais brechas no Comic Code a ser exploradas. É notória a fama alcançada,
por exemplo, da série Tomb of Dracula (A Tumba de Drácula). Foi também a era das
tendências, em especial a de artes marciais, alavancada pelo sucesso dos filmes de Bruce Lee.
79
As personagens marcias da Marvel, como Iron Fist (Punho de Ferro), Shang Chi Master of
Kung Fu (Mestre do Kung Fu) e White Tiger (Tigre Branco) são todos desta época.
Esta também foi a época dos grandes crossovers, o intercruzamento de diversas
personagens numa mesma história. Inicialmente entre os herois da mesma editora, como as
visitas da Sociedade da Justiça à Liga da Justiça da América, os crossovers não se
restringiram nem às editoras: em 1976 surgiu Superman vs. The Amazing Spider-Man: The
battle of the century (Superman vs. O Espetacular Homem-Aranha: A batalha do século),
iniciando uma profícua, mas não menos conturbada, relação de cooperação entra as duas
maiores concorrentes.
Figura 61 – Superman vs Spider-Man, o primeiro encontro entre Marvel e DC.
Fonte: <http://www.samruby.com/Series/DC/supermantreasury1.htm>
Mas a verossimilhança, o realismo idealizado pela geração de 60, tão acentuado
pela década seguinte, seria também o estopim do fim desta época e início de outra. A
verossimilhança foi o auge e o declínio dos super-herois.
4.2.4 Uma Era Moderna?
A época após a Era de Bronze ainda carece de definições. Conforme nos diz um
renomado escritor de quadrinhos, Kurt Busiek:
Você pode identificar as Eras que realmente acabaram [...] Então, a época que
você está vivendo no momento será sempre chamada de ‘Era Moderna’ até que você
80
dê a ela um nome real – porque então você pode colocar uma lápide sobre ela, já que
está na seguinte. (BUSIEK, apud SMEE, 2008)
De fato, como em toda a classificação das eras de quadrinhos de super-herois, não
existe um consenso sobre se a era posterior à era de Bronze deu lugar a outra. É possível,
contudo, salientar características pertencentes a este tempo.
Na década de 80, a busca pela verossimilhança alcançou o ápice em obras que
hoje são basilares para a cultura dos super-herois e também a porta de entrada para a nova era
que se seguiu. Ambas as obras saíram pela DC Comics, e são elas Batman: The Dark Knight
Returns (Batman: O cavaleiro das trevas) de Frank Miller e Watchmen de Alan Moore.
Ambos os escritores causavam furor nas séries regulares que escreviam, em condições
muito similares.
Pela Marvel, Miller havia recebido a série Daredevil (Demolidor no Brasil), uma
série às portas do cancelamento. Demolidor trata do heroi cego Matt Murdock, vitimado por
um acidente com produtos químicos que lhe tiram a visão mas aguçam todos os outros
sentidos. Atleta e lutador excepcional, o Demolidor divide sua existência como um advogado
durante o dia e um vigilante durante a noite. Miller trouxe todo e conhecimento de quadrinhos
europeus, mangás e cinema para tornar o Demolidor um sucesso de crítica e vendas. Com
maior ênfase na persona do advogado, o heroi de colante, em muitas vezes, aparecia menos
que os demais coadjuvantes. Com tramas que envolviam ninjas, crime organizado e batalhas
judiciais, a personagem saiu do limbo para o sucesso e primeiro escalão da editora.
Para a DC, Moore também foi o responsável por resgatar outra personagem do
esquecimento, este também com data certa para o cancelamento. Swamp Thing (Monstro do
Pântano) foi assumida pelo inglês como uma virada copernicana na condução da personagem.
Originalmente, a personagem Alec Holand, um biólogo, sofre um acidente de laboratório que
o deixa com aspecto de monstro formado por urzes, raízes e folhas. Na hoje antológica
história intitulada “Lição de anatomia”, Moore ao conhecimento dos leitores a verdade de
que a personagem não era um homem que havia se tornado monstro, mas um elemental da
natureza, um monstro, que achava que havia sido homem. A partir daí, o escritor reconstrói a
personagem, com passagens pelas histórias de terror, de ficção científica, de fantasia, com
diálogos brilhantes e experiências vanguardistas. As histórias do Monstro do Pântano muitas
vezes forçavam ou mesmo quebravam a censura do Comics Code (como quando exploravam
temas sexuais), servindo de marco inicial para o selo de quadrinhos adultos da editora, a
Vertigo. Esta é sem dúvida um dos marcos desta era, na qual a série Sandman, de Neil
Gaiman, é o principal expoente.
81
A diferença desses autores com relação a diversos outros que os precederam foi sua
convicção de que era possível realizar quadrinhos que fizessem render mais o
potencial expressivo da mídia. Moore conhecia o trabalho de Jack Kirby, mas o de
Crumb também. Miller sabia quem era Higo Pratt e, mais importante ainda, do ponto
de vista da intensidade do contato entre as culturas, teve contato com a obra de
Kazuo Koike e Gosei Kojima [...]. Além disso, diversas vezes ficou claro que os
dois quadrinhistas e os autores da geração deles lêem muito mais coisas do que os
gibis que estão nas bancas. Tem o singelo hábito de ler livros. (PATATI; BRAGA,
2006, p. 162)
Com Batman: O Cavaleiro das Trevas, Miller coloca o Homem Morcego num
possível futuro. Nele, Bruce Wayne, o alter ego do Batman, amarga uma triste aposentadoria
auto-imposta. Ao mesmo tempo, ele vê sua cidade caminhando para o caos com a crescente
criminalidade e delinquência juvenil. Uma obra intimista, onde as personagens
frequentemente conversam consigo mesmo, ao mesmo tempo política, mencionando
conspiração e corrupção, que chega ao clímax com um embate entre Batman, uma força
anárquica, contra Superman, capacho do sistema. A postura violenta, selvagem, mas também
libertária do Batman de Miller gerou discussão e espelhamento por parte da maioria dos
escritores daquela geração.
Figura 62 – Batman: The Dark Knight Returns.
Fonte: <http://imagescomicscrew/Batman:_The_Dark_Knight_Returns>
Em termos narrativos e gráficos, entretanto, Watchmen de Moore é considerado o
ápice das histórias em quadrinhos até hoje, sendo a única obra de quadrinhos a figurar na lista
da Times como uma das cem melhores obras do século. Moore levou a verossimilhança ao
extremo, tentando responder com sua obra como seria o mundo se herois uniformizados
existissem de verdade. Em meio a uma trama de assassinato, o leitor refletidas as novas
tecnologias, as relações sociais, as tensões políticas e até os gostos da cultura pop, todas
82
transformadas pela existência de super-seres. Além disso, novas técnicas gráficas, desenhos
mais expressivos, a ausência de onomatopéias, teoria do caos enquadramentos singulares
tentaram levar a “fórmula” dos quadrinhos a sua máxima realização. Watchmen retrata a
investigação do vigilante mascarado (e paranóico) Rorschach sobre o assassinato de um
antigo colega também mascarado, o Comediante. Visitando seus antigos colegas, todos
proibidos de atuar por conta de uma lei do congresso (promulgada por pressão dos policiais),
Rorschach acaba embrenhado numa trama muito maior, que visa mudar a política e postura
belicosa das duas potências mundiais em constante hostilidade. Com tramas paralelas e
brilhantes caracterizações de personagem, com suas falhas de caráter, traumas e deficiências,
a série dará o tom a tudo o que se escreverá por quase duas décadas.
The most obvius sense in wich Watchmen is tethered tocomics is the fact that it’s
specifically about comics’ form and content and readers’ preconceptions of what
happens in a comic book story. Beneath that surface, though, it relies on being a
comic book for its crucial sense of time and chronology. The amount of time the
reader has to spend working through the story isn’t the same as the amount of time
the events in the story encompass it’s longer and the direction in which the
reader experiences the story isn’t linear but keeps skipping backwards to revisit the
past, as the narrative does (WOLK, 2007, p. 240-241).
14
Figura 63 – Watchmen.
Fonte: <http://www.insidesocal.com/modernmyth/2009/03/watchmen-sequel-unlikely.html>
Os herois imperfeitos chegaram a ser extrapolados nas histórias que se seguiram.
A essas duas séries soma-se o enorme sucesso que fazia a série dos X-Men, em especial seu
notório membro anti-heroi e anti-social, Wolverine. É o surgimento de uma nova estética, que
14
O mais óbvio em Watchmen é o fato do encadeamento da forma dos quadrinhos com seu conteúdo e os
preconceitos dos leitores sobre o que acontece em uma história em quadrinhos. Abaixo dessa superfície,
porém, pretende ser uma história em quadrinhos crucial em se tratando de tempo e cronologia. A quantidade
de tempo que o leitor tem de gastar com a história não é a mesma que a quantidade de tempo narrativo que os
eventos da história englobam - é muito maior - e a direção na qual o leitor experimenta a história não é linear,
mas continuamente voltando atrás, para revisitar o passado, como a narrativa também o faz. (Tradução do
pesquisador).
83
se chamará grim’n’gritty, que poderia ser traduzido como “cruel e raivoso”, onde as
personagens tornam-se cada vez mais brutais e violentos.
A Era Moderna é também a era das reformulações. A maior delas, em se tratando
de história, chama-se Crisis on Infinite Earths (Crise nas Infinitas Terras), uma maxi-série
que foi a maneira encontrada da DC Comics arrumar a casa. Explica-se: durante sua história
como empresa, a DC Comics (que em dado momento foi adquirida e hoje faz parte do grupo
Time Warner) adquiriu os direitos de diversos outras personagens de outras editoras. É caso,
por exemplo, de Capitão Marvel, adquirido da Fawcet Comics, de Besouro Azul e Capitão
Átomo, adquiridos da Charlton Comics ou ainda Condor Negro e Bomba Humana, adquiridos
da Quality Comics, entre muitos outros. Soma-se a isso os inúmeros encontros de personagens
da Era de Ouro e Era de Prata, de futuros alternativos e realidades alternativa, e o que sobra é
uma tremenda confusão entre os leitores. A continuidade e cronologia da DC careciam de
coerência, com inúmeras realidades (as “infinitas Terras” do título) coexistindo e mesclando-
se entre si. Em abril de 1985, no aniversário de seus 50 anos, a editora lançou esta minissérie,
pelas mãos de Marv Wolfman e George Perez, uma trama cósmica e apocalíptica, que unifica
todas as diferentes realidades, erigindo apenas uma Terra como a principal e reformulando, a
partir do zero, quase todos os seus personagens.
Outra grande reformulação foi no campo das vendas, com a introdução do
“mercado direto”. Até o início da década de 80, os quadrinhos americanos eram vendidos da
mesma forma que o são ainda hoje no Brasil: as editoras entregam suas revistas em bancas,
farmácias ou outros postos de venda e, no ato da nova edição, recolhem o queo foi
vendido, chamado de “encalhe”. As vendas são consignadas e o encalhe é arquivado, posto à
venda sob encomenda no mercado de “edições antigas” ou, depois de muito tempo e baixa
procura, vendidos por preços ínfimos a sebos e afins. Esse tipo de mercado obriga as editoras
a trabalhar com tiragens menores, com vendas incertas. Além disso, também obriga a linha
editorial a ser mais conservadora, baseada nas tendências e vendagens dos meses anteriores.
O mercado direto surgiu da iniciativa de Phil Seuling, um professor de ginásio
de quadrinhos e colunista de fanzines
15
. Entre diversas atividades, Seuling também organizava
convenções de quadrinhos e possuía muitas amizades no meio. Por diversas vezes, através da
compra massiva de revistas, evitou que revistas do circuito underground fossem canceladas
em seus primeiros números. Essa iniciativa levou-o a criar e fomentar o mercado direto,
15
Fanzine: contração das palavras fan e magazine, designa as revistas feitas por fãs, invariavelmente de forma
amadora e vendidas a preços baixíssimos. Ainda assim, foram a porta de entrada de muitos artistas na
indústria.
84
auxiliado pela novidade que era Berkeley Comic Art Shop, a primeira loja especializada em
quadrinhos, chamadas de comic book store ou comic book shop, que abriu suas portas em
1972. O mercado direto funciona numa íntima sinergia entre os lojistas e as editoras.
Semanalmente, as editoras publicam seu catálogo de lançamentos. Em posse desse catálogo,
os lojistas fazem suas reservas, com base nas preferências de seus clientes e em suas
estimativas de vendas. Os comic shops se comprometem a comprar e pagar por suas reservas,
sem possibilidade de devolver o encalhe. Em troca, ganham descontos maiores nos preços de
capa, capitalizando mais lucros. Com a certeza da venda certa, editores e criadores podiam
ousar um pouco mais, fugindo do convencional. A adesão ao mercado direto foi lenta, e
editoras como a Charlton, por exemplo, devem sua falência e posterior venda, em parte, à
falta de visão em aderir ao sistema. Em 1981, nos inícios da Era Moderna, a Marvel decidiu
dirigir uma publicação destinada ao mercado direto e exclusivamente às comic shops. Para
muitos, esta edição marca o início do grande mercado direto.
Assim, com data de capa marcando março de 1981, a Marvel lançou Dazzler 1, o
primeiro título de uma grande editora a ser vendido única e exclusivamente em
comic shops vale ressaltar que Mike Friedrich, em abril de 1974, lançara a revista
Star Reach nº 1 por sua editora independente e homônima; mas (e até por isso), sem
o impacto de uma publicação da Marvel (GUEDES, 2008, p. 176-177).
O mercado direto fez surgir também uma nova espécie de compradores de
quadrinhos: o especulador. Existiam, até então, dois tipos de aficcionados, os leitores, que
compram as revistas pelo interesse exclusivo na história e nas personagens; e os
colecionadores, que além da história, se atém ao aspecto de montar e guardar coleções de
revistas, do primeiro ao último número, a exemplo de colecionadores de selos, carros ou
quadros. O especulador, muitas vezes, nem acompanha uma série ou se interessa pelo
universo ficcional. Acontece que revistas históricas, especialmente as da Era de Ouro, por
suas baixas tiragens (comparadas com as de hoje) e relativa antiguidade, alcançam valores
exorbitantes entre os colecionadores. A revista mais cara, por exemplo, que é Detective
Comics #27, justamente por ser a primeira aparição do Batman, está cotada em US$
1.470.000 (NOSTOMANIA'S 100 MOST VALUABLE COMIC BOOKS, 2009). Aos
especuladores interessam acompanhar as notícias e rumores do meio, avaliando a participação
de determinado artista ou a aparição de um nova personagem, na tentativa de adquiri-las para
depois vender pelo melhor preço.
No final da década de 90, a estética grim’n’gritty dava seus últimos extertores.
Como se disse, este movimento veio de uma extrapolação e, por que não dizer, apropriação
85
indébita de apenas um dos traços elencados nas obras de Miller e Moore. Em suma, apenas o
caráter raivoso e violento das personagens era ressaltado, uma característica que também
ganhou peso nos desenhos. Muitos artistas fizeram sucesso nessa época, como Tood
MacFarlene, Jim Lee, Rob Liefeld, Erik Larsen e muitos outros, todos estes desenhistas e
escritores. As obras assinadas por estes artistas vendiam muito bem, na maioria das vezes por
conta dos especuladores. Ainda assim, a indústria sentia necessidade de reinventar-se, uma
vez que novas mídias como vídeo-games e a nascente internet prometiam roubar boa parte de
seu público. Surgiram capas cromadas, capas variantes, tiragens limitadas, levando a indústria
(e os leitores) aos limites. No quesito roteiros, os escritores procuravam sempre novos
expedientes criativos, com mortes, ressurreições, substituições, com argumentos pouco
criativos e histórias estapafúrdias. Conforme lembra Smee:
O Superman morreu e foi substituído. Batman ficou paraplégico e foi substituído. O
Lanterna Verde enlouqueceu e foi substituído. A Mulher-Maravilha perdeu uma
gincana e foi substituída. Na Marvel, também ocorreram as mais radicais
transformações. O Homem-Aranha descobriu que era um clone e foi substituído. O
Quarteto Fantástico, os Vingadores e o Hulk, dividido, deram sua vida para salvar
um universo e foram substituídos. Novos herois para uma nova geração de leitores?
Sim, mas em pouco tempo essa mesma geração se cansaria da fórmula e os herois
teriam de recuperar rapidamente valores dos quais haviam sido alienados. (SMEE,
2008)
Em 1992, Lee, McFarlene, Liefeld, Larsen e outros saíram das editoras onde
trabalhavam, procurando angariar mais lucros com personagens que fossem de sua inteira
propriedade. Fundaram a chamada Image Comics, uma editora que agrupava personagens
criados por eles, em histórias que primavam o desenho sobre o reteiro. Muitos deles eram,
inclusive, plágios descarados de herois da Marvel e DC. Apesar disso, os primeiros números
dessas séries venderam muitos exemplares, tirando mercado das “duas grandes”, Marvel e DC
Comics.
86
Figura 64 – Capa do livro Image Comics: The road to independece, com personagens da editora.
Fonte: <http://www.coverbrowser.com/covers/bestselling-comics-2007/28>
A pedra tumular desta era, que alguns querem chamar de “Era de Ferro”, outros
de “Era do Cromo”, foi a implosão do que Smee (2008) chama de “bolha especulativa”. O
grande número de linhas editoriais, os contínuos eventos, as diversas mortes e ressurreições
de personagem acabavam por afastar os leitores, que procuravam roteiros de qualidade. Os
especuladores, entretanto, não conhecendo os meandros do meio, compravam grandes lotes de
revistas, que acabaram por final encalhadas. Muitas comic shops acabaram falindo, levando
também as grandes editoras a reestruturar seus negócios.
Aqueles que se tornaram "profissionais da especulação" acabavam vendendo seu
comics apenas para outros especuladores. Na verdade, poucos comics do início dos
anos 90 mantiveram seu valor especulativo, com mais de 7 milhões de cópias
produzidas para certos títulos, seu valor quase desapareceu. Revistas como X-Men
#1 e Youngblood #1, considerados valiosos na época, podem ser encontrados por
menos de um dólar hoje em dia (SMEE, 2008b).
4.2.5 Pós-modernidade
Para muitos, ainda parece cedo apontar uma nova era dos quadrinhos, quanto mais
defini-la com uma nomenclatura. É perceptível, porém, que a estética antiga foi, senão
abandonada de todo, ao menos em muito abrandada. Na verdade, muitos revisionistas olham
para a década de 90, auge das reformulações e do grim’n’gritty com rancor, antagonizando
artistas e personagens criados nesta época. Dois artistas em especial, Mark Waid nos roteiros
87
e a virtuose Alex Ross, expressam essa tendência em duas obras distintas para duas editoras
diferentes. A primeira delas é Marvels, para a Marvel Comics, publicada em 1994. Nela, o
fotógrafo jornalista Phil Sheldon repassa a história dos herois Marvel, sob o ponto de vista de
uma pessoa comum. Assim, são retratadas a emoção da vitória do Quarteto sobre Galactus, a
histeria anti-mutante, a heroica luta dos Vingadores contra invasores espaciais ou o choque da
morte de Gwen Stacy. Impera nessa história um sentimento forte de nostalgia e saudosismo,
brilhantemente acentuada pela quase fotográfica arte de Ross.
Figura 65 – Marvels #02.
Fonte: <http://tinyheroes.wordpress.com/2008/09/21/marvels-marvels/>
Em 1996, a dupla, na DC, lançou Kingdom Come (O Reino do Amanhã numa
tradução não literal). Aqui, é retratada a nova geração de herois, filhos e netos dos herois de
então, muito mais violentos e inconsequentes. Perpetradores de violência e desordem, acabam
por arrancar o Superman da aposentadoria. Este reúne seus antigos companheiros, a fim de
adestrar e ensinar a geração rebelde, numa clara alusão aos novos herois das editoras
concorrentes. Um dos antagonistas do Superman é uma cópia proposital, na face e
indumentária, da personagem Cable, criação de Liefeld para Marvel e exemplo máximo do
estilo raivoso e violento. Ao final, um embate entre Superman e Capitão Marvel (controlado
por Lex Luthor) termina com o sacrifício de Marvel em favor dos herois. Iconicamente, diz
Knowles, o Capitão Marvel é o representamen da Era de Ouro, dos valores e nobreza que
originalmente estavam atrelados aos super-herois, algo em falta nos quadrinhos dos anos 90.
Segundo Knowles:
O Reino do Aman evocou o espírito do Capitão Marvel porque seus criadores
acharam que sua ausência ou melhor, a ausência daquilo que ele representava
estava destruindo algo que eles adoravam. Os tristonhos e duros herois de Rob
Liefeld e sua gangue de conspiradores sombrios e violentos vingadores como
88
Wolverine e o Justiceiro não era sequer afáveis, que dirá admiráveis ou dignos de
imitação (KNOWLES, 2008, p. 31).
Figura 66 – Kingdom Come #01.
Fonte: <http://blogdoreco.blogspot.com/2008_10_19_archive.html>
O Reino do Amanhã seria o candidato ideal a figurar como o marco inicial de uma
nova era, mas ainda é muito cedo para se afirmar qualquer coisa do tipo. O que se nota,
todavia, é que, exaurida a temática da violência, os quadrinhos de super-herois mais uma vez
se voltam para os valores exaltados pelas Eras de Ouro e de Prata. Essa não é uma tendência
geral, mas constante no mercado. São ícones desta nostalgia os trabalhos de Alan Moore a
frente de Supreme (Supremo), um personagem plagiado do Superman por Liefeld. Moore, ao
assumir a personagem, assumiu também esse plágio, escrevendo histórias calcadas nas
histórias clássicas de cada era. Não contente com isso, o próprio Moore, voltando aos
quadrinhos de herois depois de tempos afastado, criou personagens baseados nos antigos
pulps ou sucessos de quadrinhos, como Tom Strong (homenageando Tarzan e Doc Savage),
Greyshirt (homenageando Spirit) e The League of Extraordinary Gentlemen (A Liga
Extraordinária), onde reúne os herois da literatura vitoriana, os predecessores históricos dos
super-herois.
89
Figura 67 – Tom Strong #01, um resgate dos pulps.
Fonte: <http://www.laurahird.com/newreview/alanmooreinterview.html>
Figura 68 – The League of Extraordinary Gentlemen, herois da ficção vitoriana.
Fonte: <http://mtc.vox.com/library/book/6a00c22523f3adf21900e398dc05090002.html>
Na mesma linha, Warren Ellis tentou criar uma nova mitologia com sua série
Planetary. Nessa, os ditos “arqueólogos do impossível” desvendam conspirações, visitam
realidades imaginárias e prestam culto, em diversas histórias, aos basilares dos quadrinhos de
herois. Leitores mais atentos vão percebendo e interligando as referências, que vão dos filmes
japoneses de monstros gigantes à personagens vitorianos, de herois dos quadrinhos a Júlio
Verne. Um puro sentimento de nostalgia.
90
Figura 69 – Planetary #01.
Fonte: <http://www.multiversodc.com/v2/2009/03/planetary>
O próprio Superman, visitado e revisitado continuamente, alcançou uma das séries
de maior sucesso nos últimos anos, pela mão dos escritor Grant Morrinson, justamente
trazendo de volta aspectos da Era de Prata. All Star Superman é nada mais que uma série sem
compromisso com a cronologia da personagem, onde se apresentam aspectos que foram
negados ou reeditados nas reformulações de eras posteriores. Mais que isso, sem ser
infantilóide ou pueril, a série resgata um sentimento de inocência que há muito parecia
perdido.
Figura 70 – All Star Sperman #01.
Fonte: <http://blogderandy.wordpress.com/2009/05/26>
Pelo lado da Marvel, a maior exemplificação deste revival foi o lançamento, em
2000, de sua linha Ultimate, traduzidos no Brasil como Milennium. Nessa série, tratada como
um universo paralelo da editora, os herois icônicos são repaginados, com suas origens,
motivações e problemáticas transpostas para a atualidade. Assim, o Homem-Aranha, por
exemplo, deixa de ter a origem de seus espetaculares poderes ligados a uma aranha radioativa
91
(a radiação estava na moda nos anos 60, por conta do medo da guerra nuclear) para ser picado
por uma aranha geneticamente alterada. Ou os Vingadores deixam de ser um grupo de amigos
superpoderosos que se reúnem para combater uma ameaça para se tornarem os Supremos
(Ultimates no original), uma equipe criada, treinada e mantida pelo governo como linha de
frente à ameaças pós-humanas. Fruto da nova leitura dos tempos e também da necessidade de
aproximar os herois dos leitores modernos.
Figura 71 – Universo Milennium, da Marvel.
Fonte: <http://in.dvdrama.com/BER/blog/2485/>
Muitas das reformulações estão sendo desfeitas, para o bem ou para o mal das
personagens. Mas, se é impossível voltar à ingenuidade dos anos anteriores, parece existir
uma necessidade de caracterizar novamente os herois como modelos. Mais ainda,
necessidade de diferenciar o heroi do vilão, este sim identificável. Este é um sentimento
exaltado, sobretudo, a partir do fatídico 11 de setembro de 2001. Diz-nos Knowles:
Após a queda das torres do World Trade Center, houve um breve momento em que o
mundo pareceu tão claro e sem ambigüidades quanto um super-heroi dos
quadrinhos.mais uma vez, viam-se os bons sujeitos e os maus elementos, vilões e
vítimas. Os acontecimentos de 11/9 evocaram a necessidade, profundamente
arraigada, de que alguma coisa ou alguém salvasse o mundo civilizado de um mal
sem rosto e sem nome, capaz de provocar o caos instantâneo – um tipo de destruição
que antes só era visto em histórias em quadrinhos (2008, p. 24).
Enfim, os períodos históricos só podem ser rotulados quando deles se tem o
devido distanciamento. Ainda assim, existem novos paradigmas ditando as tendências dos
leitores. São estas tendências, este zeitgeist captado pelos artistas das diferentes mídias, que
moldam a visão de mundo e a representação do mesmo. E os quadrinhos, como qualquer
forma de arte, são também responsáveis por esta representação.
92
5 A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS
Dizer que os quadrinhos são uma arte é também apontar não apenas seu valor
como expressão, mas caracterizar os meios, expedientes e artifícios próprios desta mídia. Este
capítulo procura discorrer exatamente sobre os caracteres específicos à banda desenhada,
elegendo exemplos para análise.
Apesar da extensa história, quer-se crer que não existe limites para a criatividade
humana, e cada vez mais artistas talentosos tem comprovado essa crença.
5.1 QUADRINHOS E SINESTESIA
Embora as técnicas de produção de um gibi tenham evoluído enormemente desde
as primeiras publicações em jornais, a relação estabelecida entre o leitor e a obra ainda é a
mesma: puramente visual. Este é o ponto de contato que os HQs possuem com a literatura:
provocar reações no leitor através de um meio puramente visual, ou seja, provocar estímulos
aos cinco sentidos dependendo apenas de um. A diferença é que a literatura conta apenas com
as palavras e estas são o signo da realidade que querem representar. Em suma, as palavras são
imediatamente identificáveis e associadas ao seu significado, dado que o leitor está de posse
do códice. Mesmo que o conhecimento do códice não seja completo, existe suporte
sancionado, o dicionário, para sanar a dificuldade, o que não ocorre nos quadrinhos.
Sinestesia é o nome da figura de linguagem onde se utiliza uma profusão de
sentidos, geralmente confundindo-os ou amalgamando-os. Foi largamente usada no
movimento simbolista, como pode ser encontrado nesta poesia de Cruz e Souza, intitulada
“Incensos”:
Dentre o chorar dos trêmulos violinos,
Por entre os sons dos órgãos soluçantes
Sobem nas catedrais os neblinantes
Incensos vagos, que recordam hinos...
93
Rolos de incensos alvadios, finos
E transparentes, fúlgidos, radiantes,
Que elevam-se aos espaços, ondulantes,
Em Quimeras e Sonhos diamantinos.
Relembrando turíbulos de prata,
Incensos aromáticos desata
Teu corpo ebúrneo, de sedosos flancos.
Claros incensos imortais que exalam,
Que lânguidas e límpidas trescalam
As luas virgens dos teus seios brancos. (CRUZ E SOUZA, 2002, p. 66)
Cabe ao poeta, por uso da figura de linguagem, propor ao autor o cheiro dos
incensos, o som dos violinos e órgãos, o aroma saído dos turíbulos, tudo através da descrição
e sugestão. Os quadrinhos se utilizam de diferentes formas para representar outros sentidos,
sobretudo em sua parte gráfica. Conforme um autor cria um expediente que cai no gosto do
público, esse artifício é usado e repetido por outros autores, até entrar numa espécie de
“cânone”. De acordo com McCloud:
Sempre que alguém inventou um novo jeito de representar o invisível, é quase certo
que isso vai ser usado por outros. Se muitos começam a usar o símbolo, ele se
incorpora à linguagem... como já aconteceu muito (2005, p. 129, q. 3-4).
Esse “representar o invisível” exposto por McCloud pode ser definido como a
representação dos sons, cheiros e sentimentos, fenômenos do mundo natural ou psicológico
que nem sempre possuem uma manifestação sensível à visão, mas não podem ser
desperdiçados numa narrativa. O que se fará agora é um recorte, explorando cada um destes
artifícios.
5.1.1 A fala e o pensamento
Como se disse nos capítulos anteriores, o surgimento do balão de fala foi um dos
marcos das nascentes HQs modernas. Ainda que não seja um recurso indispensável, pois é
possível conceber uma história muda, os quadrinhos são, de longe, um dos expedientes mais
reconhecíveis da banda desenhada. Mais uma vez diz McCloud:
94
De longe, o ícone cinestésico mais usado, mais complexo e versátil dos quadrinhos,
é o sempre presente e muito conhecido balão de fala. No decorrer dos anos, os
criadores de quadrinhos têm tentado,usando inúmeras variações, representar o som
num meio estritamente visual. (2005, p. 134, q. 1-2)
Historicamente, nos diz Acevedo (1990, p. 98), os balões remetem às antigas
filacteras, um recurso usado por pintores cristãos medievais que consistiam em faixas saídas
da boca das personagens retratadas, com os dizeres por elas proferidos escritos, tal qual o
atual balão. Como já se viu, a evolução dos quadrinhos das antigas expressões de arte
seqüencial compreendeu também outros recursos, como legendas, painéis, caixas de texto sob
a arte, até a aurora do balão de fala.
Figura 72 – Filacteria.
Fonte: <http://es.geocities.com/ondamarisa2004/MAR50.htm>
A importância do balão é sugerida, inclusive, pelo processo metonímico que gerou
a expressão fumetti, o cognome dos quadrinhos em terras italianas. Ramos (2009), deparando-
se com algumas definições de balão de fala, julga necessário expandir o que foi dito para
integrar três situações possíveis a serem representadas por este elemento, a saber:
O recurso gráfico seria uma forma de representação da fala ou do pensamento,
geralmente indicado por um signo de contorno (linha que envolve o balão), que
procura recriar um solilóquio, um monólogo ou uma situação de interação
conversacional. Há um motivo para a inclusão do solilóquio e do monólogo na
definição. É comum ver o pensamento de um personagem descrito em palavras ou
vê-lo falando em voz alta, tendo a si mesmo como interlocutor. O primeiro caso
seria um monólogo, não compartilhado com outras pessoas. O segundo, uma
situação de solilóquio. A distinção é muito pertinente. Pensar algo é bem diferente
de ficar falando sozinho em voz alta (RAMOS, 2009, p. 33).
Conforme Acevedo (1990, p. 100), o balão possui dois componentes, a saber o
“corpo”, compreendido pelo contorno em torno das palavras; e “rabicho”, o indicativo da
personagem dona do balão e proferidor do discurso. Para além destes dois componentes há
95
ainda o conteúdo, a linguagem escrita no interior do balão. Cada um desses elementos contem
em si inúmeras possibilidades criativas.
A rigor, poderia se dizer que tudo começa com o primeiro dos balões, o balão-
fala, e tudo o mais é variação deste mesmo procedimento. Citando Eisner:
À medida que o uso dos balões foi se ampliando, seu contorno passou a ter uma
função maior do que o simples cercado para a fala. Logo lhe foi atribuída a tarefa de
acrescentar significado e de comunicar a característica do som à narrativa (EISNER,
2001, p. 27).
As características do som, a saber, intensidade, duração, timbre e altura são todas
perceptíveis pela audição. Comunicar estas características visualmente vai gerar uma série de
experimentos gráficos que pouco a pouco se fixam no ideário comum dos quadrinhos. Uma
catalogação completa parece exaustiva e inconclusiva, visto que os grandes avanços
tecnológicos no meio cada vez mais fazem surgir novos modelos. Ainda assim, existem os
moldes já concebidos, facilmente reconhecidos e repetidos a exaustão, possibilitando na
existência de um rol estabelecido. Ramos (2009) propõem alguns deles, aos quais são
acrescidos outros não contemplados:
a) balão-fala: mais rotineiro, sem marcas de expressividade. O traço do contorno é contínuo,
podendo ser redondo, oval ou quadrado com os cantos redondos, com um prolongamento
também em traço contínuo, formando o rabicho, que se liga a pessoa que profere a fala;
Figura 73 – Balão-fala.
Fonte: Novos Vingadores #41, Panini, 2007.
b) balão-pensamento: tem o contorno ondulado, mimetizando uma nuvem ou bolha, com o
rabicho em forma de bolhas seqüenciadas sem ligação. Indica pensamento, memória,
discurso interior;
96
Figura 74 – Balão-pensamento.
Fonte: Avante, Vingadores! #13, Panini, 2008.
c) balão-telepático: representa o poder psíquico da telepatia, seja lendo mentes alheias ou
conversando mentalmente com outras personagens. Geralmente possui um tracejado
diferenciando, mesclando pontos e traços, com ausência de rabicho ou este último
imitando as bolhas de pensamento;
Figura 75 – Balão-telepático.
Fonte: X-Men Extra #50, Panini, 2005.
d) balão-sussurro: conta com o traçado pontilhado, tanto no corpo quanto no rabicho.
Indicativo de voz baixa, cochicho, e pode apresentar as letras numa fonte menor;
Figura 76 – Balão-sussurro.
Fonte: Novos Vingadores #58, Panini, 2008.
97
e) balão-grito: o contorno é exagerado, sinuoso, geralmente com as letras em negrito ou
aumentadas. Algumas vezes o contorno recebe bordas mais grossas ou mesmo coloridas;
Figura 77 – Balão-grito com letras em destaque.
Fonte: Novos Vingadores #26, Panini, 2005.
Figura 78 – Balão-grito com contorno.
Fonte: Novos Vingadores #58, Panini, 2008.
f) balão-trêmulo: também com linhas sinuosas, mas sem tamanho exagerado. O
letreiramento pode tanto ser normal quanto também tremido. Indica medo, apreensão ou
dor;
Figura 79 – Balão-trêmulo.
Fonte: Novos Vingadores #30, Panini, 2006.
98
g) balão-eletrônico: possui o traçado anguloso, em linhas quebradas, a semelhança
iconográfica da representação de faíscas elétricas. É usado para representar o som de
aparelhos elétricos. É comum autores preferirem marcar as vozes eletrônicas de maneiras
singulares, especialmente quando estas são as falas de personagens importantes;
Figura 80 – Balão-eletrônico indicando voz oriunda da televisão.
Fonte: X-Men Extra #57, Panini, 2006.
Figura 81 – Balão-eletrônico da voz mecanizada pela armadura do Homem de Ferro.
Fonte: Novos Vingadores #55, Panini, 2008.
h) balão-uníssono: um balão com mais de um prolongamento, representando que diferentes
personagens falam a mesma coisa ao mesmo tempo;
Figura 82 – Balão-uníssono.
Fonte: X-Men Extra, #47, Panini, 2005.
99
i) balões-intercalados: são balões de diferentes locutores intercalados, imitando a dialética
numa troca de vozes;
Figura 83 – Balões-intercalados.
Fonte: Novos Vingadores #35, Panini, 2006.
j) balão-mudo: ausência de fala escrita, refletindo mutismo ou espanto do personagem. Pode
ser preenchido por algum sinal gráfico, como reticências e asteriscos, ou até mesmo a
palavra “mudo” entre chaves ou colchetes;
Figura 84 – Balão-mudo.
Fonte: Holly Avenger #11, Trama, 2000.
k) balão-múltiplo: quando se divide a fala do personagem em mais de um momento, a fim de
marcar melhor o tempo da narrativa ou não inflacionar o balão com falas muito extensas;
100
Figura 85 – Balão-múltiplo.
Fonte: Poderosos Vingadores #24, Panini, 2005.
Ainda sobre os balões, é comum alguns autores marcarem certas personagens
através de um modo peculiar de fala. Isto é representado tanto pelo formato de cor dos balões
quanto pelo próprio letreiramento. As personagens da série Sandman, de Neil Gaiman são
tratadas assim. Por serem “similares a divindades”
16
, os denominados Perpétuos possuem,
cada um, seu característico balão de fala, enquanto que personagens mortais apresentam o
balão-fala padrão.
Figura 86 – A reunião dos Perpétuos: cada um com balão ou letreiramento singular.
Fonte: Sandman: A estação das brumas, Conrad, 2007.
Os modernos processos de colorização também capacitam a usar o recurso de
balões coloridos como marca de timbre, tendo cada personagem sua cor relativa. Tal artifício
foi usado por Fábio Yabu em sua série de quadrinhos on-line, Combo Rangers, onde a
identidade de um vilão pôde ser descoberta pelos leitores mais atentos se observassem a cor
do balão-fala da personagem.
16
“Similares a divindades” é uma definição imprecisa. Na história, os Perpétuos são seres anteriores aos deuses,
mas não seus iguais nem seus superiores. São em número de sete. Do mais velho ao mais novo temos
Destino, Morte, Sonho (o Sandman do título), Destruição, Desejo e Desespero (gêmeas) e Delírio. No
original em inglês todos começam com a letra “D” (Destiny, Death, Dream, Destruction, Desaire, Despair e
Delirium). São perpétuos porque existem desde o surgimento da primeira coisa capaz de viver, uma definição
muito ampla, que pode conter fábulas, astros, humanos e os próprios deuses.
101
A presença de quadrinhos sem balões também é significativa, especialmente nos
meios jornalísticos, quando a tirinha, que geralmente expressa uma piada, é contada apenas
por imagens. O processo inverso, um quadrinho apenas com balões, todavia, não é encontrado
costumeiramente. O roteirista e desenhista John Byrne, quando se ocupava da série de super-
herois canadenses, a Tropa Alfa (Alpha Flight no original) explorou esta possibilidade. Na
narrativa, uma das personagens, a semideusa Pássaro da Neve (Snowbird) tem uma batalha
em meio a uma nevasca com um de seus inimigos. Assim, é impossível ao leitor enxergar a
ação, mas não lhe é impossível “ouvir” o que acontece. Toda a seqüência é disposta apenas
com balões, e a inferência do lugar das personagens é feita pela indicação do rabicho, como se
o leitor se guiasse pela origem do som.
Figura 87 – Balões sem imagens em aventura da Tropa Alfa.
Fonte: O melhor da Tropa Alfa #01, Panini, 2008.
Como visto no exemplo anterior, outra parte importante que compõe o balão é o
rabicho, também chamado de apêndice por Ramos (2009, p. 43). O uso do rabicho é
importante por ser ele o responsável pela marcação do locutor, substituindo o travessão num
texto convencional. O rabicho, via de regra, acompanha as mesmas convenções que o corpo
do balão, sendo ora tremido, ondulado, em linhas quebradas ou tracejado. Algumas vezes, o
próprio rabicho funcionará como indicativo de cena, em tomadas mais amplas, onde se supõe
a localização do locutor pela posição do rabicho.
102
Figura 88 – Rabicho indicando local, sem personagem aparente.
Fonte: Novos Vingadores #53, Panini, 2008.
Ou ainda em cenas de com oclusão do rabicho, como nos casos chamados por
Ramos (2009, p.41) de “balão de apêndice cortado”. Os personagens são apenas inferidos
devido à presença do rabicho, que remete para algum lugar fora do requadro.
Figura 89 - Balão com apêndice cortado.
Fonte: Poderosos Vingadores #24, Panini, 2005.
Existem também situações, embora ainda pouco exploradas, de sugestões
narrativas oriundas da supressão do rabicho. Ramos (2009, p. 46) comenta um caso específico
ocorrido na minissérie Crise de Identidade (Identity Crisis), de Brad Meltzer e Rag Morales.
A história trata da solução do assassinato de Sue Dibny, a esposa do Homem-Elástico, que
possui a identidade civil de Ralph Dibny. Ao final da minissérie, Ralph é aconselhado pelo
amigo Arqueiro Verde a conversar com a esposa, fingindo que ela ainda está presente. E ele
assim o faz, iniciando um monólogo sobre as experiências de seu dia. No ultimo quadro,
totalmente escuro, uma vez que a cena mostra o quarto apagado, vemos um último balão de
fala, sem rabicho e, portanto, sem dono aparente. Conforme diz Meltzer, a exclusão do
rabicho foi intencional, com um efeito pretendido:
Para mim era muito importante que a fala “Também te amo”, no quarto quadrinho,
não tivesse uma seta. Podemos lê-la de duas maneiras. Ela sugere que esse casal,
como o Arqueiro Verde diz, é capaz de escutar um ao outro. Por mais maluco que
103
pareça, o amor que esses dois têm ainda é real e continua vivo mesmo que ela não
esteja. Na primeira versão, eles erronamente botaram uma seta no balão apontando
para Ralph, e eu disse: “Vocês não entenderam nada” (MELTZER, apud HO, 2006,
p. 24).
Figura 90 – Cena final de Crise de Identidade.
Fonte: Crise de Identidade #07, Panini, 2006.
Para além dos balões de fala existe outro elemento onde a palavra escrita é
utilizada. Acevedo (1990) os chama de letreiros, definindo-os como:
[...] uma convenção própria da história em quadrinhos que serve para incluir na
vinheta o discurso do narrador ou “voz extrena” [...]. O letreiro vem a ser algo assim
como o primo pobre e discreto dos balão, que tem nele um antepassado semelhante
mas que não obteve o mesmo sucesso. Contudo, é mantido. (1990, p. 125-126)
Figura 91 – Letreiro de narrador onisciente.
Fonte: Novos Vingadores #32, Panini, 2006.
Ramos (2009) prefere o termo legendas e lembra que não é apenas o narrador
onisciente quem faz uso das mesmas. Em muitas situações, o narrador personagem pode se
104
apropriar do espaço do letreiro para dar voz a sua versão da narrativa. Nos quadrinhos de
super-herois, o balão-pensamento foi, por muito tempo, depreciado. Assim, o uso da legenda
para expressar o monólogo interior das personagens era freqüente.
Figura 92 – Legenda com monólogo interior.
Fonte: Batman: O cavaleiro das trevas #02, Abril, 1996.
As legendas também podem se apropriar da estética dos balões, mudando seu
formato, assumindo contornos ou cores diferentes, na expectativa de simular uma inflexão de
voz do narrador ou assinalar quem é o dono da legenda. Neste último caso, a cor substitui o
rabicho.
Figura 93 – Legenda como solilóquio. Ela se liga ao personagem pela cor, a mesma de seu uniforme.
Fonte: Novos Vingadores #46, Panini, 2007.
Um tipo específico de legenda é a que se pode chamar de recordatório, pois
procura sintetizar acontecimentos de histórias passadas, especialmente nas revistas seriadas,
ou informar o leitor da situação temporal de cenas diferentes. São comuns as indicativas de
tempo como “enquanto isso”, “naquele momento” e similares. Para Ramos (2009), não
passam de uma forma de legenda.
105
Figura 94 – Recordatório geográfico.
Fonte: Herois da TV #74, Abril, 1983.
Algumas legendas às vezes se referem a informações retiradas de alguma mídia,
como formulários de computador, jornais ou diários. Usando de um expediente criativo, o
desenhista configura a legenda no formato aproximado, fazendo com que o leitor tenha a ideia
de estar se confrontando de fato com o veículo dono da informação.
Figura 95 – Recordatório imitando página de diário.
Fonte: Watchmen #01, Abril, 1999.
A combinação em palavras e imagens também merece menção especial.
Quadrinhos não são pintura num sentido estrito, assim como não são literatura. Estão mais
para uma combinação de ambas, com características próprias. A exata medida, a proporção
ideal entre imagens e palavra diz muito da qualidade do artista e da história. Para fins de
explicação e ensino de como fazer quadrinhos, McCloud (2008, p. 130, q. 01) apresenta uma
lista de categorias de combinações entre imagem e texto. São elas:
a) específica da palavra: quando as imagens são ilustrativas, sem acréscimo de informação;
106
Figura 96 – Combinação específica da palavra.
Fonte: Batman: O cavaleiro das trevas #01, Abril, 1996.
b) específica da imagem: as imagens são auto-explicativas, com as palavras acentuando
aspectos exibidos;
Figura 97 – Combinação específica da imagem.
Fonte: Watchmen #11, Abril, 1999.
c) específica da dupla: redundância de informação entre imagem e texto. Embora não seja
uma combinação apreciada, este artifício possui seu valor em quadrinhos informativos,
com a intenção de garantir clareza na informação;
Figura 98 – Combinação específica da dupla.
Fonte: Origens dos Super-Herois Marvel #04, Abril, 1997.
107
d) interseccional: texto e desenho apresentam informações em conjunto, sendo que ambas
também denotam aspectos de maneira independente. O leitor é capaz de inferir mais
informação dada a combinação destas. Existe um aspecto comum, que palavras e imagem
informam, mas cada uma destas também possui sua própria carga semântica, trazendo
mais informação ao conjunto;
Figura 99 – Combinação interseccional.
Fonte: X-Men Anual #02, Abril, 1996.
e) interdependente: a combinação de imagem e texto informa o que isoladas não se poderia
fazer de maneira isolada. Usada, por exemplo, para expressar ironias ou mentiras, quando
com a expressão se diz algo e com as palavras se diz o inverso;
Figura 100 – Combinação interdependente.
Fonte: Watchmen #02, Abril, 1999.
f) paralela: texto e imagem seguem linhas narrativas paralelas, sem relação instantânea;
108
Figura 101 – Combinação paralela.
Fonte: Watchmen #04, Abril, 1999.
g) montagem: quando as palavras fazem parte do desenho;
Figura 102 – Combinação estilo montagem.
Fonte: SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
Cada uma destas combinações, em maior ou menor grau, exige a participação do
leitor para que ele monte, descubra o significado e participe do processo de criação da
história. Como se verá adiante, faz parte das HQs contar fortemente com a participação do
leitor para se realizar.
Sobre a expressão da fala e pensamento, ainda um último ponto a ser
considerado, o letreiramento. Por letreiramento se entende o processo de escrever (ou
desenhar, quando o caso) as letras nos balões e legendas. Os quadrinhos americanos,
especialmente os de super-herois, possuem uma tradição de usar as letras todas numa fonte
baseada em letras de mão, todas elas em forma e na caixa alta (maiúsculas). Assim como os
balões podem assumir cores e formatos diferentes para individualizar personagens, as letras
também podem diferir em fonte ou tamanho. O uso de negritos também é acentuado, na
intenção de dar marcas orais ao discurso escrito, como ênfase, por exemplo.
109
Figura 103 – Uso de negritos enfatizando as ironias entre personagens.
Fonte: X-Men Extra #46, Panini, 2005.
Algumas vezes, personagens são marcados por seus trejeitos de fala, como por
exemplo O Poderoso Thor (The Might Thor). Somando-se os usos de arcaísmos e expressões
antigos, os letreiristas costumam usar fontes que evoquem antiguidade, como estas fontes que
podem tanto lembrar as runas
17
como a escrita gótica medieval.
Figura 104 – Letreiramento da personagem Thor.
Fonte: Novos Vingadores #55, Panini, 2008.
5.1.2 Onomatopéias
Juntamente com os balões, as onomatopéias são um dos recursos mais conhecidos
e facilmente identificados com os quadrinhos. O recurso da onomatopéia está presente
também na literatura, ainda que não seja comumente usado. Nas HQs, entretanto, a
necessidade de expressar o som por meios visuais acabou por consolidar tal recurso.
17
Runas ou alfabeto rúnico é um antigo alfabeto compartilhado por povos germânicos, grupo do qual derivam os
mitos nórdicos que servem de influência à personagem Thor.
110
Em tempo: as onomatopéias são a maneira encontrada para exprimir sons
mecânicos, animais ou fenomênicos não articulados, como o barulho dos corpos caindo, os
sons emitidos por animais ou manifestações climáticas. Possuem um caráter simbólico
ambíguo, pois, enquanto tentam ser fiéis ao som representado, nunca o são totalmente. O mais
adequado é dizer que são uma reprodução aproximada do som que tentam imitar.
Na arte seqüencial, para além da representação sonora, as onomatopéias também
ganham uma característica visual. Na maior parte das vezes, elas são encontradas fora de
balões. Por isso, são detalhadas graficamente de maneira distinta as letras que representam
discursos. Assim, não apenas o som, mas o desenho da onomatopéia pretende sugerir o
significado exposto. Como dizem Iannone e Iannone (1994, p. 74), a onomatopéia “surge
associada a alguma figura ou situação determinada, facilitando u induzindo sua
interpretação.” McCloud, por sua vez, reforça que:
As palavras desempenham um papel importante nos quadrinhos ao preencher os
espaços. Elas dão voz a nossos personagens, permitindo-nos descrever todos os
cinco sentidos e, no caso dos efeitos sonoros, elas se transformam graficamente no
que descrevem; e dão aos leitores uma rara chance de ouvir com os olhos (2008, p.
146, q. 3-5).
Figura 105 – Onomatopéia em destaque.
Fonte: Holy Avenger #11, Trama, 2000.
Figura 106 – Múltiplas onomatopéias.
Fonte: Novos Vingadores #44, Panini, 2007.
111
Ramos (2009, p.81) também salienta o uso de onomatopéias como sugestão de
linhas cinéticas, fazendo com que o leitor siga graficamente o som.
Figura 107 – Onomatopéia como linha cinética.
Fonte: Holy Avenger #24, Trama, 2001.
Não parece vantajoso mensurar o número de onomatopéias disponíveis, uma vez
que são muitas e a criatividade dos autores cada vez mais faz aumentar seu número. Existem,
obviamente, as mais consagradas e repetidas. Sobre estas, é importante notar que são
massiçamente americanas. Isso é compreensível, obviamente, devido à ampla difusão dos
quadrinhos norte-americanos, que acabam por influenciar a estética de toda a produção
cultural dos demais países, como uma espécie de comércio ou colonização cultural. Sobre
isso, afirma Acevedo:
Sendo a linguagem uma maneira especial de apreender o mundo, expressões íntimas
de uma cultura e psicologia próprias, interessa compreender estes fenômenos em sua
raiz, a fim de agirmos crítica e livremente diante deles. Podemos observar, então,
que não se trata de recusar as onomatopéias vindas de fora, nem tampouco repeti-las
mecanicamente, fugindo da mais humilde das tarefas criativas e negando o próprio
ser (ACEVEDO, 1990, p. 133).
Acevedo (1990), junto com Iannone e Iannone (1994) levantam também um fator
da preponderância das onomatopéias de origem americana. Seria uma das propriedades da
língua inglesa a grande expressividade sonora de seus verbos e substantivos, fazendo com que
a associação onomatopéica seja praticamente indutiva. Ambos esboçam um quadro
comparativo, que se sintetiza assim:
Tabela 1 - Possíveis origens de onomatopéias.
VERBO EM INGLÊS SIGNIFICADO EM
PORTUGUÊS
ONOMATOPÉIA EM
QUADRINHOS
To click Estalar CLICK
112
To crack Quebrar, rachar, partir-se CRACK
To crash Colidir, bater, espatifar-se CRASH
To smack Beijar SMACK
To slam Fechar fortemente, bater SLAM
To sniff Cheirar SNIFF, SNIFF
To splash Chapinhar, respingar água SPLASH
Ultrapassando seu caráter icônico, onomatopéias podem ser catalisadores de
narração. Se na história dos quadrinhos de herois se disse que a Era de Bronze começou com
a morte da personagem Gwen Stacy, é possível então afirmar que a Era de Bronze começou
com uma onomatopéia: snap, o som de um pescoço partido.
Na história, o arquinimigo do Homem-Aranha, o Duende Verde (Green Goblin no
original) descobre a identidade secreta do heroi e, para atormentá-lo, rapta sua namorada,
levando-a até um dos pilares da ponte do Bronx. Neste local, uma batalha se inicia e o vilão
arremessa a jovem desacordada ponte abaixo. O heroi, inexperiente e desesperado, lança uma
de suas teias, agarrando a mocinha pelas pernas. O baque de interrupção da queda força a
coluna e pescoço da vítima, provocando sua morte. Nota-se que onomatopéia está presente, e
o dado é transmitido diretamente aos leitores, ao passo que o personagem Homem-Aranha
ainda acredita que salvou sua amada. Nos quadrinhos posteriores ele obtém a comprovação de
sua falha e da vilania do inimigo. Densa carga dramática, sintetizada numa expressão sonora.
Figura 108 – Snap! A morte de Gwen Stacy.
Fonte: Marvels #04, Abril, 1995.
113
5.1.3 A emoção
Para além das peculiaridades de cada estilo assumido pelos diversos artistas,
existem certas convenções ao se representar emoções que extrapolam a caracterização da
figura humana. Acevedo (1990, p. 31) chama isso de “sinais gráficos que enfatizam a
expressão”, e se prestam a uma diversidade de estados psíquicos.
É o caso de representações originalmente presentes no desenho da face das
personagens, mas que pouco a pouco migraram pra um campo mais simbólico. Seu uso é um
tanto comedido na arte ocidental, mas os quadrinhos japoneses e outros que compartilham de
sua estética os usam em profusão.
Figura 109 – Estrelas e traços ausentes do rosto indicando emoção (pancada).
Fonte: Holy Avenger #10, Trama 2000.
Nos quadrinhos de super-herois, o mais conhecido desses sinais é a representação
de um poder em especial do personagem Homem-Aranha, seu “sentido de aranha”. Quando
está na iminência de perigo, ele sente uma perturbação, um “tilintar” em sua cabeça, como
uma espécie de alarme, o que lhe compete oportunidade de esquivar-se. Este sentido é
representado por arestas tremidas partindo de seu crânio. O sinal foi consagrado pelos anos
de uso que, modernamente, dispensa explicações.
114
Figura 110 – Sentido de aranha.
Fonte: Homem-Aranha #120, Abril, 1994.
5.1.4 O movimento
Conforme McCloud (2005, p. 110, q. 02), ilustra o movimento numa meio
essencialmente estático tem sido uma das maiores lutas dos quadrinhos. Este mesmo autor
(2005, p. 108, q. 05) para as tentativas dos pintores futuristas como Balla e Duchamp em
demonstrar o movimento numa única pintura. A diferença, entretanto, é que para os futuristas
a representação do movimento era uma questão teórica, que logo perdeu o interesse, ao passo
que para a arte seqüencial era uma questão de ferramentas de sua construção.
Uma das tentativas de exprimir o movimento é a adoção de linhas cinéticas,
sugerindo o caminho percorrido pelos corpos, como se os olhos seguissem um rastro de ar ou
fumaça. São sobremaneira afetados pelo estilo tanto da história quando o artista. Algumas
vezes estas linhas são acompanhadas de onomatopéias.
Figura 111 – Linhas cinéticas.
Fonte: Homem-Aranha #103, Abril, 1991.
115
Figura 112 – Linhas cinéticas das garras.
Fonte: Novos Vingadores #53, Panini, 2008.
Outra possibilidade é a intercalação de imagens múltiplas, rotineiramente mais
apagadas que a imagem principal, delimitando a seqüência de movimentos realizada pelo
personagem.
Figura 113 – Movimento com imagens intercaladas.
Fonte: Guerra Civil #01, Panini, 2007.
ainda quem procure imitar um efeito oriundo da fotografia. De fato, se a
velocidade do objeto a ser fotografado é superior à velocidade do obturador da câmera
fotográfica, a tendência é que este objeto tenha uma aparência tremida, como se os olhos não
conseguissem capta-lo totalmente. No Ocidente, este efeito foi adaptado para os quadrinhos
como uma mistura de imagem tremulada e linhas cinéticas sugerindo o movimento. Pode
haver os casos de imagens da personagem repetidas no dentro do tremulado.
116
Figura 114 – Personagem tremido e fundo fixo.
Fonte: Eternos #04, Panini, 2007.
No Oriente o mesmo efeito foi adaptado, mas com uma suave distinção: a imagem
principal é nítida, ao passo que o cenário todo é tremido. É como se a visão do leitor também
estivesse em movimento, com o mundo se descortinando sobre eles. recentemente este
efeito foi incorporado à estética ocidental. McCloud classifica essa aplicação da seguinte
forma:
“Movimento subjetivo” como eu chamo, se baseia numa ideia: se a observação de
um objeto em movimento é envolvente, ser o objeto deve ser mais ainda. Artistas
japoneses, no final dos anos 60, começaram a colocar seus leitores no banco do
motorista” [...] (MCCLOUD, 2005, p. 114, q. 01).
Figura 115 – Personagem fixo com fundo tremido em obra oriental.
Fonte: Akira #15, Globo, 1992.
Figura 116 – Personagem fixo com fundo tremido em obra ocidental.
Fonte: Guerra Civil #04, Panini, 2007.
117
Uma última maneira é a sobreposição personagens sobre um cenário contínuo,
que se estenda por mais vinhetas. A impressão é de que a personagem passa de um requadro
ao outro, literalmente passeando pela revista. O efeito de conclusão, explanado a seguir,
sugere a concomitância da representação da personagem diversas vezes como movimento.
5.2 A SEQUÊNCIA
Chamar os quadrinhos de “arte-sequencial” é justamente eleger a seqüência como
o coração desta forma de arte. Por seqüência entendemos a sucessão de requadros narrativos,
encadeados de uma forma tal que possibilitem a compreensão, por parte do leitor, da trama
que se está narrando. Diz Acevedo (1990, p. 72): “[...] a história em quadrinhos carece de
movimento, mas o sugere. É o leitor que lhe movimento e continuidade, em sua
imaginação.”
A divisão entre um requadro (também chamado de vinheta) e outro, para além de
suas bordas, é feita pelo que se chama de sarjeta. Cabe à sarjeta não ser apenas o elo de
ligação entre os esparsos momentos congelados representados em cada requadro como
também ser o veículo da atuação do leitor sobre a obra. A sarjeta, o hiato, o lapso de tempo e
ação por ela omitida é completado pelo leitor em seu plano intelectual. Por esse motivo
McCloud define o ato de “[...] conclusão [...] agente de mudança, tempo e movimento” (2005,
p. 65, q. 6). Para ampliar a ideia, ele sugere (2005, p. 70-72) seis tipos de conclusão, que
poderiam ser mais propriamente chamadas de transições quadro-a-quadro. São elas:
a) transição momento-a-momento: aquela que demonstra uma mínima variação de tempo,
com intervalo mínimo de ação. A exigência de conclusão por parte do leitor é mínima;
118
Figura 117 – Transição momento-a-momento.
Fonte: Guerra Civil #05, Panini, 2007.
b) transição ação-pra-ação: uma transição mais objetiva, menos alongada que a primeira.
Mostra eficientemente uma seqüência de ações, exigindo maior conclusão do leitor;
Figura 118 – Transição ação-pra-ação.
Fonte: Guerra Civil #01, Panini, 2007.
c) transição tema-pra-tema: eleva a narração para um plano maior, a cena, mostrando
imagens que se conectam e se relacionam por compartilharem ou referenciarem a mesma
ideia dentro da narrativa proposta. O grau de exigência da conclusão já é muito maior;
Figura 119 – Transição tema-pra-tema.
Fonte: Pixel Magazine #08, Pixel Media, 2007.
119
d) transição cena-a-cena: o processo de dedução é aumentado enormemente. Esta transição
representa, via de regra, intervalos temporais ou espaciais, unidos pela trama proposta;
Figura 120 – Transição cena-a-cena.
Fonte: Guerra Civil #01, Panini, 2007.
e) transição aspecto-pra-aspecto: apresenta diferentes particularidades da cena geral,
estabelecendo “um olho migratório sobre diferentes aspectos de um lugar, ideia ou
atmosfera” (MCCLOUD, 2005, p. 72, q. 01). Usado para ambientar o leitor na narrativa,
convidando-o a compor o panorama geral a partir de visões fragmentadas. Obviamente,
exige um grau muito grande de conclusão;
Figura 121 – Transição aspecto-pra-aspecto.
Fonte: V de Vingança #01, Globo, 1989.
Este chamado processo de conclusão é um dos grandes diferenciais entre o cinema
e as HQs. Ambos usam de linguagens parecidas, e o próprio processo de criação de um filme
passa pelo estágio de sketchbook, o processo onde se desenham as cenas quadro a quadro para
uma ideia de como será a filmagem. Ademais, uma fita de cinema, antes de projetada, pode
muito bem ser comparado a “um gibi muito, muito, muito lento.” (MCCLOUD, 2005, p.08, q.
01)
O processo de conclusão, entretanto, é uma característica própria dos quadrinhos,
pois exige participação ativa do leitor. Este deixa de ser um mero espectador para se tornar
120
co-autor da história, um “cúmplice silencioso” (MCCLOUD, 2005, p. 68, q. 03). Eisner
(2005), refletindo sobre as aptidões a serem desenvolvidas por pretensos criadores de
quadrinhos, salienta a convergência e divergência das duas mídias, explicitando o fenômeno
que é a atividade do leitor de HQs contraposta à inatividade do mero espectador:
Tanto um quanto outro são narradores trabalhando dentro de sua mídia para fazer
contato com um público. Mas cada um deles tem um compromisso diferente com a
audiência. O cinema exige pouco mais do que a atenção de seu espectador ,
enquanto os quadrinhos precisam de um pouco de capacidade de leitura e
participação. O espectador de um filme fica aprisionado até um filme terminar, mas
o leitor de quadrinhos está livre para folhear a revista, olhar o final da história, ou se
deter numa imagem e fantasiar. Este é o ponto onde os caminhos realmente
convergem. O filme transcorre sem qualquer preocupação quanto à capacidade ou
habilidade de leitura de sua audiência, enquanto os quadrinhos precisam lidar com
ambas (EISNER, 2005, p. 75).
5.3 DIAGRAMAÇÃO
Por diagramação pretende-se definir a disposição dos diversos requadros numa
página, formando um todo harmônico. A diagramação também está convencionada à ordem
de leitura de cada cultura. Assim, revistas ocidentais obedecem a disposição dos quadros da
esquerda para a direita, ao passo que HQs orientais fazem o inverso, da direita para esquerda.
A diagramação pode compreender dois níveis. O primeiro refere-se a cada
requadro individualmente, da forma como é desenhado. Comumente se emprega o requadro
em forma de retângulo, com suas bordas também retangulares. São possíveis de ser
encontradas, entretanto, narrativas que permitam ou estimulem a traçado de vinhetas com
formatos diferentes. Não existe ainda um apanhado tão amplo como no caso dos balões de
fala, mas o repetido uso de alguns modelos acaba por criar, por sua vez, uma espécie de
cânone. Conforme Eisner:
[...] requadros retangulares com traçado reto, a menos que a parte verbal da narrativa
o contradiga, geralmente sugerem que as ações contidas no quadrinho estão no
tempo presente. O flashback [...] muitas vezes é indicado por meio da alteração do
traçado do requadro. O traçado sinuoso ou ondulado é o indicador mais comum de
passado. Embora não exista nenhuma convenção de consenso universal para a
expressão do tempo através do requadro, o “caráter” do traçado tal como no caso
de som, emoção ou pensamento – cria um hieróglifo (2001, p. 44).
121
Figura 122 – Requadros redondos.
Fonte: Pixel Magazine #15, Pixel Media, 2008.
É possível observar também a existência do requadro-zero, aquele que não possui
linhas demarcatórias visíveis. A ideia expressada por esta aplicação é transmitir ao leitor a
amplitude, geográfica ou emocional, em que se encontra o elenco da narrativa.
Figura 123 – Requadro zero.
Fonte: Ronin #03, Opera Graphica, 2003.
O segundo nível é a reunião das diversas vinhetas na página. Mais uma vez, a
criatividade não limita os tipos de diagramação possível. Esta disposição tem importância
imprescindível na disposição da narrativa, uma vez que será ela o fio condutor do leitor.
Diagramações confusas ou excessivamente complexas podem deixar a leitura truncada.
Diagramação e sarjeta podem se confundir e amalgamar para o bem da história.
Um bom exemplo deste exercício é o trabalho de J. H. Williams III em Promethea. Neste
caso, o desenhista mescla a sarjeta com os desenhos das personagens percorrendo os cômodos
do hospital. Cada um destes cômodos é também uma vinheta da história.
122
Figura 124 – Diagramação de Promethea.
Fonte: Pixel Magazine #09, Pixel Media, 2007.
Outra possibilidade é a diagramação atuar sobre a perspectiva do leitor. Na
história da LJA chamada Soterrados, os herois estão presos sob toneladas de escombros de
um prédio demolido. A diagramação brinca com sua confusão e falta de referência, uma vez
que a escuridão e a desorientação promovida acabam, inclusive, por arrastar as personagens
para direções em que elas não queriam ir, como para baixo. Os próprios balões de fala são
invertidos aleatoriamente, para espelhar a confusão espacial das personagens.
Figura 125 – Soterrados.
Fonte: Liga da Justiça #69, Panini, 2008.
Mais uma excelente aplicação, vinda dos primórdios das HQs, é a série de história
chamada Upside Downs, de Gustave Verbeck, em 1903. O autor da tira criava os desenhos e
as vinhetas de forma serem lidas também de cabeça para baixo. Para isso, havia apenas a
inserção de legendas fora dos requadros. Um recurso extremo, mas que foi repetido em toda
série, num total de mais de cem números publicados durante dois anos.
123
Figura 126Upside Downs.
Fonte: VERBECK, Gustave in MOYA, Álvaro. História da história em quadrinhos. 2 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1996.
Um último aspecto envolvendo diagramação visa propor os limites do requadro.
Para além dos diversos formatos possíveis, incluindo um formato zero, sem demarcação, é
bastante comum um recurso de expressividade chamado rompimento da quarta parede. Neste
recurso, a personagem, ou objeto, ou ainda partes destes, atravessam os limites da vinheta,
literalmente rompendo a parede. A intenção é mostrar ação e expressividade, um recurso
muito usado em histórias de super-herois.
Figura 127 - Rompimento de quarta parede.
Fonte: X-Men #02, Abril, 1995.
5.4 ENQUADRAMENTO E ÂNGULOS DE VISÃO
A linguagem dos quadrinhos, sob diversos aspectos, se assemelha a linguagem
cinematográfica. Isso é extremamente verdadeiro quando se fala de enquadramento. Uma vez
que o requadro é o recorte que o artista pretende mostrar ao leitor, existe uma escolha
consciente de quais limites serão abordados por este recorte. É a mesma técnica usada por
124
diretores e cinegrafistas ao escolherem o tamanho da objetiva numa filmagem. Existem então
planos e ângulos diferentes. Segundo Ianonne e Ianonne:
Os tipos de planos variam de acordo com o destaque que o artista quer dar ao
cenário ou aos personagens. Parece que o desenhista usa uma lente zoom, como no
cinema ou na fotografia, para aproximar uma figura ou mostra uma visão geral da
cena (IANONNE; IANONNE, 1994, p. 63).
Existem seis tipos de planos, a saber:
a) plano geral: um plano amplo, mostrando grandes partes do cenário, formando uma
paisagem extendida do local onde se passa a cena. Pode ser chamado de “plano de
paisagem” ou ainda de “panorâmica”;
Figura 128 – Panorâmica.
Fonte: Guerra Civil #01, Panini, 2007.
b) plano total: um enquadramento do personagem inteiro, dos pés à cabeça;
Figura 129 – Plano total.
Fonte: Homem-Aranha 128, Abril, 1993.
125
c) plano médio: mais reservado aos diálogos, pois evidenciam recursos de expressão não-
verbais, como gestos e sinais faciais. O plano médio contempla os personagens em meio
corpo, divididos pela linha da cintura;
Figura 130 – Plano médio.
Fonte: Homem-Aranha #128, Abril, 1993.
d) plano americano: maior que o plano médio, divide os personagens na altura dos joelhos. É
chamado por Acevedo (1990, p. 81) de “plano de conversação”, uma vez, iniciada uma
conversa, a percepção visual se concentra no rosto e parece se diluir a partir da linha dos
joelhos;
Figura 131 – Plano americano.
Fonte: Guerra Civil #02, Panini, 2007.
e) de detalhe: concentra-se na altura dos ombros, dando maior carga às expressões faciais.
Ramos (2009, p. 140) chama de “primeiro plano”;
126
Figura 132 – Primeiro plano.
Fonte: Guerra Civil #02, Panini, 2007.
f) primeiríssimo plano ou close-up: para além do primeiro plano, dirigindo a atenção do
leitor para algum detalhe específico, sinal ou objeto deixado em evidência;
Figura 133 – Primeiríssimo plano.
Fonte: Marvel Action #01, Panini, 2007.
Juntamente com os planos estão os ângulos de visão, que no dizer de Acevedo
(1990, p. 91) é o ponto a partir do qual a ação é observada”. Contam-se três tipos de ângulos
de visão:
a) de visão médio: quando a ação é desenhada como se estivesse na linha frontal de visão do
leitor, a altura de seus olhos. É o ângulo mais comum, especialmente considerando-se as
tiras de jornal;
127
Figura 134 – Plano de visão médio.
Fonte: Marvel Action #01, Panini, 2007.
b) de visão superior: conhecido também como picado, ou ainda, plongé. Trata da cena vista
de cima para baixo. Os americanos (LEE; BUSCEMA, 1978, p. 17) chamam este ângulo
de bird’s-eye view, algo como visão de olho de pássaro;
Figura 135 – Visão de olho de pássaro.
Fonte; Watchmen #01, Abril, 1999.
c) de visão inferior: ou contra-picado e contra-plongé, é o posto do anterior, quando os a
perspectiva do leitor é de baixo para cima. Mais uma vez, no meio americano este plano
recebe o nome metafórico de worm’s-eye view (LEE; BUSCEMA, 1978, p. 17), traduzido
como visão de olho de minhoca;
Figura 136 – Visão de olho de minhoca.
Fonte: Novos Vingadores #58, Panini, 2008.
128
5.5 ALITERAÇÕES
Enquanto figura de linguagem, a aliteração é a repetição do mesmo fonema,
criando um efeito sonoro no plano auditivo e também um efeito visual no plano da escrita.
Conceitualmente, ele não faz parte da dinâmica dos quadrinhos. Entretanto, por
conta dos criadores da década de 30 e 60, tornou-se uma marca registrada dos quadrinhos de
super-herois, especialmente no que se refere a escolha dos nomes civis das personagens.
Como este trabalho se alimenta de HQs desta vertente, não seria justo deixar este aspecto
esquecido.
Uma possível lista pode ser compilada, coletando-se apenas personagens da DC e
Marvel, as “duas grandes” do mercado americano e mundial. Figuram aqui astros principais e
também coadjuvantes:
Tabela 2 – Lista de aliterações.
NOME CIVIL/ EPÍTETO PERSONAGEM
Clark Kent Superman
Lex Luthor Arqui-inimigo do Superman
Lois Lane Namorada do Superman
Lana Lang Namorada do Superman
Loris Lemaris Namorada-sereia do Superman
Peter Parker Homem-Aranha
Charles Xavier Professor X dos X-Men
Scott Summers Ciclope dos X-Men
Wally West Flash
Reed Richards Sr. Fantástico do Quarteto Fantástico
Susan Storm Mulher-Invisível do Quarteto Fantástico
Stephen Strange Dr. Estranho
Otto Octavius Dr. Octopus, inimigo do Homem-Aranha
Kletus Kassidy Carnificina, inimigo do Homem-Aranha
Richard Rider Nova
Robert Reynolds Sentinela
129
Matt Murdock Demolidor
Moira McTaggert Aliada dos X-Men
Bruce Banner Hulk
John Jonah Jameson Jornalista inimigo do Homem-Aranha
Billy Batson Capitão Marvel (vulgo Shazam)
Guy Gardner Terceiro Lanterna Verde da Terra
Warren Worthintong III Anjo dos X-Men
Betty Brant Namorada do Homem-Aranha
Curt Connors Lagarto, inimigo do Homem-Aranha
Silver Sable Aliada do Homem-Aranha
Mantidos no original em inglês, alguns outros nomes saltam aos olhos:
Tabela 3 – Aliterações com o nome no original.
NOME ORIGINAL TRADUÇÃO/ADAPTAÇÃO
Wonder-Woman Mulher-Maravilha
Fantastic Four Quarteto Fantástico
Doctor Domm Doutor Destino
Black Bolt Raio Negro
Silver Surfer Surfista Prateado
Steel Serpent Serpente de Aço
Green Goblin Duende Verde
Uma justificativa possível seria a intenção de criar uma facilidade dos
expectadores em identificar o produto, dada a familiaridade sonora. Em todo o caso, essa
“tradição” incorporou-se aos quadrinhos. Um exemplo disso foi a criação da personagem
Sentinela (Sentry) por Paul Jenkins. Como campanha publicitária, o heroi foi apresentado
como uma criação perdida dos primórdios da editora Marvel, uma criação esquecida que
estava sendo resgatada dos arquivos da editora. Criou-se inclusive um desenhista fictício para
alguns esboços e creditou-se a origem e desenvolvimento ao famoso criador dos anos 60, Stan
Lee. Para conferir autenticidade, os artistas envolvidos cuidaram de todos os aspectos que um
heroi da era de prata deveria ter: poderes científicos, ajudante animal, posicionamento ético
definido e, óbvio, um nome aliterado: Robert Reynolds. E mais, ele ainda é o depositário de
130
dois epítetos, fortemente aliterados, como Grandioso Guardião da Glória e Defensor Dourado
da Decência.
5.6 MUNDO DE POSSIBILIDADES
Para além destes termos e exemplificações, faz-se necessário acrescentar que
existem ainda infinitas possibilidades aproveitadas pelos quadrinhos, algumas das quais não
encontram paralelo em outras mídias. Serão mencionados dois exemplos, que fogem das
esquematizações com as quais se construiu este capítulo. Serão chamados de “efeitos” para
fins de nomenclatura neste trabalho.
5.6.1 Efeito “Temível Simetria”
Uma das criações mais comentadas na indústria da banda desenhada, a graphic
novel Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons é acalmada como a maior realização no
campo da experimentação em se falando de HQs. Por conseguinte, é também a obra que mais
se configura como tema de teses e estudos acadêmicos, além de ser a única obra em
quadrinhos a figurar na lista das 100 melhores obras de 1923 até 2005, composta por Lev
Grossman e Richard Lacayo, críticos da Revista Time (2009).
Um resumo da história de Watchmen, por mais que se tenha ensaiado algo do tipo
no capítulo 3, não é fácil. São diversas histórias laterais que se completam um panorama mais
amplo. Em síntese, e sem fazer jus à obra, trata do assassinato de um ex-vigilante mascarado e
a tentativa de solução por parte de um colega vigilante. Ao mesmo tempo, é retratada uma
visão de como seria o mundo se realmente o fenômeno do heroísmo fantasiado surgisse, bem
como a visão pessimista e temerosa do auge da Guerra Fria. Para completar, a trama se
131
desenvolve na descoberta de um plano incrível para acabar com o iminente conflito global e
holocausto nuclear.
A série é toda recheada de experimentações no roteiro, na diagramação, na arte e
no tema. Um capítulo em especial chama a atenção por sua execução: o capítulo cinco,
intitulado Temível Simetria. Todos os títulos de Watchmen são citações. Esta é uma citação de
William Blake, no poema The Tyger (O Tigre). A história deste capítulo versa sobre a
armadilha na qual cai o vigilante Rorschach, que acaba preso.
Cada um dos capítulos da obra possui um tema interno, e neste caso o tema é
justamente a simetria do título. Para conseguir esta realização, roteirista e desenhista
montaram a história de uma forma a conseguir “quadros espelho”, requadros que fossem
simétricos em diagramação e ambientação de cena. Assim, o requadro de número 1 da
primeira página é semelhante em formato de conteúdo ao 1 da última página, de número 28,
fazendo com que as primeira e última página, diametralmente opostas, sejam semelhantes.
Para coroar o emprendimento, as páginas 14 e 15 formam um desenho duplo, um homem e
seu reflexo numa piscina, formando uma dupla simetria. Como diz Paio (2009), “essas
páginas tem uma forma única na série, e são simétricas; elas são o "centro do espelho" que é
essa edição”. O mesmo acontece com a segunda e penúltima página, a terceira e a
antepenúltima, e assim sucessivamente. Ademais, existem pistas na arte e no roteiro, como a
inversão de “R’s” no luminoso de um hotel, formando mais simetria; o número de arquivo do
caso investigado, 801108, um número simétrico; o palíndromo que serve de título de um
álbum musical da banda Grateful Dead, “Aoxomoxoa”, em destaque; e a obsessão do
personagem Rorschach por simetria, especialmente na máscara que veste.
O efeito de quadros espelho, especialmente conformando-o com o roteiro, sem
perda narrativa e com acréscimo visual, até o momento, só foi identificado em histórias em
quadrinhos.
132
Figura 137 – Página 10, diametralmente oposta à página 23.
Fonte: Watchmen #05, Abril, 1999.
Figura 138 – Página 23, mantendo mesma diagramação, tema e cenário da página 10.
Fonte: Watchmen #05, Abril, 1999.
5.6.2 Efeito “Condenado pelo passado”
Condenado pelo passado é o título de um arco de histórias do Demolidor, escrito
por Brian Michel Bendis e desenhado por Alex Maleev. O Demolidor é o alter ego do
advogado Matt Murdock, que ficou cego por conta de um respingo de compostos químicos
desconhecidos em seus olhos na tentativa de salvar um velhinho que inadvertidamente
atravessava a rua. O composto tirou sua visão mas ampliou sobremaneira todos os demais
sentidos. Atleta fenomenal, o Demolidor, vestindo um colante vermelho com chifres, na
133
imitação de um diabo, usa seus poderes para defender o perigoso bairro onde vive, a Cozinha
do Inferno (Hells Kitchen no original).
Chama-se de arco de histórias uma trama ambientada numa revista de linha que
precisa de dois ou mais números mensais para ser concluída. É a atual tendência nos
quadrinhos de herois americanos. “Condenado pelo passado” é um arco em cinco partes, que
relata a saída do gangster Bont, depois de 20 anos. Bont havia sido preso pelo Demolidor, que
na época ainda estava em início de carreira. O criminoso tem como objetivo se vingar do
heroi.
Parte da história é narrada em flashback, especialmente as memórias do mafioso
aposentado. Para melhor dar a impressão de antiguidade, o desenhista deliberadamente usou
recurso antigos, datados, no momento da colorização. Para retratar a juventude e ascensão de
Bont ao poder os quadrinhos são deixados em preto-e-branco, remetendo às décadas de 40 e
50, auge da atividade mafiosa e época onde a colorização ainda não era freqüente.
Figura 139 – Transição de idade e época, remetendo à década de 40.
Fonte: Demolidor #24, Panini, 2006.
De maneira parecida, os primeiros embates entre Bont e Demolidor são retratados
com técnicas antigas de colorização, desta vez por pigmentos. Esta foi a maneira encontrada
nos primórdios da indústria, e dão ar de antiguidade à arte. Desta forma, os leitores possuem
mais um signo visual a ser interpretado, mais uma inferência ser feita com relação à obra.
134
Figura 140 – Transição de idade e época, remetendo às décadas de 70-80.
Fonte: Demolidor #25, Panini, 2006.
Realizada uma pesquisa histórica sobre arte e quadrinhos, bem como uma análise
de seus aspectos constitutivos enquanto forma de arte, é chegado o momento de analisar e
refletir sobre uma obra em especial, que título a esse trabalho. Isto será feito no capítulo
que segue.
135
6 METODOLOGIA
A metodologia desenvolvida tem como aporte teórico os pressupostos da pesquisa
bibliográfica. As fontes de referência são livros, revistas e artigos sobre o tema, além da
própria obra, apresentada no formato próprio das histórias em quadrinhos consagrado pelo
mercado brasileiro. É essencialmente uma pesquisa de cunho qualitativo. É também apenas
descritiva, o que, segundo Rauen, configura-se como uma pesquisa que “não intervêm na
realidade” (RAUEN, 2006, p. 48). Isso significa que a pesquisa basicamente se preocupa em
denotar os fatos e fenômenos conforme estes se manifestam. Ainda assim, o pesquisador não
se abstém de análises do material encontrado.
A primeira etapa procurou apreender e selecionar a bibliografia e sites sobre o
tema. Sobre a bibliografia investigada, é possível afirmar que foram consultados diversos
livros provenientes de diferentes, como as bibliotecas particulares do pesquisador e da
orientadora. Além disso, usou-se também do rico acervo bibliográfico da instituição. A rede
mundial de computadores também proveu o pesquisador, de informações e, mais
particularmente, imagens de originais não disponíveis nos acervos consultados. Para o
trabalho de catalogação e exemplificação do quarto capítulo foram utilizadas revistas em
quadrinhos da coleção particular do pesquisador quando possível, recorrendo ao auxílio de
terceiros nos casos onde edições específicas não estavam disponíveis.
O percurso teórico empreendeu os pressupostos da teoria da estética de maneira
geral, especialmente no que se refere à arte em si e ao seu produto, a obra de arte. Da mesma
forma, houve uma preocupação em fazer um trabalho de “garimpo”, reunindo tanto quanto
possível a bibliografia específica sobre o objeto estudado, a saber, as histórias em quadrinhos.
Em comparação com outros gêneros artísticos, esta é ainda uma bibliografia escassa, ao
menos no sentido de obras publicadas e veiculadas pelas grandes livrarias. Ademais, boa parte
desta bibliografia está fora de catálogo das editoras, com muitas edições esgotadas e só
possivelmente adquiridas no mercado de usados. Entretanto, existem também excelentes
obras que ainda não receberam tradução adequada para chegar ao mercado brasileiro. As
obras citadas no original receberam sua tradução do pesquisador e constam como notas
explicativas, com o intuito de oferecer estes dados também a quem não domine outro idioma.
Inicialmente, procurou-se destacar a questão da arte e da obra de arte. São
expostas teorias da estética, como tentativa de delinear a existência da capacidade artística
136
intrínseca ao gênero humano, bem como uma maneira própria de conhecer, que é o
conhecimento artístico. Nisso, introduz-se também a reflexão sobre a constituição da obra de
arte, a diferença entre arte e técnica, a diferença entre obra de arte e artesanato e as condições
de arte na pós-modernidade. Optou-se por um recorte filosófico amplo, no intuito de explanar
diversas correntes esteticistas, oferecendo ao leitor um apanhado tanto histórico quanto
filosófico. Neste percurso, os teóricos Platão, Aristóteles, Vico, Kant e Benjamin, além das
considerações de Chauí, Mondin e Mora, deram forma às reflexões sobre a arte.
O passo seguinte, o intuito de introduzir a definição do que seja história em
quadrinhos, procurou desenhar uma possível definição, que perpassa as diversas
nomenclaturas do gênero nas diferentes culturas e culminam em tratamentos mais científicos,
especialmente no que tange a McCloud, Eisner e Gubern. Esta etapa resultou em dois
momentos de escritura. Demarcado pela história, o primeiro procurou ressaltar origens e
evoluções da nona arte como um todo, partindo das raízes pré-históricas e chegando aos dias
atuais. No segundo, ainda seguindo uma cronologia, pretendeu-se particularizar no que se
chama de “quadrinhos de super-herois”, um entre os tantos gêneros possíveis retratados por
essa arte. A opção por esta deu-se por entendermos sua relevância a futuras pesquisas, como
ponto ou contraponto.
Na seqüência, procurara-se desconstruir a arte seqüencial para expor seus
mecanismos de compreensão e feitura, detalhando também os termos técnicos e expedientes
que compõe esta maneira de fazer arte.
Nas palavras de Moore:
Ao invés de compararmos sempre os Quadrinhos ao Cinema ou à Literatura, com o
intuito de que a respeitabilidade destes conceda àqueles mais legitimidade, não seria
muito mais produtivo concentrar a nossa atenção justamente nos aspectos e nas
técnicas em que os Quadrinhos são únicos e especiais? Em vez de insistirmos nas
técnicas cinematográficas que os Quadrinhos podem duplicar, não seria mais
profíquo considerarmos mais as técnicas destes que o cinema não pode imitar?
(2002)
Desta feita, os estudos são direcionados para avaliar a relação entre nona arte e
sinestesia, as diferentes formas de representar outros sentidos exclusivamente pela visão, e os
diferentes estímulos à percepção do leitor. Histórias em quadrinhos aparecem, assim,
retratadas como uma mídia de mão dupla. Nesta o autor e leitor tornam-se parceiros na
construção de sentido, muito mais que em diversas outras mídias.
Uma seara ainda não tão desbravada configura-se como a análise de histórias em
quadrinhos. Como qualquer obra de arte, histórias em quadrinhos suscitam percepções e
137
questionamentos. Ainda assim, não é comum que tais obras sejam alvo de tal procedimento. A
análise que se insere neste trabalho, longe de ser exaustiva sobre a obra ou o tema, procura
servir como tentativa para lançar, tanto quanto possível, as bases dos critérios para futuras
análises “quadrinhísticas”. Para tanto, ela se calca na análise literária, especialmente no que
teóricos como Massaud Moisés compreendem como análise literária, e se serve também dos
conceitos e aspectos levantados nos capítulos precedentes. Futuros trabalhos pretendem ter o
escopo de usar o caminho aqui descoberto e aprendido para fomentar, no meio acadêmico,
esta prática.
138
7 GUERRA CIVIL
Este capítulo apresenta uma análise que denominamos “quadrinhística” da saga
intitulada de Guerra Civil (Civil War). Para tanto, procura-se articular pressupostos
empreendidos no percurso histórico e conceitual, bem como valer-se de conceitos e elementos
oriundos da teoria literária.
A eleição da referida obra obedeceu a alguns critérios. O primeiro deles é o fato
da obra ser uma típica representante dos quadrinhos mainstream. Explica-se: quadrinhos mais
autorais são comumente usados em teses universitárias
18
, ao passo que histórias mais
comerciais podem carregar a pecha de rasas, infantis ou descartáveis. Tenciona-se, portanto,
com esta análise evidenciar a literariedade dos HQs, inclusive os classificados como
“comerciais”. Para tanto, sublinha-se como as amarras em sua narrativa podem ser
apreendidas sob do ponto de vista literário, demonstrando que esta arte não se condiciona ao
meio pelo qual é veiculada.
Um segundo critério é pela história tratar-se de uma dita saga, com começo e final
definidos, ainda que inserida numa continuidade editorial. As revistas em quadrinhos
comercias tendem a ser como novelas, com núcleos de personagens principais e coadjuvantes,
arrastando-se indefinidamente pelos anos de publicação. Assim, um evento fechado propicia
limites para a pesquisa, ajudando a manter o foco do pesquisador.
O terceiro fator é a obra inserir-se num universo ficcional (da Editora Marvel
Comics) com personagens mundialmente conhecidos, com caracteres de grande exposição em
outras mídias, especialmente o cinema. Além disso, pesam aqui as preferências pessoais do
pesquisador.
Por fim, Guerra Civil, para além de seus objetivos mercadológicos e artísticos,
também visa uma reflexão política e social, versando sobre direitos civis e políticas de
segurança coletivas, mais propriamente as fronteiras e intersecções entre uns e outros. Desta
forma, concede um instigante mote para análise.
18
Destas todas, Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons lidera o ranking como a obra mais estudada e
comentada.
139
7.1 UM EVENTO MARVEL COMICS
Guerra Civil se insere numa tradição entre os quadrinhos de super-herois das
publicações das sagas anuais. Falar em tradição na verdade é remontar a uma prática
comercial que pretende alavancar melhores vendas. Quase que anualmente as “duas grandes”
editoras do mercado americano de super-herois lançam histórias seriadas, fora das revistas
normais, geralmente prometendo drásticas mudanças na história ficcional de suas
personagens. Obviamente, nem sempre estas pretensões são bem sucedidas. Antes, porém, de
entrar no aspecto específico destas histórias, faz-se necessário compreendermos como
funcionam os universos ficcionais das editoras, além de algumas características do mercado
americano e brasileiro.
Um universo de uma editora pode ter dois significados. Amplamente se refere ao
conjunto de todas as personagens de uma editora. Como o gênero de super-herois é
caracterizado por extrapolações de ficção científica, “universo” também pode denominar uma
parte segmentarizada das personagens. Por exemplo, a Editora Marvel possui, atualmente,
dois universos (também chamados de realidades, donde o conceito de “realidade paralela”)
principais: o universo de número 616, onde se editam as aventuras iniciadas por Stan Lee com
o número 1 de Quarteto Fantástico e todos os demais personagens até hoje. A segunda
realidade em destaque é chamada no Brasil de universo Marvel Millenium (Ultimate Marvel
nos Estados Unidos), onde se passam as aventuras de versões repaginadas e atualizadas de
alguns dos herois do universo 616. Comercialmente, cada uma destas realidades supõe uma
linha editorial e comercial diferente. Outras surgiram, como o Novo Universo, com herois
totalmente novos, e o universo 2099, com versões futuras dos principais herois da editora. Na
DC Comics, por sua vez, a maioria dos universos representava as aquisições comerciais do
grupo, que compravam editoras menores e passava a deter os direitos de suas personagens.
Assim, havia a Terra-S (lar dos herois comprados da Fawcett, como o Capitão Marvel), a
Terra-C (da Editora Charlton) e muitos outros. Eram tantas as realidades paralelas que, em
1985, a editora resolveu “enxugar” seu quadro de personagens, lançando mão de uma saga
chamada Crise nas Infinitas Terras (Crisis on Infinity Earths).
Cada uma destas realidades possui sua própria cronologia, seu conjunto de
histórias e fatos acontecidos, com suas repercussões e consequências. Pode-se dizer que este
dispêndio criativo remonte aos primórdios da moderna Marvel, quando Stan Lee fazia as
140
histórias de seus nascentes herois se cruzarem e relacionarem. Assim, se o Quarteto Fantástico
expulsava um monstro gigante do centro de Nova York em sua revista, no mesmo mês o
Homem-Aranha podia ser visto, na sua revista, se balançando sobre a cratera aberta e
comentando os feitos do grupo. Consequentemente, editoras que publicam personagens desde
os anos 30 e 60 possuem uma tonelada de cronologia, mais ou menos obedecida pelos
escritores.
19
Espera-se de um bom escritor um misto de criatividade e ortodoxia, para levar a
personagem que escreve a novos rumos sem desdizer, esquecer ou descaracterizar as histórias
já publicadas.
Todos estes universos e suas cronologias são construídos nas revistas de
personagens e grupos. Algumas vezes, dada a popularidade (o que se traduz por maiores
vendas), uma personagem pode ter mais de uma revista ou, se parte de um grupo, pode acabar
ganhando revistas solo.
20
Estas grandes sagas também são denominadas de crossovers, que
poderia ser traduzido como encruzilhadas. Como os diversos herois vivem em seus próprios
títulos, as histórias onde eles se encontram uns aos outros se tornam verdadeiros cruzamentos
de personagens, autores e cronologias.
Historicamente, as grandes sagas anuais, no formato em que as conhecemos hoje,
apresentam seus primeiros contornos, ainda incipientes, em 1982, com a minissérie da Marvel
intitulada Torneio dos Campeões. No entanto, convencionou-se considerar a publicação da
série Guerras Secretas (Secret Wars), de 1984, como a primeira grande saga. O evento reunia
os principais herois e vilões da editora, abduzidos por uma divindade cósmica para travar uma
batalha pela realização de seus desejos. Esta saga definiu os formatos que se seguiriam
depois: edições a parte com a história do evento e as repercussões da mesma nas revistas
mensais.
Conforme Paulo Agria:
Jim Shooter, então editor-chefe da Marvel, se encarregou do projeto, concebendo
Guerras Secretas, uma minissérie em 12 edições com diversos herois e vilões da
Casa das Ideias. Porém, nas revistas mensais, haveria um desaparecimento dos
personagens envolvidos, que voltariam na edição seguinte com alterações
decorrentes da saga. O leitor teria de acompanhar a minissérie (por um ano) para
descobrir como aconteceram essas alterações (2008, p. 6).
19
De fato, entre o fandoom, a cronologia tornou-se canônica, quase artigo de fé. Além de conferir um sabor
especial às histórias, a cronologia também se transforma num entrave para novos leitores, que precisam
absorver décadas de histórias.
20
Por exemplo, Capitão América sempre foi membro obrigatório dos Vingadores, mas mantinha sua revista solo.
O caso mais emblemático é o da personagem Wolverine: ele é presente na equipe dos Novos Vingadores, dos
X-Men, da X-Force, em ainda mantém sua revista solo, além de estrelar minisséries ocasionais, uma
verdadeira super-exposição da personagem.
141
Todas essas histórias são planejadas em reuniões editorias, envolvendo partes ou
toda a realidade ficcional. Além de escritores e desenhistas responsáveis pela série principal
de histórias, todos os demais artistas da editora se envolvem nos chamados spin-offs, as
repercussões da rie nas revistas publicadas rotineiramente, bem como edições especiais que
possam ser concebidas para aspectos das histórias ou dos personagens que não têm lugar nas
revistas de linha. Spin-offs não são essenciais no entendimento da trama, fazem parte do todo
maior, o que interessa aos fãs.
7.2 O ENREDO
Guerra Civil é uma minissérie composta em sete partes, roteirizada por Mark
Millar e desenhada por Steve McNiven. Teve como arte-finalista Dexter Vines e como
colorista Morry Hollowell. O editor do núcleo foi Tom Brevoort, sob liderança do editor-
cehefe Joe Quesada. A edição brasileira contou com o trabalho de tradução e adaptação do
estúdio FL e de Jotapê Martins, bem como o letreiramento de Tiago Sueyoshi, que
reportavam ao editor Fernando Lopes, da Editora Panini. Nos Estados Unidos foi publicada
em 2006. No Brasil, foi publicada de julho de 2007 a janeiro de 2008 pela Panini Comics,
uma subdivisão da editora Panini, detentora, neste país, dos direitos da Marvel Comics. Sua
história se passa no universo ficcional regular da editora, chamada de realidade 616, e tem
como foco a equipe de herois chamada Vingadores (Avengers).
Conforme já mencionado, o enredo está dividido em setes partes, cada uma
constituindo-se numa revista publicada mensalmente. Cada uma destas revistas, além da capa,
possui 36 páginas e obedece a estética das revistas seriadas: cada parte funciona como um ato
dramático em si, com um clímax e um cliffhanger, o popular gancho dramático, que prepara o
número seguinte. Ao final, está desenhada a nova situação do universo ficcional, que será
aproveitado em todas as revistas de linha ao longo dos anos (ou até a próxima grande saga).
Existe um núcleo de personagens principais, polarizadores da tensão dramática
entre todos os protagonistas. Para facilitar referências e consultas, formula-se uma tabela das
personagens envolvidas:
142
Tabela 4 - Lista de personagens.
Personagem Revista em que aparece
Abutre #2
Adaga #2, #3, #4, #6, #7
Alfabeto #6
Araña #6
Armador #6
Arraia #5, #6
Asa de Fogo #4, #5, #6
Áspide #5
Atlas #3, #4, #5
Bishop #3, #6, #7
Cable #2, #3, #4
Capitão América #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Capitão Marvel #7
Cascavel #5
Cavaleiro Negro #6, #7
Ceifador #2
Célere #5
Ciclope #1, #2
Clone do Thor #3, #4, #7
Coisa #1, #2, #3, #4, #7
Colossus #1, #2
Crianças do colégio #1
Demolidor #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Doc Samson #2, #3, #4, #6, #7
Dr. Estranho #1, #6
Dra. Jane Foster #2, #4
Enfermeira Noturna #2, #4
Equipe de cinegrafistas #1
Escaravelho Dourado #6
Estatura #1, #2, #4, #5, #6, #7
Falcão #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
143
Falcão Noturno #1, #4, #5, #6, #7
Fera #2
Fóton #5, #6
Garota Marvel #1
Gata Negra #1
Gaviã Arqueira #1, #2, #3, #4, #6, #7
Golias #1, #2, #3, #4
Hallowen #4, #5
Hércules #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Homem Absorvente #5
Homem Aranha #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Homem de Cobalto #1
Homem de Ferro #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Homem de Gelo #1
Homem Máquina #6
Homem Radioativo #3, #4, #5, #6, #7
Hulkling #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Impiedosa #1
J. J. Jameson #1, #2
Jaqueta Amarela #1, #2, #3, #4, #6
Joystick #3, #5
Justiça #4, #5
Justiceiro #5, #6, #7
Lady Letal #4, #5, #6, #7
Laser Vivo #4, #5, #6
Luke Cage #1, #2, #3, #4, #5, #7
Macht V #3, #6
Magnun #3, #4, #6, #7
Manto #2, #3, #6, #7
Maria Hill #1, #2, #3, #5, #6, #7
Mercenário #4, #5, #6, #7
Micróbio #1
Miriam Sharpe #1, #2, #4, #6, #7
144
Miss Marvel #1, #2, #3, #4, #6, #7
Mortalha #6
Mulher Aranha #1, #6, #7
Mulher Invisível #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Mulher-Hulk #1, #2, #3, #5, #6, #7
Namor #6, #7
Namorita #1
Nevasca #6, #7
Nitro #1
Pantera Negra #3, #6, #7
Patriota #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Polichinelo #4, #5
Prodígio #6
Radical #1
Rainha Branca #2, #3
Robôs Sentinelas #1, #3
Sabra #6
Saqueador #6
Secretários e assessores do governo dos
EUA
#1
Sentinela #6, #7
Silhouette #4, #5
Soldados atlantes #7
Solo #6, #7
Soprano #4, #5, #6
Speddball #1
Speedfreak #1
Sr. Fantástico #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Tempestade #6, #7
Tigresa #2, #3, #4, #6
Tocha Humana #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7
Treinador #4, #5, #6, #7
Triatlo #4, #5
145
Ultramoça #5
Unidade Mata Capas #1, #2, #3, #4, #5, #7
Venom #4, #5, #6, #7
Vespa #1, #2, #3, #4, #6
Vigia #1, #4, #6
Visão #3, #4, #5, #6, #7
Viúva Negra #3, #6
Wiccano #2, #3, #6
Wolverine #1, #2
A grande trama foi preparada em histórias esparsas publicadas nas revistas
americanas, ao longo dos anos de 2005 e de 2006. A editora Marvel sempre foi conhecida por
apresentar herois mais humanizados, propensos à falhas em comparação com seus
concorrentes. Assim, algumas das aventuras em que esses herois se envolvem nem sempre
acabam com resultados plenamente positivos, muitas vezes longe de serem finais felizes. Na
ficção, a opinião pública (que representaria, mais ou menos, a opinião do leitor) aparece
dividida sobre os super-humanos. Alguns são ícones admirados, como Capitão América ou
Homem de Ferro. Outros, como os mutantes X-Men, são temidos por grande parte da
população. Órgãos formadores de opinião, como jornal nova-iorquino Clarim Diário (Dayle
Buggle), na pessoa de seu editor e proprietário J. J. Jameson, é claramente contra os super-
herois, especialmente o Homem-Aranha.
Alguns eventos apresentados anteriormente fazem com que a opinião da massa
pese negativamente contra os super-herois. Um deles foi o fim dos Vingadores (na saga do
ano de 2004, Vingadores: A Queda), que fez com que a equipe mais querida e famosa da
população fique arrasada, sem financiamento das Nações Unidas e com severas baixas entre
os seus. Outro evento foi um arco de histórias de Wolverine (Inimigo de Estado). Neste o
anti-heroi sofre lavagem cerebral da maior organização terrorista do mundo, a Hidra, e põe
em risco a vida do presidente e oficiais de alta patente. Para terminar, nas revistas mensais do
Hulk, este sofre nova exposição dos raios gama que culminaram com sua transformação,
ficando mais forte e raivoso, destruindo Las Vegas no processo. Estava formada uma situação
de desconfiança e medo para com todos os super-humanos.
Na primeira parte, é apresentada a equipe juvenil de herois chamada Novos
Guerreiros (New Wariors). Esta equipe, além de ser composta por herois imaturos, participa
146
de um reality show, com o mote de caçar e capturar super-criminosos com transmissão ao
vivo. São componentes dessa equipe Radical, Speedball, Namorita e Micróbio. Cruzando
informações, o grupo se depara, na cidade de Stamford, estado de Connecticut, com quatro
super-criminosos, chamados Homem de Cobalto, Speedfreek, Impiedosa e Nitro. Estes
aparecem como os mais procurados do FBI
21
e são claramente mais poderosos que os Novos
Guerreiros. Ainda assim, preocupados com os números da audiência, o grupo decide pela
captura.
Figura 141 – Reality show dos Novos Guerreiros.
Fonte: Guerra Civil #01, Panini, 2007.
A ação se desenrola descontroladamente, e o super-vilão Nitro, com o poder de
criar grandes explosões ao seu redor, acaba fugindo, chegando próximo a uma escola. Ao ser
interceptado, ele usa seu poder de maneira catastrófica, matando não apenas seus amigos
como também os captores e as crianças, num total aproximado de 612 mortos. Tudo
transmitido em cadeia nacional.
Figura 142 – Explosão de Stamford.
Fonte: Guerra Civil #01, Panini, 2007.
21
FBI: Federal Bureau Investigation, o órgão federal de investigação dos EUA.
147
Com tamanha tragédia, órgãos dos governos se mobilizam para aprovar uma lei
chamada de Lei de Registro de Super-Humanos. Na prática, esta lei transforma toda a
atividade dos super-herois em crime, permitindo que estes continuem com suas práticas se
treinados e habilitados pelo governo. Além disso, transforma a comunidade super-humana em
funcionários públicos. As opiniões são divergentes. O Tocha Humana, um heroi sem
identidade secreta, quase é linchado por populares, enquanto Tony Stark, o Homem de Ferro,
é hostilizado publicamente por uma mãe das vítimas do incidente. Grande parte da
comunidade super-poderosa se reúne no Edifício Baxter, sede do Quarteto Fantástico, para
discutir os prós e contras da ação. Na base da S.H.I.E.L.D., a maior agência de espionagem e
combate ao crime do mundo, o Capitão América é intimado a aceitar a lei de registro e
forçado a prender, entre seus amigos, quem for contra. Rebelando-se contra esta situação, ele
foge e entra na clandestinidade. Posição diametralmente oposta tomam Jaqueta Amarela, Sr.
Fantástico e Homem de Ferro, que apóiam a lei e, especialmente o último, encabeçam o
movimento pró-registro. Estavam formados os lados do racha entre os super-herois.
O número dois apresenta as ações do grupo pró-registro, divulgadas pela dia e
apoiadas pelos órgãos governamentais. Também mostra as atividades clandestinas do Capitão
América, que em pouco tempo passa a contar com parceiros que partilham de sua opinião. Na
noite em que a lei é posta em vigor, unidades especialmente treinadas da S.H.I.E.L.D.,
chamadas de Mata Capas, passam a caçar herois fora-da-lei, como os Jovens Vingadores.
Quando estes são capturados, Capitão América e um de seus aliados, o Falcão, que estavam
infiltrados entre os Mata Capas, os libertam. Ao mesmo tempo, na cidade de Washington,
Tony Stark, ao lado de Miriam Sharpe, preparam a imprensa para receber o Homem-Aranha,
que tem uma importante declaração: diante de todas as câmeras, toda a imprensa nacional, o
Aranha declara seu apoio à lei de registro e, como prova de boa fé, retira sua máscara e revela
sua identidade secreta ao mundo:
Homem-Aranha: – Hã... como a maioria de vocês sabe, tenho... hm... guardado
minha identidade secreta muito cuidadosamente ao longo dos anos... e decidi dar
esse passo depois de uma longa conversa com minha mulher e meus parentes.
Vejam bem, a lei de registro nos uma escolha: podemos seguir a tendência que o
Capitão América advoga e ter pessoas dotadas de poderes completamente sem
controle... ou os super-herois podem se tronar oficiais e recuperar um pouco da
confiança do público. Não estou usando minha velha máscara por ter vergonha do
que faço. Tenho orgulho de ser quem sou e estou aqui para provar isso. Meu nome é
Peter Parker e sou o Homem-Aranha desde os quinze anos. Alguma pergunta?
(MILLAR; MCNIVEN, 2007, #2, p. 36-37)
148
Figura 143 – O Homem-Aranha tira a máscara.
Fonte: Guerra Civil #2, Panini, 2007.
O capítulo seguinte mostra os herois a favor do registro procurando aliados.
Assim, o Sr. Fantástico vai até a nação africana de Wakanda convidar o soberano deste país, o
heroi negro chamado Pantera Negra, que se nega. Da mesma forma, Jaqueta Amarela e Vespa
procuram pelo Dr. Estranho, mestre das artes místicas, que nem ao menos se digna em recebê-
los. Ainda, Stark vai até Westchester, na mansão dos X-Men, e conversa com a Rainha
Branca. Esta declara que os herois mutantes vão manter uma posição de neutralidade, uma
vez que os próprios mutantes já sofreram com tentativas do governo de registrá-los (ou
exterminá-los) com o programa de Robôs Sentinelas. Dentre todos os X-Men, apenas um,
Bishop, se alia ao Homem de Ferro.
Figura 144 – Visita ao Pantera Negra.
Fonte: Guerra Civil #3, Panini, 2007.
149
Figura 145 – Visita ao Dr. Estranho.
Fonte: Guerra Civil #3, Panini, 2007.
Figura 146 – Visita aos X-Men.
Fonte: Guerra Civil #3, Panini, 2007.
Os herois clandestinos, chamados agora de Vingadores Secretos, se abrigam em
novas identidades falsas, fazendo justiça às margens da lei. Ao receberem a mensagem de um
incêndio numa petroquímica em Nova York, eles se deparam com uma armadilha arquitetada
pelas forças a favor do registro. Primeiro, os membros capazes de teleporte, Manto e
Wiccano, são incapacitados, impedindo a fuga. Depois surgem remanescentes dos
Vingadores, o Quarteto Fantástico e os Thunderbolts, uma equipe composta por herois
reformados, auxiliados por uma extensiva unidade dos Mata Capas. O Homem de Ferro inicia
um diálogo com Capitão América, mas tem sua armadura momentaneamente comprometida
por um dispositivo implantado pelo Capitão. Inicia-se uma luta acirrada entre dos dois grupos,
que tem um breve intervalo quando surge o, até então dado como morto, Poderoso Thor, o
deus do trovão.
O capítulo quatro se abre com Thor tomando uma posição pró-registro,
desestabilizando as forças do Capitão. O Homem de Ferro, recuperado, uma surra no
Capitão. Thor, descontrolado, acaba matando um heroi das forças anti-registro, o gigante
Golias, e se prepara para mais morticínio.
150
Figura 147 – A morte do Golias.
Fonte: Guerra Civil #4, Panini, 2007.
Abalada, a equipe clandestina é salva por uma arrependida Mulher Invisível, que
apoiava o registro. Com tal ajuda, os clandestinos conseguem fugir. Thor mostra ser um clone
criado pelo Sr. Fantástico e Jaqueta Amarela. A tragédia abala a convicção de muitos herois.
Cable, Falcão Noturno e Estatura abandonam os Vingadores Secretos, ao passo que a Mulher
Invisível e seu recuperado irmão Tocha Humana se unem aos ilegais, o que acarreta no
divórcio do Sr. Fantástico e Mulher Invisível, fundadores do Quarteto. O Coisa, descontente
com tudo, se auto-exila na França. Para repor seus quadros, o lado legalizado abre mão de um
artifício perigoso: emprega vilões controlados por nanotecnologia, arregimentando bandidos
da pior espécie, como Venom e Mercenário, numa nova formação dos Thunderbolts.
Figura 148 – Os vilanescos Thunderbolts.
Fonte: Guerra Civil #5, Panini, 2007.
Na seqüência, a edição seguinte mostra a deserção do Homem-Aranha,
decepcionado com a postura de Stark. Ao fugir, a S.H.I.E.L.D. coloca os novos Thunderbolts
em seu encalço. Nos esgotos, o Aranha, ferido e machucado, fica à mercê dos criminosos
Halloween e Polichinelo, sendo salvo pelo maior dos anti-herois, o Justiceiro. Este último se
diferencia de todos os outros por ser extramente agressivo, violento e, principalmente, não ter
pruridos em matar os criminosos, exatamente o que acaba acontecendo com os dois vilões.
151
Figura 149 – O Justiceiro salva o Homem-Aranha.
Fonte: Guerra Civil #5, Panini, 2007.
O Justiceiro, que vinha vigiando a equipe do Capitão tempos, sabia da
localização do esconderijo atual, e leva o ferido Homem-Aranha até lá. Não sem grande
receio por parte dos demais, o Justiceiro acaba por integrar a equipe.
Nesta edição também se vislumbra a prisão chamada 42, construída especialmente
para super-criminosos e localizada numa dimensão paralela, a Zona Negativa. Vê-se a prisão
do Demolidor, que entrega a Stark um curioso presente, uma moeda, comparando-o a um
famoso personagem bíblico.
Stark: – Um dólar de prata? Eu não entendo.
Demoludor: Ao que parece, agora você tem trinta e uma moedas de prata, não é?
Durma bem, Judas. (MILLAR; MCNIVEN, 2007, #5, p. 37)
O capítulo seis mostra as forças pró-registro treinando novos super-herois, num
plano de implantar o que será chamado de Iniciativa dos 50 estados, com ideia de colocar uma
equipe se herois uniformizados em cada federação americana. Ao mesmo tempo, de posse de
uma vestimenta inibidora de sensores, o Justiceiro entra no fortificado Edifício Baxter e rouba
informações sobre a 42. Ao mesmo tempo, a Mulher-Invisível pede o auxílio de Namor,
soberano do reino submerso da Atlântida, que o nega. Apenas o Pantera Negra e sua esposa,
Tempestade, aceitam ajudar os Vingadores Secretos. De posse dos planos esquemáticos da
prisão, a equipe clandestina prepara um grande assalto, na tentativa de libertar seus amigos.
Durante a elaboração do plano, dois vilões, Escaravelho Dourado e Saqueador se apresentam
ao Capitão, pedindo para se unir aos rebeldes. Mal terminam de falar e são prontamente
assassinados pelo Justiceiro. Este último leva uma surra do Capitão América, sem sequer
reagir, em respeito ao heroi. O Justiceiro é expulso da equipe.
Na noite do grande assalto à prisão, percebe-se que o grupo legalista esperava
por isso, armando uma emboscada aos rebeldes. É informado que Tigresa, do grupo do
152
Capitão, é uma traidora. Sem demora, este informa que também tinha um agente infiltrado, o
transmorfo Hulkling, que se passava pelo Jaqueta Amarela e libertou todos os prisioneiros.
Assim, ambos os lados se preparam para a derradeira batalha.
Figura 150 – A grande batalha.
Fonte: Guerra Civil #6, Panini, 2007.
No último número, a batalha segue acirrada. Correndo rio risco de serem
novamente presos, os Vingadores Secretos utilizam seu teleportador, Manto, numa
assombrosa manobra: teleportar todos os combatentes para as ruas de Nova York. O caos se
instala e, ao mesmo tempo em que combatem, os herois precisam se preocupar com baixas
civis e destruição de propriedade. As forças atlantes, lideradas por Namor, vêm em socorro
dos rebeldes, ao passo que as equipes em treinamento prestam auxílio aos legalistas. Em meio
ao combate, Hércules, furioso, destrói o clone de Thor. O Visão consegue desestabilizar a
armadura do Homem de Ferro, que é violentamente espancado pelo Capitão. A batalha pende
para os Vingadores Secretos, quando o Capitão América é impedido por populares. Entre
gritos e protestos, Capitão América se percebe da destruição e dor que provoca. Sem renegar
sua opinião, ele retira a máscara e se entrega às autoridades, onde se dá o seguinte diálogo:
Capitão América: Eles m razão. Não estamos mais lutando pelas pessoas,
Falcão... olhe pra nós. Estamos só lutando.
Tocha Humana: Capitão, o que está fazendo? Vão nos jogar na cadeia se você se
render.
Homem-Aranha: – A gente estava surrando eles, cara. Estávamos ganhando.
Capitão América: Ganhando tudo, menos a discussão. E eles não vão prender o
Capitão América... vão prender Steve Rogers. É uma coisa completamente diferente.
(MILLAR; MCNIVEN, 2007, #7, p. 23-24)
153
Figura 151 – A rendição do Capitão América.
Fonte: Guerra Civil #7, Panini, 2008.
A guerra termina. A maioria dos herois rebeldes é anistiada, e alguns até se
registram. O Capitão é encarcerado e a equipe dos Vingadores é refeita. Surgem diversas
equipes estaduais, com o apoio e planejamento do governo, através do programa da Iniciativa.
Ainda assim, herois como Luke Cage, Homem Aranha e Demolidor permanecem na
ilegalidade. O Quarteto Fantástico se reconcilia, bem como o casal Sr. Fantástico e Mulher-
Invisível. Tony Stark é empossado novo diretor da S.H.I.E.L.D., e único detentor das
informações sigilosas dos herois registrados. É revelado também o motivo da super-prisão ser
chamada 42: na noite do acidente em Stamford, Homem de Ferro, Jaqueta Amarela e Sr.
Fantástico, todos herois tecnológicos e gênios científicos, se reuniram para elaborar 100 ideias
para um mundo melhor. A prisão foi a ideia de número 42, o que significa que eles ainda nem
alcançaram metade de suas metas. E com isso se desenha o novo panorama do Universo
Marvel.
7.3 ANÁLISE DA OBRA
Os enredos das sete capítulos da Guerra Civil revelam semelhança em suas
narrativas com epopéias clássicas como a Ilíada e Odisséia de Homero, a Eneida de Virgílio
ou mesmo Os Lusíadas de Camões, especialmente ao trazerem à cena, além da temática,
desafios e atributos característicos aos herois, acima dos limites humanos. também uma
aproximação dos conteúdos da pop-art, como a cobertura da mídia, o trato das celebridades e
o colorido dos uniformes, o que concede caráter novelesco à obra.
154
Conforme mencionado anteriormente, a necessidade comercial de publicar uma
revista mensalmente faz com que a escrita priorize momentos-chave. Estes momentos
constituem-se como clímax dramático em cada segmento.
No capítulo um, logo no início da trama, o clímax acontece com a explosão da
cidade de Stamford. Este fato promove a desestabilização do “universo” da narrativa,
resultando no estopim e mote para o desenrolar do enredo.
De acordo com Quesada:
tivemos alguns grandes desastres no Universo Marvel, mas o fato é que o
incidente em Stamford envolveu pessoas inocentes e, em particular, crianças num
pátio de escola. [...] Acho que foi o timing do incidente combinado com as vítimas
que tornou Guerra Civil tão importante (QUESADA, apud DIETSCH, 2007, p. 62).
A catástrofe é mote recorrente nas produções de entretenimento americanas. Um
grande filão de Hollywood, por exemplo, é o chamado filme catástrofe. Ainda que se
considere este tema também recorrente nos quadrinhos, ampliado até, visto que muitas vezes
são mundos e universos inteiros à beira da extinção, Guerra Civil apresenta uma familiar
semelhança com os atentados de 11 de setembro de 2001. A comoção gerada na vida real em
frente aos atos de terror é transliterada para a ficção, mostrando os desdobramentos que um
acontecimento desse porte deveria gerar: revolta, protesto e medidas administrativas.
Ademais, não existem sobreviventes que possam ser culpados e punidos. Em spin-offs
relacionados, descobrimos que o heroi Speedball sobreviveu, mas o fato foi acobertado pelo
governo. O vilão responsável, Nitro, também escapa ileso, visto que seu poder permite isso.
Ele é implacavelmente perseguido na série regular de Wolverine. Mesmo assim, tais fatos
passam ao largo da série principal. Um bode expiatório precisa ser encontrado, a fim de
amainar os ânimos mais inflamados e evitar que os mesmos incidentes sejam repetidos.
No capítulo dois, o clímax no enredo apresenta-se no momento em que ocorre a
revelação da identidade secreta do Homem-Aranha. Ao considerar a história do personagem,
é possível notar que a identidade secreta do heroi sempre foi motivo de muita preocupação. A
figura materna do Homem-Aranha, sua tia May, sempre foi retratada como idosa e sensível.
Revelar sua identidade, mesmo para ela, foi sempre um tabu. Além disso, tal revelação faz
dela e da esposa do Aranha, Mary Jane, possíveis vítimas dos inimigos do heroi. No contexto
das HQs, historicamente, o Homem Aranha foi o primeiro personagem a possuir um uniforme
que cobrisse seu corpo inteiro. Sua máscara não permite que fique visível nenhum traço de
seu rosto. Somado a isso, o fato de, independente do lado vencedor, sua identidade como
155
Peter Parker estar para sempre comprometida, arriscando sua vida pessoal e a de seus entes
queridos. Para Dietsch:
Não apenas a “saída do armário” do Homem-Aranha chocou os fãs e os criadores,
como também mudou um dos maiores princípios da mitologia do Escalador de
Paredes e abriu as portas para outros herois contarem ao mundo quem eles realmente
são (2007, p. 63).
A própria persona do Homem-Aranha é controversa. Um dos temas da
personagem é ser eternamente incompreendido pelo público, pela mídia e pelo governo, uma
grande metáfora da adolescência. Seria extremamente lógico, posto isso, que Parker
assumisse o lado anti-registro, dada sua própria desconfiança com as autoridades. Essa
escolha pelo lado legalista deveu-se excepcionalmente ao relacionamento que este desfrutava,
na época, com a personagem Homem de Ferro. Explica-se: nos números anteriores à Guerra
Civil, a série regular de Homem-Aranha apresentou Tony Stark como um modelo a ser
almejado por Peter Parker. Este último é, num grau menor, um gênio científico, mas sempre
relegado a uma vida de privações e economias parcas. Stark reconhece o talento de Parker, o
emprega em suas empresas, a família Parker deixa o subúrbio e se muda para o Torre Stark,
lar dos Vingadores. Porém, ao mesmo tempo em que é valorizado como pessoa, o Homem-
Aranha passa a ser usado como material de propaganda. Os próprios princípios da
personagem são feridos em face aos delitos cometidos pela equipe legalista. Isso ficará nítido
nos capítulos subseqüentes, quando o Aranha finalmente muda de lado.
O retorno de Thor é o ápice do capítulo três. Este fato promove também, a
exemplo da revelação de identidade no número anterior, um entrelaçamento das narrativas
que possibilita o desencadeamento da trama. Deve-se considerar que a personagem Thor
estava afastada cerca de dois anos da linha editorial. Todos do elenco ligado a Thor haviam
sido encerrados num evento em 2004, chamado Ragnarock, emulando as epopéias nórdicas
nas quais o heroi se fundamenta.
22
Cabe ressaltar que a apresentação entrecortada da personagem, com o intervalo de
um mês entre um número e outro, encontrou os fãs despreparados, imaginando em que
situação se dava o retorno do deus do trovão. O autor da série, Mark Millar, em entrevista
posterior a uma revista especializada em quadrinhos, salienta que:
22
Ragnarock, na mitologia nórdica, é a batalha final entre os deuses da dourada Asgard e as forças do mal,
lideradas pelo filho traidor de Odin, Loki.
156
Nós conversamos bastante sobre isso [retorno do Thor] porque normalmente em
uma minissérie como essa, quando usamos ganchos ou algo assim, tem de ser um
grande momento. Mas o que ficou legal é que um monte de grandes momentos, e
o regresso de Thor foi devastador, mas foi eclipsado pelo desmascaramento do
Homem-Aranha na edição anterior. Tem uma porção de coisas acontecendo nessa
página. Acho que estávamos meio atordoados nesse ponto. Não tínhamos ideia do
que esperar. Parecia um outro grande evento. (MILLAR, apud COTTON, 2008, p.
15)
O clímax do número quatro dá-se com a morte do Golias. Esta situação promove
repercussões. Nos spin-offs que se seguiram ao capítulo, mais precisamente na série do
Pantera Negra, que possui um forte posicionamento étnico, algumas personagens
interpretaram o assassinato do Golias como um crime de preconceito racial. Entretanto, deve-
se considerar que, em eventos como esse, os editores são responsáveis por delimitar quais
personagens podem ser descartados. O Golias estava anos sem histórias publicadas, sendo
sua última aparição numa aventura de 1988. Alguns fãs também se manifestaram a respeito.
Conforme o autor:
O que me fez rir com relação a isso é que recebi uma mensagem de um sujeito
depois que isso saiu em que ele dizia: “Parabéns. Tivemos o visual supremo de um
Superman ariano liquidando um dos caras negros do Universo Marvel”. Mas eu
nunca parei pra pensar nisso. Sabe, Thor provavelmente é o super-heroi predileto da
Ku Klux Klan. Eu não o retratei nesses termos porque havia enviado um e-mail pra
Marvel em que dizia: “Escutem, vou liquidar um grande personagem. Quem vocês
sugerem?”, e o melhor que eles sugeriram foi o Golias (MILLAR, apud COTTON,
2008, p. 16).
O resgate do Homem-Aranha pelo Justiceiro é o ponto alto do número cinco. É
importante ressaltar o horror e ironia da situação em que ele é admitido ao grupo. Embora,
diversas vezes, o Justiceiro tenha atuado em parceria com alguns desses herois, é consenso
que Frank Castle (a identidade real do Justiceiro) seja um criminoso. Na verdade, a
tradução/adaptação do nome da personagem pode induzir alguns leitores quanto ao leit-motiv
deste anti-heroi. Na primeira versão (em inglês), esta personagem chama-se Punisher, que
deveria ser entendido como “Punidor”, aquele que leva não a justiça, mas punição aos
criminosos. O Justiceiro não atua como juiz, mas como verdugo. Pode-se concluir que ser
aceito entre herois demonstra o terrível paradoxo a que a situação chegou, na medida em que
ambos os lados passam a empregar assassinos perigosos, coisa que não fariam anteriormente.
Isso é expressamente identificado no seguinte diálogo, presente na cena 3 do capítulo cinco.
Falcão: – Nosso lado? Desde quando você participa desta equipe, Justiceiro?
Justiceiro: Desde que o outro lado começou a alistar notórios ladrões e assassinos
seriais.
157
Fóton: – Sou a única que está morrendo de rir com a ironia aqui?
Justiceiro: – Quem você pensa que andou correndo por aí usando máscara de esqui e
cobrindo seus rastros nas últimas semanas? A meu ver, vocês precisam de toda ajuda
que puderem arranjar.
Tocha Humana: Maravilha. Por que a gente não liga pro Hannibal Lecter
23
e
pergunta se ele tá disponível também? (MILLAR; MCNIVEN, 2007, #5, p. 24-25)
O número seis tem-se a ação um tanto mais comedida. Neste o enredo procura
colocar todas as personagens a postos para a grande batalha do número seguinte. A história
revela os espiões das duas equipes bem como as diferentes armadilhas preparadas para a
grande conclusão.
O último número desenvolve, em seu enredo, a derradeira batalha e também o
desfecho da obra. O ápice encontra-se na rendição do Capitão América. A obra apresenta um
caráter cíclico, pois começa com grande destruição (em Stamford) e termina com outra grande
destruição (em Nova York). O Capitão para quando, em seu surto de ódio, é impedido por
civis, os mesmo civis que jurou defender. A desolação que observa invalida os atos que está
cometendo, mas não invalida os motivos por detrás destes atos. E esta é a interpretação do ato
de arrancar a máscara e entregar-se em sua identidade civil. O Capitão ainda considera sua
postura correta, mas é preferível abdicar de seu desejo em defender os inocentes se isso causar
morte e destruição.
Do ponto de vista editorial, esse desfecho poderia ser encarado como um empate,
embora a posição do lado legalista apresente-se como vencedora. O Homem de Ferro ganha
extrema proeminência, tornando-se virtualmente o homem mais poderoso do planeta,
engenheiro de um novo mundo. No entanto, este novo mundo possui uma chaga, de certo
modo irreparável: a inimizade dos herois que continuam clandestinos e as manchas dos atos
questionáveis que o Homem de Ferro se viu obrigado a cometer para alcançar a vitória.
Dentro da análise literária, merecem lugar especial as considerações das
personagens. Conforme Moisés:
Na análise da prosa de ficção, ocupa lugar de relevo o setor representado pelas
personagens. [...] Tomando em conta apenas as informações mais pertinentes,
comecemos por lembrar a classificação das personagens. É sabido que podem ser
ordenadas em dois grupos, conforme suas características básicas: personagens
redondas e personagens planas. Estas seriam bidimensionais, dotadas de altura e
largura mas não de profundidade: um defeito ou uma qualidade. Quanto às
personagens redondas, ostentariam a dimensão que falta às outras, e, por isso,
possuiriam uma série complexa de qualidade e/ou defeitos. As personagens planas
23
Hannibal Lecter é o serial killer canibal de obras literárias e cinematográficas como “Silêncio dos Inocentes” e
“Dragão Vermelho”.
158
geram os tipos e caricaturas, enquanto as outras envolvem os caracteres (1981, p.
110).
Homem de Ferro e Capitão América são os protagonistas e polarizadores da
história. Ambas podem ser encaradas como personagens redondas dentro do contexto da
minissérie. O Homem de Ferro é membro fundador da maior equipe de herois deste universo,
os Vingadores. Seus poderes advém de sua grande capacidade como inventor, o que
possibilitou a Tony Stark, seu alter ego, construir a maravilha tecnológica que é sua
armadura. A personagem é retratada como um visionário, um futurista, alguém que consegue
projetar o possível cenário futuro e se precaver quanto a ele. Além disso, é reconhecidamente
um abstêmio, tem sua identidade conhecida do público e ostenta a pose de capitalista de
sucesso. Suas motivações são justas e sinceras, ainda que não tema utilizar-se de subterfúgios
(como armadilhas e espiões) ou atuações moralmente discutíveis, como clonar um amigo
Thor ou empregar supervilões. Isso não o impede de, vez ou outra, questionar sua posição
ou suas ações.
Figura 152 – Homem de Ferro, líder das forças pró-registro.
Fonte: Guerra Civil #1, Panini, 2007.
Da mesma forma, Steve Rogers, o Capitão América, detém o título de membro
honorário dos Vingadores, fazendo parte da equipe logo após a formação do grupo. Ademais,
foi quem por mais tempo e por mais vezes assumiu a liderança da equipe. Seu papel icônico é
de representar a nação que estampa com seu uniforme, não necessariamente o governo que a
rege, mas os ideais que a fundaram. Destes, o mais propagandeado é justamente a liberdade.
Por isso sua posição reacionária, temerosa de que o registro facilitaria a manipulação dos
herois registrados por políticos e burocratas corruptos. A primeira vista, uma personagem
dessa monta pode parecer ufanista e carregada de propaganda ideológica, mas é mister notar o
159
lugar que ocupa na minissérie. Com efeito, leitores menos habituados com a personalidade do
heroi apostariam que ele seria o representante ideal da lei de registro. Vale ressaltar também
que o Capitão é um heroi de respeito entre a comunidade super-humana, e a adesão de alguns
herois ao movimento rebelde se mais pelo carisma que seu líder exerce do que,
necessariamente, uma consciência política.
Exatamente nestes contrastes encontra-se um dos diferencias desta saga: retratar
as personagens que a compõe, suas opiniões e posições políticas, de acordo com a rica
cronologia que as antecede e compõe, mas também quebrando expectativas e paradigmas que
um público leitor menos esclarecido julgaria óbvias. Afinal, o heroi que veste a bandeira é
aquele que está contra o governo, ao passo que o empreendedor capitalista é quem assume
uma posição protecionista, algo realmente inusitado.
Figura 153 – Capitão América, líder da facção anti-registro.
Fonte: Guerra Civil #1, Panini, 2007.
Guerra Civil também chama a atenção por trabalhar com conceitos chaves mais
reais, mais politizados. Diferente de outras sagas e minisséries onde havia ameaças em escala
cósmica, onde o destino do mundo estava em jogo, bastando apenas derrotar o vilão, a trama
se constrói sobre ideias políticas.
Conforme afirma o editor de núcleo original, Tom Brevoort, “tanto o Capitão
quando o Homem de Ferro acreditam firmemente quês suas posições são corretas, e que o
outro não está vendo as coisas da perspectiva correta.” (BREEVORT, apud COTTON, 2007,
p. 72) Não existem vilões, não um grande vilão comum. Esse é o motivo do adjetivo
“civil”, uma vez que o racha se exatamente entre uma comunidade até então coesa. O
questionamento feito aos expectadores é qual o ponto de ruptura entre opiniões discordantes,
com o adendo que estas opiniões possuem a capacidade de erguer toneladas e voar. O tema de
160
guerra civil é caro aos americanos, mercado foco da obra, uma vez que a Guerra de Secessão,
também chamada de Guerra Civil Americana, é um dos acontecimentos basilares daquela
nação.
A Guerra Civil Americana foi o conflito entre as antigas colônias do norte,
industrializadas, e as antigas colônias do sul, em grande parte agrícolas e latifundiárias. O
progresso econômico dos nortistas exigia, entre outras coisas, o fim da política liberalista de
importações por parte dos sulistas, bem como o fim da escravidão. Em tese, o sentimento
abolicionista foi o cerne do conflito, mas mesmo este possui raízes comerciais, uma vez que
escravos, ao contrário de trabalhadores livres, não possuíam renda e, consequentemente,
deixavam de ser consumidores de produtos manufaturados. Mesmo assim, a crise que
culminou no conflito foi uma crise de opiniões políticas, e da capacidade econômica e bélica
de cada um dos lados defender seu ponto de vista.
Enquanto as causas da Guerra de Secessão são motivo de discussão e
controvérsia, os efeitos gerados no ideário da população não. Assim, não é uma ideia absurda
para o americano médio pegar em armas para defender suas ideias. Pode-se afirmar, portanto,
que a trama de Guerra Civil encontra eco na experiência cultural do povo norte-americano.
Também deve constar que a saga apresenta um desfecho inusitado, ainda que
crível e necessário. Crível porque, desenhadas as características dos protagonistas, seria a
atitude esperada o cessar-fogo quando este causa destruição a terceiros. Ora, o lado anti-
registro via-se a si mesmo ainda como herois. Tanto isso é verdade que estavam dispostos a
abandonar suas vidas (e identidades, em alguns casos) pregressas para poder continuar com
seus atos de heroísmo e vigilantismo, mesmo contra a lei.
O desfecho com a rendição do Capitão América também é considerado necessário
em face ao universo ficcional. Deve-se sempre lembrar que a saga é fechada em si mesma no
ponto de vista narrativo, mas seu desenrolar e conseqüências se estendem por todos os
números da editora. Assim, editorial e comercialmente é viável manter um pequeno grupo
vivendo em clandestinidade. É viável também perpetuar a dinâmica de perseguidos e
perseguidores, ainda que atenuada. Mas seria inviável transformar, pela força de um combate,
herois em vilões. Se o Capitão América tivesse vencido, seria esta uma vitória pírrica, pois a
situação já estava ao seu desfavor. A lei já existia e não seria a força das armas que a mudaria.
Em sua defesa, deve-se dizer que não houve nenhuma manifestação por parte dos políticos em
analisar a questão, procurar opiniões diversas, colocar as propostas em discussão e pleito. O
Próprio Homem de Ferro deixa ensejar que o que ele defende não é o registro em si, mas a
possibilidade de perpetuar o bem que os herois promovem. E se para isso é obrigatório o
161
registro, este é entendido como um mal necessário. O argumento do Capitão é o de que o
registro é um mal e, como todo o mal, deve ser combatido. Suas ações, entretanto, acabam por
aumentar esse mal. Essa revelação é que o leva à rendição.
De acordo com Massaud Moisés:
[...] no tocante à ação, que assinalar a intensidade e a densidade. Pela primeira,
entende-se o volume, a quantidade, a “frequência” da ação, ou melhor, dos
ingredientes que compõem a ação. Por densidade, entende-se a altura ou/e a
condensação de tais ingredientes. [...] De modo geral, uma ação intensa repele a
densidade, e vice-versa [...] (1981, p. 95).
Com efeito, devido a seu público alvo, os quadrinhos de super-herois geralmente
tendem por investir em ritmo frenético de ação, uma intensidade claramente estampada,
muitas vezes em prejuízo à densidade. Guerra Civil não foge a regra, com diversas cenas de
ação e luta que ocupam muitas páginas. A densidade do conflito, entretanto, está em expor um
drama que não pode ser pintado em definidas linhas maniqueístas. Não vilão a ser
derrotado, não cataclismo cósmico ou mundial a ser impedido. conflito de ideias, de
posições políticas, onde todos são herois e vilões ao mesmo tempo. O próprio desfecho acaba
por ser um desfecho amplo, aberto, sem ser possível apontar vencedores ou perdedores. A
rendição do Capitão não dilui seus temores e argumentos contra a lei. A aprovação desta,
longe de tornar o mundo um lugar mais seguro, gera o maior conflito entre herois da história,
colocando amigos na difícil posição de representantes da lei e perseguidores de antigos
aliados. Então, é possível afirmar que a ação frenética, intensa, mascara uma densidade nunca
antes observada nas grandes sagas dos quadrinhos americanos, uma marcada verossimilhança
com o mundo real, que distante das demarcatórias linhas de bem e mal, também é formando
por tons de cinza.
No que se refere ao tempo, o mesmo Moisés (1981, p. 102) salienta a importante
diferença entre tempo cronológico e tempo metafísico. O primeiro descreve a sucessão de
eventos numa linha, ao passo que o último se refere a mergulhos temporais, sem um preciso
encadeamento lógico, por reminiscências e inconscientes das personagens. Ainda que
habitante de um mundo onde a fantasia está mais próxima do que o nosso, com viagens no
tempo, poderes telepáticos e dimensões paralelas, a obra é marcada pelo tempo cronológico.
Não espaço para longas considerações na psique das personagens. Isso talvez se deva ao
ritmo vertiginoso imposto à trama, bem como a grande variedade de protagonistas e
coadjuvantes, restringindo o espaço de apresentação e aprofundamento dos mesmos. As
razões secretas, as escolhas e decisões são guiadas pelo histórico de cada um dos elementos
162
da trama, conhecidos do público fiel, mas vedado a quem com eles toma contato pela
primeira vez. A trama apresenta, então, um tempo linear, condensado em alguns poucos
meses de um ano que não é possível especificar. Isso se porque, nos quadrinhos, o tempo
precisa correr de modo diverso.
Ora, algumas destas personagens possuem décadas de história, que se
contabilizadas corretamente, resultariam em herois com mais quarenta ou sessenta anos,
maduros demais para um público juvenil. É artifício das editoras manterem seus herois
sempre jovens, para identificação com o público. Então os anos dificilmente são descritos ou
definidos, assumindo que o corrente nas publicações é presente e toda a cronologia se passou
alguns anos. Nisto se resume a teoria de perenidade e atualidade dos mitos modernos. De
acordo com Eco:
A personagem mitológica da estória em quadrinhos encontra-se, pois, nesta singular
situação: ela tem ser um arquétipo, a soma de determinadas aspirações coletivas, e,
portanto, deve, necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemática que a
torne facilmente reconhecível [...]; mas, como é comerciada no âmbito de uma
produção “romanesca” para um público que consome “romances”, deve submeter-se
àquele desenvolvimento característico, como vimos, da personagem do romance
(1976, p. 251).
O espaço geográfico também se apresenta com um instrumento importante de
análise. MOISÉS comenta (1981, p. 109) que “no romance linear [...] o cenário tende a
funcionar como pano de fundo, ou seja, estático, “fora” das personagens [...]”. Na obra,
embora exista uma grande mobilidade espacial, com a trama começando em Stamford (estado
de Connecticut), passando por Nova York, se deslocando até Westchester (distrito de Nova
York), a nação africana de Wakanda, as profundezas da Atlântida, Arizona, Washington e até
uma dimensão exterior, a Zona Negativa, o locus privilegiado na narração é Nova York. A
escolha dessa cidade desvela fundamentos comerciais e ficcionais, com os primeiros
influenciando os segundos. Ao contrário da concorrente DC, a Marvel, desde seus primórdios,
optou por ambientar grande parte de seus personagens no mundo real, escolhendo a cidade de
Nova York, onde se sediava a editora, como principal cenário de suas histórias. Posto isso,
conforme aumentava o casting de personagens, a Nova York ficcional tornou-se a cidade com
a maior população super-humana do planeta. Não por acaso, é o lugar perfeito para ambas as
facções beligerantes arregimentarem aliados. É também o palco da batalha final. O cenário
revela, porém, uma função a mais, a de conferir uma densidade maior às conseqüências dos
atos dos protagonistas. As batalhas são urbanas, envolvendo civis e destruição de
propriedades. Isso significa que o risco de mais acidentes, como o a tragédia do primeiro
163
número, estão a um passo de acontecer. Não sem motivo que a opinião pública é receosa da
comunidade super-humana.
Guerra Civil também é atual por ecoar um debate que tomou conta dos EUA após
os ataques de 11 de setembro de 2001. Após o atentado, o governo de George Bush investiu
numa política que claramente limitava as liberdades civis (a posição do Capitão América) em
favor da segurança pública (a posição do Homem de Ferro). Vale lembrar que a defesa da
liberdade é um dos argumentos que emolduram a constituição americana. Ainda assim,
comoções nacionais foram usadas, tanto na realidade quanto na ficção, para justificar ações
que, em outros tempos, seriam vistas como tirânicas ou ditatoriais.
Os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono chocam a população dos
EUA, que se percebe vulnerável a ataques pela primeira vez em 60 anos desde a
ofensiva japonesa contra Pearl Harbor. O sentimento patriótico é demonstrado em
atos públicos e confirmado nas pesquisas de opinião. A reação imediata dos norte-
americanos é de apoio incondicional à decisão do governo de revidar até que os
responsáveis sejam punidos. Em nome da segurança, a opinião pública aceita
restrições à liberdade civil, tão cara aos norte-americanos. A nova Lei
Antiterrorismo, enviada por Bush ao Congresso e aprovada em menos de dois
meses, facilita o "grampo" dos telefones e a violação das mensagens na internet,
além de permitir a prisão de estrangeiros por até uma semana sem acusação formal.
(HISTÓRIA DOS ESTADOS UNIDOS, 2008)
Face a isso, a polêmica suscitada nos quadrinhos perpetua o que, posteriormente à
implantação destas políticas, se observou na imprensa norte-americana e de outras nações. A
“guerra ao terror”, executada nas invasões ao Afeganistão e ao Iraque, baseada em provas
não-conclusivas, foi uma ação acarretada pelos sentimentos de ressentimento e vingança
impingidos à população, mas com claros objetivos de alavancar a indústria bélica. Ademais,
também serviu para fortalecer posições preconceituosas acerca dos inúmeros imigrantes que
diariamente afluem a este país. Em suma, a trama dos quadrinhos traz a tona mais
questionamentos ao problema real vivido à época por aquela nação.
Do ponto de vista da arte seqüencial, Guerra Civil é marcada por transições entre
quadros do tipo ação-para-ação, uma marca dos quadrinhos americanos de super-herois. O
segundo tipo com mais presença é a transição cena-a-cena, justamente por ser esta a
responsável pelos encadeamentos de cenários e situações diferentes. Este tipo de transição
obedece a ordenação de páginas, sendo as cenas em locação diferentes sempre transpostas
para as páginas subseqüentes.
164
Figura 154 – Transição de ação-pra-ação.
Fonte: Guerra Civil #2, Panini, 2007.
Figura 155 – Transição cena-pra-cena. O uso do recordatório ajuda a situar a transição.
Fonte: Guerra Civil #3, Panini, 2007.
O estilo de desenho é mais aproximado do realístico, em preferência a um estilo
mais cartunesco. Este último estilo geralmente se presta a histórias intimistas e psicológicas.
Guerra Civil tende para ação, intensidade em detrimento da profundidade (ao menos no plano
narrativo). Por isso o estilo realista combina melhor.
Há preponderância do balão tipo fala e, nas situações de luta, presença massiva de
balões tipo grito, com contornos mais espessos ou letras saltadas e espessas. Não há balões do
tipo pensamento. O mais próximo disso são a carta redigida por Susan Storm, a Mulher
Invisível, na edição 4, e a carta redigida por Reed Richards, o Sr. Fantástico, na edição 7.
Figura 156 – Carta para Reed Richards.
Fonte: Guerra Civil #4, Panini, 2007.
165
Figura 157 – Carta para Sue Richards.
Fonte: Guerra Civil #7, Panini, 2008.
Da mesma forma, não há a presença de um narrador, o que impossibilita a
existência de legendas. Existem, entretanto, recordatórios, em sua maioria informando a
localização geográfica. Existem, porém, duas exceções para esta afirmativa. Na ocasião do
espancamento da personagem Tocha Humana por civis (MILLAR; MICNIVEN, 2007, #1, p.
18), onde o recordatório diz “As coisas ficam feias:”; e o momento em que a célula rebelde
começa a agir (MILLAR; MCNIVEN, 2007, #2, p. 2), onde se “O Capitão América vai
para a clandestinidade:”. Ambos os casos são situacionais, e embora o primeiro deles emita
um juízo de valor, não confere um caráter de narrador à legenda.
Figura 158 – Recordatório.
Fonte: Guerra Civil #1, Panini, 2007.
presença de onomatopéias apenas na primeira edição, o que representa que os
efeitos sonoros ou foram introduzidos por outras pessoas que não os artistas ou a ideia dói
abandonada ao longo da minissérie. Com efeito, são muitas as situações que comportariam tal
artifício, e mesmo na edição onde eles aparecem, isso é feito de maneira esparsa, sem critério,
usando-os em algumas cenas e omitindo-os em outras. Isso parece como uma falha de
planejamento da equipe criadora.
166
Figura 159 – Onopatopéia.
Fonte: Guerra Civil #1, Panini, 2007.
As combinações de texto e desenhos são, em sua maioria, específicas da imagem.
Em segundo lugar, aparecem as combinações do tipo interdependente. Estas também são
marcas registradas do quadrinho norte-americano. Histórias de ação tendem a priorizar estas
combinações, visto que grande peso no impacto visual, especialmente as grandes cenas de
ação.
Figura 160 – Combinação específica de imagem.
Fonte: Guerra Civil #7, Panini, 2008.
Figura 161 – Combinação interdependente.
Fonte: Guerra Civil #7, Panini, 2008.
Há escassos usos de linhas cinéticas. As marcações de movimento, quando se dão,
são obtidas pelo uso de fundos tremidos sobre imagens fixas, uma característica mais oriental
167
que americana. Estes marcadores aparecem em profusão nas cenas de luta. Também não
existem marcadores de emoção: toda carga dramática fica por conta da arte, retratando
expressões faciais, e do texto.
Figura 162 – Uma das raras linhas cinéticas.
Fonte: Guerra Civil #4, Panini, 2007.
Figura 163 – Fundo tremido emulando movimento.
Fonte: Guerra Civil #07, Panini, 2008.
A diagramação opta por um esquema ortodoxo, sem requadros fugindo do
formato quadrado ou retangular. Ainda assim, a disposição dos requadros não obedece um
esquema fixo, variando em cinco, quatro, três ou seis por gina, se adequando às
necessidades da história. Uma característica da obra é que o fundo de todas as páginas é preto,
ao contrário do comum nas revistas periódicas, onde o fundo é branco. Assim, todas as
sarjetas são pretas. Tal tratamento pode remeter ao clima sombrio da obra, e faz grande
contraste com a colorização viva dos uniformes das personagens. Ainda, de toda a obra, seis
capítulos se iniciam com uma página de requadro inteiro, um recurso conhecido como splash
page.
168
Figura 164 – Splash page.
Fonte: Guerra Civil #5, Panini, 2007.
A única que destoa deste esquema é a primeira edição, que tem sua splash page
atrasada para a página 10 e 11, formando um painel de página dupla, onde também constam
os créditos da história e o título. Por outro lado, apenas as edições de #2, #3, #4 e #6 terminam
com o mesmo artifício, e não por acaso são as edições que mais dependem do cliffhanger, o
gancho narrativo para sua conclusão.
Existem muitas tomadas externas e internas, com grandes variações de planos.
Não parece proveitoso assinalar a preponderância dos planos ou ângulos de visão, uma vez
que estes se alteram em conformação com a narrativa. É possível afirmar que todos os planos
são contemplados, mas o ângulo de visão preferencial é o de visão médio. Relembrando, este
é o plano que imita a linha de visão de um expectador posicionado defronte ao fenômeno.
Figura 165 – Plano de visão médio.
Fonte: Guerra Civil #4, Panini, 2007.
Além do Capitão América e do Homem de Ferro, outros personagens se destacam,
como Sr. Fantástico, Falcão, Hércules, Demolidor, Homem-Aranha e Jaqueta Amarela. Ainda
assim, todos agem como coadjuvantes, ganhando momentos de destaque especialmente na
interação com os personagens principais.
169
Nesse contexto, merece ser destacada a personagem Miriam Sharpe. Esta é
retratada como “a mãe do pequeno Damien” (MILLAR; MCNIVEN, 2007, #1, p. 17, q. 3),
uma das crianças vítimas da tragédia. É ela a responsável pelo despertar de consciência do
Homem de Ferro, ao acusá-lo de ser tão culpado quando os Novos Guerreiros, causadores do
desastre:
Tony Stark: Minha senhora, eu entendo sua indignação, mas a negligência dos
Novos Guerreiros não tem nada a ver comigo.
Miriam Sharpe: Ah, é? E quem financia os Vingadores? Quem diz anos pros
jovens que eles podem viver fora da lei contanto que usem colantes? Policiais m
de treinar e portar distintivos, mas isso é chato demais para Tony Stark. Nada disso.
O sr. Bilionário aqui garante que basta ter poderes e fazer pose de machão pra
montar sua própria supergangue. (MILLAR, 2007, #1, p. 16-18)
Figura 166 – Miriam Sharpe.
Fonte: Guerra Civil #1, Panini, 2007.
A personagem Miriam Sharpe caracterizando-se por sua profundidade. É também
uma personagem redonda. Os aspectos de sua personalidade e psiquismo começam com a
retratação de sua revolta para com os herois, fruto da perda do filho, passando pelo ativismo
político ao organizar passeatas em favor do registro e amizade para com Tony Stark, apoiando
sua decisão. Se as teorias escapistas tiverem alguma base, é tendência do leitor sempre
identificar-se com os herois. Afinal, o vilão representa o que é execrável no comportamento.
Mas como se daria tal identificação quando os limites morais não estão definidos, quando
heroi confronta heroi e não é possível definir um lado correto? Miriam Sharpe cumpre a
função de identificação, ainda que ela seja claramente da postura legalista. A história corre de
maneira a colocar o leitor na posição de alguém tendo de conviver com a existência de super-
seres e a possibilidade deles afetarem drasticamente a vida de alguém. Mais, a possibilidade
de se ferir ou ver alguém amado ferido por conta dos super-seres. A personagem acaba por ser
também uma bússola moral da facção legalista, especialmente em momentos de abalo, como o
enterro do Golias, ao entregar um brinquedo do Homem de Ferro a Tony Stark:
170
Miriam Sharpe: – Golias sabia o que estava fazendo. Ele desobedeceu uma lei criada
para salvar vidas humanas. Se tivesse se registrado, ainda estaria vivo. Você não
pode se sentir culpado por isso, assim como um policial que atira num bandido que
apontou uma arma pra ele também não.
Tony Stark: – Sra. Sharpe...
Miriam Sharpe: Shh. Eu também queria lhe dar isto [um brinquedo do Homem de
Ferro]: o brinquedo favorito do meu filho Damien desde que tinha três anos de
idade... pra lembrar você porque está lutando. (MILLAR; MCNIVEN, 2007, #5,
p. 9, q. 3-6)
Ela ainda está presente no final da série, dialogando com Stark sobre os novos
rumos que o mundo está tomando. Levando seu papel de identificação ao pé da letra, é o leitor
que está em seu lugar, enquanto o novo grande comandante das coisas diz como será dali por
diante.
Figura 167 – O diálogo final.
Fonte: Guerra Civil #7, Panini, 2008.
O mercado dos quadrinhos é volátil e sofre de diversos mecanismos inerentes ao
sistema. Um deles é a necessidade de, como cultura de massa, ser mais lucrativa que artística,
ou seja, preferir os altos índices de venda às altas aspirações estéticas. Por conta disso, as
editoras se vêem as voltas, rotineiramente, com sagas que prometem alterar drasticamente
seus universos ficcionais. Muitas vezes, as reformas da saga deste ano são totalmente
desfeitas na grande história do verão seguinte, numa sucessão de argumentos e dispêndios que
nem sempre se transformam em bons roteiros ou boas execuções. Por isso, é imprescindível
entender o mercado de quadrinhos de super-herois neste contexto. É imprescindível entender
também a saga de Guerra Civil neste contexto. E é importante dizer que, apesar disso, é
possível criar um enredo que envolva, ou seja, uma história com repercussões e valores para
além no nicho comercial e artístico onde está inserida.
171
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A arte seqüencial é uma forma de expressão que, como se destacou no presente
estudo, se encontra registrada nas primeiras manifestações artísticas da humanidade.
Entretanto, seu reconhecimento como arte ainda é recente. Ademais, embora os tempos do
discurso politicamente correto impeçam teóricos e estudiosos de dizer que tal manifestação
não seja arte, existe um preconceito velado, relegando os quadrinhos a um posição inferior se
comparadas com outras mídias ou formas de expressão. A origem disso parece incerta. Afinal,
obras de qualidade discutível são encontradas em profusão, em todas as categorias artísticas,
desde música, pintura ou cinema.
Nesse sentido pesou a escolha por um material dito mais comercial. Por comercial
entende-se um objeto artístico atuando como uma engrenagem de um mecanismo muito
maior, a saber, a indústria do entretenimento. Destinada a leitores em massa, comercializada a
preços módicos, a obra pode apresentar características artísticas. Mais, dentro deste
parâmetro, ela mesmo assim evoca análise e reflexão.
Desvendar os meandros das histórias em quadrinhos, longe de quebrar os encantos
que se nutrem pela forma, aguça a percepção para novas maneiras de se exercer a criatividade.
Compete dizer que a arte é uma manifestação humana e, como os demais traços da cultura, é o
que separa a existência experimentada pela humanidade da simples existência dos demais
organismos vivos. A arte é vida. Desvendar processos artísticos é descobrir, pouco a pouco,
seu potencial criativo, seus sentimentos, que torna os seres humanos o que eles são: seres
humanos.
A análise de quadrinhos ainda seus primeiros passos. Existe muita bibliografia
sobre a história da banda desenhada, muito interesse no estudo das eras dos quadrinhos de
super-herois e há, especialmente em terras estrangeiras, reflexões dobre a forma de se fazer e
apresentar quadrinhos. Claro que, em comparação com obras e estudos de outras formas de
arte a quantidade ainda é pífia, mas está crescendo. Também é animadora a percepção de que
mais e mais vezes os quadrinhos tornam-se tema de trabalhos acadêmicos. Seja isso o reflexo
de uma geração mais aberta a todas as manifestações artísticas, seja a procura por temas
menos ortodoxos, a reflexão de muitos com certeza aumenta o conhecimento do tema. A
UNISUL, enquanto instituição de ensino aberta a todos os públicos e fomentadora do
conhecimento, jamais deveria se furtar de oferecer o debate e a discussão dos mais variados
temas.
172
Com este pensamento encerra-se este estudo. Não um ponto final sobre um tema,
mas uma janela, uma ponte para novas pesquisas, afirmações ou refutações do que aqui foi
exposto. Ainda muito por fazer, por produzir e aprimorar. Passo a passo, cena por cena,
cada quadrinho de uma vez.
173
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Bittencourt de Sá. - - Tubarão, 2009.
195 f. : il. color. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Universidade do Sul de
Santa Catarina, Tubarão, 2009
Inclui bibliografias
1. Análise do discurso. 2. Histórias em quadrinhos.
I.
Sá, Jussara Bittencourt de. II. Título.
CDD (21. ed.) 401.41
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul
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