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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A MÚSICA NA OBRA DE ERICO VERISSIMO:
POLIFONIA, HUMANISMO E CRÍTICA SOCIAL
TESE DE DOUTORADO
Gérson Luís Werlang
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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A SICA NA OBRA DE ERICO VERISSIMO: POLIFONIA,
HUMANISMO E CRÍTICA SOCIAL
por
Gérson Luís Werlang
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para obtenção do grau de
Doutor em Letras
Orientador: Profª Drª Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Tese de Doutorado
A MÚSICA NA OBRA DE ERICO VERISSIMO:
POLIFONIA, HUMANISMO E CRÍTICA SOCIAL
elaborada por
Gérson Luís Werlang
como requisito parcial para obtenção do grau de
Doutor em Letras
Comisão Examinadora:
Rosani Úrsula Ketzer Umbach, Dr.
(Presidente/Orientadora)
Elcio Loureiro Cornelsen, Dr.
Maria da Glória Bordini, Dr.
Pedro Brum Santos, Dr.
Vera Lúcia Lenz Vianna, Dr.
Santa Maria, 24 de abril de 2009.
AGRADECIMENTOS
Sou grato
- À minha mãe, Lyra Ana Daubermann Werlang (In memorian), pela profunda
crença em minhas escolhas e pelo apoio incondicional (embora às vezes um tanto
turbulento) às mesmas. Também devo a ela uma edição de Música ao longe, com
significativa dedicatória, que despertou a minha atenção numa solitária noite de
domingo em Passo Fundo e desencadeou o início deste estudo.
- A meu pai, Arno Werlang, pelas mesmas razões acima, adicionadas de
inumeráveis contribuições à construção não apenas deste trabalho, mas de tudo que
o envolve, incluindo o primeiro livro que li de Erico Verissimo, Solo de Clarineta,
que ganhei de presente quando tinha onze anos de idade.
- À Cândice, pelo afeto incondicional, e pelo muito que passamos, estando
juntos ou separados, durante a execução deste estudo.
- À Ercília de Lima, a Ia, minha mãe índia, que sem jamais pedir nada em
troca, me deu amor, carinho e apoio, e sem saber condicionou minha visão de
mundo, que leva em conta a dor das minorias e dos desvalidos.
- À minha orientadora, Profª. Rosani Umbach, pela coragem na aceitação em
orientar este estudo, e pela liberdade que me deu nos meus passos, fator
fundamental na realização do mesmo.
- Aos meus muitos amigos, pelo apoio em momentos bons e ruins. Não vou
listá-los aqui, pois poderia omitir algum nome. Gostaria, no entanto, de agradecer a
Marcos Kröning Corrêa pelas conversas que tivemos e que acabaram trazendo
contribuições diretas para esta tese.
- Ao meu irmão Sávio, pela ajuda sempre bem disposta com essa máquina
infernal que é o computador.
- À Cri, pelas sugestões feitas quando este estudo ainda se encontrava no
início. Valeu, maninha!
- Aos meus cachorros, Côco, Floc (In memorian), Teco, Lilica e Bento,
capazes de resolver qualquer problema com um rabo abanando e inabalável bom
humor.
RESUMO
Tese de Doutorado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
A MÚSICA NA OBRA DE ERICO VERISSIMO: POLIFONIA,
HUMANISMO E CRÍTICA SOCIAL
AUTOR: GÉRSON LUÍS WERLANG
ORIENTADORA: ROSANI ÚRSULA KETZER UMBACH
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 24 de abril de 2009.
Esta tese se propõe a analisar o papel desempenhado pela música na obra
do escritor Erico Versissimo. A diversidade de usos que ela adquiriu ao longo da
carreira do escritor, e o espaço que ocupa dentro de sua obra são objetos deste
estudo. A música como veículo para a crítica social, assim como para a
caracterização psicológica de personagens, de cidades e situações. O desejo de
expandir as conexões entre a música e a literatura levou o escritor à busca de
interfaces entre as duas áreas, e à utilização da técnica do contraponto, que ele
desenvolveu numa abordagem pessoal e à qual deu novos usos e possibilidades.
Também a que o escritor possuía em dias melhores para a humanidade
proporciona outro tipo de análise, do uso da música como veículo para a expressão
do humanismo em sua obra.
Palavras-chave: Erico Verissimo; literatura; música; história; polifonia musical; crítica
social; humanismo.
ABSTRACT
Tese de Doutorado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
THE MUSIC IN THE WORKS OF ERICO VERISSIMO: POLYPHONY,
HUMANISM AND SOCIAL CRITICISM
AUTHOR: GÉRSON LUÍS WERLANG
ADVISOR: ROSANI ÚRSÚLA KETZER UMBACH
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 24 de abril de 2009.
This study intends to analyze the many different conections between music
and literature that exist in the works of the brazilian writer Erico Verissimo. Music
acquired a diversity of uses in his work, as a vehicle for social criticism, as long as
the psychological portrait of characters. The desire to expand the conections
between music and literature led the writer to search for interfaces between the
areas, and the use of the counterpoint technique, in a personal approach, has
developed new uses for it. Also the faith in better days for humanity led him to use
music as a vehicle to humanism in his literary works.
Key words: Erico Verissimo; Music; Literature; History; Social criticism; Musical
polyphony; Counterpoint; Humanism.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Fragmento da Sinfonia nº3, Eroica, de Ludwig van Beethoven
(VERISSIMO, 1940, p. 9 – S1)..................................................................................56
Figura 2 - Fragmento da Sinfonia nº3, Eroica, de Ludwig van Beethoven
(VERISSIMO, 1940, p. 157 – S1)..............................................................................60
Figura 3 - Fragmento da Sinfonia nº5, de Ludwig van Beethoven (VERISSIMO, 1940,
p. 169 – S1)...............................................................................................................61
Figura 4 - Fragmento da Sinfonia nº6, Pastoral, de Ludwig van Beethoven
(VERISSIMO, 1940, p.313 - S1)................................................................................64
Figura 5 Fragmento da Sonata Appassionata, de Ludwig van Beethoven (IA, p.
282). ........................................................................................................................230
Figura 6 - Anônimo, séc. XVIII: alaudista preso. .....................................................309
Figura 7 - Edvard Münch, O grito. Óleo e pastel sobre cartão, 1893. .....................313
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Ordem de entrada (e) das vozes na primeira parte (Sábado) ...............239
Quadro 2 - Quadro geral da polifonia na primeira parte (Sábado) ..........................240
Quadro 3 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na segunda
parte (Domingo) ......................................................................................................240
Quadro 4 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na terceira
parte (Segunda-feira) ..............................................................................................242
Quadro 5 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na quarta
parte (Terça-feira) ...................................................................................................243
Quadro 6 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na quinta
parte (Quarta-feira)..................................................................................................244
Quadro 7 - Aspecto harmônico (H) na relação entre as vozes................................246
Quadro 8 - Ordem de entrada (e) das vozes na primeira parte (Sexta-feira da
Paixão) ....................................................................................................................251
Quadro 9 - Ordem de entrada (e) das vozes na primeira parte (Sexta-feira da
Paixão), a partir do suicídio de Joana Karewska (fato antecedente).......................252
Quadro 10 - Sexta-feira da Paixão - Quadro geral da polifonia a partir da entrada (e)
de cada voz.............................................................................................................253
Quadro 11 - Ordem de entrada das vozes em Sábado de Aleluia ..........................255
Quadro 12 - bado de Aleluia - Quadro geral da polifonia a partir da entrada (e) de
cada voz. Entradas 1 a 24.......................................................................................256
Quadro 13 - Sábado de aleluia - Quadro geral da polifonia a partir da entrada (e) de
cada voz. Entradas 25 a 42.....................................................................................256
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Caminhos cruzados (CC)
Clarissa (CL)
Incidente em Antares (IA)
Música ao longe (ML)
Noite (N)
O arquipélago (A)
O arquipélago vol. 1 (A1)
O arquipélago vol. 2 (A2)
O arquipélago vol. 3 (A3)
O continente (C)
O continente vol. 1 (C1)
O continente vol. 2 (C2)
O princípio esperança vol. 1 (PE)
O princípio esperança vol. 2 (PE)
O prisioneiro (OP)
O resto é silêncio (RS)
O retrato (R)
O retrato vol. 1 (R1)
O retrato vol. 2 (R2)
O senhor embaixador (OSE)
Olhai os lírios do campo (OLC)
Saga (S)
Saga 1. ed. (S1)
Saga 2. ed. (S2)
Um lugar ao sol (ULS)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................14
1 A MÚSICA NA OBRA INICIAL DE ERICO VERISSIMO.......................................24
1.1 Fantoches ..........................................................................................................24
1.2 Clarissa ..............................................................................................................27
1.3 Caminhos cruzados ..........................................................................................34
1.3.1 Os sons de Porto Alegre nos anos trinta..........................................................35
1.3.2 Caracterizações individuais..............................................................................36
1.4 Música ao longe ................................................................................................40
1.4.1 A música nas pequenas cidades nos anos trinta .............................................42
1.5 Um lugar ao sol .................................................................................................44
1.5.1 Universos coletivos e particulares ....................................................................46
1.5.2 Ópera ...............................................................................................................51
1.6 Olhai os lírios do campo...................................................................................52
1.7 Saga....................................................................................................................55
1.7.1 O círculo de giz ................................................................................................56
1.7.2 Sórdido interlúdio .............................................................................................60
1.7.3 O destino bate à porta......................................................................................61
1.7.4 Pastoral ............................................................................................................64
1.7.5 Outros aspectos musicais ................................................................................67
1.8 O resto é silêncio ..............................................................................................72
1.8.1 A paisagem sonora da cidade..........................................................................74
1.8.2 Paisagens musicais individuais ........................................................................75
1.8.3 Tônio Santiago .................................................................................................80
1.8.4 O Sete ..............................................................................................................82
1.8.5 Bernardo & Marina: outros aspectos musicais .................................................84
2 A MÚSICA EM O TEMPO E O VENTO .................................................................87
2.1 O continente ......................................................................................................88
2.1.1 A fonte..............................................................................................................88
2.1.2 Ana Terra .........................................................................................................94
2.1.3 Um certo Capitão Rodrigo..............................................................................100
2.1.4 A Teiniaguá ....................................................................................................102
10
2.1.5 A guerra..........................................................................................................110
2.1.6 Ismália Caré ...................................................................................................114
2.1.7 Interlúdios.......................................................................................................123
2.1.8 O sobrado.......................................................................................................125
2.2 O retrato ...........................................................................................................126
2.2.1 Chantecler......................................................................................................128
2.2.2 A sombra do anjo ...........................................................................................146
2.2.3 Rosa-dos-ventos ............................................................................................158
2.2.4 Uma vela pro Negrinho...................................................................................160
2.3 O arquipélago ..................................................................................................162
2.3.1 O deputado.....................................................................................................163
2.3.2 Lenço encarnado............................................................................................166
2.3.3 Um certo Major Toríbio...................................................................................169
2.3.4 O cavalo e o obelisco .....................................................................................177
2.3.5 Noite de ano bom ...........................................................................................182
2.3.6 Do diário de Sílvia ..........................................................................................184
2.3.7 Caderno de pauta simples..............................................................................187
2.3.8 Reunião de família .........................................................................................188
2.3.9 Encruzilhada...................................................................................................189
3 A MÚSICA NOS ÚLTIMOS ROMANCES ............................................................191
3.1 Noite .................................................................................................................191
3.1.1 A paisagem musical de Noite .........................................................................193
3.2 O senhor embaixador......................................................................................196
3.2.1 A paisagem musical da República do Sacramento ........................................197
3.2.2 Leonardo Gris e Pablo Ortega........................................................................200
3.3 O prisioneiro ....................................................................................................204
3.3.1 A música em O prisioneiro .............................................................................206
3.3.2 Jazz................................................................................................................207
3.3.3 Vozes da contracultura...................................................................................209
3.4 Incidente em Antares ......................................................................................211
3.4.1 A paisagem musical na primeira parte: Antares .............................................211
3.4.2 Paisagens musicais individuais ......................................................................216
3.4.3 Outras paisagens musicais individuais...........................................................222
3.4.4 A paisagem musical na segunda parte: O incidente ......................................223
11
4 AS ESTRUTURAS POLIFÔNICAS NA OBRA DE ERICO VERISSIMO.............233
4.1 A estrutura polifônica em Caminhos cruzados ............................................233
4.1.1 Os núcleos .....................................................................................................236
4.1.2 Os aspectos melódico e harmônico da estrutura polifônica ...........................238
4.1.3 Domingo.........................................................................................................240
4.1.4 Segunda-feira.................................................................................................241
4.1.5 Terça-feira......................................................................................................243
4.1.6 Quarta-feira ....................................................................................................244
4.1.7 As relações harmônicas .................................................................................245
4.2 A estrutura polifônica em O resto é silêncio ................................................247
4.2.1 Os núcleos em O resto é silêncio...................................................................249
4.2.2 A estrutura polifônica......................................................................................251
4.2.3 Desdobramentos dos núcleos........................................................................253
4.2.4 A polifonia na segunda parte do romance: Sábado de Aleluia.......................254
4.2.5 As relações harmônicas em O resto é silêncio...............................................257
5 OS BAILES NA OBRA DE ERICO VERISSIMO .................................................259
5.1 O baile do Metrópole.......................................................................................260
5.2 O baile d’O retrato ...........................................................................................264
5.2.1 Antes do réveillon...........................................................................................264
5.2.2 Códigos ..........................................................................................................267
5.2.3 Dona Emerenciana.........................................................................................269
5.2.4 A nata e o leite ...............................................................................................272
5.2.5 Os tenentes rivais...........................................................................................279
5.2.6 À meia-noite ...................................................................................................280
5.3 Os bailes de réveillon em Noite de ano bom de O arquipélago ..................281
5.3.1 Contexto político e social................................................................................282
5.3.2 O baile no Sobrado ........................................................................................283
5.3.3 Os irmãos.......................................................................................................286
5.3.4 Fim de festa....................................................................................................290
6 A ESPERANÇA COMO GUIA .............................................................................293
6.1 Um farol na tempestade..................................................................................293
6.2 Os sonhos diurnos..........................................................................................295
6.2.1 Outros espaços do sonho...............................................................................297
6.3 Imagens musicais da esperança....................................................................300
12
6. 3.1 Um piano na guerra.......................................................................................301
6.3.2 O gramofone abandonado..............................................................................304
6.4 Os sons que o vento leva: a esperança no outro.........................................306
6.5 Um violão na revolução ..................................................................................308
6.6 Os cânticos da beleza.....................................................................................310
6.7 A esperança no exótico ..................................................................................311
6.8 Os gritos do silêncio.......................................................................................312
6.9 Os sons da mudança ......................................................................................315
6.10 A fé basilar.....................................................................................................316
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................318
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................318
Seria uma tolice poética imaginar que as pessoas se possam
comunicar cotidianamente por meio da música, mas creio, isso sim, que
quando a palavra e as frases por passadas, ocas ou inexpressivas, o
conseguem descrever estados de alma demasiadamente sutis essa é a
hora de recorrer à música. Certas composições de Bela Bartok retratam à
maravilha o caos espiritual do mundo moderno. Nenhum convalescente
conseguiu exprimir com palavras o que Beethoven diz com música no
quarteto famoso em que um convalescente dá graças a Deus por estar vivo.
A música, como uma espécie de esperanto melódico, poderia ajudar
os homens e as nações a se entenderem melhor e viverem em paz. As
platéias dos Estados Unidos aplaudem com delírio as orquestras sinfônicas
russas que tocam em seus teatros. O povo soviético sente cada vez mais
forte o fascínio da música norte-americana, principalmente a do jazz. É
nessas horas de confraternização através das artes em geral e da música
em particular que vem à tona de cada homem, seja qual for a sua
nacionalidade, o que ele tem de melhor dentro de si, distinguindo-o dos
animais irracionais.
É por isso que eu não desespero da possibilidade de uma paz
definitiva sobre a Terra. No dia em que os homens despertarem para a
realidade de que podem cantar em coro, sem a necessidade de pronunciar
sequer uma palavra, seja em que língua for eles compreenderão que
pertencem à mesma espécie, são irmãos, em Deus, na Arte, no Amor, seja
no que for! e concluirão que a única resposta à destruição total é a greve
geral contra todos os conflitos armados. Nesse dia, talvez remoto, mas não
impossível, a guerra se tornaobsoleta definitivamente, uma feia, trágica e
absurda peça de museu.
(Erico Verissimo, A música e eu, 1969)
INTRODUÇÃO
O escritor Erico Verissimo nunca escondeu seu apreço pela música. Diversas
passagens de sua obra atestam a influência que ela exercia em sua vida, levando-o
mesmo a afirmar que, não fosse escritor, gostaria de ter sido músico.
Desde sua estréia como escritor com o livro de contos Fantoches, passando
pelos primeiros romances, pelo O tempo e o vento até o seu derradeiro livro, Solo de
Clarineta, em toda a sua obra se sente a presença da música. Às vezes essa
presença está marcada de forma explícita, identificável nos títulos de diversas obras
(no romance Música ao longe, no livro infantil O Urso com Música na Barriga, no
conto Sonata). Outras vezes aparece de forma velada, inserida no enredo ou na
estrutura (no conto As Mãos de Meu Filho, a vida de um pianista é relembrada pela
sua mãe enquanto ele toca um recital; em Caminhos cruzados, o escritor usa o
mesmo recurso técnico utilizado por Aldous Huxley em seu romance Contraponto,
proveniente de uma técnica de composição musical).
Este estudo se propõe a analisar o papel exercido pela música na obra de
Erico Verissimo. Também pretende mapear a importância e extensão da presença
da mesma na obra do escritor levando em conta diferentes aspectos, que envolvem
desde as relações entre música e literatura e suas ligações com aspectos sociais,
até aspectos estruturais referentes à composição de uma obra literária utilizando
recursos provenientes de técnicas musicais.
A pesquisa sobre a obra de Erico Verissimo, embora venha sendo mais
freqüente que no passado, ainda deixa muitas lacunas e questões em aberto. A
antiga resistência da crítica brasileira para com o escritor refletiu e ainda reflete nos
estudos sobre sua obra. Segundo Wilson Martins:
Se, em geral, na história do Modernismo, o espetáculo mais comum é o de
escritores superestimados (mesmo pelo que teriam representado na
eclosão ou na evolução do Movimento), Erico Verissimo seria o exemplo
único do escritor subestimado, à espera dos grandes ensaios críticos, das
análises exaustivas e do reconhecimento” do que efetivamente representa
(1965, p. 295).
15
Dentro da gama de estudos hoje existentes sobre a obra de Erico Verissimo,
pouco sobre a presença da música, apesar da constância da mesma em seus
escritos e em sua vida. No que concerne a um estudo de maior abrangência, que
envolva diversos aspectos da música em sua obra, há sem dúvida uma lacuna a ser
preenchida.
Ao analisar as diversas relações musical-literárias presentes na obra do
escritor, nos propomos a comparar diferentes áreas do conhecimento: música e
literatura, sendo a intersecção entre as duas áreas um elemento fundamental na
realização desta tese.
As relações entre música e literatura são tão antigas quanto a existência de
ambas. Candé relata que na pré-história pode-se notar a associação de
linguagem falada e música:
Ao cabo de uma lenta adaptação encefálica e muscular, o homem torna-se
apto a falar (domínio da linguagem abstrata) e a cantar. Ele terá a genial
idéia de associar a expressão vocal à expressão “instrumental”, cujo
parentesco a princípio não adivinhara. O Homo sapiens adquire uma
consciência musical (c. 40.000 anos atrás) (2001, p. 46).
Estima-se que essas relações possam mesmo ser anteriores ao surgimento
do homo sapiens. Instrumentos musicais encontrados por pesquisadores datam de
cerca de 53 mil anos. Calcula-se que a atividade musical tenha cerca de 200 mil
anos, enquanto o surgimento do homo sapiens é datado em torno de 100 mil anos
atrás. O surgimento simultâneo da palavra e da expressão musical é considerado
por muitos pesquisadores como um elo primordial na cadeia evolutiva da
humanidade
1
.
Analisando aquele momento histórico, talvez não se possa falar estritamente
em literatura, mas certamente numa associação música-ritmo-fala que levaria às
primeiras formas de poesia. Nas grandes civilizações avançadas da Antigüidade a
relação entre música e poesia é uma constante, ligada às mais variadas festividades
e celebrações, fossem as duas conectadas a cultos religiosos ou cânticos para a
guerra, para o amor ou para a paz.
1
Sobre os diversos aspectos envolvendo a questão ver também Jourdain (1998, p. 11) e Benzon
(2001, p. 222).
16
Na Grécia clássica encontram-se as primeiras formas poético-musicais
ligadas à tradição ocidental. Assim, surgem formas como o hino, o peã, o ditirambo e
o treno. Grande parte das formas poéticas gregas está intimamente associada à
música. Aristóteles, na Poética, comenta: “Poesias há, contudo, que usam de todos
os meios sobreditos; isto é, de ritmo, canto e metro, como a poesia dos ditirambos e
dos nomos, a tragédia e a comédia”
2
.
Toda a tradição poética e musical grega chega até nós através de Roma. A
posterior cristianização do Império Romano e sua derrocada traz até os dias atuais
parte das tradições musicais gregas associadas ao cantochão, música
essencialmente relacionada ao culto cristão, que contém uma estreita ligação entre
letra e música. Hinos antes dedicados a Apolo agora são cantados em honra do
Deus cristão. Candé diz:
Segundo escritos do século IV, o canto dos hinos e dos salmos é
executado, então, por dois coros que se respondem em alternância (...) Os
chantres executam versículos como solistas e, por ocasião das grandes
festas, ornamentam certas palavras (por exemplo, aleluia) com longos
vocalises chamados jubili, nos quais santo Agostinho reconhece “o canto de
uma alma cheia de júbilo” (2001, p. 187).
Essa ligação primordial entre música e literatura nos leva a um terreno onde
escritores e músicos em diversos momentos históricos confraternizam bebendo das
mesmas fontes. Na Idade Média, a aristocrática expressão do amor cortês gera a
sua expressão literária e musical: a poesia dos trovadores. A história da literatura de
muitos países inicia com as formas poéticas, que são também formas musicais,
criadas pelos trovadores. Segundo Moisés (2003, p. 20), “duas espécies principais
apresentava a poesia trovadoresca: a lírico-amorosa e a satírica. A primeira divide-
se em cantiga de amor e cantiga de amigo; a segunda em cantiga de escárnio e
cantiga de maldizer”.
Fica claro que a palavra cantiga neste contexto se refere a uma forma que
deveria ser, e o era, cantada pelo próprio trovador ou por um intérprete capaz.
Portanto estamos falando aqui não de uma forma puramente literária, mas sim de
2
ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.
17
uma forma híbrida que reúne em si canto e poesia, criada por um mesmo autor, que
as mais das vezes fazia também o papel de intérprete de suas obras
3
.
Na Renascença, a poesia de Petrarca e Shakespeare está presente nos
madrigais de Luca Marenzio e em ayres de Thomas Morley e de vários de seus
contemporâneos. No início do Barroco, a intenção de um grupo de aristocratas
florentinos de reviver as tragédias gregas leva à criação da ópera e ao nascimento
do próprio estilo barroco em música.
No Romantismo são conhecidas as relações entre escritores e músicos do
período e as conseqüências advindas dessas ligações. O escritor E.T. A Hoffmann,
que acrescenta o A em seu nome em honra a Mozart (Amadeus), cria, entre vários
personagens de grande influência, o maestro Kreisler, figura emblemática para a
música romântica, inspiradora de obras de Schumann e Berlioz.
É inegável a influência exercida por Goethe e seu Fausto na imaginação
romântica, influência essa que aparece explícita na sinfonia Fausto, de Liszt, na
ópera Mefistófele, de Arrigo Boito, na ópera Fausto, de Gounod e em grande
quantidade de outras obras menores, além de surgir de forma velada em muitas
composições. Também fundamental é a influência de Schiller em Beethoven, e de
Shakespeare em diversas gerações de músicos românticos. Rossini compõe música
para O barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, assim como Mozart o fizera anos
antes para As bodas de Fígaro, do mesmo autor. Sobre as relações entre a música
e o Fausto, Wisnik afirma:
Uma longa tradição imbrica o Fausto e a sica. Giuseppe Tartini teria
escrito uma sonata para violino ditada por Mefistófeles; essa mesma lenda
acompanha Paganini, e ressoa na Rapsódia sobre um tema de Paganini, de
Rachmaninoff. A propósito, SPENGLER diz que sem dúvida é o violino o
mais nobre dentre os instrumentos inventados e aperfeiçoados pela alma
faustiana, para que esta pudesse nos revelar os seus últimos mistérios’
(2004, p. 239).
3
Quanto a esta questão, ver também Grove (1994, p. 966), Candé (2001, p. 255), Grout (1993, p. 95)
e Reese (1989, p. 258). Esses livros de história da música, assim como muitos outros, trazem
capítulos dedicados à música e à poesia dos trovadores, com detalhes formais tanto da poesia como
das partituras deixadas por eles. Curiosamente, Segismundo Spina (1972), em seu trabalho sobre a
poesia trovadoresca, passa ao largo da questão musical, sem sequer citar a evidente conexão dos
trovadores com a música.
18
A interinfluência entre música e literatura se em vias múltiplas. Assim, da
mesma forma, escritores e poetas do período se valem da música para escrever
suas obras. Músicos, músicas e instrumentos musicais aparecem como
personagens, como tema de discussão, como trilha sonora, como pano de fundo em
romances, contos e poemas. Stendhal escreve uma Vida de Rossini, e suas
preocupações musicais são o constantes quanto as literárias. Bernard Shaw
escreve exaustivamente sobre Wagner.
No romance romântico brasileiro, a presença do piano na sala burguesa do
século XIX serve de pano de fundo a encontros, namoros, à crítica social, à
ambientação cultural do período. É comum sua presença em romances de José de
Alencar, de Joaquim Manuel de Macedo e de Manuel Antônio de Almeida, enquanto
músicos e compositores são personagens freqüentes na obra de Machado de Assis.
Essa interação entre música e literatura em todas as épocas talvez possa ser
explicada pela inexistência de fronteiras na imaginação e pela comunhão de
objetivos que unem a arte. Freud lança luz sobre o assunto:
A arte ocasiona uma reconciliação entre... [o princípio de prazer e o
princípio de realidade]. Um artista é originalmente um homem que se afasta
da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação
instintual que ela exige, e que concede a seus desejos completa liberdade
na vida de fantasia (1911, p. 284).
Segundo Cruz:
Na história da humanidade, os artistas se constituíram nos guardiões do
sonho. De maneira intuitiva, utilizaram e resgataram essa função da mente,
geradora de significados, metáforas e imagens. Quando, no final do culo
dezenove, a psicanálise surgiu na cultura através do trabalho e dos escritos
de Sigmund Freud, ela apoiou-se em dados clínicos e nas obras e
depoimentos dos artistas (2002, p. 80).
Essa comunhão de objetivos que leva todos os artistas, embora seus meios
sejam diferentes, em busca de um mesmo fim, pode levar à interação consciente,
mas também inconsciente das diferentes formas de expressão, e à utilização
19
intertextual e interdisciplinar destas formas (com a ressalva que a nobreza de
objetivos muitas vezes possa ser obliterada por diversos motivos).
Na obra de Erico Verissimo, chama a atenção o número de trabalhos com
títulos musicais. No decorrer de sua obra, o escritor recorre à música para alcançar
variadas finalidades, que vão da metáfora psicológica à ilustração histórica,
passando por diferentes níveis de profundidade.
Este estudo sobre a presença da música na obra de Erico Verissimo está
centrado na análise de sua obra, que se constitui no foco analítico e corpus
primordial dessa pesquisa. A metodologia utilizada é o da pesquisa bibliográfica
dentro da área de literatura comparada. No caso, a comparação não ocorre entre
duas literaturas, mas entre literatura e música.
Sempre que se comparam duas áreas do conhecimento de alguma forma
entramos em terreno único, condicionado pelas peculiaridades de cada uma dessas
áreas. Portanto o método também é peculiar, e pode ser construído ao longo da
pesquisa. Como destaca Carvalhal:
E o sentido da expressão literatura comparada” complica-se ainda mais ao
constatarmos que não existe apenas uma orientação a ser seguida, que,
por vezes, é adotado um certo ecletismo metodológico. Em estudos mais
recentes, vemos que o método (ou métodos) não antecede a análise, como
algo previamente fabricado, mas dela decorre (1992, p. 6).
O espectro desta análise passa, necessariamente, pela leitura das diversas
possibilidades que a sica apresenta na obra do escritor. Essas possibilidades
encontram seus fundamentos em diferentes referenciais teóricos.
Oliveira (2002) lança uma luz no caminho analítico a seguir segundo as
possibilidades do comparatismo. A autora destaca que
(...) neste vasto campo de investigação interdisciplinar, favorecido pelo
rompimento de barreiras característico do pós-modernismo, interesso-me
sobretudo por um objeto de atenção crescente: o estudo das relações entre
a literatura e a sica, que Steven Paul Scher denomina melopoética (...) a
melopoética, ao sublinhar as diferenças e semelhanças (entre as duas
áreas), contribui para a investigação da natureza específica de cada arte e
do fenômeno estético em geral, além de representar uma resposta para as
incertezas e rupturas da arte contemporânea (OLIVEIRA, 2002, p. 11).
20
A mesma autora propõe um esquema formal dos principais campos de estudo
envolvendo música e literatura, campos esses que acreditamos fundamentais e
contemplados em grande parte neste trabalho:
Adaptando o esquema de Scher, e complementando-o com sugestões de
outros pesquisadores, proponho três divisões básicas para a melopoética:
1. Estudos que contemplam a música e a literatura, isto é, criações mistas
que incluem simultaneamente o elemento verbal e o musical. Destacam-se
aí a ópera, especialmente o drama musical de Wagner, o lied, a canção, em
geral, bem como as investigações sobre a sinestesia, a melopéia e
aspectos acústico-musicais da linguagem verbal.
2. Estudos localizando a literatura na música, ou estudos literário-musicais,
que recorrem a conceitos ou procedimentos de crítica literária para
instrumentalizar a análise musical. Como objetos de pesquisa, destacam-se
aqui a música programática, que aspira reproduzir o efeito de uma narrativa
ou descrição literária; a presença do narrador onisciente na ópera de
Wagner; o papel do solista como protagonista; o uso de citações e diálogos
em composições sinfônicas ou na música de câmera e a imitação de estilos
literários pela música.
3. Finalmente, os estudos de maior interesse para a literatura, que
denomino músico-literários, também indicados pela expressão música na
literatura. Entre os vários objetos de análise encontram-se: a música das
palavras; recriações literárias de efeitos musicais (“música verbal”, na
terminologia de Scher); a estruturação de textos literários sugestiva de
técnicas de composição musical, como na utilização, deliberada ou intuitiva,
da forma sonata, do contraponto e de tema e variação; o papel de alusões e
metáforas musicais na obra literária, incluída a figura do músico
(OLIVEIRA, 2002, p. 12-13).
Neste trabalho utilizaremos vários dos conceitos contidos nessas divisões. No
capítulo quatro analisaremos particularmente o aspecto proposto no item três, a
utilização do contraponto como base da construção literária, notadamente nos
romances Caminhos cruzados e O resto é silêncio. O uso que Erico faz dessa
técnica é consciente e deliberada, e pede uma análise sob o ponto de vista musical
da estrutura desses romances. Também o papel de alusões e metáforas, assim
como a presença de músicos na obra do escritor são aspectos abordados em
diferentes momentos.
Utilizamos neste estudo alguns conceitos tomados de empréstimo de outras
áreas para analisarmos a dicotomia música-literatura. Introduzimos aqui um conceito
que cremos inovador, o de paisagem sonora dentro de uma obra literária. O termo
paisagem sonora foi definido por Schafer (2001), relacionado aos sons existentes no
mundo, incluindo tanto o ruído como a música, assim como os sons da natureza,
21
o ambiente sonoro de grandes cidades, assim como de vilas e outras pequenas
comunidades. Aplicamos os conceitos deste autor na análise da paisagem musical
das obras de Erico. Portanto, transpomos para o campo literário idéias concebidas
no campo da acústica, que contêm observações preciosas sobre os sons
circundantes de vários ambientes como os do meio rural e do urbano, e aplicamos
esses conceitos como ferramenta analítica literária.
Entre as várias possibilidades de leitura da música numa obra literária, os
formalistas russos propõem o conceito de artifício. Segundo Eagleton (2003, p. 4),
“os formalistas começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou
menos arbitrária de ‘artifícios’ (...) ‘funções’ dentro de um sistema (...). Os ‘artifícios’
incluíam som, imagem, ritmo, sintaxe (...)”.
Dessa forma, a música aparece em uma obra como mais um dos artifícios
possíveis de serem utilizados para estruturá-la, recurso esse que parece evidente
em Erico Verissimo. Por outro lado, a mera utilização estrutural seria considerada
insuficiente por um escritor humanista, preocupado com os rumos da sociedade de
seu tempo. O que os formalistas consideram um artifício pode, para Erico, se revestir
de vários objetivos, entre eles o de provocar uma reflexão sobre a sociedade de seu
tempo. Nesse sentido, não podemos nos furtar de uma leitura do caráter social da
música em sua obra.
Como retrato social, Erico Verissimo está no próprio cerne da questão.
Segundo Candido:
Sob esse ponto de vista o decênio mais importante é o (...) de 1930. Na
maré montante da Revolução de Outubro, que encerra a fermentação
antioligárquica referida, a literatura e o pensamento se emparelham numa
grande arrancada. (...) Romance fortemente marcado de neonaturalismo e
de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos
característicos do país: (...) vida difícil das cidades empida transformação
(Erico Verissimo). Nesse tipo de romance... é marcante a preponderância
do problema sobre o personagem (2000, p.123).
As relações envolvendo música e sociedade na obra do escritor apresentam
aspectos muitos diversificados. A forma como a música se apresenta em pequenas
sociedades, como Jacarecanga ou Santa Fé, difere da forma como ela aparece em
grandes centros urbanos, como em Porto Alegre. Também a contraposição entre
22
ambientes musicais onde ela é compartilhada entre muitas pessoas e universos
musicais particulares, pois a importância maior reside na posição que a música
ocupa na vida de um personagem específico, condicionando seu universo de valores
e sua relação com o mundo e as pessoas.
Portanto, a obra de Erico Verissimo se alinha à questão social desde o
princípio, mas ressonâncias mais profundas aparecem em seus romances da
maturidade, principalmente O Prisioneiro, O Senhor Embaixador e Incidente em
Antares. Tendo em vista a presença da música, é marcante o exemplo de Incidente
em Antares, sua relação com um dos personagens da trama: o pianista Menandro
Olinda. Uma série de problemas vêm à tona através desse músico frustrado pela
educação repressiva de uma mãe dominadora, assim como pela pressão da própria
sociedade. O escritor põe na boca de seu personagem muitas idéias que lhe são
caras, pintando o retrato de uma cidade como poderiam ser muitas do Brasil,
empobrecida espiritual e culturalmente. Nas palavras de Menandro:
- Doutor, isto é uma cidade sem alma, sem música. Ninguém gosta da boa
música em Antares. Ponha isso no seu estudo.
- Para Napoleão Bonaparte diz o Pe. Pedro-Paulo a música não
passava de um ruído como outro qualquer.
- Estão vendo? Isso prova a minha velha teoria. Quem não gosta de
música não pode ter um bom coração. Napoleão não gostava e era um
paranóico, um assassino
4
.
Nesse sentido, além da crítica social, outro aspecto pode ser levado em
consideração, que é a presença da música como fator humanizante, como elemento
revelador da psique humana, dos abismos da mente e da capacidade de sonhar,
força criativa que Erico Verissimo procurou aliar à expressão literária, à sua maneira,
para alcançar seus objetivos.
Este estudo está dividido em seis capítulos. Nos primeiros três abordamos a
música na obra do escritor de forma cronológica, desde o seu primeiro livro,
Fantoches, até Incidente em Antares, seu último romance.
4
VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares, p. 169.
23
No quarto capítulo, analisamos a estrutura polifônica presente em obras do
escritor sob o ponto de vista musical, ou seja, a utilização do contraponto e suas
implicações a partir da análise da estrutura das obras onde essa técnica é utilizada.
Dedicamos o quinto capítulo aos bailes encontrados na obra de Erico
Verissimo, notadamente os de Caminhos cruzados, O retrato e O arquipélago.
Nesse capítulo, centramos o foco nas relações entre a crítica social e a música, um
dos aspectos fundamentais da obra do escritor.
Finalmente, no sexto e último capítulo, aprofundamos as questões
relacionadas às posições humanistas de Erico, tendo em vista a utilização de
elementos musicais. A música, como um sinal indelével que pode dar alento e guiar
os homens para dias melhores, e que se constitui num eixo humanista que cruza
toda a trajetória do escritor, é analisada nesse capítulo à sombra do Princípio
esperança do filósofo alemão Ernst Bloch.
1 A MÚSICA NA OBRA INICIAL DE ERICO VERISSIMO
1.1 Fantoches
A estréia de Erico Verissimo na literatura se deu com um livro modesto, o
volume de contos intitulado Fantoches, publicado em 1932 pela Livraria do Globo.
Nesse livro, que o autor consideraria mais tarde como sendo um mero episódio de
sua carreira, o jovem escritor realiza suas primeiras incursões na literatura. Nos
contos, muitas vezes escritos em forma de diálogo, também modesta é a presença
da música. Em tudo a sensação de um autor iniciante, ainda um tanto inseguro
em relação aos caminhos a seguir. O próprio Erico criticaria seu livro de forma bem
humorada quando da publicação da segunda edição em 1972. No prefácio dessa
edição o escritor escreveu:
Tiveram os meus editores a simpática idéia de comemorar o quadragésimo
aniversário da publicação de meu primeiro livro, Fantoches, produzindo dele
uma edição fac-similada. Ora, o livro é de pouca ou nenhuma importância
literária, mas não deixará de ter um certo interesse histórico para quem quer
que (há gente para tudo neste mundo!) venha um dia estudar em conjunto a
obra do abaixo assinado (VERISSIMO, 1997, p. IX).
Contudo, há em Fantoches contos onde o jovem escritor procurava novos
caminhos, tentando se afastar da linguagem muitas vezes forçadamente referencial
ao Modernismo de Mario e Oswald de Andrade, e onde surgem os primeiros indícios
de aproximação da realidade circundante através de narrativas onde a crítica social
está presente. Essa tendência aparece principalmente nos contos “Chico” e
“Malazarte”. Segundo Flávio Loureiro Chaves:
25
Os contos reunidos em Fantoches obra da juventude, mais tarde
considerada de “pouca ou nenhuma importância literária” – de certa maneira
iluminam uma resposta parcial. A temática é vaga e difusa, evita situar
geográfica e cronologicamente a ação, busca a todo o custo a
universalização da narrativa tornando-a pretensiosa, o que fica evidente
na escolha dos assuntos abordados: Os três magos, Aquarela chinesa, A
dama da noite sem fim, Um dia a sombra desceu, O cavalheiro de negra
memória, Tragédia numa caixa de brinquedos. É verdade que dois dos
contos reunidos podem indiciar, numa visão retrospectiva, uma
inquietação social bastante intensa à qual o escritor não dá plena
expressão, evitando trazê-la ao primeiro plano – Chico e Malazarte (1981, p.
20).
E é justamente em “Malazarte” que a música se manifesta pela primeira vez
de maneira significativa na obra do escritor. No conto é abordado o tema, que
retorna depois em outras obras, da decadência de uma família de estancieiros que
vai perdendo posses e poder econômico para imigrantes que se estabelecem no
país. Também aparece pela primeira vez na obra do escritor a cidade ficcional de
Jacarecanga, onde mais tarde Clarissa e Vasco passam pelos mesmos problemas
familiares que Malazarte. Como o próprio autor aponta nas notas que acompanham
a segunda edição de Fantoches, “Malazarte” foi uma tentativa de abordar o tema da
decadência das antigas famílias proprietárias de terras do interior do Rio Grande do
Sul, tema esse que seria retomado mais tarde em Música ao longe (1935).
Tanto com relação à linguagem empregada quanto à presença da música, o
conto apresenta semelhanças com a produção futura do escritor. Não apenas a
temática é um embrião de Música ao longe, mas também várias descrições se
assemelham a passagens presentes nesse romance, principalmente relacionadas à
música, como a citação dos ritmos ou estilos musicais que são tocados em um baile
que acontece na cidade. Os bailes são um assunto recorrente na obra do escritor, e
em “Malazarte” o primeiro baile da obra de Erico Verissimo; e nota-se que
nesse conto a tendência, que se ampliará no futuro, de utilizar a música relacionada
à crítica social.
No conto, o personagem Malazarte, filho de uma família tradicional da cidade
que perdeu suas posses através dos anos e que agora passa por dificuldades, vaga
a esmo pelas ruas de Jacarecanga. Enquanto passeia pelas ruas da cidade,
Malazarte reflete a respeito da decadência de sua família, e percebe que não
apenas sua situação financeira se tornou difícil, mas também que a ruína financeira
condicionou a derrocada de sua vida sentimental. Malazarte é apaixonado por Clara,
26
que decide se casar com o filho de um imigrante, fato que ele descobre nessa tarde
em que passeia por Jacarecanga. Enquanto a tarde cai, ao ouvir crianças cantando
e brincando de roda, Malazarte é tomado de uma “ternura mole, morna, doente”.
Mais tarde decide perambular diante da casa da amada, de onde ouve o baile que
firma o noivado de Clara com Nino Lupi. O baile é descrito sucintamente, o que não
impede que contenha a descrição do tipo de música que está sendo executada,
característica que encontraremos em livros posteriores do autor.
Não suportando a situação em que se encontra, Malazarte busca refúgio na
zona do meretrício localizada na periferia da cidade. Entra em um clube e também
a descrição da música é detalhista e contrasta com a da música tocada no baile.
Não orquestra, apenas um conjunto de flauta, cavaquinho, gaita e violão. Não
são tocados gêneros como o fox-trot ou o charleston do baile de noivado de Clara:
A orquestra ataca um “choro”. A flauta tremula, batuta, nas variações. A
gaita se estica, se rasga, chora. O cavaquinho marca, miúdo, o compasso
repinicado. O violão, chorão, acompanha, dandonando, grave (VERISSIMO,
1997, p. 112).
A minuciosa descrição marca um fato social da época: a decadência do choro
e a substituição dos ritmos característicos desse gênero musical por ritmos
estrangeiros de origem norte-americana, oriundos do jazz. A substituição se na
alta sociedade, que prefere os ritmos e mesmo a instrumentação característica do
jazz em detrimento dos grupos de choro como o descrito acima. Nas camadas mais
populares, no entanto, permanece o gosto pela música dos chorões, que já se
mistura a outros gêneros mais recentes, como o samba. Essas características estão
implícitas nas descrições presentes nesse conto, apontando temáticas que voltarão
a ser abordadas no futuro.
27
1.2 Clarissa
Se em Fantoches o escritor iniciante apenas ensaia aspectos relacionados à
música que iriam se tornar importantes no futuro, em Clarissa (CL)
5
esses aspectos
constituem parte significativa do romance. No prefácio que Erico escreveu para a
primeira edição de suas Obras Completas, em 1961, o escritor nos um
testemunho revelador a respeito da gênese de Clarissa:
Sob os jacarandás floridos da velha Praça da Matriz de Porto Alegre,
caminhava uma rapariguita metida no seu uniforme de normalista. Teria
quando muito treze anos, seu andar era uma dança, seu rosto uma fruta
madura e seus olhos, que imaginei escuros, deviam estar sorvendo com
avidez a graça luminosa e também adolescente daquela man de
primavera (...) Desejei saber compor música para traduzir em melodia
aquele momento poético; ou então pintar, para prender numa tela as
imagens daquele minuto milagroso (CL, p. XV).
Esse desejo de Erico de “compor música” se transmutaria literariamente e se
concretizaria em seu primeiro romance. Efetivamente, Clarissa é repleto de música.
citações musicais de toda espécie: pequenos trechos de canções populares,
pregões de vendedores, citações de obras e compositores de música erudita. E um
personagem central na narrativa, Amaro, parece ter sobre Clarissa o mesmo ponto
de vista que o escritor tivera ao avistar a adolescente na Praça da Matriz naquela
manhã de primavera; e Amaro é pianista e compositor.
Assim como Erico na manhã de primavera em que a adolescente
passando na Praça da Matriz, Amaro vê a adolescente Clarissa crescer a sua frente,
desabrochar para a vida, num espetáculo que toca o precocemente envelhecido
compositor. Outra semelhança: Erico diz, no mesmo prefácio, que se sentia
inexplicavelmente velho aos vinte e sete anos. Talvez por isso a Amaro mais dez
anos (o pianista se acerca dos quarenta anos). E é a partir de Amaro que o romance
inicia:
5
Doravante utilizarei abreviações para as obras de Erico nas citações existentes no corpo da tese.
28
Só agora Amaro acredita que a primavera chegou: de sua janela vê Clarissa
a brincar sob os pessegueiros floridos. As glicínias roxas espiam por cima
do muro que separa o tio da pensão do pátio da casa vizinha. (...)
Lindo! exclama Amaro interiormente. E se tentasse exprimir em sica o
momento milagroso? (CL, p. 1)
Nesse romance de Erico temos pela primeira vez a oportunidade de introduzir
o conceito de paisagem musical, derivado do conceito de paisagem sonora do
musicólogo, compositor e pesquisador das ciências da comunicação canadense R.
Murray Schafer. Segundo Schafer (2001) a paisagem sonora é o conjunto de sons
presentes no dia-a-dia dos seres humanos desde tempos imemoriais. Esses sons
terminam por caracterizar e mesmo condicionar a existência das sociedades. Os
conceitos do canadense, expressos em seu livro A afinação do mundo, expõem o
que ele chama de “mais negligenciado aspecto de nosso ambiente: a paisagem
sonora” (SCHAFER, 2001, p. 3). Dentro desse conjunto de sons estão presentes
também os sons musicais, ou seja, a música de determinadas sociedades. Muito
embora a separação entre som musical e ruído tenha sofrido uma permanente
renovação nos seus conceitos no século XX (o ruído é cada vez mais parte
integrante dos sons ditos “musicais”), trabalharemos com a perspectiva mais
próxima dos sons musicais tradicionais, deixando o ruído (e a obra de Erico é rica
nesse aspecto) para um outro momento que não este trabalho. No entanto, cumpre
salientar, o próprio Schafer trabalha com o conceito amplo de que todo o ruído é
incorporado à paisagem musical, formando assim a música. Segundo suas palavras
“no transcurso deste livro, tratei do mundo como uma composição musical
macrocósmica. Sei que este conceito é insólito, mas vou levá-lo inexoravelmente
adiante” (SCHAFER, 2001, p. 19). Esse “conceito insólito” se aplica perfeitamente a
Erico Verissimo, no sentido de que também ele trabalha, dentro da construção
literária, com um mundo onde a paisagem sonora é de suma importância, e esses
sons não são apenas os sons musicais tradicionais, mas também o ruído das ruas,
do trânsito, os cantos dos pássaros, a festividade transmitida pelos ruídos caseiros,
e muitos outros recursos provenientes de um âmbito estritamente sonoro.
A paisagem musical de Clarissa é, embora não apareça nominalmente no
romance, o ambiente da cidade de Porto Alegre no início dos anos trinta. Dentro
desse mundo sonoro da capital do estado se destaca o mundo da pensão de Dona
Eufrasina. A casa de Tia Zina é um lugar repleto de música, uma música de cores
29
variadas: canções populares, valsas e os ruídos cotidianos convivem com o piano de
Amaro, com suas composições eruditas “difíceis de entender”, segundo a
perspectiva de Clarissa. Esse mundo sonoro da pensão não escapa a Amaro, que
sonha em compor música inspirado nos ruídos da casa:
Um dia hei de escrever a rapsódia da pensão de D. Eufrasina: uma sica
colorida e viva em que aparecerão os gritos do papagaio, as cantigas do
Nestor e de D. Ondina, as risadas do major, as anedotas do Barata, a voz
dolorosa do menino doente a adolescência luminosa de Clarissa (CL, p.
5).
Como o mundo é visto a partir de Clarissa, essa visão é condicionada pela
perspectiva interna da pensão de D. Zina. É a partir da casa da tia que Clarissa
descobre o mundo, repleto de cores, de cheiros e de sons. O mundo sonoro da
pensão se abre, portanto, para a cidade e em direção à cidade; se abre para o
mundo musical da Porto Alegre da época, refletindo também o seu contexto político-
social, resultante da Revolução de 30 e que alguns anos depois levaria ao Estado
Novo.
A política nacionalista do Presidente Getúlio Vargas instituiu, através de um
programa do qual o compositor Heitor Villa-Lobos participou ativamente, a
obrigatoriedade do canto orfeônico nas escolas como parte de um plano de
musicalização no Brasil. Os efeitos desse plano aparecem no romance, refletidos
através do canto obrigatório do Hino Nacional no colégio antes do início das aulas.
Outro aspecto relacionado com esse período histórico é a ascensão do
samba, estilo musical que aparece em diversos momentos do romance. Na era
Vargas, a afirmação do nacionalismo no Brasil, através de um instrumento de
propaganda agressivo e eficaz: a criação de símbolos para unificar o país. Com
tantas diferenças regionais e tantas peculiaridades em seus estratos sociais, o Brasil
carecia de elementos unificadores. Foi neste momento que o futebol e a música
popular ganharam apoio oficial e foram divulgados sem medição de esforços em
todo o território nacional. Dentro da diversidade musical do país, o samba foi o
gênero escolhido que ganhou o status de música tipicamente brasileira, que
conseguiria representar o Brasil de norte a sul. Ora, o samba é música nascida na
Bahia e trazida para o Rio de Janeiro, onde na estufa da periferia carioca ganharia
30
força para se difundir por outros estados. Na esteira da divulgação por todo o país,
Porto Alegre não ficou de fora, e em diversos momentos de Clarissa citações de
trechos de sambas, e mesmo as músicas de Amaro são preteridas por um editor
porque ele não compõe sambas (CL, p. 29). Nestor, morador da pensão de D. Zina,
incorpora muitos dos trejeitos de um típico malandro carioca. Pintado como um
sujeito alegre e folgazão, Nestor vive a assobiar e cantar seus sambas enquanto se
mete em aventuras amorosas ou sexuais. Nestor pode ser visto, transmutado para
uma outra época, como uma primeira tentativa do escritor de retratar o próprio pai,
que ganharia tantos desdobramentos em sua ficção posteriormente. Essa
associação que se faz entre o samba e a malandragem parece ser um traço comum
ao escritor nesse período, pois em “Malazarte” essa idéia transparece, quando,
na parte final do conto, o personagem procura um local para afogar suas mágoas,
onde o samba aparece como o elemento musical mais forte, acentuando a
sensualidade do ambiente.
O contraponto imediato ao mundo de Clarissa é o mundo de Amaro, repleto
de elementos musicais, sendo ele mesmo compositor e pianista. Se através de
Clarissa temos a visão adolescente do mundo de então, Amaro nos uma
perspectiva do mundo adulto, permeado por uma reflexão onde a arte, e
particularmente a música, são elementos fundamentais. Bordini havia notado a
conexão entre esses elementos criativos no ambiente urbano:
Nos romances do chamado ciclo de Porto Alegre, que deveriam mais
propriamente ser designados por “ciclo urbano”, uma vez que incluem
Música ao longe, cujo espaço é uma cidade interiorana, os contos de O
ataque, nem sempre localizados na capital do Rio Grande do Sul, e Noite,
cujo cenário citadino nunca é nomeado, a tematização do processo criativo
e seus resultados tanto ocorre através de personagens que escrevem,
compõem música ou pintam, quanto pela presença do ambiente citadino
como desencadeador da necessidade da criação (1995, p. 198).
Muitas das dificuldades sociais de então são apresentadas através de Amaro,
cuja presença no romance revela, entre outras facetas, uma crítica à sociedade de
consumo (incipiente, se comparada aos dias de hoje). Amaro não consegue publicar
as partituras de suas músicas, tematizando a dificuldade em vender música de
qualidade numa época que se volta cada vez mais à facilidade, ao consumo do que
31
é rapidamente apreensível, em detrimento de uma arte que possa provocar uma
reflexão mais profunda a respeito da vida e da sociedade contemporâneas. Nesse
sentido, Theodor Adorno vê, nesse mesmo período histórico, a decadência dos
valores estéticos e o que ele chamou de regressão da audição, um processo de
banalização do papel da música na sociedade. Essa crítica à banalização musical na
sociedade é recorrente na obra de Erico Veríssimo.
Tanto o mundo de Clarissa como o de Amaro encerram pontos em comum:
apesar da diferença de idade existente entre eles, ambos vêm de uma vivência
prévia (infância, adolescência) em uma cidade do interior. A experiência de Amaro já
ganha os contornos algo difusos da saudade, de um tempo que se torna remoto e
fica para trás. Para Clarissa todos os laços estão muito vivos, e a saudade de sua
casa em Jacarecanga se mistura ao interesse ávido de novidades em sua vida em
Porto Alegre. Essa avidez se manifesta em todas as áreas, inclusive o mundo
sonoro, que adquire contornos bem definidos no decorrer do romance na sua
relação com Amaro. Na paisagem musical individual de Clarissa se misturam várias
sonoridades, que traduzem suas vivências em dois mundos: Jacarecanga e Porto
Alegre. Assim, ao freqüentar uma missa com Tia Zina, Clarissa pesa a experiência
de dois mundos, confrontando diferentes paisagens musicais que compõem a sua
paisagem sonora individual:
Os sons do órgão enchem a igreja duma sica arrastada, longa, chorosa.
Clarissa se lembra dum negro velho que tocava cordeona na estância.
Chamava-se Robustiano. Contava histórias do tempo da escravatura. A
música da cordeona era assim como a do órgão, triste, funda, trêmula,
cheia de soluços (CL, 1995, p. 93).
Mais tarde, ao passar em frente a um bar e ouvir a música que assoma do
local, novas comparações lhe vêm à mente:
Passam pela frente de um bar. no fundo, uma orquestra toca um tango
argentino muito lânguido. O bandonion soluça. Pela cabeça de Clarissa
passam duas imagens: o organista da igreja (que ela imagina um velho de
barbas brancas) e o negro Robustiano, tocador de cordeona (CL, 1995, p.
97).
32
Portanto, a paisagem musical individual de Clarissa está imersa na paisagem
musical da cidade que ela habita, das igrejas e seus sinos, dos sons solenes do
órgão tocado durante as missas. Um mundo sonoro que comporta a música tocada
nos bares, onde o tango de origem argentina suplanta o tango tipicamente brasileiro
ainda em voga no Rio de Janeiro.
Para Amaro, a presença de Clarissa reaviva todas as lembranças, e atua
tanto como lenitivo, quanto como ponto de partida para uma reflexão a respeito de
sua vida, de seus erros e acertos. Ao ler seus poetas, Amaro constata que muitas
vezes deixou de viver, colocando toda sua juventude na leitura ou na música. Essa
constatação dolorosa lhe vem através da presença de Clarissa: “Clarissa é música e
poesia” (CL, p. 86). Capturar a essência daquela menina que cresce e descobre a
vida à sua frente passa a ser uma necessidade de Amaro, quase uma obsessão.
Neste processo, o segundo aspecto em comum que une ambos é a música. Para
Clarissa, aquele homem taciturno, sério, começa a ser vislumbrado a partir da
compreensão de sua arte. A princípio, Amaro é apenas alguém que compõe
músicas difíceis que ninguém compreende. Com o passar do tempo, a experiência
a Clarissa o entendimento do humanismo daquela música. Assim, quando as
crianças brincam de roda durante uma tarde, Amaro se inspira e compõe baseado
no tema da cantiga “Viuvinha bota luto” que as crianças cantavam:
Amaro se volta quase automaticamente: na sala de visitas cheia de sombra,
o velho piano negro é uma sombra ainda mais negra. Amaro aproxima-se
dele. Seus dedos magros esfrolam o teclado que reluz tibiamente. Uma
música sutilíssima flutua no ar. É o motivo do jogo infantil: Viuvinha bota
luto... Amaro senta-se ao piano. Os dedos dançam sobre as teclas (...)
Amaro se transfigura. O velho piano vibra, em notas agudas, dissonantes
algumas. São as crianças que gritam. Outra vez o motivo da viuvinha (CL,
p. 114).
Não apenas Amaro é descrito em pleno ato de criação, como o próprio
processo criativo é esmiuçado. A visão das crianças brincando, Clarissa no meio
delas, mais o enlevo provocado pela cantiga de roda provocam em Amaro a
saudade irremediável do que passou e o levam a buscar a expressão daquele
momento em forma de música. É possível deduzir mesmo o estilo de composição
que Amaro está tentando. Algo vagamente impressionista, onde a dissonância não é
33
excluída da construção da obra: Amaro é um compositor de música moderna. Essa
opção estética de Amaro aparece várias vezes comentada de forma indireta no
romance, através da observação de um ou outro personagem, notadamente
Clarissa, que não compreende imediatamente a música de Amaro, considerada por
ela como “estranha”, ou “esquisita”. Essa barreira se rompe a partir do momento em
que Clarissa começa a compreender o que está por trás daqueles sons estranhos.
Quando todos se reúnem para a hora da janta, Amaro fica tocando na sala. E
Clarissa consegue vislumbrar o tema da cantiga da brincadeira da tarde:
Mas onde estará Amaro? Ouve-se agora o som fraco dum piano (...) Agora
a música do piano está mais nítida. Não há dúvida: é Amaro que está
tocando. Clarissa presta atenção. O murmúrio das conversas a impede de
ouvir com nitidez. Mas se podem distinguir bem as notas. É a “viuvinha bota
luto”. Clarissa sorri (CL, p. 117).
A rica interação que se vai criando entre Clarissa e Amaro é a própria
essência do romance, e está perfeitamente representada no capítulo vinte e quatro,
quando ambos se encontram enquanto Amaro está tocando piano. Clarissa quer
agradecer o presente que Amaro lhe deu:
Amaro está sentado ao piano. Seus dedos brincam sobre o teclado, tocam
de leve uma melodia qualquer (...) Se ela lhe pedisse para tocar uma
música? Se lhe pedisse para inventar uma sica? (Amaro) continua a
tocar em surdina. Está num outro mundo.
-Gosta de música?
-Oh! Tenho loucura por música (CL, p. 148).
Estabelecido um laço através do gosto comum, Clarissa pede a Amaro que
componha algo, ali mesmo, de improviso. Amaro decide fazer uma música para o
peixinho que havia dado de presente para Clarissa. O resultado é uma peça de
música descritiva que anuncia o paradoxo de Amaro naquele momento, a
impossibilidade de transcender suas limitações: a idade, o fracasso como
compositor, a impossibilidade de voltar o tempo, de amar Clarissa:
34
- O nome da peça é: Pirolito querendo apanhar um raio de sol. Amaro
começa a tocar.(...) Por um segundo Clarissa esquece a música e pensa: as
mãos dele são bem da cor do teclado. De repente um acorde mais forte.
Amaro diz: - Um raio de sol atravessa o aquário ... Continua a tocar. Vai
explicando. Pirolito desperta. Que mistério é este? A água está incendiada.
Vem da janela uma stia de sol que passa por uma fresta estreita: parece
um dardo que trespassa o aquário. Pirolito recua. (Um acorde forte.)
Fascinado, o peixinho um salto para apanhar o raio de sol. (Os dedos de
Amaro saltitam, ágeis batendo nas teclas.) (...) Amaro está esquecido de
tudo, tonto e transfigurado também como o peixe que quer apanhar o raio
de sol.(...) Clarissa sente um misto de delícia e medo. De delícia porque
tudo isto é um encanto, um sonho. De medo porque Amaro tem no rosto
uma expressão assustadora. (...) Mas Pirolito cansa, modera a corrida,
pára... a enormidade do seu sonho. Impossível apanhar o raio de sol!
(CL, p. 150-151).
A impossibilidade da transcendência sentida por Amaro encontra na música
seu meio de expressão e reflexão, iniciando de maneira auspiciosa as relações entre
música e literatura na obra de Erico Veríssimo. Se Fantoches prenunciava essas
ligações, Clarissa as confirma, preparando o terreno para os romances que lhe
sucederiam.
1.3 Caminhos cruzados
Caminhos cruzados (CC) foi o segundo romance escrito por Erico Verissimo,
tendo vindo a público em 1935. Se Clarissa foi a concretização de algumas
intenções musicais do jovem escritor, Caminhos cruzados se constitui num
importante salto qualitativo em sua carreira. Enquanto Clarissa apresenta o mundo a
partir de Amaro ou Clarissa, condicionado pela visão adolescente de sua heroína,
Caminhos cruzados carrega nas tintas, expondo tanto a riqueza quanto as mazelas
sociais da capital do estado. Assim, a cidade e sua música, seus sons e ruídos,
aparece em toda a sua plenitude, ampliando os horizontes musicais ocorridos em
Clarissa.
A utilização da técnica do contraponto para a estruturação do romance
aprofunda as conexões de Erico entre música e literatura, estabelecendo um recurso
que seria utilizado frequentemente em sua obra. Mas Caminhos cruzados apresenta,
além da técnica do contraponto, vários outros aspectos musicais significativos. A
35
paisagem musical do romance ainda é a da cidade de Porto Alegre, que é citada
nominalmente pela primeira vez na obra do escritor. A paisagem musical de Clarissa
aparece ampliada, explorando novos aspectos sonoros da cidade, que é vista
(ouvida) de um novo ângulo. Esse novo ângulo é, no entanto, multifacetado, devido
à existência de diferentes núcleos de personagens, que pertencem a diversas
classes sociais e possuem, conseqüentemente, vivências culturais diversificadas.
Esse aspecto condiciona inteiramente a paisagem musical do romance, produzindo
uma rica visão do espectro sonoro da capital do estado no início dos anos 30.
1.3.1 Os sons de Porto Alegre nos anos trinta
A paisagem musical do período sem dúvida se impõe, com a sua música
característica, seus bailes, suas canções e também os ruídos da cidade, que
apresenta (e estamos apenas no início dos anos trinta do século XX) um aspecto
ameaçador com o seu rápido crescimento e suas mazelas sociais.
Se em Clarissa tudo é condicionado pela visão de sua heroína, pela inocência
da adolescente, pela emoção da descoberta, em Caminhos cruzados é o mundo
adulto que se impõe. Em Clarissa, a vida acontece dentro do conforto doméstico da
pensão de Tia Zina, e é a partir dali que aos poucos se descortina o mundo exterior.
Em Caminhos cruzados a visão exterior predomina. Enquanto na pensão de Tia
Zina, uma possível cidade do interior aparece transportada com seus ruídos quase
rurais para dentro de Porto Alegre, em Caminhos cruzados o que se apresenta é
“uma confusão de cores e formas móveis, um entrebalançamento de fios de aço e
de sons” (CC, p. 16), ruídos característicos de uma cidade que cresce rapidamente,
se tornando mais barulhenta, e, no caso de Porto Alegre, também mais suja, pobre e
desigual.
Em Clarissa vislumbres dos sons musicais da Porto Alegre da época,
quando a menina sai pelas ruas da cidade com sua tia, indo à missa ou a caminho
da escola. Já em Caminhos cruzados o que era vislumbre se torna explícito: o
mundo entrevisto pela adolescente é exposto no mundo adulto existente no
romance.
36
1.3.2 Caracterizações individuais
A paisagem musical da cidade é permeada pela paisagem individual de seus
personagens. Erico não se furta de fazer associações, dando características
musicais aos indivíduos que transitam pelo romance. Prof. Clarimundo,
completamente desligado de qualquer questão musical na vida diária, parece
apenas ligado à “música das esferas” (CC, p. 3). Salustiano Rosa, personagem que
encarna o bon vivant, que está sempre em busca do prazer e de uma posição social
de destaque na sociedade, encarna a história da cigarra e da formiga. Salu segue os
conselhos do pai: “Os homens são formigas! repetia o velho. Formigas que
levam às costas fardos cem vezes maiores que elas. Devemos ser mas é cigarras,
meu filho! (...) Salu começa a assobiar um samba” (CC, p. 18-19).
Essa associação entre a história infantil contada pelo pai, e o “assobiar um
samba” remete a um aspecto que aparecera antes (o personagem Nestor, de
Clarissa, possui características semelhantes) na obra de Erico: a associação entre o
boa-vida e o gosto pela música popular, notadamente o samba, mas não
exclusivamente. Tal associação pode estar relacionada à figura do malandro, tão
comum à época, quando o samba começava a se firmar como característica
nacional.
Como já vimos em Clarissa, a partir da ascensão de Getúlio Vargas ao poder,
a divulgação de certos símbolos como forma de firmar a identidade nacional ganha
força, entre eles o samba e o futebol. Na década de trinta o samba está bastante
estilizado, contando com compositores da estirpe de Noel Rosa, que possuem uma
visão intelectualizada e boêmia da vida carioca. Um dos temas prediletos abordados
nesse período é a chamada malandragem, a exaltação do boa-vida, que foge ao
trabalho em busca do prazer, ou da orgia, que é o termo utilizado nessa época. Esta
idéia está presente em muitos sambas, vide a letra de O que será de mim, de Ismael
Silva e Nilton Bastos, de 1931:
37
Se eu precisar algum dia
De ir pro batente
Não sei o que será
Pois vivo na malandragem
E vida melhor não há...
...Deixa falar quem quiser
Deixa quem quiser falar
O trabalho não é bom
Ninguém pode duvidar
Trabalho só obrigado
Por gosto ninguém vai lá (SILVA; BASTOS apud WORMS, 2002, p. 38).
Se para Salu o que interessa é o prazer, que é representado de forma
musical, outro personagem que apresenta características semelhantes na narrativa
é Chinita, filha do Cel. Maria Pedrosa e namorada de Salu. Desde que seu pai
ganhou na loteria, os delírios de grandeza da moça encontraram terreno fértil nas
fitas de cinema. Chinita age, fala, se move e ama de acordo com os filmes que viu,
imitando trejeitos e, o que nos interessa particularmente, sempre uma vaga trilha
sonora rodando em sua cabeça para seus atos mais banais. Chinita vive sua vida
como se fosse um filme, imersa numa trilha musical que ela mesma cria, um
pastiche de suas fantasias e vivências. O simples ato de descer a escada de sua
casa está envolto por uma atmosfera musical hollywoodiana:
Chinita bem pode descer a escada com naturalidade e ir para a mesa. Mas
ela quer gozar inteirinho o prazer de morar numa casa rica como esta, numa
vivenda “de cinema”. Vai descendo a escada devagar. (Na sua cabeça soa
uma melodia lindíssima ao ritmo da qual ela se move...) (CC, p. 31).
O cinema influencia seu gosto também quanto à dança e à música que toca
no rádio, dando preferência aos gêneros musicais importados dos Estados Unidos:
Chinita se levanta, vai ao hall e põe o rádio a funcionar. Fraco e remoto a
princípio, mas definindo-se aos poucos, a melodia de um fox invade a sala.
Chinita começa a dançar (...) E agita-se ao ritmo do fox, os seios lhe tremem
como gelatina, os braços como que riscam desordenadamente o ar, os pés
ágeis se movem sobre o parquê (CC, p. 33).
38
A reprodução de gestos e trejeitos das atrizes de cinema se tanto na
linguagem corporal quanto verbal, e o fox provê a trilha perfeita para essa
reprodução: “Chinita salta oh boy! reboleia as degas, cada vez mais tomada
pelo frenesi da dança. Faz de conta que o pintor e papai são uma platéia, faz de
conta que ela é Ruby Keeker. Faz de conta” (CC, p. 33)
Além de Chinita, diversos outros personagens apresentam ligações com
aspectos musicais, embora num grau mais superficial, que não chega a caracterizar
uma paisagem musical individual. A única exceção é Noel que, de todos os
personagens de Caminhos cruzados, é aquele que possui a paisagem musical
individual mais rica. Nesse sentido, Noel ocupa em Caminhos cruzados a mesma
posição que Amaro ocupa em Clarissa: Noel catalisa a posição do artista no mundo
numa linhagem que prossegue pela obra do escritor e encontra sua forma mais
completa no Floriano Cambará de O arquipélago.
Tímido e recluso, Noel sonha em seu quarto, evitando o contato com o mundo
exterior. Sua extrema timidez lhe causa desconforto na presença de todos, menos
de Fernanda. A amiga lhe forças que não encontra em si mesmo e em sua
família. Em seus momentos de reclusão, temos um rico retrato da paisagem musical
de Noel através de suas reflexões, que contém uma notável amplitude: observações
musicais de toda espécie, que vão desde pensamentos a respeito de compositores e
suas obras, até notas, involuntárias ou não, a respeito de acústica e outras áreas
afins.
Uma dessas passagens reflexivas de Noel é particularmente rica em
observações musicais. Ao escutar um disco de Debussy num dia de chuva, seu
pensamento vaga e chega a notáveis conclusões a respeito de questões que são
importantes naquele momento histórico:
39
Um acorde mais forte apaga a visão. Noel fica atento à música. Por trás da
neblina há um chiado permanente que lembra o coaxar longínquo de sapos.
É um ruído que Debussy não escreveu mas que es ali no disco, como
parte da música (...) Sons moles no quintal: o chape-chape da água da
manga contra os canteiros de relva. Noel remergulha em seus
pensamentos. Vê mentalmente a cabeça estranha de Debussy, que começa
a se balançar de um lado para outro ao compasso da música (...) A melodia
é um rio transparente que corre ao sol numa preguiça adormentadora (...) E
de novo solta o pensamento. Era possível que Debussy tivesse uma voz
áspera como a do jardineiro (...) Bem possível também que, como o
jardineiro, não gostasse de tomar banho. Mas o Debussy verdadeiro ficou
aqui nesta melodia que o disco prendeu. Tudo que era humano e mortal,
que era resíduo, foi eliminado (menos o coral dos sapos) para ficar na
melodia de desenho puro, música de anjos, música de fadas (CC, p. 60).
Essa passagem do romance apresenta vários pontos de confluência com os
questionamentos que norteavam os compositores de vanguarda no início dos anos
trinta. Os adventos da sica Eletrônica e da Música Concreta provocaram uma
série de reflexões a respeito do ruído como possibilidade expressiva e desde então
os chamados sons não–musicais foram incorporados à música como um recurso
importante. Muito dessa reflexão se deu a partir do surgimento de novas tecnologias,
principalmente o rádio e o gramofone, que introduziam uma série de ruídos antes
não existentes numa execução musical. Esses ruídos (estática, chiados, zunidos)
passaram a interessar os compositores como recurso expressivo, e eles passaram a
pesquisar possibilidades de dispor desses sons de alguma forma. em 1913,
Debussy comentava:
Não será nosso dever encontrar meios sinfônicos de expressar nosso
tempo, meios que evoquem o progresso, o arrojo e as vitórias dos dias
modernos? O século do avião merece sua própria sica (DEBUSSY apud
GRIFFITHS, 1993, p. 97).
Embora Debussy não tentasse experimentar além dos limites de uma
orquestra, vários compositores mais jovens que ele o fariam nos anos seguintes. Um
desses compositores foi Edgar Varése (1883-1965), que estimulou a produção dos
primeiros aparelhos eletrônicos que pudessem gerar sons não convencionais.
As reflexões de Noel estão profundamente relacionadas à revolução
tecnológica e suas conseqüências. As mudanças que as invenções e
aprimoramentos haviam trazido para os ouvintes são dignas de nota num momento
40
em que compositores de vanguarda de todo o mundo também se questionavam a
respeito das novas possibilidades de se ouvir música:
E graças à vitrola - pensa Noel eu a posso ouvir com o nimo possível
de interferência humana. Se estivesse no teatro, ouvindo agora uma grande
orquestra executar esta mesma música, teria de ficar na presença de
criaturas que tossem, pigarreiam, amassam papéis de balas, cheiram bem
ou mal; teria de ver os sicos que suam e bufam e ficam vermelhos, um
maestro que agita a cabeleira e faz gestos grotescos... No entanto este
móvel de nogueira me a melodia quase pura. Um milagre do nio de
Edison combinado com o esforço de outros pequenos inventores anônimos,
mais o talento comercial dos homens que fundaram a Victor Talking
Machine Co., mais o maestro Stokowsky e as muitas dezenas de músicos
que formam a Orquestra Sinfônica de Filadélfia, e ainda principalmente o
sonho de Debussy, e o esforço de uma centena de operários anônimos,
inclusive as abelhas que fornecem cera para os discos... Para ele tudo isto
é um conto de fadas, uma obra de magia (CC, p. 61).
O espanto de Noel ante as novas tecnologias não esconde sua tendência
para o isolamento, para a solidão, para uma introspecção que prepara o jovem que
ele é para, guiado e estimulado por Fernanda, tomar as decisões fundamentais que
irão nortear sua vida.
O aprofundamento das questões musicais e a variedade da paisagem sonora,
tanto individual quanto da cidade de Porto Alegre, fazem de Caminhos cruzados um
passo fundamental na carreira literária de Erico Veríssimo no que concerne à
utilização da música em sua obra.
1.4 Música ao longe
Música ao longe (ML) foi o terceiro romance de Erico Verissimo a ser
publicado, embora, segundo Moisés Vellinho
6
, sua elaboração temática tenha
acontecido antes de Caminhos cruzados, romance que veio a público em data
anterior. sica ao longe foi publicado em 1935 e recebeu, juntamente com outros
três livros, o prêmio Machado de Assis da Companhia Editora Nacional. Segundo
6
VELLINHO, Moisés. Letras da Província. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1963.
41
Erico o romance foi escrito em poucas semanas, especialmente para concorrer no
concurso, seguindo uma sugestão de Dyonélio Machado
7
.
Nesse romance, Erico segue contando a história de Clarissa, iniciada no
romance homônimo, publicado em 1933. Em Música ao longe encontramos Clarissa
morando na casa de seus pais, de volta à sua cidade natal, Jacarecanga, depois de
haver terminado seus estudos em Porto Alegre. O romance aborda a temática da
decadência econômica da família de Clarissa, os Albuquerque, que vão perdendo
posses e prestígio para uma família de imigrantes italianos que havia se
estabelecido na região alguns anos antes. A família Albuquerque, outrora rica e
poderosa, não consegue manter as propriedades depois da morte de seu patriarca,
Olivério, a de Clarissa. Os filhos do velho Olivério não se acostumam com as
mudanças sociais e não conseguem fazer frente ao trabalho contínuo dos imigrantes
que se estabelecem na cidade. Sem tino para o comércio ou outras atividades que
consideram aviltantes, e sem o pulso firme do pai para trabalhar nas terras da
família, aos poucos se desfazem das propriedades para pagar dívidas. João de
Deus, pai de Clarissa, tenta desesperadamente salvar o que resta das propriedades,
mas sem qualquer direcionamento eficaz, e com um orgulho calcado nas tradições
herdadas que o leva a evitar o trabalho. Tio Jovino, irmão de João de Deus, se
entrega à bebida, assim como tio Amâncio à cocaína. Dona Clemência, mãe de
Clarissa, assiste a tudo sem reclamar, esperando que as coisas se resolvam da
melhor maneira.
Segundo Antonio Hohlfeldt (2003, p. 84) “é a partir deste livro que o escritor
começa a contestar a visão oficial da história, oferecendo a versão que os anônimos
e os marginais podem dela ter”. O mesmo autor destaca: “Como confessa em sua
autobiografia, o núcleo do romance tem raízes verídicas na decomposição da família
de Franklin Verissimo, seu avô”.
Em meio ao turbilhão dos acontecimentos, Clarissa desabrocha para a vida, e
tenta equilibrar as difíceis questões familiares com suas dúvidas e questionamentos.
A descoberta de seu amor pelo primo Vasco permeia toda a narrativa, descoberta
que se lentamente, e que aparece registrada nos diários de Clarissa, o que se
constitui numa narrativa dentro da narrativa, uma característica explorada em
Clarissa, e que irá se tornar um recurso importante na obra madura do escritor.
7
VERISSIMO, Erico. Solo de clarineta. 11. ed. Porto Alegre: Globo, 1978. V.1, p. 259-60.
42
Música ao longe é um romance repleto de citações musicais. O próprio título
não é mera licença poética, mas a afirmação de uma idéia que permeia todo o livro:
o amor que ainda não se definiu é como uma melodia do desenho incerto. Deixa o
coração alegre e perturbado e tem o encanto fugidio e misterioso de uma música ao
longe...” (ML, p. 30). Esse fragmento de um poema em prosa é de uma das leituras
prediletas de Clarissa, o poeta Paulo Madrigal, pseudônimo de Anfilóquio Bonfim,
caixeiro-viajante de profissão e poeta nas horas vagas. Essa caricatura dos
pequenos poetas de província introduz uma das idéias principais do romance, a
descoberta do amor por Clarissa, descoberta que se lentamente, em meio às
alegrias e decepções do dia-a-dia dos Albuquerques.
O despertar de Clarissa se também ao sabor da música que perpassa o
romance. É num baile que pela primeira vez ela se dá conta que Vasco pode não ser
apenas o menino selvagem, o Gato-do-mato de sua infância. Também é num baile
que Clarissa se decepciona com seu ideal sonhado de homem, o poeta Paulo
Madrigal, homem destituído das qualidades que Clarissa lhe atribuía (e que
fisicamente ela sonhava que fosse parecido com Vasco, embora louro e de olhos
azuis). Nesse sentido, os bailes adquirem um significado especial não apenas nesse
livro, mas também em toda a obra de Erico, que retorna a eles com freqüência.
1.4.1 A música nas pequenas cidades nos anos trinta
Numa tarde de domingo, um baile no Recreio Jacarecanguense. Nesse
baile a descrição dos músicos e da orquestra é minuciosa. Costumes e modas
relacionados à música sempre estão em pauta, assim como observações a respeito
dos estilos e gêneros musicais que são tocados:
A orquestra começa a tocar um tango argentino (...) O bandonion (quem
toca é o Chiquinho, filho do delegado de polícia) chora, o violino chora, o
piano acompanha. O saxofone, os pistões, o trombone e a pancadaria estão
calados, num silêncio respeitoso (ML, p. 62).
43
As observações a respeito da música contêm informações a respeito do
conjunto que está tocando determinado gênero (no caso, o tango), quais
instrumentos não estão sendo tocados naquele momento (o saxofone, os pistões, o
trombone). Enfim, na narrativa a descrição de um quadro completo da música
executada em reuniões sociais na cada de trinta em pequenas cidades do Rio
Grande do Sul, detalhando que tipos de ritmos ou neros eram preferidos em
detrimento de outros, quais danças eram privilegiadas, quais os costumes
relacionados a esta música.
A orquestra que toca o baile é dirigida por seu Quirino. Originalmente essa
orquestra era um grupo que tocava choro. No início da década anterior os conjuntos
de choro sofrem a influência do jazz norte-americano. As conseqüências dessa
jazzificação estão presentes em Música ao longe:
Em cima dum estrado a orquestra do Quirino marca o compasso das
danças. (Quirino toca bandolim, é do tempo das valsas e não gosta do jazz.
Mas o que é que se vai fazer? A gente tem de amarrar o burro à vontade do
dono... Querem jazz? vai jazz! Transformou sua orquestra de flautas,
cavaquinhos, violões e bandolins num jazz como os das fitas de cinema,
uma banda barulhenta com pancadaria, saxofone, trombones, banjos e
pistões.) (ML, p. 62).
Toda uma série de observações a respeito da música em pequenas cidades
do Rio Grande do Sul no início dos anos trinta podem ser colhidas no texto de
Música ao longe, a partir da ficcional cidade de Jacarecanga: a presença da música
popular, em festas, em bailes da sociedade, em serenatas; da música erudita em
saraus familiares, no repertório de músicos amadores, na memória de pessoas que
passam na rua assobiando um trecho de ópera.
O papel dos músicos amadores é fundamental nessas pequenas sociedades,
divulgando um repertório ao qual muitas vezes as populações não teriam acesso
devido à distância de um grande centro e à ausência de músicos profissionais. Seu
Leocádio, amigo da família de Clarissa, encarna a figura desse tipo de músico. Seu
Leocádio é flautista e costuma tocar em saraus e encontros familiares. É
acompanhado ao piano pela tia-avó de Clarissa, Tia Zezé:
44
Clarissa se lembra de que muitos anos, quando ela era pequena,
também costumava ouvir de noite os velhos tocarem em dueto. Seu
Leocádio faz um sinal. Tia Zezé começa. O som do piano parece que nasce
do fundo do tempo, que vem dum outro mundo (...) Serenata de Schubert
(ML, p. 84).
Seu Leocádio também encarna a figura do humanista, um homem
considerado bio por Clarissa e pelos moradores de Jacarecanga, mas que
esconde um segredo, a paixão juvenil pela tia-avó de Clarissa, Dona Zezé. Seu
Leocádio é músico, sempre a tocar sua flauta. Seu Leocádio se alinha numa galeria
de personagens de Erico Verissimo composta por humanistas, homens aficcionados
às artes, apreciadores da leitura e interessados pelo conhecimento humano, muitos
deles músicos, outros escritores como o Tônio Santiago de O resto é silêncio.
1.5 Um lugar ao sol
Se em Música ao longe a música aparece no âmbito das pequenas cidades,
em Um lugar ao sol (ULS), romance que lhe sucede, publicado em 1936, o âmbito
vai ser novamente o da cidade grande. Nesse sentido, Um lugar ao sol é um
romance híbrido, onde os universos de Música ao longe e Caminhos cruzados se
encontram. O romance apresenta uma clara subdivisão nas quatro partes que
compõem o livro. A primeira parte, que ainda se passa em Jacarecanga, tem em
verdade poucos elementos relacionados à música. A brutalidade do assassinato de
João de Deus Albuquerque, pai de Clarissa, perpassa toda essa seção do romance
e não deixa muito espaço para manifestações musicais. Fato semelhante vai
acontecer em livros posteriores do autor, principalmente em O prisioneiro, onde a
brutalidade da guerra e da tortura deixa pouco espaço à música, restando um mudo
protesto aos descalabros cometidos contra a humanidade. O autor alia claramente a
música à vida, à alegria de viver, à esperança, mesmo que a realidade se imponha
de maneira brutal. Assim, nos poucos momentos em que a música aparece na
primeira parte de Um lugar ao sol, ela está relacionada a esse aspecto. Vasco, ao
tentar escapar da atmosfera sufocante do velório de João de Deus, ganha a rua e
procura desesperadamente por sinais de vida:
45
Havia meia hora que Vasco caminhava sem destino. Seguia pelas ruas
mais escuras e menos movimentadas. Cantavam galos nos quintais (...) As
janelas iluminadas duma casa derramavam música na noite. Dançava-se
dentro. Uma moça veio aa janela cantando, olhou para fora um instante e
depois se sumiu. Vasco sentiu um súbito desejo de entrar correndo naquela
casa, abraçar uma rapariga (a mais moça, a mais forte, a mais bela!) e sair
dançando com ela (...) Sim, ele agora queria fazer alguma coisa que fosse o
oposto da morte (...) Vasco caminhava sempre. Não lhe saía mais da
memória a voz fresca cantando à janela (ULS, p. 46).
Da segunda parte do romance em diante, quando Vasco, Clarissa e a mãe
desta se mudam para Porto Alegre, o ambiente muda, e a paisagem musical se
amplifica. O espectro passa a ser novamente o dos romances Clarissa
(reencontramos o mundo da pensão de D. Zina, o universo musical de Amaro) e de
Caminhos cruzados (reencontramos Fernanda e Noel, e ressoam as notas do
mundo musical dos bailes do Metrópole). Além do encontro dos horizontes ficcionais
e musicais das obras anteriores em um mesmo romance, o espectro musical se
alarga abrangendo aspectos que ainda o haviam sido explorados. Assim Vasco,
deslumbrado com a chegada à cidade grande, trava contato com novas amizades,
contando entre elas Anneliese, garota alemã que ele conhece ao ir pela primeira vez
em uma casa de chá, freqüentada principalmente por alemães. O mundo musical da
música popular alemã, e também do ambiente dos cabarés e cafés-concerto
aparece pela primeira vez na obra de Erico:
O garçon trouxe os coquetéis. A orquestra começou a tocar. A velhota do
piano cantou com voz rouca de contralto as primeiras notas duma canção
russa.
- Fala alemon ? – perguntou Anneliese a Vasco.
O rapaz sacudia a cabeça negativamente (...) Seria o coquetel ? Ou seria a
voz dolorida e funda da mulher que cantava? Vasco começou a sentir-se
melhor. Aproximou-se de Anneliese (...) A velhota do piano cantou mais
alto: o seu lamento atingiu quase as proporções dum grito de dor e
desespero (ULS, p. 156).
A novidade do ambiente e das recentes amizades, a estranheza de ser um
rapaz do interior, que se sente inferior cultural e economicamente, trazem a Vasco a
sensação de desconforto, de deslocamento, sensações que são traduzidas pela
música que é executada naquele ambiente. Ao conhecer Anneliese, Vasco vive uma
experiência nova, que é também multifacetada. Para Vasco, em suas vivências
46
anteriores em Jacarecanga, o elemento estrangeiro é o imigrante, como a família
Gamba, que vai ocupando, através do trabalho, espaços que antes eram das
famílias tradicionais. Ao iniciar-se no mundo porto-alegrense, Vasco conhece uma
nova faceta: estrangeiros advindos da alta burguesia ou mesmo da aristocracia
européia (como é o caso do Conde Oskar), que saem da Europa devido à guerra ou
outras razões e vêm para o Brasil, se estabelecendo nas grandes cidades, onde vão
contribuir intelectualmente para o desenvolvimento do país. Esses estrangeiros vão
criar e se encontrar em novos ambientes sociais, que são inspirados nos cabarés e
cafés do velho mundo.
Ao reencontrarmos em Um lugar ao sol o mundo de Caminhos cruzados,
voltamos a travar contato com o mundo de Fernanda e Noel. O jovem casal
apaixonado se casa e vai viver na casa de Fernanda, junto à sua mãe e irmão. O
mundo musical de Noel reaparece aqui, ampliado e com relações antes não
vislumbradas. A contraposição do mundo protegido e culturalmente sofisticado de
Noel e do mundo de Pedrinho, irmão de Fernanda, aparece representada através de
elementos musicais: “(Noel) tinha momentos de depressão, de desalento. Só a
música conseguia alisar-lhe os nervos. Debussy. Ravel. Beethoven. Mas Pedrinho
vinha com seus discos horrendos: músicas de carnaval, sketches com palhaçadas”
(ULS, p. 288).
As diferenças de educação e temperamento aparecem representadas
musicalmente. As contraposições sociais se acentuam e demonstram a dificuldade
de Noel em conviver com os parentes de sua esposa. Não apenas Noel e Pedrinho
têm seus mundos representados musicalmente. Outros personagens também terão
suas preferências musicais evidenciadas: “D. Eudóxia tinha um disco predileto: A
casa branca da Serra”. Fernanda preferia música mais vibrante, Wagner, Mahler.
Dizia que Chopin deprimia, amolecia, quando todos precisavam de coragem e
estímulo” (ULS, p. 288).
1.5.1 Universos coletivos e particulares
Mesmo quando um personagem não tem seu mundo pessoal relacionado a
um tipo específico de música, ele transita dentro de um universo musical
47
pertencente à coletividade da qual participa, ou da qual procura se excluir. O
universo social dos bailes e festas, do carnaval, são momentos nos quais os
personagens transitam por universos musicais independentemente de seus gostos
pessoais. Nestas ocasiões, uma grande comunhão social, onde diferentes
universos pessoais se encontram.
Viu quatro caras pintadas de palhaço, com bocas rasgadas e narizes
brancos de alvaiade. Eram os moços da mesa grande. Faziam algazarra,
como um bando de papagaios. Um deles tocava violão. Outro repinicava um
cavaquinho. Um terceiro esfregava um reco-reco. Sentado na janela, o mais
assanhado de todos cantarolou uma canção e depois disse: - Batatal!
Batatal! Vamos embora, todos juntos... O bando rompeu numa marcha
carnavalesca (ULS, p. 248-249).
Dentro desse contexto festivo, muitas vezes o choque de elementos
contrários, onde vida e morte se encontram. O carnaval surge num momento
particularmente conturbado na vida de Vasco, onde a contraposição morte-vida mais
uma vez se mostra relacionada à música. A brutalidade do assassinato de Gervásio,
amigo e companheiro de quarto de Vasco, gera uma busca desesperada por
sensações ligadas à vida:
Vasco caminhava acompanhado pela sombra de seus mortos. Gervásio ia à
frente, como o baliza do bloco dos espectros. Gesticulava e berrava e
convidava todos para odiar (...) Vasco avistava as luzes do Cassino por
entre as árvores. A música do jazz chegava-lhe amortecida aos ouvidos.
Parou. Sentou-se num banco. Os mortos se acocoraram todos ao seu redor.
Vasco começou a odiá-los. amava o fantasma alegre que cantava ao
som do jazz, que apontava para o Cassino, que convidava ... (...) Entrou.
Sentiu-se mais uma vez perdido na floresta. Não era, entretanto, aquele
matagal cerrado, negro e macabro da noite do velório. Era uma floresta
luminosa de contos de fadas, com pássaros de todas as cores, sol, muito
sol, faiscações, perfumes, flores monstruosamente belas que só vicejam
nos climas impossíveis. Ele seguia por entre os pares que dançavam.
Recebia encontrões de todos os lados. Ia tonto. O jazz berrava. (...) O jazz
tocava... Vasco via o mulato do saxofone, suado, com a cara reluzente, os
olhos doidos, possuído do demônio do ritmo, gingando, tocando com os
pulmões, com os olhos, com o corpo inteiro (ULS, p. 254-255).
Esse universo no qual Vasco se refugia constitui-se num universo musical
coletivo, compartilhado por diferentes personagens, advindos dos mais diversos
48
estratos sociais. Enquanto grande parte dos personagens transita nesse universo
musical coletivo, há personagens que se destacam pelo universo musical
extremamente pessoal, onde a música ocupa um papel fundamental, onde as
relações com músicos e compositores são marcantes, pelos mundos e relações que
evocam. Os universos de Noel e Amaro são exemplares dentro dessas
características.
O universo musical de Noel reflete o ambiente ambíguo, onde superproteção
e opressão estão presentes em medidas iguais. A riqueza dos pais lhe dava conforto
e acesso a discos, livros e a um mundo cultural que o está disponível de forma
imediata para Fernanda, que teve de trabalhar e sustentar sua mãe e irmão. Na
mesma medida em que a riqueza conforto, a opressão e descaso da mãe para
com Noel provocam a sensação de desproteção, de hostilidade. Noel busca refúgio
na arte, e a música se constitui no principal elemento de ligação com um mundo
onírico, onde a hostilidade do mundo não encontra meios de se infiltrar. Em Um
lugar ao sol, Noel sente em certo momento que esse mundo já não lhe basta. A
presença de Fernanda, e mais tarde da filha, provocam a urgência de uma nova
relação com a arte e o mundo.
(Noel) lembrou-se dos tempos de solteiro. Tinha o seu quarto, a sua vitrola,
os seus discos, os seus livros, a sua intimidade. Sofria porque acabara o
curso de direito e não achava jeito nem coragem para advogar. Sofria
porque amava Fernanda, companheira de infância, e não tinha emprego
com que sustentar uma casa (...) Achava consolo nos livros, que o
afastavam cada vez mais da vida. Havia, porém, instantes em que nem os
livros nem os prediletos músicos lhe davam paz, bem-estar, felicidade.
Então ele procurava Fernanda. A presença dela tinha uma qualidade
sedativa. Sempre tão animada, tão corajosa... Aquele otimismo era
comunicativo (ULS, p. 213-214).
O universo musical de Noel guarda certa semelhança com o universo de
Amaro, que apresenta todos os seus dilemas existenciais relacionados com a
música. Também Amaro busca uma saída no mundo ideal da música. Apesar dessa
semelhança, o corte com relação à sociedade é mais profundo. Amaro sofre pela
perda do emprego e a conseqüente saída da pensão de Tia Zina, não tem mais
condições de alugar o piano no qual compõe e precisa devolvê-lo. Além disso, lhe
dói o fato de ter de se afastar de Clarissa, por quem se descobre apaixonado. A
49
saída da pensão provoca esse afastamento, e Amaro passa a espionar Clarissa nas
manhãs em que ela toma o ônibus para ir lecionar. A princípio Amaro tenta manter
intactos os seus sonhos, manter a mesma atmosfera da pensão onde morara
anteriormente:
Amaro conseguira criar ali uma atmosfera onde pudessem reflorescer os
seus sonhos, as suas esperanças frustradas. A scara de Beethoven no
tabique. Os livros na estante de madeira sem lustro (...) Tudo aquilo e a
lembrança de Clarissa. E as suas músicas... E a sua tristeza (ULS, p. 357).
Mas as dificuldades econômicas o jogam nos braços de Doce, dona da
pensão para a qual se muda. Dona Doce lhe causa repugnância, a princípio.
Também aqui as diferenças sociais e culturais entre os dois são mediadas pela
presença da música. Amaro, depois de ter sido seduzido pela mulata, procura fugir
do que considera um ato sujo, buscando abrigo no mundo da música:
O que acontecera era incrível. Ainda sentia na boca o gosto dos beijos
babados de Doce. Nojento! (...) Tinha de fugir a toda aquela sujeira...
Pensou no seu poema sinfônico. A música dos violinos, entretanto, não
conseguia desprender-se da terra. Doce a segurava com as mãos grossas e
graxentas. Não havia libertação possível (ULS, p. 366).
Desde sua partida da pensão de Dona Zina, Amaro buscava
desesperadamente abrigo e consolo na música. Tentava colocar em prática a
composição de grandes obras, que, no entanto não lhe saíam, escapavam-lhe por
entre os dedos. A dor provocada pela separação de Clarissa revolve-lhe as idéias.
Nos seus pensamentos, Clarissa e música são uma coisa só:
50
Na rua sentiu-se envolvido pela luz morena da tarde. Pensou em Clarissa.
Tudo que era belo, fresco, terno, suave lhe trazia à memória a imagem de
Clarissa. E depois havia uma mistura mágica: a imagem se transformava
em sons e então Amaro caía de cheio numa sinfonia, como num lago
enorme, azul e transparente, duma fundura insondável... Ficava perdido.
Estava agora compondo um grande poema sinfônico. (...) Ouvia os violinos
desdobrando uma longa frase. Algo de aéreo. De extraterreno. Dando uma
idéia de asa. De cousa suspensa no ar. Transparência de vidro. Graça
matinal. os violinos. O resto da orquestra em silêncio. E Amaro ouvia a
sua sinfonia. Era o poema da libertação. O homem fugindo da terra e da
vida. Se ao menos pudesse realizar aquilo, que fracassara em tudo o
mais! O diabo era que as cousas que lhe pareciam geniais e duma beleza
divina assim imaginadas, ele nunca as conseguia pôr na pauta musical.
lhe saíam vulgaridades (ULS, p. 359).
O pensamento de Amaro não é original: a idéia de estabelecer um paralelo
entre a música e a mulher amada encontra uma referência histórica na Sinfonia
Fantástica, do compositor francês Hector Berlioz, obra fundamental do Romantismo
musical, onde a amada aparece tematizada como uma idéia recorrente, uma idée
fixe, como Berlioz a chamou. Dessa forma, Amaro é apresentado como uma espécie
de Berlioz frustrado, que não logra terminar sua sinfonia.
Mas o assédio de Doce provoca uma reviravolta na vida de Amaro. Para ele,
deixar-se seduzir por Doce constitui-se numa queda, uma queda nas aspirações, o
abandono do que ele considera puro, belo. E no balanço mental de Amaro a música
é um elemento primordial. A mulata não conseguiria compreender o seu mundo, os
seus compositores e poetas. Note-se o traço indelével de racismo presente no
pensamento de Amaro:
Como era que um homem de sensibilidade, que fazia música, que se
ocupava com Stravinsky, com Ravel, com Debussy, Beethoven; um homem
que lia Keats e Shelley no original; um homem, enfim, que tinha uma visão
artística da vida, que tinha um olho fino para descobrir o que existia de belo
e harmonioso no mundo como era que esse homem estava amarrado a
uma montanha de carne flácida e escura? (ULS, p. 408-409).
Mas o mundo que Doce lhe apresenta também é um mundo que tem suas
seduções, apresenta relações não vislumbradas por Amaro. Se por um lado a
relação é vista por Amaro como um sinal de sua decadência, por outro significa a
possiblidade de voltar a compor, de ter seu piano de volta, de recuperar a faculdade
de sonhar. Apesar de inculta, Doce é sensível ao mundo do amante, respeita sua
51
cultura, lhe reconhece o talento mesmo sem compreendê-lo inteiramente. Mas
Amaro não consegue compreender a dedicação de Doce. O fato de viver às custas
da mulata lhe provoca a sensação de decadência e um inevitável conflito interior, e
ele se apega à música em seus momentos de desespero, música essa que é a
ilustração mesma de seu desespero e desejo de fuga:
Ele saiu para a rua, desesperado. Caminhou sem destino. Procurou fugir
da terra pensando em seu poema sinfônico. Na sua cabeça toda uma
orquestra imaginária tocava desesperadamente. Os violinos queriam
arrebatá-lo para o céu, para as regiões estratosféricas e onde não havia
mulatas gordas, nem estômagos, nem cousas desagradáveis. E Amaro se
deixava levar pelos violinos. Até que a fome, a sede ou o cansaço o
chamavam de novo para a terra (ULS, p. 410).
1.5.2 Ópera
Outro universo pessoal que está representado de forma estreitamente
relacionada à música é o universo de Álvaro, pai de Vasco, que reaparece depois de
anos dado como desaparecido e cuja vida é apresentada completamente
relacionada a elementos operísticos. A influência da ópera italiana é fundamental na
caracterização mesma do personagem. O nome de Álvaro vem de uma ópera de
Verdi, La Forza del Destino. Cresce na Itália, sob a influência da ópera italiana.
Quando adulto, foge de casa acompanhando uma companhia de ópera. Enamora-se
da cantora, cujo nome é Margarita, mesmo nome da personagem da ópera
Mefistofele, de Arrigo Boito, baseada no Fausto, de Goethe. A companhia se separa,
e Álvaro segue empresariando um dueto formado por Margarita, de quem se torna
amante, e Morelli, um cantor da companhia. Com o tempo o dueto entra em
decadência, Álvaro abandona Margarita e o cantor e vai parar em Jacarecanga,
onde conhece a mãe de Vasco, Zulmira, que lhe aparece como “una Valkiria”,
personagem da mitologia nórdica e de óperas de Wagner. O casamento de Álvaro e
Zulmira termina na fuga de Álvaro e com o suicídio de Zulmira. Todos os aspectos
da vida de Álvaro são como a trama algo rocambolesca encontrável no libreto de
muitas óperas italianas.
52
Os múltiplos aspectos musicais presentes em Um lugar ao sol constituem um
notável avanço em relação aos livros anteriores de Erico, avanços estes que o
parte da evolução do escritor no domínio de seu metier. As inter-relações entre
música e literatura se ampliam neste livro, explorando áreas que o haviam sido
exploradas em suas obras anteriores. O aprofundamento dessas relações fornece
ao escritor segurança para experimentar e seguir estabelecendo novas
possibilidades no diálogo musical-literário.
1.6 Olhai os lírios do campo
Se em Um lugar ao sol é perceptível a riqueza na utilização de elementos
musicais, em Olhai os lírios do campo (OLC), romance que lhe sucede, não
podemos deixar de notar o relativo empobrecimento desse aspecto.
A paisagem sonora de Um lugar ao sol até certo ponto se repete em Olhai os
lírios do campo, romance publicado em 1938 e primeiro grande sucesso de público
do autor. A partir de Olhai os lírios do campo, Erico teria mais tempo para se dedicar
à literatura, passando a ser um dos poucos escritores brasileiros a viver de seus
livros. Segundo Bordini (2003, p. 146), “a solução humanista fez igualmente o
sucesso excepcional de Olhai os lírios do campo, permitindo que o autor passasse a
viver dos direitos autorais e promovendo o aumento das tiragens dos romances
anteriores”.
Em Olhai os lírios do campo, novamente estamos diante do mundo sonoro de
Porto Alegre, do ambiente da cidade grande, com seus bailes e cafés. Apesar dessa
característica, entretanto, sob o aspecto estrutural, nesse livro o escritor abandona
completamente suas experiências com a técnica do contraponto, optando por uma
estruturação simples e certa linearidade na construção do romance.
Apesar de conter menos elementos relacionados à música que os romances
anteriores, Olhai os lírios do campo nem por isso é destituído de aspectos musicais.
O eixo principal do romance, que gira em torno da relação entre Eugênio e Olívia,
traz à tona questões relacionadas à música. Eugênio é, desde criança, uma pessoa
sensível que devido à pobreza dos pais e a falta de condições materiais, sofre
humilhações de todo o tipo, que vão influenciar a futura decisão de optar pelo curso
53
de medicina e tentar ascender financeira e socialmente. Na infância e adolescência,
muitas das manifestações de sensibilidade de Eugênio são expressas relacionadas
à música. Eugênio se põe a assobiar ou canta para espantar a tristeza quando
perseguido por colegas que o humilham. Na adolescência, Eugênio se apaixona
pela filha do diretor do colégio onde estuda, Margaret. A visão de Margaret sempre
está associada com a presença da música. Margaret era solista do coro da igreja, e
Eugênio ensaiava ir até “a porta da igreja para ouvi-la cantar” (OLC, p. 40). A menina
aparece em sua imaginação junto ao órgão da igreja, cantando de forma angelical. A
música que vem da capela num dia em especial, quando Eugênio ouve do lado de
fora os sons que dela ressoam, colocam-no num estado de sonho. Sua extrema
sensibilidade vem à tona com o bater dos sinos:
Os sinos começaram a tocar. O som musical enchia o ar, parecendo
aumentar-lhe a luminosidade. Eugênio passou a sentir aqueles sons em
todo o corpo. Estremecia e ficava vibrando em cada badalada. Lembrava-se
de outros sinos, de outras igrejas, em outros tempos (...) Os sinos lhe
traziam tantas recordações (...) Era alegria ou desespero o que ele sentia?
Eugênio apertava os lábios, fechava os olhos. Os sinos estavam em seus
ouvidos, na sua memória, na sua epiderme, nos seus nervos (OLC, p. 39).
A sensibilidade de Eugênio acaba por registrar com exagerada precisão os
sobressaltos da realidade exterior. Nesse sentido Eugênio tem a sensibilidade
irmanada com Noel e Amaro, também por essa aproximação com a música, embora
sem o conhecimento musical e a cultura desses.
Mais tarde, quando estudante de medicina, Eugênio passa por grandes
dúvidas existenciais, e em meio a elas a música o reconcilia consigo mesmo,
ameniza suas contradições:
54
Lembrava-se do pai, da pobreza triste de sua casa, dos gorilas de suas
reportagens. Ruminava as suas lutas, as suas humilhações, pensava nas
desigualdades da vida, nas injustiças sociais... Se Deus existia, tinha
esquecido o mundo, como um autor que esquece voluntariamente o livro de
que se envergonha. Não, mas Deus não existia. Ele “queria não acreditar”
em Deus. Além do mais, achava uma certa beleza no ateísmo. Vinham-lhe
porém momentos de dúvida. Era quando lhe parecia vislumbrar Deus
através de suas impressões de beleza ou pavor. Quando se comovia
ouvindo um trecho de boa música ou lendo uma história de abnegação e
bondade, ele se reconciliava com a vida e se inclinava a aceitar ou pelo
menos a procurar Deus (OLC, p. 58).
Em determinado momento, médico recém-formado, Eugênio salva uma
criança. A presença de Olívia e a alegria pelo ato fazem-no chorar. Ele e Olívia
saem para comemorar e essa alegria se manifesta de forma musical:
Homens e mulheres caminhavam apressados pela rua, precipitavam-se
para os bondes e ônibus. Acima da cabeça das criaturas, brilhavam os
anúncios luminosos. A vida é boa! Pensava Eugênio. Ele tinha salvo uma
criança. Começou a cantarolar baixinho uma canção antiga que julgava
esquecida (...) Por que será perguntou ele a Olívia por que será que às
vezes de repente a gente tem a impressão de que acabou de nascer... ou
de que o mundo ainda está fresquinho, recém saído das mãos de quem o
fez? Sem esperar resposta, retomou a cantiga, apertando o braço de Olívia
(OLC, p. 109).
Em seguida os dois se dirigem a um restaurante alemão, onde o rodeados
pela alegria do momento, a música enche o ambiente e os convida a dançar. A
experiência se traduz em um momento de rica confraternização humana, onde a
música é o elemento catalisador da alegria:
Era um restaurante de ambiente tirolês. Os fregueses, em sua maioria
austríacos e alemães, comiam, bebiam e cantavam (...) A vitrola começou a
tocar as “Ondas do Danúbio”. do fundo da sala veio uma possante voz
masculina, acompanhando a música. Batendo com a faca nas bordas do
prato, Eugênio marcava o compasso da valsa (OLC, p. 110).
O aspecto humanista que a música encarna nesses momentos é um
elemento que se repete em diferentes situações na obra do escritor. Neste sentido,
Olhai os lírios do campo é um romance onde a música encontra uma ressonância de
55
profundo humanismo que converge para a mesma direção de obras da maturidade
do escritor, principalmente O prisioneiro e Incidente em Antares.
1.7 Saga
O romance que sucede a Olhai os lírios do campo é Saga (S), publicado em
1940. Escrito em primeira pessoa, caso único na ficção do escritor, Saga narra a
busca de Vasco “rumo a um destino melhor que o justifique” (CHAVES, 2001, p. 63).
Seguindo suas convicções, Vasco decide lutar na Guerra Civil Espanhola,
esperando colaborar na construção de um mundo mais justo. Ao contrário do
esperado, a rotina da guerra e da destruição provoca a sensação da inutilidade do
conflito, e a ojeriza pela violência leva a uma posição pacifista do personagem, que
retorna ao Brasil, se casa com Clarissa e vai viver no campo, local onde acredita
construir um futuro tranqüilo e digno para sua família. Segundo Chaves:
A participação de Vasco na guerra civil espanhola provoca uma extensão do
problema da liberdade no nível do debate ideológico. Até aqui restrito ao
cenário de Jacarecanga ou Porto Alegre, o romance foi acrescido duma
dimensão “internacional”, propondo inclusive a análise do confronto
fascismo/comunismo. Isto não significa, é claro, uma tomada de posição
partidária da qual o autor continua se isentando, mas comprova a coerência
ideológica dentro da qual ele mantém a investigação (2001, p. 65).
Mais tarde, Erico considerará o romance artificial, desgostando de algumas
soluções. Apesar dessa posição pessoal do escritor e da concordância dos críticos
em muitos aspectos, houve quem salientasse o valor da obra
8
.
No que concerne ao uso da música, Saga apresenta uma das mais
interessantes construções relacionadas a elementos musicais de toda a obra de
Erico Verissimo. Estruturado em quatro partes, o romance segue uma linha de
raciocínio que parte do elemento épico da luta ao descanso final do guerreiro
(quando Vasco retorna ao Rio Grande do Sul e se casa com Clarissa). Essa linha de
desenvolvimento do romance apresenta ligações explícitas com obras musicais
56
sugerindo uma leitura intertextual entre música e literatura, como um programa em
uma obra musical.
A música programática ou de programa foi uma das formas criadas durante o
Romantismo no qual a música apresenta um caráter narrativo ou descritivo (GROVE,
1994, p. 639). Embora existam exemplos anteriores ao Romantismo, foi naquele
momento histórico que a música programática se tornou corrente na produção da
maior parte dos compositores.
Nas primeiras edições de Saga, cada uma das partes que compunham o livro
era precedida de uma citação musical, um fragmento de partitura cujo significado
está intimamente associado ao texto que lhe segue. As citações aparecem somente
nas primeiras edições do livro (pelo menos até a quinta edição) tendo sido
suprimidas nas edições posteriores, caindo no esquecimento. Essas citações, no
entanto, estabelecem o diálogo intertextual musical-literário e nos dão pistas
preciosas sobre a estruturação da obra e sua íntima ligação com a música.
1.7.1 O círculo de giz
Antecedendo a primeira parte da obra, intitulada O círculo de giz, aparece o
seguinte fragmento musical:
Figura 1 - Fragmento da Sinfonia nº3, Eroica, de Ludwig van Beethoven (VERISSIMO, 1940, p. 9 –
S1).
8
CHAVES, 1981, p. 55; ATHAYDE, 2005, p. 87
57
Esse fragmento, conforme aparece indicado, é parte da Terceira Sinfonia de
Beethoven, conhecida como Eroica. O fragmento faz parte do primeiro movimento
da obra.
Composta em 1800, essa sinfonia foi originalmente concebida como uma
homenagem a Napoleão Bonaparte, cuja figura e feitos Beethoven admirava. Com
as posteriores guerras de conquista e tendo se sagrado imperador, o ditador
decepcionou Beethoven, que riscou o nome de Napoleão da partitura e substituiu o
antigo nome por Sinfonia Eroica. Beethoven procurou negar a inspiração original,
dizendo que o novo nome era apropriado, já que a sinfonia exaltava feitos de
coragem heróica.
Estruturada em quatro movimentos, essa obra marca a passagem do
compositor para um estilo mais maduro de composição, se desvencilhando do estilo
clássico utilizado no início de sua carreira na direção de um nascente romantismo
musical. Segundo Nicholas Marston:
Foi com a Eroica, contudo, que Beethoven mudou de vez a natureza da
sinfonia. Um dos primeiros e mais característicos produtos do que se tem
denominado fase heróica” de Beethoven uma fase notável pela
composição de obras radicais em larga escala, com freqüência
estreitamente ligadas a idéias extra-musicais -, a Eroica era muito mais
longa e mais complexa do que qualquer sinfonia composta antes (1996, p.
234, grifo nosso).
Esse impulso rumo ao romantismo musical estabelecido por Beethoven a
partir da Terceira Sinfonia (note-se que o Romantismo, em música, tem um início
tardio -século XIX- se comparado com o Romantismo literário) tem relações estreitas
com o impulso de Vasco de ir lutar na Espanha, um impulso heróico, similar à
motivação da sinfonia:
A vida é um grande jogo e o destino, um parceiro temível que aceita
grandes paradas. Está bem. Ponho na mesa todos os meus sonhos. Não
basta? Jogo então a vida. Do outro lado das montanhas fica a Espanha e a
guerra. Caminho ao encontro de novas sensações. Ou da morte. Que
importa? A morte também é uma aventura, a definitiva, a irremediável (S, p.
11).
58
Esse impulso em direção de um evento relacionado à violência e a
possibilidade da morte apenas acentuam o caráter heróico presentes no início da
narrativa. O caráter heróico ganha corpo à medida que os voluntários, companheiros
de Vasco na luta, se incorporam na guarnição que os levará para a frente de
batalha.
Apesar desse caráter heróico estar bem acentuado na primeira parte da
narrativa, em nenhum momento está carregado de otimismo, mas sim de uma
posição crítica em relação à guerra. Vasco carrega consigo a desilusão inerente que
o faz evitar tanto o sentimentalismo carregado de alguns companheiros, como a
ânsia suicida de outros. Além disso, a perda de amigos e a estupidez do conflito
trazem à tona elementos que distanciam a narrativa da possibilidade de exaltação
da guerra e dos feitos heróicos per se. Esse caráter reflexivo está espelhado na
Eroica, onde, depois de um início otimista no primeiro movimento (Allegro com brio),
apresenta-se uma reflexiva Marcha fúnebre como segundo movimento (Marcha
fúnebre: Adágio assai). Aqui, o texto musical e o texto literário se tocam, num
diálogo que cabe ao leitor refazer.
Outro aspecto que estabelece um diálogo intertextual musical-literário é o
aspecto do destino, desde o princípio citado por Vasco como uma das forças que o
levaram à Espanha para lutar. Esse aspecto estabelece um diálogo direto com a
Quinta Sinfonia de Beethoven, obra que é citada no texto. O personagem que
catalisa esse aspecto é Marcus Silberstein, que “tem uma testa que avança
alcantilada para a coroa da cabeça com o harmonioso ímpeto de uma fuga de Bach”
(S, p. 134). Marcus, que chega com outros judeus austríacos seus companheiros
para juntarem-se ao batalhão, é músico e descobre em Vasco um interlocutor:
No dia em que ele descobre o meu interesse pela música, não me
abandona mais. Conta-me dos concertos que ouvia ou em que tomava
parte em Viena (...) Adoro Beethoven, “aquele ser feio e quase disforme que
inundou o mundo de beleza e de harmonias eternas” (S, p. 135).
O intertexto estabelecido mantém um permanente diálogo beethoveniano.
Para Marcus, Beethoven tem um significado transcendental, que se confunde com
sua própria vida:
59
- Nunca ouviu a Quinta Sinfonia?
- Muitas vezes.
- Lembra-se daquelas notas iniciais?
Cantarola. Faço um sinal afirmativo com a cabeça. Ele prossegue: - So
pocht das Schicksal an der Pforte”. Assim o destino bate à porta. Quatro
pancadas agourentas que se repetem. (...) Um dia ouvi essas batidas
solenes à minha porta.
- O destino...
- A Gestapo (S, p. 135).
O motivo beethoveniano ecoa pela narrativa, levando a uma leitura ambígua
onde a música está sempre presente, como um rio que corre paralelo a outro, o rio
da literatura mesma. Essas vias paralelas que se entrecruzam a todo instante, mais
como duas espirais em contínuo diálogo, abrem o caminho para a possibilidade de
leitura auditiva da obra. É preciso, além de querer ouvir, abrir-se a possibilidades de
escuta. Segundo Roland Barthes:
(...) ao passo que, durante séculos, a escuta foi definida como um ato
intencional de audição (escutar é querer ouvir, um ato inteiramente
consciente), atualmente nela reconhecemos o poder (e quase a função) de
varrer espaços desconhecidos: a escuta inclui em seu campo, não apenas o
inconsciente, no sentido tópico do termo, mas também, se assim podemos
dizer, suas formas leigas: o que é implícito, indireto, suplementar, retardado:
uma abertura da escuta a todas as formas de polissemia, de diferentes
motivações, de superposições, um desmantelamento da Lei que
prescreve a escuta única (BARTHES, 1990, p. 227).
Esta polissemia está presente no intertexto de Saga, no seu diálogo
beethoveniano. A abertura à possibilidade de escuta do romance traz à tona
ligações não entrevistas numa leitura imediata. O tema do destino, como uma
interrogação constante, permeia toda a narrativa. À medida que essa prossegue e a
luta de Saga se desenrola, os destinos dos personagens se definem, e Vasco
descortina aos poucos a visão do próprio destino, diverso daquele que havia
imaginado a princípio. Os caminhos de Vasco são os mesmos caminhos da Eroica
de Beethoven.
60
1.7.2 Sórdido interlúdio
A segunda parte do romance, intitulada Sórdido interlúdio, reafirma alguns
aspectos anteriores. Encimando o título do capítulo aparece a seguinte citação da
Terceira Sinfonia de Beethoven:
Figura 2 - Fragmento da Sinfonia nº3, Eroica, de Ludwig van Beethoven (VERISSIMO, 1940, p. 157 –
S1).
Esse fragmento corresponde ao início do segundo movimento da Eroica,
justamente a Marcha Fúnebre citada anteriormente. A ligação dessa seção do
romance com a Marcha se torna evidente pela tomada de consciência de Vasco da
condição absurda da guerra. Essa seção é a mais breve das quatro partes do
romance, caracterizando o título “Interlúdio”, palavra que também apresenta ligações
musicais. Um interlúdio é “um trecho tocado ou cantado entre as partes principais de
uma obra maior, como uma ópera” (GROVE, 1994, p. 459). A brevidade do capítulo
o caracteriza como um interlúdio, mas também reforça a intenção musical do
romance: o capítulo se constitui numa parte breve entre duas seções musicais
(capítulos) maiores.
A relação antevista, por estar implícita na citação da Terceira Sinfonia, no
sentido de uma reflexão sobre o heroísmo, a morte e o significado da guerra,
alcança o ponto culminante na Marcha Fúnebre, para onde confluem tanto a Eroica
como Saga, no sentido da tomada de consciência e também de uma posição
ideológica, uma opção pela não-violência, ou ao menos pela visão da inutilidade da
guerra como recurso para solucionar diferenças.
61
Com o fim iminente do conflito, fugitivos e soldados são levados a um campo
de refugiados, onde as condições são precárias e a morte ronda o tempo todo. O
intertexto com a Marcha Fúnebre é claro:
Passam-se os dias. A miséria da condição humana me parece infinita.
Manifesta-se de mil modos grotescos e trágicos (...) Vamos sendo comidos
e sugados aos poucos. Por dentro pelos bacilos da colite e por fora, pelos
parasitas (...) A disenteria faz dezenas de vítimas. Não temos recursos para
os medicar. Há homens que caem e se entregam (S, p. 199-200).
Assim como o “ponto nevrálgico” (FIELD, 1995) da Eroica é o segundo
movimento, também o é a segunda parte de Saga. Sórdido Interlúdio pode ser
considerado o momento reflexivo da obra, que estabelece múltiplas ligações com
elementos musicais. a ligação com a Marcha Fúnebre, mas também a alusão
à chamada do destino que determina o que Vasco chama de “o pobre peru ébrio que
retorna ao seu círculo” (S, p. 213).
1.7.3 O destino bate à porta
A terceira parte da obra mantém as ressonâncias beethovenianas ao
prenunciar, já no título, as ligações com a Quinta Sinfonia. Encimando o título
aparece a seguinte citação:
Figura 3 - Fragmento da Sinfonia nº5, de Ludwig van Beethoven (VERISSIMO, 1940, p. 169 – S1).
62
O fragmento citado corresponde ao início do primeiro movimento da Quinta
Sinfonia de Beethoven, o conhecido “tema do destino”. Tantas vezes prenunciado
dentro de Saga, o motivo do destino define a forma do livro. De todos os romances
de Erico Verissimo, Saga é o que mais se aproxima de uma forma sinfônica. Possui
quatro movimentos bem estruturados (quatro partes), o segundo movimento é lento
(a ligação com a Marcha Fúnebre o tom grave, de andamento lento da segunda
parte), como costumam ser os segundos movimentos das sinfonias, e o último
movimento é um allegro (a última seção onde Vasco encontra a solução para o seu
destino). Não é de estranhar a chamada solução “romântica” do romance, que ele
se inscreve claramente num plano dominado por uma estrutura romântica. As
sinfonias que compõem o intertexto de Saga são obras fundamentais e constituem
passos decisivos rumo ao nascente romantismo musical do século XIX. Como o
intertexto sinfônico é indissociável, é natural que a estrutura do romance contenha
elementos marcantes do Romantismo, principalmente na sua parte final.
A terceira parte de Saga mantém o diálogo intertextual beethoveniano, ao se
apropriar do tema do destino da Quinta Sinfonia, tantas vezes prenunciado no
romance. A Quinta Sinfonia teve sua estréia em 1808, num concerto memorável do
qual fazem parte também a Sexta Sinfonia, o Concerto nº4 para piano e orquestra e
a Fantasia para piano, coro e orquestra, todos em primeira audição. Segundo Candé
(2001, p. 19) o público não se entusiasma; com certeza não encontra o gênero de
prazer que busca”. As obras, radicalmente novas, afastam um público acostumado
às convenções do Classicismo. Além disso, a densidade e profundas diferenças das
peças apresentadas numa mesma noite não são de um nero facilmente
assimilável e provocam perplexidade na platéia.
A Quinta Sinfonia, composta simultaneamente à Sexta Sinfonia nos anos de
1807-08, foi estruturada em quatro movimentos, na tonalidade principal de
menor, sendo eles: I - Allegro com brio; II Andante com moto; III Allegro; IV
Allegro. O tema do primeiro movimento citado no início da terceira parte está
estreitamente relacionado com o impulso de Vasco na descoberta do seu destino: a
princípio voltar para casa, fazer da luta cotidiana dentro de sua província a sua luta,
em vez de recorrer a uma luta de pessoas estranhas num país distante. Tendo-se
em mente a estrutura sinfônica do romance, o impulso heróico do início (primeiro
movimento) se desfaz na visão da inutilidade e sordidez da guerra no segundo
movimento (segunda parte), que leva à busca de Vasco pelo seu destino (terceiro
63
movimento). Esta busca se revela diferente do que Vasco a princípio imaginara, a
luta cotidiana na cidade traz conflitos, o início da Segunda Guerra evoca a sensação
de aniquilação, de fim da civilização. A luta de Fernanda pelos seus ideais,
ameaçados pela cupidez de empresários como Almiro Cambará e Gedeão Belém,
provoca em Vasco a sensação de que aquela luta também não vale a pena. A
dificuldade de Vasco em aceitar as diferenças entre as pessoas leva à sua resolução
final. A morte de Pedrinho, irmão de Fernanda, acelera a tomada de decisão de
Vasco de abandonar a cidade e é de Fernanda que Vasco ouve, numa metáfora não
beethoveniana, mas mozartiana, o diagnóstico:
Estivemos ontem à noite - Clarissa e eu visitando Fernanda e Noel. Lá
estava o velho Mozart a falar através da vitrola a sua linguagem
consoladora e de serena beleza. D. Eudóxia, como protesto ao fato de
estarem ouvindo música apenas quinze dias após a morte do filho, fechou-
se no quarto e não apareceu durante duas sonatas e um concerto.
Falamos pouco, deixamos que a sica ocupasse quase todo o tempo e
todo o espaço tanto interior como exterior. Entre um disco e outro Fernanda
nos contou:
- Sabem da última? Mamãe virou espírita...
Clarissa arregalou os olhos.
- Mas como?
- Coisas duma vizinha... Fazem sessões na casa ao lado. Contou-me ela
que ontem conversou com papai e Pedrinho.
- E que é que você diz a isso? – pergunto.
- Não digo nada. Que cada qual siga o seu rumo.
Eu me preparei para replicar, mas estavam os violinos com sua voz
consoladora e bia. Calei-me. Mas ao ritmo do adágio fiquei a pensar na
estranha situação daquela casa. Noel católico, D. Eudóxia espírita,
Fernanda céptica, quanto aos destinos da alma, mas crente nos destinos
humanos na terra... Impossível que ela não tenha qualquer fé extraterrena!
Quando o disco terminou e Noel se ergueu para o substituir, abri a boca
com tenção de fazer uma pergunta mas Fernanda se antecipou na resposta:
- O mundo tem de ser assim, Vasco. Repare nessa orquestra. Cada grupo
de instrumentos tem a sua voz, a sua natureza, a sua missão. Pode o oboé
revoltar-se pelo fato de os violinos não serem instrumentos de sopro? Não
se esqueça de que a harmonia é feita também de um pouco de
tolerância...(S, p. 384-385).
A serenidade da harmonia mozartiana prenuncia o último movimento do
romance.
64
1.7.4 Pastoral
A última parte de Saga, intitulada Pastoral, apresenta o seguinte fragmento
encimando o título:
Figura 4 - Fragmento da Sinfonia nº6, Pastoral, de Ludwig van Beethoven (VERISSIMO, 1940, p.313 -
S1).
Este fragmento pertence ao primeiro movimento da Sexta Sinfonia, conhecida
como Pastoral. Note-se que o fragmento foi erroneamente assinalado como sendo
parte da Terceira Sinfonia, provavelmente por um lapso ou do escritor ou do editor.
Naturalmente, o faria nenhum sentido tal fragmento pertencer à Eroica. Como o
título da última parte do romance indica, as ligações intertextuais confluem para a
Pastoral de Beethoven, fechando o plano sinfônico da obra.
A Sexta Sinfonia de Beethoven foi composta em 1808, concomitante com a
Quinta Sinfonia. Possui cinco movimentos, caracterizando a tendência de Beethoven
em aumentar o tamanho das sinfonias, tendência que estabelece o padrão a ser
seguido pelas gerações posteriores de compositores românticos. É uma obra
descritiva, apesar da observação de Beethoven (apud MARSTON, 1996, p. 235) de
que era “mais uma expressão de sentimento do que de pintura”. O fragmento citado
é do início da sinfonia, um Allegro ma non troppo que tem como subtítulo Erwachen
heiterer Empfindungen bei der Ankunft auf dem Lande (Despertar de sentimentos
felizes na chegada ao campo). O diálogo musical-literário se estabelece de forma
plena com o sentimento de Vasco ao voltar para o Brasil, com a intenção de se
estabelecer no campo, de volta à natureza, prenunciada e sugerida na primeira
65
parte do romance, quando Vasco, preso a uma cama de hospital em Barcelona
devido a ferimentos sofridos no campo de batalha, e já pressentindo a inutilidade e a
sordidez da guerra, ouve de seu colega de convalescença, D. Miguel, que “o mal de
nosso tempo é que os homens se afastaram da natureza” (S, p. 159). Num processo
cíclico, as idéias de Vasco se desenvolvem a partir de lembranças, sentimentos e
troca de experiências variadas que o levam à solução final. O trecho da Pastoral que
é citado corresponde exatamente ao sentimento de Vasco em sua nova morada:
O arado é meu carro de vitória, e quem marca o ritmo desta marcha triunfal
são dois lerdos e plácidos bois oscos, bons e vigorosos como o chão que
estamos a preparar para as próximas sementeiras.
Fevereiro de um novo ano. O verão vai forte, mas o sol é dourado e benigno
no vale de Águas Claras, a quase oitocentos metros acima do nível do mar
(S, p. 392).
Esta última parte de Saga guarda outras correspondências com a Pastoral,
além das citadas. Cada um dos cinco movimentos da Sexta Sinfonia está
relacionado a sentimentos ligados à natureza. O primeiro movimento, conforme
dito anteriormente, está relacionado a sentimentos felizes na chegada ao campo. O
segundo movimento, um Andante molto moto, tem como subtítulo Szene am Bach
(Cena junto ao riacho); o terceiro movimento, um Allegro, tem como subtítulo
Lustiges Zusammensein der Landleute (Alegre reunião de camponeses); o quarto
movimento, novamente um Allegro, tem como subtítulo Gewitter, Sturm (Trovoada,
tempestade); o quinto movimento, um Allegretto, tem como subtítulo Hirtengesang:
Frohe und dankbare Gefühle nach dem Sturm (Canção do pastor: sentimentos
alegres e gratos após a tempestade).
Não apenas o primeiro movimento encontra ressonâncias na parte final de
Saga, mas cada um dos outros movimentos são reprisados em um momento ou
outro. Vasco e Clarissa moram no sítio de veraneio de Fernanda e Noel localizado
“no benigno vale de Águas Claras, a quase oitocentos metros acima do nível do
mar” (S, p. 391, grifo nosso). O segundo movimento da Pastoral é reprisado
constantemente, as cenas junto ao riacho, onde as águas correm tranqüilas num
vale onde Vasco vive alvoroçado na “ânsia de querer levar à tela o azul dessas
montanhas, céus, sombras e lagunas: o verde destas árvores, colinas, roças, relvas
66
e florestas; a transparência dessas águas, distâncias e neblinas; e o tépido ouro
deste sol” (S, p. 391, grifo nosso).
A “alegre reunião de camponeses” do terceiro movimento é evocada na
reunião com um vizinho, Dr. Winkler. Vasco não é um camponês comum, é um
homem da cidade, culto, aficcionado das artes. Uma “alegre reunião de
camponeses” para Vasco não seria, portanto, uma reunião comum. Dr. Winkler o
ensejo a esta reunião, uma reunião de camponeses intelectuais:
No alto duma colina, a dois quilômetros de nosso sítio, num chalé em estilo
bávaro, mora um alemão alto, louro, barbudo e silencioso, que vive solitário
entre seus livros e seus cães de raça. É um apaixonado da música e muitas
vezes pela manhã ou ao entardecer, quando o vento sopra do sul, chegam
até s os sons de seu órgão. E é bem estranho sentir a gente que a alma
de Bach anda perdida pelo vale de Águas Claras, assombrando estas
montanhas e florestas, penetrando os chalés e entrando pelos ouvidos
dessas criaturas simples, encardidas e de olhos vazios.
O mês passado fiz relações com o meu vizinho solitário, que é um homem
bastante cultivado. Trouxe-o à minha casa e mostrei-lhe meus livros e
quadros. Ele gostou tanto de uma natureza-morta, que acabei dando-lhe a
tela de presente. O homem relutou em aceitá-la, mas como eu insistisse,
acabou cedendo. Quando lhe falei em Beethoven com entusiasmo, a sua
rendição foi completa (S, p. 396, grifo nosso).
Mais uma vez Beethoven estabelece a linha de ligação do diálogo musical e
literário, um diálogo que se torna polifônico com o acréscimo de novas linhas
melódicas a cada passo. Bach (Szene am Bach) é o próprio riacho onde o encontro
dos camponeses ocorre. O alegre encontro de camponeses intelectuais ocorre à
sombra (ou som) de Bach e Beethoven. Mais que um amigo, Dr. Winkler se torna o
ponto de ligação direto de Vasco com a música ao se tornar seu professor. “Resolvi
aprender música com o Dr. Winkler e espero um dia compor alguma coisa. O
desconhecimento técnico da arte musical é uma de minhas maiores deficiências” (S,
p. 397).
A tempestade do quarto movimento da Pastoral encontra eco na chegada da
guerra. “Uma noite todo o horror da guerra nos entrou em casa e na alma através do
noticiário do rádio e dos jornais” (S, p. 404): trovoada, tempestade. “A Holanda e a
Bélgica invadidas e dominadas... O rolo compressor germânico a avançar
esmagador e invencível... Cidades bombardeadas em chamas... Populações civis
em fuga pelos caminhos e metralhadas impiedosamente” (S, p. 405). Saga foi
67
escrito durante esse período da história, quando a Segunda Guerra iniciava. Erico
apontou em seu livro de memórias (VERISSIMO, 1978, p. 272) e também no
prefácio de Saga (S, p. 9) o quanto o estado sombrio da época influenciou na
atmosfera carregada do romance. Esse aspecto da tempestade o encontra
solução no romance, a solução do quinto movimento da Pastoral, os “sentimentos
gratos após a tempestade”. O último movimento da Pastoral é resolvido de forma a
fugir do conflito. O agradecimento após a tempestade é o valor do que eles, Vasco e
Clarissa, sentem em comum: a esperança de paz e de que tudo melhore:
Aos poucos um calor de confiança e de coragem se apodera de mim. É algo
de profundo e essencial que me vem de Clarissa, da criatura que ela tem
nas entranhas, algo que surge das plantas e dos animais domésticos, que
brota da terra... (...) Imóveis e abraçados, Clarissa e eu aqui ficamos em
silêncio, com os olhos postos no horizonte, a esperar o novo dia com um
secreto temor e uma secreta esperança (S, p. 408).
1.7.5 Outros aspectos musicais
Sob o aspecto da paisagem sonora, Saga obtém, em relação aos outros livros
de Erico “o acréscimo de uma dimensão internacional” (CHAVES, 2001, p. 63). Se
os romances anteriores do autor têm como cenário Porto Alegre ou Jacarecanga,
Saga apresenta uma paisagem sonora inédita, uma paisagem que em verdade Erico
não conhecia pessoalmente, e que deve ter-lhe valido esforços de pesquisa e
imaginação para poder reconstituir-recriar. Esse aspecto é importante na medida em
que o escritor experimenta pela primeira vez uma paisagem que não é a sua
imediata, e que trará reflexos futuros em obras variadas, principalmente em O
prisioneiro e O senhor embaixador.
Os primeiros elementos musicais do romance ocorrem quando Vasco se
surpreende justamente com esse aspecto fundamental do estrangeiro, do que não é
do lugar: a estranheza. “Alguém canta uma canção saltitante numa língua que não
consigo identificar” (S, p. 19), observa Vasco ao chegar ao local onde são
arregimentados os voluntários. Nesse momento, nenhum aspecto lhe passa
despercebido, as vozes, as cores, a variedade dos sons daquela região
68
desconhecida para ele. “Quando lhe pergunto por que vai lutar na Espanha,
responde com sua voz oleosa, de modulações musicais” (S, p. 19), diz a respeito de
um de seus companheiros. Ao passar por um guarda, ainda na divisa da França com
a Espanha, nota que ele “o contempla com ar divertido e ao cabo de alguns
segundos cantarola, sorridente: - Tout va trés bien, madame la marquise... Allez!” (S,
p. 21). A cor local espanhola é acrescida da dimensão multi-étnica e cultural dos
voluntários que se unem à luta contra Franco. “Dois italianos cantam uma canção
guerreira que mais tarde venho a saber que se chama ‘Bandiera Rossa’ (S, p. 22)”,
observa. A própria mistura de línguas produz uma sonoridade diferente, que não lhe
escapa: “Palavras de várias nguas se cruzam e se misturam no ar. Um espetáculo
para os olhos, uma festa para os ouvidos” (S, p. 23). Esta “festa para os ouvidos” é
quase uma constante no romance, mas que se perde nos momentos de batalha,
onde sobra espaço apenas para o medo e o desespero.
“O velho sino da estação foi pelos ares badalando ‘como um passarito ferido’
(S, p. 25)”, diz o estacionário de Portbou para Vasco; “eu lhe digo que esse sino era
como uma pessoa da minha família. Tinha um som tão bonito...” (S, p. 25), revela
ele mais adiante. A paisagem sonora também é arruinada pela guerra. A guerra
destrói os símbolos quotidianos que provêem segurança, conforto. O processo da
barbárie é o da aniquilação dos elementos humanizantes, entre eles a música.
“Quando eu batia os sinais, dlem, dlem, ele parecia dizer ‘papai, papai...’ Franco me
pagará” (S, p. 25) , conclui o estacionário.
Mas a marcha para a guerra é uma marcha colorida, onde os “voluntários
comem, falam, fumam e cantam” (S, p. 27). Em meio à marcha, elementos da
paisagem sonora da vida quotidiana das pessoas ainda são encontrados pelo
caminho, e se tornam motivo de regozijo entre os voluntários. A ida a um prostíbulo
da região provoca mais prazer pelo que de normalidade em meio à guerra que
pelas mulheres. A música é um elemento catalisador dos ânimos: “Vemos alguns
homens entrar numa casa de onde saem os sons roucos dum gramofone (...)
Música! – murmura Brown (...) No meio da balbúrdia rouqueja um ragtime” (S, p. 29).
Na marcha para o sul rumo à guerra, a paisagem sonora é também a
paisagem individual de cada voluntário, que contribui com a cor local de seu país.
Sebastian Brown, negro norte–americano, traz consigo as marcas musicais de seu
país. “Sebastian Brown começa a cantarolar um desses “espirituals” dos negros
americanos. A melodia tem uma funda ternura humana e é ao mesmo tempo duma
69
límpida simplicidade infantil” (S, p. 36). Note-se que agora os voluntários seguem
rumo ao sul da Espanha tendo como meio de transporte o trem, e é nesse contexto
que Sebastian inicia seu canto. O trem é profundamente arraigado à tradição da
música negra norte-americana, notadamente o blues. Segundo Muggiatti:
Trens e trilhos correm como sangue pelas veias do blues. A ferrovia o é
um mero meio de transporte, é quase um veículo mágico que leva o negro a
transcender a sua condição. Viagem, união, separação: o trem adquire no
blues uma dimensão mitológica. Não à toa, o sistema de fuga usado pelos
abolicionistas antes da Guerra Civil para ajudar escravos a ganharem a
liberdade nos Estados do Norte foi chamado de Underground Railroad,
Ferrovia Subterrânea. Era uma rede de casas amigas (“estações”) nas
quais os negros se abrigavam à noite durante sua escapada (1995, p. 29).
Não é casual, portanto, o fato de Sebastian Brown cantar justamente quando
o meio de transporte utilizado é o trem. Sebastian canta um spiritual, estilo de
lamento relacionado ao blues, mas de conotação religiosa, “um tipo de canção
folclórica que teve origem com a prática evangelizadora nos EUA, entre 1740 e final
do séc. XIX” (GROVE, 1994, p. 893). Vários voluntários que viajam naquele vagão
se sentem comovidos ou afetados pela melodia:
Axel sorri apertando a haste do cachimbo com dentes muito claros. Garcia
escuta em silêncio. E como eu me mostro também interessado, Sebastian
começa a cantar mais alto. Em breve sua voz de veludo enche o vagão, é
como um gemido que sai de funda caverna escura cheia de ressonâncias
misteriosas (S, p. 36).
A marcha em direção à guerra é, portanto, um espetáculo colorido, musical e
multi-étnico. Canções de voluntários de diferentes países se misturam às cores
locais para formar a paisagem sonora dos ambientes por onde passam. A luta na
Brigada Internacional é, antes de tudo, um ato de heroísmo em defesa do ideal
socialista, heroísmo que é cantado, comemorado, cultivado. Esse caráter de júbilo
por estar indo à guerra está estreitamente relacionado ao plano da primeira parte da
obra, O círculo de giz, que por sua vez mantém conexões com o primeiro movimento
70
da Eroica: o caráter de alegria heróica, relacionada à coragem, do primeiro
movimento.
Na segunda parte do romance, Sórdido interlúdio, poucas observações
relativas à música. A situação de degradação em que se encontram as pessoas que
procuram fugir do conflito é pouco propícia à presença da arte. Essa característica
se repete em outros textos de Erico, notadamente em O prisioneiro. Em momentos
nos quais predomina a barbárie não há lugar para a música. A música se transforma
numa mera lembrança de tempos melhores: “É doloroso e mesmo desanimador
pensar que a alguns quilômetros de onde nos encontramos existem cidades onde as
criaturas vivem normalmente, bebem água pura, comem alimentos sãos, ouvem
música e sabem sorrir” (S, p. 206, grifo nosso).
À medida que a situação se degrada, o distanciamento da arte se torna, como
o distanciamento da vida, mais agudo. A Marcha Fúnebre da Terceira Sinfonia se
manifesta, lenta, contundente. “A situação piora de dia para dia. não se ouvem
cantigas. Calou-se a vitrola que rouquejava não sei onde tangos e paso-dobles” (S,
p. 206). O resgate de Vasco do campo de refugiados vem mudar o destino do
personagem, anunciando a próxima seção do romance.
O retorno a Porto Alegre corresponde ao retorno à paisagem musical dos
livros anteriores de Erico, acrescido do aspecto beethoveniano do romance. Logo ao
chegar, Vasco é interpelado pela polícia, que queria saber o que fora fazer na
Espanha, se era comunista, colocando-o perante o sistema repressivo da época.
Vasco teme pelo seu destino e observa que “neste momento estão a me martelar na
cabeça as quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven. Talvez o destino
esteja agora batendo à minha porta” (S, p. 214). Mas o destino já havia batido à
porta quando Vasco fora resgatado do campo de refugiados e seu futuro, embora
incerto, revelava a possibilidade otimista da convivência com a família e os amigos.
A volta à província provoca em Vasco lembranças onde perpassam vários
ambientes dos romances anteriores com sua paisagem musical característica.
Também o ambiente porto-alegrense é revisitado, à luz de novidades. Como quando
Fernanda fala da irmã da cunhada, Modestina:
71
A filha mais moça canta no rádio. Chama-se Modestina. Imagina você,
Vasco, que o velho Braga obriga o Noel a abandonar o seu Debussy, o seu
Ravel ou a leitura de seus livros para ir ouvir a Modestina cantar sambas e
marchinhas (S, p. 228).
A observação de Fernanda apresenta múltiplas facetas relacionadas com
aspectos musicais e também sociais. Se por um lado mostra a ascensão da música
popular através do rádio, num ciclo que iria produzir muitos novos artistas (cantoras
como Elis Regina surgiram dentro deste contexto, começando ainda criança como
cantora no rádio em Porto Alegre) nos anos que viriam, por outro demonstra o
abismo social existente entre as pessoas que tinham acesso à música “de Debussy
e Ravel” e as que tinham acesso apenas à programação mais imediata do rádio. A
inclinação de Noel, sua paisagem musical individual, era relacionada à música
erudita, com preferência pelos impressionistas. Mas a observação de Fernanda
guarda também um quê de preconceito pelo gosto musical da família da cunhada,
preconceito este relacionado com as raízes populares da música (“sambas e
marchinhas”) que não a deixa ver a qualidade da música produzida no rádio nesse
período.
Vale observar que muitas das experiências de Vasco em suas andanças pela
Espanha são como notas do romancista que colhe material para o futuro. Ao falar
dos homens de seu batalhão, Vasco observa que “conversam, fumam, bebem e
cantam juntos como bons camaradas que se encontram agora aqui para se
separarem mais adiante sem aviso prévio nem manifestações de sentimentalismo”, e
conclui logo adiante: “A paz para eles seria dolorosa e a vida se lhes tornaria
insuportável” (S, p. 59). Ora, não é este o comportamento errático de muitos
personagens de O tempo e o vento, na sua inconstância e inadaptabilidade para a
vida cotidiana durante os tempos de paz, sempre prontos para entrar em guerra?
Muitas conclusões de Vasco apontam o rumo que tomaria a obra de seu criador. Em
outro momento, quando convalescente de um ferimento em um hospital de
Barcelona, Vasco é inquirido por seus colegas de quarto do motivo de sua vinda
para lutar na Espanha. “Que é que está fazendo aqui? Não tinha na sua terra um
relógio para consertar... um pedaço de terra para lavrar?” Vasco parece ter sido
pego de surpresa. Dom Miguel, outro colega de Vasco conclui: “É bastante
estranhável que com tanta coisa a construir num país novo como o seu, você tenha
72
vindo para ajudar estes pobres loucos a destruir a velha Espanha” (S, p. 159).
Talvez Erico tenha feito a si mesmo essa mesma pergunta a respeito do rumo de
sua obra.
Saga tem um sentido de fechamento da obra inicial de Erico mais forte que
seu livro subseqüente, O resto é silêncio, que em certo sentido pode ser
considerado o primeiro romance de uma nova fase. Em Saga termina o ciclo dos
personagens iniciado com Clarissa, dando esse sentido de fechamento e apontando
rumos que levariam a O tempo e o vento. A volta de Vasco para Porto Alegre, o
reencontro de grande parte dos personagens de suas obras anteriores nos faz
pensar num grand finale para uma possível polifonia de todos os personagens de
sua obra desse ciclo inicial e também na volta de Erico ao sentido de sua obra,
primeiro o caráter urbano relacionado a Porto Alegre e depois a procura de suas
raízes rurais. Naturalmente O resto é silêncio sedimentaria essas questões deixando
o caminho livre para a escrita de O tempo e o vento.
1.8 O resto é silêncio
O resto é silêncio (RS) foi o sétimo romance escrito por Erico Verissimo.
Publicado em 1943, usualmente é considerado pela crítica como o livro que encerra
a primeira fase da obra do autor. Seu romance seguinte, que inicia a segunda fase
de sua obra, é O continente, primeiro volume da trilogia O tempo e o vento,
publicado em 1949. Sobre O resto é silêncio, Maria da Glória Bordini observou:
73
O resto é silêncio constitui o segundo tour-de-force do autor, após
Caminhos cruzados. Menos satírica e mais contundente, a análise da
sociedade burguesa ao tempo da Segunda Guerra Mundial em Porto Alegre
se encarna em personagens mais arredondadas, não-maniqueístas, que se
contrapõem à figura do escritor Santiago, desenhada com muito mais
nuanças que seus outros heróis. O pano de fundo da história apresenta
ruas crepusculares, esverdeadas, mansões e apartamentos iluminados, em
que vagam seres vazios, ególatras, como o desembargador Lustosa,
Aristides Barreiro e Norival Petra, praças noturnas com aposentados meio
perdidos de si mesmos, como Chicharro, hotéis com hóspedes em crise,
como o casal Bernardo e Marina, malocas sombrias, como a de Angelírio, o
Sete-Meis, em contraste com a casa de Santiago, um oásis de boa
convivência familiar, em que não faltam, entretanto, as rebeldias dos jovens
e as dúvidas do pai. O cenário enfatiza cores sombrias, púrpuras e roxos,
próprias da Sexta-Feira Santa em que Joana se suicida, provocando em
Santiago a necessidade de uma explicação que recupere sua crença no
potencial de regeneração da espécie humana (2003, p. 147).
Nessa obra o escritor utiliza a técnica do contraponto de forma plena pela
segunda vez em sua carreira, tendo sido a primeira em Caminhos cruzados. O
romance provocou reações indignadas de alguns setores da sociedade da época,
principalmente da Igreja Católica. Um artigo publicado na imprensa atacava o
escritor de forma aberta o que levou a um processo judicial do mesmo contra o
articulista. O escritor Oswald de Andrade, com peculiar ironia, escreveu a respeito do
caso:
Erico Veríssimo está processando, em Porto Alegre, um plumitivo, por ter
este pretendido “imputar-lhe vícios e defeitos que o expõem ao ódio e
desprezo público”. São os termos da queixa-crime com que o ilustre escritor
gaúcho não quer deixar impune a perversidade maledicente. Estou
convencido de que deve ser essa a atitude de quem escreve: reagir,
disputar o seu lugar ao sol e atacar sem hesitações a inveja que assedia
todo o êxito legítimo (...) O catequista de Porto Alegre queria que Erico
Veríssimo pintasse um Brasil azul, coberto de colibris, onde não houvesse
uma hipoteca, um agiota ou uma cascavel para quebrar a paradisíaca
harmonia do tecnicolor! Não vejo, neste como nos outros volumes de Erico
qualquer exagero tendencioso que possa de longe fazê-lo classificar-se
como escritor simplesmente amoral (2004, p. 63-64).
O resto é silêncio é considerado um dos romances mais importantes da
carreira do escritor, que prepara e antecipa a trilogia que está por vir, com uma
riqueza de nuances que ainda não havia se revelado plenamente nos seus livros
anteriores.
74
Sob o ponto de vista da música, o romance também é rico em diferentes
aspectos. Como a música é uma constante na obra do escritor, o que se em O
resto é silêncio é uma intensificação de diversos aspectos que haviam surgido
anteriormente, a tal ponto que, excetuando-se O tempo e o vento, o romance é, sem
dúvida, em termos de variedade, o mais rico musicalmente de toda a obra do
escritor. Parte dessa riqueza se deve à acumulação de aspectos musicais, à
sobreposição de personagens com uma rica paisagem musical individual, com uma
cidade (Porto Alegre) cuja paisagem musical se amplia através de concertos e do
desenvolvimento da sua vida cultural. A esses elementos por si ricos
musicalmente se soma a utilização da técnica do contraponto. Todos esses
aspectos superpostos produzem a imensa variedade musical existente no romance.
1.8.1 A paisagem sonora da cidade
Dificilmente podemos desconsiderar as semelhanças existentes entre as
paisagens sonoras de Caminhos cruzados e O resto é silêncio. Além das
semelhanças estruturais, com o inter-relacionamento de seus diferentes grupos de
personagens, ambos se passam na mesma cidade e oferecem uma visão crítica da
sociedade da época. O resto é silêncio é bem mais contundente, como observou
Maria da Glória Bordini (2003), mas essa contundência não se traduz de forma
direta na paisagem sonora do romance.
Se Caminhos cruzados apresenta uma cidade suja e barulhenta, onde os
ruídos suplantam a humanidade, em O resto é silêncio a cidade se apresenta de
forma menos ruidosa, ou antes, o ruído ainda está lá, para ser pinçado aqui e ali de
acordo com a situação, mas a descrição específica de cada momento oferece a
possibilidade de sons que também estão ali, nas entranhas da cidade, e que
possuem características muito variadas. Esse é apenas um dos aspectos sonoros
do romance que o tornam mais cheio de nuances. Assim, em meio à cidade e seus
ruídos, as diferentes horas do dia apresentam sonoridades diversas, desde os “sons
de buzinas distantes” até o de “raras vozes humanas” (RS, p. 6) ouvidas a partir do
parque Moinhos de Vento na tarde da Sexta-Feira da Paixão ao burburinho dos
passos e dos carros no centro da cidade.
75
Em O resto é silêncio a cidade é retratada de forma mais desenvolvida em
termos culturais do que em Caminhos cruzados, mas também esse aspecto está
intimamente ligado com a existência de personagens que possuem uma relação
muito próxima com a música, como o compositor Bernardo Rezende. De qualquer
forma, percebe-se uma estrutura cultural no que se refere à música (o teatro, a
orquestra, ciclos de concertos) que inexiste em Caminhos cruzados.
1.8.2 Paisagens musicais individuais
Junto a essa estrutura, interagindo em composição ou em contraposição a
ela, estão os personagens, e aqui também a variedade das paisagens musicais se
impõe. Desde logo, se evidencia a presença desse compositor, Bernardo Rezende,
com sua multiplicidade de aspectos relacionados à música. Bernardo guarda
diversas semelhanças com o compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, que Erico
conhecia e apreciava e com o qual teria um contato pessoal alguns anos depois da
publicação de O resto é silêncio, quando de sua segunda viagem aos Estados
Unidos, episódio que está relatado em A volta do gato preto, publicado em 1947.
Como Villa-Lobos, Bernardo é um compositor nacionalista. O jornal da sexta-feira
anuncia:
Amanhã, Sábado de Aleluia, teremos no velho Teatro o Pedro o último
concerto da série que o Centro Musical está realizando sob o patrocínio da
Secretaria da Educação, e que tem como regente o famoso maestro
brasileiro Bernardo Rezende, contratado no Rio de Janeiro especialmente
para esse fim. O programa de aman foi muito bem escolhido, incluindo
uma sinfonia de Beethoven e peças de compositores clássicos e modernos.
Teremos finalmente a oportunidade de ouvir em primeira audição, aqui, a
famosa “Grande Suíte Brasileira” de autoria do consagrado compositor
brasileiro Bernardo Rezende (RS, p. 51).
O título Grande Suíte Brasileira deixa claro qual é a orientação estética de
Rezende, título que se assemelha com vários deixados por Villa-Lobos
9
ligados à
9
Para maiores detalhes, ver Peppercorn (2000, p. 124).
76
estética nacionalista. O temperamento difícil, a fama de maior compositor brasileiro,
a bem-sucedida carreira de maestro, são pontos de contato entre Bernardo e Villa-
Lobos que se evidenciam na obra.
A presença de um personagem compositor e regente introduz na narrativa
uma vasta possibilidade de conexões musicais. Como vimos nas obras anteriores do
escritor, personagens como Noel e Amaro proporcionam comentários e reflexões a
respeito de música, obras e compositores. No entanto, o que se com Bernardo
Rezende é uma profusão de citações relacionadas a aspectos musicais que não
havia acontecido antes na obra do escritor. Músicos, compositores, formas musicais,
termos técnicos relacionados à música e obras aparecem em grande quantidade nos
capítulos em que Rezende é protagonista, e todo esse manancial de informações se
adensa no decorrer da obra para produzir o grand finale sinfônico do romance.
Outra característica resultante da presença de Bernardo na obra é relativa
aos títulos dos capítulos em que o compositor aparece, ligados a questões musicais.
O capítulo sete, onde o compositor aparece pela primeira vez, é intitulado
Appassionata, nome rico em ressonâncias musicais e também literárias. O título se
refere a uma das mais conhecidas e importantes sonatas para piano de Ludwig van
Beethoven
10
. O nome foi dado por um editor de Beethoven, mas se tornou popular
por descrever a apaixonada densidade dramática da obra e tem sido utilizado
correntemente desde então. foram comentadas na introdução deste estudo as
inter-influências existentes entre Beethoven e a literatura, que são múltiplas. Mas o
que nos interessa particularmente aqui são as influências imediatas a que Erico
estava exposto à época da escrita de O resto é silêncio. Não podemos deixar de
considerar Appassionata, novela do escritor inglês James Hilton, obra que foi
traduzida por Lino Vallandro e publicada no Brasil pela Editora Globo. Erico conhecia
e havia traduzido livros de Hilton, notavelmente Adeus, Mr. Chips, publicado em
1941
11
. Em sua primeira viagem aos Estados Unidos, também ocorrida em 1941,
James Hilton foi um dos autores que Erico quis conhecer pessoalmente, fato que é
narrado em seu primeiro livro de viagens, Gato preto em campo de neve. Além da
conexão com a sonata de Beethoven presente no livro de Hilton e que também
10
Sonata nº 23 em fá menor op. 57, de 1804-1805 (GROVE, 1994, p. 35).
11
Os livros de Hilton foram publicados na famosa Coleção Nobel da Editora Globo, entre 1933 e
1958. Segundo Sônia Amorim, “atribui-se a Henrique Bertaso a idéia de criar a Coleção Nobel, mas é
inegável a participação de Erico Verissimo, se não na idéia original, pelo menos na escolha de boa
77
existe em O resto é silêncio, Appassionata tem a música como eixo condutor da
narrativa, o que certamente despertou o interesse do escritor naquele momento.
Além disso, a novela de Hilton possui vários pontos de contato com um conto escrito
posteriormente por Erico, intitulado As mãos de meu filho.
O titulo do capítulo, além de possuir todas essas conotações musicais e
literárias, é apropriado para o momento vivido pelo casal Rezende. A perda da única
filha e o sentimento de luto vivido pelo casal, que encontra formas antagônicas de
lidar com a situação, mas principalmente o ponto de vista de Marina Rezende, que
não se conforma com a perda sofrida, justifica o título. O retrato de Bernardo
Rezende não é propriamente lisonjeiro:
Marina estava debruçada à sacada do Grande Hotel, olhando a praça (...)
Nunca vira tantas cores num céu... E como era lento o pôr do sol do Rio
Grande! Pensou em chamar o marido. Achou inútil. Ele não saberia apreciar
a beleza daquele instante. Não tinha atenção para coisas que não
dissessem respeito à sua carreira artística, à sua glória, ao seu nome.
Parecia viver obcecado pelas legendas que os jornais e revistas pudessem
escrever para suas fotografias. O maestro Rezende na intimidade. O
famoso compositor Bernardo Rezende sorrindo para a nossa objetiva. O
Stokowsky brasileiro assinando autógrafos para as suas fãs (RS, p. 43).
Parte da evolução do escritor, das descrições não-maniqueístas em
comparação com alguns personagens dos livros anteriores, provém do fato que de
forma geral os personagens com inclinações artísticas dos romances anteriores
(Amaro, Noel, Vasco) eram humanistas, com defeitos, sim, mas que geralmente se
contrapunham à falta de caráter de outros personagens (Aristides Barreiro, Norival
Petra, Leitão Leiria). Havia uma linha divisória bem definida entre os humanistas e
os homens que se preocupavam primordialmente com o capital e as aparências.
Bernardo Rezende, no entanto, é um artista que contém ambas as facetas. Não
deixa de ser um músico consciente de seu ofício, mas não se contrapõe aos afagos
da fama e da vaidade, se tornando por vezes insensível a aspectos humanos que
lhe são próximos. Essa crítica social relacionada não mais apenas com personagens
que são empresários ou capitalistas, mas sim ligada a personagens que têm certa
sensibilidade artística, aponta para novos rumos dentro da obra do escritor.
parte dos títulos” (1999, p. 90). Para maiores detalhes a respeito da participação do escritor nesse e
em outros empreendimentos editoriais recomendamos a leitura da obra referida.
78
Mas o é Bernardo Rezende o único personagem que mantém uma relação
ambígua com a música, também o desembargador Ximeno Lustosa apresenta um
rico envolvimento com questões musicais. Embora tenha uma relação formal com o
mundo da cultura, primordialmente preocupado com o status que esta pode lhe
conferir, Ximeno gosta de música. A primeira manifestação desse gosto é sua
paixão pela ópera, que revela um pouco desse superficialismo nas relações e a
predileção pelo que é fácil, palatável:
A música tinha-lhe o poder de alisar-lhe os nervos, de fazê-lo esquecer
todos os dissabores da vida. Bem, mas precisava ser música de ópera,
principalmente música de ópera. Verdi era o seu deus. Que falassem os
pedantes que viessem com seus Beethovens, Debussys, Stravinskys e
quejandos: Não havia nada como a doce melodia italiana, doutor, fácil,
cantante, cristalina. Ele não podia dormir sem sua dose de ópera... uma ária
que fosse, um prelúdio, um intermezzo (RS, p.13).
Ximeno possui preocupações com higiene e saúde que beiram a hipocondria,
que se acentuam com a chegada da Semana Santa, o pensamento de sua finitude
agravado pela visão da morte de Joana Karewska. Em certo momento hipocondria e
ópera confluem:
Mas, e este gosto azedo que não me sai da boca? (...) apanhou um copo
com água e pingou dentro algumas gotas de dentrifício (...) Encheu a boca
com o líquido leitoso, ergueu a cabeça e, as mãos na cintura, começou a
gargarejar musicalmente. Gorjeio... Lucia de Lamermoor... Havia um curioso
fenômeno no mundo moderno: os grandes tenores estavam se acabando.
Onde um Caruso? Onde um Tita Ruffo? Onde uma Patti? Que se estaria
passando com o bel canto? Houve um momento de abstração e sonho em
que a mente do desembargador se povoou de teatros e prima-donas. O
líquido então lhe invadiu traiçoeiramente o goto. O homem teve um
estremecimento e, ansiado, numa súbita náusea, esguichou para o chão a
água que tinha na boca (RS, p. 11).
A segunda manifestação da admiração que o desembargador nutre pela
música é sua paixão pelo bandolim. Cultiva o hábito como um hobby excêntrico e
tenta defender esse hábito perante si mesmo e a sociedade:
79
Tomou do bandolim que estava em cima duma poltrona, feriu-lhe as cordas
com certa bravura. Aprendera a tocar aquele instrumento depois dos
quarenta anos, com um amanuense serenateiro de São Gabriel. O bandolim
era como um companheiro da solidão. O Dr. Lustosa não achava que o
instrumento lhe determinasse uma quebra de dignidade pessoal ou
profissional. Grande ledor de biografias, sabia que quase todos os grandes
vultos da história haviam tido o seu fraco, o seu passatempo, o seu violon
d’Ingres. Pois no caso dele o violon era o bandolim (...) O bandolim era uma
pitada de condimento picante na sua vida austera, o equivalente duma
trêfega florinha amarela num fraque negro e grave. E por tocar bandolim
(fazia empenho em que todos soubessem disso) ele se sentia um tanto ou
quanto esportivo e mundano (RS, p. 12).
Mas esse mundanismo não pode ferir a imagem de homem austero que o
desembargador cultiva, e aí se evidencia o formalismo de sua relação com a música.
Sempre preso a convenções sociais, as relações do desembargador com a arte são
ambíguas, não contêm a paixão desinteressada de outros personagens da obra de
Erico como Noel ou Amaro:
Em assuntos de arte e literatura, guiava-se sempre pela estética oficial, pelo
que ele julgava ser o “veredito dos séculos”. Com os mestres, os clássicos,
os verdadeiros grandes espíritos, aprendera a distinguir o eterno do
efêmero, a separar o joio do trigo (...) As relações, por exemplo, valiam
como platéia: gente a quem podemos exibir conhecimentos, dar lições,
tocar bandolim, mostrar a nossa coleção de moedas... De resto, se não
existissem os amigos, os estranhos de que lhe serviria ter aquele anel
custoso, aquela riquíssima discoteca quase toda composta de sica fina?
(RS, p. 8-10).
A ambigüidade e o formalismo nas relações com a música perpassam o
romance, presentes em diferentes personagens. Na família Barreiro, essas questões
chegam ao paroxismo:
Os Barreiros falavam francês durante o almoço e inglês à hora do jantar. No
decorrer das refeições Verônica costumava fazer preleções sobre a vida do
Barão, enquanto um criado com libré servia a mesa, em torno da qual se
guardava um silêncio cerimonioso e grave. Depois do jantar, Aurora, a filha
do casal, ia para o piano tocar clássicos; e quando terminava, os outros
membros da família aplaudiam, como se estivessem no teatro (RS, p. 33).
80
Aqui, o costume tipicamente brasileiro das meninas estudarem piano,
elemento fundamental da educação feminina nas classes alta e média no século
XIX, se depara com um formalismo vazio. O que sobra desse uso é um mero desejo
de ostentar, numa época em que novas formas de ouvir música, como o gramofone
e o rádio, já existiam.
Curiosamente, essa relação ambígua existente com a música, não havia sido
explorada anteriormente pelo escritor. A tomada de consciência sobre o
conhecimento das artes e sua utilização como mbolo de status social é uma das
características de O resto é silêncio.
1.8.3 Tônio Santiago
Fugindo dessa relação ambígua, num grau de proximidade com a música que
o torna co-irmão de Noel ou Amaro, está o escritor Tônio Santiago. um nítido
contraste entre Tônio e sua família e outros personagens de O resto é silêncio.
Maria da Glória Bordini (2003, p. 147) observou esse contraste entre “ruas
crepusculares, esverdeadas, mansões e apartamentos iluminados, em que vagam
seres vazios, ególatras, como o desembargador Lustosa, Aristides Barreiro e Norival
Petra” e “a casa de Santiago, um oásis de boa convivência familiar”.
Essa “boa convivência familiar” abarca também a relação com a música, que
é sincera, saudável e distanciada dos interesses sociais escusos dos outros
personagens. Em conversa com seus filhos, ao responder a um questionário que lhe
apresentam, Tônio define seu ideário a respeito da arte:
Seja-me permitido meter a colher torta nessa panela tão mexida, para dizer:
Arte pelo amor da vida. Pinta-se, compõe-se música, escreve-se romance
ou poesia, faz-se escultura, enfim, praticam-se todas as formas de arte,
parece-me, num desejo de imitar a vida, corrigi-la, compreendê-la, ampliá-la
ou fruí-la de maneira mais sensualmente larga. E o devemos esquecer
que nisso, como em tudo mais, sempre a presença do mistério (RS, p.
64).
81
A relão com a arte se manifesta de maneira cotidiana, no dia-a-dia dos
Santiagos. Não apenas Tônio gosta de música, mas também o restante da família.
De todos, sua filha Rita é a que mais manifesta esse gosto, além de ter um motivo
especial para tanto: a paixão juvenil pelo maestro Bernardo Rezende, que ocorre
através da música:
Tudo começou naquele primeiro concerto. Ela bem que não queria ir... mas
todos iam. E quando ele ergueu os braços e a música rompeu, como numa
mágica, ela sentiu que qualquer coisa lhe comprimia a garganta, teve a
impressão de que ia erguer-se da cadeira e sair voando pelo teatro. No fim,
quando, sob palmas, ele se curvara, agradecendo, os cabelos branqueando
nas fontes, o ar calmo, as lindas mãos caídas, ela descobrira que estava
apaixonada havia muito tempo, mesmo sem o conhecer (RS, p. 69).
Embora seja um amor platônico de Rita, a música está presente, permeando
todos os passos desse sentimento: “Depois, os outros concertos tinham
aumentado aquele amor... aquele amor sem esperança” (RS, p. 69). Longe de ser
um detalhe insignificante, este fato se reveste de importância, pois a conquista
através da música apareceria de diferentes formas na obra futura do escritor,
principalmente em O tempo e o vento.
O termômetro musical da família é naturalmente Tônio Santiago, que o
perde oportunidade de se reunir em sua “Torre” com a família para ouvir música e
ler, num ambiente que se aproxima do onírico:
Tônio Santiago, entregue a uma semidormência preguiçosa, seguia, de
olhos cerrados, o desenho duma melodia, através duma região misteriosa
povoada de faces algumas da vida real, muitas de seus próprios
romances, outras nunca vistas. De quando em quando entreabria os olhos
para ver que novas cores tomava o horizonte, à medida que o sol se
aproximava dele (RS, p. 54).
Até mesmo a casa dos Santiagos é repleta de sonoridades, numa balbúrdia
amena e colorida:
82
O que queria mesmo era ficar onde estava. Parado, pensando, recordando,
imaginando, ou ouvindo numa sonolência abandonada os ruídos da casa...
Passadas no andar superior, Rita martelando no piano. Nora, cantarolando
no quarto, Lívia dando ordens na cozinha, o rádio aberto na sala de estar, e
de vez em quando, algum vendedor batendo palmas lá fora... vozes de
meninos... compra caqui, freguesa? ... ovos frescos... vizinha, não tem uma
roupa véia pra me dá? (RS, p. 60-61).
A variedade sonora da casa nos faz lembrar da pensão de Tia Zina, em
Clarissa. A felicidade reinante na casa é compartilhada por todos, e o ambiente
musical se traduz em personalidades ricas também no aspecto sonoro. Cada
morador tem suas preferências: Tônio prefere o velho Bach, Gil gosta de
Tchaikowsky (RS, p. 122), Rita toca piano, enquanto Nora e Lívia compartilham das
reuniões dando equilíbrio e participando dos gostos de todos.
1.8.4 O Sete
Entre os personagens do romance, também os desfavorecidos, que
passam dificuldades de toda ordem, embora não deixem de aproveitar os pequenos
prazeres da vida, quando eles se apresentam. Entre eles, se destaca o Sete, menino
jornaleiro que, em meio a todas as misérias de seu cotidiano, encontra tempo para o
sonho e alimenta o gosto pela música.
É através de Sete que aspectos da música popular, particularmente a trova,
aparecem na narrativa. Longe da sofisticação de Tônio, de Bernardo ou mesmo de
Ximeno Lustosa, o menino sonha com uma música de caráter muito mais simples e
direto:
83
Ele podia até fazer um versinho pra moça... Gostava de trovar. Trovava com
os outros moleques e sempre saía ganhando. Muitos homens pagavam pra
ele fazer trovas. Fizera umas quadras pra enchente. Outras pro crime da
Azenha. Agora ia fazer pra moça que se tinha matado. Pensou...
experimentou... e depois, cobrindo a cabeça, começou a cantar num ritmo
de trova:
A mocinha se atirou
Lá de cima do edifício
Veio vindo e caiu
Quase em cima do Maurício.
Mas ele não se chamava Maurício. Porcaria! Mas fazia de conta... Sorriu,
arreganhando os dentes de filhote de lobo. Um dia ainda havia de cantar no
rádio. Um moço tinha prometido. Ia ser lindo (RS, p. 154-155).
A preferência musical de Sete se reveste de uma multiplicidade de aspectos
sociais. Os temas são escolhidos de acordo com as novidades, quase que numa
narrativa jornalística, fato que se coaduna com o seu ofício e o meio em que vive. E
a demonstração de seu talento se evidencia na tentativa de resolver os problemas
formais de seus versos. Também o sonho de transcender sua condição se
apresenta, na possibilidade de cantar no rádio.
A preocupação em resolver a quadrinha sobre a suicida evidencia ainda
outros aspectos:
Voltou às quadras. Amanhã podia pedir ao Romário pra escrever num
papel. Fechou os olhos , cantarolando:
Muita gente foi correndo
Foi oiá a desgraçada,
Tava morta de ôio aberto
Com as perna arrebentada.
Ficou por algum tempo imitando um acompanhamento de gaita, numa
música sincopada, tremida como um choro. Do banhado, os sapos o
acompanhavam (RS, p. 155).
O risível da tentativa não esconde a realidade, antes a acentua. O aspecto
social se destaca, demarcando o abandono da infância no Brasil à época (fato que
só tem aumentado desde então). O analfabetismo e a fome contrastam com a
possibilidade que cada menino e menina guardam, tivessem eles oportunidades, de
transcender e desenvolver talentos de toda sorte. O decorrer da narrativa demonstra
que o Sete, como tantas crianças que estão na sua situação, muitas vezes
encontram apenas um beco sem saída no seu caminho.
84
1.8.5 Bernardo & Marina: outros aspectos musicais
A existência de um maestro e compositor no romance dá a ele uma dimensão
musical bastante ampla, e Erico explora essa possibilidade ao extremo. Todos os
capítulos que envolvem Bernardo e sua esposa contêm conotações musicais.
A relação de ambos se equilibra (e desequilibra) na filha morta,
Dicinha, que permeia os pensamentos de ambos. Marina, por não esquecê-la,
Bernardo, pela fuga. Enquanto Bernardo mergulha no trabalho, que passa a ser a
única razão de sua existência, Marina afunda na melancolia, nas lembranças, na
esperança de uma saída mágica daquela situação. A filha, viva, era esperança para
ambos:
Bernardo (...) via em Dicinha uma futura pianista famosa. Começara a dar-
lhe lições, traçara para ela planos fantásticos, vaticinava-lhe uma carreira
fabulosa e gostava de dizer que um dia ainda havia de dirigir uma grande
orquestra na interpretação do Concerto 1 de Tchaikowsky, com Dicinha
ao piano. Iludia-se. Via na menina uma vocação que ela na realidade não
tinha. Era uma criaturinha sensível, sim, delicada, capaz de apreciar a
música, mas sem nenhuma habilidade interpretativa especial. Revelava-se
apenas uma aluna medíocre como cem outras. Isso, no entanto, não
impedia que ela se comovesse até as lágrimas quando ouvia Mozart ou
Beethoven (RS, p. 47).
Até mesmo o nome da menina, ocultado pelo apelido, possui ressonâncias
musicais: Eurídice. O nome vem da lenda de Orfeu e Eurídice, tema de muitas obras
musicais, principalmente óperas, notadamente Orfeu (1607) de Monteverdi e Orfeu
et Euridice, de C.W. Glück (1762), além de obras de Liszt, Paer, Benda, Offenbach,
Milhaud, Malipiero, Casella e Stravinsky, entre outros. O nome da menina é
totalmente imbricado à história da lenda, que Euridíce morre e Orfeu tenta
recuperá-la fazendo uma viagem até o Hades, o que ele faz cantando de forma a
comover Caronte, o barqueiro que guarda o rio Estige, no outro lado do qual se
encontra o Inferno dos gregos. De certa forma, o nome dado à filha contém o seu
destino. Também as tentativas de Marina em recuperar a filha através de
lembranças, em passeios, no seu dia-a-dia, assim como o desconsolo do pai, ligam-
na à lenda.
85
Fica clara a sensibilidade da menina para a música, não obstante as dúvidas
quanto ao seu talento como musicista. Mas a expectativa sobre as possibilidades
futuras tornam ainda maior a falta que ela faz ao maestro:
Não era apenas o pai que perdia a filha. Era o regente da orquestra que via
morrer a solista de seus sonhos. Era o mundo que via desaparecer para
sempre uma futura grande virtuose do piano. E algumas semanas depois,
num de seus concertos, Bernardo Rezende regia com lágrimas nos olhos, e
em memória da pequenina morta, a “Pavane Pour Une Infante Defunte”, de
Ravel (RS, p. 47).
Desde o início do texto se estabelece uma relação muito próxima com
algumas obras, notadamente essa obra de Ravel. A obra, composta inicialmente
como uma peça para piano, em 1899, foi mais tarde orquestrada pelo compositor,
sendo essa a sua forma mais conhecida, e que foi tocada pela primeira vez em Paris
em 1911. Tem como inspiração uma princesa morta ainda criança, e esse mote a
imbrica com a temática da morte de Dicinha, conectando a obra de Ravel a O resto
é silêncio. A Pavane é uma das obras que são executadas no concerto da noite no
Teatro São Pedro. Uma notícia de jornal anuncia o programa:
Amanhã, Sábado de Aleluia, teremos no velho Teatro o Pedro o último
concerto da série que o Centro Musical está realizando sob o patrocínio da
Secretaria de Educação, e que tem como regente o famoso maestro
brasileiro Bernardo Rezende, contratado no Rio de Janeiro especialmente
para esse fim. O programa de aman foi muito bem escolhido, incluindo
uma sinfonia de Beethoven e peças de compositores clássicos e modernos.
Teremos finalmente a oportunidade de ouvir em primeira audição, aqui, a
famosa “Grande Suíte Brasileira” de autoria do consagrado compositor
Bernardo Rezende (RS, p. 51).
A peça de Bernardo uma idéia do plano estético do compositor que ele é,
enquanto que a sinfonia de Beethoven é um elemento central da parte derradeira do
romance, quando Tônio Santiago imagina a possibilidade da escrita de uma obra
futura que possa conter todos os elementos de uma longa saga baseada na história
do Rio Grande do Sul, idéia seminal realizada posteriormente em O tempo e o vento.
86
Também os outros capítulos relacionados com Bernardo e Marina contêm
títulos musicais: Noturno, Minuete, Fuga, Scherzo. Todos apresentam uma situação
dupla, são títulos com nomes de formas musicais, mas que também comentam e
traduzem o estado de espírito dos personagens num momento específico.
As múltiplas referências musicais de O resto é silêncio, com sua diversidade
de personagens e situações, abrem caminho para a utilização da música em O
tempo e o vento, num momento em que o amadurecimento de questões formais
havia colocado à disposição do escritor uma gama ampla de recursos técnicos.
2 A MÚSICA EM O TEMPO E O VENTO
A trilogia O tempo e o vento representa o cume da criação literária em Erico
Veríssimo, e todas as obras da primeira fase podem ser vistas como um exercício do
escritor em busca da maturidade artística necessária para a escrita de seu mais
importante romance. Maria da Glória Bordini e Regina Zilbermann destacam o
significativo episódio narrado pelo próprio Erico sobre o nascimento de Saga:
Achava-me eu (...) com firme tenção de começar a escrever um massudo
romance cíclico que teria o nome de Caravana. Seria um trabalho
repousado, lento e denso a abranger duzentos anos da vida do Rio Grande.
Começaria numa missão jesuítica em 1740 e terminaria em 1940.
Levei a máquina de escrever portátil para a beira de um lago artificial,
debaixo de copados pinheiros, decidido a escrever a primeira linha do
romance-rio. (...) Silêncio. Tudo tranqüilo. Tudo, menos eu. Não sei que
secreta intuição me dizia que não tinha chegado a hora de escrever
Caravana (2004, p. 24).
O escritor vinha, portanto, pensando no romance desde os anos trinta, e
amadureceu o projeto até sentir o momento adequado para sua elaboração. O
momento adequado só advém depois de 1945, depois da escrita de Saga e O resto
é silêncio, mas também depois da queda de Getúlio Vargas, fato que é significativo
no desfecho da trilogia e que faz com que Erico estenda a narrativa dos planejados
1940 até o ano de 1945. O primeiro volume da trilogia, O continente, foi escrito entre
1947 e 1948, tendo sido publicado em 1949.
Se o final de O resto é silêncio anuncia a trilogia (CANDIDO, 1972), muitos
elementos constantes nos romances anteriores estarão novamente presentes em O
tempo e o vento. A trilogia se constitui, dessa forma, num estuário que reúne e
transfigura em algo novo muitos elementos anteriores, sejam esses elementos
temáticos ou estruturais. Desta forma, também o espectro musical contém aspectos
inteiramente novos, assim como repete elementos das obras anteriores, transfigura-
os e transcende-os de várias maneiras.
88
2.1 O continente
Ao lidar com um romance de espectro temporal tão amplo como O tempo e o
vento, Erico se depara com uma abrangência de aspectos musicais que transcende
em muito o visitado nos romances anteriores. Mais que isso, o passado musical do
Rio Grande do Sul apresenta muitas lacunas históricas, e o escritor teria de refazer
intuitivamente muitas conexões, propondo soluções ficcionais para essas lacunas.
Por todas estas razões, a questão musical no romance é extremamente bem
resolvida, buscando uma variedade ampla de possibilidades sonoras dentro das
escassas fontes existentes.
O romance apresenta várias subdivisões que dão a dimensão contrapontística
da narrativa. Essa dimensão é multitemporal, que passado e presente convivem
no livro num constante diálogo. O contraponto em O continente (C) é de natureza
complexa e soma todas as experiências anteriores utilizadas pelo escritor. O
romance possui várias subdivisões de capítulos, entremeadas pela ação no sobrado,
onde a família Terra-Cambará se encontra sitiada, durante a revolução de 1893 (o
ano da ação é 1895). Essa subdivisão do episódio entre as várias partes do livro
funciona como uma moldura para o romance.
Neste primeiro momento, para melhor entendimento da música no romance,
desmembraremos a análise não obedecendo à ordem em que se apresenta no livro,
intercalada de idas e vindas, mas na ordem cronológica.
2.1.1 A fonte
O início do romance, cronologicamente falando, se com a narrativa de A
fonte, que narra, a partir do ano de 1745, o início do desmantelamento das missões
jesuíticas. A paisagem sonora de A fonte apresenta um espectro amplo que
certamente exigiu um esforço de pesquisa por parte de Erico para conseguir fechar
um todo coerente também no que diz respeito à parte musical do romance.
Esse espectro envolve os padres jesuítas, particularmente Pe. Alonzo,
espanhol de nascimento, os índios e toda a herança musical européia do período.
89
Temos, inicialmente, a música espanhola, da qual Pe. Alonzo certamente tem
influências. Ao recordar sua vida, Pe. Alonzo lembra das canções de ninar que sua
mãe cantava quando criança. Pe. Alonzo aparece como um humanista de formação
católica e que tem grande sensibilidade para a música assim como para a arte em
geral. Em A fonte, no entanto, a porção mais significativa de elementos musicais
está na música que era feita nas missões e no aspecto da sensibilidade do indígena
para a música. Este aspecto aparece em destaque na obra de muitos historiadores
(BRUXEL, 1978; PREISS, 1988) assim como a existência de compositores de
formação musical superior, como o Ir. Domenico Zipoli, que publicava suas obras na
Europa mesmo morando nas distantes missões jesuíticas (PREISS, 1988). Esse
mesmo pesquisador destaca que:
Os guaranis (...) desde os primeiros contatos, mostraram muita
sensibilidade no que tange à música, e esse foi o principal fator através do
qual os missionários, traduzindo a Doutrina Cristã em cânticos no idioma
nativo, lograram atraí-los (PREISS, 1988, p. 20).
Desta forma, a música adquire um caráter fundamental na vida das missões.
Erico se esmera na descrição do instrumental existente nas Reduções e utiliza todos
esses aspectos na narrativa. A listagem de bens que seriam necessários e a relação
econômica, que inclui a necessidade de instrumentos musicais, são esmiuçados:
(...) naquele momento precisavam exportar mais erva-mate e algodão para
Buenos Aires, pois quanto mais coisas exportassem mais dinheiro teriam,
não só para pagar os dízimos ao rei de Espanha, como também para
comprar remédios, instrumentos e – oh! Sim, mais coisas belas para a igreja
(C1, p. 29, grifo nosso).
Nenhum aspecto da viva e rica existência musical das missões deixa de ser
salientado por Erico. A vida no local estava embebida de música, tanto dentro da
igreja como fora, em procissões, em desfiles, em comemorações:
90
À frente iam os tocadores de flautas, tiorbas, clarins e tambores; seguiam-
se os homens que carregavam nos ombros a imagem do patrono da
lavoura; depois vinham os outros índios, cujas vozes, que entoavam um
canto sacro, subiam no ar luminoso (C1, p. 29).
Muitos destes instrumentos são característicos do período. Em 1745, na
Europa, vive-se os anos finais do que mais tarde se convencionou chamar de
período Barroco
12
. Quando inicia o período Clássico, a partir de meados de 1750,
muitos instrumentos utilizados no período anterior o abandonados em prol de
instrumentos que se julga mais apropriados ao novo estilo. Tal é o caso da tiorba,
instrumento típico do Barroco, um grande alaúde utilizado principalmente para
acompanhamento de melodias, e que deixou de ser utilizado no período Clássico.
Também nesse aspecto, os elementos estão perfeitamente coadunados, os
instrumentos citados no decorrer da narrativa estão de acordo com sua época assim
como os estilos musicais citados.
Pe. Alonzo, entre outras atividades, é professor de música. E é durante suas
aulas que transparecem as mais significativas reflexões a respeito da música feita
naquele local:
Entardecia e Pe. Alonzo terminava sua aula de música. Um dos estudantes
tocara ao órgão, havia pouco, um prelúdio. Depois um grupo de
instrumentos de arco executara uma sarabanda, e agora o índio Rafael ali
estava a tocar na flauta a pavana dum compositor italiano. Junto da janela,
Alonzo escutava. Havia no rosto do índio uma inefável expressão de tristeza
mas uma tristeza de imagem asiática lustrosa, fixa, oblíqua. Parado no
meio da sala, de sobrancelhas erguidas, testa pregueada, olhos fechados,
ele soprava na flauta, como que esquecido do mundo.
E a voz queixosa do instrumento parecia contar uma história. A melodia ora
se desenrolava no ar como uma fita ondulante – e Alonzo tinha a impressão
de ver a linha sonora escapar-se pela janela, avançar campo em fora,
acompanhando docemente a curva das coxilhas – ora parecia um lento
arabesco noturno. E aquela pavana, composta por um remoto compositor
europeu e tocada por aquele índio missioneiro, despertava em Alonzo
recordações também remotas. Lembrou-se de sua casa em Pamplona (...)
A melodia serpenteava sobre as coxilhas. Que pensamentos estariam
passando pela mente de Rafael? desejou saber Alonzo. Aqueles índios
amavam a música. E com que talento a interpretavam! Que ouvido
privilegiado tinham! Havia na redução excelentes organistas, harpistas,
corneteiros e cravistas. Tocavam composições difíceis, e a trechos de
ópera italiana. Os instrumentos em sua maioria eram fabricados na própria
redução pelos próprios índios, dirigidos pelos padres (C1, p. 33-34).
12
Para a questão do surgimento e características do período Barroco ver Grout (1993, v.1, p. 351) e
Candé (2001, v.1, p. 420).
91
Essa descrição da música produzida nas missões encontra eco nos
documentos da época. Preiss (1988, p. 21) destaca que “em 1637 o Pe. Ripario
escreve ao Provincial de Milão: Muitos (indígenas) sabem muito bem compor
música. Podem rivalizar com famosos compositores da Europa’. Usa-se uma grande
variedade de instrumentos, sendo o mestre-capela um guarani, e não um jesuíta”. A
variedade de instrumentos encontrados nas missões, reproduzida na narrativa de A
fonte, também aparece freqüentemente nos documentos referentes àquela época:
Cita-se como instrumentos o órgão, as violas da gamba em seus diversos
tamanhos, os violinos, bombardas, chirimias, dulcianas, flautas, harpas,
guitarras e vihuelas (antepassado do violão), alaúdes, trompetes, trompas e
tambores. Todos os instrumentos, de fabricação muito cuidada, saíam das
oficinas guaranis. nos primeiros tempos, o menor dos povos tinha quatro
organistas habilitados e músicos que se destacavam por sua excelência
como alaudistas, flautistas, cravistas, trompetistas etc. (PREISS, 1988, p.
27).
Evidentemente a construção histórica desta situação se deu lentamente, daí a
singularidade da construção jesuítica nas missões, percebida por Erico:
Padres vindos de além-mar ou de outras missões pregadores,
cartógrafos, músicos, naturalistas, astrônomos, matemáticos, arquitetos
chegavam, ficavam por algum tempo e depois se iam, deixando uma marca
de sua passagem: um mapa, um relógio, um órgão, uma imagem, um livro,
uma idéia (C1, p. 37, grifo nosso).
A riqueza e a variedade de aspectos sonoros encontrados na narrativa são,
portanto, decorrência das condições históricas, ou seja, a história das missões
jesuíticas na América do Sul é, per se, repleta de elementos musicais, dando vazão
a uma produção artística posterior que possa reproduzir esta rica paisagem sonora.
Além da riqueza da música instrumental encontrada nas missões, também a
música vocal ocorre em abundância na narrativa. Cânticos eram entoados em
diversas situações, na igreja durante as missas, em procissões, em festividades. No
meio onde a natureza ainda se sobrepõe ao homem, uma arte de grande qualidade
é produzida:
92
Quando a procissão passava ao som de cânticos, as aves guinchavam e
sacudiam as asas, os animais urravam, e do chão se erguia o perfume de
manjericão silvestre esmagado (...) A catedral reverberava à luz da manhã,
como uma fortaleza impávida cujas paredes fossem de ferro em brasa. O ar
enchia-se de sinos e das vozes de todas as criaturas de Deus aves, feras
e homens (C1, p. 39).
A paisagem sonora de A fonte inclui, portanto, todo o meio circundante, e a
união da música européia à tendência artística dos índios fundamenta toda a
narrativa, tendência essa que constitui um dos episódios marcantes da história da
conquista do Continente de São Pedro.
2.1.1.1 A música como elemento de conquista
em O continente um processo cíclico onde a música desempenha um
papel fundamental: ela é o elemento central no processo de conquista que se
durante toda a narrativa. A história favorece a questão musical, mais
especificamente o fato histórico de que os jesuítas conquistaram os índios não a
partir da guerra ou da imposição física, mas através da música. Esse elemento
primordial se repete ciclicamente no romance: Pedro conquista Ana com música;
Capitão Rodrigo conquista Bibiana com seu violão a tiracolo; Luzia enfeitiça Bolívar
com sua harpa; Fandango, com seu jeito alegre e nome de ressonâncias musicais, é
uma referência para o jovem Licurgo, e também um contraponto fundamental para a
rigidez de sua avó Bibiana. O papel desempenhado pela música neste contexto é,
portanto, de suma importância.
O processo histórico pelo qual os jesuítas conquistam os índios a partir da
música é fartamente documentado e explica o desenvolvimento posterior das
missões e sua pujança artística e econômica.
Antes da chegada dos jesuítas, se percebe nos índios habitantes do Brasil
uma tendência acentuada para a música, a dança e outras artes. Segundo Preiss:
93
(...) provavelmente cada tribo tinha seus próprios cantos para os rituais mais
diversos, seus instrumentos musicais e suas danças, como ainda hoje
acontece com as tribos sobreviventes do interior do Brasil (...) a música
instrumental e os cânticos representam um elo com as forças mágicas da
natureza, sendo por isso, o suporte da sociedade tribal. Através dos sons
eles alcançam os lugares mitológicos onde está a fonte da sabedoria e o
segredo de viver em harmonia com a natureza (1988, p. 19, grifo nosso).
O fato de a música ser o suporte da vida tribal é significativo, e a percepção
que desse fato tiveram os jesuítas foi fundamental no desenrolar do processo de
conquista dos indígenas e na formação das missões. A narrativa de A fonte inicia
quando esse processo está consolidado, mas sentem-se os reflexos profundos da
importância musical na vida das missões. Ao ouvir os indígenas tocar ou cantar, Pe.
Alonzo observa:
A música havia sido e ainda era para os missionários um dos meios mais
efetivos de catequização. Tocando seus instrumentos e cantando, eles se
haviam aproximado pela primeira vez dos guaranis, desarmando-os
espiritual e fisicamente e conquistando-lhes a confiança e a simpatia. No
princípio a música fora a linguagem por meio da qual padres e índios se
entendiam. E não teria sido porventura a música a língua do Paraíso - o
primeiro idioma da humanidade? Por meio da música os jesuítas induziam
os índios ao estudo, à oração e ao trabalho. Era ao som de música e
cânticos que eles iam para a lavoura, aravam a terra, plantavam e colhiam e
era sempre abaixo de música que eles voltavam para a redução ao
anoitecer. A música era por assim dizer o veículo que levava aquelas almas
a Cristo (C1, p. 34, grifo nosso).
A conquista do elemento indígena se dá, portanto, através da música e
também a questão étnica aparece refletida no texto. Bruxel (1978) observa que o
fato dos índios conquistados serem guaranis é significativo, pois os mesmos
apresentavam uma disposição diferente de outras tribos com relação a diversos
aspectos. Os guaranis eram semi-sedentários, ao contrário da maioria das tribos não
guaranis, que eram nômades, e “além de caçadores e meladores, eram agrícolas,
com alguma plantação de milho, mandioca, batata-doce, abóbora, amendoim e
algodão”. E complementa, em outra passagem:
94
Muito mais que o aspecto físico [aos jesuítas interessavam] suas
qualidades psíquicas e sociais, que tanto favoreceram sua vida em
Redução, e influíram em sua conversão e civilização cristã: o
interesse pela agricultura, o sentido comunitário, a liderança
inconteste do cacique, a propensão para a arte, o dom da imitação
(BRUXEL, 1978, p. 17).
Ainda segundo o mesmo autor “o dom da imitação permitiu aos índios chegar
a um alto grau de perfeição em trabalhos técnicos e artísticos” (BRUXEL, 1978, p.
17). A narrativa de A fonte retrata esses aspectos, nos quais a música ocupa um
papel central. Quando o menino Pedro nasce na redução em que vive Pe. Alonzo, o
mesmo processo musical é repetido. O menino cresce acompanhado pela educação
jesuítica e manifesta os mesmos dons musicais de muitos outros guaranis. Esse
talento para a música sedimenta o processo da educação de Pedro, educação esta
que terá um papel primordial na sua relação com Ana Terra.
2.1.2 Ana Terra
Ao compararmos a paisagem sonora de A fonte com a de Ana Terra, nos
deparamos com um brutal empobrecimento dos aspectos musicais.
Cronologicamente, a narrativa ocorre em torno do ano de 1777, quando o processo
de desmantelamento das missões já ia avançado.
A vida de Ana e sua família, perdidos nos fundos de um campo, trabalhando
de sol a sol, produz um profundo contraste com a festiva e criativa existência de
quem vivia nas missões jesuíticas. Também nas missões se trabalhava e se
produzia, mas este trabalho era acompanhado de cânticos, de canções de trabalho,
enfim, não se separava a criatividade dos aspectos mais terra-a-terra da existência.
O oposto se no rancho onde Ana vive com a família. Por ali nunca se
canta, não se ouve qualquer música e há uma falta generalizada de qualquer
elemento criativo. Ana sente falta de uma existência diferente, mas a mão de ferro
de seu pai estatiza todas as intenções: sob seu rígido comando a vida se apresenta
monocromática e apenas os sons da natureza e do trabalho se fazem ouvir naquelas
paragens. A falta que Ana sente da arte se traduz no desejo que sentirá por Pedro
95
Missioneiro, quando o índio criado nas missões desde criança e aluno de música de
Pe. Alonzo vem parar na fazenda em que Ana vive.
2.1.2.1 Pedro e Ana: o canto inverso da sereia
A história de Ana Terra, que acontece na segunda metade do século XVIII,
apresenta uma continuidade no que tange à questão musical relacionada à
conquista: o ciclo se repete, desta vez não com jesuítas e indígenas, mas com
Pedro Missioneiro e Ana Terra. Deste modo, deixa o âmbito coletivo anterior,
substituindo-o pelo âmbito individual. Sai de cena a conquista coletiva dos clérigos
sobre os guaranis, e entra em cena o ciclo da miscigenação, ocorrida através da
aproximação amorosa de indivíduos de etnias diferentes, que precisam de um
mediador, um elemento de aproximação. Para Ana Terra esse elemento é a música.
Nas lonjuras de um fundo de campo, Ana vive com o pai, a mãe e os dois
irmãos, Antonio e Horácio. A vida na fazenda é dura, envolvida na faina diária: os
homens no campo, as mulheres na lida doméstica. Nesta áspera rotina destaca-se a
severidade não apenas da vida, mas também das pessoas que rodeiam Ana: o pai,
Maneco Terra, homem sério, fechado, ignorante, avesso a qualquer forma de arte ou
mesmo de lazer, que considera inúteis; os irmãos e a mãe, submissos ao pai e ao
marido, não têm coragem ou mesmo possibilidades de fuga daquela vida.
Ana, que nasceu em Sorocaba e veio ainda criança para o sul, guarda
lembranças vivas da infância, de um lugar onde “a vida era alegre, havia muitas
casas, muita gente, e festas, igrejas, lojas” (C1, p. 74). Essas lembranças despertam
o anseio de um dia, quem sabe, ir embora, deixar aquele lugar. A mãe, no entanto,
desfaz suas esperanças: o pai jamais deixaria a fazenda, a terra herdada do avô de
Ana, que no entanto não a conhecera; a terra fora deixada para Maneco Terra, que
veio para o sul e a desbravou aos poucos, com sacrifícios e muito trabalho. Ana
reconhece a veracidade da advertência da mãe: o pai jamais deixaria aquela terra.
Além disso, aos vinte e cinco anos de idade ela ainda não casara, não tinha
namorado. Quando tropas passam pelo local, Ana percebe o olhar dos homens,
desconfia que pode ser bela. A passagem do major Rafael Pinto Bandeira pela
fazenda desperta sua imaginação, pois o major elogia sua beleza. Sobre o major,
96
ouve histórias: “contava-se que sua estância era muito bem mobiliada e farta, e que
tinha até uma banda de música” (C1, p. 76). A música, inexistente na fazenda, era
um luxo apenas vislumbrado através das palavras de estranhos. E Ana gosta de
música, que cultiva a sós enquanto lava roupa, longe da presença do pai e dos
irmãos:
(Ana) ergueu-se, caminhou para o lugar onde estava o cesto, tirou as
roupas para fora, ajoelhou-se, apanhou o sabão preto e começou a lavá-las.
Enquanto isso cantava. Eram cantigas que aprendera ainda em Sorocaba.
cantava quando estava sozinha. Às vezes, perto da mãe, podia
cantarolar. Mas na presença do pai e dos irmãos tinha vergonha. Não se
lembrava de jamais ter ouvido o pai cantar ou mesmo assobiar (C1, p. 77).
Essas cantigas são a única companhia de Ana na solidão dos campos e um
ponto de ligação com seus anseios mais secretos: ir embora, casar. Nas cantigas
reside a beleza que falta em tudo o mais: Ana difere de seu pai, de seus irmãos. A
mãe é a única pessoa com quem pode compartilhar seus anseios, embora saiba que
ela não reagirá: a vontade de sua mãe permanecerá guardada, reprimida.
A ausência de música é também a ausência de esperança, de vida. A
monotonia e aridez dos dias são um fardo difícil de carregar naquela casa onde
“nunca entrava nenhuma alegria, nunca se ouvia nenhuma música, e ninguém
pensava em divertimento” (C1, p. 79).
É essa a situação que antecede a chegada de Pedro Missioneiro. A roda da
meada romanesca começa então a mover-se mudando o sentido de todas aquelas
vidas como uma força incontrolável, semelhante às tragédias gregas. Pedro traz o
elemento que interfere na estagnação, provocando a mudança. Muda as vidas das
pessoas envolvidas e provoca sua própria desgraça.
A chegada de Pedro, que a princípio provoca o alvoroço natural do
aparecimento de um estranho naquelas lonjuras, logo acomoda situações: Pedro é
um bom peão, trabalha em silêncio, come o que lhe dão, sabe domar um potro. Aos
poucos Maneco Terra se dobra e deixa o estranho ficar. Para Ana, a chegada de
Pedro provoca uma mudança. Ana sente por Pedro coisas que não consegue
entender, sentimentos onde repulsa e desejo se confundem. Ao ver a tez de Pedro,
chama-lhe a atenção o fato de que “era uma face lisa, sem um único fio de barba, e
97
dum bonito que chamava a atenção por não ser comum” (C1, p. 80). Ao ver Pedro,
Ana lembra de uma mulher que havia visto quando pequena, em São Paulo. “Diziam
que tinha vindo de Paris, era cantora, uma mulher da vida...” (C, p. 80). Estranha
lembrança, aliar Pedro a esta cantora. Ana sentia que Pedro possuía algo em
comum com ela. A impressão que lhe ficara é que “aquela mulher colorida e
cheirosa parecia ter feitiço” (C1, p. 80). Também Pedro possui o componente de
atração, o mistério. Ele mesmo evoca o elemento de feitiçaria ao contar a história da
Teiniaguá que “já desgració um sacristán” (C1, p. 98), elemento esse que prediz seu
destino, e também os ciclos de conquista que ocorrem no romance.
Assim, o aparecimento de Pedro estabelece um elo, passado o susto de sua
vinda e a estranheza de seu semblante. Ana sente algo estranho em Pedro, mas
associa essa estranheza a pessoas que têm um poder. Ao ver Pedro tocar a flauta o
elo encantatório se completa. Ana jamais havia escutado algo assim. Percebe que
aqueles sons eram de uma beleza que transcendia qualquer coisa que tivesse
conhecido, suas cantigas eram pobres comparadas àquilo. Pedro fora educado,
tivera acesso ao conhecimento de coisas que Ana sequer sonhara. Sabia ler,
conhecia latim. Mas era através da música que essa educação transparecia, se
manifestava da forma mais completa. Pedro um dia chega de manso, como
costumava chegar, trazendo o instrumento nas mãos:
- Vosmecê me dá permisso pra tocar alguma côsa?
Maneco Terra pigarreou.
- Tocar?
- Flauta explicou Pedro. E mostrou a flauta que tinha feito duma taquara
(...) Pedro sentou-se, cruzou as pernas, tirou algumas notas da flauta, como
para experimentá-la e depois, franzindo a testa, entrecerrando os olhos,
alçando muito as sobrancelhas, começou a tocar. Era uma melodia lenta e
meio fúnebre. O agudo som do instrumento penetrou Ana Terra como uma
agulha, e ela se sentiu ferida, trespassada. Mas notas graves começaram a
sair da flauta e aos poucos Ana foi percebendo a linha da melodia... Reagiu
por alguns segundos, procurando não gostar dela, mas lentamente se foi
entregando e se deixando embalar. Sentiu uma tristeza enorme, um desejo
amolecido de chorar (C1, p. 88).
Um elo de conquista se faz nas entrelinhas da melodia. Impossível deixar de
notar o poder da música nesse momento. Ana se deixa levar, incondicionalmente. A
partir desse dia, entregar-se a Pedro é uma questão de tempo. Tal o poder tem a
98
música sobre as pessoas que mesmo o duro Maneco Terra devolve a Pedro o
punhal que havia lhe retirado quando de sua chegada: o fato de Pedro tocar aquele
instrumento serve como um aval de sua idoneidade. Como esse ato se na frente
de Ana, parece soar como um sinal de aceite de seu pai a uma possibilidade de
futuro.
Com o passar dos dias, o encanto permanece, o feitiço posto se repete ad
infinitum: “Na cabeça de Ana soava uma flauta: a melodia que Pedro tocara naquela
noite de chuva não lhe saía da memória, noite e dia, dia e noite” (C1, p. 92).
Não podemos deixar de notar também o caráter fálico da forma do
instrumento que Pedro toca. Ana percebe tudo, e como um encantador de serpentes
que a todos encanta com seu truque, Pedro consegue a um tempo conquistar
Ana e desviar a atenção da família desse fato com a mesma ação.
Mas Pedro é a um tempo o encantador e o encantado: a conquista de Ana
será a sua declaração de morte. Ana se converte na Teiniaguá que destrói o
sacristão. De resto, a presença da água onde Pedro e Ana se amam pela primeira
vez fornece outras possibilidades, remete a outras histórias onde a música é
elemento de beleza mas também de destruição. Como a história de Ulisses
amarrado ao mastro de sua embarcação para conseguir ouvir o canto das sereias
sem sucumbir, a história de Pedro e Ana se como uma inversão da história
contida na epopéia homérica. Ana é a sereia silenciosa, que encontra Pedro à beira
d’água, é conquistada por seu canto e provoca a sua morte. Pedro, ao contrário de
Ulisses, canta, e a música que conquista Ana provoca a sua perdição.
Mas a conquista se lentamente, o encanto que se estabelece aos poucos
cresce até tornar impossível qualquer fuga. Momentos antes de Ana se entregar a
Pedro, o torpor se torna insuportável:
De longe vinha agora o som da flauta de Pedro. Ana sentia os olhos
pesados, a cabeça zonza: seu corpo estava mole e dolorido, como se
tivesse levado uma sova. (...) O som da flauta aumentava-lhe a sensação
de calor, de preguiça e mal-estar. Se ele parasse de tocar era melhor... -
murmurou. (C1, p. 95).
A flauta longa, tocada habilmente pelo encantador, hipnotiza sua vítima. O
canto das sereias invertido lança seu sortilégio:
99
E agora ali no calor do meio-dia, ao som daquela sica, voltava-lhe
intenso como nunca o desejo de homem (...) Pensou nos beiços úmidos do
índio colados à flauta de taquara. Os beiços de Pedro nos seus seios.
Aquela música saía do corpo de Pedro e entrava no corpo dela (...) -Se ele
parasse de beijar! exclamou ela. E percebendo que tinha dito beijar em
vez de tocar, ficou vermelha e confusa (C1, p. 96).
Os sons da natureza adquirem qualidades musicais quando o encontro entre
Ana e Pedro se aproxima. De noite, quando a família se encontra reunida na frente
da casa (mesma noite em que Pedro conta a história da Teiniaguá), Ana tem “a
impressão de que o lucilar das estrelas acompanha o cricri dos grilos” (C1, p. 96).
Por estes dias, também, Ana começa a ouvir o vento, confirmando sua sensação de
que “sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando” (C1, p. 73).
Os sons da natureza parecem preparar o desígnio que se aproxima, a ordem
natural do universo, a continuidade da vida, o ciclo do tempo. Pedro e Ana seguem o
curso da natureza, e a conquista que se através da música é confirmada pelos
sons do vento, dos grilos, das cigarras. É impossível escapar desse sortilégio,
mesmo que possa haver conseqüências. “Agora sim ela ouvia o vento” (C1, p. 101),
é a constatação de Ana na sanga, minutos antes de se encontrar com Pedro. E o ato
se consuma enquanto os sons da natureza parecem confirmar sua retidão.
Após o encontro em que o ato se consuma, Ana sente culpa, remorsos, mas
volta a se encontrar com Pedro diversas vezes. Ana descobre que está grávida,
conta a Pedro, pensa em fugir. Pedro vislumbra o seu fim e se rende a ele, nada faz
para impedi-lo: o ciclo do encantamento se fecha, Pedro é assassinado pelos irmãos
de Ana.
O assassínio de Pedro muda a vida de todos na fazenda: Ana odeia o pai e
os irmãos, mas se resigna à rotina. Mais que isso, o nascimento do filho, Pedrinho,
provoca a consciência absurda do ato: Pedro Missioneiro e Maneco Terra se unem
no corpo de Pedrinho. Pedro em verdade mudara a vida de todos, e se faz presente
no filho, nas lembranças, até mesmo na surpreendente humanização de seu pai.
Maneco, que detestava música, é visto certo dia a assobiar: “E num dia seco e limpo
de fevereiro todos foram para a lavoura com suas foices. Ana surpreendeu-se vendo
o pai assobiar. Era um assobio agudo, cuja melodia, confusa e sincopada, tinha o
ritmo do trote do cavalo” (C1, p. 118).
A presença de Pedrinho confirma o tamanho do equívoco do pai e dos irmãos
de Ana. O irremediável apenas provoca em Ana o desejo de um dia deixar o lugar,
destino que se confirma de forma trágica, com o assassínio do pai e de todos que
viviam na fazenda, com exceção de Ana, Pedrinho e da cunhada de Ana. Mas o
ciclo da vida já havia cumprido seu curso, e o fruto do amor de Pedro e Ana daria
continuidade à família Terra, desta vez num local diferente, onde a paisagem
musical também é outra, a nascente cidade de Santa Fé.
2.1.3 Um certo Capitão Rodrigo
Os elementos relacionados à música presentes em Ana Terra se repetem nas
diferentes partes que compõem O continente, porém transmutados pelo tempo, pela
época e pela personalidade dos personagens. Assim, em Um certo Capítão Rodrigo,
a música é um elemento essencial para o Capitão Rodrigo Cambará conquistar
Bibiana Terra, filha de Pedro Terra e neta de Ana.
Assim como Pedro Missioneiro, Rodrigo é um elemento estranho naquela
sociedade, um forasteiro que chega num novo meio, que lhe é hostil, e que usa de
suas habilidades para conquistar o povo do local. Essa conquista é permeada pela
presença da arte, no caso a música, que faz com que barreiras sociais e o
preconceito sejam suplantados.
Toda a cidade havia estranhado a chegada daquele forasteiro a Santa Fé.
Vinha usando dolmã militar e bombachas, estava armado e “trazia um violão a
tiracolo (C1, p. 171)”. “Aquele violão a tiracolo também lhe inspirava desconfiança”
(C1, p. 174), pensa Juvenal Terra, irmão de Bibiana e o primeiro amigo que Rodrigo
faz ao chegar em Santa . Da mesma forma que o pai e os irmãos de Ana a
princípio desconfiam de Pedro Missioneiro, a desconfiança a respeito de Rodrigo.
A ignorância é conservadora, e a presença da arte é incômoda. A expressão
artística invoca a expressão de sentimentos e a expressão de sentimentos é
subversiva, pois na arte tudo é possível.
A sociedade conservadora de Santa Fé, trazida a rédea curta pelo patriarca
do povoado, Cel. Ricardo Amaral Neto, desconfia de Rodrigo, mas aos poucos se
rende à sua alegria, sua simpatia e à sua habilidade de cantar e tocar o violão. A
desconfiança em relação ao indivíduo que toca violão trai um traço histórico: o violão
é associado com o castelhano, a guitarra española. Mais tarde na sociedade
brasileira, o violão será associado à vagabundagem, à desordem. Trata-se de uma
visão conservadora podando a expressão artística (e social; e política) na sua raiz. O
domínio se faz mais fácil quando não há reuniões, não há festas que não as
asseguradas pela Igreja ou pelo estado.
Rodrigo é um homem que ama a vida de forma exuberante, revelando suas
paixões de forma veemente e clara. Gosta de música e expressa seu gosto:
Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer,
Quem canta zomba da morte,
Cantar ajuda a viver (C1, p. 197).
Não é homem de meias palavras, mas sabe se insinuar, ser amistoso quando
quer. Bom conversador, sabe contar histórias e seu vocabulário está repleto de
palavras relacionadas a ocasiões festivas, mas que contêm elementos musicais. Ao
falar sobre uma revolução da qual participou, assevera que “o fandango estava
armado” (C1, p. 178, grifo nosso). Ao salientar que o Rio Grande do Sul sempre
acaba entrando em guerras, mesmo contra a vontade de seu povo, diz que “nós aqui
no Continente sempre acabamos entrando na dança(C1, p. 179, grifo nosso). Ao
falar do Uruguai, declara “que antes dos orientais conseguirem sua independência
tiveram de nos meter no baile” (C1, p. 180, grifo nosso).
E naquela noite “as gentes de Santa ouviram música de violão na casa de
Nicolau. E de dentro saiu uma bonita voz de homem, cantando modinhas” (C1, p.
183). Desta forma se inicia o processo de encantamento, do feitiço que Capitão
Rodrigo lança sobre os habitantes de Santa Fé, mas principalmente sobre Bibiana
Terra. Novamente a música ocupa um papel central na trama. O ciclo da conquista
iniciado pelos Jesuítas sobre os índios e repetido por Pedro Missioneiro sobre Ana,
volta a acontecer com Capitão Rodrigo, cujo alvo desta vez é Bibiana Terra. O
caráter cíclico do romance, tantas vezes evidenciado pela crítica, tem na música
uma de suas características, característica essa reforçada pelo sentido vital das
conquistas nas quais a música faz parte. A música nesse contexto sempre une
pessoas que vêm de extratos diferentes, de costumes diferentes, e que necessitam
quebrar barreiras sociais e tabus para tentarem ficar juntas. Ora, esse caráter é o
próprio processo de formação do povo sul-riograndense, onde a diversidade forma a
gênese da sociedade, precisando justamente unir opostos muitas vezes tidos como
inconciliáveis. Em O continente, esses opostos têm na arte, mais precisamente na
música, um ponto de encontro. As canções, o toque da flauta, do violão, ou mais
tarde, com Luzia, da cítara, podem ser identificados como elementos unificadores e
pacificadores, atributos tidos por muitos como o significado maior da arte.
Como acontecera nos primeiros romances de Erico, a música assume um
significado inseparável da vida, pois ela une, aproxima diferenças e propulsiona o
ciclo vital. Mesmo que essa união provoque a morte, como é o caso de Pedro e Ana,
o ciclo vital segue seu curso, pois a gravidez de Ana garante a continuidade. Da
mesma forma, a união de Rodrigo e Bibiana, desaprovada pelo pai desta, tida como
provavelmente malsucedida com o passar do tempo, acaba formando o clã dos
Terra-Cambará, que, pelos traços de coragem de Capitão Rodrigo, será a única
família em condições de fazer frente ao c dos Amarais, primeiros senhores de
Santa e que até o surgimento do Capitão traziam o povo da localidade sob o seu
domínio. Embora a união de Bibiana e Rodrigo também termine mal, no sentido que
Rodrigo é incapaz de se adaptar a um tipo de vida contrário à sua índole, o ciclo vital
se completa mais uma vez, e o significado do enfrentamento entre Rodrigo e Bento
Amaral, no qual Rodrigo é injustamente ferido por capangas dos Amarais, trazem à
tona a possibilidade de haver uma família que poderia contrabalançar o poderio
exercido pelos Amarais em Santa Fé.
2.1.4 A Teiniaguá
Passados vinte anos, o Capitão Rodrigo já falecido, o filho de Bibiana e
Rodrigo sofrerá sortilégio semelhante ao de seus pais. Novamente a música se faz
presente na história de Bolívar, enfeitiçado pela beleza de Luzia. Como o nome
dessa seção do romance reitera, Luzia incorpora a história da Teiniaguá, a princesa
moura que desgraça um cristão, história citada anteriormente por Pedro Missioneiro
numa noite na casa de Maneco Terra.
Novamente o ciclo vital segue seu curso. A absorção das diferenças
prossegue, forjando o povo do continente, e a música é novamente mediadora
dessas diferenças. Bolívar, assim como seu primo Florêncio, se apaixona pela filha
de Aguinaldo Silva, mas é interessante notar que ambos o fazem enquanto em
Santa Fé os habitantes nutrem uma desconfiança a respeito da moça. Sobre o pai já
pairava todo o tipo de conversas a respeito da origem do dinheiro que possuía.
Luzia “era rica, era bonita, tocava cítara instrumento que pouca gente ou ninguém
ali na vila jamais ouvira sabia recitar versos, tinha bela caligrafia, e lia até livros”
(C2, p. 335, grifo nosso). Mais uma vez o espectro da diferença passa pela questão
da superioridade da educação. Numa terra de analfabetos a educação gera
desconfiança. Assim como Pedro Missioneiro, Luzia toca um instrumento, e ainda
por cima um instrumento exótico, desconhecido, o que faz aumentar a
desconfiança. E quando viam Luzia metida nos seus vestidos de renda, de cintura
muito fina e saia rodada; quando aspiravam o perfume que emanava dela”, os
habitantes de Santa “não podiam fugir à impressão de que a neta do
pernambucano era uma mulher perdida” (C2, p. 335). Evocações da mulher que Ana
Terra vira quando criança em Sorocaba, “aquela mulher colorida e cheirosa que
parecia ter feitiço?” (C1, p. 80). Também ela, assim como Luzia, possuía estranhos
laços que envolviam a música no rol de seus mistérios. “Diziam que tinha vindo de
Paris, era cantora” (C1, p. 80). Luzia reencarna esses mistérios, e os perfumes, os
vestidos, a educação, afrontam a rusticidade (e o conservadorismo) das gentes de
Santa Fé. “Os rapazes da vila, conquanto se sentissem atraídos por Luzia,
concluíam quase todos que ela não era o tipo que desejavam para esposa” (C2, p.
335). Mas “Bolívar Cambará e Florêncio Terra”, como a seguir o sortilégio da família,
“ficaram fascinados por ela” (C2, p. 335). Dos dois, Bolívar é o escolhido. Mas
Bolívar tem medo de Luzia. Também ele, embora fascinado, não consegue fugir das
impressões de seus conterrâneos. E essa impressão se mistura à culpa pela morte
de um homem na guerra, à culpa pela condenação do negro Severino, amigo de
infância e que vai ser enforcado graças a seu depoimento no mesmo dia de seu
noivado. Essa mescla de culpas lhe dá a impressão de, assim como Severino,
caminhar para a morte. Além disso, se soma a isso a frieza de Luzia, que escolhe a
hora e dia do noivado para que coincidam com o enforcamento de Severino.
O único morador de Santa que consegue ter uma visão distanciada de
Luzia é Dr. Carl Winter. Enquanto os nativos do lugar tentam entendê-la partindo de
uma mistura de preconceitos e desconfiança, Dr. Winter possui as ferramentas
necessárias para formar uma opinião abalizada. Carl Winter é um homem culto,
nascido e criado na Alemanha, que acaba, por artes do destino, indo parar em Santa
Fé. Gosta do lugar e das pessoas, que considera corajosas, fortes e sinceras. Mas o
Dr. Winter possui, como estrangeiro, uma visão distanciada da realidade que o
circunda, e pode emitir juízos críticos a respeito dos moradores do local. Dentro
desse contexto, Luzia é diferente, e “ao conhecê-la, Winter ficara todo alvoroçado
como um colecionador de borboletas que descobre um espécime raro no lugar mais
inesperado do mundo. Tinha-a na mente tal como a vira na festa de seu aniversário,
toda vestida de preto, junto duma mesa, a tocar cítara com seus dedos finos e
brancos” (C2, p. 352). Ao vê-la, Winter imediatamente a associa a Melpômene, a
musa da tragédia. A incrível mescla de sofisticação, beleza e frieza chamam a
atenção do dico, que passa a estudá-la com um misto de paixão e
distanciamento científico. Além disso, a música os une. Dr. Winter e Luzia são as
duas únicas pessoas em Santa com algum estudo formal de música e o talento
da moça faz parte de seu encanto. Winter não apenas se encanta com Luzia, mas
também é vítima de um sortilégio: não sabe por que fica em Santa Fé; poderia partir
para uma cidade maior, onde houvesse maior desenvolvimento cultural: “Ficar era
absurdo, não havia nenhuma razão ponderável para isso. Podia ir para Buenos
Aires, ou voltar para qualquer capital européia onde houvesse teatro, música (que
falta ele sentia de teatro e música!)” (C2, p. 359).
Mais uma vez a música é um elemento catalisador dos sentimentos. Winter
gostaria de partir, mas se deixa ficar, sob o sortilégio de Santa Fé. Mas a paixão do
médico pela música, reprimida por não partir, se manifesta em dois pontos-chave:
tocar violino e ver Luzia tocar cítara. De certo modo Winter, assim como Bolívar, fica
dependente do sortilégio de Luzia. Uma dependência distante, mas não menos
envolvente que aquela que Luzia exerce sobre Bolívar. Claro está que Luzia, como a
Teiniaguá da história, tinha seu alvo definido. E Winter percebe isso claramente,
durante “os serões semanais no Sobrado, quando Luzia torturava Bolívar com sua
indiferença” (C2, p. 359-360). A teia do texto é tecida com linhas que levam de um
ponto a outro, linhas melódicas, acordes que passam de Luzia a Bolívar e Winter,
num ciclo de observações onde a música preenche os espaços (sonoros) da
narrativa. Como violinista que é, em tudo assomam lembranças do passado onde o
instrumento está presente: no quarteto de cordas que o médico mantinha com
amigos quando vivia na Alemanha, evocado pela presença solitária do som de seu
violino na noite de Santa Fé, na incompletude reiterada pela percepção da
incompreensão dos habitantes do lugar a respeito dele e da música que toca e que é
parte fundamental de sua existência. Para os habitantes da cidade, aqueles sons
são despidos de significado.
Pensando nos moradores de Santa Fé e comparando-os com sua antiga vida,
Winter observa que “havia em tudo uma rusticidade e uma aspereza que estavam
longe de ter o encanto antigo e a madureza das coisas e gentes camponesas da
Baviera (...) onde existia uma tradição no que dizia respeito a móveis (...), danças,
lendas e canções (C2, p. 364)”. Essa comparação produz uma reflexão a respeito da
arte para as pessoas de Santa Fé e por extensão do Rio Grande do Sul. “Os
homens machos da Província de São Pedro”, reflete Winter,
(...) pareciam achar que toda a preocupação artística era, além de inútil,
efeminada e por isso olhavam com repugnada desconfiança para os que se
preocupavam com poesia, pintura ou certo tipo de música que não fossem
as toadas monótonas de seus gaiteiros e violeiros. Como era escassa a
música daquela gente! Não passava de uma cantilena que tinha o ritmo do
trote do cavalo, um lamento prolongado, pobre de melodia (C2, p. 364).
Bolívar era vítima desses preconceitos. Ignorante, era enredado na teia que
Luzia tecia com seus dedos hábeis de musicista, com sua inteligência cultivada. O
único interlocutor real para Luzia é Winter, com quem ela pode trocar opiniões a
respeito do lugar e das pessoas. Esse diálogo é também um diálogo musical, repleto
das nuances que a tara e o violino podem apresentar. Winter depende da música
produzida por Luzia. “Infelizmente em Santa Fé Winter tinha de contentar-se com as
peças que Luzia dedilhava na cítara ou então com a música que ele próprio
produzia” (C2, p. 364). De certa forma, Luzia se apresentava para o único membro
do público que podia compreendê-la.
Winter havia participado de grupos musicais no seu país natal e sente falta de
interlocutores. “Na Alemanha fizera parte dum quarteto de cordas de amadores,
como violinista. (Hans, Hugo, Joseph, onde estais a estas horas?) Reuniam-se nas
noites de sábado para tocar Mozart, Beethoven e Schubert, beber cerveja e fumar
cachimbo nos intervalos entre um e outro quarteto” (C2, p. 364). Winter era o
interlocutor de Luzia em Santa Fé, e por isso percebia de forma mais clara que
qualquer outro habitante do lugar as manobras que ela engendrava. No dia do
noivado de Luzia, Winter a achou “perversamente linda”. A moça trazia
(...) cravado nos cabelos dum castanho profundo grande pente em forma de
leque, no centro do qual faiscava um brilhante. Winter pensou
imediatamente na bela e jovem bruxa moura que o diabo, segundo a lenda
que corria pela Província, transformara numa lagartixa cuja cabeça consistia
numa pedra preciosa de brilho ofuscante (...) Teiniaguá (C2, p. 371).
No decorrer da festa, Luzia retarda ao máximo o momento de tocar a cítara,
não cedendo aos pedidos de seu avô ou dos convidados. Espera para tocar no
momento em que Severino estaria agonizando na forca.
- Vamos menina, toque um pouco! – tornou a pedir Aguinaldo.
- É muito cedo ainda, vovô. Depois eu toco (C2, p. 372).
Winter observa que Luzia “tinha uma voz grave e musical, uma voz (...) cujo
registro correspondia ao da viola. Era quente, úmida, profunda, veludosa – tão
excitante que parecia vir-lhe do sexo e não da boca” (C2, p. 372). A voz de Luzia
também era um dos pontos de atração de Bolívar, que “nunca conseguia explicar a
si mesmo por que ficava tão excitado quando a noiva falava. Aquela voz tinha feitiço,
punha-lhe uns arrepios no corpo” (C2, p. 372, grifo nosso). Mais uma vez o sortilégio
familiar se apresenta de forma musical. O encanto de Luzia se impõe sonoramente,
através da cítara, através da voz. “Por que não trouxe o seu violino, doutor?
pergunta ela. Podia tocar um pouco para nós” (C2, p. 381). A troca se com
Winter. Desde Bolívar é figura secundária, destinado a ser um joguete nas mãos
da futura esposa. E Winter observa como os traços de crueldade de Luzia se
acentuam quando Severino é executado. Só então ela admite tocar, mas toca
embebida no prazer do momento, mergulhada num mundo só seu.
Luzia deixou a janela. Seu rosto estava iluminado por uma luz de bondade
que a transfigurava. Sentou-se junto do consolo, abriu o estojo de madeira e
tirou de dentro dele a cítara. Fez tudo isso com gestos cuidados e tranqüilos
como quem segue um rito. Tirou alguns acordes do instrumento e depois
começou a tocar uma valsa brilhante. Winter observava-a, perplexo. A
melodia alegre encheu a sala (C2, p. 385).
A frieza de Luzia espanta Winter, num misto de temor e admiração. Luzia toca
a princípio num frenesi seu, alheia a todo o movimento exterior, aos convidados,
ao noivado. Depois, mais calma, toca e conversa, enquanto “olhava para os próprios
dedos, como que enamorada deles” (C2, p. 386).
Em novembro de 1853, Bolívar e Luzia se casam. A festa é grande para os
padrões locais: “Aguinaldo mandou buscar gaiteiros e violeiros de Rio Pardo e Cruz
Alta (...) Dançou-se o fandango à luz duma fogueira acesa no meio do quintal” (C2,
p. 395). O casamento segue em meio às convenções sociais da época, onde a
música é simples, direta, sem a presença de cítaras ou violinos.
Depois do casamento, Winter se ausenta do sobrado por uns tempos. tem
notícias esparsas de que as coisas não vão bem. No entanto, não fica claro o que
não vai bem, as pessoas que trazem as notícias se calam. A teiniaguá tece sua teia
envolta em mistérios. se sabe que “Luzia vivia a ler e a tocar cítara, e isso
parecia enervar a sogra” (C2, p. 428). Bolívar é absorvido pelo mistério da princesa
moura: não se sabe o que acontece em sua vida, apenas se intui o rumo inexorável
do cristão que perde sua alma.
Winter, por sua vez, viaja, vai às missões e se acostuma à vida do lugar. Aos
poucos se torna um membro efetivo daquela sociedade, nas roupas, nos costumes.
Mesmo o violino passa a ser um companheiro não muito freqüente, mas que age
como um interlocutor na sua solidão. O violino traz a Winter a lembrança de Luzia,
ambos exilados de outras terras, de outros ambientes, de certa forma inadaptados
naquele meio:
Enquanto Gregória fazia fogo na cozinha, Carl apanhou o violino e começou
a tocar. Tinha os dedos duros de frio. A voz do instrumento pareceu-lhe
rouca, e lembrou-lhe, nas notas graves, a voz de Luzia (...) Carl arranhava
no violino um minueto de Beethoven, e quando Gregória apareceu trazendo
a chaleira preta de picumã e arrastando os s de paquiderme, ele teve
uma consciência tão aguda do contraste – o minueto e a figura da escrava –
que soltou uma risada (C2, p. 402).
Bolívar e Luzia decidem fazer uma viagem a Porto Alegre. A notícia da
viagem deixa Luzia feliz pois “vivia numa permanente saudade de concertos, festas
e teatros” (C2, p. 428). Tanto Luzia quanto Winter são vítimas da pobreza musical da
localidade, são exilados culturais. Luzia exulta e “naturalmente começa a tocar
cítara, e tocou as peças mais alegres de seu repertório” (C2, p. 428). Apenas Winter
parece compreender a alegria dela: “Confesso que naquele momento tive vontade
de beijar a teiniaguá” (C2, p. 428).
A viagem apressa a deterioração do casamento de Bolívar e Luzia. Bolívar
não consegue nem compreender nem suportar a mulher, embora a ame. Os traços
de sadismo da personalidade de Luzia provocam-lhe um mutismo do qual não quer
sair, e no qual parece se fechar cada vez mais, encontrando uma única saída na
morte. Não o suicídio real, mas a provocação da própria morte através da deliberada
afronta aos capangas da família Amaral.
Com a morte de Bolívar, mais uma vez o ciclo se fecha. Em verdade o ciclo já
havia se completado pouco antes com o nascimento do filho de ambos, Licurgo
Cambará. Mais uma vez a música marca presença no ciclo de conquistas existentes
em O continente.
2.1.4.1 O empobrecimento da paisagem musical
Luzia e Winter são, em grande parte, vítimas da pobreza da paisagem
musical e portanto cultural, do continente. Os comentários de Winter a respeito
daquelas “toadas monótonas de seus gaiteiros e violeiros,” daquela música
“escassa” que “não passava de uma cantilena que tinha o ritmo do trote do cavalo”
(C2, p. 364), refletem a opinião do médico a respeito da vida musical de Santa Fé,
que espelha a vida musical do Rio Grande do Sul naquele momento. Apenas em
Porto Alegre e outras cidades de certo porte poderia se encontrar, e mesmo assim
não muito freqüentemente, música, teatro ou alguma outra opção cultural.
Em diversos momentos da narrativa Winter reflete sobre essa pobreza cultural
que paira sobre os moradores da província, uma pobreza que faz com que achem
“que seria mais divertido ficar na praça para ver Severino estrebuchar na forca do
que vir para o Sobrado ouvir Luzia tocar cítara” (C2, p. 371-372).
Efetivamente, depois da narrativa de A fonte, a paisagem musical sofre um
empobrecimento considerável. O mundo de Ana Terra na fazenda, como já foi
apontado, é um mundo de absoluta pobreza no que se refere à música. Mas o que é
mais passível de reflexão nas narrativas subseqüentes de Um certo capitão Rodrigo
e A teiniaguá é que nem a mudança do ambiente do campo, que era o ambiente de
Ana Terra, para a nascente cidade de Santa Fé, nem o crescimento desta, nem o
passar do tempo, provocam uma mudança significativa na paisagem musical. A
cidade continua pobre (o continente continua pobre) musicalmente e seus habitantes
de certa forma se orgulham disso. Num dos serões do Sobrado, num diálogo entre
os presentes, Bibiana traduz notavelmente o pensamento que se jacta de sua
ignorância, peculiar aos habitantes da província:
[WINTER] – Os brasileiros não gostam de cantar ...- Porquê? (...)
[LUZIA] Não temos teatros prosseguiu ela não temos concertos, não
temos bailes, não temos nada.(...)
[BIBIANA] – Há pessoas que passam muito bem sem festas. (...)
[LUZIA] Eu sei que há, D. Bibiana. Mas é que eu gosto destas coisas.
Principalmente de música. (...)
[BIBIANA] – Pois então que toque cítara. (...)
[WINTER] Devíamos ter pelo menos uma banda de sica em Santa .
Pode ser que um dia eu decida organizar uma. (...)
[BIBIANA] Temos vivido muito bem até agora sem banda de música (C2,
p. 410-411).
A pobreza da paisagem musical é tanto maior quando comparada com a
riqueza do passado recente. Em dado momento, enfastiado de Santa Fé, Winter
segue numa viagem para visitar as ruínas das missões jesuíticas. Lá, reflete sobre a
cultura existente no século anterior, não muito distante de seu tempo, e que deixara
escassos rastros nos costumes musicais do continente.
Aquelas pedras refletiu ele haviam sido envolvidas por melodias
inventadas por compositores europeus e reproduzidas por jesuítas e
indígenas em instrumentos fabricados na própria redução. Onde estavam
agora as melodias do passado? (C2, p. 400)
Ante o fausto do passado Winter se perante um presente paradoxal: como
pôde o continente não herdar nada ou quase nada daquela cultura? Diante da
pobreza da paisagem musical da província resta apenas o questionamento:
Os sinos da igreja badalavam, não badalavam? Os índios batiam tambores,
não batiam? E tocavam instrumentos, não tocavam? Pois bem, onde está
agora o som dos sinos, dos tambores, das cornetas, das clarinetas, das
liras? Onde? (C2, p. 410)
2.1.5 A guerra
Na parte inicial da narrativa de A guerra, última grande seção de O
continente, o narrador salienta que “durante todos aqueles anos poucas vezes se
ouviu o som de gaita ou canto em Santa Fé; nem houve ali fandango, quermesse,
cavalhadas ou outra festa qualquer” (C2, p. 477). Como acontecera antes na obra
de Erico, a tematização da guerra está ligada à desumanização, o que leva à perda
de tudo que é próprio do ser humano, e a expressão artística é uma das coisas que
se perdem, notadamente a música. pouca música nos textos do escritor em que
a guerra aparece retratada. Em Saga, particularmente na segunda parte, enquanto
as condições de vida das pessoas presentes no campo de concentração se
degradam, também se perdem os sinais da presença da música. O mesmo acontece
no início da narrativa de A guerra, onde a guerra do Paraguai é tematizada. No
entanto, a guerra do Paraguai é apenas parte da narrativa, sendo o título A guerra
também uma metáfora do enfrentamento, que dura anos, entre Bibiana e Luzia
pela posse das propriedades e do filho/neto Licurgo Cambará, que completara
quinze anos de idade.
No entanto, essa guerra pessoal das duas mulheres acontece
simultaneamente à guerra do Paraguai, e a paisagem musical está condicionada a
essa situação. “Ninguém tinha vontade de se divertir nem ânimo para cantar, dançar
ou brincar, sabendo que parentes e amigos estavam na guerra” (C2, p. 477).
Florêncio Terra, sobrinho de Bibiana, é um destes moradores. Homem pacífico, é
levado pela torrente dos acontecimentos, embora nada seja mais distante dele que
aquela luta. A certa altura, como Vasco em Saga, Florêncio se pergunta “que era
que ele estava fazendo ali no meio daquela soldadesca, com a carabina ao lado,
esperando e temendo que o clarim de repente rompesse num toque a rebate?” (C2,
p. 482) A paisagem musical empobrece e entristece: os únicos sinais de música são
os toques de um clarim durante a batalha.
Nesse contexto de empobrecimento ainda maior que o costumeiro, Licurgo
cresce, e também ele, como seus antepassados, estará sujeito a uma espécie de
sortilégio, embora diferente em natureza daquele pelo qual passaram jesuítas e
índios, Ana Terra e Pedro, Bibiana e Rodrigo, Bolívar e Luzia. Todas as relações de
conquista anteriores envolveram pessoas de diferentes estratos aproximadas pela
música, o que gerou a mistura, o crescimento através da diminuição das diferenças,
e o surgimento de novos frutos dessas uniões. Em A guerra, o sortilégio de Licurgo
será um sortilégio de fuga, de escape de uma situação que lhe era desagradável,
senão insuportável. Na guerra travada entre Bibiana e Luzia no Sobrado, Licurgo
não conseguia, nem poderia, escolher um lado. Dessa forma, sua válvula de escape
era a fazenda do Angico. Sair do sobrado, fugir daquela situação: o sortilégio de
Licurgo se não através da diferença, mas por identificação. Ir para o Angico é,
antes de mais nada, ir para perto de Fandango, personagem rico de conotações
musicais (cujo próprio nome é identificado musicalmente), e que representa para o
menino todas as coisas boas da vida na fazenda. Perto de Fandango, Licurgo
esquece a avó e a mãe, se sente seguro e num território com o qual se identifica.
“Seu nome verdadeiro era José Menezes, mas quando mocinho era tão grande sua
fama de trovador e bailarim, que os amigos acabaram por dar-lhe o apelido de
Fandango” (C2, p. 496). Em Fandango, Licurgo a alegria que falta à sua avó e à
sua mãe. Dr. Winter, que aulas de ciências ao menino, certo dia lhe diz: “– Sua
vida, Curgo (...) oscila entre dois pólos magnéticos: Fandango e D. Bibiana” (C2, p.
496). Mas Fandango resumia para o menino o que havia de bom na vida, longe das
complicações e ranços de sua avó e sua mãe. E também de seus professores:
[Licurgo] estudava História e Linguagem com o Dr. Nepomuceno, Aritmética
e Geografia com o vigário, e ciências com o Dr. Winter. O resto que para
ele era o principal aprendia com a própria vida, com a peonada do Angico
e principalmente com o velho Fandango, o capataz. O português que o Dr.
Nepomuceno lhe ensinava era um idioma estranho que muito pouco tinha a
ver com a língua que se falava no galpão e na cozinha da estância.
Fandango achava que o conhecimento da Aritmética não fazia nenhuma
falta às pessoas (C2, p. 493).
Os contos, causos e proezas contados por Fandango encantavam o menino.
Não se poderia comparar os feitos de Napoleão ensinados nas aulas de história do
Dr. Nepomuceno com os feitos heróicos de Bento Gonçalves ouvidos da boca de
Fandango. Também os ditados, quadrinhas e toda a sorte de conhecimentos
populares eram dominados por Fandango, e ele os passava para Licurgo em
conversas no dia-a-dia ou em rodas em torno do fogo no galpão. Nesse sentido, o
capataz adquire qualidades quase sobre-humanas, se identificando com a fazenda e
sendo parte indissociável dela:
Para Licurgo, Fandango era uma espécie de oráculo - o homem que tudo
sabe e tudo pode. Um peão era um peão, uma pessoa que hoje pode estar
aqui e amanhã na estrada ou no galpão de outro estancieiro. Mas com
Fandango a coisa era completamente diferente. O velho se achava mais
preso às terras do Angico do que aquelas árvores que tinham raízes
profundas no chão. Desde que nascera, Curgo se habituara a ver o capataz
ali na estância, como um elemento mesmo da paisagem. Era inconcebível o
Angico sem Fandango ou Fandango sem o Angico (C2, p. 495-496).
As características quase sobre-humanas que Fandango possui aos olhos de
Licurgo se aproximam do encantamento do qual em outras épocas os membros de
sua família foram vítimas. Mas o encantamento de Fandango é o que salva Licurgo
do encantamento de sua mãe. O sortilégio da teiniaguá, que levou Bolívar à morte,
já não surte efeito sobre o filho. Luzia tenta desesperadamente manter alguma
ascendência sobre Licurgo, mas o mundo do menino, que “aos quinze anos é um
homem” (C2, p. 493), está completamente centrado na fazenda do Angico, na vida
campeira, nas lides rurais. Em determinado momento, Luzia tenta tecer em torno do
filho a mesma teia de encantos na qual enredara o marido:
Na noite daquele mesmo dia, na sala de visitas do Sobrado, pela primeira
vez em muitos meses Licurgo ficou a sós com a mãe. Foi após o jantar:
cinco velas do candelabro estavam acesas em cima do consolo, e Bibiana
se encontrava no andar superior a defumar os quartos com incenso.
Sentada junto da mesinha redonda, Luzia tocava cítara para o filho (C2, p.
509).
Note-se que a teia se faz da mesma forma que para Bolívar, a música sendo
o centro condutor do encantamento. Ao tocar, a teiniaguá como que tece a teia,
controla o tempo, prende o interlocutor na sua armadilha. Mas o que causara
atração no pai, causa repulsa no filho:
Os cabelos caíam-lhe sobre os ombros cobertos por um xale de seda preta,
que lhe acentuava ainda mais a palidez. De vez em quando a dor crispava-
lhe o rosto e ela começava a gemer baixinho (...) Luzia tocava uma
barcarola e o rapaz escutava, olhando para os dedos que beliscavam as
cordas do instrumento. Agora ele descobria por que era que apesar de
gostar do Sobrado não se sentia bem no casarão. Era porque sua mãe dava
àquelas grandes salas uma certa frieza de “casa de cerimônia”. Ela própria
era quase uma estranha para ele. As coisas que lhe dizia o deixavam
sempre desconcertado. A voz dela provocava nele uma esquisita sensação
de acanhamento, e os sons mesmos do instrumento pareciam sair não
daquela caixa chata de madeira, mas da boca de sua mãe. Dum certo modo
que Curgo não sabia explicar direito, era como se aquela música triste
saísse da ferida que ela tinha no estômago. Curgo tirou o lenço do bolso e
passou-o pelo rosto. Pensou em como seria bom sair para a rua, ir para
baixo da figueira da praça e ficar deitado no chão, sozinho... (C2, p. 509-
510, grifo nosso).
O encantamento de Luzia tem um objetivo: levar Licurgo embora, sondar o
rapaz sobre esta possibilidade e no caso da impossibilidade de ambos irem embora
juntos, ao menos arrancar a promessa de que o filho deve ir embora de Santa Fé um
dia. A forma do encantamento musical é lenta, aparentemente desinteressada, mas
de volta em volta procura seus objetivos:
Luzia começou a tocar uma música muito lenta e suave, e enquanto tocava
sorria um sorriso lento e suave como a música.
- Em que é que estás pensando? –perguntou ela sem parar de tocar.
- Em nada.
- Não. Eu quero saber o que é que esta música te evoca.
- Evoca?
- Quero dizer: quando ouves esta música, em que é que pensas?
Curgo ficou um instante com ar reflexivo.
- Na estância (C2, p. 510).
Aquele tipo de conversa deixa Licurgo desconfiado. A longa passagem em
que Luzia tenta envolver Curgo nas suas artimanhas, num misto de sadismo e
chantagem por sua morte próxima, demonstra todo o poder encantatório de sua
mãe. Em certo momento, o rapaz deixa-se levar: “A música doce envolvia Licurgo,
que se imaginava no Angico olhando o pôr do sol. As coxilhas cheiravam a incenso”
(C2, p. 512). Ao sentir que o filho está cedendo às suas evocações, Luzia avança:
“Curgo, quero que prometas uma coisa para tua mãe. Prometes?” (C2, p. 512) Neste
ponto, se quebra o encantamento, pois o centro de equilíbrio de Licurgo é outro. Ele
cedeu ao encantamento simples de Fandango e é daí que advém sua resistência:
“No espírito do menino o velho Fandango ergueu-se e falou: Não faças promessas
no escuro” (C2, p. 512). A resistência final de Licurgo destrói o encantamento de
Luzia.
Para Bibiana, isso significa uma vitória sobre a nora. Mas o mundo do
Angico, cujo centro é Fandango, é o ponto de equilíbrio do neto, e não mais ela,
Bibiana. A avó é, sem dúvida, um bastião de segurança no Sobrado, um escudo de
proteção contra as artimanhas de sua mãe. Mas o mundo do Angico é seu mundo, o
centro primordial sobre o qual se constrói sua personalidade e também a
continuação da família Terra-Cambará.
2.1.6 Ismália Caré
A última grande parte de O continente se intitula Ismália Caré, nome da
amante do agora adulto Licurgo Cambará. Passado o período da Guerra do
Paraguai, tematizada em A guerra, essa seção do romance se passa no período de
1881-89, e tematiza as rusgas em torno das lutas entre republicanos e monarquistas
que culminaram na proclamação da República em 1889.
A passagem do tempo, dessa vez, demonstra certa mudança na paisagem
musical do local. Passados quase vinte anos, Santa se desenvolve, é alçada à
condição de cidade, e também dá mostras de haver se desenvolvido musicalmente.
No dia 24 de junho de 1884, Santa foi oficialmente elevada à categoria de
cidade, e desde o início do dia haveria festividades para comemorar o evento. Num
dos jornais da nova cidade, O Arauto, ligado às forças monarquistas, pode-se ler a
programação do dia: “Ao romper da aurora, A Banda de Música Santa Cecília,
organizada e orientada pelo provecto médico e musicista germânico, Dr. Carl Winter,
percorrerá as ruas principais de nossa urbs, tocando marchas festivas” (C2, p. 560).
A possibilidade aventada por Dr. Winter alguns anos antes se torna, portanto,
realidade: o médico concretiza a idéia de organizar uma banda. A simples presença
de uma banda na cidade provoca uma mudança significativa na paisagem musical
da localidade. No dia da festividade, mal nascido o dia, se ouve a banda tocando ao
longe. Os moradores acordam para ver a banda passar: “Na boca da Rua do
Comércio apontou a Banda Santa Cecília. Vinham os músicos formados em duas
filas de quatro. Pistão, flauta, contrabaixo, bombardino, clarineta, violão, bombo e
tambor” (C2, p. 574).
Como de costume, a narrativa se detém nos detalhes musicais. Instrumentos
são descritos, a formação instrumental da banda, a forma como ela se apresenta,
que tipo de música ela toca, as características dos sons de cada instrumento,
nenhum detalhe escapa, cabendo ainda uma ponta de humor:
Tocavam uma marcha, mas a melodia cantada pela voz do pistão e da
clarineta, rendilhada pelos trilos do flautim, era quase abafada pelos roncos
do bombardino e do contrabaixo, em duas notas repetidas que davam a
impressão do grunhir dum porco descomunal (C2, p. 574).
A mudança da paisagem musical provoca evidentes mudanças na população.
um grande contraste com os anos tristes da guerra em que “não se ouviu o som
de gaita ou canto em Santa Fé” (C2, p. 477). Vários personagens manifestam sua
alegria e prazer por ouvir a banda:
Quando a banda passou pela frente do Sobrado, Licurgo acenou
amistosamente para os sicos (...) Fandango deixou a janela, correu para
a porta da rua, abriu-a e saltou para fora, gritando: - Olha a furiosa, minha
gente! Pôs-se a pular e a dançar na frente da charanga. Nas árvores os
passarinhos chilreavam (C2, p. 574).
Naturalmente, a antiga resistência de alguns moradores não é vencida
facilmente, e o conservadorismo relacionado à presença da música não deixa de se
manifestar. Bibiana observa impassível o desfile do conjunto, e resmunga ao neto
que “o Dr. Winter merecia ser enforcado por ter inventado essa droga” (C2, p. 574).
2.1.6.1 A guerra dos bailes
O fato de Santa possuir uma banda significa que a cidade agora conta
com certa quantidade de músicos, coisa inimaginável alguns anos antes, quando os
únicos músicos existentes eram Dr. Winter e Luzia. Quando algum baile ou
festividade acontecia, algum gaiteiro ou violeiro era trazido de localidades próximas,
como Cruz Alta.
Atestando a mudança na paisagem musical da cidade, músicos que tocam
instrumentos variados desfilam pelas ruas da cidade. Trombonistas, flautistas,
clarinetistas, percussionistas marcham espalhando pelos ares um rico colorido de
timbres.
Tal é o crescimento musical que possibilita a realização, no mesmo dia, de
dois bailes em Santa Fé. ‘O Arauto’ dá a notícia:
Finalmente à noite, o Paço Municipal abrirá seus salões para um grande
baile de gala, abrilhantado pela supracitada Banda, e iniciado por um
cotillon, e ao qual comparecerá o que Santa Fé tem de mais seleto e
representativo (C2, p. 561).
À realização desse baile oficial comemorando a elevação de Santa Fé à
condição de cidade se contrapõe outro, a ser realizado no Sobrado, e que reúne a
oposição às forças monarquistas. Enquanto o baile oficial é abrilhantado pela Banda
Santa Cecília, o baile do Sobrado conta com outros músicos e também o tipo de
música tocado é outro. O Democrata, órgão do Clube Republicano local, anuncia
esse outro baile: “Haverá danças nas salas do Sobrado e fandango no seu quintal,
onde se acenderão fogueiras ao santo do dia” (C2, p. 562).
O anúncio dos diferentes bailes divide a população local e exaspera o chefe
político de Santa Fé, o velho Bento Amaral. Aos poucos se espalha a notícia (falsa)
que Bento Amaral irá atacar o Sobrado durante o festejo. Licurgo vibra com a
concorrência dos bailes: “Tinha a impressão disse de que o baile de gala do
Paço Municipal, com suas formalidades e seus medalhões, ia ficar apagado diante
da festa do Sobrado, onde reinaria a verdadeira democracia” (C2, p.569). Mas em
verdade não consegue libertar-se de seus preconceitos, para ele em verdade “era
inconcebível a idéia de que aqueles negros sujos pudessem vir dançar nas salas de
sua casa, em íntimo contato com sua família” (C2, p.569).
A disputa, portanto, é muito mais política e de luta pelo poder que realmente
de fundo ideológico. Embora haja uma ideologia republicana e abolicionista na festa
do Sobrado, essa ideologia é como um verniz por sobre o preconceito generalizado.
Mas a disputa tem suas nuances, sendo uma delas musical. Os bailes são
afirmações de poder, e na festa do Paço Municipal nada mais óbvio que a Banda
Municipal para abrilhantar o evento. Uma banda que fornecerá uma música com
vago gosto aristocrático, iniciando as danças com um cotillon
13
. O fato de iniciar-se o
baile com essa dança remete a costumes relativos aos salões dos meios
aristocráticos europeus, costumes associados a um mundo fortemente ligado às
tradições monarquistas.
no Sobrado ocorrerá uma reunião que se pretende democrática, onde se
dançará o fandango, dança de inconfundível sabor popular. As origens do fandango
remetem à Espanha, mas é o fandango português que chega ao Brasil. Segundo o
dicionário Grove:
(...) o fandango é uma dança popular do Ribatejo, com acompanhamento de
acordeão e sapateado masculino. No Brasil, é nome genérico para várias
danças de roda de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
podendo também significar baile popular em que se pratica o sapateado
(GROVE, 1994, p. 311, grifo nosso).
A disputa dos bailes ganha ares dramáticos com a possibilidade de um
confronto. Licurgo não se assusta “mas pelas dúvidas” - afirma - “já tomei minhas
providências. A peonada do Angico vai dançar de pistola na cinta e olho alerta,
preparada para o que der e vier” (C2, p. 589). Mais do que medo, certa excitação
guerreira toma conta do Sobrado, além de uma curiosidade inata. Juvenal Terra,
sobrinho-neto de Bibiana e futuro cunhado de Licurgo afirma: - Eu queria saber
quem vem à festa hoje aqui no Sobrado e quem vai no baile do Paço...” (C2, p. 589).
Licurgo não se acanha e afirma que “só queremos aqui dentro gente de coragem e
de opinião. Se for preciso fazemos o baile com o pessoal de casa e com a negrada”
(C2, p. 599). Curiosamente, o desenvolvimento musical da cidade também passa a
dar ensejo para as brigas pelo poder local.
2.1.6.2 Licurgo
A influência da música sobre a personalidade de Licurgo Cambará é outro
aspecto digno de nota nessa última seção de O continente. O filho de Bolívar e
Luzia, que cresce sob a influência marcante das personalidades da avó, da mãe e
de Fandango, se torna um adulto que, apesar da possibilidade contrária, gosta de
música e se sente atraído por ela. Sem dúvida, esse fato se deve à convivência com
Fandango, pois as sessões de tortura psicológica a que sua mãe o submete
enquanto toca cítara não ajudam nesse sentido; tampouco a personalidade da avó o
auxiliaria, completamente avessa que é a qualquer manifestação musical. A balança
nitidamente pende para Fandango, de quem Licurgo sofre enorme influência.
Licurgo não é expansivo como Fandango, mas possui uma alegria autêntica ao
vivenciar momentos em que a música está presente. Naturalmente, também por
influência de Fandango, o tipo de música que causa mais satisfação a Licurgo é uma
música simples, sem a elaboração da música executada pela mãe. No início da
narrativa de Ismália Caré, Licurgo se barbeia e se veste enquanto canta O Boi
Barroso:
Como o sino cessasse de bater, pôs-se a cantarolar o Boi Barroso.
Eu mandei fazer um laço
Do couro de jacaré,
Pra laçar o Boi Barroso
No cavalo pangaré.
13
Cotillon: segundo o GROVE (1994, p. 230), esta palavra, que em francês significa “anágua”,
designa uma dança de salão dos séculos XVIII e XIX, em compasso ternário, semelhante à
quadrilha”.
Enquanto enfiava as botas, gemeu a música do estribilho, imitando o choro
sincopado da gaita. Depois cantou:
Adeus priminha
Eu vou m’embora
Não sou daqui
Sou lá de fora (C2, p. 566).
Esta canção funciona como uma definição musical da personalidade de
Licurgo Cambará e do momento em que ele vive. Criado no Angico e tendo preferido
durante toda sua vida a vivência na fazenda à vida na cidade, Licurgo tem razões
para se identificar com a canção. Além disso, está prestes a se casar com sua prima
Alice. O “Adeus priminha/ Eu vou m’emboradescreve até mesmo o futuro de
Licurgo, pois é fora” que vive sua amante Ismália Caré, a qual não pretende
abandonar mesmo depois do casamento.
Os hábitos campeiros de Fandango impregnaram todos os gostos que
norteiam a existência de Licurgo e um dos aspectos fundamentais dessa relação é a
herança de uma alegria genuína, que inclui o gosto pela música, apesar dos
elementos de perversão e sadismo que poderia ter herdado de sua mãe e sua avó e
da convivência em um ambiente hostil como o Sobrado nos tempos de sua infância
e adolescência.
2.1.6.3 A cavalhada
Há em Ismália Ca um momento em que as mudanças na paisagem musical
da cidade de Santa Fé aparecem com força incomum. Esse momento é o da
cavalhada que é realizada na tarde do mesmo dia da comemoração pela elevação
de Santa Fé à categoria de cidade.
As cavalhadas têm suas origens na Idade Média, a partir da representação
popular das lutas entre mouros e cristãos. Essas festas ou folguedos, de
características dramáticas, também foram e são representadas no Brasil,
particularmente onde a presença portuguesa é mais forte
14
.
14
Segundo O Dicionário Aurélio: “Folguedo popular que consta de uma espécie de justa ou torneio”
(FERREIRA, 1999, p. 434).
As cavalhadas envolvem dois grupos de cavaleiros, divididos em mouros e
cristãos, que simulam uma disputa na qual uma princesa (que é um homem
travestido de mulher) deve ser salva. Na cavalhada realizada em Santa Fé, embora
os grupos tenham sido separados independentes da política local, ainda assim
Licurgo Cambará fica no grupo dos mouros, enquanto Alvarino Amaral, seu maior
desafeto político, no grupo dos cristãos. Embora haja, portanto, uma luta política
velada, um aspecto pacífico no festejo que deixa as disputas e rusgas de lado
num primeiro momento. Esse aspecto é o da comemoração em si, onde a Banda
Santa Cecília mais uma vez ocupa um papel primordial. É esse aspecto que
queremos destacar, tendo em vista a evolução na paisagem musical da cidade.
Alguns anos antes, todo esse festejo, com as vivências que são inerentes a ele, não
seria possível, dada a inexistência de músicos na cidade, o que tornava a paisagem
musical extremamente pobre.
Toda a cavalhada é acompanhada musicalmente pela banda através de
músicas que comentam ou dão impulso à representação, funcionando como uma
espécie de trilha sonora de um espetáculo. O festejo inicia com a banda tocando um
dobrado, um tipo de marcha militar em andamento mais rápido que uma marcha
comum. A música e a presença dos instrumentos transmitem uma sensação festiva
aos habitantes de Santa Fé: “A luz reverberava nas fachadas brancas das casas,
fazia chispar as vidraças e os instrumentos da banda de música, o que contribuía
para aumentar ainda mais a claridade festiva da tarde” (C2, p. 609).
Todos os passos da cavalhada são acompanhados de observações acuradas
do papel que a banda e a música exercem sobre a apresentação. A posição da
banda em relação ao público, que instrumento se destaca mais em determinado
fragmento do espetáculo, nenhum detalhe é deixado de lado. O festejo, que havia
iniciado com um dobrado, segue seu curso:
Uma batida de bombo, que ecoou na praça como um tiro de morteiro, pôs
fim ao dobrado, o que não impediu que o pistonista, distraído, soltasse
ainda duas notas, que subiram desgarradas no ar, provocando risos entre o
público. O sino da igreja deu três lentas badaladas. Era o sinal
convencionado para iniciar o torneio (C2, p. 611).
A narrativa segue, revelando não apenas a existência de músicos, mas
também de um compositor. A música provoca reações entusiásticas nos
participantes, particularmente Licurgo:
A banda atacou um novo dobrado, Cavalaria Farroupilha, da autoria do Joca
Paz, o trombonista. Aos compassos vibrantes da música, Curgo teve, mau
grado seu, um estremecimento de entusiasmo, uma espécie de exaltação
patriótica que lhe deu um frenético desejo de ação guerreira e heróica.
Procurou dominar esses sentimentos, que iam tão bem com suas
roupagens mouriscas e que lhe pareceram tão espalhafatosos e absurdos
quanto elas. Bobagem! Aquilo não passava duma festa, dum jogo: não
havia razão para tais entusiasmos. Mas aquele diabo de música sugeria-lhe
mesmo uma carga de cavalarianos de Bento Gonçalves (C2, p. 611).
A música amplifica as sensações das pessoas envolvidas na representação,
envolve a platéia numa aventura sonora que transcende suas vidas cotidianas,
dando uma nova dimensão àquela festa. A banda comanda todos os passos da
ação dramática, ilustrando-a musicalmente: “A banda de música interrompeu o
dobrado e começou a tocar uma valsa, cuja melodia era familiar a Licurgo.
Chamava-se Saudades do Reno e tinha sido composta por um colono de Nova
Pomerânia” (C2, p. 613).
Aos poucos, o que se entrevê nos liames da narrativa é um mundo complexo
de interação cultural, a própria essência formadora da música brasileira. A música
de características militares (marchas, dobrados) é acrescida da colaboração dos
imigrantes (valsas), e vários outros estilos advindos de culturas diversas, que
contribuem na construção sonora do texto
15
.
Não é apenas na ambientação que a música é decisiva, também o
andamento da representação é marcado pela banda: “Os mouros formaram uma
circunferência e puseram os cavalos a andar a passo, ao ritmo da música (...) A
banda prosseguia na valsa lenta e o contrabaixo fazia um-pa-pa... um-pa-pa...” (C2,
p. 614).
O aparecimento de um mascarado, próprio da tradição desse tipo de
folguedo, causa furor na população. As evoluções do mascarado aliadas ao fato de
15
Para questões históricas referentes à valsa e outros ritmos estrangeiros que aportaram no Brasil no
século XIX, ver Kiefer (1978).
a população desconhecer sua identidade são a causa da excitação que se forma em
torno do acontecimento. Também aí a música acompanha o caráter cômico da
representação:
Naquele momento ouviu-se um tropel e um cavaleiro surgiu atrás da
figueira. O mascarado! – gritaram vozes. Era costume nas cavalhadas haver
um palhaço, um cavalheiro mascarado que fazia evoluções humorísticas
para divertir a assistência no intervalo entre os torneios. Tinha, porém,
ficado resolvido pela comissão organizadora da festa que não haveria
nenhum mascarado naquela cavalhada. Quem era, pois, o recém-chegado?
O público rompeu a rir. A banda parou de repente de tocar, os músicos
ficaram olhando a sorrir para o mascarado, que vestia um macacão
amarelo, e tinha na cabeça o velho chapéu de chaminé que pertencera ao
Dr. Winter; seu rosto estava escondido por detrás de uma grotesca máscara
de papelão (...)
O mascarado saltou do cavalo para o chão, jogou para o ar a cabeça do
boneco, embainhou a espada e, voltando-se para o estrado da banda,
pediu: - Música, moçada! (...) A banda começou a tocar uma polca e,
quando o homem de amarelo arrancou a máscara, as pessoas mais
próximas exclamaram em uníssono: - O Fandango! (C2, p. 616)
A banda e seu maestro têm, enfim, um papel primordial no desenrolar do
espetáculo. No entanto, como seria de se esperar, o espírito guerreiro dos
habitantes acaba sobressaindo em meio à festa, que degenera na briga entre
Licurgo e Alvarino Amaral.
Mas quem a última palavra ainda é Fandango, personalidade autêntica
para quem a música é companheira indissociável, sendo sinônimo de alegria e festa,
mesmo em momentos extremos:
Fandango meteu os polegares nas cavas do colete, entortou a cabeça e
filosofou: - O mundo é mesmo um circo, dona. Tem de tudo. Burlantins que
viram cambota, equilibristas, os que fazem piruetas em riba dum cavalo, os
palhaços. E quem nasce para palhaço, como eu, morre palhaço e nunca se
endireita. (...) pedi ao meu neto que quando eu morrer me botem no
caixão com uma roupa bem bonita. Em vez de velório, façam um baile no
terreiro, com bons violeiros. E dancem a tirana-grande, o anu e a chimarrita
em roda do meu corpo. Quero que o enterro seja abaixo de gaita. E que
seis morochas bem guapas carreguem o meu caixão (C2, p. 623-624).
A filosofia campeira de Fandango traduz a ligação da música com a paz, e
também a indissociabilidade da música com a vida, ambas características da obra
de Erico Veríssimo.
2.1.7 Interlúdios
No decorrer da narrativa de O continente, entremeando as grandes seções do
livro, pequenas partes sem título que desempenham um papel fundamental no
desenvolvimento do romance.
A origem de muitos personagens, assim como as levas de imigrantes que
aportam no Continente, o surgimento dos Carés e dos Cambará, são dados que
surgem nessas seções, que têm uma forma fragmentária, muitas vezes interpolando
prosa e verso. Devido a essas características, chamaremos essas passagens de
Interlúdios.
Há seis Interlúdios interpolados no decorrer da narrativa d’O continente, todos
contendo uma gama variada de aspectos musicais. No primeiro Interlúdio, que
aparece interpolado entre A fonte e Ana Terra, a herança musical portuguesa surge
pela primeira vez. O contraste produzido entre os “vagamundos aventureiros” (C1, p.
66) do continente e o modo de vida dos açorianos, daquelas “gentes pacatas, que
respeitam a lei e odeiam a guerra” (C1, p. 66), está relacionado à música, pois estes
continentinos aventureiros, ao comentar a vida dos açorianos, “acham engraçadas
suas caras, suas casas, suas comidas, suas roupas, seus cantares, suas danças: o
feliz amor, o sarrabaio, a chamarrita” (C1, p. 66).
O quarto Interlúdio, que narra a ida de um dos Carés para a guerra, não deixa
de apontar aspectos musicais. Na guerra, Chiru Caré:
(...) aprendeu a dar tiro de espingarda
a marchar
a entender a língua dos superiores, das cornetas
e dos tambores (...)
Chiru Caré gostou da guerra.
Nunca pensei que fosse tão linda!
Era o mesmo que uma festa: fandango ou puxirão (C2, p. 462).
Esse canto dos despossuídos, dos que nada têm como Chiru Caré, ecoa de
forma bizarra pela narrativa. Na vida normal, os Carés passavam tanta necessidade
que a guerra se torna uma oportunidade de conhecer coisas novas, de obter acesso
até mesmo a alguma espécie de cultura: “Foi também na guerra que Chiru Caré pela
primeira vez na vida ouviu uma banda de música. Ficou meio louco, com vontade de
chorar” (C2, p. 463).
De riqueza particular se reveste o quinto Interlúdio, que narra as peripécias do
jovem Fandango em suas viagens pelo continente. Fandango faz o papel de um
cronista de costumes que tudo vê, tudo guarda na memória e tudo narra para seus
interlocutores nas rodas em torno do fogo nas fazendas onde passa. Assim, as
diferenças na formação cultural do estado aparecem esmiuçadas nesse Interlúdio. A
música quase sempre está presente nessa espécie de crônica de suas viagens,
onde prosa e verso se misturam:
Lá na terra de Pelotas
As moças vivem fechadas
De dia fazem biscoito
De noite bailam caladas (C2, p. 544).
Sobre os açorianos, diz que “têm fala cantada que só galego” (C2, p. 145).
Dos alemães, assinala que “tudo neles é diferente: as roupas, as danças, as
comidas, as casas” (C2, p. 145). E dos italianos:
A fala deles tem música
e é doce como laranja madura
Gostam de comer passarinho
de fazer e beber vinho
de cantar, de ouvir missa (C2, p.145).
Os Interlúdios são elementos estruturais importantes na construção do
romance, que proporcionam liberdade temporal na narrativa, já que a forma livre
constituída de versos, prosa, lembranças, cantigas e brincadeiras a essas
passagens a possibilidade de se deslocarem para frente e para trás no tempo, em
saltos não necessariamente articulados, como as lembranças e recorrências que
ocorrem nas partes maiores do romance. Os Interlúdios formam um amálgama entre
as grandes seções do romance, amálgama esse que acentua o processo cíclico e
lhe arredonda a forma, aparando arestas e possíveis lapsos ou incongruências das
origens de personagens ou fatos.
2.1.8 O sobrado
Chegamos finalmente à narrativa d’O sobrado, que também aparece
interpolada entre as partes do romance. O texto está dividido em sete partes e
corresponde ao tempo presente da narrativa. É a partir de O sobrado que as partes
anteriores se encaixam, a partir de elementos variados como o punhal com que
Rodrigo e Toríbio brincam, que remete à narrativa de A fonte, ou a roca da mãe de
Ana Terra, ou qualquer outro elemento que lembre o passado. Esse processo de
idas e vindas da narrativa, de diálogo entre presente e passado, acontece em
relação ao presente, que ocorre no ano de 1895, no momento culminante da
revolução de 93. O sobrado dos Terra-Cambará está cercado pelas tropas
federalistas, mas se nega a se render. Toda a ação de O sobrado se passa entre 25
e 27 de junho do ano de 1895, enquanto Licurgo Cambará e os demais moradores
do sobrado e agregados esperam a entrada das tropas republicanas em Santa Fé.
As sete partes que compõem O sobrado, encaixadas no texto, funcionam
como uma moldura para a narrativa d’O continente. nessas partes poucos
elementos musicais, que a situação não proporciona essa possibilidade. Como já
foi citado outras vezes, sempre que a situação social e humana se degrada devido à
guerra, também se dilui a ocorrência de elementos musicais e artísticos em geral. As
poucas citações musicais que ocorrem são de ordem rememorativa, lembrando
tempos melhores onde a música estava presente. Fica aqui mais uma vez, o rico
depoimento humano de Fandango que, quando faminto, com frio e saudoso dos
tempos de paz, questiona o absurdo da guerra: “E no entanto o mundo tem tanta
coisa gostosa! Mulher bonita, cavalo bom, baile, churrasco, mate amargo...” (C2, p.
661).
1
26
Quando termina o cerco ao Sobrado, liberta Santa do domínio federalista,
o sopro musical que aponta para o futuro é o gesto instintivo dos meninos Toríbio e
Rodrigo, que correm para a torre da igreja e se põem a tocar o sino:
(Toríbio e Rodrigo) passam pelo vestíbulo, por entre os homens, ganham a
rua e deitam a correr na direção da Matriz. Como encontram fechada a
porta da frente, contornam o templo, entram pela sacristia, fazem um rápido
sinal-da-cruz ao passarem pelo altar-mor, metem-se no batistério,
penduram-se na corda do sino e começam a puxá-la com fúria
desesperada. A guerra acabou! O Sobrado ganhou a guerra! Viva! Viva! (...)
Os ares de Santa atroam, e o minuano como que se enrosca no som do
sino, num corpo-a-corpo frenético, e se vai lutando com ele campo em fora
(C2, p. 666).
O som do sino desperta musicalmente a cidade anestesiada pela guerra e
rompe o silêncio que ela gerou. As badaladas que ecoam pelos ares somam-se aos
gritos de júbilo dos meninos, apontando para um futuro incerto, porém cheio de
promessas de ser melhor que os dias da revolução que fica para trás.
2.2 O retrato
O segundo volume de O tempo e o vento, intitulado O retrato (R), veio a lume
em 1951. A respeito desse livro, Erico deixou o seguinte depoimento:
A despeito do prazer com que o escrevi, achei-o literariamente inferior a O
continente. Para principiar, falta-lhe o elemento épico. Nas críticas que se
fizeram a esse segundo volume da trilogia notei um tom quase generalizado
de desapontamento (VERISSIMO, 1975, p. 306).
Hohlfeldt (2003, p. 89) observa que “na verdade, o que pegou os seus leitores
de surpresa foi a transformação do objetivo e conseqüentemente, do estilo da obra”.
a passagem de um tempo mítico, existente em O continente, para um tempo
histórico. Como salienta o ensaísta no mesmo texto, “acabou aquele tempo livre,
sem cercas, como gostava o Capitão Rodrigo. Agora, as propriedades estavam
claramente demarcadas e a atividade político-partidária diferenciava as classes
sociais com total nitidez”.
Também em O retrato, assim como em O continente, uma inversão da
ordem cronológica, não no que se refere a várias partes alternadas durante a
narrativa, mas no seu início e no fechamento. O romance principia no ano de 1945,
quando Dr. Rodrigo Terra Cambará está de volta a Santa Fé, doente com graves
problemas cardíacos. Esse fato emoldura a trama no seu princípio e no seu final e
constitui o presente da narrativa. A partir daí há uma retroação no tempo que
acompanha Rodrigo do ano de 1909 até 1915. Como fizemos na análise de O
continente, colocamos em ordem cronológica as partes do romance de maneira que
possamos acompanhar o desenvolvimento da narrativa desde o seu princípio.
No que concerne à música, a paisagem musical de O retrato reflete as
mudanças que ocorrem em Santa nos anos em que se passa a ação do
romance. A cidade havia passado por vários estágios de desenvolvimento desde o
seu início, e no alvorecer do século XX encontramos um município que se povoou,
cresceu em muitos aspectos, tanto populacionais como econômicos, com o
respectivo desenvolvimento de seus distritos. Assim, cada vez mais, as populações
de áreas como Nova Pomerânia e Garibaldina são importantes no desenrolar da
história.
Esse crescimento se também no âmbito sonoro, com o aumento do
número de músicos, da quantidade de bandas existentes na cidade e da variedade
da música executada. Embora poucos anos tenham se passado desde o fim da
narrativa de O continente (1895) até onde principia O retrato (1909), algumas
mudanças significativas ocorrem na paisagem musical da cidade, principalmente um
aspecto que surge como um elemento que cresce no decorrer do romance: as
inovações tecnológicas do novo século, que colaboram decisivamente para as
alterações sonoras que irão surgir.
Mas o aspecto musical que se destaca em O retrato, sua principal
característica, concernente com o desenvolvimento do romance como um todo, é o
fato da música gravitar em torno do personagem Rodrigo Cambará. A quase
totalidade das observações musicais existentes no livro está relacionada de uma
forma ou de outra com Rodrigo, que interage, estimula e provoca situações que o
marcantes tanto na formação da sua paisagem musical individual como na
renovação sonora da sua cidade natal.
2.2.1 Chantecler
Quando o Dr. Rodrigo Terra Cambará chega em Santa Fé formado em
medicina, de volta de seus anos de estudo em Porto Alegre, encontra uma cidade
que cresceu em relação àquela do século XIX, e a paisagem musical, se não se
alterou radicalmente, certamente foi enriquecida de diversos elementos novos. Esse
retorno ocorre no final de 1909, pouco tempo antes das festividades de fim de ano.
Essa proximidade das festas faz aumentar a expectativa que envolve o retorno,
tanto para Rodrigo quanto para os seus conterrâneos. A música está inserida nesse
contexto, emoldurando e tecendo comentários musicais sobre os acontecimentos.
Na viagem de retorno, enquanto ainda se encontra no trem que faz a viagem
de Porto Alegre até Santa Fé, Rodrigo faz uma espécie de inventário de seu
passado. Relembra os estudos na capital do estado, episódios da infância, da
história de sua família e de sua cidade. A certa altura, lhe vem à mente a história
“dum fabuloso bisavô, seu homônimo, uma espécie de espadachim aventureiro que
amava a guerra, as mulheres, o violão e o baralho” (R1, p. 54, grifo nosso). Essa
citação do outro Rodrigo, o d’O continente, provoca uma imediata comparação e
conecta as personalidades dos dois homens. Distantes no tempo, porém
compartilhando o mesmo nome, os personagens de O retrato e O continente se
fundem e nessa relação a música se coloca como um elemento fundamental na
caracterização de ambos os personagens. Se o Cap. Rodrigo não se separava de
seu violão, Rodrigo Terra Cambará, embora não toque nenhum instrumento, é um
grande admirador de música, fato que provoca desdobramentos significativos na
vida do personagem e consequentemente na narrativa do romance.
Em Chantecler, temos como que um anúncio formal de intenções do
personagem Rodrigo Cambará. Como o pprio nome do capítulo anuncia, a
personalidade de Rodrigo se confunde com a do personagem principal da obra de
Edmond Rostand, um galo chamado Chantecler, figura impetuosa e atrevida, que
acreditava que seu canto era responsável pelo nascer do sol. Da mesma forma, a
personalidade expansiva de Rodrigo espelha características do personagem de
Rostand: a auto-suficiência que muitas vezes se transmuta em arrogância, a paixão
pela vida em seus mais variados aspectos, um quase-não-conter-se-em-si diante da
exuberância da existência. Rodrigo encerra em si elementos díspares: é um homem
culto, mas muitas vezes dado a atos de violência; é um homem terno, mas
profundamente agressivo quando tem seu orgulho ferido.
O título da peça de Rostand encerra ainda outras relações com Rodrigo: sua
relação com a França, fato que o torna também admirador de Rostand e de seu
personagem, tomando para si certas palavras e atitudes de Chantecler. A peça,
estreada em 1910 em Paris, identifica também a época, de intenso domínio da
França no terreno cultural.
No terreno musical, Chantecler tem em seu nome a relação com a música, o
“canto claro” de um galo que pensa ter poderes além de sua conta, e que baseia as
decisões a partir de seu penacho”. Esse “canto claro” se revela na chegada de
Rodrigo em Santa Fé. Homem emotivo e narcisista, ao ser recebido pela população
no seu retorno para Santa Fé, com uma banda tocando para ele, Rodrigo se
emociona multifacetadamente; pelo retorno, pelo orgulho de assim ser recebido e
pela emoção que a música lhe provoca:
Ouviu-se o estrondo do bombo e a banda de música rompeu num dobrado.
As notas vibrantes, em que sobressaíam as vozes dilacerantes dos
instrumentos de metal, engolfaram alegremente a plataforma. E quando os
braços de Toríbio o largaram, Rodrigo se viu frente a frente com o pai.
Vieram-lhe lágrimas aos olhos (...) A todas essas o dobrado continuava,
brilhante, explosivo, ensurdecedor, como que a aumentar o calor e a febril
confusão do momento (R1, p. 70-71).
A presença da banda na recepção de Rodrigo revela a cidade de Santa
em 1909, com uma paisagem musical que pouco mudou em relação ao século
anterior, que a existência de bandas de música na cidade era uma realidade
desde as últimas décadas do século XIX. Apesar disso, o novo século surge com
novas características sonoras. Uma dessas inovações é a invenção do gramofone e
dos discos, que trazem um mundo de possibilidades para localidades onde
determinados estilos musicais jamais chegariam. E o arauto da modernidade é
Rodrigo, que chega da capital cheio de idéias progressistas. É ele mesmo que
anuncia: “Comprei um gramofone e um mundo de chapas” (R1, p. 76). A música é
parte integrante das idéias de Rodrigo, que englobam reformas em áreas sociais,
políticas e culturais: o jovem Rodrigo é ambicioso e repleto de boas intenções, e é
para seu irmão Toríbio que ele expõe o seu ideário. Toríbio ouve o rosário de
intenções do irmão com um ar entre o deboche e a dúvida. Toríbio é provavelmente
o único personagem do romance que realmente possui a dimensão exata da
personalidade de Rodrigo. Nos momentos de dúvida extrema ou desespero, quando
a máscara das boas intenções cai por terra, é a ele que Rodrigo recorre. Do pai,
Licurgo, Rodrigo mantém certa distância e tenta cultivar uma imagem de bom filho,
de homem respeitável e maduro nas decisões. O velho Licurgo, se comparado ao
jovem Licurgo, se apresenta endurecido, despido da sensibilidade que apresentou
em certos momentos de O continente. O discípulo de Fandango, depois de velho,
não herda as preferências daquele pela música e pelas festas. na chegada do
filho em Santa Fé, lhe diz que “essa história de banda de música na estação foi idéia
do Cel. Jairo. Eu não queria. O senhor sabe que não sou homem dessas coisas...”
(R1, p. 72).
Ao reencontrar o irmão, Rodrigo expõe suas idéias para o futuro, e também
conta proezas dos tempos de estudante. Essas proezas envolvem elementos
musicais. A paisagem musical do estado na época é aos poucos vislumbrada em
meio às histórias de Rodrigo. Uma de suas namoradas era cantora, o que reitera a
atração familiar por personagens musicais. Rodrigo diz: “Apareceu este ano em
Porto Alegre uma companhia de zarzuelas
16
com umas espanholas morenas,
dessas de deixarem um cristão louco da vida” (R1, p. 80). Há aqui uma clara
referência à história da Teiniaguá: o neto de Bolívar Cambará é atraído pelo mesmo
sortilégio musical que paira sobre seus ascendentes. Agora tal atração não produz
nenhum malefício, mas no decorrer da narrativa encontramos momentos em que
essa atração se torna decisiva, o que traz uma série de conseqüências ao
personagem que o irmana aos seus antepassados no que diz respeito a sua relação
com a música.
Quanto à paisagem musical, a narrativa desta seção de O retrato documenta
um interessante período da história da música no Rio Grande do Sul, quando
companhias estrangeiras de óperas e operetas cruzavam o estado vindas do Rio de
Janeiro rumo à Argentina ou no sentido contrário, se apresentando em algumas
16
Zarzuela (GROVE, 1994, p.1043) é o nome dado à ópera nacionalista espanhola, mais
especificamente uma forma dramático-musical com diálogo declamado, partes musicadas e de
caráter popular.
cidades gaúchas que eram pólos de desenvolvimento, como Porto Alegre, Pelotas,
Santa Maria e Uruguaiana. Entre essas companhias se encontravam muitas
especializadas em zarzuelas. O gosto de Rodrigo pelas cantoras revela também
uma face musical: sua predileção pela ópera. O caráter dramático do gênero se
ajusta perfeitamente à sua personalidade, seus arroubos sentimentais, seus
exageros. E a ópera é a trilha sonora de muitos momentos no retorno à casa
paterna:
Rodrigo pôs-se a parodiar um tenor de ópera, e sua voz encheu o quarto de
banho, caricaturalmente empostada:
Io voglio, conoscere la bela Doralice
La bela, bela, bela Dora-Dora-liiiice! (...)
Pensou com saudade nas noitadas de opereta no Teatro São Pedro. Ah! La
Primavera Scapigliata... Os sinos de Corneville... A Viúva Alegre (...) (R1, p.
81).
A citação de nomes e passagens de óperas revela um retrato amplo da
paisagem musical da capital no período. Compositores hoje esquecidos ou
raramente lembrados eram nomes famosos da época, como Lehár
17
, compositor d’A
Viúva Alegre, Planquette
18
, autor de Os sinos de Corneville, e Josef Strauss
19
,
compositor de La primavera scapigliata. Todos compuseram o óperas, mas
operetas, o que dá uma dimensão do gosto da época, e também das preferências de
Rodrigo, já que a opereta é um gênero mais leve e mais fácil que a ópera
20
.
Outro aspecto da personalidade de Rodrigo que guarda ressonâncias
musicais é sua relação com o velho Fandango. Enquanto Licurgo se torna mais
severo e fechado com a idade, Rodrigo parece herdar muitos traços do pai quando
jovem, entre eles a admiração por Fandango:
17
Franz Lehár (1870-1948): compositor austríaco de origem húngara, tem em seu currículo operetas
de sucesso como O conde de Luxemburgo (1909), Amor cigano (1910) e Paganini (1925), além da
citada A viúva alegre, de 1905 (GROVE, 1994, p.528).
18
Jean Robert Planquette (1848-1903): compositor francês. Estudou no Conservatório de Paris. É
considerado um artista consciencioso, que obteve seus maiores êxitos compondo operetas como a
citada Os sinos de Corneville, de 1877, e Rip van Winkle, de 1882 (GROVE, 1994, p.729).
19
Josef Strauss (1827-1870): compositor austríaco, filho de Johann Strauss (I) e irmão de Johann
Strauss (II) e Eduard Strauss, todos compositores. A família contribuiu decisivamente para o
estabelecimento da valsa vienense em sua expressão clássica (GROVE, 1994, p.909).
20
Opereta é um termo utilizado nos sécs.XVII e XVIII para toda uma variedade de obras mais curtas
ou menos ambiciosas que a ópera e, no final do séc.XIX e início do séc.XX, para uma ópera ligeira
com diálogo declamado e danças (GROVE, 1994, p.675).
Fandango é eterno – pensou Rodrigo, emocionado. Não era um ser humano
mortal, mas um elemento da natureza. Era como uma grande árvore antiga
por sobre a qual passavam as tempestades, as chuvas, o vento e o tempo
(...) Conservava a prosápia tanto nos bons como nos maus tempos; topava
todas as paradas, e onde quer que houvesse música e dança, estava ele
a tomar parte da folia (R1, p. 88).
A admiração por Fandango exclui o gosto pela vida no campo, que Rodrigo
é um homem eminentemente urbano. Mas a disposição festiva perdida pelo pai em
nenhum momento é abandonada pelo filho. Embora almeje a reforma da sociedade
ao seu redor, o espírito festivo e muitas vezes picaresco fala mais alto: apesar da
cultura e das experiências vividas longe de Santa Fé, a presença de Fandango é
marcante na personalidade do filho de Licurgo.
2.2.1.1 Música no Sobrado
Entre as resoluções que Rodrigo toma no seu retorno para a cidade natal,
está a vontade de movimentar social e culturalmente a casa paterna. Aqui surge
pela primeira vez uma característica da paisagem sonora que é própria do século
XX: a evolução tecnológica, que modifica a paisagem musical da cidade ao lhe
incorporar novos elementos. Rodrigo traz consigo de Porto Alegre um gramofone e
discos e pretende fazer pequenas reuniões com os amigos para dar início à
pretendida movimentação cultural. É para o irmão Toríbio que ele anuncia:
Temos de fazer por umas tertúlias, uns serões, convidar gente
interessante, conversar, ouvir música, dar mais alma àquele casarão. E
para animar a festa não nada como uma boa vinhaça, bons charutos e
um caviarzinho (R1, p. 107).
Em Rodrigo, a personalidade cultural nunca está desconectada do bon vivant,
e um encontro social sempre vem acompanhado do seu lado festivo, onde ele pode
dar largas a seu espírito muitas vezes perdulário. Em Rodrigo Cambará, a
generosidade para com terceiros e o interesse em seu próprio bem estar aparecem
na mesma medida.
Esses encontros no Sobrado apresentam um aspecto que transcende os
limites de O retrato, se prolongando até a narrativa de O arquipélago e dão
depoimentos preciosos a respeito da paisagem musical da época. Como os
encontros e saraus acontecem em épocas diferentes é possível acompanhar as
mudanças sutis no gosto musical, os modismos e as novidades, e também a cor
local contrastada com o universal trazido pelos discos.
na órbita do Sobrado amigos de Rodrigo que funcionam como
depoimentos históricos, referentes ao início do século XX, a respeito de figuras
musicais que tiveram um importante papel na música das pequenas cidades:
músicos amadores, profissionais liberais que gostavam de música (e do entorno
social que ela envolvia) e que se tornavam divulgadores de diversos estilos musicais
numa era em que o rádio ainda não existia. Os três personagens que encarnam
essa característica são Saturnino Lemos, Chiru Mena e Neco Rosa.
Saturnino é ecônomo do Clube Comercial de Santa Fé, mas sua principal
habilidade é musical: “Era um tocador de flauta, especialista em valsas lentas e
modinhas sentimentais” (R1, p. 109). Seu melhor amigo é Chiru Mena, boêmio
inveterado e também músico, embora ocasional, que “não tinha profissão (e) andava
sempre às voltas com bailarecos, ceias e serenatas” (R1, p. 109). A esses dois se
junta Neco Rosa, barbeiro de profissão mas também violonista, conhecedor de
modinhas possuidor de “uma voz grave e bem entoada, duma doçura lânguida de
seresteiro” (R1, p. 115). Essas observações musicais, acompanhadas das
caracterizações sonoras de cada indivíduo, são traços marcantes na obra de Erico
Veríssimo. A descrição de Neco é especialmente apurada, dando detalhes do
repertório e dos autores que o barbeiro-músico domina:
Enquanto escanhoava o amigo, Neco cantarolava o Talento e a Formosura,
modinha que estava muito em voga, pois o famoso Mário a gravara em
disco de gramofone para a casa Édison.
Tu podes bem guardar os dons da formosura,
Que o tempo um dia há de, implacável, trucidar,
Tu podes bem viver ufana da ventura,
Que a natureza, cegamente, quis te dar! (R1, p. 115)
Essa modinha, muito popular no início do século, é de autoria de Edmundo
Otávio Ferreira, e é considerada sua obra mais famosa. Os versos são de Catulo da
Paixão Cearense. A música foi gravada por diversos intérpretes, o que atesta sua
popularidade numa época em que a tecnologia de gravação ainda estava nos
primórdios. Entre os cantores que a gravaram estava Mário Pinheiro, um dos nomes
mais conhecidos da época. No entanto, Mário Pinheiro a gravou para a Odeon, em
1905, e não para a casa Édison, como consta no texto
21
.
O fato de Neco ser além de seresteiro também barbeiro de profissão propõe
um diálogo intertextual com um personagem primordial da literatura musical: o
Fígaro, presente nas óperas As bodas de Fígaro e O barbeiro de Sevilha. Ambas as
óperas foram baseadas em obras de Beaumarchais
22
, escritas na segunda metade
do século XIX. Foram postas em música por Paisiello e Rossini (O barbeiro de
Sevilha) e Mozart (As bodas de Fígaro).
Fígaro é barbeiro como Neco Rosa, e também é músico, companheiro de seu
amo, o Conde de Almaviva, nas mais diversas incursões, que incluem perigos,
festas e aventuras envolvendo mulheres. Neco também age como uma espécie de
pajem de Rodrigo, um servidor humilde, mas também amigo e companheiro de
aventuras. O que diferencia Neco Rosa de Fígaro é a capacidade deste último de
questionar e mesmo contrariar as atitudes de seu amo. Neco jamais questiona, é
apenas o fiel amigo e servidor.
Outro aspecto fundamental da música feita no Sobrado é uma característica
própria do século XX, que é a presença das novas tecnologias. O principal reflexo
musical disto é o gramofone comprado por Rodrigo que amplia as possibilidades da
paisagem musical a um nível antes inimaginável. O próprio Rodrigo uma medida
dessas possibilidades:
21
Para mais detalhes a respeito, ver Cravo Albin (2006) nos verbetes referentes a Edmundo Otávio
Ferreira e Mário Pinheiro. Existe ainda uma segunda gravação da mesma música por Mário Pinheiro,
pelo selo Victor Record, em 1912, portanto depois da época em que se passa a narrativa (1909).
22
Pierre Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799): escritor e dramaturgo francês que se opôs às
regras da tragédia clássica francesa escrevendo peças sérias de alto teor político em prosa simples
(GROVE, 1994, p. 85).
Dentro duma semana chegarão os caixões com os livros, o gramofone e as
chapas. As vozes do Caruso, do Amato, da Pattie da Tetrazzini vão encher
as velhas salas do Sobrado. Os fantasmas de nossos antepassados serão
varridos ao som do Rigoletto, de La Bohéme, de La Traviata! Levando a
mão ao peito começou a cantarolar um trecho de Il Trovatore. Terminou
num agudo desafinado, que procurou encobrir com uma risada (R1, p. 176).
A audição de um tipo de música que seria muito difícil de ser trazida para uma
apresentação real em Santa Fé, agora encontra um canal através da tecnologia.
Tecnologia que permite a repetição ad infinitum de uma música, ao gosto de quem
estiver ouvindo. Essa novidade produz mudanças significativas nos hábitos e na
paisagem musical, senão da cidade inteira, ao menos nos freqüentadores do
Sobrado.
Outro aspecto fundamental é o repertório que Rodrigo ouve, que reproduz um
momento histórico sui generis, que a ópera foi um dos primeiros gêneros a serem
maciçamente gravados, tendo essas gravações obtido grande sucesso nas vozes de
cantores como os citados no texto: Caruso, Amati, Pattie Tetrazzini. Muitas destas
informações vieram de vivências do próprio Erico. Em Solo de Clarineta, ao falar de
seu pai e de sua infância, ele nos dá o seguinte depoimento:
(Sebastião Veríssimo) adquiriu um gramofone, de cuja campânula saíam as
mais belas melodias que então existiam no Brasil gravadas em discos. Era
um apaixonado da ópera e da opereta. De vez em quando mandava vir a
Cruz Alta, sob sua responsabilidade, companhias de operetas italianas
(VERISSIMO, 1978, p. 18).
Muitas outras influências da infância do escritor são transpostas para dentro
de O retrato, inclusive as semelhanças de seu pai com Rodrigo. A descrição das
festas na casa paterna parecem um fragmento das páginas de O retrato, não
apenas no aspecto musical:
Nas reuniões de nossa casa servia-se sempre champanha Veuve Clicquot,
caviar russo, atum italiano, sardinhas portuguesas, salsichas de Viena e
pâtê de foie gras do Périgord. Sob qualquer pretexto ou por motivo nenhum
trocavam-se brindes, batiam-se taças, enquanto Caruso fazia vibrar os
cristais sustentando as notas agudas de suas árias operáticas
(VERISSIMO, 1978, p. 19).
O dia em que finalmente chega ao Sobrado o carregamento com os discos,
os livros e o gramofone, Rodrigo exulta. A abertura das caixas se assemelha a um
ritual, e funciona como um depoimento histórico da chegada da tecnologia sonora ao
interior do Rio Grande do Sul:
Trouxe para fora, primeiro a grande campânula esmaltada, azul e creme.
Depois, com o auxílio do amigo, retirou o corpo do gramofone e colocou-o
em cima da mesa. Foi tirando dentre a palha, com muito cuidado, as caixas
de papelão que continham os discos. Abriu a primeira.
- Isto é uma preciosidade, Chiru. As melhores chapas dos mais famosos
cantores do mundo. Começou a examinar os discos, tirando-os de seus
envelopes de papel pardo.
As árias de Caruso! Chiru aproximou-se e olhou. Na parte superior do rótulo
vermelho via-se a marca registrada do produto: um fox-terrier branco diante
da campânula dum fonógrafo, a escutar: por baixo, estas palavras: His
Master’s Voice (R1, p. 209)
Nenhum detalhe é deixado de lado: a descrição do material utilizado, das
impressões dos rótulos, das cores e também do repertório dos discos, que Rodrigo
comenta com gosto para um atarantado Chiru Mena, que o auxilia na tarefa de
montar o aparelho:
- Vesti la giubba. È formidável, Chiru, e o Caruso canta isto como ninguém.
Ah! O Sonho de Manon... O Racconto di Rodolfo... A grande ária de Aida...
O Cielo e Mar da Gioconda... O M’Appari, da Marta. À medida que lia os
títulos, Rodrigo trauteava a melodia correspondente (R1, p. 210).
Rodrigo é o arauto de um novo mundo sonoro. Os detalhes do repertório dão
a medida do que se ouvia nas salas burguesas no início do culo. A popularidade
da ópera, particularmente da ópera italiana, é enorme. São citados direta ou
indiretamente compositores como Verdi
23
, Leoncavallo
24
e Ponchielli
25
, mas se intui
23
Giuseppe Verdi (1813-1901) é considerado o principal compositor italiano de óperas da segunda
metade do século XIX.
daí a presença de toda uma constelação de compositores próximos a estes como
Puccini, Donizetti, Bellini, Mascagni, entre outros. Também são citados indiretamente
o alemão Friedrich von Flotow, através da ária M’Appari, de sua ópera Marta,e o
francês Jules Massenet, autor da ópera Manon.
O decorrer da narrativa revela mais detalhes a respeito do repertório
ouvido na época. Ao verificar que um disco havia se partido, entre impropérios,
Rodrigo demonstra grande familiaridade com obras e compositores, além de ensejar
observações (um tanto cômicas) sobre as condições educacionais do país:
De súbito franziu o cenho. Um disco rachado! Leu o rótulo: Di Quella Pira,
por Enrico Caruso. Cachorros! exclamou, indignado. Cornos duma
figa, filhos duma grandessíssima... Soltou o palavrão com raiva. Então
esses animais não vêem o que está escrito no caixão. Frágil! Frágil!
Apontava para o letreiro. Mas não sabem ler. São analfabetos,
irresponsáveis. Este país está perdido. Canalha! Logo este disco, a ária do
tenor, Madre infelice, corro a salvarti. É quando Manrico descobre que a
cigana que está sendo queimada viva é mãe dele... No fim tem um agudo
espetacular como o Caruso sabe dar. Não, seu Chiru, essa gente a
bala, só a bala (R1, p. 209)
A ária citada pertence à ópera Il Trovatore, do compositor italiano Giuseppe
Verdi. Rodrigo revela intimidade com minúcias da ópera, o que a medida do
gosto que tem pelo gênero. Não casualmente, esta é uma das óperas mais
populares de Verdi, tendo sido estreada em 1853, em Roma. Segundo Zito Baptista
Filho:
Apesar da violência e da sua pouca originalidade, o texto do libretista
Salvatore Cammarano, baseado na peça de Antonio García Gutiérrez, El
Trovador, não conseguiu arrastar para o esquecimento esta que foi a
décima-sexta ópera de Giuseppe Verdi. Ao contrário, Il Trovatore, como
ópera, perdura como um dos êxitos maiores do chamado “segundo período”
24
Ruggiero Leoncavallo (1857-1919), compositor e libretista italiano, é hoje reconhecido pela única
obra com a qual obteve sucesso em sua vida, Pagliacci, de 1852.
25
Amilcare Ponchielli (1834-1886) é hoje reconhecido por La Gioconda, uma de suas várias óperas.
Também compôs música sacra e foi professor do Conservatório de Milão, tendo entre seus alunos os
compositores Puccini e Mascagni.
verdiano, o das grandes e extensas árias, carregadas da mais forte emoção
(BAPTISTA FILHO, 1987, p. 602).
Rodrigo parece se identificar plenamente com o caráter dramático e algo
rocambolesco desta e de outras óperas. Ao verificar que o disco quebrado continha
ainda outra música, Rodrigo revela mais detalhes do repertório ouvido à época:
Andava dum lado para outro, furioso, com o disco rachado na mão. Logo
o Di Quella Pira! Vou escrever um artigo nA Farpa para arrasar com a
Compagnie Auxiliaire. Sua fúria redobrou quando viu o que estava gravado
na outra face do disco: - O Miserere! Logo o Miserere. Miseráveis! Cretinos!
O Brasil não tem mais compostura. Só o Mal. Hermes. É o que este país
merece (R1, p. 209).
O Miserere dá indícios de um outro tipo de repertório, não ligado à ópera, mas
que fazia sucesso no início do século XX. Composto pelo italiano Gregorio Allegri, o
Miserere é um dos raros exemplos de música religiosa de cunho erudito que
alcançou popularidade à época. Também no estilo, a música foge do gosto
predominante. Allegri, que nasceu em 1582 e faleceu em 1652, foi um compositor
que viveu no fim do Renascimento e início do Barroco, e suas obras possuem a
influência desta conjunção de épocas. Naturalmente, como contém muitos
ornamentos e acrobacias vocais, a obra atraía cantores cujo repertório era formado
principalmente por árias de ópera, como Enrico Caruso. De qualquer forma, o
Misereri de Allegri se constitui numa exceção no repertório da época, que a maior
parte do que se ouvia era ligado à ópera italiana, e às vezes francesa, do século XIX
e início do século XX. A continuidade da narrativa revela ainda outros detalhes,
principalmente relativos aos intérpretes:
Rodrigo sorria, olhando os títulos dos discos. Tetrazzini no Vissi d’Arte e
uma ária de L’Africana... Tita Rufo no Rigoletto...Tamagno que voz
cavalar! – no Otelo... A ouverture do Egmont, de Beethoven. Ah! Uma
musiquinha leve: Loin du Bal (R1, p. 211).
Esses intérpretes marcaram época por serem os primeiros a terem suas
vozes gravadas em disco e divulgadas mundo afora. A popularidade obtida por
Caruso, por exemplo, dificilmente foi igualada pelas gerações seguintes, sendo
objeto de culto tanto na época quanto por gerações posteriores. A soprano italiana
Luisa Tetrazzini (1871-1940), que “fascinava as platéias operísticas com sua
coloratura brilhante e sua linha elegante” (GROVE, 1994, p. 942), era uma das
artistas extremamente populares no período, assim como o barítono Ruffo Cafiero
Titta (1877-1953), mais conhecido como Titta Ruffo, que se apresentou
frequentemente na América do Sul, principalmente no Teatro Cólon, em Buenos
Aires. Francesco Tamagno (1850-1905) foi o primeiro tenor a obter sucesso com
gravações, antes mesmo de Caruso. Pertencente a uma geração anterior, viveu
tempo suficiente para fazer gravações que foram realizadas entre 1903 e 1904,
pouco tempo antes de sua morte.
A passagem revela outra particularidade do repertório que não poderia faltar:
a presença de Beethoven. Mesmo esse compositor, que produziu principalmente
música instrumental, aparece com uma obra dramática: a abertura da música
incidental para a peça Egmont, de Goethe, apresentada pela primeira vez em 1810.
Rodrigo, como apreciador de ópera, não tem particular apreço por Beethoven ou por
compositores de música instrumental, por isso a escolha de uma obra
beethoveniana ligada ao teatro se revela uma escolha coerente. Ainda é citado no
texto o Loin du Bal, peça de caráter mais próximo da música popular de um
compositor hoje completamente esquecido, o francês Ernest Gillet (1848-1921).
Outro tópico significativo que surge na narrativa é o aspecto técnico da
reprodução sonora dos discos. As descrições são minuciosas:
Atarraxou a campânula na caixa do gramofone, ajustou uma agulha no
diafragma, deu manivela, colocou uma chapa sobre o prato e pô-lo a girar.
Depois fez a agulha descer para as bordas do disco e empurrou de leve o
diafragma... Ouviu-se um chiado forte, seguido dum acorde orquestral. A
voz de Caruso encheu a sala (R1, p. 211).
Cada pequeno detalhe da reprodução do som é narrado com fidelidade, além
da precisão técnica dos procedimentos: a colocação da campânula, da agulha, os
ruídos característicos deste tipo de aparelho, nada escapa ao narrador, denotando
mais uma vez o grau de interesse pelos mais variados aspectos musicais existentes
dentro da obra do escritor.
2.2.1.2 A Gioconda
Um dos personagens que aparecem no início de O retrato e que possui
ligações marcantes com aspectos musicais é Mariquinha Matos, filha de um
fazendeiro chamado Terézio Matos, que é mais conhecida em Santa Fé pelo apelido
de Gioconda. Na primeira manhã após o seu retorno a Santa Fé, Rodrigo sai a
passear pelas ruas da cidade acompanhado por Toríbio, que lhe põe a par das
novidades. Um dos lugares pelos quais passam é a casa da Gioconda:
No meio da quadra passaram pela frente da casa de Terézio Matos de
dentro da qual vinham os sons dum piano em que alguém tocava escalas.
Toríbio fez o irmão parar e disse-lhe:
- A Gioconda está estudando. Escuta. Cantarolou: -Cachorro vai cachorro
vem... cachorro vai cachorro vem...
- Método Czerny - disse Rodrigo. Conheço bem. Em Porto Alegre na
minha pensão havia uma mocinha, por sinal bem interessante, que todas as
manhãs tocava esses exercícios (R1, p.117).
Diversas passagens de O retrato dão a medida do interesse de Rodrigo pela
música e da atração que musicistas exercem sobre ele. Esta passagem em
particular também oferece uma visão do contraste existente entre ele e Toríbio:
Continuaram a andar lentamente, perseguidos por aquele repetitivo dó-re-
mi-fá-sol-fá-mi-re-dó.
- Um bom partido para ti, Bio...
- Quem? A Gioconda? Deus me livre!
- Por que não? É bonita, bem-educada, inteligente, sabe tocar piano e
dizem que tem bom dote...
- Pro inferno! Sabes que não penso em casamento e que se um dia ficar de
miolo mole e resolver me amarrar a alguém, não de ser a nenhuma
dessas piguanchas de cidade, que vivem na janela ou matraqueando num
piano. Mulher para mim tem que ser quituteira e ter mão boa pra fazer
queijo. E se não souber ler, tanto melhor! (R1, p.118).
O conhecimento do método de Carl Czerny reforça o fato que Rodrigo não
apenas gosta de música, mas procura conhecer detalhes a respeito
26
. A atração
familiar por figuras musicais desemboca nele, e os ambientes musicais, como pontos
onde os encontros sociais predominam, são locais que lhe agradam.
A presença da Gioconda tocando seu piano na sala de sua casa, com a
janela aberta, guarda, no entanto, um outro aspecto: de um mundo que passou, que
vai ficando lenta e inexoravelmente para trás. Traçando um paralelo com o sortilégio
musical lançado pelos personagens de O continente, Mariquinha Matos tenta
inutilmente atrair pretendentes com seu feitiço, mas até mesmo Rodrigo lhe é
indiferente. A canção que a Gioconda toca não atrai, antes afasta os homens.
Criada à maneira do século XIX, como uma mulher prendada e dentro dos princípios
burgueses, o fato de tocar piano é um mbolo de sua educação. Mas esse símbolo
soa como algo ultrapassado, como um engodo. Como o sortilégio de Luzia sobre
seu filho Licurgo perde a força, caindo no vazio, assim também a educação de
Mariquinha é algo relacionado a um mundo que fica rapidamente para trás: o mundo
burguês do século XIX. Embora nessa parte da narrativa ainda se perceba uma
possibilidade de atração na persona da Gioconda, aqui se antevê algo estático,
fixo num passado irrecuperável, e por isso mesmo vagamente ornamental: a moça
que gasta seus dias tocando piano e olhando as pessoas na janela aguarda um
pretendente, repetindo desesperadamente a música de sua educação enquanto o
tempo passa, inexorável. E a passagem do tempo confirma esse prognóstico. O
século XX, com suas tecnologias, suas guerras e revoluções, suas novas
necessidades, urge, e o mundo de Mariquinha Matos fica, lentamente, no passado.
2.2.1.3 Ópera e política
Com a volta de Rodrigo, as disputas políticas do município de Santa Fé se
acirram, e os desdobramentos dessas disputas apresentam diversos aspectos
26
Carl Czerny (1791-1857) foi um importante professor de piano, compositor, pianista e ensaísta de
música austríaco. Foi aluno de Beethoven e professor de Liszt, e ocupa uma posição única entre os
pianistas do século XIX, tanto como transmissor de idéias de um mestre para outro, quanto por sua
extraordinária produtividade durante uma época de mudanças formidáveis no piano e em sua
literatura (GROVE, 1994, p.243).
musicais. Em fevereiro de 1910, sai a público uma edição do jornal A Voz da Serra,
órgão da situação em Santa Fé. No editorial daquele dia, Licurgo, Rodrigo e o
Sobrado o atacados pelo editor Amintas Camacho com uma série de ofensas e
acusações. O tom é virulento e irônico ao mesmo tempo, mas também repleto de
aspectos musicais, entre eles a ópera:
Que importância pode ter o Dr. Rodrigo Cambará (ai, doutor da mula ruça!)
esse mocinho pelintra que pensa conquistar Santa Fé com sua ”formidável”
inteligência e seus dotes físicos? Ai, Rodriguinho! Onde foi que compraste
tuas botininhas de cano de camurça? E as tuas águas-de-cheiro? Quem
confeccionou essas roupinhas que te fazem o “dandy” mais completo de
Santa Fé? Teria sido o Salomão Padilha, teu amiguinho particular? Dizem
que trouxeste de Porto Alegre muitos caixões com bugigangas, e que entre
estas veio um gramofone, com chapas de Caruso. Seque o grande tenor
canta a famosa canção intitulada “Ismália Caré”? O estribilho é assim:
Ai Licurgo Cambará
Ai Licurgo Cambaré
Onde está, onde estará
A tua Ismália Caré? (R1, p. 246)
Curiosamente o fato de Rodrigo gostar de música é usado contra ele! Para o
código de macheza do gaúcho, ouvir música é um atributo feminino, coisa que não
se confirma nem mesmo com as mulheres da terra, como vimos com Bibiana
Terra Cambará. Logo, é possível para Amintas Camacho atacar o Sobrado por vias
musicais. O “fecho de ouro” do ataque é a exposição do chefe da casa e sua amante
à reprovação pública.
A plica ao editorial deveria sair o quanto antes, e Rodrigo se atira à tarefa
de escrever algo ainda mais virulento. A preparação para escrever a resposta é um
tour de force onde a ópera é o que move a exaltação passional do momento:
Quando se viu a sós no escritório, Rodrigo escancarou as janelas e pôs a
funcionar o gramofone. Caruso encheu a sala com sua voz vibrante e
metálica. Era a grande ária de Radamés. Rodrigo acendeu apressadamente
um cigarro, sentou-se ao bureau, mudou a pena da caneta e tirou da gaveta
algumas tiras de papel em branco. Tinha já achado a forma que ia dar à sua
resposta ao cachorro do Amintas. Escreveu o título: Carta Aberta a um
Crápula. Apanhou A Voz da Serra e releu, agora com mais calma, o
editorial. Viu em pensamento a cara pálida do bula, chegou aa sentir o
cheiro enjoativo do perfume que ele usava, e mentalmente esbofeteou-o
muitas vezes, com a palma e as costas da mão, como se estivesse a lavar a
tapas aquelas bochechas repulsivas. Ficou, depois, a escutar o tenor,
pensando vagamente em faraós, pirâmides, guerreiros... (R1, p. 248)
A escolha da música recaiu sobre uma ária da ópera Aida de Giuseppe Verdi.
A ópera, que estreou em 1871, no Cairo, apresenta uma história que se passa no
Egito, com um enredo passional onde questões como amor e liberdade (Aída é uma
escrava etíope por quem Radamés, oficial egípcio, se apaixona) estão presentes. A
exaltação passional da ópera reforça em Rodrigo o que já é exagerado por natureza.
A ópera funciona como a trilha sonora perfeita desse momento, quando Rodrigo
busca forças (e cultiva sua raiva) para melhor escrever a resposta:
O que sentia agora era uma raiva fria e fina, de mistura com a sensação de
haver sido tima duma formidável injustiça. De certo modo julgava-se
inatacável ou pelo menos invulnerável (...) O tenor aproximava-se da frase
final. Rodrigo levantou-se, como se a ele e não a Caruso competisse
arrancar do peito um si natural. Um trono vicino al ciel! cantou Radamés.
O copo vazio, em cima do bureau, vibrou. A voz de Caruso sumiu-se,
ficando apenas o chiado da agulha a rascar no disco. Rodrigo fez parar o
gramofone, voltou para a mesa e começou a carta: stula: Quando Deus,
num momento infeliz de mau humor, resolveu criar-te, viu logo que não eras
digno dum ventre de mulher, e por isso te fez nascer numa cloaca, como
produto do viscoso conúbio entre uma ameba disentérica e um verme
recém-cevado no cadáver dum chacal (R1, p. 249).
Não apenas nesse momento, mas em vários outros, Rodrigo recorre à ópera
como trilha sonora para as mais variadas ações e reflexões. A existência desse
repertório e de um meio para divulgá-lo, muda o entorno sonoro do Sobrado, dando-
lhe um novo sopro de vida musical e alterando significativamente a paisagem sonora
da cidade.
2.2.1.4 Trovas e serenatas
Mas nem de ópera vive a política de Santa Fé. Outros aspectos musicais
aparecem na narrativa, revelando a riqueza da paisagem musical do período. Um
desses aspectos é o da música popular feita no Rio Grande do Sul, particularmente
as trovas gauchescas, gênero de música que se tornou tradicional e que é cultuado
até os dias de hoje.
A trova que aparece em O retrato tem cunho político e está inserida no
contexto das eleições que se aproximam, quando os ânimos se acirram e a disputa
se torna mais incisiva. Nos dias que antecedem o pleito, capangas do prefeito, o
Coronel Trindade, chegam em grande quantidade em Santa e vão se instalando
na Praça da Matriz, armando acampamento e preparando assados. Tudo sob as
vistas de Rodrigo, que sente naquilo uma atitude de enfrentamento. A trova aparece
como mais um elemento da provocação:
Pouco antes do meio-dia começaram a aparecer os caboclos e se foram
sentando ou deitando à larga sombra da figueira. Um deles se pôs a tocar
cordeona e, dentro em pouco, dois cabras começaram a trovar. Um deles
cantou:
Eu me chamo Antônio Almeida
Do Jari sou natural
E cá estou em Santa Fé
Pra votar no Marechal
- Oigalê bichinho bom, seu! gritou um bigodudo que picava fumo
recostado ao tronco da grande árvore. A gaita chorou sozinha por algum
tempo. Por fim outro caboclo soltou a voz:
Pra votar no Marechal
Foi que vim de Santa Rosa
Ai que surra vamos dar
Nesse tal de Rui Barbosa! (R1, p. 288)
aqui uma subversão do modo mais comum da trova, quando um trovador
canta em contraposição ao outro. Parte da afronta se deve ao fato de que aqui, os
dois trovadores não se contrapõem, mas um apenas reforça o que o outro está
cantando. Como resposta a essa suprema ofensa, Rodrigo também utiliza uma
forma musical: “Rodrigo arrastou o gramofone para perto da janela e fê-lo funcionar.
E Caruso, cantando o Che Gélida Manina
27
, entrou também no torneio de
trovadores” (R1, p. 288).
Outro aspecto da paisagem musical que era muito comum no Brasil no fim do
século XIX até meados do século XX é a serenata, “uma cita musical em
homenagem a alguém, (...) uma canção tocada à noite, com acompanhamento
instrumental, por um galanteador, sob a janela da amada” (GROVE, 1994, p. 854).
nas páginas de O retrato uma serenata que fornece uma descrição detalhada da
maneira como esses eventos aconteciam. Esta serenata é feita para Rodrigo, de
surpresa, como era o costume na época. Rodrigo está dormindo, e aos poucos a
música que ele ouve no seu sonho se transforma na música real:
Teve um sonho confuso: andava de gôndola pelas ruas inundadas de
Paris... Na proa ia um vulto que lhe parecia ora Flora Quadros ora Marta
Schnitzler. A Torre Eiffel erguia-se acima do casario, imensa e ereta. O
velho Sérgio, vestido de galo, andava acendendo as luzes de Paris. E
Rodrigo achava estranho que o Sobrado estivesse na Place de l’Étoile, o
gondoleiro (seria o Schnitzler?) cantava uma canção que ele se esforçava
por identificar mas não conseguia... Abriu os olhos e continuou a ouvir a voz
do gondoleiro. Aos poucos identificou, na penumbra, a silhueta familiar dos
móveis do quarto. A voz vinha da rua. Uma serenata! Desperto, Rodrigo
sentou-se na cama. Reconheceu o vozeirão do Neco. Pôs-se de pé,
caminhou a a janela e ergueu a guilhotina. estava o barbeiro, a
dedilhar o violão e a cantar
Quisera amar-te mas não posso, Elvira
Porque gelado tenho o peito meu.
Saturnino acompanhava-o com trêmolos de flauta. No vulto ao lado do
ecônomo, Rodrigo reconheceu Chiru. Inclinou-se sobre o peitoril (R2, p.
334).
Como de costume, a descrição dos instrumentos é detalhada. Também o
repertório é descrito, geralmente composto por valsas e modinhas sentimentais. Em
diversas passagens, e não apenas quando serenatas acontecem, Neco é chamado
para cantar e seus talentos como seresteiro se evidenciam. Conhecedor do
repertório, toca o violão com desenvoltura e possui uma voz bonita e potente. Até
mesmo em momentos tensos, nos quais a possibilidade de brigas, revoluções ou
disputas políticas que podem descambar para a violência, mesmo Neco carrega
seu violão e seus talentos se evidenciam. Quando a disputa com Titi Trindade,
político e intendente de Santa Fé, se acentua, uma reunião dos partidários de
27
Esta ária pertence à ópera La Bohéme, do compositor italiano Giacomo Puccini (1858-1924).
Rodrigo para enfrentar uma possível luta ocorre no Sobrado. Neco também vai,
“armado de pistola e trazendo o violão a tiracolo” (R1, p. 269). A tensão do momento
não estraga o humor das pessoas presentes. “Alguém pediu a Neco que cantasse, e
o barbeiro não se fazendo rogar, tirou uns acordes do violão, limpou a garganta e
cantou a Margarida vai à fonte” (R1, p. 270).
Embora esses momentos tensos ocorram, e Neco e seus companheiros não
deixem de trazer seus instrumentos, as serenatas são mais comuns nos momentos
em que reina a tranqüilidade, e os passeios noturnos dos músicos fazem parte do
cotidiano da cidade.
2.2.2 A sombra do anjo
Na segunda seção de O retrato, intitulada A sombra do anjo, a narrativa dá
um salto para o ano de 1915, e encontramos Rodrigo casado com Flora, que
àquela altura dos acontecimentos pariu dois filhos, Floriano, nascido em 1911, e
Alicinha, em 1913.
Essa seção do romance, em termos musicais, é a que reproduz com maior
intensidade a situação dos sortilégios que ocorreram com os membros da família
Terra-Cambará, evocando os acontecimentos musicais dos personagens de O
continente. Desta vez, Rodrigo é a vítima, através da atração irresistível que a
relação entre a música e as mulheres provoca sobre a sua pessoa.
no início da narrativa, ao recordar os primeiros tempos de casamento,
Rodrigo lembra de seu envolvimento com uma cantora duma companhia de
operetas que ele havia trazido à Santa Fé:
Era uma noite quente de 1913 e por muito tempo ele permanecera de olhos
abertos, a recordar cenas da opereta a que assistira no Santa Cecília. Tinha
a mente cheia de música, vozes e imagens. Ficara impressionado com Gina
Carelli, a melhor Viúva Alegre que jamais vira em toda a sua vida. Era uma
jovem italiana, muito bem feita de corpo, de cabelos oxigenados e olhos
escuros, dona duma voz quente, duma doçura pegajosa. A soprano da
companhia era uma ragazza de feições clássicas: sua beleza, tranqüila e
pura convidava à contemplação estética. Mas La Carelli, a soubrette, essa
tinha uma boniteza jovial e meio canalha, que provocava a ação erótica.
Não era, entretanto, uma fêmea que fizesse pensar em sérias, vagarosas,
profundas paixões de alcova, mas sim em escapadas ocasionais, amores
roubados e urgentes, tanto mais excitantes quanto mais furtivos e
temperados de acidentes e incidentes grotescos (R2, p. 428).
A atração por Gina Carelli antecipa a paixão abrasadora por mulheres
talentosas, ligadas ao meio musical, que será o sortilégio de Rodrigo. O caso com
La Carelli antecipa até mesmo os métodos, a forma de Rodrigo trazer eventos
culturais para a cidade, seu talento para o mecenato, que visa atender também os
seus interesses particulares:
Como lhe custara trazer aquela companhia de operetas a Santa Fé! O
empresário exigia-lhe como garantia um mínimo de cento e vinte
assinaturas para cinco espetáculos, de sorte que ele, Rodrigo que
conseguira passar noventa e cinco entre os amigos tivera de pagar do
próprio bolso as vinte e cinco restantes. Mas valera a pena gastar todo esse
dinheiro para ter o privilégio de ver La Carelli a dançar um cancã no palco
do Santa Cecília, mostrando quase meio palmo de coxa (R2, p. 428).
Este prelúdio passional apenas prepara o caminho para o que será o grande
envolvimento amoroso-musical de Rodrigo: a jovem musicista austríaca Toni Weber.
O contexto do envolvimento também está repleto de nuances musicais, além de
políticas. Quando inicia a 1ª Guerra Mundial, Rodrigo fica do lado dos aliados.
Ambas as facções fazem manifestações de apoio nas quais a música está presente,
seja numa “marcha aux flambeaux em que os partidários dos aliados, puxados pela
banda de música militar, desfilaram pelas ruas de Santa Fé” (R2, p. 440), seja nos
“comícios e festas pró-Alemanha. Kerbs em que se cantavam hinos alemães e em
que o Deutschland über alles era repetido entusiasticamente como um refrão de
vitória” (R2, p. 441).
Como é da índole de Rodrigo, ao tomar partido pela causa dos aliados ele
assume imediatamente uma antipatia irascível contra os alemães, de forma aberta e
apaixonada. Essa irascibilidade se estende à família de músicos austríacos que
chega a Santa Fé para uma série de apresentações:
Quando, dias depois, Flora o convidou para irem ao teatro assistir ao
espetáculo da Philarmonische Familie, uma família de músicos austríacos
que percorria a América do Sul dando concertos, Rodrigo replicou: - Não
vou. Não quero saber de nada com esses boches (R2, p. 495).
Ao notar que Flora havia ficado magoada com a resposta de Rodrigo, quem
dá a última palavra é Maria Valéria, com a afirmação profética de alguém que
conhece a personalidade do sobrinho: - Não faça caso do que ele disse. Aposto
como amanhã ele bota esses burlantins pra dentro de casa” (R2, p. 496). Alheios à
posição de Rodrigo, os santa-feenses aplaudem a apresentação:
No dia seguinte a Família Filarmônica era o assunto obrigatório em quase
todas as rodas de Santa Fé. O teatro estivera completamente cheio na
primeira noite e o espetáculo fora um sucesso. Os espectadores afirmavam
com unanimidade que, além de músicos consumados, os austríacos eram
pessoalmente simpaticíssimos. Herr Weber tocava violino, clarineta e flauta.
Frau Weber, piano e órgão. O jovem Wolfgang, além de admirável tocador
de cordeona, era um prodígio no xilofone. E os moços da terra estavam
positivamente entusiasmados ante a beleza e a graça de Fraulein Weber,
que tocava violoncelo e oboé (R2, p. 496).
Para Rodrigo, ficar afastado daquilo que é o centro das atenções no momento
é algo extremamente difícil. Os comentários das pessoas minam sua resistência e a
popularidade atingida pelo grupo após sua primeira apresentação desperta sua
curiosidade:
Pela manhã, ao sair para o consultório, Rodrigo começou a ouvir elogios
à Philarmonische Familie. O primeiro partiu do Pitombo, que ao avistá-lo,
atravessou a rua e veio dizer-lhe com os olhos pegajosos de emoção: - Que
beleza, doutor! Que coisa sublime! Nunca vi orquestra melhor em toda a
minha vida. Quando fechei os olhos na platéia, tive a impressão que estava
no reino dos céus, escutando os anjos. É bem como diz o poeta, a música é
o idioma dos deuses (R2, p. 496).
E assim, sucessivamente, as pessoas da terra davam depoimentos a respeito
daquela família surpreendente. Do pai que sofria do estômago e se alimentava
de leite e frutas” (R2, p. 496); da mãe que ”gostava de cerveja e era muito alegre”
(R2, p. 496); do filho que “tinha um jeito suspeito, meio adamado” (R2, p. 496); e
principalmente da moça, “linda como uma estampa” (R2, p. 497), e
complementavam que “os machos da terra andavam assanhados” (R2, p. 497).
Rodrigo mantinha o “seu boicote psicológico à família austríaca” (R2, p. 497), mas o
médico Carlo Carbone argumenta que
(...) fazia muito tempo que não ouvia tão boa música nem via tão brava
gente. Herr Weber parecera-lhe um “gran maestro”, Frau Weber, uma
contralto “de la piú pura scuola” e la ragazza (...) tinha um rosto belíssimo
que lembrava as madonas de Botticelli (R2, p. 497).
Carbone quebra os últimos laivos de resistência de Rodrigo quando afirma
que “a arte não tem pátria, carino, a arte é universal e eterna” (R2, p. 497) e lhe
oferece as entradas para a apresentação daquela noite.
Toda essa digressão tem um poder muito semelhante aos sortilégios sofridos
por Ana Terra, Bibiana e Bolívar. Rodrigo é envolvido lentamente em uma teia de
acontecimentos onde a música tem um papel fundamental, e o complemento desse
sortilégio acontece na noite da apresentação. Todas as mulheres com as quais
Rodrigo havia tido algum relacionamento que possuíam ligações musicais, não
tinham o poder de envolvê-lo completamente devido ao ar “meio canalha” (R2, p.
428) como Rodrigo se referiu a Gina Carelli. A relativa vulgaridade que envolvia
essas mulheres o impediam de uma completa entrega. Daí o poder de sedução de
Toni Weber, a força da inocência aliada ao talento musical, a única arma para a qual
Rodrigo não estava preparado.
A apresentação da noite é cuidadosamente descrita, reproduzindo o
repertório do grupo com minúcias. A cada evolução da apresentação, Rodrigo se
encanta mais. A teia sonora involuntária de Toni Weber envolve Rodrigo:
A primeira parte do programa da Família Filarmônica naquele segundo
espetáculo foi dedicada a canções folclóricas do Tirol e da Baviera (...) A
verdade era que desde o primeiro número se estabelecera uma tão forte
corrente de simpatia entre os artistas e o público, que Rodrigo teve a
sensação de que a própria atmosfera física do teatro se aquecera e de que
os Weber não se encontravam num palco e sim numa das salas de sua
residência, em Viena, no início dum tranqüilo serão musical (...) A atenção
de Rodrigo, porém, desde logo se concentrara em Toni Weber, que estava
vestida de branco e trazia laçarotes de fita azul nas pontas das tranças o
que lhe dava um comovedor ar de colegial. O Dr. Carbone estava
enganado. A Fraulein não tinha a cara rechonchuda das madonas de
Botticelli cujas bocas em geral pareciam estúpidos botões de rosa. Sua face
era dum perfeito oval e os olhos claros duma tonalidade que Rodrigo de
longe não podia discernir (...) Na segunda parte os Weber evocaram a
Viena da opereta, tocando valsas e pot-pourris, com um gosto e uma alegria
contagiantes. Quando o jovem Wolfgang interpretou ao xilofone alguns
trechos de Offenbach e Strauss, acompanhado pela mãe ao piano e pelo
pai ao contrabaixo, o público aplaudiu freneticamente e um dos Spielvogel
chegou a erguer-se na platéia para gritar bis. Rodrigo também aplaudiu.
naquela altura do concerto se declarava vencido e convencido como
também enternecido por aquela esplêndida família de músicos (R2, p. 499-
500).
O concerto envolve Rodrigo a tal ponto que, no decorrer da apresentação,
suas opiniões já haviam mudado radicalmente:
O filho mais velho do casal estava na guerra e numa localidade de São
Paulo, durante um espetáculo da Família, um grupo de aliadófilos provocara
uma tremenda vaia, chegando ao ponto de atirar nos Weber ovos podres e
tomates. Canalhas! exclamou Rodrigo, indignado. Onde está a nossa
tradição de hospitalidade? Que idéia essa gente vai fazer de nossa
educação e de nossa cultura? Precisamos prestigiar essa família (R2, p.
501).
A terceira parte do programa, dedicada à música séria, transcorre num
crescendo de envolvimento de Rodrigo. uma nota de crítica ao público, já que os
ânimos arrefecem e a música, mais complexa, deixa a platéia aborrecida. São
tocados o adágio da Sonata a Kreutzer
28
, de Beethoven, e um Romance de
Schumann. Quando Toni Weber toca uma passagem do Oratório da Páscoa,
Rodrigo finalmente sucumbe, o sortilégio estava completo:
28
Nome pelo qual é conhecida a Sonata para violino em maior op. 47, composta em 1803 e
dedicada a Rodolphe Kreutzer, violinista, compositor e professor francês (GROVE, p. 887).
A voz pastoral e merencória do oboé começou como que a riscar um sereno
desenho no ar. Era um trecho do Oratório da Páscoa, de João Sebastião
Bach. Rodrigo teve a sensação de que o erguiam da cadeira, deixando-o
em levitação. Aquela melodia pura, duma tristeza profunda mas sem
desespero, despertava nele ecos misteriosos, saudades inexplicáveis. Tinha
a intuição de que ouvira, sentira, amara e até tocara numa outra vida
muito remota e numa outra paisagem igualmente perdida... Sim, ele
também achava um nadinha ridículo uma moça soprar naquele instrumento.
Sentia para com aquela menina de ar tão inocente uma certa piedade
mesclada de ternura e ao mesmo tempo de um desejo lúbrico que
procurava exorcisar, indignado consigo mesmo, pois tanto a música como a
intérprete deviam inspirar-lhe sentimentos e pensamentos puros (R2, p.
501).
Dois aspectos se sobressaem na passagem acima. O primeiro é a
incapacidade de Rodrigo de dissociar o aspecto sexual e lúbrico mesmo em
momentos de intensa vivência espiritual. Aqui, também se evidencia sua
incapacidade de se distanciar dos preconceitos de seus conterrâneos quanto ao fato
de uma mulher tocar instrumentos de sopro. O segundo aspecto que se apresenta é
a repetição em Rodrigo das sensações de Ana Terra com relação a Pedro
Missioneiro. O toque sensual dos lábios no bocal do instrumento de sopro é o centro
das atenções tanto de Ana quanto de Rodrigo. A cena em que Ana se entrega a
Pedro à beira d’água na fazenda de seu pai é de certa forma revivida na lembrança
da sanga do Angico:
No entanto, a coisa era superior às suas forças, pois seu olhar estava
poderosamente preso aos lábios de Toni, que se pregueavam, carnudos e
móveis, em torno do bocal do oboé. Fechou os olhos. Foi pior, porque a
Toni de seus pensamentos estava completamente despida à beira da sanga
do Angico, e a voz de Bio misturava-se com a melodia de Bach, esta a
elevar Rodrigo para o céu, rumo das estrelas, a outra a arrastá-lo para a
grama e a insinuar libidinagens (R2, p. 501-502).
A continuação do programa apenas confirma o efeito produzido por Toni e a
música no espírito de Rodrigo, e é com metáforas de ordem sonora que ele tenta
imaginar a moça:
(...) ouvindo a Rêverie e contemplando Toni Weber, ele tornava a sentir
milagrosamente a volta do antigo fascínio. Que tristeza na fisionomia da
menina! Como seria a voz dela? Grave, como a do violoncelo ou alta como
a do oboé? (R2, p. 503)
Os dias subseqüentes são dedicados à tarefa de se aproximar da família e
conhecer Toni pessoalmente. Como os Weber foram abandonados pelo seu
empresário e se encontram em condições financeiras críticas, Rodrigo pode se
apresentar como mecenas. Soluções são propostas e a família se estabelece em
Santa Fé.
Estabelecidas as relações com os Weber, são freqüentes os convites para
reuniões no Sobrado e esses serões estão repletos de música, não mais produzida
pelo gramofone, mas ao vivo: “Nas noites de segunda, terça e sexta-feira, quando
não havia função no cinema, os Weber compareciam aos serões do Sobrado, onde
ficavam a conversar, a comer, a beber e a fazer música” (R2, p. 511). Esses
encontros provocam pequenas dissensões entre os convivas habituais, notadamente
os Carbone, que, por serem italianos, estavam em guerra com a Alemanha. Por
isso, “Rodrigo procurava evitar qualquer referência direta ou indireta à Guerra” (R2,
p. 511). Outra dissensão que surge nesse momento é de ordem musical:
Outro que parecia ralar-se em silencioso despeito era o Saturnino, cuja
flauta andava calada desde o dia em que Herr Weber entrara no Sobrado.
Uma noite, depois que o maestro” interpretara na flauta uma composição
de Schumann, Saturnino aproximou-se de Neco e sussurrou-lhe: - Toca
bem, mas não tem alma. Esses gringos são frios. E o seresteiro, com ar de
entendido, acrescentou: - Frios como focinho de cachorro (R2, p. 512).
O despeito do seresteiro traduz um elemento educacional tipicamente
brasileiro, que é o fato de grande parte dos músicos possuírem uma formação
autodidata, carecendo de maiores estudos. A falta de escolas, professores e
também da música como disciplina em escolas fez com que grandes talentos
tivessem uma formação irregular, e apenas o talento explica o fato de muitos se
sobressaírem como músicos. O que resta é certo sentimento de inferioridade diante
de músicos com uma formação mais aprofundada, capazes de ler música com
fluência e enfrentar dificuldades técnicas com propriedade. Nesse momento, no
entanto, a reclamação do seresteiro cai no vazio. Os freqüentadores do Sobrado
estão imersos num universo de novidades musicais. Tanto as serestas como as
costumeiras árias de ópera são substituídas por peças de compositores germânicos,
o que ocasiona outra discussão, agora entre Dr. Carlo Carbone e Herr Weber:
Numa noite em que discutiam compositores, Herr Weber (...) fez uma
dissertação sobre a decadência da sica italiana, para tortura de Rodrigo,
que ficou todo o tempo como que sobre brasas, a observar, apreensivo, o
Dr. Carbone. Quem examinasse dizia o maestro a música italiana do
século XIX e princípio do XX, com seus xaroposos compositores operáticos
como Verdi, Puccini e Leoncavallo, dificilmente compreenderia que aquela
mesma pátria, onde o Renascimento tivera seu apogeu, houvesse
produzido no passado músicos como Vivaldi, Cimarosa, Pergolesi, Scarlatti
e tantos outros. O Dr. Carbone avançou com um copo de vinho numa das
mãos e a piteira na outra. Verdi xaroposo? Era o cúmulo da estupidez, da
ignorância e da má vontade fazer uma afirmação como aquela! (R2, p. 512).
Muito mais ampla que uma mera discussão entre convivas, a questão reflete
duas tendências estéticas antagônicas do Romantismo no século XIX, que são as
escolas alemã e italiana. A despeito de toda a tradição operística italiana, a
Alemanha se firmava como uma potência estética nessa área, principalmente
através do trabalho de Richard Wagner. Segundo Donald Jay Grout:
A importância de Wagner é tripla; levou à perfeição a ópera romântica
alemã, de uma maneira muito similar a que fizera Verdi com a ópera
italiana; criou uma forma nova, o drama musical; e na linguagem harmônica
de suas últimas obras, arrastou as tendências românticas até a dissolução
da tonalidade clássica; assim se converteu no ponto de partida de
evoluções que ainda prosseguem hoje em dia (GROUT, 1993, p. 747).
A discussão de Herr Weber e Carlo Carbone logo recai sobre Wagner.
Carbone vitupera:
Detestável era Wagner com suas cacofonias pretensiosas! Dali a mil anos,
Verdi, Puccini e Leoncavallo seriam ainda ouvidos, cantados e amados,
porque sua música era bela, doce clara e ia direto ao coração do povo (R2,
p. 512).
Fica claro que, a princípio, o que está em jogo na discussão é a posição
política de ambos, numa defesa de princípios italianos ou alemães. A escolha dos
compositores de um e outro país reforça suas posições nacionalistas. Herr Weber
afirma com convicção: “A ópera não passa de uma paródia musical. A verdadeira
música, para meu gosto, é a clássica. Dêem-me Bach e podem ficar com o resto!”
(R2, p. 512-513).
A discussão é permeada pelas observações de Rodrigo, que, se por um lado
quer preservar a civilidade da discussão, por outro visa causar uma boa impressão
nos Weber: “Numa bem torneada frase, e com boa dose de falsa modéstia, Rodrigo
confessou que sua ignorância o impedira de compreender e amar Bach” (R2, p.
513). Mas o mais importante é se aproximar de Toni, e subitamente ele percebe a
riqueza que adquiriu a sua vida depois da chegada dos Weber, riqueza essa envolta
em ressonâncias musicais:
A verdade é que aquela família estrangeira trouxera para sua vida um
interesse novo. Os serões do Sobrado tinham ganho mais animação, o
gramofone jazia mudo e esquecido no seu canto, e às vezes Rodrigo
julgava ver na campânula do aparelho uma certa expressão de ciúme que
lhe lembrava a fisionomia dos Carbone (R2, p. 514).
Toda essa atmosfera musical, de conforto e convívio íntimo apenas ressalta o
que está evidente: o sortilégio de Toni sobre Rodrigo está completo. Enquanto os
Weber tocam um quarteto de Mozart para cordas e piano (e a música de Mozart
apenas acentua a serenidade do momento), Rodrigo percebe que está imerso em
algo que possui um quê de indefinível e irremediável, preso que está em pequenos
gestos e características da moça, uma vez mais evocando o canto das sereias,
marítimo e musical:
A cor dos olhos de Toni continuava a ser para ele um enigma. Era um
cinzento que ainda o se havia decidido bem entre o verde e o azul, mas
que às vezes lhe parecia puxar mais para o azul. E agora, enquanto ouvia o
adágio do quarteto e observava a Fraulein, ele encontrava por fim uma
definição satisfatória para aquele par de olhos. Eram duas águas marinhas
puríssimas: dois lagos redondos, frescos e límpidos, em cujo fundo
nadavam peixes. Quando estava na frente da rapariga, Rodrigo tinha a
impressão de que sua própria imagem, refletida no fundo daqueles poços,
era como um grande e estranho peixe. E essa idéia o deixava conturbado.
Uma das coisas de que mais gostava era a risada de Toni uma risada
musical, com algo de vidro e de água, a sugerir um parentesco próximo com
os olhos (R2, p. 514).
A proximidade de Toni parece chamá-lo, numa atração ambígua onde o
angélico e o lúbrico se mesclam:
Quando mirava aqueles olhos de água-marinha, ficava lírico, tinha vontade
de escrever poemas. A boca da criatura, entretanto, não o convidava a
pensamentos puros: tinha lábios polpudos, palpitantes, dum vermelho vivo e
úmido (...) Mas a quando a água fresca daqueles olhos conseguiria
neutralizar o fogo daquela boca? (R2, p. 514)
Mesmo depois de terminado o sarau, a presença de Toni permanece, através
da música:
Acercou-se do gramofone. Não. Não toco. É tarde, os outros estão
dormindo. Depois, não convém desmanchar a impressão do quarteto...
Ficou de cabeça alçada a sentir a fumaça que subia do cigarro, e tentando
rememorar trechos da música (...) Aquele quarteto de Mozart – aéreo,
inocente matinal podia bem ser uma descrição musical de Toni Weber
(R2, p. 515-516).
Sentindo-se irremediavelmente apaixonado e acuado pelas desconfianças de
Flora e de seu irmão, Rodrigo entende que não tem saída. O passar dos dias o joga
definitivamente na direção de Toni, sem medir conseqüências. O golpe de
misericórdia em seus pudores foi o ciúme causado pela nascente relação de Toni
com Erwin Spielvogel. Mais uma vez a música permeia as relações:
Passou a tarde e a noite irritado. E no dia seguinte a irritação se agravou ao
chegar-lhe aos ouvidos a notícia de que Toni havia partido em companhia
dos pais para Nova Pomerânia, onde tomaria parte num Kerb. Rodrigo
conhecia bem aquelas farras que duravam às vezes três dias e três noites.
O que se bebia de cerveja! O que se comia! O que se cantava! O que se
dançava! (R2, p. 529).
O ciúme também se manifesta de forma musical, através da antevisão da
festa em que Toni tomaria parte. Ademais, a música expressa certo escalonamento
cultural, que Rodrigo se sente espiritualmente próximo da rapariga em termos
musicais, e percebe que Erwin Spielvogel nada tem a oferecer a ela nessa área.
Enquanto a relação dele e de Toni transita pela música erudita, na sua concepção
Erwin pode apenas oferecer a ela a música dos Kerbs. “Toni estaria no meio
daqueles rudes colonos ela, que lia Goethe e tocava Bach Toni, a sua Toni de
olhos de água-marinha. Cantaria com os outros o Deutschland über alles, e beberia
à vitória das forças do Kaiser...” (R2, p. 529).
Dias depois, no aniversário de Flora, num momento em que Toni sai da sala
em que estão os convidados para pegar seu violoncelo, Rodrigo consegue beijar
Toni pela primeira vez. Toni se desvencilha dele e segue de volta para a sala para
tocar. Rodrigo sai do Sobrado e vai até a praça para se acalmar. Também nesse
momento a música se faz presente com intensidade:
Pôs-se a andar meio as tontas na calçada, depois atravessou a rua na
direção da praça, meteu a mão no bolso, tirou um cigarro, prendeu-o entre
os dentes e, esquecido de acendê-lo, sentou-se num banco e dali ficou a
olhar, ofegante, para as janelas iluminadas do Sobrado (...) Chegavam
agora até ele, vindos de sua casa, os sons aveludados do violoncelo.
Rêverie. Rodrigo ficou a escutar... E a melodia caiu como um doce óleo
sobre as queimaduras de seu desejo, mas não as apaziguou: deu-lhes, isso
sim, uma esquisita pungência. E de novo ele teve vontade de ver Toni (R2,
p. 546).
A música traduz a atração de forma tão intensa, que o elemento musical
encontra ressonância até mesmo nos objetos:
(Rodrigo) Ficou olhando para a cadeira junto do piano aberto a cadeira
onde Toni se sentara para tocar a Rêverie. Era ridículo, absurdo, mas ele
envolvia na sua ternura erótica até o violoncelo de Toni, como se o
instrumento fosse uma parte anatômica daquele corpo querido (R2, p. 547).
Como um desfecho ao sortilégio, o que se segue é algo inevitável: Rodrigo vai
até a casa de Toni no meio da noite e ela se entrega a ele. A melodia que Toni
tocara no violoncelo ecoa como o canto da sereia: quando deixa a casa da moça,
Rodrigo começa “a assobiar distraidamente a Rêverie(R2, p. 549). O sortilégio que
se abate sobre a família Terra-Cambará se repete com Rodrigo em toda a sua
intensidade. Ao contar sua situação a Toríbio, é possível vislumbrar a extensão da
sensação de encantamento:
Toríbio estendeu-se no catre, de costas, e trançou as mãos sob a nuca.
Rodrigo sentou-se no peitoril da janela e ficou a olhar para o cata-vento da
Matriz, que o sueste mantinha num contínuo rodopio. Parece até feitiço,
Bio. Essa menina não me sai da cabeça. Penso nela o dia inteiro e quando
durmo sonho com ela. (...) A primeira vez que fui pra cama com ela, vi que
estava perdido. Compreendi que a Toni tinha sido feita pra mim, que não
podia pertencer a ninguém mais, que aquilo tudo estava acontecendo por
determinação do Destino e que portanto não adiantava fugir... E te confesso
sem nenhuma vergonha que, quando deixei o quarto dela na primeira noite,
cheguei a chorar de tão comovido (R2, p. 577).
O suicídio de Toni um terrível desfecho para a situação. aqui a
repetição da situação encontrada em Ana Terra: a inversão do canto da sereia. O
toque da flauta de Pedro Missioneiro atrai Ana, mas é Pedro quem perde a vida.
Também é Toni quem emite o seu canto na direção de Rodrigo, mas quem perde a
vida é ela. No entanto, enquanto Ana encontra forças para viver no amor pelo filho e
no ódio aos que mataram Pedro, Rodrigo afunda no remorso, pois se sabe culpado
pela morte de Toni, e essa culpa também se manifesta de forma musical. Depois da
morte da moça, a melodia da Rêverie persegue Rodrigo como uma cantilena de
acusação:
Sobre o fundo escuro das pálpebras ele como que viu uma menininha de
longas tranças com a face ternamente encostada no braço do violoncelo,
tocando a Rêverie. Em sua mente soaram as primeiras oito notas da
melodia, e ficaram a repetir-se dum modo obsedante, acompanhando a
cadência lenta e regular do sangue. (...) Tinha a impressão que o seu crânio
era uma casa enorme, como o Sobrado, onde soava um violoncelo enorme,
tocando uma música enorme, e cada nota era como uma ferroada que lhe
varava o cérebro (R2, p. 587).
A narrativa de A sombra do anjo contém um significado fundamental dentro
da trajetória de Rodrigo Terra-Cambará, que é o aspecto de sua decadência moral e
ideológica. Nesse sentido, o canto da sereia se concretiza, levando a quem o ouviu
não a jogar seu barco contra as rochas, mas ainda assim à morte de seus ideais
devido a um processo lento de degeneração. De certa forma, Rodrigo jamais se
recupera inteiramente da morte de Toni Weber, carregando o remorso por esse ato
vida afora. O âmago da questão está exposto nas palavras do próprio Rodrigo ao
conversar com Toríbio: “Tu sabes que na minha vida tenho tido muitas mulheres, de
todos os tipos e idades... Mas esta... esta é diferente, palavra de honra que é. O que
sinto por ela não é só desejo mas também ternura” (R2, p. 575).
A diferença fundamental entre Toni e as outras mulheres da vida de Rodrigo
torna-se um dos gatilhos de sua lenta derrocada e a personalidade da moça
ressoará por muitos anos em sua memória como uma sombra onde a música é o
ponto nevrálgico da dor.
2.2.3 Rosa-dos-ventos
O capítulo que abre O retrato, intitulado Rosa-dos-ventos, apresenta uma
série de características que renovam a paisagem musical de Santa Fé, pelo simples
motivo da narrativa ocorrer em um recorte no tempo que se passa no final do ano de
1945. Como acontecera antes em O continente, onde o tempo presente era a
revolução de 1893, enquanto a narrativa retroagia a diferentes pontos do passado,
assim também em O retrato uma moldura, composta de duas partes, colocadas
apenas no início e no final do livro, e não interpoladas em meio aos capítulos, sendo
o capítulo inicial Rosa-dos-ventos e o final Uma vela para o negrinho.
Ocorre que este fato interliga O retrato a O arquipélago, que o tempo
presente deste também é 1945, no fim do ano, quando Rodrigo se encontra doente
em casa. Devido a esse fato, a interligação dos dois romances é muito maior que a
ligação entre O retrato e O continente, onde há uma diferença do tempo presente da
narrativa e, portanto, da moldura que se interpola entre as partes do texto.
Quanto à questão musical, também ocorre uma quebra em relação à
narrativa, porque quase vinte anos de diferença entre o tempo presente e a
retroação ao passado e esse aspecto se reflete na paisagem sonora e musical. Uma
dessas diferenças é o rádio, que se faz presente de forma cabal na cidade de Santa
em 1945, período narrado em Rosa dos ventos. A invenção é descrita como
tendo um efeito invasivo na vida das pessoas, através de alto falantes presos aos
postos telefônicos ao longo da rua do comércio” (R2, p. 3), onde o “ar se enchia de
sons que pareciam sair da boca de enormes robots” (R2, p. 4). Além do aspecto algo
futurista da descrição, ela guarda uma crítica à sociedade de consumo, ao mundo da
propaganda, que se faz mais intensa no quotidiano dos habitantes que antes da
existência da invenção: “O vento varria as vozes metálicas que apregoavam a
excelência de dentrifícios, inseticidas, sabonetes” (R2, p. 4). Em meio a isso, a
música desponta, de forma pública e inevitável: “Quando as vozes se calaram,
romperam dos alto-falantes os acordes lânguidos dum velho tango argentino, e o
choro das cordeonas abafou as lamúrias do vento” (R2, p. 4).
A forma invasiva com que o rádio entra na vida dos habitantes de Santa Fé
nesse período, também apresenta um lado lírico, com músicas jorrando de forma
pública nos momentos mais inesperados pelas ruas da cidade.
O rádio provoca uma mudança de grande impacto sonoro na sociedade,
assim como o gramofone já o fizera num período anterior, ao proporcionar aos
ouvintes acesso a obras que dificilmente seriam ouvidas naquele ambiente, não
fosse a reprodução mecânica. O rádio amplia essas possibilidades, dando acesso a
ambientes musicais que jamais seriam ouvidos pela maior parte das populações que
ele atingia. A profusão sonora produz, em determinados momentos, uma rica
mistura entre a música que jorra dos alto-falantes, os sons naturais e de máquinas
como o avião de Eduardo Cambará: “Gardel silenciara: agora os violinos cantavam
em melosa surdina, e a voz do sueste parecia também fazer parte da orquestra, bem
como o rufar do motor do Rosa-dos-Ventos” (R1, p. 5).
Interessante notar que por toda a narrativa de Rosa-dos-Ventos perpassa o
fundo musical que sai dos alto-falantes. Ele comenta cada passo dos personagens,
como uma trilha sonora para a cidade naquela ocasião. A perambulação de Cuca
Lopes, oficial de justiça e mexeriqueiro municipal, pelas ruas, estabelecimentos
comerciais e clubes de Santa Fé, é toda pontuada pelas observações melódicas que
atroam pela cidade naquele dia de vento:
O cheiro de campo e flor que andava no ar, o vento desabrido, os sons do
dobrado que agora jorravam dos alto-falantes, e a cujo ritmo ele procurava
marchar em cadência militar bem como nos tempos de rapaz, quando
seguia pelas ruas a banda de música do regimento de infantaria tudo isso
e mais as novidades que levava, deixavam-no tão excitado, que sentia
necessidade de desabafar o quanto antes para não estourar (R1, p. 12).
As observações musicais acompanham a entrada e a saída de Cuca dos
diversos lugares por onde passa. Quando encontra Esmeralda Pinto em sua posição
de guarda à janela de sua casa, atenta a qualquer movimento que pudesse gerar
alguma fofoca substancial, a música acompanha o espírito picaresco dos dois
fofoqueiros em sua dança simbólica para arrancar confidências um do outro: “Os
alto-falantes naquele momento começaram a regurgitar a melodia duma rumba” (R1,
p. 14).
A íntima relação entre o vento e a música cria uma versão sonora para o
conceito de tempo, que a mesma é uma arte temporal: “A rua continuava varrida
de vento e música” (R1, p. 22). A perambulação de Cuca pelo centro da cidade e a
trilha sonora que a emoldura fazem de Rosa-dos-Ventos um início peculiar e
promissor ao romance que abre o segundo volume da trilogia.
2.2.4 Uma vela pro Negrinho
A seção que encerra o retrato, intitulada Uma vela para o Negrinho, embora
se passe no mesmo ano de 1945, e nos mesmos dias de Rosa-dos Ventos, contém
uma relação musical completamente diversa. O capítulo está centrado na chegada
de Floriano de volta ao Sobrado, e por isso mesmo apresenta muitos elementos da
paisagem e das vivências musicais do personagem.
A paisagem musical de Floriano contém experiências que nenhum
personagem de d’O tempo e o vento possui, de riqueza incomum, dadas as suas
viagens por diversos lugares, particularmente aos Estados Unidos. A sua paisagem
musical, por mais diversa que seja, é, no entanto, um elemento integrador de suas
vivências. Assim,
na Ópera de San Francisco da Califórnia, ouvindo Jascha Heifetz interpretar
Brahms, sentira-se inexplicavelmente levado pela melodia de volta à casa
paterna; durante os quatro movimentos da sonata ficara a vaguear como
uma assombração pelas salas do Sobrado, revendo seus moradores vivos e
mortos, apalpando os veis, aspirando os cheiros e cada canto, cada
pessoa, cada coisa lhe evocara cenas da infância e da adolescência (R2, p.
593).
A paisagem musical de Floriano reflete também seu ideário, e suas
conclusões a respeito do irmão Eduardo, comunista convicto, dão uma idéia de suas
concepções políticas:
Floriano (...) começou a andar dum lado para outro, assobiando baixinho um
trecho de Mozart (...) Um comunista (...) o tem licença de gostar ou o
gostar dum partido, dum livro, dum quadro, duma sinfonia sem primeiro
consultar o Comissário (R2, p. 608-609).
A paisagem musical de Floriano também reflete suas idéias a respeito da
guerra e o totalitarismo que assola a Europa e a sua relação com a juventude da
época, que ele chama de horror moderno”: “um belo horror de formas
aerodinâmicas que lhes proporcionava uniformes, bandeiras, hinos, tambores,
clarins, paradas um horror organizado, eficiente, metálico, mecânico, simétrico e
rítmico” (R2, p. 596).
Suas reflexões apontam para um mapeamento da paisagem musical mundial
da época e seus significados dentro dos regimes totalitários, e também para os
embates ideológicos que se davam entre partidários de uma ou outra facção. Os
mínimos atos parecem carregados de um significado mais amplo: “Pôs-se a assobiar
uma frase do andantino do quarteto de Debussy. Pensou no irmão, que detestava
Debussy e com ele todos os “músicos reacionários” (R2, p. 597).
Esses embates continuam no livro seguinte da trilogia, pois, como foi dito,
O retrato divide com O arquipélago o mesmo tempo presente (1945), e, portanto, o
desfecho dessas situações se dará ao término do terceiro volume d’O tempo e o
vento.
2.3 O arquipélago
A terceira e última parte de O tempo e o vento veio a lume em três volumes,
os dois primeiros publicados em 1961, e o terceiro em 1962. Segundo Hohlfeldt:
O ficcionista levou muito tempo para aprofundar-se nesta parte mais
alentada (em quantidade de páginas e na densidade ficcional). Viajando
pelos Estados Unidos ou de volta a Porto Alegre, ele enfrentou sérias
resistências para a sua concretização. E não deixa de ser curioso, conforme
confessa em suas memórias que, ao lançar-se à redação de México,
terminasse por encontrar o melhor caminho para o aprofundamento de O
arquipélago, iniciado em 1958, pouco depois de uma crise cardíaca sofrida
pelo escritor (2003, p. 91).
Em O arquipélago, como acontecera em O continente, diversas
subdivisões que funcionam como uma moldura para o romance, partindo do
presente com idas e vindas de pontos-chave do passado. Essas divisões
proporcionam a dimensão contrapontística do romance, que chamaremos doravante
de polifonia temporal. O convívio de presente e passado em permanente diálogo,
com suas confluências e inter-influências, constituem um tipo de polifonia de
natureza complexa, de apurada arquitetura formal, resultado de todas as
experiências anteriores do escritor na ficção.
O tempo presente é ainda o final do ano de 1945, quando Dr. Rodrigo Terra
Cambará se encontra no Sobrado, gravemente enfermo. Esse momento, que é o
mesmo tempo presente de O retrato, fornece a mencionada moldura, interpolada
entre as várias partes que compõem o livro. No entanto, em O retrato essa moldura
é relativamente negligenciada, ocorrendo apenas no início e no fim do romance. Em
O arquipélago, a interpolação acontece no decorrer de toda a obra, o que aproxima
a sua estrutura da estrutura formal de O continente.
Como fizemos com O continente, para melhor entendimento da música e da
estrutura do romance, desmembraremos a análise não seguindo a ordem de sub-
capítulos que se apresenta no livro, mas sim a ordem cronológica.
2.3.1 O deputado
O início cronológico de O arquipélago (A) ocorre no ano de 1922, quando o
Dr. Rodrigo Terra-Cambará, casado e com os filhos ainda pequenos, retorna para
Santa Fé vindo do Rio de Janeiro, onde havia ido passar um período de férias. A
narrativa de O deputado centra sua ação em torno dos acontecimentos que
antecedem a Revolução de 1923, época em que Rodrigo é deputado estadual e
alterna períodos em Porto Alegre com outros em Santa Fé.
No que diz respeito à música, a paisagem sonora de 1922-23 não se alterou
radicalmente com relação àquela de O retrato. As reuniões no Sobrado seguem
acontecendo, embora à luz de pequenas novidades. Entre os novos convivas, um
chama a atenção por suas diversas relações com elementos musicais, o Dr. Miguel
Ruas:
Aos trinta e seis anos era ainda solteiro apesar de viver em bailarecos e
festas familiares sempre às voltas com as mais belas moças do lugar.
Tocava piano, manicurava as unhas e era o único homem na cidade que
trajava rigorosamente de acordo com a moda (...). Os sapatos bicolores de
bicos agudos tinham solas de borracha Neolin – o que dava ao promotor um
caminhar leve de bailarino (A1, p. 79).
Dr. Ruas preenche com méritos a lacuna das renovações que surgem no
início dos anos vinte na sociedade brasileira. O tipo algo efeminado do promotor
esconde um personagem complexo, que revela grande coragem em momentos
decisivos. Dr. Ruas vem contestar conceitos arraigados da cultura gaúcha que
prescrevem para a figura masculina apenas o necessário comportamento másculo,
muitas vezes beirando o bárbaro, com poucas nuances e principalmente sem a
possibilidade de aproximação real com a arte. Dr. Ruas contraria esses aspectos, é
um bom pianista e homem de espírito cultivado, embora um tanto ou quanto afetado
na forma de se vestir e se comportar. O promotor é um ser contraditório para os
padrões daquela sociedade: “Tinha o rosto fino e longo, duma palidez que o de
arroz acentuava. Sua voz, no entanto, era grave e máscula, coisa inesperada
naquele ser de gestos e aspecto tão efeminados” (A1, p. 79).
Nas reuniões que acontecem no Sobrado nesse período, Miguel Ruas se
destaca, é o único que pode dar aos outros convivas o prazer de ouvir música
executada ao vivo, papel que foi preenchido em diferentes épocas por diversos
personagens, como os Weber em O retrato e também por Neco e outros seresteiros
em várias ocasiões.
No caso de Miguel Ruas, uma nítida mudança de caracterização musical
que define a época, no caso o início dos anos 20 do século XX. Enquanto os Weber
apresentavam um repertório e uma postura típicas de determinado período histórico,
também Miguel é representativo de um tempo em que diversas tendências
começavam a aparecer na sociedade brasileira. Uma das tendências que ocorria
desde o século XIX é a presença do piano na cultura brasileira, e que segue no
início do século seguinte: a moda de tocar piano continuava produzindo frutos. Mas
aqui já temos a presença de elementos marcantes do século XX, como a
incorporação dos chamados gêneros musicais estrangeiros como a valsa, o
schottisch, a polca, a habanera e a mazurca, que misturados a gêneros tipicamente
brasileiros como o lundu, produziriam novas formas musicais, notadamente o tango
brasileiro e o maxixe, fato que sedimentaria a criação do choro, outra invenção
tipicamente brasileira.
Também a música posterior ao choro aparece na narrativa, notadamente o
samba, que havia tido sua primeira gravação na década anterior (1917), com o
registro de Pelo telefone de Donga e Mauro de Almeida. Toda essa variedade
musical surge claramente nas “performances” de Miguel Ruas no Sobrado:
De todos os lados vieram pedidos. Toque um samba! Um chorinho! Não, um
fox-trot! O promotor ergueu a tampa do piano, estendeu sobre o teclado as
mãos pálidas, em cujos dedos faiscava um rubi, e, com certa solenidade de
virtuoso, tirou alguns acordes. Rompeu depois a tocar O de Anjo com a
bravura com que os concertistas geralmente tocam a Polonaise Militar de
Chopin. Passou da marcha para um choro e do choro para um fox-trot (A1,
p. 84).
Além da música brasileira, o despontar da influência norte-americana é
registrado, através do fox-trot:
Foi ao som do Smiling Through que o Cel. Cacique Fagundes fez a sua
entrada no Sobrado, acompanhado de Quinota, a única de suas cinco filhas
que ainda permanecia solteira.
– Que é que o promotor está tocando? – perguntou ele.
– Uma música moderna, o fox-trot. Em inglês quer dizer trote de raposa. É a
última moda em assunto de dança. Vem da América do Norte (A1, p. 84-
85).
A presença do fox-trot no repertório do promotor-pianista demonstra a
extensão que naquele momento alcançava a influência norte-americana na
música brasileira, presença esta que iria aumentar nos anos seguintes. Ao fox-
trot que “teve origem nas danças sincopadas do ragtime norte-americano” (GROVE,
1994, p. 340), se seguiria a influência do jazz nos anos trinta, e do rock a partir dos
anos cinqüenta.
A contraposição ao fox-trot se com a contestação de Rodrigo: “Acho que
chega de música moderna e de loucuras norte-americanas. Vocês sabem que eu
sou da França e da valsa” (A1, p. 88). A sentença define Rodrigo como pessoa: ele
ainda é um homem preso às convenções artísticas do século XIX, e seu ideário
político segue o mesmo rumo. Mais tarde, ao discutir literatura com seu filho
Floriano, também se confirmará o seu conservadorismo.
A valsa, dança de origem austríaca, aparece aqui incorporada à cultura
sulina e Chiru manifesta essa incorporação: “Agora quem vai dançar com a Quinota
sou eu. Mas uma valsa. Onde se viu um bagual dançar essas danças modernas?”
(A1, p. 93). E a narrativa confirma, através dos instrumentos utilizados, o
abrasileiramento da valsa: “Pôs o gramofone de novo a funcionar, e a melodia do
Pavilhão das Rosas encheu a sala. Uma flauta chorava contra um fundo de violões
gemebundos” (A1, p. 93). A instrumentação típica atesta o fato de que a valsa havia
se tornado, desde a virada do século, parte de um gênero brasileiríssimo: o choro.
Outra manifestação da música brasileira que surge na narrativa de O
deputado é relativa ao carnaval, que também se reveste de características
nacionais. Num período em que o samba ainda não havia sido incorporado ao
carnaval e as Escolas de Samba não existiam, a principal manifestação musical
brasileira nessa festa popular eram as marchinhas, sempre irônicas e bem
humoradas. Na reunião do Sobrado, também a marchinha se faz presente:
Na sala de visitas agora cantavam em coro. Era uma canção antibernardista
que tivera grande voga no último carnaval. E as vozes, entre as quais
predominava a do Chiru, retumbante e desafinada, chegavam até o
escritório:
Ai, seu Mé! Ai, Mé, Mé!
Lá no Palácio das Águias, olé!
Não hás de por o pé! (A1, p. 100).
Um dos temas prediletos dos compositores de marchinhas era a situação
política do país. Uma marchinha que caísse no agrado do público com um mote
ligado a questões políticas, certamente alcançaria um sucesso retumbante. Tal foi o
caso da marchinha que aparece nas páginas de O deputado, conhecida pelo nome
de Seu , apelido de Arthur Bernardes, candidato à sucessão de Epitácio Pessoa.
A situação no país era de tal modo perturbadora que os autores da marchinha,
“Freire Jr. e Careca, chegaram a ser presos” (WORMS, 2002, p. 27).
As reuniões que acontecem no Sobrado refletem as múltiplas tendências que
a música possuía no período, e também suas relações sociais e políticas.
2.3.2 Lenço encarnado
Ao compararmos a paisagem sonora de Lenço encarnado com a de O
deputado, nos deparamos com um outro processo cíclico característico de O tempo
e o vento: notamos mais uma vez o empobrecimento dos aspectos musicais em
períodos de guerra. Lenço encarnado tem a sua ação centrada na revolução de
1923, desde os dias que antecedem o início do conflito até o seu desfecho.
Os únicos sinais de música que resistem são relacionados à guerra, ao rufar
de tambores e toques de clarim. Bandas militares que em tempo de paz faziam
retretas no coreto da praça são usadas agora com fins políticos e para acirrar os
ânimos exaltados:
A Praça da Matriz agora estava insuportável, porque os “provisórios”
passavam o dia a fazer exercícios militares. O ar se enchia do som marcial
de cornetas, do rufar de tambores, e dos berros dos instrutores. Rodrigo
não podia olhar, sem sentir engulhos, para os soldados borgistas (A1, p.
259, grifo nosso).
É interessante notar que em épocas de guerra, os habitantes da província dão
vazão ao velho costume de comparar guerra a aspectos festivos que envolvem a
música. Rodrigo observa, falando de Miguel Ruas, que ”esse almofadinha pensa que
guerra é baile” (A1, p. 263). O aumento da associação de elementos musicais com a
guerra é concomitante ao gradativo enfraquecimento da paisagem musical. Quando
a revolução se torna iminente e há impaciência dos homens quanto ao seu início,
a música desaparece e diversos envolvidos manifestam, como o filho de Juquinha
Macedo, que não esperavam data certa “contanto que entrassem no baile“ (A1, p.
264).
Outro aspecto digno de nota é que há uma nítida resistência à música,
mesmo que fosse possível sua utilização, durante o período em que dura o conflito.
Dr. Carbone, na sua tentativa de minorar a tensão entre os habitantes do Sobrado, é
duramente repreendido :
E nos dias que se seguiram, o italiano tratou de alegrar aquela família como
podia. Quando visitava o Sobrado, trazia brinquedos ou caramelos para i
bambini, contava-lhes histórias, fazia mágicas. Uma noite, como quisesse
dançar um cake-walk com Santuzza, encaminhou-se para o gramofone,
para pô-lo a funcionar. Maria Valéria, porém, barrou-lhe o caminho. Não!
Tocar música naquela casa quando seus homens estavam na guerra,
correndo perigo de vida, passando durezas e privações? Nunca! “Sossegue
o pito, doutor! Aqui ninguém carece de palhaço” (A1, p. 276).
O espírito de Bibiana persiste em Maria Valéria, para quem a música continua
a ser não apenas desnecessária, mas até mesmo ofensiva em determinados
momentos. A mistura de preconceito, superstição e ignorância ainda se faz presente
no século XX, a despeito de todas as possibilidades que a existência de músicos e
as evoluções tecnológicas apresentam aos habitantes da província.
2.3.2.1 Neu-Württenberg
em Lenço encarnado um episódio em que Rodrigo e seus companheiros,
embrenhados que estão em fugas através dos campos, não suportam mais as
agruras da revolução. Nesse momento surge a possibilidade de fazerem um pouso
na localidade de Neu-Württenberg
29
, distrito de Cruz Alta cujos moradores são
descendentes de imigrantes alemães. Como reina relativa paz no local, os homens
podem sentir novamente todos os sinais da civilização, entre eles a música. Miguel
Ruas, que participa da campanha ao lado de Rodrigo e Toríbio, não perde tempo:
O Dr. Miguel Ruas conseguira organizar um grande baile puxado a gaita e
no qual, ainda arrastando uma perna, brilhara dançando valsas, polcas,
mazurcas e chótis. Tivera um rival sério em Chiru, que as moças pareciam
preferir, pois com sua basta cabeleira e sua flamante barba loura,
grandalhão e exuberante, parecia um viking extraviado no tempo e no
espaço (A1, p. 299).
Mais uma vez as danças presentes na narrativa são compostas pelos gêneros
estrangeiros que se incorporaram à música brasileira. A ocasião proporciona um
sopro de civilidade em meio ao conflito. Rodrigo conhece Frau Wolf, “uma senhora
de quase oitenta anos, viúva do mais importante industrialista do lugar, matriarca
dum numeroso clã” (A1, p. 299). A experiência proporciona a Rodrigo o contato com
um ambiente musical que em verdade não fazia parte de sua realidade imediata:
29
Neu-Württemberg realmente existiu. Era o nome de um distrito de Cruz Alta que devido a óbvias
conexões germanófilas, durante a Segunda Guerra teve seu nome mudado para Panambi, tendo se
tornado mais tarde um município independente. Pelas suas características e proximidade de Cruz
Alta, deve ter sido a principal inspiração do escritor para a construção ficcional do distrito de
colonização alemã de Santa Fé, Nova Pomerânia.
Recebeu Rodrigo com uma graça de castelã antiga, ofereceu-lhe café com
leite com bolos e Apfelstrudel, e mais tarde, ao fim da visita, vinho do Reno.
Mostrou-lhe a Bíblia da família, impressa no século XVIII, falou-lhe de seus
autores prediletos e acabou recitando Heine e Goethe, ‘para o senhorr
sentirr a música da língua alemã’. Entardecia quando a velhinha se ergueu
da sua poltrona, encaminhando-se para um pequeno órgão de fole que se
achava a um canto da sala. Sentou-se junto dele, estralou as juntas das
mãos e pôs-se a tocar um trecho de Bach. Rodrigo estava maravilhado,
com a impressão de ter entrado num outro mundo (A1, p. 299).
Os contatos que Rodrigo havia tido com a música alemã haviam sido
esporádicos, que suas preferências recaíam sobre a ópera italiana. Os contatos
que tivera, afora Beethoven, foram proporcionados pela família Weber, fato que
necessariamente conectava a música dos mestres alemães com uma lembrança
dolorosa.
O episódio de Neu-Württenberg aparece como um sopro de vida em meio às
andanças de uma revolução onde Rodrigo se ressente do absurdo da guerra,
embora nem seu orgulho nem o desenrolar dos fatos o deixem buscar uma saída
para a situação em que entrara.
2.3.3 Um certo Major Toríbio
A ação da seção seguinte do romance se nos anos posteriores a 1924.
Passada a revolução de 1923, dois fatos marcantes acontecem no Sobrado: a morte
de Alicinha e a incorporação de Toríbio à Coluna Prestes.
A morte da filha de Rodrigo provoca à paisagem musical a reação
característica da obra do escritor: a música rareia. A presença da morte afasta
qualquer sinal de música do Sobrado, e joga Rodrigo numa crise em que a culpa, a
auto-piedade e o desespero se misturam. Apenas quando ele começa a se
recompor, os sinais de música reaparecem, embora Rodrigo resista a eles. A
contraposição morte versus música permanece:
Ouvia o grito dos filhos, que brincavam no quintal. Um gramofone tocava
nas vizinhanças. Cigarras rechinavam nas árvores da praça. Maria Valéria
ali estava de olhos secos. Como era que a vida continuava como se nada
houvesse acontecido? E ele comia, bebia, tomava banho, de novo se
entregava à absurda tarefa de viver, enquanto Alicinha no seu caixão
branco apodrecia... (A2, p. 415).
A lembrança de Alicinha guarda, além do mais, uma dolorosa conexão
musical: “Não ouvir mais a voz dela, as suas lições de piano...” (A2, p. 418). A
ausência do som do piano na rotina da casa produz efeitos inesperados. A dor
dessa ausência é tão intensa que produz frutos:
Certa madrugada despertou com a impressão nítida e perturbadora de que
alguém batia no piano embaixo... Alicinha pensou. Sim, tinha ouvido
alguns compassos de Le Lac de Como, a peça preferida da menina. Mas
não! Devia ter sido um sonho. Sentou-se na cama, e ficou um instante com
as mãos na cabeça, ouvindo, atento. O casarão estava agora silencioso.
“Tenho a certeza disse para si mesmo não foi sonho. Ouvi. Não estou
louco. Ouvi.” Saiu do quarto, desceu a escada na ponta dos pés. Acendeu a
luz do vestíbulo e ficou à escuta... Silêncio. Entrou na sala. Ninguém. Ali
estava a um canto o piano fechado, o banco giratório vazio. Mas era
estranho... Parecia andar no ar uma espécie de eco daquela música. Foi
então que Rodrigo sentiu uma invisível presença na sala. Sim –concluiu
foi ela que veio e tocou... Tocou para mim. Um sinal, um aviso. Aproximou-
se do piano, ergueu-lhe a tampa, perpassou as mãos pelo teclado. Não
ousava olhar para os lados, para os cantos da sala em penumbra. Sabia
que a filha morta estava a seu lado, quase a tocá-lo (A2, p. 422).
A sensibilidade musical de Rodrigo se transmuta numa experiência de cunho
Espírita cuja manifestação é musical: à noite, em seu quarto, Rodrigo acredita ouvir
a filha morta tocando piano. Para ele, o incidente, real ou imaginário, funciona como
um amálgama para a dor. “Em algum lugar do universo ela vive dizia-se ele em
pensamentos. E essa idéia lhe dava um doce tremor, um medo quase voluptuoso.
Era uma esperança, um consolo...” (A2, p. 422).
Mas a vida segue seu curso e aos poucos Rodrigo retorna à sua rotina. E é a
partir daí que se desencadeia o episódio da participação de Toríbio na Coluna
Prestes. Enquanto o irmão perambula pelo interior do Brasil numa aventura sem fim,
Rodrigo se deixa ficar em Santa Fé. Notícias esparsas, verdadeiras ou não, chegam
até os ouvidos das pessoas da casa, e a vida no Sobrado volta à normalidade, com
seus encontros e festas.
Pouco antes da partida de Toríbio, ele e Rodrigo passam conversando em
frente à janela de Mariquinha Matos, a Gioconda. O episódio ilustra de forma
exemplar as mudanças pelas quais a música passa no período:
Naquela noite fazia muito frio mas o ar estava parado. Toríbio e Rodrigo
voltaram para casa a pé. A rua estava deserta, o céu estrelado. Ao
passarem pela frente da casa de Mariquinha Matos viram as bandeirolas
das janelas iluminadas e ouviram a música que vinha de dentro. Pararam
à beira da calçada e ficaram escutando. A Gioconda tocava ao piano o seu
Chopin. Noturno nº2. Era um dos favoritos de Rodrigo. A melodia casava-se
bem com a lua cheia, olho luminoso que do u espiava a cidade (...)
Cessara a sica. Rodrigo esperava outro noturno. Fez-se um silêncio. De
súbito a Gioconda rompeu a tocar com um vigor furioso o Espalha Brasa.
Indignado, Rodrigo pegou no braço do irmão: - Vamos. Esse troço e o
Procópio Amoroso são as duas músicas que a gente mais ouve agora. A
Leocádia vive cantarolando essas porcarias na cozinha. É uma calamidade
(A2, p. 448-449).
Mariquinha, fã inconteste de Chopin, rendera-se à música de caráter popular
do século XX. Rodrigo, fortemente preso ao século XIX, resiste àqueles sinais de
modernismo. Mas mesmo a Gioconda, uma mulher que se deixou ficar no século
anterior em seus costumes dá demonstrações inequívocas de aderir aos novos
tempos, ao menos em termos de gosto musical.
2.3.3.1 Notícias da marcha
Quando Toríbio se integra à Coluna Prestes, os moradores do Sobrado
esperam ansiosos por notícias dele. Como elas tardam, qualquer possibilidade de
recebê-las é bem-vinda. Certo dia um soldado que estivera com Toríbio traz notícias
que guardam relações musicais. Entre os companheiros de Toríbio está uma figura
histórica, o Tenente João Alberto. Rodrigo pede notícias do irmão, e acaba
interpelando o soldado:
- Me diga uma coisa, Clementino: que tal é esse João Alberto?
- Pois, doutor, é um moço magro e alto, meio com cara de cavalo, mas
simpático. É muito influído. Posso lhe garantir que é macho. tem umas
coisas esquisitas...
- Pois é. Toca piano. O senhor viu despautério igual? Paramos numa
casa para descansar, tinha um piano e enquanto o Bio e eu fomos direto pra
mesa, loucos de fome, o pernambucano abriu o instrumento e começou a
tocar uns troços... (A2, p. 466).
Mais uma vez a dualidade entre música e hombridade surge na narrativa,
ecoando os preconceitos vigentes. De certa forma esse preconceito provoca
reações em Rodrigo. O fato dele não ter se incorporado à marcha com o irmão lhe
traz desconforto e momentos de inquietude e tédio. Para vencer aquilo que julga
quase desonroso para si, Rodrigo procura se distrair das mais variadas maneiras.
Certo dia resolve ir a Porto Alegre, e a ida revela as mudanças que se operam na
paisagem musical da capital do estado. O que em outros tempos fora diversão,
agora havia se transformado em algo diferente: “Naquela noite, sentindo-se solitário,
foi ao Clube dos Caçadores. Mas arrependeu-se. Não encontrou nenhum dos
velhos companheiros” (A2, p. 475).
As mudanças que se operam provocam estranheza em Rodrigo, não apenas
pela ausência das caras conhecidas, mas principalmente pelo entorno do ambiente,
onde a música tem um papel primordial:
Na sala de danças havia uns tipos estranhos sentados às mesas. E umas
mulheres decotadas, pintadas com um exagero de palhaço, fumando
cigarro em cima de cigarro (...) A orquestra estava aumentada, tinha um
pistão estridente, um saxofone rouco, uma bateria barulhenta. Tocava
melodias de La Scugniza
30
e de A Dança das Libélulas, e berrava uma
infinidade de foxes
31
, a cujo ritmo aqueles mocinhos dançavam o
abominável e ridículo passo de camelo (A2, p. 476).
A mudança no instrumental da orquestra aponta para a influência do jazz na
música popular do período, e a utilização dos novos instrumentos parece chocar
Rodrigo. Novamente seu conservadorismo se faz presente, demonstrando o quanto
30
Opereta de caráter napolitano de autoria de Lombardo Costa.
31
Segundo GROVE (1994, p.340) o foxtrot é uma dança social, datada de c. 1910, que teve origem
nas danças sincopadas do ragtime, um dos estilos precursores do jazz.
ele está preso às convenções do século anterior, a despeito de seu verniz de
homem progressista.
2.3.3.2 O batalhão baiano
Enquanto Toríbio está ausente, a vida na cidade segue o seu curso. Num dia
em especial, quando um batalhão militar vindo da Bahia havia se instalado em Santa
Fé, a paisagem musical da cidade está particularmente rica, apontando para sutis
diferenças em relação ao passado:
Num daqueles domingos, a banda de música do batalhão deu uma retreta
na Praça da Matriz, debaixo da figueira, pois o coreto não era
suficientemente grande para conter todos os seus músicos (...) Uma
multidão de curiosos cercava a banda. Os músicos ostentavam o seu
uniforme escuro de gala, com botões dourados; e o carmesim da fita do
quepe, da gola da túnica e do debrum das calças constituíam notas
atraentes para aquele povo acostumado à monotonia do uniforme cáqui da
banda militar local. Tudo aquilo era novidade. “Até o bombo é diferente!
proclamou um entusiasta (A2, p. 477).
A vinda de um batalhão militar procedente de outra região do país provoca
uma grande mudança na forma do povo de Santa perceber a música. Embora
executasse um repertório comum a bandas marciais, vários gêneros desconhecidos
são apresentados à uma platéia entusiasmada:
O largo se encheu de melodias alegres que na opinião de Edu o eco
“arremedava” atrás da igreja. Os santa-fezenses ouviram pela primeira vez
frevos pernambucanos e uma quantidade de cateretês e sambas até então
desconhecidos deles. Quanto aos dobrados ah! “chega a me correr um
frio na espinha”, disse um filho da terra. Quando a banda tocava marchinhas
ou sambas, as moças e rapazes que caminhavam pelas calçadas
chegavam quase a dançar (A2, p. 477).
A recepção aos forasteiros, embora agradasse à maioria, encontrava
resistência em alguns:
Gente havia, porém, que ou não gostava do espetáculo ou, se gostava, era
por dentro, pois permanecia séria, silenciosa, olhando tudo com um olho
meio arisco. Fosse como fosse, os santa-fezenses aplaudiam os músicos,
ao fim de cada peça, coisa que estavam habituados a fazer quando a
banda local executava trechos líricos ou do Hino Nacional (A2, p. 477-478).
A presença do batalhão e respectiva banda na cidade muda a paisagem
musical da mesma, produzindo dias de felicidade para a população. Até mesmo
Rodrigo “deu no Sobrado uma festa – a primeira depois da morte da filha – e
convidou todos os oficiais do batalhão visitante” (A2, p. 482).
Assim, quando o batalhão volta para a Bahia, provoca despedidas sentidas,
que também se manifestam de forma musical:
Em princípio de abril o batalhão partiu. Desfilou pelas ruas no seu uniforme
de campanha, ao som dum dobrado triste (...) Quando o comboio se pôs em
movimento, a banda tocava uma valsa lenta, dessas de rasgar o coração”,
como disse mais tarde uma costureirinha que ficara noiva dum sargento
natural de Feira de Santana (...) Na noite do dia da partida dos baianos, a
Gioconda sentou-se ao piano e tocou com muito sentimento noturnos de
Chopin (A2, p. 482).
A paisagem musical de Santa é enriquecida pelas experiências históricas.
A passagem de um batalhão de outra região do país muda a percepção imediata da
música, provocando uma diferente maneira da arte ser apreendida pelos seus
habitantes.
2.3.3.3 O mundo se modifica
Uma carta de Terêncio Prates de Paris prenuncia um mundo que muda
rapidamente. O amigo (e de certa forma rival) de Rodrigo compartilha com este o
conservadorismo à maneira do século XIX:
As mulheres perdem o pudor, cantam canções bandalhas, dançam danças
lúbricas, desnudam-se em público, fumam, bebem, sim senhor, embriagam-
se como homens. Encontra-se em Paris, fazendo um sucesso delirante,
uma mulata norte-americana que se exibe num destes cabarés
completamente nua, apenas com uma tanga de bananas! (A2, p. 489)
As mudanças de comportamento chocam Terêncio, que invoca símbolos do
século anterior como parâmetros. A música se faz presente na comparação entre
compositores românticos e um gênero musical que havia aparecido na Europa por
aqueles dias, vindo dos Estados Unidos:
É o fim do mundo, Rodrigo. Uma geração como a nossa, que se alimentou
de Schubert, Schumann, Beethoven, Chopin e outros grandes da sica
universal tem de agüentar agora essa “coisa” cacofônica, barulhenta e
negróide que é “jazz band” (não sei se é assim que se escreve) e que Paris
teve o mau gosto e a infelicidade de importar dos Estados Unidos (...) Os
americanos nos mandam esses pretos tocadores de “jazz-band” e
detestáveis fitas de cinema em que essa mentalidade de “après guerre” é
exaltada e embelezada (A2, p. 489).
Os traços racistas do comentário traem a ignorância da argumentação.
Terêncio defende o passado, mesmo que não o compreenda. Em sua época, a
música de Schubert, Beethoven e outros compositores do romantismo havia sido tão
revolucionária como o é o jazz naquele momento. Mas, para Terêncio, o que está
em jogo é a defesa da permanência de um status quo e qualquer mudança soa
como desestabilizadora e destruidora desse estado social.
Mas independente de Terêncio e suas opiniões, o mundo muda, e essas
mudanças também atingem Santa Fé:
Que Santa se transformava, era coisa que se podia observar a olho nu.
Começava a ter sua pequena indústria, graças, em grande parte, aos
descendentes de imigrantes alemães e italianos como os Spielvogel,
Schultz, os Lunardi, os Kern e os Cervi, os quais, à medida em que
prosperavam economicamente, iam também construindo suas casas de
moradia na cidade e estavam entrando nas zonas até então ocupadas
apenas pelas famílias mais antigas e abastadas (...) Em princípios daquele
ano, José Kern inaugurara sua residência ao lado da mansão dos Teixeiras,
com uma festa que teve quase o caráter de kerb e para a qual convidou
seus amigos de Santa e de Nova Pomerânia. Cantou-se, dançou-se,
comeu-se e bebeu-se com entusiasmo ruidoso, desde as sete da noite até o
amanhecer (A2, p. 491).
Além do aspecto do avanço social dos habitantes de descendência alemã ou
italiana, é particularmente interessante o fato de que as mudanças pelas quais
passa Santa são apresentadas a partir, ou utilizando como metáfora a música, a
partir da rivalidade de duas bandas locais:
A rivalidade mais recente que o bem caracterizava as transformações
pelas quais passava a cidade surgira no campo da música. A orquestra
mais antiga de Santa Fé, que se revezava com o terno” da banda militar
nos bailes do comercial, era o Grupinho do Chico Meio-Quilo, um
homúnculo baixo e gordo que tocava flauta. Tinha na sua orquestra dois
violões, um violino, um cavaquinho e um contrabaixo. O conjunto
especializara-se em valsas, tangos argentinos, marchinhas e polcas. Tudo
estava no melhor dos mundos para Chico Meio-Quilo quando um dia
apareceu um forasteiro e organizou o primeiro jazz-band de Santa Fé, com
elementos da banda militar: saxofone, pistão, clarineta, trombone. O
organizador encarregou-se da bateria, em cujo bombo escreveu em letras
negras Jazz Mim. (Era gaiato e trocadilhista, o cafajeste!) (A2, p. 493).
Como de costume na cidade (e no estado), os habitantes tomam partido por
uma ou outra formação:
A guerra começou. Os jovens logo se entregaram ao conjunto moderno, ao
passo que os da Velha Guarda se mantiveram fiéis à música de Chico Meio-
Quilo. Os conjuntos passaram a revezar-se nos bailes da cidade. Dois
partidos então se formaram. Mas havia os trânsfugas: elementos
“passadistas” bandeavam-se para o lado do jazz, aderiam ao passo de
camelo, ao one-step e ao fox senhores e senhoras de meia-idade, que
deviam dar-se o respeito”, como comentavam os do grupo conservador (A2,
p. 493-494).
A rusga entre as duas facções se torna uma guerra de gerações com tintas de
crítica dos costumes aos que passam a ouvir os novos gêneros musicais. A
mudança nos costumes atinge também as mulheres, pois
outro modelo se lhes apresentava, tentador: a estrela de cinema Clara Bow,
símbolo da moça “evoluída” e esportiva, dançadora de charleston e de
shimmy, o tipo da boneca feita para andar de baratinha a grandes
velocidades (A2, p. 494).
As danças derivadas das primeiras formas jazzísticas e pré-jazzísticas como
o charleston e o shimmy trazem consigo as mudanças de costumes da década de
vinte norte-americana, que confrontam radicalmente os costumes conservadores
dos habitantes da província.
Por isso mesmo, a exemplificação das diferentes orquestras com seus tipos
peculiares e repertório particular, confere importância histórica ao evento. O mundo
mudava e era possível não apenas ver as mudanças, mas também ouvi-las e o uso
da música para balizar as novidades é mais um exemplo das possibilidades de uso e
da importância que o escritor atribuía a ela na sua obra.
2.3.4 O cavalo e o obelisco
A seção seguinte de O arquipélago, intitulada O cavalo e o obelisco, inicia em
julho de 1930 e tematiza a revolução ocorrida naquele ano e suas conseqüências
para Rodrigo e sua família.
Afora a repetição das reuniões usuais que continuam a acontecer no
Sobrado, algumas novidades na paisagem musical dessa seção. Uma delas trata
do amadurecimento de Floriano, agora um adolescente, e notícias de sua
evolução também no terreno musical. Conquanto o final de O cavalo e o obelisco
reserve uma provação para o personagem que se revelará marcante, também ela
servirá para reforçar seus laços com o humanismo, a não-violência, e por isso
mesmo a ligação com a música se revelará importante na formação de sua
personalidade.
Um fato tecnológico e econômico, a compra de uma grande eletrola
Credenza, última novidade tecnológica, provoca o domínio daquele aparelho no
Sobrado: ali se reúnem os convivas e é do corpo da máquina que saem as músicas
que embalam as reuniões. Contrapondo-se a isso, a posse de uma Victor portátil
precipita a possibilidade íntima de contato com a música por parte de Floriano;
sozinho no seu refúgio, ele escuta seus compositores prediletos, e aos poucos forma
suas opiniões e define seus gostos:
Decidiu ouvir música. Ergueu-se, aproximou-se da mesinha sobre a qual
estava a sua portátil Victor, colocou-lhe no prato o primeiro disco da
Sinfonia Pastoral e pôs o aparelho a funcionar. Tornou a deitar-se. Cerrou
os olhos, e as vozes dos violinos, violoncelos e altos, desenvolvendo o tema
inicial, pintaram-lhe na mente uma cena: rapazes e raparigas a dançarem
numa verde paisagem campestre (A3, p. 625).
Seus gostos contrastam com as preferências de seu pai, que recaem sobre a
ópera. Floriano, avesso aos atos dramáticos, na vida e na arte, se sente atraído pela
música instrumental, notadamente as sinfonias de Beethoven. Assim, também
musicalmente Floriano se afasta das idéias de Rodrigo.
Um rico comentário de suas preferências musicais e das mudanças em seu
gosto aparecem nas páginas de O cavalo e o obelisco:
(...) o Floriano de dezenove anos sorriu com indulgência para o de
dezesseis, que passava horas junto da Credenza, a ouvir trechos de ópera,
com sério fervor, comovendo-se com as árias e duetos de Rodolfo e Mimi,
vibrando com a cena de Andréa Chénier... Roque Bandeira lhe dissera um
dia: “Estás agora na fase operática. Ninguém se livra desse sarampo
musical. Mas isso passa e um dia morrerás de amor por Tchaikovsky,
Berlioz, Liszt, Schubert e Chopin, desprezando a ópera. Mas tempo virá em
que, compreendendo a verdadeira música, descobrirás Ludwig van
Beethoven, como se ninguém tivesse feito o mesmo antes de ti. Começarás
naturalmente pelas sinfonias, ali por volta dos vinte anos. Mas na casa
dos trinta é que poderás apreciar as sonatas para piano e os quartetos,
principalmente os últimos, que a meu ver são a essência mais pura do gênio
do Velho. Quando te aproximares dos quarenta te voltarás inteiro para
Bach, e então, então, eu te darei um certificado de maturidade (A3, p.
625).
A passagem possui o mérito, além das descrições musicais, de demarcar a
extensão da influência de Tio Bicho na vida de Floriano. A presença do personagem
fica cada vez mais assídua na trama do romance e na vida do adolescente, se
tornando uma de suas principais amizades, além de conselheiro e referência
intelectual.
2.3.4.1 Prof. Zapolska e Roberta Ladário
Dois personagens de O cavalo e o obelisco que possuem ricas conotações
musicais são o professor de piano Ladislau Zapolska e a professora Roberta
Ladário.
Ambos os personagens passam a freqüentar regularmente o Sobrado,
possuindo um espaço de ação bem demarcado. Prof. Zapolska é apresentado como
“um professor de piano e pianista que tivera certo renome como concertista” (A3,
p. 629). A descrição geral do personagem é minuciosa:
Era um cinqüentão alto, meio desengonçado e, no dizer de Maria Valéria,
“magro como cusco de pobre”. Seus braços longos davam a impressão de
nunca se moverem em harmonia com o resto do corpo: sua única utilidade
parecia ser a de carregar aquelas duas mãos longas, magras mas fortes,
com algo de garras. Coroava-lhe o crânio miúdo um tufo de cabelos ralos e
cor de palha. Nas faces rosadas e marcadas de rugas, os olhos claros e
animados de quando em quando por uma luz estranha, e tinham qualquer
coisa de permanentemente lesmáticos. Caminhava com longas passadas
indecisas, como em câmara lenta ou num vácuo. Famoso por suas
distrações e excentricidades, ganhara na cidade a alcunha de Sombra.
Rodrigo amparara-o desde o primeiro dia, comprando todas as entradas
para seu concerto e abrindo as portas do teatro gratuitamente ao público. E
depois, quando o professor manifestara o desejo de radicar-se em Santa
Fé, arranjara-lhe vários alunos de piano. Acolhera-o carinhosamente no
Sobrado, mas em menos de duas semanas estava arrependido de tudo
isso, porque o diabo do homem era aborrecidíssimo, pegajoso, e se tomara
de atenções exageradas. Seus apertos de mão eram prolongados e úmidos
como seus olhares (A3, p. 629).
Além da questão musical, o personagem traz à baila a questão do
homossexualismo e a posição que Rodrigo e os habitantes machos da província
geralmente têm a respeito do tema. A despeito da posição dos personagens, as
narrativas do escritor não estão isentas de preconceito, e o assunto, que foge aos
objetivos deste estudo, mereceria um olhar mais atento por parte da crítica.
Roberta Ladário, a outra nova freqüentadora do Sobrado, aparece como mais
uma das conquistas de Rodrigo. O que a torna interessante sob o ponto de vista
musical é que ela é mais uma da lista de relações de Rodrigo com mulheres que
possuem uma ligação com a arte em geral (e a música em particular), numa
linhagem que remonta às cantoras de O retrato e também a Toni Weber, a mais
marcante de todas. Embora Roberta não seja cantora e nem toque instrumento
algum, ela surge dentro do contexto dos saraus do Sobrado, é boa dançarina, e a
conquista se em meio às músicas e danças que acontecem nesses encontros.
Roberta é assim descrita:
Muito desembaraçada, com sua graça carioca e balzaquiana (...) As
mulheres em geral achavam a forasteira “dada e simpática”, mas
encaravam essas suas virtudes com uma certa reserva serrana. Não se
sentiam muito à vontade ante seus chiados e sua desenvoltura teatral.
Reprovavam a maneira exagerada com que ela pintava o rosto,
principalmente as pálpebras, quase sempre tocadas duma sombra azulada,
que lhe dava um jeito de atriz (...) E como se tudo isso não bastasse,
Roberta fumava em público, cruzava as pernas como homem, escrevia e
até publicava versos! (A3, p. 613)
O feminismo da professora causa escândalo em Santa Fé, e a ligação mais
próxima dela com a arte se dá através da poesia:
Desde que chegara a Santa Fé, havia menos de cinco meses, Roberta
Ladário, professora da Escola Elementar, era um dos assuntos mais
discutidos na cidade. Os homens estavam fascinados por aquela morenaça
vistosa, bonita de cara, bem feita de corpo e um tanto livre de bitos.
Poucas semanas depois de sua chegada, publicara no jornaleco local um
poema seu que causara escândalo no plano literário por causa da ausência
de rima e metro, e no plano moral pela sua natureza ardentemente erótica.
Os versos eram em última análise uma descrição do corpo e dos desejos da
autora. “Isso não é um poema - dissera alguém É um anúncio!” (A3, p.
613).
A maneira desprendida de Roberta é como um imã para Rodrigo, que
imediatamente se acerca dela e a convida para o Sobrado, debaixo dos olhos de
Flora, que tudo e sente, mas nada diz. As reuniões, freqüentadas por convivas
novos como o Tte. Bernardo Quaresma e antigos como Neco e Chiru, o repletas
de minúcias musicais, e se apresentam como o ensejo perfeito para a conquista,
entre danças, canções e conversas ao pé do ouvido:
Rodrigo tentava desembaraçar-se de Bernardo Quaresma, mas este o
retinha, segurando-lhe com força o braço. - Ouça, Dr, Rodrigo, eu não sou
seu amigo, sou seu filho, está compreendendo? Seu filho! Está bem,
Bernardo, está bem. Vamos sentar um pouco. Flora estava agora do lado
do alagoano, a oferecer-lhe uma xícara de café preto. Tome este
cafezinho, tenente. Bernardo segurou o pires, sobre o qual a xícara dançou
perigosamente: - E a senhora, D. Flora, a senhora é a minha segunda mãe!
– Fica aí com o nosso filho – disse Rodrigo à mulher, aproveitando a
oportunidade para escapar. Acercou-se de Roberta e convidou-a para
dançar. A professora ergueu-se, ele lhe tomou com força a o direita,
enlaçou-lhe a cintura e, como observou Chiru ao ouvido de Neco, “chamou-
a aos peitos”. O barbeiro sentenciou: - Essa está no papo. Os Macedos e os
Camerinos também dançavam. D. Santuzza fez um sinal para Chiru,
chamando-o para bailar”, e quando o marido da eterna ausente Norata se
aproximou, a italiana começou a cantarolar o choro, com trêmulos
operáticos na voz rica de bemóis (A3, p. 630).
A passagem encerra vários significados, que compõem um retrato da trama
de O cavalo e o obelisco: as reuniões musicais, o Tte. Bernardo e suas declarações
de amizade, a conquista de Roberta Ladário. A participação de Rodrigo na morte de
Bernardo, seu caso com Roberta, mais um na sua longa lista de infidelidades, a
situação absurda em que ele coloca Floriano, ensejam-lhe um pensamento que
resume a sua decadência moral:
Não pude salvar a vida da minha filha refletiu ele com amargura. Queimei
o meu diploma, abandonei minha profissão. Levei meu pai à morte. Perdi o
afeto da minha mulher e do meu filho mais velho. Matei um amigo... Santo
Deus, que tremendo fracasso! (A3, p. 697)
A decadência se também como uma espécie de cantilena que se repete.
Roberta ecoa Toni Weber, mas sem os atributos desta. Rodrigo passa a vida atraído
por mulheres fatais, teiniaguás que lhe perseguem com seu erotismo envolto em
música, sereias que lhe atraem para as pedras e causam a sua derrocada. Ele
mesmo tem a consciência da repetição e da busca da mulher que não seja Flora, da
outra, talentosa, vivaz, culta. Mas a repetição se torna cada vez mais uma farsa,
algo que se repete apenas com os contornos eróticos, sem a paixão cegante de
outros tempos:
(...) se ia embarcar no dia seguinte, tinha de pular para dentro do quarto de
Roberta aquela noite! Pensou em Toni Weber, numa espécie de
desfalecimento agravado pela tepidez da água. Era incrível e ao mesmo
tempo excitante que aos quarenta e quatro anos estivesse pensando em
repetir a façanha don-juanesca dos vinte e quatro. A figura de Toni
estendida no chão, lívida, com os lábios queimados de ácido, por alguns
instantes lhe ocupou a memória (...) A vida é curta refletiu e a minha
talvez não dure mais de vinte dias. Não estava realmente convencido disso,
mas naquele instante o argumento lhe servia. Depois, Roberta Ladário o
era Toni Weber. Estava claro que a professora tivera antes aventuras
sexuais. “E seja como for Augusto Comte que me desculpe – o homem se
agita e o sexo o conduz (A3, p. 656).
A derrocada de Rodrigo é cíclica, erótica e heróica, e os atos de bravura e
amorosos se sucedem numa busca desenfreada por prazer e glória. E essa busca
está envolta nas nuanças da música de cada época e associada com pessoas e
feitos, numa espiral contínua rumo ao fim.
2.3.5 Noite de ano bom
A última seção que antecede a chegada ao ano de 1945 é Noite de ano bom,
que se passa no último dia de 1937 e no primeiro dia de 1938. O decorrer da
narrativa coloca cada vez mais o foco em Floriano e sua relação com Sílvia. E ela,
na sua condição insuspeita de freqüentadora do Sobrado, traz em si o mesmo
sortilégio que os antepassados de Floriano passaram. Sílvia é a última teiniaguá do
romance, disfarçada na pele de menina dócil e preparada para ser mais uma Flora
ou Maria Valéria:
A verdade era que desde que (Floriano) chegara a Santa Fé, havia menos
de vinte e quatro horas, sentia-se de novo preso ao sortilégio da amiga,
mesmo antes de tê-la visto ou ouvido. É que ela estava inapagavelmente
ligada às imagens, aos odores, aos sons, em suma ao clima do Sobrado
(A3, p. 762, grifo nosso).
Ademais, a ligação dos dois se delineia em contornos românticos, que contêm
diversos pontos de contato com a biografia do compositor Robert Schumann (1810-
1856) e sua esposa Clara Wieck:
Dezembro de 1932. De uma das janelas dos fundos do Sobrado uma tarde
Floriano viu, sem ser visto, a Sílvia de quatorze anos. Estava no quintal,
vestida de branco, as mãos pousadas no regaço (...) E Floriano fruiu aquele
instante como quem entreouve a mais bela frase duma sonata, ao passar
por uma janela aberta: um momento inesperado e gratuito... um minuto
roubado que se pode deteriorar se o passante inadvertido se detiver para
ouvir a sonata inteira (A3, p. 762).
A tradição nos diz que o compositor Robert Schumann, um dos ícones do
romantismo musical alemão, passou por experiência semelhante. Morando na casa
de seu mestre Friederich Wieck, grande pedagogo do piano da época, viu certa
manhã a filha do mesmo a se balançar no pátio da residência e então percebe que a
menina que muito conhecia estava se tornando uma mulher. Certo é que ambos
se envolvem desde cedo, e precisam enfrentar a fúria do pai de Clara e uma batalha
de mais de cinco anos para finalmente consumarem o casamento
32
. A história
imbrica o nascimento do amor de Floriano e Silvia com Robert e Clara, em uma
leitura musical-literária. Essa relação torna Silvia sutilmente ligada a aspectos
musicais. Ao contrário das teiniaguás que a antecederam, Sílvia não emite nenhum
canto ou toca algum instrumento, ela é a representação mesma dos sons do
Sobrado e da família Terra-Cambará. Além disso, ela contém os elementos
unificadores das linhagens “dignas” das Floras, das Bibianas, das Marias Valerias,
com as “indignas” Carés e amantes várias espalhadas pela narrativa. Em adição,
mas também em contraposição ao proposto por Lélia Almeida (1996) em A sombra e
a chama, a linha divisória entre mulheres dignas e indignas é muito mais sutil do que
aparentemente o é, e tal proposta se desfaz em Silvia: entre outros elementos, como
a compreensão e o companheirismo, o que atrai Floriano é a mesma sensação de
perigo e excitação que seu pai vira em uma Toni Weber, por exemplo. Sílvia é
namorada e depois se torna esposa de seu irmão, embora mantenham, ela e
Floriano, uma constante troca de cartas e idéias, além de conversas que ocorrem
muitas vezes numa situação de semi-clandestinidade dentro do Sobrado, numa
correspondência intensa de olhares e sensações, onde evitam se tocar, como se a
traição fosse algo produzido apenas pelo corpo e não pelo espírito. o obstante a
opção de Sílvia pelo status conservador, de o ficar com Floriano, de seguir ao
lado de um homem que não ama, ela deixa claro em suas cartas, em seu diário, em
seus escritos, que é uma teiniaguá; que, não obstante sua abdicação, ainda assim
emite uma luz intensa que contém tudo, tanto os cheiros como os sons do Sobrado,
e também a síntese de sua história. Não sabemos o desfecho das trajetórias
produzidas no romance, o que os anos teriam produzido, resistiria Sílvia àquela vida
sem amor, colocando todas as suas esperanças no filho que viria? Ou assumiria o
romance com Floriano, numa decisão que esfacelaria a família Terra-Cambará? Sua
decisão ao final do livro é clara, pela continuação da linhagem, pela abdicação, mas
a luz de seu encanto permanece como um enigma, intangível, mas perigoso, da
única pessoa que poderia tanto salvar quanto desgraçar a família. Além de tudo, a
menina de origem humilde, que nos lembra a estirpe das Carés, tem em suas mãos
não um cristão, mas um agnóstico, Floriano, que apenas permanece submisso aos
desígnios da decisão dela, e talvez seja esta a sua desgraça afinal. A ele resta a
arte, a escrita da história de sua família, num processo cíclico no qual a música está
imersa, seja como fundo, como ponto de atração, ou como formação e inspiração de
obras, amores e personalidades.
2.3.6 Do diário de Sílvia
Muitos dos aspectos salientados anteriormente aparecem de forma bastante
clara na seção intitulada Do diário de Sílvia, em que o personagem expõe seus
pensamentos, seu ideário, seus medos e desejos.
32
Para maiores detalhes, ver CANDÉ (2001, v.2, p. 51).
Essa seção é a última, cronologicamente falando, antes do tempo presente da
narrativa que é o ano de 1945. O diário inicia em setembro de 1941 e termina em
dezembro de 1943.
A narrativa de Sílvia fornece um contraponto à narrativa de Floriano, que
aparece em diversos momentos nas seções intituladas Caderno de pauta simples.
Nesse sentido, enquanto Floriano percorre o mundo em suas viagens, mora no Rio,
nos Estados Unidos, vive experiências variadas, Sílvia fica em Santa Fé, num
compasso de espera.
Essa disparidade de experiências é expressa também musicalmente.
Enquanto Floriano absorve a paisagem sonora sofisticada de lugares distantes da
cidade natal, ouvindo intérpretes famosos e orquestras renomadas, Sílvia fica num
local que se caracteriza pela ausência de música naquele momento, com a ausência
de Rodrigo e Floriano, com a inexistência das reuniões de outros tempos, com a
rudeza de Jango e seu apego ao trabalho e às lides campeiras. Silvia deixa-se ficar,
presa ao cotidiano estático e seus perigos: “Ouço as goteiras. É a musiquinha do
tédio, esse “inimigo cinzento”, como costuma dizer o Floriano” (A3, p. 882).
Essa falta de escolha que se torna a única saída, delineia a resolução final de
Sílvia, que leva ao desfecho do romance. Lentamente ela perscruta a tudo e todos,
lendo nas entrelinhas as intenções e as possibilidades. Na ausência de música, ela
busca sua antítese: “Floriano talvez não saiba, mas descubro nos seus silêncios
uma grande eloqüência” (A3, p. 895). Perscruta o passado e sua alegria sonora:
“Penso nos tempos em que todos os anos, nesta noite, cintilava um pinheirinho na
sala, e os Schnitzler vinham cantar-nos canções” (A3, p. 898). O Sobrado se tornou
um grande monstro triste e silencioso, onde o que ecoa é o passado. E Sílvia, que
ama e espera por Floriano, intui que herdou uma casa de fantasmas. Até mesmo a
Sílvia de outros tempos caminha pelos corredores, brinca pelo pátio, recorda fatos
de sua vida. E aqui salta aos olhos (e aos ouvidos) o passado da menina humilde,
da vida difícil, da atração pela luminosidade sonora do Sobrado, caminho natural,
espaço de fuga e refúgio da amargura da mãe. Os sons da casa materna, aliados
aos cheiros, às sensações, são tristes: “O som da chuva, o ruído da quina de
costuras, o cheiro de bolor da casa, os olhos de minha mãe (...) As tábuas largas do
soalho, com grandes frestas por entre as quais a gente ouvia o ruído dos ratos à
noite” (A3, p. 905-906).
As sonoridades da casa materna lembram solidão e abandono,
desaconchego, desproteção:
Certa vez acordei em plena madrugada e ouvi o ruído da Singer. De repente
a máquina cessou de rodar e um outro som me chegou aos ouvidos e me
cortou o coração. Mamãe chorava aos soluços. Era inverno, o vento entrava
pelas frestas das portas e janelas, e fazia muito frio dentro de casa (A3, p.
907).
Em vez de ter piedade pela e, Sílvia busca refúgio em outra parte, no
Sobrado, na lembrança do pai que a deixou, mas que traz algo de claro, de musical,
para dentro daquela casa onde os sons são reflexos do abandono “Todo o mundo
achava teu pai simpático. Tinha lábia, falava bonito, sabia contar anedotas, recitava
poesias, tocava violão, trajava como um dândi” (A3, p. 909).
Sílvia também perscruta o passado do Sobrado, descobre a história de Toni
Weber, e ali uma sensação de tristeza, mas também de alegria de uma mulher
que se faz, aos poucos, senhora de uma situação, a herdeira que se prepara para
ser investida de sua propriedade, qualquer que seja o par que venha a desposar. A
teiniaguá que nela, ou que nela se forma, intui a totalidade dos acontecimentos,
algo que nem Floriano percebe naquele momento: “Curioso. Depois da perturbadora
história que minha mãe me contou, passei a encarar o nome Toni Weber de outra
maneira” (A3, p. 326).
Toni, que faz parte de um passado que silenciou, de um Sobrado que já não
ressoa, a não ser nas lembranças. Mas Sílvia, nas entrelinhas do silêncio, apreende,
vê, e principalmente, ouve: “Minha memória auditiva é muito melhor que a visual”
(A3, p. 927).
No silêncio da escrita de seu diário, Sílvia amadurece e penetra no segredo
dos sons esquecidos. É, a um só tempo, Bibiana, Flora, Toni, Maria Valéria e Ismália
Caré. Traz em si todas as possibilidades, mas apenas uma escolha a ser feita. É a
contrapartida perfeita de Floriano, e poderia ter escrito a saga da família, tanto
quanto ele; Sílvia aponta caminhos, contrapõe suas idéias às dele, tenta o equilíbrio,
numa busca incessante pela manutenção do frágil organismo que havia se tornado a
família Terra-Cambará.
2.3.7 Caderno de pauta simples
Os pensamentos de Floriano, em contrapartida, estão expressos nas várias
seções de Caderno de pauta simples, interpoladas na narrativa, divididas em seis
partes. É aqui que vemos o menino crescer, dar seus primeiros passos no caminho
que iria tomar, tornar-se escritor, amadurecer intelectualmente, preparar-se para a
escrita da saga da qual ele participa.
Muitos dos fatos narrados nas outras seções do romance, são renarrados,
insinuados ou antecipados nessas seções, da mesma forma que acontece nos
Interlúdios de O continente (também subdivididos em seis partes).
Musicalmente, é aqui que podemos vislumbrar as experiências de Floriano
com as diversas paisagens sonoras que ele vive, ao longo dos anos. A infância, a
adolescência, os anos no colégio em Porto Alegre, suas viagens, o affair com
Mandy, repleto de pequenos detalhes musicais.
Caderno de pauta simples fornece, como os citados Interlúdios, a força de
uma narrativa fragmentada, às vezes prosa, às vezes verso, sem a rigidez da
continuidade das outras seções do romance. Também confere um notável equilíbrio
ao todo, como o lado oposto de O continente. A ausência de interpolações no texto
de O retrato fazem dele uma narrativa de transição, onde reina absoluta a
personalidade de Rodrigo Cambará, com seu canto claro ecoando de forma
envolvente e aparentemente íntegra.
Em O arquipélago, a narrativa, como a personalidade de Rodrigo, se pulveriza
nas ilhas, e seu canto, assim como sua integridade, se desfazem, enquanto assoma
lentamente a figura de Floriano, o anti-herói pacifista, que questiona e prepara a
possibilidade de entendimento do todo.
A grandiosidade da estrutura nos faz pensar, sim, em uma forma musical
complexa, como as exposições e reexposições temáticas de uma sinfonia, ou as
partes de um longo oratório profano, onde as repetições estruturais conferem
equilíbrio ao todo, enquanto as melodias e harmonias avançam, de forma cíclica,
porém inatacáveis, do início ao fim do romance.
2.3.8 Reunião de família
Da mesma forma temos as interpolações da seção intitulada Reunião de
família, que une não apenas as partes de O arquipélago, mas também esse livro a O
retrato, que compartilham do mesmo tempo presente, o que não acontece com O
continente.
Também dividida em seis partes, a narrativa de Reunião de família se passa
entre os dias 25 de novembro e 16 de dezembro de 1945, centrada na reunião da
família Terra-Cambará devido à enfermidade de seu patriarca. O desfecho de
Reunião de família ocorre na seção seguinte, Encruzilhada, cuja narrativa está no
mesmo tempo presente, e poderia ser a sétima parte de Reunião de família.
Musicalmente, essa seção apresenta variedade de aspectos, mas também
contenção, já que a doença de Rodrigo não proporciona grandes encontros ou
saraus, como os que aconteciam anteriormente. Dessa forma, a música aparece em
pinceladas, em lembranças de outros tempos, em uma canção que um ou outro
personagem evoca.
Também respingam pela narrativa aspectos da paisagem sonora de outros
lugares, principalmente o Rio de Janeiro, com suas festas, bailes e encontros sociais
onde a música está presente.
Outro aspecto é a paisagem musical individual de Floriano, que transparece
de forma mais intensa que a de outros personagens. Suas recordações dos Estados
Unidos estão bem vivas, também musicalmente:
Torna a deitar-se e começa a assobiar baixinho uma frase do quinteto para
clarinete e cordas de Brahms. Sente-se imediatamente transportado para
aquela noite, na Ópera de San Francisco da Califórnia... Escutava o
quinteto procurando fazer a abstração do ambiente (o cavalheiro calvo que
mascava chicle, à sua frente, a dama gorda a seu lado, rescendente a Old
Spice) queria apreciar a música na sua pureza essencial, sem
verbalizações. Fechou os olhos. E teve a impressão de que a melodia,
como uma lanterna mágica, lhe projetava contra o fundo escuro das
pálpebras a imagem de Sílvia. Foi nesse momento que teve a doce e
pungente certeza de que ainda a amava... (A1, p. 28)
Mais uma vez o processo da conquista é permeado pela música. Floriano
percebe-se apaixonado durante a execução do quinteto, enquanto Sílvia, em seu
silêncio, num quase-exílio em Santa Fé, emite uma atração poderosa, suficiente
para atravessar as barreiras do tempo e da distância.
A narrativa das diversas partes de Reunião de família remete aos elementos
musicais dispersos e descritos com maior riqueza de detalhes nos outros capítulos
do romance. Assim, quase todos os fatos musicais reaparecem aqui, embora com
um caráter muitas vezes melancólico e rememorativo. Há um indefinível ar de
passado, de sons que fizeram parte de épocas mais felizes e promissoras. Numa
visita à água-furtada, Floriano reencontra objetos antigos e esse sentimento se
concretiza, como algo palpável:
Estão aqui reunidos, como num congresso de aposentados, um velho divã,
uma prateleira com brochuras desbeiçadas, um velho gramofone de
campânula, com uma coleção de discos antigos, uma pequena mesa de
vime e algumas cadeiras (A1, p. 50).
O reencontro com os objetos da água-furtada coincide com o dia em que
compra o caderno de pauta simples, onde pretende anotar suas lembranças e
pensamentos, ou seja, o início do processo de gestação do romance a ser escrito
sobre a história de sua família.
2.3.9 Encruzilhada
Encruzilhada é a última parte de O arquipélago. Partilhando do mesmo tempo
presente de Reunião de família, a narrativa se passa do dia 18 até 31 de dezembro
de 1945, e encerra no início da madrugada do primeiro dia do ano de 1946.
A narrativa pode ser dividida em quatro fatos principais. O primeiro deles, o
suicídio de Arão Stein; o segundo, o acerto de contas entre Floriano e seu pai; o
terceiro, a morte de Rodrigo; e o quarto e último, o início da escrita da saga da
família por Floriano.
A predominância da morte faz com que a música apareça de forma muito
discreta no final do livro, embora discussões fundamentais a respeito do papel da
arte no mundo contemporâneo aconteçam nas páginas de Encruzilhada.
Mas da mesma forma que nas partes de Reunião de família, o que se sente é
um encaminhamento da narrativa na direção do silêncio. A música lentamente cessa
de existir, desaparece com a morte, fica no passado, e aqui se sente um eco muito
forte de O resto é silêncio, pois além do que foi observado pela crítica, de O resto
é silêncio conter em si a semente de O tempo e o vento, o plano geral desse
romance é o mesmo da trilogia. O tempo e o vento acontece como um turbilhão que
inicia em 1745 e segue, incessante, até o fim de 1945.
O final aponta para dois aspectos primordiais: o primeiro, de uma época que
termina, dispersa nas diversas ilhas do arquipélago. O segundo, da esperança em
um mundo que se renova, mas que encontra apenas um caminho a ser aberto,
trilhado de forma ainda não sabida, pelos personagens do romance. O final da
trilogia é uma indagação cuja resposta é o silêncio, mas também a ação solitária de
Floriano, de repensar o todo e concretizá-lo na forma de uma obra, fechada em si
mesma, mas também aberta; simples, mas monumental; complexa, mas
compreensível, como apenas as grandes obras podem ser.
3 A MÚSICA NOS ÚLTIMOS ROMANCES
Depois do término de O tempo e o vento, Erico entra no que ficou conhecida
como a terceira fase de sua obra, onde a maturidade do escritor é aproveitada em
prol de um questionamento que ultrapassa o âmbito até então abordado em seus
romances. Daí o afastar-se, num primeiro momento, do meio rural e urbano do Rio
Grande do Sul, e o aproximar-se dos questionamentos políticos e ideológicos,
voltando seus olhos para o mundo.
Apesar dessa visão predominante, as obras da última fase apresentam uma
variedade de nuances muito grande, se debruçando sobre si mesmas e
comentando, de forma sutil, obras anteriores. É certo que o novo se introduz nessa
época de maturidade, e também o é que a questão da liberdade num planeta (e num
país) tomado pela supressão da mesma era uma questão que preocupava o escritor,
assim como todas as questões inerentes a um mundo mais justo e igualitário. Mas
também é preciso que esses fatos não ocultem a permanente relação de
conversação interna que a obra de Erico mantém consigo mesma, relendo aspectos
anteriores e depurando questões antigas, além da introdução de novos elementos.
3.1 Noite
Embora tenha sido escrita antes do término de O tempo e o vento, a novela
Noite (N) pode ser considerada o primeiro livro da última fase do escritor. A busca
por temas da política internacional não está presente aqui, mas o questionamento
humano que caracteriza as últimas obras, sim, embora com a utilização de
elementos peculiares, diferentes dos romances que lhe sucedem. Essas diferenças,
no entanto, não obscurecem as semelhanças com as obras seguintes a O tempo e o
vento
33
. Nesse sentido, a única voz da crítica que notou a possível conexão foi
Moysés Vellinho, que em texto produzido à época do lançamento do livro, escreveu:
(...) a clausura acabou se descobrindo, ao menos em parte, e o que vemos
agora é que, apesar do disfarce de seus fantasmas e da atmosfera
surrealista em que deambulam dentro da noite, temos finalmente o livro em
que Erico começa a confessar-se, a mostrar o fundo de si mesmo, o outro
lado de sua alma. É outra dimensão que se oferece ao escritor, dimensão
na qual ele penetra cheio de subterfúgios premonitórios, mas movido pela
suspeita de que novas possibilidades, mais ricas e numerosas, se abrem
para as suas sondagens de animador de criaturas e de ambientes. Por isso
mesmo, não acredito que, satisfeito o compromisso com O tempo e o vento,
Erico remonte à maneira dos livros anteriores. Ou muito me engano, ou a
nova experiência terá uma importância decisiva no seu futuro itinerário
(VELLINHO, p. 230-231).
A crítica costuma atribuir ao livro um sentido de anomalia dentro da obra do
escritor. Segundo Chaves:
Em geral o livro foi incompreendido, até por muitos dos mais fiéis
admiradores de Erico Verissimo, que o aceitaram facilmente essa
narrativa angustiada e aniquiladora que interrompia o livre fluxo criador do
grande romance histórico. Pode-se dizer que foi a obra menos comentada
do autor; como sói acontecer diante das dificuldades, a crítica calou
(CHAVES, 1980, p. XIII)
34
.
Os críticos que se debruçaram sobre o livro encontraram nele uma ligação
com os romances urbanos da primeira fase do escritor, entre 1933 e 1943. Apesar
do ambiente urbano, os elementos da narrativa e seus signos transcendem as
primeiras obras, assumindo diferentes significados. Segundo Maria da Glória
Bordini:
História de um indivíduo amnésico, que atravessa a noite de uma grande
cidade facilmente identificável com a topografia de Porto Alegre em
busca de sua identidade, acompanhado por um gigolô mefistofélico e um
artista corcunda, o romance do desconhecido se afasta da predominância
da claridade que caracteriza todo o romance urbano do autor (BORDINI,
2003, p. 148).
33
Em termos de estrutura e emprego de alguns aspectos formais, Noite antecipa procedimentos que
serão utilizados nos últimos livros, notadamente em O prisioneiro e Incidente em Antares.
34
O comentário refere-se à crítica brasileira, pois, como observa o mesmo autor em obra posterior:
“Tal não ocorreu (...) no caso da crítica estrangeira, principalmente a norte-americana, como se pode
deduzir dos tulos incluídos na bibliografia apresentada no final deste estudo (CHAVES, 2001, p.
136).
A deambulação amnésica do Desconhecido pela noite da cidade assume
contornos expressionistas, que dão à obra múltiplas possibilidades interpretativas.
Carregada de uma angústia que pode ser encontrada de forma semelhante em
obras posteriores, a novela se passa dentro desse “ambiente alucinatório”
(CHAVES, 2001, p. 117), onde “o mundo externo é um labirinto (...) e o indivíduo
também já não confere um valor à sua própria existência” (CHAVES, 2001, p. 118).
Diante do caráter da obra, o questionamento que se faz é: qual o papel da
música, se ela existe, numa obra assim?
Pois é justamente que ela adquire uma força expressiva inaudita,
inesperada e fundamental.
3.1.1 A paisagem musical de Noite
O Desconhecido anda pela cidade, perdido na paisagem e em si mesmo, e
essa cidade se apresenta como um monstro de hostilidade, agressiva, ruidosa, suja.
E é partir daí, do ruído, que se estabelece um parâmetro para a música em Noite.
uma dualidade entre o ruído hostil da cidade e o aconchego e a familiaridade da
música. Já no início, os ruídos se apresentam:
Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite:
o tropel e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada
do tráfego riscada pelo trombetear das buzinas e, a intervalos regulares,
pelo tilintar das campainhas dos sinaleiros (N, p. 2).
Em termos psicológicos, o estado de anulação em que o Desconhecido se
encontra se traduz no não reconhecimento dos sons mais familiares, que perdem o
sentido e terminam se transformando, também eles, em ruído:
Uma voz rouca mas vibrante destacava-se dos outros ruídos da noite. Na
calçada oposta um vendedor de jornais gritava: “Diário da Noite! Diário da
Noite!” Aos ouvidos do Desconhecido o nome do jornal soava como
“Diaranôi! Diaranôi!” Ele disse baixinho Diaranôi. Depois repetiu mais alto
Diaranôi! E sorriu, satisfeito, como se de repente houvesse aprendido a
língua daquela cidade estrangeira (N, p. 4).
Num primeiro momento, quando o Desconhecido perambula de forma
desordenada pela cidade, numa fuga insana e paranóica, todo ruído, seja de carros
e máquinas ou de vozes, é interpretado por ele como um sinal de perigo e
desconforto, o que só aumenta sua sensação de estar sendo perseguido:
Vozes soavam perto de seus ouvidos, feriam-lhe os tímpanos, mas não lhe
diziam nada. No mais, era aquela dor branca na boca do estômago, e a
solidão, o abandono, o ruído regular e implacável daquelas passadas que o
perseguiam. Levou algum tempo para perceber que eram seus próprios
passos que o perseguiam (N, p. 12).
À medida que a narrativa avança, mais intenso se torna o caráter hostil da
noite, daquele “espaço que se enchia de guinchos, latidos, vozes” (N, p. 12). O
encontro com os dois companheiros que irão infernizar sua jornada noturna faz
aumentar a pressão sobre o Desconhecido. E é aí, no momento em que a angústia
se torna insuportável, que aparece o primeiro sinal reconhecível de música:
O Desconhecido viu o homem de branco tirar do bolso um objeto metálico e
levá-lo aos lábios, como para o beijar. Seus olhos se entrecerraram e os
sons duma gaitinha ergueram-se no ar, primeiro tímidos e indistintos,
abafados pelo vozerio geral. Aos poucos, porém, as pessoas foram
silenciando e as notas duma valsa começaram como que a alcalinizar o
ambiente (N, p. 34).
A única luz que emana na noite é o som daquela gaitinha, tocada por um
homem simples, rodeado pela hostilidade de todos. A singeleza da sica possui
algo de profundamente humano que, naquele ambiente, lembra vozes, sonhos, atos
de ternura há muito tempo esquecidos. E aqui ocorre para o Desconhecido a
associação entre a música, a melodia tocada pelo homem de branco (como também
é chamado o homem da gaitinha) e a sua inocência, o seu aparente amor
incondicional, desprotegido e ainda assim superior a tudo que o rodeia. O homem e
sua música pairam acima da atmosfera decadente, mesmo não sendo ele o único a
produzir sons musicais. O corcunda em vários momentos deixa escapar melodias
entrecortadas e sinais de alguma intimidade com a música. Mas a música que ele
produz de maneira alguma emana a mesma vibração da melodia do homem de
branco: “O homem do cravo caminhava em silêncio, o corcunda cantarolava uma
música qualquer e de vez em quando fazia um passinho de dança, mas sempre de
cabeça baixa, como que entretido a namorar a própria sombra” (N, p. 35, grifo
nosso).
Ao contrário da música do homem de branco, o corcunda canta ou assobia
envolto em atitudes completamente destoantes. A música é um mero invólucro para
seus reais interesses, e termina reforçando o caráter bizarro de seus atos:
O corcunda estava desinquieto, dizia coisinhas picantes ou brutais para as
mulheres, fazia-lhes gestos obscenos e num dado momento parou diante da
janela duma loura oxigenada e começou a executar uma dança erótica (...)
Alguns minutos depois o corcunda saía da casa da prostituta, assobiando
vigorosamente (N, p. 36-37).
Essas diferentes dimensões que a música adquire na novela são distinções
fundamentais que irão pautar a utilização da mesma em obras posteriores. Embora
a tendência ao afastamento ou inexistência de música em momentos de violência ou
morte continue existindo, as divisões se tornam cada vez mais tênues, havendo uma
flexibilização da presença musical nas obras do escritor.
Uma das questões que tornam Noite um livro peculiar é a sua concisão, que
faz com que diversos elementos da narrativa fiquem condicionados a certas
características. Segundo Flávio Loureiro Chaves:
(...) a narrativa de Noite concentra a ação sobre a experiência de uma só
personagem e a reduz à duração de cerca de dez horas. Por outro lado, o
clima opressivo da cidade encarcerada nada tem a ver com o mundo solar
do Capitão Rodrigo, e remete de imediato para o áspero confronto com o
nosso presente (2001, p. 116).
Ambas as questões provocam reflexos na música. Ela é igualmente concisa,
sem a presença derramada que ocorre em outras obras do escritor; ela é igualmente
pontual, já que o tempo reduzido em que a ação ocorre não deixa lugar para
excessivas intervenções musicais; e ela se reveste dessa posição única, de
antagonismo à escuridão da noite: num mundo tomado pelo vazio, ela aponta um
caminho, traz conforto, embora não deixem de existir sons musicais que não
contenham esse significado.
A concio, a pontualidade e a sua utilização em meio a ambientes onde a
angústia predomina são características que vão ser utilizadas a partir de Noite, de
diferentes formas, nos romances posteriores, o que reforça a posição integrada
ao restante da obra que essa novela ocupa na produção do escritor.
3.2 O senhor embaixador
O senhor embaixador (OSE) foi o primeiro romance escrito por Erico
Veríssimo após o término de O tempo e o vento. Publicado em 1965, geralmente é
considerado como o livro que inaugura uma nova fase na obra do escritor, quando
suas preocupações se voltam para questões da política internacional. Segundo
Hohlfeldt:
O senhor embaixador tem evidente a influência dos acontecimentos
ocorridos em Cuba e logo depois na República Dominicana. Erico
Veríssimo, como diria mais tarde a Daniel Fresnot, já reconhecia então tanto
o imperialismo norte-americano quanto o soviético, distanciado que estava
daquelas primeiras observações realizadas em 1941, quando de seu
encontro inicial com os Estados Unidos (HOHLFELDT, 2003, p. 93).
O âmbito da ação se desenvolve nos Estados Unidos da América e num país
ficcional, a República do Sacramento. Localizado na América Central, Sacramento
se constitui numa sátira às “republicas de bananas” do continente americano, mas
os principais elementos em jogo são as resoluções da política norte-americana para
a América, que surgem como pano de fundo das ações dos personagens.
No que diz respeito à paisagem musical, O senhor embaixador apresenta
uma clara inovação em relação aos livros anteriores do escritor. Existe nesse
romance a contraposição de duas paisagens sonoras distintas: a da República do
Sacramento e a dos Estados Unidos da América. Devido à peculiaridade do
romance se passar num país fictício, Erico precisou criar uma paisagem sonora
totalmente original (Sacramento), e mais que isso, contrapô-la à paisagem existente
(Estados Unidos). A julgar pelos resultados, o escritor se jogou à tarefa com grande
prazer, pois a paisagem musical do país fictício é relatada de forma acurada, onde
transparecem tanto o humor como certa ironia, a partir da união de vários elementos
diferentes. Se a cidade fictícia de Santa (ou qualquer outra de sua obra) não
exigia a criação de uma paisagem sonora original, que estava imersa na
sociedade gaúcha e é um reflexo direto dessa sociedade, a música da República do
Sacramento precisou ser inteiramente inventada. se evidencia mais uma vez a
importância que o escritor dá a aspectos musicais, que seria muito simples, num
romance voltado para a política internacional, deixar de lado questões relacionadas
à música.
3.2.1 A paisagem musical da República do Sacramento
A paisagem musical de O senhor embaixador destoa de todos os livros
anteriores de Erico Verissimo por envolver elementos antes não utilizados na obra
do escritor. O romance é dividido em quatro partes: As credenciais, A festa, O
carrossel e A montanha. A ação das três primeiras partes se passa nos Estados
Unidos, enquanto a última ocorre na República do Sacramento. Devido a essas
condições, nas três primeiras partes a mistura de uma paisagem musical real, da
cidade de Washington, que reflete a paisagem norte-americana, com a paisagem
musical fictícia do Sacramento, que nos é apresentada através da embaixada desse
país nos EUA e o trânsito dos personagens entre os dois universos.
A importância da presença da paisagem musical norte-americana é bastante
reduzida, já que apenas fragmentos dela aparecem no romance. A paisagem da
cidade de Washington surge de forma esporádica e apenas para contrapor a
sofisticada vida cultural norte-americana à caricatural cultura musical
sacramentenha. Assim, da imensa riqueza musical norte-americana, apenas gotas
respingam aqui e ali pelo romance, dando a entender que se está nos Estados
Unidos, que uma imensa variedade musical, e dentro dessa variedade, em
primeiro plano, aos poucos se vislumbra a paisagem musical do pequeno país
fictício. Mesmo dentro da embaixada do Sacramento em Washington, ouvem-se aqui
e ali os sinais de que se está na América, como no momento em que “um alto-
falante invisível derramava docemente na sala a melodia triste e mormacenta dum
blue” (OSE, p. 13); ou quando Pablo ou outro personagem falam sobre a ida a um
concerto ou apresentação que muitas vezes não é norte-americana, mas que
demonstra a característica cosmopolita do país de receber espetáculos vindos de
todo o mundo. Também a contraposição acontece. Titito Villalba, ao narrar para o
General Ugarte uma ida a Nova York com fins culturais, recebe uma resposta que dá
uma medida exata da ignorância e arrogância dos líderes sacramentenhos:
- Explico minha ausência, mon général. Fui a Nova York especialmente para
comprar um bilhete para a estréia do corpo de baile do Teatro Bolchoï de
Moscou. E sabe quanto paguei por ele? Cento e cinqüenta dólares!
- Estás doido varrido! Eu não pagava nem cinqüenta centavos para ver
esses comunistas de borra dançarem. Nossos índios de Páramo dançam
melhor e custam mais barato. Basta a gente pagar a eles uma rodada de
aguardente (OSE, p. 64).
A opinião do General Ugarte revela uma postura que se mantém no decorrer
da narrativa: a tentativa de imposição e demonstrações desproporcionais de
nacionalismo (e de autoritarismo), além da excessiva valorização de expressões
culturais que muitas vezes não se sustentam senão como expressão folclórica,
principalmente se comparadas a outras de reconhecido valor artístico (certamente
esta posição transparece na narrativa, por mais preconceituosa que possa parecer).
A desproporcionalidade da comparação acaba por produzir a caricatura. Assim, toda
a música sacramentenha é caricatural, criada a partir de elementos variados que
unem expressões de diversos países da América Central, adaptadas à paisagem
fictícia da República do Sacramento.
Os elementos utilizados na construção da paisagem musical podem ser
reconhecidos nos países reais que fazem vizinhança com a República do
Sacramento. O folclore de países como a República Dominicana, a Guatemala e
principalmente o México, aparecem escamoteados na narrativa. Deste último,
inclusive, advém a maior parte das semelhanças com a música sacramentenha, o
que não é de se estranhar, que o escritor o havia visitado alguns anos antes,
tendo a narrativa daquela viagem gerado o livro México, publicado em 1957. As
influências transparecem principalmente nas partes onde o embaixador Gabriel
Heliodoro, num assomo nacionalista, resolve mostrar aos americanos a cultura
sacramentenha:
Em meados de maio, como a estação social estivesse quase a findar,
Gabriel Heliodoro mandou buscar no Sacramento, dois grupos folclóricos:
Los Índios Bailarines, de Páramo e Los Campesinos Cantores, de Oro
Verde. Ambos os conjuntos passaram apenas uma semana em
Washington, mas, no dizer de Clare Ogilvy, foram “sete dias que abalaram o
mundo”. Eram trinta pessoas ao todo: dezoito homens e doze mulheres
(OSE, p. 179).
As peripécias dos dois grupos nos Estados Unidos reúnem a caricatura e o
rocambolesco, numa crítica ambígua tanto ao destempero dos sacramentenhos
quanto um olhar latino sobre o excesso de organização e frieza dos americanos:
As moças, tanto as do grupo das cantoras como as do corpo de baile,
quiseram ir às compras. Clare Ogilvy levou-as ao porão dum dos grandes
empórios da cidade que anunciava uma liquidação. Diante dos artigos
espalhados sobre as mesas ou alinhados nas prateleiras, apossou-se das
raparigas sacramentenhas uma tal fúria aquisitiva, que elas se puseram a
gritar e engalfinhar-se umas com as outras (...) Dois tocadores de guitarra e
harpa, homens de meia–idade, tomaram um dia uma bebedeira,
promoveram uma desordem num bar e foram parar num posto de polícia, de
onde Pablo Ortega, a muito custo, conseguiu libertá-los. Uns três ou quatro
membros do grupo de cantores, rapazes com muita brilhantina nos cabelos
e exibindo uma rica coleção de negros bigodes, saíram uma noite em busca
de fêmeas, pois queriam a todo o custo dormir com “gringas rubias”. Como
não as encontrassem com a facilidade que imaginavam, puseram-se a falar
mal daquela cidade tão atrasada onde não existia um único bordel. Então
aquilo era civilização? Aquilo era progresso? (OSE, p. 180)
A apresentação dos grupos é a coroa de louros daquela excursão. A exibição
nos dá um vislumbre da paisagem musical sacramentenha:
Finalmente os dois conjuntos folclóricos, nos seus trajes típicos de cores
deslumbrantes, exibiram-se no salão de festas da União Pan-americana,
diante dum numeroso público que os aplaudiu com entusiasmo. Gabriel
Heliodoro sentiu-se como um empresário de circo em noite de espetáculo
de gala e boa bilheteria. Tinha ímpetos de subir à plataforma para anunciar
e explicar ele próprio cada número, antes de sua execução. Vibrou com as
danças e cantos de sua pátria. E quando os cantores, acompanhados de
plangentes harpas e guitarras, interpretaram uma balada popular de
Soledad del Mar que sua mãe costumava cantar, seus olhos se turvaram e
o homenzarrão ficou a fungar, inquieto, esforçando-se para não chorar
(OSE, p. 181).
A reação de orgulho de Gabriel revela um pouco da paisagem musical
individual do personagem que o título ao livro e aponta para a sensibilidade
musical do embaixador do Sacramento nos EUA, suas origens humildes e sua
relação com o folclore musical de seu país, motivo primordial daquela exibição.
3.2.2 Leonardo Gris e Pablo Ortega
O senhor embaixador não se notabiliza por uma abundância de paisagens
musicais individuais, como acontece em outras obras do escritor. Mas o romance
possui outras relações com a música, que o além do caricato folclore
sacramentenho. E os personagens que melhor encarnam esses princípios o
Leonardo Gris e Pablo Ortega.
Leonardo é um exilado da República do Sacramento que vive nos Estados
Unidos, onde atua como professor de uma universidade e dirige uma espécie de
campanha de resistência contra o regime ditatorial de seu país natal. É amigo de
Pablo Ortega, jovem adido cultural da embaixada do Sacramento, com quem
mantém conversações que estão no cerne do sentido político do romance: a posição
do intelectual perante os regimes ditatoriais no mundo contemporâneo. Segundo
Maria da Glória Bordini:
Deve-se lembrar que O senhor embaixador saiu um ano depois do golpe de
1964 e que a conclusão a que Pablo chega é favorável, embora difícil de
engolir pela própria personagem, à revolução comunista armada. Nessa
mesma época, gestavam-se os movimentos guerrilheiros no Brasil, que
alcançariam seu ápice no início dos anos 70. Tratar de um tema desses,
num país dividido entre extremistas de direita e esquerda, pesando os prós
e os contras de cada lado, era um ato de coragem política, que raros
escritores da época emularam (BORDINI, 2003, p. 151).
Leonardo, que é um humanista, possui várias conexões com elementos
musicais. Justamente da contraposição entre o cultivo da música, das leituras e do
crescimento espiritual e a presença de uma ditadura em seu país, é que nasce o
conflito e a sua dolorosa, mas necessária, conclusão: enfrentar a ditadura, mesmo
que os meios lhe causem asco. O próprio Leonardo Gris se define em uma
passagem do romance:
Não, não sou um comunista, mas um velho liberal até meio romântico, um
homem, enfim, que, se decidisse seguir suas inclinações mais profundas,
passaria o resto da vida a cultivar seu jardim no meio de bons amigos, bons
livros e boa música, e que, se não faz isso, é porque tem a consciência
assombrada pela lembrança da miséria de seu povo, e um senso
dolorosamente agudo de sua responsabilidade para com o mesmo povo
(OSE, p. 220).
Também o depoimento dos amigos ajuda a compor o retrato de Leonardo, e
esse retrato é permeado por elementos musicais: “(...) Gonzaga olhava, fascinado,
para Gris. Sempre admirara a urbana serenidade daquele homem que uma noite
vira abraçado a um violoncelo, numa sala em penumbra, a tocar peças barrocas”
(OSE, p. 210).
A música está presente até mesmo “na sua voz, grave e rica de modulações”
que “constituía como que um instrumento de precisão que Gris sabia usar à
maravilha como professor e conferencista” (OSE, p. 71) na descrição de Pablo. É
das conversações entre Pablo e Leonardo que se expõe o cerne do conflito, pois
várias posições são questionadas, e as paisagens musicais tanto da cidade em que
vivem quanto de cada um deles em particular, são citadas no texto, como quando
Pablo questiona Gris a respeito de sua vida no exílio:
Bom, este seu exílio lhe é agradável, sua posição moral e material neste
país é excelente, seus colegas e alunos da Universidade o admiram e
estimam, o senhor vive com razoável conforto, freqüenta a Biblioteca do
Congresso, visita galerias de arte, tem a oportunidade de ir a bons
concertos, de ver bom teatro... (OSE, p. 72).
Mas essa situação confortável não lhe agrada, pois a consciência da forma
como vivem seus compatriotas lhe aguilhoa constantemente. Também Pablo,
embora não seja um exilado, não suporta a situação de seu país e se sente
incomodado com a situação, que trabalha para o regime que sustenta aquele
estado de coisas. Mais uma vez é a música que surge como possibilidade de
lenitivo, mas também como meio de reflexão a respeito da situação. A interpelação
de Gris a Pablo é significativa:
[Gris] - Você tem ao menos ouvido música ultimamente?
[Pablo] - Sim, ouço sempre. É o que me salva do embrutecimento completo.
Os quartetos de Béla Bartók me lembram de tal modo a fragmentação do
nosso mundo, dando-me uma tão fiel imagem sonora do labirinto em que
estamos perdidos, que não tenho mais coragem de ouvi-los. Me fazem mal.
Prefiro os primitivos italianos. Eles me falam de um mundo angélico, talvez
fictício mas belo. Sim, e sempre o velho João Sebastião, o homem que
fala e entende a linguagem de Deus. Toda essa gente me faz crer que a
vida e o mundo podem ser simples e o amor possível (OSE, p. 75-76).
A passagem revela uma comparação estética relacionada à música
contemporânea. Em toda a obra de Erico Veríssimo, não uma abundância de
compositores modernos. O que aparece com maior freqüência é Debussy, que surge
nos primeiros romances, ele que é um dos compositores favoritos de Noel em
Caminhos cruzados. Portanto, a citação de Bartók é significativa, particularmente
porque está conectada a questões vividas pelo próprio personagem: os quartetos de
Bartók traduzem a angústia de Pablo, a tal ponto que ele opta por se refugiar em
outra época, ouvindo a música de compositores de um passado mais remoto. Bartók
apresenta os sinais da angústia contemporânea estampados em sua própria vida.
Segundo Roland de Candé:
Nasceu numa encruzilhada de culturas (magiar, eslovaca e romena), numa
região que é um foco de irredentismo, de hostilidade aos Habsburgos,
depois ao regime de Horthy. Seu pai, diretor de uma escola de agricultora,
morre quando ele está com sete anos (2001, p. 293).
Depois de um período relativamente feliz em sua juventude, quando
apresenta as primeiras obras e consegue se tornar conhecido, Bartók é obrigado a
emigrar para os Estados Unidos, onde muitas dificuldades o aguardam:
Com o domínio nazista sobre o seu país, decide emigrar. Aceita um convite
da Columbia University e se instala em Nova York. Durante dois anos,
multiplica as conferências e os concertos, sozinho ou com a mulher, ao
mesmo tempo que continua seus trabalhos científicos. Mas suas obras não
são tocadas: sua situação financeira é catastrófica e seu orgulho impede-o
de aceitar a menor ajuda desinteressada. Sua saúde declina. Sofre de
leucemia, sem saber (...) Sua morte assinalará o início de sua glória (2001,
p. 295).
Enquanto a angústia de Pablo encontra eco nos quartetos de Bartók, a de
Leonardo Gris também se traduz musicalmente, mas de uma outra forma:
[Pablo] - E por falar em música, professor, como vai o violoncelo?
[Gris] – Mal. Criando bolor a um canto. Faz semanas que nem me aproximo
dele.
[Pablo] Não esqueço a noite em que o senhor tocou para mim e para o
Gonzaga aquela partita de Bach. Lembra-se? A sala estava em penumbra,
a janela aberta, havia uma lua cheia e era outubro. Tudo perfeito (OSE, p.
75).
Para Gris, nem mesmo a música de Bach ou de outro mestre da música
antiga dá alívio para sua angústia. Os conflitos estão demasiado vivos para deixá-lo
à vontade com seu violoncelo e seus compositores. A dúvida em que Gris se debate
também é permeada pela música, e expressa de uma forma que envolve termos
musicais:
[Gris] Vo acha possível um homem estar tocando Bach no seu
violoncelo, digamos... uma passacaglia, e ao mesmo tempo estar
maquinando uma revolução, pensando onde comprar armas e munições,
como contrabandeá-las para dentro de Sacramento... que contatos militares
estabelecer, que pontes estratégicas fazer saltar pelos ares, etc... etc...?
(OSE, p. 76).
As idéias de Leonardo Gris, mas principalmente seus conflitos, repercutem
em Pablo. A questão relativa à posição em que os intelectuais se encontram em
relação aos regimes ditatoriais tanto de esquerda como de direita é admiravelmente
descrita através de Leonardo Gris:
Veja a minha situação. o sou maniqueísta nem amo a ação. Considero-
me mais um contemplativo. Se fico indiferente à sorte da minha terra, minha
consciência me condena. Se me envolvo na conspiração revolucionária, o
homem do violoncelo, o leitor de Platão e Góngora me olha desconfiado e
me condena também à sua maneira. E é bem possível que se a revolução
triunfar, um dia eu seja condenado pelos meus próprios companheiros. Em
suma, o intelectual é um condenado por definição (OSE, p. 76).
De todas as questões musicais presentes no romance, essa permanece
sendo seu cerne. Por trás da máscara caricatural e da ironia que perpassa a obra, o
conflito da posição humanista é o que se sobressai, revelando a preocupação do
escritor naquele momento histórico crucial, onde a ditadura tomava conta do país e o
mundo era grassado por conflitos ideológicos entre a direita capitalista e a esquerda
soviética e seus desdobramentos.
3.3 O prisioneiro
O prisioneiro foi o penúltimo romance escrito por Erico Veríssimo. Publicado
em 1967, o livro foi considerado por muitos como um corpo estranho na obra do
escritor. No entanto, como aponta Antonio Hohlfeldt, “basta uma leitura atenta do
texto para que fique evidente a afoiteza e o equívoco da acusação, até porque a
novela é, de certa maneira, um aprofundamento das preocupações do escritor
naquele momento” (HOHLFELDT, 2003, p. 94). A insistência da crítica em atribuir
um sentido de estranheza às obras dessa fase do escritor apenas demonstra o
despreparo em que ela se encontrava naquele momento para analisar as inovações
na obra do escritor. Esperava-se dele a repetição das obras anteriores, e quando
isso não se confirmava, uma posição anômala era geralmente atribuída aos novos
romances.
Escrito no momento histórico em que os Estados Unidos estavam envolvidos
na Guerra do Vietnã, Erico registra no romance (ou novela, como querem alguns)
suas preocupações a respeito da guerra, da violência institucionalizada ou não, do
imperialismo, do racismo, da desumanização da vida no último quarto do século XX.
Muitos viram na obra certo panfletarismo, mas o passar do tempo tem desmentido a
afirmação. Segundo Flávio Loureiro Chaves:
Como O prisioneiro foi publicado no momento em que a Guerra do Vietnã
alcançava seu ponto crítico, no auge do envolvimento norte-americano no
conflito, muitos o receberam como panfleto ou documento, mais um entre os
muitos com que Erico Verissimo sempre fez questão de marcar sua posição
diante dos fatos políticos que, no Brasil ou no exterior, exigiram o seu
pronunciamento de cidadão (...) Superada a conjuntura transitória em que a
novela nasceu, sua releitura apresenta alguns pontos de contato com Noite
(CHAVES, 2001, p.127).
O livro não apresenta numeração de capítulos. A narrativa é separada apenas
por espaços em branco entre o que poderiam ser as seções da obra. Os
personagens não têm nomes, que são substituídos pelas suas funções, profissões,
patentes no exército ou por suas relações de parentesco. O nome de nenhum país
envolvido no conflito é diretamente citado na trama, nem a nacionalidade de
qualquer personagem. A não-citação de nomes de países é deliberada, num período
(1967) em que o público leitor poderia identificar com facilidade a que se referia a
história. Tampouco as línguas faladas pelos personagens são citadas no decorrer da
narrativa, embora fique claramente dedutível a que nacionalidade se refere o
narrador quando fala de cada personagem.
A narrativa fixa-se em torno de um fato que se encontra na parte final do livro,
o aprisionamento de um terrorista que havia plantado uma bomba em algum lugar
da cidade ocupada e que deve ser interrogado num curto período de tempo para que
se evite o morticínio de pessoas inocentes. Dessa função é incumbido um tenente
negro (a rigor mulato), que acaba por confrontar seus próprios traumas no decorrer
do interrogatório. O prisioneiro acaba sendo torturado e morto.
Toda a narrativa anterior a esse episódio se constitui numa longa reflexão de
diferentes personagens a respeito de suas situações sociais e reflete questões como
as prisões sociais (o casamento), o racismo, a violência, em tempos de guerra ou
não. Mais que o terrorista aprisionado ou o tenente negro e seus complexos, todos
os personagens da obra são prisioneiros que buscam algum tipo de libertação. O
coronel branco é prisioneiro de um casamento infeliz e das convenções sociais que
o prendem a essa situação e ele encara a guerra como uma espécie de trégua para
os problemas de sua vida, enquanto outro personagem, o major, é prisioneiro da
tirania de sua mãe. O próprio tenente parece caminhar, inexoravelmente, para a
autodestruição a partir do momento em que constata a impossibilidade de resolver
os traumas sociais e raciais existentes em seu país e que o acompanham mesmo
numa terra distante.
3.3.1 A música em O prisioneiro
O prisioneiro apresenta características únicas na obra do escritor, onde vários
estilos de música estão presentes, entremeados em diversos momentos da
narrativa. Com relação ao uso da música, há uma tendência à concisão que havia
sido esboçada em Noite e O senhor embaixador, e que permanece em O prisioneiro.
ainda outro fato que torna o livro especial no que concerne à questão musical,
que é a ausência da mesma em grande parte da narrativa. Quando a violência se
torna predominante, a música desaparece. paralelos que podem ser traçados
com obras anteriores do escritor. Em Saga, nos momentos em que a guerra e as
condições nos campos de refugiados se deterioram, também a música se torna
escassa ou inexistente. Mas em O prisioneiro, durante toda a longa seção em que o
terrorista é torturado, desaparecem quaisquer sinais usuais de elementos musicais
na obra do escritor. Erico claramente alia a música à vida, e é uma característica sua
eliminá-la nos momentos onde a desumanidade, a violência, a guerra e a destruição
predominam.
Outro aspecto digno de nota é o fato de Olhai os lírios do campo apresentar
semelhanças com O prisioneiro em certos elementos temáticos e quanto à utilização
da música. Tanto Eugênio quanto o tenente de O prisioneiro passam por
experiências semelhantes na infância: a humilhação e o desprezo. Eugênio devido à
pobreza e o tenente devido ao racismo. Em ambos os personagens essas
experiências se perpetuam na vida adulta, criando graves problemas psicológicos,
visto que ambos não conseguem curar as marcas do passado, o que os leva a tentar
encontrar uma forma de resolver os seus traumas. Eugênio encontra na mudança de
vida e na busca por um ideal não capitalista de vida sua redenção. O tenente de O
prisioneiro não tem a mesma sorte: a morte é o único meio de redenção que
encontra. Musicalmente, essa semelhança se repete: ambos têm uma grande
sensibilidade à música, que os conforta em momentos de angústia. Em ambos essa
sensibilidade se revela na infância. Tanto para Eugênio como para o tenente a
música aparece em momentos de grande tensão, como uma possibilidade de fuga
da dor do momento presente. No caso de Eugênio depois de uma briga, para
esquecer as humilhações pelas quais passa. No caso do tenente, durante o enterro
de seu pai, quando um grupo de jazz acompanha outro enterro que acontece
naquele momento.
Afora esta característica crucial, O prisioneiro apresenta, em sua parte inicial
citações musicais com certa abrangência estilística, numa gama que vai da música
erudita ao jazz, ao tango e até mesmo ao rock.
3.3.2 Jazz
A presença do jazz em O prisioneiro possui uma dimensão que também
apresenta características únicas na obra do escritor. Quando o tenente rememora
fatos de sua vida num quarto de hotel, lembra do momento em que seu pai se
suicidara por não suportar as pressões de uma sociedade racista. Pouco depois do
enterro, algo inesperado acontece:
Quando o cortejo se dispersara, a mãe lhe dera a mão e ambos dirigiram-se
para o portão do cemitério. Ela enxugava com o lenço as lágrimas
silenciosas. Ele caminhava perdido em seus pensamentos confusos. Quase
pisara distraído numa rosa amarela caída no chão. Sons alegres no ar. Um
outro cortejo fúnebre entrava no cemitério. Fúnebre? Um jazz-band vinha à
frente, comandado por um negro reluzente vestido de branco, a requebrar-
se, risonho, com um estandarte tricolor nas mãos. Pistons, trombones,
clarinetas, pratos, bombo, tambores! Os instrumentos de metal chispavam
ao sol, tocando uma vibrante marcha triunfal (OP, p. 59).
Seu pai enterrado, o jazz-band parecia anunciar a possibilidade de novos
tempos. A alegria dos músicos era contagiante e contrastava com o fato de ser
aquele um cortejo fúnebre: o jazz-band era um arauto da esperança para o menino
mulato:
(...) o cortejo fazia evoluções coreográficas por entre as sepulturas. Então
ele sentiu como nunca a alegria de estar vivo. Era como se estivesse saindo
de um prolongado pesadelo. Um pensamento se formou em sua mente:
Agora que “ele” está morto, nós dois poderemos viver como brancos! (OP,
p. 60)
A esperança do menino de escapar de sua condição racial, no entanto,
revela-se uma ilusão, pois não é possível deixar para trás o que se é. Nesse sentido,
o jazz-band encerra essa contradição. O jazz, música nascida em New Orleans, nos
Estados Unidos, na virada do século XIX para o século XX, tem suas raízes
firmemente encravadas na cultura negra. A profunda identificação do menino com a
música, como que anunciando a possibilidade de novos tempos, trazia consigo o
fato de que a própria música que lhe ensejava a idéia de se livrar de sua condição
era de origem miscigenada, ou seja, o fator racial estava impregnado na cultura e na
sociedade. Segundo François Billard: “O jazz é de raça indeterminada. Negro, sim...
Mas que grau de negritude? Esse detalhe tem sua importância. Negro de azeviche,
café com leite, todas as nuances são abrangidas” (BILLARD, 2001, p. 9).
A esperança do menino em ser branco, refletida na alegria que a música lhe
provoca, é, portanto, ilusória. A música mesma encerra a profunda contradição a
que está sujeito o tenente naquele momento de sofrimento.
3.3.3 Vozes da contracultura
Uma das citações musicais presentes em O prisioneiro envolve um estilo
musical que nunca havia surgido antes na obra do escritor: o rock. A existência
dessa citação nos dá mais uma demonstração da sintonia de Erico com a sua
época, adiantando cenas que veríamos no cinema mais de uma década depois da
publicação do romance, cenas onde o rock é a trilha sonora:
Entrou no café, onde soldados e civis bebiam, sentados às mesas ou de pé,
junto ao balcão, quase todos acompanhados de mulheres nativas. Uma
eletrola automática enchia o ar da estridência das guitarras elétricas e das
vozes guturais dum quarteto misto que, para o tenente, parecia refletir,
numa obsessão desesperada, a mesma frase de três palavras (OP, p. 103).
Esta é a primeira, embora não única presença do rock na obra do escritor. Tal
detalhe poderia ser insignificante, não fosse o momento histórico em que se vivia. A
Guerra do Vietnã foi o conflito que provocou uma das maiores e mais importantes
reações da juventude contra uma guerra ou os desmandos de uma nação já
documentadas historicamente. Não apenas os Estados Unidos, mas vários países
assistiram a protestos veementes contra a guerra, o que gerou um movimento que
encontra reflexos no mundo a hoje: a contracultura, um movimento considerado
como uma forma alternativa de cultura que tem como objetivo combater os valores
culturais vigentes, considerados decadentes.
Esse movimento está profundamente conectado a várias expressões
artísticas e culturais e estabelece e estreita laços com culturas que até então
(meados dos anos sessenta) o eram significativas no âmbito da sociedade
ocidental. O contato com filosofias orientais, a liberação sexual, a conscientização
ecológica foram sedimentados pelo movimento da contracultura. Um dos aspectos
fundamentais do movimento era o rock, meio de expressão mais importante da
juventude da época. Um grande número de bandas circulava por festivais, tocando
em parques, eventos variados ao ar livre, onde os protestos contra a guerra
aconteciam. Músicos importantes do período, como o guitarrista Jimi Hendrix
35
,
faziam parte desse cenário. O som da guitarra de Hendrix, tocando o hino nacional
norte-americano numa versão para guitarra solo, no qual transpareciam entre a
melodia do hino ruídos que imitavam o som de metralhadoras, foi um dos momentos
cruciais da música do período e um dos protestos artísticos mais contumazes
vistos contra a guerra. Nesse sentido, Hendrix era um símbolo da época. Como
aponta Friedlander ao comentar o álbum Band of Gypsies de Hendrix:
Os concertos resultaram num álbum homônimo gravado ao vivo, que
contava com uma jóia rara de 12 minutos e 38 segundos: Machine Gun.
Hendrix dedicou a canção a todos os homens que lutavam no Harlem,
Chicago e Vietnã. Machine Gun é o melhor exemplo disponível de um
lançamento de uma grande gravadora que exibe a visão multifacetada que
Jimi tinha da guitarra. Estão presentes as repetições, as notas dilacerantes
do blues aliadas a um caleidoscópio cambiante de riffs guiados pela
amplificação e distorção sonoras (FRIEDLANDER, 2004, p. 319).
Debates contra o racismo e a violência estavam na ordem do dia e a música
era o meio mais eficaz de colocar idéias em discussão. Hendrix, um sico
descendente de negros, sentiu na pele o preconceito e não se esquivou de discutir
essas questões. Friedlander (2004, p. 319), ao comentar sobre Machine Gun, diz: “A
letra de Machine Gun ataca uma guerra que ele (Hendrix) descreve como sendo
conduzida contra negros e vietnamitas, pelo ‘homem diabólico’”. Sobre isso, Hendrix
(apud FRIEDLANDER, 2004, p. 319) comenta: “Eles nos (soldados americanos)
forçam a matar você e você me matar mesmo que nós sejamos somente famílias
separadas pela distância”.
A sintonia da obra de Erico Verissimo com esses fatos é completa e O
prisioneiro alia a sua voz às vozes da contracultura.
35
James Marshall Hendrix (1942-1970): músico norte-americano, considerado um dos mais
importantes e influentes guitarristas de todos os tempos. Ultimamente, críticos de vários países m
salientado a importância de Hendrix, considerado-o um dos grandes gênios da sica que o rock
produziu. Para maiores referências, ver o trabalho de Chris Potash, The Jimi Hendrix Companion.
3.4 Incidente em Antares
Incidente em Antares foi o último romance escrito por Erico Verissimo, tendo
vindo a lume em 1971. O livro teve sua gênese enquanto o escritor trabalhava numa
obra que deixou inacabada, A hora do sétimo anjo. Como colocou Maria da Glória
Bordini, Incidente em Antares pode ser considerado “um texto-estuário”, para onde
“confluem a sátira dos romances urbanos, a revisão da história pela ótica de
dominadores e dominados, praticada na trilogia, e a acuidade da visão política dos
dois romances anteriores” (BORDINI, 2003, p. 152).
Musicalmente, a obra também apresenta esse sentido de confluência de
características presentes em toda a obra do escritor. Embora mais comedida em
termos de citações e eventos musicais que toda a obra anterior a Noite, a música,
quando surge, está carregada de significados que sintetizam muitos dos conceitos
desenvolvidos ao longo de sua carreira.
A subdivisão do romance em duas partes, Antares e O incidente, propõe uma
leitura musical também subdividida. Na primeira parte, com o foco colocado no
nascimento e desenvolvimento da cidade de Antares, os eventos políticos não
deixam muito espaço para a música. A violência entre os dois clãs que se digladiam
pelo domínio do lugar, como de costume afasta a música. Na segunda parte, o
obstante a temática ligada à morte, há, de certa forma, a discussão a respeito da
violência, dos descalabros, da tortura, e não faltam elementos de humor (humor
negro as mais das vezes), além de uma quantidade maior de ocorrências musicais
que termina por introduzir uma quebra nos paradigmas do escritor com relação ao
uso da música em sua obra.
3.4.1 A paisagem musical na primeira parte: Antares
Embora a primeira parte do romance reconstrua o passado de Antares,
certos elementos musicais que mantêm as características encontráveis nas obras
anteriores de Erico Verissimo. Na parte inicial, as lutas entre Vacarianos e
Campolargos pelo poder produzem o afastamento de qualquer citação musical.
Nesse sentido, a reprodução de uma característica do escritor, que é o
silenciamento da música onde a violência predomina.
Mas nem das lutas entre Vacarianos e Campolargos se constitui essa
primeira parte. A remontagem da história de Antares passa por uma multiplicidade
de relatos, desde os primeiros viajantes que passaram por aquelas terras até
estudos mais recentes sobre o lugar.
O primeiro desses relatos é o do naturalista francês Gaston Gontran
d’Auberville, intitulado Voyage Pittoresque au Sud Du Brésil (1830-1831)” (IA, p. 3).
No relato de d’Auberville encontramos as primeiras observações não apenas a
respeito da paisagem do lugar, mas também da paisagem musical. Como o lugar é
ainda pouquíssimo povoado, as observações musicais são relacionadas com o
ambiente natural:
(...) e eu vi, empoleirada num dos seus galhos, uma garça dum alvor de
neve de linhas elegantes, e que em dado momento voltou a cabeça na
direção do sol nascente, perfilou-se, esticou o longo pescoço e soltou um
assobio prolongado, duma suavidade indescritível, a um tempo bucólico e
triste, lembrando o pífaro dum pastor. Era como se a ave estivesse
cantando um hino ao dia nascente (...) o Sr. Vacariano me disse que os
índios chamavam àquela garça “flauta do sol” (IA, p. 5-6).
A experiência, que foi proporcionada por Francisco Vacariano ao naturalista
francês, teve como retribuição por parte deste o seguinte episódio:
À noite, depois do jantar, saímos ambos a caminhar pelos arredores da
casa da estância. Como para lhe pagar pelo formoso espetáculo da manhã,
localizei no céu a constelação de Escorpião, que no hemisfério austral
começa a aparecer no horizonte, a leste, depois de 15 de abril, mostrei ao
Sr. Vacariano a bela estrela chamada Antares, e disse-lhe que, embora não
parecesse, ela era maior do que o sol (IA, p. 6).
O episódio de ressonâncias musicais que origem ao nome da cidade dá
ensejo ao seu fundador de esconder o nome original da localidade: Povinho da
Caveira. Como a prenunciar que daquele lugar não se poderia esperar feitos
edificantes, o nome a ser escolhido pelo fundador revela as suas intenções. O nome
é bonito, mas é apenas um escamoteamento de sua origem:
O meu hospedeiro olhou para a estrela em silêncio e mais tarde, quando
chegamos a casa, murmurou: Antares... Bonito nome. Para mim quer dizer
‘lugar onde existem muitas antas’, bem como nestas terras perto do rio”.
Pediu-me que escrevesse essa palavra, o que fiz, num pedacinho de papel,
para o qual o Sr. Vacariano ficou olhando durante algum tempo,
murmurando: “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da
Caveira”. Depois, guardando o papel no bolso, sorriu com seus fortes
dentes de carnívoro e acrescentou: Mas não acredito que essa estrela seja
mesmo maior que o Sol” (IA, p. 6).
À medida que a narrativa avança e começa a disputa entre Vacarianos e
Campolargos, a música se torna escassa, aparecendo apenas em uma ou outra
observação isolada. No entanto, em concordância com o desenvolvimento histórico
da cidade, que é, como Santa Fé, um espelho das cidades gaúchas, a música
aparece em momentos onde ela está historicamente presente, como na virada do
século XIX para o XX:
Antares celebrou com grandes festas a entrada do século XX (...) Num
grande tablado erguido à frente da Matriz, houve danças a noite inteira, ao
som de sicas tocadas pelos melhores sanfoneiros da cidade e
redondezas. À meia-noite em ponto o sino da igreja rompeu a badalar
festivamente (IA, p. 22-23).
Os desenvolvimentos culturais pelos quais a cidade passa seguem os
mesmos passos de O tempo e o vento, guardadas as proporções de ambas as
obras. Assim, na década de 20, as novidades da época se impõem:
O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de
ferro e, depois de 1925, o rádio contribuíram decisivamente para
aproximar o mundo de Antares e vice-versa (...) Nos bailes do Clube
Comercial moças e rapazes das melhores famílias locais dançavam o
charleston, sob o olhar crítico das matronas. Num sarau de arte, no solar
dos Campolargos, um forasteiro recitou versos modernos que ninguém
entendeu de Oswald e Mário de Andrade. Antares, pois, atualizava-se,
integrando-se na Era do Jazz (IA, p. 29-30).
Tanto Campolargos quanto Vacarianos pareciam ter se tornado menos
bárbaros em suas atitudes. O processo envolve elementos musicais:
Em meados da década de 20 várias mudanças eram visíveis e audíveis no
modo de vida tanto de Campolargos como dos Vacarianos. Haviam
adquirido o hábito da leitura, da música, do teatro (...) Em maio de 1926
causou os comentários mais desencontrados na cidade a notícia de que o
herdeiro do trono dos Campolargos, zimo, tinha embarcado para Buenos
Aires com sua esposa e prima-irmã Quitéria, para assistirem alguns
espetáculos da temporada lírica do Teatro Colón (IA, p. 31-32, grifo nosso).
São oferecidas pinceladas da paisagem sonora da região no decorrer do
século XX, junto a acontecimentos políticos e sociais. As revoluções, eleições, e
outros acontecimentos reconstituem a história da cidade, até o ano de 1963. Nesse
ponto, uma outra narrativa importante é adicionada, que é o trabalho de pesquisa do
professor Martim Francisco Terra acerca de Antares.
Esse trabalho, realizado nos anos que antecedem o “incidente” ocorrido em
13 de dezembro de 1963, oferece uma visão mais próxima dos habitantes da cidade
e da vida social e cultural da mesma à época. O objetivo do trabalho sobre Antares
era saber “como vive sua população, qual o seu nível econômico, cultural e social,
os seus hábitos, gostos, opiniões políticas, crenças religiosas” (IA, p. 128).
A presença do professor Martim e sua equipe na cidade é emoldurada por
dois bailes, o primeiro oferecido quando a equipe chega a Antares, e o segundo na
despedida. O baile de recepção é evitado pela equipe, que quer se manter afastada
de possíveis interferências dos chefes políticos locais, e principalmente de seus
preconceitos:
O Clube Comercial abriu as suas tradicionais portas a todos os professores
e pesquisadores da equipe, isto é, todos menos o estudante de sociologia
negro. (“Os senhores compreendem, não é por mal, não somos racistas,
Deus nos livre!, mas é que durante toda a história desta sociedade nunca
entrou em sua sede nenhuma pessoa de cor.”) Ao saberem dessa exceção,
os “gafanhotos” recusaram terminantemente por os pés no clube, até
mesmo para uma rápida visita (IA, p. 128).
O baile de despedida, realizado em outro local e depois que os membros da
equipe já estavam ambientados na cidade, foi encarado de outra forma:
Os plátanos e cinamomos começavam já a perder suas folhas amareladas e
as paineiras estavam em plena floração, quando o trabalho de campo da
equipe universitária terminou e os seus componentes se prepararam para
deixar Antares. Dessa vez os “gafanhotos” não conseguiram nem mesmo
tentaram livrar-se dum baile de despedida no Clube Caixeiral que admitia
em sua sede gente de cor e dos almoços do Lions e do Rotary (IA, p.
132).
Depois de terminado, o trabalho dos pesquisadores é publicado, o que causa
controvérsias por parte da população de Antares, mais especificamente de seus
dirigentes e autoridades. As conclusões da pesquisa põem a nu a pobreza cultural
daquele povo: “Somos apresentados como uma cidade prosaica, opaca (este é o
termo que eles usam), como um povo sem imaginação e, além de tudo, desconfiado,
sempre com um pé atrás” (IA, p. 137).
Também são destacados pelo estudo “uma certa pobreza de imaginação e
fantasia” (IA, p. 140) e que aquele local é “pobre em expressões folclóricas” (IA, p.
141). Todos esses aspectos estão intimamente ligados à música, e o depoimento do
pianista Menandro Olinda confirma o diagnóstico: “Doutor, isto é uma cidade sem
alma, sem música. Ninguém gosta da boa música em Antares. Ponha isso no seu
estudo” (IA, p. 162).
a permanente associação da música com bem-estar e desenvolvimento
espiritual, e a pobreza cultural dos antarenses só aponta para o fato de que aquele é
um lugar onde grassa a mediocridade ou, por falta de uma ocupação ou forma de
lazer que envolva a arte, há o envolvimento da população com outras formas de
divertimento. Num lugar “sem alma”, segundo o depoimento de Menandro, a
predisposição das pessoas às diversões baratas e ao materialismo grosseiro.
3.4.2 Paisagens musicais individuais
em Incidente em Antares uma gama de personagens que possuem
ligações com a música e que introduzem na narrativa aspectos bem diversificados.
Um destes personagens é o Major Vivaldino Brazão, prefeito municipal de Antares.
O que chama a atenção no personagem é a sua propensão, a despeito de
todos os seus envolvimentos com falcatruas, crimes e atos de corrupção, de possuir
um lado humano mais leve, distante da figura pública.
Aqui, a ironia do escritor imputa ao Maj. Vivaldino o gosto por orquídeas,
numa clara substituição de atributos musicais: “Uns fazem versos. Outros pintam.
Outros compõem música. Eu coleciono orquídeas, brinco com elas, faço esses
cruzamentos...” (IA, p. 157).
Essa substituição parece tornar o personagem indigno de possuir um
passatempo ligado à arte, à leitura, ou à música, numa salvaguarda do elemento
humanista que o escritor vê nelas. Apesar disso, o Major é apresentado, num
primeiro momento, como um homem afável na sua vida familiar, de “cabelos já ralos,
uma voz atenorada” (IA, p. 155), o que, além de traduzir uma característica pessoal,
também demonstra a possibilidade de envolvimento com algo mais profundo que a
apreciação das orquídeas que, ademais, traz em si a metáfora da manipulação de
seres vivos, verdadeiro passatempo do personagem.
3.4.2.1 Dominique
Outro personagem que possui ligações musicais é Mme. Dominique
Duplessis, esposa do gerente da Cia. Franco-Brasileira de lãs. Dominique é adepta
de cultos africanos e, segundo a narrativa do prof. Martim:
Penso no estudo que Moreau de St. Méry, escritor francês do séc. XVIII, fez
da mistura de sangue europeu e africano no Haiti e concluo que acabo de
ver o que ele chama de sang-mêlé, isto é, uma mulher com um oitavo de
sangue negro (IA, p. 161).
A presença de Dominique no romance introduz um aspecto musical
pouquíssimo explorado na obra de Erico Verissimo que é a música dos cultos
africanos. No caso de Dominique, uma dupla abordagem. Por ser haitiana, ela é
adepta do vodu, culto característico daquele país, e pelas similaridades, no Brasil, o
que a deixa seduzir é a umbanda. Segundo a narrativa do cronista social do jornal
da cidade:
Um dia essa senhora quis porque quis ver uma sessão de macumba aqui
em Antares. O marido relutou mas acabou indo. Lá pelas tantas, excitada
pelos cantos e pelo batuque, Mme Duplessis tirou os sapatos, soltou os
cabelos, entrou na roda e, menino, foi um escândalo, o santo desceu sobre
a haitiana e ela começou a gritar, a estrebuchar e a tirar a roupa... Se o
marido não interviesse a tempo e o arrastasse a bichinha para fora, ela
acabava nuinha no terreiro. Depois disso a “melhor sociedade local” isolou a
crioula (IA, p. 161).
A multiplicidade de aspectos é grande. Por um lado, a presença de Dominique
reforça o lado fantástico do romance, com suas diversas conotações sobrenaturais,
e isso tem conseqüências no decorrer da narrativa. Por outro, o preconceito da
cidade com relação aos negros se torna cada vez mais evidente, reforçando um
aspecto da sociedade sul-riograndense muito comum, mas pouco explorado na
ficção feita por aqui. E ainda o humor negro e a ironia que perpassam toda a
narrativa de Incidente em Antares.
3.4.2.2 Menandro Olinda
O personagem que concentra a maior parte dos aspectos musicais do
romance é, sem dúvida, o pianista Menandro Olinda. No relato do prof. Martim, ele
observa:
Descobri ontem que conhecia (como se conhece uma figura de lenda) o
morador do andar superior do sobradinho de azulejos da Praça da
República, o “maestro” Menandro Olinda. vários anos, quando eu era
ainda estudante universitário e costumava visitar sanatórios para doentes
mentais, fiz boas relações com um conhecido psiquiatra, que um dia me
mostrou a singular criatura que passeava sozinha, falando consigo mesma,
pelos jardins da instituição, e tocando algo com suas longas mãos num
piano invisível (IA, p. 162).
O caso de Menandro, do menino talentoso em quem são colocadas todas as
expectativas da família, que espera lucrar com suas habilidades, não é incomum:
Filho único e serôdio dum casal da classe média. O pai vivia do
arrendamento de um campo seu. A e, uma gida professora pública. Ele
manso e terno, desses tipos que vivem em surdina. Ela uma disciplinadora
autoritária e quase uma fanática religiosa. Ambos apaixonados pelo filho
(IA, p. 162).
O caso guarda semelhanças com a história de Wolfgang Amadeus Mozart.
Menino prodígio, o compositor sofreu durante toda a sua vida a dura influência não
de sua mãe, mas de seu pai, Leopold Mozart, homem enérgico e autoritário.
Segundo Wolfgang Hildesheimer:
Não estaríamos tão interessados na vida de Leopold Mozart, se ele não
tivesse tido o controle da de Wolfgang (Mozart) até um estágio bem tardio.
Apesar da influência do pai ter declinado na terceira década da vida de
Mozart, o filho continuou obediente, ou, pelo menos, resolveu continuar
assim. Falando objetivamente, Mozart sempre obedeceu contra a vontade,
apesar de ele próprio não se dar conta disso (1991, p.57).
De certa forma, Menandro ecoa Mozart, na dominação exercida sobre ele, e
também na sua relação, que não lhe deixa nenhuma possibilidade de escape, da
vida na carreira artística.
Desde os seis anos Menandro revelou grande talento pianístico. Quando
completou o oitavo aniversário, um professor de música local declarou-o
excepcional e começou a dar-lhe lições de piano. Quando o aluno
completou quatorze anos o mestre antarense aconselhou os Olindas a
mandarem o filho estudar em Porto Alegre. O casal mudou-se para a capital
do Estado e matriculou o rapaz no Conservatório de Música. Um dia o
diretor do Conservatório aconselhou os Olindas a levarem o “prodígio”
então com dezoito anos – para aperfeiçoar-se em Buenos Aires (IA, p. 162).
A rápida evolução do pianista e as constantes mudanças da família em busca
de melhores mestres guardam semelhança com a trajetória de outro menino-
prodígio, Franz Liszt:
Seu pai, intendente dos domínios do príncipe Esterhazy, excelente músico
amador, deu-lhe as primeiras lições de piano. Aos 9 anos, fez as suas
primeiras apresentações em público em Presburgo e, depois, exibiu-se em
Viena aos 11 anos (...) Em Viena, foi aluno de Czerny (piano) e Salieri
(composição). Em 1823, seus pais levam-no para Paris onde, como
Cherubini lhe recusou, por ser estrangeiro, o acesso ao Conservatório, teve
lições particulares com Paër e Reicha (CANDÉ, 1985, p.121).
Muito da figura de Menandro é formada a partir de uma pré-determinação
histórica, moldada em cima do estereótipo do pianista romântico do século XIX,
como Liszt. O repertório que ele toca trai essa influência. Daí as expectativas que se
criam para ele, do grande pianista que encanta multidões com seu gênio e sua
técnica sobre-humana.
A imprensa de Porto Alegre começava já a escrever sobre o “novo gênio
musical gaúcho”, o jovem Paderewsky (segundo um jornal) o novo
Brailovsky (segundo outro). Um cronista de arte, a quem Menandro deu
uma audição privada da Appassionata, declarou que sua interpretação
dessa peça de Beethoven era tão perfeita quanto a de Backhaus (IA, p.
163).
A comparação desproporcional com pianistas consagrados a ele a
sensação de que está pronto como artista. Seus planos traem a facilidade com
que pensa em atingir os seus objetivos:
A um repórter de A Verdade que então o entrevistou, Menandro Olinda
confiou seus planos. Faria a sua estréia no São Pedro em setembro de
1935 durante as comemorações do Centenário da Guerra dos Farrapos
numa homenagem ao velho teatro, à capital de seu estado e à memória do
Gen. Bento Gonçalves com o qual (sua mãe lhe assegurava) os Olindas
tinham um remoto mas honroso parentesco. E depois, maestro? Bom,
depois, ele daria um concerto no Rio, outro em Montevidéu e outro em
Buenos Aires. Começaria então a ser conhecido mundialmente. A sua
grande meta eram os grandes centros da Europa: Paris, Roma, Viena,
Londres, Amsterdam... (IA, p. 163).
A diferença que o separa de Liszt e outros grandes pianistas que foram
talentos precoces é que sua estréia foi protelada até uma data tardia, e ele não
possuía qualquer preparo psicológico para o palco. A associação da pressão
produzida pela mãe autoritária com o seu despreparo provoca a tragédia de sua
vida:
Chegou a noite do concerto de estréia. (Visualizo a cena.) O São Pedro
completamente lotado, com cadeiras extras colocadas nos corredores da
platéia. O Gen. Flores da Cunha e outros membros do seu governo no
camarote oficial. O artista, envergando pela primeira vez uma casaca feita
pelo melhor alfaiate da cidade, entra no palco, nervosíssimo, as mãos
geladas e úmidas dum suor frio que também lhe goteja da testa, lhe escorre
pelo rosto e ao longo da espinha (...) Menandro sente de súbito a memória
bloqueada, como se nunca tivesse tocado o primeiro número daquele
programa – um estudo de Chopin (IA, p. 163-164).
A complexa mescla de despreparo psicológico e repressão sexual que
permeia a relação com a sua mãe tornam o primeiro concerto de Menandro um fardo
pesado demais para ele. Lembranças da adolescência se intrometem no concerto, e
sua música predileta, a Appassionata de Beethoven, se torna um muro
intransponível:
Mas agora vem a Appassionata! Menandro volta a cabeça na direção da
platéia e sente uma vertigem. Depois olha para as próprias mãos
pousadas sobre o teclado. Mas naquele dia ele havia esquecido de fechar a
porta , e sua mãe usava em casa pantufas de lã... A porta se abriu de
repente. “Minha Nossa Senhora! O que é que estás fazendo, meu filho?
Que horror! Que pecado! Que vergonha! Que pecado! Deus vai te castigar,
fazer secar esses dedos, paralisar essas mãos!” E ele se revolvia na cama,
a sua seiva a esguichar-lhe do corpo num estertor de prazer misturado com
susto e vergonha (...) Menandro ataca a Appassionata. Sente, porém, que
suas mãos estão agora paralisadas, que seus dedos não obedecem ao seu
cérebro. Ergue-se de súbito, derrubando a banqueta, e sai quase a correr
do palco e no camarim põe-se a chorar e a dizer incoerências. Dois dias
depois, a conselho do dico, os pais o internaram num sanatório para
doenças mentais, onde ele permaneceu por três anos (IA, p. 165).
Muitas questões levantadas na história de Menandro permanecem atuais,
particularmente nas escolas de música que continuam utilizando sistemas antigos de
ensino, sem atentar para peculiaridades psicológicas dos alunos. Nesse sentido,
Erico mapeia uma situação muito particular da educação musical que permanece
largamente inexplorada até hoje. A intuição e o talento do escritor trazem à tona
questões que mesmo os profissionais da área o foram capazes de identificar
naquele momento histórico e mesmo posteriormente, num processo que continua
até os dias atuais.
3.4.2.2.1 Detalhes do repertório
Uma das características de Erico Verissimo no que concerne ao tratamento
dado à música em sua obra, já citada neste estudo, é a profusão de detalhes
presentes no texto, seja descrevendo instrumentos, compositores, instrumentistas
ou cantores, entre outros elementos relacionados com a área musical.
Em Incidente em Antares, no que concerne a Menandro Olinda, salta aos
olhos (e aos ouvidos) a descrição do repertório do pianista:
Seu forte eram os românticos. Seu preferido, Beethoven. Seu cavalo de
batalha, a Appassionata (...) Muitos dos vizinhos costumavam despertar
todas as manhãs ao som de estudos de Chopin ou mesmo dos belos
acordes iniciais da Appassionata. O barbeiro Jesualdo, que tem bom
ouvido, já sabia de cor podia até assobiar – trechos do programa do
virtuoso, composto de estudos, prelúdios e noturnos de Chopin, sonatas de
Schubert e Schumann e da Appassionata (IA, p. 163).
O repertório de Menandro é coerente com o todo do personagem romântico
que ele encarna. A figura do “super homem” do romantismo, do rebelde capaz de
afrontar a multidão, do gênio que se levanta acima da turba ignorante, pesa sobre os
ombros de Menandro. E o fato de ele não conseguir fazer jus a essa idealização é o
que lhe causa todas as desgraças.
3.4.3 Outras paisagens musicais individuais
Alguns personagens possuem, em menor grau, paisagens musicais descritas
ou perpassadas no romance. O vigário da cidade é apresentado com tintas
conservadoras, que deixam transparecer seu gosto musical, quando critica a “igreja
sem latim, sem o velho ritual e com todas essas novidades... padre sem batina,
música profana...” (IA, p. 171).
Os comentários acabam revelando a paisagem musical do outro padre que
aparece em Incidente em Antares, Pedro-Paulo, personagem fundamental no
romance, interlocutor do prof. Martim, que é criticado de forma veemente pelo vigário
porque permite que uns meninos boêmios e esquisitos toquem música de jazz nas
suas missas” (IA, p. 171). A contraposição do vigário conservador e do padre
“moderno” é exposta também musicalmente.
O padre Pedro-Paulo, ligado a tendências de esquerda, possui um epíteto
que possui ressonâncias musicais. O prof. Martim, em conversa com ele, observa:
- Tu naturalmente sabes que és conhecido em Antares como o Padre
Vermelho.
- Sei, e isso até me diverte. Assim também era chamado Vivaldi, o meu
compositor favorito. Il prete rosso... embora no caso dele o rosso se
referisse à cor de seus cabelos (IA, p. 184).
A ligação com a música Barroca aparece nos momentos mais inusitados, e
em personagens variados na obra do escritor. Desde Vasco no final de Saga,
admirador de Bach, como Leonardo Gris em O senhor embaixador, admirador tanto
de Bach como de outros compositores menos conhecidos do período. Nota-se a
admiração de Pe. Pedro-Paulo pela música sem que a conversa entre ele e prof.
Martim versasse sobre o assunto. Além da citação que envolve Vivaldi, em outra
passagem ele afirma: “Sou otimista em relação ao homem. Não penso em Hitler sem
me lembrar também de Mozart” (IA, p. 187). A opinião de Pedro-Paulo reforça as
conexões entre a música e o humanismo, recorrentes na obra do escritor.
Outro personagem que apresenta algumas características musicais é D.
Quitéria Campolargo. A matrona conservadora é descrita como tendo “uma voz
autoritária mas melodiosa, que sabe fazer-se envolvente e aliciante quando ela quer”
(IA, p. 176). O conservadorismo de D. Quitéria transparece na forma convencional
com que até mesmo os objetos e móveis de sua casa estão dispostos. Dona
Quitéria “tem uma admiração ilimitada pelo Presidente John F. Kennedy, cujo retrato
autografado vejo numa moldura de prata em cima dum piano de cauda” (IA, p. 176),
relata o prof. Martim. Nota-se aqui que o instrumento musical nada mais é que um
símbolo de status social, sendo o cultivo da música um elemento descartável do
contexto.
3.4.4 A paisagem musical na segunda parte: O incidente
Na segunda parte do romance, que relata o incidente do título do livro, a
música adquire um caráter inusitado na obra do escritor, e acompanha o tom entre o
irônico e farsesco predominante.
A quantidade inesperada de mortes num mesmo dia, que suscita o posterior
encontro dos mortos insepultos e sua ação reivindicatória dos direitos que eles
acreditam possuir, revela outras relações musicais existentes tanto dos personagens
que morrem, quanto da cidade de Antares.
3.4.4.1 A banda farsesca e a cidade surda
Como a atestar as palavras de Menandro de que a população de Antares não
gostava de música, a descrição da banda municipal, que acompanha o cortejo
fúnebre de D. Quitéria Campolargo até o Cemitério Municipal, expõe a situação de
ridículo com que o poder publico e a população entendem e apreciam a música.
Num momento solene e pretensamente sério, a banda dá, literal e
figuradamente, o tom da narrativa:
Formou-se finalmente o cortejo. À frente ia a Banda Municipal Carlos
Gomes, vinte e dois músicos que, a um sinal do Lucas Faia encarregado
pelo prefeito e pela família enlutada de dirigir a procissão romperam a
tocar algo que poucos na multidão conseguiram identificar como a Marcha
Fúnebre de Chopin, pois, embora as duas clarinetas e os dois pistons
conseguissem emitir sons que se pareciam com o da conhecida
composição, uns trombones alucinados tomavam a liberdade de enxertar
notas que o compositor jamais escrevera para aquela peça, um flautim
frenético entrava em trêmolos desesperados, talvez com louvável intenção
de simular soluços, enquanto uma tuba roncava como um animal ferido no
fundo duma toca, e um tambor surdo, coberto de crepe, tentava, mas em
vão, marcar a cadência da marcha (IA, p. 212-213).
A mesma precisão descritiva dos elementos musicais é aqui aplicada com
intuito de descrever, sim, mas sob uma camada inegável de ironia. Todos os
detalhes reforçam o descaso, a falta de qualquer noção e a aparente surdez do povo
de Antares, que parece encontrar no cortejo uma solenidade suprema. Surdez
cultural ou descaso? Aqui ambas as possibilidades convivem e reforçam o estado de
corrupção e ignorância que provocará a reação irada dos mortos. A farsa prossegue,
pois a banda é ornada com adereços ainda mais estapafúrdios. Ao
acompanhamento de uma irreconhecível Marcha nebre do célebre compositor
polonês, marcha um piquete de cavalarianos gaúchos:
Lucas Faia aproximou-se do maestro e recomendou: “Devagar, chefe, para
o povo poder acompanhar a o enterro! A poucos metros atrás da banda,
vinham trinta e três garbosos cavalarianos, escolhidos a dedo, e
pertencentes ao Centro de Tradições Gaúchas Chimarrão da Saudade, do
qual D. Quita havia sido sócia fundadora, além de mecenas e “prenda
honorária” (IA, p. 212-213).
Ao chegar o cortejo no cemitério, diante do conflito com os grevistas, a
pretensa solenidade se desfaz de forma violenta, mas não inteiramente estranha
para aquela gente, como a reafirmar a volta à normalidade: “A banda de música
fazia muito havia se dispersado, pois seu maestro tinha um horror neurótico às balas
perdidas” (IA, p. 226).
3.4.4.2 A música dos mortos
Os sete cadáveres insepultos que centralizam a ação da segunda parte do
romance também possuem ligações musicais, não apenas por se encontrar entre
eles o maestro Menandro Olinda, mas porque a morte não impede que a música
continue a provocar-lhes sensações e sentimentos, antes pelo contrário, ela provoca
a urgência da resolução de problemas que ficaram sem solução quando eram vivos.
Temos diversas características que inovam a utilização da música na obra
de Erico Verissimo, principalmente a usual ligação entre música e vida, efeito que
aqui adquire outra dimensão. Se em toda a sua obra o escritor utilizou a música
numa evidente conexão com a vida, com o fato de se estar vivo, como uma fuga aos
ditames da morte, aqui estes conceitos aparecem renovados e em muitos aspectos
mudados. Em outras situações extremas, como nos episódios de Saga e O
prisioneiro, na presença da morte e da violência, a música cessa. Em Incidente em
Antares, entretanto, ela sobrevive, não apenas pela peculiaridade da trama do
romance, mas também porque o escritor estende a atuação da mesma para além
dos limites anteriores, quebrando seus próprios paradigmas. Interessante notar este
fato, já que o escritor trabalhava por ocasião de sua morte, e mesmo desde antes da
redação de Incidente, em um livro que seguramente teria abordagem em certo
sentido semelhante, A hora do sétimo anjo, em que o narrador era, à maneira de
Brás Cubas, um narrador póstumo
36
.
A mudança de paradigmas com relação à música ocorre, de fato, em todos os
romances a partir de Noite, quando o escritor passa a explorar temas “como a
intolerância, a perseguição política, a tortura, o abuso do poder e a vacuidade da
busca de sucesso pessoal e de fortuna” (BORDINI, 2003, p. 149). De fato, mesmo
em Noite esses aspectos podem ser encontrados de forma simbólica, e são
desenvolvidos numa variedade de formas nos romances posteriores.
Os mortos de Incidente em Antares, não obstante sua situação única,
possuem seus gostos de vivos intactos, e passam a resolver seus dilemas a partir
dessa perspectiva. Menandro Olinda, que se suicidou cortando os pulsos, cantarola
a frase inicial de sua amada e odiada Appassionata (IA, p. 236), enquanto D.
Quitéria Campolargo questiona o porquê de seu ato desesperado. A Appassionata é,
mais uma vez, o centro da questão:
O pianista olha para as próprias mãos e, depois de curto silêncio, fala. – Foi
a hora do diabo, D. Quitéria... Eu estava em casa sozinho e desesperado.
Tentei tocar a Appassionata, e mais uma vez falhei. Compreendi que tinha
estado me iludindo a mim mesmo todos estes anos, fingindo acreditar na
possibilidade dum novo concerto público e da fama (IA, p. 244).
Além das questões pessoais, da fragilidade psicológica do pianista, a
passagem expõe, mais do que o drama de Menandro, a situação de Antares, sua
verdadeira face cultural, e também a verdadeira face de seus habitantes, a
intolerância e o preconceito predominantes naquela sociedade, que sobrevivem
mesmo depois da morte, através de D. Quitéria:
36
Ver BORDINI, 2003, p.149.
D. Quitéria escutou-o em silêncio e depois perguntou:
- Mas o senhor não sabe que os suicidas não podem entrar no Céu?
- D. Quitéria, eu tive em Antares uma amostra do inferno. A incompreensão,
o sarcasmo, a impiedade dos antarenses me doíam fundo. O inferno o
pode ser pior que Antares.
- Acho que o senhor está sendo injusto com a sua cidade e os seus
conterrâneos.
A velha lançou para o maestro um olhar duro, quase inimigo:
- E o senhor sabe que, como suicida, não pode ser sepultado em campo-
santo?
Ele encolheu os ombros ossudos e começou a cantarolar o trecho duma
sonata de Mozart. E seus dedos se movimentaram de leve: crianças que se
agitavam no berço, como a se debaterem num sonho (IA, p. 246).
D. Quita ecoa, na sua dureza, a ignorância de Bibiana Cambará, sua
impermeabilidade às coisas do espírito que não se colocam dentro do âmbito da
religião ou de regras pré-concebidas. a desproteção do maestro ante uma
comunidade hostil é reforçada pela música de Mozart, límpida e cristalina, como
uma representação sonora de sua fragilidade. Como o homem da gaitinha de Noite,
Menandro possui uma inocência que paira acima das normas daquela sociedade.
Outro personagem que revela sua face musical é Pudim de Cachaça,
personagem que só passa a integrar a narrativa a partir da segunda parte do
romance, como defunto. Pudim, tão logo são resolvidos os direcionamentos que
os mortos vão dar à sua reivindicação, se encaminha para a cidade à procura de seu
companheiro de festas e serestas:
Depois de separar-se de seus companheiros, Pudim de Cachaça, envolto
numa nuvem de moscas, encaminha-se para o setor de Antares
popularmente conhecido por Zona Estragada, e que fica a noroeste da
cidade, perto das barrancas do rio. Passou primeiro pela própria casa, que
encontrou fechada, assustou os vizinhos (“Que é isso, minha gente? Não
me conhecem mais?”) e depois saiu em busca de seu melhor amigo,
companheiro de pileques, serenatas e farras com raparigas (IA, p. 287).
Pudim é uma edição miserável dos Neco Rosa e Chiru d’O tempo e o vento,
como a apontar para o empobrecimento do povo daquelas (destas) terras. As farras
persistem, mas como algo decadente e que contém muito daquele ambiente ácido”
encontrado em Noite. A isso é acrescido o teor bizarro da situação, a angústia
premente que perpassa a condição de todos, mortos ou não. A novela (Noite) escrita
nos anos cinqüenta ecoa aqui, num mundo que é como um limbo, onde os mortos-
vivos são como a representação da própria sociedade, calada e ignorante.
Pudim vive em torno de suas farras e bebedeiras, onde a música de seresta
se constitui na paisagem musical dele e do amigo, sintomaticamente chamado de
Alambique. O reencontro dos dois é antológico:
- Pudim velho de guerra! Me disseram que tinhas voltado, mas eu pensei
que era potoca. – Precipita-se para o amigo e abraça-o. – Senta, homem.
As moscas zumbem no ar, por cima da cabeça do morto, que se senta na
ponta da cadeira.
- Bebes uma cachacinha?
- Não posso. Se eu beber, vaso. Costuraram muito mal a minha barriga.(...)
- Como é que já estás aqui tão cedo?
- Vim tomar o meu “café da manhã” sorri o Alambique, mostrando o copo de
cachaça. Passei a noite em claro, caminhando por aí, cantando pelas
esquinas. Quando o dia raiou, fiquei olhando o rio e pensando umas
bobagens. Mas toma uma branquinha!(...)
Alambique espanta as moscas que voejam também em torno da sua
cabeça, pega o violão e começa a tocar uns ponteios (IA, p. 288-289).
A música está presente mesmo depois da morte para os amigos. Inquirido por
Pudim se não tem medo de estar conversando com um morto, e comentando o fato
de muitas pessoas haverem fugido dele, Alambique responde que “esses não eram
teus amigos, como eu” (IA, p. 289). O companheirismo comovente de Alambique e
Pudim ultrapassa as fronteiras da morte. Pudim, que foi envenenado pela
companheira devido às constantes surras que ele lhe dava, pensa em fazer algo
para recuperar a estima dela. O arrependimento que o corrói se manifesta da forma
mais óbvia para ele, mas a forma de buscar o perdão é profundamente original sob o
ponto de vista criativo e ressonante de calor humano:
- Escuta aqui... é verdade , é verdade mesmo que a Natalina botou veneno
na minha comida?
- É. Confessou.
- Não teria sido invenção da polícia?
- Não. Falei com ela. Não nega que te matou de propósito.
- Coitada! Não está arrependida?
- Não sei. Mas não me pareceu.
- E agora? Será que vai pegar muitos anos de cadeia?
- Ora menino, isso depende de muita coisa. Do discurso do promotor. Do
advogado dela. Dos jurados. Toma alguma coisa! (...)
Pudim belisca, distraído, as cordas do violão do amigo.
- Onde está a Natalina?
- Na cadeia municipal, onde mais?
Pudim de cachaça passa a mão pelo estômago, quase numa carícia.
- Escuta aqui, Alambique... E se a gente hoje de noite fosse fazer uma
serenata para ela? (IA, p. 290).
A solução musical para o problema reforça os momentos cruciais em que a
música é utilizada na obra do escritor.
3.4.4.3 Um concerto post mortem
O personagem Menandro Olinda é, como foi dito, aquele que possui a
maior quantidade de ligações musicais, o que o torna uma espécie de termômetro
cultural de Antares.
Também ele resolve acertar as contas com o passado e com seus
conterrâneos e, como não poderia deixar de ser, a forma de resolver suas
pendengas é musical: ele resolve impingir a toda a população um concerto post
mortem. A idéia lhe vem gradativamente, a partir da visita à sua casa. A preparação
para o concerto se dá como um ritual:
Menandro Olinda entra no sobradinho de azulejos e sobe lentamente a
estreita escada que leva ao andar superior, que ele ocupava quando vivo.
Suas mãos pendem ao longo do corpo, oscilantes, mas ele não as usa para
segurar o corrimão. Os degraus rangem. Um rato furtivo passa assustado
por entre seus pés. Na casa toda, um silêncio antigo, recendente a mofo.
No patamar em cima ele faz alto, olha para a porta de sua morada por
alguns segundos, depois aproxima-se dela, empurra-a suavemente com os
ombros, abrindo-a, pois o trinco não funciona vários anos e a fechadura
teve chave em tempos imemoriais. O pianista entra na sala sombria,
abre a porta da sacada com os pés e o interior se ilumina de sol. Depois
põe-se a andar dum lado para outro quarto de dormir, cozinha, quarto de
banho examinando móvel por móvel, objeto por objeto, utensílio por
utensílio, como que fazendo um inventário mental de suas posses terrenas.
Torna à sala, diz algo baixinho à máscara de Beethoven e ao retrato
amarelento de seus pais e por fim olha longamente para o sofá onde se
deitou depois de haver cortado as veias dos pulsos (IA, p. 281).
A partitura da sonata de Beethoven como que lhe espera, a página aberta,
pronta para a execução:
Aproxima-se do piano, que tem o teclado descoberto, senta-se no banco
giratório, olha para a partitura que está na estante e seus lábios se movem
enquanto ele lê: SONATA, dedicata al Conte Francesco Von Brunswick, Op.
57. Composta nel 1803-04, publicata in febbraio 1807 presso il “Bureau des
arts et de l’industrie” di Lipsia (IA, p. 282).
Nesse ponto ocorre algo extraordinário, tanto sob o ponto de vista da
narrativa, quanto sob o ponto de vista técnico:
Suas os, como dotadas de vontade própria, erguem-se e pousam sobre
o teclado. O pianista, com os olhos postos na partitura, murmura
cariciosamente: sottovoce e misterioso. Seus dedos começam a mover-se,
tocando a frase inicial da sonata:
Figura 5 – Fragmento da Sonata Appassionata, de Ludwig van Beethoven (IA, p. 282).
A utilização de fragmentos de partituras musicais em obras literárias é um fato
que pode ser classificado de, no mínimo, inusitado, se não quisermos considerar
como algo original. No entanto, mesmo entre escritores que têm a música como um
de seus temas recorrentes (e a lista histórica seria imensa), a utilização de partituras
no corpo do texto é algo incomum. O que chama a atenção em Erico Verissimo é
que essa prática está presente em sua obra desde o início, com o pequeno
fragmento de partitura que imita o papagaio em Clarissa (CL, p. 5), passando pelas
partituras de Saga, até esta citação em Incidente em Antares.
Em cada um desses exemplos o significado da partitura é diferente, desde a
mera ilustração de Clarissa, passando pelos importantes fragmentos de Beethoven
em Saga, até a passagem da Appassionata de Incidente em Antares. Aqui, a
utilização da partitura no corpo do texto empresta à narrativa um peso que o texto
não daria; o despejar das notas iniciais da sonata introduz, de modo surpreendente
e incisivo, toda a força da decisão de Menandro, que logo é reforçada por suas
palavras:
O som do piano enche a sala, escapa-se pela janela. O maestro ergue-se,
corre para a sacada e exclama:
- Povo de Antares! Fariseus e filisteus! Povos do mundo! Ouvireis agora a
Appassionata. De Ludwig van Beethoven, interpretada de além-túmulo pelo
virtuoso Menandro Olinda!
Faz uma curvatura para a praça deserta, torna a encaminhar-se para o
piano ajustando abotoaduras imaginárias de punhos engomados invisíveis e
volta-se dum lado para outro, respondendo a consultas (IA, p. 282).
O concerto póstumo de Menandro é uma catarse de sua vida. Através dele o
pianista não apenas se vinga de seus conterrâneos, mas tenta resolver todas as
pendências de sua malfadada existência. O desfile de locais que gostaria de ter
tocado é substituído por algo muito mais importante:
“Scala di Milano? Peccato, signor impresàrio. Impossibile! Salle Pleyel, à
Paris? Oh non, non, non, le regrette, monsieur. Cozertgebaum,
Amsterdam? Nein! Bolshoi de Moscou? Nyet! A explicação é simples.
Tenho de tocar a Appassionata para Deus Nosso Senhor numa audição
especial (...) Torna a sentar-se no banco ao piano, erguendo as abas da
casaca, como fez vinte e oito anos passados no palco do Teatro São
Pedro em Porto Alegre. Depois olha para as próprias mãos, beija-as
repetidamente e então recomeça a tocar a sonata, dal capo, soluçando
convulsivamente, mas de olhos secos (IA, p. 282).
O acerto de contas de Menandro com o passado ecoa bizarramente pela
praça de Antares, com uma força expressiva que coloca a música, mais uma vez,
como um dos pontos fundamentais na obra de Erico Verissimo.
4 AS ESTRUTURAS POLIFÔNICAS NA OBRA DE ERICO VERISSIMO
Erico Verissimo foi um inovador no romance brasileiro. Tal verdade tem sido
negligenciada por grande parte da crítica brasileira, salvo poucas e honrosas
exceções. Entre os aspectos em que Erico inovou e contribuiu de maneira
significativa está a utilização de novas técnicas, notavelmente a técnica do
contraponto, que ele introduziu e desenvolveu na literatura brasileira, criando novas
possibilidades de utilização e expandindo o repertório de ligações entre os campos
da música e da literatura.
Tudo isso ele fez sem alarde, como era próprio de sua personalidade, o que
lhe valeu em parte o desprezo da crítica do centro do país que o via apenas como
um “contador de histórias”, título que ele acolheu sem considerar depreciativo. Mas o
artista Erico Verissimo trabalhou de forma consciente, procurando novas formas de
reinventar e aprimorar sua arte desde o início de sua carreira literária até sua morte,
e suas contribuições não deveriam mais ser negligenciadas.
Este capítulo se propõe a estudar um aspecto que tem passado despercebido
na obra de Erico Verissimo, que é a estrutura musical dos romances onde o
contraponto foi utilizado. Essas estruturas fornecem dados significativos para o
estudo musical-literário na obra de Erico Verissimo.
Cumpre observar que o sentido de polifonia aqui empregado nada tem a ver
com a polifonia como entendida por Mikhail Bakhtin. A polifonia empregada nos
romances estudados neste capítulo é de natureza musical, ou seja, o emprego direto
de uma técnica de composição em uma obra literária, guardadas as peculiaridades
de um e outro meio de expressão.
4.1 A estrutura polifônica em Caminhos cruzados
Quando Caminhos cruzados veio a público em 1935, ganhou o prêmio
literário da Fundação Graça Aranha que era dado para o destaque entre os livros
publicados naquele ano. Apesar da premiação, Erico foi acusado de simplesmente
ter transposto a técnica utilizada em Contraponto
37
, de Aldous Huxley, que ele
mesmo havia vertido para o português em 1933.
38
Contraponto é o nome dado em música à técnica utilizada para se trabalhar
com a polifonia, ou seja, à técnica usada para combinar duas ou mais linhas
melódicas simultâneas. O termo foi usado pela primeira vez no século XIV, quando a
teoria do contraponto passou a se desenvolver. A transposição do contraponto para
a literatura se de forma completa no já citado romance de Aldous Huxley, embora
diversos escritores estivessem realizando experiências nesse sentido, sendo a mais
significativa a de André Gide em Os moedeiros falsos, publicado em 1925.
Erico teve seus primeiros contatos com a técnica do contraponto nos
romances Merry Go Round, de Somerset Maugham (publicado em 1904) e também
em Manhattan Transfer, de John Dos Passos (publicado em 1925).
39
No romance de
Maugham o contraponto aparece de forma embrionária e o posterior contato com o
romance de Huxley iria sedimentar a intenção de Erico de utilizar essa técnica.
Segundo o próprio Erico, “em 1933 iniciara eu a tradução do Point Counterpoint, cuja
leitura exercera grande fascínio sobre o meu espírito e esse trabalho me ocupou a
maior parte de um ano”
40
. Tal foi o entusiasmo com a obra que imediatamente Erico
teve a idéia para um novo romance, onde poderia utilizar a técnica do contraponto.
O fato de poder experimentar uma estruturação musical em um romance atraía o
escritor de forma especial, além da possibilidade de descentralizar a narrativa da
história, não colocando em cena apenas um grupo de personagens.
Caminhos cruzados apresenta uma inovação na temática do escritor depois
do cândido mundo adolescente apresentado em Clarissa, onde as asperezas da
realidade aparecem de modo periférico. O próprio Erico assinala que Caminhos
cruzados evidentemente é uma obra de protesto, que marca a inconformidade do
romancista ante as desigualdades, injustiças e absurdos da sociedade burguesa”
41
.
Nesse sentido, o romance insere o escritor na geração de 30 do romance brasileiro.
37
Publicado em 1928.
38
Aparentemente Erico não concluiu o trabalho de tradução, ou o fez todo o trabalho sozinho. Nas
sucessivas edições que o romance teve no Brasil, tanto na Editora Globo como em outras editoras,
também aparece o nome de Leonel Vallandro como tradutor. Vallandro era um dos tradutores que
trabalhavam na Globo na época em que esta começou a crescer no mercado brasileiro.
39
Dentro desse contexto, das obras que influenciaram Erico, também está o citado romance Les
faux monnayeurs (Os moedeiros falsos), de André Gide.
40
VERISSIMO, Erico. Caminhos cruzados. 27. ed. Porto Alegre: Globo, 1978.
41
Id., Ibid.
Em Caminhos cruzados, Erico aborda a história não de um grupo de
personagens, mas de vários grupos, cujas histórias acontecem num mesmo período
de tempo, durante cinco dias. O romance começa na manhã de sábado e termina na
noite de quarta-feira. A(s) história(s) se passa(m) em Porto Alegre, o que, como
observa Flávio Aguiar
42
, coloca a cidade no mapa da literatura, que no único
romance anterior em que a cidade aparece, Clarissa, Porto Alegre não é citada
nominalmente, e depreendemos essa informação a partir de romances posteriores
como Música ao longe e Um lugar ao sol.
Os grupos de personagens, que chamaremos de núcleos, atravessam
simultaneamente os cinco dias em que se passa a narrativa. que as histórias
acontecem no mesmo espaço de tempo, a sensação da polifonia, onde várias
vozes são reproduzidas de forma simultânea. Assim, a história de cada núcleo forma
uma linha melódica independente. A técnica do contraponto, musicalmente falando,
é a técnica de combinar as várias vozes de uma polifonia e esse conceito é levado
para a literatura, arte em que a simultaneidade de narração é impossível.
Neste trabalho procuraremos refazer o caminho adotado pelo escritor para
compor Caminhos cruzados, apontando para as evidências de estruturação musical
encontradas na obra.
Em Caminhos cruzados nove núcleos de personagens que entram na
trama da obra. Cada cleo pode ser comparado a uma linha melódica que vai
sendo inserida no silêncio inicial, e a partir de suas entradas, as várias vozes
(histórias) vão se sucedendo, entrando e cedendo espaço a novas vozes, ou à volta
de uma voz que estava calada.
Assim, também o conceito de melodia é transposto da área da música para a
literatura. Melodia pode ser conceituada como “uma série de notas musicais
dispostas em sucessão, num determinado padrão rítmico, para formar uma unidade
identificável” (GROVE, p. 592). Cada melodia ou linha melódica funciona como um
fio do tecido da polifonia, que é formada por diversas linhas melódicas, aqui
representadas pelos diferentes núcleos de personagens.
Outra característica presente na obra, resultante deste tipo de estruturação
polifônica, é que cada núcleo corresponde a uma linha melódica, mas personagens
de um grupo interagem com personagens de outros grupos criando assim uma
42
AGUIAR, Flávio. Caminhos literários. Zero Hora, Porto Alegre, 30 abr. 2005.
estrutura vertical, que em música corresponde ao conceito de harmonia, que pode
ser definida como a combinação de notas que soam de modo simultâneo,
produzindo acordes.
4.1.1 Os núcleos
O primeiro núcleo, que corresponde à primeira linha melódica (L1) a ser
apresentada é a do Prof. Clarimundo, morador da Travessa das Acácias, homem
metódico e de certa cultura, que vive no alto da casa da viúva Mendonça. Prof.
Clarimundo sonha em escrever uma grande obra, uma obra que misture ciência e
arte. Esse aspecto sonhador contrasta com o aspecto disciplinado do seu dia-a-dia.
Prof. Clarimundo corresponde à linha melódica inicial e também à linha final, já que
o romance termina quando o professor começa a escrever a sua sonhada grande
obra.
A segunda linha melódica (L2) apresentada é o núcleo formado pela família
de Honorato Madeira e sua esposa Virgínia (Gina). Ambos têm um filho, Noel.
Honorato é um marido bastante submisso à esposa, à qual nunca ousa contrariar.
Gina é uma dona de casa, e e esposa que exerce uma cruel dominação sobre a
família, oprimindo tanto o marido quanto o filho. Noel é um rapaz sonhador, quase
alheado do mundo à sua volta. Ainda fazem parte deste núcleo a criada, Tia
Angélica, que criou o menino Noel e o protegia dos exageros da mãe. Tia Angélica
morrera quando Noel completara quinze anos. A família de Honorato Madeira vive
em boas condições materiais, representando um dos núcleos abastados do
romance.
A terceira (L3) e a quarta (L4) linhas melódicas são apresentadas
conjuntamente, a partir do capítulo três. A terceira linha melódica é a representada
pelo núcleo formado por Salustiano Rosa (Salu), que vive no apartamento nº 140, no
décimo andar do Edifício Colombo. Salu é um boa vida, homem prático, sempre
envolvido em aventuras amorosas. Num destes encontros, ele trava conhecimento
com Cacilda, menina loira que trabalha como prostituta, e que corresponde à quarta
linha melódica.
A quinta linha melódica (L5) a ser exposta é a do núcleo formado pela família
do Coronel José Maria Pedrosa. É formado pelo coronel, por sua esposa, D. Maria
Luísa e seus dois filhos, Chinita e Manuel. Maria Pedrosa era proprietário de um
pequeno armazém em Jacarecanga (cidade fictícia onde mora a família de Clarissa,
personagem principal do romance anterior de Erico) e a família vivia apertadamente,
com dificuldades financeiras. A vida simples da família sofre uma mudança radical
quando Maria ganha na loteria. A família se muda para Porto Alegre, e passa a
freqüentar a alta sociedade local. É uma família nouveau riche, tendo todos os
excessos de sua nova condição sendo esmiuçados no romance.
A sexta linha melódica (L6) é o núcleo da família de Fernanda, uma moça que
vive com o irmão Pedrinho e a mãe, D. Eudóxia, que é viúva. Fernanda trabalha
como secretária e a família pertence à classe média baixa.
A tima linha melódica (L7) é o cleo da família de João Benévolo
(Janjoca). João é casado com Laurentina (Tina) e vive as agruras de estar
desempregado. Tina é quem sustenta a casa com os parcos ganhos que consegue
como costureira. Ambos têm um filho, Napoleão, menino frágil e que está sempre
adoentado, o que causa constantes despesas, debilitando ainda mais a economia da
família. João vive às voltas com crises de consciência pela perda do emprego, e se
sente responsável pela situação em que se encontra a família. Apesar disso, este
estado de espírito se alterna com momentos em que sonha com uma situação
completamente diferente, transcendendo todas as dificuldades materiais. Janjoca é
um tipo sonhador e nem mesmo a condição extrema em que se encontra consegue
provocar uma reação prática. Todas as fracas tentativas de conseguir um emprego
são substituídas por incursões no mundo da imaginação, onde aventuras por países
distantes substituem as necessidades mais imediatas de sua família. A família mora
de aluguel na casa da viúva Mendonça, assim como o professor Clarimundo (L1).
A oitava linha melódica (L8) a ser exposta é o cleo da família de
Maximiliano. A família de Maximiliano é formada pelo próprio, por sua esposa e um
número não especificado de filhos. Maximiliano está enfermo, num grau avançado
de tuberculose, e a família se encontra em condições financeiras ainda piores que a
de João Benévolo (L7). A entrada desta linha melódica se dá juntamente com a linha
melódica do núcleo de Leitão Leiria (L9), através de sua esposa, D. Dodó, que vem
fazer uma visita de caridade à família de Maximiliano. A riqueza de D. Dodó,
externada através de vários elementos (o carro Chrysler Imperial, as jóias, o aroma
dos perfumes usados por ela), contrasta com as condições precárias de Maximiliano
e sua família, pondo a nu a hipocrisia da situação. De qualquer forma, a entrada de
D. Dodó apenas adianta a exposição da nona linha melódica (L9), que acontece
plenamente no capítulo 12 do romance.
A nona e última linha melódica (L9) a ser apresentada é o núcleo de Leitão
Leiria, rico comerciante, dono de uma loja de departamentos. É casado com D.
Dodó. Ambos têm aproximadamente cinqüenta e poucos anos e uma filha, Vera.
Juntamente com a família do Coronel José Maria Pedrosa (L5), forma o grupo com
melhores condições econômicas do romance. No entanto, por não ser de uma
família enriquecida há pouco tempo como é a família do Coronel, os Leiria se
consideram superiores a esta. Essa presunção de superioridade vem acompanhada
de um sentimento de conforto, de prazer advindo da riqueza. D. Dodó é uma mulher
carola, caridosa, e que não é insensível ao status que a caridade e os chás
beneficentes proporcionam. Ao mesmo tempo, o apego à religiosidade acaba por
levar a certo puritanismo na relação com o marido e a filha. Não permite que a filha
leia romances que considera indecentes, ou livros que falem de sexo, ainda que
sejam de esclarecimento. A repressão sexual acaba por transparecer também no
marido, que busca válvulas de escape fora do casamento. Dentro de casa tudo deve
ser puro e virtuoso.
4.1.2 Os aspectos melódico e harmônico da estrutura polifônica
O romance está dividido em cinco partes, que correspondem aos dias em que
ocorre a ão. Na primeira parte, intitulada Sábado, a entrada das vozes ocorre na
seguinte ordem:
L1 e1 _____ _ _ _ _ _ _e6_____ _ _ _ _
L2 e2_____ _ _ _ _ _
L3 e3 _____ _ _ _ _
L4 e3 _____ _ _ _ _
L5 e4 _____ _ _ _ _
L6 e5 _____ _ _ _ _
L7 e7 _____ _ _ _ _
L8 e8 _____ _ _ _ _
L9 e8 _____ _ _ _ _
Quadro 1 - Ordem de entrada (e) das vozes na primeira parte (Sábado)
Esta entrada das vozes corresponde ao aspecto melódico (horizontal) da
estrutura. Embora todas as vozes soem simultaneamente (os acontecimentos
ocorrem num mesmo espaço de tempo), no primeiro momento é dada maior
importância ao aspecto da entrada de cada voz individualmente. Depois que todas
as vozes tiverem entrado se evidenciado gradativamente o aspecto vertical da
estrutura, que será abordado mais adiante.
Como vimos, a entrada das vozes às vezes se simultaneamente, mas a
maior parte das vezes se dá separadamente. Na primeira parte do romance, ficamos
conhecendo os personagens e seus problemas fundamentais, não um
aprofundamento de questões. Algumas possibilidades de cruzamentos são
apresentadas, mas ainda não temos a dimensão desses cruzamentos para o
desenrolar da história.
Neste primeiro momento, a entrada das vozes ainda é bastante rígida, cada
uma entrando por seu turno (ver quadro 1). Na primeira entrada de cada voz,
ficamos conhecendo os personagens daquele núcleo específico. Assim, da entrada
da primeira voz (L1) até a sexta (L6), as vozes entram sem novidades. A única
alteração é a entrada conjunta da terceira e quarta vozes (ver e3). Depois de chegar
na sexta voz (L6, e5), há um retorno à primeira voz (L1, e6). Ou seja, uma volta à
linha melódica do Prof. Clarimundo. Depois da volta à primeira linha melódica, a
retomada da ordem das vozes, a partir das vozes que não entraram. Portanto a
entrada seguinte (e7) é a da linha melódica de João Benévolo (L7). Finalmente
entram as duas linhas melódicas que ainda não haviam entrado, o núcleo de
Maximiliano (L8) e de Leitão Leiria (L9), também simultaneamente (e8).
O quadro geral da entrada das vozes na primeira parte do romance é o que
segue:
L1 e1 _____ _ _ _ _ _ _e6_____ _ _ _ ________________e16___e18__________
L2 e2_____ _ _ _ _ __________e9____e11________________________e21_
L3 e3 _____ _ _ _ _ ___________________________________________
L4 e3 _____ _ _ _ _ __________________________e17____e19 _____e22
L5 e4 _____ _ _ _ _ ________________e14_____________________
L6 e5 _____ _ _ _ ______________e13_______________e20_____
L7 e7 _____ _ _ _ _e12_____e15__________________
L8 e8 __e10_______________________________
L9 e8 ____________________________________
Quadro 2 - Quadro geral da polifonia na primeira parte (Sábado)
4.1.3 Domingo
O romance tem seguimento no dia subseqüente. A segunda parte é, portanto,
intitulada Domingo. A entrada das vozes neste segundo dia comporta algumas
peculiaridades em relação à entrada das vozes no primeiro dia.
L1 e1 _____ _ _ _ _e7____________________________ _ _ _
L2 e5_____ _ _ _ _ e10_______________________
L3 e11 ___________________
L4 e14 _____ _ _ _ _
L5 e6_____ _ _ _ _ _____e12________________
L6 e8 _________________________ _ _ _ _
L7 e4 _ _ _ ___________________e14____________
L8 e3_______________ e10 ______________________
L9 e2____________e9____________ e13______________
Quadro 3 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na segunda parte (Domingo)
Comparando-se as entradas na primeira parte do romance com as entradas
de Domingo, as apresentações das vozes não mantêm a mesma disposição. A
primeira entrada continua sendo do professor Clarimundo (L1), e vemos a
tendência para a criação de um padrão, que é a primeira entrada do novo dia ser
sempre a do professor Clarimundo. a segunda entrada foge completamente do
padrão exposto no Sábado. A segunda entrada (e2) ocorre no núcleo de Leitão
Leiria (L9). em verdade um padrão na entrada das vozes subseqüentes (e2, e3,
e4) que é a inversão das entradas. Em vez de seguir a ordem apresentada no
sábado (e1, L1; e2, L2; e3, L3, etc.) a entrada inversa. Conserva-se a primeira
entrada como ponto de reconhecimento (e1, L1), mas a segunda entrada já é
invertida (e2, L9; e3, L8; e4, L7), entrando em ordem crescente de entradas e
decrescente dos núcleos. Depois da entrada dos primeiros núcleos há o retorno para
o segundo núcleo (e5, L2) e as próximas entradas ocorrem de maneira mais ou
menos errática até a entrada do núcleo de Cacilda (L4), o último a entrar (e14).
Observe-se que o núcleo de Cacilda ocorre depois de três entradas do núcleo de
Leitão Leiria (e2, e9, e13), e corresponde à última entrada do domingo, o que
demonstra uma tendência no sentido de focalizar um núcleo burguês, com sua
variedade de atividades e compromissos, em detrimento da monotonia da existência
de Cacilda. A entrada de Cacilda ocorre conjuntamente com a entrada do núcleo de
Fernanda (L6), através de Pedrinho, irmão de Fernanda, personagem com quem
Cacilda mantém um relacionamento. outra entrada conjunta nesta segunda parte
do romance, que é a décima entrada (e10), entrada conjunta dos núcleos de
Honorato Madeira (L2), através de seu filho Noel e Fernanda (L6). Estas entradas
conjuntas destes núcleos também o tendências que se mantêm no decorrer da
obra, devido ao estreitamento de relações entre Noel e Fernanda.
Esta segunda parte é a mais curta e a que tem o menor número de entradas
(14) em todo o romance. Quando entra a única voz que ainda não havia entrado
(L4), se encerra o domingo.
4.1.4 Segunda-feira
O romance tem seguimento no dia subseqüente. A terceira parte é, portanto,
intitulada Segunda-feira. A entrada das vozes neste terceiro dia segue o padrão
geral dos dias anteriores, introduzindo pequenas modificações na seqüência das
entradas.
L1 e2 ________ e6________________________e12 ___________________________
L2 e3_____________________e8 __e10__________________________e18 ______
L3 e11________e14_________________e19_
L4 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
L5 e7 (c43-44)_________________e13___________e17__________
L6 e5________________________________________________ e18_______
L7 e1 ___e4 ____________________e9________________________________________
L8 e16_____________
L9 e7(c43-44)____e9___________________e15 _________________
Quadro 4 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na terceira parte (Segunda-
feira)
Embora a primeira entrada do dia pertença ao núcleo de João Benévolo (L7),
a segunda entrada (e2) é do Prof. Clarimundo, mantendo o padrão de
reconhecimento usual. Este padrão se mantém com a terceira entrada (e3),
seguindo a ordem crescente de entradas e núcleos (L1, e2), (L2, e3). As próximas
entradas acontecem em ordem inversa (e4, L7; e5, L6) e um retorno à primeira
voz (L1), reiterando o ponto de partida, que é o núcleo do Prof. Clarimundo,
acentuando o padrão de reconhecimento da polifonia. Este procedimento
equilíbrio à trama, proporcionando ao leitor condições de se localizar em meio à
multiplicidade de histórias e personagens.
Nesta parte do romance, há uma flexibilização no uso das entradas dos
núcleos, peculiaridade que não ocorrera antes no romance. Até aqui, cada entrada
de um núcleo tem a duração de um capítulo. Assim, desde o início do romance, uma
entrada (e) = um capítulo (c). Nesta parte, a sétima entrada (e7) tem a duração de
dois capítulos. Esta flexibilização um indício de domínio da técnica, e produzirá
frutos na obra posterior de Erico, notavelmente em O resto é silêncio, onde a
flexibilidade no uso do contraponto é experimentada com grande apuro técnico.
Saliente-se ainda que a sétima entrada (e7) desta parte (Segunda-feira) é uma
entrada conjunta de dois núcleos (L5 e L9).
Outra peculiaridade é a entrada tardia do cleo de Maximiliano (L8), cuja
entrada (e16) se quando a segunda–feira está quase terminando. Restam
apenas mais três entradas após a entrada de Maximiliano. Finalmente, o núcleo de
Cacilda (L4) não tem nenhuma entrada na segunda-feira, caracterizando entradas
mais esparsas de alguns núcleos (L4, L8).
4.1.5 Terça-feira
O romance prossegue e a quarta parte é, portanto, intitulada Terça-feira. A
entrada das vozes neste quarto dia segue um padrão completamente diferente dos
dias anteriores.
L1 e1 ______________________________________e17_________________________ _ _ _
L2 e5_______________e12 ___________________________e22 ____e26__ _ _
L3 e4_ e6_________________________________e19_____e21____________ e27
L4 e9_________________________________________________ _ _ _
L5 e6_________________e13_____________e19_e20_e21__e23______ _ _ _
L6 e8_______e11_____e14______________________________e26_ e27
L7 e2_______________________________________e18______________e24_____ _ _ _
L8 e16___________________________ _ _ _
L9 e3______e7_____e10_e11_______e15__________________________e25 __ _ _ _
Quadro 5 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na quarta parte (Terça-feira)
A primeira entrada desta quarta parte é novamente a entrada padrão (L1, e1).
Ou seja, dos quatro dias ocorridos até aqui, três apresentam como primeira entrada
o núcleo do Prof. Clarimundo, reforçando o padrão de reconhecimento da estrutura.
Afora esse início, esta parte apresenta bastante liberdade nas entradas, que se
sucedem de forma bem variada, não obedecendo a nenhum padrão anterior. Há
entradas conjuntas em seis ocasiões (e6, e11, e19, e21, e26, e27), configurando um
aumento significativo do número de entradas conjuntas, o que caracteriza o fato de
que os relacionamentos entre pessoas de núcleos diferentes se tornam mais
freqüentes no decorrer do romance.
4.1.6 Quarta-feira
O romance prossegue e a quinta e última parte é, portanto, intitulada Quarta-
feira. A entrada das vozes no quinto dia segue o padrão dos dias anteriores, com a
introdução de pequenas modificações.
L1 e1 ____________________________ e15______________________________________
L2 __________e9_____________________e19____e22___ e25 ___e27 _______
L3 e10_________________________________________________
L4 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
L5 e6______________________________ e20_________________________
L6 e2_________________________e14_______e18 ___ e21____________e27 __e29 ___
L7 e4 _______e8____e11_________e16________________e24__e26 ___________
L8 e7________e12_____________________________________________
L9 e3___e5_______________e13_______e17___________e23__________e28 ______
Quadro 6 - Ordem de entrada (e) das vozes e quadro geral da polifonia na quinta parte (Quarta-feira)
Na quarta–feira, que é a última parte do romance, a repetição de vários
padrões dos dias anteriores. Se mantém o padrão da primeira entrada ser a L1 (L1,
e1). Portanto, apenas a terceira parte (Segunda-feira) não inicia a partir da linha
melódica do Prof. Clarimundo. Há a acentuada propensão de se localizar a narrativa
em alguns núcleos mais que em outros. Assim, L2, L6, L7 e L9 têm um número
maior de entradas que os outros núcleos. Os núcleos L2 e L6 têm um número
grande entradas por conta do estreitamento da relação entre Noel (L2) e Fernanda
(L6), fato que é importante não apenas no desenvolvimento do romance, mas
também no desenvolvimento posterior da obra do autor, quando esses personagens
voltam a aparecer. O grande número de entradas dos núcleos L7 e L9 também
mantém certo paralelismo, desta vez de natureza social. Enquanto em L7, Janjoca
seu mundo desmoronar rapidamente devido à falta de emprego, em L9, a família
de Leitão Leiria está constantemente envolvida em eventos sociais, festas,
recepções ou tentando resolver problemas de outra natureza, mas nunca turbados
por questões econômicas. Embora os dois núcleos nunca se encontrem, como é o
caso de Noel e Fernanda, é precisamente que reside o paralelismo e a crítica
implícita no romance: os dois núcleos pertencem a mundos tão distantes graças à
estrutura da sociedade, que mesmo convivendo num mesmo período de tempo e
numa mesma cidade, passam por situações completamente opostas em suas vidas.
Os núcleos restantes mantêm a mesma regularidade de entradas dos dias
anteriores.
4.1.7 As relações harmônicas
Além dos conceitos musicais de polifonia e melodia presentes no romance,
também é fundamental que entendamos o conceito de harmonia. Enquanto as vozes
se sucedem, cada entrada acontecendo dentro de um padrão mais ou menos
constante, temos apenas a preocupação melódica (horizontal) sendo levada em
conta. No entanto, quando as diversas vozes entraram, a relação entre os
diversos personagens de núcleos diferentes acentua o caráter vertical dos
relacionamentos. Esse caráter vertical, em música, é chamado de harmonia. Assim,
os diferentes grupos carregam relações entre si, relações que se tornam mais
complexas à medida que a narrativa transcorre. Professor Clarimundo (L1) é visto
diariamente por Fernanda (L6), de sua casa. Fernanda, por sua vez, é amiga de
infância de Noel (L2) e secretária de Leitão Leiria (L9). Salu (L3) é noivo de Chinita
(L5) e teve uma breve relação com Cacilda (L4), com quem também Leitão Leiria
(L9) e Pedrinho (L6) mantêm relações. A família de Leitão Leiria é conhecida da
família de Zé Maria Pedrosa (L5), assim como ambas compartilham os mesmos
espaços sociais da família de Honorato Madeira (L2). João Benévolo (L7), por sua
vez, foi empregado de Leitão Leiria, cuja esposa, D. Dodó, faz caridade para a
família de Maximiliano (L9).
Estas e outras relações entre os personagens de diferentes núcleos
acentuam o caráter harmônico (vertical) da polifonia. A partir deste cruzamento de
vozes se dá o cruzamento de caminhos referido no título da obra.
L1_________________________________________
L2_____H1________________________________
L3_________ H2__________________________
L4_____________H3_____________________
L5__________ ____ | ____________________
L6________________ _H4________________
L7__________________ ___ ___H5_________
L8__________________ ___ _____ _________
L9___________________________________
Quadro 7 - Aspecto harmônico (H) na relação entre as vozes.
No quadro acima podemos visualizar algumas das relações harmônicas. Em
H1, temos Noel () da linha melódica L2, se relacionando com Fernanda (), da
linha melódica L6. Em H2, Salustiano (), da linha melódica L3, é noivo de Chinita
(), da linha melódica L5. Em H3, Cacilda (), da linha melódica L4, se prostitui
com Leitão Leiria (), da linha melódica L9, com quem Fernanda () em H4, e João
benévolo () em H5, também se relacionam.
A estruturação polifônica do texto permite uma apresentação ideal do
problema social proposto por Erico, que personagens de grupos sociais
marcadamente diferentes travam relações. É possível saltar de uma linha melódica à
outra com extrema precisão e recortar o aspecto que se quer evidenciar. Assim a
desigualdade social é apresentada de forma bastante contundente na narrativa ao
retratar o fausto da mansão do Cel. Pedrosa e subseqüentemente mostrar a penúria
em que vive Maximiliano devido à sua doença; ou ainda a situação de João
Benévolo provocada pelo desemprego, assim como o desmascaramento da
hipocrisia nos atos de caridade de D. Dodó Leitão Leiria. O salto de uma linha
melódica a outra produz o recorte necessário para se mostrar não apenas a
peculiaridade da situação, como também a sua complexidade, já que as linhas
acontecem simultaneamente (as vidas acontecem simultaneamente), e todos os
personagens estão integrados, embora estejam, ao mesmo tempo, segregados.
Personagens de um núcleo se cruzam com os de outros, e as linhas
melódicas simultâneas e as consonâncias e dissonâncias produzidas pela harmonia
carregam no seu bojo a multiplicidade de vozes e seus anseios dentro da grande
estruturação polifônica desse romance.
Como uma última observação quanto à questão estrutural, há que se levar em
conta certas peculiaridades na transposição da técnica do contraponto da música
para a literatura. Em música, o contraponto é simultâneo, ou seja, duas ou mais
linhas melódicas se combinam ao mesmo tempo. Tal processo não é possível em
literatura, havendo, portanto, uma simulação de simultaneidade através de recortes
na narrativa.
Romance da primeira fase da obra do escritor, Caminhos cruzados foi escrito
quando Erico não contava ainda com trinta anos de idade. Apesar disso, a obra
apresenta uma maturidade de concepção notável que produz frutos no futuro. A
utilização da técnica do contraponto, usada aqui pela primeira vez, amadureceria em
obras posteriores. Também a abordagem das questões sociais se tornaria mais
madura com o decorrer do tempo e os personagens seriam tratados de maneira
mais flexível e de forma menos caricatural. O caminho estava aberto e a presença
da música na obra do escritor seguiria quase sem exceções ao longo de sua
carreira.
4.2 A estrutura polifônica em O resto é silêncio
Em O resto é silêncio (1943), Erico volta a utilizar a técnica do contraponto,
recurso que havia sido explorado pela primeira vez em Caminhos cruzados. No
entanto, em O resto é silêncio o escritor utiliza o contraponto de forma mais
complexa e elaborada. Enquanto em Caminhos cruzados os personagens interagem
de forma independente, não existindo um ponto de convergência (apesar da ligação
de personagens de diferentes núcleos), em O resto é silêncio a polifonia se dá a
partir de um acontecimento central, o suicídio de uma jovem, fato que é presenciado
por sete personagens diferentes que vão formar, junto a amigos e familiares, os
núcleos ou linhas melódicas presentes na estrutura polifônica do romance.
Esse acontecimento central, o suicídio da jovem, condiciona toda a estrutura
do romance, fazendo com que fatos aparentemente desconexos passem a se
relacionar. Essa interligação de todas as coisas já está mencionada na própria
epígrafe que abre a obra, um pequeno poema de Mario Quintana:
Atirei a pedra n’água.
Trezentos anos depois
A princesinha assustou-se
Lá na estrela Aldebaran ... (QUINTANA apud VERISSIMO, 1960, p. IX).
Essas inter-relações estão presentes na estrutura do romance assim como
em seu caráter cíclico. O primeiro capítulo, intitulado Uma pedra caiu no lago, expõe
o acontecimento central e sugere as relações dos círculos concêntricos que vão se
formando a partir da queda da pedra no lago (as conseqüências do suicídio da
jovem). A partir desse acontecimento inicial, todos os outros acontecimentos se
desenrolam, atingindo pessoas que aparentemente jamais o seriam pela atitude
isolada da suicida. Segundo Gilberto Mendonça Teles:
(...) o que nos interessa aqui acentuar é o fato de que a composição de O
resto é silêncio segue exatamente o sentido da epígrafe de Mario Quintana,
tanto que o primeiro capítulo do romance tem mesmo o aspecto concreto de
uma pedra caindo no lago, o que está, aliás, no seu próprio título e
nalgumas passagens de intenções metalingüísticas (...) a morte da rapariga
foi como uma pedra atirada num lago, motivando depois, como em círculos
concêntricos, os diversos registros das pessoas que o presenciaram; mas
como o fato repercutiu na vida de cada um, é a partir dele que se conta a
história de cada personagem (1972, p. 122).
Esse caráter cíclico se intensifica ao longo da obra, em círculos cada vez
mais amplos, cujo clímax acontece na grande reunião contida na parte final do livro
durante a apresentação da orquestra no Teatro São Pedro. Nesse momento, dentro
de um livro construído de forma polifônica, a audição da Quinta Sinfonia de
Beethoven serve de ponto de convergência para a meditação dos personagens ali
presentes, particularmente de Tônio Santiago, o que leva a uma outra característica
da obra: as reflexões de Tônio são também reflexões dentro de uma grande
reflexão, pensamentos de um escritor dentro de um romance de um escritor: O resto
é silêncio desponta como um grande exercício de linguagens dentro de linguagens:
metalinguagem.
A ação do romance acontece em apenas dois dias, que correspondem às
partes nas quais está dividido o romance: Sexta-feira da Paixão e Sábado de
Aleluia.
4.2.1 Os núcleos em O resto é silêncio
O primeiro núcleo, que corresponde à primeira linha melódica (L1) a ser
apresentada é formado(a) pelo personagem Ximeno Lustosa. Dr. Ximeno é um
desembargador aposentado, solteiro, algo esnobe, obcecado por questões de
higiene e aficcionado por música. Homem culto, tem entretanto uma relação formal
com a arte e com as pessoas, não conseguindo perceber a vida além do seu ponto
de vista pessoal. Egocêntrico, Dr. Ximeno pensa no conforto pessoal e sua relação
com a música é centrada no fato de que seu conhecimento de obras e compositores
lhe o reconhecimento e status social, além de um verniz de cultura que lhe é
agradável, dado seu narcisismo. Dr. Ximeno também é obcecado por questões de
saúde, e a visão do suicídio de Joana Karewska provoca-lhe um processo de
reflexão a respeito da vida e da morte, e em última instância, sobre o sentido da
própria vida.
A segunda linha melódica apresentada (L2) é o núcleo formado por
“Chicharro”, apelido de um linotipista de jornal, solteirão, entrando na velhice.
Chicharro trabalha à noite e é conhecido de tipos populares que passam seus dias
nas ruas centrais de Porto Alegre, sendo ele mesmo um desses tipos. Sua rotina é
ligada ao trabalho no jornal e ao convívio com as pessoas nas suas idas e vindas de
casa para o trabalho e vice-versa. Chicharro está entre os que presenciam o suicídio
de Joana Karewska (o segundo na ordem de entrada das vozes do romance) e cuja
vida também é influenciada pela atitude da suicida.
A terceira linha melódica (L3) corresponde ao núcleo formado por um menino
de onze anos chamado Angelírio, mais conhecido como o “Sete”, apelido que
ganhou por ter nascido prematuramente, quando sua mãe contava com sete meses
de gravidez. Angelírio vende jornais no centro de Porto Alegre. Tem uma vida dura,
estuda pela manhã e trabalha à tarde até o começo da noite. Angelírio é um dos
tipos populares que habitam as ruas centrais da cidade.
A quarta linha melódica (L4) corresponde ao núcleo formado por Norival Petra
e sua família. Norival é um empresário que está à beira da falência, fato que
esconde de todos, até mesmo dos membros da família. A falência é seu maior temor
e procura desesperadamente uma saída para a crise em que se encontra. Norival é
casado com Linda, não tem filhos e em sua casa vive Tilda, sua sobrinha. Como
esteve metido em certo número de casos escusos e falcatruas ao longo dos anos,
Norival às vezes é achacado por crises de consciência, nas quais é assombrado por
um tio, Manfredo Petra. Em meio à crise pessoal e profissional que o assola, Norival
presencia o suicídio de Joana Karewska.
A quinta linha melódica (L5) corresponde ao núcleo formado pelo Dr. Aristides
Barreiro e sua família. Dr. Aristides é um dos diretores da Cia. Seguradora Regional,
advogado, conservador, foi político no passado. É casado com a filha de um
comendador, Verônica Barreiro. O casal tem uma filha e um filho, Aurora e Aurélio.
Mora com a família o pai do Dr. Aristides, um velho caudilho republicano, Joaquim
Barreiro, o Cel. Quim. Também faz parte do núcleo o irmão do Dr. Barreiro, Marcelo.
Dr. Aristides passeia pelo centro de Porto Alegre em seu carro, dirigido por seu
motorista, quando a suicida se estatela na rua bem em frente ao automóvel. A visão
da queda de Joana Karewska também leva Dr. Aristides a uma série de
questionamentos a respeito de sua vida.
O sexto núcleo é formado pelo maestro e compositor Bernardo Rezende e
sua esposa Marina. Bernardo é um compositor reconhecido, tem quarenta e cinco
anos de idade, é um homem culto com traços acentuados de vaidade pessoal.
Marina tem trinta e oito anos e vive à sombra do marido. Ambos perderam uma filha,
Dicinha, falecida ainda quando criança. O peso da perda da filha recai sobre os
ombros de Marina, enquanto o marido se concentra principalmente no trabalho e na
promoção de sua carreira. A visão do suicídio de Joana Karewska acentua a crise
provocada pela morte da filha.
O sétimo e último núcleo (L7) é formado pelo escritor Tônio Santiago e sua
família. Tônio é um escritor de renome, de aproximadamente cinqüenta anos,
casado com Lívia, com quem tem três filhos: Nora, Rita e Gil. Tônio Santiago reflete
muitas das idéias do próprio Erico, sendo um personagem com uma visão
privilegiada dentro do romance. Segundo Flávio Loureiro Chaves “o escritor (Erico)
transporta-se conscientemente para o centro da ação narrada projetando-se na
personagem que é o seu ‘alter-ego’ confesso, o mais dissimulado nas invenções
de algumas personagens secundárias” (CHAVES, 2001, p. 72-73).
4.2.2 A estrutura polifônica
O resto é silêncio está dividido em duas partes: Sexta-feira da Paixão e
Sábado de Aleluia. No transcurso destes dois dias ocorre a ão do romance. Na
primeira parte, Sexta-feira da Paixão, a entrada das vozes ocorre na seguinte
ordem:
L1 e1 _____ _ _ _ _ _ _
L2 e2_____ _ _ _ _ _
L3 e3 _____ _ _ _ _
L4 e4 _____ _ _ _ _
L5 e5 _____ _ _ _ _
L6 e6_____ _ _ _ _
L7 e7 _____ _ _ _ _
Quadro 8 - Ordem de entrada (e) das vozes na primeira parte (Sexta-feira da Paixão)
Assim como em Caminhos cruzados, a entrada das vozes corresponde ao
aspecto melódico (horizontal) da estrutura. Embora todas as vozes soem
simultaneamente (os acontecimentos ocorrem num mesmo espaço de tempo), neste
primeiro momento é dada maior importância ao aspecto da entrada de cada voz
individualmente. Apesar dessa semelhança com Caminhos cruzados, em O resto é
silêncio uma reelaboração da utilização do contraponto a partir da introdução de
um acontecimento central: o suicídio de Joana Karewska. Este acontecimento
central antecede e condiciona todos os acontecimentos posteriores, e a polifonia se
a partir dele. Esta introdução de um fato que antecede a polifonia é uma clara
inovação na técnica do contraponto e caracteriza uma inovação estrutural
importante. Assim, teremos a entrada das vozes com a seguinte estrutura:
S
U...........L1 e1 _____ _ _ _ _ _ _
I.............L2 e2_____ _ _ _ _ _
C...........L3 e3 _____ _ _ _ _
Í.............L4 e4 _____ _ _ _ _
D...........L5 e5 _____ _ _ _ _
I.............L6 e6_____ _ _ _ _
O...........L7 e7 _____ _ _ _ _
Quadro 9 - Ordem de entrada (e) das vozes na primeira parte (Sexta-feira da Paixão), a partir do
suicídio de Joana Karewska (fato antecedente)
O suicídio de Joana introduz um elemento antecedente vertical na polifonia,
que corresponde à harmonia em música. Portanto, o aspecto harmônico, que está
presente no decorrer da narrativa de Caminhos cruzados, aparece no início de O
resto é silêncio. Mais que isto, é a pedra angular sobre a qual se assenta toda a
construção do romance: um grande acorde (harmonia=vertical) dá início à obra.
Além disso, o suicídio de Joana guarda correspondência com uma série de relações
simbólicas dentro da obra:
Suicídio = QUEDA.
QUEDA = a pedra cai na água.
Pedra = círculos concêntricos.
Círculos concêntricos = ondas de acontecimentos.
O aspecto vertical de QUEDA guarda relação com o aspecto vertical da
HARMONIA. A HARMONIA inicial causa a polifonia posterior, numa relação de
causa-efeito. O aspecto harmônico do suicídio (a pedra que cai no lago) é o fator
fundamental do aspecto melódico que lhe sucede.
Se em Caminhos cruzados as relações harmônicas acontecem no decorrer da
obra, em O resto é silêncio elas estão dispostas no início, como uma condição sine
qua non do que está por acontecer na narrativa. Outro paralelo que pode ser traçado
com Caminhos cruzados é a relação com os desdobramentos dos núcleos. Em
Caminhos cruzados os núcleos apresentam uma variedade menor de
desdobramentos que em O resto é silêncio. Neste, os núcleos apresentam uma
variedade maior de caracteres, e há um aprofundamento maior com relação a outros
personagens do núcleo que não os personagens centrais, que são os que
presenciaram o suicídio de Joana Karewska. Assim, personagens secundários
dentro desta perspectiva têm vida própria dentro da trama. Esse é o caso, por
exemplo, de Marcelo Barreiro, pertencente ao núcleo de Aristides Barreiro (L5) e
irmão do mesmo, assim como do Cel. Quim, pai de ambos, e de Aurélio, filho de
Aristides. Esse detalhamento da vida de personagens não ligados diretamente ao
fato central (o acorde inicial) está perfeitamente integrado à proposta da obra, de
círculos concêntricos (uma pedra cai na água) que o produzindo ondas e
provocando os círculos subseqüentes.
O quadro geral da polifonia na primeira parte do romance é a seguinte:
S
U...........L1 e1 _____ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ e16
I............L2 e2_____ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ e17
C...........L3 e3 _____ _ _ _ _ _ _ _ e9_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _e15
Í............L4 e4 _____ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _e11
D...........L5 e5 _____ _ _ e8_ _ _e10_ _ _ _ _ _ _e14
I.............L6 e6_____ _ _ _ _ _ _ _ _ _e12
O...........L7 e7 _____ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _e13
Quadro 10 - Sexta-feira da Paixão - Quadro geral da polifonia a partir da entrada (e) de cada voz
4.2.3 Desdobramentos dos núcleos
A partir da segunda entrada de cada voz, depois que todas as vozes foram
expostas, os núcleos apresentam desdobramentos. As vozes não retornam na
ordem de entrada, mas saltam de um núcleo para outro (passam de uma a outra
voz). A primeira voz a retornar é L5. Assim, em L5e8, passamos a conhecer melhor
a família de Aristides Barreiro, centrando o foco em Aurélio, filho de Aristides, que se
dirige para a casa da amante. Desta forma, ficamos sabendo que pai e filho são
amantes da mesma mulher, Moema. Em L3e9, conhecemos a família de Angelírio. O
‘Sete’ teme ir para casa devido à perda das moedas das vendas do jornal do dia no
momento da queda de Joana. Para Angelírio o suicídio de Joana tem uma
conseqüência financeira. Embora deseje ir para casa, Angelírio teme a violência dos
pais, que esperam que o menino traga para casa a féria do dia. Estes
desdobramentos são fundamentais na construção do romance, e se constituem no
momento em que a polifonia começa a correr plenamente, estabelecendo as
relações harmônicas entre os núcleos. Também o início do movimento de
convergência que levará ao concerto de Sábado. Em O resto é silêncio, assim como
um acorde de abertura, a harmonia pré-existente que condiciona toda a ação
posterior, também um acorde de fechamento, na direção do qual toda a ação
transcorre. Este acorde final fecha o romance, justamente no fim da execução da
sinfonia de Beethoven.
4.2.4 A polifonia na segunda parte do romance: Sábado de Aleluia
O retorno de cada voz na segunda parte do romance, intitulada Sábado de
Aleluia, não obedece à mesma ordem de entrada da primeira parte do romance. A
primeira voz a entrar é a de Tônio Santiago (L7), seguida do cleo de Aristides
Barreiro (L5), o Sete (L3) e Norival Petra (L4). A entrada de Tônio ocupa dois
capítulos (1 e 2), refletindo a importância das opiniões deste alter-ego de Erico no
corpo do romance. Há certa propensão de centrar-se a narrativa, não obstante a
polifonia, em alguns núcleos específicos. Essa propensão pode ser notada já na
primeira parte do romance (ver quadro 10), quando alguns núcleos, como o de
Ximeno Lustosa (L1), Chicharro (L2), Norival Petra (L4) e Bernardo Resende (L6)
têm apenas duas entradas cada um, enquanto os núcleos restantes têm um número
maior de entradas de suas vozes. É dado bastante destaque, por exemplo, ao
núcleo de Angelírio (L3), que tem três entradas (e3, e9, e15). O núcleo de Angelírio
é superado pelo de Aristides Barreiro (L5), que tem quatro entradas (e5, e8, e10,
e14).
No Sábado, essa propensão de centrar a narrativa em alguns núcleos em
detrimento de outros se mantém. Obviamente este fato tem um significado, que
provoca um desequilíbrio na polifonia inicial, privilegiando algumas vozes em
detrimento de outras. Neste ponto reside a herança do contraponto de seu romance
anterior em que a cnica foi usada de forma extensiva (Caminhos cruzados): o
conteúdo de crítica social através da comparação entre núcleos economicamente
privilegiados e núcleos que passam por dificuldades de ordem econômica. A crítica
social, portanto, permanece.
A ordem de entrada das vozes no Sábado é a seguinte:
S
U......... L1 e6 _____________
I........... L2 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
C.......... L3 e3 _____________________
Í............ L4 e4 __________________
D...........L5 e2 _________e7 ___________
I........... L6 e8__________
O...........L7 e1 _______e5_________________
Quadro 11 - Ordem de entrada das vozes em Sábado de Aleluia
Nessa segunda parte há, desde o início, um movimento de convergência em
direção ao concerto que acontece no bado à noite, onde todos os personagens
centrais que presenciam o suicídio (acorde inicial) estão presentes, com exceção
dos excluídos (Angelírio, Chicharro). A exclusão tem, portanto, um duplo sentido na
estrutura musical: estes personagens o estão presentes no concerto também por
que sua voz não é ouvida na sociedade. Observe-se que Chicharro (L2) o volta
sequer a ter uma nova entrada de sua voz, apenas aparecendo brevemente na
Praça da Matriz, do lado de fora do teatro.
O movimento de convergência leva ao concerto, onde acontece uma grande
reflexão sobre a sociedade enquanto a Quinta Sinfonia de Beethoven é executada.
Ao final da sinfonia, numa apoteose onde música e literatura convergem, há o
grande acorde de encerramento. O romance se desenvolve entre dois pólos: o
acorde inicial, o suicídio - a pedra que cai no lago; e o acorde final, que coroa a
Paixão do dia anterior e todas as mortes e sofrimento sob o bálsamo da música. O
acorde final, como na Sinfonia de Beethoven, é um encerramento, mas é também
uma interrogação. Depois do acorde final, o que resta é o silêncio.
A segunda parte do romance é consideravelmente mais extensa que a
primeira: bado de Aleluia conta com quarenta e duas entradas das vozes, o que é
2
56
mais que o dobro que as entradas de Sexta-feira da Paixão. Dada a complexidade e
extensão das relações na segunda parte do romance, desdobraremos o quadro
geral da polifonia em duas partes. O quadros completos da polifonia no sábado o,
portanto, os seguintes:
S
U...........L1 e6_______________________________________________e21________
I.............L2 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
C...........L3 e3 ________________________________________________________e22______
Í............ L4 e4_____________e10_____e12______e14________e17_____e20___________
D...........L5 e2 __________e7__________e11 _________________e16 ________________e23___
I.............L6 e8______________________________________e19_____________
O...........L7 e1_______e5_________e9_____________e13_____e15________e18_____________e24
Quadro 12 - Sábado de Aleluia - Quadro geral da polifonia a partir da entrada (e) de cada voz.
Entradas 1 a 24
Na primeira parte de sábado, verificamos a propensão de se priorizar alguns
núcleos, notadamente L4 (com seis entradas) e L7 (com sete entradas). Ao mesmo
tempo, verifica-se que L6 possui apenas uma entrada e L2 nenhuma. O segundo
quadro de sábado é o que segue:
S
U...........L1 ______________________________________________________________________A
I........... L2 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _C
C...........L3 _______e27_______________________________________________e40__________O F
Í............ L4 ______________e29__e30_______________________________e39________e42___R I
D...........L5 _________ e28 ____________e32_________e35__e36________________________D N
I........... L6 e25_______________________________e34________________________e41______E A
O...........L7 ____e26_______________e31____e33_____________e37__e38_________________ L
Quadro 13 - Sábado de aleluia - Quadro geral da polifonia a partir da entrada (e) de cada voz.
Entradas 25 a 42
Quando o romance se encaminha para o final, permanece a tendência de se
priorizar alguns núcleos. L7 tem cinco entradas e L4 e L5 possuem quatro. L6, que é
o núcleo de Bernardo Rezende, tem um número maior de entradas que no início do
dia, à medida que se aproxima o momento do concerto.
Com o acorde final, se completa o ciclo proposto no romance. Observe-se
que essa tendência cíclica também será uma das características primordiais
constantes de O tempo e o vento, acentuando a importância de O resto é silêncio na
obra do escritor.
4.2.5 As relações harmônicas em O resto é silêncio
Ao se comparar O resto é silêncio com Caminhos cruzados, observa-se que
as relações harmônicas em RS são mais complexas que em CC, tendo uma
abrangência maior e um maior desdobramento de relações. Isto se torna mais
surpreendente se tivermos em mente o fato de que RS se passa em apenas dois
dias, tendo uma quantidade menor de núcleos (sete contra nove de CC), enquanto a
trama de CC se passa em cinco dias. Esta menor abrangência temporal causa, a
princípio, uma menor possibilidade de relações harmônicas. Veremos, no entanto,
que não é isso que acontece.
Ximeno Lustosa (L1) é em verdade um personagem quase recluso, tendo
uma relação meramente formal com as pessoas. Mas no concerto de Sábado, que é
uma culminância harmônica do romance, podemos perceber que o personagem se
relaciona com os núcleos presentes no teatro, núcleos estes que têm o mesmo nível
social de Ximeno e pelos quais procura ser reconhecido, que sua relação com a
música é, primordialmente, uma relação formal, onde o status e o reconhecimento
são mais importantes que seu gosto pela mesma. Na parte final da polifonia, quando
a maior parte dos personagens se encontra no teatro, a personalidade musical de
alguns desses personagens é definida. Sobre Ximeno o narrador afirma que:
(...) não aprovava programa de concerto que não tivesse ópera. Não amava
Beethoven, embora muitas vezes se referisse a ele como “o surdo sublime”.
Viera ao teatro porque era de bom-tom ir a concertos, e ele gostava de ser
incluído na lista dos poucos apreciadores da arte (RS, p. 391).
Chicharro (L2) está relacionado harmonicamente com Angelírio (L3), com
quem se encontra freqüentemente devido à proximidade profissional. Também é
conhecido de Roberto, namorado de Moema (L7). Angelírio (L3) está relacionado
com Chicharro (L2), mas também com Gil, filho de Tônio (L7). Aristides Barreiro (L5)
está relacionado com Norival Petra (L4) e Ximeno (L1).
O quadro das relações harmônicas é, portanto, grande, mas o que realmente
ocasiona uma diferenciação ao comparar-se O resto é silêncio com Caminhos
cruzados, é a vasta gama de nuances harmônicas que aparecem durante a
narrativa. Estas nuances ocorrem com freqüência e reforçam a idéia inicial de
interligação entre todas as coisas, os círculos concêntricos ocasionados pela queda
da pedra na água. Se em Caminhos cruzados os caminhos apenas se cruzam,
mantendo as linhas independentes na narrativa, em O resto é silêncio essas linhas
se interpenetram produzindo mudanças nas vidas das pessoas envolvidas.
5 OS BAILES NA OBRA DE ERICO VERISSIMO
A obra de Erico Verissimo prima pela inserção dentro de uma estética realista,
onde a representação do mundo que nos cerca é minuciosa. Dentro desse contexto,
a sociedade de uma determinada época sempre transparece em sua obra. A década
de trinta no Rio Grande do Sul, com suas peculiaridades, os reflexos do Estado
Novo, as condições gerais da população, a falta de emprego, a decadência da
oligarquia rural, são aspectos muitas vezes centrais nos primeiros romances do
escritor. Segundo Flávio Loureiro Chaves:
O romance sempre conta uma história de ficção que seu autor criou a partir
das angústias, insatisfações ou alegrias que a realidade lhe ofereceu. As
personagens inventadas serão projeções da sua experiência no mundo real
transposto para a ficção. Assim, o romancista será bom ou mau romancista
justamente na medida em que a sua capacidade de expressão nos faça
aceitar como verdadeiro esse mundo que é de pura fantasia, quando as
pessoas fictícias nos convençam e emocionem tanto quanto as pessoas
“reais” (CHAVES, 1995, p. VII).
A música muitas vezes está inserida nesse contexto relacionada a um
determinado meio social; ou reforça e serve de veículo a uma crítica ou comentário à
sociedade de sua época. Esta perspectiva perpassa toda a obra do escritor,
aparecendo desde o princípio.
A crítica social através da música apresenta uma multiplicidade de aspectos
na obra de Erico Veríssimo, e procuramos no decorrer deste estudo mapear e
comentar alguns desses aspectos. Muitos deles se repetem no decorrer de sua
carreira, cambiando de formas e modelos, de acordo com a característica peculiar
de cada obra.
Um dos aspectos estreitamente associados à crítica social através da música
que nos interessa particularmente neste momento é a presença dos bailes na obra
do escritor. Eles surgem desde o início, nos contos de Fantoches, e se
estendem até sua obra madura. Raro é o romance que não contenha um baile, a tal
ponto que podemos considerar a presença deles uma característica da obra de Erico
Verissimo.
Mais do que a presença deles, no entanto, importante é a forma como
aparecem na obra do escritor: os bailes surgem como um importante veículo de
crítica social e descrição de costumes, de acordo com a época e o contexto em que
estão inseridos. Outro aspecto digno de menção é a possibilidade de mapear a
evolução de Erico como criador através dos mesmos: desde o escritor iniciante que
se aventura pela crítica social em Malazarte, ao amadurecimento da técnica no baile
do clube Metrópole em Caminhos cruzados, até os bailes d’ O tempo e o vento,
onde o escritor encontra sua maturidade artística.
comentamos alguns bailes em capítulos anteriores deste estudo, como os
ocorridos em Malazarte, Música ao longe e O continente. Para este capítulo, no
entanto, selecionamos três bailes que representam momentos significativos da obra
do escritor, que possuem um caráter pontual de crítica social e de harmonia com a
obra na qual estão inseridos, além da representação do momento histórico de
determinada época, com seus costumes e preconceitos postos à mostra.
5.1 O baile do Metrópole
Em Caminhos cruzados, um baile acontece no sábado à noite, reunindo a
nata da sociedade local no clube Metrópole. Nesse baile uma referência bastante
detalhada não apenas à orquestra e aos músicos, mas também à própria história do
estilo de música ali presente. O capítulo dezessete inicia da seguinte forma:
Um ritmo que nasceu na África, gemeu nos porões dos navios negreiros, e
se repetiu depois – saudade misturada com a tristeza do cativeiro – sob os
céus da América, nas plantações, sendo mais tarde estilizado por músicos
de uma outra raça sofredora e sem pátria – agora está arrastando os pares
que dançam no salão do Metrópole (...) O jazz toca um blue (CC, p. 86).
O surgimento do blues, toda a sua carga de dor e sofrimento, é descrito em
poucas linhas, e a posterior utilização de tal música como fundo sonoro para pares
românticos de um baile da alta burguesia comporta uma nota de ironia indisfarçável.
Nesse baile, as famílias mais abastadas que compõem a trama do romance se
encontram, e as ambições dos diferentes grupos são expostas. Os filhos dessas
famílias também participam do baile, namoram, trocam confidências, tudo ao som do
jazz. A descrição do instrumental da orquestra é minuciosa:
O mulato do saxofone solta gemidos dolorosos. O negro do banjo marca a
cadência sincopada. O rapaz magro do clarinete ergue para o alto o
instrumento rebrilhante e solta guinchos histéricos. O da pancadaria agita os
braços, rufa no tambor, sacode guizos, bate nos pratos e no bombo, parece
um polvo a dar trabalho a todos os tentáculos (CC, p. 87).
A descrição detalhista comporta ainda outra dimensão: a primeira referência
na literatura brasileira a um instrumento que sequer tinha nome no Brasil: a bateria.
Nos anos trinta, quando o livro foi escrito, a bateria ainda era um instrumento novo
dentro da música. Conjunto de tambores, oriundo do jazz norte-americano, onde era
chamada de drums, a bateria ainda não possuía essa denominação em língua
portuguesa. Daí o curioso nome que o autor lhe dá, pancadaria, a um tempo
descrevendo o músico e nomeando o instrumento. Pancadaria é a forma usual com
que eram chamados os instrumentos de percussão de uma banda marcial no século
XIX e início do século XX, quando a bateria ainda não existia. Daí, por aproximação,
o fato de Erico utilizar essa denominação para descrever o novo instrumento.
Em Caminhos cruzados há traços indeléveis que identificam determinada
época histórica relacionada com a música. No baile do Metrópole encontramos o
jazz justamente no momento em que desabrocham as big bands, verdadeiras
orquestras onde predominam os instrumentos de sopro, notadamente os metais
43
. O
estilo jazzístico hegemônico na década anterior ainda era de pequenas formações
instrumentais, que tocavam num estilo conhecido como Dixieland. No fim dos anos
20, as formações instrumentais com um grupo maior de músicos começaram a se
sobressair, e o estilo improvisado da década anterior cedeu espaço a um estilo mais
orquestral, com arranjos escritos. Esse tipo de formação, conhecido como big band,
podia ter até trinta músicos. Todos esses fatores identificam o estilo de jazz
43
Segundo Grove (1994, p.600), metais “é um termo empregado para instrumentos de sopro vibrados
por ação dos lábios (aerofones). Sua coluna de ar é posta em vibração pelos lábios do executante,
comprimidos contra um bocal em forma de taça (ou de funil). Essa categoria inclui instrumentos feitos
de latão ou outros metais, mas também de outros materiais, incluindo madeira ou chifre. Além do
mais, alguns instrumentos feitos de latão (como o saxofone) não são classificados como da família
dos metais, uma vez que suas colunas de ar são postas em vibração por meio de palhetas”.
predominante nos anos trinta, também conhecido como Swing
44
. É esse estilo que
aparece nas páginas de Caminhos cruzados com a adição no repertório de algumas
características próprias da música tocada no sul do Brasil àquela época, como o
tango e o samba.
Em meio a essa paisagem musical, os personagens interagem, de acordo
com seus desejos e interesses. A música se constitui a um tempo em trilha
sonora e em comentário da narrativa. D. Dodô Leitão Leiria se orgulha do efeito
geral de sua festa. Esse orgulho engloba a música e D. Dodó se comporta como a
proprietária do baile:
D. Dodó passeia os olhos pela sala e por um instante fica na postura de um
triunfador. De algum modo ela é a dona da festa. Essa animação, essa
afluência de povo (povo? Qual! Famílias de nossa melhor sociedade), o
êxito da venda de ingressos, o arranjo artístico das mesas de chá, a boa
qualidade da orquestra, a atenção dos garçons de calças pretas e dinner-
jacket tudo foi obra dela. Santa Teresinha deve estar contente no céu.
Por isso D. Dodó está radiante de alegria aqui na terra (CC, p. 87, grifo
nosso).
Se para D. Dodó a festa se reveste de santidade através de seu júbilo de
proprietária, para Chinita, o baile e sua música possuem contornos marcadamente
eróticos. O blues que é tocado fornece a ela e a seu par, Salu, o comentário não
verbal que ocorre em diferentes níveis:
Chinita sente contra os seios, contra o ventre, contra as coxas, por cima da
seda verde-jade do vestido, a pressão rija e quente do corpo de Salu. Ele a
enlaça com força, espalma a mão enorme nas costas dela e, cabeças
levemente encostadas, se vão ambos a deslizar à cadência do blues. O
saxofone barítono conta uma história amargurada. O negro do banjo de
repente acorda do marasmo para dedilhar, numa fúria súbita, as cordas do
instrumento (CC, p. 87).
O contraste entre o amargurado e o sensual, que estão presentes na mesma
medida na música, é parte dos diferentes níveis em que a narrativa se desenrola. A
44
Para maiores referências, consultar Billard (2001), David (1996) e Francis (2002).
sensualidade sempre foi um elemento marcante do blues, desde os seus primórdios.
Para Muggiati:
Não espaço no blues para o romantismo adolescente das canções da
classe média branca, daqueles que rimam Moon com June. O amor no
blues pode ser infeliz – o que acontece na maioria das vezes – mas também
alegre e positivo, geralmente quando o cantor ou a cantora exaltam o seu
vigor erótico valendo-se de imagens domésticas ou culinárias (MUGGIATI,
1995, p. 33).
O caráter de amargura da canção também está presente. Não apenas a big
band comenta a ação que se passa entre os dois, mas uma comparação entre os
sons. O contraste entre o som amargurado do blues e aquela reunião social se torna
mais gritante:
A voz de Salu é profunda como o canto do saxofone. Mas não conta uma
história triste. Ele falou assim baixinho naquele dia no jardim dos Monteiro,
no banco debaixo da paineira. Chinita pensa no primeiro beijo. Ele se
mostrou brusco e decidido como Clark Gable. Não pediu, não fez rodeios.
Era noite mas não havia lua. O vento farfalhava nas árvores. Ela estava um
pouco trêmula, como quem espera um grande acontecimento. Os lábios
dele tinham uma aspereza úmida. Não foi um beijo, foi uma mordida (...)
Chinita agora sorri. (Nunca mais de esquecer aquela noite.). A orquestra
se cala e fica só o piano cantando a tristeza africana (CC, p. 87-88).
As insinuações eróticas de Salu e os pensamentos de Chinita o
interrompidos pela mudança de caráter da música tocada pela orquestra. Como de
costume, a descrição é minuciosa:
De súbito um frenesi toma conta do jazz: todos os instrumentos começam a
berrar violinos, saxofones, o trombone, o clarim, o clarinete, o banjo e a
pancadaria e os uivos de desespero dos negros abafam as palavras de
Salu (CC, p. 88).
A diversidade de pessoas que freqüentam o ambiente do baile o torna um
local ideal para a crítica à sociedade de determinada época. No caso do baile do
Metrópole, o recorte é preciso: a alta sociedade da cidade de Porto Alegre no início
dos anos trinta. De forma alguma o fundo musical é apenas uma trilha. A música
interage com a ação, os músicos aparecem e desaparecem em meio à narrativa, e
os pensamentos, os sonhos e os planos dos que freqüentam o baile do Metrópole se
revelam em meio aos sons do jazz.
5.2 O baile d’O retrato
O grande baile de réveillon presente no início de O retrato é exemplar na obra
de Erico Verissimo. Como a coroar a volta triunfal do jovem Rodrigo Terra-Cambará
à sua cidade natal depois dos anos de estudo em Porto Alegre, esse baile contém a
síntese do que significa o personagem dentro do contexto da cidade de Santa Fé.
Aqui, Rodrigo pavoneia-se pelo salão do Clube Comercial sabendo-se
querido, invejado, amado e respeitado, enquanto emite com toda a força de sua
juventude o canto claro do galo da história de Edmond Rostand. Um canto repleto de
intenções grandiosas que o tempo irá colocar em cheque, mas que nesse momento
inebria pelo virtuosismo das possibilidades.
5.2.1 Antes do réveillon
Rodrigo gosta de ambientes musicais, e não lugar onde melhor possa
exercitar sua personalidade exuberante que um baile. E o grande baile de Rodrigo, o
auge de seu poder de atração é o baile de réveillon que se realiza no Clube de
Santa dias após sua chegada à cidade. Ele sabe que é a principal atração da
festa, que a cidade espera pelo jovem bonito e recém-formado e que as moças
anseiam por encontrá-lo.
Antes do início da festa, Rodrigo antevê e goza todas as possibilidades, com
a consciência de que é o centro das atenções: “Sabia que ia brilhar no baile daquela
noite (...) lhe haviam contado que as mamãs e titias faziam entre si apostas: com
quem dançará o Dr. Rodrigo a polonaise?(R1, p. 124). Nesse momento, todas as
atenções sociais se concentram num aspecto musical: a polonaise. Espécie de
dança processional solene de origem polonesa, uma forte tradição histórica da
sua utilização em casamentos e cerimônias públicas
45
. Esse aspecto cerimonial está
presente no réveillon que acontece nessa noite no Clube Comercial de Santa Fé,
mas também o aspecto relacionado ao casamento, já que a curiosidade das mães
de família da cidade sobre quem seria o par de Rodrigo para a dança indica a forte
propensão de que, ao escolher uma das moças, ele estaria dando um indício tácito
de uma intenção mais séria, de uma pretensão de casamento.
Enquanto espera a hora da festa, Rodrigo pede à sua madrinha que faça um
reparo em sua roupa. Quando termina a costura, Maria Valéria faz uma observação
a respeito das moças que Rodrigo poderia encontrar no baile que contém diversas
relações musicais:
Pronto! disse ela, cortando a linha com os dentes. E agora veja se vai
dançar com alguma dessas cadelinhas. Para Maria Valéria, as “cadelinhas”
eram certas moças desfrutáveis de Santa com uma das quais ela temia
o sobrinho viesse um dia a casar-se. Também lhes chamava rabichas” ou
“bruacas”. Namoravam todos os caixeiros-viajantes que passavam pela
cidade e chegavam ao ponto de conversar com eles à janela. A pior de
todas era Esmeralda Dias. Os pulos que dava quando valsava com o Chiru
ou com algum forasteiro! Diziam que dançava até maxixe! (R1, p.126).
O fato de Esmeralda Dias dançar “até maxixe” envolve uma questão histórica
importante dentro da música brasileira, que é o surgimento dos gêneros híbridos,
que uniram o lundu e a modinha, estilos tipicamente brasileiros, com os ritmos
estrangeiros da valsa, polca ou habanera, entre outros
46
.
O maxixe
47
surge a partir das classes populares, e lentamente se imiscui nos
salões da burguesia. Apesar disso, era considerada imoral pela mesma. Segundo
José Ramos Tinhorão:
45
Para mais detalhes, ver Grove (1994, p.734).
46
Para mais detalhes, ver Kiefer (1983).
47
Segundo o Grove (1994, p. 587), o maxixe é uma “dança urbana do Rio de Janeiro, surgida por
volta de 1875. Considerada a primeira dança genuinamente brasileira, antecessora do samba,
produziu um gênero musical que utiliza aspectos rítmicos da habanera, o andamento da polca e
síncope afro-brasileira”.
O próprio nome de maxixe que a dança tomara pela década de 1870 era
usado ao tempo para tudo quanto fosse coisa julgada de última categoria.
Talvez aporque o maxixe, fruto comestível de uma planta rasteira, fosse
comum nas chácaras de quintal dos antigos mangues da Cidade Nova,
onde nasceu a dança, e também não tivesse grande valor (TINHORÃO,
1983, p. 66).
Apesar da discriminação, num processo comum na sociedade brasileira, o
maxixe se afirma. Segundo Bruno Kiefer:
Nascido na classe da miséria, o maxixe considerado, inicialmente, dança
indecente pelas classes mais elevadas acabou, no entanto, conquistando
estas mesmas classes, via teatro de revista, bailes de sociedades
carnavalescas, etc., e por força do apelo a impulsos reprimidos (KIEFER,
1983, p. 52).
Um dos componentes fundamentais da “imoralidade” da dança é o fato dela
ser de par enlaçado, onde o homem encaixa suas pernas nas pernas da mulher e
ambos utilizam passos reboleantes, à época “conhecidos por nomes como cobrinha,
parafuso, balão caindo e corta capim, todos bastante expressivos para darem idéia
de quão coleante, remexido, balouçante e ágil de pés viria a ser o maxixe” (KIEFER,
1983, p. 52).
A citação da dança de Esmeralda Dias, portanto, não é fortuita, que para a
conservadora sociedade gaúcha do início do século XX, tal fato era considerado de
uma imoralidade absoluta.
Ao se dirigir para o clube onde a festa se realizará, Rodrigo encontra o pai. O
diálogo entre os dois é revelador da personalidade reservada que Licurgo cultiva na
velhice, bem diferente das atitudes de quando era jovem:
[Rodrigo] - Vou ao baile do clube, papai.(...)
[Licurgo] - Está bem, meu filho. Precisa de alguma coisa?(...)
[Rodrigo] – O senhor vai ao baile?(...)
[Licurgo] - Não gosto de barulho.
A palavra barulho sabia-o Rodrigo abrangia também a música (R1, p.
127).
O jovem que gostava de música e participava com gosto de festas populares
desaparece com o tempo: ao fim e ao cabo, Licurgo sucumbe às idéias de sua avó
Bibiana. A predominância da influência musical de Fandango, tão forte no menino e
no adolescente que ele foi, desaparece no homem maduro.
5.2.2 Códigos
A narrativa do baile de veillon constitui-se num estudo da sociedade da
época, e está repleto de nuances musicais. uma descrição detalhada do local
onde o baile se realiza, a partir da reconstituição de sua história:
Fundado em fins de 1899, o clube ocupara de início espaçosa casa térrea
numa das esquinas da Praça Ipiranga, e de dava suas festas à luz de
velas e lampiões de querosene. Quando, cinco anos mais tarde, inaugurou
a sede própria - edifício assobradado no coração da Rua do Comércio os
bailes passaram a realizar-se à luz de lâmpadas de acetilene, o que obrigou
o cronista a alterar levemente a chapa, por achar decerto que a luz de s
merecia um adjetivo mais luminoso, de sorte que, de 1904 em diante, os
salões do Comercial, segundo a crônica d’A Voz, passaram a estar
iluminados “a giorno” (R1, p. 130).
Essas observações a respeito da mudança de iluminação dos bailes, o
ensejo à questão social:
(...) embora fosse opinião geral que nos dois últimos dois ou três anos a
diretoria “da nossa mais elegante sociedade” tivesse afrouxado um pouco o
crivo por onde ordinariamente fazia passar os que se candidatavam ao seu
quadro social, a ponto de ter admitido no seu grêmio certos elementos que,
no dizer de Cuca Lopes, eram sabidamente “gentinha de segunda” – o
semanário local continuava ainda a afirmar que aqueles réveillons reuniam
a nata da sociedade de Santa Fé (R1, p. 130).
As diferenças sociais são esmiuçadas, passando pela elite, a “nata da
sociedade, as famílias dos fazendeiros mais abastados do município” (R1, p. 130);
depois por uma camada “logo abaixo dessa gorda camada de nata do leite social
santa-fezense (...) quase no mesmo nível dos estancieiros (...) o juiz de comarca, o
juiz distrital, o promotor blico, os oficiais da guarnição federal, alguns altos
funcionários e a maioria dos médicos e advogados” (R1, p. 130), até chegar às
camadas mais finas da sociedade que freqüentava o clube, “o leite propriamente dito
(...) funcionários públicos, sempre muito mal pagos, uma série de pessoas de
profissão incerta, e principalmente uma legião de empregados do comércio” (R1, p.
130).
Esse esmiuçamento da sociedade serve de base ao grande encontro que
acontece no baile de réveillon dessa noite, onde, imersos na sica tocada pela
banda, as relações de classe transparecem, clara ou veladamente:
E agora, naquele 31 de dezembro de 1909, ao entrar nos salões iluminados
do Comercial, Rodrigo ainda não via claro no colorido conglomerado
humano. Tinha, porém, a intuição de que havia ali várias camadas que o
se misturavam (R1, p. 135).
A conclusão de Rodrigo adianta o terceiro volume da trilogia, num ambiente
onde a dança e a música dão indícios das divisões existentes na sociedade, e
também dos códigos de conduta e os preconceitos que acompanham esses códigos:
Aquelas pessoas não se encontravam num continente: eram, antes,
moradores dum arquipélago. estava a importante ilha dos estancieiros,
comerciantes e “pessoas gradas” da localidade. Havia as pequenas ilhas,
de escassa população, dos descendentes de imigrantes e finalmente a
grande, populosa, pululante ilha dos funcionários públicos e empregadinhos
do comércio. Certo, os habitantes duma ilha às vezes se aventuravam em
excursões pelas outras ilhas vizinhas, mas mesmo essas viagens
ocasionais obedeciam a certas regras. As filhas dos estancieiros e dos
comerciantes dançavam geralmente com os filhos dos estancieiros e dos
comerciantes: moços, porém, como o promotor público e o Dr. Amintas, que
eram solteiros, bem como os oficiais da guarnição federal também
dançavam com as Fagundes, as Prates as Teixeiras, as Macedos, e as
Amarais. Um dia, entretanto, o Lelé Pontes, caixeiro da Casa Sol, teve a
ousadia de convidar para dançar a filha mais moça de Cacique Fagundes;
ora a rapariga, que era bem educada, não recusou, mas fechou a cara, não
trocou uma palavra com o rapaz e mal parou a música, foi sentar-se na sua
cadeira e passou emburrada o resto da noite. Os caixeiros, porém,
encontravam seus pares e escolhiam eventualmente suas namoradas e
esposas entre as moças pobres, filhas de pequenos comerciantes ou
funcionários (R1, p. 135-36).
Esse “código do baile” é representativo do interior gaúcho no período, e
conecta a paisagem musical com seus reflexos sociais. Havia os privilegiados que
conseguiam transitar livremente entre as ilhas do arquipélago:
Os que gozavam de maiores regalias eram os rapazes das famílias ricas.
Esses iam e vinham entre todas as ilhas, dançavam com as “alemoas”, com
as “gringas” ou com as moças pobres, para delícia e inquietação das
mamãs destas últimas. Quando, por exemplo, um jovem Fagundes,
Teixeira, Amaral ou Prates dançava de “par efetivo” com uma mocinha
modesta, os “filhos da Candinha” achavam que aquilo era namoro,
garantiam que de tal namoro não podia sair casamento e, por conseguinte,
o rapaz “estava desfrutando a moça” (R1, p.136).
Rodrigo é um desses privilegiados, e sabe que nessa noite em especial, é o
centro das atenções. Mas o transitar livremente por entre as várias “ilhas” do baile
demanda um conhecimento do código social, que está imerso em um contorno
musical. Portanto a desenvoltura social de um personagem, também exige uma
desenvoltura musical, o conhecimento do que acontece numa noite de baile, a
seqüência dos estilos musicais e o significado de determinadas músicas e danças.
Por todos esses motivos, o baile que acontece em O retrato é um dos mais
importantes da obra de Erico Verissimo, e contém minúcias que transcendem outros
bailes existentes na obra do escritor, constituindo-se num verdadeiro estudo musical
e social da época. Também em termos de extensão da narrativa, esse baile suplanta
outros encontráveis em sua obra: a narrativa ocupa mais de quarenta páginas
(páginas 123 a 166 da edição utilizada) do romance.
5.2.3 Dona Emerenciana
em O retrato um personagem que sintetiza as significações sociais e
musicais existentes nos bailes do interior gaúcho no início do século XX:
Ninguém representava melhor o código social não escrito de Santa do
que dona Emerenciana, esposa do Cel. Alvarino Amaral. Ela era a
personificação mesma da Opinião Pública, espécie de monumento
municipal, pessoa muito acatada, respeitada e admirada, não por ser
uma Amaral e rica, como também por suas virtudes de dama romana”,
como dissera, em discurso recente, o promotor público (R1, p. 136).
Dona Emerenciana compreende perfeitamente o ritual que envolve o código
regulador daqueles encontros sociais, e age como o fiscal de uma lei não escrita,
sendo ao mesmo tempo divulgadora e perpetuadora desse código:
Quando ia a festas ou bailes, ficava ela na sua cadeira, a respirar com
dificuldade - pois a gordura lhe dava palpitações e sufocações mas de
olho atento a tudo quanto se passava em derredor. De vez em quando fazia
comentários cochichados ao ouvido das pessoas sentadas ao seu lado, e
jamais perdia de vista as filhas e os filhos (R1, p. 136).
O código é social e comportamental, mas está intimamente associado com
questões musicais, já que envolve a dança:
Para Emerenciana Amaral as moças dividiam-se em duas grandes
categorias: as sérias e as desfrutáveis. As sérias portavam-se com recato,
não riam alto, não permitiam liberdades, o eram janeleiras e não
dançavam com quem não tivessem sido apresentadas. As desfrutáveis,
essas se requebravam quando caminhavam ou bailavam, falavam alto, riam
para qualquer um, namoravam o primeiro que aparecesse, principalmente
se era forasteiro (R1, p. 136, grifo nosso).
O comportamento das moças ao dançar, os trejeitos, o requebrar dos quadris,
tudo é parâmetro de respeitabilidade. Os aspectos musicais envolvem também a
quantidade, o número de vezes que uma moça e um rapaz dançam juntos:
De seu posto, D. Emerenciana fiscalizava os namoros do salão, contava o
número de marcas” que cada rapaz dançava com a mesma moça. Olhe,
D. Zeferina, o Vadico dançou cinco marcas seguidas com a Mariquinhas
Matos. Isso não está me cheirando bem” (R1, p. 137).
Outro aspecto com o qual D. Emerenciana tem o máximo cuidado é com os
“forasteiros”:
Nos bailes do Comercial apareciam com freqüência caixeiros-viajantes, que
gozavam entre as moças da terra de grande popularidade, por serem
pessoas alegres, bem trajadas, e bem-falantes, sempre com uma boa
história ou uma piada espirituosa na ponta da língua. Sabiam animar uma
festa e não havia ninguém como eles para organizar quadrilhas e jogos de
salão.(...) D. Emerenciana sabia muito bem que os caixeiros-viajantes
preferiam dançar com as “desfrutáveis”: divertiam-se com as sirigaitas e
depois saíam a gabar-se para Deus e todo mundo do que tinham feito com
elas (R1, p. 137, grifo nosso.).
Os aspectos musicais estão imersos no aspecto social. O conhecimento de
danças como a quadrilha, que envolve coreografias e também certa desenvoltura
corporal revela o grau de envolvimento que as pessoas precisavam ter com esses
bailes e festas para que eles ocorressem. Além disso, a passagem registra a
enorme popularidade alcançada por essa dança no Brasil. Segundo Bruno Kiefer:
(...) a palavra quadrilha vem do francês quadrille. Originalmente, a
expressão teria sido, na França, quadrilha de contradanças o que, por
abreviatura, deu quadrilha. Por sua vez, contradança é corruptela de
country-dance, antiga dança inglesa, alegre e simples. O nome da quadrilha
se justifica, pois provém do número de dançadores, formado por quatro
pares (1983, p. 31).
O fato de esta ser uma dança coletiva aos seus organizadores um status
especial, que só aumenta com o fato de serem esses organizadores de fora da
cidade. Na época em que se passa a narrativa (1909), a quadrilha já era algo
existente havia várias décadas no Brasil, e se encontrava no auge, que depois
entraria em declínio e seria substituída por outras danças. Segundo Renato Almeida:
A quadrilha, em cinco partes, com introdução vibrante, movimentos vivos
em 6/8 ou 2/4, se dançou em todo lugar, terminando sempre em galope.
Apareceu no começo do século XIX e pela época da Regência fazia furor no
Rio, trazida por mestres de orquestras de dança francesas, como Milliete
Cavalier, que tocavam músicas de Musard – o pai das quadrilhas e
Tolbecque. Foi cultivada por nossos compositores, que lhe deram
acentuado sabor brasileiro, a começar por Calado, que as fez com acento
bem carioca. Hoje é dança desaparecida em quase toda parte (ALMEIDA,
1942, p. 187).
A desenvoltura de organizadores de quadrilhas dos caixeiros-viajantes é algo
muito mal visto por D. Emerenciana. A preferência das moças da terra por um deles
em detrimento de algum rapaz de Santa Fé fere profundamente seu código social:
A popularidade desses “cometas” deixava um pouco enciumados os moços
do lugar, a favor dos quais se erguia D. Emerenciana: “Imagine, a idéia da
Ritinha Prates! Deixar de namorar o filho do Teixeira para se desfrutar
com esse caixeiro-viajante que ninguém sabe de onde veio” (R1, p. 137).
Dona Emerenciana, como a regente do código dos bailes, imbrica a música e
as questões sociais num todo indissociável. A imersão dos personagens na
paisagem musical do baile, tendo a mesma como contorno, como fundo e como
mediadora de comportamentos sociais é outra característica marcante na obra de
Erico Verissimo.
5.2.4 A nata e o leite
O baile de réveillon transcorre, portanto, dentro dos limites impostos pelo
código social. Mas que tipo de música é tocado no baile? E qual o significado que
ela adquire nesse contexto?
Assim, aqueles réveillons do Clube Comercial transcorriam sob o olhar
vigilante de matronas como Emerenciana Amaral. Dançava-se nas ilhas
ilhéu com ilhoa e os filhos dos estancieiros, bem como os oficiais do
Exército, os caixeiros-viajantes e outros forasteiros de igual categoria social,
tinham passe livre em todo o arquipélago: dançavam ora com uma Prates
de vestido de seda e rendão, cheirando a essências estrangeiras, ora com
mocinhas mais modestas, que traziam o mesmo vestido do réveillon do ano
passado, e que usavam óleo de mocotó no cabelo. E nem o ritmo sacudido
das valsas, das mazurcas, polcas e havaneiras conseguia fazer que a nata
se misturasse com o leite (R1, p. 137).
A impossibilidade de mistura entre os membros dessa sociedade demonstram
o seu caráter estático. Embora todos (ou quase todos) convivam num mesmo
espaço, romper as diferenças sociais é algo raro. Além da nata e do leite, há
também os excluídos da sociedade, os párias, os que não participam do baile:
Fora, nas calçadas e no meio da rua, à frente do edifício do clube,
aglomeravam-se grupos. Era o pessoal do sereno”, os que espiavam a
festa, os que não tinham ido ao baile porque estavam de luto, não possuíam
trajos de gala ou não eram sócios do Comercial (R1, p. 137).
A seqüência da festa revela com maior quantidade de detalhes o tipo de
música que é tocado, os hábitos e costumes relacionados àqueles encontros. O
relato traz à tona, em cores vivas, um tempo que ficou para trás, num depoimento
de profundo valor histórico e humano:
Eram dez e quinze quando a banda de música do regimento de infantaria,
que atestava o coreto do salão de festas, rompeu a tocar os primeiros
acordes da marcha de La Geisha. Era o sinal de que a polonaise ia iniciar-
se. Rodrigo teve a impressão de que o teto corria o risco de ir pelos ares e
de que as paredes estavam prestes a ruir sob a pressão daqueles sons
explosivos. E a música, para ele evocativa de noites de opereta, também
parecia fazer-lhe uma pressão terrível no peito, não de fora para dentro,
mas de dentro para fora, na forma dum entusiasmo trepidante. Dir-se-ia que
as ondas sonoras o erguiam em cristas iridescentes, deixando-o a boiar
estonteado naquele mar revolto. De bito, estrondou o bombo e a música
parou. O sinal estava dado (R1, p. 138).
O aspecto emocional do momento é reforçado, ou até mesmo produzido, pela
música. As correspondências entre a música do baile, evocativa de noites de
opereta”, traem o gosto predominante de Rodrigo, e é, portanto, o envoltório perfeito
para sua noite de triunfo. O decorrer da narrativa revela mais detalhes do baile:
O Cel. Cacique Fagundes, o presidente do Comercial cujo mandato
terminaria naquela noite ao entrar o Ano Novo, postou-se no meio do salão,
bateu palmas e exclamou:
- Tirem seus pares pra quadrilha, moçada! (...) Vamos rapaziada! Insistia
ele. – Está na hora da onça beber água! Cada um com sua cada uma!
Os cavalheiros começaram a escolher os pares, e naquela sala de chão
esbranquiçado de espermacete cujo cheiro Rodrigo desde adolescente
associava ao de carne-limpa-de-mulher-jovem-em-noite-de-baile começou
um animado e festivo vaivém. Nos rostos das moças que, juntamente com
suas mamãs e titias, estavam sentadas nas cadeiras que perlongavam as
quatro paredes do salão, notava-se um ar de expectativa quase nervosa,
que se traía por movimentos bruscos de cabeça, pela maneira frenética com
que abanavam os leques, alisavam os vestidos, lambiam os lábios ou
trocavam segredinhos (R1, p. 138).
A ansiedade das mulheres sinaliza a importância do baile e as expectativas
quanto aos seus resultados. Um baile poderia mudar a vida de uma pessoa, e em
verdade era isso que se esperava. Mães e tias atuavam como nervosas torcedoras
pelas suas filhas e sobrinhas, esperando que arranjassem namorados, que se
tornariam, no devido tempo, noivos e maridos. Pretendentes em potencial eram
cobiçados tanto pelas moças quanto por toda a facção feminina das famílias.
Pretendentes considerados inadequados eram rechaçados com igual força pelas
mesmas, algumas vezes com a interferência de membros da parte masculina da
família.
As danças se constituem no ponto central do evento, e a quadrilha e a
polonaise ocupam a posição de honra entre as danças da noite. Como são danças
coreográficas, seu caráter aristocrático contrasta com a rudeza dos que a
comandam, como o Cel. Cacique Fagundes. A quadrilha e a polonaise eram danças
que necessitavam de conhecimento prévio dos participantes sobre os movimentos a
serem realizados, pois de outra forma não seria possível dançá-las. Danças
posteriores, derivadas de ambientes menos aristocráticos, como a valsa,
demandavam maior naturalidade dos dançarinos, que apenas precisavam seguir o
ritmo da música.
As danças coreográficas ainda encerram outra característica fundamental
com relação à valsa, por exemplo. Nelas, os dançarinos não se tocam, a não ser nas
mãos, que muitas vezes estão enluvadas, e eventualmente nos tornozelos ou outras
partes dos pés, como no minueto
48
. Na valsa, os pares dançam enlaçados, de frente
um para o outro. Por esse motivo, quando a valsa, que era de origem austríaca,
surgiu na Europa, foi considerada imoral, momento que só foi vencido após o
Congresso de Viena (1815), quando dirigentes de toda a Europa se reuniram e
tiveram acesso à mesma, dançada com naturalidade em seus salões. No momento
histórico em que se passa o baile de O retrato, esse preconceito havia sido
ultrapassado, e no Brasil da época um novo preconceito desponta, desta vez contra
o nacionalíssimo maxixe.
A ansiedade e as expectativas das mães e tias presentes no baile poderiam
ser atenuadas se elas soubessem que Rodrigo já tem alguém em vista: Flora
Quadros. A filha de Aderbal Quadros contém todos os predicados que ele pode
esperar naquele momento, que pensa em se casar: é uma moça de boa família,
tranqüila, caseira, moldada para ser a esposa submissa e que não comprometa sua
posição na sociedade. Quando as danças iniciam, todas as atenções se voltam para
ele: “Mau grado seu, ia meio perturbado, demasiado consciente do fato de estar
sendo alvo de muitas atenções: vai o moço do Sobrado, o bom partido... quero
ver quem é que ele vai tirar pra quadrilha (...)” (R1, p. 139).
Rodrigo é sabedor da situação econômica periclitante da família de Flora, o
que só faz aumentar a ternura pela moça:
- Ainda não vi o Cel. Aderbal...
- O papai não veio ao baile - disse Flora. – Não gosta muito de festa...
Rodrigo imaginou o drama: Babalo em casa, sozinho, numa sala escura, a
pensar nos negócios embrulhados, na falência que se aproximava
inexoravelmente. Com toda a certeza não contara nada à mulher, nem à
filha, para não alarmá-las. E agora, enquanto ambas ali estavam em plena
festa, ignorantes de tudo, o pobre homem debatia-se em sua solidão
angustiante, num problema de consciência... Sim, talvez estourasse os
miolos com um tiro ao soarem as primeiras badaladas da meia-noite. E
quando Flora e a mãe entrassem em casa, de volta do baile (...)
- A senhorita quer dar-me a honra de dançar comigo a polonaise? (R1, p.
140).
48
No caso da polonaise, trata-se de uma dança que possui breves momentos em que o par se
enlaça, apenas para efetuar um giro: o chamado balancez.
Esta passagem da narrativa acentua a relação estreita existente entre a
dança e a intenção de casamento. A resolução de Rodrigo de dançar com Flora,
embora tomada de antemão, é reforçada pela situação financeira de sua família e
o desejo de protegê-la:
É bonita pensava ele. Muito mais bonita do que a imagem dela que eu
guardava na memória... Não sei que tem essa carinha que tanto me atrai.
Não são apenas as feições, mas também um certo ar de inocência, de
dignidade, sem afetação... Dentes perfeitos. O porte não podia ser mais
bem proporcionado: cintura fina, ancas estreitas... Não é peituda como as
Fagundes. Não tem buço. Pobrezinha, a esta hora o pai decerto está morto
e ela não sabe... Protegê-la, sim, fazê-la feliz, dar-lhe tudo que tenho: meu
amor, meu nome, o Sobrado, o Angico, tudo (...)
De braços dados e em silêncio, ambos caminharam para o centro do salão,
onde os outros pares já se achavam reunidos (R1, p. 140).
Rodrigo se infla de grandes intenções, característica de sua personalidade.
Aqui ele emite seu “canto claro”, exerce todo o seu poder de sedução, e o tempo
conseguirá desmentir seus grandes planos. Tendo Flora como par, Rodrigo gira pelo
salão, e os passos da polonaise são descritos com riqueza de detalhes:
A polonaise começou. Os pares fizeram duas voltas no salão, arrastando os
pés ao compasso da música. O vulto de Chiru sobressaía aos demais,
gingando, quase aos pulos, e seu rosto resplandecia de suor e
contentamento (...) Balancez! Rodrigo enlaçou a cintura de Flora e começou
a rodopiar. E como se estivesse montado no cavalo de pau dum carrossel,
viu uma sucessão vertiginosa de imagens: as faces das mulheres sentadas,
os vultos dos outros pares que dançavam, e azul ferrete e vermelho o
uniforme dos oficiais do Exército, o ousado vestido chaudron de Esmeralda
e mais rabos de fraques e croisés, leques, plumas, o clarão das chamas de
gás nos lustres de vidrilho, as caras dos músicos no coreto, as bocas dos
pistões e trombones, como sóis de ouro a dardejar para o salão uma música
vibrante, que parecia aumentar ainda mais o calor do ambiente (...) Ouviu-
se uma pancada de bombo e a polonaise terminou (R1, p. 141-142).
A polonaise serve de introdução aos pares, sendo seguida de uma valsa, o
que coloca os casais numa situação mais íntima, pelas características apontadas,
relativas ao entrelaçamento.
Naquele instante a banda rompeu a tocar uma valsa: Sobre as ondas. O
primeiro que começou a dançar foi o Chiru. Outros pares o seguiram (...) O
baile ainda não se animara verdadeiramente (...) Rodrigo enlaçou a cintura
de Flora e começou também a valsar (R1, p. 143).
Uma das características admiráveis desse baile é a descrição gradual de seus
acontecimentos, de uma forma que é possível vivenciar cada momento, desde o
início, com seu continuo aceleramento, até o final. A observação de que o baile
ainda não se animara verdadeiramente” (R1, p. 143) aponta para o grau de
excitação daquele momento específico. Cada passagem do baile é nitidamente
demarcada por observações desse gênero, funcionando como um termômetro pelo
qual o leitor pode perceber as diferenças de cada parte da festa.
Enquanto dança com Flora, Rodrigo, como que a anunciar sua carta de
intenções futuras, reflete sobre as mulheres. A permanente contradição em que está
envolto é uma das características mais fortes de sua personalidade:
Valsando com entusiasmo, consciente sempre da sensação agradável que
lhe proporcionava o contato da mão de Flora e a proximidade de seu corpo
– embora houvesse entre ambos a respeitosa distância de um bom palmo
Rodrigo via em relances as faces das outras mulheres: as caboclas do
Fagundes, de buços suados e peitos ofegantes: a cara viva da Esmeralda,
que pulava nos braços do tenente de artilharia: o sorriso enigmático da
Gioconda... E de repente, num doce choque, deu outra vez com o rosto
mimoso da Rita Prates. Upa! Como Ritinha havia melhorado naquele último
ano, estava mais mulher... Hélas. E quem será aquela moça alta e vistosa
com um diadema na cabeça? Quem está certo refletiu Rodrigo em tempo
de valsa são os Mórmons... Grande seita! Grande gente! Claro, podia
namorar muitas. Mas se quisesse levar a sério o namoro com Flora, teria de
portar-se direito. De resto, precisava melhorar sua reputação perante as
mamãs de Santa Fé. A notícia de suas proezas nos bordéis correra mundo,
e decerto a cidade não esquecera ainda que, fazia uns cinco anos (oh
nesse tempo Flora era uma menininha de tranças e vestidinho curto!) ele e
Neco haviam provocado uma briga na Pensão Veneza. Havia ainda outros
casos escabrosos. Muitos outros, pensava Rodrigo, rodopiando com seu
par numa velocidade cada vez maior e outros. Um estróina! Um libertino!
Mas um bom partido, mil vezes melhor que qualquer daqueles rapazes que
ali dançavam... sica e intelectualmente! Apesar de todas as minhas
loucuras, aposto como essas mamãs são capazes de me agarrar com
ambas as mãos para genro! Ah! Se são! (R1, p. 144).
As reflexões de Rodrigo acontecem em meio à valsa, e de certa forma no
ritmo e condicionado por esta. Os pensamentos também valsam, e ao pensar em
Flora, deixam entrever as convenções da época:
Pensou em dizer-lhe um galanteio. Não era, porém, de bom-tom falar com o
par durante a dança. Um estrondo de bombo e um tinir de pratos pôs fim à
valsa (...) Que devia dizer-lhe? Falar em coisas fúteis o baile, o tempo, o
cometa de Halley? (R1, p. 144).
O namoro é pontuado pela sucessão de danças, que fornecem um quadro
preciso dos estilos musicais em voga na época:
- Como é possível que a moça mais bonita de Santa não tenha dúzias e
dúzias de admiradores?
– O senhor está fazendo troça de mim.
- Troça? Mas nem diga isso! Estou falando com toda a sinceridade. Creia
que sou o maior de seus admiradores (...) A senhorita me detesta, não é
verdade?
– Não.
– Então porque está se portando dessa maneira?
De novo Flora refugiou-se no silêncio. Ele ia insistir na pergunta quando a
banda começou a tocar uma polca. Era ridículo achou ele que tivessem
de interromper a conversa naquele ponto crucial para saírem saracoteando
ao compasso da polca. Mas, que remédio? Enlaçou a cintura de Flora, que
continuava a evitar-lhe o olhar, e puseram-se a dançar. Estás me saindo
muito arisca! pensava ele. Mas antes do baile terminar eu te domo ou
então não me chamo Rodrigo Terra Cambará (R1, p. 145).
A resistência de Flora deixa Rodrigo despeitado: o bom partido, o homem
mais cobiçado da cidade desprezado por aquela moça! Rodrigo resolve fazer uma
represália, que também está envolta em música:
Espera, meu bem, espera, a noite mal começou... Não queres falar? Está
bem. Não fales. Mas se pensas que vou continuar aqui a fazer papel de
bobo, estás muito enganada. Terminando esta polca eu vou dançar com
outra (...) Foi o que fez. E quando a banda atacou um schottish, o Porto
Clube, viu que Esmeralda Dias estava sem par, aproximou-se dela e
convidou-a (R1, p. 145).
A sucessão de músicas executadas pela banda revela o conhecimento dos
estilos da época. Como já havia acontecido anteriormente em outros bailes da obra
do escritor, como em Música ao longe, a minuciosa observação de gêneros
musicais, músicos e instrumentos são aspectos característicos e concorrem para a
localização dos mesmos na sociedade de cada época dando cor e sentido à
narrativa e à crítica social (e também ao comentário dos costumes) do período.
5.2.5 Os tenentes rivais
Este baile de O retrato tem, no entanto, uma amplitude não alcançada em
nenhum outro da carreira do escritor. Múltiplos aspectos são observados,
abrangendo as mais diversas questões: sociais, políticas, ideológicas, amorosas.
Tudo em meio à música que não cessa.
O ciúme de Rodrigo com relação à Flora tem endereço: um oficial do exército,
o Tte. Lucas Araújo. Pouco depois, Rodrigo é apresentado a ele e a outro oficial: o
Tte. Rubim Veloso. Ambos são tidos como potenciais concorrentes por Rodrigo, que
logo tenta qualificá-los (ou desqualificá-los):
O tenente de artilharia sorriu. Era um homem de rosto miúdo, a pele dum
branco róseo, um pince-nez acavalado no nariz afilado e longo, os cabelos
dum castanho alourado, aparados à prussiana. A arcada dentária superior
avançava à feição de limpa-trilhos, dando-lhe à boca um jeito grotesco de
bico, acentuado pelo recuo do queixo (...) Rodrigo observava o tenente de
artilharia, secretamente satisfeito por verificar que contava com um rival a
menos (R1, p. 149).
A presença dos dois oficiais no baile apresenta diferentes aspectos. O
divertido Lucas Araújo revela um lado humorístico de atores de cinema famosos na
época e hoje esquecidos, como André Deed. Já o Tte. Rubim Veloso encarna toda a
ideologia que descambaria para o fascismo poucos anos depois. Em meio à alegria
reinante, Rubim despeja sobre os convivas o ideário do Super-Homem, pronto
para receber as bênçãos dos partidos de extrema-direita que estavam por vir.
5.2.6 À meia-noite
À medida que a meia-noite se aproxima, o baile fervilha de animação e
expectativa. Rodrigo flana pelo ambiente, trocando diversas vezes de par (e
alternando polcas, valsa e xotes), mas com os olhos postos em Flora:
- A senhorita quer dar-me o prazer?...
Flora ergueu para ele os olhos meio alarmados. Levantou-se, deu dois
passos, ajeitando a faixa. A banda tocava agora a Valsa dos Patinadores
(...) Sentiu desejos de cantar, acompanhando a música. Mas conteve-se:
aquelas coisas eram impróprias dum baile do Comercial. Cuca Lopes, que
dançava com uma das caboclinhas do Cacique Fagundes, passou por ele e
gritou: - Faltam vinte minutos pro ano que vem! (R1, p. 162).
Com sua enorme variedade musical o baile é uma metáfora da sociedade da
época, com seus burgueses, positivistas, fazendeiros e fascistas de plantão. Ali se
namora, se discute política e filosofia, se brinca e se brinda aos tempos que virão.
Os estratos sociais e seus personagens estão identificados na sua completude,
imersos na festa, em pleno regozijo, com suas características de grupo fielmente
descritas:
Pelo aspecto de suas caras germânicas e pelo entusiasmo com que
dançavam, Jacob Spielvogel e sua Frau davam ao baile um ar de kerb
colonial, ao passo que Chiru Mena, com suas batidas de calcanhares com
esporas hipotéticas e com seu ar de monarca, parecia esforçar-se para
transformar o réveillon num fandango de terreiro (R1, p. 163-164).
As diferenças transformam o baile num caldeirão de etnias e a proximidade
da hora um ímpeto vertiginoso à reunião, através da descrição detalhada de
todos os aspectos, que provocam uma quase estagnação do tempo na narrativa:
- Faltam dez minutos – exclamou o Cuca Lopes.
- Doze! corrigiu-o o Chiru. Aproximaram-se um do outro, cada qual com
seu relógio na mão, ficaram a confabular alegremente (...) Os pares não
andavam mais à roda. Alguns estavam parados no meio do salão, outros se
separavam, pois as moças saíam à procura dos pais, mulheres buscavam
os maridos, pais reuniam os filhos... (R1, p. 164).
Uma quase balbúrdia se instaura aos poucos, na ansiedade evidente de todos
os convivas:
Cacique Fagundes começou a arrebanhar as suas caboclas (...) Erguendo
os olhos para o coreto, Rodrigo viu que os músicos se preparavam para
tocar. O Sarg. Aristotelino, mestre da banda, fez para Rodrigo um sinal
amistoso, arreganhando a dentuça clara, num contraste com o rosto pardo
(...) Chiru Mena, que se encontrava no meio do salão a olhar para o relógio,
deu um pulo e gritou:
- Chegou o bicho!
Da rua vinha agora o pipoquear de tiros de revólver. Dentro do clube
começou o caos. A banda rompeu a tocar um galope (R1, p. 165).
Com sua profusão de descrições musicais, e a meticulosa união de elementos
sociais, o baile de réveillon de O retrato se constitui num dos episódios mais
completos em termos da união entre música e sociedade da obra de Erico
Verissimo.
5.3 Os bailes de réveillon em Noite de ano bom de O arquipélago
Também em O arquipélago encontramos diversos bailes e festas, que
aparecem de tempos em tempos na narrativa. Em cada um destes bailes, no
entanto, aspectos diferentes que são salientados, de acordo com a localização
histórica e sua relação com fatos e personagens. Um destes bailes também é de
réveillon, como o que ocorre em O retrato, mas ocorre no ano de 1937.
Como a contrapor-se àquele, aqui os caminhos se multiplicam, as várias ilhas
que formam o arquipélago apresentam-se na sua diversidade e complexidade.
Enquanto o baile de O retrato é completamente centrado na figura de Rodrigo, não
obstante a variedade intrínseca da festa, o baile de réveillon de O arquipélago
possui vários focos.
5.3.1 Contexto político e social
O fim do ano de 1937 apresenta um contexto completamente diferente
daquele de O retrato, ocorrido em 1909. Com Getúlio Vargas no poder, Rodrigo
havia se tornado uma figura de destaque da república, e era identificado como tal
tanto nas coisas boas quanto ruins do regime. Na Europa, o nazismo avança na
Alemanha, enquanto a Guerra Civil Espanhola está em pleno curso.
A narrativa é permeada pelas discussões políticas da época, e esse fato
condiciona os personagens e sua movimentação no espaço do baile. Rodrigo se
encontra numa posição delicada pelo seu envolvimento no governo de Getúlio
Vargas, grassado por suspeitas de corrupção do governo, o que apenas reforça a
posição de seu filho Eduardo, que é adepto do comunismo, contra ele; a posição
pessoal de Floriano, as opiniões de Tio Bicho, tudo contribui para a ambientação de
época da festa, e a música está imersa nessa realidade.
Desta vez, o baile é realizado no Sobrado, o que contrasta com o réveillon
realizado no Clube Comercial, dada a necessária conexão familiar que ele evoca. A
preparação também adquire esse ar tradicional, de coisa antiga muitas vezes
repetida: “Havia pouco, uma das chinocas da cozinha andara a salpicar-lhe as
tábuas com raspa de vela de espermacete, para tornar a pista mais leve para as
danças” (A3, p. 817).
Além disso, a realização do baile no Sobrado gera um incidente:
- Me contaram – disse Jango – que o pessoal da diretoria do Comercial está
furioso com a gente.
- Ué? Por quê?
- Porque nossa festa vai fazer concorrência ao veillon do clube. Acham
que todo mundo vem para cá... (A3, p. 819).
Há, em verdade, diversos bailes acontecendo na cidade nesse dia, as várias
ilhas do arquipélago geram uma multiplicidade de bailes. Cada membro da família
possui suas preferências. No réveillon d’O retrato Santa inteira se encontra no
mesmo baile, pois até mesmo os excluídos ficam no entorno do clube; aqui, o que se
vê é a dispersão, a variedade de gostos e possibilidades.
5.3.2 O baile no Sobrado
O baile que é realizado no Sobrado possui características próprias, que
envolve a complicada situação familiar dos Terra-Cambará naquele momento. Cada
membro da família está envolvido em algum tipo de questão política, social ou
amorosa, tanto em relação ao mundo como entre eles, o que leva a encontros,
desencontros e conflitos. Apesar disso, a festa acontece normalmente com suas
características musicais à mostra:
Cerca das onze da noite, no dizer de José Lírio “a coisa pegou fogo”. Foi
quando o Jazz Rosicler, aboletado num coreto ao do marmeleiro,
começou a tocar sambas e marchinhas do último carnaval, e o Chiru Mena
saiu a pular, puxando um cordão improvisado no qual se misturavam
casados e solteiros. O tablado soava como um tambor às batidas daqueles
passos (A3, p. 823).
A paisagem musical dos anos trinta se mostra sensivelmente diferente
daquela do início do século. Embora as marchinhas carnavalescas tivessem sido
criadas em fins do século XIX, não haviam se disseminado para o sul do país no
início do século XX, e por isso não aparecem no baile de O retrato. José Ramos
Tinhorão, a respeito do assunto, escreve:
(...) é preciso notar que, embora criada cerebrinamente por uma
compositora da classe média (Chiquinha Gonzaga), nesse ano de 1899, a
marcha, para se vulgarizar, teria que esperar pelo menos vinte anos, até
que os ranchos carnavalescos numa curiosa trajetória de ascensão social
deixassem de ser coisa exclusiva de negros para admitir a mestiçagem e
o semi-eruditismo de músicos que os transformariam em verdadeiras
orquestras ambulantes (1983, p. 119).
Portanto, não é de estranhar a ausência de marchinhas nos réveillons do
início do século. na década de trinta, a situação se alterara sensivelmente, tanto
em relação às marchinhas, como em relação ao carnaval, que também era algo
ausente no início do século dentro de um clube social. O carnaval, como as
marchas, passou por um processo de ascensão social. Derivado do entrudo, uma
festa popular que remonta à Antiguidade, o carnaval acontecia de forma
desorganizada pelas ruas das cidades brasileiras:
O entrudo, do qual se tem notícia desde o início do século XVII, era uma
reminiscência das festas pagãs Greco-romanas realizadas a 17 de
dezembro (saturnais) e 15 de fevereiro (lupercais), que tinham origem na
comemoração das colheitas, quando se permitia liberdade aos escravos,
usavam-se scaras, vestiam-se fantasias, e se comia e bebia
desbragadamante. Em coerência com essas origens, o entrudo limitou-se
até meados do século XIX a uma festa em que os escravos da Colônia e do
Império saíam em correrias pelas ruas, sujando-se uns aos outros com
farinha de trigo e polvilho, enquanto as famílias brancas, refugiadas em
suas casas, divertiam-se derramando pelas janelas tinas de água suja sobre
os passantes, enquanto comiam e bebiam como os antigos num clima de
quebra consentida da extrema rigidez da família patriarcal (TINHORÃO,
1983, p. 111).
A ascensão de Getúlio Vargas ao poder alterou a relação da sociedade com o
carnaval e também com o samba, que passaram a ser vistos, graças em grande
parte à política nacionalista do ditador, como símbolos brasileiros. Esse quadro
político e social faz com que o baile de réveillon de O arquipélago tenha as
características musicais que ali se encontram. O caráter carnavalesco, inimaginável
numa festa no início do século, agora é o que há de mais atual, o que faz um grande
contraste com as valsas e polcas tocadas anteriormente:
Trepado numa cadeira, Cuca Lopes jogava confete na cabeça dos
dançarinos. E à música implacável da charanga, que emendava sambas
com marchinhas, marchinhas com frevos e frevos de novo com sambas
uniam-se agora os ruídos produzidos pelos apitos, guisos, chocalhos,
cornetinhas, gaitas, pandeiros e reco-recos que os garçons acabavam de
distribuir pelas mesas. Rodrigo teve a impressão de estar perdido numa
floresta tropical quente e úmida, cheia de bichos grandes (os convivas), de
insetos (o confete), de lianas (as serpentinas) uma floresta amazônica que
ele havia inventado e financiado, e que agora começava a devorá-lo (A3, p.
824).
Para Rodrigo, a festa tem um caráter de revisita, de ver velhos amigos, de
encontro com lembranças e aventuras de outros tempos. O Rodrigo que envelhece
tem acentuados os defeitos de seu caráter, o que era ímpeto na juventude se torna
repetição de erros na idade madura. O rapaz que sonhava em ser um arrojado
renovador da sociedade deu lugar a um político acomodado e corrupto. Esse é um
dos pontos cruciais do baile, a relação entre ele e Toríbio, que não concorda com a
acomodação do irmão.
O baile se passa em meio a essa multiplicidade de pontos de atrito entre os
membros da família. Além dos filhos e do irmão, Rodrigo se exposto à relação
desgastada à exaustão com Flora, embora ele ainda nutra esperanças de mudança:
Avistou Flora, que andava de mesa em mesa, com a compostura duma
grande dama, a falar com um e outro. Estava linda aquela noite, e dava
gosto vê-la fresca e serena no meio da “selva”. Teve então uma bita
esperança... Talvez à meia-noite, à hora comovida dos abraços e votos de
felicidade ele a pudesse apertar contra o peito, beijá-la na boca (quanto
tempo!), pedir-lhe que tudo perdoasse e esquecesse... suplicar-lhe que
concordasse em começar com ele uma vida nova. Talvez à meia-noite...
(A3, p. 826).
Além de pensar em algo que se torna cada vez mais distante, a reconciliação
com a esposa, a situação evoca o baile de réveillon de O retrato, quando Rodrigo
tenta entender quais são os sentimentos de Flora para com ele:
E quando Rodrigo tornou a baixar a cabeça, surpreendeu Flora a
contemplá-lo. E naquela fração de segundo em que os olhos de ambos se
encontraram ele teve a certeza de que ela o amava. Eu te amo!
murmurou. Eu te amo! repetiu em voz mais alta, com um desejo de
dar um passo à frente e tomar Flora nos braços. Era um momento grave: a
entrada dum novo ano. Era um instante de efusão emocional em que todos
os excessos deviam ser permitidos... (R1, p. 165).
Não apenas o pensamento de Rodrigo no baile de O arquipélago é um eco
distante daquele do baile de O retrato, como ele mesmo é um reflexo distante do
homem que foi.
5.3.3 Os irmãos
A diversidade das ilhas do arquipélago se revela na variedade de caminhos
que a família toma, o que fica explícito no decorrer do baile. Cada um dos filhos de
Rodrigo possui um caminho diferente, que se manifesta nas suas escolhas. Jango,
conservador e retraído, é quase uma ausência no baile do Sobrado, mais
preocupado que está com os afazeres na fazenda da família. Mas é a ele que
Rodrigo pergunta a respeito de outro filho:
Rodrigo chamou Jango à parte.
- Não vi o Eduardo. Por onde andará?
- Me disse que ia ao baile da União Operária.
- Guri besta. Anda agora com essa mania de proletário (A3, p. 826).
A irritação de Rodrigo apenas indica a sua falta de perspicácia quanto aos
rumos que os membros da família estão tomando. Também fica evidente nesse
momento a existência de três grandes bailes simultâneos na cidade: o do Sobrado, o
do Clube Comercial e o da União Operária. Cada um deles indica diferenças sociais,
políticas e culturais. ainda diversas outras festas e bailes menores que se
evidenciam no decorrer da narrativa.
Outro membro da família que se destaca no baile do Sobrado é a filha mais
nova:
A orquestra rompeu num frevo. Com gritos e empurrões, Chiru Mena
conseguiu fazer que os pares que atopetavam o tablado parassem de
dançar e abrissem uma clareira para que no centro dela Bibi Cambará
fizesse sozinha “o passo”, mostrando àqueles mambiras como era o
legítimo frevo pernambucano. A menina descalçou os sapatos e,
empunhando um guarda-sol imaginário, saiu a dançar, movendo os braços,
inclinando o busto ora para a frente ora para trás, trançando as pernas,
dando saltos e desferindo pontapés no ar... Ao redor dela homens e
mulheres a incitavam com gritos, risonhos, suados e excitados (A3, p. 827).
A passagem destaca um estilo musical e dança popular que começava a ser
mais conhecida por aqueles anos: o frevo. Segundo Tinhorão:
Criação de sicos brancos e mulatos, na sua maioria instrumentistas de
bandas militares tocadores de marchas e dobrados, ou componentes de
grupos especialistas em música de dança do fim do século XIX (polcas,
tangos, quadrilhas e maxixes), o frevo fixou sua estrutura numa vertiginosa
evolução da sica das bandas de rua, de início da década de 1880 até os
primeiros anos do século XX (1983, p. 139).
Essa mistura de dança de rua com uma profusão de influências musicais,
nascida em Pernambuco, migra para o Rio de Janeiro, onde toma novas
características, principalmente com relação à sua incorporação ao carnaval. A
princípio restrito às camadas populares, o frevo aos poucos passa a ser cultuado
pelas classes mais abastadas. Falando sobre a hibridização do frevo com o
carnaval, Tinhorão coloca:
O que se compreende, no entanto, é que com a crescente pressão da
classe média desejosa de participar também do carnaval de rua,
principalmente a partir da década de 30, a forma primitiva e mais popular do
frevo teria que admitir mesmo a coexistência com a tal forma híbrida, que
retomava a tradição das velhas marchas dos tempos das passeatas das
bandas militares, embora é verdade de forma mais romântica e bem
comportada (1983, p. 148).
São precisamente estas características que estão presentes no momento em
que Bibi dança, seja em concordância com o fato histórico, seja em discordância
pela “forma mais romântica e bem comportada”. Ao preferir dançar a forma popular
original do frevo, Bibi escandaliza a sociedade presente no baile, excita os homens,
mas principalmente afronta Rodrigo:
E quando a rapariga se acocorou e fez um passo que lembrava o de uma
dança de cossacos o que exigia certa habilidade acrobática o aplauso
foi geral. Por fim, exausta, Bibi atirou-se no chão, braços e pernas abertos,
o vestido sungado até a metade das coxas nuas. E, ainda sob gritos,
risadas e assobios, ali se deixou ficar, os olhos fechados, os seios arfantes,
a boca entreaberta, dando a impressão de que esperava (assim pensou
Rodrigo, num mal-estar, ao vê-la naquela posição), convidava mesmo,
qualquer daqueles machos a atirar-se em cima dela. Aproximou-se da filha
e obrigou-a erguer-se. Apertou-lhe o braço com força e rosnou-lhe ao
ouvido: Sua desavergonhada! Então isso é coisa que se faça?” (A3, p.
827).
A vergonha de Rodrigo esconde um debate que começa a se delinear, não na
família, mas na sociedade em geral, que é a oposição entre machistas e feministas.
Bibi, no seu comportamento desapegado, reflete o comportamento de algumas
mulheres do período que começam a ter mais liberdade e podem pensar suas vidas
para além do fato de formar uma família, embora isso não pareça consciente da
parte dela. Como uma heroína de Francis Scott Fitzgerald, Bibi ecoa as alucinadas
mulheres da Era do Jazz, com pitadas brasileiras.
Entre os filhos de Rodrigo, Floriano é um caso a parte. Um dos focos
principais do baile, que a perspectiva dele é a que começa imperar na narrativa,
Floriano se comporta de forma tímida durante o baile do Sobrado, observando a
festa e refletindo a respeito de sua personalidade:
Havia já algum tempo que Floriano andava a caminhar sozinho sob as
árvores, no fundo do quintal, gozando e ao mesmo tempo sofrendo e
achando ridícula, absurda e talvez um pouco orgulhosa a sua solidão, a sua
incapacidade de convívio social. Repetidas vezes, naqueles últimos anos,
sentira nostalgias do homem que poderia ter sido: espontâneo, gregário,
extrovertido, engagé (A3, p. 827-828).
As reflexões de Floriano, onde a música está presente, constituem o cerne do
terceiro volume da trilogia:
Um dia, procurando analisar a essência do seu desejo de solidão, ele se
submetera a um teste. Imaginara-se sozinho numa ilha deserta onde
contasse com todo o conforto: boa casa, água e comida fácil, uma eletrola
com seus discos prediletos, uma grande biblioteca... tudo, enfim, menos
gente. Cerrara os olhos e tentara sentir-se nesse exílio... e a idéia acabara
por causar-lhe pânico. Concluíra que sua solidão só tinha sentido e sabor se
ilha também fosse cercada de seres humanos. Ficara claro que seu
retraimento não tinha o menor traço de misantropia. Gostava de gente,
interessava-se pelas pessoas, queria saber como eram por dentro, e como
viviam (A3, p. 828).
O arquipélago se delineia. Não mais o vasto continente selvagem, sem cercas
ou muros, mas a contenção, esfacelada na diversidade de caminhos que a
sociedade tomou. Também as pessoas, que viviam num estado de contemplação ou
de guerra, na tentativa de dominação do continente, agora vivem nas cidades, que
se divide em partes, vilas, numa multiplicidade de divisões sociais.
Os bailes daquela noite refletem estas características. E também refletem
outros bailes, ecoam atos do passado. Como a repetir seu pai, Floriano espera
abraçar Sílvia à meia-noite, e talvez dar um rumo à vida de ambos:
Encostado a uma árvore, numa zona sombria, Floriano contemplava agora
o tablado que - resplendente de luzes, cheio de alegres seres humanos e de
música parecia um barco de prazer ali no quintal do Sobrado. Quando
chegasse a meia-noite ele ia ter a oportunidade de abraçar e beijar a
cunhada. Por que não? Não fazia isso todos os anos, na noite de Ano Bom?
que desta vez queria dar ao abraço e ao beijo um sabor especial...
transmitir a Sílvia uma mensagem que ela pudesse entender com o espírito
e com o corpo (A3, p. 829).
O ápice da festa é, naturalmente, a passagem de ano. A união da música com
o aspecto festivo do momento se incorpora à história de Floriano e Silvia:
Faltavam poucos minutos para a meia-noite quando Floriano se
encaminhou para casa. Ao chegar ao portão, o Ano Novo entrava... (Outra
vez a idéia do tempo que se move.) O sino da Matriz começou a badalar
como num alarma de incêndio. Dos fundos do Sobrado subiam rojões que
espocavam no alto, derramando lágrimas luminosas em várias cores.
Soavam reco-recos, apitos pandeiros cornetas, guizos, chocalhos, pratos. A
orquestra tocava um galope (...) No quintal as pessoas se abraçavam
freneticamente, em meio de gritos, risadas, serpentinas e confete.
Pensando em Sílvia, Floriano aproximou-se do estrado. Apertá-la nos
braços, beijá-la... Já gora estava dominado por esta idéia não seria este
um novo transe stico? alheio a qualquer perigo, indiferente a qualquer
problema de ética (A3, p. 830-831).
Para decepção de Floriano, embora ele pudesse esperar por isso, minutos
depois Rodrigo anuncia o casamento de Jango e Sílvia a todos os presentes.
Também um brinde é proposto ao Estado Novo e a Getúlio Vargas, ao qual Toríbio
reage de forma agressiva:
- Vocês todos são uns covardes! O Getúlio esbofeteia o Rio Grande, queima
a nossa bandeira, rasga a nossa Constituição, submete o país a uma
ditadura sórdida e vocês ainda vão beber um brinde a esse pulha?!
- Cala a boca! – gritou Rodrigo (...) – Estás bêbedo!
- E tu? Tu estás podre por dentro, o que é muito pior!
Rodrigo deu um passo à frente, ergueu o punho para bater no irmão, mas
Chiru interveio, envolveu-o com os braços e arrastou-o para longe dali, ao
mesmo tempo que o Neco tentava persuadir Toríbio a que se retirasse.
Jango, aparvalhado, não sabia que fazer nem dizer. Silvia tremia. Flora,
pálida, olhava do marido para o cunhado, atarantada. Alguém gritou:
“Música!” E o Jazz Rosicler atacou o Mamãe eu Quero (A3, p. 832).
A forma encontrada para terminar a briga não difere muito da política
getulista. O apoio ao carnaval como uma característica nacional calava, com suas
marchinhas e sambas e seu aspecto festivo, os desmandos da ditadura.
5.3.4 Fim de festa
O restante da narrativa se concentra no último baile da noite, que não
acontece nem no Clube, nem na União Operária, nem no Sobrado, mas num
prostíbulo chamado Buraco do Libório. Assim como a preferência de Eduardo é pelo
baile da União Operária, a de Toríbio é pelos bailes do baixo meretrício.
O rumo que a história toma a partir da saída dele e de Floriano do Sobrado
poderia, não fosse o aspecto festivo que ainda impera, ser confundido com um
fragmento de Noite, novela que havia sido publicada antes da escrita de O
arquipélago. A narrativa adquire um caráter lúgubre (e lúbrico) à medida que a noite
avança:
Entraram na espelunca. Um cheiro lido de corpos suados e loção barata
bafejou-lhes as caras. Uma orquestra estridente, composta quase
exclusivamente de instrumentos de metal e de percussão infernizava o
ambiente. Guirlandas de papel crepom em várias cores pendiam do teto
(A3, p. 834).
Embora festivo, o ambiente contrasta grandemente com o do Sobrado:
Toríbio e Floriano e Libório seguiram por entre aquele emaranhado de
homens e mulheres que se agitavam numa espécie de acesso epilético
ritmado e alegre. Floriano achava estranho, improvável mesmo o simples
fato de ele estar ali. E olhava para as caras, fascinado. Via gente de todos
os tipos imagináveis: brancos, mulatos, cafuzos, sararás, negros retintos,
caboclos, índios... Lembrou-se dum livro que gostava de folhear quando
menino, e no qual havia uma página com gravuras mostrando espécimes de
tipos étnicos, sob o título: Raças Humanas (A3, p. 834).
A música dá suporte a um ambiente onde a mistura étnica e social é evidente.
Embora desperte o interesse de Floriano, o local provoca visões e sensações que
pairam entre o sonho e o pesadelo:
O calor ali dentro era quase insuportável. Floriano sentia o suor escorrer-lhe
por todo o corpo. Axilas passavam-lhe perto do nariz, perigosamente.
Batiam nele braços, cotovelos, ancas, degas... Vislumbrava caras
patibulares: homens de queixadas largas e quadradas, olhos de bicho,
testas curtas. De quando em quando, num contraste, surgia-lhe no campo
de visão, para desaparecer segundos depois, uma face quase angélica
como a da menina magra de olhos inocentes que agora ali passava, com ar
de primeira comunhão. As prostitutas, mascaradas de pó de arroz com
estrias de suor e rosas malfeitas de rouge nas faces, deixavam-no ao
mesmo tempo assustado e enternecido (A3, p. 834-835).
Detalhes da música transparecem na narrativa. Quiçá as mesmas canções
executadas em outros bailes são tocadas no prostíbulo. Mas a atmosfera difere
radicalmente:
A gritaria agora era de tal maneira intensa, que da música Floriano ouvia
os roncos ritmados da tuba, marcando a cadência dum samba. Os pares
dançavam colados, peito contra peito, ventre contra ventre, coxa contra
coxa. Havia algo de resvaladio, de repugnantemente seboso e ao mesmo
tempo azedo naquelas caras, naqueles corpos, naquela atmosfera (A3, p.
835).
Nesse ambiente se a conversa entre Floriano e Toríbio, em que as
diferenças deste para com Rodrigo são expostas. O notável discernimento de
Toríbio com relação à posição do irmão e a mudança de comportamento de toda a
família constitui um ponto decisivo da formação de Floriano, da tomada de decisões
relativas à sua carreira de escritor e o afastamento do poder onde a maior parte de
sua família circula.
Em termos de estilos musicais, uma aproximação com o repertório dos
outros bailes, o que sugere um mesmo espectro de músicas que são tocadas em
todos os lugares à época, no Brasil, dentro do plano de unificação nacional de
Getúlio Vargas.
A festa prossegue, em meio à balbúrdia geral: “O soalho gemia ao peso dos
dançarinos, que agora pulavam e cantavam ao compasso do Mamãe eu Quero(A3,
p. 837). Mesmo no prostíbulo a marchinha se destaca, abafando ruídos de brigas e
desentendimentos, de negócios escusos, de amores proibidos. Como a reafirmar a
decadência de um país tomado pela corrupção, a forma festiva com que o
esquecimento e o não questionamento das questões sociais eram tratados.
A morte de Toríbio apenas reafirma a tragédia de Rodrigo, a morte do pai, da
filha, de Toni Weber, o afastamento de seus ideais e da esposa. Assim, Noite de
Ano Bom, com seus bailes múltiplos, deixa a sensação do excesso. Excesso de
festas, de corrupção, de caminhos díspares, como um retrato da fragmentação da
sociedade da época.
6 A ESPERANÇA COMO GUIA
Profundamente enraizada na concepção de humanismo de Erico Verissimo
está a crença no poder da arte, e particularmente da música, de questionar sem
palavras, de curar, de servir como um bálsamo que contenha tanto a resposta como
a indagação, capazes de colocar a alma do homem a nu; poder esse que em um
momento de lucidez pode levá-lo a compreender suas loucuras e a entrever a
possibilidade de um futuro melhor.
Esse aspecto que a música adquire na obra do escritor transparece em
variados momentos de sua trajetória e tem em comum com um importante pensador
contemporâneo, Ernst Bloch, a crença no sentido da construção de um mundo mais
justo onde a arte tenha um papel primordial. Essa confluência de pensamentos de
Ernst Bloch e Erico Verissimo é o objeto do derradeiro capítulo deste estudo.
6.1 Um farol na tempestade
“O que importa é aprender a esperar,” nos diz Ernst Bloch no prefácio de O
princípio esperança (PE). “O ato de esperar não resigna: ele é apaixonado pelo êxito
em lugar do fracasso” (PE, 2005, p. 13). Se a crítica social é uma constante da obra
de Erico Verissimo, a esperança na construção de um mundo mais justo é também
um elemento basilar, que surge metamorfoseado de diferentes maneiras no decorrer
de sua obra, retrabalhado ao longo do tempo. A representação da esperança é
muitas vezes conectada à arte e ao poder de todas as artes, mas especialmente da
música, de curar, de enlevar, de revisar e revitalizar o mundo.
em Clarissa encontramos esse aspecto. A menina que cresce e descobre
o mundo a partir da pensão de Tia Zina é a encarnação mesma da inocência que, ao
ser descoberta por Amaro, transforma-se na portadora de novas possibilidades para
o tímido compositor. Desesperançado da vida e das pessoas, Amaro encontra em
Clarissa a promessa de um mundo melhor. Esse mundo não se concretiza, que
Clarissa permanece um amor platônico, mas se realiza na forma da arte, inspirando
composições. Assim como o Eugênio de Olhai os lírios do campo guarda
semelhanças com o tenente de O prisioneiro, Amaro pode ser considerado um
antecessor dos personagens desses romances, pois também ele faz parte de uma
engrenagem social que o aprisiona e a qual ele não compreende inteiramente. Essa
incompreensão do meio circundante e da possibilidade de construção da vida, que
Bloch chama de “esperança fraudulenta” (PE, p. 15), concorre para o deslocamento
de Amaro no tecido social. Esse deslocamento, essa sensação de estranheza, tão
presentes em O prisioneiro, evocam inevitavelmente a questão da ignorância, da
incompreensão das possibilidades de construção do futuro. Segundo Bloch, “o
grandioso evento da utopia no mundo quase não foi esclarecido. De todas as
singularidades da ignorância, esta é uma das mais evidentes” (PE, p. 16).
Em Clarissa, Amaro ainda guarda resquícios de felicidade, que se manifestam
de forma musical. A música contém a esperança e a felicidade do mundo, e a
representação sonora da realidade é um de seus sonhos, “a rapsódia da pensão de
D. Eufrasina” (CL, p. 5), uma música “colorida e viva” (CL, p. 5) onde os ruídos
cotidianos possam ser representados sonoramente num todo coerente.
Amaro sonha com um mundo diferente, distante das picuinhas do dia-a-dia,
das fofocas, dos mexericos, embora esses mesmos ruídos cotidianos possam fazer
parte de suas composições: ele sonha com um mundo onde a música ocupa quase
todos os espaços. Para Bloch, “enquanto o ser humano se encontrar em maus
lençóis, a sua existência tanto privada quanto pública será perpassada por sonhos
diurnos, por sonhos de uma vida melhor que a que lhe coube até aquele momento”
(PE, p.15).
Para Amaro, Clarissa é a personificação da inocência e da esperança, e
esses atributos formam o corpo da inspiração do compositor: Fatalmente, Clarissa
deve se transformar em música. Não como fugir à idéia da idealização: para
Amaro, a menina assume uma condição quase sobre-humana. O desejo, embora
existente, jamais se concretiza. Esse fato estabelece uma relação com outra figura
literária que possui ressonâncias musicais, que é o maestro Kreisler, criado por
E.T.A Hoffmann que no amor via apenas as imagens celestiais, no matrimônio
apenas as sopeiras quebradas e, sendo assim, não queria trocar as imagens pelas
sopeiras” (PE, p. 316). Também Amaro sofre desse mal. E o desdobramento se
nos romances posteriores, notadamente em Um lugar ao sol, quando a relação que
se cria com Dona Doce, a proprietária da pensão em que Amaro passa a viver, se
torna regular. Clarissa continua a encarnar um ideal, inspiradora de obras também
ideais, pois seu autor não encontra força para realizá-las. De outro lado, Doce
encarna a realidade e todos os seus males, trazendo à tona as contradições e
preconceitos de Amaro. Doce se torna a anti-musa, a pessoa que destrói a
possibilidade de compor, de criar, enfim, a antítese do mundo ideal.
Se Amaro sonha com um mundo diferente, mas permanece preso às
engrenagens do dia-a-dia, Noel, de temperamento semelhante, tímido, sonhador,
recluso, aos poucos encontra forças para construir seu sonho. Se em Caminhos
cruzados ele permanece preso à vida familiar, aos seus discos e livros, em Um lugar
ao sol ele se liberta, lentamente, dos grilhões que o atormentam e consegue dar
direção aos seus sonhos. Fernanda permanece a força que o guia, mas essa
dependência não seria efetiva sem a percepção pessoal de Noel de que é preciso
mover a roda do destino: aos poucos ele conquista as rédeas de sua vida e toma
algumas decisões, poucas, mas fundamentais: sair de casa, trabalhar longe da
tutela do pai e da influência da mãe, ter um filho. A relação que torna o mundo de
Noel e Fernanda tão sólido está permeada pela música, pelos serões onde se ouve
e conversa ao som de Beethoven, Mozart ou Bach. Nos momentos de tensão, sejam
eles por questões familiares ou por acontecimentos externos, escutar música é um
refúgio e um farol para a esperança. É possível sonhar e rever o mundo. É possível
esperar sem medo, ou ao menos domar o medo.
Para Noel, no início, ouvir música era um ato recluso e pessoal. No rculo
quase impenetrável de sua reclusão aos poucos admite Fernanda, que com ele
compartilha as audições, as conversas, os poemas. Em Saga, esse círculo se
amplia, admitindo Clarissa e Vasco, que terminam por formar um novo círculo em
sua casa no sítio onde moram. Lá, como em Porto Alegre, Vasco ouve os sons de
Bach ressoando na serra, e é aí que encontra forças para resistir e esperar: a
esperança não pode ser banida da terra sob a pena de nos aniquilarmos, de
soçobrarmos sob o peso dos erros humanos.
6.2 Os sonhos diurnos
Ernst Bloch nos fala de sonhos diurnos, tão diferentes dos sonhos noturnos:
O desejo de ver as coisas melhorarem não adormece. Nunca nos livramos
do desejo, ou então nos livramos apenas ilusoriamente. Seria mais cômodo
esquecer esse anseio do que realizá-lo, mas para onde isso nos levaria
hoje? Os desejos ainda assim não cessariam, ou se travestiriam em novos,
ou anós, os sem-desejo, seríamos os cadáveres que os maus pisariam
no caminho para a sua vitória. Não é hora de desistir dos desejos. Os que
sofrem privação sequer pensam nisso: eles sonham que seus desejos um
dia serão realizados. Sonham com isso, como diz a expressão coloquial, dia
e noite, portanto não à noite. Isso também seria muito estranho, que o
dia é o momento em que a privação e o desejar mais se fazem presentes
(PE, p. 79-80).
Amaro sonha com um mundo diferente, se alonga em divagações onde
Clarissa é a musa, mas sua arte brilha e acontece num mundo que é o oposto do
mundo real, refratário àquele tipo de música. O sonho de Amaro é tanto mais intenso
quanto é distante de sua realização concreta. O homem comum “exercita sua
imaginação em visões que cintilam em sua direção provindas da sala de estar da
vida, onde ele nunca pôs o pé” (PE, p. 38). Mas o sonho de Amaro é fundamental
para sua existência, mesmo a obra irrealizada contém a esperança de sua
realização. A obra sonhada é uma obra potencial, depositária de todas as
possibilidades.
Assim como Amaro, também Noel deposita seus sonhos diurnos em
embalagens musicais. Tanto o Noel inseguro de Caminhos cruzados, quanto o
personagem mais maduro dos romances posteriores vive envolto em atmosferas
onde a música proporciona o invólucro perfeito para o sonho: Debussy, Chopin,
Mozart. No princípio, ainda solteiro e morando na casa dos pais, a música altamente
flutuante de Debussy, com suas cadências suspensas e irresoluções, é a trilha
sonora de suas viagens ao passado, à infância, à atmosfera das histórias contadas
por madrinha Angélica, dos passeios com Fernanda. A música de caráter flutuante
de Debussy serve de trilha sonora para o seu caráter ainda inseguro. Chopin é a
trilha sonora de sua melancolia, suas dúvidas, seu medo da vida.
O sonho se dá naquele espaço que é só seu: o quarto. Bloch nos relata que o
poeta alemão Clemens Brentano (1778-1842) e sua irmã haviam edificado para si no
sótão de sua casa um reino a que eles deram o nome de Vaduz. Outro poeta
alemão, Eduard Möricke, também possuía um espaço só seu para a fantasia:
No tempo em que ainda freqüentava a escola, eu tinha um amigo cuja
maneira de pensar e busca estética andavam de os dadas com as
minhas. Nas horas livres, fazíamos o que nos vinha à cabeça. Logo criamos
para s uma esfera poética própria (...) Inventamos para nossa poesia um
chão situado fora do mundo conhecido, uma ilha isolada que teria sido
habitada por um vigoroso povo de heróis. A ilha se chamava Orplid, e sua
localização era imaginada no Oceano Pacífico, entre a Nova Zelândia e a
América do Sul (MÖRICKE apud BLOCH, 2005, p. 97-98).
Esses espaços que edificam o sonho são fundamentais para o
desenvolvimento do que está por vir. Ainda que Noel navegue de forma insegura
pelos mares de suas lembranças, naquele espaço de reflexão é possível imaginar o
futuro e preparar os sonhos: aquele é um espaço para a esperança. Para Noel,
todos os objetos de seu quarto “são como gênios bons: fazem tudo para manter a
ilusão de que dentro destas quatro paredes cabe inteiro o mundo da fantasia” (CC,
p. 59). Tanto a fantasia quanto a esperança encontram uma forma musical de
expressão no mundo de Noel:
Noel vai até o gramofone, escolhe um disco, põe-no no prato, fá-lo girar,
ajusta o diafragma e senta-se de novo na poltrona. De dentro da caixa de
madeira a sica salta num jorro luminoso. A melodia se retraça no ar num
arabesco ágil. Parece que a atmosfera fica mais clara. A luz do sol
desaparece, devorada pela luz maior. Debussy. O disco gira. Noel escuta
deixando o pensamento correr ao ritmo da música (CC, p. 59).
Ernst Bloch associa a música de Debussy a certa lassidão, “a essa essência
da disposição de humor o mais cômoda possível, isto é, de elaboração fraca e sem
compromisso” (PE, p. 108), o mesmo estado de espírito de Noel em Caminhos
cruzados.
6.2.1 Outros espaços do sonho
Outro personagem que edificou um espaço só seu de esperança e construção
dos sonhos é o escritor Tônio Santiago de O resto é silêncio. O espaço de sua casa,
carinhosamente chamado de a Torre”, é um espaço de união para a família e os
amigos, mas também de reflexão sobre o mundo circundante. É ali que Tônio
conversa com os filhos, e ouve música. É ali que sonha seus romances, e ao som
de Bach, Mozart ou Beethoven, os membros de sua família vivendo e movendo-
se envoltos em possibilidades que já são estudos para obras futuras.
Há em O resto é silêncio duas torres: uma, a da casa do Tônio adulto,
escritor, casado; outra, a da sua infância, construída por um bisavô quase lendário.
Na mais antiga, o menino se deslumbrava com o espaço de sonho, reforçado pelas
histórias de tias e tios que ali se aventuraram:
Para Tônio a torre era um território mágico. Gostava de sua sala circular, de
suas paredes onde o tempo, a umidade e a poeira haviam desenhado
figuras fantásticas. Os móveis antigos (céus, aquele espelho de moldura
bronzeada dava à gente medo de se mirar nele) os móveis também tinham
uma fisionomia particular que não era bem deste mundo; contavam
histórias, prometiam segredos. Para a imaginação de Tônio a torre era
sucessivamente o esconderijo do tesouro dum pirata, refúgio dum gênio
bom, farol, ilha, barco, balão... Uma hora era o deserto africano, na outra
transformava-se numa cidade da China, num navio perdido no mar ou num
planeta povoado de monstros. Tônio enfurnava-se na torre para ler novelas
e folhetins, velhas brochuras amareladas com cheiro de coisa antiga. João
de Calais e a Princesa Magalona. Os Três Mosqueteiros. Cinco Semanas
em Balão... (RS, p. 170).
A posterior perda da casa pela família deixa em Tônio o desejo de um dia
reencontrar sua torre, ter novamente um espaço seu, o que a passagem dos anos e
seu trabalho como escritor acabaram proporcionando:
Num áspero agosto o minuano cruel levou o velho Leonardo. Nos anos que
se seguiram, numa sucessão de erros, negligências e prodigalidades, os
filhos jogaram fora os bens herdados e acabaram perdendo o casarão da
família. Tônio, a quem prometiam a oportunidade de estudar numa
universidade européia, teve de abandonar os estudos superiores para ir
trabalhar atrás dum balcão de secos e molhados. Muitas vezes à noite
ficava parado a uma esquina da “quadra dos Santiagos”, olhando para a
Torre com saudade e tristeza, vendo-lhe nas velhas janelas a luz dum lar
estranho. Certa madrugada, ao contemplar mais uma vez a silhueta da casa
onde nascera, tomou uma resolução: esquecê-la e seguir o seu caminho...
Apesar disso, daí por diante, através do tempo, dos sonhos, das pessoas,
dos trabalhos e dos livros sua vida foi toda ela orientada no sentido da
busca de outra família, outro teto, outro abrigo. Sua bússola sentimental
apontava para um único norte: uma torre. Ao cabo de muitos anos Tônio
conseguira erguer a “sua casa”. Essa casa também tinha uma torre (...) Na
torre Tônio instalara seu gabinete de trabalho, a sua “oficina”, uma espécie
de santuário cuja entrada estava vedada às arrumadeiras e a qualquer
pessoa estranha à família. Era uma sala circular com uma janela para o
nascente e outra para o poente (RS, p. 172).
A delimitação daquele espaço para o sonho torna-o também um espaço de
construção, de idealização:
Para a Tribo aquela sala possuía também um sentido mágico. O Tônio
adulto procurara transmitir à sua gente o segredo do menino com relação à
torre (...) Era ali que Tônio até hoje contava histórias aos filhos. Era ali que
ele escrevia os seus livros. Era ali que a família se reunia às vezes para
discutir seus problemas, não os relacionados com o aumento da conta
do verdureiro, como os que diziam respeito ao curso de Gil ou ao último
amor de Nora. Corria na Tribo uma lenda segundo a qual a Torre tinha a
virtude de resolver todas as dificuldades (RS, p. 172-173).
A Torre se torna um espaço onde construção e sonho andam de mãos dadas.
É nesse espaço que Tônio se deixa levar pela corrente, distanciado do burburinho
do mundo, embalado pelas possibilidades. É ali que a música assoma, dando à
esperança outras forças no sentido da construção:
De ordinário, vestido duma armadura feita dum metal que era uma liga de
fatalismo com uma invencível esperança, ele se enfurnava no seu trabalho,
perdia-se, esquecido e feliz, no mundo hipotético de seus romances, diluía-
se na doce rotina de sua casa e, com amigos, música e livros ia levando a
vida num milagroso equilíbrio interior que se fazia cada vez mais sólido à
medida que o tempo passava e a sua experiência enriquecia (RS, p. 177).
A presença da música na Torre reforça o sentido sonoro da esperança, e
confere a ela um papel primordial como parte da imaginação criadora.
6.3 Imagens musicais da esperança
A esperança se revela através de miríades de formas, entre elas a arte. Na
obra de Erico abundam imagens musicais da esperança, imagens que se apropriam
da música para reforçar a idéia de que o futuro é possível de uma forma diferente,
de que o presente pode ser melhor, mais ameno, menos cruel e desigual.
As imagens musicais da esperança perpassam toda a obra do escritor, dando
um sentido sonoro da existência como guia em momentos difíceis e também como
possibilidade de aprofundamento dos momentos felizes.
Não apenas Noel, mas também outros personagens de Caminhos cruzados
expressam seus desejos e esperanças de forma musical. Chinita paira em
atmosferas cinematográficas, e a trilha sonora de um filme imaginário a acompanha
nos movimentos, nos gestos ensaiados, nos olhares estudados. Em outros
personagens, a música também serve de trilha sonora, mas para atuações sociais:
Salu em suas conquistas, Dr. Armênio nas suas evoluções afetadas para conquistar
Vera; Vera nos seus esforços para conquistar Chinita. A trilha desses personagens
não é imaginada, mas concreta. Ela surge em determinados momentos da narrativa
(num baile, por exemplo) onde os personagens se encontram, interagem, e a música
é um elemento concreto daquele momento, através da presença de uma orquestra,
de músicos, de instrumentos, ou de um rádio, gramofone ou outro aparelho onde a
música possa ser reproduzida.
Mas o personagem de Caminhos cruzados, excetuando-se Noel, cujas
imagens musicais expressam de forma mais acentuada o desejo de esperança é
João Benévolo. João possui, devido à sua condição social, e também por sua
personalidade de características sonhadoras, uma imagem musical de enorme vigor
na forma como tenta escapar das condições em que se encontra, o que evidencia
também a fragilidade do personagem perante o mundo que o cerca, dada a sua falta
de capacidade de lidar com a situação. Ao se deparar com o desemprego, com as
contas que se acumulam à porta de casa, com o assédio à esposa por um antigo
namorado dela, João sabe fugir, e tenta se refugiar no sonho, único lugar onde
vislumbra dias melhores:
João Benévolo dobra a primeira esquina e sobe rumo da parte alta da
cidade. A fila de combustores se estende como um colar de luas. Lá no alto,
o Edifício Imperial se recorta contra o céu da noite: em cima dele o grande
letreiro luminoso brilha - num apaga e acende vermelho e azul – diz: FIQUE
RICO. LOTERIA FEDERAL. João Benévolo caminha e vai aos poucos
esquecendo Ponciano, a mulher, o seu drama. O letreiro colorido evocou-
lhe um conto das Mil e Uma Noites. Agora ele caminha por uma rua de
Bagdá. O perfil das mesquitas se desenha contra o céu oriental. Ele é
Aladim, que achou a lâmpada maravilhosa. Sim. Fique rico. Basta esfregar
a lâmpada, o gênio aparece. Eu quero um palácio, eu quero um reino, eu
quero muito ouro, escravos e odaliscas. João Benévolo agora é feliz. E
como não tem outro meio de exprimir o seu contentamento, põe-se a
assobiar com bravura o Carnaval de Veneza (CC, p. 76).
Muito além da alegria, o assobio é uma manifestação inequívoca daquilo que
poderia ser melhor. Na falta de qualquer possibilidade de realizar seus sonhos, a
melodia assobiada é a expressão musical da esperança.
6. 3.1 Um piano na guerra
Em Saga, romance que tem recebido um olhar pouco atento por parte da
crítica, um rico manancial que põe em evidencia as imagens musicais da
esperança. Bloch, citando Hölderlin, nos diz: “Onde há perigo, cresce também o que
salva” (PE, p. 113). Nos momentos extremos uma luz brilha trazendo a possibilidade
de um futuro melhor. “A esperança se projetou, em vez disso, justamente no
momento da morte, como orientada para a luz e a vida, como aquela que não cede a
última palavra ao fracasso” (PE, p. 113). A marcha dos voluntários rumo à frente de
batalha é uma marcha da esperança, com seus olhos voltados para um futuro
melhor, livre da tirania, do fascismo, em busca de igualdade social. Nesse contexto a
música expressa a esperança através de canções em várias línguas, cantadas pelos
componentes da Brigada Internacional.
A riqueza das descrições da caminhada para a guerra evoca sonhos e
questionamentos. Vasco repensa seus valores enquanto “cerca de duzentos
voluntários comem, falam, fumam e cantam” (S, p. 27). A música inevitavelmente
está presente nesse contexto que tenta se acercar da esperança. A presença
humanizante das canções reforça o sentido daquela guerra. Claro está que a
violência e a vacuidade de algumas ações serão questionadas por Vasco mais
tarde, mas nos momentos em que o conflito ainda o existe, em que a violência
ainda não disse a que veio, a música sustenta o que há de bom naquele ideal.
Quando um bombardeio acontece no meio da noite e vários voluntários se
encontram festejando em um bordel, a música é a única que permanece como
lembrança de que, apesar de tudo, todos são humanos:
De repente um homem surge à porta do salão e grita:
- Los aviones!.
Apagam-se imediatamente os lampiões e as velas. Mas o gramofone
continua a gemer. A valsa dos patinadores (...) Ouve-se um estrondo. Outro.
Mais outro. Tenho a impressão de que as bombas explodem dentro de meu
peito. A vitrola continua a encher a sala com a serena alegria dos
patinadores (S, p. 33).
Há, em Saga, momentos em que a música se constitui no último fio de
esperança, e a iminência da destruição de tudo que é reconhecível como humano
leva ao desespero, ao fim. Um desses momentos cruciais acontece com um dos
voluntários: o pianista polonês
49
. Um piano é encontrado intacto depois de um
ataque a uma casa. A reação de Vasco e seus companheiros ante aquela cena é
pungente:
49
Há diversas semelhanças entre esse episódio e o argumento do filme O pianista, de Roman
Polanski, produzido em 2002.
Entram outros homens. O polaco está parado à porta olhando para os
cadáveres com olhos vagos. Ergue a cabeça e de repente seu rosto ganha
uma expressão indescritível. Precipita-se através da sala e pára junto do
piano, ergue-lhe a tampa e fita longamente o teclado amarelento. Senta-se
na banqueta e deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas. Um acorde
dissonante que para os meus nervos soa como uma explosão. Mas de
súbito, inexplicavelmente, é o paraíso. Brota do piano uma melodia
inesperada e doce que inunda o ar. Flutua neste lusco-fusco, envolve os
móveis mutilados, os mortos e os vivos. A princípio cuido que tudo o
passe dum milagroso acaso e que de um momento para outro a melodia se
vai quebrar. Mas não, ela perdura, o seu desenho delicado se desdobra no
ar, simples, puro e transparente. A música parece contar uma história de
amor. Für Elise, de Beethoven. As notas pingam nas minhas feridas como
um bálsamo um estranho lsamo que é ao mesmo tempo sedativo e
pungente. Os outros homens se fecham como eu num mutismo
embasbacado, enquanto aquele macaco obscuro de mãos brutais ali fica
encurvado sobre o piano (S, p. 141).
A presença de Beethoven em meio à guerra, à destruição, além de contrapor-
se ao caráter heróico do capítulo, prenunciado pela Sinfonia Eroica, como vimos
anteriormente, antecipa o capítulo posterior, Sórdido Interlúdio. A mudança para
uma obra de Chopin desnuda a estupidez da guerra: a peça instrumental aguça os
sentidos dando espaço para a reflexão e a emoção. O desfile de obras e
compositores naquele cenário improvável soa como um veemente protesto musical:
Silêncio. As últimas notas se esvaem no ar. De novo o polaco começa a
tocar. Chopin. Suas mãos são como asas sobre o teclado. A melodia nos
fala dum mundo para nós perdido. Conta as delícias do céu para quem está
irremediavelmente condenado ao inferno. Tudo isso é comovente, belo e
absurdo. O crepúsculo... Os cadáveres... o tiroteio longe... as mãos
enormes do pianista... Agora é Bach. Algo de tumultuoso, uma cavalgada
para a distância, um arremesso, um desafio ao infinito e a Deus. O piano
vibra, a casa toda parece ficar tomada dum estremecimento. Tenho a
impressão de que os mortos vão despertar, quero gritar ao pianista que
pare para não nos matar... Perco o domínio dos nervos e desato a chorar
como uma criança. O polaco se põe de pé, fecha o piano com carinho,
atravessa a sala sombria, apanha o fuzil e sai sem dizer uma palavra (S, p.
142).
Mais tarde, quando convalesce de um ferimento num hospital de Barcelona,
Vasco relembra o episódio que o faz pensar em não mais voltar para a frente de
batalha. Nesse momento, mais uma vez é a música que desencadeia as
lembranças. Um dos feridos possui uma caixinha de música que contém na sua
melodia singela a possibilidade da esperança:
Numa outra noite, quando tudo está silencioso, ouço pingar
inesperadamente a melodia do velho minueto. sabemos que é a
caixinha-de-música de Alfonsito. A enfermeira de plantão aproxima-se da
cama do meu vizinho e num cochilo zangado repreende-o, ameaçando-o de
lhe arrebatar para sempre “o brinquedo”. Enroscado e quieto debaixo dos
cobertores, o velho fica muito calado, como uma criança obediente. A
música cessa. Mas continua na minha imaginação – agora é o Für Elise que
o polaco toca com suas mãos enormes no piano da quinta invadida. Vejo os
cadáveres no chão sangrento, e, sobre o fundo musical, desfilam-me na
memória as negras imagens desta guerra. Apodera-se de mim o horror de
voltar para a trincheira (S, p. 159).
Em meio à guerra, à destruição, à fome, a todo tipo de seqüelas produzidas
pela insanidade humana, a música, quando surge, possui uma força insuspeita.
Mesmo os menos habituados à sua presença se dobram ao peso dos sons em um
momento inesperado. A lembrança do piano em meio ao caos ressoa
inequivocamente como uma possibilidade de esperança num mundo tomado pela
escuridão.
6.3.2 O gramofone abandonado
A música ouvida num meio hostil também provoca outras sensações. Em
outra passagem de Saga, Vasco diz: “Acordo no meio da noite com a impressão de
que estou sendo vítima duma alucinação auditiva. Chega-me aos ouvidos a melodia
do Bolero de Ravel” (S, p. 172). A presença daquela melodia naquele lugar é
implausível:
Impossível... Esfrego os olhos, ergo-me ainda sonolento e começo a
procurar... o vida. Anda uma música no ar. Levanto-me. Perto de
mim outros camaradas dormem. Vejo luz numa das casamatas. É de lá que
vem a melodia. Aproximo-me dela. De entrada vejo quatro soldados
sentados ao redor duma mesa, em cima da qual está a funcionar um
gramofone portátil. Os homens escutam em silêncio. E aqui fico eu como
que parado na fronteira de dois mundos: o abrigo cheio de sons musicais e
a grande noite povoada de destroços e cadáveres (S, p. 173).
A “fronteira entre dois mundos” delimita os territórios do caos e da esperança.
O “abrigo cheio de sons musicais” proporciona uma sensação de aconchego, de
humanidade, em contraposição à “grande noite povoada de destroços e cadáveres”.
A música é o fator de separação entre esses dois mundos. Mas, ao mesmo tempo,
ela está inserida naquele contexto caótico, sendo indissociável dos acontecimentos:
“O Bolero soa tragicamente. Ele agora como que se associa à nossa vida de
imundície e pavor, fica para sempre manchado de sangue, lama e aflição” (S, p.
173).
Não por acaso a obra que surge é o Bolero de Ravel. Obra importante da
música do século XX, o Bolero foi composto em 1928 por encomenda de Madame
Rubinstein e consiste basicamente em uma peça para ballet em um único ato. O que
realmente torna o Bolero uma obra sui generis é que ele consiste na repetição
ininterrupta de um mesmo tema. A melodia, item fundamental da música anterior ao
século XX, se repete, havendo variação de outros parâmetros, notadamente a
dinâmica e os timbres. Enquanto Beethoven e centenas de outros compositores se
contentavam com o trabalho harmônico e melódico de uma obra, Ravel propõe a
repetição incessante da mesma melodia, porém com um riquíssimo trabalho
tímbrico, apresentado pela entrada de diferentes instrumentos para tocar a melodia
ou acompanhá-la, e uma dinâmica que cresce do pianissimo quase inaudível do
começo até o fortissimo do final da peça. Essa repetição melódica com um
crescendo gradativo produz uma tensão que se torna quase insustentável e explode
no acorde final da obra.
A melodia segue num crescendo enervante, e seu ritmo tem uma beleza
pressaga. O disco termina. No silêncio ouço o chiar da agulha a passar
pelas estrias sem música. Convidam-me para entrar. – De onde saiu isso?
pergunto, apontando para o gramofone. O Gambini que voltou anteontem
do hospital encontrou essa coisa numa casa abandonada explica-me um
dos homens. Tinha esse disco (...) Um dos soldados põe o gramofone
a funcionar. Outra vez o Bolero. No dia seguinte pela manhã torno a ouvir a
mesma melodia. Uma, duas, três, cinco vezes seguidas. As agulhas se
gastam. O gramofone está rouco (S, p. 173).
A “beleza pressaga” da música a integra naquele ambiente. O “crescendo
enervante” se deve à repetição incessante do mesmo tema. A obra expressa de
maneira tão cabal o momento vivido pelos personagens que é sinônimo tanto de
esperança como de desespero. As dissonâncias existentes naquela música a
princípio tão tranqüila, que surgem à medida que ela se desenvolve, tornam o Bolero
insuportável para alguns:
No meio das explosões ouço trechos da música de Ravel serena no meio
do caos, recusando-se com feroz orgulho a seguir o ritmo irregular dos
estrondos. Está ainda a rouquejar dentro do abrigo, parece um desafio, um
protesto dos homens enfurnados contra a fúria dos canhões. E depois que o
canhoneio termina, ouvimos ainda o Bolero, cada vez mais áspero e
obstinado. E a seu ritmo os feridos sofrem, gemem e morrem. Um catalão
cujos nervos os constantes bombardeios abalaram, precipita-se para dentro
da casamata, investe furioso contra o fonógrafo, agarra o disco e parte-o em
cacos. Mas o Bolero continua a soar na minha cabeça (S, p. 174).
A guerra, em seu processo desumanizante, destrói os signos do cotidiano,
mas os sons da humanidade que aguarda dias melhores continuam ecoando, ainda
que na memória dos homens. A lembrança intangível dos sons do Bolero repete, na
sua insistência, a melodia da esperança.
6.4 Os sons que o vento leva: a esperança no outro
Na obra de Erico Verissimo, os signos da esperança transparecem de forma
musical também n’O tempo e o vento. A música dos jesuítas em O continente
contém o germe da esperança num mundo melhor, mais justo e igualitário. A
construção de uma cultura sustentada pela religião e pela arte no meio do continente
inexplorado, longe duma Europa tomada pela cobiça e imersa nas conquistas
coloniais trai o signo da esperança nos coros indígenas do Novo Mundo, nos
instrumentos fabricados por mãos que expressavam a habilidade da construção
sutil, e talvez da (re)construção de sonhos que em outros lugares parecia
impossível.
Mais tarde, desfeitas as reduções jesuíticas e dispersos seus habitantes,
Pedro Missioneiro tenta encontrar um rumo num continente que não é o seu. O
sopro de sua flauta contém algo quase indefinível, uma mescla de possibilidade com
resignação: a esperança da conquista de Ana, mas também a melancolia do
irremediável. O sopro de Pedro reflete as perdas pelas quais passou: seu povo, as
pessoas que lhe eram próximas, o seio da cultura em que se desenvolveu. Talvez
por isso a tristeza intangível da melodia que toca, dispersa nos ventos que cruzam a
fazenda do pai de Ana. A música se lança na direção dela, na possibilidade de um
tempo diferente, da recuperação da família, da casa e do povo perdidos. Mas sua
melancolia também reflete a sensação da impossibilidade, a antevisão do que não
será, senão através de seu filho. A esperança de Pedro é depositada em cada nota
tocada, soprada na direção do futuro. O sopro dos lábios de Pedro, os ventos. A
música, uma arte temporal. Mais tarde, em dias de vento, Ana relembra Pedro, com
sua inalienável ligação musical, que a jogou na direção do seu tempo presente, e
que a fez resistir e encontrar um novo lugar para criar o filho de ambos e tornar reais
os sonhos contidos na melodia de Pedro.
Criar o filho numa cidade que nasce, a dura lida dos primeiros tempos, a vida
que não se torna necessariamente mais tranqüila. Nessa cidade onde, anos depois,
o Capitão Rodrigo, um forasteiro, um estranho como Pedro Missioneiro (embora de
outra estirpe), deposita no seu canto e nos sons de seu violão a esperança de
romper barreiras sociais, de vencer o preconceito dos familiares de Bibiana Terra, de
se casar com ela. Cada um destes personagens traz em si a essência da esperança,
manifesta de forma musical. De certa maneira, a esperança é depositada sobre o
público. O dos Jesuítas: os indígenas; o de Pedro: Ana; o de Rodrigo: Bibiana. No
outro reside a esperança de mudança, de crescimento, de renovação do mundo. E
sobre esses que recebem, o público que ouve e é conquistado, repousa a escolha
do ir adiante, do renovar, do mudar. Num processo cíclico que começa a partir da
dualidade: padres-indios; Pedro-Ana; Rodrigo-Bibiana.
Essa dualidade se amplia no decorrer da narrativa, e se modifica. A
esperança de Luzia é de mudar Santa Fé, ou sair dali. A tentativa de conquistar
Bolívar (que também ocorre de forma musical, através dos sons de sua cítara) não a
ajuda a concretizar seus desígnios. Daí em diante, Luzia perde as esperanças e se
entrega ao seu destino: se deixar ficar num lugar que não sente seu.
Dr. Carl Winter, que compreende a angústia de Luzia, deposita suas
esperanças na música, em montar uma banda marcial em Santa Fé, em contribuir
com seu conhecimento para o desenvolvimento cultural da cidade. Winter compara o
passado com o presente, o que foram as Missões e projeta o futuro, ainda que
embrionário, ainda que humilde em suas pretensões iniciais. Winter concretiza suas
esperanças, monta sua banda, muda a paisagem musical da cidade, contribui com
sons ali nunca ouvidos, revela a possibilidade do sonho, do festivo, do que constrói.
Em O retrato, as esperanças musicais de Rodrigo são quase sempre
confusas e mal dirigidas. A arte o estimula, mas a esperança de mudança e
contribuição do sonho é ofuscada pela vivência de aventuras eróticas. A musa
sonora não resiste a eros e quando esta dualidade é posta à prova, no seu momento
de maior dúvida, intensidade e equívoco, Rodrigo encontra na música a união de
eros e tânatos: a esperança que se dilui na morte de Toni Weber.
6.5 Um violão na revolução
Em O arquipélago, encontramos Neco Rosa, amigo e fiel companheiro de
Rodrigo em tempos de paz e guerra, abandonado numa cama de hospital durante a
Revolução de 1923. A cidade de Santa Fé, tomada pela facção contrária, manda
múltiplos avisos para o barbeiro: apenas esperam que ele saia do hospital para
assassiná-lo.
Ao se deparar com aquela situação absurda, acossado pelas circunstâncias,
Neco se descobre em um beco sem saída, onde o desespero predomina:
Um dia, depois de verificar-lhe a temperatura e o pulso, Dante Camerino
sentou-se na cama e murmurou: - O Madruga sabe que foste tu quem
comandou o grupo que atacou a Intendência pela retaguarda. Anda dizendo
a Deus e todo o mundo que degolaste com tuas próprias mãos dois
prisioneiros provisórios...
Mentira! – vociferou Neco, soerguendo-se bruscamente como se lhe
tivessem aguilhoado as costas. É uma infâmia! Tu sabes que não sou
bandido.
Eu sei. Mas o Madruga anda furioso, não ignora que estás aqui e jurou te
pegar. “Aquele barbeiro canalha não me sai com vida do hospital.” É o que
vive dizendo (A2, p. 347).
Nesse momento, sem encontrar qualquer saída para a situação, e
pressentindo a presença da própria morte, ele se agarra à única réstia de esperança
que consegue vislumbrar:
Neco permaneceu em silêncio por um instante, fumando e olhando para as
pontas dos próprios pés, metidos nas meias de que Maria Valéria lhe
fizera.
- Preciso então ir pensando num jeito de fugir daqui...
Camerino ergueu-se.
- Não te preocupes. Enquanto continuares neste hospital estás garantido.
Uma patrulha do Exército se mantém de guarda aí fora, dia e noite.
Neco olhava ainda, taciturno, para a ponta dos s. Foi com voz grave que
tornou a falar:
- Vou te pedir um favor. Não me leves a mal.
- Que é?
- Pelo amor de Deus, me arranja um violão! (A2, p. 347).
Uma pintura do século XVIII, de artista anônimo, nos mostra um músico
tocando alaúde preso em uma masmorra, com os pés trancafiados, tendo ao fundo
as grades da janela de um cubículo, sua cela.
Figura 6 - Anônimo, séc. XVIII: alaudista preso.
Em meio ao maior desespero, a música pode trazer um consolo que não se
pode esperar encontrar em outro lugar. “Pensar significa transpor” (PE, p. 14), nos
diz Ernst Bloch. Transpor o sonho, transcender o presente, escapar às garras do
óbvio, da guerra, da violência. A necessidade impõe ao homem novas direções, que
se tornam novas possibilidades. “Em primeiro lugar, todo ser humano, na medida em
que almeja, vive do futuro: o que passou vem mais tarde, e o presente autêntico
praticamente ainda o está aí” (PE, p. 14). E o amparo é buscado onde é possível,
naquilo que pode trazer um desafogo à angústia:
(...) um som é capaz de expressar melhor que qualquer cor ou palavra
também aquela transição em que não se sabe mais: aqui lamento ou
consolo (...) O caminho da música é mais longo que o da pintura, e mais
longo que o poético. Em decorrência, não é nem de longe tão objetiva como
as outras artes, ainda que mais intensamente relacionada a objetos que não
se situam no horizonte das sensações, mas da emoção (...) entre todas as
artes a música está mais direcionada para e em virtude de sua natureza
consoladora, é mais intensamente capaz de propiciar uma pré-aparência de
desaguamento (PE2, p. 379).
Como o alaudista na prisão, envolto na angústia produzida pelos dias
incertos, o pedido de Neco por um violão almeja salvá-lo da loucura; ter, como o
músico da pintura, a paciência e uma válvula para escapar através da música do
pesadelo que lhe foi imposto. O pedido de Neco ecoa de forma contundente o
sentido musical da esperança.
6.6 Os cânticos da beleza
No primeiro volume de Princípio esperança, Ernst Bloch nos fala
reiteradamente dos processos de construção da imagem, na tendência do ser
humano em tentar transcender sua condição, principalmente o tentar fazer-se mais
belo do que se é:
Nem todos aparentam ser algo. Mas a maioria quer chamar agradavelmente
a atenção e almeja isso. O jeito mais fácil, nesse caso, é também o mais
exterior. O pálido ganha cor como se estivesse em brasa. os que se dão
certos ares diante de outros, os que procuram sobressair-se (PE, p. 331).
Também a música torna mais belos aqueles que dela se apropriam. Quão
belo era Pedro? Quão belo era o Capitão Rodrigo? Quanto da beleza de Pedro
advinha do fato de ela se estender, sonoramente, pelos campos onde soava sua
flauta, e era preciso que Ana preenchesse as lacunas de sua memória com a
melodia que ressoava, bela e incessante. Ou pelas ruas de uma Santa nascente,
onde o vento carregava o som da voz e do violão do capitão, que como esse vento,
rebatia em paredes e se enrolava nas árvores, entrando pelas frestas da janela do
quarto de Bibiana, que tudo ouvia e imaginava, na falta da presença física imediata
do homem que intuía amar?
Nesse sentido, toda obra de Erico é cíclica, que retoma temas em
diferentes formas, se repetindo e se alterando, decalcando-os pelo tempo. Amaro
não quer fazer-se mais belo quando toca para Clarissa, na única forma de
comunicar um amor impossível? Vasco não quer tornar-se mais belo quando toma
lições de música no final de Saga, mais belo para si mesmo, um homem melhor,
que espera uma utopia que é a antítese do tempo em que vivia?
6.7 A esperança no exótico
Outro aspecto que se evidencia é a esperança manifesta através do sonho,
expressa através das viagens e no que Ernst Bloch chama de busca romântica pela
“bela terra estrangeira”:
Para divertir, toda viagem deve ser voluntária. Para isso, ela necessita de
uma situação que se deixa para trás com gosto, ao menos não de
vontade. O primeiro sentimento no carro ou no trem, quando finalmente dão
a partida, é decisivo para o que virá a ocorrer. Se a viagem se por
obrigação ou profissão, logo, não como feliz interrupção, o se trata de
uma viagem (PE, p. 360).
É exatamente esse espírito que move Vasco no início de Saga.
Inadvertidamente, na sua busca por uma luta que não é a sua, Vasco quer também
escapar da rotina de seus dias em Porto Alegre, colocando suas esperanças numa
luta que considera justa, mas também na fuga de seu meio:
Viver cada dia as mesmas coisas vai matando aos poucos. O prazer de
viajar ajuda bastante a renovar anseios. Ele o revigora a expectativa
antes da partida para a viagem, mas o faz também enquanto se desfruta a
vista. São excluídos os desejos que não tem mais jeito, que se tornaram
caducos, antiquados. É excluído também o claudicante que possivelmente é
próprio não do cotidiano sempre igual, mas também dos desejos
alimentados por um tempo demasiadamente longo (PE, p. 360).
A busca de Vasco, em que pese toda a sua boa intencionalidade referente à
luta por um ideal, guarda intacto o desejo por novas faces, novos mundos. E essa
“bela terra estrangeira” (PE, p. 360) se revela nas canções dos voluntários, na sua
Babel de línguas, cores e sons. A terra estranha tem sua sonoridade original. O
romantismo da situação é evidente: enquanto alguns lutam por um ideal seguro e
definido, muitos voluntários, com seus cantos peculiares, marcham para a luta sem
qualquer ponto ideológico firmado; fogem de suas terras e de si mesmos, buscam o
novo, independente de suas conseqüências. Esse momento inicial de Saga, que
coincide com os ímpetos heróicos da sinfonia de Beethoven, longe da tristeza e
desilusão do segundo movimento (Marcha Fúnebre), fornece inúmeros sinais
sonoros da esperança: entre cânticos e hinos, seguindo um impulso romântico e
idealista, a terra estranha se descortina como um painel de sonhos. O decorrer da
narrativa desmente esse impulso inicial, retirando da guerra a possibilidade da
esperança, mas o arcabouço romântico do livro permanece até o final.
6.8 Os gritos do silêncio
Em meio ao otimismo reinante na obra de Erico Verissimo, existem pontos
onde a esperança rareia, se torna tênue, um fio sonoro dentro do silêncio.
Em Noite (N), o Desconhecido e seus companheiros vagueiam por uma
cidade que é a antítese do aconchego: é irreconhecível, agressiva, ruidosa. Seus
companheiros são crápulas, aves noturnas que rapinam o que lhes passa perto,
aproveitando qualquer oportunidade para o roubo, a extorsão, a chantagem. O
Nanico guarda traços de sadismo, nas suas visitas a velórios, a hospitais, na sua
forma de lidar com as pessoas com quem se relaciona. O mundo que se apresenta é
sombrio, violento, sem alma. O clima de angústia que perpassa o livro nos faz
pensar no quadro O grito, do pintor expressionista Edvard Münch:
Figura 7 - Edvard Münch, O grito. Óleo e pastel sobre cartão, 1893.
No quadro, um homem caminha pela rua, atravessando uma ponte, enquanto
o mundo ao seu redor está envolto numa cor crepuscular, difusa entre o dia e a
noite. Imerso na atmosfera que parece queimá-lo, num céu que se apresenta em
tons sangüíneos, em meio à dor e ao absurdo, um homem desprende um grito. Em
Noite, o homem que anda pela cidade também sente a dor de um mundo que ele
não compreende, e por não compreendê-lo, sente-se imerso no desespero e na
angústia. A única voz de esperança na noite é emitida pelo homem da gaitinha, que
de vez em vez aparece na narrativa, tocando a sua melodia singela, que tem uma
força inusitada em meio à descrença que perpassa o livro: a melodia tocada no
instrumento consegue iluminar a noite e fazer com que o Desconhecido consiga
atravessá-la com uma tênue luz a guiá-lo. Perdida em meio à noite, o som da
gaitinha ecoa a voz da esperança:
A musiquinha parecia contar uma história. Era doce e nostálgica, tristonha
mas cheia de claras promessas, a um tempo pueril e grave - valsa de
serenata para a primeira namorada, valsa de circo de cavalinhos quando
nosso coração palpita de amor pela moça do trapézio, valsa dos realejos e
carrosséis da infância, valsa de bailes para sempre perdidos... (N, p. 34).
A serenidade da música da gaitinha se contrapõe ao ruído, sempre
assustador e disforme, e mesmo aos sons musicais destituídos daquele tom
enternecedor da melodia emitida pelo homem de branco, como as tentativas
entrecortadas e agressivas do Nanico de produzir música; e, principalmente, a
música se contrapõe ao silêncio, um silêncio feito de angústia, e que é tão
aterrorizador quanto os ruídos da cidade.
A imbricação da música da gaitinha com a esperança é uma constante em
Noite, e ela ocorre em meio à noite submersa na desesperança. “Não mais
esperança para ninguém” (N. p. 43), diz um dos companheiros de jornada do
Desconhecido em um velório. A música se contrapõe à morte, ao desespero,
oferecendo uma luz-guia na escuridão:
O Desconhecido franziu a testa, num esforço para identificar a melodia. Por
um instante sentiu que naquela música lhe falavam vozes familiares, estava
a explicação de tudo: parecia-lhe que a valsinha poderia livrá-lo dos
abismos vazios, levá-lo de volta para casa, libertá-lo da morte e seus
medonhos habitantes (N. p. 43).
A música do homem de branco ressoa através da noite como se fosse a
lembrança tanto de um passado feliz como de esperança de um futuro melhor.
6.9 Os sons da mudança
Em O senhor embaixador, as esperanças de diversos personagens se
depositam na mudança, na revolução na República do Sacramento. Assim,
Leonardo Gris, no seu retiro, sonha uma revolução para o seu país. Também o
sonho de mudança está envolto em música, muito embora a perspectiva da luta
armada e da violência cause um conflito no velho professor. Por um lado, tocar
violoncelo, ouvir os mestres barrocos; por outro, a luta que o espera, um sonho que
possui uma face difícil de ser aceita, embora, segundo suas conclusões, necessária.
Pablo Ortega herda essas concepções, e também ele, como um fiel discípulo, sente
as mesmas inclinações: de um lado a possibilidade de ouvir música, sonhar o
mundo em paz; por outro, a necessidade da ação. Se a música traz a esperança, o
silêncio evoca os gritos dos desvalidos, e o conflito entre ambos, som e silêncio, é o
que leva Leonardo e Pablo a uma posição combativa.
Em O prisioneiro, não sons de esperança para os personagens que
transitam no local onde ocorre o conflito. Todos vivem em meio aos ruídos do dia-a-
dia de uma guerra, numa rotina opressiva que os faz perceber a prisão que suas
vidas encerram. Para o Tenente, os únicos momentos em que a música aponta na
direção da esperança estão no passado, mesmo assim num momento de extrema
opressão, quando relembra o cortejo fúnebre de seu pai. Os sons do jazz ouvidos no
funeral provocam-lhe inequívocos sinais de esperança. Ainda assim, em O
prisioneiro sons que lembram a mudança dos tempos. As guitarras de uma banda de
rock, através de gravações, soam na cidade, e embora os seus sons sejam
insuportáveis para o Tenente, eles evocam os protestos contra a guerra que
ocorrem no seu país natal. Talvez o que seja insuportável para ele, assim como para
diversos personagens do livro, é ouvir algo contra a engrenagem da qual fazem
parte, já que escapar dela parece algo impossível.
Na obra de Erico Verissimo, nota-se que os espaços da esperança se tornam
cada vez mais estreitos à medida que o tempo passa e o escritor amadurece. O
otimismo crítico das primeiras obras cede lugar a uma crítica mais contundente, e
embora ele não deixe de revelar sua crença na possibilidade de mudanças, um
nítido avanço do pessimismo. Por isso mesmo, os sinais sonoros da esperança se
tornam mais veementes quando aparecem.
6.10 A fé basilar
Apesar da crítica mais acirrada à sociedade, de que esse acirramento revele
certo pessimismo e de uma maior seletividade nas obras finais, o uso da música
como um sinal de vida, de esperança no futuro, de fé, é uma das características que
permanecem ao longo da carreira literária de Erico Verissimo. Muitos pontos de sua
obra apontam inequivocamente para essa direção. Mesmo que a situação esteja
deteriorada, em algum lugar toca a música da esperança, seja ela no passado ou
apenas na memória. A inabalável nas possibilidades do futuro ecoa as palavras
de Ernst Bloch: “Os homens, assim como o mundo, carregam dentro de si a
quantidade suficiente de futuro bom; nenhum plano é propriamente bom se não
contiver essa fé basilar” (BLOCH, 2005, p. 433).
A expressão de humanidade contida nas imagens musicais é afirmada e
reafirmada continuamente e em seu último romance publicado, Incidente em
Antares, que se apresenta como uma revisão de muitos aspectos presentes em sua
trajetória, a música aparece como um elemento pungente em meio a um mundo em
dissolução.
A fé na música como um elemento que ilumina a escuridão sobrevive até
mesmo à morte de Menandro Olinda. Desfacelado pelos múltiplos fracassos de sua
vida, o pianista mantém a fé na música apesar de tudo, em que pese a ignorância e
o desprezo de seus conterrâneos.
Também o professor Martim Terra crê, embora numa linha de pensamento
próxima de Tônio Santiago, num ideário onde os homens possam desfrutar da arte
em paz e construir o futuro, engendrado a partir do trabalho e do sonho, com justiça
e criatividade. Ao criticar o caráter excessivamente “fascinado pela tecnologia” (IA, p.
144) numa conversa com seu discípulo Xisto sobre um ensaio escrito por ele, o
professor observa:
- De acordo, até certo ponto... Mas deixa também um lugarzinho na tua
Sociedade Nova para os humanistas. A Filosofia não é tão inútil como
parece. E o homem necessita de música, de poesia e – que diabo! – precisa
também aprender a usar bem o lazer que um dia a ciência, ajudada pela
técnica, lhe de proporcionar. Em suma, a técnica nos fornece os meios.
O humanismo nos orienta quanto aos fins (IA, p. 144).
Antares contém múltiplas facetas: a cidade do interior gaúcho, como Santa Fé
ou Jacarecanga, mas também um local onde a angústia se manifesta de forma
cabal, como na grande cidade de Noite. A insensibilidade dos seus habitantes, que
produz frutos tão maléficos em Menandro, engendra certo paralelismo com Noite.
Ali, o Desconhecido também está imerso numa situação de total rejeição, num
mundo em dissolução, onde apenas ele é capaz de reconhecer a música da
esperança. Como ele, Menandro deposita suas esperanças na música em um lugar
onde todos parecem insensíveis a quaisquer vozes que não sejam as suas próprias.
No final do romance, quando tudo parece se desfazer no descaso e no
esquecimento, ainda é a música que surge como portadora de uma metáfora de
esperança. Envolto em pensamentos, olhando o outro lado da margem do rio
Uruguai, pensando nos mortos e nos exilados, Pe. Pedro-Paulo encontra Alambique
a vagar pela cidade com o seu violão:
Um homenzinho aproximou-se dele, cambaleante, e saudou-o com voz
pastosa:
- Boa noite, padre. Feliz Ano Novo!
- O mesmo para você, amigo - respondeu Pedro-Paulo, reconhecendo o
Alambique, envolto na sua aura de cachaça e com um violão a tira-colo.
- Não repare, mas estou num porre medonho... Mal me agüento nas pernas.
- Por que não vai para casa? Se quer, eu o acompanho...
- Não, padre, muitas gracias. Vou esperar o nascer do dia. Quero fazer uma
serenata para o sol, que fiz tantas para a lua. E vai ser a última da minha
vida.
- Por que a última?
- Ora, com essas músicas loucas que andam por aí, não vale mais a pena
um vivente cantar as modinhas de antigamente. Ninguém mais aprecia. E
quer saber duma coisa? Vou enterrar o meu violão.
O Pe. Pedro-Paulo sorriu:
- Não faça isso. A gente não deve nunca enterrar as coisas que ama (IA, p.
480).
A dimensão musical da esperança, presente desde o início da obra de Erico
Verissimo, permanece ao longo de sua carreira como um farol sonoro a apontar a
direção em tempos obscuros. Através da música o ideário humanista se manifesta
em toda a sua plenitude tendo a esperança como guia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em seus mais de quarenta anos de vida literária Erico Verissimo criou uma
obra que tem sobrevivido à voragem do tempo e se afirmado como uma das mais
importantes da literatura brasileira. Apesar disso, a humildade com que o escritor
sempre tratou tanto sua posição como artífice das letras como a importância
atribuída a seus livros, terminou por obscurecer muitos aspectos relevantes de sua
obra.
Também a autocrítica severa, talvez como uma forma de defesa contra as
possíveis resenhas negativas que seus livros pudessem obter, gerou certa
acomodação dos críticos que se debruçaram sobre sua obra, que muitos
concordaram com o escritor em seus comentários, tanto nos seus aspectos positivos
quanto nos negativos. Isso gerou um costume poucas vezes rompido, como se a
maior parte do que merecia ser dito sobre certas obras houvesse sido feito pelo
próprio escritor.
Esses aspectos, somados a certa vontade da crítica do centro do país,
fizeram com que ltiplos elementos originais de sua obra deixassem de ser vistos
e estudados. Principalmente o que Erico possui de inovador dentro da literatura
brasileira, que é o uso bastante original da técnica do contraponto, numa
flexibilidade e domínio técnico que o tornam, apenas por esse prisma, digno de uma
posição que muitas vezes é ocupada, no Brasil, segundo o cânone tradicional de
nossa literatura, por escritores que não possuem uma obra com a estatura como a
de Erico Verissimo.
A partir da hipótese original deste estudo, de mapear a música na obra do
escritor, múltiplos caminhos se abrem ao pesquisador interessado no assunto. A
presença musical nos romances se estende aos livros de viagens e memórias,
aspecto ainda a ser estudado, assim como sua presença na literatura infantil e
infanto-juvenil.
Não seria plausível descrever todas as possibilidades que surgiram no
decorrer dos quase cinco anos em que este estudo foi escrito. Muitos romances
oferecem variadas possibilidades analíticas relacionadas à música, que por questão
de tempo e concisão, foram deixadas para trabalhos futuros. Um desses aspectos
está relacionado com a inserção da música no mundo do consumo, numa crítica que
transparece em diversas obras, mas que se torna mais contundente nos últimos
romances. Esse aspecto, previsto no plano original da tese, é outra possibilidade
que se abre para o futuro.
Também a presença do contraponto na obra do escritor merece um trabalho à
parte, onde se possa aprofundar a questão de seu uso em romances que não
apresentam a aplicação linear da técnica (como ocorre nos livros analisados neste
estudo). Nesses casos, como em Um lugar ao sol e O tempo e o vento, grande
desenvoltura na utilização do contraponto, o que leva à utilização alternada do
mesmo, em prol de uma maior liberdade da narrativa.
A coerência com que Erico Verissimo trabalhou, e também o relativo
recolhimento a um espaço de sombra em relação a escritores que foram saudados
como grandes promessas quando de seu surgimento, protegeram o escritor, mas
também acobertaram a variedade de possibilidades para as quais sua obra se abre,
e que o tempo e o trabalho da crítica têm encarregado de revelar.
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