Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE
Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento
Africano Recriado na Diáspora
VANDA MACHADO
Salvador, Ba
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
i
VANDA MACHADO
ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE
Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento
Africano Recriado na Diáspora
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal da
Bahia, como parte dos requisitos para obtenção do
grau de Doutora em Educação.
Professor Orientador: Dr. Augusto Dante Galeffi
Co-orientadora: Professora Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Salvador, Ba
2006
ads:
M149 Machado, Vanda.
Àqueles que têm na pele a cor da noite: ensinâncias e aprendências
com o pensamento africano recriado na diáspora / Vanda Machado. –
Salvador : V. Machado, 2006.
xi, 222f.
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Educação. Programa de Pós-graduação em Educação.
Orientador: Prof. Dante Augusto Galeffi.
Co-orientadora: Profa. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.
1. Crianças negras - Educação 2. Negros - Educação 3. Negros –
Brasil – Identidade ancestral. I. Galeffi, Dante Augusto II. Silva, Petronilha
Beatriz Gonçalves e III. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Educação IV. Título
CDD 379.81
ii
TERMO DE APROVAÇÃO
VANDA MACHADO
ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE
Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento Africano Recriado na
Diáspora
Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi – Orientador ________________________________
Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr. Eduardo David de Oliveira________________________________________
Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr. Vilson Caetano de Souza Junior______________
Universidade Estadual da Bahia
Prof. Dr. Roberval Marinho_______________________________________________
Universidade Católica de Brasília
Prof. Dr. Roberto Sidney Macedo__________________________________________
Universidade Federal da Bahia
Prof. Dr. Ubiratan Castro Araújo__________________________________________
Universidade Federal da Bahia
Universidade Estadual da Bahia
Salvador, 21 de dezembro de 2006
iii
inn memoriam
A Carlos Petrovich (Petrô) pelo companheirismo nesta
jornada, pela sabedoria na convivência e pela bonita
história de amor que tenho para contar.
A Luiz Felippe Serpa pelo encantamento acadêmico que
num momento de turbulência reconstruiu o sentido deste
meu fazer. Ambos têm em comum minha eterna
admiração
A Antonio e Idalina, ancestrais que me acolheram no calor
das suas entranhas, quando eu já trazia a marca e a
coragem de ter na pele a cor da noite.
iv
CELEBRANDO ENCONTROS
Ao longo desta jornada fui descobrindo muitas pedras que encantaram o caminho de
muitos encontros. Encontrei presenças e afetos que revitalizam a alma e me dão
inteireza para continuar a caminhada heurística numa existência que considero singular.
Força vital que me autoriza reinventar outras prosas, outras histórias, outros caminhos e
outras celebrações.
Assim celebro:
As meninas e os meninos a comunidade Afonjá pela força e razão primeira deste
exercício acadêmico.
Na pessoa de Mãe Stela, a comunidade Afonjá e toda ancestralidade que cultivaram
tudo que herdaram dos antigos reinos da África, nos honrando com a guarda desse
importante legado cultural, histórico, filosófico e religioso.
A querida preceptora Ebome Detinha de Xangô, que não economiza a sua sabedoria na
compreensão e na transmissão dos valores herdados para a continuidade da tradição em
nossa família ancestral.
Celebro meus filhos Ana Regina, Cláudio Sérgio, Lívia Fernanda e Elcio, minhas irmãs,
Perpetua, Hermínia, Luciene e Edna, e meus netos Sergio, Marquinhos, Flavia e Fábio
Andréa e Binho, Junior, Ludmila, Victor, Pedro e Julinho que me renovam na alegria de
viver mais.
Celebro a presença amiga do mestre Dante Augusto Galeffi, companheiro polifônico no
engendramento das subjetividades e na construção vigorosa de uma ciência eivada de
sensibilidade.
Celebro Roberval Marinho por sua prosa que nos aproxima da sabedoria ancestral.
Os queridos mestres Petronilha Silva e Ubiratan Castro pela disponibilidade e incentivo
para esta pesquisa.
O queridíssimo professor Roberto Macedo e o acolhimento do Grupo de Pesquisa em
Currículo Complexidade e Formação (FORMACCE e SINPRO Bahia)
v
Celebro o mestre Miguel Bordas, iniciador da minha interlocução acadêmica, e que
sempre confiou no meu trabalho.
Celebro a presença amiga de funcionários e funcionarias desta casa que nos partejam
facilitando o nosso desempenho e formação.
A Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC - 1998), que adotou o Projeto-
Político Irê Ayó, contribuindo para que a Escola Eugênia Ana dos Santos fosse
qualificada pelo MEC como Escola de Referência Nacional.
As educadoras da Escola Municipal Eugênia Ana dos Santos que se doaram
incondicionalmente para esta construção, muito especialmente Ana Paula Gonçalves e
Ana Lúcia, que incluíram em seus estudos monográficos a experiência vivenciada com
o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó.
A Escola de Teatro, na pessoa da professora Eliene Benício que me acolheu como
pesquisadora convidada do Núcleo de Estudos de Teatro Popular Técnica de Espetáculo
e Cultura Afro-brasileira (NET POP).
Celebro Márcio Meireles, que emprestou a sua poesia ter na pele a cor da noite para
minha homenagem ao teatro negro como a utopia realizável de Carlos Petrovich.
Os meus irmãos Pai Geraldo Jinan e Pai Reginaldo Toripê, que me fizeram mãe de seus
filhos gerados pela ancestralidade.
Os queridos amigos Álvaro Cardoso e Risomar, Patrícia Reliana e Sabrina Gledhill,
pelo cuidado com as minhas composições textuais.
Celebro, com muita alegria, as presenças encantadas de Ana Célia, Vilson Caetano,
Lindinalva, Augusto Conceição, Gabriel, Eduardo Carvalho, Grazia, Ana Paula, Vivian,
Neguinho do Samba e todo povo da Didá Escola de Música, Merry, Ana Rita Ferraz,
Denise Guerra, Gideon, Marco Antonio, Marmo, Miguel Almir, Lívia Castro, Rafael e
Tânia, Lílian e Marcio, Anativo, Marcos Machado, Merry, André Mustafá e Marilia.
Finalmente, celebro meus padrinhos Nicolau Barbosa e Iaiá Pinheiro, que pelo exemplo
me ensinaram a esperança.
vi
Ancestralidade
Ouça no vento
O soluço do arbusto:
É o sopro dos antepassados.
Nossos mostos não partiram.
Estão na densa sombra.
Os mortos não estão sobre a terra.
Estão na árvore que se agita,
Na madeira que geme,
Estão na água que flui,
Na água que dorme,
Estão na cabana, na multidão;
Os mortos não morreram...
Nossos mortos não partiram:
Estão no ventre da mulher
No vagido do bebê
E no tronco que queima.
Os nossos não estão sobre a terra:
Estão no fogo que se apaga,
Nas plantas que choram,
Na rocha que geme,
Estão na casa.
Nossos mortos não morreram
Birago Diop – poeta africano
vii
RESUMO
Esta tese tem como objetivo investigar possíveis relações entre histórias de vidas - o
pensamento africano recriado na diáspora, mais precisamente na comunidade de terreiro
do Ilê Axé Opo Afonjá em Salvador-Bahia e a formação de sujeitos autônomos e
coletivos. Esta é uma abordagem de inspiração fenomenológica que atraiu uma escrita
etnográfica, dada a compreensão da importância de atores e interlocutores que construíram
comigo este trabalho. Trata-se de um intertexto polifônico, que não se pretende normativo,
muito menos prescritivo. Neste contexto, estamos considerando aspectos essenciais do
pensamento africano vivenciados tanto na comunidade do terreiro, como no que se
esparrama na sociedade que os contém numa existência fluida e dinâmica. Estes são
aspectos importantes de onde é possível florescer a base de uma educação rizomática para
a criança brasileira. O que se pretende de fato é a busca de uma realidade não fragmentada
pela necessidade nem sempre mítica, de ligar todas as coisas entre si, e o cotidiano na sua
instabilidade reestruturante. A realização deste estudo com o pensamento africano no
Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó enquanto construção coletiva, em sua complexidade,
articula a tradição, vivências pedagógicas e reflexões que se definem como estratégia
política que desvela uma realidade cotidiana silenciada embora criadora e humanizante.
Vivemos, portanto, a perspectiva de en-sinamentos de um mundo que continua sendo
construído onde o contexto humano se surpreende desvelando muito de si mesmo e de
uma história que está sendo escrita repleta de conflitos e subversão. Trata-se de exercitar o
pensamento sobre a questão, revisitando outros paradigmas para uma efetiva interferência
curricular. Inicialmente, nos apoiamos na metodologia da escuta em diferentes
comunidades negras, buscando sentir o universo cultural, afetivo imaginário,
comportamentos, sistema de conceitos, valores e crenças que contribuem para a
compreensão contextualizada da cultura e de aspectos da história do povo brasileiro. Nesta
perspectiva, pode-se perceber a idéia de categorias fundamentais a serem consideradas na
complexidade desta construção, entre outras: memória, autonomia, cotidiano, tradição,
oralidade e convivência solidária. Tais categorias aguçam a consciência histórica, para a
universalização dos saberes e a distinção do singular e do individual na coletividade. A
interferência curricular tende a manter os estudantes negros próximos aos mananciais das
ciências, da filosofia, da literatura e das artes, revertendo os argumentos coisificantes que
nos foram ensinados, sem perder de vista a identidade ancestral que alarga a consciência e
autoriza a reinvenção da história.
Palavras-chave: Crianças negras; Educação; Identidade Ancestral; Pensamento africano;
História de vida.
viii
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to investigate the possible relationships between life stories
– African thinking recreated in the Diaspora, more precisely in the community of the Ilê
Axé Opo Afonjá Candomblé terreiro (temple, but literally “compound”) and the
formation of autonomous and collective subjects. This is a phenomenologically inspired
approach that led to an ethnographic treatment, given the understanding of the actors and
interlocutors who have built up this work along with me. It is a polyphonic intertext that is
not intended to be standardizing or prescriptive, but rather transcendent. In this context,
we are considering essential aspects of African thinking experienced both in the terreiro
community and the manner in which it spreads throughout society, which contains them in
a fluid, dynamic existence. These are important aspects of places where it is possible for a
rhizomatic basis for educating Brazilian children to flourish. The basic objective is to
unearth a reality that is neither fragmented by necessity nor always mythical; a way of
interconnecting everything; and the day-to-day realities of its restructuring instability.
Conducting this study of African thinking in the Irê Ayó Political-Pedagogical Project as a
collective construct in all its complexity brings together tradition, teaching experiences
and reflections that take shape as a political strategy that reveals a silenced, albeit creating
and humanizing day-to-day reality. Therefore we are experiencing the prospect of
education in a world that is still being built, in which the human context takes itself by
surprise, revealing much of itself; and of a story that is still being written, replete with
conflicts and subversion. This study deeply ponders these issues, revisiting other
paradigms in order to achieve an effective curricular interference. Initially, this study was
based on the method of listening in on different black communities, seeking to get a sense
of their cultural world, affective-imaginary dimension, behaviors, system of concepts,
values and beliefs that have contributed to the contextualized understanding of the culture
and aspects of the history of the Brazilian people. From this standpoint, one can perceive
the idea of the basic categories to be considered in the complexity of this construction,
including memory, autonomy, daily life, tradition, orality and compassionate coexistence,
among others. These categories heighten historical awareness of the universalization of
knowledge and the distinction of the singular and individual within the collective. This
interference in the curriculum keeps black students close to the sources of the sciences,
philosophy, literature and the arts while reversing the objectifying arguments we have
been taught, without losing sight of the ancestral identity that expands awareness and
authorizes the reinvention of history.
Key words: Black children; Education; Ancestral identity; African thing; Life Stories
ix
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 1
2. NA CAMINHADA HEURÍSTICA: diálogo e com-vivência com a
natureza ancestral ...................................................................................................... 9
2.1 O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO IRÊ AYÓ: um caminho de
alegria? ..................................................................................................................10
2.2 OUVINDO VOZES DE TODOS OS MUNDOS ................................................. 12
2.3 NA AFIRMAÇÃO DO SER: memórias e histórias, o vivido e o encarnado ....... 13
2.4 É PRECISO TER CORAGEM PRA TER NA PELA A COR DA NOITE ......... 15
2.5 NEM SAGRADO, NEM PROFANO: vivendo a vida sem fronteiras.................. 17
2.6 ANTONIO SANTEIRO: canto, danço escutando o mundo e celebrando
a vida, logo eu sou................................................................................................. 18
2.7 EDUCAR EN-SINANDO NA EXTRAORDINARIEDADE do cotidiano.......... 21
2.8 DESVELANDO O SAGRADO COM BONITEZA E ALEGRIA....................... 24
2.9 O CORTEJO: re-existência do poder real............................................................. 27
2.10 MITOS E OS RITUAIS: a chave que abre a memória de um povo ................... 31
2.11 RECONHECENDO AS MÚLTIPLAS VERDADES ........................................ 34
2.12 A ÁGUA VIDA E MÃE DA INTELIGÊNCIA PLANETÁRIA ....................... 37
2.12.1 Água: força que caminha em nós e no mundo.............................................. 37
2.13 O SAGRADO É REAL POR EXCELÊNCIA.................................................... 40
2.14 JOGANDO O JOGO NA VIDA ......................................................................... 43
2.15 JOGANDO O JOGO DE EXISTIR COMO NAVIO GUERREIRO ................. 47
2.16 SABER DE SI: mitologia como princípio para iniciação na vida ...................... 49
2.17 CAMINHOS ABERTOS: ou tecendo ensinâncias e aprendências..................... 51
2.17.1 Outras aprendências...................................................................................... 55
3. AÇÃO, PESQUISA, ITINERRÂNCIA, APRENDÊNCIAS
E ESCRITA............................................................................................................... 58
3.1 DE VOLTA AO PRESENTE DO PASSADO ..................................................... 60
x
3.2 EU SOU COMO NÓS SOMOS............................................................................ 62
3.3 TEM QUE TROCAR A MÚSICA E O TOM DA MÚSICA............................... 64
3.4 TRABALHO EXPLORATÓRIO OU VIVÊNCIA COMUNITÁRIA? ............... 66
3.5 SABEDORIA E SABERES: um jeito próprio de ser-no-mundo.......................... 68
3.6 O MUNDO COMO GEOGRAFIA SAGRADA .................................................. 69
3.7 EU ME VEJO, EU ME SINTO, EU ME ESCUTO E NÓS nos construímos ...... 72
3.8 QUEM CONTA UM CONTO PRESERVA A PALAVRA E TRADIÇÃO........ 73
3.9 APRENDENDO A APRENDER O CORPO CULTURAL ................................. 76
3.10 ABRINDO CAMINHOS NO MUNDO, CANTANDO E DANÇANDO.......... 78
3.11 ÁGUA SILENCIOSA E INSONDÁVEL: água início da vida .......................... 84
3.12 O PENSAMENTO AFRICANO COMO FUNDANTE PARA A
FORMAÇÃO E CAMINHADA HEURÍSTICA................................................ 86
3.13 NO DIA EM QUE EU ME VI NASCENDO ..................................................... 87
3.14 O DIA DO NOME: de volta à ancestralidade..................................................... 89
3.15 EBOME DETINHA: en-sinando e desvelando a alma do outro......................... 92
3.16 A ESCUTA DA COMUNIDADE: dialogando com as falas e o não dito.......... 97
4. PROSA DE NAGÔ................................................................................................. 100
4.1 COM A PALAVRA MÃE STELLA: ................................................................. 100
4.2 MISTÉRIO, FILOSOFIA, CIÊNCIA, ARTE E ALEGRIA............................... 101
4.3 SEXTA-FEIRA É DIA DE BRANCO ............................................................... 102
4.4 DESCAMINHOS DA ESCOLA: criando veredas e abrindo porteiras .............. 103
4.5 A FALA COM A COMUNIDADE AFONJÁ.................................................... 105
4.6 PROSA DE NAGÔ I........................................................................................... 110
4.6.1 O ferreiro da vida e dos caminhos ................................................................ 111
4.6.2 Outra história: ancestralidade, pensamento africano e formação de
seres autônomos e coletivos.......................................................................... 116
4.6.3 O dono de todos os caminhos ....................................................................... 119
4.6.4 A mãe da beleza e das artes........................................................................... 121
4.6.5 A mãe da vida e do ser adulto ....................................................................... 124
4.6.6 A dona dos ventos e do amor humano .......................................................... 125
4.7 SEM CENSURA................................................................................................. 128
4.8 PROSA DE NAGÔ II ......................................................................................... 131
xi
4.8.1 Ossain, o senhor das folhas da saúde, do ara e do orí.................................. 134
4.8.2 O provedor das comunidades: o caçador de uma flecha só......................... 136
4.8.3 O criador dos homens e portador da sabedoria............................................. 141
4.8.4 O senhor da justiça e arrimo da comunidade Afonjá .................................... 148
4.8.5 Assim no orun como no aiyê ........................................................................ 150
5. RODA DE CONVERSA: um exercício na prática de educação com o
pensamento africano recriado na comunidade Afonjá ....................................... 154
5.1 MÃE ANINHA QUERO MEUS FILHOS DE ANEL NO DEDO E
AOS PÉS DE XANGÔ ....................................................................................... 175
6. A ENCRUZILHADA É AQUI: e agora para onde vai o caminho? .................. 186
6.1 ENCRUZILHANDO VIDAS E CAMINHOS DE SABER ............................... 190
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 197
ANEXOS.......................................................................................................................207
1
1. INTRODUÇÃO
A pesquisa, ora apresentada, vincula-se ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal da Bahia. O objetivo é contar a história de uma
caminhada heurística percorrida à luz do pensamento africano recriado na diáspora, e
sua conseqüente escrita.
Parte desta construção retrata a minha auto-escuta e a interlocução das muitas
pessoas que existem em mim mesma. Trata-se de pessoas que na complexidade da suas
existências vivenciam todos os tempos e todas as minhas idades. Isto é o que nos ensina
Bâ (1982) quando, fundamentado em mitos cosmogônicos, aponta a iniciação como
desvelamento da relação da pessoa consigo mesma e no universo entre os vivos e os
ancestrais.
Entendendo desde modo, a iniciação de seres considerados filhos do universo na
sua totalidade passa pelo ensinamento de histórias para o cuidado com a natureza, no
sentido de como respeitar-lhe o equilíbrio e não perturbar as forças que a animam na sua
extraordinariedade, considerando que conhecemos apenas o aspecto do visível onde
estamos incluídos. Ainda nos diz o autor que, de todas as “histórias” a maior e a mais
significativa é a do próprio homem, simbiose de todas as Histórias na vida.
2
Das aprendências da iniciação, portanto, é que se cria a relação com o mundo
das forças que animam a vida e que pouco a pouco conduzirá este ser ao
autoconhecimento e a condição de guardião do mundo vivo. Esta perspectiva é o que
explica o simbolismo do corpo feito de uma parcela de tudo que pré-existiu antes dele
no universo e a complexidade do psiquismo.
Por analogia, consideramos este estudo como iniciático que não tem o mesmo
sentido do pensamento ocidental. Pensamos iniciação como educação na vida. Daí que
os primeiros momentos da formação das educadoras para a realização do Projeto
Político-Pedagógico Irê Ayó são considerados como um ato de fazer a cabeça, um
preparar-se para; não necessariamente relacionado com a religião ancestral. Mas que
não se afasta de aspectos da tradição, da espiritualidade e da consciência de estar com-
vivendo num mundo que é multirreferencial. Esta é, portanto, uma escrita que atende a
complexidade da consciência histórica que se funda em idéias de pessoas, de
civilizações, instituições e comunidades, incluindo a tradição oral que constitui o
pensamento africano recriado na diáspora.
Durante a semana da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, em
agosto de 2006, ouvi do Cheikh Mbake Diop, historiador de Senegal, quando lhe falei a
respeito da minha pesquisa: há duas formas de pensar o pensamento africano, uma é
nascer na África e a outra é deixar a África nascer em você. Eu não nasci na África
nem precisei partejar o pensamento africano nascendo dolorosamente em mim mesma.
Compreendo o pensamento africano que nasceu da minha condição de filha da diáspora,
portanto pensamento da minha familia biológica, da gente pobre e negra dos subúrbios,
e da convivência com a minha familia de santo na comunidade Afonjá. A esses espaços,
com-vivências acrescento a intensa comunicação com Omidire
1
, irmão mais velho da
família ancestral, encontrada do outro lado do Atlântico, mais precisamente em Osogbo,
terra de Oxum na atual Nigéria.
Das minhas experiências nasceu a idéia deste estudo para compreender o
pensamento africano como fundante na construção do Projeto Político-Pedagógico Irê
Ayó. O Irê Ayó tenciona outras possibilidades para formação, numa perspectiva de en-
sinar colocando o que en-sina e o aprendente na mesma condição de desvelamento de
caminhos de autonomia e solidariedade. Neste caso, considera-se a sina, o odu ou o
1
Felix Ayoh’OMIDIRE é professor de línguas e culturas modernas na Obafemi Awlowo University, Ilê-
Ife, Nigéria.Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Nós nos encontramos por ocasião da
7th Orisa World Conference, realizada no Institute of Cultural Studies Obafemi Awolowo University.
Nigéria.
3
caminho não como uma predição fatalista. Trata-se de fazer emergir todas as
possibilidades criadoras que podem ser alcançadas pelo sujeito na sua condição de
aprendente e ensinante.
O Irê Ayó foi concebido, então, pela escuta das múltiplas vozes do cotidiano da
comunidade Afonjá, pelas memórias, pelas vivências repetidas que se fundamentam em
experiências de pensamentos migrados de lugares onde somente o cognitivo não
alcança. Lugar onde a complexidade abraça realidades ampliadas e projetadas a partir
de condições que incluem a ancestralidade, o corpo, tempo e espaço.
O estudo consiste no desafio de considerar a minha própria história de vida.
História implicada com a comunidade a qual pertenço pelo compromisso de ser-sendo e
na radicalidade do projeto criado, desenvolvido e implantado na Escola Municipal
Eugênia Anna dos Santos, na comunidade de terreiro Ilê Axé Opo Afonjá, que
acompanhei desde 1997 até o dia 8 de fevereiro de 2003.
Escrever sobre experiências e vivências que se realizaram sem o propósito de se
tornar uma pesquisa requer uma redobrada atenção. Escrever sobre uma coleta de dados
de uma com-vivência comunitária que vem se consolidando há mais de vinte e dois anos
é, no mínimo, abissal. Tem sido extraordinário lidar com acontecimentos cotidianos e
suas causas moventes sem análise documental nem entrevista estruturadas ou
propositais. Como feita, aprendi a mergulhar nos mananciais mais fundos do
pensamento africano em nossa comunidade fugindo de qualquer pretensão do meu
julgamento em particular ou de criar fronteiras no complexo mapa dos saberes dos meus
interlocutores.
Considero esta escrita da maior importância e cuidado. O que não afasta a
possibilidade do congelamento da memória que atende uma dinâmica que vai além do
visível, do pensável e do dizível. Sempre que possível, o dito foi escrito integralmente.
São falas que contam histórias com o tempo verbal sempre no presente. Como afirma o
tradicionalista Bâ:
De maneira geral, a memória africana registra toda cena: o cenário, os
personagens, suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes. Todos os
detalhes possuem sua importância para a verdade do quadro. Ou narra o
acontecimento em sua integridade ou não se narra. Se lhe for solicitado
resumir uma passagem ele (o tradicionalista) responderá: Se não tens tempo
para ouvir-me, contarei um outro dia (BÂ, 1982, p. 215)
.
Para a escrita deste estudo, considerei a oralidade e a memória na sua riqueza
semântica e originante do pensamento africano recriado na diáspora. Assim, optei em
combinar a forma, o conteúdo e o texto etnográfico com tudo que escutei e vivenciei
4
nesses últimos vinte e três anos de convivência na comunidade que me acolheu como
filha.
Esta tem sido a tarefa mais difícil de ser realizada. É como olhar-se num
caleidoscópio e selecionar uma única forma dentre tantas outras que se movem e se
iluminam; que se aproximam e se afastam e se misturam. Formas que se repetem e
resistem emaranhando-se sem deixar-se aprisionar separadas do todo que a contém..
Parece que esta é uma imagem que pode ser aplicada ao pensamento africano quando se
reflete na palavra dos generalistas, daqueles que contam e recontam as histórias na vida.
Bâ (1982) nos aponta o sentido da pertinência das suas falas que se repetem sem receio,
intrincando várias áreas do conhecimento na construção de sua narrativa. O mesmo
autor nos diz ainda que:
Tudo isso pode parecer caótico para um espírito moderno, mas para os
tradicionalistas, se existe caos, é uma maneira das moléculas da água que se
mistura no mar para formar um todo vivo. Nesse mar eles se movimentam
com a facilidade de um peixe (BÂ, 1982, p
.216).
Este é o sentido da palavra que transmite o tradicional pensamento africano. Ao
longo desta escrita em vários momentos há afirmações e ou palavras que se repetem,
mas sempre com um sentido a mais. Esta é também a escrita do indizível, a escrita dos
silêncios. O silêncio que se torna visível através das obrigações rituais como princípios
de segredos e fundamentos da tradição. O silêncio é o portal da tradição oral: é preciso
olhar e escutar o silêncio antes da escrita. É a escrita da fala dos sentidos. Numa recente
exposição do João Reis
2
sobre a escrita, ele nos contou de uma escrita com sangue.
Escrita de um homem malê contando a sua dor, o seu lamento por ter sido escravizado.
Diante da escrita do sentimento, como relacionar a dor e o acontecimento que a gerou?
Como relacionar a escrita com os acontecimentos do presente do presente, do presente
do passado do presente do futuro? Como encontrar linhas de fuga para que sejam
inseridas outras histórias cujos registros se fazem imprescindíveis pelo próprio contexto
com o qual estamos dialogando?
Que contexto é este, quando a tradição de matriz africana passa a ser algo
desejável por outros segmentos da sociedade? Desejável, mais como algo que se adquire
e se impõe intromissões espúrias às suas vivências originantes. Esta é uma realidade
ambivalente que alinha e desalinha os princípios das comunidades de matriz cultural
2
João José Reis é professor na Universidade Federal da Bahia e autor da Rebelião escrava no Brasil:
história do levante Malê em 1835.
5
africana. Isto significa também que o lugar atende a uma certa dinâmica. E dinâmica
para ser real, há de ser não linear, portanto reconstrutiva e estruturante.
É verdade que o empenho desta pesquisa foi antes de tudo escutar, vivenciar e
compreender o pensamento africano recriado na diáspora. Isto implica na compreensão
dos acontecimentos cotidianos no terreiro e de como estes afetaram a mim mesma, a
formação das educadoras da Eugenia Anna, as crianças e a comunidade Afonjá. A
compreensão se estabeleceu como reflexão teórica para uma epistemologia
contemporânea orientando este estudo que me conduziu aos fundamentos da
etnopesquisa num encontro significativo com a abordagem autobiográfica, o
pensamento africano e sua abrangência na construção do Projeto Político Pedagógico
Irê Ayó sua realização e ressonâncias.
A construção do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó atendeu a pressuposição
de espaços escolares como possibilidades polilógicos, polissêmicos e polifônicas.
Escola lugar onde todas as vozes podem ser ouvidas onde tudo é juntado e tem
significado incluindo uma perspectiva de reconfigurar o processo educativo para a
perspectiva de sujeitos autônomos, coletivos e solidários a partir da cultura local. Na
construção da pesquisa ressalto a importância da fala de Galeffi quando diz que:
O modo de acesso ao conhecimento das estruturas que conformam
historicamente nossos modos de ser no mundo é aquele da vida cultural ativa.
Sem história e sem memória, o ser humano cai no esquecimento do seu
peculiar poder-saber. A vida espiritual dos povos se define pelos seus modos
de vida. A sabedoria humana tem sua gênese no modo de ser dos povos e
nações ao longo de suas histórias reais. O conhecimento humano só se
desenvolve pela acumulação de potência provinda da combustão do que é
vivo e vital na memória do tempo presente (GALEFFI, 2003, p.121)
.
Ao longo deste estudo, considerei a relevância de tudo que se vive na
comunidade como princípios fundantes da com-vivência do grupo. A partir da
compreensão de valores comuns, é possível predizer algumas reações características e
cambiantes entre os indivíduos, em grande parte de situações conhecidas. São atores e
autores que particularizam um modo de vida, que está sempre se desvelando diante dos
fundamentos orientadores da crença do lugar. Isto significa dizer que a vida natural
tende a se aproximar dos valores considerados sagrados, que provêm da idéia da força
cósmica organizadora da natureza e suas manifestações.
Considerei também a tradição e a ancestralidade como fontes extraordinárias de
quem en-sina. Na comunidade, o ato de educar passa pela experiência de preparar a
construção de uma outra geração e a construção de cada um em particular.
6
Ao invés de esquadrinhar um método para a pesquisa, a minha convivência no
terreiro é que foi indicando o caminho do método que acompanhou as possibilidades
deste estudo e sua conseqüente escrita. Escrita desafiante pela natureza da comunidade
que acumulou seus conhecimentos com o jeito próprio de aprender e de en-sinar
Aprende-se para en-sinar aos menos experientes. O ato de en-sinar é o que legitima a
maioridade e a iniciação dos membros da comunidade. Trata-se do saber vivido que não
se opõe ao saber intelectual. Ensina-se pelo emi, o sopro do encantamento da palavra e
do outro. Neste contexto é necessária a presença do outro que nos constrói. Eu preciso
do outro para en-sinar, para encantar, para ser colocado no seu caminho que é também o
meu caminho. Das aprendências do outro, depende a continuidade da tradição, da
redistribuição da força da espiritualidade gerada pela entrega de saberes necessários à
condição de ser e com-viver na comunidade.
Mulheres, homens, jovens e crianças foram meus interlocutores e ofereceram o
melhor das suas experiências nos caminhos da vida comunal onde a religião, a vida
social e a família não se separam. São pessoas que possuem um jeito de aprender, de
autoconhecer-se e de en-sinar. São pessoas que se entregaram ou nós nos entregamos
mutuamente numa relação distinta para o exercício da minha condição de ser, pertencer
e participar da comunidade Afonjá.
Dentre estas pessoas, destaco a Senhora Valdete Pimentel, que atende pelo
urukó
3
de Oba Gesim Ebome
4
Detinha ou simplesmente Dona Detinha de Xangô, orixá
dono da sua cabeça. Dona Detinha foi e continua sendo a interlocutora que me orientou
para os princípios míticos e comunitários que costuram as relações com as crianças, os
pais, a sociedade civil que muitas vezes tem se apresentado como um poder espúrio
contrariando necessidades reais da comunidade.
Na primeira parte do estudo, a fala de mim mesma revela o não simplificável
fenômeno do ser sendo na comunidade Afonjá. Um ser-sendo que se forma na vida.
Atentando para o alargamento deste estudo, levanto inquietações que de tão
complexas não seriam respondíveis numa única tese. Afinal, quem é este ser que
podemos ser? Mergulho no pensamento africano como possibilidade de uma
reconstrução para ensejar a continuidade geradora de identidades ancestrálicas.
Recolocando a memória do povo, de santo busco aflorar reminiscências celebrativas que
avivam a história e mantém a tradição juntando fragmentos e vivências dialógicas. Para
3
Nome ancestral que se recebe por ocasião da feitura.
4
Pessoa com mais de sete anos de feita.
7
tanto, junto-me a interlocutores de todos os tempos numa polifonia que se aventura a
errâncias com a perspectiva de outros caminhos de en-sinar.
Na segunda parte, a fala é do lugar-terreiro num emaranhado que se quer
dialógico com seu entorno e com a academia. Uma fala que inclui idéias e ação,
pesquisa e itinerrância, ensinâncias e aprendências, espiritualidade e o desafio da
escrita. Esta construção coletiva carrega a proposta de compreender aspectos do
pensamento africano num contexto histórico-cultural atualizante, sem substituir uma
meta narrativa por outra, mas considerando-as nas suas concomitâncias, independente
de tempo e espaço. Insisto na atenção para complexidade do cotidiano. Também no
esforço para compreender os princípios da tradição que estão no fato de existir uma
cadeia de outras lógicas, outros sentidos e significados entre as próprias energias dos
fenômenos míticos repetidos e nas pulsões da comunidade.
A terceira parte está dividida em dois momentos. O primeiro se apresenta como
parte da transcrição do texto teatral criado e trabalhado na primeira formação na Escola
Eugenia Anna, portanto no início da construção do Irê Ayó. O texto criado com Carlos
Petrovich foi apresentado pela primeira vez no dia 17 de junho de 1999 com a
participação de atores estudantes da Escola de Teatro da UFBA, com a finalidade da
inserção de educadores e educadoras no enredado pensamento africano recriado nas
comunidades negras, mais precisamente na comunidade Afonjá. Neste contexto habita o
sentido de fazer cabeças como alargamento para percepção do mundo como
reaprendências, como florescimento do que nasce na profundeza do ser e como um jeito
de aprender encantando a vida.
No segundo momento da terceira parte, apresento as falas da comunidade
incluindo crianças, pais, educadores, educadoras e as assessoras da Secretaria Municipal
de Educação e Cultura. São falas que se entrelaçam com o pensamento africano e o
cotidiano da comunidade gestando ações pedagógicas consubstanciadas na perspectiva
de um currículo de muitas lógicas e outros sentidos. Falas que ganham um significado
importante pela articulação do ato de en-sinar na existência concreta do ser.
Finalmente, algumas considerações conclusivas incluindo como relato algumas
ressonâncias do Irê Ayó como estudo que continua fazendo caminhos. Caminhos que se
entrecruzam configurados por subjetividades conscientes e criadoras da metáfora de
revitalização da cultura na educação e na vida.
8
A explosão não será hoje.
Ainda é muito cedo...
ou demasiadamente tarde.
Não trago verdades decisivas.
Laivos de genialidade
não atingem minha consciência.
Entretanto, com toda serenidade,
julgo necessário dizer certas coisas.
Estas coisas vou dizê-las, não gritá-las.
Pois há muito tempo
que o grito saiu de minha vida.
Há tanto tempo...
Por que escrever esta obra?
Ninguém me pediu.
Muito menos
aqueles a quem o livro se destina.
Pois, então?
.
..
(FANON 1983, p. 11)
9
2. NA CAMINHADA HEURÍSTICA:
diálogo e com-vivência com a natureza ancestral
Não é possível compreender uma comunidade sem pensar nas referências da
sociedade que a contêm e suas influências nem sempre benfazejas. Muitos foram os
fatores que influenciaram o meu modo de pensar e de me relacionar com pessoas desde
as crianças iguais a mim nos engenhos de açúcar e nas casas de farinha, até mais tarde
quando atuei nos subúrbios como educadora, catequista e militante. Como acadêmica,
sou o resultado da turbulência e do equilíbrio possível em todas as instâncias da vida
familiar, comunitária, profissional, religiosa e afetiva; entretanto, parafraseando o poeta
Neruda, confesso que vivi, e me autorizo a falar desta vida que ora me embala ou me
atira nas encruzilhadas de onde faço escolhas entre os múltiplos caminhos; portanto,
sem nenhuma certeza, felizmente. Escolha de caminhos que implica em atravessar
frestas, buscando brechas, criando espaços pelo mundo acatando a conspiração cósmica
que me faz chegar até aqui do jeito como eu sou.
De fato, a qualidade de mulher negra não facilitou em nada meu trânsito no
mundo nem mesmo entre negros e negras quando se colocam em situação de comando.
O poder branco no seu impulso desestabilizante invade os terreiros com-fundindo o
passado com o presente via de regra numa reminiscência subalternizante. Sobre o efeito
10
de uma alocação hierarquicamente desigual, a cultura negra, mais precisamente os
terreiros como territórios do sagrado podem ser olhados, admirados e consumidos como
mercadorias disponíveis para fácil aquisição ou numa troca sem volta por vezes
compensada pela solidariedade como efeito de poder.
Não rareiam entre nós arranjos sociais que têm como norma a consideração pela
presença branca. Esta é uma consideração que tem permitido avanços por vezes
ilegítimos sobre as comunidades negras, produzindo enredos onde seus membros podem
ser colocados diante de obstáculos nem sempre transponíveis. Ou, por vezes, sequer os
reconhece como tal, o que pode ser considerado ainda mais grave. A apropriação de
uma identidade ancestral coloca possíveis religiosos quase sempre numa condição de
superioridade no grupo que o acolheu.
Neste contexto, negros e negras são colocados à margem impedidos no caminho
da sustentação da intensidade de uma cultura que foi silenciada nos seus aspectos mais
importantes da autonomia e solidariedade. Em particular, ainda que paradoxalmente, o
fato de vivenciar alguns aspectos contraditórios aos princípios essenciais do pensamento
africano, sinto-me refazendo simultaneamente a atenção a tudo e a todos e o vigor para
continuar assumindo a identidade ancestral com a consciência da relação de dignidade
comigo mesma, com o grupo ao qual eu pertenço e com a sociedade. Concluo,
entretanto, que a minha formação enquanto educadora tem uma estreita relação com
todos os acontecimentos vivenciados, conforme a fala de Moita,
Ninguém se forma no vazio. Formar-se supõe troca, experiência, interações
sociais, aprendizagens, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como
cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade de sua história e,
sobretudo o modo singular como age, reage e interage com os seus contextos.
Um percurso de vida é assim um percurso de formação, no sentido em que é
um processo de formação (MOITA, 1995, p. 115).
2.1 O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO IRÊ AYÓ
5
: um
caminho de alegria?
Este é um estudo efetivado em grande parte por vivências comunitárias num
território que considero singular. Nesta perspectiva é que surge a necessidade de maior
zelo para que a sua realização não seja considerado apenas uma construção vivencial.
Os rituais vivenciados são autênticos e ultrapassam em muito, o já dito romance
5
Irê Ayó na língua iorubá significa Caminho de Alegria.
11
platônico, envolvendo o pensamento africano como um fenômeno remoto na
considerada linearidade defendida pela ortodoxa cosmovisão ocidental.
Os rumos tomados pelo pensamento africano na sociedade confirmam o dizer de
Querino (1938) quando assevera que o negro escravizado foi de fato o colonizador do
Brasil produzindo riquezas, associações precursoras das instituições bancárias e outras
referências significativas que estão na raiz do pensamento e no comportamento do povo
brasileiro. O autor afirma ainda que,
Uma vez removido para o lar doméstico, o escravo negro, de natureza
affectiva, e, no geral de boa índole e com a sua fidelidade a toda prova, a sua
inteligência, embora inculta, conquistava a estima dos seus senhores pelo seu
sincero devotamento, e sua dedicação muitas vezes até ao sacrifício. Foi no
lar do senhorio que o negro expandiu os mais nobres sentimentos de sua
alma, colaborando com o amor dos pais, na creação da tenra descendência de
seus amos e senhores, com o cultivo da obediência, do acatamento, do
respeito a velhice inspirando sympatia, e mesmo amor a todas as pessoas da
família. As mães negras eram thesouro de ternura para os senhores moços no
florescimento da familia dos seus senhores (QUERINO, 1938, p.158).
Neste sentido, chamo a atenção para a necessidade de refletir sobre o que nossas
crianças e jovens precisam saber na vida apoiados pelo pensamento africano e que afeta
os costumes na sociedade brasileira. Sobre a possibilidade deste diálogo, Galeffi
anuncia que,
No campo da cultura, são as novas idéias que movem a história. Mas, na
ausência de pessoas educadas para produzirem idéias, como é possível que
aconteçam transformações significativas em nossa história social? [...]
Decidimos que esta é uma cultura para todos, desde quando todos se tornem
únicos, mas não meros opositores. Apenas o indivíduo que chega a tornar-se
pessoa livre pode acolher como seu, aquilo que é de todos (GALEFFI, 2001,
p. 229- 230).
De fato, não se trata de uma nova idéia para a educação. O diálogo proposto e
defendido é sobre um pensamento milenar que dá sentido ao autoconhecimento como
uma forma de ser, de agregar-se e participar solidariamente. Daí, que pensar o processo
de educação de crianças do Opo Afonjá significou formar as educadoras dando atenção
especial à relação de um pensamento que herdamos na sua importância vital e criativa.
O africano é um contador de histórias por excelência. Contar histórias, portanto, é uma
ação fundamental para a tessitura de fatos e acontecimentos vivenciais, histórias de
vida, histórias interligadas e complementares.
Não foi difícil transformar a mim mesma e as educadoras da Eugênia Anna em
contadoras de histórias. As aulas deixaram de ser explicativas para serem narradas,
cantadas e dançadas. Contando histórias da comunidade, inventando cartas, narrativas e
poesia, enfeixando idéias, criando cortejos e dramatizando acontecimentos foi o
12
caminho para elaborar conhecimentos com nossas crianças. Estas mesmas transposições
funcionaram também como indicativos da formação e da aprendizagem das crianças.
Mestras aprendentes, implicadas criaram diálogos religando significados
culturais e históricos refletidos no cotidiano da comunidade, quebrando as paredes que
separam disciplinas a partir da contribuição da aplicação da Arte-educação
comunitária. Esta foi uma proposta desenvolvida em parceria com Carlos Petrovich. O
processo de en-sinar com linguagens das artes sugeriu escutar, olhar, dialogar, atualizar
e transformar acontecimentos comunitários em vivências pedagógicas. Contamos
também com a participação de Viga Gordilho,
6
que teve uma brilhante atuação no Irê
Ayó transformando com as crianças as histórias míticas do lugar em pinturas numa
mediação de re-encantacão na vida.
2.2 OUVINDO VOZES DE TODOS OS MUNDOS
Para o início do trabalho com o Irê Ayó na Escola Eugenia Anna se fazia
imprescindível conhecer o cotidiano da comunidade e sua relação com a história e a
cultura africana e afro-brasileira. A idéia era fazer valer desde o inicio, os princípios do
pensamento africano enquanto forma de aprender e ensinar. Muitas eram as indagações:
Como fazer para compartilhar outras histórias com as nossas educadoras? Seriam
palestras? Seminários? Como é que se aprende e ensina na comunidade? Olho fora da
escola e percebo vários grupos que conversam. Pessoas de idades diferentes que
conversam sobre os mais diversos assuntos da própria comunidade. Criei coragem, fui
me aproximando parcimoniosamente, quando ouvi uma voz no grupo: “Chegue
professora. A prosa aqui está boa. Chegue. É prosa de nagô. Está ouvindo?” Com
certeza nada melhor podia me acontecer naquela tarde. Não tive coragem de conversar,
mas escutei muito. Logo aprendi que ali se aprende e en-sina com muita prosa. É a fala
do hálito pura para ouvidos limpos. Assim nasceu a idéia do texto Prosa de Nagô que
trataremos adiante e que ressalta a importância de conhecer o lugar de onde se fala.
A minha convivência com a comunidade facilitou a elaboração do texto em que
a experiência da escuta corresponde ao próprio jeito de ser na comunidade que eu não
escolhi, mas que fui escolhida pela ancestralidade. Conforme a fala de Sodré,
A reinterpretação nagô sempre foi ao mesmo tempo ético-religiosa e política,
o que implica luta para instituir e fazer aceitar a realidade reinterpretada ou
6
Viga Gordilho é doutora .em artes pela Escola de Comunicação e Arte da UFBA.
13
traduzida. O aspecto ético-religioso trabalhava a origem e os princípios, a fim
de que se pudesse intuir politicamente os caminhos futuros. [...] Ao lado dos
fenômenos mítico-religiosos alinham-se pulsões da afirmação grupal,
reivindicações de reconhecimento identitário e práticas de poder (SODRÉ,
1999, p. 168-169).
Este é um legado real, o tesouro que continua alimentando o desejo de liberdade
que não pára de pulsar, que não se esgota, que não está nas palavras escolhidas. Os
caminhos do futuro são hoje os nossos caminhos. São entre-caminhos que nos dão
identidade, nos colocando numa ligação profunda entre o Orun e o Aiyê.
2.3 NA AFIRMAÇÃO DO SER: memórias e histórias, o vivido e o
encarnado
Reporto-me à primeira vez em que visitei uma comunidade de terreiro. O
convite foi de Ana Célia
7
, para uma festa no Ilê Axé Opo Afonjá. Era festa de Oxum.
Oxum é um orixá da água doce, mãe ancestral, princípio da concepção, liderança e da
solidariedade na família. Imagine só o impacto para quem viveu toda meninice ouvindo
os louvores aos anjos e santos e cantando o Adeste Fidelis em cada Natal em São Filipe,
lugar onde nasci.
Vivi uma infância interfecundada com os ritos da igreja católica, bailes pastoris,
cordões de carnaval e os dramas. De tempos em tempos Antonio Machado, ou Antonio
Santeiro, meu pai, juntava jovens, crianças e adultos para os seus dramas. Era uma
forma de fazer teatro que incluía dramatizações, números de dança, canto e muita
poesia. Ele tinha predileção acentuada por Castro Alves. Também fui agraciada com a
experiência de ser cuidada na casa grande da Fazenda Copioba por minha madrinha Iaiá
Pinheiro e meu padrinho Nicolau Barbosa, onde passei os melhores dias da minha
meninice. Lá vivi empanturrada com as folias da casa de farinha, as alegrias do engenho
de açúcar, os banhos no rio e os brinquedos compartilhados com as crianças, filhas dos
trabalhadores da fazenda.
Essas crianças foram minhas companheiras na primeira comunhão na capela da
fazenda. Minha irmã Lucy participou vestida de anjinho, numa oportunidade única. Das
lembranças da casa da fazenda me impressiona ainda hoje a presença da minha
madrinha trabalhando entre os negros e negras, na arriscada função de seivar a
mandioca, atividade que por qualquer desatenção poderia custar-lhe os dedos. De vez
7
Ana Célia da Silva é Doutora em Educação, militante do Movimento Negro Unificado (MNU) em
Salvador.
14
em quanto eu ia à escola só por curiosidade. Terminei aprendendo as primeiras letras
com uma senhora a quem tratávamos por Minha Mestra.
Tenho ainda nos meus ouvidos o eco estridente das falas do povo da roça na
feira que era em frente a minha casa. Os sinos da matriz, as crônicas da Ave Maria lidas
por meu pai no alto-falante da igreja. O mugido dos animais, o trotar dos cavalos na
calçada, o piano, as poesias e muitas rezas. Eu aprendi alguns cantos da igreja com o
meu pai. O Oficio de Nossa Senhora, as ladainhas e a reza de Santo Antonio aprendi
com minha mãe. E se mergulho mais profundamente no meu tempo vou me encontrar
diante de negras velhas da roça. Elas cuidavam das pessoas fazendo rezas fervorosas.
Elas sabiam como aliviar dores e sofrimentos despachando o quebranto, animando
corpos e fazendo fluir novas possibilidades de energia para a vida.
Vivi um tempo mítico quando os rituais da igreja se mesclavam e se imbricavam
com as rezas, as benzeduras e os bailes pastoris numa cumplicidade atemporal. Eu me
sentia muito orgulhosa, quando meu pai cantava a missa em latim. No entanto, eu estava
ali no Afonjá vivenciando a festa de cinqüenta anos de feitura
de Mãe Pinguinho. Um
tempo que se mostrava prenhe de novidades e que se construía entrelaçando o presente
com as minhas vivências de desde que me entendo por gente. Pessoas, cantos, danças,
cores e uma multiplicidade de sons enchiam o ambiente. Era uma lógica que pouco
compreendia e que me arremessava para todos os lados sujeita a movimentos
vivificantes que incitam o lúdico, o prazer, a alegria, a espiritualidade, o mitopoético,
numa conexão com todos os tempos.
Naquele momento, num emaranhado de lembranças, as imagens se misturavam
trazendo de volta o dia em que meu pai me tomou pela mão e fui entregue a dona
Augusta. A veneranda senhora, daquele dia em diante me conduziu como sua zelada no
Apostolado de Oração da Irmandade de Coração de Jesus. Isto significa que durante a
minha infância eu tinha quem cuidasse da confissão dos meus pecados e da comunhão
em cada primeira sexta-feira do mês. Em dias de festas, eu era levada para as
procissões.
Mas eu tinha um sonho bem guardado. Eu queria ser anjinho. Eu queria
participar da coroação de Nossa Senhora. A espera era pela a última noite do mês de
Maria. Esta seria uma noite maravilhosa. Dizendo de outro modo, podia ser uma noite
maravilhosa. Sonhava em ficar lá em cima do altar, vestida de anjo. Devia ser um
sensação maravilhosa. Eu sentia o movimento do meu corpo que se inclinava de um
lado para o outro recebendo e passando adiante a coroa da santa. Isso seria o
15
maravilhoso. Todo mês de Maria era a mesma expectativa. Será que vou ser escolhida?
Chegava cedo para o catecismo. Sentava na frente. Cantava forte. Acho que eu queria
que a santa me ouvisse. Ela só me olhava com os olhos piedosos que o meu pai mesmo
havia pintado. A santa continuava me olhando sempre. Era um olhar triste.
Ela nunca me deu esperança. No seu olhar não havia esperança que um dia eu
fosse um anjinho na coroação de Maria. Eu ficava lá embaixo. Eu via a coroa passar de
mão em mão de cada anjinho. Eu ficava ali e insistia. A insistência nem sempre foi a
minha melhor companheira. Um dia eu levei um galho de hortênsia azul bem bonito. Eu
pedi no quintal de dona Maria Borges. Fui pensando: é hoje. Hoje eu vou ser um
anjinho. Tudo que eu pude conseguir foi ficar em frente do altar recebendo as flores das
outras crianças e colocando no jarro. Era longe da santa. Não considerei.
2.4 É PRECISO TER CORAGEM PRA TER NA PELA A COR DA
NOITE
Ao longo da caminhada pela vida, aprendi, constatei e principalmente sinto que
as crianças negras carecem de um olhar diferenciado. Um olhar que contemple a sua
beleza do jeito como ela é. As crianças negras crescem tomando tapas na alma. Não
fomos rainha do milho. Não fomos rainha da primavera. Votávamos em rainhas que não
nos representavam: rainha do milho, rainha da primavera, rainha do grêmio. A eleita era
sempre uma menina que não tinha nenhuma obrigação de se incomodar com a nossa
agonia. Era uma situação naturalizada. Também eu nunca percebi que eu não podia ser
anjinho porque o meu cabelo não balançava.
No meu tempo de menina vivi uma intensa variação de cenários em transição
incluindo as feiras com muita gente da roça, romarias e procissões. Das procissões, a
que mais encantava era a de Corpus Christi, a festa da instituição da eucaristia. A
celebração de quando o Cristo se distribui como alimento para os homens. As portas das
casas eram enfeitadas com palmeirinhas. Na chegada da procissão diante da igreja
matriz, a multidão se ajoelhava e aplaudia o Ostensório com o Sacramento da Eucaristia
sob o pálio levado pelos homens importantes da cidade. Todos cantavam muito
contritos: Terra mater/ Tu foste a primeira onde a hóstia imortal se elevou/ Onde a cruz
gloriosa e altaneira... E o cântico glorioso seguia louvando a cruz que o colonizador fez
atravessar o atlântico e entregou para que os índios carregassem nos ombros. Mais tarde
em nome de Deus, o sinal e o peso da cruz foi divididos com negros e negras que, além
16
de criar riquezas para os países colonizadores , esculpiram santos, compuseram musicas
sacras, construíram igrejas como obras de arte abarrotadas de ouro.
No Afonjá o ciclo de festas é aberto exatamente no dia de Corpus Christi com a
festa de Oxossi. Mistérios envolvem a relação do sincretismo ou a dupla pertença do
nosso povo. Sousa Junior (2003, p. 142) cita um trecho de uma cantiga que diz: “Ode
arole lo bi ewa” que é um canto de Axexê, um canto de vida e morte. .Segundo o autor
"Oxossi, para alguns grupos africanos, significa o grande corpo ancestral. Corpo
resultado do deslocamento de matérias ancestrais fornecidas pelos orixás, entendidos
como princípios universais, e pelos antepassados, princípios clânicos”. Acredita-se que
a integração dessas partes que se soltam e se juntam continuam formando o ará – o
corpo. O corpo dos homens, a morada dos deuses conceito que se estende ao corpo
comunidade. Oxossi é o provedor, o pai da comunidade.
Até o tempo de Mãe Senhora, antes das obrigações para Oxossi, todos iam à
missa. Só depois de cumprido esse preceito é que acontecia o encontro com os
orixás.Mãe Stella rompeu com esta forma sincrética de celebração na comunidade.
Ainda criança, assisti, garbosamente, a muitas missas do coro da igreja, porque
era o meu pai quem, aos domingos, tocava o órgão e cantava a primeira missa do dia na
igreja matriz. Quando não era ele, era a professora Flora ou a dinha Rita, também
professora. Eles se revezavam neste sacro ofício. Em dia de festa dos padroeiros, São
Filipe e São Tiago, algumas vezes o povo da terra foi surpreendido pela força da
oratória do Padre Gaspar Sadok. Este era amigo pessoal de Antonio Machado enquanto
paroquiano participante e companheiro de teatro na Igreja de São Cosme e Damião, no
bairro da Liberdade, onde moramos por algum tempo.
Um belo momento, quando todos paravam extasiados para o sermão que se
derramava do púlpito sobre o povo da cidade e o povo da roça. Eles nem sempre
entendiam o sentido de tanta falação, mas valia pelo desempenho do padre negro que se
parecia com agente negra da roça. Ouvir Padre Sadok era bem diferente de ouvir os
missionários brancos, frades capuchinhos falando com um sotaque não sei de onde,
fazendo as grandes missões. Os frades capuchinhos chegavam de tempos em tempos
distribuindo santinhos, brincando com as crianças em torno do cruzeiro plantado na
porta da igreja. Eles batizavam, crismavam e casavam o povo da roça
compulsoriamente para que não continuassem a viver em pecado.
17
2.5 NEM SAGRADO, NEM PROFANO: vivendo a vida sem fronteiras
No Natal, Antonio Santeiro fazia uma espécie de teatro bíblico; e nunca faltou a
encenação do Filho Pródigo integrando o baile pastoril. Entretanto, quando se
aproximava o carnaval, lá estava ele devidamente autorizado para a criação de cordões e
pranchas de carnaval. Compunha músicas para o deus Dioniso, que fazia a alegria
ingênua daquela época.
Ele criou e dirigiu, enquanto viveu, um coral masculino que ensaiava em nossa
casa mesmo. Os homens eram na maioria negros que moravam nos arrebaldes. Todos
amigos de meu pai. Era bonito de ouvir aquelas vozes masculinas que vinham lá da sala
de jantar e nos alcançava na calçada, onde brincávamos de capitão ou três marias. Em
tempo de lua era bem melhor. Mas quando a lua se ausentava daquele cenário que
deixava de ser prateado, aproveitávamos a turva luz da lâmpada de um poste
privilegiadamente colocado em frente à casa do santeiro e festeiro do lugar. Era muita
gente que buscava os serviços do santeiro e da santeira. Gente que vinha de longe,
geralmente negros, pequenos proprietários, gente da roça, arrendeiros das fazendas
próximas.
Durante as festas da igreja, na Semana Santa, dona Idalina, a minha mãe não
descuidava do povo da roça. Desde cedo era reservado tachos de barro assoberbados
com moquecas, caruru e vatapá para os amigos e fregueses que chegavam para a
cerimônia do Beija-pés do Senhor. Eles eram rápidos no cumprimento da obrigação
ritual. Chegavam, passavam uma água nós pés, ceiavam e corriam para o beijo no
esquife do Nosso Senhor e na fita azul que pendia da cintura de Nossa Senhora das
Dores. Ambos eram colocados entre duas bandejas que não parava de trincar com a
caída das moedas sob o olhar cuidadoso do sacristão.
A ceia era semelhante ao almoço do axexê como realizamos nos terreiros de
origem nagô. O axexê se configura como um conjunto de obrigações rituais que
acontecem por ocasião do falecimento de um membro da comunidade. Durante a
obrigação todos se juntam para uma dança que dura sete noites seguidas oferecendo-se
moedas que são depositadas como oferta numa metade de uma cabaça exposta no meio
da sala. No dia seguinte, todos são convidados a sentar-se à mesa para a última refeição
com o egun, o espírito do falecido.
18
No almoço e ceia da Sexta-feira Santa repetimos a vivência do presente do
passado. Presente vivenciado, enquanto memória na sua complexidade dinâmica. A
julgar pela semelhança do acontecimento, é possível que estejamos vivenciando na
Semana Santa o ritual do Axexê de Jesus Cristo, reinventado por negras escravizadas no
exercício civilizatório de culto aos ancestrais, conforme o pensamento africano da
diáspora.
2.6 ANTONIO SANTEIRO: canto e danço escutando o mundo e
celebrando a vida, logo eu sou
.
Alguns jovens de São Filipe estudavam em colégios com internatos que
atendiam a aristocracia retardatária interiorana. Eram os filhos de fazendeiros
interlocutores prediletos de Antonio Santeiro. Os seus contemporâneos achavam uma
heresia que ele fosse influenciado pelas vigorosas reportagens da revista O Cruzeiro.
Um absurdo acreditar-se que o homem faria viagens à lua.
Com seu jeito de fazer festas e elaborar as vozes que lhe davam notícias de
outros mundos, Antonio Santeiro ia construindo e recriando uma identidade para si e
para aquele lugar de muitas rezas e muitas festas. Identidade que rompia a imagem do
negro subjugado ao conectar a sua subversão às verdades contraditórias do seu tempo.
Ele continua sendo o meu modelo de ser gente. Ele encarnava os santos, verdadeiras
relíquias de família dos negros da roça. A noite mergulhava noutros mundos de suas
fartas leituras para a época. Nunca deixou de ouvir a Voz do Brasil e o Repórter Esso.
Com os ouvidos desesperadamente colados ao rádio segurava as noticias para que não
se afastassem de todo com as ondas sonoras que por vezes truncavam as novidades que
vinham de longe. Os negros eram seus melhores clientes. Constantemente lhe davam
agrados colhidos da roça em troca de belas cartas de amor com pedidos de casamento
ou notícias para parentes distantes. Também eram os negros que compravam a sua
produção de santos moldados em gesso ou esculpidos em madeira. Trocavam santos
como diziam talvez como uma referência ao escambo. Santo não se compra. Pensavam
eles. Acredito.
Todo sábado era aquela procissão de negros e negras portando seus vistosos
guarda-sóis e sombrinhas. Que diferença fazia aquele adereço para quem trabalhava de
sol a sol no campo aberto? Qual o significado do guarda-sol só para caminhar pela feira,
aos sábados, sofrendo o desconforto dos calçados não raramente em pés trocados?
19
Estudos que abordam a estrutura de poder do povo iorubano discutem o guarda sol e o
seu valor simbólico. Atento para notícias que datam do século XIX, conforme descreve
Silva (1997, p.176) citando o Reverendo Samuel Johnson, diz que a questão do uso do
guarda-chuva merece atenção especial não no que diz respeito às maneiras e costumes,
mas na sua consideração como um objeto de toalete, símbolo do poder da herança
iorubana. Na dúvida indago: Qual seria o mito de origem daquele povo da roça? Que
valores teria o imaginário ou memória de sujeitos diversos de uma mesma raiz em
diferentes lugares? Em que medida é possível considerar estes símbolos e outros
aspectos da subjetividade das vivências negras como ponto de partida para uma reflexão
sobre identidades e memórias daquela gente onde eu me incluo?Não tenho respostas
para essas inquietações.
Quando falo de Antonio Machado ou Antonio Santeiro, falo de um quase
personagem, um autodidata que aprendeu a arte observando e imitando os mestres
locais. Não sei até quando ele estudou. Lembro que ela fazia comentários históricos
sobre o quarto centenário da cidade de Salvador. Sei também que ele veio a Salvador
para o centenário de Rui Barbosa. Falava inglês, razoavelmente. Lia o mundo com seus
conflitos e bonitezas. Nunca permitiu aprisionar-lhe a alma negra. Subvertendo a sua
condição de negro da cidade construiu o seu espaço com muita astúcia. Abriu o seu
próprio caminho mostrando-se e se com-fundindo com os espetáculos e cortejos que
criava.
Empenhava-se na realização da festa de São Filipe e São Tiago. Ocupava-se da
alegria da lavagem. Esse era o momento em que todo povo da roça e dos arrebaldes
chegava à cidade cantando, dançando, bebendo a cachaça dos barris que fazia a alegria
do povo de todos os becos. Aí acontecia a invasão das praças que só eram conhecidas de
passagem para a feira nos dias de sábado. Aqui e ali, o santeiro foi construindo e
legitimando a sua própria autorização como dono do seu destino, seguidor da sua sina.
Soube que às vezes o chamavam de negro metido a besta.. Eu nunca me
importei com esse desaforo, e até me soava como uma lisonja.. Ele era de fato um ator
social que se dava à extravagância de lidar tanto com o sagrado como com o profano
sem culpas. Decerto que ele não fazia esta distinção porque tudo começava na igreja.
Antonio Santeiro tinha a religiosidade e as linguagens das artes à flor da pele. Eu não
consegui distinguir qual a diferença que ele fazia entre os seus ternos de reis e os
cordões de carnaval. Como afrodescendente, ele fazia jus a esta fala de Santos quando
declara que,
20
O africano seria uma criatura essencialmente religiosa, não importa qual seja
a sua religião. Qualquer ato da vida do africano desde comer, ao vestir, de
passear, de fazer amor, em tudo põe religião e está conectado com o
sobrenatural com o transcendente (SANTOS, 1983, p. 25).
Em São Filipe, não me lembro de nenhum acontecimento que não passasse pela
igreja. Jocosos eram os versos cantados na porta da matriz numa romaria vinda de
Maragogipe homenageando um político que sempre ganhava as eleições: Terminada a
batalha cruenta/ Demos graças a Deus noite e dia/ João da Cruz o cristão foi eleito/
São Filipe sorriu de alegria. A cidade ainda hoje transborda de música e rezas e uma
política partidária insuportável.
Na casa havia uma sala muito especial, era a sala de visitas. Um pouco escura
pela escassa luz que entrava pelas vidraças da frente. As janelas estavam sempre
fechadas. Era um local pouco freqüentado a não ser por um amigo chamado Valfrido
Morais com quem meu pai estudava inglês. Com dinha Rita e professora Flora, ele
dividia as sonatas ao piano em momentos especiais. Na sala havia muitas revistas O
Cruzeiro, Manchete, Revista do Radio e Radiolândia. Livros, almanaques e outras
publicações de uma linha de auto-ajuda que tinha como fundamento o princípio: Hei de
vencer. Muitos livros de poesia, romances, um catecismo ilustrado e vidas de santos.
Das peças de teatro, lembro de uma em especial: Deus me chama, espetáculo encenado
sob a direção de Padre Sadok; Antonio Santeiro foi o personagem Gaspar. O
protagonista foi Costa Junior, nosso vizinho no bairro da Liberdade, um valoroso ator
de radio-novela na Rádio Sociedade da Bahia. No meio da sala, um piano coberto de
partituras que se espalhavam desordenadamente. Algumas de sua própria autoria. Uma
vitrola num canto da sala era ligada orgulhosamente aos domingos e dias de festas,
principalmente no Natal e São João. A vida foi sua melhor escola. Antonio Santeiro só
viveu trinta e cinco anos. Um câncer no estômago o levou para a ancestralidade. Eu
tinha onze anos. Herdei uma vigorosa história de confiança, alegria e cuidado com a
vida. Minha mãe o acompanhou cinco anos depois. Um dia tranqüilamente sentada no
seu quarto, o coração parou de bater. Isto foi no tempo em que o telefone era uma
raridade e a viagem para São Filipe durava dez horas. Eu viajei a noite toda. Quando
cheguei, o dia ainda estava clareando. Enterraram minha mãe antes de completar vinte e
quatro horas. Eu chorei de raiva. Naquele momento eu me tornei a mãe de minhas
quatro irmãs e de mim mesma.
Nessa fala de pessoas e de fatos, falo de um tempo que transcende o tempo que
escapa à mensuração mecânica. Tempo que se deixa tecer pela complexidade dos
21
acontecimentos que me formaram como mulher negra, profissional de uma educação
que se reconhece como quase utópica. Uma utopia realizável. Convenhamos. E se o
faço deste modo é por sentir a necessidade de me considerar uma educadora aprendente
a partir do embricamento com as convivências familiares, comunais e memórias,
incluindo o cotidiano onde aprendi a ser. Apreendo que o meu desempenho enquanto
educadora se articula pela implicação e o distanciamento, a afetividade e a
racionalidade, o simbólico e o imaginário, a mediação e o desafio, a autoformação e a
heteroformação, a ciência e a arte. A este respeito, Galeffi faz a seguinte reflexão,
Afinal quem é este ser que podemos ser? Entra aqui uma questão muito
inquietante, especialmente porque ela coloca o sentido do ser de uma forma
aprendente, isto é, não como conteúdo a ser assimilado pela memória, mas
como atitude a ser praticada por cada um em particular e por todos em suas
múltiplas relações com-outros. Toco sem duvida, em uma questão deveras
abissal: o que é o ser, enquanto é cada um em particular e todos em geral?
(GALEFFI, 2003, p. 80)
Falo de um ser educador aprendente considerando demandas essenciais e
comuns da sua errância e da condição humana que persegue um jeito de educar com a
consideração por outras vozes, outras lógicas, outros códigos, outros paradigmas. São
questões que se entrecruzam e dinamizam caminhos para a consciência de si mesmo,
para a consciência histórica e de um fazer ensinante de seres autônomos, solidários e
coletivos. Entendo que a adoção de um contorno dando relevância à pessoa como um
ser-sendo e a cultura do lugar cria uma outra idéia de educar. Significa ao mesmo tempo
uma abordagem sobre como compreendemos a nossa ação enquanto educadores
aprendentes e sobre o que somos numa certa forma de vida considerando uma outra
ética existencial. A cultura neste caso integra uma ação política de re-existência de
princípios e valores da tradição africana.
2.7 EDUCAR EN-SINANDO NA EXTRAORDINARIEDADE DO
COTIDIANO
Naquela festa de Oxum, no Afonjá, Mãe Pinguinho se mostrava com toda alegria
festejando as suas bodas. Eutropia Maria de Castro, que atendia pelo nome religioso de
Iya Oxum Funmixê, continua sendo lembrada por suas ações enérgicas com seus filhos.
Mãe e mestra ela não precisava ensinar, bastávamos ficar atentos ao que ela fazia, falava
ou cantava. Era assim que ela en-sinava. Mãe Pinguinho foi Iya Kekerê no Afonjá por
quase quarenta anos. A Iya Kekerê é uma espécie de segunda pessoa da Iyalorixá, ou
Mãe de Santo. Mãe Pinguinho, não deixava passar nada. Esta é uma afirmação que
22
ainda se pode ouvir na comunidade. Mãe Georgete, a nossa atual Iya Kekerê, aos 91
anos, com uma lucidez invejável. Ela mantém o mesmo cuidado, a mesma organização
de valores cujo significado e uso compartilhado conservam as marcas de códigos
específicos para a manutenção da tradição religiosa e de nossa essência negra. Neste
caso, parece que identidades são construídas e atendem à demanda de um chamado
espiritual, dentro de uma perspectiva do saber fazer o que está fazendo e por que es
fazendo.
O espaço do terreiro compreende um lugar atemporal e possui seus métodos de
aprender e de ensinar. Os nossos mais velhos aprenderam a fazer observando, imitando
e admirando os seus mais velhos nos seus saberes e fazeres. Como que obedecendo a
uma cadeia para a manutenção, continuidade e expansão da cultura do cabe-lhes ensinar
como aprenderam para que os mais novos possam dar continuidade à tradição. De fato,
o ato de en-sinar na comunidade de terreiro significa colocar o outro dentro do seu odu,
dentro da sua própria sina, do seu caminho do seu jeito de ser no mundo do jeito como
ele é. Entendemos que esta é uma singularidade que merece ser situada dentro do
pensamento de matriz africana. Estamos falando mais precisamente do pensamento
tradicional africano recriado nas comunidades de terreiro.
Entendemos este jeito de ensinar como um modelo de educação oportuna e
desveladora, porque a cada ensinamento corresponde a um desejo ou algo a ser
desvelado pela necessidade de aprender para ser o que se é sendo. Educar na vida. Esta
é a essência de uma forma de transmissão da sabedoria como patrimônio cultural e
religioso. É o que dá significado à vida cotidiana. No terreiro pela feitura nascemos
inseridos na sua cotidianidade.
A maioridade acontece quando adquirimos sabedoria e competência suficientes
na vida e na comunidade. Também são condições de maioridade autonomia e domínio
das relações de convivência com os mais novos e com os mais velhos. Esta forma
abrangente de en-sinar foi ainda o que me inspirou o Projeto Irê Ayó
8
implantado na
Escola Eugênia Anna dos Santos na comunidade Afonjá. Forma de educar que considera
8
Projeto político-pedagógico inspirado na dissertação de Mestrado de Vanda Machado editado em 1999.
23
sonhos, desejos e utopias. Considera também a necessidade de interligar todos os
acontecimentos vividos, todas as vivências cotidianas com a arte, as ciências, a filosofia
e a cultura.
Decerto que as vivências da comunidade estão lastreadas em princípios e valores
humanos que consideram a vida, o corpo e a ancestralidade na interdependência entre o
ser e tudo que pode ser considerado vida no planeta. Tudo que se move como uma teia
dinâmica em todas as direções. Inspirada nos princípios básicos que regem a
convivência na comunidade, encontramos outros paradigmas para se compreender a
educação como outra forma de en-sinar. Educação como possibilidade quando se
oportuniza aprender pela necessidade de ser, valendo-se dos acontecimentos cotidianos
considerados na sua extraordinariedade. Este é o sentido para que estejamos sempre
atentos a tudo que possa contribuir para a busca de ser antes de aprender para ter. Ser
numa comunidade de terreiro está associado também ao poder, aos postos, aos cargos
honoríficos. Aprender a ser, aprender a vida são valores básicos do povo de santo. A
cada tempo, o saber de cada tempo para ser, para cuidar de si, do outro e da vida. Cada
saber tem um efeito precípuo. No terreiro, pelas vivências, aprende-se ser-sendo
participando dos fazeres comunitários. Busca-se então compreender mais
profundamente ser. Esta é a condição para complementaridade entre os acontecimentos
e a condição do que se é essencialmente. No terreiro, aprende-se pela rememoração
vivenciada seguindo múltiplos códigos de comportamentos específicos para a vida
comunitária comprometida, inclusiva e solidária. Para Sodré,
A perspectiva africana do terreiro, ao contrário, não surgiu para excluir os
parceiros do jogo (brancos, mestiços, etc.) nem para rejeitar a paisagem local,
mas para permitir a prática de uma cosmovisão exilada. A cultura não se
fazia aí como efeito de demonstração, mas uma reconstrução vitalista para
ensejar uma continuidade geradora de identidade (SODRÉ, 1988, p. 54)
.
Para a continuidade geradora de uma identidade brasileira, temos a considerar
que a compreensão do mundo é bem maior do que a compreensão ocidental do mundo.
Nas comunidades de terreiro, o mundo é singular e plural, pelas vivências mitológicas.
Cada um vive um cotidiano só compreensível por aqueles que passaram pela
experiência da feitura. São pessoas que foram inseridas num sistema de vivências onde
prevalece uma única regra, uma exigência - a continuidade e a expansão do grupo pela
preparação para a iniciação de outros filhos, outros membros para a comunidade .Ainda
é Sodré que afirma:
As forças provém dessa continuidade. Se na sociedade ocidental moderna o
indivíduo é socialmente escolhido porque tem força, na comunidade de arché.
24
O indivíduo tem força porque é escolhido (por um Destino). A tradição
entendida como conjunto de saberes transmitido de uma geração para outra é
uma das vertentes do Arkhé. A herança cultural repassada, a tradição é uma
forma de comunicação no tempo e faz dela um pressuposto da consciência do
grupo e a fonte de obrigações originárias, que se reveste historicamente de
formas semelhantes a regras de solidariedade (SODRÉ, 1988, p. 95)
A herança cultural, o conjunto de saberes, o mito, o canto, a dança, as diversas
narrativas vivenciadas ampliam a percepção que ajuda a compreender a vida em sua
interdependência como um enredo que permite dar significados a todos os
acontecimentos do mundo em todos os tempos. Este é o sentido que traspassa da
história para a solidariedade.
2.8 DESVELANDO O SAGRADO COM BONITEZA E ALEGRIA
Tomando como referência Mãe Pinguinho, respeitável líder que Oxum, o Deus
criador já levou para perto Dele, tudo isto teria que ser passado pela fala. A fala carrega
o emi , a essência vital do eu espiritual de indivíduo para indivíduo, o mesmo que axé e
vida. Daí que cantar só de ouvido, nada de caderninho. Gravador seria uma ofensa ao
Ori, parte divina da cabeça. Os seus ensinamentos eram presenciais e continham a força
da sua palavra. Impossível esquecer o seu olhar forte. Como religiosa, ela se distinguia
pela visão que tinha de si mesma. Mestra e senhora do que dizia, se autorizou como
líder dos diversos coletivos que compõem a comunidade de terreiro. Cada orixá tem sua
casa, seus filhos, seus mitos e seus ritos que diferencia de outros grupos. A Iya Kekerê é
quem produz o trânsito entre os filhos e as casas acolhendo as singularidades. É a que
ouve todas as vozes, ampara e separa o que não é para dizer. Cuida para que a fala de
cada um possa re-ligar o ser às dimensões mais profundas e originárias.
Mãe Pinguinho era a própria autorização, orgulhava-se de ter sido feita por Mãe
Aninha, a fundadora da comunidade Afonjá. Ele desfrutou de um prestígio indiscutível,
assumindo de direito e de fato a sua identidade de Iyalodê, ou de mulher importante
líder de outras líderes como acontece ainda entre o povo iorubano. Mãe Pinguinho de
Oxum continua sendo uma referência emblemática de liderança no Opo Afonjá. Nem
mesmo a diabetes que lhe tirou o movimento das pernas, conseguiu tirar-lhe a força do
olhar que aprovava ou desaprovava quase sem palavras.
No meu entender, a festa das bodas de Mãe Pinguinho me religava com a minha
ancestralidade negra adormecida. Eu entendia muito pouco do que via. Ana Célia ia
falando ao meu ouvido sobre o que estava acontecendo na celebração. Ela se esforçava
25
para traduzir as múltiplas linguagens que desafiavam a minha percepção. Uma vivência
singular desafiava a compreensão de ações que se mostravam e se entrelaçavam como
uma teia envolvendo o presente e o passado como uma realidade contraditória de pólos
implicados e interdependentes. Penso que esta seria uma relação de integridade entre o
homem e o tempo e sua historicidade.
Serpa nos seus estudos sobre uma nova ciência, nos fala de:
[...] uma historicidade entendida como a determinação do espaço-tempo pela
distribuição de corpos materiais, pelo seu estado de movimento e pela
totalidade das relações não lineares de desenvolvimentos desiguais, onde
cada uma das relações contém a contradição (SERPA, 1991, p. 100).
Sendo assim, nos parece impossível a desconexão entre corpos, a festa,
ancestralidade, pessoas, história e a ação que se permite emergir num contexto de
muitas lógicas e muitos significados.
Eu vivi naquela festa de Oxum um momento de perplexidade e boniteza. O
ambiente do barracão, local destinado a festas públicas, por inteiro me seduzia. Era
bonito de se ver panos dourados que enfeitavam as paredes. Bandeirinhas no teto, flores,
muitas flores. O chão era um tapete de pitanga bem verdinho, que ia estalando e
perfumando com o pisar de homens, mulheres e crianças, que passavam deixando uma
marca, um cheiro, uma imagem inesquecível. O cheiro da pitanga tinha o mesmo cheiro
dos presépios de minha infância. Cheiro que se juntava a outros cheiros presentificando
acontecimentos escondidos na minha memória.
Como cheguei bem cedo, tive a oportunidade de ver a celebração desde o início.
Logo começou a chegar gente, muita gente. Chegaram visitantes ilustres de outros
terreiros. Gente dos diversos segmentos sociais, que se acomodava do melhor jeito para
participar da festa. Reparei atentamente na apreciada elegância das mulheres e dos
homens chegantes. Uma mulher alta e magra lembrava a minha madrinha Tatá, uma
parenta de meu pai que era rezadeira e madrinha de muitas crianças na cidade. A
madrinha Tatá não era feita, pelo menos que eu soubesse. Eu ainda quero compreender
por que se vestia como uma egbome, como as irmãs mais velhas da nossa religião? Ela
usava saia como eu uso no terreiro, usava ojá, cobrindo os cabelos e pano da costa
sobre o ombro esquerdo. Nunca a ouvi falar de orixás. Também não era possível. Quem
a escutaria com a devida consideração? A este respeito, diz Santos:
[...] as classes médias negras não tinham maiores contatos com isso. Ao
contrário, isso era escondido. Havia um silêncio. Mas quem guardava eram
os pobres, o povo não éramos nós, da classe média. Talvez daí venha a força,
porque a classe média não tem força. Então a força vem de baixo, e os
26
guardiões dessa coisa eram os pobres. Eles não tinham discurso, exceto este
(SANTOS, 1998, p. 11).
Qual seria a origem dessas mulheres que abriram caminhos para os filhos sem a
presença dos pais? Mulheres que beberam água de suas próprias barrigas, a exemplo
do mito de Ewá, Tatá e outras mulheres que conheci moradoras das ruas mais estreitas
do lugar. Elas pareciam com Ewá. A bela Ewá que perdida com seus filhos na floresta
escura faz sair água de sua barriga. Água que alimentou as crianças, a si mesma. Água
que se transformou num caudaloso rio, caminho de volta com seus filhos em direção à
aldeia, o seu lugar. Na casa de Tatá nunca ouvi falar de pai ou marido. No terreiro e nas
comunidades pobres também poucas mulheres têm maridos.
A festa de Oxum estava para começar. Mãe Pinguinho ainda não havia chegado,
mas já havia uma vibração indizível. Os homens iam chegando cerimoniosos e solenes
para a festa. Alguns portavam paletó e gravata. Outros vestiam belíssimas roupas
africanas que lhes davam um aspecto majestoso. Mas as mulheres feitas de santo, estas
superavam a beleza de todas as festas. Elas surgiam de todos os lados do terreiro, cada
uma trajada mais caprichosamente.
Vivi intensamente aquele momento como um sonho ritual encarnado pela fé,
alegria e beleza. A ancestralidade se fazia presente com a integração daquela gente
mantenedora e guardiã da religião e da cultura africanas reconstruída no Brasil.
Reconstrução que contou com o sentido da convivência de um conjunto de etnias numa
interação recíproca e complexa pela forma como foi produzido esse encontro no Novo
Mundo. Gente que se autorizava a presentificar vivências ancestrálicas
reterritorializadas. Vivências do que foi possível manter graças ao sentido agregador do
povo negro. Esta foi a possibilidade sustentada pela oralidade e adaptações exigidas
pelo contexto social e histórico. As tensões provocadas por um repertório de valores,
crenças, sentimentos entre as diversas etnias foi o que propiciou o surgimento de uma
nova identidade coletiva. Identidade com características próprias e estruturante do povo
afrodescendente. Uma identidade ancestrálica que continua sendo construída até por
conta da dinâmica dos diversos repertórios que ainda se entrelaçam e se imbricam como
uma rede que se alarga no espaço sagrado e revitalizado pelo sentido das tradições.
Eliade nos diz que;
A manifestação do sagrado no espaço tem por conseqüência, uma valência
cosmologica: toda hierofania espacial ou toda consagração de um espaço
equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão seria a seguinte: o
mundo deixa-se surpreender como Mundo, como Cosmos, na medida em que
se revela como mundo sagrado (ELIADE, 1956, p. 59)
.
27
O terreiro é um lugar singular e plural que contém o mundo sagrado. Na
reconstrução de um mundo ao mesmo tempo divino e comunal, vive-se
ritualisticamente, mitologicamente um entre-lugar onde afrodescendentes, via de regra
como um segmento excluído, reconstroem significados fundados em valores
rizomaticamente africanos. Valores que podem ser definidos como uma contribuição
coletiva para conquistar a capacidade de se autorizar. É uma autorização que se faz
tanto pela individualidade preservada como pelo sentido como se inscreve a
comunidade nas suas verdades estruturantes. Verdades que transcendem ao que poderia
ser compreendido como símbolos ou imaginário do grupo.
Dentre as ações simbólicas que me chamaram atenção naquele xirê
9
, uma se
destaca sobremaneira: era o jeito, a nobreza como homens e mulheres adentravam o
barracão. Tudo me parecia surpreendente. Cada um que chegava tinha uma postura
alinhada da cabeça aos pés. Entravam olhando firme para frente, e só muito
discretamente olhavam para os lados. Com postura impecável, acomodavam-se em suas
cadeiras dispostas no barracão num movimento quase circular.
- A festa vai começar, informou Ana Célia. Um leve sussurro fora do barracão era o
indicativo de que a homenageada estava chegando. Entraram os alabês, os ogans que
tocam os atabaques. Eles tomaram os seus lugares e davam alguns toques como que
afinando os instrumentos sagrados ou chamando as pessoas para o xirê. O ogan
10
Nezinho
11
, que também já foi chamado por Olorum, compenetrado sentou-se entre os
mais novos. Do seu lado acomodou-se o ogan Darinho e seu filho Bié
12
, de 6 anos de
idade. A orquestra sagrada estava formada.
2.9 O CORTEJO: re-existência do poder real
A assistência se levanta. Um toque especial do atabaque acompanha a entrada do
cortejo. Não era um toque de dança. Era um toque que anunciava a chegada de alguém
que se distingue que se autoriza ser a primeira. À frente do cortejo, caminhava Mãe
9
O mesmo que festa.
10
Titulo honorífico para homens. Pai na comunidade.
11
Nos terreiros é importante o nome civil ou o nome religioso pelo qual se é conhecido. Às vezes
ninguém reconhece o nome próprio da mesma pessoa.
12
Idem Bié, hoje um jovem músico percursionista e estudante de Comunicação na Ucsal..
28
Stella
13
, trazendo ao seu lado a filha de Oxum homenageada. A chegada daquelas
pessoas especiais no espaço sagrado eu entendi como uma experiência que retroage
sobre a história. O cortejo adentrava com toda singularidade de sua história. Dobraram
os atabaques e toda assistência se levanta respeitosamente. Decerto que não se tratava
de uma ressurreição do passado porque não havia passado. Tudo estava no presente. A
seguir, entraram os ogans ekedes,
14
filhos e filhas-de-santo, mais velhos. Sentadas lado
a lado, as duas líderes, duas Iyalodês, cada uma no seu posto.
O passado enquanto memória não resiste entra no agora e se presentifica no
tempo sagrado. Indago sobre esta percepção e recebo a resposta instigante de Bergson:
O que é, pra mim, o momento presente? É próprio do tempo decorrer; o
tempo já decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele
decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um
presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o
passado do futuro. Mas o presente real concreto, vivido, aquele a que me
refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente
uma duração. Onde, portanto se situa essa duração? Estará além do ponto
matemático que determino idealmente quando penso no instante presente?
Evidentemente está aquém e além do tempo que chamo “meu presente”
estende-se ao mesmo tempo sobre o meu passado e sobre o meu futuro
(BERGSON, 1999, P. 161).
Na eminência do acontecimento ritual, a África dos nossos ancestrais estava
reterritorializada na sua atemporalidade. Ali se fazia exposta a cosmovisão do povo de
santo, no seu repertório simbólico, político e cultural. Havia todo um aparato
reconstruído que se mostrava na ornamentação do barracão, na postura daquela gente
que sabia o quanto aquele momento importava para as suas vidas e para a sua condição
de ser, pertencer e participar da comunidade. A comunidade Afonjá orgulhosamente
contemplava as duas guardiãs da nossa religião e cultura. Elas estavam ali dignas e
altivas, representando a ancestralidade da comunidade.
Naquela noite vivi um tempo desafiante das leis da normalidade. Com o tempo,
a minha estranheza pela ignorância do ritual não me impedia de entender que eu estava
participando de uma festa do meu inconsciente e do avivamento da minha
ancestralidade negra. Eu estava participando de uma narrativa saída das profundezas da
memória do lugar e afetava o meu jeito de ser e estar naquele espaço sagrado. Todos os
meus sentidos estavam empanturrados do ambiente e de sua narrativa em forma da
festa, gestos, canto, cores e dança numa recriação de fatos e histórias ritualizadas que
não se perderam na travessia transcontinental.
13
Mãe Stella é Iyalorixá (Mãe de Santo) do Ilê Axé Opo Afonjá. Posto máximo numa comunidade
religiosa de origem nagô.
14
Cargo feminino análogo a Ogan.
29
Aquele momento significava, portanto, a entrada num mundo onde a
manifestação do sagrado tem como conseqüência uma valência territorial-cosmológica.
O território no caso tem inicio na porteira pela sua importância física e simbólica.
Silva
15
entende como territórios a:
A querência, o lugar de origem de nascimento de pessoas e culturas, reúnem
dimensões do entendimento, entre africanos, do processo de construção das
pessoas, situando-se aí as contribuições da educação escolar. Nesta busca de
raízes, são também identificadas em territórios afro-brasileiros,
sobrevivências de compreensões e atos da tradição africana reveladoras do
pensamento em educação desse povo (SILVA, 2000, p. 78).
O terreiro é um território gerado por uma teia cultural que se apresenta como um
conjunto indissociável pela identidade grupal e solidariedade da educação na vida. Isso
não afasta suas contradições e sérios conflitos que afetam e desequilibram as vivências
comunais. A porteira é o início de tudo. É onde tudo se transforma numa natureza
humanizante, onde tudo e todos se interrelacionam numa dinâmica como Mãe Stella
costuma repetir: todo aquele que entra por aquela porteira se torna imediatamente um
irmão. Uma comunidade de terreiro se organiza como um egbé,uma familia no seu
sentido mais amplo.
A comunidade, o egbé, no seu significado matricial, estava reunida para a festa
de Mãe Pinguinho. Um egbé de muitos filhos, pais, mães e muitos irmãos como a
familia ancestral trasladada na memória do povo negro na diáspora. Um zelo primoroso
pela preservação do sagrado se mostrava na festa de extrema beleza e sensualidade.
Toda sensibilidade humana desordenadamente seduzia meus sentidos. Importante a
minha identificação com o evento eivado de dinamicidade que me fazia dançar pulsando
meu corpo e minha alma vigorosamente desvelando outras marcas do meu sistema
perceptivo. Ali estava eu naquele lugar encharcada de novidades como receptáculo da
dinâmica de um movimento que me levou para aquele acontecimento presente. Como
nos diz Santos
16
,
Os eventos são todos presente. Eles acontecem em um dado instante, uma
fração de tempo que eles qualificam. Os eventos são, simultaneamente, a
matriz do tempo e do espaço [...]São eventos que criam o tempo, como
portadores da ação presente (SANTOS, 2002, p. 145).
Os eventos, como vivenciamos ritualisticamente, falam de um mundo que não
está fora de nós.Cada um de nós estava ali carregando dentro de si o mundo ao qual
15
Silva/Petronilha Beatriz Gonçalvez e. Dimensões e Sobrevivências do pensamento em educação em
territórios africanos e afro-brasileiros.
16
Milton Santos sobre tempo eventos e espaço.
30
pertencemos desde sempre.Daí que, considerar o ser na comunidade incluindo seus
gozos e conflitos, significa. Afinal, o mundo e a comunidade somos nós. Para
compreender o mundo é preciso compreender a nós mesmos e nossas vivências
individuais e coletivas. Na comunidade de terreiro a memória tanto pode ser
considerada na presença do mais velho, como eventos que são repetidos no Odum,
período de festas como um jogo nos rituais sagrados. Na verdade, os eventos são muito
mais do que acontecimentos que se repetem.
Os eventos são também idéias que representam uma postura política de exercício
de liberdade de ser. São eventos organizados que se renovam no modo de se realizar e
de entender realidades pessoais e comunitárias. A intenção deve ser antes de tudo
compreender a nós mesmos na vivência presente. Decerto que tanto o gozo como as
turbulências do mundo também são nossos problemas. São fenômenos, são
acontecimentos que nos motivam a repor a memória e proceder à evocação restauradora
das lembranças da comunidade que se reconstrói a cada evento. E tudo nos afeta e nos
propicia o autoconhecimento.
A compreensão de nós mesmos e do lugar onde celebramos a ancestralidade
renova a vida de velhos e novos. Em outro contexto, a fala de Bosi indaga o que é ser
velho na sociedade capitalista? A resposta vem certeira como uma flecha no tempo: “É
sobreviver, impedido de lembrar e de ensinar sofrendo a adversidade de um corpo que
se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice que
não existe para si, mas somente para o outro. E este outro é o opressor” (BOSI, 1994, p.
18). Imagino a desventura quando o indivíduo é capaz de perder-se dentro dele mesmo.
Como falar das coisas sem integrar a este mundo que é um lugar, um cenário
memorável onde co-existem lembranças do lugar. Ainda é na fala de Bosi que
contraponteando o seu estudo que tensiona a questão da degradação senil a mesma nos
diz que:
A memória das sociedades antigas se apoiava na estabilidade espacial e na
confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam, não se
afastariam. Constituíam-se valores ligados a práxis coletiva com a vizinhança
(versus mobilidade), a família larga, extensa (versus ilhamento da família
restrita) apego a certas coisas, a certos objetos biográficos ( versus objeto de
consumo) Eis aí alguns dos arrimos em que a memória se apoiava (BOSI,
1994, p. 19)
.
Recolocando esta afirmativa no presente do presente, as memórias do povo de
santo transformam acontecimentos em coisas eternas que se repetem sempre nas suas
31
diferenças. Como não falar dessas coisas eternas que se repetem pela memória
celebrativa cuja vitória é manter a nossa história e tradição? Somos esta história.
2.10 MITOS E OS RITUAIS: a chave que abre a memória de um povo
A festa de Mãe Pinguinho de Oxum me fez mergulhar numa experiência
inusitada. Eu tinha a sensação de que estava participando de um acontecimento
atemporal. E não seria razoável encontrar um paradigma para sobrepor ao que devia
simplesmente estar no presente do passado. Eu estava muito à vontade, como se toda
vida experimentasse aquele jeito de viver e de sentir. O cenário na sua composição
dinâmica trazia a marca da rebeldia recriadora e não me causava estranheza. Era como
se eu me desdobrasse em duas. Na verdade tenho vivido por muitas vezes esta sensação
que é indizível. Havia uma coerência muito grande em tudo que eu percebia em tudo
que sentia e pensava. Era uma percepção impregnada de um tempo não só do presente
como também de fatos históricos e de lembranças pessoais. Talvez lembranças de lutas
e de estratégias de sobrevivência inscritas no corpo e na alma. Lembranças de
sobrevivência ou simplesmente, lembranças memórias que na época julguei sem
explicação. Estaria o impacto daquele momento associado às memórias seculares das
festas de coroação de rainhas e reis da nossa procedência matricial? Quem sabe? Parece
que há uma parte escondida da memória pronta para se mostrar numa aproximação
possível. Na fala de Bosi,
[...] A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao
mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações. Pela
memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se
com as percepções imediatas, como também, ‘desloca’ estas últimas,
ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força
subjetiva ao mesmo tempo ativa latente, penetrante, oculta e invasora (BOSI,
1994, p.64).
A experiência da festa foi como uma rememoração do que estava latente
juntando fragmentos e vivências de todos os tempos. Vivências que, religadas, invadiam
as fronteiras de um imaginário que seria mais tarde quando feita, parte do meu cotidiano
na comunidade litúrgica do Afonjá.
Hoje posso compreender e rever cada gesto daquele xirê na festa de Oxum.
Todos os gestos se presentificavam tão naturalmente que eu podia perceber que não
32
havia nenhum esforço abstrato para recriar uma reminiscência de origem. Havia um
tônus vital que se encarregava de ativar outro jeito de estar no mundo.
Eu nunca havia visitado um terreiro e não conhecia uma só cantiga. Do meu
lugar dancei com alegria. Eu me sentia embalada, acariciada e acolhida por mim mesma
numa dança até então desconhecida. Recorro a Bergson quando diz:
Meu presente é, por essência, sensório-motor. Equivale dizer que meu
presente consiste na consciência que tenho do meu corpo. Estendido “no
espaço meu corpo experimenta sensações e ao mesmo tempo executa
movimentos...Por isso meu presente parece ser absolutamente determinado, e
que incide sobre o meu passado (BERGSON, 1999, p. 162).
Como feitos, com o corpo desvelamos o nosso jeito de ser essencialmente.
Contamos histórias de nós mesmos mostramos qualidades que emergem das
profundezas enraizantes da nossa filiação espiritual. Com o tempo aprendi observando
que não é difícil identificar uma filha de Iansã, por exemplo. Ela traz inscrito no seu
caminhar a leveza das borboletas. Os braços balançam como uma dança de movimentos
de quem pode voar. Ou o filho de Ogun que quando anda balança para direita e para
esquerda e com um pulsar interno remete ao abridor de caminhos. Aquele que segura o
facão e faz caminhos que transformam a vida com sua força da essência que ficou na
memória e no coração.Ou a filha de Oxum no seu caminhar ondulante como a dança que
dança o movimento de todas as águas.No terreiro, vive-se a memória de uma África
ancestrálica atualizada. A memória ancestral reorganizou a vida e a identidade coletiva
de negros e negras escravizados no Brasil, mas sempre com algumas ressalvas, que não
vamos considerar como perdas. Bergson fala que
A memória do corpo, constituída pelo conjunto dos sistemas sensório-
motores que o hábito organizou, é portanto uma memória quase instantânea a
qual a verdadeira memória do passado serve de base....Em outras palavras é
do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde e é dos elementos
sensório motores da ação presente que a lembrança retira o calor que confere
a vida (BERGSON, 1999, p. 178-179).
A fala deste autor nos remete à idéia do calor que está na raiz, no sentimento e
no pensamento africano, e não atende à disciplinaridade nem da fragmentação que
mutila a vida. Atende sim aos princípios da tradição em suas peculiaridades tendo como
fundamento uma cosmovisão no presente e que se alarga plural. Do mesmo modo
acolhe o entendimento da complexidade da vida em suas dimensões mais íntimas onde
os fenômenos e os seres se encontram como princípios complementares.
33
O pensamento africano não separa, não hierarquiza. Corpo, mente, memória,
tradição, sentidos, imaginário, símbolos, signos, espiritualidade e as vivências
cotidianas. Tudo faz parte de uma tradição na sua multidimensionalidade que não se
presta a explicações reduzidas a categorias que fragmentam sentidos.
A preocupação pela legitimidade da tradição é de fato uma preocupação notória
com a preservação da identidade. Sem a tradição não haveria identidade. É a tradição
que conta a história do pensamento africano, expondo a história da ancestralidade negra
na sua integralidade.
Na trajetória transversal da história do negro no Brasil vamos considerar alguns
desvios como arranjos para a re-existência. Trata-se, portanto, de uma forma de
atualização que podemos considerar legítima na essência que advém de uma experiência
que é coletiva e tem a sua própria lógica. Lógica que se faz pela re-existência, como
fenômeno de transformação cognitiva pela inter-relação de seres e saberes
compartilhados. Seres que, expatriados pela diáspora, re-significaram seus papéis,
organizando-se em torno de uma identidade ancestral. Saberes que se imbricaram e se
expressam nos enredos da história oral, nos mitos, cantigas, provérbios e falares que
anunciam um éthos epistemológico enraizado no pensamento africano na sua
atemporalidade.
Neste sentido, a matriz cultural africana vivenciada nos terreiros carrega na sua
gênese, um conteúdo nem sempre simbólico, com princípios e valores que vão se
reorganizando e nos organizam dialogando com entidades de todos os tempos para os
quais viver é um ato sagrado, e nós recebemos este legado.
Aprofundar no mistério, no sagrado e compreendê-lo é diferente de explicar.. O
mito é a forma escolhida para compreender o sagrado, também os pensamentos,
sentimentos e sonhos. O mito é o sonho coletivo. Como família de santo, vivemos a
memória de uma África, mãe ancestral atualizada e atualizante. Não viramos uma
estátua de sal. Falamos do lugar-terreiro, lugar ritualizado nas suas múltiplas verdades.
Um lugar que nos mantém em ligação com a terra. Lugar que nos preserva vivos e de
pé. Lugar que por sua força nos anima e nos faz viver plantados como sujeitos
universais e contemporâneos. A procura é para restabelecer o sentido da integridade
entre o homem, o conhecimento, a ancestralidade, a ética e as diversidades de todos os
tempos.
34
2.11 RECONHECENDO AS MÚLTIPLAS VERDADES
Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o
Orun
17
o Aiyê
18
, mundo material havia um espelho. Daí é que tudo que
se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava
no mundo espiritual refletia exatamente no mundo material. Ninguém
tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas.
Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O
espelho ficava bem perto do Orun e bem perto do Aiyê.
Naquele tempo vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se
chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a
pilar inhames. Um dia inadvertidamente perdendo o controle do
movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se
espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se
desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando O
encontrou tranqüilamente deitado a sombra do Iroko
19
. Depois de ouvir
suas desculpas com toda a atenção declarou que dado aquele
acontecimento, daquele dia em diante não existiria mais uma única
verdade e concluiu: De hoje em diante quem encontrar um pedacinho de
espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma
parte da verdade por que o espelho reproduz apenas a imagem do lugar
onde ele se encontra.
20
Neste contexto, valho-me deste exercício acadêmico para pensar o fragmento
espelhado qualificante deste estudo com a perspectiva de pensar educação do povo
brasileiro na sua complexidade étnico-cultural integrada pelo pensamento africano.
Pensamento que considerando as sutilezas das diferenças, constrói e evidencia valores
oriundos da ancestralidade enraizante. Pensamento como força e princípio estruturantes
de convivências na comunidade que acolhe, cura e ampara. Convivência que me
possibilitou a compreensão do discurso silencioso do lugar - terreiro. Discurso que se
desvela e se projeta nas camadas mais internas e imanentes da minha
existência.Discurso de um lugar onde a fala pode ter sua correspondência no olhar
atento, na escuta ou nas respostas que se revelam sem o compromisso com uma única
verdade.
Falo do pensamento africano, uma das verdades deste meu lugar que é uno e
múltiplo. Verdade que por sua própria condição de re-existência é resultante da
complexidade de etnias que se imbricaram na formação de uma outra cultura, de um
17
Mundo espiritual
18
Mundo natural
19
Árvore considerada sagrada para os iorubanos. No Brasil foi substituída por gameleira branca.
20
História mítica adaptada por Vanda Machado e Carlos Petrovich para a Cartilha das religiões...
35
outro povo africano na diáspora. Assim nasceu o povo afrodescendente que se
esparramou pelo mundo, onde o presente o passado e o devir não se separam em
categorias estanques.
Falo de um lugar que conheço e faz parte do mundo ao qual pertenço. Não por
escolha, mas por uma lógica de pertença ancestral que me envolve numa condição de
ser sendo. Compreendo esta relação como expressão ontológica da minha condição
humana essencial. O sentimento da pertença ancestral não autoriza a me separar de
outros fenômenos que vivencio enquanto indivíduo e ser social.
Sou feita
21
de Oxum. Esta é uma condição que me autoriza a olhar o mundo
como parte do meu mundo interior. Considerando um jeito de pensar que vai além do
domínio do cognitivo acreditamos que estamos no mundo e carregamos o mundo dentro
de nós na multiplicidade de elementos da natureza que nos compõem.
As vivências do povo de santo se plasmam nos confins de um mundo arcaico
instaurado pela ancestralidade magnificada no seu caráter essencial e numinoso.
Compreendemos então que o mundo em que vivemos é uma realidade oriunda também
de nossas próprias percepções. Percepções que estão na razão dos sentimentos humanos
numa implicação do além do vivido. Com efeito, a nossa consciência apenas reflete à
maneira de um espelho a luz originária do mundo percebido. Pertencemos ao mundo de
intensas possibilidades criadoras. Mundo que nos contém e que nos enche das suas mais
diversas formas de energias vitais e interdependentes como uma trama que produz a si
mesmo. Bâ nos diz que
Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas,
postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e
sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo
invisível e vivo constituído em forças em perpetuo movimento. No interior
dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário e o
comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo
que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) pode se
constituir como objeto de regulamentação ritual (BÂ, 1982, p. 186).
Estamos falando de eventos que acontecem num espaço-tempo multirreferencial
em que o estado e os movimentos dos corpos materiais e a distribuição desses corpos
determina configurações míticas envolvendo a invariância da matéria em suas
transformações que afetam vivências e o imaginário. Neste sentido, os rituais presentes
o tempo todo na comunidade sintetizam momentos importantes de todos os tempos que
constroem as pessoas e a comunidade. Como observa Heidegger (2002), o passado
21
Linguagem usual para pessoa que passou pela experiência de fazer o santo, fazer a cabeça, se tornar
omo orixá, filho do orixá ou iniciado como se diz na linguagem antropológica.
36
jamais segue o ser, mas o precede. É o passado que caminhando na frente vai
adaptando-se a realidade do presente como tradição. Pensando deste modo estamos
diante da complexidade de uma perspectiva dialógica. A matéria e o espírito se
reconhecem e formam uma unidade não linear num processo dinâmico repleto de
subjetividades. Por outro lado, entendemos que a ciência convencional sempre buscou
eliminar a subjetividade das suas explanações o que dificultaria compreender a nossa
própria subjetividade como objeto científico. Aí é que estabeleço um mergulho por
dentro de mim mesma e da minha comunidade no seu aspecto mais arcaico e
paradoxalmente atualizante. Mergulho, e ao emergir trago um outro tempo repleto de
novidades que só podem ser consideradas como transitórias.
E por não se tratar de recair em crenças puramente mágicas, a educação
inspirada nas subjetividades deste imaginário é mitopoético e polissêmico. Esta é uma
condição que sugere a fluidez, a descristalização e a transgressões do modelo cultural
instituído fechado no assujeitamento de pensamentos lineares. Por analogia, o que
prefiro chamar de feitura ao invés de iniciação é por entender que esse é o momento de
se fazer a cabeça, preparando aquele que está sendo feito para aprenda a aprender.
Neste caso cada um estaria voltado para a sua melhor forma de aprender. Aprender na
vida e no caminho da emoção de cada dia. Aprender na vida também como poesia.
Aprender descobrindo novas estruturas internas. Aprender percebendo o extraordinário
no cotidiano. Aprender nesta condição seria preparar-se para viver o cotidiano na sua
complexidade criadora gestando e germinando novas sensibilidades e sentidos.
Viver no terreiro sendo feito ou não é estar pronto para construir seus saberes a
partir de um novo espaço interno. Um espaço vivo e estimulado para aprender com
todos os acontecimentos. A aprendizagem inclui atos celebrativos que estimulam e
agregam tudo que dá vida à vida comunitária. As educadoras da Eugênia Anna
passaram por esta experiência vivenciando as possibilidades de compreender o mundo
como algo que se move dentro e fora de nós mesmos. É um lançar-se além de si para o
encontro de outras vivências, outras leituras e da compreensão de outros códigos
experienciais. No Afonjá vive-se um mundo africano tradicional onde tudo existe em
potência. Tudo está para acontecer ou dissipar-se. Vive-se o mundo das possibilidades.
37
2.12 A ÁGUA VIDA E MÃE DA INTELIGÊNCIA PLANETÁRIA
O mundo africano tradicional tem como princípio uma geografia sagrada onde
os elementos da natureza interagem criando a paisagem ancestral do universo que se
move dentro e fora de cada um. Se uma poça de água contém o universo, somos um
fractal deste universo movente que produz equilíbrio interior e é possível mostra-se na
sua verdade poetizando a vida.
Água, que brota do lugar que nasce, vive e corre desconhecendo fronteiras. O
povo de santo se acredita como parte da natureza de Oxum a água encarnada que canta,
dança, rodopia, ou enfrenta obstáculos com destreza e sabedoria. Oxum a mãe ancestral,
água que dá vida a todos os seres deste planeta. Somos todos os filhos da água que nos
envolve como templo sagrado e nos faz nascer. Filhos da água que canta unindo numa
única dança os céus, os astros, os trovões as chuvas, as matas, o arco-íris, as montanhas,
as planícies e os oceanos. Nos terreiros, se diz que nada pode ser iniciado sem o poder, a
presença e os mistérios da água. Ou como nos lembra Bachelard,
A água como se dizia nos antigos livros de química, “tempera os outros
elementos”. Destruindo a secura – a obra do fogo - ela é a vencedora do
fogo; tira do fogo uma paciente desforra; aplaca o fogo; em nós ela abranda a
febre. Mais que o martelo, ela aniquila as terras, amolece as substâncias
(BACHELARD, 1997, p. 108).
É certo que o mundo cartesiano não contempla a fluidez de sua presença. Águas
de múltiplas formas e lugares que se mostram nas enchentes que leva consigo o que está
no seu caminho. Nas barulhentas cachoeiras, na piscosidade dos rios que alimentam a
terra ou na transparência dos lagos e córregos tranqüilos. Oxum, água que engole as
sombras das arvores, tornando as paisagens risonhas e brilhantes deixando refletir o
brilhar do sol. Água lágrima, saliva, sémem, suor que refaz e reconstrói e que se coloca
como segredo nos espaços de si mesma e do outro. Oxum, água que se esparrama em
corpos distintos criando possibilidades de afetos e de outras vidas que vem e que voltam
renovando o mundo alternando sempre.
2.12.1 Água: força que caminha em nós e no mundo
Três pingos de água no chão, uma evocação respeitosa aos ancestrais e a todos
os orixás, está assegurada a possibilidade para o diálogo com o orixá. Assim quando
38
dizemos: Oxum mo pe
22
. Oxum mo pe. Oxum mo pe. Está aberto o caminho para o
diálogo.E neste caso a água abre o caminho fazendo a mediação para a fala de Deus. A
água joga com agente como manifestação do sagrado. Através do jogo de búzios é que
se ouve a fala do sagrado. A este respeito, vale considerar o que nos diz Eliade:
A manifestação do sagrado no espaço tem por conseqüência, uma valência
cosmológica: toda hierofania espacial ou toda consagração de um espaço
equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão seria a seguinte: o
mundo deixa-se surpreender como Mundo, como Cosmos na medida em que
se revela como mundo sagrado (ELIADE, 1956, p.59).
Acreditamos que pertencemos a um mundo que é sagrado. Mundo que nos
constrói de partes deslocadas de materiais ancestrais nos fazendo erigir como seres
integrais e integrados com tudo que existe no mundo.
Vivemos no mundo onde a aleatoriedade é a regra. Um mundo onde a relação
tempo-espaço atende a uma interdependência de subjetividades onde os princípios da
incerteza se apresentam como forma de caminhar no mundo. Temos consciência da
instabilidade que caracteriza um dia depois do outro. Um tempo extraordinário que faz
com que o povo de santo viva num estado de alerta a todos os sinais imanentes.
O pensamento africano é regido pelo paradigma do diálogo e das possibilidades.
Assim, a percepção de mundo se abre e se ampara num jeito que nos mantém numa
trajetória dinâmica de possibilidades e relações complementares e de interdependências.
Isso faz com que cada momento seja singular e irrepetível na existência humana. É
preciso estar atento. Olhar o caminho significa estar atento às possibilidades e a todos
os sinais do cotidiano. Um iorubano não sai de casa sem olhar nos búzios os possíveis
acontecimentos do seu dia. Adesoji ( 1990, p.38), quando nos fala de o seu povo afirma
que:
Todos os eventos são importantes na vida dos iorubás. Qualquer atitude é
precedida pela Consulta a Ifá Oráculo, com o fito de garantir a paz de espírito
para os tempos vindouros. De acordo com a orientação do Oráculo, fazem
oferendas aos orixás. Muitas das oferendas que se lhe fazem são alimentos
colocados acima de suas imagens. Ifá é consultado por ocasião de uma
comemoração da qual todos participam (ADESOJI, 1990, p. 38).
Assim a vida é compreendida como uma rede de probabilidades que se plasma
ou se dissipa, considerando-se uma relação dialógica, interativa e criadora entre quem
olha, jogando búzios ou o jogo de Ifá e quem espera as respostas encaminhadas a mais
remota dinâmica do caminho ou odu
23
. Entidades se apresentam como conseqüência
22
Na língua Ioruba: Oxum eu te chamo
23
Conjunto de orientações oraculares. Wande Abimbolá e outros especialistas da tradição e da literatura
iorubana dizem que os Odus estão para o povo iorabano Biblia está para o povo cristão. Segundo a
39
das caídas dos búzios ou no jogo de Ifá re-encantando o destino com seus caminhos e
descaminhos nas realidades ontológicas.
O desejo de um jogo é via de regra o primeiro momento de aproximação com
uma comunidade de tradição e liturgia africana. Não raro ouve-se de alguém: eu
preciso fazer um jogo. Preciso saber se tenho caminho para esta viagem ou emprego,
por exemplo. Ter caminho é o mesmo que ter autorização no nível de proteção
espiritual.O jogo de búzios praticado no terreiro aponta caminhos para curas,
organização pessoal, autoconhecimento, escolhas, decisões e convivências
comunitárias.
Os filhos da casa são os primeiros a serem atendidos para o jogo na busca da
ajuda e orientação necessária, quando se sentem abalados por qualquer desconforto.
Seja este incômodo físico, emocional ou financeiro, ou se há dúvida para tomar decisões
importantes. O jogo atende ao princípio de flexibilidade e as realizações podem
acontecer como num conjunto de possibilidades. Para tanto o diálogo e as oferendas às
divindades se fazem imprescindíveis.
Considere-se que estamos falando de uma comunidade onde a vida social, a vida
religiosa se integram de maneira plena e inseparável. Todas as decisões se resolvem e
podem acontecer como no jogo. O jogo da vida vivida. Um jogo onde nada pode e tudo
pode, como no dizer dos mais velhos. Para Mãe Stella: tudo está a nossa espera. O jogo
é o próprio diálogo com as divindades com o caminho e com a possibilidade de cada
um e da comunidade
É preciso estar atento a tudo e a todos em todos os lugares. Neste sentido a
função dos mais velhos é lembrar, e aconselhar, religando os princípios da
ancestralidade ao presente e ao devir. Nos terreiros a condição do envelhecer está
comprometida com a sabedoria e a vida. O corpo e a mente em constante movimento
pelos rituais e pela dança não se desagregam do conhecimento e da memória que vai se
tornando cada vez mais viva. As lembranças são preservadas como um projeto pronto
para ser retomado sempre. O velho e a velha se tornam cada vez mais competentes pela
própria natureza da comunidade.
tradição ioruba, existem 16 Odus , cada um desses divididos em 16. Cada um desses ainda tem outras
divisões, que vai dar um total de 256 Odus ou signos e cada pessoa tem o seu destino ligado a um deles.
O Odu que se apresenta num jogo solicitado a um babalawo, Iyalorixá ou babalorixá. num momento de
necessidade pode não ser necessariamente o Odu da trajetória pessoal de um indivíduo. Cada um desses
olhadores deve saber de cor 256 Odus e ter o compromisso de não passar para quem não foi ainda
iniciado para este mistér. O babalawo é, portanto o pai do segredo.
40
No terreiro, vivem-se todos os tempos ritualisticamente e o passado é revisitado
nas suas lembranças importantes para a manutenção da herança ancestrálica
comunitária. A comunidade e a pessoa são uma coisa só. Um rebuliço com um membro
da comunidade e todos são afetados. Somos elos de uma mesma corrente. Galhos e
folhas de uma mesma árvore.
Para os mais novos é de bom alvitre manter-se atento e pouco perguntar. Escuta-
se muito para compreender e aprender a dialogar. De fato, o diálogo acontece de forma
parcimoniosa e só vai acontecer com os mais novos, no tempo certo na medida em que
estes sejam encaminhados para a compreensão dos códigos mais profundos que
fundamentam o pensamento do grupo. Ouve-se a fala do Tempo, fala muitas vezes
materializada na fala de uma pessoa que passa e diz algo inusitado
despropositadamente. Esta fala se torna importante justamente pela aleatoriedade.
Escutam-se as falas das próprias cabeças e a fala nem sempre apropriada dos vivos. As
falas ancestrais é o que orienta a comunidade através do jogo como interlocução e
presença nas realidades cotidianas.
2.13 O SAGRADO É REAL POR EXCELÊNCIA
No Afonjá, Xangô recebe a obrigação do osé semanalmente, sempre às quartas
feiras. Quarta-feira ou Ojo-Jacutá, dia da justiça na semana iorubana. Chamamos
obrigação os rituais individuais e coletivos que fundamentam e alicerçam os princípios
básicos da religião e das vivências comunitárias. O osé é uma obrigação interna,
quando todos os filhos de um mesmo orixá trocam panos, flores, movem todos os
objetos sagrados de seus lugares para uma limpeza cuidadosa do quarto do santo. É
quando são trocadas as águas das vasilhas rituais atendendo a uma dinâmica renovadora
do ará e do ori, renovação do corpo e da cabeça. Tudo volta para os mesmos lugares,
mas o cenário não é o mesmo.
No Afonjá desde 1910, a mesma cena se repete nas quartas-feiras, no mesmo
lugar, na mesma hora do mesmo jeito como uma novidade pontuada de detalhes
importantes. O lugar da espiritualidade é um lugar dinâmico, criado exatamente para o
encontro das diferenças. Cada um tem sua talha
24
, onde a água e a vida se renova num
ritual que afirma a individualidade, a autonomia e a proteção. Mas a obrigação só se
41
realiza no coletivo. É um momento onde tudo se move, circula e volta a ser como
sempre foi. Entretanto, um discreto detalhe que não foi conservado como antes, ou um
muxoxo faz a diferença de fato. Mesmo um quarto do orixá não é um lugar congelado
pelos seus fundamentos.
Aliás, tudo se move ou é movido numa dinâmica que se configura em dimensões
de um cenário em transição. O cheiro de muitas alfazemas e roupas limpas impregna o
ar. Carregamos balde com água e lavamos tudo até o espaço sagrado ficar
completamente limpo e arrumado. Ficam incluídos também os arredores da casa
Renovando todas as esperanças, a casa de Xangô se abre logo depois do osé para
receber as pessoas que precisam de uma consulta através do jogo de búzios. Feito o
atendimento por Mãe Stela, em meio a um breve e intenso convívio entre os filhos da
casa e os visitantes, é servido o amalá para todas as pessoas indistintamente. Naquele
momento todos são filhos da comunidade. O amalá é uma comida dedicada a Xangô. É
a comida feita com quiabos cortados como caruru temperado com camarão, cebola
moída, pimenta e azeite de dendê cozido com pedaços de carne. Os quiabos são
cortados entre rezas e agradecimentos por mais aquela celebração com a comida que
será compartilhada com toda comunidade e visitantes.
Este é um acontecimento revivido mitologicamente e que se repete a cada
semana. Este é, portanto, um acontecimento que na sua repetição se constitui num
momento em que cada um se sente tocado particularmente no encontro com pais e
mães, irmãos e irmãs na comunidade.
É desse modo que continua acontecendo em Oyó terra de Xangô na atual Nigéria
onde tive a oportunidade de uma relativa convivência que apreciei na sua
atemporalidade. No Afonjá este ritual se repete pela necessidade de se cultivar
agregação da familia e o sentido individual de ser, pertencer e participar da
comunidade solidariamente.
Na metade da manhã de qualquer quarta feira do ano, o cheiro do amalá exala
pela casa cheia de gente de todas as origens. A comida feita sem pressa aproxima as
pessoas para a oferenda aos pés de Xangô. Durante todo tempo, fatos e casos foram
comentados pelos filhos da casa, numa linguagem quase sempre hermética. Gestos e
falas misturadas com vocábulos em iorubá propiciam o compartilhamento de saberes e
fazeres que fundamentam a religião na sua continuidade. Enquanto isso, os mais novos
24
A talha ou a quartinha é a representação do corpo de cada um que se protege e que se renova a cada
osé.
42
e ou estranhos escutam as prosas quase sempre de interpretação metafórica, por isso
mais sedutora, interessante e necessária.
Chegada a hora, espera-se por Mãe Stella. É ela quem vai fazer a oferenda e
proceder ao dialógo com Xangô através do jogo de búzios ou do orobô
25
. É a hora de
continuar o que foi iniciado desde o dia anterior assim que o sol se pôs. Prostrados
diante do patrono da comunidade, todos batem o paó, numa saudação ao orixá.. O paó é
uma seqüência de palmas ritmadas numa ordem de batidas que vão decrescendo e que
se repetem por três vezes. Mãe Stella reza, comunicando-se com orixá sobre a nossa
presença, nossos desejos e agradecimentos. Findo o jogo, a mãe transmite a orientação
para a semana que se inicia. Um silêncio acolhedor se espalha no ambiente. A resposta
positiva significa que cada um e a comunidade estão protegidos. Em caso de dúvida, o
melhor é poder contar com a ajuda do orixá.
Finalmente, ela mesma inicia o canto que é repetido pelos presentes.
Eni pá léérín ada ba lái
Bé ní je ni a pã bo
Je bi oo ni a! Pã bo.
Este canto tem como tradução metafórica: Comer (amalá) de quiabos cortados
dentro de uma gamela. Comer e nascer dele com satisfação de uma só vez, adorando.
Finalizando a obrigação, saudamos Xangô, saudamos a Mãe de Santo, saudamos
os mais velhos pedindo-lhes a bênção. Para prolongar o convívio, vamos ficando juntos
comendo o amalá com todos que estiverem no momento mesmo aqueles que não
possuem qualquer entendimento daquela obrigação. É uma cena que se faz nova a toda
quarta feira. A cada osé acontece este jogo como uma imersão atemporal.
Certo dia, ouvi de Tia Gilsete de Xangô: - Sempre foi assim, no tempo de Mãe
Senhora era todo dia. Nao passava um dia que ela não escutasse Xangô. Todo dia ela
estava lá pela manhã bem cedo, com os búzios na mão conversando com Xangô. Ela
dizia: - o que é bom fica o que não presta a gente despacha.
Esta não é uma prática isolada, ou uma aproximação de duas situações que
parecem antinômicas. Ayoh’Omidire nos relata pessoalmente que o povo iorubano mais
25
Noz de uma planta originaria da África, adaptada no Brasil e usada em obrigações rituais.
43
precisamente em Osogbo, na terra de Oxum, a sua familia repete esta obrigação do
mesmo modo como fazemos no Afonjá. A cada quatro dias, as famílias se reúnem, o
patriarca faz o jogo divinatório de entrega do osé. Em seguida, distribui conselhos e
orientações para as famílias. Ainda é Omidire quem nos fala em mais uma de nossas
intermináveis conversas:
Este é um dia onde o tempo e o espaço de origem grego romano
ocidental não trazem nenhuma influencia. É outro tempo e outro espaço
que é ancestral e estruturante de convivências. Em Osogbo também um
grupo de mulheres fazem e compartilham o omolocum
26
Em seguida
todos partem para as feiras e ficam por lá em Ibadan
27
fazendo suas
compras. É de lá que vem muito inhame e pimenta. A feira para o povo
iorubano é um lugar de partilha. É na feira que se encontram os vivos,
os que já se foram e os que hão de vir (Conversas com Ayoh'Omidire
em 2004).
Olhando a história, na concretude do pensamento iorubano, no conjunto o que
conta não é propriamente o osé como um jogo ritual que se repete, mas a maneira como
esta obrigação foi concebida cobrindo possibilidades de partilha, agregação,
solidariedade, o cuidado, a convivência comunitária o aprender a ser e estar com o
outro.
2.14 JOGANDO O JOGO NA VIDA
Hoje, são muitos os significados atribuídos ao jogo. Busca-se um significado
para o jogo quando se estuda o papel atribuído pelas teorias contemporâneas. Estuda-se
o jogo no curso do movimento através da análise das mudanças do comportamento,
mudança de fase e alterações no padrão de informação. A ciência descobre no jogo, a
singularidade do singular e seu caráter de irreversibilidade entende-se que: o singular
nunca se repete exatamente igual ao anterior, apenas parcialmente.
Portanto, há sempre uma porta aberta para a novidade, para o que está em
imanência para o diferente. O jogo praticado enquanto divinatório pode ser considerado
de modo similar. Esta é como uma parte de um fenômeno que cobre todo campo do
pensamento africano com a função de olhar a vida. Olhar a vida significa ter acesso ao
processo fecundo do conhecimento de si mesmo que envolve o ser e a sua vida vivente.
26
Comida de Oxum feita com feijão fradinho, cebola ralada, camarão, azeite de dendê e ovos cozidos.
27
Cidade da Republica Federal da Nigéria. Capital do Estado de Oyó.
44
Entendemos que cada cultura trata de aplicar ao jogo noções percebidas pelas
inúmeras formas de significados e interpretação da palavra ou pela inclusão da função
do jogo jogado e do jogo jogante. A percepção cientifica do jogo e do acaso tem
constatado que o conhecimento das ciências físicas existe desde os primórdios da
humanidade. Desse modo, o que está na interpretação da criação inventando as
cosmologias contemporâneas é que nos permitem fazer releituras do acaso, do tempo,
do espaço-tempo e do jogo.
Esta é uma consideração a partir das contribuições de Heisenberg (1981). Parece
que neste sentido é possível afirmar que o pensamento africano, destacadamente a
mitologia africana serve como reflexão para aproximação ou reconciliação da ciência
com a Filosofia e com a Psicologia moderna e a Educação.
Neste caso, o jogo pode ser compreendido como fenômeno da condição humana
e da cultura e comunga em geral com padrões de organização similares, relações,
tensões, inversões, irreversibilidades e regras particulares. Como acontecimento
singular, o jogo jogante transforma, permitindo fazer releituras do acaso e do espaço na
sua atemporalidade. O jogo no pensamento africano é indissociável da mitologia na
vida. A mitologia africana é pródiga na explicação do mundo como universo em
construção, como um jogo inacabado, repetível infinitamente.
Os elementos presentes no jogo divinatório preservam a idéia do jogo como um
universo de todas as probabilidades. Tanto o aspecto que está sendo desvelado, como o
que se encontra em imanência fazem parte de um fluxo imponderável do destino e das
escolhas de cada um ao longo da vida. Incluiu também o universo constituído de uma
multiplicidade de jogos que organizam e desorganizam o que está para se tornar um
acontecimento no cotidiano.
Esta é uma das funções do jogo divinatório enquanto comunicação com o
transcendente. Então o acontecimento é real a partir de possibilidades que estão em cada
movimento do jogo. Movimento e acontecimento que se apresentam de forma imanente
pela leitura das caídas e posição dos búzios ou de outros jogos divinatórios congêneres.
Isto significa que cada movimento tem em comum a potencialidade de
acontecimentos que são singulares. No jogo divinatório haverá sempre algo de
extraordinário onde estão contidas todas as possibilidades e orientações. Naturalmente
que estas serão transmitidas em forma de uma história a ser pensada, refletida e aplicada
à vida tanto pessoal como no sentido comunitário.
45
Histórias como poesias que fazem a mediação entre intuição, sabedoria,
racionalidade e a compreensão da vida na sua transitoriedade. Histórias, espécie de
diálogo com a ancestralidade. Cada palavra da história mítica corresponde a um apelo a
uma necessidade. É uma resposta que só serve para o momento. Na verdade, o que
conta via de regra, o que transforma é o não dito, o não-respondido; é o que está na
relação do sujeito com a sua ancestralidade e com a vida. É o que só pode ser
respondido pelas entrelinhas. É a parte da história onde se configuram o repertório de
valores, crenças, sentimentos idéias e onde se descortina as condições essenciais do
indivíduo. A este respeito nos falou Carlos Petrovich:
Compreendo o pensamento africano que tenho vivenciado como fundante de
princípios, valores, crença e atitudes que se revelam para mim como
sementes plantadas na carne da nossa memória e que florescem
concomitantemente a todos os acontecimentos e tendem a orientar o sentido
dos nossos atos como uma programação de vida. (Extraído do Memorial de
Carlos Petrovich, 2003. Não publicado).
Falamos de um jogo implicado na mitologia que abre portas significativas para
ponderações que orientam, incitando ou inibindo acontecimentos. A cada odu ou
caminho corresponde um itan
28
.Insistimos que o itan é uma história mítica sempre
relacionada com a posição das caídas dos búzios. Impossível separar-se o jogo das
histórias míticas que orientam o sujeito e a comunidade. As histórias míticas foram
criadas desde o princípio, exatamente para fixar ensinamentos que estão no sentido da
indivisibilidade do tempo e do espaço, incluindo viventes e ancestralidade.
Conta-se que um ancião, percebendo a hora da sua viagem para a ancestralidade,
chamou todos os filhos para o último ensinamento. Assim, pediu que lhe trouxesse uma
vassoura. Abriu-a, entregando uma fibra para cada um de seus filhos pedindo que a
quebrasse. Todos repetiram o gesto sem dificuldade. O velho rejuntou as fibras restantes
e novamente solicitou que experimentassem quebrar o feixe. Ninguém conseguiu. Os
filhos e filhas compreenderam o desejo do velho que pensou um jeito de despedir-se da
familia lembrando o sentido da união como maior valor para a vida.
Este é uma forma de pensamento que não contempla uma linha divisória nem
para o presente, nem para o passado, nem para o devir; portanto, o jogo é sempre
jogante. Tudo está no presente. Todo ensinamento pela história está no presente para
ser entregue em forma de vivências. Este não é um jogo prescritivo. Cada indivíduo é
um ser suficientemente autônomo para compreender seu próprio caminho, sua conexão
com a ancestralidade e imbricação com sua vida na comunidade.
28
O mesmo que mito sempre relacionado a posição das caídas do búzios.no jogo.
46
O seu jeito de estar na comunidade é o que lhe dá a condição de um ser coletivo
neste espaço-tempo indivisível. Neste contexto é imprescindível aprender a jogar o jogo
na vida. É obrigação de cada um aprender e en-sinar. Esta é uma função precípua da
tradição no pensamento africano. À guisa de ilustração, conta-se que Exu saiu pelo
mundo em busca dos dezesseis coquinhos da sabedoria. Encontrando os coquinhos
continuou sua caminhada recolhendo as dezesseis histórias para cada coquinho que
representa cada odu, cada caminho. Quando aprendeu todas as histórias, ensinou aos
homens. Estes ganharam o poder de saber todos os dias qual a vontade dos deuses.
Estava criado o jogo do Ifá. Estava criado o diálogo entre os homens e os deuses.
Assim, a cada necessidade de diálogo com as divindades sobre acontecimentos,
há também oferendas necessárias para que as possibilidades do bem viver sejam
plasmadas ou para que sejam dissipados os acontecimentos que não trazem felicidade.
Isso importa para aquele que é feito e que se mantém nos princípios básicos para o
caminho de sua iniciação que atende a um tempo que é ilimitado.É imprescindível a
atenção para o princípio do Afanya, ou princípio de que Ifá sempre dirá o que fazer no
tempo e num espaço ponderável. Na relação de tempo-espaço, compreendemos
também como Bergson, quando diz que:
[...] o espaço é de fato o símbolo da fixidez e da divisibilidade ao infinito. A
extensão das qualidades sensíveis, não está nele; é ele que colocamos nela. O
espaço não é o suporte sobre o qual o movimento real se põe: é o movimento
real, ao contrário que o põe abaixo de si (BERGSON, 1999, p.255).
Daí que compreender o moderno através de sua antítese, o tradicional na relação
tempo e espaço tem provocado instigantes discussões. A bipolaridade tradicional-
moderna não se aplica ao pensamento africano como forma de existência nos terreiros
nem em outras comunidades tradicionais africanas remanescentes.
Ainda há de se considerar que o tempo sagrado, o tempo mítico também
estabelece um tempo existencial na história. Como apartar a história da civilização
africana, a escravização e a re-existência da tradição na diáspora? Trata-se de um jogo
de eterno retorno, num passado que é mítico sem, contudo, abandonar o tempo
histórico. A eterna repetição dos gestos exemplares revelados pelos ancestrais ab
origine não se opõe a nenhum tipo de progresso e não paralisa a espontaneidade
criadora.
O pensamento de matriz africana considera que o tempo sagrado é o que gera a
história dos homens. A dimensão do sagrado está na vida e na complexidade do
conhecimento. Para nós é impossível não desconectar o diálogo entre a ancestralidade, o
47
cérebro e a ação do ser-no-mundo. Em meio a uma densa discussão sobre o
conhecimento, Bâ conclui que,
Pode-se dizer que o oficio ou a atividade tradicional, esculpe o ser do
homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral
encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que
seja nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral
encarna-se na totalidade do ser (BÂ, 1982, p. 199).
Esta fala nos remete a uma fala mítica de um tempo mítico que pode ser
atualizado a exemplo do calendário das festas. São gestos que se repetem na sua
extraordinariedade e que presentifica toda existência humana contada, cantada e
dançada compatibilizando cultura, cérebro, alma, ancestralidade, corporeidade e
conhecimento. Este me parece o sentido do “caminhar para abertura do que está aberto”
Galeffi (2001, p. 303) ou ainda a afirmação de que “Trata-se de reaprender o sentido do
nosso ser-no-mundo-com pelo ato de reinventá-lo indefinidamente”.
O convite é para tornar-se aquilo que se é essencialmente. Com isso quero dizer
que um dos pontos de partida do Irê Ayó é a compreensão de formas e contornos que
nos faz existir integralmente, e a compreensão do que nos faz caminhar seguindo a
pulsão para o ato de en-sinar como seres renascentes da nossa própria condição
existencial, histórica e comunitária.
2.15 JOGANDO O JOGO DE EXISTIR COMO NAVIO GUERREIRO
No Natal de 2003, fui convidada para uma cerimônia tradicional africana aqui
mesmo em Salvador. Foi um Ikomojadê. Trata-se de ritual que é uma forma de
apresentação da criança a sua comunidade quando esta pela primeira vez será chamada
pelo seu próprio nome, até então, segredo de seus pais.
O nome de uma criança africana na tradicional familia africana é muito
importante e guarda aspectos da sua vida desde a sua ancestralidade até as condições do
nascimento. É uma cerimônia que guarda uma marcada semelhança com o dia do nome
do iaô
29
.O povo iorubano, logo após o nascimento mãe e criança ficam recolhidas até o
dia do nome. Se for menino acontecerá no nono dia; se menina, no sétimo dia; e se
gêmeos, o ritual será no oitavo dia.
29
O dia do nome é um ritual que acontece no último dia da feitura do iaô , quando este é apresentado à
comunidade, depois de alguns dias de recolhimento.
48
Como parte da preparação é convidado um Babalawo para realizar Akoséjayé,
um ritual divinatório que tem por finalidade conhecer através do jogo de Ifá, o caminho
do recém-nascido, indagando sobre aspectos do seu futuro.
Participar do Ikomojadê da menina Olufikayó foi mais que um privilégio, foi
uma honra. O lugar foi uma casa que acolhe estudantes nigerianos, no bairro de Nazaré;
no momento, residência de Ruth e Félix pais da menina. O tempo é o tempo presente
do jogo jogante – ou seja, o passado que se conjuga com o presente. Dentre outras
pessoas amigas do casal iorubano de Osogbo, cidade nigeriana onde viveu o orixá
30
Oxum, estávamos Petrovich, e eu Juanita Elbein, o Mestre Didi, o Alapinin que é
reconhecido na sua originante realeza iorubana. Pertencente à família Asipá Mestre Didi
representava a mais remota ancestralidade masculina da família que nos recebia.
Omidire e Anike, que são batizados com o nome católico de Felix e Ruth não
abandonam os seus valores tradicionais e nos proporcionam uma vivência concomitante
entre dois mundos que se aproximam como num jogo atemporal.
Fui convidada a sentar-me ao lado dos pais. Mestre Didi e eu. Diante do
acontecimento e de cada ação do ritual que fui participando com a ajuda do Alapinin
31
fui surpreendida com a revelação de que eu estava ali representando a ancestralidade
feminina da família como uma revelação que assentava sobre si mesma. Estivemos
diante de um desvelamento nutrido por um caminho movente que reunia todos os
tempos.
O acontecimento na sua significação extraordinária criou um movimento como o
próprio fundamento desvelado infinitamente até onde a razão não consegue mais
alcançar. Desinteressada em fazer o exercício da racionalidade, preferi compreender a
cerimônia considerando os códigos subjacentes. Caminhei na busca da compreensão das
razões históricas do ritual incluindo a fenômeno contido no jogo. Fenômeno que
interfere entre a ruptura e permanência que sustentam esta tradição esparramada pelo
mundo da diáspora. Nas suas repetições, a tradição se mantém e se faz re-existente na
busca do ser ancestral originante que se faz prodigiosamente novo pela volta, pelo
reviver o já vivido.
Entendo que é neste sentido que a África como o útero do mundo, fez nascer a
humanidade, humanizando entidades míticas, incluindo os ancestrais que caminharam
30
Cidade nigeriana, capital de Oxum State onde viveu o oriOxum.
31
Sacerdote supremo do culto dos ancestrais ou egunguns.
49
na frente criando e abrindo caminhos para os homens e mulheres na diáspora
compulsória.
Insistimos que o universo no pensamento africano atende a um contexto
atemporal e aespacial. O tempo é o tempo que se faz ao jogar e o espaço se faz na
realização do acontecimento. O jogo se repete pela necessidade de repetir não como um
voltar a andar o mesmo caminho como nos chama a atenção Deleuze (1988).
Os mesmos acontecimentos em forma de obrigações e xirês como festas se
repetem se dissipam e se refazem num jogo jogante fora de leis e gramáticas anteriores.
Os acontecimentos no terreiro são repetidos numa dinâmica própria e infinita e serão
sempre acontecimentos novos, diferentes, sem perder a essência nem os princípios
fundantes da obrigação. No diálogo divinatório, a idéia do todo como um jogo está em
cada acontecimento.
Os acontecimentos criam ressonâncias gerando outros acontecimentos singulares
nas suas subjetividades e no seu jeito que tem de mostrar-se com outra lógica. A
possibilidade de cada ação do jogo está presente no acontecimento, mas nenhuma
dessas ações constitui o todo deste acontecimento. Cada parte que é desvelada mantém
outras tantas enquanto probabilidades. O jogo divinatório é o que nos mantém em
conexão com o mundo vivente, com o transcendente e com o nosso jeito de ser, nos
mantendo em alerta para a instabilidade da vida vivente, atentos a tudo e a todos.
Temos a consciência do universo em potência: entretanto, não o reconhecemos
como o jogo que constrói o acontecimento. Importante é considerar que mesmo tendo a
consciência da potencialidade do jogo, odu ou caminho, é preciso reconhecer
ontologicamente a necessidade de atenção ao seu próprio caminho existencial, uma vez
que cada um é conhecedor da complexidade da sua essência e dono do seu arbítrio.
Caminho que tanto pode se realizar na caminhada como a caminhada pode se realizar
através do caminho. O caminho é o caminho.
2.16 SABER DE SI: mitologia como princípio para iniciação na vida
O Omo orixá, aquele que é feito, ou o filho-de-santo depois da obrigação
32
como
recém-nascido na comunidade, vai tomando conhecimento de suas potencialidades e de
32
Obrigação, nome genérico para as cerimônias internas com participação coletiva obedecendo ou não o
calendário de celebrações da casa. Está de obrigação ou em obrigação, ou na obrigação, é está
absolutamente envolvido com um fazer religioso, portanto indisponível para qualquer outra atividade
dentro ou fora do terreiro.
50
seus novos limites. A feitura do santo como se referem os mais velhos dos terreiros ao
que os estudiosos tratam como iniciação é um jogo do autoconhecimento numa
alteração de contextos e subjetividades. É uma experiência religiosa que busca o ser
imanente como ancestral divinizado. É um conjunto de atos e celebrações preparatórias
quando o iaô é recolhido para ser feito. Ou seja fazer a cabeça, implica numa intensa
preparação para compreensão das regras básicas, os valores e princípios da tradição
religiosa.. Esta é uma das condições que lhe proporciona a autonomia individual, numa
nova relação que lhe autoriza fazer parte da comunidade religiosa. Pela feitura do santo,
percebe-se e vivencia-se a complexidade de um ser que se desvela para sua
individualidade e na convivência mitológica comunitária.
Pela feitura, o que acontece é a convivência com a multiplicidade de
virtualidades de um sujeito. Isto é o que chamamos de transcendência, e é o que faz a
diferença entre a mitologia e a ciência . A ciência na sua perspectiva teórica é
reducionista e segue um padrão intelectual de erudição, analisando e descrevendo
fenômenos, muitas vezes criando explicações para o inexplicável. A mitologia convive
com a multiplicidade, com a possibilidade do ser e com a probabilidade de
acontecimentos. A mitologia é dialógica. A ressonância deste diálogo afeta
comportamentos e dissolve entre - lugares relativizando os pensares do cotidiano e a
vida vivida, onde a razão não é a senhora.
O diálogo com o Tempo se repete na sua novidade. É um diálogo como um
vento, como a vida que não se repete por igual. Um dia ouvi Mãe Pinguinho dizendo
que a vida é como um vento. Passa e nunca mais volta igual. Você já viu o vento voltar?
Se voltar não é vento é outra coisa.
Diante dessas considerações, entendo que falar de ciências é falar de uma lógica
que divide o ser humano em dois, como se corpo e alma não se reconhecessem. Ciência
que nos exibe e nos explica com uma estrutura serial, seletiva de causa e efeito sob a
égide da razão. Enquanto isso no jogo implicado com a mitologia, o diálogo revive a
ressonância entre Aiyê, mundo natural e do Orun, mundo ancestral, numa tessitura onde
todos os elementos são vivos numa complexidade dinâmica que se organizam e
desorganizam.
O conhecedor dos segredos do jogo divinatório joga com os deuses na sua
representação transcendente de solidariedade com seus filhos. Esta é uma expressão de
que uma pessoa feita habita uma dimensão que está além de si mesmo. A sua existência
diz respeito a algo que ultrapassa pelo seu pertencimento a uma realidade ontológica.
51
Todo povo do Afonjá pertence a Xangô. Antes de tudo somos filhos de Xangô,
pertencemos a Xangô por conta de um passado enraizante plantado pela ação da
Iyalorixá Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha fundadora do terreiro Ilê Axé Opo
Afonjá.
Na transcendência do divino, o sentido de pertença a uma comunidade é
magnificada. Sentido que agrega e cria movimentos inter-relacionados, geradores de
uma forma particular de deliberar desde a vida individual até os princípios da
organização da vida comunal. Vale salientar, no entanto, que não é possível perder-se a
perspectiva da presença não acidental de portadores de uma outra uma ordem que tem
sua procedência no que está instituído. Desgraçadamente esta é uma presença capaz de
estabelecer o caráter manhoso, sorrateiro e ideológico de uma solidariedade imiscuída.
Paradoxalmente, esta é uma situação que não define o grupo. Por sua própria
complexidade o grupo se esquiva, negocia encontrando brechas para as tentadoras e não
raramente ofertas são soliciatadas.
Por outro lado, isto nos lembra quando Mãe Aninha se permite envolver com a
amizade de Osvaldo Aranha enquanto possibilidade de aproximação com o presidente
Getúlio Vargas para discriminalização da religião dos ancestrais. Há pau que traça pau.
Ou os meios muitas vezes justificam os fins, diz a sabedoria popular.
2.17 CAMINHOS ABERTOS: ou tecendo ensinâncias e aprendências
Não foi sem receios que em 1993, procurei Mãe Stella para desenvolver minha
pesquisa para o mestrado com as crianças da escola da comunidade. Tive dúvidas em
ser aceita por não ser uma pessoa de santo. Antes de qualquer decisão, ela convidou-me
a acompanhá-la ao quarto de Xangô. Sentadas em torno de uma pequena mesa, Mãe
Stella, concentrando-se com uma evocação aos orixás, começou a jogar os búzios para
uma resposta que eu esperava com ansiedade. Confesso que fiquei um tanto apreensiva
durante o acontecimento.
Enquanto ela jogava os búzios na sua conversa com Xangô eu não arriscava
olhar para o jogo que estava acontecendo. Preferia olhar pela janela. Do meu lugar
podia ver árvores, bichos, fontes e pessoas com seus trajes rituais. Tudo era novo e
parecia uma convivência que se aproximava da idéia de uma transtemporalidade. Em
pouco tempo pude perceber que tudo e todos tecem e entretecem caminhos de encontros
52
e celebrações numa dinâmica vivificante. Encontros e celebrações que acolhem o que há
de mais diferente, de mais estranho à comunidade na sua vivência com os seus
ancestrais. Aquele momento transcendia a compreensão de tudo que havia vivido. Mas
em nenhum momento a minha atenção foi desviada da presença de Mãe Stella. Como
aquele punhado de conchinhas jogadas sobre a mesa a meio palmo de altura podia
decidir a minha vida acadêmica? Pensei. O movimento das suas mãos, seu rosto sério, o
subir e descer dos búzios, se constituía na representação de uma trama dinâmica inscrita
e edificante do nosso patrimônio espiritual como entendo hoje. Findo o jogo, Mãe Stella
sorriu levemente e anunciou: caminho aberto. Quem vai trabalhar com você? Quando
quer começar? Parecia animada. Eu gosto do seu projeto, disse-me e acrescentou:
Percebo que você não pretende tratar a nossa religião nem como desconsideração nem
como fanatismo. Aqui eu não quero fanáticos; estas crianças precisam saber como
viver lá fora e ganhar a vida (MACHADO, 2002, p. 22).
A sua declaração me pareceu suficiente para alimentar a minha autorização. Aos
poucos percebei que ali se fazia também o meu espaço: árvores centenárias, o vento
espalhando folhas pelo chão, a revoada de pombos, o silêncio cortado por vozes de
crianças brincando, tudo me parecia propício.
Na verdade, a integração de uma pessoa numa comunidade de terreiro como a do
Afonjá, é parcimoniosa. Sentindo-me encorajada, parti para conhecer melhor aquele
ambiente especial que gradativamente foi me revelando como um espaço misto, um
espaço híbrido, um composto de formas e conteúdos de todos os mundos. Um ambiente
místico, onde se vivencia uma interdependência fundamental de todos os fenômenos, de
todos os mundos sobre a natureza intrinsecamente dinâmica da comunidade. A
materialidade e a espiritualidade se cruzam sem obstruir o caminho do novo, do
emergente, pelas relações que se plasmam em contato com outros universos.
Espaço uno e múltiplo, a comunidade Afonjá contém uma paisagem percebida e
uma paisagem fenomenológica que se constituiu numa realidade singular e geradora de
novos espaços. Novos terreiros como espaços sagrados são gerados e se movimentam
como raízes subterrâneas geradoras para novas comunidades. Com a maioridade, é
possível a cada filho seguir a sua destinação pelo chamado da espiritualidade para uma
nova complexidade com estruturas próprias, mas sem perder sua identidade nascente,
sem perder a conexão com seu espaço originante, sem perder a essência.
Nesse outro lugar, nesse outro espaço de vivência do mistério, o passado se
projeta na transtemporalidade do agora. A essência se transforma em existência do
53
presente. Novos espaços nascem da virtualidade de um real abstrato para o real
concreto. Desse modo, como espaços mais recentes nasceram o Ilê Odé e Axogun Ladê,
respectivamente sob a responsabilidade do Pai Geraldo e Pai Reginaldo ambos filhos
de Mãe Stella. Esses terreiros são como novos rebentos nascidos do movimento de
raízes moventes que florescem a distância. Lembram partes de um Iroko
33
como fractais
vivos de redistribuição de axé como força criadora. Desse modo, caminhamos sempre
um caminho gerador de múltiplos espaços. Entretanto, vale salientar que esses novos
lugares comportam as diferenças contidas num novo jogo sem perder a qualidade de
suas raízes. Raízes compreendidas aqui como caminho revigorante de encontro com o
passado. Como dizem Morin e Le Moigne:
É no encontro com seu passado que um grupo humano encontra energia para
enfrentar o seu presente e preparar o futuro. Confrontar-se com o presente é
também um ato de fé que permeia uma relação de complementaridade entre
espaço – tempo onde os sujeitos plasmam suas existências singulares
incluindo a natureza e suas subjetividades: sentimentos, valores e sua visão
de mundo A idéia seria de compreender a realidade em sua integridade
(MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 77).
O encontro com o presente do passado não se disfarça numa comunidade de
terreiro. A cada movimento, em cada discurso outros textos implícitos são desveladores
de um conjunto de valores que alenta o povo do lugar fortalecendo laços e ações para
um futuro implicado pela ancestralidade em todas as suas nuances.
No Afonjá vi muitas vezes Seu Júlio que hoje já se encontra no mundo dos
ancestrais sair toda manhã, saudando todas as casas e árvores sagradas.
Iniciava pela casa dos ancestrais, saudava cada casa de orixá, a fonte de
Oxum. Por último ele abraçava o Iroko num abraço muito terno e respeitoso.
Um dia ele se deu conta de que estava sendo observado, virou a cabeça
lentamente quase num sussurro afirmou: é professora, eu amo este Iroko
(MACHADO, 2002, p. 60).
A propósito, muitas vezes, foi necessário ter algumas folhas na sala de aula para
melhor observação e estudo. Durante minha primeira pesquisa ainda para a dissertação
de mestrado, eu não sabia como interagir com o espaço que é sagrado por natureza e
com a comunidade. Eu não sabia como fazer para tirar as folhas considerando que eu
estava num espaço sagrado. Recorri a Dona Detinha de Xangô.
Ela me ajudou fazendo-me refletir e agir como é do seu costume. Enquanto se
preparava para mostrar até onde eu podia ir com as crianças foi falando: “O mato é seu?
Você plantou alguma folha? Pois é. O mato não é seu. Você plantou alguma folha? Pois
é o mato não é seu. O mato é de Ossain. Se você precisa mesmo das folhas, vá até ali,
33
Planta africana morada do orixá do mesmo nome. No Brasil, a árvore sagrada foi substituída por
gameleira branca. Nos terreiros, depois de consagrada a raiz , a arvore recebe um ojá branco igual ao que
54
leve uma moeda, deixe lá no chão, peça agô (licença) e fale para o orixá dizendo que
precisa das folhas. Disse mais: Não pegue folhas no chão. Pedi-lhe a bênção como
agradecimento pelo que me foi ensinado.
Antes mesmo de sair do mato contei para as crianças a história do orixá Ossain.
Logo Bié, criança de seis anos na época fez a relação: “Aqui no terreiro tem gente que é
de Ossain”. É tia Honorina. A história de Ossain, como era de se esperar, propiciou
novas descobertas da paisagem material do terreiro. Constatei neste processo, que
conservar a qualidade do meio é principio básico do axé, e esta é uma prática conhecida
pelas crianças do terreiro. Todos são responsáveis pelo lugar. Compreende-se que a
conservação do espaço sagrado garante um clima, uma condição propícia ao axé e a
manutenção da vida de todos os seres do ambiente. No terreiro, o que é sagrado também
é natural. O que pertence ao orixá também pertence ao homem. Naquele dia ouvi de
Dona Detinha mais uma importante história do povo de axé:
No princípio quando Orunmilá chegou para participar da construção do
mundo procurou a ajuda de Ossain para trabalhar nos campos. Quando a
primeira tarefa lhe foi dada, ele se recusou a cumpri-la. Cortar ervas? Onde já
se viu? Argumentou: as ervas nasceram para cuidar do corpo e do espírito das
pessoas.Ossain Saiu pelos campos nomeando todas as ervas e mostrando a
sua importância para a vida dos seres e para conservação do planeta. Foi
assim que cada erva tomou um nome especial para cumprir sua função no
mundo (PETROVICH; MACHADO, 2004, p. 39-40).
Com este mito quero acentuar que a criança quando estimulada a observação do
seu ambiente, consegue estabelecer uma relação de pertença e cuidado. Tomando
conhecimento do mundo que a cerca com atitude de indagação a criança pode
redescobrir aspectos essenciais para formação do pensamento lógico através de cada
ação que é motivada a executar. A experiência de ver, comparar e dialogar sobre a
paisagem do terreiro amplia por cento a vivência no que diz respeito ao uso adequado
da linguagem e todas as suas possibilidades mentais. O mundo da criança do Afonjá é
um mundo complexo no seu universo material e imaterial. Daí que esta mesma
complexidade é propiciadora da organização do pensamento no processo de
aprendizagem significativa. A partir da observação do ambiente e das manifestações
concretas da comunidade, as crianças estabelecem relações com diversos elementos
potencialmente capazes de interferir no ato de aprender a aprender.
cobrimos nossas cabeças . Como na África recebe oferendas rituais
55
2.17.1 Outras aprendências
Por ocasião do I Encontro das Folhas, Mãe Stella foi convidada para proferir
palestra no referido encontro. Impossibilitada por um compromisso firmado
anteriormente fora do Brasil e consciente da importância da sua presença no evento
desculpou-se com gentileza:
Aos Senhores organizadores do I Encontro das Folhas,
Fiquei muito contente quando soube do seminário I Encontro das Folhas, que
trata da relação do homem com o meio ambiente. Para nós do candomblé,
todos os elementos da natureza são sagrados, daí a grande importância que
damos a este evento. Gostaria de dar minha mensagem pessoalmente,
entretanto, um compromisso, também de ordem religiosa, me impossibilita de
estar presente. Estou vibrando para que tudo dê certo. E para não deixar uma
falha, escolhi uma filha-de-santo, Vanda Machado, filha de Oxum, para me
representar neste momento. Creio que ela, como educadora, falará das
vivências no axé, cumprindo o meu pedido. Esta é, portanto a minha
mensagem de sucesso. E da próxima vez farei todo esforço para estar
presente, com a bênção dos orixás. (março de 1996) (MACHADO, 1996, p.
53).
Impactada pela responsabilidade que estava assumindo solicitei que conversasse
comigo sobre o assunto. Sentada na sua varanda e foi com o mesmo sentimento, que
Mãe Stella fez sua declaração de amor à mesma árvore. Ela olhou para o Iroko, respirou
fundo e falou pausadamente:
Veja esta árvore. As suas raízes são fortes e bem cravadas na terra. Você
imagina por que as raízes são tão bem cravadas na terra?Ela foi falando e eu
fui escutando. A sua fala que me tocava profundamente: esta árvore é a
representação fiel da nossa comunidade. Veja as raízes, repare como elas são
profundas. E às vezes elas não nascem todas no mesmo lugar. Às vezes elas
caminham ao longo do terreiro e terminam nascendo num outra posição num
outro lugar. As raízes, portando, são os nossos ancestrais. Elas são próximas
e profundas ao mesmo tempo. Elas seguram este tronco forte que está ai. E
esse tronco somos nós os mais velhos. Nós todos juntos, unidos pela nossa
tradição e pela nossa cultura. Só assim somos capazes de conservar de
fortalecer e até reconstruir positivamente o pensamento africano que nos foi
legado também em forma de religião. Já as folhas são nossos filhos, são os
nossos netos. É tudo que se renova com as gerações que estão por vir.
Mas, veja bem... Para que esta árvore pudesse nascer e crescer, foi necessária
uma base muito forte, foi necessária a terra. Essa mesma terra que é
maltratada, poluída, danificada, mal utilizada, não se poupa de nos oferecer o
que há de melhor de si. (MACHADO, 1996, p. 55)
De fato, o pensamento de matriz africana não separa a pessoa, os animais, o ar, a
água, o fogo, a terra nem as folhas. Uma árvore não é apenas uma árvore, uma unidade
biológica.A árvore é parte do ser nascida da terra mãe e de toda natureza.Não é sem
motivo que estamos sempre saudando a terra. Seja cantando, seja rezando ou quando
56
nos apresentando diante dos orixás vamos ao chão saudando a terra. Eu mesma
muitas vezes me surpreendo caminhando e cantando Onile mo juba. Igba orixá, Igba
Onile
34
. Ao longo da minha iniciação tenho vivenciado uma nova relação com a terra.
Uma relação de amor, de afeto e de crescimento.
Enquanto iaô a terra me acolheu durante muitos dias, fazendo-me brotar do chão
como uma nova semente. Estamos sempre tocando com a cabeça do chão numa
reverência que transcende ao simples ato de prostrar-se. O obi
35
é cortado e jogado no
chão. O osé ter que ser feito com os objetos e elementos rituais lavados no chão. Os
mais novos reclamam. Os mais velhos não. Eles sabem o que fazem e porque fazem.
Eles agüentam nas pernas, às vezes trôpegas. Fazem o seu osé no chão, com
tranqüilidade, sem reclamar. E quando Oxum nos chama para a ancestralidade é a terra
que nos acolhe no mesmo ventre que nos fez brotar mantendo a continuidade da vida e
da ancestralidade.
Entendemos que a terra, a água, a natureza são manifestações de princípios
ancestrais construtores dos seres humanos. A terra é mãe, é mulher; fêmea, é generosa, é
sedutora. A terra se enfeita e se aquece, e se oferece para receber a chuva, sêmen que
molha e deixa exalar um cheiro de vida. A terra é viva e abre suas entranhas para
receber novas sementes, novas folhas, novos frutos. A terra é próspera. A terra é
sagrada. Cada pedaço de terra, por menor que seja por certo é uma síntese do mundo,
uma referência de vida, assim como a água. Zahar vê na identidade africana uma estreita
correspondência entre o homem e o mundo:
Estas duas entidades são como dois espelhos colocados face a face e
transmitindo suas imagens recíprocas – o homem é um microcosmo que
reflete o grande, o macrocosmo que reflete o grande mundo, o macrocosmo, e
este, por sua vez reflete o homem (ZAHAR apud SODRÉ, 1988, p.62).
Decerto que antigos africanos, oriundos das mais diversas etnias desapareceram.
Entretanto, o universo cultural permaneceu. A tradição que é oral baseia-se na
concepção do homem e do seu lugar e do seu papel no seio do universo. Ela envolve
uma visão singular de mundo – um mundo concebido como um todo onde todas as
coisas se ligam e interagem. O pensamento africano não é, portanto, algo que possa ser
isolado da vida.
34
Cantiga de saudação a terra.
35
Noz de cola, semente de origem africana, usada para o jogo divinatório e oferenda aos orixás.
57
Nós herdamos de nossos ancestrais o nosso próprio MÉTODO DE
CONHECIMENTO. O africano não estabelece distância entre ele e seu
objeto de estudo. Ele toca, ele vive, ele aspira, ele vive a realidade
dialeticamente. (SENGHOR, 1965 apud SIQUEIRA, 2006a).
58
3. AÇÃO, PESQUISA, ITINERRÂNCIA,
APRENDÊNCIAS E ESCRITA
O estudo é para compreender o pensamento africano na construção de uma
possível epistemologia para en-sinar as crianças na comunidade de terreiro do Ilê Axé
Opo Afonjá. Diante desta perspectiva, abre-se uma demanda para atenção especial à
relação objetividade-subjetividade na formação para a realização do Projeto Político-
Pedagógico Ire Ayó. Isto significa dar atenção especial à educação de um povo que
mantém encravado no seio da comunidade o pensamento africano recriado na diáspora,
ligando todos os fenômenos, todos os eventos sempre no presente costurado pela
memória ancestral. Trata-se da memória cultural que atualiza a existência da
comunidade, além de preservar individualidades. .Memória capaz de emancipar o
indivíduo, restabelecendo vínculos entre a comunidade e o mundo ancestral.
Eu cheguei ao Ilê Axé Opo Afonjá, nos idos 1986. Carregava comigo o objetivo
de operacionalizar um projeto de pesquisa de ensino e aprendizagem, enfocando o
universo cultural da criança afrodescendente na Escola Eugenia Anna dos Santos.
Consequentemente, levei também o propósito de vivenciar o cotidiano da comunidade.
Tratava-se da minha primeira pesquisa. Era a primeira vez que eu me aproximava de
59
uma comunidade de terreiro. A convivência nessa comunidade me incitava na
percepção desveladora da consciência de mim mesma e de uma outra realidade que se
desenhava parcimoniosa a cada encontro ou celebração. Interessava-me participar de
todos os eventos possíveis. Inspirava-me o pensamento de Augras quando diz que: “a
consciência de si e consciência do mundo são dois enfoques do mesmo fenômeno”
(AUGRAS, 1986, p. 21). O desejo era compreender a relação cultural que me envolvia
e já teria envolvido, pelo menos cinco gerações naquele terreiro.
A cultura ali vivenciada fora herdada e transmitida numa cadeia viva e plena de
sabedoria. Sabedoria que era evidenciada no conhecimento que crianças, jovens e
adultos possuíam pela própria natureza da comunidade. Conhecimentos que emergiam
da evidencia cultural existente no entrelaçamento dos fenômenos de todos os mundos
36
vividos no terreiro, incluindo a influência da sociedade quase sempre adversa.
Enquanto dava início à minha cerimoniosa aproximação tanto na escola como no
terreiro fui aprendendo outros códigos, outras práticas de percepção para compreender
os diversos discursos do cotidiano e criar um caminho metodológico para o estudo. Fui
reparando na maneira ritualizada de viver ou no ato do não fazer e do não dizer nada.
Foi longa e lenta a caminhada para compreender que o silêncio das vigílias impostas
pelas obrigações rituais tem um sentido regenerador.
Enquanto recolhida para feitura, vivi o silêncio que sacia uma necessidade
interna indizível. É daí que emerge uma inteligência que não divide, não hierarquiza.
Uma outra inteligência que emerge do sagrado cheio de energia de vida. É a consciência
atenta, desperta que olha o instante presente vivendo o agora de todos os tempos. São
percepções que não se enquadram em nenhuma categoria que possa ser analisada sem o
contexto encharcado de uma intensa e múltipla dialogicidade.
São percepções do grupo que envolvem todas as vozes de todos os tempos em
sua origem, em sua essência, em seu segredo. Aí muitas vezes só o corpo fala num
ritmo marcado, captando o seu vínculo com a totalidade do ser porque só o corpo inteiro
nos serve de orientação. É comum ouvir-se das pessoas mais velhas: “antes de escutar
os outros, primeiro escute a sua cabeça”. É o momento do Corpo-território que na fala
de Sodré afirma que
Todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, de um
campo que lhe é próprio e que se resume, em última instância, a seu corpo. O
corpo, o lugar zero do campo perceptivo é um limite a partir do qual se define
um outro, seja coisa ou pessoa (SODRÉ, 1988, p. 123).
36
O mundo da ancestralidade, o mundo dos vivos e dos que hão de vir.
60
Percebe-se com o corpo a necessidade de qualquer aprendizagem para ser onde
o saber se faz oportuno. O saber que se realiza sem a fala de um mestre. O saber para
ser que supõe um limite para que o sentido do aprender não se torne inócuo. Todo saber
tem uma necessidade precípua. Esta foi a inspiração, outra forma de en-sinar com o jeito
de educar do terreiro. Uma educação que tem como fundamento a observação, a
compreensão da gênese dos acontecimentos, da inter-relação e interdependência de
todas as coisas e de todos os saberes. O diálogo pela escuta inclui todas as perguntas,
respostas e expectativas. Na comunidade do terreiro como a percepção é de uma
realidade que transcende, os sentidos se alargam, atravessando as fronteiras
disciplinares, conceituais criando um campo semântico ilimitado. O pensamento de
matriz cultural africana não comporta especialistas. Como generalistas vive-se a
necessidade da compreensão da totalidade dos seres.
3.1 DE VOLTA AO PRESENTE DO PASSADO
Em 1998, numa data que não sei precisar, atendi um chamado que vinha da casa
de Xangô. Era um chamado de Mãe Stella que sem muitos rodeios, numa fala rápida
indicava que a partir daquele momento eu deveria dar um jeito na Escola Eugênia Anna
dos Santos na comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá que sofria com uma crise
administrativa que influenciava todas as relações escolares. Já havia se passado mais de
dez anos da primeira intervenção curricular que resultou na dissertação de mestrado
editada em 1997, com o titulo de Ilê Axé – Vivencias e Invenção Pedagógica - As
crianças do Opo Afonjá.
Na contracapa Mãe Stella sintetiza a história do meu início antes mesmo de me
tornar filha da comunidade:
No ano de 1986, na Segunda Contoc - Conferência da Tradição e Cultura dos
Orixás em Nova Iorque conheci Vanda Machado que logo se integrou a meu
grupo de trabalho. Aprendi a apreciá-la pela sensibilidade com que procedia,
principalmente quando se tratava de assuntos de Orixá e suas variantes. Esta
amizade perdurou.
Quando encontrei com ela novamente, no Brasil a afinidade continuou. Isto
porque trabalhávamos juntas nas reuniões subseqüentes sobre o mesmo tema.
Soube então que era pós-graduanda de educação pela UFBA e pretendia
dissertar sobre o tema de sua predileção. Pediu-me autorização e consenti que
trabalhasse em nossa comunidade, onde temos a Escola Eugênia dos Santos.
Apreciava a dedicação que dispensava aos alunos e o entusiasmo em que
ficava ao ver o progresso dos mesmos. Sua sensibilidade levou-a a fazer um
belo trabalho usando toda a essência da nossa cultura, transformando em
ensinamentos, que seriam, nada mais , nada menos que uma amostra da
magia espiritual que praticamos. Ao utilizar uma raiz de inhame,
61
acompanhando desde a germinação, plantio até a colheita, usando facas e
enxadas para realização do trabalho, valorizou cada palavra ouvida na
comunidade e terreiro e cada vegetal do cotidiano. Abençôo este trabalho que
já foi bem aceito pelos mestres e faço votos de sucesso. E que o mesmo sirva
de parâmetro para todos aqueles que conseguem produzir educação com
eficiência e carinho conseguindo conciliar a ciência com a fé e o prático com
o teórico. “O ser crente sem ser fanático (MACHADO, 2002, contra capa).
A interferência solicitada por Mãe Stella faz ativar a absorção da minha
pertença, na afirmação de ser, pertencer e participar da convivência no terreiro. Agora,
na condição que ia além de um membro. Naquele momento eu já vivia o chamado como
filha da comunidade. Nascer numa comunidade de religião de matriz africana não é algo
provisório. É um nascimento que se renova a cada dia, a cada encontro, a cada
obrigação até a consciência de nascer definitivamente carregando os influxos da
identidade ancestral. Identidade que ganha implicações significativas na criação e no
processo de mediação pedagógica do projeto Ire Ayó, agora parte importante do estudo
em questão.
O objetivo deste trabalho, por certo não é discorrer sobre as religiões de matriz
africana. Até porque o pensamento africano não fragmenta a vida nem demarca as
subjetivadas das experiências cotidianas. Portanto não há o que religar. Dada a
complexidade do estudo a que me proponho, sinto como imperativo compor uma
tessitura de significados culturais produzidos pelo cotidiano do terreiro, incluindo o que
hoje chamamos de religião. São significados em reorganização permanente, condição
necessária à manutenção das vivências e das celebrações da comunidade como fluxos
nutridores e dialógicos incluindo a escola e a comunidade. Neste contexto, nos
apoiamos na fala de Moraes quando defende uma educação viva e solidária, afirmando
que
Temos esperança de que a concepção das organizações sociais como sistemas
autopoiéticos possa ajudar a melhor compreender a natureza complexa da
escola e o funcionamento dos sistemas educacionais. Quanto mais complexa
é a organização, mais rica e nutridora deverá ser sua relação com o seu
entorno e com as circunstancias que envolvem. Transferindo este pensamento
para o domínio das organizações sociais, percebemos que as relações
escola/comunidade, escola/ cultura e escola/contexto deveriam ser realmente
muito bem cuidadas, compreendidas e analisadas para que o sistema
educacional possa dar respostas adequadas aos anseios da sociedade.
(MORAIS, 2003, p. 253).
O enredamento, os desencontros que emergem da sociedade reverberam na
comunidade com os seus significados muitas vezes imprecisos e ambivalentes.
Entretanto, vale a pena sublinhar que o comportamento religioso cria um modo de vida
trans-humano, transcendente. Para esta reflexão, não se trata de desenterrar raízes
62
porque tudo se mostra sem limites. Trata-se da concepção de que nenhum
acontecimento é único, e acredita-se mesmo que tudo pré-existe. O povo banto
considera que o mundo é um grande pacote feito por Zambi, o Deus criador. Nesse
pacote Ele teria colocado todos os problemas, todas as doenças, todos os males, também
todas as curas, todas as ervas, todos os remédios para todos os males. Cabe ao homem a
busca dos remédios para os seus males, porque tudo nasceu junto. Segundo o
pensamento banto, o homem não cria nada. Ao homem é concedido o poder de
desvelar, seja pela arte, pela ciência, pela filosofia ou pela religião. O homem tem o
poder da descoberta. Tem o poder de caminhar fazendo caminhos.
3.2 EU SOU COMO NÓS SOMOS
A vida de cada um imita a vida dos deuses na sua mais completa intimidade. Se
levamos em consideração o calendário religioso, o Odum, as festas religiosas trazem no
seu retorno periodicamente tudo que já existe incluindo o sentido festivo reatualizando
no tempo que é sagrado. Daí que os rituais estão presentes na renovação do tempo, na
construção da pessoa e da comunidade.
No trabalho de apreensão da comunidade foi preciso mesmo, a cada momento,
renunciar ao ato de julgar segundo critérios próprios para me aproximar do que parecia
um mundo novo. Foi preciso mesmo, a cada instante, lembrar a prudência recomendada
pelo tradicionalista Bokar. Esqueces o que sabes. Caso contrário estaria simplesmente
transportando os meus pré-conceitos, ao invés de manter-me a escuta.
Para o estudo da relação entre o pensamento africano na realização do Projeto
Político- Pedagógico Irê Ayó, sem pretender qualquer ação prescritiva nos inquietamos
com perguntas inevitáveis: Afinal, quem somos nós? Espelhados no pensamento
africano, como educar para co-existência, autonomia e solidariedade? Como reconstruir
uma educação inspirada também no brio afrodescendente com a tessitura da cultura e
ancestralidade como sentido na vida? Como vamos abordar a verdadeira participação do
negro na formação da nação brasileira? Qual o repertório de crenças e valores,
sentimentos e idéias que dão o contorno da nossa identidade ancestral e da nossa
memória coletiva? Qual é o cognitivo da sociedade em relação ao afrodescendente, no
que diz respeito à cultura e à religião? Como reverter os argumentos coisificantes da
63
história que nos foi contada, e revelar a identidade ancestrálica que alarga a consciência
e autoriza a reinvenção da nossa própria história?Como identificar no cotidiano as
subjetividades que ocultam a não aceitação das nossas diferenças e colocá-las a favor de
estudantes negros e negras, ressignificando-as? Como mantê-los próximos dos
mananciais das ciências, da filosofia e da arte, transitando pelos meandros da sociedade,
vivenciando a tradição e memória sem amargar a vigilância da subalternização que nos
cala enquanto vozes instituintes?Como desvelar a alma negra na sua completa dignidade
ocultada pelo colonizador?Alma empanada pelo racismo e pela intolerância ou a
solidariedade com efeito do poder que se manifesta no cotidiano impedindo a nossa
indignação? Voltamos a indagar, quem somos nós e como vamos nos apresentar num
contexto histórico atualizante? Boff pondera que:
Quando dizemos ser-no-mundo não expressamos uma determinação
geográfica com estar na natureza, junto com plantas, animais e outros seres
humanos. Isso pode estar incluído, mas a compreensão de ser-no-mundo é
algo mais abrangente. Significa uma forma de ex-istir e de co-existir, de estar
presente, de navegar pela realidade e de relacionar-se com todas as coisas do
mundo. Nessa co-existência e com-vivência, nessa navegação e nesse jogo de
relações, o ser humano vai construindo seu próprio ser, sua autoconsciência e
sua própria identidade (BOFF, 2000, p. 92).
Acreditando na necessidade da manutenção do sentido agregador do povo negro,
indagamos como vamos en-sinar crianças e jovens contando-lhes histórias de com-viver
e co-existir solidariamente?Como vamos abordar histórias polifônicas, incluindo
histórias de conflitâncias e de reorganização? Como vamos contar história das histórias
que podem gerar inquietude e a mobilização para novas possibilidades e perspectivas de
transformações criadoras na sociedade?
Estas inquietações surgem quando é possível perceber o embate entre a
consciência histórica desafiante, a memória coletiva e um currículo conteudista e
modulado. Um currículo que não se abala para uma pedagogia que possa contemplar as
diferenças, ou para um fazer isento das ambigüidades curriculares. Ambigüidades que
têm sancionado políticas que conseguem oficializar a exclusão. De fato, são
ambigüidades que têm respondido com evasivas ao diálogo proposto pelas
subjetividades desafiantes de uma nação de maioria afrodescendente.
Estas reflexões surgem justamente quando entendemos que a universidade há de
denegrir-se para o diálogo efetivo com as comunidades negras. Diálogo com os
movimentos sociais e fazer valer outro senso ético, outra política, outra epistemologia
que possa nos acolher em nossas possibilidades de ser, não um vazio vivo, mas um ser
64
potencialmente igual à totalidade dos seres do universo, soma das forças existentes de
todo conhecimento possível.
3.3 TEM QUE TROCAR A MÚSICA E O TOM DA MÚSICA
Para compreender a criação do Ire Ayó foi imprescindível a inclusão de histórias
individuais, incluindo a mim mesma. A essas histórias se juntaram outras ainda não
contadas ou que se dissipam no som das imprescindíveis sinetas que imprensam,
disciplinam hierarquizam e vigiam conteúdos fatiando informações e acanhando
caminhos do conhecimento. Práticas desfocadas na vida já não se justificam numa
sociedade que se diz globalizada. Esta é uma das práticas que tem criado rupturas na
educação. Que tem funcionado como uma estratégia perversamente consciente. Esta é
uma condição que tem impedido o estudante afrodescendente de articular e organizar
informações sobre o mundo, incluindo-se. Estas e outras ações compartimentalizantes
são identificáveis como obstáculos que impedem e parcelam o conhecimento, separando
o sujeito do seu mundo, da sua história e da sua cultura. Separando o mundo conhecido
do conhecimento, a educação tem produzido a catástrofe da perda do sentido da
totalidade da história e da memória coletiva do povo brasileiro. Enquanto isso, Munanga
anuncia que:
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não
interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos
alunos de outras ascendências étnicas, principalmente a branca, pois ao
receber uma educação envenenada pelos preconceitos tiveram as suas
estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence
somente aos negros. Ela pertence a todos (MUNANGA, 2001, p. 9).
Diante da luta desmesurada pelo reconhecimento da existência histórica do povo
afrodescendente, parece imprescindível o esforço para repensar a mudança da música e
do tom da música que estamos cantando há tanto tempo, mesmo reconhecendo o
equívoco de uma lógica disjuntiva e coisificante. O mestre Felippe Serpa, de saudosa
memória, enquanto meu orientador neste estudo, costumava repetir: Tem que trocar a
música e o tom da música. Não adianta tocar a mesma música só trocando o tom. Para
Morin e Lê Moigne,
A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva,
reducionista quebra o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona
os problemas, separa aquilo que está unido, unidimensionaliza o
multidimensional (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 208).
65
Diante do currículo que fragmenta a vida no mundo em retalhos e porções
hierarquizadas, cabe-nos indagar: Como contar a história do passado acolhendo as
vivências do presente? O olhar é para os equívocos e os vazios da história. Trata-se de
encontrar as brechas que foram instituídas para criar invisibilidades e calar a voz negra
instituinte. Trata-se de contar a história incluindo a gente negra. História, memória e
vivências comunitárias do povo negro como ainda não foi contada. Só o olhar sobre a
realidade determina a própria realidade.
A volta para a escola, a pedido de Mãe Stella na condição de filha da
comunidade, fazia toda diferença e me criava muitas esperanças. Eu não só estava
imersa na cultura do lugar; era a própria cultura do lugar, implicada, objeto de estudo e
estudiosa. O mesmo Tempo que me fez nascer filha da comunidade me fez compreender
o sentido de ser-sendo em cada espaço. Implicada na multiplicidade de lugares, eu me
coloco numa relação dialógica frente a frente de mim mesma, da minha comunidade e
da academia, e da sociedade.
O tempo continua compondo a minha identidade ancestral no espaço-terreiro.
Desse modo, vivi a atemporalidade que incluía a participação em todas as obrigações
internas bem como as festas públicas. Assim foi acontecendo o meu encontro com o
presente, o passado e o devir pelas memórias desveladas por meus mais velhos e velhas.
No terreiro, sempre estive à vontade, como na Fazenda Copioba, no sítio de minha avó,
ou numa aldeia africana. Eu também estava aprendendo na vida, e fui percebendo que a
nova etapa do trabalho solicitado por Mãe Stella não seria realizada apenas como uma
maquinação intelectual.
Certamente que se fazia necessário compreender a relação com a minha
individuação, com a minha identidade que se construía naquele lugar. Um lugar onde
todos são distintos e potencialmente iguais. Como acadêmica, eu me punha a refletir
como transformar esta experiência numa forma de en-sinar como prática educacional
significativa?O distanciamento nunca foi um exercício fácil. Uma anotação de um
acontecimento não parava como um acontecimento a ser analisado ou inserido como
uma categoria a posteriori. A afirmação dos mais velhos de que aqui tudo pode e nada
pode é o suficiente para esperar também contradições que me levariam a compreender a
comunidade como síntese do mundo. Numa leitura multidimensional, me dei conta de
uma síntese complexa bem do jeito do pensamento iorubano recriado no terreiro.
Pensamento que se enreda a uma multiplicidade enleada de fatos concomitantes,
turbulências e valores paradoxais.
66
3.4 TRABALHO EXPLORATÓRIO OU VIVÊNCIA
COMUNITÁRIA?
Para o registro deste estudo como exercício acadêmico, como conciliação
teórica, ou como investigação, foi necessário deixar emergir a compreensão da
complexidade que nos afeta em alguns esquemas simbólicos no ato de ensinar e
aprender. Este é um dos sentidos que têm incentivado a redefinição do papel de um
outro jeito de pensar a educação. Na ação de en-sinar importa atentar para os princípios
das aprendências dos saberes e fazeres comunitários. Daí que é óbvio pensar no
encontro de pessoas que nas suas singularidades podem ser distinguidas falando de suas
vivências e exemplaridades cotidianas.
Dizendo de outro modo, a convivência na comunidade foi indicando uma
maneira de escutar e interagir com cada pessoa, com cada acontecimento. Insisto que
cada pessoa se distingue no grupo por singularidades bem marcadas. No terreiro, a
posição de mais velho lhe autoriza a manter-se num lugar que evidencia a sua
importância e considera a sua itinerância pessoal e religiosa. Mesmo incluindo possíveis
divergências e tensões, o mais velho é uma referência básica, elo entre o ancestral, o
presente e o devir. Pode parecer contrário, mas o ser velho neste caso implica na espera
de ouvidos para seus ensinamentos como ainda hoje em muitos cantos quase escondidos
no continente africano. Segundo uma expressão consagrada pelos tradicionalistas: “o
ensino só pode se dar de boca perfumada para ouvido dócil e limpo” Bâ (1982, p. 217).
Ou seja, é preciso encontrar quem esteja inteiramente receptivo.
No continente africano, a maior preocupação colonial era remover as tradições e
implantar as suas próprias. Tendo conseguido em grande parte. Como na África no que
concerne à tradição oral, estamos diante da última geração dos grandes depositários. E
estes para serem ouvidos caminharam para além dos grandes centros urbanos. Na guerra
de 1914, quando a maioria dos jovens foi combater na França, muitos não voltaram ou
foram exatamente no momento de serem iniciados pelos anciões. Por outro lado, as
pessoas importantes se obrigaram a enviar seus filhos para escolas de brancos. Os
anciões cada vez menos foram encontrando ouvidos dóceis.
Hoje em dia, o que se percebe na África é que o antes não passava de histórias
de velhos está sendo novamente considerada por uma parcela da juventude culta como
necessidade de se voltar para as tradições ancestrais. O retorno como está acontecendo é
67
para reencontrar os valores fundamentais da tradição, a fim de encontrar suas próprias
raízes e o segredo da sua identidade mais profunda.
Nos terreiros, o apressamento, a não prioridade para o tempo das aprendências, o
saber livresco, embora frio, impessoal, via de regra com informações truncadas,
recheadas de conteúdos muitas vezes duvidosos, a grande presença de letrados
paradoxalmente tem afetado a transmissão de saberes genuínos, afastando ouvidos
dóceis de bocas velhas que resistem à espera de fazer os seus diletos continuadores na
tradição. São essas pessoas que continuam o conhecimento civilizatório africano.
Os mais velhos e as mais velhas possuem uma legitimidade que se fundamenta
nos valores que exercitam as suas capacidades de se tornar sujeitos de um jeito de ser
que abrange os seus saberes e fazeres. Esta é uma condição que faz valer a sua palavra
quando se trata do seu saber ancestral. Sem ser contemporâneo do acontecido, quem
relata basta acrescentar a sua fala: no tempo de minha Mãe Aninha e toda sua fala
adquire a veracidade de quem viveu o tempo da primeira Iyalorixá do Opo Afonjá que
por sua vez trasladou e repartiu os saberes de seus ancestrais dos tempos mais distantes.
O que se define essencialmente como hierarquia nas comunidades de terreiro
tem como fundante o ato de ensinar, a proteção e o cuidado com o outro. Esta é a
distinção que separa a concepção ocidental da superioridade entre pessoas e do jeito
solidário de viver. Esta é uma concepção intrusa, entretanto de muita serventia para
aqueles que desejam chegar grandes na religião.
É fácil perceber que os valores vivenciados diariamente na comunidade são
rizomaticamente africanos. São valores que espelham a forma como tem vivido cinco
gerações que se renovam sem perder a perspectiva da continuidade da herança ancestral
como manifestação da verdade do grupo. A herança mítica africana está imbricada
numa teia de vivências plurais que se repetem nas singularidades e nas diferenças do
jeito de ser do povo brasileiro. Vivências plurais que retomam da ancestralidade
estratégias míticas e simbólicas, expressões de significados sagrados, jogos ritualísticos
de linguagens diversas, repertórios culturais reterritorializados, transformando um jeito
de ser em formas de organização social e ritual.
Foi transformando transgressões da ordem escravista em formas ancestrais de
modo de vida em permanente superação, que nasceram as irmandades, as confrarias, as
associações, os terreiros e os quilombos. Até hoje estes lugares, como micro territórios,
fazem parte de um discurso indexalizado, complexo, originante de uma estrutura de
pensamento comunitário como um espelho africano na sua essência agregadora,
68
presença vital do cuidado, solidariedade e convivência que abranda as dores da
humanidade negra ferida.
3.5 SABEDORIA E SABERES: um jeito próprio de ser-no-mundo
Das comunidades negras, das confrarias e mais precisamente dos quilombos e
dos terreiros, esparramou-se o legado ancestral vivência de raiz, força insurgente para
re-existência do pensamento africano na diáspora. Dos terreiros, recebemos como
legado ancestral um jeito próprio de ser e estar no mundo. Um jeito de ser e viver a vida
fundamentada na essência, nas profundezas da humanidade e um jeito de perceber o
mundo que remonta a origem da nossa existência. Essência que transcende a mera
condição psicológica do sujeito e o constitui em sua diferença.
O pensamento africano nos legou um sistema de estruturas simbólicas que está
na origem da ciência do saber racional e tecnológico. Quando afirmamos pensamento
africano não estamos homogeneizando a cultura do maior continente habitado do
mundo, nem estamos falando de uma mera reedição do passado. O pensamento africano
enquanto objeto desta pesquisa está circunscrito em aspectos da cultura iorubana, que
também é plural. Este pensamento que nos afeta diretamente pela origem ancestral da
comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá e que nos constrói como síntese de um
caleidoscópio cultural.
Da matriz cultura africana, herdamos múltiplas vivências culturais, aspectos de
uma tradição incorporada naturalmente em nossas práticas cotidianas. A questão que se
coloca é que nas escolas em todos os seus níveis, há uma depreciação dos conteúdos
africanos e da cultura negra, Depreciação enquanto assunto acadêmico, através de uma
estranheza explícita ou latente. Estranheza por não reconhecer o sentido da real
significação do conteúdo filosófico relacionado à vida, ciência, espiritualidade,
natureza, à relação entre pessoas e à história da humanidade. Estranheza que vem se
constituindo em uma forma de desconhecimento que é proposital revestido de uma série
de preconceitos, discriminações e negação de uma civilização tradicional que deu
origem à humanidade.
O que buscamos hoje, não se trata de romantizar um tempo olhando por uma
janela o cenário melancólico que ficou no passado. Reinos dizimados na sua existência
atemporal migraram na sua essência na memória de cada ancestral e foram
69
reconstruídos como síntese da África iorubana, a exemplo do Ilê Axé Opo Afonjá.
Muitas Áfricas se esparramaram pelo mundo da diáspora, enraizando o sentido do
coletivo, base da tradição africana e que transcende até mesmo na sua ruptura. Ruptura
que paradoxalmente lhe confere dinamicidade ao que parecia inexistente ou já sem vida.
Silva, em artigo com resultados de pesquisas na África do Sul, afirma que:
Nas sociedades africanas, a realidade do mundo comunal precede a realidade
das histórias de vidas individuais. A primazia da comunidade advém do fato
de que o compreender-se a si próprio se desenvolve gradualmente na
experiência de cada um na comunidade humana. Precedência é dada ao que é
comum. O individual cresce na conexão com quem convivemos. Assim o
individual não está separadamente nem pode ser entendido distante da
comunidade. Para entender, pois os seres humanos, é preciso entender sua
“fusão com a comunidade” (SILVA, 2000, p. 80).
No mesmo trabalho a autora cita Tedla que diz que:
Fusão não significa assimilação, desaparecimento do individual no todo da
comunidade. Significa isto sim responsabilidade de cada um por todos. É por
isso que todos os adultos são igualmente responsáveis pelas crianças da
comunidade, sejam seus parentes consangüíneos ou não (TEDLA, 1995 apud
SILVA, 2000, p. 80).
Vivemos, portanto, uma cultura como tradição reterritorializada numa
reinterpretação particular da civilização africana no território brasileiro e já não
necessariamente nos terreiros e quilombos. Estamos estabelecidos dentro do conjunto de
princípios e valores praticados por esses grupos de re-existência e tradição. Tradição,
memória viva de um povo onde nem o tempo nem o espaço se apresentam como um
limite. Os valores que garantiram a integridade, a vida e a dignidade de nossos
ancestrais escravizados, continuam a criar caminhos de libertação. São valores que há
muito transpuseram as porteiras das comunidades de terreiros e alimentaram o nosso
jeito de ser.
Jeito de ser e vivenciar valores ancestrais negros, que não nos obriga a sermos
necessariamente, nem ativistas nem iniciados na religião de matriz cultural africana.
Entende-se, entretanto, que não é possível interpretar nenhum comportamento deste
povo sem que não seja levado em consideração o seu lugar e enraizamento cultural.
3.6 O MUNDO COMO GEOGRAFIA SAGRADA
No terreiro, a condição de educadora e a singularidade da minha história
enquanto filha Oxum vai acrescida pela consideração à minha essência pela filiação
espiritual do orixá dona da concepção e do espaço das águas, portanto dona do espaço
70
de todas as criações. Esta é uma das condições que aproximam a minha compreensão da
perspectiva dialógica de sistemas mais complexos, concebendo a co-criação como uma
forma de intervenção saudável entre o ser que sou e a natureza. Parece que corrobora
com este pensamento a fala de Moraes, quando afirma que:
A acentuada perspectiva dialógica dos sistemas complexos concebe a co-
criação de significados entre diferentes interlocutores que participam de um
mesmo processo conversacional. Um diálogo entre diferentes formas de vida
e de pensamento humano, reconhecendo o papel criativo e construtivo da
diversidade da heterogeneidade, do acaso, da aleatoriedade e do “erro” no
desenvolvimento de mundos possíveis. É um pensar que ressuscita o diálogo
entre o humano e a natureza, e estimula novas formas de intervenções que
sejam mutuamente vantajosas para todos (MORAES, 2003, p. 208).
Este me parece um dos aspectos significativos a ser considerado. A mediação
que constrói um fazer pedagógico implicado numa dinâmica autorizada ultrapassando a
compreensão da realidade do ser em seu meio físico. Um fazer que compreende o ser
como produto da interação entre todos os elementos da natureza, emoções, valores e
símbolos. São elementos que envolvem a totalidade do ser dando feição e base
ontológica à sua humanidade.
A este respeito o imaginário africano mais precisamente o pensamento iorubano
inclui o ser na criação do mundo como o próprio mundo. Ser e mundo que se
esparramam como fractais do universo. Este é o sentido que apóia a idéia do
entrelaçamento genético do ser com a cultura, com o contexto pela coexistência
comunitária e ambiental. Daí a atenção para este mito que foi adaptado para formação
dos educadores e educadoras do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô na Rede
Municipal de Educação em Lençóis na Bahia
37
:
Conta-se que no princípio, Olodumaré criou o mundo que era apenas água e
ar parados no tempo. Olodumaré olhou em torno e pensou na enorme solidão
que o envolvia. Nenhum som, nenhum movimento que o acolhesse. Ele ficou
se olhando no espelho d’água por um longo tempo. Ele e a água eram quase a
mesma coisa. Encantado, Olodumaré, tira de si um pedacinho de cabeça e
oferece a água. Em seguida um pedacinho de cada braço, outro pedacinho do
seu próprio dorso, alguns pedacinhos de vísceras, pedacinhos dos pés e se
põe a olhar como que mergulhando em si mesmo, sentindo o mundo que
carecia de uma existência compartilhada. Um sopro misterioso, um intenso
movimento de gozo e expansão nas entranhas das águas, as partes divinas se
juntam no mistério da criação e todos os seres vivos se levantam das águas e
buscam os seus domínios. As águas inquietadas a partir daquele momento
ganham força e como parceiras de Deus na criação saem correndo pela terra
adentro espalhando toda espécie de vidas (Extraído do Mito de PETROVICH
e MACHADO. Não Publicado).
37
Mito adaptado por Vanda Machado, com Carlos Petrovich, para capacitação de coordenadores da Rede
de Ensino Municipal de Lençóis, com Grãos de Luz Griô.
71
O mundo africano tradicional tem como princípio uma geografia sagrada onde
os elementos da natureza interagem, criando a paisagem ancestral do universo que se
move dentro e fora de cada um. Se uma poça d’água contém o universo, somos um
fractal deste universo movente. Somos três quartos de água, somos Oxum que brota de
qualquer ponto do corpo ou da terra. Somos a água encarnada que canta, dança, rodopia,
ou enfrenta obstáculos com destreza e sabedoria. Oxum, a mãe ancestral que existe em
cada ser humano. Nós nos consideramos todos seus filhos. Filhos da água que canta
unindo numa única dança os céus, os astros, os trovões as chuvas, as matas, o arco-íris,
as montanhas, as planícies e os oceanos.
O mundo cartesiano não contempla a fluidez dessas presenças. Oxum, água de
múltiplas formas e lugares, se mostra nas enchentes que levam consigo o que está no
seu caminho, nas barulhentas cachoeiras, na piscosidade dos rios que alimentam a terra,
ou na transparência dos lagos e córregos tranqüilos.Água que engole as sombras das
árvores, tornando as paisagens risonhas e brilhantes, deixando refletir o brilhar do sol.
Oxum, água que se esparrama em corpos distintos, criando afetos e outras vidas.
Uma história mítica conta que um dia Oxum estava se sentindo sozinha e foi
justamente a solidão que a inspirou fazer a sua gente de quem ela seria o ancestral
primeiro.Iniciando uma galinha d’Angola como uma iaô, deu início ao povo de
santo.Os feitos de santo se fazem em barcos.Chama-se barco o grupo de iaôs feitos de
uma só vez. .Nesse tempo de feitura a pessoa e a natureza é uma coisa só. Daí que a
terra, a água e as folhas instituem a relação tanto do corpo físico como espiritual que
renasce para outra vida. A água é o caminho de ida e volta ao mundo ancestral. Não fora
a água criadora e criatura, primeiro alimento de todos os seres. Água que se oferece na
tepidez do ventre materno e no peito, primeiro desejo do ser humano, e que
metaforicamente vai abrigar os seres mais queridos. Oxum é nutridora de todas as
espécies saciando a sede do homem, da mulher e da terra. Quando a mulher se enche de
água é porque ela está mais próxima de sua natureza originante ou porque ela está a
recolher ou esbanjar a vida; Água, vida que se manifesta na profundidade da natureza
como mãe parideira do mundo. Oxum Opará
38
segura a espada como brinquedo e
alegoria de preservação da vida; Oxum que usa o espelho, não para ver refletido a sua
própria beleza, mas para ver o entorno e o devir sem perder a perspectiva do tempo
presente, porque tudo é presente.
38
Oxum Apara ou Opará
72
3.7 EU ME VEJO, EU ME SINTO, EU ME ESCUTO E NÓS NOS
CONSTRUÍMOS
A feitura no santo é o que nos desvela, nos contempla e nos inclui revelando a
condição de convivência na comunidade religiosa. Esta é uma condição que vai além da
possibilidade de percepção da manifestação da entidade protetora que está em potência.
A espera é pelo acontecimento que está se efetivando, e este fenômeno é indescritível
por sua própria natureza seminal que religa o cérebro direito e o esquerdo, a razão e a
intuição, a mente e o corpo, incluindo ativamente todos os vivos, os ancestrais e os que
hão de vir. A materialização do que se plasma como num jogo com a espiritualidade
transita pelas dimensões mais profundas que presentifica todos que são chamados a
participar com a Iyalorixá e o Babalorixá. Tudo acontece quando um corpo se entrega
às rezas e ao acontecimento que é pré-existente.
O iaô se oferece totalmente para a sua feitura onde o corpo é o fundante. O
corpo inteiro e todas as suas potencialidades. Um corpo que assume sua potência, que se
rebela aos códigos comuns e que se distingue agora também como corpo dançante. Um
corpo que vivencia e narra histórias ancestrálicas repletas de complexidades numa
forma de linguagem da sua entidade protetora e dona da sua cabeça. No momento da
obrigação há uma enorme concentração para que haja o afloramento do que está como
semente desde sempre. É um mergulho num manancial infindável para se faça presente
o que sempre esteve como energia no corpo e no espírito.
A imanência do que está em potência se realiza plenamente, concomitantemente.
Esta imanência se realiza pelo mistério, pelo axé das cantigas, das rezas e pelo silêncio
que faz parte do jogo ritualístico da escuta e do pensamento que fala e se realiza na
essência humana. Fazemos nossas as palavras de Heidegger, quando diz que: “o
pensamento do ser no tempo das realizações é inseparável das falas e das línguas e da
linguagem com o respectivo silêncio” (HEIDEGGER, 2002, p.15). No ritual da feitura,
o silêncio e a linguagem gestual falam, criam respostas e vibrações que reanimam as
origens mais remotas. Nada acontece como uma simples estrutura simbólica. Estrutura
simbólica é uma abstração e a experiência do nascimento de um orixá e seu
partejamento é uma realidade indescritível. Neste contexto, histórias e mais histórias são
contadas aos neófitos em forma de narração, cantigas e danças contribuindo para o
desvelamento parcimonioso dos segredos, dos princípios e valores da religião do modo
como foi possível sua re-existência.
73
3.8 QUEM CONTA UM CONTO PRESERVA A PALAVRA E
TRADIÇÃO
A vida se traduz no ato de contar histórias. Contamos histórias para encantar,
convencer, para ser desculpado, para comunicar fatos, sentimentos, acontecimentos,
mágoas, alegrias. Somos partícipes de todas as histórias que contamos. Percebemos que
contar histórias implica em estar em consonância com a dinâmica fluente da vida com a
espontaneidade e com a leveza. Para justificar a necessidade de contar histórias da
história, me reporto principalmente aos tradicionalistas
39
africanos. Diletos mestres da
vida comunal consideram a palavra como uma força fundamental que emana do próprio
ser. Palavra como materialização das vibrações das forças que constroem o universo. A
palavra considerada como instrumento de criação. Na tradição africana é a palavra que
diz o que é sendo. A palavra é um bem. É um dom de Deus. A palavra é vida, é ação. É
sopro que transforma. É a palavra que plasma o acontecimento que preexiste em
potência em cada movimento do universo. No pensamento africano, tudo fala, e pela
palavra tudo ganha força, forma e sentido, significado e orientação para a vida. A fala é
o que é. Insistimos que os mitos são constituídos de palavras organizadoras dos
caminhos e vivências de cada um em particular, e da comunidade.
Para os tradicionalistas, os mitos são ensinados e vivenciados ritualisticamente
no processo de iniciação e ao longo da vida. Em algumas regiões da África, o mito da
criação do universo e do homem é ensinado pelo iniciador, que imprime na sua narração
princípios e valores do conhecimento total da tradição em todos os seus aspectos.
Leituras nos dão notícias de que o conhecimento é entregue pela necessidade
aprendente, portanto, é um conhecimento desejado, conhecimento não-fragmentado. Na
fala de Bâ o “conhecer não é um ‘especialista’, ele é um ‘generalizador’. Ele joga o jogo
da natureza que reúne partes que contêm a totalidade das coisas” (1982, p. 187). A
tradição africana vivencia pela iniciação uma ciência da vida, uma ciência
eminentemente prática onde a palavra é reveladora tal como revela o que dela emana.
Os ensinamentos vivenciados nas comunidades de tradição e cultura afro-
brasileiras são inspirados nos mitos. São como dádivas recebidas. Parte de um
patrimônio, herança ancestral ligados a todos os acontecimentos da vida vivente. Os
ensinamentos são forças em potência que permanecem silenciosos na corporeidade.
74
Forças à espera do momento oportuno para a sua materialização pela palavra e ações
interfecundadas pela tradição e vida. A palavra é a força. É a que traduz o conhecimento
e resume a sabedoria. Palavra que dá a força é por extensão o que materializa. A palavra
é o veículo que desvela a tradição e a memória. Um tradicionalista africano exercita a
sua memória a ponto de obter resultados prodigiosos com a palavra. Ele possui
conhecimentos de seu tempo e conhecimentos históricos de todos os tempos. Bâ
assevera que:
Na cultura africana tudo é “História”. A grande História da vida compreende
a História da terra e das Águas (geografia) a História dos vegetais (botânica e
farmacopéia), a História dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia metais,) a
História dos astros (astronomia, astrologia), a História das águas e assim por
diante.[...] Por exemplo, o mesmo velho conhecerá não apenas a ciência das
plantas (as propriedades boas e más de cada planta), mas também ‘as ciências
da terra’ (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de
solo), a ciência das águas, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Trata-se
de uma ciência da vida, cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma
utilização prática. E quando falamos de ciências ‘iniciatórias’ ou ocultas,
termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a
África tradicional, de uma ciência eminentemente prática que consiste em
saber como entrar em relação apropriada com as forças que sustentam o
mundo visível e que podem ser colocadas a serviço da vida (BÂ, 1982, p.
195).
Os mitos desnudam o indivíduo e o mundo até sua mais antiga roupagem,
buscando a sua totalidade psíquica, na qual o seu consciente esteja criativamente unido
ao conteúdo de seu inconsciente que segundo Neumann:
Somente essa integração total do individuo pode tornar possível uma
qualidade de vida melhor para a sociedade. (...) A assimilação do universo
arquetípico leva a uma forma de vida interior de humanização que, por não
ser um conhecimento de consciência, mas sim de vivência do ser humano
total, mostrar-se-á ainda mais confiável do que a forma de humanismo que
conhecemos (NEUMANN, 1974, p. 18).
Quando decidimos trabalhar a apreensão das realidades que se mostram no
pensamento africano, também a partir dos mitos na sua origem matricial foi
considerando a afirmação de que o mito escapa à consciência intelectual. Entretanto,
esta posição não o afasta da dimensão lógico-epistêmica, nem esconde a realidade com
os mistérios da fé. Sinto-me acolhida no pensamento de Morin, quando declara:
Muitos trabalhos de inspiração bastante diversa (entre os quais os meus)
convergem para sublinhar a presença oculta do mito no centro do mundo
contemporâneo, mais profundamente, foi a partir do século XIX, que a
filosofia descobriu a importância do mito e questionou o seu mistério
(MORIN, 1999, p. 170).
39
Detentor do conhecimento transmitido pela tradição oral.
75
Na escuta da comunidade, posso perceber que se tivermos a paciência de escutar
os mais velhos com as suas histórias, mitos e fundamentos desvelados
parcimoniosamente vamos mamar muita sabedoria. Ebome
40
Detinha de Xangô, em
meio a uma animada conversa, eu lhe perguntei como é mesmo essa história do mesmo
orixá ser muitos orixás, tendo nomes e funções diferentes. Ela se ajeitou na cadeira, me
olhou sobre os óculos com seu jeito ensinante e disse:
Olhe bem, eu tenho aqui na minha mão uma cabaça e quebro esta cabaça
aqui no meio desta sala. Um pedaço fica aqui na sala. Um outro pedaço vai
para a cozinha, outro cai no banheiro, um outro vai para o corredor. Imagine
que cada pedaço deste seja um Ogun e que cada um vai ter sua função de
acordo com o seu lugar, com o seu chão. Aí eu podia dizer este e Ogun da sala,
este é Ogun da cozinha, ou Ogun do corredor... Mas se eu junto todos os
pedaços de novo a cabaça fica inteira e é o mesmo Ogun”
.
Esta senhora de quem eu estou falando faz parte de um segmento de mulheres
guerreiras, guardiãs de um patrimônio imaterial incomensurável. Antigas vendedoras de
mingau e quitandeiras da Ilha de Itaparica, são eternas contadoras de histórias míticas
acumuladas ao longo de suas vidas. A mitologia africana, recriada como afro-brasileira,
é pródiga na explicação do mundo sempre em construção e uma ciência que elas
próprias . A mitologia conta a grande história da vida, incluindo sempre o ser humano.
E a criação do mundo acontece segundo a cosmovisão africana da maneira mais humana
possível. A criação do ser humano com a participação de um homem e uma mulher.
Nanã e Oxalá, juntos, criaram o ser humano, conforme mito adaptado por Petrovich e
Machado:
A mitologia nos conta que Olorun criou o mundo criando todas as águas,
todas as terras e todos os filhos das águas e do seio das terras. Criou uma
multiplicidade de plantas e bichos de todas as cores e tamanhos. Um dia,
Olorun chamou Oxalá e ordenou que ele criasse o ser humano. Oxalá sem
perda de tempo, deu início ao trabalho que lhe foi ordenado. Fez um homem
de ferro, constatou que era rígido demais. Fez outro de madeira que também
ficou muito sem jeito. Tentou de pedra, o homem ficou muito frio. Depois
tentou de água, mas o ser não tomava uma forma definida. Tentou fogo, mas
depois de pronto a criatura se consumiu no seu próprio fogo. Fez um ser de
ar, depois de pronto o homem voltou a ser o que era no princípio apenas ar.
Ele ainda tentou criar também com azeite e vinho de palma. Mas nada
aconteceu novo. Preocupado, sentou-se à margem do rio observando a água
passar. Das profundezas do rio surge Nanã, que indaga sobre a sua
preocupação. Oxalá fala da sua responsabilidade naquele momento e das suas
tentativas infecundas. Nana mergulha nas águas profundas e traz lama. Volta
e traz mais lama e entrega para Oxalá para que ele cumprisse a sua
missão.Oxalá constrói este outro ser e percebe com alegria que ele é flexível,
que ele move os olhos, os braços, a cabeça ...então, sopra-lhe a vida. A
criatura respira e sai cantando pelo mundo: ara aiyê modupé / Orumilá funfun
ojo/ nilê ô. (Esta é uma cantiga de agradecimento criada por Mestre Didi)
(PETROVICH; MACHADO, 2002)
.
40
Irmã mais velha na língua yorubá.
76
Compreender o pensamento africano passa pela necessidade
de apreensão de outras
realidades. O ser humano não foi construído de um único elemento da natureza. A
construção foi de um ser síntese do mundo, síntese de elementos cósmicos. A
cosmovisão africana, destacadamente a mitologia, serve como reflexão para
aproximação ou reconciliação da tradição com a ciência, com a filosofia, com a
psicologia moderna e com a vida numa outra perspectiva de mundo.
Para Merleau- Ponty “A verdadeira filosofia é reaprender o mundo, e nesse
sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’quanto
um tratado de filosofia” (1994, p.19). Vale considerar que a nossa linguagem não está
apenas nas falas. Se penso no vestuário feminino, por exemplo, tudo faz sentido: As
cores, a quantidade de anáguas, o tecido, a qualidade e cores das contas ou guias, o pano
da costa, na sua qualidade e jeito como é posto. O uso ou não de batas, a forma de como
o ojá prende os cabelos, tipo de calçado. Esta é uma linguagem que contém uma fala,
que é um texto inteiro sobre a filha de santo a partir do seu jeito de vestir-se e caminhar
no mundo. Um texto no hipertexto que é o cenário – comunidade.
3.9 APRENDENDO A APRENDER O CORPO CULTURAL
O mito da criação dos seres humanos no primeiro momento propiciou uma
intensa reflexão quando nos indagamos quem somos nós? Daí nós nos pensamos cada
um com o seu jeito de ser-no-mundo, a partir de elementos da natureza identificados,
sintetizados e relacionados com a complexidade de comportamentos humanos. Nós nos
percebemos nas nossas singularidades na mais profunda relação com vida pessoal e
comunitária. Esta foi uma reflexão vivenciada intensamente com ajuda de Graça
Viana
41
, na formação e não há escrita capaz de retratar a emoção de tudo que foi dito e
escutado.
O mesmo mito inspirou práticas pedagógicas abrangendo tanto a perspectiva de
aproximação com as ciências, como motivação para compreender questões da saúde,
formação de atitudes, cuidado com a vida e com o outro.
Um vigoroso trabalho conjunto foi realizado com Dra. Mônica Nunes na
Faculdade de Odontologia da UFBA, envolvendo estudantes do primeiro semestre no
ano 2000. Os encontros também realizados na Eugenia Anna renderam um
77
conhecimento singular, reunindo os saberes das folhas e da ciência numa conexão
importante para os dois grupos de pesquisa. Crianças e jovens estudantes produziram o
que foi chamado de árvore do conhecimento num respeitoso contato com as folhas e
com o meio ambiente do terreiro. Importante quando foi lançada a pergunta: o que é ter
saúde? Uma criança respondeu: ter saúde? É quando a gente está feliz. A resposta que
foi acolhida pela médica acatando o conceito acadêmico de saúde integral.
A seguir, a aproximação com as ciências aconteceu com a modelagem de órgãos
e partes do corpo com a argila e criação de várias histórias de diálogos entre os órgãos e
aparelhos no seu funcionamento solidário. Segundo os tradicionalistas africanos, é a
mitologia que faz a mediação que insere quem está sendo iniciado (que não tem o
mesmo sentido ocidentalizado) na grande história da vida. Assim, o africano conta uma
história e depois outra. Da mesma forma há uma história cosmológica no interior da
qual há uma outra história de vida, finalmente pode ser encontrada a nossa própria
história de vida vivente. Nas comunidades de religiões afro-brasileiras, vive-se
mitologicamente. Coll chama a atenção para o fato de que:
Cada cultura e também cada civilização, repousa e fundamenta-se em mitos
próprios que não são reduzíveis uns aos outros, o que não impede que possam
existir semelhanças. Numa perspectiva transcultural, penso que é no nível dos
mitos que devemos trabalhar: primeiramente para ver se há elementos com
valor transcultural e, depois, independentemente desta constatação, mas
levando-a em consideração, explorar como podemos entrar em comunhão
mítica de nossos respectivos mitos, sem abandoná-los (COLL, 2002, p. 79).
Um bicho ou uma planta pode estar associado a uma história do orixá para que
não seja esquecido um só detalhe do jogo que se transforma em celebração de vida e
esperança de uma cultura viva e vivificante. Na caminho da aprendizagem, através de
narrativas que se repetem indefinidamente, há de se compreender que o sentido, a tração
e repulsão vivem no mesmo plano.
As práticas pedagógicas do pensamento africano se realizam como uma ação
poética de criação e auto-recriação, e o cuidado é o que mais importa. De onde surgem
essas idéias? Em Osogbo, na Nigéria, durante o festival de Oxum pude compreender
porque comer pato a até pegar no bicho é uma quizila, ou interdição dos filhos de Oxum.
No momento da oferenda no rio Oxum, em seguida a oferenda principal foi colocado
uma enorme quantidade de patos no rio Oxum. Espantada com a nossa relação com
patos, perguntei a Omidire sobre o que havia percebido. Ele respondeu com prontidão
usando códigos que fazem também do nosso universo religioso para uma revelação
41
Maria das Graças Viana, é ajoê de Iansã e mestra em psicologia.
78
considerável. Daí compreendermos que nossos ancestrais nos legaram percepções e
interpretações fenomenológicas irrigados pelo vigor mitopoético como ação educadora.
A criação de histórias, portanto, é uma forma natural de mitologização, com uma função
de en-sinar.
O pato, no masculino mesmo, está associado à maternidade esta
associada ao cuidado ao olhar não desviante da mãe. Oxum é mãe por
excelência. E a que não desvia os olhos do filho. É a que anda atrás
para prestar atenção ao caminho dos filhos. O pato é diferente da
galinha. A galinha caminha na frente. Se um filho desviar ela pode até
não se dá conta do acontecimento (Conversas com Ayoh'Omidire em
2003)
3.10 ABRINDO CAMINHOS NO MUNDO, CANTANDO E
DANÇANDO
Naturalmente que o sentido de ser-sendo passa por todos os sentidos e a
compreensão fenomenológica dos mistérios e dos acontecimentos mitológicos que nos
constroem. Os animais como presença sagrada inspiradora para a comunidade também
se oferecem como alimento, não como predadores ou presas, mas como parte da
presença do divino que morre e partilha seu corpo para o fortalecimento e vida da
comunidade. Neste sentido, a aceitação do indeterminismo afugenta o fantasma da
ininteligibilidade ocidentalizante.
O sangue que molha a terra é regenerador e se esparrama em forma de axé que
alimenta a natureza originante. O animal, quando integrado aos outros elementos no
sacro - oficio é lavado previamente e considerado como um ser que compreende a sua
função naquele momento. A função de transitar pelos mais íntimos caminhos que fazem
os encontros dos deuses com os homens evidenciando as suas presenças míticas
Na trama sagrada que se faz no diálogo com as experiências ancestrais, a água
lava os bichos não apenas para limpar as impurezas do ambiente físico, mas como uma
forma de aproximação da oferenda com a energia que há de fluir animada pelas rezas,
cantos e danças durante a obrigação ritual. Como em outras práticas rituais, tudo vai
estar em concomitância com o acontecimento imanente. Reiteramos que só por uma
intensa concentração nas muitas atitudes individuais e coletivas é que se efetiva o
acontecimento que se encanta como se espera.
Cada obrigação envolve todo terreiro. Há os que estão envolvidos diretamente, a
Mãe de Santo, a Iya Kekerê, o BabalOssain, que cuida das folhas, a oganlá, responsável
79
pelas cantigas, os alabês que tocam os atabaques entre outros que participam como suas
presenças para a redistribuição do axé. Os mais velhos têm sempre um papel ativo nas
obrigações. Eles podem não praticar ações visíveis. Podem estar simplesmente sentados
ou até cochilando, se for o caso. Para todos os efeitos estão juntos com os outros que se
movimentam vivenciando todas as ações rituais no mesmo grau de importância.
A primeira entidade a ser evocado é Exu com o canto de consideração pela sua
presença: Inã Inã mo juba aiyê/ Ina mo juba.Exu do fogo, peço licença. Exu do fogo eu
apresento meus respeitos
. A evocação é para que o Exu do fogo que existe em cada ser
possa inflamar as palavras dos homens e das mulheres para que tomem o significado das
ondas e das danças que se movem em qualquer direção. Que as ações rituais possam se
esparramar em fluxos ressonantes e se transformar no mistério da comunicação.
Comunicação que nas religiões de matriz africana é da responsabilidade do orixá Exu.
Orixá que interfere nas louvações, tecendo tempos e espaços transcendentes,
envolvendo todo patrimônio espiritual disponível na capacidade mobilizante das rezas,
gestos, cantos, danças, mitos que infestam o universo de cada obrigação.
Para que se cumpra esta função comunicante, antes de qualquer obrigação
pública ou privada, a comunidade se reúne para o padê. Este é um ritual de encontro
entre o passado, o presente e o devir, devotado a Exu elemento dinâmico propiciador da
comunicação entre os seres humanos e as diferentes dimensões cósmicas. Padê ou ipadê
é um ritual que remete às percepções pessoais e coletivas numa polilógica de sentidos
regidos por memórias da comunidade. É um ritual que dá significado às relações
peculiares entre as entidades de todos os mundos, e de Exu com a comunidade. É um
ritual interno, com a finalidade de reiterar os respeitos e consideração pelos incontáveis
serviços que Exu presta a comunidade e a cada um, em particular.
Falamos anteriormente que em tempos remotos, Exu teria conquistado a
confiança dos homens, aprendendo e ensinando os segredos do jogo para que estes
pudessem dialogar com os orixás apresentando as suas queixas, buscando a cura para os
seus males e a realização dos seus mais íntimos desejos. Isto significa que os homens,
ao se darem conta dos acontecimentos imanentes pelo jogo dos búzios ou Ifá
42
, vão se
comunicando com os orixás, fazendo-lhes oferendas que alimentam as possibilidades, a
vida e o axé.
Seria esta a raiz do princípio do mobilismo heraclitiano de onde “tudo flui”?
Daquele que não diz nem oculta embocado nas suas diversidades e transtemporalidade?
80
Exu não só está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos, mas também
com tudo que existe e que se imagina existir no universo, porque tudo é vivo. Ele não
pode ser aprisionado em nenhuma categoria. Ele é parte da natureza, do ser humano e
da humanidade nas suas ambigüidades e contradições e em seus enigmas mais
imponderáveis.
O Padê é o momento em que os atabaques
43
falam, evocam os ancestrais,
convocam entidades de todos os mundos, valendo-se de um código extraído da nossa
mais remota configuração de humanidade. Quem sabe, posso fazer minhas as palavras
de Galeffi quando, apoiado em Nietzsche (1987), nos fala de um fazer operante que tem
como sentido a própria construção da humanidade do homem, na mais lúdica expressão
do termo.
Isto significa, entre outras possibilidades que o mundo é um jogo de
possibilidades interpretativas, um infinito de jogos de possibilidades. E o
infinito aqui não tem mais nada a ver com o mundo teologicamente acabado,
mas pelo contrário, fala de um mundo em ebulição, mundo de infinitas
formas, ofertadas ao perspectivismo humano (GALEFFI, 2001, p. 315).
Exu é o principio, o meio e o fim. Exu está na árvore, no rio, no peixe, no
pássaro, na pedra e em todo ser vivente. Como elemento energético dinamizador e
plasmador, ele é o que desenvolve, mobiliza, faz crescer transformar e comunicar no
incessante fluxo das vivências cotidianas entre o Orun e o Aiyê. Ele é o tudo e o nada.
Seu jeito buliçoso de existir encontra ressonância no pensamento filosófico de um
universo sem lógica. Um universo de lógicas infinitas, um universo polilógico. Mas
qual seria a relação entre esta prosa que pode até ser considerada sacrílega e o jeito
acadêmico de me fazer entender? Como é possível compreender os etnométodos
vivenciados na comunidade do Afonjá e a sua epistéme singular?
A tradição oral reúne um sem número de histórias míticas que o homem
apreende na sua existência, como adutor de valores que agem na atemporalidade.
Histórias, memórias de vivências ontológicas criadas para fixar ensinamentos para uma
educação iniciática de uma forma de educar para ser. Seria esta uma das premissas para
uma educação de sujeitos autônomos e coletivos?Buscamos resposta para mais esta
indagação.
Entendo que esta abordagem pode até melindrar a ortodoxia intelectual da razão
triunfante. Onde já se viu criar-se um diálogo filosófico para educação incluindo Exu?
Teria este diálogo caótico alguma possibilidade de favorecer a implicação formativa de
42
Orixá masculino, o senhor da adivinhação. Jogo divinatório.
81
outra epistemologia para en-sinar o povo brasileiro? Adianto que esta disposição não
despreza nenhuma outra interpretação no caminho de compreensão do mundo, mas este
é o lugar de onde falo. Quando assumo esta mediação dialógica e estimulante para a
compreensão de princípios e valores da tradição e cultura afro-brasileira, é por acreditar
que este é um fato que não se realiza por legislação. Se uma Lei
44
se impõe para educar
o afrodescendente na consideração pela sua cultura, mais importante ainda é a urgência
de criar-se uma linha de fuga que possa acolher outra epistemologia, um outro contorno
para um jeito de educar para ser-no-mundo, sendo diferente. Uma Pedagogia da
Diferença
45
seria um caminho?Urge que sejam reabilitados e dinamizados valores
cosmológicos, vivenciais num mundo aberto e dialógico.
Acredito em caminhos, encontros e celebrações como afirmava Carlos
Petrovich. Caminhos que se constroem nos jogos ritualizantes no cotidiano quando o
extraordinário é o prosaico. Caminhos que se realizam também na emergência das
instabilidades e turbulências vivenciadas no mais profundo do ser. Instabilidades e
turbulências que se identificam metaforicamente com a evolução das estruturas sociais,
culturais e simbólicas. Estruturas que tencionadas coletivamente se movem, flexibilizam
e se intensificam nas suas possibilidades auto-organizativas alterando as regras do jogo
jogado. Seria esta uma filosofia exuniana no seu vigor originante? Ou uma pedagogia
que permite ao educador e educando perceber o seu entorno e a tessitura das suas
contradições?
Conta-se que certa vez um homem muito rico tratava mal os seus
trabalhadores. Por conta de muitos desagrados, todos juntos resolveram fazer
reivindicações. Para humilhar seus empregados, ele deu um pedaço de terra a
cada um. Com a intenção de manter a subalternidade a que estava costumado,
ofereceu-lhes milho torrado para semear nos seus próprios campos. Os seus
trabalhadores plantaram e o local passou a ser vigiado dia e noite para
garantir que a plantação não nasceria. Então, Exu se deu conta da maldade e
não suportou a injustiça. Resolveu dar o troco àquele falso benemérito criando
uma bela estratégia. Exu chegou ao centro da cidade e começou a fazer
brincadeiras e travessuras. Somente isso. Nas suas divertidas pintanças, as
vacas começaram a voar, cavalos falaram, a lua dançou e o sol rodopiou. Foi
tanto movimento que não ficou quem não corresse para ver o que estava
acontecendo. Mais rápido do que a luz Exu entregou novos e férteis grãos de
milho aos empregados que se apressaram em plantar, e para o desespero
daquele homem. Nunca se viu plantação mais próspera
.
43
Instrumentos da orquestra sagrada do candomblé.
44
Trata-se da Lei 10639 de 9 de janeiro de 2004, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-brasileira
e Africana.
45
Pedagogia defendida por Dante Augusto Galeffi em Filosofar & Educar: inquietações pensantes.
82
Daí pode-se compreender que este comunicador na sua missão de en-sinar
sinaliza que além de ficarmos atentos com tudo e com todos, é bom aprender a ser como
uma semente de milho fértil que rompe qualquer submissão e se põe fora do peso de
qualquer vigilância. Exu é um ser que desvela o que é para ser desvelado. Ele é livre
como o ar que o representa no espiral dos redemoinhos e se movimenta na sua
flexibilidade e mutabilidade constantes, jaculando o seu sopro transformante em
qualquer direção.
Com todo respeito a este precursor dos movimentos dinâmicos dos caminhos
virtuais, ele pode até ser comparado aos seres humanos. Mas nem a todos. Só queles que
jogam com o poder da imaginação e sabem onde, como e quando interferir. Aqueles que
correm de um lado para o outro criando caminhos para encontros e celebrações. Aqueles
que agem como cantou Raul Seixas como os olhos do cego ou como a cegueira da
visão
46
Ou os que sabem tencionar poetizando e jogando com a vida. Os que se
entregam a uma ressonante gargalhada. Aqueles que não param de traçar caminhos
novos, e que cada dia fazem um traçado diferente do outro. Traçados que não
simplesmente se cruzam, mas que criam caminhos de encontros, mesmo que sejam
encontros transitórios.
Exu se desloca com a velocidade da luz ou com o cuidado protetor de uma dona
de casa. É ele quem desmancha com habilidade de artesão, o que precisa ser
desmanchado`, ainda na sua imanência. Ele constrói do nada o que precisa ser
construído. Se consideramos deste modo, é porque vivemos como tradição a
complexidade do cotidiano. Tradição que se alimenta dela própria. Os fundamentos da
tradição estão no fato de existir uma cadeia dialógica entre as próprias energias dos
fenômenos míticos repetidos e as pulsões grupais. Neste ponto, sou novamente
encorajada pela reflexão de Galeffi sobre o universo sem lógica ou um universo
polilógico, quando indaga...
Assim todas as possibilidades são igualmente válidas ou ainda, haveremos de
escolher, de decidir, de recortar, de fazer com que as infinitas possibilidades
se tornem apenas um campo de força que caminha em sentido determinado?
(GALEFFI, 2001.p. 316).
Este questionamento remete à compreensão arcaica que envolve uma
multitemporalidade numa perspectiva de transtemporalidade. Este é um aspecto onde a
complexidade do tempo e do espaço mítico pode regar a idéia de um universo em
construção. Este é um dos princípios da incerteza que é essencial para a criação de
83
possibilidades e transformações. Possibilidades que também inclui a lógica do arbítrio
humano e a corporeidade como fundantes de infinitos caminhos para uma vida vivente
comunitariamente, solidariamente.
O pensamento africano se caracteriza pela idéia do corpo comprometido com os
fenômenos da natureza. Nessa perspectiva, nos colocamos na relação com as energias
da natureza do cosmo de modo a vivenciá-las também no próprio corpo. Exu Obará,
Exu, rei do corpo, o que anima, embeleza e revitaliza. Para cada conjunto de célula que
morre por dia, Obará faz nascer outras tantas que nos mantêm a vida. É ele que mantém
vivo nas pessoas o impulso para troca de afetos e o desejo de gozos para que jamais se
acabe a vida na terra. E quando o ser de cada um exulta o prazer e a vida, Exu se move
infinitamente sem a contagem inflexível do tempo que limitaria os movimentos do
corpo. Exu é o que faz o jogo do universo e nele estão contidas as infinitas
possibilidades como a aleatoriedade do movimento, a vagueza e a desorganização. Nele
está contida também a turbulência que o homem vive como um refazer contínuo da ação
e do pensamento.
No ritual do Padê, vive-se a trama do caos, como um mistério sagrado em
instâncias que fluem para todos os lados. Mistério sagrado que representa para o homem
a mais alta expressão daquilo que foge à idéia do que se chama lógica. São muitas
lógicas onde o bem e o mal é tudo igual. E aí, seria possível confiar neste orixá de todas
as possibilidades? A resposta é provisória: o arbítrio é do domínio do ser humano. Exu
faz o jogo do universo e do homem. É ele que encaminha pedidos; carregando as
oferendas, mobiliza todo o processo de restituição do que é retirado e ingerido da terra,
do rio, da floresta, do espaço urbano e das pessoas. Exu é um fractal que se integra. Ele
que se divide e fica inteiro em cada ser povoando todo o Aiyê e todo o Orun. Exu fez do
mundo inteiro o seu banquete cósmico, engolindo tudo que existe, para em seguida
vomitar renovado cada ser que é vivo. Isto justifica a compreensão de que Exu se firma
no princípio de todo ser. Toda matéria individualizada no Aiyê está acompanhada do seu
próprio Exu.
Pulsante, ele corre os caminhos do mundo, os caminhos da vida e o caminho dos
encontros amorosos.. Anfitrião que não se põe apenas diante das porteiras
convencionais Ele está diante da porta do gozo por onde se concebe a vida. Está na
porteira de onde brota a vida. Exu é a vida que brota em cada ser. É o que se divide,
derrama e junta o que precisa ser juntado. Exu é o que vivifica e movimenta tudo que há
46
Trata-se de um fragmento da canção GITA.
84
no mundo. O que não se renova e não se recria continuadamente apodrece e morre. É
preciso mover-se e se aquecer sempre para manter aceso o pavio da vida. Ele é o
absurdo, é o sol que não deixa apodrecer o juízo.
No Ipadê, as entidades de todos os tempos são reunidas e consideradas.Os
ancestrais são convidados e se fazem tão presentes quanto nós os vivos. Nenhum ato
ritual se efetiva sem essa presença originante. Nenhum ato litúrgico se inicia sem a
invocação dos ancestrais como nos ensina Mestre Didi
47
no seu escrito de Roda que diz
“Iyá me axéxe/ Baba mi axéxê/ Oxum me axéxê/ Gbobo axéxê ti nu ará mi/ Ki ntô bó
orixá aiyê” (RODA, 1997, p. 43), que significa: “Minha mãe é minha origem/Meu pai é
minha origem/ Deus é minha origem/ Todas as origens em mim/ Adorarei antes do que
qualquer orixá neste mundo”.
3.11 ÁGUA SILENCIOSA E INSONDÁVEL: água início da vida
É neste caminho que buscamos também compreender a relação entre nós e o
mundo, ou entre o ente e o mundo como quer Heidegger (2002). O mundo no seu
momento estrutural. A idéia de tempo vem antes do ser? Parece que é o tempo que
contém o mundo como um fenômeno. Ou é mundo que na sua atemporalidade, na sua
subjetividade contém os entes? Na fala de Felippe Serpa, no inicio da orientação a este
trabalho declarou que “esta concepção daria lugar a uma nova ciência baseada no
pensamento ecológico onde o todo está na parte, onde a essência está na relação, e
será a expressão de um novo homem e de uma nova sociedade, que serão determinados
historicamente pela superação do ter”. A busca do ser implica no que está na essência
originante, no que preexiste ao tempo. O pensamento africano compreende que quando
eu era apenas um sinal de vida nos primórdios da concepção eu já era essencialmente
um ser Oxum.
Ser feita de Oxum é uma conseqüência para ser distinguida e me fazer presente
na comunidade como um ser em plenitude. Eu sempre existi inteira na minha
instabilidade constituinte sem depender do jogo tensivo entre o existir e o não existir.
No caso do ritual de feitura, o corpo é entregue para se fazer emergir o novo e
imprevisível ser no seu estado essência de existir num tempo sem limite. Não há um
esquematismo espacial temporal para falar ou para compreender-se neste jogo
originante que se movimenta em espiral.. O povo de santo considera apenas a finitude
85
do corpo. O que é espírito, o que sempre existiu vai para a ancestralidade, a fim de
conviver mais profundamente com a sua comunidade. Pensando a ancestralidade como
filha de Oxum, me permito sorver as palavras da realidade poética de Bachelard:
Água silenciosa, água sombria, água dormente, água insondável, quantas
lições materiais para uma meditação da morte. Mas não é a lição de uma
morte heraclitiana, de uma morte nos leva para longe com a corrente. É a
lição de uma morte imóvel, de uma morte em profundidade, de uma morte
que permanece conosco, perto de nós, em nós (BACHELARD, 1998, p. 72)
.
Esta é uma condição que transcende ao que se compreende como existência
antes e depois da vida, o que transcende ao que se mostra na cotidianidade. E o axé se
faz presente no seu sentido dinamizante e coletivo. O conhecimento de si e do mundo é
um fenômeno reflexivo e trajetivo. Trajetivo no sentido de se desvelar no jogo do
cotidiano. O cotidiano seria este conjunto de situações que se repetem. E as ações mais
parecem atingir os limites dos conflitos entre pessoas que se experimentam, que se
exprimem e se expressam nas rotinas e até em momentos rituais que se repetem como
novidades. Isto é cotidiano.
O ritual da feitura, então acontece num coletivo onde estão juntas as entidades
ancestrais, entidades do presente e os orixás na sua nascença. Todos vivem a
concomitância e a complexidade da vivência fundamental para a existência da
comunidade e de seu povo e das suas entidades protetoras. Vive-se e magnifica-se o ser
na sua singularidade que deve emergir e conviver no grande coletivo constituído de
outros coletivos em toda sua complexidade. Coletivos que são magnificados pelas
singularidades e pela ausência de categorias artificializantes. O limite entre o que
poderia ser considerado como categorias seria tão tênue que não diferenciaria o
suficiente para a nossa compreensão. Tudo e todos se relacionam num jogo de
imprevisibilidades. A comunidade não se constitui em uma comum unidade. Uma
comunidade de terreiro não é homogeneizante. Assim um filho de Ogun vai conviver
com outros filhos de Ogun com suas singularidades e suas diferenças fundantes do
mistério do que é ser-sendo. É justamente a condição de irmão de cabeça que lhe dá a
condição de ser- sendo, um ser distinto. Esta diferença é irrevogável nas probabilidades
do ser humanidade e essência divina que somos.
Na primeira leitura deste texto, o professor Luiz Felippe Serpa declarou ainda
que: A coisa contemporânea mais fundamental desta reflexão é a concomitância do
coletivo, com o singular e com o que está em potencia. Ser na comunidade é uma
47
Deoscóredes M. dos Santos – Alapini- Coordenador Nacional INTECAB
86
escolha. A bem da verdade cada um que chega numa comunidade de terreiro sabe o que
quer ser. No meu caso em especial eu escolhi começar do princípio.
3.12 O PENSAMENTO AFRICANO COMO FUNDANTE PARA A
FORMAÇÃO E CAMINHADA HEURÍSTICA
Um ano depois que freqüentava a comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá, meu
companheiro Carlos Petrovich foi levantado Ogan. Preferi declinar do tratamento
especial que me cabia como esposa de Ogan para ganhar o direito de circular na
cozinha, lavar pratos, servir comidas ao invés de ser servida. Eu mesma escolhi ser
abian, espécie de aspirante ou noviça. Daí que comecei também participando das
obrigações rituais internas. Esta é uma co-existência que vai bem além da capacidade de
percepção do que está à vista. A convivência, o estudo, a pesquisa tudo foi se
transformando como uma memória viva que se altera através de processos vigorosos de
criação e re-criação. Neste contexto, a entrada para a vida acadêmica não é um ato
mágico. Contrariamente ao que possa parecer eu não estou me despindo das marcas da
minha ancestralidade. Também não as imponho como única referência. O que acontece
de verdade, é uma concomitância entre todos os acontecimentos que me constroem na
convivência comunitária..
De fato, o que buscava foi sendo encontrado na possibilidade do desvelamento
da cosmovisão ancestral como precursora de aspectos do desenvolvimento cientifico
como alicerce e ferramenta que sustentam a base filosófica contemporânea. Neste
contexto se inclui a compreensão de aspectos da psicologia moderna, complementares
do meu estudo. Se faço minhas as palavras do autor, é por considerar que o meu fazer
acadêmico tem contribuído também para a minha condição de ser religiosa. Ainda mais,
quando Sodré (1998) chama atenção para o traço peculiar daquele que é feito como
lugar do invisível. Vale considerar também a fala de Merleau Ponty (2000) afirmando
que o invisível não é o contraditório do visível. O visível possui, ele próprio, a
membrana do in-visível que é a contrapartida secreta do visível.
Por outro lado, parece que a nossa relação com o mundo pode ser melhor
compreendida considerando ao mesmo tempo a relação pessoa e a sua filiação
espiritual. Conhecer a alma do outro, cuidar do outro, portanto, são premissas que
fundamentam a inserção do novo filho na comunidade. Esta é uma forma de
comprometer-se dos mais experientes com os menos experientes.
87
Hoje, após mais de vinte anos na comunidade me proponho a busca de outros
conhecimentos pelo distanciamento muito a gosto da academia. Paradoxalmente o
distanciamento não impede as implicações libidinais conscientes ou inconscientes nesta
construção. Por conta da convivência com a família ancestral, da necessidade de
aprender com os mais velhos e de en-sinar aos mais novos, quando me dei por conta já
havia aprendido os códigos da comunidade e a linguagem do grupo que se constitui
como um bem, um legado vivo da ancestralidade.
As relações foram se estreitando com os mais velhos. Todos e todas foram
incluídos. Extraordinária a relação com as crianças que se constituíram em
interlocutores de grande valia. Suas falas atingem a dimensão do mitopoético. Falas que
traduzem as vivências sedimentadas pela tradição que nos une e que se inscreve no
corpo e no escondido da alma da gente.
Enquanto isso, eu me punha a cultivar saberes e valores comunais adormecidos
em mim mesma. Toda minha existência veio à tona. Tudo faz sentido. As missas, rezas
das pretas velhas, as procissões, o povo da roça, as feiras, o engenho e a casa de farinha
dos meus padrinhos, os homens que cantavam na feira, as festas de Antonio Machado,
os presépios, os banhos de rio, a solidariedade do povo negro e pobre dos subúrbios. A
feitura, as festas da comunidade nas suas repetições. Esta foi a chave para a pedagogia
criada para o Projeto Ire Ayó noutra forma de en-sinar fazendo educação para o cuidado
com a vida.
3.13 NO DIA EM QUE EU ME VI NASCENDO
Fazer educação para o cuidado implicou em vivenciar e compreender o terreiro
como o lugar princípio da minha identidade, amparo espiritual, refúgio e célula mãe da
comunidade negra. A iniciação ou a feitura, como se fala nos terreiros, não se constitui
apenas num ritual de passagem para uma vida religiosa. A iniciação é outra vida que
brota da convivência com a comunidade e que se renova até o último dia de nossas
vidas. Para quem recebe o chamado para ser feito no santo, há de se permitir ser
envolvido pela comunidade numa gestação coletiva que dura o tempo certo sem nenhum
compromisso com marcação controladora do Chrónos.
Em cada dia, cada tempo acontece o que tem que acontecer. No tempo certo,
numa hora certa, toda ancestralidade se disponibiliza para acolher os novos filhos que
88
compõem o barco
48
. Diante da aproximação do momento esperado vai aflorando
gradativamente o mistério da essência de cada um. Os sentidos se tornam mais
aguçados. Os sons e os cheiros enchem o ambiente sagrado. Tudo é mistério que se faz
no rebuliço do segredo: o caminhar das pessoas nos corredores, o bater das tampas nas
panelas, o moinho ligado, o burburinho da cozinha, o abre e fecha das portas e das
malas... A zoadinha das águas nas torneiras ou despejadas nos potes... Do lado de fora
vem o som das batidas do pilão preparando as folhas.
O pilão bate como batidas de coração. Uma batida maior e outra batida menor.
Impossível esquecer desse som e da magia das folhas que exala do pilão aromatizando a
casa de Oxalá. Casa mãe que nos acolhe do nascimento à morte. Enquanto seres
biológicos, somos criados com a cabeça bem junto ao coração da mãe. O primeiro som
que escutamos na vida parece com o som do pilão. Também enquanto nos preparamos
para a nossa re-existência negra, somos confortados pelo pulsar do coração da mãe
comunidade. O som que se repete cadenciado no silêncio da casa sinaliza a aproximação
da viagem ancestral. Está chegando a hora. Mães e pais pequenos, todos os mais velhos
e também os mais novos caminham de um lado para o outro juntando peça por peça os
inúmeros elementos necessários para ajudar nascerem novos filhos.
Os mais velhos vão ficando cada vez mais silenciosos, circunspetos e muito
ativos. Ouve-se apenas o ranger das bacias, os passos no corredor, o tampar e destampar
das panelas, o trincar de pratos. O cheiro de comida que vai nutrir e animar a intensa
noite de vigília, com muito trabalho e rezas.
O estado de gestação da comunidade fica ainda mais evidente. Toda comunidade
vigia o parto que dura dias e dias. O ambiente amniótico repleto do sagrado mostra sua
transparência numa festa de fé e muitos cuidados. Da despedida solene para a viagem
ancestral, guardo o olhar acolhedor de todos meus mais velhos. Enquanto me
abençoavam, um por um, eu pensei e agora para onde vou? O que me espera? Não
demorou muito, eu estava vestida com beleza e dignidade. O cheiro de banho de folha e
a roupa nova me faziam feliz e confortável. Eu estava sendo gestada pela comunidade.
De fato, nunca estamos completamente criados. Os mais velhos estarão sempre
vigilantes nesta caminhada sem fim. Esta não é uma história pessoal. É a história de
todos que passaram por essa mesma experiência religiosa.
48
Grupo de iaô.
89
Durante o recolhimento, os dias passam lentos e com muitas surpresas pelos
rituais internos. O cuidado configura-se no que se traduz como tudo que pode ser
desvelado. Sobre o cuidado Sousa cita Makota Valdina quando diz que:
O Nkisi, como é conhecido as entidades na nação Angola, é a vida, a essência
invisível que se manifesta para nós através dos recipientes humanos, das
pessoas por ele escolhidas, mas também são as pedras, o ferro ou qualquer
objeto preparado para ser representação simbólica do invisível. Nkisi vem da
raiz verbal Kinsa – tomar conta, cuidar: é o que toma conta da vida, cuida da
vida. O termo Nkisi é sinônimo da palavra remédio. Ou cura (PINTO, 1997,
apud SOUSA,JUNIOR 2003, p. 167)
Na minha experiência com a espiritualidade, a melhor hora é aquela horinha de
manhã, quando um leve burburinho nos desperta, o/a ojubonan está chegando. A cada
manhã, o pai ou a mãe derrama-se em cuidado sobre seus filhos. Escuta sonhos, vai
tirando dúvidas para a construção da nova identidade considerada na sua fluidez.
Sabiamente, essa é a hora escolhida para imprimir as marcas da espiritualidade. Marcas
de proteção e equilíbrio.
Durante os xirês fui protegida pelo grande útero comunitário, quando nada podia
me tocar. Minha ojubonan, minha mãe Vardinha, que Oxum já levou para perto Dele e
outras mulheres mais velhas no santo protegiam meu corpo com seu próprio corpo. Era
a comunidade encantada que me encantava para as vivências nos mistérios da nova
vida. Tudo estava e está no tempo presente: o corpo físico, emocional, racional
espiritual integral e integrado pela alegria, beleza e muito cuidado. Um corpo que ocupa
um espaço-território. Em outras palavras, este é um paradigma que inscreve no corpo
regras culturais reterritorializantes. De fato, a primeira experiência do corpo com o
sagrado cria uma parceria entre o ser e o território sagrado, o cosmo e a comunidade
numa relação de ser, pertencer e participar como membro solidário. O que não significa
ausência de conflitâncias e desencontros.
3.14 O DIA DO NOME: de volta à ancestralidade
Nas religiões de matriz africana, ter um nome ancestral é existir em plenitude.
No passado, os nossos ancestrais depois de seqüestradas e separados como peças
utilitárias tiveram seus nomes ancestrais substituídos por nomes cristãos. A perda do
nome era legitimada pelo batismo compulsório que tinha a importância do imposto e do
uso dos navios negreiros de propriedade da igreja parceira de uma missão salvadora de
90
si própria. Era o corte, a ruptura com que o africano tinha de mais precioso: a sua
ancestralidade.
Durante o recolhimento para feitura, espera-se com ansiedade o dia do nome
quando de volta para comunidade os novos filhos, os iaôs serão apresentados com seus
nomes ancestrais. Decerto que esta é uma reparação significativa que contempla a
pessoa na sua ancestralidade e no sentido do filho da comunidade agora legitimado pelo
princípio do axé compartilhado. O dia do nome ou o dia da saída é como se fosse
precedida da volta do útero protetor da ancestralidade para o nascimento de um ser
inteiro. Já não somos apenas filhos e filhas da comunidade, somos também filhos do
mundo que nos recebe festiva e ritualisticamente.. Na comunidade, todos os velhos e
velhas e convidados ilustres de outros terreiros, todos esperam o momento E justamente
essa sabedoria matricial que nos devolve por inteiro os princípios básicos da
convivência comunitária deixadas do outro lado do Atlântico. A alma ancestral está de
volta. Chega a hora de tomar o nome do iaô. Tomar o nome de iaô é uma honra. É uma
honra concedida a religiosos importantes de outro terreiro ou da própria casa. Diante de
todo egbe
49
reunido. O iaô é levado para o centro da sala. Perguntado o nome, primeiro,
ele/a responde baixinho, num quase sussurro. Perguntado novamente, ou melhor, numa
terceira tentativa, o iaô gira o corpo sobre si mesmo, pula e grita bem alto o nome que
está trazendo para que se ouça na cidade, nos palácios e no mercado e nas feiras. Ao
ouvir o nome, toda a assistência aplaude e tocam os atabaques. Os feitos de pouco
tempo e alguns convidados podem receber seus orixás. Ao reconhecer o nome que foi
revelado, os mais velhos lembram de ancestrais portadores do mesmo nome, suas
qualidades e seu prestígio. Lembram as suas disposições morais e espirituais e
explicarão aos mais novos o significado do nome ancestral recuperado.
O nome do meu orixá foi tomado pelo Pai Flaviano de Nanã. Nós nos
consideramos de modo especial. Ele é uma pessoa sempre pronta a me ouvir e dar suas
sabias respostas. Foi com grande alegria e com muita emoção que no dia seguinte fiquei
sabendo do meu nome religioso. “Oxum Tunxê este é o seu orukó , seu novo nome.
Daqui por diante as pessoas aqui vão lhe tratar por este nome". A pergunta foi
inevitável.- O que significa este nome? Mãe Stella me en-sinou com paciência de quem
conversa com alguém que está começando a crescer. Indizível o prazer de conhecer o
meu nome nagô significa para a reparação da minha alma ancestral e da compreensão da
minha cidadania dentro e fora do terreiro. Mais do que o término da obrigação, o
91
momento vale como o início de uma nova existência na família ancestral. A partir
daquele momento se dá início ao processo da iniciação que dura toda vida.
Na Nigéria, cada orixá é cultuado pela família e seus descendentes. Conheci
algumas famílias iorubanas com seus cultos familiares. No Brasil, esta prática foi
abolida devido ao fato de que a família africana aqui era separada pelos seus donos.
Acredita-se que foi Iyá Nasô que reconstituiu essa família de santo com pessoas de
famílias diferentes e orixás também diferentes. No processo foram surgindo membros
mais experientes e com sabedoria para fazer re-existir a família ancestral. Como
conseqüência, surgiu a importante figura da mãe e do pai de santo ou a Iyalorixá e o
Babalorixá.
O iaô, o novo filho depois de feito se torna alguém especial. É um regresso
venturoso. O iaô tem uma nova família, sua família de santo, sua familia ancestral. Tem
um nome e começa um novo sonho, um projeto de vida, seja qual for a sua idade. Essa é
uma ação que acontece parcimoniosamente e envolve toda comunidade. Até que atinja a
maioridade com as suas obrigações de sete anos, o iaô estará sendo criado pela
comunidade que lhe en-sina nas regras e os valores do grupo junto com as
características que se espera decorrentes da proximidade com o seu orixá tutelar.
O regresso é de um outro para si mesmo e para a comunidade. A partir desse
momento, como filho passa-se a viver na comunidade a eterna condição de construir-se
a cada dia.. Agora sim, está começando a iniciação. Com a cabeça feita, o iaô está
pronto para desvelar e ser desvelado em todo seu ser. Ele está religado
magnificadamente com o seu ancestral de origem, o seu orixá. Ele agora pode se
mostrar com a sua real identidade que o desvela de corpo e alma. O regresso que traz
implícito o sentido do renascimento e o acolhimento necessário para o seu crescimento
na comunidade. O acolhimento dos mais velhos é o que fortalece e sustenta o sentido e
o sentimento de pertença. A sustentação desse acolhimento vai se evidenciando cada
vez mais pelo ensinamento desses mais velhos, pela redistribuição do axé, na
participação dos rituais internos e pela correspondência no comportamento de quem
busca e aceita os novos ensinamentos. O confronto também é uma realidade. O
confronto se faz presente pela necessidade de atenção quase absoluta especialmente nos
primeiros tempos quando todos os sentidos devem estar voltados para a manutenção de
um conjunto de regras nem sempre explícitas, mas necessárias para a manutenção dos
rígidos princípios da comunidade. Todos os mais velhos são responsáveis pelos mais
49
O mesmo que comunidade.
92
novos. E os mais novos buscam os ensinamentos dos mais velhos. O ensinamento não
tem hora marcada. Todo saber está imanente em tudo que está para ser desvelado.
Insistimos que a escuta é o caminho para aprender a tornar-se efetivamente um ser
participante da comunidade. As histórias mudam de endereço, mas a força e a dimensão
da re-existência que recebemos pela feitura são as mesmas. O ato da iniciação se
constitui num processo de toda vida e é igual em todos os lugares. É um processo como
dádiva incondicional daqueles que como pais e mães de santo generosamente nos fazem
à sua própria imagem e semelhança.
3.15 EBOME DETINHA: en-sinando e desvelando a alma do outro
A convivência numa comunidade de terreiro não é simples. Somos todos muito
parecidos tanto nas virtudes como nas possíveis deformidades. Somos todos, uns
espelhos dos outros e temos consciência deste fenômeno. Então, com-vivência é a
palavra mágica de uma comunidade de terreiro. Aliás, de qualquer comunidade. Toda
com-vivência é desafiante. O aprendizado tem que ser rápido. Logo que cheguei à
comunidade esta foi a minha primeira lição com dona Detinha. Era assim que a tratava
logo que cheguei ao Afonjá. Com o tempo ela foi se tornando pra mim e para Petrovich
nossa Iansã, nossa irmã mais velha no seu significado iorubá.. Ebome Detinha de
Xangô com o seu jeito de líder natural nos olhou longamente. Olhou firme pra mim e
para meu companheiro Ossóbaró pela filiação espiritual e pela confirmação como Ogan
de Ogun algum tempo depois. Ela nos olhou por inteiro e afirmou:
Que vocês sejam
benvindos à familia de Xangô. Agora que vocês foram chamados para esta familia vamos
ficando por aqui. É assim, a gente vai ficando, vai sentindo o cheiro do outro pra vendo se
gosta, se é isto mesmo.
Este foi um dos primeiros ensinamentos desta preceptora que
sempre ouviu e entendeu as nossas dúvidas, nossos medos e ansiedades. Sentir o cheiro
do outro. Isso nunca me saiu da cabeça. Pra sentir o cheiro do outro não é necessário
nenhum movimento. Nem precisa dizer nada é só olhar e escutar. É só ficar perto e
escutar muito. Escutar é melhor que se tem a fazer. Não precisa perguntar nada,
porque todo saber chega na hora certa. Aqui ninguém fica ignorante é só ficar perto
dos mais velhos diz Ebome Detinha.
De vez em quando ela parava um pouco como se desse um grande mergulho
dentro de si mesma, e recomeçava com toda sabedoria e vitalidade que Xangô lhe deu.
Naturalmente que esta não foi à única voz que me deu educação no axé.
93
Ebome Detinha é uma senhora que se distingue pela compreensão da realidade
complexa da comunidade de terreiro. Comunidade que se apresenta como um tecido
entrelaçando muitas histórias de vida. No terreiro, nós aprendemos a conviver porque
nós nos auto-conhecemos. Aprendemos quem somos de verdade. Assim, podemos nos
vigiar nos corrigir ou não. Quando cheguei ao terreiro Ebome Detinha estava sempre
sentada diante uma grande mesa na sala da casa de Xangô, cheia de retalhos de tecidos,
rendas fitas, palha da costa para vestir suas bonecas pretas como os orixás.
Ebome Detinha aduba as possibilidades do seu fazer entrelaçando a ciência,
filosofia, tradição, arte, o ordinário, o extraordinário com as história dos orixás
atualizando acontecimentos do presente do passado, com autoridade e consciência do
que está fazendo.Ebome Detinha me en-sinou a en-sinar. Esta senhora enquanto se
mostrar no seu fazer e se oferece como um ensinamento para uma forma de vida que
faz valer a sua qualidade de mais velha implicada no seu fazer sedutor. Fazendo suas
bonecas de pano vestidas como orixá, conta histórias de cada um tornando o implícito
explícito, trazendo a tona princípios e valores na perspectiva do subjetivo de uma
realidade objetivada: o sentido de ser-sendo na comunidade.
No terreiro, o uso exclusivo de critérios racionais na interpretação dos
fenômenos não daria conta da compreensão necessária para o auto-conhecimento que
afeta as relações das pessoas entre si e com a comunidade. Através de Ebome Detinha
aprendi a compreender sem interpretar ou julgar as minhas próprias observações. Foram
as suas prosas que me fizeram compreender as festas e os principais fatos míticos que
nos afetam. São as festas, as obrigações que tecem e costuram as nossas relações com os
orixás, com os mais velhos, com os mais novos e com a comunidade.
Com isso quero dizer também do meu reconhecimento pelo fato de que ao
mesmo tempo em que Mãe Stella me fazia filha de Oxum e Ogun, ebome Detinha me
ajudava a caminhar pela complexidade dos fundamentos da religião e da convivência na
comunidade. ebome Detinha de Xangô é uma educadora nata. Na sua casa abriga
princípios africanos de convivência compreendendo a religião nas suas objetividades e
subjetividades como um espelho ancestral. Os seus ensinamentos partem do que foi
importante na sua vida no seu trajeto, tanto como mulher negra, matriarca da respeitável
família Pimentel, quanto na sua convivência comunitário-religiosa.
Conhecer Ebome Detinha no seu jeito de ser e de en-sinar foi importante para
que eu me considerasse de fato uma mestra. Alguém que ensina porque conhece a alma
do outro. Esta mestra de quem falo tem toda uma história em torno da família e da sua
94
condição de ser filha de Xangô que envolve inclusive sua relação mitológica com o
comportamento do cágado, bicho símbolo da cultura iorubá, que ela mesma associa a
longevidade e a sabedoria da convivência comunitária. O cágado anda lentamente
olhando a caminho e o que e quem está do seu lado. Ela se encolhe como o cágado a
qualquer sinal que possa lhe causar desagrado ou mal estar. Afirma que fala pouco para
não engolir o vento e enjoar. Os africanos escravizados segundo sua compreensão não
falavam durante a viagem para não enjoar. Diz ainda que é preciso de vez em quando
parar de falar para não perder o controle de si próprio. ,
Decerto que ela não se inspirou no pensamento deleuziano, quando subtende nas
suas teses que o homem permanecerá para sempre entre o silêncio e a palavra. Vivendo
um contexto cultural bem distinto do mundo globalizado ela se encarrega de fazer a
tradução histórica, cultural e religiosa tecendo a existência de dois mundos. Desconfiada
das verdades absolutas, reconhece na filiação espiritual uma infinidade de interpretações
pessoais que lhe oferecem o chão e o prumo.
Revendo as suas prosas, entendo que a comunidade de terreiro não artificializa
os acontecimentos. Todo acontecimento tem sua origem no cotidiano do lugar. Os
símbolos via de regra, não são símbolos representativos de entidades. Os símbolos são o
que representam. Assim o Afonjá não representa a terra de Xangô. O Afonjá é a terra de
Xangô. A terra do Afonjá é lugar sagrado.
Ebome Detinha se destaca das outras pessoas pelo fato de enquanto vai
construindo o seu artesanato de bonecas, vai compondo sua própria inteireza e
contribuindo para a construção de nossas identidades. No seu fazer, ela emite seus
pensamentos, suas memórias que vão bem, além do ato de comercializar suas bonecas
vestidas de orixá. Logo que a conheci ela foi aos poucos falando detalhadamente das
subjetividades dos elementos que compõem as vestimentas de seus bonecos à
semelhança da roupa do orixá. Destes encontros nasceu a inspiração para o texto Prosa
de Nagô para formação das educadoras da Escola Eugenia Anna na comunidade Afonjá.
Compartilhamos do seu silêncio desvelador. O silêncio que nos coloca dentro de
nossa própria essência. As suas bonecas nos ajudam na compreensão do viver
comunitário e de cada um de nós em particular. Percebe-se que há uma intencionalidade
velada nas suas narrativas míticas carregadas de ensinamentos motivados pelo jeito
africano de ser. O seu jeito contribui para o equilíbrio, para a motivação que se
apresenta neste meu estudo como motivação genuína. O seu fazer incluiu um jeito de
falar como um monólogo bem do estilo do povo velho no santo derramando saberes,
95
fecundando novas possibilidades de estar no mundo para os que se aproximam da
religião. A sua fala detalhada está sempre a desvelar o ser humano na imagem e
semelhança dos orixás. Tecendo histórias de vidas, ela vai reunindo valores culturais
existentes em cada detalhe que compõe suas bonecas. Ebome Detinha comenta fatos do
passado e do presente, faz analogias para o autoconhecimento estimulando a
compreensão da essência de cada ser e da memória do grupo ao qual pertencemos.
Transitando pela memória do lugar trazendo suas narrativas míticas, ela talvez
não se dê conta que nas suas falas ou nos seus escritos há uma real necessidade de en-
sinar e autoconstruir-se.
Senhora de uma mestria particular, a fala de Ebome Detinha deixa significados
no seu objetivo de transmitir princípios da tradição que refletem o pensamento do grupo
que testemunha o mundo na sua dinâmica. Ela é personificação da memória coletiva.
Ela é consciente de suas formas de seus contornos e de seus equívocos. Constantemente,
ela afirma: - Os velhos também erram. Os novos precisam ficar atentos para lembrar aos
velhos quando eles estiverem esquecidos.
Assim, ela vai projetando em cada um a condição de um ser conseqüente na
comunidade. A fala de Ebome Detinha é atemporal, e só pode ser compreendida na sua
incompletude. A sua fala cria possibilidades e o desejo de interpretação aprendente do
movimento dinâmico dos acontecimentos comunitários que se organizam e se renovam
porque se repetem no cotidiano. Neste sentido sinto-me acolhida pelo pensamento de
Macedo quando afirma que:
Como seres-no-mundo estamos, estamos encharcados de cultura, portanto, é
mister lidar com a natureza ontológica do ser e a natureza epistemológica do
conhecer, assunto caro a uma hermenêutica relacional. Uma conseqüência
natural desta inserção hermenêutica de cunho relacional é a certeza de que o
conhecimento é aquilo que criamos interativamente, dialogicamente,
conversacionalmente, no âmago da nossa cultura e de todas as indexalidades
sociais nas quais estamos implicados (MACEDO, 2000, p. 75).
Uma comunidade de terreiro funciona como um laboratório de conhecimentos e
de histórias. São muitas histórias, muitas biografias singulares que se cruzam criando
outras histórias que se juntam à memória coletiva do lugar. Dona Detinha não conta
história de sofrimento. Sua história é uma história de emancipação de quem continua se
formando, fazendo caminhos para si e para os outros. História de quem sabe o que faz e
porque faz. É alguém que se autoriza a falar e defender o pensamento do grupo ao qual
pertence. A sua vida pessoal está imbricada com a história representativa não somente
do Afonjá, mas representativa de outros segmentos da comunidade negra. Ela é ao
96
mesmo tempo uma religiosa uma artesã uma ensinante, espécie de secretária da casa de
Xangô conselheira mãe, avó e bisavó. A sua história de vida confunde-se com a história
da comunidade, acumulando e condensando experiências particulares da memória
coletiva que passam por suas narrativas carregadas de acontecimentos e novidades.
O desafio do exercício a que me proponho inclui a decantação dessas suas
experiências alquímicas na sua relação com o povo da rua, com os visitantes
principalmente com os mais novos do terreiro além de seus pares quando se aconselham
mutuamente. A sua palavra transmite, transforma e põe cada um de nós numa prontidão
para os acontecimentos inesperados. Ebome Detinha consciente da sua importância na
comunidade, fala, escuta até compreender completamente o que escuta e nos instiga a
este exercício como forma de com-vivência.
É possível que ela mesma não se dê conta da sua importância na construção de
nossas identidades na relação com a comunidade e com os orixás. Como um ser
itinerante no terreiro já tem percorrido um longo caminho se consideramos que ela
viveu a presença de duas mães de santo. Foi ela com a Ebome Maria de Iansã que
acolheu Mãe Stella nos seus primeiros momentos de Iyalorixá.
Importante este direito de memória, que temos guardado pela fala que se repete
de geração para geração é o que define a nossa ancestralidade na comunidade de terreiro
como um bem comum. Memória que revive, que redimensiona positivamente a cultura
do lugar, a história, o território e suas realidades sociais e psicológicas acumuladas que
ficam como uma sucessão de narrativas que não se perdem.
Pela memória e pela tradição, compreendemos que o pertencimento a uma
comunidade de terreiro não é transitório nem eventual, nem necessariamente presencial;
mas é para sempre. Com Ebome Detinha aprendi a me pensar como matéria porosa ou
como a água matéria moldável plástica que se transforma com necessidades que se
apresentam. Sou filha de Oxum. Pela iniciação aprendi a cuidar do meu corpo como
morada do meu orixá sem fazer a diferença entre a matéria humana e o espiritual.
A maturidade religiosa passa então pelo cuidado de si do outro mesmo e pela
sensibilidade em aproveitar todo fragmento de saber que se projeta em forma de frases
ou palavras decerto não aleatórias. São sempre palavras desveladoras. São partículas de
sabedorias esparramadas e recolhidas ao longo da experiência religiosa. Assim cada
palavra de Ebome Detinha tem sido pra mim como miçangas preciosas que fui juntando
até se transformar num fio de contas de Oxum que carrego perto do coração porque é o
97
que dá identidade e compõe o meu jeito de ser-sendo na minha comunidade e no
mundo.
3.16 A ESCUTA DA COMUNIDADE: dialogando com as falas e o não
dito.
No princípio eram falas, e a escuta de pensamentos que assoberbavam os meus
ouvidos e todo meu ser. Falas expressão conjuntiva de sentimentos, pensamentos,
intuição, razão e sabedoria. Juntar tudo isso foi uma tarefa criadora na implicação do
sentido da comunidade na Escola Eugenia Anna. No próximo capítulo apresento o texto
teatral Prosa de Nagô. Para elaboração deste escrito utilizamos o artifício de
transformar pessoas da comunidade em personagens. Este foi o modo que encontramos
para abordar aspectos da história, tradição e da cultura afro-brasileira. A arte
teatralizante de Carlos Petrovich ganhou a inspiração de Freire, que afirma ao ser
comparado a um cantor famoso:
É no fundo sou um pouco isso. Um educador aprende a se mover no palco
como artista. Não quero dizer com isso que fiquemos diante do espelho
ensaiando a forma de mover as mãos... Isto surge a cada momento. Mas o
educador deve atender a esta dimensão de se mover com seu próprio corpo,
de quase cantar quando fala. Quando mais compreendemos isso, melhor
podemos nos comunicar (FREIRE, 2004, p. 137).
Isto implicou em juntar à escuta, aspectos de princípios e práticas do pensamento
africano a com - vivência, ao fazer acadêmico, à investigação e docência. Portanto, na
efetivação do primeiro momento da formação, para o Irê Ayó foram consideradas as
vozes da comunidade interagindo com outras vozes numa espécie de síntese político-
cultural. A experiência nos proporcionou compreender o que ainda nos diz Freire: “A
síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra, pelo contrario, se funda
nelas. O que ela nega é a invasão de uma pela outra. O que ela afirma é o indiscutível
aporte que uma dá à outra” (2004, p. 215). Neste sentido, a escuta no terreiro é
atemporal e as falas podem responder a perguntas remotas, porque a cultura do lugar
também desconhece a fragmentação e a finitude do tempo.
Pensar o sentido do ser é escutar a realidade nos vórtices das realizações,
deixando-se dizer para si mesmo o que é digno de ser pensado como o outro.
O pensamento do ser no tempo das realizações é inseparável das falas e das
línguas da linguagem com o respectivo silêncio. E se dão muitas falas. A fala
da técnica, a fala da ciência, a fala da convivência, a fala da fé, a fala da
convivência,, a fala da arte (HEIDEGGER, 2002, p.15).
98
O diálogo, a escuta, a escrita e a leitura dramática aproximou a cultura da
comunidade com a escola, incluindo técnicos da Secretaria Municipal de Educação e
Cultura, pais, crianças e observadores. O barulho do silêncio também se fazia presente
na escuta. Ou como assevera Heidegger: “a escuta é a dimensão mais profunda e o
modo mais simples de falar. O barulho do silêncio, o sentido do ser chega a um dizer”
(2002, p. 15).
Sem perder de vista a escrita criadora, a leitura dramática do Prosa de Nagô
aconteceu com grande curiosidade, silêncios e descobertas das pessoas da comunidade.
Cada um buscando as suas falas e jeitos interpretados por estudantes da Escola de
Teatro da UFBA, dirigidos por Petrovich. Emocionados, os membros da comunidade
revêem as suas ensinâncias e aprendências.
O povo de santo não esquece o que aprendeu com os seus mais velhos. Eles não
se afastam da tradição. Eles não aprendem olhando para fora de si mesmos.
Aprendemos lembrando conhecimentos dos ancestrais. Possuímos uma espiritualidade
enraizada na cultura africana tradicional. Isto significa que, enquanto participante da
comunidade, estaremos sempre aprendendo ao longo da vida. Aprendemos com nosos
pares ou com os mais experientes que se valem de histórias de vidas, provérbios e mitos
vivenciais e se constroem en-sinamdo os menos experientes. Formamos conhecimentos,
tecendo as prosas que vão se repetir infinitamente. Prosas de pessoas que são como
arquivos vivos. Suas falas ajudam na compreensão da história que pode ser conhecida
através dos mitos cotidianos que não se deixam aprisionar num passado estagnante. A
nossa busca, portanto, é dar um passo a frente do que é dito e nos en-sina. Santos nos
diz que:
Falta o discurso coerente, pois o discurso incoerente, fragmentado e
analiticamente indigente já existe. Os próprios intelectuais ainda buscam com
as variáveis adequadas para escrever essa pedagogia do urbano que codifique
e difunda, em termos didáticos e de maneira simples, o emaranhado de
situações e relações com que o mundo da cidade transforma o homem urbano
em instrumento de trabalho e não mais em sujeito. Entretanto, todos os dados
estão praticamente em nossas mãos, para tentar reverter a situação
(SANTOS, 1999, p. 133).
O texto Prosa de Nagô, uma construção coletiva de pensamentos e falas de
todos os tempos, que nos ajudou na possibilidade do reconhecimento de nós mesmos e
da pedagogia da comunidade. A palavra como um império universal nos retrata e nos
constrói. É aí que reside a perspectiva hermenêutica na educação que passamos a
exercitar e que se mostra no seu caráter dialógico e na sua radicalidade que não é linear
nem absoluta.
99
Crianças em Osogbo- Nigeria e crianças da comunidade Opo Afonjá- Salvador na
Bahia. É como se o Atlântico fosse um córrego unindo duas aldeias.
100
4. PROSA DE NAGÔ
4.1 COM A PALAVRA MÃE STELLA
Inicio da Leitura dramática – Dia 17 de junho de 1999
“Atendendo a vontade da comunidade, a Secretária de Educação, Profa.
Dirlene Mendonça e as professoras da nossa escola Eugenia Anna dos
Santos, conversaram entre si e resolveram conversar conosco. Era o que
esperávamos. Encarregamos dois educadores da nossa comunidade
Vanda Machado uma olorixá e o ogã Carlos Petrovich para
conversarem sobre o que e como poderia ser feito como educação para
as nossas crianças. Eles se entenderam e compuseram este trabalho,
Prosa de Nagô.
Eles tratam da tradição cultural afro-brasileira, como modo de inserir
aspectos de uma educação que a sociedade desconhece.
Como construir a identidade e a cidadania brasileira, conferindo ao
mesmo tempo, o conhecimento, o entendimento das ciências e a
compreensão da nossa cultura?
Com este trabalho acreditamos que os professores estarão capacitados
para ampliar o currículo da escola, uma vez que o tema é
tentadoramente fácil de ser posto em prática. Poderão também ajudar
as crianças a compreender a sua identidade e até se definir
profissionalmente, formando para isto uma consciência de projeto
pessoal de vida.
101
Os autores deste trabalho, duas pessoas sensíveis e iniciadas, foram
inspirados por Olorum-Deus, para confecção do texto, onde dizem: o
que está no Orun e no Aiyê, não está na educação sistêmica. Agora
poderá estar. Este trabalho é “um ponto de partida”
Maria Stella de Azevedo
4.2 MISTÉRIO, FILOSOFIA, CIÊNCIA, ARTE E ALEGRIA
Compreendemos que o processo cultural no contexto do Ilê Axé Opo Afonjá é
afro-brasileiro e é transmitido pela oralidade. Oralidade que corresponde à natureza da
memória de arquivos vivos de gerações sucessivas. Cada geração transmite a mesma
força vital, em forma de relato, mitos, canto, dança, poesia, ritmo e emoção. É como se
a comunidade, não podendo voltar a África, recriasse uma África livre no Brasil,
continuando a história dos seus ancestrais. A cultura do Afonjá, portanto, não é algo que
pode ser isolado da vida. Também não se trata de nenhum conhecimento especializado
construído e mantido maquinalmente. São valores partilhados como parte de um
processo que se caracteriza, também, por procedimentos das ciências da vida.
Finalmente, a identidade dos indivíduos da comunidade está intimamente associada ao
mistério do pensamento africano, à filosofia, à ciência, à arte, a cultura local e à alegria
de viver. Alegria que atinge a sua culminância, porque as entidades protetoras da
comunidade celebram a vida cantando e dançando com seus filhos.
Por cultura local, entendemos formas de comportamento que a comunidade
unida por uma tradição comum, vem transmitindo a seus filhos. Tradição comum pela
memória coletiva que contém a religião e formas de relacionamentos pessoais, maneira
diferenciada de compreender o mundo, de lidar com a morte e com a ancestralidade.
Inclui também o cuidado com a educação dos mais novos hábitos e costumes do
cotidiano. Hábitos que se mostram no modo de preparar e consumir alimentos, modos
de dormir, formas de administração do tempo, sobrevivência econômica e celebrações
comunitárias. Isso significa que estamos diante de uma invenção pedagógica nascida da
nossa caminhada pessoal e dos encontros com pessoas nas suas vivências e celebrações
da comunidade Afonjá.
São vivências que compreendem a comunidade como um mundo de sujeitos.
Sujeitos carregando suas histórias como indicação de possibilidade de
autoconhecimento e consciência de seus saberes. Esta também é uma condição fundante
para a compreensão de entidades míticas que nos antecederam numa ocasião atemporal
102
como homens e mulheres, criadores civilizatórios e parte da natureza como território
sagrado. As vivências pedagógicas reinventam a tradição cultural da comunidade,
identificando possibilidades de mediação para o cuidado, a solidariedade e relação entre
o sentido de ser, pertencer e participar dos acontecimentos comunitários. O processo de
concepção deste projeto pedagógico, portanto, deve emergir da elaboração de
experiências, tradições e saberes com a possibilidade de interferir na formação de
educadores considerando itinerâncias, caminhada heurística, o espaço-tempo histórico
que contém a tradição, a memória e a historicidade do lugar. Toda esta bagagem será
tomada como ferramenta para uma educação polifônica, polissêmica, e polilógica capaz
de dar significação a educação como um ato de aprender na vida.
4.3 SEXTA-FEIRA É DIA DE BRANCO
Início deste trabalho, sexta-feira, três horas da tarde; professores, pessoal de
apoio e, representantes da comunidade, em círculo na sala Odé Kaiodê, na Escola
Eugênia Anna, esperavam a reunião com Mãe Stella.
Não tardou, ela apareceu na casa de Xangô, dirigindo-se para a escola. Era uma
avaliação no final do ano letivo de 1997.
Antes de começar a reunião, aparece uma das professoras elegantemente vestida
de preto. Ela se desculpou pelo pequeno atraso, alegando ser o dia do seu aniversário.
Sentou-se perto da Ebome Luizinha de Oxalá, que vestida de branco fazia o contraste
ficar ainda mais acentuado. Mãe Stella falou pausadamente para a aniversariante:
Mãe Stella – Que dia é hoje professora.?
Professora. – Sexta-feira. Hoje é dia do meu aniversário, Mãe Stella.
Mãe Stella – Muito bem professora. Meus parabéns.Você está muito elegante.
Muito bonita mesmo. Mas você já reparou que às sextas-feiras, em nossa comunidade,
nós vestimos branco?
Professora – Sim Mãe Stella mas...
Mãe Stella – Mas desde criança ouvi um adágio popular que diz: "em Roma
como os romanos." Você não precisa ficar igual a gente. Entretanto, trabalhando numa
escola como a nossa, dentro de uma comunidade de terreiro, vestir preto, sexta-feira é,
no mínimo, destoante com o nosso ambiente. Qualquer cor que a senhora vista está
103
aprovada menos preto ou vermelho. Agora professora, na festa de Oxalá, você está
devendo duas galinhas, está certo?
Professora - Sim Mãe Stella, sim Mãe Stella.
Esperamos a festa de Oxalá daquele ano, a professora não apareceu e nem
ofereceu as galinhas.
4.4 DESCAMINHOS DA ESCOLA: criando veredas e abrindo
porteiras
Este diálogo aconteceu de fato. Nós não sabemos se a professora deixou de
vestir preto às sextas-feiras, mas entendemos que se fazia necessário o esforço para se
observar melhor a relação terreiro/escola.
Da frente da casa de Xangô podia observar que as professoras atravessavam a
porteira, incontinentes. Sem olhar para os lados, entravam na escola, rápidas como
flechas. Por certo a escola era compreendida como um texto sem contexto. Neste caso
era ignorada a riqueza de informações que o terreiro oferece com sua geografia, suas
narrativas, hábitos e costumes. Era ignorado tudo que poderia ser transformado em
referencial de motivação genuína para a mediação de aprendizagem significativa para
crianças que vivem sua identidade ancestral.
A relação entre a identidade ancestral dos indivíduos dessa comunidade, seu
orixá e seus elementos rituais, acontece em vários níveis. Se tomarmos como exemplo a
relação do orixá Ogun, seus filhos, o ferro ou sua árvore sagrada, podemos constatar o
seguinte: sendo Ogun também associado ao mistério, a determinado metal, a
determinada planta ou árvore, os seus filhos, com estes elementos, acreditam manter
sempre uma relação efetiva de confiança, proteção influindo inclusive nos seus projetos
de vida. Ogun é considerado o orixá protetor dos ferreiros, agricultores, cabeleireiros,
açougueiros, caçadores, pescadores, engenheiros, militares e médicos cirurgiões, e de
todos que trabalham com o ferro
Esta é uma relação identitária que pode ser considerada criativa e ou criadora.
Perdê-la, significa cair no vazio ou, no que Jung considera possível perda da alma.
Dizendo de outro modo, princípios e valores, símbolos divinizados, são passados dos
mais velhos para os mais novos como valores que fazem parte de uma herança imaterial
comum como memória coletiva implicando em alguns padrões de comportamento.
Deste modo, o trabalho proposto deve ser incluído e relacionado com o processo de en-
104
sinar que dá ênfase à motivação, à imaginação criadora das crianças, com princípios de
autonomia, liderança e solidariedade como valores da cultura local. Por extensão
necessária, devem ser incluídos, também, conhecimentos e a participação do negro na
história e cultura no mundo da diáspora.
Com esta perspectiva, nos colocamos a caminho de promover a interação
comunidade/escola. Para tanto, se fazia necessário que os educadores compreendessem
a cultura do lugar. A questão, portanto, era encantar os docentes para esta mediação.
Instigá-los para buscar, procurar, e pesquisar e compreender com as crianças os
referenciais culturais da comunidade. Referenciais como motivações, tanto para
formação de objetivos atitudinais quanto para os cognitivos transformando a experiência
numa teia integrada de saberes incluindo os conteúdos das ciências.
Temos a nosso favor uma comunidade receptiva e o apoio de Mãe Stella que não
perde de vista uma educação que contemple as nossas crianças negras, moradoras do
terreiro ou não. Agora, é cuidar e buscar soluções! Como reverter o processo? Como
criar possibilidades para motivar adequadamente as nossas educadoras no caminho da
compreensão e mediação de en-sinar as crianças na sua cultura matricial? Agora é
caminhar fazendo outros caminhos.
A Escola Eugenia Anna abriga trezentos e cinqüenta estudantes e mantinha
convênio um com a Secretaria de Educação do Estado, e outro com a Secretaria
Municipal de Educação e Cultura. Denunciado o convênio com o Estado ficou
formalizado o apoio da Prefeitura. A instituição se manifestou aberta ao acolhimento do
projeto que contempla a consideração pelo ensino da História da África e cultura afro-
brasileira na Escola Eugênia Anna, nas perspectivas desejadas pela comunidade
considerando que a escola já se constitui como espaço de re-existência cultural pela sua
própria localização.
A Secretaria Municipal da Educação e Cultura (SMEC) da Cidade do Salvador
está municipalizando a Escola Eugênia Anna firmando uma parceria de cooperação
técnica com a Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opo Afonjá, na pessoa de Vanda
Machado e do arte educador comunitário Carlos Petrovich, com a finalidade de
participar com o fornecimento de materiais didático-pedagógico e necessários ao
desenvolvimento das atividades da unidade escolar bem como garantir um trabalho
articulado para definição de um currículo que atenda a realidade identificada na
comunidade, visando desenvolver uma ação transdisciplinar no currículo institucional
oferecido pela SMEC. Ação transdisciplinar que é fundamentalmente a transposição de
105
referenciais da memória, história e cultura tradicional afro-brasileira através de
atividades mediadoras de alcance pedagógico.
Ao estudarmos o assunto, nos demos conta de que o trabalho da construção dos
instrumentos pedagógicos teria que caminhar ao encontro da identidade cultural
brasileira referencializada por valores da ancestralidade africana. A idéia era formar
educadoras de um jeito que elas próprias se percebessem no contexto como pessoa,
considerando a sua itinerância, as possibilidades de autoconhecimento e compreensão
das vivências com o povo da comunidade e .tudo que fosse possível relacionar com a
Escola Eugênia Anna.
A nossa função, portanto, foi escutar muito, o que é plenamente legitimo para o
povo de santo. Esta é uma prática legitima dos que se aproximam das comunidades de
terreiro. Finalmente, elaboramos uma seqüência de diálogos e cenas, onde personagens
como os diletos portadores da cultura local dialogam com as educadoras da Eugenia
Anna.
Esperamos com esta ação estabelecer uma ponte entre a cultura da comunidade e
a criação de vivências pedagógicas. Vivências pedagógicas que, ao mesmo tempo,
possam estar associadas à construção de uma identidade ancestral e à formação de
cidadãos autônomos coletivos e solidários.
A equipe de assessores e professores, que conosco divide a responsabilidade de
realizar a entrega ao terceiro milênio, de crianças e adultos com identidades verdadeiras,
é que dedicamos toda energia viva deste espaço sagrado. Depois de nós, histórias de
liberdade serão contadas durante longos e longos anos. E um dia, seremos nós, os de
hoje, os ancestrais dos que virão amanhã.
4.5 A FALA COM A COMUNIDADE AFONJÁ
Início da formação das educadoras na Escola Eugênia Anna dos Santos, da
comunidade de Terreiro do Ilê Axé Opo Afonjá no dia 17 de junho de 1999. Estão
reunidos, o pessoal de apoio, educadores e educadoras, representantes da comunidade,
da SMEC/PMS, pais, alunos e visitantes de outras escolas. As pessoas ajudam na
acomodação dos visitantes e do povo da comunidade. Atores convidados da Escola de
Teatro dão inicio ao trabalho teatralizado com a leitura do texto Prosa de Nagô:
106
Narrador – (Entra solene e lê o Diário Oficial) - Primeira reunião do ano letivo de
1999.
A Prefeitura do Salvador acaba de municipalizar a Escola Eugênia Anna dos
Santos, e parte para realizar um projeto de ensino de cultura afro-brasileira, em
cooperação técnica com a Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opo Afonjá, representado
pelos educadores Vanda Machado e Carlos Petrovich. O documento assinado com a
SMEC tem como finalidade garantir um trabalho articulado, para definição de um
currículo que atenda à realidade identificada, articulando-se, também com o Núcleo de
Estudos de Teatro Popular Técnica de Espetáculo e Cultura Afro-brasileira - NET POP
da Escola de Teatro da UFBA, visando realizar o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó
com arte e alegria.
Professora – (Aponta soletrando) O que? I iiirê Aaa ayó? O que é isto gente?
Será que vamos ter que falar em africano? Meu Deus.. Que língua é esta? É a língua que
o povo daqui fica cantando e falando aí pelo terreiro?
Diretora Olha gente, antes de começar a discutir qualquer assunto, gostaria de
compartilhar uma conversa que tive com Mãe Stella. Um dia desses, ela me chamou na
casa de Xangô...
Professora – já sei! Avisou que vai fazer o seu santo. Hê parrêi ê
50
. Quem vai
ser a mãe pequena
51
? Todos (risos).
Diretora – Aceito a brincadeira. Mas aqui todo mundo sabe que Mãe Stella não
trata das coisas da religião desse jeito. Estou aqui, há quase vinte anos e, nunca fui
chamada para tratar desse assunto. Sempre tratamos de assunto da escola
Professora – Tudo bem. Então vamos lá. Vamos ao que se trata! Quanto
mistério!...
Professora – Já sei, então é a supervisora! Ora iê iê ô!, Vamos saudar
Oxum.Ora iê iê ie (Risos, risos).
Supervisora – Podem brincar à vontade, mas o certo é que Mãe Stella entende
muito bem o nosso lado profissional. E respeita a opção religiosa de cada um. Agora,
quando eu preciso vou lá mesmo. Ora se vou? Porque não!
Diretora – Olha aí, gente! Agora vamos voltar ao sério. Mãe Stella me
perguntou como vai a Escola? Como vai a questão do ensino? Se estamos considerando
50
Saudação a Iansã
51
Mãe criadeira, pessoa responsável pelo (a) iniciado (a).
107
que a escola funciona dentro de uma comunidade de terreiro? Se estamos considerando
os acontecimentos da comunidade?
Professora – E daí? A escola não é da Prefeitura?
Todos (falam ao mesmo tempo num burburinho incompreensível).
Professora – (levantando-se) É da Prefeitura sim, mas a coisa está mudando, há
muita gente interessada em nossa cultura, quero dizer da cultura do terreiro. Tem hora
que o terreiro está assim de branco... Até o Ministro Welfor veio passear aqui. O que foi
mesmo que ele veio fazer aqui? ( risos).Ele comeu aqui na casa de Xangô, bebeu água
de côco, e tudo mais. Eu vi. Todo mundo viu. (risos) Foi ou não foi?
Professora – Espere aí, criatura. A conversa é outra.
Professora – Outra coisa? Oxente!...
Diretora – Mais ou menos! Vejamos! A Escola Eugênia Anna é do terreiro,
prestamos satisfação também à comunidade e à Sociedade Cruz Santa. Mas nós somos
pagos pela Prefeitura e, portanto, seguimos a orientação da Secretaria Municipal. Tem
que obedecer primeiro à prefeitura.
Vanda – Bem, a proposta é sermos de agora em diante um único grupo. Um
grupo de formação que pretende compreender o pensamento do povo do lugar, como
eles aprendem e como ensinam uns aos outros, e assim pensar melhor um outro jeito de
ensinar as nossas crianças.
Professora – Agora tem uma coisa que eu quero dizer logo. Eu sou católica.
Não sei nada desta religião. (Falando para o lado, um pouco mais baixo) E não quero
saber.
Vanda – Isto é compreensível, esta é a sua crença. Mas não é religião que vamos
ensinar as crianças.
Professora – Como não? Religião também é obrigatório no currículo. Continuo
afirmando, não sei nada de religião.
Supervisora – E tem uma coisa. Os terreiros são diferentes. Parece que este é de
origem Ketu não é mesmo? Há muitos outros e de outras nações; tem jêje, angola e até
umbanda. É muito estudo. Será que vamos dar conta de tanta coisa?
Vanda - É justamente por este um dos motivos para que não se trate de ensinar
religião. Nós vamos falar é de história e cultura afro-brasileira e principalmente das
raízes históricas que propiciaram o nascimento das religiões de matriz africana.
Petrô – Vamos conversar com as nossas crianças sobre a herança dos nossos
ancestrais que viveram há muito tempo no continente africano, criando civilizações e
108
muitas histórias. Histórias daqueles que já se foram para Orun, daqueles que vieram da
África nos primeiros tempos e deram suas vidas na construção das riquezas do Brasil.
Professora – Aqui mesmo, Vanda já nos contou que houve príncipes e rainhas
que foram destronados pelo tráfico de escravos. História de negros que poupavam para
comprar suas alforrias. Histórias de negros pintores e escultores. E aquela história do
Egito ser também continente africano. Eu sempre soube que o Egito fica no Oriente
Médio. Onde é mesmo o Oriente Médio? Oriente Médio não é continente. Imagine
quanto problema para não dizer que o Egito como berço da civilização ffica no
continente africano. Não vou mentir, no princípio pensei que Vanda estava inventando
algumas coisas. (risos) Não tudo... Mas algumas coisas foi difícil ...compreender para
acreditar. (risos)
Vanda – A bem da verdade, nós vamos fazer muita coisa de modo diferente.
Primeiro, vamos saber quem eram nossos ancestrais antes dos europeus chegarem a
África. Outra coisa nova é tomar o próprio ambiente da comunidade com suas histórias;
seus sons, suas formas e cores, as árvores, e tudo o mais que nos cerca como coisas que
precisamos compreender para ensinar às nossas crianças.
Professora - Eu mesmo acho que vai ser fácil. Eu já ensinei a história da
escravidão, falei dos maus tratos dos senhores de engenho, dos navios negreiros, da
Princesa Isabel, comemoro a semana do folclore...
Vanda – Certamente que todos nós já trabalhamos um pouco com a história
desse jeito. Que tal a gente começar tudo pela história dos primeiros ancestrais desta
comunidade? (mostra onde tem uma cruz). Vejam bem ali esta Ilê Ibó Iku, a casa de
culto aos ancestrais. Eles que prestaram grandes serviços à comunidade.
Professora – O quê? Deus me livre (se benze), vocês vivem dizendo pra
ninguém ir lá. Lá não é o lugar dos mortos e dos defuntos? Eles estão lá, não é?
Supervisora - No Ibó é um lugar apenas de culto. Ali são prestados homenagens
e reverências aos eguns, que são os espíritos ancestrais. Lá estão as mães de santo e
todos que já foram para o Orun.
Professora . – Gente! Como nossa supervisora está sabida!
Professora – Já vi tudo! A vida dela é conversar com Maria de Iansã e com
Tutuca. (Risos).
Diretora – É isso mesmo. Elas são filhas desta comunidade e sempre me
ajudaram a compreender algumas coisas aqui do terreiro.
109
Professora – Isso mesmo. Ainda tem Nidinha e Luizinha! Porque não escutar o
que eles sabem e podem nos ajudar?
Diretora – Muito bem. Já estamos melhorando as idéias. Vamos voltar ao
assunto, minha gente. O assunto é...
Professora – Já sei. Já vem mais trabalho...(Risos)
Supervisora – Quem sabe um trabalho mais interessante para as crianças e para
nós mesmas?
Vanda. – Isto mesmo. O esforço é para compreender a concomitância dos fatos,
é relacionar tudo que fizermos com a vivência e história da comunidade, com a nossa
história, a história do Brasil e a História da África. Assim, vamos estar sempre contando
uma história de bem perto de nós e outro de bem longe. Uma história que está
acontecendo agora e outras histórias que aconteceram há muito tempo.
Professora – Começo a entender que de agora em diante vamos estar sempre
com atenção a todo este espaço e com todos os acontecimentos. É isto que se chama de
motivação? Será que é isto?
Técnica da SMEC – Sim. Como motivação, ponto de partida para novas
aprendizagens. Como vocês percebem este jeito de trabalhar com as crianças? É bom
que cada um se posicione, tire suas dúvidas e dê a sua contribuição agora! O que
acham?!
Vanda – Acredito que já podemos começar pensando em um currículo com a
possibilidade de relacionar a cultura desta comunidade com vivências pedagógicas,
incluindo a história como também a matemática, ciência, geografia, linguagem,
incluindo todas as linguagens das artes... Então, vamos conversar sobre estas questões?
Narrador (lê a cartaz)
Ebome Luisinha – Eu não gosto de falar. Quando vou falar fico toda
emocionada. Mas quero ajudar em tudo que eu puder.
Professora – Começo a pensar que uma nova postura de nossa parte pode
contribuir para que se mantenha o respeito e a tradição deste lugar. Se a religião não for
respeitada; bem tratada, até nós vamos ser mal vistas. Vocês sabem do que estou
falando... Vocês sabem que tem gente que torce o nariz pra gente, não é? Que tem gente
na Secretaria que faz orações bem direcionadas. É só a gente aparecer nas reuniões. E
sabe o que eles pensam, de verdade? É que o povo aqui é bando de negros primitivos e
110
de cultura inferior. Tenho muitas dúvidas. Quem nos apóia de verdade? E qual é mesmo
a verdadeira intenção?
Petrô – Ai é que está o problema. O sistema de ensino ainda não apresenta
informações significativas sobre os nossos ancestrais indígenas e negros e sobre
aspectos da nossa história e cultura que foram sonegados por estudiosos racistas e
etnocêntricos.
Professora – Pois é gente, eu até já li alguma coisa no livro da Professora Ana
Célia. É sobre o livro didático. No livro didático brasileiro o negro é desvalorizado,
desqualificado e subalternizado. Está sempre em último lugar ou simplesmente não
existe. Onde já se viu?
Professora – Está tudo bem, mas parece que temos um problema. Estou
estudando há muito tempo e nunca aprendi nada sobre o que está se falando ou fazendo
aqui. Nem nas universidades se ensina assim. Vamos enfrentar uma barra lá fora. Eu
ainda não sei como me defender. Não sei como defender este trabalho.
Professora – Nem eu. Mas vocês nem sabem como eu estou gostando deste jeito
de contar e descobrir a nossa história.
Vanda – Pois é. E não precisamos ir longe não, minha gente. A África começa
aqui no Ilê Axé Opo Afonjá. Nossa escola está dentro de um pedaço de terra que é um
território síntese do continente Africano. (Palmas de todos).
4.6 PROSA DE NAGÔ I
A primeira parte do texto foi elaborada como instrumento introdutório para
compreensão da necessidade de compreender o pensamento africano recriado na
comunidade com a finalidade de introduzir aspectos da cultura afro-brasileira na
educação das crianças da Eugenia Anna. No segundo momento o estudo incluiu a
história do negro antes do navio negreiro. História que precisa ser desvelada com
urgência ou continuamos vivendo a privação do entendimento histórico e cultural que
engenhosamente nos foi imposta.
Este escrito nos possibilitou o acesso de forma não preconceituosa à tradição da
comunidade, que é plena de significados próprios. Os diálogos não foram inventados e
sim recriados para o que se propõe. Quem já conversou pelo menos uma vez com um
dos nossos personagens não tem dúvidas da transposição criativa de suas falas,
111
resultado da elaboração de saberes a partir de longas e pacientes escutas. Escutas não
necessariamente nesta ordem, neste mesmo dia, nem necessariamente apenas com estes
personagens. Neste contexto está embutida a possibilidade de presentificar uma parte
não cultivada da alma brasileira. Afinal, ainda estamos descobrindo quem somos nós e
qual é a nossa história. Com a Prosa de Nagô trazemos uma seqüência de diálogos e
cenas, onde os diletos portadores da cultura afro-brasileira falam aos professores da
escola da comunidade. Vejamos parte do texto que relaciona o mito à história, à ciência,
ao pensamento africano e à educação.
4.6.1 O ferreiro da vida e dos caminhos
Vanda Conta-se que em tempos muito remotos Obatalá chamou Ogun e o
encarregou de continuar moldando os seres humanos conforme Oxalá e Nanã já haviam
iniciado. Os corpos são moldados e colocados no forno do ventre da terra. Tomando
vinho de palma, Ogun dança, canta e se distrai, retirando os copos antes que estes
estivessem prontos. Os corpos saem meio amarelados e ele os coloca em lugares bem
distantes no oriente bem perto de onde o sol nasce. Volta e coloca mais corpos no forno
do ventre da terra. Novamente ele sai canta e dança e pensa que o tempo foi suficiente.
Quando retira os corpos, percebe que estes estão esbranquiçados. Junta os corpos que
foram colocados no ocidente, portanto do lado oposto de onde o sol nasce. Voltando ao
forno para a realização da sua missão, finalmente encontrou o ponto certo para corpos
que deram origem a todo povo africano e que mais tarde foi espalhado em todo mundo.
Professora – Que história bonita. Quer dizer que somos todos filhos de Ogun.
Taí eu gostei da idéia. Fale mais dona Detinha. Fale mais de Ogun.
Dona Detinha – Também professora. Parece que compreendemos que não
estamos falando de santo assim como São José, como Santa Terezinha. É bem diferente
falar dos santos católicos e falar dos ancestrais assim como Ogun e os outros orixás.
Ogun foi e é muito importante lá na Nigéria como na África bem antiga. Ele é
considerado um rei enviado pelo Orun. Orun é como nós chamamos o mundo
espiritual.Ogun enquanto orixá se apresenta vestido sempre de azul escuro ou verde.
Como é um guerreiro, usa capacete, espada e não dispensa vestir tiras de mariô. Esta
parte de religião é mais prá gente saber do que se trata.
Professora – E a religião não é importante não, dona Detinha?
112
Dona Detinha: É professora. É muito importante, mas a escola vai tratar mesmo
é da história e do pensamento do povo iorubano de quem somos seus herdeiros. Entenda
professora, como pessoa a senhora escolhe a religião que for do seu agrado. Agora
como mulher negra esta é sua história. Esta é nossa história. Tá entendendo professora.
Seu Moacir – Posso falar uma coisa Detinha? Não é porque ele é meu pai não.
Mas Ogun é considerado o pai da metalurgia, o inventor do ferro. Ogun inventou a
enxada que trabalha a terra, inventou a serra o martelo, os formões... Mas também é o
pai da espiritualidade. Ele é o que transforma porque soube se transformar. Eu gostaria
também de contar uma parte da história de Ogun pra vocês. Vocês aceitam?
Dona Detinha – Eu ia pedir justamente isto para você que é filho de Ogun.
Todos – Fazem um burburinho, com palavras de aceitação entusiasmada.
OGUN QUANDO QUERIA FICAR RICO
52
Seu Moacir Conta-se que Ogun queria ficar rico. O tempo estava passando e
ele sempre em suas andanças limpando os caminhos do mundo não conseguia nem
mesmo ter uma casa ou juntar qualquer coisa de seu.
Preocupado com a situação foi consultar o oluwo
53
. O oluwo olhou nos búzios e
depois de uma longa conversa, disse-lhe : Se todo seu problema for este, é fácil de
resolver. Amanhã mesmo vá ao mercado. Ande pelo mercado e com certeza seu desejo
será atendido. No dia seguinte, Ogun vestiu a sua melhor roupa e lá se foi apresentar-se
no mercado.
“Entrou solenemente no mercado. Acontece que ninguém notava a sua
presença e ele foi ficando nervoso. De repente, um cachorro magro
atravessou seu caminho, latindo, Ele não gostou, chutou o cachorro
para um lado. Um bode estava berrando sem parar, ele não contou
conversa, deu uma tapona no bicho que ele saiu rodando pelo mercado
embaraçando-se nas pernas das mulheres. Uma mulher reclamou de
tanta brutalidade; Ogun não gostou e ameaçou a mulher. Aí, todo
mundo no mercado já estava apavorado com a desordem. E todos
começaram a correr atrás daquele malcriado. Correram muito até
alcançá-lo, bateram muito nele. Tomaram o pouquinho do dinheiro que
ele tinha. Ogun corria de um lado para o outro sem ninguém o
acolhesse. Correu, correu muito até embrenhar-se na floresta. A floresta
o acolheu completamente nu e, machucado, Ogun ficou lá sozinho na
floresta. Depois de muito caminhar floresta adentro, sentou-se embaixo
52
Mito adaptado por Vanda Machado, com Carlos Petrovich, para o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó
na Escola Eugenia Anna dos Santos.
53
Sacerdote que sabe ler os segredos dos búzios.
113
de um igi opê, embaixo do dendezeiro Ele estava muito envergonhado.
Foi aí que ele começou a refletir: Veja só o que eu fiz da minha vida. Eu
desejei tanto ficar rico... E agora olha só o meu estado. Estou tão pobre
que não tenho nem roupa para voltar para casa. Vou ficando por aqui
pensando e vou o que posso fazer por mim mesmo. Ali no fundo da
floresta, Ogun ficou meditando por dias e dias. Até que em dado
momento ele olhou para cima e reparou que bem lá no alto do
dendezeiro tinha umas folhas bem novinhas que é o mariô. Ele subiu
com toda paciência retirou as folhas que precisava e começou a tecer
uma roupa para voltar para casa. Enquanto isso, não parava de pensar
Quando ele vestiu o mariô, ele se deu conta de como tinha maltratado as
pessoas. E pensou: - Eu vou voltar ao mercado, vou me desculpar com
aquelas pessoas. Não é justo. Foi muito feio o que eu fiz”.
Narrador – Dito e feito, ele saiu andando rumo ao mercado. Ao entrar no
mercado o seu corpo ficou reluzente. Ogun ficou tão iluminado que sua luz refletiu em
todo espaço e nas pessoas também. As pessoas não eram as mesmas. Ele também não
era o mesmo. Ele era tanta luz que quase nao se podia olhar. Enquanto entrava no
mercado com toda a calma, todos que estavam apreciando o que estava acontecendo
foram oferecendo comidas gostosas, jóias cauris
54
e toda qualidade de presentes, e
assim aconteceu a transformação que fez com que Ogun se tornasse um ancestral, pai da
transformação e da espiritualidade
Professora – Nossa! Que história! Eu estou toda arrepiada. Olhe, eu não vou
mentir. Eu sempre pensei que estas coisas aqui do terreiro era só uma maluquice de
cantar e dançar no barracão.
Ebome Moacir – Pois é professora, a senhora tem toda razão de pensar assim.
Quem foi que educou a professora? Se lhe ensinaram assim. A senhora só tem que saber
assim... Pelo menos por enquanto.
Petrô – Ela aprendeu tudo do ponto de vista do colonizador. Nós fomos
educados pela cartilha europocêntrica. Fomos ensinados que só é bom o que veio da
Europa.
Mãe Stella – Isto é verdade. A nossa cultura... É sempre considerada subcultura.
Não é deste modo que vamos ensinar. Esta sempre foi a minha preocupação: É bom que
as nossas professoras entendam e tomem consciência da nossa história e da nossa
cultura. Só assim elas e nossas crianças podem se orgulhar de sua escola e da sua
identidade. É preciso estudar muito para entender e considerar a nossa tradição. As
54
Búzio da costa quando tinha valor de moeda.
114
religiões de origem africana, por exemplo, não podem ser consideradas como folclore. É
religião que herdamos dos nossos ancestrais. Aliás, tem uma coisa quero falar uma vez
por todas. Eu não quero saber de crianças vestidas de orixás como nos grupos
folclóricos.
Seu Moacir – Eu também concordo plenamente, não vamos misturar as coisas.
Nao é assim que se valoriza a cultura negra. Mas quero falar só mais uma coisa. Uma
coisinha só: Ogun é o orixá da técnica. Já repararam que ele tem como símbolo uma
penca de ferramentas? Ele foi inventando o ferro e transformando o mundo. Tem até
muitos estudos sobre este assunto. E foi justamente a sua condição de ferreiro
civilizatório que lhe deu a posição de orixá. O ferro nasceu na África minha gente!
Professora – Esta parte aí é muito difícil. É muito cheia de magia. Histórias que
nunca ouvi contar. Histórias que não estão nos livros... Eu só aprendo o que está nos
livros.
PetrôOgun simbolizado pelo ferro continua transformando os caminhos do
mundo... Sempre atendendo as necessidades do homem. Veja o ferro, hoje não é só
enxada. E os metais não são apenas enfeites para as mulheres.
Tia Cantulina costuma dizer que cantiga que menino canta gente velha já
cantou. Pois é, tanta coisa que hoje ainda é nova, na África já existia. Bem antes do
europeu chegar na África, lá já existiam coletivos de trabalhadores ferreiros, artesãos de
madeira...mineradores. As associações fazem parte de uma herança dos nossos
ancestrais. O africano é coletivo por natureza Os europeus é que acabaram com tudo.
Destruíram a África todinha, só não destruíram o nosso ori, o pensamento do africano.
Eles mantiveram tudo na cabeça e no corpo todo.
Professora – É verdade... Quem diria?... E nós que aprendemos tudo diferente?
...Mas fale... Fale mais desta história....
Petrô – Hoje já se considera falsa a idéia que define um grego como o pai da
medicina, mas até hoje os médicos continuam fazendo o Juramento de Hipócrates.
Professora – Agora foi demais. Então não é Hipócrates, o pai da medicina?
Petrô – Sinto não poder concordar com a senhora professora. O pai da medicina
foi o cientista e clínico egípcio Imhotep, que há quase três mil anos a.C. praticava
grande parte das técnicas da medicina, incluindo a vacinação e a farmacologia.
Dona Detinha – Não está vendo Ogun? Ele mesmo era o caçador, o ferreiro, o
médico, e o alquimista. Ele ia juntando folhas diferentes e inventando remédios para seu
povo. Portanto, de Ogun, pode-se dizer, que dele partiu muita coisa. Aliás, quase tudo
115
veio da África. A África é a mãe da civilização grego-romana. A África é mãe até do
cristianismo. Jesus Cristo nasceu no continente africano. Lembra que Nossa Senhora
fugiu para o Egito montado num burrinho? Onde fica o Egito minha gente? Mas tem
gente que não gosta disso não?
Professora – Mas por que dona Detinha?
Dona Detinha – Eles chamam de afri-co-cen-tris-mo. (Risos)
Petrô – A África deu ao mundo a matemática, a arquitetura, a ourivesaria, a
medicina, artes, tecnologia de extração de ouro e diamante e da agricultura tropical
entre outras coisas. O homem nasceu no Egito e desceu o rio Nilo. Importante, vamos
ficar atentos: temos uma herança que é monogenética. Nascemos todos de um único
tronco genético. Temos uma única origem. Portanto, somos todos potencialmente iguais
para fazermos coisas diferentes ou iguais. Pois bem, da África veio até o primeiro
homem, que, aliás, a ciência já diz que foi uma mulher... Imagine só.... Ainda bem que
eu não tenho o menor problema com a minha porção mulher. (Risos)
Dona Detinha – Pois é, pelo menos, nós aprendemos que foi Oxalá e Nanã que
criaram o primeiro ser humano, tem quem diga que foi um homem... Tem quem diga
que foi uma mulher... Tem quem diga que foi um homem e uma mulher.
Professora – Eu nunca podia imaginar uma coisa desta. Eu podia jurar até hoje,
que tudo tinha vindo de Portugal com Pedro Álvares Cabral. (Risos)
Seu Moacir – Pois é minha filha, nem tudo que reluz é ouro. Aliás, o europeu
nem sabia trabalhar com o ouro como o africano. Extração de ouro e diamante era da
competência dos africanos. E o ouro da Europa foi todo o ouro do Brasil e de outras
partes das Américas.
Professora. – Mas o que foi mesmo que aconteceu com Portugal? Por que
Portugal não está entre as grandes potencias do mundo?
Vanda – Pois é, o mais interessante é que o ouro do Brasil não ficou em
Portugal. Portugal continuou um país pobre mesmo. O ouro do Brasil serviu para
Portugal pagar suas enormes dívidas à Inglaterra. Ou melhor, dizendo, o ouro do Brasil
serviu em parte para iniciar a Revolução Industrial que transformou o ferro em
máquinas. Pra quem já contava com os campos de algodão nas Américas foi fácil, fácil.
116
Seu Moacir – Imaginem só, as primeiras máquinas que revolucionaram o
mundo industrial foram frutos do suor e sangue dos negros - os nossos ancestrais. Ogun
nhê!.
55
..
Dona Detinha – Ah! Meu Deus. Minha mãe Stella faz cada uma com a gente...
Ela me faz ficar aqui na frente de vocês... Imagine, foi ela que mandou eu ficar aqui,
falando dessas coisas, com meus pros modes
56
. Não repare não, minha gente...
Professores aqui são vocês.
Petrô – Agora só nos resta saudar o ferreiro do mundo e vamos adiante. Ogun...
Nhê
4.6.2 Outra história: ancestralidade, pensamento africano e formação
de sujeitos autônomos, solidários e coletivos
Professora – Meu Deus. Estas histórias que vocês contam, muda muita coisa na
cabeça da gente. África; ouro; ferro; revolução industrial... reis e rainhas africanas...
Realmente... Esta não é a África que me contaram.
Vanda A gente não imagina o que significou a descoberta do ferro para o
mundo. As enxadas eram os produtos mais importantes da época. Eram exportados pra
todo o mundo. Há muitas histórias, há muitos fatos importantes que ainda nao foram
contados. Vocês nem podem imaginar! (voltando-se toda atenção para as crianças
presentes). Vocês vão ouvir outras histórias da presença de negros, numa das primeiras
universidades que surgiram no mundo.
Professora Universidade?
Petrô – Pois é, foi na Universidade negra de Sankore, no Shongai, na cidade de
Timbuktur. Lá, muitos negros estudavam advocacia, literatura ou história. Muitos deles,
depois de formados como mestres foram convidados para ensinar na Universidade do
Cairo, no Egito. Muitos gregos estudaram na África.
Professora – Negros da África, daquele tempo, na Universidade?! Quem diria?
Professora – O nosso trabalho de agora em diante é diferente. Nosso trabalho é
ensinar, ou melhor, trata-se de colocar a criança no seu destino histórico que é diferente
do que se tem pensado. Viu que eu estou aprendendo? É o caminho ser. Vamos fazer
tudo para que a nossa criança compreenda a tradição oral da comunidade. Vamos fazer
55
.Saudação a Ogun.
56
Modo de falar de pessoas não alfabetizadas..
117
emergir a sua própria compreensão de um mundo que lhe pertence. Este será o nosso
jeito de fazer cabeças. Religião é outra coisa. É a escolha da família, ou de cada um
quando for adulto.
Mãe – Agora sim, eu quero falar. Eu estava quieta no meu canto, mas estava
pensando em tudo. Eu estava pensando... Será que eu vou ser filha de santo? E meus
filhos têm que ser do terreiro?
Mãe Stella – Fanáticos, não. Aqui não se pode perder de vista a cultura da
comunidade. Mas, é muito importante preparar estas crianças para serem integradas na
vida lá fora. Como cidadãos eles não devem ter vergonha de sua cor nem da nossa
religião, mesmo que esta não seja a sua escolha.
Narrador – Primeiro sábado do mês. Depois do osé de Oxum e Iemanjá. As
pessoas continuam andando de um lado para o outro, preparando o café coletivo na casa
de Xangô. Só depois de cumprir todo o ritual do encontro é que as pessoas foram
chegando para a reunião na Escola Eugênia Anna. Como sempre foram chegando
professores, pessoal de apoio, representantes da comunidade, pais e alunos. É um
burburinho alegre. Estamos chegando de novo. Da cozinha da escola já esta saindo um
cheiro bom de comida, que vai enchendo a escola, até sair porta afora. Assim como
agora.
Supervisora – Ta na hora gente. Quem falta chegar? Mãe Stella já vem. E a
pauta? Cadê a pauta?
Vanda O que acham de manter a mesma dinâmica da roda de conversa?
Durante as falas vão surgindo naturalmente as nossas possibilidades, as nossas dúvidas,
as necessidades e idéias para a construção do Irê Ayó. Então vamos continuar nosso
trabalho? Dona Detinha que está aqui conosco, foi a primeira a chegar vai mostrar suas
bonecas vestidas como orixás e vai nos contar muita coisa que precisamos saber sobre a
cultura deste lugar. Seu trabalho tem caminhado pelo mundo.
Supervisora – Eu soube que tem até no outro lado do mundo, no Japão.
Professora – Ela deve estar, é rica.
Supervisora – Coitada! Só se for rica de trabalho...
Professora – Aí vem ela. Lá vem dona Detinha. Será que vamos ter amalá?
Professora – Que é isto gente? Todo dia é dia santo?
118
Dona DetinhaKaaró
57
, Kaaró, Nem todo dia é dia santo, mas, todo dia da
semana, é consagrado a um santo, a um orixá. Hoje mesmo, é sábado, é dia consagrado
a Oxum. É dia de saudar Oxum: ora iê iê iê ô. É dia também de saudar Iemanjá: Odô ia.
Professora – Vamos ter café gente?
Maria – Café não garanto não. Mas um omolocum vai sair com certeza.
ProfessoraOmolocum??? O que é omolocum?
Nidinha – É uma comida de Oxum. É a comida de hoje: Omolocum, ebô e
xinxim de galinha.
Professora – Eu vou querer a receita.
Dona Detinha – Eu não entendo de Omolocum, eu entendo é de amalá. Eu sou
de Xangô. Aí agora, só a turma da cozinha. Depois do almoço elas dão a receita.
Supervisora – Mãe Stella vem chegando. Já vamos começar.
Mãe StellaKaaró professoras! Kaaró, senhoras e senhores!
Professoras – Bença Mãe Stella. Bença Mãe Stella. Bença Mãe Stella.
Mãe StellaXangô abençoe a todos. Todos estão abençoados, principalmente
por este trabalho que estão fazendo na escola. Mas que cheiro é este? Bem não
começaram o trabalho já vão comer? (brincando) - O que é isto Maria?
Maria – Não, Mãe Stella (risos) não é isso não. Primeiro vamos trabalhar,
depois é que vamos comer.
Mãe Stella – É muito bom para mim e para o nosso axé, ver vocês trabalhando
assim, juntos e alegres. Fico muito contente mesmo. Precisamos sempre somar as
pessoas que podem fazer algo por nosso axé e por nossa cultura. Conforme o
combinado eu trouxe Detinha comigo. Ela vai conversar com vocês, vai contar histórias,
vai esclarecer dúvidas. Isto alem de meus filhos Vanda e Petrô que já estão aí mesmo.
Eu trouxe também o meu irmão Moacir, o Ogan Roberval e o meu filho Reginaldo,
todos de Ogun, que podem também nos ajudar nestas reflexões. Vamos Detinha? Mãos
à obra. (risos).
Dona Detinha – (arruma as bonecas e pede a bênção de Mãe Stella como é o
costume do lugar) - Ago
58
Mãe Stella. Bença Iyá.
Mãe StellaAgo ya. Xangô abençoe.
57
Forma de cumprimentar desejando bom dia na língua iorubá.
58
Pedido de licença na língua iorubá.
119
Dona Detinha – Olhe minha gente, eu não sou professora. Professoras são estas
senhoras e estes senhores aí. Mas Mãe Stella pediu que viesse conversar com vocês. E
pedido de Mãe de Santo é ordem.
Mãe Stella – Deixe de conversa menina. Prossiga
4.6.3 O dono de todos os caminhos
Dona Detinha – Olhe aqui, eu trouxe Oxum Yemanjá e Iansã, orixás femininos,
as ayabás. E trouxe logo, também, Exu e Ogun. Que é para começar do começo.
Professora – Cruz credo D. Detinha, Exu não é satanás? Não é o diabo? A
televisão toda hora está falando disso. Nós vamos conversar também sobre isto. Ah!
Meu Deus!
Dona Detinha- – (dando uma gostosa gargalhada) - Nada disso, meus irmãos.
Exu é um orixá como outro qualquer. Aliás, ele é o Orixá mais parecido com os seres
humanos.
Professora – Como assim? Oxente!
Dona Detinha – Esta história de diabo começou com a Igreja Católica, nos
tempos da escravidão. Hoje é coisa das igrejas que se dizem evangélicas pra confundir
as pessoas. Para discriminar a nossa religião.
Mãe Stella – Vocês querem saber? A gente não fica chamando por ele toda
hora? Nós o respeitamos e pronto!
Professora – Como é esse negócio de respeitar Exu?
Dona DetinhaExu gosta como qualquer pessoa gosta de atenção. Se tratado
com consideração ele pode dar boas ajudas. Caso contrário, ele faz como determinadas
pessoas. Fica de longe, doido prá ver o circo pegar fogo. Vou contar uma história pra
vocês. Veja aí, meninos!
Narrador - Conta-se que dois vizinhos muito amigos sempre saiam juntos para
trabalhar nos campos. Certo dia, de tão distraídos, passaram por Exu sem cumprimentá-
lo. Aí então ele resolveu brincar com os dois desatenciosos. Colocou um chapéu com
um lado preto e outro vermelho e passou ao longo do caminho. Ao fim de alguns
instantes um dos amigos fez alusão ao boné vermelho.
Vizinho 1 – Que boné vermelho rapaz?! O boné é preto.
120
Vizinho 2 – Não é preto, não. É vermelho
Vizinho 1 – É preto.
Vizinho 2 – É vermelho.
Vizinho 1 – É preto.
Vizinho 2 – Você vai ver uma coisa.
Vizinho 1 – Eu ainda vou lhe dar o troco.
Dona Detinha – Ambos lutaram de boa fé até caírem estrompados quase mortos
um pela mão do outro.
Professora – Que coisa horrível dona Detinha. Que coisa horrível!
Dona Detinha - O que é horrível? Todo mundo gosta de ser cumprimentado.
Aqui, a gente saúda Exu, saúda todos os orixás, e saúda também, a Iyá. Saúda a todos os
irmãos. Eu mesmo fico ali, no Carrapicho
59
, quando vem uma pessoa, eu fico atenta. Se
for meu mais velho vou pedir-lhe a bênção. Se for meu mais novo vou ter que abençoá-
lo. Eu fico atenta a todos para responder bom dia ou boa tarde. Sabe por que eu faço
isso? Porque na vida tudo e todos merecem atenção. Assim, antes de qualquer cerimônia
ritual, cantamos pra ele e evitamos assim qualquer mal-entendido. Diga aí, se não é
assim Ebome Moacir?
Ebome Moacir – É isso aí Detinha Tem gente que assusta mais do que Exú. Ele
não é espírito. Ele é uma força existente na natureza, por isso agente tem que respeitar
mesmo. E depois, é ele que anda pra cima e pra baixo levando as nossas mensagens, os
pedidos para os outros orixás. É ele que atende em todas as nossas necessidades.
Professora – Deve-se dar atenção a tudo?!
Professora – Deve-se dar atenção a todos?!
Dona Detinha – É isso aí. Atenção a tudo... Atenção a todos. Todos os
problema, todas as soluções estão espalhadas pelo mundo. É por isso que precisamos
estar atentos para nossa própria organização.
Mãe Stella – E você Ogan Roberval? Fale alguma coisa.
Roberval – Bem, Mãe Stella, o que temos refletido é que o jeito deste orixá é o
mais fácil de encontrar em nossa sociedade onde proliferam pessoas de caráter
ambivalente... E interesseiro. Ao mesmo tempo elas fazem coisas boas e fazem coisas
horrorosas. São pessoas que têm inclinações tanto para desatinos quanto para dar bons
conselhos. Conselhos que podem ser dados com tanto zelo e ponderação quanto maior
for a recompensa esperada. No caso dele, é o arbítrio do homem que decide sua ação.
121
Tudo depende também do ambiente que se cria e das intenções das pessoas. Em todos
os casos a responsabilidade é do ser humano.
Professora – Ah!... Eu não pensava assim não. Realmente eu precisava refletir
mesmo sobre a tradição e cultura deste lugar. É incrível, era só eu falar a palavra orixá e
já era uma confusão na minha cabeça. E já me dava medo.
Dona Detinha – Bem, vamos concluir este assunto? O dia deste orixá é
segunda-feira, suas cores são preto e vermelho. E a sua saudação è Laroiê! Eu
particularmente tenho um costume. Eu não pago nada na segunda-feira, no dia dele.
Seu Moacir – E de receber você gosta não é Detinha?
Dona Detinha – Ah receber, eu gosto. E gosto muito. (Risos)
Mãe Stella – Detinha, creio que já falamos o suficiente sobre este assunto.
Como introdução para começar a entender a nossa cultura, estas informações são
suficientes. Saber algo mais, é para aqueles que estão sendo iniciados, o que não é o
caso das nossas professoras. Prossiga Detinha.
Narrador ( Lê cartaz)
4.6.4 A mãe da beleza e das artes
Professora – Gente, eu já tenho uma pergunta. O que é ayabá?
Dona Detinha – Muito bem professora. Esta é uma boa pergunta?Ayabás são
todos os orixás femininos. Ayabás são também Nanã, Obá e Ewa. Vocês vão ver que as
comidas dos orixás femininos são as mais gostosas e fáceis de fazer.
Professora – Eu já estou pensando no que podemos fazer com estas prosas.
Seguindo a tradição do lugar, nós podemos fazer comidas com as crianças enquanto elas
estudam os ingredientes das mesmas.
Professora – Hum.. Pode ser. Também é possível fazer desenhos, recontos,
dramatizações...
Professora – Desculpe eu interromper, mas eu não podia deixar de perguntar:
como é feito o omolocum?
Dona Detinha – Eu já disse que eu entendo é de amalá. Fala aí Ebome Maria.
Dê a receita do omolocum.
59
Espécie de quitanda onde são vendidos objetos e elementos rituais.
122
Maria de Iansã – É fácil. Primeiro cozinha o feijão fradinho. Depois se faz um
molho temperado com camarão seco, pilado, cebola e dendê. Mistura tudo, tá pronto.
Professora – E as medidas?
Maria de Iansã – (dando uma risadona) É tudo no olho: vai botando os
ingredientes e vai olhando e vai provando até a comida ficar gostosa.
Professora – E a comida de Iemanjá o ebô? Já sei também é no olho.
Maria – É, é tudo feito a olho mesmo. Tem uma diferença, o milho branco, vai
cozido, com menos dendê e pode-se enfeitar o prato com camarões secos inteiros. A
base é a mesma - cebola, camarão seco e dendê.
Professora – Até o xinxim de galinha, só tem isso? E o amalá? É somente isso?
Maria – Somente isso, muito axé e muita alegria quando se está fazendo. A
cozinha é o lugar mais alegre do terreiro.
Professora – Está tudo muito bem. Tudo muito bom, mas bem que eu gostaria
de saber mais sobre as ayabás.
Mãe Stella – É verdade. Vai-se falar agora dos orixás femininos. Elas são
fundamentalmente ligadas ao feminino da natureza e ao feminino das pessoas.
Dona Detinha – Primeiro vamos falar de Oxum. Oxum é orixá das águas doce,
mãe da gestação e da maternidade. Aquela que cuida da criança, desde a sua concepção
no ventre, até ela socializar-se. É, também, a mãe da beleza e das artes...
Aí vem Iemanjá. Falar de Iemanjá é falar da mãe de toda vida. Ela ajuda na
decisão dos comportamentos na vontade e crescimento pessoal. Já Iansã, a Senhora dos
Ventos se caracteriza por ser companheira dos seres humanos tanto no amor quanto na
guerra e até na morte.
Professora – É só isso que a senhora vai falar das ayabás?
Dona Detinha – (Rindo) Não, ainda tem umas coisinhas que eu vou falar. Sobre
Oxum: Oxum habita nas águas doces. Sua essência é a água doce.
Professora – Desculpe interromper Dona Detinha, mas outro dia eu reparei na
festa de Oxum que todos usam o abebé, não é assim que se chama aquele espelhinho?
Dona Detinha – É, o abebé.
Professora – Mas, reparei também, que umas levavam espadas de metais
diferentes: cobre e metal dourado. Tinha Oxum que levava lira. Como é isto mesmo?
Dona Detinha – Primeiro é preciso compreender que o orixá é uma energia que
se divide infinitamente. Outra coisa é que as mães têm filhos com idades e
temperamentos diferentes. Com o orixá também é assim. Seus filhos são diferentes uns
123
dos outros. Tem Oxum guerreira, tem Oxum dona das artes. Umas são mais velhas,
outras mais jovens e assim por diante...
Professora – Meu Deus, como é que vamos aprender tanta coisa? É tudo muito
diferente. Não parece com nada que já estudamos.
Vanda – Quem quiser entender melhor Oxum, é só reparar os movimentos da
água doce. É só observar como andam as águas do rio. O jeito plácido e sinuoso que ele
corre, molhando o caminho, que ele mesmo faz. Observe os lagos, as correntezas, a
força e a beleza das cachoeiras. Pense nos rios que atravessam enormes florestas
enfrentando todo tipo de obstáculo, água que desce montanhas, até se transformar num
córrego acolhedor. Oxum é assim: flexibilidade, estratégia, paciência, persistência e
força para os grandes saltos. Talvez dona Detinha possa contar uma história que pode
também ajudar a compreender melhor esta mãe ancestral.
Dona Detinha – Vamos lá. As histórias ajudam a gente a compreender a gente
mesmo e o mundo. Vamos lá. Vamos a nossa história.
Oxum ama jóias. Todo mundo sabe disso. Certa vez dois homens roubaram todas
as suas jóias. Ela ficou desesperada, mas ponderou: como enfrentar estes homens tão
fortes? Pensou, pensou e logo decidiu. Fez uma panelona de abará e se pôs à caminho.
Quando eles apareceram, ela ofereceu a deliciosa comida.. Eles pensaram: que tola
tiramos as suas jóias que ela ama tanto, e ela ainda nos oferece comida!... Sentaram-se e
comeram. Refastelaram-se e desmaiaram um para cada lado, roncando no maior sono.
Oxum pegou suas jóias de volta, enfeitou-se e graciosamente, lá se foi, cantando pelos
caminhos da vida.
Professora – Nossa, que esperta! Nem se machucou!
Ebome Reginaldo – As mães ancestrais são cheias de sabedoria e nos ensinam a
viver melhor, e nos defender nas horas certas. O negocio é usar as armas que dispomos.
É só prestar atenção a tudo e a todos.
Pai Renato – Eu quero falar gente, as pessoas de Oxum parecem com o jeito
destes orixás. São pessoas que pensam muito antes de tomar qualquer atitude. São
persistentes e muito zelosas de tudo que fazem.
Mãe Stella – E não é só isso, as pessoas deste orixá não podem ser vistas só
como símbolo de charme e beleza. São reservadas e evitam chocar a opinião pública.
Sob a aparência plácida, sedutora e graciosa, escondem uma vontade muito forte. São
líderes por natureza.
124
Roberval – Acredita-se que seu jeito está relacionado também com a profissão
de pesquisadora, a carreira da diplomacia, do planejamento e educadoras.
Tutuca Pronto, minha gente, agora o povo de Oxum não fecha mais os dentes.
Só quero ver o que vocês vão dizer de Iansã.
4.6.5 A mãe da vida e do ser adulto
Dona Detinha – Calma, ainda não vamos dizer nada de Ian. Vamos primeiro
falar um pouco de Iemanjá. É talvez o orixá mais querido e conhecido em todo Brasil,
até pelas suas belas festas populares, os presentes da mãe d'água e festas no mar.
Professora – A Senhora também vai para o Rio Vermelho no dia 2 de fevereiro?
Dona Detinha – Não. Aqui nós não fazemos assim, não. A gente tem um dia no
calendário de festa que oferecemos presente, para Iemanjá. É tudo muito discreto.
Fazemos tudo sem nenhum alarde. É uma festa só da nossa comunidade. É assim a
nossa tradição. Ela é nossa mãe. Iemanjá é a mãe de quase todos os orixás. É a esposa
de Oxalá.
Professora – Eu ouvi dizer que Oxum é mãe de todos. Que tanta mãe é esta?
Dona Detinha – Você tem razão. A sua dúvida faz sentido. Como já dissemos
antes, nós acreditamos que Oxum é mãe, desde a gestação até a criança aprender a falar.
Daí a criança passa a ser cuidada por seu orixá de cabeça e por Iemanjá. Mas tem outra
coisa. A família africana é diferente. Todos os mais velhos de uma comunidade são
pais. Todas as mais velhas são mães. Todos os irmãos mais velhos são responsáveis
pelos mais novos. Vocês já repararam aqui no terreiro? Quantas mulheres são chamadas
de mãe pelos mais novos? E quantos homens são chamados de pais? Aqui também
somos muitas mães, muitos pais e muitos irmãos.
Professora – Afinal Iemanjá é mãe ou não é?
Dona Detinha – Olha, Iemanjá é mãe sim, só que Iemanjá não é mãe de dar o
peito para o nenê mamar. Ela é mãe do adulto. Ela é quem acompanha o ser humano por
toda a vida, mostrando o caminho equilibrando cabeças.
Professora – É, eu já vi Iemanjá dançar. Quando ela dança, dança embalando e
também parece mostrar o caminho. Será que é por isso?
125
Dona Detinha – Pois é Iemanjá é o orixá que ajuda a pessoa a decidir sobre seu
comportamento, sobre o jeito de se conduzir na vida. Acredita-se que Iemanjá é quem
ajuda a pessoa a decidir sobre seu próprio destino. Podendo às vezes influenciar, e até
exigir insistentemente obediência de seus filhos.
Professora. – E Iemanjá também se parece com o mar? Fale do mar, como é o
mar?
Dona Detinha – Bem. Do mesmo jeito que as ondas acolhem, murmuram e
acariciam a terra, elas são capazes de grandes estrondos contra as pedras ou estende-se
para um infinito que ninguém sabe como alcançar.
Professora – Pôxa Dona Detinha, a senhora falou bonito sobre o mar. E os seus
filhos? Fale os filhos de Iemanjá.
Dona Detinha – Parecem com o mar, sim. As pessoas de Iemanjá às vezes
parecem ausentes. De repente elas voltam e querem conta de tudo. Mas tudo depende do
tempo, do lugar, e do tipo de relação que se tem com a outra pessoa. Comece cada um
de vocês a observar cada pessoa do mesmo orixá. As pessoas não são como peças
fabricadas em série. Isto não é como uma receita de bolo. Há que observar o
comportamento humano não pode ser repetitivo. Os filhos e filhas de Iemanjá podem ter
ou não ter algumas destas características... São pessoas protetoras, voluntariosas,
maternais, rigorosas assim com todas as virtudes e imperfeições dos seres humanos.
Professora –Dona Detinha. Gostaria de ver melhor esta boneca. Posso?
Dona Detinha Oxente, menina. Pode pegar. Ela está aqui para isto mesmo.
Professora – Nossa? Como é bonita! Tem espada... Tem coroa, a Senhora já
falou da comida?
Professora – Ah! Meu Deus! Já falei sim. Ebome Maria até deu a receita. É o
ebô.
Mãe Stella – Pelo visto ta quase todo mundo virando africano. Odoiá, odoiá!
Narrador ( Lê o cartaz)
4.6.6 A dona dos ventos e do amor humano
Tutuca – Oba! Finalmente Iansã! Não é sem tempo. É de hoje que eu espero.
126
Dona Detinh a– Iansã! Epa hey Oyá! É assim que se saúda Iansã. Iansã é assim
como você mesma Tutuca!
Tutuca – como é que eu sou mesmo Detinha?
Dona Detinha – Valentona!!! Todas são valentonas!
Tutuca – Olha pra isso.... Vou já chamar minha irmãs pra gente se defender!
Dona Detinha – Não estou dizendo? É verdade ou não é? (Risos). Estou
brincando um pouco com vocês. Na verdade, às vezes a gente diz algumas palavras, que
podem não dão o sentido correto ao que queremos dizer. Acho que, as pessoas de Iansã
são de lutar, tanto pelos seus direitos como pelos direitos dos outros.
Professora – Quer ver uma coisa, às vezes as pessoas falam de Iansã e os seus
filhos como se fossem pessoas destemperadas, sem limites. Será que podemos falar
assim de um orixá ou de seus filhos?
Reginaldo – Claro que não. As pessoas não são somente filhos de um orixá.
Mas outras entidades estão dialogando entre si em nossas cabeças. As pessoas têm pai,
têm mãe, têm herança genética, têm amigos com quem andam. Têm a comunidade, têm
a educação que recebe na família, têm a educação que recebe na escola e na rua. E tem,
sobretudo, o livre arbítrio. Tudo isso concorre para a formação da pessoa, a formação do
caráter de cada cidadão.
Mãe Stella – A pessoa tem que cuidar primeiro do seu equilíbrio para que o
orixá possa ajudar.
Professora – Com licença Dona Detinha. Porque esta Iansã não se veste de
vermelho.
Dona Detinha – Esta é outra história. É como eu estou dizendo: Entre os orixás
também existem as suas diferenças. Tem as que se vestem de cor de rosa, as que se
vestem de branco e outras cores. As vermelhonas são muito raras aqui no terreiro.
Vamos reparar a boneca. Iansã também usa coroa. Carrega espada e dois chifres
de búfalos. Seu dia é quarta-feira... Agora suas contas são sempre vermelhas, quase
marrons.
Diretora – Na quarta-feira, não é dia de Xangô?
Dona Detinha – É, é verdade, é dia consagrado a Iansã e a Xangô. Aliás, para
continuar esta prosa, eu vou contar outra história. Vocês aceitam?
Era uma vez, no tempo antigo, Iansã vivia com Xangô. Com o passar do tempo ela se
desinteressou, e fugiu para o reino de Ogun, com quem passou a viver. Xangô não
agüentou ficar sem ela, invadiu o reino de Ogun em busca da amada. Iansã pediu a
127
Ogun que guerreasse por ela e a guerra foi feita. Mas Ogun sugeriu que por mais
segurança, Iansã fosse se esconder no reino de Oxossi. Iansã se apaixona por Oxossi.
Com algum tempo, mais uma vez, ela foge. Desta vez para o reino de Omolu.
Professora – Gente! O que é isto quantos maridos: um, dois, três, quatro... Isto é
certo, Dona Detinha!
Dona Detinha – Bem. O que é certo ou que é errado? Para a moral cristã ela
estaria condenada. Casamentos sucessivos nunca foram bem vistos.
Reginaldo – Mas nós temos que considerar que estamos falando da cultura
nagô. Estamos falando de uma cultura de tempos remotos. Naquele tempo até a
poligamia era considerada um bem. Muitos filhos era sinal de riqueza. Muitos braços
para trabalhar na terra. Hoje ainda existe um homem com muitas mulheres. É como
marca de uma tradição que há está esmaecendo com o tempo.
Dona Detinha – Pois é, compreendendo como cultura e tradição milenar, Iansã
é aceita pela sua alegria, pela sua coragem de fazer escolhas e pela sensualidade.
Moacir – Repare como é a dança de Iansã. Vocês já viram? Ela dança com
energia, brandindo a espada. Ela é senhora dos ventos. Ela é guerreira.
Dona Detinha – As mulheres de Iansã são corajosas, ciumentas, amante de
desafios, rápidas, cuidadosas com as pessoas e amam as mudanças.
Reginaldo – E quer saber de uma coisa? Quando se propõe a agir com cautela
não se deixa levar por nenhuma ação intempestiva.
Dona Detinha – Como já falamos, a pessoa não é só orixá. A pessoa é também
livre arbítrio. E livre arbítrio só se consegue juntando a razão, o coração e a
espiritualidade.
Tutuca – É, até que a Senhora tem razão. O orixá não manda a gente fazer
bobagem. Ou como diz Ebome Maria: orixá não é tentação, orixá só está para ajudar.
Mas tudo depende muito de cada um .
Professora – E as pessoas de Iansã?
Dona Detinha – Pois é como estou dizendo, as pessoas de Iansã tem
pensamentos rápidos, são generosas. São capazes de realizar mais de uma tarefa por
vez, têm tendência para administrar qualquer empresa.
Professora – E Iansã come o que?
Diretora – Ah! Isso eu sei. A comida de Iansã é a comida mais gostosa que
existe - A comida é acarajé, minha gente!
128
Professora – Por falar nisso não sei se já sentiram o cheiro. Será que vamos
comer acarajé?
Professora – Será que a receita do acarajé também é feita a olho
Dona Mundinha – Eu quero falar gente. Primeiro eu quero dizer que estou
adorando está aqui na escola. Depois quero dizer também que acarajé é feito a olho sim.
Eu sou de Ogun, mas entendo também de acarajé. Pega o feijão fradinho, aquele que já
se compra quebrado, põe de molho, lava-se tirando todas as casquinhas. Quem quer,
quebra em casa no pilão. E se passa no moinho também. Aí bate, bate, bate até a massa
ficar pronta. Acrescenta-se cebola ralada e sal. Quando fica parecendo uma pasta é só
fritar no epô, no azeite de dendê.
Petrô – Gente precisamos respirar. Agora vamos todos com papel e lápis na
mão. Vamos levantar uma lista de dúvidas. É melhor começar com um diálogo em
dupla. Em seguida façam grupos de oito. Com a síntese de cada grupo de oito, vamos
colocar no grupão, as questões que ainda tiverem dúvidas. Começando do orixá Iansã
até o primeiro. Muito bem, mãos à obra. Em seguida vamos fazer uma roda de conversa.
4.7 SEM CENSURA
Conversa na sala dos professores, dia 18 de junho de 1999 pela manhã antes do
reinício do trabalho. (Eu solicitei permissão para gravar as conversas)
Edna – Aquele francês que esteve aqui na Feira de Ciência e Cultura ele me fez
uma observação que, me pareceu muito importante. Então ele comentou que havia
assuntos relevantes porém nada que foi exposto lembrava a cultura do lugar. Ele disse
que não tinha encontrado nada novo. A gente precisa repensar e fazer uma coisa que
seja a cara desta comunidade.
Adriana – Ótimo, eu fico radiante com esta colocação porque a gente pode
juntar tudo novamente como Edna está dizendo. O ano passado Dona Detinha doou um
boneco vestido de Omolu e ficou solto porque não tinha uma história para que ele fosse
inserido na feira como cultura do lugar. Nao tinha nada. No final eu fiquei pra mim.
Diretora– Ela deu foi para arrecadar dinheiro para a feira. Não foi nada para
cultura.
129
Meire – Sim, Vanda disse que Omolu é um orixá ligado a terra. Que é orixá
ligado à saúde e à solidariedade. Se agente tivesse já alguma coisa que falasse da terra,
por exemplo, podíamos ter dado melhor utilidade ao presente.
Vanda – No próximo encontro eu vou trazer um artigo que escrevi que fala da
relação do povo de santo com a terra. Penso que isso pode nos ajudar a pensar outras
compreensões, outras possibilidades de trabalho.
Meire – É uma boa idéia, um fica com a água. Água é ciência e cultura. Água e
Oxum é ciência. Água doce, água salgada, cuidados, tratamento, peixes, alimento,
transportes marítimos Tudo sobre orixás da água, vacinas. Formas da água. Ciclo da
água. Outro ficaria com a terra, as folhas tudo que é tão presente aqui o tempo todo.
Vanda – Podemos pensar numa outra estrutura para a próxima feira de ciência e
cultura?
Meire – Um dos momentos de estudo para nós deve ser no nosso AC
60
.Você
precisa está presente com sua palavra, uma idéia. Eu comentei com a turma sobre a feira
de ciência. Por que não trabalhar a próxima feira de ciência dentro da perspectiva deste
projeto. Podemos escrever a historia do axé. Não seria importante partirmos dos quatro
elementos básicos da natureza. O trabalho pode começar com a água que é o que mais
tem neste lugar.Cada turma ficaria com um elemento. Eu particularmente ficaria com a
água. Vai ser aquela culminância.
Edna – Ou é porque você é de Oxum? Sabida...
Vanda – Percebo que o que parecia tão confuso está se organizando.
Meire – Já pensou a nossa feira com este tema? Agora já tem quem acompanhe
a agente.E nem precisa mais ser na feira de ciências. Aqui tem tanta coisa...
Edna – Eu só sei Vanda, que estamos juntando vontade e criatividade e
podemos conseguir tudo.
Meire – Eu vou dizer uma coisa, eu estava decidida a tomar minha licença. Mas
você pode crer que depois desta capacitação para o Ire Ayó, eu fiquei pensando: Meu
Deus este projeto aqui sem minha participação. (Risos). Nao vou mais não. Eu já tinha
arranjado até uma pessoa pra ficar no meu lugar. (Risos)
Vanda – Fico muito feliz com a sua nova decisão.
Meire – Agora já quero trabalhar até depois de me aposentar. (Risos).
60
Atividades complementares. Em cada duas semanas uma sexta-feira era destinada a estudos e
planejamentos.
130
Eliene – Eu sou a caçula da escola, mas o melhor aqui é que a gente esta
fazendo com paixão.
Edna – Eu mesmo quando fui pra casa continuei ouvindo tudo. Petrô fazendo
aquele movimento. (Risos). Ele fazia a gente trabalhar um minuto e batia uma palma eu
ficava nervosa. Fazia tudo rápido pra não esquecer. Aí eu pensava que homem é este?
Teve uma hora que o mijo quase desceu. (Risos) Sai daqui... Passa pra cá... Rrisos). Eu
fiquei agoniada, mas tava bom. Isto tira a gente do cochilo por que tem treinamento que
eu cochilo mesmo, não vou mentir. Petrô e Vanda tiraram a minha vontade de dormir.
(Risos) Eu poderia ficar até seis horas, sete horas aqui.
Meire – Eu avisei em casa. Não me procure, não ligue pra mim que eu não vou
atender telefone. Não vi o tempo passar. Cheguei em casa tudo estava bem.
Vanda – Quanto ao AC eu já havia me comprometido. Eu vou participar de
todos por que agora é que vamos estudar tudo que estamos produzindo nas rodas de
conversas. Este primeiro momento foi mesmo de sensibilização e notícias do que será
operacionalizado como vivências pedagógicas. Foi dado o sinal de partida.
Diretora – Esta capacitação tem sido excelente. Em momento nenhum eu me
senti cansada. Uma reunião de duas ou três horas, volto com dor de cabeça, pressão
alta... Aquela confusão... Ninguém nos diz nada e tome apostilha. Leitura de apostilha é
um horror. Aqui não. Juntou a animação com os trabalhos de arte, a competência, o
talento dos atores, a vivacidade, a animação de Petrô, a tranqüilidade de Vanda. E eu
não me senti cansada porque eu estava feliz da vida que não tive tempo de ficar
cansada. Foi uma festa. Nossa capacitação foi uma festa. Todo mundo com a cabeça
aberta. Pelos comentários, o que todo mundo pensava sobre o que é um terreiro, e sobre
as religiões de matriz africana e sobre os orixás mudou. Agora sabemos como se formou
esta religião e que não é coisa do demônio. Veja Socorro que é muito católica, ela
participou ativamente. Tenho certeza que agora todos nós sabemos o que é a cultura
deste local e o que é religião. Todos com a cabeça aberta e os ouvidos atentos:
professores, pais, crianças, a secretaria, a coordenadoria, o povo da comunidade... Foi
10, 10, 10. Estou feliz da vida.
Estava nascendo o Projeto Político Pedagógico Irê Ayó, num trabalho inspirado
no pensamento africano recriado na diáspora. Exatamente neste momento eu começava
a julgar que a formação como um acontecimento singular estava dentro das
possibilidades e das potencialidades daquelas educadoras e das crianças do lugar. Era o
131
nascer de um trabalho que foi afetando outros lugares como modelo a ser seguido. A
Escola Eugenia Anna dos Santos foi distinguida pelo MEC como Escola de Referência.
Escola Referência pela formação de educadoras e educadores e pelo desempenho das
crianças. A inspiração nascia do jeito africano de aprender e ensinar. O africano ensina a
aprende contando histórias. Aprende-se as ciências como a história dos filhos do seio da
terra. Dessas histórias vão saindo histórias de dentro da história, ciências de dentro das
ciências até que o sujeito encontre sua própria história. O sujeito está inserido na
história. Ele é a própria história. O sujeito vai sendo inserido na escola do mundo. Daí, a
decisão: vamos fazer assim com as crianças. Vamos contar histórias que aconteceram
na comunidade apontando para as diversas ciências. A missão continua sendo exercitar
uma epistemologia de en-sinar crianças afrodescendentes e não afrodescendentes,
porque é muito ampla a intenção de pensar para que serve este jeito de aprender com
ações que propiciem a transdisciplinaridade inspirada também no pensamento africano.
Enfim, isso é o que chamo de fazer cabeças bem feitas que é diferente de cabeças bem
cheias. Foi neste espírito que foi dado continuidade à leitura dramática da II parte da
Prosa de Nagô na formação para o Irê Ayó.
4.8 PROSA DE NAGÔ II
Diretora – Bom dia a todos. Vamos dar inicio ao nosso encontro de hoje.
Vamos dá continuidade a nossa reflexão para o ano letivo de 1999 e ao planejamento de
atividades, agora tendo como referência aspectos da cultura afro-brasileira vivenciada,
nesta comunidade. Também têm as Diretrizes da Escola Arte e Alegria, sintonizando
com o Ensino Municipal da Cidade do Salvador. Agradecemos a presença de todo
pessoal de apoio, representantes da comunidade e do pessoal da Secretaria Municipal de
Educação e Cultura (SMEC). Agradecemos a presença dos alunos e alunas, dos pais e
das mães. Vamos ao trabalho gente?
Vanda – Então, vamos começar? Quero mais uma vez agradecer a presença de
todos. Já conseguimos saber coisas importantes. Já conversamos com cinco orixás: Exu,
Ogun, Oxum, Iemanjá e Iansã. Já começamos a compreender melhor a comunidade e
sua gente Estamos ampliando o nosso conhecimento sobre a tradição e cultura do lugar.
Vamos preservar tudo que anotamos e que pode ser relacionado como referências da
tradição e cultura deste lugar, com as possíveis vivências pedagógicas que estamos
132
buscando. Naturalmente, vamos desenvolver tudo que estamos aprendendo para as
crianças e, quem sabe, construir com elas o seu próprio caminho de atividades. Bem,
não vamos deixar sem falar quem tem muito mais a dizer do que eu. Quero fazer um
agradecimento especial aos nossos atores pela disponibilidade de estarem contribuindo,
se emprestando, se colocando literalmente de corpo e alma a serviço deste projeto.
Então, eu gostaria de começar o nosso dia com uma história. É uma história de coragem,
solidariedade, de justiça e muita inteligência. Então, vejamos este mito inspirador de
uma forma importante de democracia
61
Ossain é o orixá das folhas. E em tempos bem remotos, somente
este orixá tinha o poder e o conhecimento das folhas. Somente Ossain,
sabia todos os segredos das folhas. Somente este orixá sabia qual a
folha que cura cada um dos males que afligem as pessoas. Fossem os
males físicos, emocionais ou espirituais. A boa saúde e o bem estar,
dependiam sempre de Ossain.
Para preservar este segredo, Ossain providenciou uma grande
cabaça, encheu-a com todas as qualidades de folhas que existem no
mundo. Depois procurou uma árvore bem grande e lá no galho mais
alto pendurou o segredo que ficava vigiando dia e noite, noite e dia. Ele
ficava vigiando e saudando. Ewe ô, ewe ô (Oh, minhas folhas!).
Cada vez que um orixá precisava de alguma folha para ajudar os
homens a manterem sua vida ou sua saúde tinha que pedir a Ossain. Ele
fazia sempre algumas exigências que até eram justas. Mas... Ele não
atendia ninguém à tarde. À noite só se fosse com muita necessidade.
Assim se alguém chegasse fora de hora, ela já ia falando: - Folha a esta
hora? De que serve eu tirar folha a esta agora? Esta folha está
cansada, empoeirada. A folha é viva. Quando amanhece o dia, bem
cedinho, ela está banhada pelo orvalho. Assim que o sol começa a jogar
a sua luz na terra, tudo se transforma em nova vida. E cada folha estará
respirando a força do novo dia.
Tudo parecia bem. Mas um dia Xangô chamou Iansã e começaram
a refletir: - Por que este poder centralizado só em Ossain? Não seria
este conhecimento o direito de todos que prestam serviço para a vida.
Vamos fazer um encontro para discutir o assunto.
Reuniram, conversaram, conversaram... Foram convencer
Ossain.. E nada. Ele resistia e os outros orixás persistiam. Nova reunião
foi marcada, desta vez com a liderança de Iansã.
Iansã marcou a hora. Todos deviam estar presentes. Ninguém
podia faltar. Assim foi feito. Chegada a hora, ela que tem a força dos
ventos, ficou bem em baixo da árvore do segredo. Ficou bem em baixo
do galho que guardava a cabaça do segredo. E todos ficaram também
ali bem juntos.
Neste momento Iansã começou a girar. Ela foi girando mais
forte... Girou... Girou... Girou muito. Girou de um jeito que toda a
natureza foi se transformando. Até as águas se encresparam com a força
61
Mito aprendido com os “arquivos vivos" do Ilê Axé Opo Afonjá, adaptado por Vanda Machado com
Carlos Petrovich, para o Projeto Irê Ayo na Escola Eugênia Anna dos Santos.
133
do vento. Todas as árvores começaram a fazer um movimento muito
forte. Balançavam muito. A cabaça do segredo começou a sacudir
muito. Debatendo-se contra o vento e a árvore, terminou por partir-se
ao meio... E todas as folhas foram caindo enquanto cada orixá foi
pegando a sua folha.
Quando Ossain viu todas as folhas espalhadas pelo chão,
começou a correr de um lado para o outro gritando sempre: ewe ô, ewe
ô.
E foi assim que todos conseguiram o que tinham direito e nem por
isso Ossain ficou menos importante. Ele é a própria folha.
Finalmente Iansã feliz com o que conseguiu saiu cantando e
dançando pelos caminhos do mundo, levando sempre novos ventos.
Aplausos
Depois de um breve silêncio....
Professora – Então gente, e agora? Qual e a prosa que estamos esperando?
Diretora – Hoje tem novos candidatos para ajudar Dona Detinha
Professora – Sim. E quais são os orixás que vamos conhecer hoje?
Dona Detinha – Hoje eu trouxe Ossain, o Senhor das Folhas, Oxossi, o Caçador
e provedor, e se der tempo, vamos falar do nosso pai Oxalá, e no final de tudo, de
Xangô, o senhor da justiça e o dono das terras e do axé do Ilê Axé Opo Afonjá.
(Aplausos de todos).
Supervisora – Além de Mãe Stella e de Dona Detinha, hoje temos Ebome
Genivaldo, Ebome Geraldo e Tia Honorina. (Aplausos de todos).
Dona Detinha – Minha Mãe Stella vai dar uma palavrinha
Mãe Stella – Não sei que critérios vocês usaram para fazer este trabalho. Mas...
Acertaram. Acertaram na escolha dos orixás do dia. Ossain e Oxossi juntos é perfeito.
Ossain é saúde, Oxossi é manutenção, Oxossi é o provedor, Xangô com seu
comportamento íntegro e ponderado por certo acolhe o nosso desejo de justiça e
também na educação. Finalmente Oxalá na sua sabedoria nos abençoa. E acertaram
desde o início quando buscaram a raiz da nossa cultura na África. Depois trabalharam
Exu, Ogun e as Ayabás. Sigam adiante. Que vocês tenham força e inspiração para
continuar o que começaram. Gostei da síntese da diretora e da fala de Vanda que já
falaram do currículo em andamento. Que Xangô abençoe a todos. (Aplausos).
Narrador (Lê cartaz)
134
4.8.1 Ossain, o senhor das folhas da saúde, do ara
62
e do orí
63
Dona Detinha – Eu sei que temos uma surpresa para um convidado presente.
Mas não vou botar o caso no mato. Diga aí professoras!
Vanda – É um sonho dele. Estou falando de uma pessoa que é responsável por
todas as folhas que necessitamos em nossas obrigações rituais. Estou falando do Ebome
Genivaldo. Ele sempre diz que quando mais cedo se aprende sobre o poder das folhas é
62
Corpo físico.
63
Cabeça. Entidade míticaque habita em todas as cabeças.
135
melhor. E que tudo tem que começar cedo, ainda criança. Assim como se fosse um
assunto de escola que serve para a vida. Foi ele mesmo quem deu esta idéia. Vejamos o
que dizem os nossos atores nesta leitura:
Ator 1
Na África me chamam Ixu
Na mesa sou gostoso
Meu nome parece estranho
Sou alimento ferroso
Sou próspero, cresço depressa
Não sinto dificuldades
Pulo pro mundo sem medo
Só trago felicidade
Comida de Ogun
Xangô e Oxalá também come
Sou Ipeté prá Oxum
Vocês me chamam de inhame.
Ator 2
Curei o fígado de Joãozinho
O estômago de Ribamar
Sarei o rim do Alabê
Com a força de Iemanjá
Juntou-se capeba e mel
Remédio que Oxum Tunsê
Deu a seu filho Sérgio
Também serve pra você
Estômago, fígado e rins
Tenho poder de sarar
Me chamam folhas de Iyá
Sou capeba de Iemanjá
Ator 3 –
Sou das ayabás preferida
Mas não gosto das anáguas
Me dedicaram a Oxum
Eu sou uma folha d'águas
Quem já sentiu dor nos olhos
Por certo chamou por mim
Sou consagrada a Oxum
O meu nome é Oririm
136
Quem tiver dor de cabeça
Ou cefaléia de paixão
De Oririm não se esqueça
Curo até seu coração
(Os três saem correndo em meio aos aplausos.– Voltam os três - agradecem e saem).
Genivaldo – Sim, sim este é meu sonho. Ver as crianças brincando com as
folhas verdes de Ossain. Escutando e contando histórias. Sim, este é o meu sonho
mesmo. Sempre sonhei em ajudar Mãe Stella na educação dessas crianças. Um dia a
gente morre. E aí vai levar tudo que sabe para as minhocas? Eu quero passar o que sei.
E sei que folha é sabedoria é também saber. E o mundo precisa muito desta ciência.
Dona Detinha Vejam agora, aqui está o boneco vestido com tudo que Ossain
tem direito.
Genivaldo – É isso Dona Detinha. Nosso pai Ossain é folha, é verde. Aliás,
Ossain não é o remédio. Ossain é a saúde do mundo. Agora se fala muito em fitoterapia.
Imagine vocês, que curar-se com folhas é a coisa mais antiga do mundo. E agora se fala
até em curar-se com flores, vejam só! E as flores também são de Ossain.
Professora – Olhem aqui gente, todo mundo sabe o que está acontecendo com
os remédios no Brasil. E não queremos entrar no mérito desta questão. O importante é
reconhecer que se agente não tivesse que encher os cofres de laboratórios
multinacionais as farmácias seriam reduzidas em mais de oitenta por cento.
Genivaldo – Mas nós devemos continuar fazendo a nossa parte, como o beija-
flor da historinha de Petrô na televisão. Vamos aprender como usar as folhas. Aqui na
roça, muita gente confia nas folhas. As folhas curam o ará, o corpo. As folhas curam o
ori, curam a nossa cabeça.
Professora Oririm na minha terra, se chama afavaquinha de cobra ou folha de
vidro. Quando a gente tinha dor d'olhos, era só espremer aquela aguinha nas vistas e a
dor ia passando, até curar a inflamação. Não se comprava colírio não!
Professora –Agente podia fazer um livro: Saúde e folhas, que tal? Podemos
fazer com as crianças. Elas sabem de tanta coisa...
4.8.2 O provedor das comunidades: o caçador de uma só
Dona Detinha – Olha minha gente! Eu queria fazer uma proposta. Vamos sair
para conversar lá fora? Podemos ir até a casa de Odé... Ode é orixá do mato. Vamos
137
sair destas paredes. Vamos para o tempo. Vamos para o mato, para o ar livre.
(Aplausos).
Supervisora – Que legal! Posso ir descalça? Faz anos que meus pés não se
encontram com a terra.
Dona Detinha – Fique à vontade professora. A senhora e quem mais tiver
vontade. Essa terra aqui é de todos nós e de quem mais quiser.
Narrador – Aos poucos, o grupo foi saindo da escola e tomando o espaço do
terreiro. Agora já parecem quase familiarizados com a roça. Diferente da primeira vez,
agora é conversa que não acaba mais. E muitos cumprimentos para quem passa.
Professora – Você já reparou que o povo aqui pede a bênção uns aos outros.
Quer ver? Preste atenção. Vanda também é assim. Quer ver repare.
Professora – Hum... Vou reparar. Vou reparar tudo. (Risos)
Professora – Olhe aí a casa de Ossain! É esta mesmo. Bem aqui em frente da
nossa escola. Sua cor é verde. E tem o nome bem na fachada. Olha lá, o Carrapicho! No
carrapicho tem de tudo. Tem contas, livros, esteira, banhos de folhas, acaçá. É Dona
Detinha que toma conta.
Professora – Vamos entrar na casa de Xangô agora?
Diretora – Isto já foi combinado. Primeiro vamos lá na casa de Oxossi. Vamos
andar. Ninguém se disperse por aí. O caminho é a casa do Caçador Ode.
Professora – Olha a fonte de Oxum. Podemos pegar na água? Olhe os
peixinhos... Olhe as plantinhas aquáticas. Será que são folhas de Oxum?
Professora – Ah minha filha, são tantas as perguntas que tenho agora... Antes
passava tudo despercebido... Eu não tinha atenção às coisas. Vamos andando o grupo já
vai longe. Olhas os pombos. Aqui também se cria pombos.
Professora – Longe nada, eu quero prestar atenção a tudo. E depois é só andar
mais rápido. Olha a casa de Iemanjá... É só esta parte. Daqui pra lá é a casa de Oxalá. É
tão simples. Gosto do jeito de tudo isto aqui... É tudo tão calmo. O tempo aqui não
corre, ele passeia devagar. Tem algumas velhas que moram nesta casa. Tem uma na
janela. Eu conheço, É a Iyá Kekerê, mãe Georgete.
Professora – Fale baixo. Será que vão gostar de serem chamadas de velhas?
Professora – Você quer saber? Aqui é diferente. Quanto mais se é velho mais se
é respeitado. Disseram que aqui, minha filha, Antigüidade é posto. É, é verdade! Aqui
138
os velhos guardam muito conhecimento e cuidam dos mais moços. A Iyá ê Kekerê, por
exemplo, é ela quem ajuda, a Iyalorixá. É a segunda pessoa de Mãe Stella
Professor – Não me diga! Vamos andando... Esta casa verde é a de Ogun?
Porque é menor que as outras? Ah! Pensei. A casa de Xangô é tão grande! A de Oxalá é
mais ainda.
Professora – Vamos acompanhar os outros. Mas tudo aqui tem um fundamento.
A qualquer hora nós ficamos sabendo.
Professora – Ah! Como você tem pressa. Agora sou eu quem está curiosa. Você
nem reparou. Acabamos de passar pela casa de Iansã. É logo ali depois da casa de
Ogun. Ficou lá atrás.
Professora – Foi mesmo? E a de Oxum?
Professora – A casa de Oxum é esta amarelinha à direita. É a última, pertinho
da de Oxossi. Veja bem a casa de Oxossi, fica entre a casa de Oxum e a casa de Iansã. E
a casa de Iansã fica entre a de Oxossi e a de Ogun.
Professora – Gente, vamos parar de conversa e correr para onde estão os outros.
Professora – Espera aí, e a casa de Omolu. Nanã e Oxumaré? Onde fica?
Professora – Você não viu não? É aquela do lado esquerdo do barracão, de
frente para a cozinha da casa de Oxalá... E tem mais do lado direito do barracão, tem um
aviário... Tem cada ave diferente! Você precisa ver... Na volta agente dá uma olhada...
Agora vamos mesmo.
Professora – Vamos.
ProfessoraÊpa, finalmente chegamos.
Narrrador – A casa de Oxossi é simples e bem cuidada como todas as outras.
Quando chegamos Geraldo de Oxossi estava sentado na varanda sacudindo as pernas e
olhando para o mato. Parecia um caçador a espreita. Era tão introspectiva a sua postura,
que parecia ausente do nosso burburinho.
GeraldoBença Ebome..
Dona Detinha – Meu pai te abençoe. Vou botar na janela o boneco vestido de
Oxossi para que todos possam ver.
Geraldo – Desculpe, eu já ia saindo mesmo. Preciso conversar um pouco com
Mãe Stella.
Dona Detinha – Não vá não, meu irmão. Ela está vindo também com a gente.
139
Geraldo – É verdade lá vem ela. Bença Mãe Stella!
Mãe Stella – Oh! Menino é você que está aí. Oxossi lhe abençoe... Este é Ebome
Geraldo. É um filho de Oxossi... Bem Geraldo, já que você estava aqui todo quietinho,
fale também um pouco sobre seu pai para estas professoras.
Geraldo – Oh! Mãe Stella! Meu Deus! Por esta eu não esperava agora.
Mãe Stella – Fale meu filho! Você é quem bem pode falar.
Narrador – O Ebome Geraldo se recompõe da surpresa e ainda emocionado
começou a falar.
Geraldo – Primeiro quero dizer que é muito bom que a escola reconheça o lugar
onde está plantada. Esta é nossa casa. É a casa do caçador. É a casa de Oxossi.
Professora – É linda. Tudo aqui é azul. Que azul bonito... E este arco e flecha o
que significam?
Geraldo – Este emblema é um ofá, é o símbolo de Odé, é o símbolo do caçador.
Oxossi é o provedor. Seu jeito de ser está associado a mata, a caça. Seu jeito é de uma
criatura que coloca toda atenção naquilo que faz. Oxossi é o protetor por excelência. É o
pai das comunidades. Não é a toa que é o Orixá da nossa mãe. É o Odé Kaiodê, o
Caçador da alegria. Oxossi é quem ajuda Xangô a manter a nossa comunidade.
Mãe Stella – Hoje, eu mesmo, quero contar uma história. É uma história bonita.
É uma história de coragem, fé, solidariedade e confiança em si mesmo. Penso que dá
também bom material para ensinar as crianças. É uma história que já está adaptada para
crianças, num trabalho de Vanda e Petrovich:
Era uma vez, um rei africano que estava fazendo, como todo ano fazia, a festa
dos inhames. De repente, um grande pássaro começou a voar de jeito que a
asa direita cobria todo lado direito do palácio e a asa esquerda cobria todo o
outro lado. As penas do seu rabo varriam o quintal. E a cabeça cobria todo
portal da entrada. A tristeza invadiu o palácio. O rei chamou o caçador das
vinte flechas. Ele não atingiu o pássaro, o rei o prendeu. O caçador das
quarenta flechas teve o mesmo destino. Veio o de cinqüenta flechas, também
não acertou. Aí chegou o de uma só flecha. A mãe dele ficou rezando para
que tudo desse certo com seu filho. Ele atingiu o pássaro. A alegria voltou à
cidade. O rei lhe deu a metade do reino. Os três caçadores foram soltos e lhe
ofereceram muitos sacos de búzios. E todos dançaram e cantaram felizes,
dizendo Oxossi!, o caçador mais querido do povo!”(PETROVICH,
MACHADO, 2004, p.75.
(Aplausos)
140
GeraldoOkê Arô!
64
Professora – A gente ouve falar tanta coisa, sem a menor noção da
realidade.Que bom que estamos estudando tudo isto, caminhando, escutando vendo tudo
como acontece. É tudo muito diferente da realidade que se cria lá fora. Nunca vamos
esquecer esta experiência. Vamos lembrar sempre de tudo e de todos. (Risos)
Vanda – Depois desta vivência, vamos pensando numa possível prática com
nossas crianças. Agora que aguçamos todos os sentidos vamos voltar para a escola.
Vamos experimentar e construir juntos um jeito de ensinar parecido com o jeito como se
ensina e como se aprende na comunidade de terreiro, considerando todas as falas que
escutamos nestes dias. A fala dos pais, a fala das crianças, a dos técnicos da SMEC,
enfim, tudo que ouvimos é importante para esta nossa formação.
Narrador – Em burburinho, começamos a andar de volta, seguindo Mãe Stella.
Todos falavam baixinho, sem desviar a atenção do caminho. Continuamos fazendo as
nossas descobertas...
Intervalo
A leitura é interrompida com a proposta de dividir o grupão em dois. Cada grupo
escolheu suas questões ou reflexões sobre o que ocorreu incluindo os orixás e os
aspectos culturais possíveis de serem trabalhados com vivências pedagógicas com as
crianças. Foi combinado que seriam considerados como temas: meio ambiente, as
pessoas, nutrição e saúde. Também foi proposto o resultado dos diálogos apresentados
em painéis ilustrados sem perder de vista como se ensina e como se aprende as coisas
do terreiro e a proposta de formação de sujeitos autônomos, coletivos e solidários. Tudo
foi cumprido conforme o combinado, e será mostrado no final desta próxima leitura.
(Recomeçando a leitura)
Narrador (lê cartaz)
64
Saudação a Oxossi
141
4.8.3 O criador dos homens e portador da sabedoria
Diretora – Bom gente, Mãe Stella já vem para o início do trabalho.
Petrô – A idéia agora é começar pelo lado contrário. Vamos fazer uma
caminhada. O ponto de partida vai ser da casa de Omolu, ao lado esquerdo do barracão.
Vamos caminhar pela roça. Vamos caminhar com a percepção alerta. Esta será uma
viagem atemporal.
Professora – Ótimo. Gosto desta idéia. A nossa cultura está muito ligada aos
elementos da natureza: Ah! Água, vento... Encontrar estas pessoas... Ficar dentro da sala
é perda de tempo. Já perdemos muito tempo.
Professora – Olha gente! Quem foi Naninha?
65
! Vocês ouviram? A pró falou
nossa cultura.
Professora – O que estou fazendo aqui, se não buscando também saber da
minha origem?!
Mãe Stella– (Chegando) - Parece que estamos todos aqui, não é?! O que é que
estão rindo tanto? Aqui é um lugar muito interessante. É a esquina do fuxico, (riso
geral). Na nossa língua fuxico é ejó. Agora nós vamos fazer ejó sobre os orixás. Se for
sobre os orixás é coisa séria. Então não é fuxico. Toda esta conversa é para
compreender o que vemos todos os dias sem dar atenção.
Professora – Acho que foi Júlio Braga que lançou um livro sobre Fuxico no
Candomblé (1998).
Mãe Stella – E quem disse que é só nos terreiros que se faz ejó. Na
Universidade é o que mais se faz. Também nas igrejas e nos conventos. Fora dos
terreiros, a Bahia é também um fuxico só. (risos)
Professora – Agora gostaria de perguntar a Mãe Stella - Porque Oxalá é Senhor
do Bomfim.
Mãe Stella – Veja bem minha filha, Senhor do Bomfim tem toda importância
como santo da igreja católica, e nós o respeitamos muito. O Senhor do Bomfim está lá
na sua igreja. E Oxalá é Oxalá. Houve um tempo que este sincretismo até fazia sentido.
Era uma forma de camuflar a nossa religião para sobreviver à violência da imposição da
nova cultura do colonizador... Hoje, somos livres o suficiente e temos consciência para
não depender mais das muletas do cristianismo. Também há o caso da dupla pertença.
65
Expressão equivalente a quem te viu e quem te vê.
142
Aqui mesmo tenho filhos e filhas que até se dizem católicos. Mas esta é ainda outra
conversa. Como o dia dedicado a Oxalá é sexta-feira, alguns negros iam à colina
sagrada com os seus senhores, e daí ficou o costume.
Professora – Pensando bem, o que pode ter a ver a Virgem Maria com Oxum? É
melhor ser assim mesmo - Cada um no seu lado. Se não, até o santo vai ficar
atrapalhado. (Risos)
Mãe Stella – É bom lembrar para vocês, que orixá não é espírito. Os orixás
estão associados a elementos da natureza, é uma outra energia. Eles são princípios
ordenadores da criação divina e dos comportamentos humanos. santo da igreja católica
é pessoa, espírito de gente que se distinguem pelos seus atos e obras perante a igreja.
Nós também temos negros tanto no Brasil quanto na África, que também se distinguem
pelos serviços prestados ao nosso povo. Mas afirmamos que eles são nossos ancestrais
e, não santos. Os orixás e ancestrais são exemplos a serem seguidos.
Deusimar –(Passando apressado) - Bença Mãe Stella.
Mãe StellaXangô abençoe. Soldado no quartel quer trabalho. Aproveite bem
o seu tempo aqui hoje. Vamos trabalhar com estas professoras. Seu trabalho hoje é
conversar com este pessoal sobre o seu pai Oxalá. Oxalá é o pai de todos os orixás e
criador dos seres humanos. Ele é o orixá do início e do fim. Sua cor é o branco. E
branca é a cor da ancestralidade.. Prossiga Deusimar. Comece do princípio. Quem sabe
pelas águas de Oxalá?
Deusimar – Bem gente, fazer o que?! Bença minha mãe. Vou começar pelo que
fica à vista de todos. A festa das Águas de Oxalá. A festa é um grande ritual que faz re-
existir um episódio muito significativo da vida de Oxalá.
Mãe Stella – Vamos entender melhor este período de festa. São dezesseis dias
que passamos aqui em obrigação. É um tempo muito importante, por que tudo é feito
para que aconteça um encontro mais profundo com a nossa espiritualidade. Este é um
momento que se repete cada ano. Muita coisa pode acontecer diferente, mas emoção é a
mesma.
Deusimar – Tudo tem início na quinta-feira que antecede a última sexta-feira,
do mês de setembro. Chegamos à tardinha. Cada um toma o seu banho de folhas para
limpeza e preparação espiritual. E se veste com a roupa de ração.
Professora – O que é roupa de ração?
Deusimar – A roupa de ração é feita de morim. Sem enfeite nenhum nem na
roupa das mulheres nem dos homens.
143
Décio – Eu quero dizer uma coisa, assim que chegamos aqui na roça o clima
ambiental e psicológico muda. Todos, naturalmente, começamos a falar mais baixo. E
tudo, desde o fim da tardinha, vai ficando muito quieto até o silêncio absoluto.
Deusimar – É isso mesmo. No início da noite, ainda cedo, cada um carrega sua
esteira, sua quartinha que vai carregar a água, um obi, um travesseiro, um ojá e um
lençol. Os homens vão dormir na casa de Xangô. As mulheres vão para casa de Oxalá.
Professora – Nossa! Eu tenho a maior curiosidade em conhecer a casa de Oxalá.
Deusimar – Podem ir entrando. A casa é nossa. Aqui é a casa do pai de todos.
Quando nascemos, nascemos aqui nesta casa. Quando vamos para a ancestralidade o
axexê é aqui. É aqui a despedida do mundo dos vivos.
Deusimar – Como já foi falado durante dezesseis dias nós vivemos
ritualisticamente a história da prisão e da volta de Oxalá para a comunidade. No
madrugada da sexta-feira, mais ou menos às três horas, todos nos reunimos aqui mesmo,
nesta sala. Minha mãe inicia o ritual. Aí se forma uma procissão que leva Oxalá para a
palhoça, lá fora, junto à casa de Omolu. Isto tudo no mais absoluto silêncio. Só se ouve
os passos das pessoas na areia nova colocada no caminho do balué
66
de Oxalá. Nenhuma
voz humana é ouvida. Só sentimos o cheiro de folhas e de roupa engomada. E a gente
vai batendo paó.É um dos dias mais bonitos e emocionantes nesta roça.
Professora – Na palhoça?!
Professora– Oxente! Do lado de fora, no chão? O que significa isto? Ele fica lá
sozinho isolado? À toa?
Mãe Stella – Professora você não prestou atenção a história mítica que foi
contada. É isso mesmo. Oxalá fica isolado de todos como ele ficou na prisão por sete
anos. Aqui ele fica sete dias lá fora. Continue Deusimar.
Ebome Deusimar – Voltando às águas. A esta altura, cada um cobrindo os
ombros com o lençol, e com a sua quartinha na mão, este vaso de barro aqui, (
mostrando o vaso)vão formar uma grande fila. Todos vão se encaminhando e se
colocando em ordem por tempo de feitura. E se dirigem à fonte de Oxum. Nós vamos
para lá agora. Vamos lá. Vamos fazer o mesmo caminho.
Vanda – A Água de Oxalá geralmente e a primeira obrigação que
participamos.É nossa primeira experiência com o coletivo, com a comunidade e com
cada um em particular.No nosso caso foi Tia Detinha que nos orientou, a mim e a
66
Lugar de banho.
144
Petrovich. É inesquecível a primeira Água de Oxalá. Mãe Stella dá inicio ao cortejo em
fila indiana. Um cheiro de roupa branca se mistura com o cheiro de barro das quartinhas
e por causa da chuva vai subindo um cheiro de terra fresca. Mãe Stella caminha na
frente lentamente seguida das outras mais velhas. O toque do adjá
67
anuncia o inicio da
obrigação quebrado o silêncio alegre do fim da noite. Ainda no escuro da noite que está
terminando, uma lua clara acompanha os filhos de Oxalá fazendo brilhar ainda mais o
branco da roupa de cada um. Uma chuva vai caindo fininha e fria. Ninguém arreda o pé,
nem os mais velhos, nem os mais novos.
Professora – Meu Deus! Deve ser emocionante!
Ebome Deusimar – É verdade. Tem hora que é preciso só sentir, só ver, só
escutar o que está acontecendo. Em nossa religião tudo tem um tempo e um sentido.
Ebome Décio – Quando chegamos na fonte de Oxum, assim como agora, nós
estamos fazendo agora, encontramos Darinho e Bié o seu filho e também alabê. Eles
tocam atabaque chamando os orixás. No ritual das Águas de Oxalá, eles vai enchendo as
quartinhas e nos entregando com todo cuidado.
Professora – E aí, vai entrar novamente na fila? Na mesma ordem? Segue para
onde?!
Deusimar – Quando chegamos à palhoça, passamos a quartinha para Mãe Stella
e ela vai banhando Oxalá de uma a uma. A Iyalorixá derrama água sobre Oxalá num
banho de renascimento da comunidade com a água que cada um carrega da fonte de
Oxum.
Professora – Dai em diante o que acontece?
Deusimar – Aí fazemos três viagens, sempre na mesma ordem da fila inicial. Na
segunda viagem, entregamos um obi que está conosco como oferenda de vida para
Oxalá reafirmando a presença de cada um como seus filhos. Como uma única familia.
Na terceira viagem, carregamos a quartinha com flores brancas e lá, a deixamos
ornamentando no ambiente que se torna sagrado pela presença de Oxalá.
Professora – Mas esta última viagem não fica parecendo com a lavagem do
Bomfim?
Deusimar.– Não é só parecido. A lavagem tem sua origem remota nesta
obrigação de Oxalá.
Luisinha – Neste momento, todos nós nos ajoelhamos em nossas esteiras para
cantar e celebrar a volta do pai e o renascimento da comunidade. Nessa hora, pra mim é
67
Pequeno sino de metal .
145
à hora mais bonita. A roça se transforma, parece um jardim de lírios. Eu fico muito
emocionada. Me dá vontade de chorar.
Décio – Aí começa a hora mágica. A luz do sol vem chegando, bem
devagarzinho, iluminando a gente de corpo e alma... Cantamos... Dançamos e saudamos
Oxalá, celebrando mais um ano de nossas vidas. É lindo ver o dia amanhecendo e Oxalá
dançando e nos abençoando.
Ebome Noêmia – Meninos vejam lá. Eu nem sei se me lembro mais das
histórias do nosso pai. No tempo de Mãe Aninha... Bom, aí, eu tinha memória de
menina.
Ebome Elpídia – Oh minha irmã, comece a história que eu lhe ajudo.
Ebome Noêmia – Está certo. Então vamos lá. Epa Babá! Quanta gente bonita,
gente jovem. Cheguem mais pra perto, o velho também gosta da mocidade. São
professoras, não é? Ah!, São professoras... Prá mim é a profissão mais bonita do mundo.
Eu sempre digo a minha irmã Cantulina. - Se eu tivesse estudado mais, eu seria
professora. E ela aí fica chicanando de mim. Mas eu sei que seria uma boa professora.
Décio – Minha gente, vocês não se importam de sentar em esteiras não é?
Vamos deixar essas cadeiras para as ebomes e Elpídia e Noêmia. Aqui na casa de Oxalá
elas tem um lugar especial.
Ebome Noêmia – Bom vamos ver como nos saímos, eu e Elpídia. Onde já se
viu? (As duas riem).
Narrador – Era uma vez, Oxalá queria fazer uma viagem e avisou para o filho.
Oxalá – Meu filho vou viajar, vou visitar seu irmão.
Filho – Meu pai se lembre que o babalawo disse pro senhor não viajar por esses dias.
Oxalá – Eu quero viajar. Estou decidido. Vá lá e diga ao babalawo. Estou com saudade
de meu filho e vou lá de qualquer maneira.
Narrador – O filho foi ao adivinho e voltou muito preocupado. Ele voltou com três
recomendações:
Adivinho – Oxalá deve viajar sozinho, levando três mudas de roupa; Deve levar sabão
da costa. E deve atender a qualquer pedido sem se aborrecer.
Ebome Elpídia – E lá se foi Oxalá. Logo adiante encontra um homem,
carregando um grande barril nas costas, cheio de azeite de dendê.
146
Narrador Oxalá encontra com o desconhecido
Desconhecido velho, me ajude aqui!
Oxalá – Ajuda no quê?
Desconhecido – Ajude a arriar o barril no chão.
Oxalá – Vamos! Vamos ! Mais força. Atenção vamos pegar juntos.
Desconhecido – Ô velho fique com este barril pra você. É todo seu. (sai gargalhando).
Oxalá – Você deixou o óleo de dendê cair sobre mim. Volte aqui. Volte aqui.
Ebome Elpídia – E o sujeito saiu desembalado na carreira. Oxalá lavou–se
pacientemente. Trocou de roupa e despachou a roupa suja.
Narrador – Mais tarde outro sujeito lhe pediu ajuda para carregar um saco. Quando ele
foi ajudar, o saco era de carvão caiu e lhe sujou da cabeça aos pés. Mais uma vez,
pacientemente, Oxalá se limpou sem nada reclamar.
Ebome Noêmia – Aí, ele chegou de roupa branca, limpa e no reino de Xangô.
Mas, o que é que sucede aí? Foi logo encontrando um cavalo branco que ele mesmo
dera a seu filho como presente. E o cavalo foi seguindo os seus passos. Então não deu
outra, os criados de seu filho não o reconheceu e o perseguiram, bateram muito nele e o
jogaram numa prisão. E lá ficou durante sete e longos anos. Nesse período o reinado de
Oyó foi atingido por grandes secas. O gado morria e havia muita fome.
Ebome Elpídia – Naquele horror, seu filho Xangô consultou o adivinho, e ouviu
que tudo aquilo estava acontecendo, era por que um inocente se encontrava prisioneiro
no seu reino.
Ebome Noêmia – Mas, o que é que acontece, agora? Foi aí, que o grande Xangô
mandou vasculhar todas as aldeias até encontrar Oxalá numa prisão, todo sujo e
arrebentado pelo sofrimento. O rei carregou o velho Oxalá nas suas costas até o palácio.
Chegando ao palácio foi oferecida uma grande festa. Todo povo da aldeia foi convidada
para a festa dos inhames. E todos dançaram e cantaram com muita alegria pelo
aparecimento do nosso Pai.
(Todos aplaudem.)
147
Professora – É essa a história que é lembrado pelas Águas de Oxalá?
Ebome Deusimar – É sim! Durante dezesseis dias nós vivemos esta história
ritualisticamente como se tudo fosse hoje.
Professora – E as águas de Oxalá ? Eu gostaria de saber mais desta relação com
a da Lavagem do Bomfim?
Mãe Stella – Ah! Meu Pai, já vem novamente o sincretismo. Vejam bem, vamos
continuar dando a cada um o valor que cada um tem. A festa das águas de Oxalá está
associada sim, à sua prisão, ao encontro com a comunidade quando celebramos a Festa
do pilão. Uma festa que se realiza no terceiro domingo depois das Águas. Tudo isso na
vida de Oxalá. Que é a grande festa pela sua volta ao convívio da família.
Professora – Oxalá foi um pouquinho teimoso, não foi?!
Ebome Noêmia – Um pouquinho só?! Ele foi muito teimoso. São assim as
histórias dos orixás. Tudo que acontece é pra gente aprender. Aliás, os filhos de Oxalá
geralmente têm inclinação para teimosia. Eles são também muito autoritários. Querem
mandar em tudo. Outros não. Nem parecem... e gostam de hábitos simples... Tudo muito
simples. E assim vão levando a sua vida.
Professora – Agora, outra coisa, ouvi falar que na África tem também festa do
Senhor do Bomfim. É verdade?!
Professora – Que história é esta?! Donde vocês tiraram isto?!
Vanda – Tem sim. Houve um momento no século XIX, que negros foram
obrigados a voltar para o seu continente de origem. Muitos também voltaram porque
sempre desejaram voltar para a terra dos seus ancestrais. Quando negros e negras
regressaram à África, levaram outros costumes do Brasil.Levaram a Festa do Bomfim e
o brinquedo das Burrinhas. .Eles influenciaram na arquitetura do lugar construindo
casas com sobrados e mesquitas parecidas com as nossas igrejas, sem as cruzes,
naturalmente. Com outros hábitos e valores, eles alteraram a cultura de lá do mesmo
jeito que quando eles vieram alteraram a cultura de cá. Vocês podem ver isso num vídeo
que temos aqui na escola. Mãe Stella e Ebome Detinha participaram deste vídeo. Muitos
negros já não queriam voltar para a África. O Brasil já era a sua pátria. O vídeo é
Atlântico Negro - Rota dos Orixá
68
. Ele conta a história do povo Agudá na sua volta
para Benin.
68
Vídeo produzido por Ricardo Barbieri
148
Professora – Meu Deus! Ouvi tanto sobre as Águas de Oxalá e a minha cabeça
está pegando fogo. (risos)
(A leitura é interrompida para um breve intervalo).
Neste ponto, nós orientamos para que se formassem grupos de oito. O
encaminhamento foi para uma prosa coletiva quando todos estariam seriam instados a
expor as suas idéias e dúvidas. A seguir foram elaboradas vivências pedagógicas no
Projeto Irê Ayó, com atividades para um currículo com história e cultura afro-brasileira.
(Recomeçando a leitura)
Narrador (Lê o cartaz)
4.8.4 O senhor da justiça e arrimo da comunidade Afonjá
Vanda – Vamos continuar nossos estudos com mais um orixá. Agora com o
dono da comunidade.
Professora – Então, afinal será hoje o dia da tão esperada visita, a casa de
Xangô?
Professora – Vamos entrar lá?
Professora – Será? Logo hoje com tanta gente?
Dona Detinha – Nada, daqui a pouco vão todos embora, só fica mesmo o
pessoal do cozinhado.
Professora – Não entendi nada. O que é cozinhado?
Dona Detinha – Veja bem, a casa de Xangô é diferente de todas as outras casas.
Enquanto as outras casas de orixás o acesso é restrito a poucas pessoas, a casa de Xangô
tem as portas abertas para todos. A casa de Xangô é a antena do terreiro.
Professora – Olhe bem já que começamos agora, me informe as coisas direito.
O que a senhora quer dizer com antena do terreiro?
Dona Detinha –Tudo que chega à roça é através da casa de Xangô. Por esta
porta passam lágrimas, tristezas, apreensões, desesperos, descaminhos e tudo para ser
resolvido, pela orientação dos búzios. Por aqui também passam as alegrias, festas,
esperanças, novidades boas, vitórias individuais ou coletivas... Xangô é assim; portas
149
abertas, braços abertos, seus ouvidos e seus olhos sempre atentos para seus filhos. Ele
vai transformando tudo que é necessário transformar.
Professora – E quem não é filho de Xangô?
Dona Detinha – Mãe Stella costuma dizer, que qualquer um que atravessa
aquela porteira, buscando proteção ou trazendo alegria, se torna, automaticamente, filho
de Xangô.
Ebome Celina – Gente, aqui é um lugar onde não existem órfãos.
Ebome Cida – Nesta casa entram músicos, políticos, artistas, pobres, ricos e até
de outras religiões, contanto que precise, e simpatize com a nossa religião. Ninguém sai
sem resposta.
Ebome Eurides – Aliás, na casa de Xangô é diferente. Chega-se e logo depois
de saudar os ancestrais imediatamente saúda-se Xangô e aí é que vamos saudar Mãe
Stella e a Iya Kekerê. Saúda-se a todos os mais velhos, pedindo-lhe a bênção. É assim....
Professora – Iya Kekerê? O que é Iya Kekerê? Ou melhor, quem é a Iya
Kekere?
Ebome EuridesTa vendo esta senhora que vem ali?
Professora – Onde?
Ebome Eurides – Ali, moça, lá vem ela. Aquela aí do cabelo todo branquinho.
Professora – Ah! Já sei? Ela é uma gracinha. Vejo-a sempre subindo e descendo
à roça.
Vanda Bença Mãe Georgete?
Mãe Georgete – Agora que vem chegando não é? Você agora só vive socada
nesta escola... Oxum lhe dê juízo. Olhe, a mãe de santo quer todo mundo aqui domingo.
Não deixe de vir não, viu? Ela quer que vocês todas (continua falando e andando).
Ebome Eurides – Já sabe quem é a Iya Kêkerê?
Professora – Já entendi, Mãe Georgete é uma espécie de segunda pessoa da
Mãe de Santo. Isto eu já aprendi. Pelo jeito ela tem bastante autoridade sobre os filhos.
Jane – E não é só isso. Outro dia Mãe Stella falou que por tudo que ela é e por
tudo que faz, ela representa Oxum diante de nós. Nós lhe pedimos a bênção
respeitosamente.
Professora – Tem que ser assim mesmo? Meu Deus, nunca vi etiqueta mais
complicada, mais rígida.
Vanda – Nem tanto. Cada roca com seu fuso, cada roça com seu uso. Todo
grupo social, tem suas regras de convivência. Nós temos as nossas regras que temos
150
consciência da sua rigidez, mas tudo tem que ser cumprida, como manda a tradição do
lugar.
Dona Detinha – Mas Xangô tem seu lado civilizador. Lembra quando nós
falamos de Ogun e o poder da invenção do ferro. Com a idade do ferro o mundo se
transformou.
Professora – Pois é, não podemos perder de vista a função do fogo neste
processo.
Professora – A relação de Ogun com o ferro e o fogo já entendi, mas onde
Xangô entra nesta história?
Petrô – Veja bem, Xangô está associado com a faísca, com o fogo e seu poder
de transformar. Vejamos hoje a energia elétrica; a eletrônica, a cibernética, o
computador.
Vanda – O mundo começou a mudar desde que o homem fez o primeira
fogueira. Foi talvez o primeiro sinal de aprendizado pela convivência de todos os seres
incluindo a natureza. Petrô – Isto mesmo, e parece que quando os homens se juntaram
em torno das fogueiras, muitas idéias foram socializadas proporcionando mudanças
significativas no pensar e no agir da humanidade. O fogo está dentro de nós, hoje!
Cida – (Aparecendo de repente) Ta na hora de arriar, o amalá pra Xangô.
Professora – Lá vem Mãe Cantulina.É verdade que ela foi iniciada por Mãe
Aninha?
Petrô – É verdade sim, Mãe Cantulina fez 99
69
anos em março deste ano. Ela é
um símbolo de resistência da nossa religião, da nossa cultura, e da longevidade.
Vanda – Você vai ver depois do amalá. Aí ela canta, ela dança na frente de
Xangô. É um momento que dá gosto se ver. É simplesmente emocionante. Você vai
chegando perto, ela já vai contando uma história.
Narrador (Lê o cartaz)
4.8.5 Assim no orun como no aiyê
Professora – Aqui é um lugar de muitas histórias
69
Mãe Cantulina foi para a ancestralidade aos 104 anos.
151
Vanda – Realmente ela é muito atenta. Outro dia ela nos encontrou e foi
perguntando?
Mãe Cantulina – Menina, qual é seu orixá?
Vanda – Respondi - Oxum.
Mãe Cantulina – Tia Cantulina - E o dele?
VandaOgun Mãe Cantulina, Ogun.
Mãe Cantulina – Oh! Você é de Ogun não é? Eu pensava que você era de
Xangô. Mas vou contar uma história assim mesmo, pra você saber com quem está
tratando, sente aí. Ela não é de Oxum? Então a história serve muito bem pra vocês.
Vanda – Sentamos perto dela na sala de Xangô.
Tia Cantulina – Bem Ogun era casado com Iansã. Tudo ia bem até que Xangô
começou a aparecer todo fim da tarde em sua casa. Ele chegava bonito, cheiroso e
começou a olhar para Iansã com muito interesse. Não descansou até o dia que a
conquistou e levou-a consigo, casando-se sem prestar nenhuma satisfação a Ogun. Mais
tarde Xangô pensou que podia fazer o mesmo com Oxum, mas aí foi diferente. Com
Oxum ele teve que ficar prostrado a seus pés, esperando que ela concordasse com o seu
pedido de casamento. O que só veio depois que ela se despediu de Ogun.
Tia Cantulina – Viu meu filho. Com esta ayabá é diferente. Não é, vai
chegando, e tudo dá certo não. Viu?
Petrô – Sim mãe...
(Fim da Cena).
Professora – Por que as histórias dos orixás envolvem tantos conflitos quase
sempre paixões e muitos casamentos...O que significa isto?
Dona Detinha – Já falamos sobre isto. Hoje os orixás são energias. Mas um dia
eles todos foram gente como a gente. Eles nasceram, brigaram, guerrearam e amaram
muito... Depois foi que se encantaram como orixás.
Petrô – Mas me diga, tem coisa pra dar mais equilibro ao ser humano do que o
amor?
Dona Detinha – Os orixás sempre lutaram muito, principalmente pelo amor.
Professora – Bons tempos! (Risos).
Petrô – Pois é! Quem vive sem amor. Quando duas pessoas se amam,
experimentam o poder da vida, da criação e do fogo, que transforma até as pedras.
152
Professora – Gente! O que foi que ela viu, porque está tão inspirado.
Mãe Stella – Vamos faladeiras. Está na hora de entrar mesmo. Desde o primeiro
dia vocês queriam visitar Xangô. Pois é o tempo é agora. Ele também quer ver vocês de
perto.
Narrador – Mãe Stella se põe na frente de Xangô e começa a fazer a oferenda.
Todos estão atentos. Toda semana os mesmos gestos são repetidos como se fosse a
primeira vez. Canta-se com fé e alegria. A dança é companheira desta alegria. Mãe
Cantulina levanta os braços, lá na frente, e grita com toda força do seu coração.
CantulinaKawo Kebyesile!
70
TodosKawo Kabyesile!
Narrador – É a voz centenária de Mãe Cantulina que se espalha por todo o
Terreiro, saudando o pai Xangô. Mãe Stella reza pela comunidade, consciente da sua
missão, de olhar e proteger esta imensa prole que Xangô lhe confiou.
Aqui termina a leitura do texto dramático Prosa de Nagô, na sua versão
recriada, para compreensão da tradição e cultura da comunidade Afonjá.
Petrô pede dez minutos de meditação individual. Ao fim deste tempo é sugerido
ao grupo que se organize em grupos para elaboração de uma frase síntese. As frases
juntas foram organizadas como um texto para ser revelado na roda de conversa.
70
Saudação a Xangô.
153
Árvore do Tempo. Foto Vanda Machado
154
5. RODA DE CONVERSA: um exercício na
prática de educação com o pensamento
africano recriado na comunidade Afonjá
(Manhã de 17 de junho de 1999).
Finalizando a leitura, foi solicitado que cada participante dissesse uma palavra
sobre a história de Iansã e a democracia das folhas: As palavras foram compartilhar
socializar, autonomia, solidariedade, união e poder, descoberta, democracia,
democratização, repartir, segredo compartilhado.
A seguir, os participantes fizeram uma representação plástica sobre a mesma
história. A história foi narrada enquanto o grupo acompanhava com gestos. A
culminância da história foi quando aconteceu uma chuva de folhas sobre os presentes. E
assim foi iniciada a roda da prosa de nagô.
Petrô (UFBA- Afonjá) – Transpondo a cultura daqui e de outros lugares, foi
importante acompanhar este jeito como cada um conseguiu mostrar o que compreendeu.
Eu não vi ninguém dizer que não sabia o que fazer. Todos entraram num jogo
155
intensamente criador. Então o que é isto? O que é que faz a gente agir assim. Gostaria
que uma pessoa de cada grupo fosse falando ou fazendo uma síntese do que aconteceu
no grupo. Um relator de cada grupo no primeiro momento, depois a gente entra num
diálogo mais amplo na roda de conversar.
Aída (Escola Eugênia Ana dos Santos-EEAS) – Bem estamos falando do
Projeto Político Pedagógico Irê Ayó. Eu não sei se está acontecendo também com
vocês. Eu tenho muitas dúvidas ainda principalmente quando falamos em pensamento
da matriz cultural africana. Também sobre os princípios e valores desta comunidade.
Tem umas coisas que eu percebo. Outras coisas eu preciso ainda de muita conversa.
Como incluir no currículo e na sala os acontecimentos, hábitos e costumes de vida desta
comunidade?
Vanda – Perfeitas suas observações. Quero chamar a atenção dos presentes para
esta próxima roda de conversa que envolve entre outras questões básicas sobre a
motivação para aprendizagem que é o referencial da comunidade de terreiro, sua
tradição, história, memória e o currículo que desejamos construir, o currículo básico
sistêmico e um planejamento que atenda os princípios de complexidade, flexibilidade e
o fazer coletivo.
Ana Rosa (Secretaria Municipal de Educação e Cultura – SMEC) – Eu sinto que
o trabalho que a gente apresentou foi exatamente tudo que aconteceu no grupo. É o
princípio de tudo. Testemunho que a mudança e a construção foram genuinamente
coletivas. A partir de uma motivação como vocês vêm propondo, o tempo inteiro, a
gente traz um sentimento, a gente traz uma idéia cada um vai colocando um pedacinho,
e este pedacinho que vai sendo colocado vai transformando a idéia do outro e criando
algo que é novo. Prá mim, esta vivência tem este sentido muito forte do grupo
transformar o próprio grupo, construindo e reconstruindo o conhecimento a partir daí.
Este é o sentimento que tenho em torno do processo que aconteceu. E a gente queria era
convidar as pessoas exatamente para este movimento.
Aída (EEAS) – Olha gente, é como se eu nunca tivesse conhecido o Afonjá.
Gente é tudo diferente mesmo. Como a gente está aqui todo dia não se dá conta de que
tudo é muito diferente. As pessoas, suas roupas, a maneira de cumprimentar, as
conversas, as brincadeiras. As falas das pessoas com palavras africanas, as cantigas. E
as festas então, nem se fala! Eu já vi uma festa e não vi. Da prá entender? Tenho a
impressão que estou aprendendo um caminho novo. Vamos aprender os caminhos.
156
Caminhos das folhas, do espaço, dos ventos, da terra, das casas, das danças, dos orixás.
E o melhor ainda que é compreender de onde vem a alegria destas pessoas.
Edna (EAAS) – O que me chamou atenção é o fato de se acreditar que cada
orixá ter um jeito de ser e de ajudar os seus filhos com a possibilidade de cura de todos
os males. Ter a sua folha, a sua força, a sua essência, o seu poder. Foi lindo. Quem
prestou atenção à história que Vanda nos contou. Quem colocar esta história aqui na
cacholinha não se perde nunca mais.
Auxiliadora (EEAS) – Eu acho o seguinte o outro grupo pensou alguma coisa
diferente. Foram criativos, mas nós estamos nos conduzindo como pensamos em fazer
com as crianças. Pensamos em uma outra maneira de conduzir esta vivência. Não é,
que a ação mostrada não seja boa para as crianças. Eles vão adorar. Vai ser uma farra
espalhar todas estas folhas como fez Iansã.
Meire (EEAS) – Quando Vanda esteve em nosso grupo, ela tomou
conhecimento também do conteúdo que esta história pode motivar de uma forma de
ensino transdisciplinar. E nós queremos acrescentar agora o que nós escolhemos o que
poderá ser trabalhado com as crianças agora já no processo de aprendizagens
significativas. Ossain foi o mais explorado em nossa equipe. Nós fizemos uma lista.
Nós podemos trabalhar ecologia, meio ambiente, medicina alternativa, a importância
das folhas, já que as crianças convivem com tudo isto aqui.; os fenômenos da natureza,
os vegetais, as plantas, os alimentos vegetais, as raízes na alimentação. Nos estudos
sociais, a questão das regionalidades, a flora do nordeste que nos interessa mais
diretamente. A divisão política do Brasil questão das regionalidades mesmo. Idéia de
democracia ou socialização. Iansã fez com que o conhecimento e o poder das folhas
fossem divididos com todos. Importante perceber que Ossain continua com o poder de
ser a própria folha, mas o conhecimento foi distribuído com todos os orixás. Também é
possível pensar problematizações envolvendo a divisão. Importante ainda como
aprendizagem significativa o trabalho com espaço e forma e geometria.. O formato de
cada folha, tamanho cheiro e textura. Aparelho respiratório, circulatório e também o
digestivo que também foi falado nos versos. As crianças podem ter notícia e até ver a
mata atlântica que ainda tem um restinho aqui lá no fundo do terreiro. Não podemos
esquecer as folhas que servem para remédio. Aquela folhinha que é boa para os olhos, a
afavaquinha de cobra. Quando eu era menina a gente colocava nos olhos e rezava: Santa
Luzia passou pó aqui com seu cavalinho comendo capim... Alguém se lembra? (Risos)
Como é que vocês chamam?
157
Vanda Orinrin. É uma das folhas de Oxum. De fato há algumas
sincronicidades muito interessantes. Há uma qualidade de Oxum sincretizada como
Santa Luzia. Imagine...
Meire (EAAS) – Os versinhos falaram das folhas que curam o estômago. Isto
prá nós é um despertar. Foi a partir daí que o nosso grupo fez o inverso de vocês. Ao
invés de a gente lançar primeiro a proposta e que depois eles façam um trabalho de
conclusão como vocês apresentaram, nós fizemos o contrário. Nós faríamos uma
dinâmica para que identificassem princípios e valores contidos nas histórias. Seria o
inverso da apresentação de vocês. A representação seria após estes pontos serem
trabalhados. O nosso grupo pensa uma apresentação, e a partir daí eles diriam: olhe, nós
podemos saber mais sobre o vento as folhas ou porque cada orixá precisa ter as suas
folhas. Eles é que poderiam sugerir o que querem trabalhar e o que julgam mais
importante para o momento.
Ana Rita (SMEC) – Eu quero dizer um poema. Um poema de um amigo meu. É
um poema que eu gosto muito e que mudou muita coisa na minha vida. Eu só me
lembro de um pedacinho que diz assim:
Que distância existe entre a cabeça e a boca?
Que abismo intransponível haverá entre a boca e o coração?
Quantas légua e mais léguas, estradas quase sem fim?
Estarão mesmo a ligar nossas bocas a nossas mãos?
Então, eu não sou professora de crianças como vocês e acho fantástico como vocês
conseguem rapidinho estabelecer estes vínculos, esta teia e fazer estas associações entre
os mitos, as leituras sobre a cultura, o conteúdo que está sendo apresentado e a forma de
realização de tudo dentro de um outro processo de uma educação transdisciplinar. Aí, eu
vejo as professoras fazendo isto com uma criatividade, com uma força. Eu não tenho
esta habilidade. Mas eu vejo que existe uma outra coisa que a gente não pode
desconsiderar como coisa menor que é o próprio movimento que se estabelece dentro da
sala de aula.
Eu tenho estado em muitas escolas que o discurso é o discurso do
construtivismo. Mas aí eu fico perguntando, qual a distância real que existe entre este
discurso e o que efetivamente minhas mãos fazem? e como eu estou diante do meu
grupo enquanto grupo também? apenas como uma pessoa que tem uma história
diferente do outra e se permite a abertura de construir coletivamente?. Então, quando a
gente faz isto, que eu acho que antes de tudo vem a partir deste sentimento da
158
necessidade de experimentar esta construção, porque é verdadeiramente, a gente
construiu alguma coisa significativa. Foi muito legal pra mim, foi muito legal a fala de
Petrô, quando ele diz: eu sou o alimento, quando a gente se sentia muito integrado a
tudo isso. O anterior ao conteúdo ou talvez o não anterior é tão essencial como conteúdo
que a gente pensava na distância que a gente empreende, porque a gente está aqui junto,
compartilhando; porque quando eu me abro para o outro e posso construir. Eu estou
abrindo mão de uma relação de poder, estou abrindo mão de crenças, estou abrindo mão
de um lugar para o qual estou querendo sair e aí sim a gente constrói de verdade
coletivamente. Então, quando a gente chama a atenção e fala dos meninos poder
elaborar, que a criança pode soprar folhas e resgatar o prazer, diminuir certas distâncias
entre a boca e o coração e as mãos. É mais ou menos isto que eu sinto em relação ao que
a gente construiu no grupo, e pra mim foi muito forte fazer isto. E diante de tudo isto, da
flexibilidade da mudança do convite a compartilhar e construir juntos. Porque não é
fácil não. É fácil a gente falar sobre isto, mas muito difícil é a gente fazer. É um
exercício democrático, e que pouquíssimas pessoas têm a ousadia que Iansã teve.
Porque pra mim antes de tudo o ato dela foi de muita ousadia de chegar a desafiar o que
está instituído e promover uma mudança. Vamos mudar mais a mudança só acontece de
dentro para fora, quando a gente se propõe a sair do que está posto, rasgar papel e
soprar, sair sujando tudo e depois limpar, reorganizar como você estava falando.
Adriana (EEAS) – Na verdade, o que a gente fez foi transformar o prazer em
aprendizagem significativa. O mito que Vanda nos contou, a história de Ossain, como
ele guardou o segredo das folhas. Outra coisa é como a pessoa se prepara para preparar
alimentos para depois compartilhar. Precisamos pensar muito na nossa preparação para
depois compartilhar. Isto é fazer a cabeça. Precisamos pensar muito na nossa
preparação antes de entrar na sala de aula para dividir o que sabemos do jeito como
aprendemos. Isto foi a síntese do que aprendemos neste pedaço de manhã.
Aldir
71
– É muito importante mesmo que cada um possa pegar o que é da sua
competência. Eu acho que isso é importante para quem educa. Educar é ter o que
realmente o que dividir. Quando eu divido o que sei, eu cresço.Este mito nos faz pensar,
nos faz compreender o poder que o professor tem na sala de aula.
Ana Célia
72
(UNEB) – No nosso caso, o trabalho aconteceu na hora em que nós
íamos discutir que apresentação nós iríamos fazer, considerando que este planejamento
71
Ogan do terreiro da Casa Branca, visitante do Afonjá.
72
Doutora em Educação, professora da UNEB e iniciada.
159
acontece de fato num processo contínuo. E não podemos perder de vista o que
aconteceu no início da aula de hoje, quando discutimos a importância do planejamento.
Na hora não falei por que na universidade eu tenho dificuldade de fazer o planejamento
no processo. Na universidade, o planejamento é solicitado antes de conhecer os
estudantes. Antes de conhecer a capacidade, o potencial e a dificuldade. Todo semestre,
eu tenho o mesmo problema. Eu vou construindo da maneira como o aluno se porta.
Pela exigência institucional, eu apresento um planejamento prévio que seria o
equivalente a conteúdos programáticos. O planejamento acontece na sala de aula, ou
seja, o que vale aqui é o que chamamos de motivação, aqui é tudo tão natural. Este é o
verdadeiro currículo. Isto é bem diferente de um esquema que prevê um aluno como a
universidade me obriga a fazer, e não tem nada a ver com as pessoas que têm outras
culturas e está vivendo por trás da experiência. Daí eu faço um de verdadeiro
malabarismo, enquanto aqui vocês são livres.
Vanda – O currículo em uma escola não é tudo, mas deve ter a ver com tudo e
com todos. Como construir uma prática que desconhece o lugar de onde se fala? Que
desconhece para quem se fala? O currículo deve considerar: a história, a cultura, as
possibilidades e itinerância do outro e a sua própria. Sendo assim, o planejamento
deverá contemplar aspectos que expressem, traduzam, compreendam a forma de ser do
lugar e das pessoas para quem foi construído, para quem é, e para onde foi pensado.
Petrô (UFBA - Afonjá) – O que importa é a consciência da responsabilidade do
saber e para onde estamos indo com a nossa criança. Que tipo de criança estamos
considerando? Uma criança que vai passar de ano? Ou um ser que estamos preparando
para ser en-sinado na vida? Se voltarmos o pensamento para o jeito como se aprende
aqui na roça, en-sinar faz outro sentido. É preciso ser de fato aprendente e desejar muito
este conhecimento. Cada educador na sua sala de aula tem a sua autonomia. Mas tem
também o princípio que caracteriza a escola que pode ser o princípio do poder instituído
ou não. Aí, o educador tem que tomar uma posição. Não pode ter medo de fazer a
educação da liberdade. A palavra é também como um sopro de vida. A gente ouve
muita coisa que não significa que não é um sopro de vida. É preciso escolher a palavra
certa. Palavra com vida!
Ana Tedesco (SMEC) – E a gente que começa a apensar que até agora a
deixamos as crianças dentro de uma sala de aula querendo botar as coisas muito bem
enquadradas encaixotadas sem considerar que elas são capazes de criar e construir sem
160
deixar fluir esta criança livremente porque esta criança espontânea está viva em cada
um desses alunos e em cada um dos adultos que vivem à mercê das leis da verdade.
Corina
73
(SMEC) – Acompanhei o grupo e percebi toda liberdade de criar
orientado por Vanda e fiquei admirada do tamanho da riqueza que estamos construindo.
Então, nós, o grupo quando entrou ali para discutir cada um lançou uma questão em
torno dos elementos formadores do meio ambiente, do ar, do fogo da água e da terra.
Observamos a combinação das cores do ambiente natural e o construído. Vimos
também que há coisas que só a cultura explica, conforme conceito elaborado pelos
nossos capacitadores. Pensamos também nas informações históricas que recebemos
sobre as culturas africanas. Então, cada um, na verdade, contribuí numa tempestade de
idéias. Todos foram ouvidos todos os elementos do grupo, e cada um ia se colocando
como achava o que deveria ser dito daquela imagem que deve reunir o pensamento do
grupo. Então nosso grupo quis representar a surpresa com o surgimento do projeto que
estava aqui e era uma realidade e que ainda não tinha sido despertado totalmente.
Ana Rita (SMEC) – Eu fiquei aqui encantada com alegria da mãe pequena de
Vanda, a alegria de D. Raimunda e o prazer que ela estava a demonstrando no olhar
percebia-se que ela estava satisfeita. Ela estava partilhando a sua alegria, o seu saber.
Aqui não têm só professores. Aqui têm seres humanos com um potencial imenso para
contribuir para somar a nível de suas experiências, processo de vida e cultura.
Edna (EEAS) – Nós trabalhamos em nosso grupo, o meio ambiente o equilíbrio
da natureza e o contexto cultural de nossas crianças. Lembramos de como as diferenças
podem formar a unidade, considerando o saber destas crianças e da comunidade.
Ana Rita (SMEC) – O que chama a atenção neste trabalho é a construção dos
grupos de trabalho. A roda de conversar é talvez a melhor imagem deste trabalho
porque a gente poder estar sentado e dialogando cada uma apresentando os seus pontos
de vista e os seus sentimentos em relação ao que a gente vivenciou; e enquanto nós
produzimos os diversos movimentos neste espaço. A gente ia e voltava cada um
buscando um movimento próprio, mas também atento ao movimento do outro. Estou
falando de sintonia, estou falando da harmonia do equilíbrio, mas também de um
dinamismo muito grande.
Meire (EEAS) – Eu conheço algumas pessoas e aqui, mas esta integração, esta
falta total de vergonha, digamos assim, (risos) me impressionou. Este construir alguma
73
Coordenadoria da Regional Cabula
161
coisa sem pensar se a outra pessoa vai achar engraçado ou não. Realmente eu achei
interessante. Aquela coisa de explorar lugares e espaços sendo interessada e autêntica e
fazer o trabalho sem medo, sem ansiedade, sem nenhum constrangimento é muito
agradável.
Adriana (EEAS) – Nós todos temos notícias do que é a violência nas escolas.
Quando saímos por aí circulando pelo terreiro eu me dei conta que aqui se pode ter
contato com o verde, com água, com o som das arvores, com o som do ar com a água da
fonte... Eu pergunto para minhas companheiras vocês conhecem outras escolas, onde é
possível trabalhar deste jeito? Independente de ser ou não de religião de matriz africana,
aqui se tem um lugar especial para trabalhar, ou melhor dizendo para nos valorizar. Em
primeiro lugar, esta é uma proposta viável. Se nós fomos capazes, imagine as crianças
com a imaginação que elas têm. A gente é quem pensa que elas não conseguem.
Quando saímos e fomos lá até o fim do terreiro foi com se estivéssemos chegando aqui
pela primeira vez. Constatei o que esta ação é capaz de transformar. Para mim, a grande
palavra aqui dentro é transformação. A gente sempre transforma, e aqui tem um outro
ponto-chave que e a motivação.
Meire (EEAS) – Temos que continuar mostrando a criança este espaço. As
crianças vivem aqui diariamente, mas não se dão conta do acervo cultural que existe
aqui para aprendizagem significativa. Tudo está aí exposto o tempo todo. Não
precisamos passar para elas neste nível que estamos falando aqui, mas no nível do que
já entendem, no nível da convivência e valorização daquilo que é nosso. É para poder
dizer um para outro não suje a fonte, que é nossa também. Percebo como é fácil falar da
importância destas plantas. Quantas vezes chegamos aqui com uma dor de cabeça,
pressão alta e eles mesmos dizem: professora àquela folha ali é boa, vamos fazer um
chá? Podemos mostrar para eles a importância de tudo isto porque nós somos
privilegiados com toda esta riqueza. Quando cheguei na fonte quase chorei porque não
pude encostar na fonte. Estavam limpando a fonte. Eu passo todos os dias ali, mas hoje
eu tive muita vontade e curiosidade de ir lá, bem de perto.
Edna (EEAS) – Foi bom, foi maravilhoso o passeio da gente pelo terreiro. Foi
bom para mim e para meu filho que hoje me acompanhou para esta escola. Sempre
andei aqui dentro do terreiro e nunca tinha ido lá embaixo. A notícia que temos é que
num terreiro tem muita coisa feia escondida pelo mato. Eu encontrei muita coisa que eu
nunca tinha visto. A natureza aqui é diferente, estas árvores que há muitos anos estão
aqui e ninguém toca. Tudo é bonito e é importante demais.
162
Ana Tedesco – Quando Petrô trouxe inicialmente a pergunta: o que é que nós
somos capazes de fazer a partir da experiência que vivemos aqui hoje? Então me veio a
constatação do quanto somos criativos e quanto nós podemos fazer a partir do momento
em que a gente permita nossa própria transformação. Penso no mito de Ogun que nos
foi contado por Vanda. E a professora afirma que nossas crianças não conhecem todo
este acervo que possuem. Eu me questiono, será que nossos alunos não conhecem ou
são vocês que não conhecem porque estão aqui fechados, congelados? Por que a coisa
social tenta sempre congelar professores e alunos que são tão espontâneos, que são tão
criativos? E a gente começa a fechar eles dentro de uma sala de aula, querendo botar as
coisas muito mais enquadradas encaixotadas, tornando-as incapazes de criar e construir.
E preciso deixar fluir esta criança livre. Esta criança espontânea que vive cada um dos
alunos e cada um de nós adultos também.
Corina (SMEC) – Primeiro, gostaria de externar a satisfação nossa da Regional
do Cabula, em ter uma escola como a Eugênia Anna. Escola que já venho
acompanhando há certo tempo e conheço a equipe pedagógica e administrativa, e sei da
competência e do avanço que esta escola tem. Eu nunca andei por este terreiro. Sempre
que eu venho aqui e me dirijo para escola e o máximo que cheguei foi ali perto da
árvore sagrada e da fonte. Acompanhei o grupo e ouvi atenta os esclarecimentos de
Vanda. Fiquei admirada de tudo, do tamanho da riqueza de tudo que temos exatamente
porque somos negros. O nosso grupo quando entrou ali para a roda de conversar cada
um lançou uma questão em torno dos elementos formadores do meio ambiente.
Considerando o ar, o fogo a água, da terra vimos a questão da flora da fauna, vimos
também o conceito de cultura, conforme foi elaborado pelos nossos capacitadores.
Ana Tedesco – Passamos também pelas informações históricas que recebemos
sobre as culturas africanas. Então cada um na verdade contribuiu numa tempestade de
idéias. Foram ouvidos todos os elementos do grupo e cada um ia se colocando como
achava que devia. O que deveria ser dito da imagem que cada um construiu e na
imagem que deve reunir o pensamento grupo. Então nosso grupo quis representar o
vento quando nós entramos aqui com movimento e alegria. A questão do surgimento de
um projeto que estava aqui na verdade e bem maior do que já havia despertado. Esta
integração, união e o que vai fazer com que tudo possa florescer e dar bons frutos.
Anativo (Escola de Teatro) – Eu vejo que uma coisa vai entrelaçando com outra,
a agente fica vivendo e percebendo que todo nascimento precisa de cuidado. Aqui,
precisamos de cuidado, mas também de muito conhecimento para a evolução da força
163
para aprender vivenciando e para en-sinar como vivenciar. A sugestão da palavra axé no
final da apresentação foi minha e tem a ver. Tem a ver com a união de mãos se
refazendo. Porque deste processo caótico que toda a sociedade vive todo mundo
querendo matar todo mundo eu acho muito legal esta comunidade ter sua escola, por
estar preocupada com uma educação diferenciada para suas crianças.
Eu trabalho num local em que o primeiro contato com o lugar foi pavoroso
porque todo lugar que eu vou tem muitos cadeados tem portas-trancadas tem menino
trancado. E aqui eu fico pensando e se eles tivessem um espaço assim se eles tivessem a
oportunidade de estar em contato com a natureza com certeza teria um caminho para ser
outra pessoa. Eu fico muito gratificado que dentro do processo de construção do grupo
deu para sintonizar também com a idéia dos outros grupos. Foi uma idéia que foi se
identificando com outra e com o que deveria ser feito no momento.
Meire (EEAS) – Eu mesma fui artista principal (risos) fiquei só de olho e depois
foi que eu fui (risos). Foi dez, tudo foi dez. Todos mereceram um beijo cada um fez
melhor. (Risos) Aplausos por tudo que fizemos!
Petrô – Muito bem, é isto aí. Esta roda de conversa é muito importante. Percebe-
se auto-valorização da pessoa e do grupo que começa a perceber a sua identidade que é
complexa, que se forma, disforma e transforma como ser que sabe quem é .Um ser que
pertence e que participa da sua comunidade. O que vocês estão traduzindo para nós é o
que eu acho que é o maior bem desta escola. Esta escola tem identidade. Identidade que
não é privilégio do brasileiro em muitos momentos. O brasileiro muitas vezes age como
quem não tem identidade. Se você diz isto é coisa de índio. Índio? Deus me livre, eu não
tenho nada a ver com índio. Isto é coisa de negro. Eu não tenho nada a ver com negro,
isto não é comigo. Então você é como os brancos, os escravocratas. Deus me livre, eu
escravocrata? Então de onde vem isso? Quem somos nós? Bem, quer dizer então que só
então um psiquiatra para ajudar a definir a identidade de quem não é negro, de quem
não é branco escravocrata, muito menos índio. (risos) Então penso que aqui está a
afirmação da identidade do afrodescendente. Uma parte significativa da identidade do
povo brasileiro está preservada aqui neste lugar Uma identidade ancestral, uma
identidade de matriz cultural africana. Identidade que não é excludente com nada que
existe na sociedade brasileira. Estamos juntos nesta construção. É negra esta semente do
continente africano que floresce aqui e que poderá quem sabe, um dia contribuir com
quem está cuidando da etnia indígena e branca para completar o espelho da nossa
ancestralidade como brasileiros.
164
Moacir de Ogun (Afonjá) – A senhora Eugênia Anna dos Santos, filha de
Xangô que o nosso pai e patrono desta comunidade, lá da eternidade deverá estar muito
satisfeita muito lisonjeada pelo que talvez ela não pudesse ter feito naquela época.
Deste modo, a senhora Eugênia Anna uma mulher negra de pulso e criadora
desta riqueza toda que aqui temos e hoje estamos reconhecendo. Tudo foi acontecendo
de década em décadas; mas um dia ela pôs no mundo da espiritualidade uma criatura
que se chamou Mãe Senhora. Mãe Senhora fez nascer Maria Stella, hoje, mãe Stella.
Foi ela quem fez o descortino. Ela começou isto para que hoje nós tenhamos
principalmente esta escola. Está entendendo? Com uma equipe formada de gente
trabalhadora, bem inserida, que está mostrando todo este valor aqui dentro quando tudo
parecia escondido. Vanda e Petrô são seus filhos e ajudantes para que este colégio seja
o que é.
Ana Rita – Neste trabalho e nesta pequena manhã no comportamento de todos
na fala de todos na programação pensada, refletida, esmiuçada, no esforço para cada
pedacinho de coisa que se fez e a gente sente que há uma coisa da paixão mesmo. Eu
amo quando com pequenas coisas podemos fazer grande coisa. Eu estava mostrando
para Gabriela: Olha como é fácil fazer coisas tão a sérias. Às vezes se cria muitas
dificuldades. Aqui não se tem grande material. Tudo é muito simples assim estamos
conseguindo uma proposta efetiva para esta comunidade. Não estamos num grande
teatro, mas tivemos um grande espetáculo com atores maravilhosos. Uma grande aula
com materiais simples, com a proposta de cada um. Acho que essa é uma riqueza
imensa que nós estamos desenvolvendo aqui. São tantas as lições, as informações que
vão sendo passadas, e aí a gente vai sentindo a intencionalidade de quem está à frente da
condução do processo de um trabalho singular. Então não foi à toa que Vanda e Petrô
apresentaram o vídeo You e contaram o mito da Transformação de Ogun. Acho que o
mito põe a gente para refletir sobre o que é a vida e vai fazendo com que a gente
pensando uma só maneira de resolver o problema. Mas, vejam o que a vida vai fazendo
a gente, mas a gente pode se transformar a qualquer momento e transformar para
melhor. Transformar corajosamente. A gente nasce corajoso espontâneo, natural
pescador de descobertas e tão querendo aprender... De repente, a vida e a escola vão
fazendo isso com a gente. A gente vai se permitindo também anular uma série de
potencialidades. É preciso mergulhar em si mesmo, como Ogun mergulhou na mata e
voltar não só com roupas novas, mas completamente novo. Quando Petrô e Vanda
provocam esta discussão é para mostrar que nós não podemos deixar apagar este talento
165
e esta possibilidade. A gente tem que fazer este processo acontecer com nossos alunos
como Vanda e Petrô estão conduzindo esta o formação, nos estimulando pela
curiosidade. Descobrimos muitas atitudes e hábitos de origem africana que precisam ser
formados e orientados na escola. Não se pode mais ficar naquela do conteúdo, mas é
essencialmente nesta construção de seres. Agora entendemos que a missão é muito
maior do que formar um cidadão ou cidadã. A gente quer formar pessoas para que a
gente tenha outra sociedade. Eu acho que nenhum de nós está satisfeito com o mundo
que estamos vivendo. Um mundo individualista, mundo fragmentado um mundo
violento e a gente tem que acreditar no que Petrô nos abriu os olhos nesta reunião e
neste processo, nesta consideração pelas diversas formas de saberes que cada um traz
em suas experiências. Eu fico aqui pensando que dificuldade teria que se romper para
que a agente seja agente mesmo
A gente sabe às vezes o que dizer, mas fica pensando será que eu posso? Será
que eu devo dizer? A gente fica se policiando a gente mesmo e deixamos de ser
espontâneos e transformantes. A gente não é natural então a gente perdeu o jeito de ser
como se sente. Então a gente precisa retornar muita coisa. Eu estava dizendo no grupo:
na verdade nós todos aqui teremos que ser aprendizes de um novo processo uma nova
construção um novo rumo a um novo papel de educador e de uma nova forma de fazer
educação. Acho que aqui não necessitamos ir muito longe. Com a competência de todos
e a participação efetiva de Petrô e Vanda, cada um botando a sua vontade, certamente a
gente vai levantar. Temos que acreditar. A esperança tem que ser uma coisa muito
significativa na vida da gente para ser comunidade para ter uma mãe presente neste
trabalho. Tudo isto representa. Representa um segmento significativo que tem que estar
mesmo dentro da escola partilhando desta comunidade. O que estamos fazendo aqui
com a participação dos pais significa que esta escola é importante para o filho e ele
pensa: Esta escola é importante para mim. É minha esta escola eu tenho que participar
eu tenho que colaborar.
Petrô – E aí ogan Adriano como foi fazer teatro? Eu queria chamar atenção
ainda para outras pessoas e para Gabriel que também é ogan e Iraildes que é
coordenadora do AJA da Associação da Juventude Afonjá
74
Moacir que é babalorixá,
ogan Wellington, ekede Nivalda, esposa de Adriano. Outros filhos do terreiro
trabalham nesta escola. Temos a ebome Luisinha, tem a ebome Maria de Iansã, tem
74
Associação criada por Carlos Petrovich no Ilê Axé Opo Afonjá em 1999.
166
ebome Nidinha e ebome Tutuca. Aqui temos também ebome Detinha de Xangô que é
bem conhecida. Para mim o que uma surpresa muito grande esta participação de todos.
Ana Tedesco – Impressionante a participação do grupo que está aqui e que tudo
observa. É possível que eles estejam aí com um relatório esperando a oportunidade de
se colocar. Mas eu queria que ela desse uma palavra que ela dissesse que também o que
percebe.
Veja bem, nós estamos aqui com todos os níveis de representação: a secretária
representada pela Assessoria, pela Coordenadoria. Eu fiquei muito satisfeita com a fala
de Corina porque este segmento não pode ficar isolado. Precisamos ficar todos muito
unidos com o olhar voltado para o que é mais importante na realidade da escola. A
realidade da escola é o pedagógico. E o meu menino, é o que estou fazendo com ele? Na
fala de Corina foi um motivo de satisfação da nossa companheira Ana Rita que trabalha
na Assessoria quando leu e do projeto ela disse: que eu quero ir. Esta escola dá muita
satisfação à comunidade. Na fala do seu Moacir percebe-se como ele sente o papel desta
escola. Ele não fica diariamente na escola mais ele percebe a responsabilidade a vontade
de acertar na luta diária. Isso passa pela educação que se faz no exemplo. Eu saio daqui
satisfeita. Eu não posso ficar o tempo todo. Estou viajando hoje à tarde com a secretária.
Mas já ganhei este dia inteiro apresentando novas coisas que podem ser trabalhadas no
Brasil inteiro. Mas eu tenho certeza e a segurança que tudo está se fazendo aqui é
totalmente positivo. A leitura dramática da Prosa de Nagô pode ser a primeira etapa, o
primeiro momento. Mas vão ter muitos outros que vão acrescentando mais informações
ao nosso conhecimento revendo posturas revendo atitudes. Vamos nos sentir mais
seguros e mais competentes para o trabalho. Tudo isto me dá prazer me dá satisfação
Gabriela, agora você.
Gabriela – Meu Deus! Eu estou tão acostumada a ficar copiando como ela disse
que não sou muito mais de falar. Bem, mais desde que comecei a trabalhar na Secretaria
de Educação, eu costumo dizer a Ana que estou virando pedagoga por osmose. Que o
negócio é tão apaixonante na educação até porque eu gosto muito do ser humano. Gosto
de gente e vejo que esta é uma séria preocupação de fazer a escola melhor e mais
humana. Afinal a preocupação é que estamos conduzindo o destino de seres humanos.
Então isto não é uma coisa quadrada, cartesiana Não existe uma fórmula. Então, para
mim, um trabalho como este é muito importante. Isto que está acontecendo aqui é a cara
da gente é a cara da cidade é o que a gente vivencia no dia-a-dia. Eu torço para que esta
167
experiência possa ser divulgada. Este projeto que eu tenho certeza vai ser muito legal.
Eu estou aprendendo aqui todo dia.
Ana Rita – Quando eu cheguei à Secretaria, o primeiro projeto que me chegou
às mãos foi este. E eu tinha que arrumar tudo correndo para conseguir o material para
capacitação. Quando eu comecei a ler, primeiro fiquei extremamente emocionado que
tem muito a ver com a minha vida, esta vida de todos os brasileiros baianos, essa
relação mística com uma ligação tão grande com a cultura. E fiquei muito apaixonada,
isto foi o que a leitura do projeto me despertou, foi uma emoção muito grande e uma
tomada de consciência de como eu era ignorante a respeito da minha própria história.
Tenho necessidade de retomar a questão do mito também a necessidade de experimentar
para conhecer e só assim é possível transformar. Quando a gente andou pelo terreiro e
foi pedido para construir a frase eu não conseguia pensar numa frase estruturada mais eu
pensava em palavra que tem a ver com minha experiência que não é de experimentar é
de experimentação.
Eu queria chamar de experimentação que tem a ver com o momento mais ativo
de busca. Uma outra palavra que havia também era religar o sentido de estabelecer
vínculos com todas as coisas do mundo. A gente fala de natureza não é só de meio
ambiente, mas de religar também com o outro também. E uma outra palavra ficava na
minha cabeça era reflexão. Não era só experimentação mas à reflexão sobre
experimentação que para mim a palavra refletia, tinha um sentido de, se eu for
experimentar volto sobre mim mesmo. E neste momento eu sou diferente porque o real
significou a minha vida. A minha ida para o outro, então este momento é muito especial
neste sentido por quem está me provocando e me propiciando este momento de
experimentar cada um de vocês. Experimentar o que está de fora e ver coisas diferentes
do que eu não tenho contato habitualmente. E que está sobre mim e vai me religar de
forma diferente ao mundo. Importante é também a forma como foi proposta a gente está
sentado, no circulo que é uma figura geométrica perfeita, sem princípio nem fim. É o
sinal que estamos todos eqüidistantes de um centro, e que a gente pode olhar cada um
neste momento. Se olhamos e se nos ouvimos acho que é fundamental para nos
revermos como seres humanos. É basicamente isto que eu quero dizer e me causa uma
emoção muito grande. Achei fantástica a explicação de Vanda porque a criança não é
aluno, não e um ser sem luz ela é uma criança a ser educada na vida. A escola não está
separada da vida. Neste momento eu não consigo ver a criança com um numero de
matrícula nesta escola. Eu só consigo ver crianças que convivem nesta comunidade.
168
Vejo também que enquanto a gente não se entregar a outros momentos de reflexão
como este, a rede vai perder, e esta criança também perde sem esta forma de estar nesta
capacitação. Então, agradeço por estar aqui agora. Eu também fiquei realmente
emocionada de ver a possibilidade que nós temos de nos colocar em lugar das nossas
crianças. Aqui, em muitos momentos, nós deixamos de ser os mestres os que sabem, os
que têm a luz para nos colocar como a criança aquela que tenta, que cai, que levanta e
tem entusiasmo conforme o filme You no início do trabalho. No grupo de trabalho todos
merecem dez. Há uma criatura entre nós muito especial. Quando uma mãe escolhe uma
escola para seu filho é porque ela tem critérios ela escolhe porque ela tem uma
consciência que somente ela sabe.
Vanda – Aqui na escola, a gente tem pensado isso. Há mães que substituem a
merendeira que estamos em falta. Aqui, temos uma senhora especial é Eliana. Eu
gostaria que todos nós aplaudíssemos, Eliana é uma mãe, é uma pessoa que está sempre
conosco que está aqui procurando compreender a proposta da escola. (Aplausos)
Sabemos que temos ainda muito caminho pela frente. Porque até agora tivemos contato
com a motivação e com um lugar com a beleza. Vejam bem ainda temos ali o conceito
de cultura para estudar e compreender. Este é um caminho enorme onde encontraremos
em contato com a arte, a filosofia, a oralidade, os hábitos e os costumes, do cotidiano e
isto tudo constitui um modo de vida que não é adequado somente para as pessoas
iniciadas ou para pessoas que moram no terreiro. É isto tudo que constitui a nossa
cultura, as nossas vivências. Vamos saber mais um pouco hoje à tarde, amanhã, e depois
a gente vai ficar a vida inteira aprendendo a aprender com tudo que tem a ver com cada
um de nós e, principalmente, com a aprendizagem de nossa criança, e nós vamos com
certeza descobrir o potencial da arte e da ciência que trouxeram os nossos ancestrais.
Nossos ancestrais não foram um bando de negros fugidos, de famintos que foram
jogados no fundo de um navio depois de batizados com um nome cristão. Só estudando
e pesquisando muito a nossa história, a nossa memória é que podemos ter orgulho de
nós mesmos e dos nossos ancestrais.
Retomo as palavras de Rita quando fala do círculo, da roda como símbolo
perfeito que é o símbolo desta comunidade nas relações com os seus sem se afastar da
sociedade. É a forma do xirê da roda do circulo sagrado no Brasil por que na África não
existe esta religião com esta estrutura que foi recriada para cultuar e homenagear os
ancestrais. Esta é uma forma de religião no novo mundo é a forma de religião dos
169
orixás, mas vamos pensar no nosso fazer de acordo com a presença de mãe Stella vamos
tirar nossas dúvidas.
Adriano – A minha pergunta vai para Petrô mesmo. Que história é esta desta
religião como não existiu na África?
Mãe Stella – Na África, no continente africano cada etnia cultuava o seu orixá
separadamente como Petrô falou. Depois do tráfego dos escravos para o novo mundo
teve gente que de Benin de Angola da Nigéria e de outras culturas.
Chegando aqui, eles ficaram isolados. Vamos imaginar quinhentas pessoas do
Benin mais duzentas de Angola mais cinqüenta e oito iorubanos. É claro que seria
impossível juntar-se para fazer seus cultos separados. Não havia condições para isto.
Propositadamente os grupos eram separados e isolados pessoa a pessoa ou peça a peça
como eram chamados pelos senhores. Mas o que acontece? Unidos pelo sofrimento e
pela necessidade de cultuar seus antepassados faziam tudo escondido nas senzalas como
se tudo fosse uma África só. Depois de libertos, agora mais livres, juntaram-se num
espaço comum para o culto a seus antepassados. Só mais tarde cada grupo se apresenta
considerando a sua origem. Daí você vê hoje no Brasil que tem terreiro jêje, tem terreiro
ketu, angola e outros de igual importância. Foi com o tempo que cada grupo se reuniu e
criou o seu espaço sagrado o então alguns antropólogos dizem que a palavra candomblé
significa barulho muita coisa junto. Outras denominações foram criadas: batuque no Rio
Grande do Sul, Xangô em Pernambuco, Tambor no Maranhão. Jarê aqui no Município
de Lençóis, aqui na Bahia.Assim por diante.
Adriana – Sinto que começo entender melhor. Falar de religião, cultura e
história deste jeito é tudo muito novo.
Petrô – Aliás, esta primeira etapa correspondia muito mais a um momento de
sensibilização. No futuro próximo, a professora Vanda deve mostrar inclusive vários
autores que tratam do assunto explicando cientificamente através, por exemplo, de
Pierre Verger na sua obra Fluxo e Refluxo e de outros autores, para que tudo fique em
bem compreendido que o um orixá que era cultuado no continente africano, aqui ou
acolá tudo o que mudou para se adaptar ao novo mundo.
Mãe Stella – Nós estamos falando da realidade brasileira sem esquecer que tudo
começou bem antes e bem longe....Bem, é muito assunto...Com o tempo tudo se
aprende.
Vanda – Só para fechar esta questão provisoriamente, gostaria de lembrar que
no dia em que nós conversamos sobre este assunto, refletimos e dramatizamos como
170
nossos ancestrais foram separados em grupos e qualificados como peças. Refletimos
como homens e mulheres negras foram transformados numa massa caótica de negação
da condição humana. Procuramos compreender também como estes sujeitos foram
fragmentados e destituídos daquilo que possuíam de essencial: sua família, seus
antepassados, suas crenças e um jeito próprio de ser e estar no mundo. Imagine que um
fosse oriundo de Irê em outro grupo cultural de Osogbo, outro de Ilê Ifé onde estão
contidas outras etnias. Então foi necessário encontrar um outro jeito para continuar os
rituais, para continuar as celebrações os cultos aos ancestrais. Tudo foi pensado pelo
colonizador para que a cultura matricial fosse esquecida. Nós conversamos sobre
algumas questões quando assistimos do filme Atlântico Negro. O Atlântico Negro conta
que antes do negro sair da África, antes de entrar no navio o africano escravizado dava
três voltas em torno da arvore que era chamada árvores do esquecimento. Era uma
espécie de ritual que acontecia para que o africano esquecesse toda sua vida espiritual, o
seu passado histórico, a sua memória. Em seguida, antes de entrar no navio era batizado
e tomava o nome cristão, o nome do santo do dia, do santo católico, naturalmente. Ao
lado do padre, havia quem anotasse a notícia do batizado que correspondia ao imposto
que a igreja receberia pelos serviços, até por que a igreja era proprietária dos navios
negreiros. Este é um dos fatos que acentuam a conotação política econômica da igreja e
sua influência na colonização. Nossos ancestrais encontraram um jeito de preservar a
memória e a cultura trazida, inscrita no próprio corpo como único suporte do contexto
deixado do outro lado do oceano. E como Deus escreve certo em linhas tortas, graças
àquela tirania que nós podemos ter uma África matricial inteirinha dentro do Opo
Afonjá. Uma África diaspórica.
(Por alguns instantes se fez um silencio impressionante. Uma professora
emocionada chora)
Petrô – Agora vamos bem devagarinho, é muita coisa, é muita reflexão para esta
viagem. Tenham calma.
Mãe Stella – É verdade. Eu também fico impressionada com tudo que está
acontecendo. Um trabalho deste seria para pelo menos seis meses e estamos fazendo em
dois dias.
Petrô – Eu estou há quinze anos no Afonjá batendo a cabeça aos pés da minha
mãe Stela e estou aqui agora com vocês aprendendo devagarinho. Outras pessoas têm
171
até muito mais tempo que eu e estamos aprendendo. Outro grupo, quem tem outra
questão?
Ana Célia – Ago
75
Mãe Stella. Ago a todos. Eu tenho uma curiosidade e me
parece que este é o momento que eu precisava para entender outras coisas que não
parece, mas eu penso que tudo está bem relacionado. Então quando uma pessoa tem
dois orixás um masculino e outro feminino como fica a personalidade desta pessoa?
Também ouço falar de pessoas que têm três orixás no mesmo nível. Por exemplo, há
pessoas que dizem que eu tenho Ogun como dono de minha cabeça, tem Oxum, tenho
Iansã no lado esquerdo como fica esta cabeça.
Mãe Stella – É preciso compreender o que a gente é. Quem é o orixá que é o
dono da nossa cabeça. Eu sou de Oxossi e tenho Iansã muito forte comigo. Agora eu sei
quando é que eu sou de Oxossi ou quando eu sou de Iansã. Oxossi é o dono da minha
cabeça agora sei que Iansã me acompanha. Deve ser quando eu dou pra gritar e para
brigar com todo mundo. (risos). Quando eu fico quieta deve ser porque Oxossi está
comigo Agora a nossa religião é uma religião onde cada casa pode colocar suas normas.
Como diz Detinha, cada casa tem seu tempero. Então tem pessoas que têm suas casa e
cada pessoa pode ter até dois ou mais seus orixás. Recebem Iemanjá à tarde, Ogun à
noite, no outro dia já recebeu outro. Como fica esta cabeça? Você que é iniciada ponha
na sua cabeça que é preciso se concentrar na energia do dono do seu eledá, da dona da
sua cabeça. Ele passará para você toda energia do jeito que ele é. A personalidade a
gente adquire do dono da nossa cabeça do nosso pai ou da nossa mãe espiritual.
Petrô – Adiante, outro grupo, outra questão.
Aline – É sobre a comida que se faz nos terreiros, como que se estabelece a
quantidade e os ingredientes para as cerimônias rituais ou mesmo para os orixás e para
as pessoas que são apenas visitas? Na verdade a pergunta vai para Mãe Stella.
Mãe Stella – O que se pode perceber sobre a comida você faz, é que seja para o
orixá para a nossa família ou para um visitante tem que levar um ingrediente muito
especial. Tem que levar um sentimento uma energia que é gente põe com muito amor e
boa vontade. Quando você faz para sua família você faz com todo amor porque esta é a
família que você tem. Isto vale também para as visitas. Para o orixá a energia é dupla,
você tem que botar além do seu amor o melhor das suas energias porque elas vão
retornar para a vida de cada um e da comunidade. Em toda casa há alguém que é
75
Pedido de licença.
172
responsável pela cozinha. Então esta pessoa não pode chegar de viagem ou de sua casa e
entrar na cozinha e começar a fazer comida do orixá. Para tudo aqui há uma preparação.
Iyabasse é a pessoa responsável pela comida. É mesmo desaconselhável que alguém vai
fazer uma oferenda de acarajé para e chegue na primeira esquina e compre o acarajé no
tabuleiro da baiana. Não adianta. Você não sabe com que intenção ela fez-se aquele
alimento. Como ela estava de corpo. Nós temos cuidados especiais nestas ocasiões
quando estamos nos dedicando ao orixá. Temos que estar puros e limpos pelos nossos
banhos de folhas. Todos nós temos restrições a determinados alimentos. Temos algumas
interdições que são pessoais ou coletivas. Quando fazemos comidas para o orixá não
fazemos só o pouquinho que vamos oferecer. Ou fazer de um jeito para o orixá e outro
diferente para o povo. Nós comemos com o orixá, nós comungamos com o orixá. Então
a iyabasse que é a pessoa responsável pela cozinha deve estar preparada para fazer a
comida que é também um momento ritual. Aquela comida é consagrada ao orixá no
momento em que ela põe na vasilha do orixá oferece com as suas palavras, com a sua
energia com o joelho no chão. Se a festa é de Oxum ninguém sabe o que ela comeu
mais todos comerão da mesma comida.
Marcos Machado – (Ator convidado). A minha pergunta é sobre a língua falada
aqui no terreiro, é um dialeto? Como fazemos para conhecer as palavras?
Mãe Stella – A primeira coisa que você precisa saber é que o iorubá que
falamos nos terreiros é o iorubá arcaico. É uma fala de mais 300 anos trazida pelos os
nossos ancestrais. Muitas das palavras que nós falamos aqui, se você está em Lagos na
Nigéria e falar o que falamos aqui eles não vão compreender nada, porque na própria
África no continente africano em cada cidade fala-se muitas línguas. Em Lagos mesmo,
na Nigéria, são quase duzentas línguas que são faladas, aqui, quem quer falar e entender
melhor pode tomar um curso para ocasiões sociais falar o seu iorubá moderno que é
outra coisa. Mas eu acho que uma pessoa antiga vai ficando com este iorubá mesmo do
jeito como falamos aqui porque é uma fala ritual, é uma fala sagrada nos serve muito
bem prá gente falar com o orixá. É a nossa fala com o orixá. Quando eu digo Xangô ba
mi ô sendo esta fala aprendida com meus mais velhos e que eles já aprenderam com os
seus mais velhos passa a ser uma linguagem ritual, uma linguagem sagrada, ou seja,
Xangô segure minha cabeça ou valha-me Xangô. Agora, para quem quiser aprender o
ioruba moderno, é só ir ao CEAO
76
.
76
Centro de Estudos Afro Orientais.
173
Adriana – Sempre nos referimos tanto a orixá feminino como a orixá masculino
precedido do artigo masculino o. Dizemos o orixá Oxum e eu pergunto por que não se
fala a orixá Oxum. Aí eu pergunto se é uma palavra comum de dois. Uma só palavra
para os dois gêneros, é preciso saber por que com certeza as crianças vão me perguntar
na sala de aula.
Mãe Stella – Veja como você costuma falar dos santos da igreja. Quando você
diz santo de casa não faz milagres. O santo pode ser do gênero masculino ou feminino.
Nós fazemos uma diferente na hora de falarmos dos orixás quando dizemos orixá ocorin
e orixá oberin. orixá ocorin são os orixás masculinos e os orixás oberin são os orixás
femininos.
Meire – Como se explica várias pessoas receberem o mesmo orixá ao mesmo
tempo. Por exemplo, várias pessoas recebem o orixá Oxum. Desculpe, não sei se é
pertinente esta pergunta.
Petrô – Tudo é pertinente. A pergunta está feita mãe.
Mãe Stella – Está tudo muito bem, e depois eu vou ganhar quanto e quando?
(Risos). Veja bem orixá é energia, esta energia não se dirige para o único canal. Nós
somos depositários desta energia. Então quando toca para Oxum está invocando Oxum.
Oxum é uma energia. Esta energia pode ser uma só pessoa ou pode se multiplicar por
mil pessoas. Portanto na festa de Oxum, todas chegam por que esta energia não é
canalizada, é uma energia fluida.
Petrô – É bom que a gente possa compreender que existe uma unidade na
diversidade e também uma diversidade na unidade. Oxum está em todos os lugares em
todas as pessoas. Por que todas as pessoas têm Oxum.
Mãe Stella – Todos os seres têm sua espécie de energia. Vocês viram na leitura
dramática que todo orixá tem suas características. Vamos falar um pouco de Iansã. Tem
a que só veste vermelho. Tem Iansã que só se veste de branco. São como filhos de uma
mesma família, de um mesmo pai de uma mesma mãe, e tem filhos com características
diferentes.
Edna – Cada pessoa tem o seu orixá, o que serve de base para identificar?
Mãe Stella – Esta é uma coisa tão polêmica porque a pessoa que olha para você
e diz, você é de Oxum. Você vai comprar um acarajé a baiana olha para você e fala você
precisa agradar o seu Xangô. Só que eu Stella não tenho esta capacidade porque só
enxergo as coisas por outro ângulo, e já que Deus me deu o consentimento, a graça de
me comunicar com os orixás, eu só vejo através do jogo de búzios. Uma coisa é certa,
174
durante o dia temos as mais estranhas reações. É como se fôssemos vários dentro de nós
mesmos.
Elizete (Secretária - EEAS) – É pertinente dizer que os orixás são deuses da
natureza ou são orixás?
Mãe Stella – Os orixás são seres superiores porque na realidade no panteão
orixás existe um só Deus que é Oxum. Os orixás são seqüências de Olorum. Eu
considero os orixás como ajudantes de Olorum. Ele é o Deus supremo. Ogun, Oxossi,
Iemanjá se tornaram orixás por seus feitos e por seus méritos na terra.
Ana Célia – Considerando que Oxum e Iemanjá são orixás da água estes orixás
têm características diferentes de Ogun, por exemplo. Porque uma recorre a beleza e a
outra não? Esta é a minha dúvida. Uma outra dúvida é sobre a leitura, de que forma
Iemanjá influencia no comportamento social das pessoas?
Mãe Stella – Isto aí é o que se poderia chamar de vocação porque você tem
filhos cada filho seu tem uma característica que você acha que vai seguir uma profissão
definida. Você acha que João será um médico. Maria vai ser enfermeira o por causa das
características que eles emanam e você sente. Isto também se passou com os orixás,
porquanto Olorum enviou todos os orixás para terra ele já colocou cada o orixá com sua
característica. Ele chamou Exu e disse: você vai dar todo movimento à terra, vai abrindo
os caminhos do mundo. Mesmo que seja, às vezes, seja um inconseqüente ele quer abrir
o caminho. Ele chamou Ogun e mandou para organizar os caminhos. Podemos
considerar o facão com um símbolo de Ogun. Ele chamou afinal Oxum para ser a dona
da criação da beleza e da felicidade e da liderança. Então todos os orixás juntos formam
um ser humano. Em cada um ser humano existe uma partícula de cada orixá em seu
corpo. Cada um ser humano tem no seu corpo o ar que respira e da vida, tem água das
lágrimas, temos pele os ossos cada um desses elementos é uma partícula de fez orixás
assim todos nós somos parte do orixá. Mas só através dos búzios é que sabemos quem é
o dono do nosso eledá, da nossa cabeça, do nosso ori. Mas com Iemanjá é diferente,
mesmo que ela não seja a dona do eledá, ela acompanha o indivíduo por toda a vida.
Oxum cuida das crianças desde a gestação até quando ela aprende a falar. Iemanjá não é
assim, ela acompanha o adulto até o fim. Ela é a mãe por excelência. É como se Ela
ajudasse a firmar a vocação de cada um.
175
5.1 MÃE ANINHA QUERO MEUS FILHOS DE ANEL NO DEDO E
AOS PÉS DE XANGÔ
Primeira formação para realização do Projeto Ire Ayó na Escola Eugênia Anna
dos Santos na Comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá.
Avaliação do segundo dia na manhã de 18 de junho de 1999.
Jaqueline (SMEC) – Eu nunca tinha ouvido nada deste gênero. E desde que nós
vimos pra cá, estávamos conversando com Aninha que isto é uma coisa muito boa e
vocês são muito receptivos assim, muito abertos. Vocês foram mostrando a gente um
jeito novo de ensinar novas coisas. Quando a gente entrou aqui na sala, a primeira coisa
que nós vimos foi a mensagem em iorubá - kaabó ou bem-vindos.A professora nos
informou que aqui é como se cada sala pertencesse a uma entidade pela representação
de cada mãe de santo que já partiu mas inclui Mãe Stella como homenageada da sala
principal. Também nos chamou a atenção as palavras de mãe Aninha: Quero meus
filhos de anel no dedo e aos pés de Xangô. E o fato de a gente está trabalhando aqui a
gente pensa que todas as pessoas têm que estar mesmo com anel no dedo e aos pés de
Xangô.
A gente tem mesmo que estudar a nossa cultura. Cheguei aqui encontrei todo um
contexto muito novo. Eu não tinha nenhum conhecimento, nenhuma experiência deste
contexto cultural tão rico para aprendizagem.
Rose (SMEC) – Eu sou Rose. Eu achei muito interessante a forma como vocês
abordaram este tema aqui. Ocorreu aqui tudo que precisa ocorrer em todo processo de
educação. Ocorreu a transdisciplinaridade que a gente fala e não vê a prática. E aqui a
gente viu que esta prática é possível. Outra coisa é o espaço aberto para a discussão de
um assunto tão novo. Tudo foi colocado sem crítica, mas buscando a compreensão. Nós
estamos tão ligados, estamos tão formatados, que a gente não consegue ver a árvore
como ela nem o sol como ele é. É como se a gente tivesse limitado a nossa criatividade.
Realmente, aqui eu vi através da fala de cada um que as professoras desta escola, elas
tendem a deixar um formato de um lado para colocar também a sua criança. Eu acho
tudo muito interessante. É uma transgressão.
Petrô – O mundo todo é transgressão. O mundo precisa de transgressores. O
interessante é que quem já está na universidade não pode voltar pra casa; o sujeito
176
transgride e se responsabiliza pela sua condição de ser negro e estar na universidade.
Isto é uma transgressão. É algo que o sistema não prevê.
Rose (SMEC) – Temos uma colega que é a Vera Lazaroto. Interessante é que a
comunidade que ela está é uma invasão. É uma comunidade altamente pobre. E tudo
que acontecia na escola os pais estavam presentes participando das atividades. Vai
pintar a escola os pais estão lá. Eles participaram da mudança do currículo. São pessoas
muito pobres. No Calabar, também as pessoas são muito pobres Vivem numa casa onde
se vê tudo que acontece na outra e a participação dos pais é efetiva. Antes era assim,
agora eu não sei mais. Pobre é a ausência dos pais na escola. Me parece que a ausência
dos pais na escola não pode ser relacionada à pobreza nem à carência. Este é um
problema da escola mesmo. É bom que os pais discutam o mesmo com a escola. Agora
estou voltando para esta escola de educação mais que formal. Eu gosto de contar com
estas comunidades onde já trabalhei por quase dez anos. Nestas escolas eu posso ajudar
a aprender.
Meire (EEAS) – Na verdade aqui também o pai e a mãe participam da escola,
mas existe uma participação em que muitas vezes a família se sente impotente sem
poder dar assistência a seu filho. Ela não sabe os conteúdos transmitidos pelo professor.
Ele não tem embasamento nenhum. Ele se sente impotente diante de tantas novidades
pedagógicas. Nós complicamos muito. Muitas vezes ele não se envolve nesta parte
pedagógica porque ele não entende. A mãe é assim, o pai, o tio tudo a mesma coisa. Isso
dificulta. Isso dificulta para a professora, a criança que só aprende na sala de aula. Ele
não pode se expandir muito mais do que o que aprende no dia-a-dia da escola
Petrô – Podemos perceber que existe no processo de educar um discurso de
sucesso e um discurso de fracasso que se confrontam . Pode-se perceber estratégias que
levam ao fracasso e estratégias que levam ao sucesso. Eu fazendo ou não fazendo eu
estou deixando que as coisas aconteçam. Tudo está sempre acontecendo. Que eu
participe ou não tudo está acontecendo. Eu pego uma criança de uma família que
considero um bando de idiotas e a educo, considerando a imagem e semelhança do que
eu penso. Ela vai atender exatamente a minha expectativa e vai neste caminho que tento
fazer ou não fazer e o resultado será sempre o fracasso. Fracasso porque já se convenceu
de que o pai e a mãe são incompetentes para educar filhos, e que só quem sabe educar
são os professores de escolas públicas. Então, nós vamos encontrar famílias que se
julgam incompetentes e analfabetas. Destas que não sabem que foram convencidas de
que não sabem educar seus filhos. Estamos convivendo com uma forma de educar que a
177
primeira coisa que fazem é uma espécie de lavagem cerebral. A fala de Ana Célia nos
põe diante da denúncia da ausência do negro no livro didático ou a sua presença com
caráter distorcido. A mãe não sabe ensinar mais nada. E aí meu Deus acabou a
educação. Educação neste sentido que queremos fazer. Educação considerando também
o saber da família, o saber da comunidade, o saber ancestrálico que essa criança carrega.
O professor passa um tempo com a criança não é a vida toda. É chegado o
momento de dialogar com a família na perspectiva de criar formas efetivas de
comunicação para este triângulo afetivo: escola- criança –família? Quem sabe
incentivar a família perguntar a criança apenas como foi seu dia? O que aconteceu de
bom na escola hoje? Quando isto acontece, a mãe está fazendo a coisa mais importante
na educação de seus filhos. Ela está fazendo a mediação entre a escola, o saber da
família e a construção do saber da sua criança. Isto possibilita a criança pensar em tudo
que acontece. Pensar em síntese. Pensar em crescimento. E nós agora vamos pensar em
alguma coisa também muito importante. Onde está este onjé
77
. Soube que hoje é acaçá
de leite de Nidinha. (risos) todos saem para a sala ao lado.
Após um breve intervalo para a merenda, os grupos que dialogaram sobre a
proposta do currículo para o Projeto Ire Ayó voltam a reunir-se novamente com a
presença de Mãe Stella. Apresentado uma frase-síntese expõe o pensamento do
grupo sobre a sua aplicabilidade.
Petrô – Neste momento que começamos a concluir nosso segundo dia de
reflexão, ainda estamos com o gosto da sua fala de ontem quando nos disse que o dia 17
de junho de 1999 marca a realização de um grande encontro, quando a senhora diz que
o que está no aiyê e no orum está na educação sistêmica. Este é um ponto de partida.
Hoje, esta Escola Eugênia Anna dos Santos é a escola que a senhora mantém e que estes
professores lhe ajudam. Hoje, esta sendo concluída a plantação de uma semente que é o
ensino de crianças tendo como base a cultura deste lugar, a tradição de matriz cultural
africana. Este pessoal que esteve conosco, juntos, todos de coração abertos fizemos o
que era possível. Eu e Vanda, Vanda e eu nos sentimos satisfeitos de ter caminhado até
aqui para esta avaliação do grupo depois destas 20 horas intensas de trabalho para que a
senhora perceba também o que aconteceu e o que não aconteceu e possa condenar a
77
Comida na língua iorubá.
178
gente a passar sete dias e sete noites aqui comendo o seu pirão. (risos)
Mãe Stella – Só se for comendo acaçá (risos).
Petrô – Bem, quem vai começar? Vamos falando, não é necessário nenhuma
ordem.
Adriana
(EEAS) – O projeto é isto. Eu não acredito que alguma coisa possa
acontecer sem que a gente conheça para trabalhar com o outro. Pela primeira vez eu
pude ter a liberdade de questionar um projeto para aprender a trabalhar com ele. Ontem,
Mãe Stella esteve conosco para tirar as nossas dúvidas. Há tanto tempo que estou aqui e
só agora tenho vontade de realmente querer saber um pouco mais. Pela primeira vez eu
senti estar mais próxima da cultura afro-brasileira. Aprender também considerando o
lado das ciências e querendo buscar mais. Querendo saber mais. Quando está se
tratando de um projeto como o Ire Ayó, a gente questionava como é que a gente vai
colocar em prática uma coisa que a gente não tem conhecimento.A gente vai
simplesmente deturpar. Vai passar para a criança uma coisa que nem a gente conhece.
Chega Vanda e Petrô com esta proposta clareou com estes dois dias de capacitação na
verdade muita coisa mudou. Precisamos de muito e muito mais. Mas foi um bom início.
Fizeram as nossas cabeças. (Risos) Dessa forma aqui hoje, tem que se fazer uma análise
uma avaliação do que ficou. E eu acho que ficou da árvore a semente. Ela foi lançada e
a partir de agora, Creio que todas nós estamos imbuídas, estamos querendo e
agradecendo de coração pela oportunidade de ontem. Que a gente não se deixe levar
pelas crenças pessoais. Que a gente possa falar de ciências e tradição com a mesma
responsabilidade. Tem que afastar as questões pessoais. Pode até ser difícil para quem
tem outra crença, para quem tem outro credo vir trabalhar aqui. Mas tudo aqui é bonito,
é puro, é cientifico. Nossa missão não pode envolver crenças pessoais. A gente mesmo
quer trabalhar em cima deste projeto, em cima da cultura, construir este conhecimento, e
o principal se não souber tem que buscar. Na dúvida não passar. Que a gente possa ter
mais encontros destes com outros especialistas. A meu ver, a semente foi lançada. É um
projeto pioneiro no Brasil, espero que abra portas e caminhos para outros projetos
verdadeiros que possam ser levados adiante neste país. Esta é uma escola que tem tudo
para dar certo. Nós como professoras temos mais este amparo, este auxilio que melhora
o nosso cabedal de conhecimentos para levar às nossas crianças. Estou bastante contente
e satisfeita com o que aprendi aqui e quero contribuir com a dos orixás para a aceleração
destas crianças.
179
Luizinha
78
– Eu gostei muito. Foi o tempo válido com todos juntos, unidos,
fiquei muito satisfeita. Que Xangô proteja este trabalho que vá cada vez mais
aumentando.
Francinete (SMEC) – Estou aqui pela SMEC. Acho que é um desafio. O maior
desafio para o técnico da Secretaria de Educação foi a nova aprendizagem que os
técnicos tiveram que aprender in loco. Onde há uma cultura própria e que pode ser
disseminada. Como colaboradora hoje eu vejo a concretização de uma idéia que surgiu
da cultura local e que é tão rica.
Auxiliadora (EEAS) – Eu acho o seguinte ele é a resposta para aqueles
questionamentos que nós professores sempre fizemos desde o primeiro dia que
entramos nesta escola onde já viu vários projetos fantasmas não é? Que na verdade eram
maravilhosos, lindos e mirabolantes e que não atendiam às nossas necessidades, muito
menos de nossas crianças. O que nós estamos vendo é um projeto belíssimo. Uma idéia
fantástica, natural e viável, é bem pé no chão mesmo. Um projeto que nós podemos
realizar sem fórmulas, sem maiores tecnologias, sem muita pretensão... Tudo que está
previsto pode ser realizado porque está no nosso cotidiano. É bonito porque estamos
aprendendo a nossa própria cultura. Cultura que é da nossa comunidade e que no fundo
as crianças podem morar onde morar, mas elas estão aqui que é a casa delas também..
Eu só tenho a agradecer a oportunidade de como profissional estar presente num
momento como este.
Eliete (EEAS) – Eu também tenho que agradecer a Deus e a todos os presentes
por esta oportunidade, porque até na terça - feira eu perguntava. Meu Deus que projeto é
este? Perguntava a um, perguntava a outro. Eu me sentia por fora. Eu tinha uma visão
que hoje eu não tenho mais, entendeu? Eu tinha uma visão que a partir de ontem eu
adquirir outra visão e prá mim foi maravilhoso. Isso aqui é uma familia. Eu sempre
percebi este lugar e as pessoas como uma familia. Quando estou aqui dentro eu me sinto
num paraíso.
Edna (EEAS) – Aproveitando o que Eliete colocou, a princípio quando fui para
o projeto eu perguntei pra mim mesma. O que é que vou fazer? Como é que vou
fazer?O que é que vou realizar? Nos anos anteriores, existiram outros projetos, mas
sempre o principal a definição do que era o projeto, nós não sabíamos. De repente,
quando me deparo com a prática da proposta de Petrovich e Vanda. A prática no sentido
de nos esclarecer de levar a gente assim a uma reflexão que tira as nossas dúvidas e nos
78
Funcionário da Escola Eugenia Anna dos Santos.
180
prepara para trabalhar na sala de aula. Como ser um novo professor sintonizado com a
Secretaria de educação, com os parâmetros e o resgate da cultura, o autoconhecimento e
as nossas raízes culturais? Precisava saber o estou fazendo.
Marcos Machado
79
– Bem, eu não fazia parte do projeto, agora eu me sinto
dentro do projeto, digamos assim porque o que eu achei interessante e exatamente a
idéia de resgatar através da cultura do terreiro, material rico que pode servir de apoio
significativo para o professor. Agora, como participante deste projeto, como ator, eu
posso dizer que foi um momento de aprendizado mesmo. Recebi grandes ensinamentos.
Sou muito grato a todos.
Eliene (EEAS) – Eu penso assim, que cada momento a gente está aprendendo. E
estes dois dias foram de aprendizagem total. Para transmitir alguma coisa a alguém a
gente tem de conhecer, e eu não sei tudo com certeza e com certeza ninguém aqui sabe
tudo, mas o pouquinho que eu aprendi aqui percebi também que para construir cada
coisa você precisa ir aos poucos. Bebe um gole aqui, um gole acolá prá poder construir.
No princípio, do Ire Ayó eu pensei: Meu Deus, eu não vou acertar a fazer nada. E agora,
não. Eu sinto que posso fazer alguma coisa porque a palavra-chave é estudo
Dalva (EEAS) – Eu sou Dalva, eu estou muito feliz por estar aqui e eu tinha
uma visão muito diferente de uma comunidade de terreiro, das pessoas, dos orixás, de
tudo e a partir de ontem eu já tenho uma visão diferente para passar para os meus
educandos. Eu estou muito feliz por fazer parte desta família.
Aída (EEAS) – Meu nome é Aída. Quando se começou a falar do projeto eu
comecei a ficar preocupada... Meu Deus do céu, lá vem mais trabalho (risos) que projeto
é este? Mas a partir da leitura da Prosa de Nagô fui me identificando com vários
personagens. E eu pensava: eu sou aquela personagem ali. Eu faço parte desta história.
Aí no caso de ontem e hoje, eu era uma aluna com os ouvidos atentos, os olhos atentos e
aprendendo muita coisa com bastante emoção. Foi quando a atriz falou que.... ( a
professora chorou e parou de falar.)
Petrô – Fique um pouco mais perto dela.
Técnica da SMEC
80
– Deixa chorar. Isto é emoção mesmo. Não é a toa que eu
também estou aqui. Segunda feira eu vou agradecer a Clara porque ela teve que viajar ás
seis e meia, Zelice disse pra mim. Clara vai viajar e você não vai para as escolas da orla.
Você vai para a Eugenia Anna. Eu não poderia estar num lugar melhor.
79
Ator convidado para leitura dramática do Prosa de Nagô
80
Não foi possível identificar o nome.
181
Nidinha (EEAS) – Eu, como merendeira, mesmo andando de lá pra cá eu estou
assistindo tudo.Que Deus dê muita força, muito axé. E estou aqui também para ajudar
para dar força. Estou contente, muito contente, muito, muito contente.
Vanda – Duas palavras ficaram muito presentes. Uma foi emoção e outra foi
esperança. Esperança de que neste momento estejamos plantando a semente de
transformação porque como já foi falado, a educação que está prevista em todos os
níveis da educação não é exatamente o que se pretende como possibilidade de
transformação. Mas quando nos apropriamos do que é a nossa história, da nossa cultura,
isto é muito importante. Então, esta semente, acredito que bem regada, ela pode chegar
a ser aquela árvore frondosa que esperamos. Que a gente possa vivenciar daqui prá
frente uma sociedade também mais justa e melhor também no que diz respeito à nossa
herança cultural.
Aldir
81
– Meu nome é Aldir. Todo dia 17, prá mim tem sido muito significativo.
Dia 17 foi meu contato com o orixá há 3 anos atrás. E ontem mais uma vez, dia 17, pude
participar de uma coisa que gente ouve falar e pode constatar como o Ilê Axé Opo
Afonjá realmente é.A cada vinda minha aqui nesta casa, eu fico de queixo caído, de
boca aberta. Quando vou tomar a bênção de Mãe Stella fico mudo né, por que a coisa é
muito mais superior do que a gente ouve dizer. O fato de estar aqui resgatando uma
coisa tão pisada e tão colocada de forma errada na sociedade eu acho que tudo isto é
ponto fundamental para o crescimento coletivo e importante para o nosso
autoconhecimento. Então o que se discutiu aqui é justamente a forma da gente trazer
isto, acreditar nisto e principalmente divulgar isto.Isto é nossa gente, nosso povo, nossa
cultura, a cara da gente. Temos que cortar os padrões ou coisas mal explicadas que a
gente acaba assumindo. Temos que assumir o que é nosso, a nossa verdade.E o que
pude perceber é que esta verdade está sendo colocada com bases históricas muito
seguras. E a tendência é que a coisa estoure para fora. Eu tenho que agradecer por esta
oportunidade que eu sei que é única, me colocando à disposição para estas crianças que
estão crescendo por aí.
Meire (SMEC) – Um dia eu por acaso encontrei a diretora desta escola que me
convidou porque aqui havia carência de uma professora. Depois que estava aqui a
algum tempo eu soube que algumas colegas disseram: é lá mesmo que eu quero ela.
Quero dizer que cheguei por acaso. E ontem no relato que eu disse que já fizemos várias
81
Aldir é Ogan da Branca visitando o Opo Afonjá.
182
viagens aqui dentro. Mas este passeio de ontem foi como se fosse a primeira vez. Foi
uma ação diferente. Ainda hoje eu já conversei que de ontem prá cá eu comecei e me
relacionar com cada casa, com cada orixá, com cada pedacinho desde chão, com cada
criança de modo diferente. Quando Vanda começava a cantar eu ia lembrando de cada
uma das crianças. Foi uma emoção tão diferente que eu chorei por várias vezes. Hoje
mesmo foi um rio de lágrimas. Eu não sou iniciada, mas senti uma forte energia.
Durante estes dias uma energia singular circulou por este ambiente. Quando Vanda
contou a história de Ossain e Iansã socializando o poder das folhas, eu senti como que
estivesse aqui nesta sala. Foi tudo muito perto da realidade. Eu senti que as folhas
mexeram lá fora. No momento que os atores narraram o texto, As águas de Oxalá eu
senti realmente quando ele disse a fala de Dona Luizinha. Dava pra sentir uma energia
de paz. Que esta energia que senti estes dias de coração aberto possa passar para os
meus meninos como eu os chamo. E eu quero que sempre que a gente pisar lá fora e
chegar nesta porta que esta paz seja irradiada para todos que cruzarem em nosso
caminho. Não só aqui mas também na Secretaria, no dia-a-dia em cada tchau que a
gente dá.É como já foi dito aqui por Vanda, Petrô e agora por Mãe Stella ninguém
precisa mudar de religião para entender e ensinar as crianças a partir de um currículo
com sentido do auto-conhecimento, o cuidado, solidariedade e convivência. Que
também tem tudo a ver com o sentido de ser, pertencer e participar da comunidade.
Temos que começar já. Já perdemos muito tempo. Mas que esta porta esteja aberta a
cada momento. Esta porta que abriu em mim, eu acho que é a mesma que abriu em
todos nós.
Marcos Machado – Eu estive refletindo a respeito de cada um e isso me faz
pensar em outras palavras que eu acho que é bem oportuno. Desculpe, eu não posso
ficar calado. Na verdade o que eu quero dizer para todos os senhores aqui presentes
mais em especial quero dirigir estas palavras para Mãe Stella, a Vanda e ao mestre
amado Petrô que é um pensamento que diz que o homem ele se expande de duas
formas, para dentro e para fora. E quando ele entra neste processo de expansão para
dentro é como se ele se expandisse como uma árvore, onde as raízes se aprofundam
tanto na terra, tanto que a profundeza das raízes chega a ser maiores que a altura dos
galhos, então eu acho bastante oportuno por conta deste momento, deste projeto que
está nascendo aqui agora, esta arvore frondosa que na verdade é um trabalho para dentro
mesmo. É isto que eu queria falar.
183
Petrô – Um dia eu fui suspenso ogan da casa de Ogun. Na ocasião eu procurei
saber o que é ser ogan. Logo fiquei sabendo que ogan é uma espécie de pai, ajudante e
protetor da comunidade. Eu fiz disso uma proposta do meu caminho. Hoje, eu sinto na
realidade sou ogan do Ilê Axé Opo Afonjá, porque eu sou pai de criança que ainda não
conheço pela nossa tradição eu sou pai de muitas coisas que ainda vão acontecer aqui,
mas confio que serão maravilhosas. Eu agradeço primeiramente aos orixás porque no
dia que eu pedi que me arranjasse uma mulher negra eu falei abertamente para o Tempo
e a mulher negra chegou. No dia em que a mulher negra chegou, ela me ajudou a
realizar aqui a o Congresso de Tradição dos Orixás e Cultura - CONTOC - Um
congresso de Pais e Mães de Santo de todo Brasil e eu dizia, meu Deus que coisa
fantástica este é congresso de feiticeiros, de repente o orixá me levantou ogan e agora?
As coisas começaram acontecer, fui confirmado ogan e sempre me envolvi, trabalhei
para encontrar meu caminho e hoje esta roda, esta roda de conversa, ela me sagrou na
realidade ogan do Ilê Axé Opo Afonjá. Agradeço ao pessoal da SMEC que contribuiu
para esta oportunidade. Agradeço a Vanda por me acolher perto dela, agradeço a todos
os atores que comigo aqui estiveram, agradeço aos professores que estão, as pessoas que
eu nem conheço e que confiam nesta proposta. Agradeço a minha mãe de todo coração e
é por causa dela e com ela que estou no Ilê Axé Opo Afonjá. É por isso que estou
construindo a minha identidade, a partir da minha idade de agora, aos 63 anos.Agora
que percebo melhor a minha missão o meu caminho de en-sinar as pessoas nos seus
caminhos e projetos de vida. Agradeço novamente a Mãe Stella, a Ode Kaiodê. Ontem,
à noite, já em casa, cansadíssimo soube que era também aniversário de sua gestão como
Iyalaxé e Iyalorixá desta comunidade. Ontem dia 17, foi também o aniversário de sua
posse como zeladora deste povo e desde lugar de Xangô. Então, este nosso
acontecimento e a minha participação me dão muita alegria por duas razoes por
estarmos começando um caminho novo na educação e por ser aniversario da gestão de
Mãe Stella e nada mais sei e me calarei até a próxima.
Vanda – Agradecer prá mim é pouco. Sei que Oxum e Xangô vão me dar muita
saúde e vou poder continuar este trabalho prá ajudar a vocês professoras pioneiras.
Verdadeiras heroínas da educação. Estou falando de vocês mesmo, educadoras das
séries iniciais. Eu levei muito tempo namorando esta escola paquerando, e sem chegar
muito perto, porque parecia que o amor maior era o meu e que a recíproca não era
verdadeira. Até o dia em que Mãe Stela disse: Demorou um pouco, mais agora é você
que vai cuidar da escola. De fa,to demorou. Fiz uma dissertação aqui mesmo que ficou
184
por dez anos empoeirando na minha gaveta. Como povo de santo eu acredito que tenho
um caminho, um destino referenciado pela minha condição de filha de filha de Ode
Kaiodê.
82
Eu posso conversar com o meu caminho e ele pode me ajudar no tempo exato
das minhas realizações.Conforme já disse Mãe Stella no seu livro: O meu tempo é
agora.
Mãe Stella – Meu Deus o que é que vou dizer pra vocês? Apenas eu quero dizer,
eu quero deixar claro a minha alegria quando eu vejo sendo realizada esta formação
com as nossas professoras. Eu sei que independente desta capacitação o trabalho já
começou faz tempo. O africano costuma dizer que ninguém muda o destino. Só Deus,
Olorum, não tem padre, não tem pastor, não tem mãe de santo, não Igreja Universal.
Mas a gente pode dar uma mãozinha. A gente procura sempre os bons exemplos e os
procedimentos positivos que é a mesma coisa que se preparar para que os bons
pensamentos nos acompanhem. Pensar positivamente, pensar para o alto e para frente e
vamos sempre vencer. Vencer não é superar o outro. A gente só pode vencer assim
todos juntos, com o mérito de todos. Vocês já são abençoados por Xangô que é o dono
desta casa e por Oxossi que é o dono de minha cabeça. Eles fizeram com que a
Professora Dirlene ajudasse nessa semente. Tanto que desejamos que aconteceu, não é
Vanda? A semente estava na mão do casalzinho aqui, meus filhos Vanda e Petrô. Agora
vocês todos são responsáveis. As professoras serão sempre as jardineiras que vão regar
esta semente até se tornar uma árvore bem frondosa e que suas raízes cheguem a todo
Brasil e que todos saibam que ela nasceu aqui nesta Eugenia Anna. Ossain com certeza
vai estar ao lado de vocês. Também tenho que dizer que gostei do que aconteceu aqui e
eu também aprendi. Acho que quem mais aprendeu fui eu. Peço a vocês que continuem
me ensinando e me ajudando porque antigamente era uma batalha. Agora sinto que já
podemos falar de igual para igual sobre nossa cultura ou já podemos fazer até melhor.
82
Nome religioso de Mãe Stella.
185
Dançando com as folhas. Foto Vanda Machado
“Eis pois o Negro-africano,
o qual simpatiza e se identifica,
o qual morre para si a fim de renascer no
outro.
Ele não assimila,
ele se assimila.
Ele vive com o outro em simbiose,
ele co-nhece o outro...
Sujeito e objeto são, aqui, dialeticamente
confrontados no ato mesmo do
conhecimento,
que é ato de amor. 'Eu penso, então eu
existo', escrevia Descartes.
A observação já foi feita, pensa-se
sempre alguma coisa. O Negro-africano
poderia dizer:
'Eu sinto o Outro, eu danço o Outro,
então eu sou.' Ora, dançar é criar,
sobretudo quando a dança é dança do
amor.
É este, em todo o caso, o melhor modo
de conhecimento”.
Leopold Senghor (apud MANCE, 1995)
186
6. A ENCRUZILHADA É AQUI: e agora para
onde vai o caminho?
Neste momento sinto a necessidade de deixar cair o pano. Talvez não finalize,
mas possa escolher outros caminhos a fim de nao interromper o espetáculo da vida.
Uma lágrima teimosa desce pelo rosto cansado na madrugada que se aproxima. A
menina Vanda de tranças mal feitas e corpo desajeitado, abraça a mulher madura que
caminha com a coragem de quem carrega na pele a cor da noite. As duas correm juntas
com o Tempo de todas as esperanças.
É chegada a hora, e não gostaria de falar de perdas. Todos os caminhos foram
transformados em caminhos de esperanças. Falo, portanto, do que considero
interrupção. Talvez a mais doída tenha sido o afastamento compulsório da Escola
Eugenia Anna, na minha comunidade, meu berço ancestral, ainda no meio desta
jornada. Estanquei no meio da encruzilhada a espera de outros passantes errantes como
eu mesma. A viagem para ancestralidade do querido Professor Serpa, mais tarde se
fazendo acompanhar de Carlos Petrovich, deixou um vazio inconcebível. Petrô,
companheiro e interlocutor, parceiro que encantou a sua arte, fecundando saberes,
transformando sentidos e abrindo outros caminhos que caminhamos juntos.
187
Como em todo espetáculo, em que os atores se juntam e celebram o ultimo ato,
nós nos juntamos e nos agradecemos, mutuamente. Nós nos abraçamos numa grande
roda, como no xirê encantado com todas as presenças. Nós nos acompanhamos. Nós nos
construímos. Nós nos dançamos. Não há espectros em nenhum destes caminhos.
Estamos todos encharcados de vidas. Eu me vejo, eu me sinto, eu me abraço e me
danço. Nada é mais humano, mais sagrado e mais objetivo que dançar, lançando-se com
formas em qualquer espaço. Os movimentos do meu corpo contam todas as minhas
histórias. Eu me danço e me indago: Quais os sentidos que se movem em mim na hora
desta quase despedida?
Siqueira nos fala da “teoria de Senghor que inclui em seus pressupostos a
existência de uma força vital entre os negros africanos; ele encontrou meios de
descobrir, que esta forca é animada pela razão” (SIQUEIRA, 2006a, p. 29). De fato, não
se trata da razão descrita pela realidade ocidental. É um outro olhar sensível sobre uma
razão que é capaz de apreender outras realidades e interpretar fenômenos que só existem
no mais escondido da consciência humana. Falo da razão do pensamento africano e suas
subjetividades. Falo de uma razão que abriga o desejo cheio de pregnância que ativa na
participação irrestrita do sujeito em todo seu processo de ensinâncias e aprendências. Há
de se perceber ainda uma razão para o conhecimento que junta a lógica e a intuição, o
distanciamento e a sensibilidade, a imersão, a leveza, a acuidade e o pensamento.
Como em outras instâncias, o conhecimento nascido das subjetividades do
pensamento africano está na raiz da ciência contemporânea. Muito das subjetividades
deste pensamento na sua condição arcaica tem sido legitimada pelo consenso científico,
gerando conhecimentos antes associados apenas ao encantamento e à adivinhação, a
exemplo dos conhecimentos médicos.
A respeito desta afirmação, considerando a imagem do povo negro relacionada
com a inferioridade, jamais seria vinculada a sua história qualquer atividade filosófica
ou intelectual. Nascimento (1996) chama atenção para o fato de que quando se atribui a
um povo supostamente branco, não africano o progresso civilizatório da África
subsaariana, afasta o protagonismo do povo negro na construção de civilizações e
avanços filosófico-científico-tecnológicos. Mesmo diante de qualquer outra reflexão,
insisto: eu me danço, girando por todos os espaços não sem destino.
Olho para trás na busca de um passado não muito remoto. O que mudou? O que
este estudo tem potencializado? Compreender o pensamento africano na formação e no
188
ensino de crianças da comunidade Afonjá resultou em viver intensamente a ação de
aprender e en-sinar.
No início, foram apenas dois dias intensos com o propósito de fazer cabeças.
Naquele momento foi dada a partida à idéia de iniciar as educadoras para a
cotidianidade do Afonjá como lugar da Eugenia Anna. Foi levado em consideração a
localização da escola e a sua importância para a comunidade. Nos dias, meses e anos
que se seguiram foi se construindo outros caminhos que se cruzavam numa teia de
poesia, ciência, sabedoria, natureza, o sagrado, o cuidado e a ancestralidade en-sinando
e nos inserindo na vida como o ser coletivo que somos.
Ser coletivo que ficou evidenciado pelo sentido do pensamento africano recriado
no cotidiano dos terreiros, onde todos são aprendentes do ato de educar. Concordamos
com Serpa, quando prefaciando Galeffi, diz que: “aprender passa a ser o mesmo que
aprender a viver junto, aprender a fazer, aprender a pensar, aprender a ver, aprender a
falar, aprender a escrever, aprender a aprender” (SERPA, 2003, p. 9)
São muitas as representações do ato de aprender a estar juntos, nas vivências
ritualísticas comunitárias. Dentre estas, é possível distinguir o dia celebração de
Iyamasê
83
solenizado sempre no dia 11 de julho. Depois da primeira cerimônia ritual do
dia consagrado a mãe de Xangô, cada um caminha individualmente para receber da
mãe-de-santo uma pena de galinha conquen aos pés de Xangô o dono da comunidade
Afonjá. Este é um sinal do coletivo e da individualidade magnificadas e preservadas.
Tomamos a pena e prendemos nos cabelos. Os homens põem no bolso mesmo, contanto
que esteja a mostra. Durante todo dia nos mostramos uns aos outros ratificando nossa
individualidade no coletivo. À noite, saímos em procissão para o barracão de festas
numa dança que re-une. Tudo que se mostra ao tempo está sendo mostrado aos
ancestrais. No barracão, todos nós entregamos as penas a Iya Kekerê, que junta num
único feixe e põe de volta no quarto de Xangô.
Também, para reafirmar o sentido agregador dos nossos ancestrais, neste mesmo
dia, cada um dos filhos oferece um ojá a Iyamasê. Ojá é um pano com o qual cobrimos
as nossas cabeças em momentos rituais ou não. Numa arrumação significativa, os panos
são enlaçados deixando perceber mais uma vez a importância do sentido agregador do
povo negro e as individualidades preservadas. O arranjo que chamamos de okó
acompanha a procissão solenemente. Quando retorna é posto em frente de Iyamasê até
83
Qualidade de Iemanjá mãe de Xangô
189
o próximo ano quando tudo se renova e se repete. Assim como as penas, as escamas na
sua disposição imbricada que cobrem um corpo também marcam o sentido do coletivo e
o individual que se distingue inconteste. Em qualquer circunstância, a comunidade é
sempre a representação de um corpo. As folhas que se esparramam ligadas ao tronco
sustentado pelas raízes que firmam e mantém a vida são também representações do
coletivo sustentado pela ancestralidade.
Em alguns terreiros mais precisamente no Terreiro Mukambo, o coletivo é
representado também pela árvore do Tempo enlaçada com um grande pano branco.
Segundo o Tata Anselmo
84
(em conversa em 2006) o pano branco abraça o tronco como
um abraço em toda a comunidade protegendo-a. Entretanto, cada galho do tronco ganha
o seu pano, o seu laço, representação simbólica da proteção individual.
Na comunidade religiosa é a feitura que se constitui e define o pleno
acolhimento do indivíduo aos olhos do grupo. Por analogia, as educadoras da Eugenia
Anna antes isoladas não existiam no campo afetivo da comunidade até vivenciar
diálogos, espaços e saberes do lugar. O fato de estarem juntas fazendo um caminho,
olhando para o pensamento africano e terem demonstrado o desejo de participar da
comunidade como parte desse coletivo, foi o sinal para um outro tempo, uma outra
forma de ser sendo das educadoras do lugar. Estava sendo iniciado um jeito de parceria
implicada pela presença integradora do jeito africano de viver na escola como na vida.
Importava, portanto, efetivar o diálogo onde outros saberes também seriam
compreendidos para elaboração de uma forma de en-sinar contemplando a criança no
seu crescimento e formação de corpo e alma para enfrentar a vida lá fora carregando o
legado da sua ancestralidade. Daí por diante não havia dúvida. Era como se vivêssemos
numa comunidade africana ou simplesmente vivendo os princípios que regem a
comunidade religiosa Afonjá.
Este comportamento nos lembra o pensamento de Santos (1977), quando atenta
para o sentido da prática religiosa como possibilidade de convivência, acomodações e
reelaborações por reagrupamentos institucionalizados na diáspora , transformando em
re-existência dos cultos tradicionais africanos. Importava, portanto estar juntos nas
irmandades, nas confrarias e mais tarde nos terreiros, o que se constituía também numa
postura de afirmação política.
Conscientes da responsabilidade política e pela manutenção do pensamento
84
Tata Anselmo, o pai Anselmo é pai de santo e mestrando em educação pela UNEB.
190
africano na educação das crianças da Eugênia Anna continuamos ouvindo a comunidade
e nos indagávamos sempre: o que mudou ou o que está mudando entre nós? É possível
que o relatório do grupo de educadoras sinalize para alguns acontecimentos importantes.
6.1 ENCRUZILHANDO VIDAS E CAMINHOS DE SABER
O estudo em questão continua caminhando para o encontro de outros indicadores
de legitimidade considerando o pensamento africano recriado na diáspora. Estudo
iniciado oficialmente com a dissertação de mestrado: Formação de conceitos a partir do
universo cultural de crianças da comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá. Ano 1986.
Ao longo deste tempo o estudo vem potencializando ações tais como:
Convênio de Cooperação Técnico - Cientifica Cultural e Financeira entre o
Município de Salvador com a interveniência da Secretaria Municipal de
Educação e Cultura – SMEC e a Sociedade Cruz Santa do Axé Opo Afonjá –
Escola Eugenia Anna dos Santos.
Municipalização da Escola Municipal Eugenia Anna dos Santos
Publicações:
Vivência e invenção Pedagógica - Crianças do Opo Afonjá . 1ª Edição em 1998,
a 2ª em 2004. A leitura desse livro (dissertação de mestrado) se tornou básica
para a introdução de uma outra proposta de en-sinar a crianças do Afonjá.
Prosa de Nagô (1999) texto base para a formação no início deste processo.
Ilê Ifé – O sonho do Iaô Afonjá (2000)
Ajaká: O menino no caminho de rei( 2001)
Irê Ayó: Mitos Afro-brasileiros (2004), todos em parceria com Carlos Petrovich.
Intolerância Religiosa: Vigiando e Punindo (2001, p.449) - Anais Seminários
Preparatórios para Conferencia Mundial contra o racismo discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata para o Ministério da Justiça, Secretaria de
Estado dos Direitos Humano
s.
Estimo que produzimos e ou contribuímos com mais de uma centena de
participações considerando apresentação de trabalhos em Congressos, conferências,
191
artigos e capítulos em livros, reportagens e em revistas especializados reconhecidas
nacional e internacionalmente:
Participação na 7th Orisa World Conference, in colaboration with Institute of
cultural Studies Obafemi Awolowo University Commnitication Yorubá
Pedagogy: the importance of orisa mythology in education. Ile Ifé . Nigeria
August 2001.
Participação na qualidade de palestrante no 8o. Congreso Mundial de la
Tradicion y Cultura Oricha 2003. Habana- Cuba Julio 2003.
Participação na coletânea do original alemão: SCHAEBER, Petra. Irê Ayó- der
Weg der Freude zu einem anderem Lernen. In HABERKORN, Rita (Hrsg)
Anstiftung; Auf dem Spuren ungewohnlichen Lernens; Festschrift fur Jurgen
Zimmer. Weiheim, Basel, Berlim: Beltz Verlag, 2003.
Participação no catálogo original espanhol: Assujetissement CALVETE,
Consuelo (2002).
Participação em programas educacionais a exemplo de Salto para o Futuro por
três vezes, no programa AÇÃO entre outros.
O Irê Ayó tem inspirado monografias
O vídeo-documentário Reparação editado em português, inglês e espanhol
aborda basicamente a metodologia do Irê Ayó e sua repercussão. Na época entre
outras nos chegou a noticia que:
Na reunião realizada em Brasília, o prefeito Antonio Imbassahy conversou
com o secretario executivo Samuel Pinheiro Guimarães e com os
Embaixadores Rui Pereira, responsável pelas relações com a África, e Élio
Vitor Ramos designado para o atendimento dos estados e municípios
brasileiros. [...] Os executivos do ministério conheceram projetos como o
desenvolvido na Escola Eugênia Anna, localizada na área do Terreiro Ilê Axé
Opo Afonjá, O material audiovisual “Reparação” mostra a didática da escola,
que trabalha com lendas, aspectos religiosos e expressões idiomáticas
africanas na educação convencional dando espaço a atividades que
incentivam a oralidade, marca da cultura daquele continente. Atualmente
Salvador mantém relações com diversos paises africanos e é cidade-irmã de
Pemba (Moçambique) Abuja (Nigéria) e Librevilhe (Gabão). (BRASIL.
Diário Oficial do Município, 10 de julho de 2003). NAO TEMOS ESTE
Como conseqüência recebemos na Eugenia Anna as visitas do Dr Ernesto
Muianga, diretor de Educação de Moçambique, Professor. O visitante comparou a
escola a uma caixa de jóia que continha uma parte significativa da África.
Ava Wiliams finalizando a sua estadia em nossa comunidade no ano 2000,
colheu da professora Paula Gonçalves o pensamento que se segue:
192
“Eu trabalho na Prefeitura há um ano e meio. Eu trabalho numa
outra escola que tem uma outra visão de educar. Eu trabalho em outra
escola. É uma escola católica e não tem esta preocupação com o
afrodescendente. O que lamento é que se trata de uma escola católica,
mas que está em Salvador. Nem se percebe quando se está diante de
uma criança afrodescendente. Enquanto na Eugenia Anna é dada toda
importância a esta origem da criança. Eu percebo que aqui com toda
dificuldade financeira que se tem o aluno aqui se torna um negro livre,
porque conhece quem ele é.
A criança de outra escola que não tem este referencial histórico
ele é um ser reproduzido e reproduzível. É o aluno que vai continuar se
mantendo no lugar que foi criado para o afrodescendente e onde ele via
de regra já se mantém. A maioria das crianças são brancas e a menoria
que é afrodescendente não conhece a sua história . Esta ali de
espectador da história. É muito difícil e necessário que o próprio
professor se identifique.pra que ele se forme e ensine a cidadãos que
vão transformar o Brasil que possa dar outra atenção para o seu povo.
O professor precisa formar a sua identidade para depois levar isto
para a escola.. A pessoa só ama aquilo que conhece. Pra mim a
diferença básica é conhecer a historia dos ancestrais. Nunca ouvi falar
na África na escola a não ser como um continente derrotado. A criança
da Eugenia Anna tem outra visão de África. A criança daqui não tem
vergonha de assumir a sua etnia. Percebo fora daqui uma criança
quando vai reproduzida. Aqui as nossas crianças não vão ser
reproduzidas
Eu hoje percebo que não buscaram as minhas respostas. Nunca
me perguntaram nada. Me davam as coisas prontas.Acho que um
problema muito sério no nosso país no que diz respeito ao preconceito é
esta forma fingida, esta forma dissimulada de como acontece. O racismo
acontece e as pessoas fingem não compreender, não saber por que não
querem discutir. Eu acho que nada que é escondido, que não é mostrado
não se resolve. Nunca é falado porque as pessoas têm medo de falar
para se mostrarem racistas. Mas essas pessoas têm consciência do seu
jeito de ser racista no cotidiano delas.
O preconceito se apresenta na escola, quando trabalhamos a
pluriculturalidade, principalmente quando enfatizamos a cultura afro-
brasileira. Quando uma pessoa afrodescendente não é respeitada no
mercado de trabalho, quando vai numa loja e é visto como algum que
oferece perigo para a sociedade por conta da sua cor. O preconceito se
mostra nas piadas, nas brincadeiras que parecem inocentes, mas que
colocam a pessoa numa condição de inferioridade.
O que é África pra mim? África é história que não me foi contada.
A história, não do meu pai ou da minha mãe, mas história de
antepassados que não me foi contada. Hoje eu tenho necessidade de
descobrir esta história escondida, principalmente depois que vim
trabalhar aqui com Vanda no Irê Ayó. Nós trabalhamos com a mitologia
africana recriada aqui no terreiro. Nós construímos todo trabalho
coletivamente nos ACs (atividades complementares). Nós contamos
histórias. Ensinar para nós é estar sempre narrando histórias com a
participação das crianças.
193
Toda criança gosta de escutar histórias. Mostramos as crianças
que elas fazem parte das histórias que são as histórias dos nossos
antepassados. Descobrimos com as crianças os princípios e valores da
história. Levamos esta história para o estudo das ciências, para outras
áreas do conhecimento, para a matemática e tudo que possa evidenciar
a importância do negro no Brasil para composição do povo brasileiro.
Estamos sendo falando com a criança, fazendo ela se sentir
importante. Não. Aqui nós não ensinamos que Oxum salva.Nos não
dizemos que Ogum salva.Falamos de Ogum associado a invenção do
ferro, da alquimia e dos remédios. A criança aprende a nossa história e
aprende a respeitar a religião como religião e não como folclore. A
religião aqui para nós tem que partir de cada um buscar este
conhecimento ou esta experiência. Eu defino negritude como uma forma
de ser de pensar de representar de conhecer o que é seu. Eu defino
minha negritude como uma forma de conhecimento, uma postura
política”.
Dentre as muitas demandas que vão surgindo ao longo do estudo penso na
possibilidade de um esforço coletivo para reverter os argumentos coisificantes da
história que nos foi contada e revelar a identidade ancestrálica que alarga a consciência
e autoriza a reinvenção da nossa própria historia.
O Projeto Político Pedagógico Irê Ayó foi acolhido na FACED-UFBA como um
esforço investigativo para um currículo multirreferencial inicialmente com orientação
do professor Ubiratan Castro, mais tarde, o professor Luis Felipe Serpa e finalmente o
professor Dante Galeffi.
Num esforço multidisciplinar tenho hoje a co-autoria da comunidade cientifica
tanto da FACED, como de inúmeros intelectuais e atores sociais que dialógica e
colaborativamente tem participado da elaboração e compreensão de pensamentos e
saberes desenvolvidos ao longo da história e a memória negro-africana.
O projeto em questão, por experimentação e transferência, evidenciou a
possibilidade de vivenciar a sua metodologia em outras comunidades, a exemplo de
escolas de orientação católica na periferia de Salvador quando com Carlos Petrovich
realizamos trabalho de formação a convite na Pastoral do Menor. Também no sistema
municipal de ensino de Lençóis convidados pelo Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô.
Tendo como base o estudo em questão, estou contribuindo com a formação de
educadores e educadoras para operacionalização da lei 10.639 a convite da Secretaria
Executiva de Educação do Estado de Alagoas.
Durante dez meses com o pensamento africano no Ire Ayó participamos do
Grupo de Estudos na Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade
194
(SECAD) para a Inserção das Diretrizes Nacionais para Educação das Relações Étnico
Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Na Secretaria Municipal de Educação e Cultura em Salvador contribuímos com
texto: Mitos Afro-brasileiros e Vivências educacionais. Pasta de Textos da
Professora e do Professor (2005).
Finalmente participei com o texto Tradição oral e vida africana e afro-
brasileira no livro: Literatura Afro-brasileira, organização Florentina Souza, Maria
Nazaré Lima- Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasiléia: Fundação Cultural
Palmares, 2006.
Orientamos monografias inspiradas no pensamento africano entre outras O
Ensino da Historia da África e Afro-Brasilera na Educação Infantil, de Gonzaga e outros
(2006).
Facilitamos pesquisa para monografias e estágios de dezenas de estudantes das
UNEB e da UFBA. Acolhemos as pesquisadoras Maria Paula Fernandes Adinolfi,
Mestranda da USP, e Márcia Theodorico Mezzano da Universidade do Rio Grande do
Sul.
Recebemos Bernd Reiter – Research Associated, Howard Samuels State
Management and Policy Center Graduate School and University Center – City
University of New York.
Participamos dos programas de intercambio internacional da PUC-Rio com
importantes universidades americanas.
Estes estudantes e suas respectivas instituições de origem são: Ava Williams
(2002) do Programa de Relações Internacionais de Notre Dame University; Edith
Saldivar (2002) do Programa de Relações Internacionais da Califórnia State University;
JacobWeiler (2003) do Programa de Antropologia de Notre Dame University; Jay T.
Price (2003) do Programa de Sociologia da Utah e Sukmeet Angali Kaur (2003) do
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais e Economia da Johns Hopkins
Universty e bolsista da Comissão Fulbright.
Por carta a professora Denise Fonseca nos informa dizendo que:
Até onde fomos informados pelas instituições de origem, ou pelos próprios
estudantes soubemos que a jovem Ava Williams foi imediatamente aceita em
um programa de pós graduação, a partir de um projeto de pesquisa que
adotou o Projeto Irê Ayó para o tratamento da questão racial nos Estados
Unidos. Além disso, a jovem Edith Saldivar transformou a sua experiência
em uma reflexão sobre comunidades latinas nos Estados Unidos, sob a forma
de um vídeo documentário, como monografia de graduação e foi aceita no
195
Programa de Mestrado em Relações Internacionais, imediatamente após a sua
formatura, na mesma instituicao na qual se graduou (FONSECA, 2006 carta).
Neste contexto, é óbvio compreender que a proposta não foi concebida apenas
para uma comunidade de terreiro, para crianças negras e praticantes das religiões afro-
brasileiras. O pensamento africano que fundamenta as vivências pedagógicas no Ire Ayó
reúne valores criadores de identidades e fecundantes de comportamentos solidários e
coletivos.
Na formação de fevereiro de 2003, esteve presente a professora Denise Guerra
que demonstrou interesse em compreender melhor o Irê Ayó enquanto intervenção para
o processo de ensino-aprendizagem de ciências, tendo como fundante o pensamento
africano. Vimos como resultado a brilhante defesa de sua dissertação de mestrado na
Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, com o titulo: Cabeças (bem)
feitas -Ciências naturais num contexto pedagógico de afirmação cultural.
Denise conclui seu trabalho dizendo: “A “cabeça bem cheia” está dividida em
compartimentos depositários de conteúdos desprovidos de sentidos e significados. Uma
ambiência fria em que a transmissão, o deposito, produz o arquivamento dos seres
humanos”.
Para Denise:
O currículo de ciências na Eugenia Anna se mostra na perspectiva da
cabeça bem feita. Um lugar de intercruzamento, de tessitura de saberes,
um ambiente natural e cultural pulsante, ressonante, no qual a arte de
indagar, de instigar, de estimular, do estimular, do fazer coletivo produz
simultaneamente a duvida e o vigor para responder as questões locais e
globais e assim se iniciar na comunidade e no mundo.
De fato, o Projeto Político Pedagógico Irê Ayó inspirado no pensamento
africano recriado na diáspora, chamou atenção pela sua utopia pedagógica acreditável.
Utopia criada pelas possibilidades e conseqüências de uma consciência histórica na
diversidade e pela criação de ações educativas de combate ao racismo e valorização dos
contrastes e diferenças.
Assim, vislumbro a possibilidade de continuar contribuindo com esta
interlocução incluindo-me entre outras experiências e em outros estudos que atendam ao
chamado nacional para compreensão da pluralidade e da singularidade da nação
brasileira como fractal da re-existência do pensamento africano recriado na diáspora
sem perder a perspectiva do pensamento em que Mãe Aninha nos en-sina: de anel no
dedo e aos pés de Xangô..
196
O intenso diálogo com a academia não exclui a compreensão de mim mesma
como ponto de partida, meio e fim de toda esta jornada. O meu lugar continua sendo o
lugar do pensamento africano recriado na diáspora. Agora, da casa de Xangô, olho pela
janela o caminho de repouso do sol já cantado pelo poeta Caetano. Enquanto a estrela
do dia se deita no infinito, esparramando seu brilho sedutor, junto-me às outras
mulheres aguardando o momento de arrumar a gamela de amalá para o ritual que
reafirma a nossa condição de filhos da comunidade. A sabedoria da ancestral primeira
do Afonjá nos dá como herança a festa da Quarta-feira de Xangô. Esse é o dia de uma
grande festa que se repete e nos agrega mesmo antes da travessia do Atlântico.
É tardinha, corro os olhos pela casa de Xangô e encontro a escultura que o artista
faz ressaltar o machado, seguro pelas mãos do rei de Oyó e dono do terreiro Afonjá. Um
dia, Xangô sentindo-se ameaçado pelos inimigos, sobe num monte bem alto e bate com
o machado de ferro na pedra com todo vigor de seus músculos. As chispas que saltam
vão afastando os inimigos que fogem. Xangô no seu papel civilizador é o dono das
organizações políticas e sociais. É o que desconstrói injustiças e valores inadequados e
hipócritas. O seu oxê, o machado de duas lâminas, une a comunidade na sua origem
ancestrálica e na história que ora narramos ritualisticamente em forma de dança. Na
metade da festa, o poder das ayabás se mostra, quando orgulhosamente trazemos a
grande gamela que colocamos no centro do barracão com o amalá que Xangô e todo
povo come pela mão das mulheres. Finalmente a comunidade é abraçada pelo ojá
abalá
85
. Eu me abraço me acolho e me junto aos outros. Nós nos abraçamos e nos
acolhemos. O ojá levado com o canto e a dança convoca a comunidade a unir-se e a
juntar-se num abraço que vai juntando todos os corpos num grande círculo no centro do
barracão. É o próprio Xangô que nos abraça, alimentando o fogo do pavio que acende a
vida, e a coragem daqueles que tem na pela a cor da noite.
85
Pano velho ou pano antigo na língua iorubá. Tira de pano vermelho semelhante ao que nos cobre a
cabeça para obrigações rituais.
197
REFERÊNCIAS
198
1. ABIMBOLA, Wande. Yoruba oral tradition. Ile Ifé, Nigeria: University of Ifé,
Department of African Languages and Literatures, 1975.
2. ADÉKÒYÀ. Olumuyiwá Anthony. Yorubá: tradição oral e história. São Paulo:
Terceira Margem, 1999.
3. ADESOJI, Michael Ademolá. Nigéria e história: costumes cultura do povo
Yorubá e a origem dos seus Orixás. Salvador: Central, 1990.
4. APPIAH, Kwame Antony. Na casa do meu pai: a África na filosofia da cultura.
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
5. ARAUJO, Miguel Almir Lima de. Laços de encruzilhada: ensaios
transdisciplinares. Feira de Santana, BA: UEFS, 2002.
6. AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas, SP: Papirus, 1994.
7. AUGRAS, Monique O ser da compreensão: fenomenologia da situação de
psicodiagnóstico. Petrópolis, RJ: Vozes, l986.
8. AYOH'OMIDIRE, Félix. Akogbadun: ABC da língua, cultura e civilização
iorubanas. Salvador: EDUFBA: CEAO, 2004.
9. AXILINE, Virginia Mãe. Dibs: em busca de si mesmo. Rio de Janeiro: Agir, 1992.
10. BÂ, Amadou Hampâté. A tradição viva. In KI-ZERBO, J. (Org.). História da
Africa. São Paulo: Atica; Paris: UNESCO, 1982.
11. ______. Amkoullel, o menino Fula. São Paulo: Palas Athena, 2003.
12. BACHELARD, Gastón. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da
matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
13. BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Plano, 2002.
14. BENISTE, José. Orun, aiye: o encontro de dois mundos: o sistema de
relacionamento nago-yoruba entre o céu e a terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1997.
15. ______. Jogo de búzio: um encontro com o desconhecido. 2. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2000.
16. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
199
17. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
18. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 6. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
19. BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In: BORNHEIM, Gerd Alberto; FUNARTE
Nucleo de Estudos e Pesquisas. Cultura brasileira: tradição, contradição. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar: FUNARTE, 1987.
20. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
21. BRAGA, Julio Santana. Fuxico de candomblé: estudos afro-brasileiros. Feira de
Santana, BA: UEFS, 1998.
22. ______. O jogo de búzios: um estudo da adivinhação no candomblé. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
23. ______. Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor. Salvador:
Ianamá, 1987.
24. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1993.
25. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura
emergente. São Paulo: Cultrix. l982.
26. ______. O tao da física: um paralelo entre a física e o misticismo oriental. São
Paulo: Cultrix, 1983.
27. ______. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São
Paulo: Cultrix, 1996.
28. CASSIRER, Ernest. A filosofia das formas simbólicas: o pensamento mítico. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
29. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
30. COLL, Augustí Nicolau. As culturas não são disciplinares: existe o transcultural?
In: SOMMERMAN, Américo; MELLO, Maria F de; BARROS, Vitória M de
(Orgs.). Educação e transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM, 2002.
31. COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis, RJ: Vozes. 1995.
32. COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução,
apresentação e comentários: Alexandre Costa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
200
33. CUNHA. Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua
volta à África. São Paulo: Brasiliense. 1985.
34. D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 1997.
35. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
36. ______; GUATTARI, Felix. O que e a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
37. DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do
conhecimento. São Paulo: Atlas, 2002.
38. ______. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez, 2002.
39. DOLL, William E. Currículo: uma perspectiva pos-moderna. Porto Alegre: Artes
Medicas, 1997.
40. ______. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
41. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Livros
do Brasil, 1956.
42. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.
43. FEYERABEND, Paul. Contra o método. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves, 1989.
44. FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Selo
Negro, 1999.
45. FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. Organização e notas Ana Maria Araújo
Freire. São Paulo: UNESP, 2004.
46. ______; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente: Angola, Guiné
Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
47. GALEFFI, Dante Augusto. Filosofar & educar: inquietações pensantes. Salvador:
Quarteto, 2003.
48. ______. O ser-sendo da filosofia: uma compreensão poemática-pedagógica para o
fazer-aprender filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001.
49. GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo:
Ed.34, Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-
Asiáticos, 2001.
201
50. GUERRA, Denise Moura de Jesus. Cabeças (Bem-) Feitas: ciências e o ensinar-
aprender ciências naturais num contexto pedagógico de afirmação cultural. 2004.
186 f.. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Educação da Universidade Federal da
Bahia. Salvador, Bahia, 2004.
51. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
52. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002
53. HEISENBERG, Werner Karl. Física e filosofia. Brasília: UnB, 1981.
54. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra. 2004.
55. HOLLY, Mary Louise. Investigando a vida profissional dos professores: diários
biográficos. In: NOVOA, Antonio. Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto,
1995.
56. HORTON, Robin. Diferenças entre culturas tradicionais e cultura de orientação
científica. In: MERTON, Robert King; DEUS, Jorge Dias de. A critica da ciência:
sociologia e ideologia da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
57. HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Porto:
Madras, 2001.
58. JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez,
2004.
59. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São
Paulo: Contexto, 2003.
60. LARSEN, Stephen. Imaginação mítica: a busca do significado através da
mitologia pessoal. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
61. LEIRIS, Michel. L’autobiographie em costume d’ethnologue. Magazine Literaire,
Paris, n. 409, p. 54-55, maio 2002.
62. LEJEUNE, Philippe. Pour l’autobiographie. Magazine Literaire, Paris, n. 409, p.
20-23, maio 2002.
63. LIMA, Vivaldo da Costa. A família de santo nos candomblés jejes-nagôs da
Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2. ed. Salvador: Corrupio, 2003.
64. LOPES, Nei. Bantos, males e identidade negra. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 1988.
202
65. MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas
ciências humanas e na educação. Salvador: EDUFBA, 2000.
66. MACHADO, Vanda. Amor à terra: lição que não se aprende na escola. In:
Encontro das Folhas, 1. Pierre Fatumbí Verger. Salvador: Prefeitura Municipal,
1996.
67. ______. Descobrindo os caminhos do renascer. In: SILVA, José Marmo da (Org.).
Religiões afro-brasileiras e saúde. São Luis, MA: Projeto Ato Ire, Centro de
Cultura Negra do Maranhão, 2003.
68. ______. Ilê Axé vivências e invenção pedagógica: as crianças do Opô Afonjá. 2.
ed. Salvador: EDUFBA, 2002.
69. ______, Intolerância religiosa: vigiando e punindo. In: SEMINÁRIOS
REGIONAIS PREPARATÓRIOS PARA CONFERENCIA MUNDIAL CONTRA
RACISMO, DISCRIMINAÇÃO, XENOFOBIA E INTOLERÂNCIA
CORRELATA, 2000. Anais... Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria do Estado
dos Direitos Humanos, 2001.
70. MAFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1995.
71. MANCI, Euclides André. As filosofias africanas e a temática de libertação.
Curitiba: Instituto de Filosofia da Libertação, 1995. Disponível em: <
http://www.milenio.com.br/mance/%C1frica.htm>. Acesso em 10 nov. 2006.
72. MARTINS. Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no
Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza, 1997.
73. MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento:
as bases biológicas da compreensão humana. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2002
74. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
75. ______. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
76. MOITA, Maria da Conceição. Percursos de formação e de transformação. In:
NOVOA, Antonio. Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto, 1995.
77. MORAES, Maria Cândida. Educar na biologia do amor e da solidariedade.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
78. MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria; 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001.
203
79. ______. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de
aprendizagem pelo erro e incerteza humana. São Paulo: Cortez, 2003.
80. ______. O metodo: 3. Porto Alegre: Sulina, 1999.
81. ______. A religação dos saberes: o desafio do Século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2002.
82. ______; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. 2. ed. São
Paulo: Fundação Peirópolis, 2000.
83. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos São Paulo. Ática, 1986.
84. ______. Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação: BID:
UNESCO, 2001.
85. NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Sankofa: matrizes africanas da cultura
brasileira. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
86. NEUMANN, Erich. A grande mãe: um estudo fenomenológico da constituição
feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 1974.
87. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e
para ninguém. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
88. ______. A gaia ciência. Lisboa: Guimarães, 1987.
89. OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para
uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: L. C. R., 2003.
90. OLIVEIRA, Fernando. O Turbilhão do Pescador: Acaso e criatividade no jogo da
comunicação e do mercado. 2001.362f. Tese de doutorado – Faculdade de
Educação da Universidade federal da Bahia. Salvador, Bahia .2001.
91. PESSANHA, José Américo Motta. Cultura como ruptura. In: BORNHEIM, Gerd
Alberto. Cultura brasileira: tradição contradição. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar: FUNARTE, 198
92. PETROVICH, Carlos R. Ajaká:o menino no caminho do rei. Salvador, EDUFBA,
2001.
93. PETROVICH, Carlos R.; MACHADO, Vanda. Ilê Ifé: o sonho do Iaô Afonjá.
Salvador: EDUFBA. 2000.
94. ______. Irê Ayó: mitos afro-brasileiros. Salvador: EDUFBA. 2004.
204
95. ______. Prosa de nagô. Salvador: EDUFBA, 2000.
96. ______. Reparação: o Projeto Político -Pedagógico Irê Ayó. Ed. trilingüe.
Salvador: Play, 2002. 1 videocassete (14 min), VHS, son, color.
97. PRIGOGINE, Ilya. Do ser ao devir. São Paulo: UNESP; Belém: Universidade
Estadual do Pará, 2005.
98. ______. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: UNESP,
1996.
99. QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Prefacio Arthur Ramos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. (Bibliotheca de Divulgação Scientifica,
15).
100. ______. A raça africana e os seus costumes na Bahia. Salvador: P555 Edições,
2006.
101. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
102. RODA, Hildeth de Almeida Lopes. In: SANTOS, Juana Elbein dos. Nossos
ancestrais e o terreiro. Salvador: EGBA. 1997, p. 43- 45.
103. SALÁMÌ, Síkírú. A mitologia dos orixás africanos. São Paulo: Odduduwa, 1990.
104. SANTOS, Joel Rufino, História do negro no Brasil. São Luis: Centro de Cultura
Negra do Maranhão, 1983.
105. SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pade, asese e o culto egun na
Bahia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
106. ______. Nossos ancestrais e o terreiro. Salvador: EGBA, 1997.
107. ______. A percepção ideológica dos fenômenos religiosos: sistema nagô no Brasil
versos sincretismo. Revista de Cultura, Rio de Janeiro, n. 7, p. 20, 1977.
108. ______. A natureza do espaço: técnica e tempo : razão e emoção . 4. ed. São
Paulo: EDUSP, 2002.
109. ______. Temos tudo para construir uma nova sociedade: entrevista. Revista
Democracia Viva, n. 2, p. 1-22, 1998. Disponível em:
<http://br.geocities.com/madson-pardo/ms/entrevistas/mse10.pdf>. Acesso em: 3
nov. 2006.
205
110. SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo:
Annablume, 2003.
111. SELJAN, Zora. No Brasil ainda tem gente da minha cor?. Salvador: Prefeitura
Municipal, 1978.
112. SERPA, Luiz Felipe Perret. Ciência e historicidade. Salvador: L.F.Serpa, 1991.
113. ______. Prefácio. In: GALEFFI, Dante Augusto. Filosofar & educar: inquietações
pensantes. Salvador: Quarteto, 2003. p. 9.
114. Silva, Ana Célia da. Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático.
Salvador. Edufba. 2001.
115. SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
116. SILVA, Eduardo. Dom Oba II da África o príncipe do povo: vida tempo e
pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
117. SILVA, Petronilha Beatriz.Gonçalves e. Territórios e educação. In COSTA. Ivan;
SILVEIRA, Sonia Maria (Orgs). Negros, territórios e educação. Florianópolis:
Núcleo de Estudos Negros, 2000. (Serie Pensamento Negro em Educação, 7).
118. ______; BARBOSA, Lúcia M. A. (Org.). Pensamento negro em educação no
Brasil: expressões do movimento negro. São Carlos: EDUFSCar, 1996.
119. SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Intelectualidade negra e pesquisa cientifica.
Salvador: EDUFBA, 2006a.
120. ______. Siyavuma: uma visão africana de mundo. Salvador: M. L. Siqueira,
2006b.
121. SOARES. Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e
escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
122. SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis,
R.J: Vozes, 1999.
123. ______. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes,
1988.
124. SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. Orixás, santos e festas: encontros e
desencontros do sincretismo afro-católico na cidade de Salvador. Salvador:
EdUNEB, 2003.
206
125. SOUZA, Elizeu Clementino de. Historia de vida e formação de professores: um
olhar sobre a singularidade das narrativas (auto) biográficas. In: MACEDO,
Roberto Sidnei Alves; SILVA, Gelcivânia Mota; TORRES, Mônica Moreira
(Orgs.). Currículo e docência: tensões contemporâneas, interfaces pós-formais.
Salvador: EdUNEB, 2003.
126. SOUZA. Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa da
coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
127. TEDLA, Eleni. Sankof. African thought and education. New York: Peter Lang,
1995.
128. VANSINA, Jan. La tradición oral. Barcelona: Labor, 1968.
129. VANSINA, Jan. A tradição oral e a sua metodologia. In: KI-ZERBO, J. (Dir.).
História geral de África I. São Paulo: Ática: UNESCO, 1982, v. 1, p. 157-218.
130. VERGER, Pierre Fatumbí. Lendas africanas dos orixás. Salvador: Currupio,
1985.
207
ANEXOS
REPORTAGENS E NOTÍCIAS SOBRE O PROJETO
208
209
210