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Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe
um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa
oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu
unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e
para nunca mais; eis aqui como e porquê.
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz
parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia
recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do
café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na
alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de
rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa
vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo
aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa
estando calada, não o era menos quando ria.
A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem
entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em
D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e
não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no
corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes
grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de
pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.
Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à
janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D.
Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou
pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era
só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três
folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão,
debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava
cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se
na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca
pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a
mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de
meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos
depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas
não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo,
parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que
houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os
passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e
só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras.
Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase
maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-
a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece,
sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que
Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar
doente; podia ser até que estivesse muito mal.
Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do
mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na
rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça