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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
SABINE ALTHAUSEN
Adolescentes com síndrome de Down e Cães:
compreensão e possibilidades de intervenção
São Paulo
2006
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SABINE ALTHAUSEN
Adolescentes com síndrome de Down e Cães:
compreensão e possibilidades de intervenção
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Saúde e Desenvolvimento
Humano
Orientadora: Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian
São Paulo
2006
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Sabine Althausen
Adolescentes com síndrome de Down e Cães:
compreensão e possibilidades de intervenção
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Saúde e Desenvolvimento
Humano
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ___________________________________________________________
Instituição: ____________________ Assinatura: ___________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________
Instituição: ____________________ Assinatura: ___________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________
Instituição: ____________________ Assinatura: ___________________________
Aos meus pais, Sônia e Reinhold, pelo amor e dedicação
À minha analista, Míriam, por sua escuta e presença
AGRADECIMENTOS
A realização desta pesquisa foi imensamente facilitada pela presença afetiva de
diferentes pessoas, a elas exprimo minha gratidão.
À Maria Lúcia Amiralian, por seu acolhimento, generosidade e sabedoria no
processo de orientação. Seu interesse pelo tema pesquisado, bem como seu rigor
científico e sua crença em minha capacidade como pesquisadora, iluminaram e
ampliaram meus horizontes.
À Leila Cury Tardivo, pelo apoio na fase inicial da pesquisa e por sua
disponibilidade.
À Tânia Aiello Vaisberg e Maria Júlia Kovács pela precisas e preciosas contribuições
à época do exame de qualificação.
Aos participantes desta pesquisa, por sua confiança e generosidade em contribuir.
Aos professores de pós-graduação: com quem muito aprendi; aos funcionários das
secretarias de pós-graduação e da biblioteca: sempre solícitos e competentes; aos
colegas de orientação: pelas estimulantes discussões acadêmicas e pelo apoio.
À minha família Gab, Zé, Chris, Mônica, Oscar, Oma, Opa, Vó Laura, tios e primos
- por serem as pessoas queridas que são.
Ao meu amado Marcelo, pela parceria na dança da vida e por seu amor.
Aos amigos e colegas: Marisa, Toninho, Thaís, Déa & Carlos, Marina & Louis,
Cristina, Graça, Janaína, Sandra, Lydiane, Ivana & Cia. Ilimitada, Mônica, Patrícia,
Rô e Nicole, Família Oquendo Yoshino, Carmen.
E, como não poderia deixar faltar, aos cães de minha vida.
“Entre os bichos a maternidade é coisa de útero, entre os humanos a coisa não é
assim . Os seres humanos são gerados nos olhos das mães”
(Rubem Alves – Os olhos da madrasta, p. 59)
Meu irmão Christian com nosso cachorro Toti - em retrato
pintado por minha bisavó, Lily Althausen, a partir de foto tirada
por meus pais.
Este quadro vivia em nossa sala nos meus anos de infância...
ALTHAUSEN, S. Adolescentes com síndrome de Down e Cães: compreensão e
possibilidades de intervenção. 2006. 170 f. Dissertação (mestrado) Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Estudos publicados a partir da década de 60 evidenciam o potencial terapêutico da
participação de animais de estimação em situações clínicas. Desde então, as
pesquisas e as práticas das denominadas Terapia Assistida por Animais (TAA) e
Atividade Assistida por Animais (AAA) estão em amplo crescimento. A presente
pesquisa analisa 12 registros filmados dos encontros realizados a partir da parceria
entre uma escola de educação especial e um canil. Os encontros aconteciam num
sítio, a freqüência era semanal e os horários eram fixos. Participaram quatro
adolescentes com síndrome de Down. A narrativa dos encontros entre esses
adolescentes e cães numa situação estabelecida tem por objetivo a elaboração de
uma reflexão teórica cujo propósito é considerar o uso de um enquadre diferenciado
que inclui a presença do cão como recurso. A lente sob a qual tais fenômenos são
analisados e compreendidos é a psicanálise de D. W. Winnicott. A investigação
psicológica dos encontros evidencia a necessidade de levar em consideração o
contexto humano oferecido pelos profissionais e as relações interpessoais
estabelecidas. Pode-se observar que a maneira de se relacionar com o animal
apresenta-se qualitativamente diferente das relações essencialmente humanas e
das com objetos inanimados. Destacando a complexidade dos fenômenos
observados entre as pessoas e os animais, percebeu-se que os cachorros
interagiam com as pessoas não a partir das intenções ou sentimentos destas, ou
ainda por meio de um discurso representativo: o cão reagia ao fato, ao
comportamento humano, a comunicação ocorria de forma não-verbal. Outra possível
função dos cachorros foi a de despertar diferentes aspectos do self, manifestados
pelos adolescentes em suas atitudes, ações e verbalizações, facilitando a expressão
de sentimentos. A análise também revela que a maneira de ser do cachorro
através de suas ações de atender ou não aos comandos, de se deixar manipular ou
não, de ser uma presença constante e segura, de ter uma inteireza e continuidade
de ser – sugere a emergência de maior espontaneidade por parte dos adolescentes.
Por fim, são tecidas reflexões teóricas que sustentam a possibilidade de uma clínica
winnicottiana com enquadre diferenciado que inclui o cachorro como recurso.
Palavras-chave: Atividade assistida por animais. Interação homem-animal.
Enquadres diferenciados. Síndrome de Down.
ALTHAUSEN, S. Adolescents with Down Syndrome and Dogs: understanding
and possibilities of intervention. 2006.170 f. Dissertation (Master) – Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Studies that have been published since the 1960s suggest the therapeutical potential
of the use of pets in clinical situations. The research on and the practice of the called
Animal Assisted Therapy (AAT) and Animal Assisted Activity (AAA) have become
more and more popular ever since. The present research analyses 12 filmed
meetings that aim at promoting such interaction between dogs and four adolescents
with Down Syndrome, carried out by a special education school and a kennel. These
weekly meetings took place in a small farm and had been previously scheduled,
always at the same time. The description of these meetings between the adolescents
and the dogs in an arranged situation aims at elaborating a theoretical reflection
which has the objective of taking into account the use of a differentiated setting that
involves the presence of the dog as a resource. The lens under which such
phenomena are analysed and understood is the W.D.Winnicott psychoanalysis. The
psychological investigation of the meetings explicits the need to take the human
context offered by the professionals and the interpersonal relationships that take
place into account. It is clear to notice that the way the adolescents relate to the
animals is qualitatively different from the way they do in exclusively human
relationships or even in their relationships with inanimate objects. It’s important to
highlight that, among other complex phenomena that we observe in the relationship
between people and animals, the communication between them is non-verbal: the
dogs react to the human behaviour and not to their intentions, feelings or discourse.
Also, the dogs have an important role in awakening different aspects of the self,
acted out by the adolescents in their attitudes and speech, which makes the
expression of their feelings easier. The analysis also shows that the dog’s
behaviour– whether or not responding to the commands of the adolescents,
permitting or not being handled by them, of being a constant and safe presence, as
well as its wholeness and continuity of being - suggests the emergence of more
room for the adolescents’ spontaneity. Finally, some reflections that support the
possibility of a winnicottian clinic with a differentiated setting that have the dog as a
resource are presented.
Key-words: Animal-assisted therapy; Human-animal interactions; Differentiated
settings; Down syndrome
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 11
1. APRESENTAÇÃO................................................................................................................. 11
2. OBJETIVO............................................................................................................................ 13
3. JUSTIFICATIVA / RELEVÂNCIA.......................................................................................... 13
1. PESSOAS E ANIMAIS ........................................................................................................ 16
1.1 E O HOMEM CONHECEU O CÃO.................................................................................... 16
1.2 O ANIMAL DE ESTIMAÇÃO EM CASA............................................................................. 18
1.3 INTERVENÇÕES COM USO DE ANIMAIS ....................................................................... 23
1.3.1 Equoterapia ............................................................................................................... 23
1.3.2 Intervenções com participação de animais de estimação ......................................... 24
1.3.3 Algumas nomenclaturas e definições atuais ............................................................ 34
2. DE ONDE PARTE O OLHAR .............................................................................................. 37
2.1 WINNICOTT E O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL..................................................... 38
2.2 DEFICIÊNCIA E SÍNDROME DE DOWN........................................................................... 44
2.3 A PSICANÁLISE E OS ANIMAIS....................................................................................... 49
3. METODOLOGIA DA PESQUISA E PROCEDIMENTOS .................................................... 58
3.1 ESCOLHAS METODOLÓGICAS........................................................................................ 58
3.2 CARACTERÍSTICAS DAS INSTITUIÇÕES........................................................................ 61
3.2.1 Histórico .................................................................................................................... 61
3.2.2 Parceria escola-canil ................................................................................................. 62
3.2.3 Ambiente físico ......................................................................................................... 63
3.3 OS ADOLESCENTES E OS ANIMAIS............................................................................... 64
3.3.1 Os sujeitos participantes ........................................................................................... 64
3.3.2 Animais participantes ................................................................................................ 65
4. NARRATIVA DOS ENCONTROS ....................................................................................... 67
Encontro 1 ................................................................................................................................ 67
Encontro 2 ................................................................................................................................ 73
Encontro 3 ................................................................................................................................ 80
Encontro 4 ................................................................................................................................ 83
Encontro 5 ................................................................................................................................ 88
Encontro 6 ................................................................................................................................ 92
Encontro 7 ................................................................................................................................ 99
Encontro 8 ................................................................................................................................ 103
Encontro 9 ................................................................................................................................ 108
Encontro 10 .............................................................................................................................. 113
Encontro 11 .............................................................................................................................. 119
Encontro 12 .............................................................................................................................. 123
5. ANÁLISE ............................................................................................................................. 129
5.1 FUNÇÕES DOS CACHORROS......................................................................................... 129
5.1.1 Comunicação não-verbal .......................................................................................... 130
5.1.2 Despertar aspectos do self (expressão de sentimentos) .......................................... 132
5.1.3 O ser si mesmo dos adolescentes e a presença viva do cachorro............................ 135
5.2 MANEJO DA SITUAÇÃO (PROVISÃO AMBIENTAL) ....................................................... 137
5.3 POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO............................................................................. 142
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 148
6.1 A RELAÇÃO ENTRE PESSOAS E ANIMAIS.................................................................... 148
6.2 ENQUADRES DIFERENCIADOS NA CLÍNICA WINNICOTTIANA O ANIMAL COMO
RECURSO ..............................................................................................................................
152
7. REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 158
8. ANEXOS ............................................................................................................................. 163
Anexo A – Termo de Consentimento ...................................................................................... 164
Anexo B – Declarações IAHAIO .............................................................................................. 167
11
INTRODUÇÃO
1. APRESENTAÇÃO
Os animais sempre fizeram parte da vida do homem, seja na caça, pesca, tração,
locomoção, bem como guarda e companhia. Ao longo da história do Homem, houve
domesticação de algumas espécies animais, o que transformou tanto a espécie
domesticada quanto os hábitos e o estilo de vida das pessoas. Desse modo, a
vinculação humana com os animais de estimação tais como cães e gatos
acrescentou um novo tipo de relação que tem complexidade e características
próprias. Povos de diferentes culturas mantêm vínculos afetivos com essas
espécies, sugerindo um denominador comum nessa relação.
Diz Freud
uma grande semelhança entre as relações das crianças e dos homens primitivos
com os animais. As crianças não demonstram sinais da arrogância que faz com que os
homens civilizados adultos tracem uma linha rígida entre a sua própria natureza e a de
todos os outros animais. As crianças não têm escrúpulos em permitir que os animais se
classifiquem como seus plenos iguais (1996, p.132).
Considero essa formulação ilustrativa de alguns fenômenos que podem ser
facilmente observados: a reação de crianças diante dos animais, em que geralmente
grande interesse, curiosidade e busca de contato; pais que adquirem animais de
estimação em decorrência do pedido dos filhos.
Os animais também estão muito freqüentemente presentes nas representações das
histórias infantis, nos contos de fadas, nas fábulas, no folclore, nos gibis, nos
desenhos animados e nos filmes. Também os adultos parecem encontrar sentido no
contato com animais, caso contrário não os alimentariam, abrigariam e cuidariam
deles. Penso que os animais de estimação encontram-se mais presentes na vida
das pessoas do que podemos supor num primeiro momento.
A presente pesquisa tem como ponto de partida o interesse pelo estudo da
vinculação afetiva entre pessoas e animais. Tal questão foi construída ao longo de
minha formação como psicóloga, a partir do interesse pelo estudo de três diferentes
12
áreas de conhecimento: a Etologia, a Psicanálise e a Deficiência. A Etologia como
forma de ampliar o conhecimento pelo comportamento dos animais, em especial o
cão: seu processo de domesticação e características de vinculação; a Psicanálise
fornecendo elementos fundamentais para a compreensão do ser humano em seu
processo de desenvolvimento emocional; a Deficiência como uma maneira de ser e
estar no mundo, a partir de uma condição diferenciada com a qual o indivíduo
organiza sua vida.
Ainda na graduação fiz contatos com grupos e instituições que realizavam diferentes
atividades com pessoas a partir do contato com cachorros. Conheci iniciativas
variadas: algumas tinham como público idosos asilados; outras, crianças em
hospital; outras ainda, atuavam com crianças com deficiência. Conhecendo esses
trabalhos, tive maior interesse nas interações entre crianças com deficiência e
cachorros adestrados. Em meu primeiro contato presenciei uma atividade recreativa
livre, na qual os alunos de uma escola de educação especial visitavam um canil com
cães treinados. Descrevo a seguir a cena que desencadeou os questionamentos
iniciais desta pesquisa:
Uma adolescente estava num campo gramado, junto com seus colegas de classe,
ficava retraída, olhando para o chão, não interagia com ninguém e quando falava,
dizia sempre a mesma frase. Esse cenário mudou quando um cão se aproximou, ela
logo se animou e perguntou ao animal “Vamos passear?”, pegando a guia e
começou a andar, falar espontaneamente com o cão, estabelecendo contato visual
com ele e com os adultos ali presentes.
As questões são formuladas:
1) O que aconteceu entre essa garota e o cão que não ocorreu entre ela e as
pessoas que ali estavam presentes?
2) Quais mecanismos psicológicos foram despertados possibilitando que a
garota saísse de seu retraimento e buscasse contato com o mundo, através
do cão?
13
3) Que uso dessa relação pode o psicólogo fazer com o objetivo de promover o
desenvolvimento emocional?
No então ano de 2002, contando com o apoio e orientação da Prof
a
. Dr
a
. Leila Cury
Tardivo, e com a disponibilidade da equipe do canil e de uma escola de educação
especial, tive a oportunidade de observar e registrar, através de filmagens,
encontros entre alunos com síndrome de Down e cães. Essa experiência compõe o
corpo do presente trabalho.
No ano de 2003, ingressei como aluna de mestrado sob orientação da Prof
a
. Dr
a
.
Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian, a fim de levar adiante a investigação científica
da relação entre adolescentes com ndrome de Down e cães, numa proposta de
intervenção.
2. OBJETIVO
A narrativa de encontros entre adolescentes com síndrome de Down e cães numa
situação estabelecida tem como objetivo a elaboração de uma reflexão teórica cujo
propósito é considerar o uso de um enquadre diferenciado que inclui a presença do
cão como recurso. A lente sob a qual tais fenômenos são analisados e
compreendidos é a psicanálise de D. W. Winnicott ferramenta valiosa para o
entendimento do desenvolvimento emocional humano rumo ao amadurecimento,
considerando as interações entre o indivíduo e o ambiente que o sustenta.
3. JUSTIFICATIVA/RELEVÂNCIA
As novas modalidades de intervenção com uso de animais abrem, para os
profissionais de saúde e educação, novas perspectivas em termos de recursos
auxiliares. Nas últimas décadas é crescente o interesse científico pelo estudo da
relação homem-animal. Consultando a literatura especializada, percebe-se que
grande parte das pesquisas busca comprovar a eficácia das intervenções assistidas
por animais, atribuindo valor terapêutico a estas espécies, pouco considerando o
contexto humano no qual tais intervenções aconteceram, de maneira que, tem-se a
impressão de que é o animal o agente da intervenção. Diferentemente, a presente
14
pesquisa ,justifica-se pela necessidade de um olhar que considere o
desenvolvimento emocional humano e o papel da interação entre indivíduo e
ambiente na constituição do ser para, então, refletir sobre a função do cachorro
dentro da situação de intervenção.
Espero, dessa forma, contribuir para o conhecimento científico desse vasto tema,
trazendo reflexões que enriqueçam a discussão sobre os aspectos psicológicos da
relação homem-animal num contexto interventivo, buscando espaços diferenciados
no trabalho com indivíduos que apresentam alguma condição de deficiência.
Para compreender a relação entre pessoas e animais, particularmente o cachorro,
considerei necessário um retorno às origens desta mesma relação: a evolução da
espécie canina e as características que facilitam nosso contato próximo com estes
animais. Ainda no Capítulo 1, foi feito um exame sobre os significados e funções dos
animais de estimação na vida das pessoas a partir da literatura especializada, para,
então, tomarmos contato com os estudos e trabalhos pioneiros sobre a participação
de animais em diferentes tipos de intervenções com pessoas. Em virtude da riqueza
do material apresentado, busquei trazer na íntegra alguns estudos de caso, o que
nos ajuda a tomar contato com esse tipo de intervenção e seus desdobramentos.
Não pude deixar de considerar o panorama atual, tanto em âmbito internacional
quanto em nosso país, no que se refere às práticas das intervenções com uso de
animais e as definições mais recentes.
Tendo por base a compreensão dos estudos sobre as interações homem-animal, o
Capítulo 2 tem por objetivo fornecer subsídios teóricos norteadores de uma
investigação clínica psicanaliticamente orientada. Tendo em vista as diferentes
abordagens sobre o tema, a concepção psicanalítica winnicottiana vem fornecer um
novo olhar sobre as relações entre pessoas e animais e suas possibilidades de
intervenção. Portanto, esse capítulo traz elementos fundamentais acerca do
desenvolvimento emocional humano, bem como considerações sobre a condição de
deficiência e suas vicissitudes, para depois realizar uma aproximação entre a
psicanálise e os animais a partir de um estudo de caso apresentado por uma
15
psicanalista brasileira, quando tecerei algumas reflexões reunindo as contribuições
de outros autores.
O Capítulo 3 descreve o presente estudo, as escolhas metodológicas pelo uso de
filmagens, a feitura de narrativas e o procedimento de análise psicanaliticamente
orientado. Também são apresentadas as características das instituições a escola
especializada e o canil –, seu histórico e a parceria firmada entre elas. O espaço
físico, a escolha dos adolescentes e suas características e as condições dos cães
envolvidos também são aqui descritos.
As narrativas de cada um dos 12 encontros entre os adolescentes com síndrome de
Down e os cães, na situação de intervenção sustentada pela equipe profissional, são
elaboradas no Capítulo 4. Diante da riqueza do material ali encontrado, criei
narrativas longas na tentativa de captar aspectos significativos da vivência dessas
pessoas entre si e com os animais presentes. Posteriormente a cada encontro, são
tecidas as apreciações dos elementos considerados significativos.
Após a feitura das narrativas e das apreciações referentes a cada uma, o Capítulo 5,
Análise, propõe-se a integrar a investigação psicológica dos diferentes aspectos
vivenciados nos encontros, a fim de alcançar maior compreensão acerca da
influência da participação dos cães nos encontros com os adolescentes e, por fim,
refletir a respeito de possibilidades de intervenção.
No Capítulo 6 são desenvolvidas as Considerações Finais no sentido de reflexões
teóricas que permitem alcançar alguma compreensão das relações sobre pessoas e
animais e das possibilidades de uso de enquadres diferenciados na clínica
winnicottiana que inclui o cachorro como recurso. Trazendo, assim, algumas
questões que podem vir a contribuir para o entendimento deste vasto campo de
pesquisa bem como, espero, suscitar novos questionamentos e desdobramentos.
16
CAPÍTULO 1:
PESSOAS E ANIMAIS
1.1 E O HOMEM CONHECEU O CÃO
O registro histórico mais antigo até hoje encontrado sobre essa relação é a
descoberta de um túmulo em Israel datado de 12 mil anos atrás: encontrou-se o
corpo de uma mulher idosa enterrada com sua mão segurando um filhote de
cachorro (Davis e Valla, 1978, apud Lantzman, 2004).
Seres humanos e cães têm convivido desde a pré-história. Os cães, animais com
comportamentos extremamente plásticos, foram se adaptando aos agrupamentos
humanos e assim surgindo vantagens para as duas espécies. Considera-se que o
ancestral do cão, Canis familiaris, é o lobo, Canis lupus (Lantzman, 2004).
Dessa forma, a proximidade de homens e lobos supostamente trazia vantagens, tais
como proteção, defesa de território e ajuda na caça. Cluton-Brock (1997, apud
Lantzman, 2004) considera que pessoas capturavam filhotes de lobos como
brinquedos para crianças. Quando o animal crescia e se tornava menos submisso e
mais agressivo, era morto; porém, caso ficasse mais manso e submisso, permanecia
com o agrupamento humano, cruzando com outros lobos mansos. Assim, a
evolução do cachorro estaria associada à co-evolução com o ser humano. Lantzman
(2004), fazendo uso das contribuições de Brantingham (1998), define co- evolução
como
O resultado das pressões recíprocas e seletivas que agem para tornar a evolução de
uma classe de animais parcialmente dependente da evolução da outra. Este processo,
geralmente, envolve a exploração de múltiplas espécies por recursos comuns limitados.
(p.12)
No processo de domesticação do cão, as diferenças físicas e comportamentais, em
relação ao lobo, acentuaram-se :
diminuição no nível de sensibilidade a estímulos desencadeadores de comportamento
agressivo, aumento da docilidade, redução do medo em relação ao homem, aumento
da capacidade de formação de nculos, aumento da capacidade de se ajustar às
17
condições ambientais e sociais, e manutenção de padrões de comportamento infantil na
vida adulta, esta última característica, denominada neotenia (Bradshaw e Brown, 1990,
apud Lantzman, 2004, p.13)
Dentre as características da espécie canina que facilitam a formação de vínculo com
o ser humano destacam-se duas: 1) suas habilidades sociais e 2) de comunicação.
1) Habilidades sociais do cachorro:
Concordo com Lantzman (2004) quando afirma que “o vínculo entre homens e cães
foi possível graças à semelhança na forma como estas espécies se estruturam e
se organizam socialmente” (p. 30). O cão, ao relacionar-se com as pessoas, mantém
um padrão de comportamento social típico dos canídeos a formação de grupos: a
matilha com estrutura e organização hierárquica variável, juntamente com a alta
flexibilidade adaptativa (Macdonald e Carr, 1997, apud Lantzman, 2004). Ambas as
espécies se desenvolvem na interação com demais componentes de seu ambiente
social. O cão, ao crescer no meio de humanos, faz desse grupo sua matilha.
2) Habilidades comunicativas do cão:
O cão apresenta inúmeros recursos para se comunicar, nem todos acessíveis para
as pessoas. Estas fazem uso da comunicação verbal e não-verbal, os cães usam
somente a comunicação não-verbal (Lantzman, 2004).
Os cães são especialistas em comunicação não-verbal. Eles ficam atentos a cada um
dos pequenos e perceptíveis movimentos. Se quisermos entendê-los e nos tornarmos
compreendidos, temos que nos tornar perspicazes observadores de seu
comportamento (Abrantes, 1997, p. 75, apud Lantzman, 2004).
A considerar o papel do cão na sociedade contemporânea, Lantzman (2004)
ressalta que, com as grandes transformações ocorridas nos últimos cinqüenta anos,
o cão adquiriu importante papel, sendo foco de fortes vínculos afetivos. O autor
diferencia a presença desse animal no campo onde fica mais livre e distante do
convívio familiar e na vida urbana, caracterizada pela concentração na ocupação
dos espaços. Com isso, houve uma diminuição dos espaços de moradia e um
rearranjo na dinâmica e organização familiar. “Como conseqüência, o cão está cada
18
vez mais próximo de sua família humana, tanto física, como emocionalmente”
(Lantzman, 2004, p.9).
Veremos, então, qual o entendimento que alguns autores têm atribuído ao papel do
cachorro – e de outros animais de estimação - nas relações afetivas humanas.
1.2 O ANIMAL DE ESTIMAÇÃO EM CASA
Alguns pesquisadores consideram que a posse de animais, como cão ou gato, tem
efeitos benéficos e positivos tanto na saúde física quanto psicológica do dono.
Friedmann (1980, apud Friedmann, 1995) aponta maior sobrevida de pessoas com
problemas cardíacos possuidores de animais em relação aos não possuidores,
indicando que esta relação potencialmente favorece a saúde sica de seus donos.
Serpell (1990) argumenta que a posse de cães aumenta a auto-estima e estimula a
realização de exercícios físicos. No entanto, os custos de ter animais devem ser
considerados. Além dos recursos econômicos dispensados ao animal, Collis e
McNicholas (2001) evidenciam as restrições quanto a viagens prolongadas e
ausências curtas, além de objetos mordidos e jardins cavoucados.
Fuchs , (1987) em seu trabalho O Animal em Casa: um estudo no sentido de des-
velar o significado psicológico do animal de estimação, realizou entrevistas com
donos e não-donos de animais, com o objetivo de apreender o significado
psicológico atribuído ao animal de estimação no cotidiano dessas pessoas. Partiu de
sua formação como médica veterinária e de sua experiência clínica no contato com
animais de estimação e seus donos, levantando os seguintes questionamentos: “Por
que se tem posse de um animal? Como se essa posse? Vêem-se benefícios?
Como se coloca o indivíduo diante do animal com o qual convive? Como ele o
animal? Que papel desempenha o animal em seu dia a dia?” (p.29 e 30) A
abordagem adotada em seu trabalho foi a análise fenomenológica de entrevistas
semidirigidas.
19
A autora faz uma distinção entre o animal real e o animal como entidade no mundo
vivido pelo seu dono, pois percebe que o significado atribuído ao animal depende de
características individuais das pessoas em interação, encarando “os animais sob
pontos de vista básicos” (Ibid., p. 151). Formula três atitudes / interesses diferentes
de se relacionar: o interesse prático do homem rural, o interesse zoológico do
homem silvestre, e o interesse afetivo e psicológico do homem urbano. A partir
dessas três atitudes , Fuchs delineou três ordens distintas, a saber:
1) a Ordem dos Animais Utilitários “Nesta ordem situam-se todos os exemplos de
animais utilizados para consumo ou para serviço. É o porco abatido, são as galinhas
criadas para os ovos ou produção de corte, o cão de guarda que vai prestar serviço
no sítio, as abelhas, o gato etc”. (p. 150 e 151)
2) a Ordem dos Animais Silvestres “Enquadram-se aqui os animais olhados pelo
prazer de olhar, pelo fascínio que exercem. Vale a pena frisar que este olhar não
significa necessariamente fazer pesquisa, pode ser o olhar apenas pelo olhar”.
(p.151)
3) a Ordem dos Animais Psíquicos “São animais únicos, criações de vivência de
cada um, depositários de atributos e projeções de seu dono” (p. 151)
Essas contribuições da autora fornecem subsídios para a compreensão acerca da
complexidade de relações existentes entre pessoas e animais. Em suas
considerações finais, a autora percebe algumas características da dinâmica do
animal na família. O início do convívio com o animal pode surgir de um desejo de
posse explícito ou de situações de “inércia” (Ibid., p.163), na qual a aceitação foi
passiva; também observa que algum membro da família assume uma postura
dominante no sentido de poder decidir sobre o destino do animal, sendo que nem
sempre a pessoa que assume cuidar do animal é a que tem maior apego com ele.
Sempre a possibilidade de desfazer o laço com o animal, gerando sofrimento
para o membro que o levou para casa. Fuchs afirma que o animal de estimação
20
ocupa a posição de criança na família, ficando num lugar de dependência, podendo
assumir as funções de filho.
Em sua compreensão percebe que “O animal vivido é diferente para cada um dos
sujeitos, depende das necessidades psicológicas de cada um” (Ibid., p. 164), assim
o animal pode se tornar companheiro, amigo, tornando-se único, mas também pode
ser vivido como algo ameaçador, associado a eventos traumáticos reais ou
imaginários.
Observa também que a perda do animal, por morte, desaparecimento ou abandono,
suscita todo um processo de luto semelhante à perda de uma pessoa, com o
diferencial de uma certa inibição social em manifestar a dor da perda. Finaliza
defendendo que “Desde o momento de sua chegada até o final de sua vida o animal
depende para sua sobrevivência do ser humano” (Ibid., p.165)
Outra pesquisa, que também busca apreender com sensibilidade o movimento
emocional entre pessoas e seus animais, foi desenvolvida pela assistente social
Berzins (2000), diante da complexa demanda existente na situação de pessoas
idosas possuidoras de grande número de animais e denunciadas ao Centro de
Controle de Zoonoses da cidade de São Paulo. O título de sua pesquisa é Velhos,
Cães e Gatos: interpretação de uma relação. Sua proposição destinou-se a
conhecer as interpretações que essa população singular atribuía à relação por eles
estabelecida com um número superior a dez animais (cães e/ou gatos), presentes
em suas casas e vidas. Para tanto, realizou entrevistas abertas, buscando os
significados dados aos animais através das memórias e lembranças dos velhos, com
análise de interpretação livre dos depoimentos.
A autora afirma, sobre a população pesquisada que “Este grupo de idosos se
compõe na sua maioria de mulheres solteiras ou viúvas. Elas o tiveram filhos.
Residem sozinhas em casa própria ou cedida por terceiros. Constata-se a ausência
de vínculos afetivos de família e, muitas vezes, faltam até mesmo esses familiares.
21
ainda, na condição delas, fatos como o de elas não se relacionarem com os
vizinhos e seus imóveis se encontrarem em péssimo estado de conservação,
higiene e limpeza” (Ibid., p.19). Assim, essas pessoas o velhos diferenciados, por
sua idade, aparência física, pelas ssimas condições de moradia e higiene, pelo
odor desagradável das casas, pelo isolamento social e pelo grande número de
animais que possuem (Berzins, 2000).
Nas considerações tecidas tendo como base os depoimentos dessa população
específica, Berzins esclarece
Chamo atenção para a intensidade da relação e quando ela passa a ser única,
excluindo o contato com outros seres humanos. Isso que a torna prejudicial. Nas
trajetórias de vida dos nossos depoentes percebemos que a substituição do ser humano
pelo animal foi se dando em momentos diferentes de suas vidas, principalmente
naqueles em que as perdas foram maiores ou quando eles não receberam ou deram o
afeto que esperavam dos parentes e amigos. Desejo ainda chamar a atenção que o
respeito, afeto e o cuidado com os animais não pode eliminar a necessidade de atenção
para com um outro ser humano, pelo contrário, aprimoram e completam a capacidade
de nos relacionarmos com nossos semelhantes. Quando se inverte este conceitoum
prejuízo grande para os lados envolvidos, inclusive para os próprios animais quando
não são atendidas suas necessidades básicas (p.147).
Essa leitura das relações entre pessoas e animais revela a importância de um olhar
atento à maneira como o animal é vivenciado por cada indivíduo, podendo ser uma
fonte de enriquecimento pessoal, bem como uma forma de estar isolado sem estar
só.
uma área de estudos sobre o papel dos animais na vida das pessoas que
considera o efeito socializador dos animais, ou seja, a influência de sua presença na
relação entre dois ou mais seres humanos.
Destaco a pesquisa de McNicholas e Collis (2000), na qual os autores investigaram
o efeito de catalisador social que o cão fornece a quem o conduz, por meio de
observações e registros das trocas sociais quando o experimentador caminhava em
áreas públicas com cão treinado para não solicitar atenção dos transeuntes. Os
autores concluíram que a presença do cão modifica e minimiza possíveis inibições
22
entre pessoas estranhas de sexo oposto, atuando como um poderoso catalisador
social. O aumento das interações ocorreu em contato breves, embora tenham
surgido contatos mais prolongados e que continuaram em outros dias mesmo sem a
presença do cão.
Uma óptica sob a qual podemos tentar compreender o papel social que um animal
pode exercer para as pessoas encontra-se nos estudos realizados acerca da função
de cães de serviço. Estes são definidos como animais que, após criterioso
treinamento e seleção, são pareados com pessoas que apresentam algum tipo de
deficiência ou alteração orgânica: pessoas cegas, surdas, epilépticas. O papel do
animal é auxiliar seu dono a desempenhar as funções afetadas pelo prejuízo
orgânico.
Algumas pesquisas sobre os possíveis benefícios do uso de cães de serviço foram
realizadas. Miner, (2001) ao entrevistar oito pessoas cegas possuidoras de cães
guias, apontou que elas relatavam um aumento na confiança em si mesmas e
também uma maior independência, revelando aumento tanto no contato público
quanto em trocas de interação com outras pessoas. Algumas delas relataram
mudanças com amigos e família. Outra pesquisa foi a realizada por Steffens e
Bergler (1998), na qual oitenta cegos (quarenta com cães guias e quarenta que não
usavam cães guias) foram entrevistados. Seus achados indicam que o suporte
social fornecido pelo cão auxilia a pessoa cega a lidar com fatores estressantes
ligados à cegueira, tais como, dependência dos outros, problemas sociais e
problemas de comunicação.
Hart et al (1995) conduziram pesquisa com pessoas surdas que usavam cães
ouvintes (cães treinados para auxiliar o surdo, alertando para alarmes sonoros e
presença de estranhos) para investigar os prazeres e problemas decorrentes dessa
escolha. Entre os prazeres estão a companhia e a assistência que o cão fornece,
além de sensações de melhorias físicas e emocionais. Dentre os problemas estão
alguns comportamentos caninos indesejados, como latidos, destruições de objetos,
tentar agredir estranhos.
23
Um dos fatores considerados como maiores contribuintes do sucesso entre dono e
cão de serviço é o comportamento cooperativo. Considera-se que esse é um traço
inerente ao cão e que o acompanhou durante toda sua evolução em parceria com o
homem. No caso de cães de serviço, a cooperação surge não por parte do cão
mas também de seu dono (Naderi et al., 2001).
1.3 INTERVENÇÕES COM USO DE ANIMAIS
“Freud e uma sucessão de chow-chows, especialmente Jo-fi, foram inseparáveis
(...) o cão ficava em silêncio ao pé do divã durante a hora de análise”
(Gay, 1989, p.490).
Após tomarmos contato com estudos sobre a evolução da relação entre pessoas e
animais, e do papel destes no cotidiano humano, considero fundamental a
compreensão do percurso histórico da participação dos animais em intervenções
com pessoas.
1.3.1 Equoterapia
A equoterapia é “um método terapêutico e educacional que utiliza o cavalo dentro de
uma abordagem interdisciplinar nas áreas de saúde, educação e equitação,
buscando o desenvolvimento biopsicossocial de pessoas portadoras de deficiência
e/ou com necessidades especiais”. Esta é a definição adotada em 1999 pela ANDE-
BRASIL Associação Nacional de Equoterapia, entidade que regulamenta a prática
da equoterapia em nosso país (Ávila, 2001). Os estudiosos do assunto atribuem a
Hipócrates, em 377 a.C., a primeira citação sobre o potencial terapêutico e
educacional do uso do cavalo.
O praticante (como é chamado o paciente nesse tipo de intervenção), após período
de aproximação com o animal, passa grande parte da sessão montado em seu
dorso. Devido ao passo do cavalo – que se assemelha ao andar humano – a pessoa
que monta realiza movimento tridimensional (para cima, para baixo; para os lados; e
24
para frente e para trás), estimulando que novos ajustes motores sejam realizados.
Além disso, os profissionais da área consideram que a interação com o cavalo
desenvolve um contato diferenciado com o mundo que o cerca, contribuindo para o
desenvolvimento e aprimoramento de suas potencialidades. Tanto essas melhoras
são valorizadas que, em 1997, o Conselho Federal de Medicina reconheceu a
equoterapia como método terapêutico (Ávila, 2001).
Outra característica da equoterapia é sua estruturação técnica e profissional
O instrutor de equitação, por ser quem mais entende do cavalo, é peça chave do
trabalho. Juntam-se a ele profissionais das áreas de saúde e educação, tais como
fisioterapeuta, psicólogo, terapeuta ocupacional, pedagogo, médico, educador físico,
fonoaudiólogo, dentre outros profissionais. É isto que o caráter interdisciplinar ao
trabalho, apontado pela ANDE-BRASIL. Uma equipe formada com alguns ou todos
estes profissionais é capaz de ter uma visão mais global do praticante e, assim, vê-lo
como um todo e assisti-lo globalmente (Ávila, 2001, p.3)
Por ser a equoterapia uma intervenção com estruturação e características próprias,
considerarei um campo de investigação e atuação à parte ao abordado nesta
pesquisa – cujo foco é o contato com animais de estimação: o cachorro.
1.3.2 Intervenções com participação de animais de estimação
O primeiro relato da participação de animais em intervenção terapêutica na
sociedade ocidental contemporânea remonta ao final do século XVIII, na Inglaterra.
O Retiro de York instituição psiquiátrica que empregava métodos de tratamento
considerados mais humanos para a época mantinha diversos animais em seus
pátios e jardins freqüentados por pacientes (Serpell, 2000). Sobre esse fenômeno
sabe-se que o local continha:
um certo número de animais; tais como coelhos, gaivotas, falcões e aves domésticas.
Essas criaturas eram geralmente muito familiares aos pacientes: e acredita-se que eles
não apenas significavam um prazer inocente, mas que no intercâmbio com eles,
algumas vezes tendia a despertar sentimentos sociais e benevolentes (Tuke, 1813 apud
Serpell, 2000, p.12, tradução nossa)
Serpell (2000) acrescenta que no século XIX houve um grande crescimento da
participação de animais nas instituições mentais da Inglaterra e demais países.
25
Quando os primeiros artigos científicos começaram a ser publicados, tal prática
não era tão rara. É assim que, em 1944, James Bossard publica um artigo sobre o
papel dos animais domésticos na família, em especial para as crianças pequenas
(Fine, 2000).
A partir da década de 60 o psicólogo norte-americano Boris M. Levinson publica uma
série de artigos sobre as possibilidades de intervenções terapêuticas com uso de
animais. Apresentando situações clínicas nas quais considerou a presença do
animal fundamental no processo terapêutico.
Em seu primeiro artigo, “O cão como ´co-terapeuta´” (1962), relata a primeira
experiência psicoterapêutica com uso de animal:
Faz apenas oito anos desde que um garoto, tratado sem sucesso durante longo
período de tempo, foi trazido a mim por pais desesperados. Por causa de sua
criança apresentar aumentado grau de comprometimento, a hospitalização havia
sido recomendada. Hesitei em aceitar o caso mas aceitei fazer a entrevista
diagnóstica. Com sorte, os pais distraídos chegaram uma hora antes do horário
agendado. Eu estava ocupado escrevendo e meu cão estava deitado no chão se
lambendo. Recebi a família sem demora, esquecendo o cão, que correu até o
garoto para lambê-lo.
Para minha surpresa, a criança não demonstrou medo, ao contrário, envolveu o
cão e começou a acariciá-lo. Os pais queriam separá-los, mas assinalei que
deixassem a criança. Após um tempo a criança perguntou se o cão sempre
brincava com as crianças que vinham ao meu consultório. Tranqüilizada diante
de minha resposta afirmativa a criança manifestou o desejo de voltar e brincar
com o cão. Alguém poderá adivinhar o que teria acontecido com a reação da
criança se o cão não estivesse presente naquela manhã?
Por muitas sessões seguintes esta criança, aparentemente inconsciente de
minha presença, brincava com o cão. Gradualmente, como um pouco da atenção
eliciada pelo cão espalhou para mim, eu fui incluso na brincadeira. Fomos,
lentamente, estabelecendo um bom relacionamento de trabalho e a eventual
reabilitação deste jovem garoto (Levinson, 1962, p. 60, tradução nossa)
Essa experiência de Levinson pareceu tê-lo conduzido a uma releitura de sua prática
profissional, em que modificou sua técnica permitindo maior liberdade de expressão
ao paciente.
26
Para esse autor, a importância dos animais de estimação é psicológica ao invés de
prática, assim, no contato entre crianças e animais, um cachorro leal poderia
satisfazer a necessidade do dono por lealdade, confiança e obediência, tal como
submissão. Dessa forma, Levinson considera que quando o ambiente falha em
fornecer condições suficientes para o desenvolvimento da criança, a presença do
animal poderia suprir tais necessidades emocionais. Essa idéia é explicitada na
seguinte citação: “É da opinião deste autor que o maior entendimento das
necessidades da criança por aconchego, amor e afeição, seja por animais ou seres
humanos, levará a uma recuperação mais rápida em muitas crianças” (Ibid., 1962, p.
61, tradução nossa).
Desenvolveu, então, algumas idéias acerca da situação clínica (Ibid., 1962):
pensa que, quando uma criança é trazida ao consultório do psicólogo, sua
auto-avaliação é modificada, sentindo-se diferente dos outros, atípica. A
presença do animal na primeira consulta facilitaria a formação do vínculo
com o terapeuta, pois o animal não seria associado com atitudes críticas e
julgamentos;
haveria uma experiência enriquecedora de aceitação mútua entre criança e
cachorro, em que o paciente poderia se identificar com o animal e perceber
que aquele, mesmo transgredindo regras pois urina, defeca, tem relação
sexual em público - ainda assim é aceito e amado;
nas situações em que criança tem medo de contatos humanos porque foi
grandemente magoada, o animal poderia ser útil uma vez que não esteja
associado à situação traumática. A criança permitiria ao cão aproximar-se,
acariciando-o e contando-lhe sobre suas dificuldades. O cão não se
apresentaria como uma ameaça e poderia satisfazer a necessidade de
contato físico;
27
percebe que crianças podem atribuir diferentes papéis aos cães: companhia,
amigo, servo, admirador, confidente, brinquedo, parceiro, escravo, bode-
expiatório, espelho, defensor;
ao fazer uma correlação entre o animal e o inconsciente, o autor pensa que,
quando resistência dos pais da criança ao contato com o cão, isto
indicaria que o animal desperta ansiedades escondidas e desejos
inconscientes, os quais seriam sentidos como ameaçadores;
De acordo com Levinson, a relação da criança com o animal permitiria identificação
num nível intermediário, diferentemente da relação entre duas pessoas e daquela
com objetos inanimados. Nessa perspectiva, a criança sentiria intuitivamente que
brinquedos não podem dividir sentimentos e ser verdadeiramente amados pois não
são vivos, não digerem, não crescem e nem respondem. Afirma que “diferentemente
de sua reação com a boneca, a criança pode conceber o animal como sendo parte
dela mesma, parte de sua família que passa pelas mesmas experiências que ela”
(Id., 1964, p. 224, tradução nossa). Portanto, a relação entre criança e animal teria a
vantagem de proporcionar à criança a oportunidade de se expressar livremente e
regredir sem medo de perder o objeto amado nem vivenciar culpa, pois o animal não
seria sentido como ameaçador.
O mesmo autor define duas maneiras formas de intervenção com participação de
animais de estimação (Id., 1964):
1. como aliados psicoterapêuticos, sendo “agentes catalisadores” na
psicoterapia em consultório e;
2. colocados em lares de crianças “emocionalmente perturbadas” para
restabelecer comunicação saudável entre os membros da família.
Na primeira situação, a maneira pela qual o paciente se aproxima do cão e com ele
interage teria função diagnóstica e de comunicação, ao mesmo tempo em que
supriria necessidades afetivas básicas. Esse processo, no entender do autor, é
composto por três etapas: na primeira a criança se aproxima do o acariciando-o,
28
desenvolvendo uma brincadeira imaginária à qual o cão se submete, excluindo o
terapeuta da relação; no segundo estágio a criança designa papéis ao cão e inclui o
terapeuta de forma periférica; e na terceira etapa não é mais necessário o uso do
cão no processo terapêutico.
A introdução do animal na família da criança, segundo o autor, poderia trazer
benefícios ao alterar a dinâmica familiar, possibilitando uma reorganização e a
oportunidade de que a criança se sinta aceita e amada da mesma forma que o
animal, aprendendo que, assim como seus pais, ela passa por inconveniências -
sapatos mastigados, móveis mordidos - em consideração ao objeto amado.
Aprenderia que pode dividir o objeto amado sem perdê-lo. O animal poderia servir
como “pára-raio”, diminuindo a pressão dos pais sobre a criança. Levinson considera
que a introdução de um animal de estimação em famílias com crianças pode
enriquecer as relações e facilitar a promoção da saúde mental (Id., 1964).
O autor (1970) pensa que a sociedade enfrenta uma crise urbana na qual perda
do contato com a natureza e também com aspectos afetivos das relações humanas,
em particular nas famílias. Pensa que os animais podem diminuir o que chama de
alienação, substituindo a privação de afeto nas relações humanas consideradas
conflituosas - pelo contato com animais.
Ao tomar contato com os textos de Levinson, somos tomados pelo entusiasmo de
seu pioneirismo e de suas contribuições. Uma vez que se propõe a refletir sobre o
papel do animal na vida e na psicoterapia de crianças, evidenciando a maneira pela
qual o enquadre da psicoterapia com crianças poderia abarcar a participação do
cachorro. Todavia, penso que considerar a inserção do cão nos lares de crianças
emocionalmente perturbadas como um fator promotor de melhora pode representar
um desvio do lugar do psicólogo e também uma tentativa de substituição das
relações humanas pelas com animais.
A série de estudos de Samuel e Elizabeth Corson (1980, apud Bergler, 1988) com
uso de cães na psicoterapia em instituições psiquiátricas coloca importantes
questões. Para um total de cinqüenta pacientes altamente introvertidos, relutantes
em estabelecer contato com pessoas, em alguns casos completamente isolados, e
29
que não respondiam ao tratamento convencional, foram introduzidos cães para
interação. Apenas três casos não evoluíram, os demais quarenta e sete pacientes
gradualmente foram desenvolvendo maior sentimento de auto-estima, desejo por
independência e senso de responsabilidade. De acordo com os pesquisadores,
estes sentimentos ficavam mais fortes conforme eles assumiam responsabilidades e
cuidados pelos cães (Bergler, 1988). A apresentação da situação do adolescente
Sonny ilustra essa vinculação com o cachorro:
Sonny era um paciente de 19 anos de idade que sofria de depressão psicótica e
passava a maior parte do tempo na cama. A equipe da clínica tentou fazê-lo interessar-
se por varias atividades, mas sem sucesso. Nada mantinha nenhum interesse para ele.
Ele se recusava em participar da terapia ocupacional, nem em tomar parte na terapia de
relaxamento ou sessões de terapia em grupo. Na terapia individual permanecia retraído
e não mostrava nenhuma inclinação em se comunicar com os outros, enquanto a
terapia comportamental também falhou em produzir algum resultado positivo. Também
se tentou uso de medicamentos, mas sua condição não mostrou melhora. Por isso foi
feita preparação para sessões de TCE (terapia de eletrochoque). Mas antes disto foi
decidido tentar usar um cão no papel de co-terapeuta.
O paciente deitado na cama com sua costumeira pose rígida, como múmia. O psiquiatra
sentado ao seu lado e falando com ele. Se a questão do psiquiatra era sobre outras
pessoas ou o próprio Sonny, sua reação era invariavelmente muito lenta. Mas assim
que as perguntas mudaram para o assunto cães (“Você gosta de cachorros?”) ou
animais em geral, ele respondeu muito mais rapidamente. Além disso, as respostas de
Sonny eram invariavelmente muito lentas, usualmente nada mais do que “sim”, “não” ou
“eu não sei”. Ele não estava preparado para explicar ou elaborar ou fazer perguntas na
sua vez. Mas quando o psiquiatra trouxe um fox terrier de pêlo duro para a cabeceira da
cama de Sonny, ele sentou com total espontaneidade e teve um óbvio encanto no
comportamento amigável do cão. Ele imediatamente ficou absorto no cachorro,
afagando-o e falando com ele. Muito logo o paciente estava perguntando “Como posso
manter o cão aqui por perto?” Assim que disse isso o cão saiu correndo para o hall.
Sonny prontamente correu atrás do cão o que foi uma total quebra no seu padrão de
comportamento anterior. Seu comportamento dirigido a outras pessoas também se
alterou a partir deste ponto. Sonny finalmente começou a notar outros pacientes e ele
agora começava a freqüentar sessões de terapia em grupo. Quando foi dispensado da
clínica, sua condição estava muito melhor. De acordo com o médico que o tratava, o
cão foi o principal fator contribuinte para sua melhora (Bergler, 1988, p.42-43, tradução
nossa)
Desta forma, esses autores consideram que o cachorro reúne características
específicas que o tornam apto para interagir com pacientes: sua prontidão em
oferecer afeto e contato táctil em todos os momentos e situações, aliada à confiança
despertada pelo cão. Tais características provocariam uma resposta recíproca da
pessoa em interação, havendo investimento e sentimento de responsabilidade. A
comunicação não-verbal, no entender desses autores, é a ferramenta terapêutica da
30
relação entre pessoas e animais; defendem que a comunicação não-verbal entre as
pessoas pode não estar de acordo com sua comunicação verbal, influindo de forma
negativa na relação terapeuta-paciente. Diferentemente, a comunicação entre
pessoas e animais, e particularmente o cão, ocorre de maneira direta e sem
interferências de racionalização e intenções não explícitas. Isto favoreceria a
inclusão do cão como parte das fantasias infantis, gerando maior confiança em si e
no ambiente, diminuindo tendências de desconfiança e isolamento. O paciente
estaria mais receptivo a receber afeto dos cães do que dos humanos, melhorando a
sua auto-estima e a consciência de suas limitações e comportamentos. (Corson,
1980, apud Bergler, 1988).
Analisando a experiência clínica destes autores, podemos supor que, para eles, o
animal pode atuar como um recurso de contato e comunicação com o paciente,
inserindo essa relação no contexto terapêutico mais amplo oferecido pela instituição
psiquiátrica.
Situações clínicas com pacientes psiquiátricos também ocorreram no Brasil, nas
décadas de 50 e 60: Nise da Silveira, psiquiatra junguiana brasileira, percebeu com
sensibilidade a facilidade com que pacientes esquizofrênicos se vinculavam aos
cães.
Em seu pioneiro trabalho com esquizofrênicos, Nise desenvolveu o conceito de
Afeto Catalisador, que consiste na constância e no comportamento não invasivo de
um co-terapeuta humano que se faz presente junto ao paciente nas oficinas de
terapêutica ocupacional, de forma que o esquizofrênico encontre um ponto de apoio
seguro a partir do qual se organizar. Após ilustrar exemplos de co-terapeutas
humanos, afirma “excelentes são os catalisadores não-humanos” (Silveira, 1981,
p.81). Afirma que o animal “reúne qualidades que o fazem muito apto a tornar-se um
ponto de referência estável no mundo externo”, facilitando a retomada de contato
com a realidade (Ibid., p. 81).
Esta história começa assim: foi encontrada uma cadelinha abandonada e faminta no
terreno do Centro Psiquiátrico Pedro II (RJ), Nise tomou-a nas mãos, olhou
atentamente para o internado Sr. Alfredo que se aproximava e perguntou: “Você
31
aceita tomar conta desta cadelinha, com muito cuidado?” Com a resposta afirmativa
do paciente, a psiquiatra deu o nome à cachorrinha de Caralâmpia (personagem de
Graciliano Ramos inspirada em Nise da Silveira em A Terra dos Meninos Pelados).
A autora acrescenta que os resultados terapêuticos dessa parceria foram excelentes
(Id., 1992).
Refere casos em que ocorreram relações afetivas entre pacientes e animais.
Abelardo, paciente temido por sua irritabilidade e força física, tomava conta de
alguns cães e gatos, mostrando-se capaz de cuidar e investir afeto. No caso de
Djanira, paciente com negativismo e mutismo, sua capacidade criativa como pianista
foi retomada através da relação com os bichos (Id., 1981).
Também observou que as relações com animais despertavam os mais diferentes
sentimentos: “Nem sempre, portanto, são de amor as relações do doente com os
animais. Estes recebem também projeções de certos conteúdos do inconsciente que
os tornam alvos de ódio ou temor excessivo” (Ibid., 1981, p.83).
um caso, no entanto, que merece destaque, no qual Nise afirma “Sem nenhum
exagero, pode-se dizer que os terapeutas de Carlos foram os cães Sultão e
Sertanejo. A posição de co-terapeutas coube ao médico e aos monitores” (Silveira,
1981, loc. cit.). Pela riqueza de detalhes e sensibilidade na apreensão do
envolvimento emocional de Carlos, o relato será apresentado na íntegra.
A expressão verbal de Carlos era praticamente ininteligível. As palavras fluíam em
abundância, freqüentemente pronunciadas com veemência, mas não se ordenavam
em proposições de significação apreensível. O grande número de neologismos
tornava ainda mais difícil a compreensão de sua linguagem. O caminho para o
entendimento com Carlos fez-se por intermédio do animal.
Do relatório da monitora Elza Tavares, em 10 de março de 1961: “Carlos, chegando
perto de um de nossos es, o Sultão, abaixou-se e, de cócoras, falou
carinhosamente e com nitidez: Você é muito bonito e valente, tens uma orelhinha
cortada, isto é prova de bravura, eu também sou valente, sounonai’. E durante longo
tempo acariciou o focinho do cão”. Estava decifrado um dos neologismos muito
empregados por Carlos: Nonai significava valente.
O relacionamento afetivo de Carlos com Sultão foi acompanhado por mim e pelos
monitores. O doente, durante anos absorvido no seu mundo interno, agora cuidava da
alimentação de Sultão, banhava-o, penteava-o. Mas aconteceu o pior: no dia 16 de
setembro de 1961 Sultão foi morto por envenenamento. Com a perda daquele ponto
32
de referência no mundo externo, investido de muito afeto, Carlos regrediu, tornou-se
ainda mais inacessível. Que confiança lhe poderiam merecer os seres humanos?
Só dois anos depois Carlos ligou-se a outro cão: Sertanejo. Os monitores informavam-
me que em assuntos referentes aos animais Carlos exprimia-se em frases
gramaticalmente construídas. O psicólogo Paulo Roberto relata: “Carlos continua
fazendo de Sertanejo seu confidente. Disse-nos que conversa com o Sertanejo como
as demais pessoas falam quando conversam no telefone. Colabora espontaneamente
com a monitora Nazareth na limpeza do local onde dormem os animais e dando
banhos nos cães aos sábados”.
No dia 27 de agosto de 1965, logo que cheguei ao hospital, Carlos me disse: “Quero
dinheiro para despesas de Sertanejo”. Perguntei espantada: “Que despesas?”, e
Carlos respondeu: “Água oxigenada, mercúrio cromo, gaze”. Sertanejo havia ferido
uma das patas. Carlos fez as compras na farmácia próxima, trouxe o troco certo do
dinheiro que lhe dei, e com perícia fez o curativo na pata de Sertanejo.
Desde que existia polarização intensa de afeto dirigida pelo desejo de socorrer o
amigo, tornava-se possível retomar a linguagem verbal ordinária nem que fosse por
momentos. Sob ação do afeto, os laços frouxos do pensamento apertaram-se,
permitindo comunicação com a exata pessoa que poderia ajudar.
Carlos e Sertanejo eram amigos inseparáveis. O cão, sem coleira e guia,
acompanhava Carlos em longas caminhadas pelos arredores do hospital, à igreja da
paróquia, ao cemitério. (Silveira, 1981, p.83-85)
A história de Carlos nos revela o quão significativa pode ser a relação estabelecida
entre pessoas e animais: de algum modo, o cachorro não era vivido na subjetividade
de Carlos como um elemento ameaçador, muito pelo contrário, era fonte de
investimento afetivo e cuidado, configurando-se como um elo de ligação entre as
realidades interna e externa.
Os relatos clínicos e as reflexões trazidas por Levinson, Samuel e Elizabeth Corson
e Nise da Silveira inauguram um novo campo de investigação: as intervenções com
participação de animais. Campo este que abarca os saberes da Psicologia, Etologia,
Antropologia, Estudos Sociais, Medicina Veterinária e outros. Nas décadas de 80
ouve um crescente interesse por este campo de estudo, mas foi na década de 90 e
na atual que as pesquisas cresceram significativamente, principalmente nas
instituições de pesquisa dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Destacaremos as
pesquisas de maior relevância para a compreensão do presente estudo.
O estudo conduzido por Redefer e Goodmann (1989) também evidencia a
possibilidade do contato com animais ampliar a capacidade de contato com outros
33
elementos do mundo externo através do estudo do cachorro como um componente
na terapia com crianças autistas. Seus achados sugerem que estas crianças
apresentavam menos comportamentos autísticos quando em companhia do cão,
possibilitando uma maior interação com a terapeuta e o ambiente. Esses autores
consideram que “Não foi o cachorro sozinho que criou a mudança” (p.464, tradução
nossa), e contextualizam a participação do animal de acordo com a conduta
profissional adotada.
A pesquisa Animais em Sala de Aula: um estudo das repercussões psicossociais da
intervenção mediada por animais, de Ceres Faraco (2003), traz outras contribuições
ao tema. Nela, a autora investiga a participação de diferentes animais em sala de
aula e sua interferência no grupo de alunos, ocorridas ao longo de oito semanas. Os
animais eleitos para tal intervenção foram: coelho, rato, gerbil, cachorro, tartaruga,
cágado, calopsita, pombo, gato, camundongo e porco da Índia. Refletindo sobre a
experiência vivida junto aos alunos, Faraco situa essa intervenção
como uma possível ferramenta de auxílio, para evidenciar habilidades e
modificar comportamentos em grupos infantis, especialmente no que diz
respeito ao interesse demonstrado pelas tarefas, a comunicação entre os
membros do grupo, a cooperação, sua dedicação e atenção à tarefa proposta
e o espírito de iniciativa (p.117)
Continuando as considerações, a autora salienta o contexto no qual a interação
aconteceu, sendo priorizadas as relações entre as crianças e os animais
“mobilizando seus sentimentos, em lugar de simplesmente ocorrer a passagem de
material informativo” (Ibid., p.118). Destaca que as crianças traziam informações
sobre os animais, tendo a oportunidade de ensinar e aprender “numa dinâmica da
construção do saber em que todos tinham algo a contribuir e que partia da
experiência de vida” (Faraco, 2003, loc. cit.)
Importante contribuição é encontrada no artigo C(ã)o-terapeutas: o enquadre a
serviço do método na análise de uma adolescente, da psicanalista Marion Minerbo
(2002). Ao definir seu trabalho, a autora afirma que “este é o relato de análise que só
foi possível quando meus cães passaram a fazer parte do campo transferencial” (p.
12). Escreve o caso dividindo-o em A.C e D.C., ou seja, antes e depois do cão.
Discutirei seu trabalho mais adiante.
34
1.3.3 Algumas nomenclaturas e definições atuais
Diferentes termos foram usados para nomear as intervenções com uso de
animais: já em 1964, B. Levinson as definiu como pet therapy (terapia com animal de
estimação), depois adotou o nome pet psychotherapy (psicoterapia com animal de
estimação) delimitando a área de atuação do psicólogo. Posteriormente foram
surgindo outros termos: Human/companion animal therapy (terapia humano/animal
de companhia), Animal Facilitated Therapy (terapia facilitada pelo animal),
zootherapy (zooterapia). Esses termos geravam confusão pois não havia definição
clara sobre eles, cada pessoa os usava com um sentido. Por exemplo: pet therapy
pode referir-se tanto a terapias desenvolvidas por profissionais de saúde com seus
pacientes fazendo uso do contato com animais, quanto a programas de visitas a
instituições no qual o dono e seu cão interagem com a população atendida.
Atualmente as intervenções com participação de animais são denominadas: Animal
Assisted Activity (AAA), termo traduzido no Brasil por Atividade Mediada por Animais
ou Atividade Assistida por Animais (AAA) e Animal Assisted Therapy (AAT),
traduzida por Terapia Mediada por Animais ou Terapia Assistida por Animais (TAA).
A Delta Society, entidade dos Estados Unidos que regulamenta os programas com
uso de animais, assim define:
A Atividade Assistida por Animais promove oportunidades para benefícios
motivacionais, educacionais, recreacionais e/ou terapêuticos para melhorar a qualidade
de vida. A AAA é realizada numa variedade de ambientes por profissionais,
paraprofissionais e/ou voluntários especialmente treinados, em associação com animais
que obedecem critérios específicos (www.deltasociety.org/aboutaaat.htm, tradução
nossa)
e
A Terapia Assistida por Animais é uma intervenção com objetivos definidos na qual um
animal que obedece a critério específico é parte integral do processo de tratamento. A
35
TAA é dirigida ou realizada por profissionais de saúde/serviços humanos com
experiência especializada e no âmbito de sua prática profissional.
A TAA tem o propósito de melhorar o funcionamento físico, social, emocional e/ou
cognitivo humano (funcionamento cognitivo refere-se as habilidades de pensamento e
intelectual). A TAA é promovida numa variedade de ambientes e pode ser de natureza
grupal ou individual. Este processo é documentado e avaliado
(www.deltasociety.org/aboutaaat.htm, tradução nossa)
Como afirmei acima, essas definições foram criadas para fazer distinção entre os
diferentes tipos de intervenção. Os termos anteriormente empregados não davam
conta da diferenciação entre um setting de terapia e uma atividade para promover o
desenvolvimento humano. Embora não haja ainda uma definição sobre a
intervenção pedagógica, esta tem sido comumente chamada de Educação Assistida
por Animais e suas idéias principais se encontram na Declaração do Rio, elaborada
pela International Association of Human-Animal Interaction Organizations (IAHAIO
-Associação Internacional das Organizações de Interação Homem-Animal, ver
Anexo B).
A partir do desenvolvimento de pesquisas sobre as práticas de intervenções com
uso de animais ocorrido na década de 90, as Conferências Internacionais Sobre
Interação Homem-Animal, promovidas a cada 3 anos pela IAHAIO definiram três
resoluções acerca do direito da posse de animais, das intervenções com uso de
animais definindo condições em que estas devem ocorrer, e também sobre os
programas de animais de estimação em escolas. O texto integral e original das
declarações encontra-se no Anexo B.
No Brasil, depois da experiência de Nise da Silveira, na cada de 60, em hospitais
psiquiátricos, os relatos encontrados apontam para o surgimento de iniciativas
isoladas de intervenções com uso de animais em meados dos anos 90. Essas
iniciativas eram feitas, em grande parte, por profissionais da área de saúde e
comportamento animal e por alguns profissionais de saúde e educação humana. A
partir de 2000, alguns grupos se constituíram como entidades do Terceiro Setor
(ONGs), prestando serviços de visitas e atendimentos terapêuticos e / ou
36
educacionais a diferentes populações: crianças, adolescentes, idosos, pessoas com
deficiência, pessoas hospitalizadas, alunos de ensino fundamental etc. Embora a
prática da AAA e da TAA esteja aumentando, as pesquisas científicas se
apresentam como um campo a ser trilhado por estudiosos de diferentes áreas em
nosso país.
37
CAPÍTULO 2:
DE ONDE PARTE O OLHAR
A literatura sobre as interações entre pessoas e animais é, como vimos,
relativamente recente, reunindo pesquisadores de variadas áreas do conhecimento.
Esses trazem contribuições a partir de diferentes enfoques teóricos e metodológicos,
configurando-se, assim, tais interações, como um campo interdisciplinar. Tal
característica foi evidenciada na obra editada por Aubrey Fine (2000) professor da
School of Education and Integrative Studies da California State Polytechnic
University intitulada Handbook on Animal Assisted-Therapy: theoretical
foundations and guidelines for practice, onde estão reunidos textos de
pesquisadores das áreas de medicina, enfermagem, antropologia, medicina
veterinária, psicologia, serviço social, pedagogia e etologia. Reconhecemos a
importância dessas contribuições por buscarem uma integração no estudo das
interações entre humanos e animais. Ao analisar o percurso histórico das pesquisas
nesse campo, Fine, amparado por uma pesquisa realizada por Beck e Katcher, 1984
(apud Fine, 2000), considera que os estudos até então realizados por Levinson e
outros pioneiros “eram baseados em observações e estudos de caso ao invés de
experimentos delineados” (tradução nossa, p.xxxix). Os autores Beck e Katcher
colocam que essas pesquisas traziam evidências que justificavam uma exploração
cientifica séria da habilidade dos animais em facilitar terapias convencionais, porém
não demonstravam o efeito terapêutico dos animais. A partir dessa leitura, eles
consideraram de valor científico estudos realizados com grupos de controle e
mensurações dos benefícios da interação, juntamente a um número de sujeitos
estatisticamente significativos. Desde então um predomínio de pesquisas
experimentais que, a meu ver, apesar das interessantes contribuições, deixa de
lançar um olhar para a compreensão do acontecer humano envolvido nessas
interações, o que gera explicações por vezes parciais e biologizantes. Uma análise
dessas pesquisas sugere que, ao delinearem os estudos de forma quantitativa e
com controle de variáveis, as conclusões levantadas tendem a atribuir ao animal um
valor terapêutico em si, como podemos visualizar na seguinte passagem de um
artigo de Martin e Farnum (2002)
38
Os animais, ao que parece, podem ter a habilidade de promover tanto o bem-
estar fisiológico quanto o psicológico. A literatura existente também indica que
animais podem ser particularmente adequados para crianças, sugerindo que
animais o cruciais no desenvolvimento social (Triebenbacher, 2000) e
cognitivo da criança (Melson, 2000) (p.658, tradução nossa)
O trecho acima, de meu ponto de vista, é representativo de grande parte das
pesquisas desenvolvidas nesse campo, que parecem, ao buscar uma padronização
da conduta humana e uma diminuição sintomática, desconsiderar a experiência
emocional dos indivíduos que vivenciam tal experiência.
Como afirmamos anteriormente, essas pesquisas trazem contribuições ao estudo do
tema, entretanto encontram algumas limitações na compreensão do fenômeno
humano ali presente. E talvez outras perspectivas teóricas possam ser usadas a fim
de ampliar o entendimento da presença de animais em intervenções com pessoas.
Considero que a psicanálise pode lançar um outro olhar para tal fenômeno. Vaisberg
(2004), ao analisar as contribuições que a psicanálise trouxe, parte da tese
politzeriana de que o pressuposto revolucionário e transformador dessa é a crença
de que toda e qualquer conduta humana tem sentido e pertence ao acontecer
humano, por mais louca, estranha ou incompreensível que possa parecer: “dizer que
toda manifestação humana está dotada de sentido significa dizer que faz parte,
inevitavelmente, do acontecer humano” ( Vaisberg, 2004, p.90)
E é inserida nessa perspectiva que a narrativa dos encontros entre os adolescentes
com síndrome de Down e cães, sustentada pelos profissionais ali presentes, fornece
subsídios para, por meio de elaborações teóricas, lançar outros entendimentos a
respeito desta experiência humana. Para tanto encontramos na psicanálise de D.W.
Winnicott fértil interlocução, uma vez que os fenômenos e acontecimentos humanos
inserem-se na trajetória singular do sujeito e de seu desenvolvimento, ganhando um
sentido próprio. A seguir, algumas das contribuições psicanalíticas serão abordadas,
a fim de situar o lugar teórico de onde parte este trabalho de pesquisa.
2.1 WINNICOTT E O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL
Winnicott foi psicanalista e pediatra, membro da Escola Inglesa de Psicanálise,
preocupado com a compreensão da natureza humana. Investigou, através de
39
intensa atividade clínica, a maneira pela qual o ser humano se desenvolve,
tornando-se um indivíduo total em relação a pessoas totais. Para tanto, debruçou
seu olhar nas primeiras relações do indivíduo com o meio e elaborou conceitos
originais trazendo profundas compreensões a respeito do processo de
amadurecimento que o indivíduo atravessa:
Parece-me adequado examinar a natureza humana através do estudo da
criança. Mesmo que, quando saudável, o adulto continue a crescer, desenvolver-
se e mudar até o instante de sua morte, existe uma constante visível na
criança e que persiste até o fim, assim como o rosto de uma pessoa permanece
reconhecível ao longo de toda a sua vida (Winnicott, 1990, p.25)
Dessa forma, o pensamento winnicottiano tem sua atenção voltada para as
primeiras interações entre bebê e o ambiente, e seus desdobramentos posteriores, a
fim de buscar compreensão da constituição do self no indivíduo e sua relação com o
mundo. Ao pensar a natureza humana, Winnicott (1963) considera que o indivíduo
caminha da dependência absoluta para a dependência relativa e, desta, rumo à
independência.
Nos estágios mais primitivos do desenvolvimento, o bebê vivencia a dependência
absoluta, quando a base para sua existência e desenvolvimento como indivíduo
relaciona-se às provisões oriundas do ambiente, que num primeiro momento é a
mãe (ou alguém capaz de desempenhar sua função). Ao nascer o bebê possui um
soma - com características anatômicas e fisiológicas - e um potencial herdado - uma
tendência a continuar a existir e a integrar-se no tempo e no espaço. E é a partir das
experiências iniciais de continuar a ser, que o potencial herdado vai adquirindo uma
realidade psíquica pessoal e um esquema corporal. A este respeito, Winnicott (1949)
escreve
Vamos partir do princípio de que o desenvolvimento inicial do indivíduo implica
num continuar a ser. O psicossoma inicial prossegue ao longo de uma certa linha
de desenvolvimento, desde que esse continuar a ser não seja perturbado. Por
outras palavras, para que ocorra o desenvolvimento saudável do psicossoma
inicial é necessário um ambiente perfeito. No início esta necessidade é absoluta.
(p.334).
O ambiente perfeito é aquele que se adapta ativamente às necessidades do
lactente. Dessa maneira, quando o ambiente deixa de se adaptar transforma-se
40
numa intrusão à qual o bebê terá de reagir, perturbando ou até trazendo rupturas na
continuidade do ser. Podendo trazer distorções mais ou menos profundas na
constituição do self.
Os cuidados voltados ao bebê, no início físicos, são realizados pela e com
naturalidade quando é alcançado um estado de sensibilidade exacerbada tornando-
a capaz de identificar-se com seu bebê. Vale dizer que nem todas as mães
conseguem alcançar tal estado, ou conseguem com um filho e outro não. Mas
quando a preocupação materna primária é alcançada, a atenção da mãe está tão
voltada ao seu bebê que ela é capaz de excluir quaisquer outros interesses, de
forma normal e temporária (Id., 1956). É o que Winnicott denomina mãe
suficientemente boa. A este respeito, Safra (1999) faz uma interessante análise de
que o encontro do corpo da criança com o corpo da mãe é um encontro com os
ancestrais, pois o corpo materno “carrega traços daqueles que foram significativos
na história da mãe e também a tradição sociocultural do grupo étnico ao qual ela
pertence” (p.102); assim, ao pensar na mãe suficientemente boa, este autor
evidencia a complexidade de tal fenômeno, demandando uma leitura histórica.
Portanto, nos estágios iniciais, o bebê e o cuidado materno “pertencem um ao outro
e não podem ser separados” (Winnicott, 1960, p.40), juntos, formam uma unidade. E
é através das funções maternas de holding, handling e apresentação de mundo que
o bebê poderá realizar suas tarefas de integração, personalização e realização.
Winnicott (1945) revela que, de um lado, o bebê tem impulsos instintivos e idéias
predatórias, e, de outro lado, a mãe tem o seio, o poder de produzir leite e a idéia de
que gostaria de ser atacada por um bebê faminto. “Estes dois fenômenos não
estabelecem uma relação entre si até que a e e o bebê vivam juntos uma
experiência (p.227). É como se duas linhas, oriundas de direções opostas, se
encontrassem e aproximassem: “Se elas se superpõem, ocorre um momento de
ilusão (Winnicott, 1945, loc. cit.). Ilusão de que o seio da mãe faz parte do bebê e
está sob seu controle mágico, vivendo a experiência da onipotência. “A mãe coloca
o seio real exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo, e no momento exato”
(Winnicott, 1975, p.26). Nesse processo o seio é criado repetidas vezes pelo bebê,
41
configurando-se (do ponto de vista de um observador externo) como o primeiro
contato com a realidade externa e (do ponto de vista do bebê) a criação dos objetos
subjetivos. A mãe apresenta um objeto ao bebê de maneira a não violar a
experiência da onipotência, "o resultado pode ser que o be seja capaz de usar o
objeto e sentir-se como se esse objeto fosse um objeto subjetivo, criado por ele"
(Ibid., p.154). Essas experiências primitivas configuram-se como elaborações
imaginativas das funções corporais, que são a base do psiquismo do bebê.
Quando, a partir da adaptação da mãe às necessidades do bebê, a experiência de
onipotência e criação de objetos subjetivos é vivenciada pelo bebê, seu processo de
desenvolvimento não é distorcido e ele está pronto para experimentar e usar as
falhas graduais desta mesma adaptação. Se na dependência absoluta o bebê não
tem capacidade de tomar consciência do ambiente, podendo apenas estar em
condições de beneficiar-se ou sofrer distúrbios, no momento seguinte, o da
dependência relativa, ele pode tomar consciência de alguns detalhes do cuidado
materno. É nesse momento que começa a saber em sua mente que a mãe é
necessária. Aqui encontramos o começo da compreensão intelectual que, segundo
Winnicott (1963), capacita o bebê a esperar até ser atendido, ou seja, o bebê traz
uma crescente capacidade de aquilatar o fracasso da adaptação e tolerar os
resultados da frustração (Id., 1975)
Se tudo corre bem, o bebê pode, na realidade, vir a lucrar com a experiência da
frustração, já que a adaptação incompleta à necessidade torna reais os objetos, o
que equivale a dizer, tão odiados quanto amados. (p.25)
Como vimos, a experiência de onipotência permite a criação dos objetos
subjetivos e da ilusão da onipotência entre o bebê e sua mãe. Com as frustrações,
começa a surgir uma separação entre a mãe e o bebê onde pode emergir um
espaço, uma terceira área da experiência, uma área neutra, de relaxamento, para a
qual contribuem tanto a realidade interna quanto a externa. É no espaço potencial
entre mãe e bebê que os objetos e fenômenos transicionais são experimentados e o
bebê passa do controle onipotente para o controle pela manipulação. O objeto
transicional, sendo a primeira possessão ‘não-eu’, abre caminho para o início do
relacionamento entre a criança e o mundo. Não é o objeto em si, segundo Winnicott
(1975), que é transicional, pois ele representa a transição do bebê de um estado de
42
fusão com a mãe para um estado em que se relaciona com ela como algo separado
e externo a si mesmo. A este respeito, Safra (1999) coloca que é o uso do objeto
transicional que possibilita, através da capacidade criativa da criança, a construção
de um mundo com o outro, onde o self possa existir como si mesmo.
A criatividade relaciona-se ao estar vivo no mundo e sua utilização depende de uma
provisão ambiental suficientemente boa. Dessa forma, a liberdade de criação
encontra fruição, na criança e no adulto, através do brincar. Em O Brincar: uma
exposição teórica, Winnicott (1975) descreve uma seqüência de relacionamentos
sobre o processo de desenvolvimento e a localização do brincar:
A. “O bebê e o objeto estão fundidos um no outro (Winnicott, 1975, p.70 et
seq.): os objetos são subjetivos e a mãe atende ao bebê tornando concreto
aquilo que ele está pronto para encontrar (criar).
B. “O objeto é repudiado, aceito de novo e objetivamente percebido”: tal
processo depende da capacidade da figura materna de participar e devolver
aquilo que foi abandonado pelo bebê, permitindo a este certa experiência de
onipotência (controle mágico). “A confiança na mãe cria aqui um playground
intermediário, onde a idéia da magia se origina”; é onde começa a
brincadeira, o espaço potencial.
C. “O estágio seguinte é ficar sozinho na presença de alguém”: a criança brinca
tendo por base que a pessoa a quem ama, que lhe fornece segurança e
confiança, está e é disponível quando é lembrada, após ter sido esquecida.
“Essa pessoa é sentida como se refletisse de volta o que acontece no
brincar”
D. A criança torna-se pronta para “permitir e fruir uma superposição de duas
áreas do brincar”: naturalmente, a mãe é quem primeiro brinca, sendo
cuidadosa para adaptar-se à atividade lúdica da criança.
43
Winnicott (1975) nos lembra que “É no brincar, e somente no brincar, que o
indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e
é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (Ibid., p.80).
A transicionalidade abre espaço para o relacionamento com o mundo, as pessoas e
os objetos nele contidos. Com o processo de amadurecimento os fenômenos
transicionais tornam-se difusos, estendendo-se os campos cultural, religioso e
artístico (Winnicott, 1975). A experiência do bebê em termos de objetos e
fenômenos transicionais é tornada possível graças à ilusão de onipotência vivida por
ele e a um ambiente suficientemente bom fornecido pela mãe. Como vimos, os
objetos e fenômenos transicionais situam-se entre a criação de objetos subjetivos e
a percepção dos objetos objetivamente percebidos, ou seja, entre o mundo interno e
a realidade externa. O que muda não é o objeto em si, mas a maneira do bebê se
relacionar. Então a criança pode tornar-se apta a colocar o objeto fora da área de
controle onipotente, tornando reais os objetos como fenômenos externos e não
mais, apenas, como objeto subjetivo: “na verdade o reconhecimento do objeto como
entidade por seu próprio direito” (Ibid., p.125). Paradoxalmente, de acordo com o
autor, é a destruição do objeto e de sua sobrevivência que o coloca fora do controle
onipotente e o sujeito pode, então, usar o objeto. Dessa maneira a percepção da
realidade externa tem início na vida do bebê, somando aos progressos até aqui
alcançados em termos de integração, personalização e realização.
Nesse ponto do desenvolvimento do indivíduo - em que o processo de
amadurecimento aponta para a constituição de um eu integrado, e ao mundo
povoado pelos objetos subjetivos e transicionais, ao qual vão somar-se os objetos
objetivamente percebidos a vivência satisfatória de estados anteriores permite à
criança defrontar-se com o mundo e sua complexidade. No “rumo à independência”,
o ser humano se torna capaz, gradativamente, de se identificar com a sociedade
sem grande sacrifício da espontaneidade pessoal. O indivíduo encontra meios de
viver sem cuidado real, pois tem recordações do cuidado materno, da projeção de
necessidades pessoais, introjeção de detalhes do cuidado e desenvolvimento da
confiança no meio (Id., 1960). No entanto, Winnicott (1963) nos lembra que a
independência nunca é absoluta, uma vez que o indivíduo normal não vive em
isolamento, mas sim relacionado ao ambiente de maneira interdependente.
44
2.2 DESENVOLVIMENTO E SÍNDROME DE DOWN
Amiralian (1997a) evidencia que, embora Winnicott não tenha dedicado seus
estudos à área da deficiência, sua compreensão sobre o desenvolvimento emocional
pode ampliar a reflexão sobre as implicações que lesões, alterações orgânicas ou
funcionais podem causar ao desenvolvimento humano. Ao lançar um olhar
winnicottiano para a questão da deficiência e suas vicissitudes, Amiralian (1997a)
destaca alguns fatores vitais na constituição do bebê como um indivíduo. Ao pensar
na preocupação materna primária e no estado de sensibilidade exacerbada da mãe,
o qual a torna capaz de se devotar ao bebê, a autora revela que alguns
desencontros podem ocorrer:
A mãe, que nesse momento está fragilizada por um estado de sensibilidade
aumentada, tem que se haver com a deficiência do filho que fará ressurgir uma
gama de emoções e afetos relacionados à sua significação de deficiência.
Além disso, terá muitas dificuldades em compreender as necessidades de um
filho deficiente. Dificuldades que irão interferir e, mesmo, em alguns momentos,
impedir a realização de seu papel de ´mãe devotada comum´ (p.98)
Fedidá (1984) mostrou o quanto a percepção da deficiência no outro pode levar à
vivência das próprias angústias de castração e desmoronamento, fazendo surgir a
catástrofe sofrida pelo deficiente como algo que pode acontecer a qualquer um.
Neste sentido, além da mãe de um bebê com deficiência lidar com a grande tarefa
de cuidar de seu filho, com o qual ela pode não conseguir identificar-se e cujas
respostas incomuns ela pode não compreender (Amiralian, 1997a), a mãe e a
família passarão por um processo de luto pela perda do filho desejado, voltando as
energias para si mesmas a fim de organizar uma estrutura ou defesa emocional
diante da situação vivida.
Concordo com Amiralian (2003) ao compreender a deficiência congênita como uma
condição estruturante da pessoa, pois seu soma, seu potencial herdado e a provisão
ambiental fornecerão as bases para a realização, ou não, de seu vir-a-ser. Sendo
assim, a deficiência não é um detalhe na vida da pessoa, bem como não é a
resposta de todas as vicissitudes experimentadas pelo sujeito: “Ao défict físico ou
45
funcional, somam-se as vivências advindas das interações permeadas pela condição
de deficiência e de seu significado para o ambiente que o circunda” (Amiralian, 2003,
p.102).
Juntamente à vivência emocional dos pais diante deste bebê e dos possíveis
desencontros entre as necessidades do be e aquilo que o ambiente é capaz de
prover, as crianças síndrome de Down reúnem algumas características somáticas
experimentadas por cada sujeito de maneira diferenciada – que Coriat e
Jerusalinsky (1983) descrevem ao se referir sobre o desenvolvimento dessas
crianças. Os autores fundamentam o entendimento do desenvolvimento cognitivo a
partir das importantes contribuições de Piaget e Inhelder para esse campo.
Coriat e Jerusalinsky (1983) apontam que uma das características mais comuns à
síndrome de Down é a deficiência mental. no desenvolvimento inicial desses
bebês, no primeiro subestádio do período sensório-motor, estão presentes a oclusão
das estruturas cognitivas e a viscosidade do pensamento:
1. a oclusão das estruturas cognitivas consiste num “fechamento rígido,
prematuro e/ou permanente de uma certa estrutura cognitiva impedindo a
entrada de percepções perturbadoras no sistema” (Coriat e Jerusalinsky,
1983, tradução nossa, p.4). As perturbações teriam um caráter progressivo,
uma vez que causariam desequilíbrio do pensamento e o movimentariam em
busca do reequilíbrio num sistema capaz de abarcar aquela percepção.
2. a viscosidade do pensamento - importante conceito desenvolvido por
Inhelder após cuidadoso estudo - relaciona-se a uma falta de mobilidade do
sistema cognitivo, dificultando a tomada de consciência de uma contradição,
negando sua entrada e, assim, encontrando lentidão em alcançar maiores
níveis de complexidade lógica e, em certa altura, até fechando o sistema num
certo nível de complexidade (Coriat e Jerusalinsky, 1983). Amiralian (1995)
ressalta que a viscosidade de pensamento que ocasiona lentidão no processo
de desenvolvimento impede um desprendimento de formas anteriores de
pensamento na passagem para outra forma de raciocínio, levando à
coexistência de duas formas de raciocínio desintegradas entre si. “Porém,
46
apesar do estancamento em alcançar maiores níveis de complexidade lógica,
resultam as possíveis ampliações do conhecimento em forma horizontal: ou
seja, maior diversidade e quantidade de conhecimento dentro do mesmo
´plateau´ de complexidade” (Coriat e Jerusalinsky, 1983, tradução nossa, p.4).
A oferta de um ambiente cuja dificuldade seja aceitar este sujeito com
deficiência, somada às peculiaridades orgânicas, pode reforçar a viscosidade
de seu pensamento, aumentando a lentidão dos processos cognitivos.
Os autores também salientam os efeitos da hipotonia geral, presente em 80% dos
casos: “os bebês mais hipotônicos tendem a apresentar maiores dificuldades em seu
desenvolvimento cognitivo” (Ibid., p.6, tradução nossa). Apontam que a hipotonia
diminui a atividade global e espontânea, afetando as frágeis manifestações da
atividade reflexa, conduzindo para uma tendência à quietude, com pouca
receptividade de estímulos exteriores. Sendo assim, a hipotonia reduziria a
probabilidade de encontros entre diferentes atividades sensório-motoras, afetando a
coerência interna da articulação dos esquemas de ação.
Diante destas condições de desenvolvimento, Coriat e Jesusalinsky (1983), partindo
de uma concepção de sujeito ancorada, no sentido cognitivo, em Jean Piaget e, no
sentido psicológico, em Jacques Lacan, ressaltam a importância do atendimento
precoce a esta população, buscando uma terapêutica comprometida com a
construção do sujeito. Escrevem:
A clínica demonstra que a unificação da imagem de si através do outro é
condição prévia da construção de um espaço totalizando o corpo e sua
correlativa extensão no entorno perceptível, a saber: o espaço subjetivo
(tradução nossa, p.9)
Em outro texto, Psicanálise e Deficiência Mental, Jerusalinsky (1988) questiona a
postura educativa diante das pessoas com deficiência mental e sugere um
abandono do furor docenti” um impulso desmedido de ensinar incessantemente
a fim de “inscrever o sujeito para além de sua impossibilidade” (p.74).
47
Assim, retornamos a Amiralian (1997b) que, ao refletir sobre as relações dos
psicólogos diante das pessoas com deficiência, destaca três fenômenos que podem
interferir no atendimento a essa população. São eles:
1) a Transferência e a Contratransferência partindo do conceito freudiano de
transferência e do winnicottiano de contratransferência, a autora coloca que a
subjetividade do profissional pode ser um fator de risco mas também pode ser
um elemento facilitador do processo terapêutico. Dessa forma, no
atendimento a uma pessoa com deficiência ele pode ficar num interjogo de
sentimentos de incapacidade e fracasso relacionado à deficiência, ou então
reagir defensivamente através de acting out, ambas as atitudes prejudicando
a relação terapêutica, uma vez que dificultam as capacidades reparatória,
perceptiva, intuitiva e de identificação com o paciente. “Sem sentimentos de
empatia e compreensão para com seu cliente com deficiência, o terapeuta
dificilmente poderá cumprir com eficácia sua função” (Ibid., p.41). A
capacidade de identificação com a pessoa com deficiência é necessária para
uma percepção e compreensão de suas dificuldades e necessidades, para
vê-lo com sua capacidade e sua incapacidade, objetivamente percebidas.
Entretanto, Amiralian ressalta a dificuldade que pode ser para o terapeuta
identificar-se com uma pessoa surda, cega, com deficiência motora ou mental
e sugere que
Se formos capazes de identificar em nós a angústia por perdas significativas
e pelas castrações vividas, o ódio pelas nossas incapacidades e limitações, a
nossa inveja frente àqueles que conseguem com mais facilidade o que
desejam, mas, também, a superação desses sentimentos e a sobrevivência
diante das catástrofes que ocorrem em nossas vidas, teremos condições de
refletir esses sentimentos e de ajudar nossos clientes a superar suas
dificuldades (p.42)
2) a Relação Invasiva ainda de acordo com Amiralian (1997b), Winnicott
localiza esta relação como uma falha ambiental, de origem materna,
correspondendo à atitude da e que impõe seu próprio gesto ao do bebê,
não reconhecendo as necessidades deste e impondo ações derivadas de sua
própria necessidade. Numa intervenção, a relação invasiva ocorre quando o
terapeuta impõe seu gesto ao do paciente; isto pode ser observado quando o
48
objetivo da intervenção é tornar a pessoa com deficiência o mais parecida
possível com as ditas normais, impondo padrões e correndo o risco de
desenvolver um falso self. Winnicott (1952), ao descrever o modo pelo qual o
indivíduo é afetado pelas tendências do ambiente, principalmente num
estágio precoce, considera que a adaptação ativa às necessidades do bebê
permite a este manter-se em isolamento sem ser perturbado, quando o bebê
ainda não tem ciência do ambiente; nesse estado ele “faz um movimento
espontâneo e o ambiente é descoberto sem perda da sensação de ser”
(p.310). Numa adaptação falha, a intrusão do ambiente sobre a criança,
levando-a a reagir “a sensação de ser é perdida nessa situação, e pode ser
readquirida somente por uma volta ao isolamento” (p.310)
3) a Introjeção Extrativa este conceito, desenvolvido por Bollas (1987, apud
Amiralian, 1997b), é o inverso da identificação projetiva. A introjeção extrativa
é um processo intersubjetivo “no qual alguém rouba do outro um elemento de
sua vida psíquica” (Ibid., p.46), que pode dar-se por segundos, anos ou uma
vida inteira. Assim, esse fenômeno ocorre quando alguém pressupõe que o
outro não tem experiência interna do elemento psíquico que ele representa.
quatro tipos de introjeção extrativa: a) roubo do conteúdo mental das
idéias, pensamentos e reflexões do interlocutor, impedindo-o de elaborar seu
pensamento; b) roubo do processo afetivo alterando o curso da experiência
emocional, empobrecendo seu mundo interno; c) roubo da estrutura mental
quando alguém assume o superego de outrem e este, ao invés de se
censurar e procurar resolver seus problemas, espera sempre uma humilhação
e solução externa e; d) roubo do self perda da percepção que a pessoa tem
de si mesma, de sua história pessoal.
Concordo com Amiralian (2003) quando evidencia que a compreensão do
desenvolvimento de pessoas com deficiência a partir da teoria winnicottiana “impõe
mudanças atitudinais para com este grupo e importantes modificações nas
diferentes intervenções” (p.98). O olhar winnicottiano para o desenvolvimento de
pessoas com deficiência nos faz perceber que essas pessoas não carregam um
fardo mas sim são pessoas que têm uma condição orgânica diferente, “que para ele
é o que é, e, portanto, o normal. E desta maneira eles querem e desejam ser
49
aceitos” (Ibid, p.102). A autora destaca a seguinte passagem de Winnicott “tal como
começa, assim tem de ser aceito, e assim tem de ser amado. É uma questão de ser
amado sem sanções” (1993, p.205, apud Amiralian, 2003).
2.3 A PSICANÁLISE E OS ANIMAIS
Após abordar algumas questões referentes ao desenvolvimento emocional e às
vicissitudes da condição da síndrome de Down, considero que a compreensão de
alguns elementos da clínica psicanalítica winnicottiana possa lançar luz sobre certos
aspectos dos encontros entre os adolescentes com síndrome de Down e os cães
para, posteriormente, refletir a respeito da relação entre pessoas e animais sob um
enfoque psicanalítico.
Como sabemos, uma das características marcantes da obra de Winnicott, além de
toda sua contribuição ao estudo da natureza humana, foi o constante diálogo com
áreas afins: desenvolveu suas idéias no meio psicanalítico e também o fez em meios
médicos, de enfermagem, de assistentes sociais, fisioterapeutas, educadores e pais,
estendendo o saber psicanalítico para além das fronteiras da psicanálise e da
psicologia.
Em Os objetivos do tratamento psicanalítico (1962), Winnicott apresenta seu modo
de trabalhar em psicanálise, pelo qual diz esperar manter-se vivo, bem e desperto,
objetivando ser ele mesmo e portar-se bem. Escreve:
Gosto de fazer análise e sempre anseio pelo seu fim. A análise pela análise
para mim não tem sentido. Faço análise porque é do que o paciente necessita.
Se o paciente não necessita de análise então faço alguma outra coisa (p.152).
Mais adiante acrescenta:
Faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este indivíduo, em seu
ambiente, quer psicanálise (...) Mas, em geral, análise é para aqueles que a
querem, necessitam e podem tolerá-la (p.154)
Nessas passagens percebemos que Winnicott abre espaço não apenas para a
aceita e consagrada análise padrão, mas para uma qualidade de atendimento
50
diferenciada: “Eu me dou conta de trabalhar como um analista ao invés de realizar
análise padrão quando me defronto com certas condições que aprendi a reconhecer”
(Ibid., p.154). Tais condições são quando o temor da loucura domina o quadro; ou
quando um falso self está presente; ou ainda quando a tendência anti-social é o
legado de uma privação; também quando não vida cultural, apenas o mundo
interno e externo relativamente desconectados; e por fim, quando uma figura
paterna ou materna doente domina o quadro. Portanto, quando se depara com o tipo
de caso inadequado para a análise padrão, Winnicott propõe uma modificação no
sentido de “ser um psicanalista que satisfaz, ou tenta satisfazer, as necessidades de
um caso especial” (Ibid., p.154)
Tendo em vista esse posicionamento, considero que as propostas winnicottianas
abarcam iniciativas ancoradas em práticas diferenciadas do fazer clínico:
Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em
termos de transferência, então estamos praticando análise; se não, então somos
analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião.
E por que não haveria de ser assim? (Ibid, p.155)
Diante das formulações do autor, somos convidados a revisitar um caso clínico,
apresentado pela psicanalista Marion Minerbo no artigo C(ã)o-terapeutas: o
enquadre a serviço do método na análise de uma adolescente (2002). Partindo de
formulações vinculadas à Teoria dos Campos de Herrmann (1991, apud Minerbo,
2002), a autora traz o caso da adolescente Taís e de como a mudança de enquadre,
abarcando a entrada de cães no setting analítico, foi fundamental para a condução
do caso.
Taís era uma adolescente de 16 anos cujos pais haviam lhe proposto um trato: ela
deveria iniciar análise, emagrecer, melhorar as notas e fazer amigos e, em troca,
ganharia o cãozinho desejado. Marion coloca que “a demanda de Taís não era de
análise, mas de cachorro” (p.224) e chama a atenção para sua primeira fala quando
olha para a cadeira de vime do consultório: “Esta cadeira me agüenta?” (p.224).
Nos primeiros meses de análise, denominados A.C. antes do cão Taís
conversava sobre sua grande paixão: os es. E foi dessa forma que Marion iniciou
51
um esboço do mundo mental da adolescente: a preparação para receber um cão em
sua vida, a percepção de diferentes raças e suas impressões sobre elas. Taís e seu
irmão eram adotados e, através dos cães, a jovem falava de sua própria condição
“tem cachorra que tem mais instinto materno do que muita mãe” (p.224). Marion
sentia que a análise parecia ‘ter engatado’ mas que, quando o assunto não era
referente aos cães, as histórias não traziam um relevo emocional: eramhistórias de
plástico’. A analista questiona:
Será que Taís vinha às sessões apenas para garantir seu cachorro? Era
estranho: ela me parecia tão verdadeira e transparente quando falava dos cães,
mas também tão opaca e mentirosa com suas histórias de plástico. Fui
percebendo que, nem ela havia me adotado, nem ia permitir que eu a adotasse
(p.225)
Quando chegou seu aniversário, Taís não havia passado em todas as matérias e a
mãe anunciou que não ganharia o cachorro. A adolescente jogou no lixo tudo que se
referia a cães, enluteceu e emudeceu. A e marcou uma entrevista com a
psicanalista, durante a qual esta percebeu o mesmo tipo de opacidade: a mãe fazia
papel de mãe e queria que a filha fizesse papel de filha - queria dar o cachorro a
Taís, mas não queria voltar atrás no trato. Enfim, Taís ganhou o cãozinho.
Entramos agora no que a autora denomina período D.C. depois do cão. Taís
apresentou uma mudança brusca: tornou-se delinqüente na escola e em casa não
cuidava da cachorra. O trabalho ficou difícil; Marion revela “eu tendia a ser
superegóica, por exemplo, quando ela quase deixou sua cachorrinha morrer” (Ibid.,
p.226), tentava interpretações continentes para supostas angústias, mas nada
tocava Taís. Em meio às grosserias da adolescente, a autora mantinha a
preocupação de não ser superegóica e de dizer somente o que quisesse dizer: “dar
o cachorro se esta fosse minha vontade, sem me preocupar com o papel de mãe-
analista” (Ibid., p.227)
Marion buscava outros canais de comunicação, uma vez que, na situação
transferencial, as palavras ‘tinham esta estranha propriedade de se transformar em
plástico no meio do caminho” (p.227). Instalou uma pequena oficina de artes em seu
consultório; Taís fez um desenho significativo: um mergulhador sendo devorado por
um tubarão enquanto outro mergulhador olha, de fora, sarcástico. A analista reflete
52
“uma parte dela sofre, a outra finge que caga-e-anda, mas a quem eu poderia dizer
isto? O eu-que-sofre não estava lá, o outro daria de ombros” (p.227). Logo as
expressões artísticas e os jogos tenderam, também, à plastificação.
Mas a autora percebia que, embora Taís a xingasse como um pitbull’, tinha os
‘olhos doces de um labrador’. Um dia ela chegou bêbada à sessão, na certeza de ter
atingido os limites da analista, esta então recorda de sua primeira fala “esta cadeira
me agüenta?”. A autora imaginava que os olhos de labrador tinham uma história
para contar, e Taís começou a trazer para a sessão suas poesias, que falavam de
um primeiro grande amor, perdido para sempre. Marion interpretou com outra poesia
em que falava de um pacto com as sombras, a dolorosa renúncia ao sol, às palavras
e ao humano. Aqui é diagnosticada a melancolia de Taís, uma vez que as poesias
falavam de um investimento maciço num objeto perdido, simultaneamente amado e
odiado. A analista emenda que o mais grave era a impossibilidade da adolescente
reinvestir amorosamente num novo objeto e se questiona “como abrir espaço para o
eu-amoroso, anunciado nas poesias?” (Ibid., p. 228)
Marion percebia que a adolescente precisava pôr em cena outros eus, como
aconteceria num hospital-dia. E foi Taís quem sugeriu o caminho quando começou a
trazer Loli, sua cachorra, para as sessões. Marion chama de ‘humanidade canina’ o
período da análise em que os cães foram incluídos no enquadre e considera que “o
caminho para a recuperação do humano em Taís passou por um longo período
canino” (Ibid., p. 231). Agora, entrava em cena o eu-amoroso desta adolescente:
“Ela não é uma fofa, um amorzinho? Viu como ela gosta de você? Quer trazer
um osso para ela, na próxima sessão?” O tom carinhoso de Taís se destinava a
mim através de Loli. Nesta nova fase, em lugar de xingar-me ostensivamente,
me acarinhava disfarçadamente. Também meus carinhos eram oferecidos ao
cão, mas era Taís quem os recebia. Havíamos encontrado a distância ideal para
uma relação afetuosa. A troca, indireta, não ameaçava. A adoção bilateral
começava a acontecer. Eu não tinha a sensação de representar um papel, ou de
dizer coisas de plástico (p. 231)
Pouco tempo depois, Taís pediu para conhecer os cães de Marion Sandy, uma
labradora e Billy, um beagle. Logo no início do processo analítico a adolescente
ouvira os latidos dos cães, que ficavam num quintal ao lado do consultório.
53
O encontro entre Taís e Sandy foi intenso, jogaram-se uma nos braços da outra.
Marion percebeu a situação como se Taís reencontrasse a destinatária de seus
poemas de amor pedido. O campo transferencial ‘esquenta’ porque agora era a
cachorra da analista em que Taís investia amorosamente; fazendo agrados e
trazendo presentes, a adolescente adotava a cachorra. Com a vinda de Billy o
consultório ficou pequeno e as sessões em que os cães eram requisitados
realizavam-se na praça em frente ao consultório. Conversavam sobre amenidades,
sobre os es e a autora nota algo que jamais ocorrera no consultório: “via Taís rir,
quase descontraída!” (Ibid., p. 232). Diante destes encontros e da gravidez precoce
de Loli, Marion passa a refletir sobre a questão da adoção e da criação de um mito
de origem para Taís. Num certo momento, Taís recusou-se a encontrar os cães da
analista: abandonava Sandy para que Loli não abandonasse os filhotes, pois se
passasse o cheiro de Sandy para os filhotes, Loli poderia não reconhecê-los mais e
deixar de cuidar deles: “Taís se empenhava em garantir as condições necessárias
para que Loli fosse uma boa mãe” (Ibid., p. 233).
Pensando sobre esses acontecimentos na análise, Marion nos coloca que
De um lado, minha função era semelhante à presença silenciosa de um cão junto
à mesa de trabalho do dono. Eu, sua analista, era um cão, um fantástico cão-
falante. Criava-se um ambiente terapêutico semelhante ao de um hospital-dia, no
qual as relações acontecem em todas as direções. Os vários eus de Taís se
relacionavam com os c(ã)o-terapeutas, de acordo com suas características
pessoais (...)
E prossegue
Porém o inverso também era verdadeiro. Afinal, eu nunca deixei de ser sua
analista e, na minha escuta, era comigo que Taís se relacionava através dos
cães. Eles eram apenas mediadores necessários entre mim e ela, eram meus
embaixadores. O resultado disto é que certa gama de afetos, antes represada,
agora fluía entre nós (p.233).
E, recapitulando as várias fases da análise de Taís, Marion re-interpreta a demanda
inicial: faço análise, desde que ganhe um cachorro uma analista-cachorro” (Ibid.,
p. 234, grifos originais).
Passado um tempo, Taís não requisitava mais os cães, as coisas haviam
mudado, queria entrar na Internet pelo computador de Marion: um território novo -
54
conversar com os rapazes pelo chat afinal, ela sempre havia preferido animal à
gente. Nessas buscas de contato, a analista entendia que sua pergunta era se
alguém, além dos cães, interessava-se por ela. Um dia, diante do pedido de um
rapaz para descrever como era sua personalidade, Taís pede que Marion escreva
para ela. A analista reflete sobre esta nova situação: “assim, sou diretamente
convocada a falar com ela, sobre ela. O cão, apesar de ser o melhor amigo do
homem, nada pode dizer sobre a personalidade de sua dona...” (Ibid., p.235). E a
análise seguiu, com Taís conseguindo cada vez mais realizar suas coisas, a
melancolia foi se dissipando. Ao alcançar a maioridade, traz conquistas de
autonomia, iniciando faculdade e realizando viagem. Num momento antes de fazer
uma viagem que duraria meses, Taís perguntou a Marion se esta não lhe daria
nenhum presente, nenhuma lembrança, e Marion lhe entrega um marcador de livros
que a jovem sempre segurava quando usava o computador.
Na ultima fase de análise Taís estagiava, cuidava do visual e tentava ficar mais
próxima à analista. A jovem propõe que ela e Marion tenham hamsters em
sociedade e, para a analista isto fazia parte de uma reconstrução de sua história.
Após um tempo, Taís propõe o fim da análise e Marion diz ter percebido que o ”nó
principal de sua história fora desatado. O resto teria que ficar para outra análise”
(Ibid., p. 236).
Trazemos aqui o caso de Taís, com sua riqueza de detalhes, por considerar
importante perceber que os cachorros fizeram parte de um processo que foi
conduzido, primordialmente, por outro ser humano. A postura psicanalítica de
Marion permitiu uma modificação no sentido de conter as necessidades de Taís.
Podemos perceber que a inclusão dos cachorros nas sessões fez parte de um
processo analítico mais amplo, ou seja, os animais eram parte integrante do
processo de análise da adolescente, mas não foram os cães em si que conduziram
a análise. Marion, nesse artigo, aborda de maneira sensível, como Taís relacionou-
se com ela através dos animais.
Marion não parece partir de um olhar winnicottiano para esse caso, mas talvez
alguns conceitos do autor possam ser aqui abordados. A questão de como Taís
pôde construir seu lugar a partir da relação com Marion, quando esta pôde sair do
55
‘papel’ de analista e ser uma e-analista, atendendo às necessidades da paciente
na posição em que a transferência a colocava. Parece-nos que a incorporação dos
cães primeiro a de Taís, depois os da analista ao setting analítico vem abrir
espaço para fenômenos internos que a adolescente era capaz de vivenciar apenas
com os animais a troca de afetos, o investimento amoroso, o relaxamento e a
descontração. Enfim, a possibilidade de estar com e, neste caso, estar com o outro
(cães), na presença da analista, e assim, poder se constituir com um outro que,
pouco a pouco, torna-se humano e digno de confiança e afeto – a própria analista.
Talvez essa experiência clínica encontre alguma relação com os conceitos que
Safra (1996, 1999) tendo em mente os pressupostos winnicottianos - tem
desenvolvido sobre o trabalho não verbal em análise. Segundo sua visão, tem
havido no campo psicanalítico um ‘imperialismo’ da palavra e uma tendência a
desqualificar o gesto. Comenta (1996): “a palavra freqüentemente é vista como
expressão máxima da capacidade simbólica do ser humano, enquanto os elementos
não verbais são classificados como primitivos’” (p.26). Safra (1996), analisando o
pensamento freudiano, percebe que esse compreenderia o símbolo como
relacionado à defesa frente à vida pulsional do sujeito; aproximando as expressões
não-verbais da concepção de sintoma, a técnica analítica buscaria verbalizar os
elementos que o sujeito teria afastado de sua consciência. a vertente kleiniana
pensaria a imagem e o gesto organizando-se segundo a confluência das pulsões de
vida e de morte, e a técnica interpretativa traduziria o drama vivido pelo sujeito.
Outra visão ainda para esses acontecimentos não-verbais em análise é a
compreensão winnicottiana, na qual o sujeito se constitui criando, primeiramente,
criando a mãe, em seu mundo subjetivo. Assim (Safra, 1996)
o próprio setting se fruto da capacidade criadora do paciente e do analista, e
neste sentido cada análise terá que ser conduzida a partir do encontro dessas
duas subjetividades e seu setting não poderá ser definido “a priori” (p. 27)
Aqui os conceitos de objetos e fenômenos transicionais são retomados a fim de
articular a dimensão simbólica da experiência humana. O objeto transicional tem o
seu valor não tanto por simbolizar a mãe, mas sim por ter sido criado pelo bebê e
ser um símbolo do self na realidade compartilhada (Safra, 1996). Segundo o autor,
quando é permitido, no interior do processo psicanalítico, que os fenômenos
56
transicionais com sua potencialidade simbólica, ocorram, isto possibilita o
surgimento do espaço potencial. Haveria então duas formas distintas de expressão
simbólica:
1. pela palavra, numa articulação que se forma ao longo do tempo, organizada
na forma de discurso, em que a linguagem é o principal referencial e;
2. a que se apresenta através de expressões não-verbais, no campo da
linguagem plástica, denominada ‘símbolo apresentativo’ (Matte-Blanco, 1988;
Langer 1989 apud Safra, 1996).
Mais adiante (1999), Safra retoma essas considerações ressaltando que
O indivíduo apresenta o seu existir por gesto, por sonoridade, por formas visuais,
por diversos meios disponíveis para constituir o seu self e seu estilo de ser. São
criações, na maior parte das vezes, de grande complexidade simbólica e não
passíveis de identificação (p. 24).
Nesse sentido, considera que o importante não é tanto o significado de um
determinado símbolo, mas fundamentalmente sua possibilidade de veicular uma
experiência, uma vivência. A interpretação reducionista poderia romper o fenômeno
de transicionalidade e ser invasiva no modo de ser do paciente.
Pensando sobre a experiência entre Taís e Marion e os cachorros, percebemos que
a analista parecia ter em mente não tanto a interpretação daquele fenômeno, mas
sim auxiliar que a paciente veiculasse uma experiência significativa. O que
importava não era tanto o significado dos cães para Taís, mas sim ela poder estar
com os cães de Marion, na presença afetiva de Marion. Inaugurando, talvez, outras
possibilidades de ser e estar no mundo. Lembrando que, segundo Safra (1999),
“ocupar um lugar no mundo é ocupar um lugar na vida de outro. Somente a partir
desta experiência é que o olhar poderá voltar-se para o mundo com curiosidade e
desejo” (p.80). O que, de fato, foi o que aconteceu com a paciente.
Delarissa (2003), partindo de uma concepção sociológica de que o mal-estar na pós-
modernidade deriva de um existir sem segurança (Bauman, 1998 apud Delarissa,
57
2003), considera que a leitura winnicottiana das relações entre pessoas e animais,
especialmente o o, coloca essa relação num campo cultural mais amplo, sendo
concebido como um espaço potencial aliviador de crises da pós-modernidade:
Numa época em que a crise é tão avassaladora, quanto maior o número de
espaços potenciais, melhor. Destarte, diante dos animais, entes que fazem
parte do ambiente cultural tanto tempo, nosso inconsciente teve um insight:
por que não usá-los como espaços potenciais? E mais do que nunca são assim
usados (p.20).
Ao refletir sobre as idéias deste autor, tenho em vista sua importante contribuição ao
construir uma correlação entre os fenômenos transicionais e as relações com os
animais de estimação, pois analisa o brincar de crianças pequenas com os cães, a
descontração e o relaxamento vindos dessa relação, tornando possível tal
aproximação teórica que venha a aumentar nossa compreensão sobre os
fenômenos estudados.
No entanto, recorrendo a uma certa leitura da obra winnicottiana que considera o
desenvolvimento em termos de amadurecimento do indivíduo e sua relação com o
ambiente, caminhando da dependência para a independência, pensamos que as
relações entre o indivíduo e o mundo dependem fundamentalmente da constituição
do self e da maneira como este se relaciona com o mundo em diferentes momentos
de vida. Então, se um objeto for concebido como subjetivo, transicional ou
objetivamente percebido, dependerá de uma relação com o mundo a partir do qual o
indivíduo é capaz de ser.
Tendo em vista essas considerações, a análise dos encontros entre os adolescentes
com síndrome de Down e os cães, numa situação estabelecida, tomará em conta a
visão de desenvolvimento e constituição de self winnicottiana, pensada como
relação com outro ser humano, que neste caso, inclui a presença de animais.
Buscarei um olhar atento para a maneira como cada um dos jovens relacionava-se
com os animais e também com as pessoas ali presentes, refletindo sobre as
experiências emocionais percebidas a partir de meu olhar como pesquisadora.
58
CAPÍTULO 3:
METODOLOGIA DA PESQUISA E PROCEDIMENTOS
3.1 ESCOLHAS METODOLÓGICAS
Para responder às indagações levantadas inicialmente e dar seqüência à pesquisa,
a escolha de encontros regulares entre adolescentes com síndrome de Down e
cães, intermediados por uma equipe profissional, era de grande importância, pois
permitiria a oportunidade de investigação dos aspectos psicológicos da relação entre
pessoas e animais num contexto interventivo. A escolha por este tipo de intervenção
ao invés das que realizam visitas às instituições deveu-se ao fato dela permitir um
enquadre mais estruturado em termos de um grupo de participantes, bem como o
local, a freqüência e o horário constantes. Deve-se ter clareza de que o tipo de
intervenção aqui estudada não teve como propósito a intervenção psicoterapêutica,
porém acredito que as relações estabelecidas nessa forma de organização e
enquadramento permitem maiores condições de reflexão sobre uma nova forma
proposta de atendimento psicoterapêutico diferenciado.
Tendo em vista os objetivos e o referencial teórico adotado, considero que o método
clínico de investigação psicanalítica seja o que melhor responda aos pressupostos
desta pesquisa. Safra (1994), em seu texto Pesquisa com Material Clínico escreve
Temos, na origem do desenvolvimento psicanalítico, um modelo de pesquisa em
psicanálise: o diálogo permanente entre teoria e clínica. A articulação teórica sem
referência clínica corre o risco de se aproximar das manifestações do
pensamento delirante. A clínica sem a conceitualização teórica pode perder-se na
indisciplina de uma prática onipotente e sem vigor metodológico (p.51)
Aqui o autor evidencia um dos fundamentos da psicanálise: a necessidade de
articulação entre a experiência clínica e a teoria que a sustenta. Almejo tal
articulação ao adotar o método de inspeção livre do material apresentado a partir do
referencial psicanalítico winnicottiano, buscando levantar reflexões e tecer leitura
sobre o acontecer dos adolescentes envolvidos nesta experiência singular. As
situações estudadas mostram-se únicas pois aconteceram dentro de um contexto,
59
configurado no interior de um espaço e de um tempo, envolvendo pessoas e animais
em suas singularidades.
No que se refere aos registros adotados narrativas clínicas a partir de filmagens
estes são marcados não pela pretensão de uma reprodução exata do que
aconteceu, senão por um “recorte limitado por um determinado ponto de vista. É
reconhecendo este limite que manteremos nossa objetividade na investigação do
que procuramos realizar” (Ibid., p.54). Assim, encontramos em Pétard (2002) valiosa
contribuição sobre a utilização de filmagens em pesquisa, desenvolvida no artigo
Observação e Intervenção: o que nos ensina a antropologia visual. Para este autor,
a “câmara registra um encontro” (p.16), tanto do grupo ali registrado, quanto destes
com o observador. Dessa forma, o autor faz uma crítica à tentativa do pesquisador
de se portar como uma caixa negra, num esforço para não deixar claro que ali há um
encontro, ressaltando a necessidade de “tomar em consideração os processos
psicoafetivos em ação” (p.16).
A opção metodológica por registros filmados surgiu da necessidade de buscar
abarcar o fenômeno observado levando em consideração dois aspectos:
1. Poucos são os estudos de abordagem qualitativa no tema das relações entre
pessoas e animais, de modo que a perspectiva psicanalítica winnicottiana
sobre as intervenções se apresenta como um novo olhar. Neste sentido, a
decisão metodológica por registros filmados evidencia meu desejo como
pesquisadora de documentar cada encontro em sua riqueza de detalhes,
permitindo tanto uma leitura geral do fenômeno, bem como de
particularidades, considerando o acontecer humano e o canino, suas relações
entre si e com o espaço-tempo disponíveis. Encontro ressonância em Pétard
(2002) quando formula que a prática da filmagem testemunha aquilo que
aconteceu no campo.
2. O registro filmado também permite, como bem evidenciou Pétard (2002), que
as imagens sejam retomadas a qualquer momento, permitindo novas leituras,
de modo que se pode olhar hoje para o que aconteceu em outros tempos.
60
Outra característica presente foi a decisão da filmagem ser feita pela própria
pesquisadora: aqui se presentificava meu olhar, como psicóloga, dirigindo a lente
da máquina para uma situação ou outra, de acordo com aquilo que pude captar e
privilegiar a partir de um recorte singular.
Com as filmagens em mãos e, tendo em vista os objetivos propostos, foi percorrido
um caminho metodológico que buscasse trabalhar o material obtido sem a pretensão
de classificar ou tipificar comportamentos. Antes, considero mais adequado e valioso
o uso de “uma estratégia que permite uma continuidade investigativa que se amplia
cada vez que é ouvida ou lida” (Medeiros, 2003, p.159), adquirindo um caráter
aberto a infinitas possibilidades de compreensão. Tal estratégia é encontrada na
feitura de narrativas da experiência, que podem ser entendidas como o olhar do
pesquisador e narrador que busca apreender o sentido dramático de um acontecer
humano, este visto a partir da concepção politzeriana como uma trajetória humana
experienciada através de gestos e sendo sempre relacional (Medeiros, 2003). Ainda
de acordo com Medeiros, não é possível sustentar a crença numa neutralidade que
conferiria purismo à narrativa pois “ela é o que foi vivido numa relação e, portanto,
pertence a esta experiência vivida” (p.156).
Partindo dessas formulações, juntamente com as questões norteadoras do presente
trabalho, as narrativas foram elaboradas de modo a contar o que aconteceu em
cada encontro, olhando para a experiência emocional dos adolescentes nas
relações entre si, com as demais pessoas, com os animais e com o espaço físico.
Tive a pretensão de contar com detalhes, adotando narrativas longas, para que
fosse possível ao leitor acompanhar o trajeto desta experiência e das reflexões
teóricas posteriormente desenvolvidas. Tal escolha teve também a intenção de
permitir ao leitor a apropriação do material apresentado. Como nos atenta Medeiros
Um leigo pode ter uma compreensão da narrativa, o psicanalista pode vir a
ter outra, o padre produzirá uma terceira e cada pessoa em sua
singularidade poderá colocar no mundo, a seu modo, uma compreensão
daquela narrativa (Ibid., p.158).
61
O procedimento de análise das narrativas elaboradas baseou-se no método por
inspeção livre, tendo por base o referencial psicanalítico winnicottiano. A construção
de análise foi dividida em dois momentos:
Apreciações: após a narrativa de cada encontro foram tecidas apreciações
dos aspectos considerados significativos daquela situação. A análise em
separado de cada encontro derivou da preocupação em compreender o que
aconteceu com os adolescentes, considerando o manejo da situação pelos
profissionais, as relações afetivas humanas estabelecidas, as relações inter-
espécies, as dimensões espaço-temporais e as funções exercidas pelos
cachorros em cada momento.
Análise: após as apreciações dos encontros, seguiu-se a integração da
investigação como um todo, de modo a clarificar os diferentes aspectos
psicológicos das relações entre pessoas e animais a fim de alcançar maior
compreensão da influência da participação dos cachorros nos encontros com
os adolescentes com síndrome de Down e, por fim, refletindo a respeito de
possibilidades de intervenção.
A análise do material apresentado teve por base o referencial psicanalítico na
apreciação do acontecer humano.
3.2 CARACTERÍSTICAS DAS INSTITUIÇÕES
A presente pesquisa investiga uma intervenção que é fruto da parceria entre uma
escola especializada no atendimento de pessoas com deficiência mental e um canil,
ambos situados numa cidade do interior estado de São Paulo. Um breve histórico
dessa parceria fornece subsídios para a compreensão do contexto no qual os
encontros ocorreram.
3.2.1 Histórico
O canil, localizado num sítio, criava a raça rottweiler, com ênfase no adestramento e
comportamento dos cães. Sua equipe era composta por proprietária, veterinário,
62
adestrador e tratador. No ano de 1998, o canil recebeu a visita de uma pré-escola
regular; as crianças brincaram, correram e, quando os cães foram apresentados,
um dos alunos portador de síndrome de Down montou numa rottweiler e brincou
que montava um cavalo, pois ele era praticante da equoterapia. Vendo a docilidade
com que a cachorra aceitou a aproximação e a vivência positiva do aluno, o canil
ofereceu seu espaço, cães e equipe para desenvolver um trabalho voluntário em
parceria com escolas de educação especial da região. Uma escola se interessou e
as visitas começaram: tinham um objetivo recreacional e tanto os alunos iam ao
canil, quanto os cães à escola. No ano de 2002, outra escola de educação especial
demonstrou interesse na parceria com o canil para formar um pequeno grupo de
alunos para uma intervenção com a participação dos animais.
3.2.2 Parceria escola-canil
Com o interesse da segunda escola, foram realizadas reuniões para definir a
proposta. A equipe participante foi composta pelos profissionais da escola nas
seguintes áreas: fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional, fonoaudiologia,
pedagogia. E dos profissionais do canil: adestrador, veterinário e auxiliar.
A parceria tinha por objetivo realizar uma intervenção exploratória entre quatro
adolescentes com síndrome de Down e cães, buscando o desenvolvimento motor,
lingüístico e emocional desses jovens. Os profissionais organizaram-se de forma
que o adestrador fosse o mediador no contato entre os adolescentes e os cachorros,
sendo que este profissional receberia orientações dos demais profissionais da
escola a respeito das atividades desenvolvidas.
Definiu-se a freqüência semanal, com dia da semana e horário fixos. A duração de
cada encontro podia variar de 30 minutos a uma hora. Ambas as instituições
aceitaram minha participação nos encontros na qualidade de pesquisadora.
Foram realizados um total de 15 encontros, no período de março a setembro de
2002. Este trabalho faz uso do material registrado nos 12 primeiros encontros.
Infelizmente, por motivos técnicos, os três últimos encontros se perderam.
63
3.2.3 Ambiente físico
Os encontros aconteceram no canil, localizado em um sítio de aproximadamente 20
mil metros quadrados de área verde e arborizada. Logo na entrada havia o
estacionamento e uma pequena praça contendo uma fonte, laguinho artificial, uma
ponte e dois viveiros de pássaros. Ali também havia duas construções: os canis e
um consultório veterinário. Mais adiante ficavam os campos gramados separados
por cercas que delimitavam os espaços: um campo em declive; um espaço com
bancos, balanço e quiosque; e um segundo campo contendo uma piscina retangular
própria para es, algumas árvores e obstáculos de agility
1
. Na parte final do sítio
havia mais uma construção rodeada por espaço gramado, separada por cercas do
segundo campo; nela encontravam-se mais canis e os banheiros. O terreno do canil
era retangular: de um lado ficava uma mata natural e fechada e de outro era
possível ter a visão de extensa paisagem campestre.
Como o espaço era aberto e descampado, os encontros ficaram sujeitos às
condições climáticas, portanto, quando o tempo estava chuvoso ou extremamente
frio, o encontro era cancelado.
Os adolescentes chegavam ao canil em companhia dos profissionais da escola, em
transporte da própria instituição. Desciam no estacionamento e caminhavam para o
campo com piscina; no caminho atravessavam a praça, o espaço com o balanço e o
quiosque.
No campo com piscina havia alguns obstáculos de agility disponibilizados, de acordo
com a descrição abaixo:
- Rampa: semelhante a uma gangorra; o cachorro é conduzido para subir a rampa e,
quando chega ao meio, a rampa se inclina para o outro lado e o cão desce por ela.
1
O Agility é uma atividade, baseada em provas hípicas, que consiste em fazer o cão percorrer um circuito com
obstáculos.
64
- Barreira: obstáculo de madeira ou metal, com hastes laterais verticais que
sustentam uma barra horizontal. O condutor leva o animal, que pula por sobre a
barra. Ou então conduz o cão por baixo de uma barra.
-Trança: troncos colocados verticalmente em linha reta; a pessoa conduz o cão
contornando os troncos em zigue-zague.
Nos encontros também foram utilizados outros materiais, como bolas de tênis,
raquetes e escovas.
3.3 OS ADOLESCENTES E OS ANIMAIS
A escolha pela pesquisa de intervenções junto a pessoas com deficiência partiu de
meu interesse pelos estudos e formas de atuações psicoterapêuticas com esta
população. A oportunidade de acompanhar os encontros oriundos da parceria entre
uma escola de educação especial e um canil possibilitou-me tomar contato com um
novo campo de investigação. A maioria dos alunos dessa escola tinha síndrome de
Down e a faixa etária atendida compreendia desde crianças pequenas até jovens
adultos.
Outro ponto a esclarecer foi a escolha de investigar as interações entre essa
população e os cachorros. Tal interesse deve-se ao fato de que o cão é um
mamífero de complexa organização social, criando facilmente vínculos com os
humanos (Grinsburg e Hiestand, 1992).
3.3.1 Os sujeitos participantes
A escola decidiu pela participação de quatro adolescentes com síndrome de Down e
selecionou os alunos considerando diferentes atitudes possíveis diante da proposta:
que gostassem ou não de cães, que fossem mais tímidos ou extrovertidos, mais
participativos ou não. Após discutirem sobre a escolha dos alunos em equipe, a
escola conversou com os pais e explicou a proposta, obtendo a aceitação da
participação dos filhos na intervenção. Nessa ocasião a escola também conversou
com cada adolescente sobre a proposta. O termo de consentimento (Anexo A) para
65
esta pesquisa foi entregue aos pais pela própria escola e a mim devolvido
preenchido e assinado por cada um dos pais.
Os nomes dos adolescentes aqui apresentados são fictícios, a fim de preservar suas
identidades. São eles:
- João, cuja idade era de 13 anos.
- Rita, cuja idade era de 18 anos.
- Ricardo, cuja idade era de 17 anos.
- Carlos, cuja idade era de 11 anos.
O horário dos encontros coincidia com o período escolar dos alunos e, quando
algum deles faltava na escola, também deixava de comparecer ao encontro.
3.3.2 Animais participantes
Em países onde as Intervenções Assistidas por Animais são mais difundidas e
praticadas, é comum a existência de entidades que oferecem treinamento para o
cão e técnicas de manejo do animal para os handlers (condutores, que podem ser
os próprios donos ou adestradores). Após esse treinamento, uma avaliação para
a dupla e, quando aprovada, obtém-se certificado de que aquele é um animal apto
para atuar nessas intervenções.
No Brasil não existe uma entidade reguladora, portanto, cada iniciativa mantém seus
próprios critérios de seleção e treinamento.
Os cachorros participantes pertenciam ao canil. Alguns haviam participado
anteriormente de intervenções com crianças e adolescentes (Tobi e Dara), outros
eram filhotes e estavam em fase de treinamento (Alegria, Hantês, Guilith e Tiff) e
outro (Nêgo) nunca havia participado desse tipo de interação.
66
Todos os animais receberam ou recebiam adestramento do profissional, que era
realizado a partir de estímulos e reforços positivos, com ausência de punições. Um
veterinário acompanhava a saúde dos animais, realizando controle parasitológico,
vacinação, exames complementares e orientando na manutenção da higiene e
alimentação dos mesmos. Os cachorros recebiam banhos semanais com germicida
e sua alimentação era feita com ração seca de qualidade.
Segue abaixo uma breve descrição dos cães participantes:
- Tobi: Beagle macho adulto com 7 anos de idade.
- Dara: Rottweiler fêmea adulta com 6 anos de idade.
- Alegria: filhote de Golden Retriever, fêmea.
- Hantês: jovem cão macho da raça Border Collie.
- Guilith: jovem fêmea da raça Miniatura Dachshund;
- Tiff: filhote fêmea de American Pit Bull Terrier;
- Nêgo: Rottweiler macho de 4 anos de idade.
Esses cães participaram das interações com os adolescentes em diferentes
momentos, tendo alguns participado de quase todos os encontros, outros de apenas
um ou outro. Em geral, quem definia qual cachorro estaria presente era o
adestrador.
67
CAPÍTULO 4:
NARRATIVA DOS ENCONTROS
Neste capítulo contarei, a partir de minha perspectiva, como foram os 12 encontros
filmados entre os adolescentes com síndrome de Down e os cães, numa situação
específica, em que também participavam profissionais da escola especializada e do
canil.
As reflexões e os questionamentos a respeito das relações entre pessoas e animais,
somados às condições específicas dos adolescentes participantes e da situação
dessa intervenção como um todo, conduziram-me no sentido de criar narrativas
longas, buscando apresentar em detalhes cada um dos encontros, acreditando,
assim, que a riqueza do material e a diversidade de situações vividas possam
ampliar o entendimento a respeito da experiência emocional entre pessoas e
animais.
Após a narrativa de cada encontro foi feita a apreciação dos aspectos considerados
significativos.
Os encontros eram semanais, com dia fixo, sempre iniciando no mesmo horário e
sua duração era variável, indo de 30 minutos a 1 hora. O local onde as atividades
foram desenvolvidas era um sítio, com campos gramados. Os adolescentes e
profissionais da escola chegavam ao local em veículo próprio, desciam no
estacionamento, onde geralmente eram recebidos pela equipe do canil e
caminhavam até o campo destinado ao encontro.
Encontro 1 (E1)
Nesse primeiro encontro estavam presentes os quatro adolescentes: Carlos, João,
Ricardo e Rita, bem como toda a equipe profissional da escola e do canil. Fiquei
próxima ao campo, filmando.
Todos chegaram e caminharam para o campo onde seria realizado o encontro.
Carlos e Ricardo pareciam curiosos, buscando contato com a rottweiler Dara, que
estava junto ao adestrador André; este, por sua vez, conversava com Marcos, um
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dos profissionais da escola. João e Rita estavam sentados no gramado com os
demais profissionais.
Ao ser convidado por André para passear com Dara pelos obstáculos de agility,
Ricardo prontamente aceitou e começou a caminhar segurando a guia da cachorra.
Logo depois parou e, olhando para Dara, fez o sinal da cruz como se pedisse
proteção divina. Conduzia a cachorra animado e atento, parecia ter olhos apenas
para ela; Dara acompanhava seu ritmo e aceitava seus afagos. André ia indicando
os obstáculos. Após um tempo, o adestrador mostrou para o adolescente que Dara
sentava e dava a pata; Ricardo, então, decidiu primeiro cumprimentar André e
depois pegou na pata da cachorra, sorrindo e acarinhando sua cabeça. Quando
voltaram a caminhar, Ricardo passou a indicar em quais obstáculos queria ir e o
adestrador percebeu seu movimento e passou a segui-lo. Ao terminarem, o
adolescente entregou a guia para um dos profissionais da escola, Marcos.
João, ao ser convidado para participar, ficou quieto e não respondeu. Então Carlos
foi chamado e, após André ter demonstrado que a cachorra sentava e dava a pata,
entusiasmado, ele logo repetiu os comandos. Começaram a caminhar pelos
obstáculos que André indicava e Carlos conduzia Dara, visivelmente animado.
Quando passaram perto da piscina, o garoto perguntou se a cachorra poderia nadar;
diante da resposta negativa de André, Carlos continuou no percurso com a cachorra.
Parecia gostar de conduzir e, principalmente, dar comandos para Dara, fazendo-a
sentar e dar a pata. Quando a cachorra não correspondia aos comandos, André
tentava auxiliar, e, quando ela atendia às solicitações, Carlos sorria, acariciava sua
cabeça e aproximava seu rosto do dela, de modo muito afetuoso. Passado um
tempo, André comentou que a cachorra precisava descansar. Carlos indicou um
lugar ao sol, mas o adestrador disse que ela tinha de ficar na sombra. Dara ficou
deitada e André orientou o garoto a não mexer mais com ela. Carlos pareceu
chateado; foi para o grupo, mas seu olhar ficou pousado em Dara.
Durante este tempo, Ricardo saiu do campo e foi até a filmadora, estava curioso. Ao
ser convidado a olhar pela tela, ele olhou e depois me abraçou, feliz. Permaneceu
um longo período ali.
69
A seguir, Rita foi convidada para caminhar com a filhote de golden Alegria - André
lhe estendeu a mão e caminharam de mãos dadas; seu andar era um pouco
retraído. Os dois tentaram fazer a filhote subir na rampa, incentivando-a, mas Alegria
logo desceu. Rita, então, passou sua mão carinhosamente nas costas da cachorra,
parecendo confortá-la. Depois andaram mais um pouco e voltaram para o grupo.
Após ficar um longo período observando a situação, João levantou e decidiu
participar, ao que a equipe de profissionais da escola aplaudiu. André ia indicando o
caminho e João conduzia a cachorra com tranqüilidade e segurança; afagava-a
timidamente, ia sorridente e concentrado nela. Freqüentemente o adolescente
buscava o olhar dos profissionais da escola, levantando os braços, vitorioso.
Quando o adestrador fez Dara sentar, João logo pôs sua mão para segurar a pata.
Caminharam por mais obstáculos e depois comandaram a cachorra para sentar e
dar a pata. João sorria, satisfeito; o grupo de profissionais aplaudia e dava os
parabéns.
Depois André convidou Rita para caminhar com Dara: recusando, a jovem inclinou o
corpo para trás, num gesto de evitação. Observando a situação, Carlos correu e
segurou a guia da cachorra, dando pulos de alegria. Mas ao chamarem a cachorra
para levantar, ela não se mexeu; então, André explicou que Dara estava cansada e
seria melhor ficar solta. Vendo-a se afastar, Carlos chamou “Aqui, ó, menininha” e
depois voltou sua atenção para Alegria.
André chamou os adolescentes para conhecer os obstáculos sem os cães; João e
Carlos aceitaram o convite e os três foram até a rampa, Carlos tomou a iniciativa e
passou animado pelos obstáculos, João o observava, sorridente. Após cumprimentar
Carlos, André brincou dizendo ‘senta’, e Carlos sentou, depois André disse ‘fica’ e
Carlos deu risada. Em seguida, foi João quem passou pelos obstáculos com André,
ia calmo, sempre sorrindo. Ao final, André o cumprimentou e perguntou: “E agora,
como é o comando? ...Senta”, ao que João deitou no gramado, com as pernas para
o ar, muito descontraído.
Depois os adolescentes voltaram a ficar junto da equipe da escola. Menos Carlos,
que encontrou uma bola de tênis e resolveu jogar para Alegria, que não se
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interessou. Ele a incentivava: “Aqui, menina”; vendo que não atraía sua atenção,
mudou de alvo, mostrando a bola para Dara e depois jogando - e a cachorra logo foi
buscar a bola. Animado, Carlos a chamava “aqui, Dara”, jogando a bola mais uma
vez. André se aproximou e ensinou Carlos a quicar a bola; ele, então, passou a
fazer a bola quicar, mas Dara não ia pegá-la; então André disse que ela estava
cansada, mas Carlos não desistia. Quicando a bola novamente, Dara a pegou; ele
batia palmas e chamava a cachorra. André então comentou que era melhor levá-la
ao canil para descansar e Carlos acompanhou o adestrador e a cachorra.
César, um dos profissionais da escola, disse: “Aí começa pelo interesse de cada
um, a diferença de interesse de cada um é um ponto a ser analisado. O porquê
do desinteresse, o porquê dela, ele a gente conhece o tipo de pessoa que ele é
ele diz não, depois vai indo, vai indo, sai. o outro é arroz-de-festa, é capaz,
daqui a pouco, de mandar André embora e ficar fazendo sozinho. Então é que
tem tipos diferentes de comportamento na aceitação do exercício”.
No campo, as filhotes Alegria e Guilith (esta havia sido trazida a pedido do
adestrador) circulavam entre as pessoas. João, sentado na grama, as afagava e
abraçava quando elas vinham ao seu colo. Ricardo havia voltado para o campo e,
contente, passava as mãos nelas quando vinham pular em suas pernas. Carlos
também estava de volta e interagia com elas. Mas Rita não parecia muito confortável
com a situação, estava temerosa, procurando afastá-las com suas mãos. Diante de
sua atitude, alguns profissionais da escola recriminaram seu gesto, parecendo
considerá-lo agressivo e desnecessário; diziam que as cachorras não morderiam e
que ela tinha de fazer carinho nelas. Rita se retraía. Neste momento o o Hantês,
mais ativo e agitado, também foi trazido para o campo. Visivelmente preocupada,
Rita disse “Não quero”, quando Guilith foi ao seu colo e os profissionais tentaram
convencê-la de que a cachorra o era uma ameaça. Os cães saltitavam ao seu
redor e Rita começou a chorar, aflita. Então André, percebendo a situação, tentou
segurar os cães e pediu que levassem Rita para fora do campo. Ela saiu do campo
levada por uma das profissionais e foi para um balanço, ali onde se acalmou e parou
de chorar. João se aproximou, Ricardo também foi para o portão e Carlos, que
estava a brincar de pega-pega com Hantês, também caminhou para o portão.
71
Apreciação (E1)
A maneira como foi configurado o encontro, através de atividades propostas pelos
profissionais ali presentes, criava uma situação na qual esperava-se que os
adolescentes se adaptassem ao ambiente. A atividade de conduzir o cachorro pelos
obstáculos foi uma maneira de cada jovem conhecer a situação, mas, se por um
lado aproximava os jovens do contato com o animal e com o profissional através da
exploração do espaço, por outro permitia poucas oportunidades de integração do
grupo uma vez que era individual. O adestrador pareceu ter sido o profissional
considerado responsável por mediar o contato entre os jovens e os animais. Os
profissionais da escola assumiram a postura de observadores, a fim de conhecer a
situação.
Como César bem apontou, é interessante perceber o movimento de cada
adolescente diante deste novo contexto. De início Carlos e Ricardo demonstraram
interesse por estar ali, iniciando contato direto com a rottweiler Dara, demonstrando
confiança em seu comportamento dócil. Por outro lado, João e Rita permaneceram
junto ao grupo de origem, conhecido e confiável - os profissionais da escola - num
movimento de hesitação diante do novo contexto. Quando cada adolescente foi
convidado a conduzir o cão, pôde-se perceber a maneira como isso foi feito. Ricardo
conduziu Dara e fez o sinal da cruz, possivelmente associado simbolicamente com
um pedido de proteção. Chama minha atenção que, após um período em que o
adolescente se adapta às orientações de André, sente-se confiante para mostrar
seus próprios interesses e seu gesto é acolhido pelo adestrador. Depois Ricardo
parece sentir-se livre para explorar a situação de outras maneiras, vindo até a
filmadora e ali ficando, para então, quando as filhotes começaram a circular pelo
campo, voltar para e trocar afagos com elas. Carlos apresentou-se, desde o
início, como um garoto comunicativo, cheio de iniciativa e entusiasmo, investindo
tanto nas pessoas quanto nos animais. Interagiu com cada cão ali presente de modo
afetuoso, mantendo bom contato com André, que lhe ensinava a comandar os cães.
Penso que, quando a criatividade de Carlos emergia no contato com os animais -
como quando teve a iniciativa de jogar a bolinha para Alegria e depois para Dara - a
entrada de um profissional que o ‘ensinava’ como fazer as coisas pareceu alterar o
curso da experiência, transformando-a em submissão. Um outro aspecto foi a
maneira particular com que Carlos interagiu com cada cachorro, percebendo as
72
diferenças entre eles. João ficou um período em hesitação, observando,
conhecendo a situação e, talvez, percebendo o que se esperava dele. Após sua
rejeição inicial em participar da condução do cachorro e, depois observar os outros
três colegas, algo dentro dele aconteceu que o levou a entrar na atividade, a qual
realizou com eficácia e segurança. Aqui, fico com a impressão de que sua satisfação
era em ter sucesso na atividade proposta, do qual decorriam palmas internas e
externas. Também o grupo de profissionais da escola demonstrou um movimento
diferente em relação a João, que não emergiu na relação com os demais
adolescentes: organizaram-se numa torcida, num olhar positivo diante deste jovem,
destacando suas qualidades. Pareceu-me, também, que o importante para João não
era tanto o contato com o animal, mas sim, realizar uma tarefa com o uso do animal.
Rita ficou hesitante desde o início, depois participou da condução da filhote,
tendo como segurança a presença de André, com quem caminhava de mãos dadas.
Demonstrou afeto e acolhimento com Alegria diante da dificuldade em subir na
rampa, num gesto possivelmente de empatia. No entanto, diante da presença da
rottweiler Dara, sentiu-se ameaçada e, mesmo depois, quando os cães estavam
soltos, foi ficando cada vez mais angustiada, até chorar. Aqui considero que
algumas questões se fazem importantes: na realidade psíquica desta adolescente,
alguns elementos podiam ser tolerados e outros não conduzir uma filhote na guia
com o auxílio do adestrador era tolerado, entretanto, ter diversos cães circulando ao
seu redor era-lhe muito difícil. Neste momento o ambiente não conseguiu protegê-la
da invasão, seja porque não perceberam o que se passava com ela, seja por terem
desconsiderado seus sentimentos. O resultado parece ter sido de invasão ambiental
(no caso canina), diante da qual ela teve de reagir e isolar-se até recuperar seu
estado de segurança.
Neste encontro os cachorros foram conduzidos e comandados pelos adolescentes, e
tanto corresponderam à manipulação quanto não fizeram o que esperavam deles.
Quando o cachorro correspondia ao comando, os jovens podiam experimentar o
controle pela manipulação, entretanto, quando o animal não correspondia aos
comandos ou expectativas, isto pareceu abrir espaço para relações mais livres, onde
o brincar era possível, como quando, após caminharem pelos obstáculos, André deu
aos adolescentes comandos semelhantes aos que haviam dado aos cães, Carlos e
73
João riram descontraídos. Os animais também foram investidos de afeto pelos
adolescentes em alguns momentos.
Encontro 2 (E2)
Estavam presentes Carlos, Ricardo, Rita e alguns profissionais da escola e do canil.
Fiquei dentro do campo filmando.
Ricardo e Rita haviam ficado junto aos profissionais da escola e Carlos foi até
André, que posicionava uma segunda filmadora sobre um tronco. Carlos estava
curioso, olhando, mas logo depois, ao avistar os cães no campo ao lado, dirigiu-se
para lá com o auxiliar Paulo. Chamou Dara e perguntou para Paulo qual era o nome
do outro cachorro; ele respondeu que era Tobi, e então Carlos passou a chamar-lhe
pelo nome. Quando o auxiliar lhe entregou Tobi na guia, Carlos, visivelmente
animado, começou a correr pelo campo. Por vezes, o cão ia à frente e Carlos o
seguia, mas este, tentando assumir o controle da situação, segurou-o na guia e o
levou para pular um obstáculo, mas o cão não pulou. André observou o que estava
acontecendo e convidou Carlos para ir com o cão pelos obstáculos; ele
imediatamente aceitou. Enquanto caminhavam, o cão urinou num tronco, e Carlos
disse: “xixi, xixi!”, André também olhou, depois continuaram. O garoto tinha
dificuldade em conduzir o cão, que este estava interessado em cheirar o chão.
André chamava Tobi pelo nome, numa tentativa de captar sua atenção. Passavam
pelos obstáculos que André indicava e, de tempos em tempos, Carlos parava e fazia
o cão sentar dizendo o comando e pressionando com a mão o dorso do cachorro;
este aceitava seu gesto e sentava, então o garoto agachava e abraçava Tobi, que
abanava o rabo. A seguir, André e Carlos comandaram que o cão rastejasse. Carlos
sempre o agradava de forma carinhosa e André lhe ensinava os comandos.
A esta altura procurei Rita, encontrando-a sozinha na cerca; mexia com o pé no
chão, de costas para o campo. Depois se virava e olhava a dupla que conduzia o
cão, não parecendo interessada no que via. Ricardo, por outro lado, mostrava
interesse pela outra filmadora. André se aproximou e perguntou se queria “sair na
fita”; o adolescente, recusando o convite, afastou-se, ficando sentado de forma um
tanto retraída. André tentou convidá-lo novamente, mas Ricardo se manteve em
isolamento.
74
Enquanto isso, Carlos andava com Tobi e And logo voltou para junto deles.
Comandavam o cão e, quando este deitava e rastejava outra vez, Carlos e And
também se arrastavam pelo chão, incentivando o cão. Eu tinha a impressão de que
Carlos estava gostando disso pois parecia alegre ao passar a mão na cabeça de
Tobi. Depois ele pegou a guia do cão e a levou até Ricardo; André o convidou para
passear, mas Ricardo recusou o convite. Carlos, atraído pela outra filmadora, foi até
ela; André o orientou que olhasse mas não mexesse. Uma das profissionais da
escola, Lurdes, foi até ele e disse: “Se você não fizer o que André está pedindo,
você não vem mais aqui!” Depois pegou Carlos pelo braço e o levou até o portão;
ele se soltou e correu até Tobi, chamando-o, e acarinhou o cão. Enquanto André
ajeitava a filmadora, Ricardo começou a caminhar com Tobi pelo campo. Com a
saída de Tobi, Carlos voltou sua atenção para Dara, que estava deitada na grama.
Vendo seu interesse, André disse “Ainda não”. Carlos passou a mão na cabeça da
cachorra e sentou, esperando.
André foi até Ricardo e começou a indicar os obstáculos; o adolescente participava,
mas parecia não estar muito presente na atividade - fiquei com a impressão de que
ele gostaria de andar apenas com Tobi, sem mais ninguém junto. Às vezes andava
mais rápido, deixando André para trás e passando sozinho com Tobi pelos
obstáculos. Diante dessa situação, André comentou que eles deveriam andar juntos.
Carlos, que olhava para eles o tempo todo, aproximou-se e ficou caminhando mais
atrás. Ricardo mantinha seu olhar em Tobi. And fez o cão sentar e dar a pata;
Ricardo apenas observava, e, com o incentivo de André, afagou o cão. Carlos
estava perto deles e Tobi sentou entre os dois adolescentes, que abraçaram
simultaneamente o cão: Carlos pela cabeça e Ricardo pelo dorso. O cão ficou
parado, recebendo o gesto de ambos.
Depois André foi chamar Rita, que aceitou participar; juntos, caminharam até os
outros adolescentes e André explicou que Tobi iria caminhar com Rita. Percebi que
ela parecia ansiosa por começar, dava pequenos pulos. Ricardo e Carlos ficaram
parados, vendo a colega andar com o cão. Iam aos obstáculos indicados por André.
Ao chegarem a um obstáculo em que o cão passaria por baixo de uma barra, André
encorajou Rita a passar junto; ela aceitou e foi. Fizeram isso algumas vezes e,
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sempre que levantava, Rita retirava a grama dos joelhos. Depois Tobi ficou solto,
sem a guia, e correu até Carlos e Ricardo; Rita veio atrás, saltitando, sua expressão
era de contentamento. Novamente André pegou Tobi e Rita continuou a caminhar
com ele. Com a saída de Tobi, Carlos e Ricardo ficaram olhando para o chão, dando
a impressão de tristeza. Quando Rita passou perto deles, Carlos deixou sua mão
escorregar pelo dorso de Tobi e Rita passou ao carinhosamente sobre a cabeça
do colega.
André, então, sugeriu a Rita passarem pelos obstáculos sem o cão; ela concordou e
seguiu pulando. Ele explicava sobre os obstáculos e seus nomes e, de mãos dadas,
passavam por cada um deles. Rita andava saltitando, parecendo descontraída. Ao
final, André lhe disse “Obrigado”, e ela “De nada” e seguiu pulando até o portão,
onde os profissionais da escola estavam.
Carlos foi até Tobi e o afagou, tentava fazê-lo sentar e dar a pata, mas ele não
correspondeu. Um pouco bravo, Carlos segurou sua cabeça com as duas mãos,
virou-a em direção ao seu rosto e exclamou “Hei!”; em seguida voltou a acarinhar o
cão. Chamou André, que estava com Rita e não ouviu. Então Tobi seguiu até
Ricardo, que o afagou. Carlos correu atrás dele. André veio até Ricardo e disse que
dariam comandos para Dara obedecer. Mas, como se contasse um segredo, o
adolescente cochichou algo para André, que disse “Ah, então a sua mão”. O
adestrador comandou Dara para dar a pata; Ricardo a cumprimentava algumas
vezes, estava contente e acariciava a cabeça da cachorra. Dara deitou e Ricardo
agachou para fazer carinho nela, enrolou a guia nas mãos e deu um tapinha leve em
seu peito. Juntos, André e Ricardo afagavam Dara. Enquanto isso, Carlos pegou a
guia de Tobi e foi caminhar pelos obstáculos; fez o cão sentar, dar a pata e deitar.
Ricardo, o adestrador e a cachorra foram para os obstáculos. Carlos mudava de
direção e me chamava para que eu o filmasse passar pela barreira, depois sentou e
ficou agradando o cão. Durante mais um período de tempo Ricardo conduziu a
cachorra, depois foi a a cerca, encostou-se e, olhando para o campo, ficou
sorrindo.
André começou a criar uma situação nova com os adolescentes: pediu a Carlos que
se deitasse de bruços na grama; ele deitou e riu, olhou para Tobi e perguntou se ia
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pular. André lhe perguntou se ele achava que ia pular, ao que Carlos respondeu
afirmativamente. “Então fecha os olhos, você vai dizer quando for o Tobi e quando
for eu”, falou André. Carlos, ansioso, abria os olhos e se mexia; os profissionais da
escola diziam para ficar de olhos fechados. Ricardo foi chamado para participar e
parecia animado; juntos, Ricardo e André passaram por cima de Carlos – que olhou.
André perguntou quem tinha passado passou e ele respondeu “Ricardita!” Ricardo
pôs a mão na boca e riu, sua expressão era alegre. Depois passaram com o
cachorro, Carlos olhou e disse que era Tobi. Todos riram e, a seguir, foram
novamente com o cão.
Depois foi a vez de Ricardo, que rapidamente deitou de bruços. André e Carlos
passaram por cima dele e perguntaram quem era; sem olhar, Ricardo disse não
saber. Passaram novamente, desta vez engatinhando; Ricardo olhou mas não
respondeu quem era. Quando Tobi passou, Ricardo respondeu sem olhar que
era o cão. Então André chamou Rita. A equipe da escola incentivava e, de início, ela
recusou, mas André lhe estendeu a mão e ela o acompanhou. Chegando até os
colegas, ela se apoiou em Ricardo. André a convidou para deitar e Rita recuou, mas
quando ele disse “Então vamos s dois”, ela participou. Carlos fora designado por
André para conduzir o cão, Ricardo os observava. Carlos passou com o cão e Rita
disse que era Tobi, levantando a perna para o ar, num gesto de aparente
descontração. Carlos passou novamente com Tobi e Rita identificou o cão. Em
seguida, André perguntou se gostaria de ir sozinha, mas ela fez não com a cabeça,
encostando sua mão na cabeça de Ricardo, e depois foi para o portão.
Carlos corria pelo campo com Tobi, conduzindo-o pelos obstáculos. André se
aproximou dizendo que iriam relembrar os obstáculos juntos, e retirou Tobi do
campo. Seguiam pelos obstáculos e o garoto o respondia às perguntas que o
adestrador fazia. Carlos pulou obstáculos e depois, agachado, olhou para André e
latiu; este pareceu não perceber a brincadeira, mas Carlos insistiu, começou a andar
como um cachorro. André, olhando para ele disse que deveriam andar em pé, mas
Carlos continuava com a brincadeira. Então o adestrador perguntou se ele era um
cachorro; Carlos pulou mais um obstáculo e André o auxiliou. Carlos rolou, latiu e
sorriu. André perguntou: “Como é o seu nome? Tobi?”, “É”, respondeu o Carlos-
Tobi, passando por mais um obstáculo. Depois tentou colocar uma guia no próprio
77
pescoço e o adestrador, então, prendeu a guia na blusa do garoto-cão. “Vamos lá,
Tobinho” incentivava André, e, juntos, os dois riam; Carlos-Tobi latia feliz. O
adestrador perguntou como Tobi fazia xixi; Carlos-cão levantou a perna perto de um
poste e riu. “Já que está imitando o Tobinho, como é o senta?” Garoto-Tobi sentou.
“E como a pata?” Carlos-cachorro deu uma pata ao adestrador, depois a outra,
deitou e rastejou, sentou e cumprimentou. Carlos ria. André elogiou “Muito bem,
Tobinho”. Depois tirou a guia da blusa do garoto, que se levantou e limpou a roupa.
Cumprimentaram-se e foram até a segunda filmadora. Carlos olhou por ela. Rita
estava perto dali e Ricardo saiu do campo.
Apreciação (E2)
Quando momentos de maior liberdade na relação entre os adolescentes e
animais, surge o início de uma relação mais singular em que os adolescentes
experimentam a continuidade de seus gestos: Carlos interessou-se por Tobi e
passeou descontraidamente com o cão pelo campo; mais tarde, ele e Ricardo
abraçaram o cachorro. Mesmo as atividades dirigidas, quando é fornecido o espaço
para os interesses dos jovens, tornam-se mais ricas e significativas, como as que
André e Carlos realizaram com Tobi. É interessante perceber que elementos
significativos são vivenciados no contato com o animal quando o ambiente humano
é capaz de acolher a maneira de ser do outro. Isto pode ser observado quando
Ricardo cochichou seu desejo para André e em seguida cumprimentou Dara. Carlos
também buscou apropriar-se de maneira pessoal da situação, sendo que em alguns
momentos isto foi possível, em outros houve uma interdição dos profissionais por
vezes até de maneira rígida: “se não fizer o que André está mandando não vem
mais aqui”. E Rita, que havia se isolado no início, participou das atividades em grupo
na presença afetiva de André, em quem pareceu confiar.
A brincadeira de deitar na grama e o cão ou colegas pularem por cima levou a uma
experiência grupal mais integrada, ao mesmo tempo em que envolveu cada
adolescente de um modo que lhe era particular. Com isto, todo um espaço de
experimentação foi inaugurado e Carlos, por meio de fenômenos transicionais, pôde
ser um garoto-cão numa superposição de sua área do brincar e da de André, que se
adaptou à atividade lúdica de Carlos.
78
As funções do cão foram diversas: de inclusão nas atividades corporais onde
geralmente se adaptava ao ritmo de cada um; de trazer uma realidade própria
quando a adaptação não era completa; de possibilitar a emergência de certos
sentimentos não compartilhados com as pessoas, como quando Carlos ficou bravo
com o cão ao não obedecê-lo; também na confiança que Ricardo demonstrou com
Tobi e Dara; e na superação do medo de Rita pelos cães que foi minimizado pelo
holding fornecido por André.
79
Ricardo (à dir) indicando os
caminhos(E1)
Rita (à dir) acarinhando Alegria (E1)
João (à esq) Conduzindo Dara (E1)
Carlos lançando bola para Dara (E1)
Rita (à dir) com os cães ao seu redor (E1)
Carlos (à esq) e Ricardo (à dir) abraçando
Tobi (E2)
Os adolescentes no campo. Carlos
puxava a cabeça de Tobi enquanto dizia
“Hei!”(E2)
Carlos-Tobi dando a pata para um dos
profissionais (E2)
80
Encontro 3 (E3)
Estavam presentes os quatro adolescentes, alguns dos profissionais da escola e a
equipe do canil. Fiquei no campo filmando.
Carlos e João estavam sentados na grama junto à profissional Lurdes. Rita, sozinha,
foi sentar-se na mureta junto à cerca. A convite de André, Ricardo passeava com
Tobi pelos obstáculos, o cão era conduzido por duas guias que cada um segurava.
O adolescente mantinha sua atenção no cão quando André lhe disse: “Passa você
sozinho agora”. Ricardo conduziu Tobi pela rampa e parecia gostar disso. Depois se
sentou junto ao grupo e João foi chamado para participar; acompanhado de André
conduzia Tobi. O adolescente ia calmo e, logo depois, guiava o o sozinho.
André o orientou a puxar o cão para que subisse na rampa e depois o agradasse;
João assim o fez e o cão realizou a ação. Voltando para o grupo, agora era a vez de
Carlos, que foi até Tobi e, primeiramente o afagou, pegando em sua pata. Animado,
conduzia o cão junto com o adestrador. Logo And disse para ir sozinho; ao
conduzir, Carlos falava “Tobi, aqui, ó” ou então “ó, ó” e o cão o seguia. Com a
sugestão de André, o garoto fez Tobi sentar e dar a pata. Depois André foi chamar
Rita para participar e diante de sua recusa lhe disse: “Tá bom, quando você quiser
vir, você vem, tá bom?” e ela respondeu: “Eu não!”.
João deitou sua cabeça no colo de Lurdes, que o acolheu. Carlos estava perto
deles. A convite de André, Ricardo passeou mais uma vez com Tobi, passaram por
um obstáculo diferente. Fazendo zigue-zague, Ricardo seguia o cão, que era
conduzido por André; estava concentrado nos movimentos do cachorro. Quando o
adolescente se confundia, voltavam e refaziam o percurso. André falou: “Quero que
você passe sozinho com ele. É você quem está no comando agora, você escolhe
onde quer passar”. Ricardo conduzia Tobi pelo zigue-zague, mantendo a guia alta
para facilitar o controle sobre oo. Ele e o adestrador se cumprimentaram e André
perguntou se gostaria de ir novamente, mas ele respondeu negativamente; então o
grupo aplaudiu e Ricardo foi cumprimentar o profissional Marcos. Depois João foi
realizar a atividade. André ia à frente, João o seguia, sorridente. Num certo
momento André disse “Olha lá, João, você viu o que ele fez. Então agora você
estará comandando ele. Então vai lá!”. João fez o zigue-zague com o cão, ficando
concentrado; André o orientava como segurar a guia quando o cão se dispersava,
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João puxou-a suavemente e ele o seguiu. Demonstrava facilidade em conduzir o
cão. Voltando para o grupo, agora era a vez de Carlos, que correu e segurou a guia
do cão. André lhe explicou o exercício e seguiram pelo obstáculo. Carlos andava
devagar, retendo o corpo e André lhe dizia para irem mais depressa. Depois disse
ao garoto: “Agora você vai passar sozinho com ele do seu lado esquerdo, faz o que
você quiser” e o garoto conduziu o cão pelo zigue-zague; o cão estava disperso,
cheirando as coisas ao redor, dificultando a atividade para Carlos. André decidiu
intervir e demonstrou como conduzir o cão. Carlos tentou fazer igual, mas o cão
sentou. Então o garoto tentou empurrá-lo, ao que o adestrador disse que era
andar que o cão seguiria, e foi o que aconteceu. Os dois, Carlos e Tobi, iam
caminhando um pouco desajeitados, mas a dupla seguia. Carlos chamava o
cachorro, incentivando-o a segui-lo. Depois voltaram para o grupo.
André perguntou para todos quem gostaria de ir aos obstáculos sem os cães e
Marcos tomou a iniciativa de acompanhar Carlos pelos obstáculos. João continuou
sentado junto à outra profissional da escola, Tobi estava com eles. Nessa hora
André foi até Rita dizendo animado “A-ha, agora eu quero ir com a senhora, vem cá,
deixa eu te mostrar o Tobinho”. Ela batia com um graveto na cerca, olhava para o
chão e disse “Não quero”. Ele tentou tocar sua mão, mas ela recuou; então ele
perguntou se estava lembrada de como havia feito na última vez. Rita permanecia
quieta. André tornou a perguntar, indagando como era. Então disse que o
precisavam ir com o cachorro, sugerindo: “Faz de conta que eu sou o cachorro”. Rita
respondeu “Tá bom” e juntos caminharam, ligados por uma guia que cada um
segurava. João ainda estava sentado na grama, então outra profissional da escola
se aproximou. Carlos agachou e latiu, porém ninguém olhou para ele; latiu
novamente, desta vez se dirigindo a Rita e André, que o olharam e sorriram para
ele. Rita acabou voltando para a mureta e Carlos tentava brincar com Tobi, que foi
solto pelo adestrador. Ricardo, que havia ido para o portão, uivou. Todos riram e
quando André lhe perguntou “Como o cachorro faz?”, Ricardo respondeu “Bicho-
homem”. Com o convite, o adolescente juntou-se ao grupo.
André pediu a Carlos que trouxesse Tobi; ele logo foi atrás do cão, chamando-o,
depois tentou colocar o enforcador em Tobi, mas não conseguiu. André e Marcos se
aproximaram e o adestrador, juntamente com o garoto, colocou o enforcador em
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Tobi. Em seguida Carlos, tomando a iniciativa, começou a correr com Tobi pelo
campo; chamava-o pelo nome e passavam pelos obstáculos. André lhe disse que
depois seria a vez de outro. Lurdes perguntou a Carlos em que lado o cão deveria
ficar (anteriormente André havia mostrado que era do lado esquerdo) e o garoto
posicionou o cão à sua esquerda. Ao levar o cão pelos obstáculos, Carlos tentou
subir junto na rampa, porém quando André lhe disse para não fazer isso, ele desceu
e passou apenas o cachorro. Quando Carlos encontrava dificuldade em levar Tobi, o
adestrador intervinha orientando ou demonstrando como manipular o cão. No meio
de uma orientação, Carlos agachou ao lado de Tobi, olhou para André e começou a
passar a o nas costas do cão. Parecia tão envolvido com o cão que André o
chamou várias vezes até que ele olhasse. Conduziu o cão mais um pouco e André
o chamou para voltar ao grupo.
João ficou em e Carlos lhe entregou a guia do cão. Andfalou: “Você lembra do
trajeto todo que a gente fez? Então você escolhe o trajeto que quer passar”. O
adolescente olhava para oo, “Você passa por onde quiser, tá?” continuou André.
João conduzia o cachorro pelos obstáculos com facilidade, por vezes passava as
mãos rapidamente nas costas do cão. Ele levava o cão aos obstáculos de sua
escolha e, diante da recusa do cão em passar por algum, André o orientava e João
conseguia realizar a ação com o cachorro. Quando voltaram para o grupo, João
rapidamente sentou, estava sorridente.
Depois Ricardo foi para o campo; escolhia os obstáculos e caminhava com o cão,
André acompanhava. Segurando a guia alta ele conseguia fazer o cão pular.
Caminhava descontraído, à frente do animal. André disse “Aê, mais uma vez agora”
e Ricardo passou num ritmo mais rápido, prestando atenção tanto no cachorro
quanto nos obstáculos. Depois foi devolver Tobi para André, sorrindo. Em seguida,
foi cumprimentar e abraçar Marcos, que o seguia de longe.
André foi até Rita “Vamos lá, Rita, só uma”, e ela, sentada na mureta e batendo com
o graveto no chão respondeu “Não quero”. Vera, outra profissional da escola, estava
com ela. André lhe disse que Tobi queria falar com ela, mas Rita repetia a negativa.
O adestrador chegou mais perto “Fala oi para ele, que estava morrendo de
saudades”; depois fez o cão sentar e ficar com as patas dianteiras no ar. Neste
83
momento a adolescente parou de olhar o chão e viu Tobi, mas logo se voltou para o
chão novamente. André sentou ao seu lado e lhe estendeu a guia do cão; ela
recuava o corpo e dizia não querer, então ele perguntou qual era o motivo, ao que
ela disse algo sobre o cachorro de sua casa - Rita falava baixo, de modo que, de
onde eu estava, o som era ininteligível. And exclamou “E Fred, você foi brincar
com o Fred e ele não gostou? O que é que você foi fazer com o Fred na sua casa?”
Ela disse algo sobre a irmã. Ele tentou convidá-la novamente para passear com
Tobi, ela recusou e perguntou a André se ele tinha algum gato; ele lhe devolveu a
pergunta e Rita disse “Só um”.
Ricardo veio até a filmadora e olhou por ela, Rita acenou para ele.
Apreciação (E3)
Novamente os adolescentes conduziram os cachorros com orientações de um
profissional, no entanto, foi oferecida a oportunidade para cada um de escolher os
obstáculos a que desejavam ir, ampliando a possibilidade de escolha e a expressão
da maneira de ser de cada um deles. Em alguns momentos, os adolescentes
evidenciavam que o contato direto com o cão, através de afagos, era mais
significativo que a condução dos animais pelos obstáculos.
Em geral, a função do cachorro foi a de ser conduzido e manipulado pelos
adolescentes, que pareciam apreciar a ação. Em algumas ocasiões houve
investimento afetivo nos animais por meio de agrados com as mãos. No contato com
Carlos, os cães pareciam ser incluídos em seu mundo quando corria pelo campo
trazendo consigo os animais. A recusa de Rita em participar de qualquer situação
com o grupo e sua fala ao final do encontro sugere haver uma história prévia com
cachorros que não era muito positiva, e quando contou não gostar de cachorros,
encontrou meios para dizer do que gostava: de gatos.
Encontro 4 (E4)
Vieram para este encontro Carlos, Rita, João, alguns profissionais da escola e a
equipe do canil.
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André começou explicando a todos a atividade do dia: conduzir Dara por um circuito
de obstáculos, trocar bolas que estavam em cima de pinos, fazer a cachorra parar e
sentar e depois entregá-la ao próximo da fila. O adestrador fez uma demonstração e
todos prestaram atenção. Carlos se ofereceu para ser o primeiro e André disse para
o grupo torcer bastante. Ana, uma das profissionais da escola, disse a Rita: “Vamos,
Rita? Não vai por quê?”, ela fazia ‘não’ com a cabeça. Enquanto o grupo ficou
sentado no meio do gramado, Rita foi para a mureta e ficou lá, sozinha.
Parecendo ansioso e animado, Carlos começou a caminhar com Dara,
acompanhado de André. Marcos decidiu cronometrar o tempo e, quando disse “Já”,
o trio começou o circuito. André lhe avisou “Eu vou fazer a primeira com você,
tá?”. Chegaram aos pinos, Carlos trocou as bolas e correu, então André o lembrou
de fazer Dara parar e sentar; o garoto parou, depois foi orientado a levar a bola para
o próximo, ao que correu com a mão esticada e disse “Vai, João”. Este ficou em pé,
pegou a bola e, junto com o adestrador, conduziu Dara pelo circuito. André, olhando
para Marcos falou: “Quando você falar ‘já’ a gente começa”, então se virou para Rita
“Ô Rita, você é a próxima”. O trio começou a caminhar, João corria, sorrindo e,
chegando aos pinos, trocou as bolas. Os profissionais aplaudiram. Carlos estava em
pé, animado. Fizeram Dara sentar e perguntaram o tempo para Marcos, depois
todos aplaudiram e João levantou o braço, vitorioso.
Em seguida chamaram Rita, que não quis participar. Ofereceram-lhe, então, um cão
menor, mas ela se recusava a ir. Então André disse para Carlos ir sozinho e João
lhe entregou a bola. Mas, antes de Carlos iniciar, André chamou ambos os meninos
para perto de si, cochichou algo e eles riram. João esfregava as mãos, tinha uma
expressão de divertimento. André disse aos profissionais para se escolherem entre
si; João vibrava, batendo uma mão na outra. A seguir Carlos foi para o circuito e
correu com Dara pela rampa; esta pulou no meio dos obstáculos, então ele voltou e
passou mais devagar. Marcos torcia “Vai, Carlos” e Lurdes alertava “Presta atenção,
olha para a frente”. Carlos tinha dificuldade em conduzir, então André lhe disse para
caminhar à frente da cachorra, pois fazendo isso ele assumiria o controle da
situação e Dara o seguiria. E quando ele fez isso a cachorra o seguiu. Terminando,
Carlos voltou para o grupo e sentou. João, ficando em pé, correu até André e Dara.
Começando o circuito, ia sem maiores dificuldades e estava muito sorridente,
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parecendo empolgado com a atividade. O que André, Carlos e João haviam
combinado era que os profissionais da escola também participariam do circuito:
primeiro foi Lurdes, depois Marcos. Carlos e João torciam por ele. Ana pegou a bola,
mas acabou não participando.
Rita permanecia na mureta e Beatriz, outra profissional da escola, estava com ela.
André havia levado Dara para outro campo e agora trazia Tobi, convidando Rita
para ir depois com este cachorro, mas ela não se manifestava. Ana comentou:
“Depois vai vir água e a Rita não vai beber”. André convidou Rita novamente “Ó,
Rita, ele quer ir com você, vamos?”, “Não” foi sua resposta. Então Carlos levantou a
mão e disse “Eu quero”, mas o adestrador mantinha sua atenção em Rita. Ana
perguntou para ela “O que você falou? Você não vem mais, Rita!”. Ela permanecia
quieta. Depois André saiu caminhando e Carlos chamou Tobi, seguindo-o com o
olhar. O adestrador perguntou quem iria agora com o cão, mas Carlos e João
ficaram olhando para o chão, esperando; aí Marcos disse “João!”, e ele foi até Tobi e
começou a caminhar. Lurdes batia palmas e cantava “João vai perder, vai perder”;
Carlos começou a torcer a favor dele. João corria com o cachorro pelos obstáculos;
chegando na barreira o cão não pulou, André veio em seu auxílio e ajudou. Carlos
batia palmas e cantava “João, João”. Ele ia com entusiasmo e sorrindo; quando
terminou, levantou os braços, num gesto de vitória.
Em seguida, André perguntou para Carlos quais eram as cores dos pinos. Ele não
respondeu, mas prestava atenção e André lhe disse que eram vermelhos e azuis e
que ele deveria, agora, trocar apenas as bolas dos pinos azuis. Carlos começava a
correr, Lurdes torcia dizendo seu nome. Ao chegar no zigue-zague passou reto, pois
o cão ia à frente, então André interveio e disse “O Tobi é o seguinte: você é que
manda, tá? Então você cruza e ele acompanha” e Carlos passou a andar na frente e
o cão o seguia. Percorreram o circuito e André o lembrou que deveria trocar as
bolas dos pinos azuis, e assim o garoto fez. Marcos o aplaudiu e Carlos fez Tobi
sentar e dar a pata, depois ficou olhando para ele e sorria. Foi com André até João e
disse “Vamos, João”; este levantou e pegou a guia do cachorro. O adestrador lhe
disse para trocar as bolas dos pinos vermelhos e questionou “Você sabe quais são
os vermelhos?”. O adolescente respondeu afirmativamente e começou o circuito. O
grupo batia palmas e dizia seu nome. Ele conduzia o cão com facilidade pelos
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obstáculos e, chegando nos pinos, André comentou que deveria trocar as bolas dos
vermelhos. Com um sorriso no rosto, João trocou as bolas e ergueu os braços para
o alto; comemorando, o grupo o aplaudia. André comandou Tobi para sentar, João
pôs a mão em seu dorso e o cão sentou. “Quem quer ir agora?”, perguntou André.
Então João entregou a bola para Lurdes, que disse “Eu? Agora?”.
Depois disso começaram a se formar pequenos grupos: Marcos e André
conversavam, Carlos, Lurdes e João olhavam o campo e Rita estava na mureta,
recolhendo folhas do chão. André colocou Tobi amarrado numa barreira distante do
grupo e saiu, voltando logo em seguida com raquetes de tênis. Organizaram dois
grupos, de um lado os profissionais da escola e do outro os dois adolescentes e o
adestrador. Este entregou uma raquete para cada garoto e disse que deveriam
equilibrar uma bolinha de tênis nela e correr até o outro lado. Caso a bola caísse,
deveriam recolocá-la na raquete e continuar. Lurdes dizia “Vai perder, vai perder”.
Iriam caminhando para frente e voltariam de costas. Com tudo organizado, André
disse “já”, e os três Carlos, João e André começaram a correr na direção dos
profissionais. A bola de João caiu, ele logo a pegou e continuou; o mesmo
aconteceu com Carlos. João estava na frente, seguido por André e depois Carlos. A
bola deste havia caído novamente e os profissionais torciam “Vai lá, Carlos, Super-
Carlos”. Quando Carlos chegou até os profissionais, João e And voltavam
andando de costas. João se deixou cair na grama e ria; André lhe perguntou “Tá
querendo ganhar de mim, rapaz?”, ao que o adolescente logo levantou e continuou.
André e Lurdes torceram por Carlos até ele terminar. O jogo continuou por mais
algumas vezes e todos pareciam se divertir, o clima era de descontração. João
disse, animado, “Ganhei!”, levantando a raquete para o alto. Depois disse “Quero ir
de novo” e André os convidou para ir mais uma vez. Carlos respondeu “Ah, eu não
quero” e fez um movimento com a raquete como se rebatesse uma bola para o alto.
Vendo seu interesse, André lhe mostrou como rebater a bola para o alto. Os dois
adolescentes prestavam atenção, depois começaram a rebater as bolas, cada um
buscava a própria bola. Diante de uma bola bem alta que Carlos rebateu, Lurdes e
André advertiram que não era para jogar tão alto.
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Depois André falou que era a vez dos três profissionais correrem com as raquetes.
Todos se posicionaram, correram ao outro lado e voltaram de costas; todos riam.
E Rita, da mureta, via a atividade, parecendo interessada.
O grupo ficou disperso: André e Marcos conversavam, Carlos e João prestavam
atenção neles, pareciam perceber que estavam discutindo a próxima atividade. Logo
André sugeriu aos adolescentes refazerem o circuito sem o cachorro. Carlos foi o
primeiro, correu pelo circuito de obstáculos. André lhe disse para ir novamente, e o
garoto corria, sorridente; os profissionais torciam por ele. No final do circuito andava
mais devagar, parecendo um pouco cansado, mas André disse para continuar pois
faltava uma vez ainda. Carlos dava passos lentos; o grupo batia palmas e o
incentivava. Começou a alternar entre correr e andar, depois decidiu correr. Ao final
André o cumprimentou e Marcos exclamou “Palmas para o Carlos!” Ele recebeu
aplausos e sentou, mas em seguida levantou e foi mexer em uma bola no campo.
Depois João ficou eme começou o circuito - corria rápido e concentrado, o grupo
encorajava; Carlos também torcia por ele. Fez duas vezes o circuito, estava
sorrindo. André disse “Vamos lá, falta uma volta”. Na terceira vez ele corria e,
olhando para o alto, beijou a própria mão e a levantou; estava feliz e vibrava. O
grupo torcia dizendo seu nome e Lurdes comentou “Olha lá, até o Tobi torcendo
por você!” O cão uivava, Carlos olhou para ele e uivou de volta. João terminou e
recebeu aplausos, levantava os braços num gesto de vitória. Carlos, em pé,
dançava.
Tobi uivou mais uma vez e os risos se repetiram, Carlos respondeu ao seu uivo.
João sentou na grama e André perguntou para Rita “E aí, Rita, quer fazer? Vamos
sem o cachorro?”. Lurdes foi até ela e a convidou, mas a adolescente disse não
querer. Agora João deitou de barriga para cima, relaxado e talvez um pouco
cansado. Tobi latiu e Carlos o repreendeu “Cala a boca!”. O cão uivou novamente,
Carlos olhou para ele com o canto do olho, parecendo irritado. Depois André
recolheu as bolas e Lurdes disse para irem. Todos caminharam até o portão: João
sorria, Rita conversava com Beatriz e Carlos olhava para Tobi.
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Apreciação (E4)
Nesse dia foram priorizadas atividades corporais de caráter competitivo e o cachorro
foi incluído nesse cenário. Cada adolescente colocou-se de uma maneira nesse
contexto: Carlos, entusiasmado, quis ser o primeiro; João ficou esperando e
observando com interesse; Rita se isolou do grupo, mesmo quando foi oferecido
um cão que ela havia conduzido. Ao longo do encontro, Carlos buscava contato
com os animais, mesmo nas situações dirigidas, enquanto João demonstrava
satisfação na situação de competição em si e Rita se manteve à parte mesmo
quando o animal não estava presente. A relação dos profissionais com ela por vezes
não parecia atender sua necessidade de acolhimento e compreensão, pelo
contrário, a jovem era vista com olhar severo e punitivo por não corresponder ao que
esperavam dela. Talvez esta jovem encontrasse sua forma de expressão através da
oposição em relação ao ambiente, como uma manifestação de seu self verdadeiro
diante das falhas ambientais.
Refletindo sobre a atitude de Carlos com Tobi quando este uivou, percebeu-se uma
ação do cachorro, da qual surgiu uma comunicação quando o garoto emitiu um uivo
também; logo em seguida Tobi teve a mesma ação, mas Carlos não lhe refletiu de
volta a ação, desta vez expressou sua irritação perante o animal; este repetiu o uivo
e o garoto conteve seus sentimentos e devolveu seu olhar. aqui uma gama de
afetos do garoto que foram despertadas na relação com o animal e encontraram
expressão. Diferentemente de um objeto inanimado, o cachorro, através de seu
comportamento, pode despertar aspectos do self que vêm à tona nesta relação.
Encontro 5 (E5)
Nesse dia estavam Rita, João e Ricardo, junto com alguns profissionais da escola e
a equipe do canil. Fiquei próxima ao campo, filmando.
No meio do gramado estavam sentados os três adolescentes e as profissionais da
escola, formando uma roda. Enquanto as profissionais conversavam, Ricardo
abraçou Vera e João buscava a atenção de Beatriz: passou uma folha em seu
cabelo, sorriram um para o outro e Beatriz pôs a mão em seu ombro, de forma
carinhosa. André posicionava uma segunda filmadora e Paulo organizava
obstáculos. Ao passarem pelo grupo, André perguntou “Tudo bem com vocês?”;
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ninguém respondeu, porém Rita os acompanhou com o olhar. Vera e Beatriz ainda
conversavam; João se apoiou nas costas de Beatriz, mexia em seu cabelo e deitou
a cabeça nela, que depois deitou na grama com a cabeça no colo de João.
Uma mulher veio conversar comigo e eu disse a ela que não poderia falar naquele
momento. Era uma repórter que havia combinado com a equipe do canil de
entrevistar o grupo. Para não interferir no combinado, deixei-a livre para entrar no
campo. Ela foi até o grupo e sentou; todos a olharam. Então ela perguntou se João
era irmão de “fulana de tal” e ele confirmou. Beatriz continuava com a cabeça em
seu colo; ele olhou para ela e riu, parecia feliz. A repórter começou a conversar com
Vera; Ricardo e Rita prestavam atenção (não me era possível ouvir o teor da
conversa inteira, apenas alguns fragmentos). Ricardo se levantou, olhou para mim,
sorriu, acenou e veio caminhando para o portão. No campo, a repórter e as
profissionais continuavam conversando; João tentava atrair a atenção de Beatriz.
Esta perguntou à Rita: “E você, Rita, gosta?”, e a adolescente fez ‘não’ com a
cabeça.
André veio para o grupo trazendo Dara e Tobi e disse “Vamos lá!”. João chamava
Tobi. André convidou Ricardo para vir até o grupo, mas ele continuou no portão. A
repórter se retirou do campo. Vera foi até os cães e afagou Tobi, depois o levou para
perto de Rita e a convidou para passear; a adolescente recuou o corpo e levantou.
Diante de sua reação, percebi que Vera tentou acalmá-la: “Pode ficar, eu não vou
deixar ele ir aí”, mas Rita foi para a mureta. Em seguida, André chamou João para
conduzir Dara; ele trouxe Beatriz consigo e, quando Vera lhe entregou a guia de
Tobi, ele acariciou o dorso do cão, andou um pouco e sorriu, depois olhou para
Beatriz; parecia querer ser visto por ela. Tobi estava ativo, dava pulos e, quando
pulou em Dara, João olhou e sorriu. André se aproximou e João prestou atenção na
explicação sobre o circuito, depois iniciou o trajeto. Controlava o cachorro na guia de
forma cautelosa, atento ao cão, que sempre abanava o rabo. João seguia sorrindo e
olhava para as profissionais. André os acompanhava e, quando terminou, João
sentou, contente. Então André chamou Ricardo, que sentou longe do grupo; vendo
que ele não vinha, Vera resolveu ir até ele.
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Rita permanecia na mureta junto à cerca; André foi até ela levando Tobi e convidou-
a para participar, mas ela recusou. Tobi, abanando a cauda, tentou se aproximar;
ela ficou em e recuou o corpo. Disse que não queria ir com cachorro e, quando o
adestrador perguntou se gostaria de ir com outro cachorro, ela respondeu que
gostava de gato. Ele insistiu “E se eu trouxer o seu cachorro, você vai?” E Rita “Não,
eu quero gato!”, repetindo não gostar de cachorro. Diante da recusa de Rita, que
mantinha uma expressão de aborrecimento, André convidou João para fazer o
circuito sem o cão. Ele aceitou a idéia e caminhou para o percurso. André lhe avisou
que Tobi torceria por ele. O adolescente corria animado pelos obstáculos; ao final,
levantou os braços para o alto, comemorando; as profissionais aplaudiram. Depois
andou de costas, a exemplo de André.
Ricardo chegou ao grupo acompanhado por Vera, sentou num tronco e apoiou as
mãos no queixo. Espontaneamente, Dara veio sentar aos seus pés; ele colocou as
mãos nela e acarinhava suas costas. André se aproximou e ofereceu a guia de
Dara. O adolescente imediatamente retirou as mãos da cachorra e respondeu “Não
quero”, voltando a apoiar o queixo nas mãos. Olhava para baixo e Dara, que
continuava ali, a seus pés, cheirava a grama. Ricardo voltou a passar a mão nela.
André veio com Tobi e perguntou ao garoto se queria ir com ele; novamente ele
retirou a mão de Dara, ao que Beatriz interveio e se ofereceu para caminhar com o
cão. Aos poucos, Ricardo foi deixando sua mão cair sobre Dara, voltando a afagá-la.
Enquanto André estava com Beatriz, Ricardo levantou e trouxe Dara na guia. Vendo
a iniciativa do adolescente, André veio até ele e passou a acompanhá-los.
Beatriz caminhava desordenadamente com Tobi e André disse para João mostrar a
ela como é que conduzia; este prontamente pegou o cão e foi para os obstáculos.
Ricardo ia pelo circuito de forma calma, por vezes esboçava um sorriso. Quando
Dara não passava por algum obstáculo, ele voltava e tentava novamente; às vezes
André o ajudava. Ricardo foi com a cachorra a a piscina; André lhe perguntou se
desejaria ver a cachorra nadar e, diante do interesse do adolescente, conduziu a
cachorra para a piscina, mas ela não entrou. Ao observar a cena, Beatriz perguntou
se Rita queria ver o cão nadar; André repetiu a pergunta e Rita pareceu interessada.
Então, o adestrador pediu ao auxiliar Paulo que trouxesse algum cão para entrar na
piscina: “É para Rita ver”.
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Enquanto esperavam, João conduzia Tobi pelos obstáculos à sua escolha e Ricardo
levava Dara acompanhado por André, que fornecia algumas instruções. No entanto,
Ricardo parecia mais interessado em Dara do que nas recomendações do
adestrador. Algum tempo depois, o adolescente olhou para André e sorriu; as
profissionais o aplaudiram. Depois elas continuaram a conversar animadas,
perguntando se Rita tinha visto algum cão nadar. João, dizendo-se cansado, foi
até a mureta sentar com Rita e Beatriz; Ricardo veio somar-se a eles, trazendo
Dara. Depois João voltou para o meio do campo com André e mostrava para Vera
como conduzia Tobi.
Nesse momento Paulo voltou ao campo com um outro rottweiler. André chamou
Rita, que caminhou interessada até a piscina. Paulo conduzia o cão na água e a
adolescente o acompanhava, prestando atenção. De mãos dadas com André,
olhava para este e sorria, apontando o cão. João e Ricardo vieram ver também.
Passado um tempo, Rita voltou para a mureta e Beatriz perguntou se ela havia
gostado do cão. A garota respondeu que sim, então a profissional questionou se
gostava de Dara, ao que Rita respondeu que não porque ela tinha barba.
Ao redor da piscina, Ricardo, João e André estavam agachados vendo o cachorro
nadar. Ricardo passou a mão na cabeça do cão. Os dois adolescentes sorriam.
Ricardo ficou vendo Paulo levar o cão embora. Então André soltou a guia de Tobi,
que correu livre pelo campo; Ricardo o seguia com o olhar. Beatriz passeava com
Dara, dizendo para Rita “Ela é minha amiga”; depois elogiava a cachorra, mas Rita
recuava diante de alguma tentativa de aproximação. Depois André também retirou a
guia de Dara, que correu até Tobi. Então todos ficaram em pé e caminharam para o
portão.
Apreciação (E5)
Neste encontro, a presença da repórter e seu contato com o grupo sugerem que as
necessidades institucionais de divulgação da parceria entre a escola e o canil se
sobrepuseram às necessidades do grupo, causando uma interferência vinda de uma
demanda externa aos jovens. A alteração no desenvolvimento do curso é
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evidenciada quando João tenta resgatar a comunicação e o contato afetivo com
Beatriz – que lhe parecia ser significativa – disputando sua atenção com a repórter.
No decorrer do encontro, João freqüentemente buscou o olhar de Beatriz para si.
Quando André lhe pediu que mostrasse a ela como conduzir o cão, o adolescente
colocou-se em outra situação: ele tinha algo de si para compartilhar e ensinar a um
profissional. Ricardo, por outro lado, ficou mais à parte, num certo isolamento em
relação às pessoas. Seu primeiro contato afetivo foi com Vera no início do encontro,
depois ficou sozinho; o outro contato foi com Dara com quem se comunicou
através de afagos, permitindo a ela participar de seu isolamento sem ameaça do
self, diferentemente de como eram sentidas as relações com as pessoas. Rita viveu
dois movimentos diferentes: primeiro de coisas de não - a recusa diante dos
cachorros - que eram intensificadas diante da insistência dos profissionais; depois
Rita trouxe coisas de sim, o gosto pelos gatos e o interesse em ver um cachorro
nadar. Sua descoberta em ver o cão nadando pôde ser compartilhada com André, a
quem comunicava seu contentamento através de olhares e gestos.
Os cães pareceram assumir diferentes funções: para João, foram um meio de
mostrar a um outro significativo as suas habilidades; para Rita, foram motivo de
defesa e depois de curiosidade e descoberta; e, para Ricardo, eram um outro com
quem a continuidade de ser era experimentada, em contraste com as delicadas
relações com as pessoas.
Encontro 6 (E6)
Estavam nesse dia Ricardo, Rita, João e Carlos, alguns profissionais da escola e a
equipe do canil. Fiquei dentro do campo filmando.
Todos chegaram ao portão e Carlos logo foi até Alegria, que estava no campo;
depois começou a subir sozinho na rampa, mas André e Ana disseram para não
fazer isso e Ana enfatizou “Limite é bom, vem esperar sua vez”. Carlos foi até
eles. João, sentado no campo, estava quieto. Ana foi em direção ao estacionamento
com Rita e Ricardo sentou num lugar do lado de fora do campo. Então André
prendeu a guia de Tobi num tronco e pediu que João e Carlos o esperassem um
pouco ali. Carlos me chamou de “tia” e pulou diante da filmadora, agitando os
93
braços; parecia alegre. Enquanto esperavam, Tobi se soltou e foi até eles. Carlos
pegou sua guia, tentou chamar o auxiliar, que não compreendeu o que dizia; depois
chamou André, mas ele estava distante, então decidiu sozinho prender a guia do
cão onde estava antes. Quando André voltou, os dois adolescentes o seguiram até a
filhote Alegria. O adestrador reapresentou a cachorra; os dois pareciam
interessados. Cada um recebeu uma escova e Carlos perguntou se André também
escovaria a cachorra, então os três começaram a escová-la. Estavam concentrados,
cada um tinha uma maneira de escovar: Carlos escovava com vontade e um pouco
forte, João fazia mais suavemente. Alegria, que estava sentada, logo deitou na
grama de barriga para cima e eles continuaram a penteá-la. João retirava os pêlos
da escova com as os e Carlos fazia o mesmo raspando a escova num objeto
duro. Durante a escovação, Rita entrou no campo a caminho da mureta e André lhe
disse convidativo “Vem, Rita”, ao que ela, brava, respondeu “Não quero!”.
Os três continuavam penteando a filhote e quando ela tentava mexer a cabeça na
direção deles, era contida a fim de facilitar a escovação. André perguntou aos
adolescentes se penteavam os cabelos; eles responderam “sim”. Ricardo veio a
eles e logo recebeu uma escova; quando Alegria se inclinou em sua direção, André
comentou “Olha, ela quer ir até você, ó”. Deitada de barriga para cima, os quatro a
escovavam. And repetiu o nome da cachorra e Carlos cumprimentou-a “Oi,
Alegria”. Depois André perguntou “Vamos pegar outro cachorro, vamos pegar o
Tobi”, mas nenhum dos três adolescentes respondeu e continuaram a escovar a
cachorra. Marcos veio até o grupo e Carlos lhe ofereceu uma escova. Agora os
cinco integrantes, interessados e concentrados, penteavam a filhote, que ficou
tranqüila recebendo o gesto de cada um deles. Após um tempo, André perguntou
“Vamos escovar Dara agora?”, Carlos respondeu “Vamos!”. Todos ficaram ali
retirando pêlos da escova e esperaram André levar Alegria e trazer Dara. Quando
esta chegou, Ricardo passou a mão nela de modo afetuoso e, em poucos instantes,
Dara deitou e todos a escovaram. André disse que estava cheirosa pois havia
tomado banho; João e Carlos conversavam, pareciam contentes. Carlos escovava
Dara com força e Marcos o orientou para ir mais devagar e leve.
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Durante este período, Rita ficou sentada na mureta, por vezes falava sozinha,
girando uma folha na mão. Seu olhar voltava-se para a direção oposta do grupo,
então André lhe disse “Ó Rita, tá perdendo, hein” e ela não esboçou reação alguma.
Em seguida, o adestrador pediu para o auxiliar Paulo trazer a filhote para eles, e
explicou ao grupo “Quem não estiver trabalhando vai estar aqui escovando,
bom?”. Quando Alegria voltou, todos a escovaram. Com Dara na guia, And
perguntou “Quem vai?” e convidou Carlos, que rapidamente foi até ele. André
forneceu orientações sobre o trajeto e disse que ele deveria pegar duas bolas
dispostas no percurso e depois tentar acertas cada uma num dos baldes no canto
do campo. Juntos fizeram o percurso sem o o e, antes de iniciar o trajeto com a
cachorra, Carlos a chamou e afagou. Passaram pelos obstáculos e Dara abocanhou
uma das bolas; o adestrador retirou a bola dela e a entregou para o garoto. A
cachorra adaptava-se ao ritmo de Carlos. Primeiro André o acompanhou e orientou,
depois deixou Carlos ir sozinho. Quando este tentou colocar uma das bolas em seu
bolso, André lhe disse que deveria segurá-la na mão. Carlos corria animado pelos
obstáculos com Dara. Enquanto isso, Ricardo foi sentar num tronco no meio do
percurso e ficou observando a atividade. João continuou com Alegria e Marcos;
dava muitas risadas rolando a bola pelo chão e vendo a filhote tentar pegá-la.
Marcos chamou Rita para vir jogar, mas ela o foi. Ao terminar o circuito, Carlos
lançou as bolinhas para os baldes e não acertou. Depois Ricardo foi convidado.
Carlos foi até a filhote e voltou a escová-la; Marcos orientava para penteá-la com
cuidado, sem força.
No campo, Ricardo recebeu instruções de André, depois caminhou tranqüilo; Dara
seguia seu ritmo. Às vezes corria animado e a cachorra o seguia. Quando foi
arremessar as bolas nos baldes, segurou-as simultaneamente em cada uma das
mãos e André disse ”Não, joga uma, depois você joga a outra”. Sorrindo, Ricardo
arremessou uma, que não caiu no balde, depois, animado, lançou a outra, que
também não caiu no balde. Ele continuava sorrindo. Após conduzir Dara novamente
pelo trajeto e antes de jogar as bolas, Ricardo pôs a mão no peito e fez o sinal da
cruz. Arremessou e não acertou. Quando André perguntou se gostaria de fazer o
percurso mais uma vez, Ricardo respondeu com uma ação: pegou a guia de Dara e
foi para o percurso; voltando, jogou as bolas. Quase acertou e Andquestionou se
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gostaria de tentar novamente. Ricardo lançou as bolas algumas vezes e acertou.
Do lado de fora do campo, os profissionais da escola torciam e aplaudiam.
João e Carlos brincavam de lançar a bola para Marcos; em pé, formavam uma roda
e Alegria estava no meio deles. Riam bastante e pareciam descontraídos. Rita
continuava na mureta; batendo com um graveto numa árvore, olhou para os
adolescentes que jogavam bola. Depois de Ricardo arremessar as bolas, André
perguntou quem seria o próximo e João foi até ele, de braços para o alto,
comemorando. Com o convite, Ricardo começou a jogar bola com Carlos e Marcos,
mas antes tirou uma das camisetas. Marcos a levou até os outros profissionais e
disse “Ricardo mandou uma camisa para a torcida... e um beijo”. No campo, André
orientou João sobre o trajeto e logo iniciaram. Quando Carlos olhou João
conduzindo Dara, logo pegou a guia de Alegria, numa menção de passear com ela,
mas viu Marcos chegando e pôs a guia no lugar. Então ele, Ricardo e Marcos
começaram a jogar a bolinha “sem cair no chão!”. Passado um tempo, Marcos foi
até Rita chamá-la; ela olhava para o chão, então ele lhe estendeu a mão, ela
correspondeu ao gesto e somou-se ao grupinho. Ricardo havia se afastado deste
grupo e jogaram bola Rita, Carlos e Marcos.
João sorria o tempo todo enquanto fazia o percurso; jogou as bolas e acertou, a
torcida aplaudia. Fez novamente o trajeto. André trouxe Ricardo para o grupo,
orientando-o a fazer companhia a Alegria. O adolescente sentou diante da cachorra,
abraçou-a docemente e acarinhava sua cabeça. Carlos veio até eles e passou a
mão nela também. Ricardo começou a olhar o campo na companhia da cachorra,
que pôs o focinho em seu colo; ele a abraçava e aninhava; envolvendo-a em seus
braços, mexia em suas orelhas peludas. Ficaram assim por um tempo. Uma bola
chegou a bater em suas costas, mas Ricardo pareceu nem perceber, tanto que sua
atenção e afeto estavam voltados para a cachorra. Depois olhou para João, que
arremessava bolinhas nos baldes. Com a filhote em seus braços, ele deitava na
grama, de barriga para cima. Abraçando a cachorra, olhou para o céu e sorriu.
Depois olhou para o movimento ao redor enquanto acarinhava a filhote. ele
espirrou, levantou e andou até um tronco no meio do campo, deixando a filhote onde
estava. Olhava as coisas ao redor.
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Durante esse tempo, Carlos, Rita e Marcos arremessavam a bola uns para os
outros. Rita ria quando não conseguiam pegar a bola que havia arremessado.
Depois de lançar bolas nos baldes, João foi juntar-se a eles. André convidou Rita
para passar pelos obstáculos, mas ela não quis; então ele chamou Carlos para fazer
o percurso sem Dara e nomear cada obstáculo. Ele aceitou a proposta, parecia
animado. Após terminar o circuito, foi jogar bolinhas nos baldes. A torcida o
incentivava; ele acertou algumas vezes e dançava feliz. Os profissionais cantavam
“Vai Carlinhos, vai Carlinhos!”. André também o encorajava. O outro grupo
continuava jogando as bolas; João jogou uma bola alta que caiu na piscina, logo
André lhe deu outra. Ricardo levantou do tronco e Marcos o chamou para jogar bola,
mas ele passou reto e foi direto para a torcida, apertando a mão de cada um deles.
André pediu para Paulo trazer “o o que nada” e em seguida disse para o grupo
“Vamos dar tchau para Dara?”. Ouviram-se alguns tchaus dos adolescentes e
profissionais. João, que estava próximo de Alegria, esperava Marcos jogar a bola
quando a filhote veio em sua direção, então ele pegou sua guia, mas André interveio
dizendo “Não, não, deixa ela amarradinha no pauzinho” e o adolescente colocou a
guia de volta no pino. Em seguida, voltou a jogar bola com Rita e Marcos.
André comentou com todos “Acho que o cachorro vai nadar agora”, depois pegou
um taco de madeira e disse “Vamos ver quem consegue acertar a bola com isso?
Um time contra o outro”. João logo veio e acertou também o taco na bola; rindo,
jogou a bola para André. Marcos e Rita olhavam para eles. Logo o cachorro chegou
e o adestrador convidou Rita para vê-lo nadar. Todos foram ao redor da piscina,
menos João, que continuou treinando as tacadas. André chamou Rita para ver de
perto - ela acompanhava o cão, que pegou uma bolinha que boiava na água.
Quando o cachorro saiu da piscina, Rita foi correndo se esconder atrás de Ricardo;
depois o cão voltou para a piscina e Rita ficou observando. Agachado, Carlos jogou
uma bola na piscina para o cão pegar. Mais à parte, João via a cena. André avisou
que poderiam passar a mão no cachorro se quisessem e Carlos imediatamente
passou a mão na cabeça do animal, que continuou a nadar. André perguntou se Rita
queria jogar uma bolinha para ele na piscina; ela recusou e mesmo assim ele lançou
uma bola para ela. Ricardo a pegou e posicionou-se diante do cão; André o alertou
“Ele olhando”, então o adolescente jogou a bola, que o cão abocanhou. André
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jogou mais uma bola para Rita, que, dessa vez, a pegou, “Peraí, quando eu falar ‘já’”
avisou André, ao que Rita respondeu “Tá”. O cachorro foi reconduzido para a
piscina, André disse “Ele olhando, joga”. Rita lançou a bola. “Ele vai pegar sua
bola agora” e o cão pegou a bola, Rita observava. Diante do convite de André, a
garota jogou mais uma vez, olhando sorridente para Marcos. Carlos e Ricardo
estavam perto, olhando; João olhava de longe, depois foi para o portão.
Apreciação (E6)
A proposta de escovar os cachorros promoveu um encontro grupal e maior
integração. Mesmo quando a atividade proposta era individual, permanecia um outro
grupo que se relacionava entre si e desenvolvia brincadeiras espontâneas. Havia
uma alternância entre situações dirigidas e livres, estas possibilitando que cada um
experimentasse as situações de modo significativo e espontâneo.
Refletindo a respeito da vivência de cada adolescente pode-se notar que Rita, após
um período de isolamento, veio para o grupo pelas mãos de Marcos numa atividade
que não incluía a participação de cachorros. Por vezes parecia impiedosa ao rir
quando não alcançavam sua bola, depois assistiu com interesse ao cão nadar,
vencendo seu receio e entrando em contato com o cão quando lançou uma bola
para ele. João, com sua maneira paciente, envolveu-se nas atividades parecendo ter
prazer nelas, demonstrou muita alegria ao brincar com a bola e com a filhote. E
Carlos interagia com os animais de forma afetuosa e buscava envolver as pessoas
nas situações de grupo, evidenciando um desejo de envolvimento com elas. Por
vezes suas ações eram contidas pelos profissionais que pareciam senti-las como
‘falta de limites’, como se suas ações espontâneas e criativas fossem um ataque à
tentativa de ordenação e controle sobre o grupo. Com Ricardo podemos perceber
um ritmo muito interno, de pouco contato com o exterior, mas quando seu tempo era
aceito e respeitado, era capaz de relacionar-se com o outro, primeiro com o
cachorro, numa relação repleta de afeto e contato físico, depois com os
profissionais, quando cumprimentou cada um.
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João conduzindo Tobi (E3)
Carlos (à esq) e João (à dir)
correndo pelo campo (E4)
Rita (à esq) sentada na mureta (E4)
Dara se aproximando de Ricardo (E5)
Carlos (à dir) prendendo a guia de
Tobi (E6)
Os três jovens e um dos profissionais
escovando Alegria (E6)
Rita ficava na mureta (E6)
Ricardo aninhando Alegria em seus
braços (E6)
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Encontro 7 (E7)
Os adolescentes Rita e João estavam presentes juntamente com alguns dos
profissionais da escola e a equipe do canil. Nesse dia havia a visita de um grupo de
alunos de adestramento de uma instituição militar que vieram assistir o encontro (o
contato foi feito por meio da equipe do canil com consentimento da escola). Estive
no campo filmando.
Rita logo foi para a mureta e Beatriz foi com João até André e Alegria. O
adolescente acariciou a cachorra enquanto conversava com Beatriz. Junto com o
adestrador, começaram a escovar a cachorra. Guilith, outra filhote, que corria solta
pelo campo, veio até João e pulou em seu colo, ele sorriu e passou a mão nela.
André caminhou na direção de Rita e chamava Guilith; quando a cachorra chegou
perto da adolescente, esta subiu na mureta. André pareceu perceber o desconforto
dela e voltou até João, com Guilith vindo logo atrás. Então Rita voltou a sentar na
mureta. João escovava a filhote e, quando André lhe convidou para passear com
ela, ele sorriu e pegou sua guia nas mãos. Começaram a andar e Alegria trazia a
escova na boca; João a conduzia com cuidado. Ao ver que a escova caíra da boca
da cachorra, And pediu que João lhe entregasse o objeto novamente; ele
estendeu a escova e a cachorra a mordeu. A seguir voltaram a caminhar, até que a
cachorra resolveu sentar; André e João a chamavam mas ela não vinha, então o
adestrador mostrou ao adolescente que se eles se agachassem ela viria; quando
ambos agacharam Alegria caminhou até eles. Depois André tirou a guia de Alegria,
que correu solta pelo campo junto de Guilith. Alegria procurou Rita, que logo subiu
na mureta; então a filhote foi até João e André, sentando quando eles começaram a
afagá-la. A seguir, a cachorra continuou a correr pelo campo. João as observava e
depois foi com André escovar Tobi. João mexia em sua guia para posicionar o cão
e, quando este deitou na grama, o adolescente curvou seu corpo para escová-lo. A
seu lado André penteava Guilith. Os cães espontaneamente trocaram de lugar e
agora João escovava Guilith e André, Tobi.
Passado algum tempo, André convidou João para passear com Tobi. O adolescente
ficou em e a seguir agachou próximo ao cão e ficou olhando para ele de perto.
Começaram a caminhar e André perguntava os nomes dos obstáculos; João se
lembrou da rampa mas dos outros o, então André os nomeou. Ao passarem com
100
Tobi por baixo de um obstáculo, João fez menção de ir junto e o adestrador lhe
disse que daquela vez apenas o cão iria e mostrou para João como segurar a guia
para que o cão andasse por baixo. Depois continuaram por outros obstáculos.
Terminado o percurso, André lhe explicou uma nova atividade, na qual deveria
arremessar bolas dentro de um balde, que ficaria mais longe cada vez que ele
acertasse. Animado e com um sorriso no rosto, o adolescente arremessava as
bolas: ensaiava as jogadas, concentrava-se e jogava. Quando acertava,
comemorava e quando não, exclamava “uhh” e tentava novamente. Do lado de fora
do campo, próxima a eles, a torcida composta pelos profissionais da escola e alunos
de adestramento incentivava. Quando Guilith foi até João, o adestrador comentou
“Olha lá, ela vai tentar te atrapalhar...”; o adolescente sorriu e lançou mais uma bola,
não parecendo se incomodar com a filhote pulando em suas pernas e andando ao
seu redor.
Com o balde mais distante, João tentava várias vezes, não parecendo desanimar e,
quando acertou, ergueu os braços, feliz. André lhe explicou que contariam quantas
bolas havia no balde e na grama. João, pensativo, pôs a mão no queixo; primeiro
contou as bolas do balde as que acertou. Ficou concentrado, por vezes sorria,
depois recolheu as bolas da grama.
Durante essa situação, Rita tentava se livrar de Guilith: ficou em na mureta e
dizia “Vai embora!”, pois a filhote estava à sua frente. A adolescente disse mais
algumas vezes, brava, para a cachorra ir embora e logo a filhote saiu. Então Rita
desceu e sentou.
João conduziu Tobi pela segunda vez; ia sorrindo com André o acompanhando. Ao
terminarem, o adestrador comandou o cão para sentar e deitar; João disse “Senta,
menino” e passou a mão no cachorro. Depois iniciou o lançamento de bolinhas.
Acertando a primeira bola, André pôs o balde mais longe e disse “Vou contar
quantas você vai errar”. Após duas tentativas ele acertou, levantou os braços e
comemorou. André, recolhendo a bolas e levando o balde mais distante, avisou
“Zerou!”. O adolescente jogou três vezes e o adestrador lhe perguntou se ele havia
jogado mais bolas nesta última vez ou na vez anterior. O adolescente pôs a mão no
queixo por um tempo, “Qual é o maior? É o três, né?”, falou André e ele logo
101
concordou, voltando a arremessar. Quando acertou, comemorou e recebeu
aplausos da torcida. André questionou “Qual você teve que jogar mais bolas para
acertar?”, ele ficou pensativo e não respondeu, voltando a lançar as bolas e
acertando. Ao final, André perguntou sobre a quantidade de bolas arremessadas e
João não respondeu. Então o adestrador acabou convidando o adolescente a dar
uma volta com Tobi. João pegou a guia do cão, o adestrador sugeriu que fosse
sozinho. Ao passar reto pelo primeiro obstáculo, André o orientou a voltar; assim ele
o fez, disse “Aqui, Tobi” e tornou a conduzir o cachorro. Quando o cão não pulou,
André foi em seu auxílio. No final, João agradou Tobi e antes de jogar as bolinhas
fez um aquecimento: esticava os braços, treinando.
Rita continuava sentada na mureta. Guilith estava deitada a aproximadamente cinco
metros de distância; as suas de olhavam. Depois a cachorra se afastou e Rita olhou
para os lados, com as mãos começou a bater dois gravetos entre si. Ana entrou no
campo de foi até ela, chamando Guilith. Rita evitava a cachorra, chutando o ar e
ficando em pé. Ana mexia com a filhote e disse algo para a adolescente, que
respondeu negativamente. André veio até elas e convidou Rita para jogar bolas sem
os cães; ela continuava batendo com um graveto na árvore, não reagia. André
insistiu no convite e propôs uma atividade de arremessar a bola para acertar a
barreira; ela ouviu a explicação com atenção, aceitou o convite e foi para o campo.
Então Ana voltou para junto dos demais profissionais da escola.
Enquanto isso, João, que vinha na direção deles, parou ao lado rampa e começou a
correr; numa atividade corporal, sentou na grama e alongou as pernas; em pé,
primeiro esticou os braços e, em seguida, rodou a perna no ar, perdendo o equilíbrio
e caindo na grama. Ele e Rita se olharam e riram, então João ficou em pé e voltou a
girar as pernas. André o chamou e entregou a guia de Tobi, explicando que passaria
num obstáculo levando o cão do seu lado esquerdo. “Você sabe qual é o seu lado
esquerdo?” perguntou André. “Não”, disse João. Então o adestrador apontou o cão
ao seu lado e avisou que aquele era o lado esquerdo. Perto dele, Rita pulava e
agitava os braços quando acertava bolas no obstáculo; André incentivava. João
conduzia Tobi na rampa, mantendo o cão sempre ao lado esquerdo de seu corpo.
Quando André perguntou “Qual é o lado que ele indo?”, João disse “Esquerdo”.
Depois André forneceu algumas orientações específicas sobre a condução do
102
cachorro nesse obstáculo. Rita jogava as bolas e comemorava. Quando André disse
“Agora quero ver jogar com a outra mão”, ela trocou a bola de mão e arremessou.
Após ter passado mais vezes pelo obstáculo, João parou e passou a mão na testa,
limpando o suor do rosto; olhou para a colega e foi com André a um obstáculo
diferente. Este comentava que apenas o cão passaria por baixo e o adolescente
perguntou se ele era macho ou fêmea; André disse ser macho e fez uma
demonstração de como passar o cachorro por baixo da barreira. João olhava,
atento. Quando o adestrador lhe entregou Tobi, o jovem questionou “Será que eu
consigo?” e André falou “Consegue...é do lado esquerdo”. João iniciou; André
acompanhava e guiava o adolescente com as mãos para que percebesse o
movimento. O adolescente tentou ir sozinho, mas logo soltou a guia do cachorro.
“Vamos, vamos, você consegue”, disse André; “Tô cansado”, reclamou João, então
o adestrador sugeriu que parassem um pouquinho. O adolescente colocou a guia de
Tobi num pino, sentou na rampa e ficou olhando Rita e André recolherem as bolas
num balde. Depois And pôs barras na lateral do obstáculo e disse para Rita que
havia feito um corredor para ficar mais fácil, depois demonstrou como fazer. Em
seguida, a jovem jogou a bola, acertou o alvo e comemorou.
André perguntou se João queria ir mais uma vez; o adolescente ficou em pé,
pegando a guia de Tobi, e começou a levá-lo para a rampa. Como estavam perto
um do outro, André avisou Rita: “Tobinho vai te atrapalhar um pouco, você
percebeu, né?”. “Percebi”, respondeu. “Você tem que jogar na hora que ele não está
passando”, ele orientou. Com a ameaça de atrapalhar Rita, percebi que João ia mais
rápido no obstáculo, ria, depois passava devagar diante da colega. Rita jogava as
bolas. André avisava que teriam torcida, então a adolescente comemorou
“Corinthians”; João, levantando o braço, disse algo também (que não me foi possível
ouvir). Rita jogava as bolas e vibrava muito, pulando e levantando os braços. João
conduziu Tobi por outros obstáculos, depois sentou com o cão ao seu lado. André
foi a Rita e jogou duas bolas simultaneamente; ela fez o mesmo e logo depois
voltou a jogar de seu jeito.
Ao ser convidado para lançar bolas ao balde novamente, João levantou os braços,
numa expressão de felicidade; a torcida aplaudia. Ele arremessou as bolas e,
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espontaneamente, contou as que caíram na grama. Quando André perguntou se ele
havia errado cinco bolas, o adolescente confirmou e retornou a lançar bolas,
animado. Depois André chamou Rita para dar tchau a Tobi; de mãos dadas foram
até o cão e ela disse “Tchau, Tobi” e acenou para a torcida, indo até os profissionais
e abraçando Ana. Após jogar mais bolas, acertar e comemorar, João cumprimentou
André e os dois saíram abraçados do campo.
Apreciação (E7)
Novamente as necessidades institucionais ficam evidenciadas pela presença dos
alunos de adestramento, configurando-se como uma presença externa interferindo
na dinâmica do grupo. As atividades realizadas foram propostas pelo profissional,
havendo poucas iniciativas por parte dos dois adolescentes presentes. No decorrer
do encontro, João recebeu com carinho as aproximações das cachorras e seus
sorrisos pareciam expressar um certo contentamento diante das atividades dirigidas.
Através de um ‘aquecimento’ corporal João explorou seu corpo, preparando-o para
uma atividade, fazendo isto de modo espontâneo. Num certo momento, quando
perguntou se Tobi era macho ou fêmea, pela primeira vez verbalizou uma questão
que para ela tinha relevância, porém o assunto não foi levado adiante; mas penso
que este poderia ser o ponto de partida para conhecer suas idéias e concepções
sobre elementos masculinos e femininos. Em seguida, o jovem demonstrou um
sentimento de insegurança diante de uma nova situação, hesitando e recuando
diante de um não saber, para, a seguir, voltar a fazer algo conhecido e seguro. Rita,
por outro lado, manteve seu isolamento, mas desta vez, quando as filhotes se
aproximaram, a jovem foi gradativamente se estruturando diante da situação,
encontrando recursos internos para se defender diante delas, seja falando bravo
para saírem, ou fitando-as nos olhos, ou chutando o ar. Depois, com elas afastadas
do campo, pôde experimentar uma atividade da qual pareceu gostar.
Encontro 8 (E8)
Nesse dia estavam Carlos, Ricardo, João, alguns profissionais da escola e a equipe
do canil. Filmei o encontro de dentro do campo.
No início, André e Carlos afagavam a filhote Alegria. Quando o adestrador saiu para
conversar com Marcos, Carlos a abraçou carinhosamente e a chamou de
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“menininha”. João sentou num tronco e olhava ao redor enquanto Ricardo foi
conversar com Marcos. Olhando para a filmadora, Carlos me chamou de tia e
percebi que desejava ser filmado: ele agachou e acarinhou a filhote, em seguida
pegou duas bolas de um balde e correu na frente da filmadora, agitando as bolas
nas mãos. E João foi até a filhote e a agradou com as mãos. Ricardo veio diante de
mim e fez um espetáculo de jogar a bola para o alto; acenando, aproximou-se da
filmadora e olhou pela tela, passando a mão diante da lente. Perguntei se estava se
divertindo. Logo Carlos também veio e Ricardo voltou a correr, saltando e jogando
bolas para o alto, parecendo contente e descontraído. Carlos continuou lá, olhou
pela filmadora e exclamou “Ai, que legal!”; tentou mexer nela e eu disse que depois
poderia ver mais. No meio do campo, Ricardo ajeitou a filhote Alegria entre suas
pernas e ficou afagando-a; João olhava para eles. Quando Ricardo levantou a pata
da cachorra, eu disse para Carlos que Alegria estava dando tchau para ele e
perguntei se não ia dar oi para ela. Avisei “Vou ficar te olhando daqui”; ele pôs o
dedo na lente e disse “Daqui, ó”, caminhou até a cachorra, mas antes se virou para
mim e acenou.
Ricardo deitou no chão e, equilibrando seu corpo, passava os pés e pernas na
cachorra, que recebia seu gesto com tranqüilidade; depois sentou e envolveu-a em
seus braços e pernas, aconchegando-a em seu colo. Relaxado, tirou os sapatos.
Depois de um tempo ficou em pé. Marcos chegou e perguntou se havia gostado da
cachorrinha; Ricardo olhava para os lados e não respondeu. Marcos apontou a
cachorra e repetiu a pergunta; sua resposta foi um beijo na testa de Alegria e um
abraço. E ficou assim: abraçado com a cachorra olhando as pessoas ao seu redor.
Por fim, ele levantou e começou a andar para o grupo, deixando a filhote, mas voltou
e abraçou a cachorra mais uma vez, pondo a cabeça nas costas dela e
suspendendo-a em seu colo. Depois saiu em outra direção.
Enquanto isso, Carlos e João arremessavam bolas de um balde: sorriam e pareciam
se divertir. André explicou para os três adolescentes que fariam dois times: eles três
contra três adultos; Marcos completou dizendo que quem colocasse mais bolinhas
no balde ganharia. Ricardo parecia meio distante e os profissionais perguntaram se
ele havia entendido e explicaram mais uma vez. Quando André jogou as bolas para
o alto, João e Carlos correram rápido para pegar as bolas e guardá-las no balde; os
105
profissionais faziam o mesmo. Parado e, como se estivesse fora da situação,
Ricardo olhava; André convidou-o para participar, mas ele recuou o corpo e disse
não querer, depois se afastou dali, olhou de volta e sorriu. Após as bolas serem
recolhidas, foram contadas e Marcos anunciou para João e Carlos ”Vocês
ganharam! Muito bem!”. Ricardo ficou sentado num tronco, de costas para todos.
Marcos foi até ele e, abraçando-o, trouxe-o para o grupo.
André comunicou que buscaria Dara e, quando esta chegou, Carlos correu para
perto, animado. André ia começar a explicar algo, mas Marcos foi a ele e
começaram a conversar; depois os dois traçaram duas linhas paralelas com as
bolas, atravessando o campo. Carlos, curioso, seguia André. João, que estava
sentado no gramado, via de longe. Mais uma vez Ricardo se distanciou do grupo,
caminhou até a cerca perto da mata e, de costas para o campo, fez xixi. João olhou
em sua direção. Enquanto Marcos e André acertavam os detalhes da próxima
atividade, Carlos passava a o em Dara. João veio até eles e André explicou que
conduziriam a cachorra fazendo zigue-zague pelas bolas alinhadas. Depois ele
acompanhou Carlos no trajeto, fornecendo orientações. no fundo do campo
formaram-se dois grupos, com Marcos e João de um lado e Vera e Ricardo de outro;
cada dupla tinha um balde nas mãos e uma tentava acertar a bola no balde da outra.
Pareciam se divertir. Carlos continuava conduzindo Dara, agora com maior
segurança e facilidade; chamava o grupo para que olhassem para ele e por vezes
andava reto, esquecendo de fazer o zigue-zague. Quando André foi lhe explicar
alguma coisa, Carlos ficou absorto afagando a cachorra. Depois voltou a conduzi-la
e assim que chegou perto das duplas, entregou a guia de Dara e correu para
Marcos, muito interessado no jogo das bolas, do qual começou a participar.
Nesse momento André chamou João para fazer o zigue-zague; o garoto mantinha
sua atenção dividida entre o adestrador e o grupo das bolas. Depois se concentrou
em Dara e fez o trajeto. André o orientava dizendo “direita, esquerda” e, ao seu
pedido, o adolescente dizia quando era direita e quando era esquerda. Ao
retornarem para o ponto de partida, o jovem logo entregou a guia da cachorra para o
adestrador e foi seguindo para o grupo. Então André chamou-o de volta. Ele voltou,
parou e olhou para o grupo, então tive a sensação de que se sentia excluído; depois
foi com André para a pista de zigue-zague. Caminharam por ela sem a cachorra. O
106
adolescente, concentrado e parecendo um pouco apressado, dizia quando era
direita e esquerda. Ao terminar foi para o grupo e começou a jogar bola. Então
Marcos explicou para os três adolescentes que deveriam correr cada um numa
linha das bolas até o outro lado do campo e, contornando as bolas em zigue-
zague, demonstrou como deviam fazer e avisou “Pega a cachorrinha e volta
correndo até aqui”; os três prestavam atenção. E Vera acrescentou “Quem ganhar
vai com o outro colega”.
Carlos e João se posicionaram; Ricardo olhava; André e Dara estavam do outro lado
do campo. Carlos estava em e João agachado como os atletas em corridas.
Quando foi dada a largada, ambos correram em zigue-zague; João chegou primeiro,
pegou Dara e voltou; Carlos veio depois, de mãos dadas com André. Ao chegarem
ao ponto de partida, João levantou os braços, Marcos aplaudiu os dois e convidou
Ricardo para ser o próximo, mas ele ficou sentado, parado e pouco acessível.
Enquanto isso, André havia dito para Carlos ir sem a cachorra, então ele correu,
bem animado, foi e voltou, o adestrador lhe entregou Dara e disse para dar uma
volta. O garoto correu com ela até o lado oposto do campo, deu voltas e veio até
eles novamente. João correu mais uma vez, pegou Alegria na guia e voltou.
Ricardo continuava sentado no chão, isolado; aceitou a aproximação de Alegria,
trazida por André. A filhote sentou entre suas pernas, ele envolveu-a em seus
braços, pegou sua guia e levantou. André lhe perguntou “Vai fazer com ela?”
Visivelmente chateado, o adolescente abandonou a guia da cachorra e caminhou
para longe do grupo. O adestrador foi atrás dele levando a cachorrinha, esticou a
guia para o adolescente, mas este mantinha os braços atrás de seu corpo. Ricardo
agachou e aproximou seu rosto da cachorra, que tentou pular nele, mas conteve-a
com os braços. Quando Marcos chegou e encostou em Ricardo, ele pareceu nem
perceber, de tão atento que estava com a filhote; pôs a cabeça em suas costas e
abraçou-a, ficaram rosto com rosto. André agachou ao seu lado e lhe estendeu a
guia; o adolescente cochichou algo em seu ouvido, então eles levantaram e Ricardo
começou a passear com ela, correndo pelas linhas das bolas; sorrindo, foi
cumprimentar Vera.
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Carlos passeava calmamente com Dara, fazendo zigue-zague. João agora estava
com a filhote Alegria e corria. André disse “Vamos lá, vamos lá” e eles correram de
volta para o grupo. Então André orientou que cada um pegasse um balde e
recolhesse as bolas. Carlos e João logo iniciaram; Ricardo ficou parado, olhando,
depois correu e foi recolher as bolas, fazia de sua blusa dobrada o seu balde.
Marcos perguntou “Vamos, então? Chega? Semana que vem a gente volta, né?”
João e Carlos acarinhavam as duas cachorras e Ricardo seguia em outra direção.
Marcos falou que iriam embora e para darem tchau para as cachorras - os dois
foram afagá-las; para André eles foram cumprimentá-lo; e para mim eles
também vieram me dar tchau.
Apreciação (E8)
Neste encontro as atividades dirigidas foram alternadas com situações mais livres e
espontâneas. Logo no início os três adolescentes buscaram contato e interagiram
com a filhote Alegria, porém cada um deles se relacionou apenas com ela mas não
entre si. Carlos e Ricardo expandiram seus interesses e olharam através da
filmadora, buscando serem vistos de maneira pessoal. Quando assegurei que
estaria olhando Carlos, foi interessante sua comunicação para que eu o visse dali.
Relacionou-se comigo fornecendo-me um lugar e uma função. Pensando na vivência
de cada adolescente, Ricardo devotou intensa gama de afeto à filhote, acolhendo-a
em seus braços e mantendo uma relação de proximidade, inclusive física. Depois se
afastou do grupo, parecendo alheio ao acontecer humano das pessoas ali, não
estabelecia contato, nem para solicitar usar o banheiro. Entretanto, no rculo que
fechou em volta de si, era permitida a entrada de cães, mas de humanos não. E com
a presença do animal o adolescente encontrou meios para partilhar do humano,
quando se uniu aos colegas para recolher as bolinhas. João demonstrava interesse
pelas atividades propostas, mas pareceu ter sua atenção dividida entre duas
atividades, uma das quais formada pelo grupo da escola, da qual tive a impressão
de que ele se sentiu excluído quando realizou outra atividade com André. O mesmo
pareceu acontecer com Carlos, embora em menor intensidade. Um aspecto que
pareceu relevante foi a atitude de Marcos em preparar os adolescentes para finalizar
o encontro, trazendo a noção de processo e de tempo.
108
Encontro 9 (E9)
Carlos, João e alguns profissionais da escola e do canil estavam presentes. Fiquei
no campo filmando.
Carlos, João e Marcos começaram a jogar bolinhas uns para os outros, então André
chegou trazendo Dara consigo. Carlos iniciou contato com a cachorra, passando as
mãos em suas costas e pegando sua guia. André solicitou que a comandasse para
sentar e deitar; o garoto falou os comandos mas ela não correspondeu. Então o
adestrador e Carlos sentaram perto dela e o adolescente começou a escová-la;
João também pegou uma escova e somou-se ao grupo. André perguntou o que
haviam feito na escola naquele dia: “Nem sei”, respondeu João; então André
perguntou se haviam almoçado e Carlos respondeu afirmativamente, dizendo o que
tinha comido. Depois o garoto buscou outra escova e a entregou para André que
questionou “Quer que eu escove também?” “É”, disse Carlos. Enquanto escovavam
continuaram conversando. André perguntou o que mais haviam feito naquele dia e
quem estava na escola; Carlos disse alguns nomes e João escovava a cachorra em
silêncio, sorrindo. Carlos havia saído por uns instantes do grupo e voltou trazendo
Vera pelas mãos, depois trouxe Marcos; todos penteavam Dara e Carlos conversava
com eles. Depois André convidou “Vamos passear com ela?” Carlos disse “Vamos”
e foi até Alegria. Quando perguntaram a ele qual era o nome da cachorra, ele
apontou cada uma e disse, “Dara e Alegria”. André lhe entregava a guia de Dara
enquanto dizia “Hoje nós vamos aprender a andar com a Dara”; o garoto a chamou
e abraçou. André passou a orientá-lo como segurar a guia usando as duas mãos.
Carlos prestava atenção e em seguida começou a andar com a cachorra; estava
sorrindo e, quando a cachorra desviou do caminho para cheirar Alegria, ele disse em
alto e bom som “Dara! Ô!”, ajeitou a guia e continuou. Ao ver um obstáculo à sua
frente, o garoto, interessado, apontou em sua direção; André avisou que naquele dia
andariam com ela. Ele caminhava à frente, mudando de direção e Carlos seguia
atrás, conduzindo Dara.
Enquanto isso João, que estava sentado junto de Vera e Marcos, mexia na escova;
parecia desanimado. Passado um tempo, ele e Marcos começaram a jogar futebol -
o profissional era o goleiro e o adolescente chutava a bola. Brincavam com um
pouco de entusiasmo.
109
Carlos continuava andando com Dara, tinha facilidade em conduzi-la. Fizeram a
cachorra sentar e depois seguiram mais um pouco; quando pararam e Dara sentou
novamente, Carlos a afagou e, baixando a guia conforme And orientava, o garoto
fez Dara deitar e ficar. Afastaram-se um pouco dela, que ficou parada esperando;
quando voltaram Carlos caminhou com ela novamente. André ensinava os
comandos e Carlos os colocava em prática: “Senta, Deita e Fica”; Dara obedecia.
Quando chamavam a cachorra, Carlos batia palmas. André ensinou a não
pressionar as costas da cachorra para sentar, deveria apenas dizer o comando e
levantar um pouco a guia, Carlos fez isso e disse carinhosamente “Senta,
menininha” e Dara sentava; abaixando a guia, ele a fazia deitar. O jovem afagava
carinhosamente sua cabeça.
Depois João e Carlos trocaram de lugar: este foi jogar futebol com Marcos e aquele
foi conduzir e comandar Dara. Após André explicar como segurar a guia da
cachorra, João caminhou com Dara pelo campo, seguindo os passos de André;
estava com um sorriso no rosto e parecendo concentrado. Quando a cachorra
obedeceu a seu comando para sentar, ele passou a mão em sua cabeça e em
seguida beijou-a; então abaixou a guia e a fez deitar. O adolescente e o
adestrador comandavam a cachorra para sentar, deitar e ficar. Quando chegam
perto de Carlos, ele logo apontou a cachorra e a mostrou para Marcos. Enquanto a
cachorra estava no comando ‘Fica’, João foi até Carlos e juntos começaram a jogar
futebol. André o lembrou que Dara ainda estava sob comando e disse “Mais um gol
só, hein!” Alegres, os adolescentes continuaram jogando. Marcos exclamou “Na
trave!... agora vem cá”. Vera disse “Agora chega”, e Carlos foi guardar a bola no
balde.
Com os dois adolescentes sentados na grama, André explicava novamente os
comandos. Ao fazer Dara sentar e ficar, Alegria correu na direção deles e o
adestrador logo a retirou de lá, prendendo sua guia num pino mais distante dali.
Carlos batia palmas para atrair a atenção da filhote. André o chamou e voltou a
explicar. A convite de André, Carlos conduziu Dara; passando perto de Alegria, ele
passou a mão nela, depois continuou o treino com a rottweiler. Depois foi a vez de
João comandar a cachorra. Carlos os observava, na companhia de Alegria, depois
110
olhou para a filmadora e acenando começou a escová-la. Quando João comandou a
cachorra para sentar, ela logo deitou, então André lhe disse “Ela tem que fazer as
coisas quando você quer, tá bom?”. Continuaram treinando mais um pouco.
Após um tempo, Carlos foi chamado por André para passear mais uma vez com
Dara; ele logo deixou de escovar Alegria e foi aeles; fazia os comandos repetindo
para Dara as palavras de André. João ficou sentado no gramado e jogou uma bola
na direção dos profissionais, depois deitou para, em seguida, virar o balde para
baixo e começar a recolher as bolas que estavam nele. Às vezes parava e, ao
observar Carlos e André, que continuavam comandando a cachorra, parecia um
pouco desanimado. O garoto bateu palmas e chamou “Aqui, Dara”; sua fala não era
muito clara e André o orientou “A-qui”; Carlos repetia. Quando a cachorra veio,
contente, ele exclamou “Êêêê!” e foi correndo com ela até um obstáculo; André
demonstrou como fazer a cachorra subir na rampa e o garoto passou com ela pelo
obstáculo.
João foi se sentar com Marcos e Vera, trazendo o balde consigo; ele e Marcos
mexiam na bolinhas. Logo foi chamado para levar Dara, ele foi até And e Carlos
foi com Marcos mexer nas bolas de tênis. João conduzia a cachorra e, cauteloso,
esperou André segurar a rampa para ela descer, passou mais algumas vezes pelos
obstáculos e depois comandou-a para sentar, deitar e ficar. Quando foi proposto
fazer o zigue-zague e depois pegar a cachorra, João correu animado, voltou a
chamou a cachorra, que veio até ele. André lhe perguntou se gostaria de ir
novamente, ao que ele respondeu “Não, cansei”.
Depois de ficar com Marcos, Carlos foi até Alegria, afagou-a e brincou de equilibrar
uma bola na cabeça dela. Depois João chegou até eles com o balde de bolas em
cada uma estava escrita uma letra. André perguntou se conheciam as letras, mas
nenhum dos dois respondeu. João despejou as bolas no chão. André começou a
apontá-las e perguntar que letra era; os dois respondiam. Então ele questionou “O
que tem no cachorro com a letra R?” Os dois ficaram pensativos: “A gente
penteou...”, lembrou André. João arriscou algo (que não foi possível ouvir da
filmadora), André disse que também pentearam , esperou mais um pouco e disse
que era o rabo.
111
Depois os três recolheram as bolas no balde. Alegria, que estava deitada no meio
deles, foi até Carlos, que parou de recolher as bolas, pegou uma escova e começou
a penteá-la. Quando o garoto deitou-a no chão, And disse “Devagarzinho, com
carinho”; e ele continuou escovando. Vera avisou “Vamos embora, acabou”, ao que
Carlos respondeu “Acabou não!” e ficou penteando a filhote mais um tempo. Depois
João lhe chamou por duas vezes “Vamos, Carlos”; então ele se levantou e todos
foram para o portão.
Apreciação (E9)
O encontro iniciou com uma atividade em grupo de lançar bolinhas, depois a
cachorra foi incluída e passaram a escová-la. Carlos buscou integrar o grupo,
trazendo todos para participar ativamente da escovação. Depois, individualmente,
conduziram e comandaram o cão com as orientações de um profissional. Tanto
Carlos quanto João demonstraram afeto pela cachorra, seja afagando-a ou beijando-
a. Carlos comunicava seus sentimentos de forma mais direta para o animal, bravo
quando era por ele frustrado, respeitoso ao fornecer os comandos, brincalhão ao
equilibrar uma bola e constantemente carinhoso. Neste encontro, pela primeira vez,
surgiu uma atividade espontânea e de contato entre os dois adolescentes quando, a
partir do jogo de futebol criado com Marcos, os dois se encontraram e começaram
um jogo. Pareciam divertir-se e estarem envolvidos, porém o jogo logo terminou por
intervenção dos profissionais.
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Jovens olhavam o cão nadar
enquanto Rita (à esq) jogava bola
para Nêgo (E6)
Rita evitando a filhote Alegria (E7)
João conduzindo Tobi e Rita lançando
bolas (E7)
Enquanto Carlos jogava bolas para o alto
(à esq), Ricardo veio até a filmadora e
João afagava Alegria (à dir) (E8)
Alegria sendo abraçada por Ricardo (E8)
João (à esq) correndo com Dara e
Carlos (à dir) com um dos
profissionais (E8)
Carlos equilibrando uma bola no
focinho de Alegria (E9)
João e Carlos espalhando bolas de
tênis (E9)
113
Encontro 10 (E10)
Estavam presentes Carlos, Rita, Ricardo e João, juntamente com alguns
profissionais da escola e a equipe do canil. Fiquei no campo filmando.
Enquanto André e os profissionais da escola conversavam, Carlos foi até Tobi,
pegou sua guia e começou a passear pelo campo, descontraído. Ao passarem perto
de Rita, que estava sentada na mureta, o cão tentou se aproximar dela, que recuou
o corpo; Carlos logo conteve o cachorro pela guia e seguiu o passeio. Corria em
círculos com Tobi, estava de braços abertos, chacoalhava sua guia parecendo
incentivá-lo a seguir seus movimentos. Foram até Alegria e os cães se cheiraram;
Carlos esperou e observou, depois caminharam até Dara. André pediu a Carlos para
deixar Tobi onde estava, então ele prendeu a guia do cachorro onde estava e
chamou André para mostrar o que havia feito. A seguir foi, até a rampa e Lurdes
disse “Carlos, senta e espera um pouquinho que agora é a vez de João”; o
adolescente mexia na rampa para cima e para baixo, mas os profissionais insistiram
em chamá-lo. Então André buscou uma escova, Carlos foi atrás e também pegou
uma, o adestrador disse para ele escovar Alegria e não sair dali. Disse para escovar
as orelhas, patas e costas; quando o garoto perguntou se era para escovar tudo,
André avisou para não pentear a barriga. Carlos começou a penteá-la e logo ela
deitou de barriga para cima; ele escovou a lateral de seu corpo.
André e Lurdes foram até João, levaram Dara com eles e o adestrador demonstrou
o comando ‘junto’, em que a cachorra caminhava ao seu lado, depois comandou
para sentar. João começou a conduzi-la, disse “junto, Dara” e caminharam, depois
falou ‘Senta’ a pedido de André, que o instruía a agradar a cachorra e dizer ‘muito
bem’. Enquanto isso, Carlos estava entretido penteando a filhote: colocou-a entre
suas pernas, depois se sentou e, quando levantou, a cachorra deitou e tentou
morder a escova. Carlos a manipulava, posicionando suas patas e seu corpo; a
cachorra não demonstrava nenhuma resistência aos seus movimentos, estava
receptiva e calma. Então Lurdes e João o chamaram, ele pareceu não ouvir pois
estava muito envolvido com a filhote. João foi até ele e Carlos o acompanhou aos
profissionais, mas não sem antes passar a mão na cabeça de Alegria. André e
Lurdes pediram que João explicasse para Carlos o que iria fazer, ao que o
adolescente respondeu que iria andar, dar a meia volta e dizer para Dara sentar.
114
André completou dizendo que depois do ‘senta’ vinha o ‘muito bem, Dara’. Lurdes
recomendou que Carlos não puxasse a guia pois a cachorra obedeceria pela sua
fala. João demonstrou uma vez como fazia, Carlos observou, depois conduziu a
cachorra. André ia à sua frente, dando orientações. Ao final, Carlos colocou o boné
que estava usando na cabeça da cachorra e o adestrador ajudou a segurar, em
seguida devolveu o boné ao garoto. Após ter andado e comandado Dara
novamente, Carlos colocou o boné na cabeça desta, mas a cachorra levantou-se e
André interveio dizendo “não, o”, então o garoto tirou o bo e afagou a cabeça
da cachorra.
Beatriz também entrou no campo e João foi recebê-la, parecia contente com sua
vinda. André o avisou que se quisesse poderia escovar Alegria; ele pegou uma
escova e começou a pentear a filhote. Beatriz foi em direção a Rita, na mureta, e, de
braços dados, as duas andaram até o portão.
Desde que Tobi teve sua guia amarrada a um obstáculo, ficou latindo e uivando.
Ricardo – que estava fora do campo entrou e correu até o cão, que parou de uivar
e latir com sua chegada. Então o rapaz pegou sua guia e começaram a andar pelo
campo, Tobi ia à frente e Ricardo o seguia. Ao passarem por André, este segurou a
guia do cachorro, olhou para Ricardo e perguntou “Tudo bem?”; Ricardo respondeu
com um aperto de mão. Seguiram o caminho e Tobi foi em direção a Rita, que
correu até a mureta. Depois Ricardo correu à frente do cachorro, que o seguiu;
andaram juntos e Ricardo conduziu Tobi na rampa, André olhou e disse “Aêê”.
Sentado no meio do campo, João penteava a filhote Alegria e decidiu pegar sua guia
e passear também; tentou fazê-la subir na rampa, mas ela não conseguiu. Carlos
continuava a conduzir Dara, recebia orientações de André e Lurdes. Quando
comandou a cachorra para ficar, afastou-se e esperou; nesse momento, Ricardo
entregou Tobi para André e foi até Dara, agachou, afagou sua cabeça e pegou a
guia. Carlos, que apenas olhava, foi até o colega, então André disse para Ricardo
“Essa não” e Carlos pegou a guia da cachorra em suas mãos e começou a
caminhar.
Desde que foi para a mureta, Rita ficou sentada com um graveto na mão. Ricardo foi
até Tobi e sentou na grama. André disse para João ficar com eles e escovar Alegria.
115
O adolescente colocou a guia no pino e André levou Tobi para a cerca do portão. Os
dois sentaram de frente um para o outro, com a filhote no meio deles; Ricardo
colocou a mão na cachorra e João olhava para baixo, desanimado, e mexia na guia
de Alegria. Ricardo começou a escová-la e João a afagava, porém mantinha seu
olhar em Carlos e André, que conduziam Dara. Depois abraçou e beijou a cachorra,
sorrindo para ela, que deitou a cabeça em seu colo; em seguida olhou para os
outros que conduziam a outra cachorra. Ricardo penteava a filhote, que veio cheirar
seu rosto, então a abraçou enquanto escovava. Depois ela deitou entre eles: João
acariciava suas orelhas e Ricardo penteava suas costas.
Passado um tempo, André falou para Carlos ir escovar Alegria e chamou João para
levar Dara; este rapidamente pegou a guia da cachorra e começou a caminhar.
Lurdes perguntou ao adestrador se Ricardo também poderia ir, ele respondeu
afirmativamente. Carlos, juntamente com Ricardo, escovava Alegria, que ficou
deitada de barriga para cima. Lurdes se aproximou e entregou um lenço para
Ricardo, que assoou o nariz; depois ela voltou até os demais profissionais. Em
seguida, Ricardo levantou e foi até Tobi; ao vê-lo o cachorro pulava no ar e abanava
o rabo. O rapaz passou a mão nele, sentou no chão e começou a escová-lo.
Quando João terminou de conduzir e comandar Dara, foi escovar Alegria junto com
Carlos e André foi com Dara convidar Ricardo para conduzi-la; o adolescente olhou
e fez ‘não’ com a cabeça, voltando a escovar Tobi; depois pôs a mão no focinho de
Dara. André ofereceu a guia da cachorra e disse “Vamos lá?”; sem responder, o
jovem ficou olhando para baixo. O adestrador continuou “Então bom...pode
guardar o Tobi?” Ricardo não respondeu. André perguntou “Quer fazer com o Tobi
então? Vamos fazer com ele!” e o adolescente voltou a escovar o cão. André insistiu
no convite, Ricardo respondeu “Não”. Então André disse que deixaria Tobi no meio
do campo para ele escová-lo. O rapaz olhava para o chão enquanto André levava o
cachorro, depois logo voltou até ele e pôs o cão à sua frente, esticou a mão e disse
“Dá aqui, deixa eu te mostrar como se escova ele, segura aqui na escova”. Sem
dizer nada, Ricardo levantou, caminhou até o portão e saiu do campo. Ana tentou
segurar seu braço e ir até o estacionamento; ele se desvencilhou dela e sentou no
balanço. Ela falava com ele, que fazia ‘não’ com a cabeça. Lurdes tentou explicar
para André “Quando ele não quer, não faz”. Ana se afastou dele e Beatriz disse
116
“Aqui, Ricardo, o Tobi está te chamando”. Ele não respondeu e começou a balançar
mais forte, ficando assim por um tempo.
Enquanto isso, And foi até os outros dois adolescentes que penteavam Alegria.
Apontava as partes do corpo e perguntava os nomes, os dois respondiam,
animados. Lurdes foi até eles. na mureta, Rita permanecia sentada e com um
graveto na mão, parecia balbuciar algumas palavras. And a chamou, ela olhou e
abaixou a cabeça; ele foi até ela, pegou um outro graveto e tentou conversar; Rita
fazia ‘não’ com a cabeça, depois respondeu a algumas perguntas, olhava para o
chão e agitava o graveto. No meio do campo os dois adolescentes riram quando
João fez menção de escovar o cabelo de Carlos.
Beatriz e Ana foram até Ricardo e, sempre que falavam algo, ele fazia ‘não’ com a
cabeça. Beatriz se afastou e Ana continuou com ele; perguntou se queria que o
empurrasse, ele respondeu “Não”, mesmo assim ela colocou as mãos em suas
costas e o empurrou; perguntou novamente se podia. “Não” insistiu ele. “Nem isso
pode?” indagou a profissional. Quando ficou sozinho, Ricardo parou de balançar e
cruzou os braços sobre o peito. André trouxe Tobi e prendeu a guia na balança. O
cão abanava o rabo e cheirava o chão. Bravo, Ricardo mandou “Pára!”; o cão
apenas abanava o rabo. Pegou a guia do cão na mão e olhou para ele; quando Tobi
se afastava, Ricardo secamente puxava a guia. Depois começou a se balançar e o
cão foi obrigado a adaptar-se ao vai-e-vem do rapaz. Depois pararam. Nesse
momento fixei a filmadora em Ricardo e aproximei-me dos profissionais da escola:
Ana pediu que eu fizesse alguma coisa, eu disse achar que Ricardo havia ficado
chateado porque “ele tava com o Tobi e a gente interferiu, acho que ficou chateado
e quando a gente fica assim às vezes quer ficar um pouco sozinho”. A profissional
pareceu compreender e voltei para a filmagem.
Ricardo olhava o cachorro e trazia-o à sua frente sempre que este tentava ir em
outra direção. Puxava a guia de um modo impetuoso, mas Tobi parecia não se
importar e seguia a vontade do jovem. Ele olhou na direção da filmadora e
rapidamente voltou a olhar para o cão, olhou novamente para mim e começou a
acenar; eu acenei para ele também. Ele acenava de vários modos, levantou as
sobrancelhas, depois fechou os olhos e quando os abriu, sua expressão era de
117
surpresa; acenamos por algum tempo um para o outro, em comunicação. Virei
minha mão de um lado para o outro e ele também o fez; depois apontou para cima,
repeti seu gesto, ele apontou mais uma vez e disse algo que não entendi; virei a
filmadora para cima na tentativa de saber se era isso o que queria, mas ele apontou
novamente e disse algo. Eu não conseguia ouvir, depois indiquei que viraria para o
campo e apontei para mim e girei a mão. Ricardo meneava a cabeça sinalizando
que não havia entendido, então fiz novamente o gesto de virar a filmadora; ele
olhava sem entender. Diante de sua expressão de não entendimento, girei meu
dedo diante da orelha, num gesto de ‘biruta’; achando graça ele fez o mesmo e riu.
Voltei a filmadora para o campo.
No campo, João passeava com a filhote Alegria e o adestrador os acompanhava.
Carlos tentava se equilibrar num tronco; André disse “Você vai cair...” e o chamou
para passear, ele foi e João sentou no tronco.
Ricardo levantou do balanço e caminhou em direção ao estacionamento, levando
Tobi consigo. Ana correu até eles. Pedi para Lurdes filmar e fui a Beatriz,
conversei sobre ir até Ricardo uma vez que havia feito contato comigo e ela
comentou que achava apropriado; então fui até ele, que estava na companhia de
Ana e do motorista olhando os pássaros no viveiro, parecia absorto com eles.
Perguntei para Ana se estava tudo bem, ela respondeu afirmativamente. Então voltei
para o campo.
Carlos corria livremente trazendo Alegria pela guia. A pedido de André, o garoto
entregou a cachorra para João e foi subir no tronco novamente. André lhe disse
“Não, não”; ele olhou e depois continuou, subia várias vezes e, quando começava a
perder o equilíbrio, pulava em na grama. Olhou para a filmadora e chamou ‘Tia”,
depois subiu na rampa; André e Lurdes lhe disseram “Não”. Carlos voltou para o
tronco e subiu. Quando André se aproximou, ele rapidamente sentou. Os dois foram
até João e Alegria e começaram a correr pelo campo. Depois André soltou a guia da
cachorra e os dois adolescentes tentaram atrair sua atenção, mas ela cheirava o
chão; depois a filhote foi em direção a Rita, que estava com Dara deitada à sua
frente. O adestrador segurou a filhote e pediu que os dois a tirassem de lá enquanto
ele levava Dara. A filhote estava deitada e os dois a chamavam e batiam palmas,
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mas ela não reagia; então começaram a correr e ela veio atrás. Tobi chegou até eles
e os três cães se cheiraram. André levou Dara e Tobi para o campo ao lado e deixou
a filhote com os adolescentes; Carlos o ajudou.
Depois Carlos viu uma bola no chão e a chutou para o alto. Ele, João e André
começaram a chutar bolas para a cachorra. André chutou algumas para Rita e
convidou-a para jogar, depois disse aos garotos “Só não vale acertar ela”, referindo-
se a Alegria. Tentavam atrair sua atenção, mas a cachorra preferia cheirar a grama.
Então André chamou os dois para jogar bolas para Rita e eles começaram a fazê-lo,
rindo. André pediu que ela jogasse as bolas de volta. Sentada na mureta, ela não
parecia muito interessada; lançou algumas bolas, mas quando André foi até ela, Rita
se levantou e começou a jogar: lançava as bolas cada vez mais altas e, animada,
ria. Quando Lurdes disse para guardarem as bolas, Carlos protestou “Ah não!”
André os instruiu para r as bolas no balde. Os dois adolescentes miravam no
balde e arremessavam as bolas, enquanto Rita as recolhia do chão. Carlos veio até
a filmadora e olhou pela lente, depois voltou e jogou bolas no balde. Ana perguntou
a Rita se gostava da cachorra Alegria; a jovem respondeu negativamente. Ana disse
“Vamos embora?” e todos caminharam para o portão.
Apreciação (E10)
O encontro apresentou uma dinâmica bem variada, sendo que diversas situações
aconteceram simultaneamente. Alguns adolescentes pareceram experimentar uma
forma mais pessoal de se apropriar do espaço e da relação com os animais. Carlos
explorou a criatividade incluindo Tobi em seus movimentos e ações, João pegou a
guia de Alegria e passeou pelo campo, Ricardo entrou no campo para, talvez,
aplacar o sofrimento do cão em estar . Rita permaneceu em isolamento do grupo,
mas ao final, na ausência de cães maiores, conseguiu, gradativamente, estar com
os outros colegas. Houve momentos em que o brincar apareceu no plano individual
e também no grupal, como quando João ensaiou escovar o cabelo de Carlos e
ambos riram. Se por um lado houve a criação de um espaço para experimentação,
por outro lado, os gestos espontâneos tinham o curso da experiência alterado pela
colocação de um tempo e atividades que eram vindas da equipe profissional,
ocasionando a interrupção de experiências significativas, e possibilitando três
caminhos aqui notados: a esperança refletida na busca de Carlos por novas
119
sensações e explorações; a submissão aparentada por João em diferentes
momentos; ou a reação à invasão de Ricardo, recolhendo seu self para um
isolamento do mundo, num balanceio constante e seguro.
Aqui o cão pareceu transitar entre diferentes funções: um outro vivo e não-humano
capaz de adaptar-se ao ritmo e ao tempo dos jovens, ou um ser capaz de
demonstrar sofrimento e de ser recuperado pelo afeto humano, ou ainda um conforto
para aquele que se sentia excluído de uma atividade desejada; também foi vivido
como fonte ameaçadora para outros, ou alvo de expressão da injúria sentida pelas
pessoas.
Encontro 11 (E11)
Nesse dia estavam os adolescentes Rita, João e Carlos e também alguns
profissionais da escola e a equipe do canil. Fiquei no campo filmando.
Esse encontro começou com os três adolescentes no campo. André perguntou para
Rita “Tudo jóia?” e ela lhe respondeu com um abraço; depois ele indagou “Qual
deles vogostaria que viesse para cá?”, “Alegria” respondeu, “Você quer a Alegria
aqui?” confirmou André, “Aqui” disse Rita. “Só vou pegar ela se você quiser,
bom?”, “Tá”. Carlos foi até a cerca que separava o outro campo onde estavam Dara,
Tobi e Alegria, cumprimentou a filhote e a chamou por seu nome; Alegria pulou na
cerca e lambeu sua mão. Ele jogou uma bola para lá e Dara a pegou, depois foi até
os colegas e, assim como eles, segurou uma raquete de tênis na mão. Quando
André chegou trazendo Alegria, pediu que guardassem a raquete e pegassem as
escovas; João e Rita começaram a pentear a filhote. Marcos também estava com
eles e Carlos logo chamou Vera, que veio até eles, então o garoto lhe entregou sua
escova e buscou outra para si. Nesse momento Tobi, que estava com a guia presa
num pino, escapou e começou a vir até o grupo. O adestrador saiu e levou-o de
volta para o outro campo. Formaram um círculo ao redor da cachorra: Rita e João
escovavam as costas dela e Carlos, sua cabeça.
Vera perguntou se a cachorra estava cheirosa, os dois adolescentes a cheiraram e
disseram que estava um pouco fedida, então começaram a conversar sobre tomar
banho. Marcos disse que estavam fazendo carinho na cachorra e perguntou “Quem
120
gosta de carinho?” e os três responderam “Eu, eu”. André, trazendo Dara, perguntou
quem iria escová-la; Carlos rapidamente foi até eles e o adestrador propôs que
penteasse a cachorra enquanto ela andava. Fizeram isso por um tempo, o garoto
estava concentrado, depois comandaram a cachorra para deitar. Rita e João
continuavam escovando a filhote e, quando esta virou a cabeça na direção de Rita,
ela recuou suavemente o corpo, mas logo voltou a pentear. Em seguida, João foi
chamado para ir até Dara e, quando veio para perto de Rita, trazida por Carlos, a
jovem ficou em pé; mas logo que a rottweiler se afastou, ela voltou a pentear a
filhote. Nessa ocasião ela ria descontraída. No campo, Carlos conduzia Dara
enquanto João a escovava em movimento.
Marcos fez Alegria deitar de barriga para cima, Rita agachou e escovou o peito da
filhote. Parecia cada vez mais relaxada e confiante, penteando a cachorra com
calma e tranqüilidade; conversava umas poucas coisas com Marcos e Vera.
Percebia que ela não escovava somente o dorso da cachorra, agora aproximava-
se mais, expandindo para sua cabeça e depois voltando para o dorso. Quando a
filhote se mexeu, Rita logo ficou em pé, depois deu risada. Marcos pegou a guia de
Alegria e convidou a adolescente para passear. Rita riu: “Passear?” A cachorra
cheirou o balde e Marcos perguntou: “Vai levar o balde?” A jovem repetiu a pergunta
e riu, achando graça. Quando a filhote enroscou a guia no balde, Rita levantou-o e
soltou a guia. Marcos disse que ela havia ajudado a cachorra e Vera comentou com
a cachorra: “Fala muito obrigada!” Rita pareceu alegre e riu. Quando Carlos se
aproximou com Dara, Rita não mais recuou o corpo, ao invés disso disse firme “Sai
para lá!” e eles voltaram até João e André. Depois ela chamou Alegria e jogou uma
bola, a cachorra tentou pegá-la, mas a bola não estava ao seu alcance; então a
adolescente buscou a bola, chamou a filhote mais uma vez e jogou, e dessa vez ela
a pegou. Marcos tirou a bola da boca da cachorra e a entregou para Rita, que
chamou a filhote novamente e jogou a bola, mas desta vez ela não se interessou.
Marcos a convidou novamente para passear com Alegria pelo campo; Rita aceitou e,
de mãos dadas, seguiram um caminho. A jovem dava algumas risadas, parecia um
pouco ansiosa diante da situação. Marcos posicionou-se entre a adolescente e a
cachorra e, quando esta foi mais perto de Rita, ela não se esquivou e pareceu
sentir-se segura. Após o passeio, voltaram ao lugar onde estavam.
121
Enquanto isso, João e Carlos conduziam Dara pelos obstáculos, alternando entre si;
André os acompanhava e orientava. Convidou Rita para levar Dara e ela recusou,
então a convidou para ver os colegas passarem com a cachorra pelos obstáculos;
Rita ficou parada, sem nenhuma reação. Por fim perguntou: “E com a Alegria, você
passa?” “Sim”, respondeu a jovem. Então os dois caminharam com a filhote entre
eles e gradativamente Rita passou a conduzi-la sozinha; André fornecia as
orientações e Rita treinava a cachorra para pular um obstáculo.
Nesse momento, Carlos veio a a filmadora e observou através da tela: ficou
animado e soltava exclamações; depois lhe pedi para voltar ao grupo, mas ele
parecia fascinado pelo que via. Ao ver o grupo todo na tela ele disse, como uma
descoberta: “Olha lá, o au au!” Ao ver João conduzir Dara por um obstáculo, riu e
comentou: “Olha lá, o João” e chamou o colega, que olhou em sua direção. Depois
Carlos correu para o campo e foi recolher bolas de tênis que Marcos havia
espalhado. Rita e João também começaram a recolher as bolas num balde. Então
Carlos mostrou o balde para a filmadora. Alegria estava entre eles e tinha uma bola
na boca. Os adultos incentivaram Rita a tirar a bola da boca da filhote; ela fez uma
negativa e Carlos logo foi e tranqüilamente pegou a bola. A seguir levou o balde a
uma certa distância de onde o grupo estava e, por meio de gestos, sugeriu que
lançassem as bolas. André perguntou: “Quer que jogue no balde?” “É” respondeu.
Mas Rita veio trazendo o balde de volta para o grupo e, após colocarem as bolas e
encherem o balde, Carlos derrubou todas elas. Marcos e Vera perguntaram: “Era
pra jogar?!!” Vera emendou: “Era para arrumar, agora cata de novo!”. Fazendo o
gesto novamente, Carlos indicava que era para tentar acertar a bola no balde;
Marcos disse: “Então tá, vamos ver quem acerta” e os três adolescentes começaram
a arremessar as bolas.
Passado um tempo, Marcos os convidou para uma brincadeira: formaram duplas de
adolescentes e profissionais, ficaram um de frente para o outro e então os
profissionais jogavam as bolas e os adolescentes rebatiam com as raquetes. Vera
lançava bolas para Carlos, Marcos para João e André ia jogar para Rita, porém seu
celular tocou e ele atendeu. Marcos começou a lançar as bolas tanto para João
quanto para Rita. Os três adolescentes riam e pareciam gostar de rebater as bolas.
André chamou Dara e incentivou-a a buscar as bolas arremessadas. Os três
122
tentavam lançar na direção da cachorra; Rita rebatia as bolas e recuava um pouco,
mas quando a cachorra pegou suas bolas, ela ria. Passado um tempo, Carlos
recolhia as bolas e as colocava em sua blusa; mostrou-as para Vera, que disse para
pô-las no balde e foi isso que fez. Enquanto João ainda lançava as bolas, Rita ficou
parada em perto da mureta. André foi até ela e perguntou: “Quer alguma coisa
Rita?” “Não” respondeu. Então ele olhou para Dara e disse: “Quer que eu prenda
ela?” “Sim”. O adestrador foi até a cachorra e disse para a adolescente: “Ó, Rita, vou
guardar a Dara, vai ficar a Alegria, bom?” “Tá” respondeu. E quando ficou
somente a filhote Alegria no campo, a jovem saiu da mureta e foi até os colegas.
João e Rita guardavam as bolas no balde e Carlos seguiu André até a piscina, que
estava vazia, depois continuaram até o fundo do campo para pegar mais bolas.
Carlos correu com ele e logo estavam jogando futebol; Rita correu até eles e,
olhando, riu. João passava a mão em Alegria e também olhou para eles e riu, logo
levantou e correu para lá. Em pouco tempo e, espontaneamente, os três
adolescentes e André jogavam futebol, todos riam, bastante descontraídos. João e
Carlos disputavam a bola com certa freqüência; João se mostrava competitivo e
tentava pegar a bola, Carlos entrou na disputa e segurou a blusa do colega, os dois
riram e continuaram correndo pelo campo. Então Carlos chutou uma bola que caiu
na piscina vazia. André e João foram para lá, o adestrador falou: “Ô” e ouviu-se um
eco. Carlos e Rita também foram e Carlos logo fez: “Ô” com eco e sentou na borda
da piscina. André lhe pediu que não fizesse isso e lhe estendeu a mão; Carlos
apertou-a e levantou, depois correu até o balde e chutou algumas bolas. Rita e João
caminharam para o grupo. André fez uma bola descer pelo obstáculo rampa; Carlos
e João mostraram interesse e fizeram o mesmo. Rita olhava para eles e estava
abraçada com Marcos.
Por fim André perguntou:“Vamos embora?” Carlos subiu na rampa e André lhe
estendeu a mão, ajudando-o a se equilibrar. Depois foram todos para o portão.
Apreciação (E11)
Esse dia começou com um movimento diferente, sendo oferecida a oportunidade de
escolha “Qual deles (cães) você gostaria que viesse para cá?” Foi inaugurada uma
outra configuração do encontro, na qual era solicitado a um dos adolescentes que
123
participasse das decisões referentes ao grupo. É certo que Rita também chegou
diferente: carinhosa, logo abraçou o adestrador, mas o certo é que ela assumiu o
pedido e decidiu por um dos cachorros: Alegria. E, ao longo do encontro, tive a
impressão de que, mesmo com algumas atividades dirigidas, o ambiente foi capaz
de sustentar alguns interesses e a maneira de ser de cada um, possibilitando
experiências emocionais mais significativas e expressivas. Quando escovavam a
filhote, um dos profissionais refletiu para os jovens o que estavam realizando -
carinho - e fez uma relação com suas próprias experiências de receber carinho.
Esse encontro começou com o grupo integrado na ação de escovar uma cachorra,
depois foi expandindo para outras ações, mais individualizadas ou em parceria com
o profissional e o cachorro, e, por fim, emergiu um espaço potencial grupal,
essencialmente humano, no qual o futebol era uma forma de comunicação. Percebi
que todos estavam mais livres, tanto os jovens quanto os profissionais, havendo
maior participação e interação entre os membros do grupo.
O o, além de ter sido depositário de afeto, esteve no papel de ser cuidado,
conduzido, investido, como um elo vivo entre o grupo.
Encontro 12 (E12)
Nesse dia estiveram presentes João, Carlos, Ricardo e alguns profissionais da
escola e do canil.
Vieram caminhando para o campo. Carlos trazia Tiff uma filhote de pitbull pela
guia. Ricardo logo sentou no balanço e, junto com os colegas, olhava interessado
para a cachorra que corria e saltitava entre eles. Os três adolescentes entraram no
campo quando Marcos e André para foram, com Tiff atrás. A cachorra Alegria foi
trazida para o campo e, enquanto Carlos e João interagiam com Tiff, Ricardo sentou
num tronco ao lado de Vera e começou a afagar Alegria; olhava para os lados e não
parecia muito interessado na cachorra, que então pulou nele: ele a segurou e alisou
seu pêlo, depois foi até os demais colegas, abraçado com Vera.
Carlos brincava com Tiff: segurava a guia no alto para ver a cachorra pular e João,
curioso e interessado, observava os dois. Depois Tiff e Alegria começaram a se
cheirar e todos estavam em pé, olhando para elas. Ricardo, Marcos e Vera
124
sentaram num tronco e Carlos ficou vendo o adestrador colocar uma guia em alegria
e levá-la para o campo ao lado. Enquanto isso, Tiff, sempre com a cauda abanando,
ia até cada pessoa ali, buscando contato. And comentou para o grupo que seu
olho manchado lembrava o cachorro Bandit, do desenho Jonny Quest. Em seguida,
jogou um graveto para o alto e perguntou: “Vamos brincar com ela assim?” Os
adolescentes sorriam e observavam a filhote morder o graveto. Carlos era o único
adolescente que estava em pé, foi até o adestrador e a filhote e tirou o graveto da
boca da cachorra, depois ficou chacoalhando-o. André o orientou para mostrar o
graveto para a filhote; o garoto assim o fez e depois jogou o objeto e a cachorra o
mordeu. A filhote correu e pulou em João, que passou ambas as mãos nela, de
modo carinhoso, e sorriu. Carlos pegou o graveto e o mostrou novamente para a
cachorra, que corria espontaneamente pelo campo. André lhe jogou o graveto, que
ela mordeu, então Carlos pegou o graveto dela e o segurou à sua frente. André
disse para jogá-lo, João falou: “Vai, Carlos!” e o jovem atirou o graveto. Nesse
momento, Andlhes disse que estavam ensinando a cachorra a pegar um objeto e
carregá-lo; em seguida, ensinou Carlos a atrair a atenção da filhote batendo palmas,
pegar o graveto dela e depois jogá-lo. O garoto parecia envolvido com a situação,
João olhava curioso e prestava atenção e Ricardo olhava mas não parecia
interessado - levantou-se, saiu pelo portão e foi para o balanço.
André trouxe Alegria de volta para o campo. Tiff mordeu uma das pontas da guia
que Carlos tinha à mão e começou a andar; André lhe disse para deixá-la levá-lo e o
garoto disse “Tá” e seguiu a filhote. Esta foi até João e Carlos lhe entregou a guia. O
outro adolescente ficou em e começou a brincar com a filhote balançando a guia
para ela tentar pegar. A cachorra logo desviou a atenção e correu até Alegria, que
estava com Carlos e André. João voltou a investir na filhote, chacoalhando a guia.
A essa altura, procurei Ricardo e vi que havia saído do balanço e debruçado sobre
uma mesa de madeira. Um outro profissional do canil se aproximou e os dois se
cumprimentaram, o adolescente sorria e parecia bem tranqüilo.
No campo, João e Carlos brincavam com Tiff; este mexia com o graveto e aquele
agitava a guia. Quando a filhote mordeu a ponta da guia, João se deixou levar por
ela, primeiro ia sorrindo e depois começou a caminhar à sua frente, mas logo a
125
cachorra começou a pular em Alegria e o adolescente passou a tentar atrair sua
atenção. Então ele sentou junto às outras pessoas que estavam sentadas no tronco;
as cachorras corriam soltas pelo campo e quando vinham até eles, eram afagadas
com carinho. O adestrador chamava a atenção das cachorras chacoalhando objetos;
João olhava e ria, então André o chamou para vir brincar; o jovem foi até eles e
chacoalhava a guia para que Tiff tentasse morder. Carlos estava abraçado com
Marcos e acarinhava Alegria, que estava deitada perto dele, até que Tiff correu até
eles e deitou à sua frente; João veio atrás e Carlos pegou a guia e a pôs na boca da
cachorra, que a mordeu. João começou a puxar a guia e a filhote corria para pegá-
la; ele ria bastante e parecia gostar disso, repetiu e em seguida passou a guia para
Carlos e André perguntou a ele se gostaria de ir. O garoto levantou e segurou a
guia. Tiff pulava, chamando a atenção de Marcos, enquanto Carlos esperava. Então
André pegou a filhote no colo e a pôs diante do garoto, que iniciou um movimento
circular com a guia. A filhote corria atrás, e, quando desviava a atenção para outro
lugar, o adolescente e o adestrador assoviavam, então Tiff voltava. André disse para
Carlos balançar a guia no chão. O garoto o fez e a filhote correu para pegar o
objeto. André orientou para que deixasse a cachorra morder e, quando ela fez isso,
Carlos disse contente: “Aêêê” e seguiu Tiff até o grupo. Ela foi até Vera, que a
afagou, depois até João, que fez o mesmo; André se aproximou e agitou a guia para
a cachorra. João pareceu timidamente reter a filhote com ele, mas ela correu atrás
do adestrador. Carlos pegou o graveto e os seguiu. André lhe estendeu a guia e
disse:“Quer ver? Ela vai pegar você e levar até o Marcos”.
Busquei olhar Ricardo, fora do campo: ele estava deitado, descansando sobre a
mesa. O outro profissional do canil observava o grupo no campo. Ricardo saiu da
mesa e sentou no chão, então este profissional foi até ele e pareciam conversar.
Depois o adolescente levantou e caminhou em direção ao estacionamento; o
profissional o seguiu. Vera chamou-o e foi atrás dele.
Voltando o olhar para o grupo, Tiff havia deitado de barriga para cima e João
passava as mãos na cachorra. Carlos afagava Alegria. Marcos começou a balançar
a guia diante de Tiff, que tentava mordê-la; João achava graça e ria. A filhote correu
pelo campo e voltou até o jovem, que ficou com ela e a observava morder o graveto;
depois começou a jogar o objeto para ela. André veio até eles e ficaram os dois com
126
Tiff. Enquanto isso, Carlos pegou a guia de Alegria e começou a conduzi-la. Marcos
acompanhava os dois, que caminhavam espontaneamente; ora o garoto ia à frente,
ora a cachorra, até que a levou para a rampa, mas ela não subiu. Marcos pegou sua
guia e os três foram até João e André. Os dois adolescentes passavam as mãos nas
cachorras, João parecia bastante envolvido e Carlos estava mais retraído. O
adestrador pegou Tiff no colo e afastou-se do grupo. Alegria foi atrás e os jovens
ficaram observando. Então Carlos assoviou e Alegria voltou até eles e o adestrador
veio em seguida. O garoto pegou o graveto e ficou jogando para o ar, chamando a
cachorra, mas ela estava deitada na grama. João disse algo para Carlos e foi até o
colega, mas Carlos não interagiu com João e os dois foram até a cachorra e
sentaram no tronco. André perguntou se Carlos queria ir até os obstáculos; o garoto
apontou para cada obstáculo e disse seus nomes. André e Marcos conversaram
com ele e o ajudaram a recordar o nome correto de alguns.
Nesse momento, Ricardo estava voltando do estacionamento com Vera; esta entrou
no campo, mas o rapaz ficou fora, andando e olhando ao redor.
Carlos pegou o graveto e começou a jogá-lo para o alto e tentar pegá-lo com a mão.
João parou ao seu lado e falava com ele, querendo sua atenção; Carlos pareceu
não perceber pois estava concentrado. João continuou conversando, buscando
contato com o colega, que olhou para ele e tentou jogar o graveto de uma mão para
outra. “Não conseguindo?”, disse João e pediu: “Dá aí”. Logo Carlos conseguiu
pegar e mostrou para o colega; continuou tentando, pôs o objeto no e chutou-o
para o alto. Quando o graveto caiu no chão, João o pegou e começou a brincar, os
dois sorriam e Carlos caminhou para o portão, saiu, foi para o balanço e lá ficou.
Ricardo estava por ali, debruçado numa bancada e batendo com um pedaço de
metal, depois sentou sobre a bancada e ficou olhando para o campo. Passado um
tempo, deitou e ficou olhando para a paisagem.
No campo, João jogava o graveto e o pegava; quando Alegria passou perto, ele lhe
estendeu o objeto, mas a cachorra seguiu em frente. O adolescente voltou a jogar,
olhou para a cachorra e depois para a filmadora, sorrindo. Alegria passou
novamente por ele, que mais uma vez estendeu o graveto; ela continuou andando e
127
ele voltou a jogar. Olhava com atenção para a filmadora, parecia querer atenção;
agora fazia o graveto rolar pelos braços e depois o colocou sobre o e equilibrou.
Os outros dois jovens continuaram fora do campo, um no balanço e o outro deitado.
Apreciação (E12)
A configuração desse encontro foi mais livre e menos dirigida, embora houvesse a
presença de orientações fornecidas por profissionais. Pareceu que diante de
situação aberta, alguns adolescentes ficaram parados, talvez na expectativa de
ações externas a eles. Este era um território pouco comum: a possibilidade de
configurarem o encontro, desenvolvendo suas iniciativas e experimentando as
possibilidades de ação. Alguns expressaram interesses e brincadeiras no contato
com as cachorras, jogando o graveto, chacoalhando a guia. Ricardo preferiu ficar
mais à parte, criando seu espaço de observação e relaxamento. João buscou em
diferentes momentos contato com o colega Carlos, falando com ele ou se
aproximando, porém este parecia mais interessado no contato com os animais não-
humanos.
A maneira de ser do cachorro iniciava outras ações nos adolescentes, como quando
Alegria pulou em Ricardo e ele lhe afagou, ou com Tiff correndo e pulando entre os
outros membros do grupo e mordendo-os. Cada um aproximou-se e interagiu de
maneira pessoal.
128
Carlos colocando seu boné em Dara
(E10)
Ricardo indo até Tobi (E10)
Rita sentada à parte do grupo (E10)
Os três jovens no campo interagindo
com os cães (E10)
Ricardo puxando Tobi pela guia (E10)
Rita escovando a filhote Alegria (E11)
Carlos, João e Rita jogando futebol
(E11)
João (à esq) chacoalhando a guia
para Tiff tentar pegar (E12)
129
CAPÍTULO 5:
ANÁLISE
Os encontros entre os adolescentes com síndrome de Down e os cachorros, numa
situação de intervenção, evidenciam diferentes aspectos da relação entre pessoas e
animais. Este capítulo se propõe a integrar a investigação psicológica desses
aspectos a fim de alcançar maior compreensão da influência da participação dos
cachorros nos encontros com os adolescentes e, por fim, refletir a respeito das
possibilidades de intervenções.
Para fins de estruturação das reflexões, foram agrupados temas considerados
significativos na dinâmica dos encontros realizados, sendo eles: Funções dos
Cachorros, Manejo da Situação (Provisão Ambiental) e Possibilidades de
Intervenção.
5.1 FUNÇÕES DOS CACHORROS
Ao considerar a proposta dos encontros como uma tentativa de oferecer aos
adolescentes um espaço de desenvolvimento a partir do contato com os cachorros,
a busca de compreensão do lugar e da função dos animais mostra-se de extrema
relevância. Pode-se observar nos encontros uma maneira de se relacionar com o
animal qualitativamente diferente das relações essencialmente humanas,
destacando a complexidade dos fenômenos observados entre as pessoas e os
animais, uma vez que o cachorro, se por um lado não é um ser humano e muito se
diferencia deste em sua maneira de ser e estar no mundo, por outro lado não é um
objeto inanimado, cuja vitalidade emergiria a partir de um sentido a ele atribuído. O
animal é vivo antes que lhe atribuam qualquer sentido. Este é um importante
aspecto a ser pontuado, uma vez que as investigações psicológicas tradicionalmente
estudam as relações interpessoais, intrapsíquicas e com o campo simbólico e
cultural. As análises aqui tecidas partem do pressuposto de que o que foi ali
humanamente vivenciado com o animal tem raízes no psiquismo do indivíduo, mas
também encontra relação com o que foi oferecido pelo animal, que estava com
sua vitalidade e características próprias.
130
Portanto, a análise das funções dos cachorros leva em consideração tanto os
aspectos psicológicos humanos quanto as características dos animais, sendo difícil,
e talvez desnecessário neste momento, determinar uma causalidade empírica para
as vivências ocorridas.
5.1.1 Comunicação não-verbal
Por ser o cachorro um animal não dotado das características do discurso verbal, sua
comunicação com as pessoas e com o mundo ocorre por outros meios. A
manifestação de sua vitalidade aconteceu, nos encontros, pela via da comunicação
não-verbal: pela ação motora no espaço e no tempo; pela postura corporal; por
sons, cheiros e visão; enfim, pela sucessão de acontecimentos concretos tudo
para o cão pareceu existir na dimensão sensorial. Esta, no processo de
desenvolvimento humano, é anterior ao discurso representativo, existindo a
dimensão sensorial e não verbal como fundante na constituição do self.
Aparecem situações entre os adolescentes e os cães nas quais a comunicação se
desenvolveu por meio da ação, do gesto, da sensação. Carlos, no Encontro 1,
aproximou-se da filhote Alegria e jogou uma bola para ela, mas a ação pouco reativa
da cachorra o levou a falar com ela, convidando-a para brincar “Aqui, menina”, mas
a filhote não correspondeu ao seu gesto e o garoto investiu em Dara, que lhe
correspondeu. Não é possível afirmar que as cachorras tinham consciência da
intenção de brincar do jovem, elas apenas responderam cada uma à sua maneira
à ação de Carlos. Em alguns momentos (Encontro 2 e 10), quando os
adolescentes caminhavam livres pelo campo segurando os cães pela guia, eles
seguiam os animais e o ritmo era marcado por estes, para, em seguida, os jovens
assumirem o controle e conterem os animais pelas guias, fazendo-os se adaptarem
aos seus ritmos. Esta é uma situação interessante pois um ajustamento entre a
dupla, no qual os ritmos se alternam, se conflitam ou harmonizam por meio da
corporeidade de cada um e da maneira de ocupar o espaço na sucessão de eventos
ao longo do tempo. Este interjogo de ritmicidade entre os adolescentes e os cães
também pode ser visto na brincadeira, como quando João e Carlos chacoalhavam
uma guia para que a filhote Tiff tentasse mordê-la (Encontro 12); havia ali um jogo
131
onde cada um agia com o próprio corpo, e os movimentos de um dependiam dos
movimentos do outro.
A questão do corpo e do ritmo entre pessoas e animais também era marcada por
momentos de intensa afetividade, em que o toque, o contato tátil, o abraço, o
aninhar no colo e o aconchego encontravam sua via de expressão. No Encontro 2,
Carlos e Ricardo abraçaram simultaneamente o cachorro Tobi, e este depositário
de afeto por parte dos jovens recebia o gesto deles, permanecia ali, parado,
apenas recebendo o toque e o abraço dos jovens. Em outro momento (Encontro 6),
Ricardo abraçou Alegria e a comunicação acontecia no encontro do corpo do cão
com o corpo do rapaz que recebia e acolhia aquele outro ser. Talvez seja difícil
saber o que se passava nos pensamentos e sentimentos daqueles jovens nessas
situações, mas um fato é evidente: algo significativo acontecia, naquele momento,
entre os jovens e os cães, pelo investimento afetivo observado e pela proximidade
física envolvida.
A comunicação não-verbal podia partir tanto das pessoas como dos animais.
Percebem-se eventos em que os animais fizeram uma ação ou um gesto e a partir
daí surgiu uma comunicação entre eles e as pessoas. No Encontro 5, quando
Ricardo estava sentado num tronco e parecendo meio desanimado, Dara
espontaneamente foi até o rapaz, deitando aos seus pés, então ele começou a
acarinhá-la. O comportamento da cachorra indicava uma busca de aproximação do
rapaz e ele a recebeu e deu sentido à sua vinda quando começou a afagá-la. Houve
aqui também uma comunicação em que um ficou atento ao movimento do outro e
interagiram a partir disso. Em outro episódio (Encontro 10), Tobi estava com sua
guia presa num pino e latia de forma lamentosa; Ricardo, que até então não havia
entrado no campo, passou pelo portão e foi diretamente para o cachorro, que
imediatamente parou de latir. Talvez seja possível supor que o comportamento do
cachorro tenha comunicado algo para o jovem e a ação de Ricardo parece ter
também comunicado algo para o animal, que parou de latir. Aqui também é
evidenciada a complexidade da comunicação não-verbal existente entre as pessoas
e os cachorros.
132
Destaco, ainda, uma outra situação: ainda no Encontro 10, quando Ricardo se isolou
no balanço, evitando contato com as pessoas, um dos profissionais levou Tobi até
ele e amarrou a guia no balanço. A partir daí uma sucessão de acontecimentos
surgiu entre o jovem e o animal: Ricardo passou a impor um ritmo no balanço e o
animal o seguiu, o rapaz lhe dirigia olhares bravos e tinha atitudes impiedosas ao
puxar com força a guia do animal. E este, diferentemente da atitude recente das
pessoas, adaptou-se ao seu gesto e ritmo. Esta situação pareceu significativa, pois
ali Ricardo podia experimentar a aceitação de seus desejos e vontades, a ele
refletidos através da atitude do animal.
A análise da comunicação o-verbal indica que os cachorros interagiam com as
pessoas não a partir das intenções ou sentimentos destas, ou ainda por meio de um
discurso representativo: o cão reagia ao fato, ao comportamento humano. E também
as pessoas reagiam às ações dos cachorros, atribuindo-lhes sentido a partir de seu
próprio referencial. Os animais iniciavam atitudes ou reagiam às ações humanas,
portanto eram capazes de interagir com as pessoas diferentemente dos objetos
inanimados ou de plantas e outros tipos de seres vivos e elas percebiam isto, pois
davam seqüência à interação. Ao considerar que as pessoas também se comunicam
na dimensão não-verbal, e que a este tipo de comunicação se acrescenta a
comunicação verbal, discursiva, arriscaria dizer que a especificidade da relação com
os cães ocorre porque eles interagem com os humanos a partir de ações, fatos,
gestos e movimentos, porém, pelo fato de não possuírem a comunicação verbal, é
possível a criação de uma forma de comunicação em que as pessoas podem
livremente atribuir significado à ação do animal, permitindo maior liberdade na
expressão de sentimentos.
5.1.2 Despertar aspectos do self (expressão de sentimentos)
A análise da função de comunicação não-verbal conduz a uma reflexão das
implicações desta forma de comunicação entre humanos e um outro animal com
grande capacidade de interação: os cachorros tanto reagiam às ações humanas
quanto iniciavam ações próprias. Sendo assim, outra possível função dos cachorros
observada nos encontros foi a de despertar diferentes aspectos do self,
manifestados pelos adolescentes em suas atitudes, ações e verbalizações. A
133
seguinte situação evidencia esta questão: no Encontro 4, quando Tobi uivou, sua
ação desencadeou três diferentes atitudes em Carlos: primeiro, de reciprocidade,
quando o garoto uivou de volta para o cão, depois de irritação e braveza quando o
rapaz o repreendeu dizendo: “Cala a boca” e, por fim, de contenção dos
sentimentos, quando Carlos apenas olhou para ele com o canto do olho, parecendo
ainda irritado. A sucessão de fenômenos percebidos revela um importante aspecto
desta relação: o animal não reagiu ao conteúdo da fala do garoto; na realidade, o
animal pareceu não alterar seu comportamento diante das atitudes do rapaz, o que
permitiu a Carlos expressar seus sentimentos, fossem eles amorosos ou agressivos.
Dentre as situações ocorridas nos encontros, era comum a manifestação da maneira
de ser de cada adolescente: no Encontro 2, Carlos evidenciou a intensidade que o
interesse pelo contato com os cachorros lhe despertava, acompanhou um dos
profissionais até onde os cães estavam, perguntou o nome do cachorro e passeou
com ele. Em outros momentos, o contato com os cães pareceu despertar
sentimentos amorosos, de carinho e afetividade, quando os jovens afagavam,
acarinhavam e abraçavam os cachorros. Parecia ser mais freqüente a expressão
destes sentimentos na relação com os animais do que com as pessoas, embora isto
pudesse ser observado em alguns momentos.
Outro aspecto a considerar foi quando os jovens acalmaram e cuidaram dos
cachorros: Rita (Encontro 1) pareceu carinhosa e acolhedora ao passar a mão nas
costas de Alegria quando esta não conseguiu subir na rampa. E Ricardo (Encontro
10) foi até Tobi quando este latia e pareceu confortá-lo. Estas situações evidenciam
a possibilidade dos jovens sentirem-se dando afeto e cuidando, o que implica na
possibilidade de identificação com o outro não humano e a capacidade para o
concernimento. Esta capacidade foi refletida de volta quando um dos profissionais
verbalizou que Rita havia ajudado a cachorra quando levantou o balde (Encontro
11).
Também no contato com o cachorro era possível perceber as capacidades dos
adolescentes: parecia que os profissionais consideravam o interesse e entusiasmo
de Carlos como uma falta de limites, no entanto o garoto explicitou sua capacidade
interna de perceber a importância da organização externa quando prendeu o o
134
Tobi após este ter se soltado de um pino (Encontro 6). Talvez estivesse
comunicando a necessidade de limites externos mais bem definidos em sua vida.
Além dos sentimentos de interesse e curiosidade, de afeto e concernimento, a
relação com os cachorros também despertava sentimentos de hostilidade ou de
medo. Os sentimentos hostis e agressivos foram observados quando Carlos virou a
cabeça de Tobi de forma brusca e chamou sua atenção “Hei!”, quando o cão não
realizou a ação desejada (Encontro 2), ou seja, o garoto encontrou meios de
manifestar sua raiva diante da frustração. É interessante perceber que em momento
algum este adolescente expressou tais sentimentos para qualquer uma das pessoas
ali presentes. Também Ricardo, que diante da dificuldade nas relações interpessoais
se retraía em silêncio, manifestou aspectos mais agressivos em direção ao cachorro,
puxando-o quando este se afastava (Encontro 10) e, conforme o cachorro foi
sobrevivendo à sua agressividade, o rapaz foi restabelecendo sua confiança no
ambiente a ponto de buscar novamente o contato com as pessoas. Os sentimentos
de medo puderam ser observados na maneira como Rita estabeleceu o contato com
os animais: primeiro hesitou, depois participou com o apoio emocional fornecido pelo
adestrador, em seguida evitou o contato com uma cachorra grande e, por fim, seu
medo emergiu de forma aguda quando os filhotes ficaram soltos ao seu redor,
sugerindo a dificuldade de estruturar defesas psicológicas diante da angústia
suscitada pela situação. Nos outros encontros participou poucas vezes de interações
com animais, geralmente os evitava e verbalizou não gostar deles, associando-os
com uma vivência pessoal negativa. Porém, a experiência de ver o cachorro nadar
abriu outra dimensão desta relação: a possibilidade de contato indireto por meio da
bola jogada ao animal. A partir daí houve uma mudança gradual e lenta, na qual a
jovem manifestou o desenvolvimento de recursos internos para lidar com a situação
ameaçadora: ao invés de subir na cerca para se esquivar dos cachorros, ela falava
bravo e olhava concentrada, encarando os animais (Encontro 7). Com as defesas
mais estruturadas e maior auto-confiança, Rita conseguiu investir afetivamente na
filhote Alegria quando a escovava e depois jogando-lhe uma bola (Encontro 11), ao
mesmo tempo em que ria de si mesma quando se assustava com as ações da
cachorra. Percebe-se, na situação de Rita, que o contato com os animais despertou
tanto medo e angústia, quanto interesse e superação destes mesmos medos.
135
A relação com os animais também pareceu facilitar o surgimento do espaço
potencial, principalmente nas situações mais livres: seja jogando bola para os
cachorros (Encontro 1) ou experimentando equilibrar uma bola na testa da cachorra
(Encontro 9).
Por meio da análise dos encontros, a manifestação de certos aspectos do self no
contato com o animal traz à tona dois pontos de reflexão:
- comunicação do mundo mental: a forma como cada adolescente lidava com as
situações vividas com os animais permitia uma comunicação de seu mundo interno,
valores e sentimentos, revelando importantes aspectos de suas personalidades e da
maneira de ser de cada um. O cachorro suscitava conteúdos mentais dos jovens
tanto por seu simbolismo e pelo que poderia representar para cada um, como
também por seus diferentes comportamentos que suscitavam mais associações e
experiências emocionais. Diferentes cães despertavam diferentes sentimentos e
atitudes.
- dentre os diferentes aspectos dos selves dos adolescentes despertados e
mobilizados, alguns eram também compartilhados com as pessoas, mas outros
apenas emergiram na relação com o animal, sugerindo que sentimentos difíceis de
serem vivenciados no mundo humano encontravam possibilidade de existência na
relação com os animais.
5.1.3 O ser si mesmo dos adolescentes e a presença viva do cachorro
Outra importante função dos cachorros a ser analisada é a maneira de ser destes
animais e suas possíveis repercussões nas relações com os adolescentes. Apesar
dos cães serem manipulados, conduzidos e controlados, seja no circuito de
obstáculos, seja durante a escovação, tal manipulação era limitada pois havia um
outro ali, um outro não humano mas dotado de vida e características próprias. O
animal, diferentemente de um objeto inanimado, tem uma presença viva, com sua
respiração, temperatura, movimento e sensibilidade. A espécie canina apresenta
uma maneira de ser própria e, dentro da espécie, cada cachorro tem sua
singularidade. A maneira de ser desta espécie não inclui a presença de valores e
136
conceitos oriundos da cultura humana. Percebeu-se nos encontros que os animais
interagiam com as pessoas independentemente de serem adultos ou jovens,
brancos ou negros, homens ou mulheres, com ou sem síndrome de Down. Ou seja,
no contato com os cachorros era possível a comunicação não-verbal entre as
espécies, a mobilização de sentimentos e de diferentes aspectos do self, ao mesmo
tempo em que as atitudes dos animais revelavam claramente sua maneira de ser:
aceitavam ou não pular um obstáculo, aproximavam-se das pessoas mostrando um
interesse pelo contato, recebiam os afagos e abraços, corriam à frente ou se
deixavam conduzir, deitavam quando cansados e corriam quando soltos. Um
cachorro é o que é e, portanto, é verdadeiro em sua presença viva. O cão não tem
uma construção cultural, ele vive na situação presente e sua ação é espontânea.
A presença viva do cachorro e a sua constância tendiam a desenvolver nas pessoas
a confiabilidade no ambiente. Isto pode ser observado na tranqüilidade com que os
jovens conduziam os animais, os tocavam, afagavam e abraçavam; como também
em momentos de isolamento, como quando Ricardo fechou-se (Encontros 10) e a
presença de Tobi - seu comportamento constante, sua inteireza e sua sobrevivência
às atitudes hostis do rapaz - configurou um ponto de referência no mundo externo, a
partir do qual Ricardo foi restabelecendo a confiança no ambiente. A questão da
confiabilidade despertada pela constância do animal pode ter relação com a
capacidade de estar na presença de outro, no caso um outro animal, mas que
fornece segurança.
A análise dos encontros revela que a maneira de ser do cachorro através de suas
ações de atender ouo aos comandos, de se deixar manipular ou não, de ser uma
presença constante e segura, de ter uma inteireza e continuidade de ser sugere a
emergência da possibilidade de maior espontaneidade nos adolescentes, observada
nas situações menos estruturadas e mais livres, facilitando o surgimento do espaço
potencial e a descoberta de si.
137
5.2 MANEJO DA SITUAÇÃO (PROVISÃO AMBIENTAL)
As questões referentes ao manejo da situação interventiva pelos profissionais da
escola e do canil junto aos adolescentes são de grande relevância, uma vez que
configuraram o contexto humano no qual os encontros se desenvolveram.
A proposta inicial de intervenção tinha por objetivo auxiliar os jovens no
desenvolvimento motor, lingüístico e emocional. Para tanto o adestrador - por ser
quem conhecia o comportamento dos animais e tinha algum tipo de familiaridade
com atividades entre pessoas e es - receberia orientações e instruções dos
demais profissionais das áreas de psicologia, terapia ocupacional, pedagogia,
fisioterapia e fonoaudiologia, para a organização dos encontros. Um primeiro
aspecto a ser destacado foi o caráter de experimentação desta proposta de
intervenção, uma vez que as instituições tinham pouca ou nenhuma familiaridade
com o desenvolvimento de atividades entre pessoas e animais, revelando o
tateamento de um novo campo de atuação profissional. Percebe-se que a equipe da
escola e do canil haviam proposto objetivos para o desenvolvimento dos jovens,
entretanto, havia uma dificuldade pois não sabiam como alcançá-los. Houve uma
precária articulação entre a equipe profissional: por vezes as atividades eram
combinadas durante o próprio horário da sessão ou não havia comunicação prévia,
o que conduzia freqüentemente a atividades isoladas, pouco integradas e sem
objetivos definidos.
Na prática parece ter havido pouca comunicação entre a equipe no sentido de definir
os objetivos da intervenção e organizar os encontros a partir deles. Tal configuração
parece ter como base a pouca ou nenhuma familiaridade da equipe da escola com
este tipo de intervenção, pois os profissionais o sabiam como contribuir cada
qual dentro de seu conhecimento técnico para o enriquecimento das intervenções.
Por outro lado, a responsabilidade pela organização dos encontros pareceu recair
sobre um profissional que, apesar de sua experiência no contato entre pessoas e
animais, pouco dispunha de recursos técnicos para organizar as intervenções.
Havia, como se pode perceber nos encontros, a intenção e a tentativa de propor
uma condição favorecedora do desenvolvimento desses jovens. Entretanto, fica
patente a necessidade de maior organização e articulação da equipe profissional,
138
revelando aqui uma possível dificuldade das intervenções com participação dos
animais: seu caráter interdisciplinar reunindo diferentes áreas profissionais, de
diferentes níveis técnicos. Se, por um lado a participação do adestrador era
fundamental por ser ele quem conhecia melhor o comportamento canino, por outro
lado a equipe da escola tinha sua importância na medida em que era portadora de
outros saberes sobre os adolescentes e suas necessidades.
A análise dos encontros revela a ocorrência de acontecimentos espontâneos e
significativos, possíveis veiculadores de enriquecimento do mundo interno e da
relação com o mundo externo.
Ocorreram momentos de identificação das pessoas entre si e também delas com os
animais, iniciados tanto pelos adolescentes quanto pelos profissionais. A situação
em que os profissionais iniciaram a ação possibilitando a identificação entre as
pessoas é observada quando João, convidado para demonstrar para uma das
profissionais como se conduzia um cachorro, (Encontro 5), realizou a ação com
determinação e entusiasmo, pois ele estava no lugar antes ocupado pelo adestrador
o de saber e ensinar a conduzir o animal e era capaz de transmitir seu
conhecimento para um profissional, que, nessa situação, ocupava a posição de
aprendiz. Os profissionais também suscitaram situações em que era sugerida a
identificação entre as pessoas e os animais: no Encontro 1 os adolescentes, após
caminharem pelos obstáculos sem o cão e na presença do profissional, receberam
comandos deste como se fossem es, de onde parece ter emergido um espaço
potencial, veiculador da experiência de ilusão e descontração, onde eram cães e
adolescentes ao mesmo tempo. Outra possível fonte facilitadora de identificação
emergiu nos momentos de escovação dos cachorros, quando um dos profissionais
perguntou aos adolescentes se eles também penteavam os cabelos (Encontro 6), ou
quando o profissional nomeou o que faziam como uma forma de carinho,
devolvendo aos jovens sua percepção e seu olhar sobre a afetividade deles, e
depois questionou quem gostava de carinho (Encontro 11). Era possível um olhar
humano para o animal com a possibilidade de identificar nele algo de comum, tal
como a necessidade de cuidados e afeto. Também se percebeu que, apesar do
cachorro se deixar ser conduzido e manipulado, ele não era um objeto inanimado,
desprovido de vida. O profissional clareou esta percepção quando João conduziu
139
Dara por uma rampa e ambos esperaram a rampa inclinar e forneceram tempo para
que ela se equilibrasse para seguir adiante (Encontro 9). Esta situação evidencia a
necessidade de também haver uma adaptação e um respeito ao tempo do cachorro,
assim como com as pessoas. O processo de identificação foi, em outros momentos,
iniciado pelos adolescentes: Carlos pôde experienciar sua criatividade e outras
possibilidades de ser quando se tornou o Garoto-Cão, numa clara identificação com
o animal (Encontro 2) . E, se por um lado ele pôde ser um cão, por que não o cão
poderia ser ele? Então, no Encontro 10, pode-se observar Carlos humanizando Dara
ao lhe conferir seu boné, inserindo o cachorro na vivência de dos chamados
fenômenos transicionais (Winnicott, 1975).
Nos encontros houve momentos de acolhimento, recepção do gesto do outro e um
olhar que refletisse de volta e desse sentido à vivência dos jovens. No Encontro 1,
após Ricardo conduzir o cão por onde o profissional indicou, ele passou a manifestar
seu próprio desejo: a escolha de seu caminho pelos obstáculos, e o profissional
recebeu seu gesto possibilitando ao jovem viver suas escolhas. Outro momento foi
quando o profissional percebeu o interesse e a curiosidade de Carlos em relação ao
cachorro Tobi e lhe entregou a guia do cão, de forma que o garoto entrou em
contato com o cão e passeou (Encontro 2). Os profissionais, por vezes, ouviram as
comunicações dos jovens: Rita não queria participar de atividades e um profissional
foi conversar com ela, que disse algo sobre uma experiência aparentemente
negativa com um cão e depois manifestou seu gosto por gatos (Encontro 3); e
também quando Ricardo, em duas diferentes situações, cochichou algo para um dos
profissionais (Encontro 2 e 8) e este pareceu atender ao desejo do rapaz. Rita
(Encontro 5), após ver com interesse o cachorro nadar, foi questionada se havia
gostado; ela manifestou sua aprovação e depois respondeu a outra pergunta
dizendo que não gostava de Dara porque tinha barba. Outro momento em que o
gesto e o desejo dos adolescentes foram acolhidos aconteceu quando Carlos
solicitou a participação dos profissionais na escovação dos cachorros, manifestando
sua vontade de estar junto deles e compartilhar a experiência (Encontro 6 e 9),
sendo então atendido. Em momentos distintos percebeu-se a capacidade dos
profissionais refletirem de volta a maneira de ser dos adolescentes: no Encontro 8,
quando Ricardo abraçava com intensidade e afeto a filhote Alegria, um dos
profissionais se aproximou e perguntou se ele havia gostado dela, ao que o jovem
140
respondeu com um beijo na testa da cachorra, ou seja, nessa situação havia um
outro que percebia seu interesse e comunicava-se com ele a partir disso. O
profissional refletiu de volta a maneira de ser da adolescente de forma mais clara e
evidente quando Rita removeu o balde para soltar a guia de Alegria (Encontro 11) e
ele verbalizou que ela havia ajudado a cachorra, clareando elementos psicológicos
de sua própria maneira de ser.
Pode-se notar, no decorrer dos encontros, diferentes momentos em que os
profissionais e o grupo apresentaram a qualidade de ego auxiliar, fornecendo
sustentação e apoio nas experiências dos jovens. Era freqüente os profissionais
oferecerem orientações e informações diante das dificuldades dos jovens ao
conduzir o cão pelos obstáculos. Na atividade de deitar no chão para o cachorro
pular por cima da pessoa (Encontro 2), Rita ficou relutante, talvez insegura, mas
quando um dos profissionais se dispôs a ficar com ela, a jovem participou, sugerindo
que na presença de um outro ela se sentia internamente fortalecida para realizar a
ação e viver uma experiência diferente. Em outro momento, quando os adolescentes
lançavam bolas num balde (Encontro 6), Ricardo foi até os profissionais que
formavam a torcida e cumprimentou um por um, indicando que a presença destes
lhe era significativa. Também no Encontro 6, quando o cachorro nadava, Rita olhava
interessada mas evitava contato com o animal, até que um dos profissionais a
encorajou a jogar uma bola ao cão. Ela recuou e viu como o outro jovem fez para
jogar a bola, depois desenvolveu uma possibilidade interna de se relacionar com o
animal através da bola e, sob orientação e sustentação do profissional, conseguiu
lançar a bola, parecendo satisfeita consigo mesma. Acredito que os profissionais
também exerciam a função de ego auxiliar ao oferecer a oportunidade de escolha
para os adolescentes, possibilitando uma abertura, um posicionamento e uma
apropriação da experiência. Isto se evidenciava nas frases “Você passa sozinho
agora”, “Você está no comando” e “Você escolhe onde quer passar” (Encontro 3).
Outra importante característica a considerar, e que aconteceu em diferentes
momentos nos encontros, foi a maneira dos profissionais se relacionarem com os
adolescentes com ndrome de Down. As atividades foram, na maior parte do
tempo, dirigidas, e a maneira como isso foi feito dificultava as possibilidades de
apropriação do espaço, do tempo e da ação por parte dos adolescentes. O ritmo
141
vinha imposto de fora e os gestos dos profissionais, em geral, se sobrepunham aos
gestos dos adolescentes, configurando-se em certos momentos como uma relação
invasiva (Winnicott, 1952, Amiralian, 1997b). Este tipo de relação gerava atitudes e
seus correspondentes sentimentos de esperança, submissão, reação à invasão ou
isolamento por parte dos jovens. Carlos costumava buscar alcançar seus desejos
insistindo nas ações e tentando se comunicar com os profissionais, como quando
após todas as bolas serem colocadas num balde, ele as despejou, comunicando sua
intenção de lançar as bolas como se faz num jogo de basquete (Encontro 11). João,
por sua vez, demonstrava adequação às regras, revelando tanto sua capacidade de
internalização das mesmas, como também uma certa inibição de espontaneidade
pessoal em decorrência desta mesma adaptação, sugerindo o uso de um falso self.
Ricardo parecia tentar se apropriar da experiência buscando um mundo em paralelo
às pessoas, onde os animais eram bem-vindos, mas que reagia com retraimento e
perturbação quando seu espaço era invadido pelas pessoas (Encontro 10). Rita
constantemente se isolou tanto dos profissionais quanto dos cães, ficando à parte
das atividades com grande freqüência.
Juntamente a este tipo de relação intersubjetiva estabelecida entre os profissionais e
os adolescentes, outra questão por vezes percebida foi a introjeção extrativa (Bollas,
1987, apud Amiralian, 1997b) o roubo de elementos da vida psíquica de alguém.
Quando os profissionais colocaram-se na posição de “ensinar” aqueles jovens, como
se eles nada pudessem saber por si mesmos, conduzindo ao empobrecendo da
experiência, ocorria o roubo do conteúdo mental pois pouco lhes era dada a
oportunidade para a elaboração mental e construção de seus próprios pensamentos,
conhecimentos e reflexões sobre as diversas situações ali apresentadas, dificultando
a elaboração de pensamentos. O roubo do processo afetivode ser observado em
algumas atitudes dos profissionais diante da recusa de Rita em participar das
atividades: “Depois vai vir água e a Rita não vai beber” (Encontro 4). O roubo da
estrutura mental surgiu na relação com Carlos pois os profissionais constantemente
assumiam uma postura superegóica: quando o garoto se interessou pela filmadora,
um dos profissionais apenas orientou que não mexesse, mas outro lhe disse “Se
você o fizer o que André está pedindo você não vem mais aqui” (Encontro 2), ou
quando ele explorava o ambiente, mexendo nos obstáculos e lhe disseram “Limite é
bom” (Encontro 6). Observou-se situações em que o roubo do self esteve presente
142
nas relações entre a equipe profissional e os adolescentes: quando Carlos começou
a jogar bola para Dara, experimentando, conhecendo e criando a situação, um dos
profissionais foi ‘ensinar’ como ele deveria fazer isso, empobrecendo seu mundo
interno e a percepção de si (Encontro 1); também com Ricardo isto aconteceu
(Encontro 10): ele escovava Tobi e foi convidado por um dos profissionais para
conduzir o cão; diante da recusa do rapaz o profissional se propôs a ‘ensinar’ como
escovar o cachorro sendo que Ricardo anteriormente havia escovado o cão à sua
maneira.
Também nas relações interpessoais foram percebidos momentos em que esteve
presente a sobreposição de duas ou mais áreas do brincar: o espaço potencial e os
fenômenos transicionais (Winnicott, 1975). Seja ao brincar de ser o cão, ao
compartilhar segredos, ao dançar comemorando uma competição, ao demonstrar
curiosidade na descoberta de ver um cachorro nadando, ao reunir todos do grupo ao
redor do cão para escová-lo e dali surgirem algumas conversas. Seja rindo ao ver a
filhote tentar pegar uma bola, ou jogando bola entre colegas, ou ainda
experimentando o próprio corpo em ação, correndo pelo campo com ou sem o
cachorro, vivenciando diferentes ritmos, ou alongando braços e pernas como numa
aula de ginástica, ou se preparando para correr como atleta, e também conhecendo
e explorando a situação. Seja perguntando os nomes dos cães ou olhando pela
filmadora, seja fazendo carinho nos cachorros, conduzindo-os ou apenas jogando
bolas para o alto, ou quem sabe um grupo jogando futebol, descontraído. Espaços
de descontração, alegria, espontaneidade e descoberta de si que surgem mais
facilmente quando o ambiente fornece confiança e liberdade para que cada um ali
experimente sua própria maneira de ser e a continuidade de sua existência, com o
enriquecimento do mundo interno por meio de vivências significativas.
5.3 POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO
A análise das funções dos cachorros e do manejo da situação fornecem subsídios
para a reflexão das possibilidades de intervenção com esses jovens a partir do
contato com os cachorros. Para tanto, é relevante considerar as diferentes situações
ocorridas que podem evidenciar a possibilidade de desenvolvimento de habilidades
nos adolescentes participantes.
143
Os encontros revelam a ocorrência de diversas situações que podem ser usadas
com objetivos variados:
- aprendizagem de conceitos: as atividades de condução do cachorro pelos
obstáculos abriam possibilidades de se trabalhar a aquisição de alguns conceitos
como cor, seqüência, quantidades, formas e conteúdos.
- uso de palavras: a situação de escovar o animal, formando um grupo com os
profissionais e os jovens, foi usada por um dos profissionais tanto para iniciar um
diálogo com os jovens sobre o seu cotidiano quanto para nomear as partes do corpo
do animal. Apesar de o ter havido muitas iniciativas dos profissionais no sentido
de incentivar a expressão verbal dos adolescentes, pode-se perceber a ocorrência
de situações ricas que poderiam ser utilizadas para favorecer a expressão verbal.
- motricidade: ao conduzir o cão pela guia os adolescentes tinham de ajustar a força
necessária para controlar o animal; portanto, esta atividade envolve habilidades de
coordenação motora fina, bem como de organização do próprio corpo no espaço e
de lateralidade.
- expressão emocional: como analisado anteriormente o contato com o animal
evidenciou-se como forma de comunicação do mundo interno, na maneira como
cada um se colocou na situação em diferentes momentos, encontrando formas de
expressar o verdadeiro self e vivenciar situações significativas.
A análise destas possibilidades indicam que o contato com o cachorro, dentro de
uma proposta interventiva, pode ser um ponto de partida para a aprendizagem de
conceitos, para o uso de palavras, para o desenvolvimento da motricidade e para a
expressão emocional.
As questões referentes à organização dos encontros também devem ser
consideradas. As informações pareciam transitar pouco entre os profissionais da
escola e do canil, fazendo com que alguns pouco conhecessem a respeito da
144
história prévia destes jovens e de sua relação anterior com animais. É importante
saber se interesse ou medo de cachorros por parte dos adolescentes pois esta
informação fornecerá subsídios para que o ambiente se adapte às necessidades dos
participantes. Também deve-se tomar em consideração a indicação dos jovens para
formar o grupo: enquanto Carlos e João demonstravam interesse em estar num
grupo, participando de atividades e sendo capazes de se enriquecerem por meio das
relações interpessoais, Rita manifestava freqüentemente uma oposição ao
ambiente, revelando sua maneira de ser através da recusa, porém, aos poucos, foi
encontrando meios para se inserir no grupo; entretanto, Ricardo apresentava
constantemente atitudes de reação à invasão, retraindo-se profundamente,
revelando que talvez a relação com o outro seja ameaçadora à preservação de seu
verdadeiro self. As diferentes maneiras de ser desses jovens suscitam a discussão
sobre as formas de atendimento: pareceu-me que, enquanto Carlos, João e até Rita
se beneficiaram de uma intervenção grupal, deve-se questionar se Ricardo
encontraria maiores condições de desenvolvimento numa abordagem individual.
Ainda sobre a organização da intervenção, torna-se relevante analisar a
configuração em termos de tempo e espaço: a definição de dia da semana e horário
fixos é fundamental para trazer contornos à situação, ajudando os adolescentes a se
organizarem internamente. Houve variação na duração dos encontros em virtude
dos horários do transporte da escola; em geral esta inconstância não pareceu trazer
grandes perturbações, no entanto era um elemento pouco facilitador para que os
jovens se organizassem quanto ao final dos encontros. Ao término do Encontro 9,
quando avisaram Carlos que o tempo do encontro havia acabado, ele respondeu
“acabou não”, evidenciando sua intenção de continuar ali. Sem o limite de tempo
definido torna-se mais difícil para o jovem se organizar, pois o ambiente lhe oferece
situações instáveis. Outro ponto que se mostrou importante foi a característica do
ambiente físico: espaços abertos, divididos em campos. A oferta de grandes
espaços permitiu que a movimentação dos adolescentes incluísse correr, saltar,
pular, havendo maior possibilidade de exploração do corpo em relação ao espaço,
sendo este um aspecto positivo. A amplitude dos espaços, que poderia causar
grande dispersão, era amenizada pela existência de campos divididos por cercas
que delimitavam os contornos dos espaços, facilitando a organização do grupo.
Entretanto, os campos abertos ficavam suscetíveis ao vento forte, chuvas e frio,
145
conseqüentemente os encontros ficavam condicionados às variações climáticas.
Este é um fator que torna vulnerável a organização da intervenção pois apresenta
uma situação de imprevisibilidade: os adolescentes se preparam emocionalmente
para ir aotio mas a concretização do encontro fica vinculada a situações externas
a eles. É importante considerar a necessidade de que os encontros não sejam tão
vulneráveis a condições externas, refletindo sobre a importância de se ter ou um
espaço coberto, ou um encontro alternativo com atividades que não incluam os cães
mas que reúnam os profissionais e os adolescentes.
No tocante à presença dos cachorros, deve-se analisar a maneira como foram
trazidos, apresentados e mantidos ao longo da intervenção. A equipe do canil
disponibilizava os cachorros para cada encontro: no primeiro contato os
adolescentes foram apresentados a quase todos os cães e nos encontros seguintes
mais animais foram trazidos. Conforme foi descrito na parte metodológica, alguns
animais haviam participado previamente de intervenções com crianças e
adolescentes (Tobi e Dara), outros eram filhotes e estavam em fase de treinamento
(Alegria, Hantês, Guilith e Tiff) e outro (Nêgo) nunca havia participado desse tipo de
interação. Percebe-se que Tobi e Dara tinham treinamento específico e seus
comportamentos eram adequados pois eram receptivos aos agrados dos jovens, se
deixavam conduzir, não pulavam nas pessoas e nem mordiam - os dois estiveram
presentes em quase todos os encontros. A respeito dos filhotes é possível supor
que, como estavam em fase inicial de treinamento, alguns talvez não se mostrassem
aptos para este tipo de intervenção, como pode ser observado com Hantês e Guilith
pois eram muito ativos e agitados deixando de participar da intervenção. A filhote
Alegria apresentou condições que a tornavam adequada para sua inclusão nos
encontros, estando presente em quase todos eles e, por fim, Tiff esteve no encontro
12. Nêgo, o rottweiler que foi trazido para nadar, participou apenas deste momento.
A presença de um certo número de cães constantes foi importante, facilitando a
formação de nculos e o desenvolvimento de uma relação singular entre cada
adolescente e cada animal. Pode-se perceber duas formas diferentes de iniciar o
contato com o animal: 1) os cães eram previamente selecionados pelo adestrador e
estavam no campo quando os adolescentes chegavam e; 2) os es ficavam no
campo ao lado quando os adolescentes chegavam. Na primeira situação, fica
evidente que a escolha dos animais participantes no dia era feita pela equipe
146
profissional; na segunda situação, era possível perceber o interesse dos
adolescentes por cada animal. O Encontro 2 ilustra esta escolha quando Carlos
acompanhou o profissional até o campo ao lado e manifestou interesse por Tobi. A
possibilidade dos jovens escolherem os cachorros pode ter a função de facilitar a
apropriação da experiência de forma mais verdadeira e espontânea, como foi
observado no encontro 11, quando foi oferecida aos jovens esta oportunidade: “Qual
deles você gostaria que viesse para cá?”. Esta maneira de iniciar o contato com os
animais – todos os cães selecionados para participar disponíveis no campo próximo,
e os jovens podendo fazer escolhas quanto a eles mostra-se, de meu ponto de
vista, favorecedora do desenvolvimento emocional, enriquecendo suas experiências.
Conforme a análise dos aspectos significativos dos encontros entre os adolescentes
com síndrome de Down e os cachorros, percebe-se a importância do papel
desempenhado pela equipe profissional no manejo da situação, através da
apresentação de condições favorecedoras para o desenvolvimento dos jovens.
Neste sentido, é importante considerar as relações intersubjetivas estabelecidas. As
intervenções no âmbito educacional e de reabilitação para as pessoas que
apresentam algum tipo de deficiência são relevantes uma vez que objetivam
favorecer o desenvolvimento desses indivíduos. Sabe-se que os diferentes
tratamentos oferecidos a esta população em algum momento necessitarão de
atividades dirigidas, tais como ocorre na psicopedagogia, na fisioterapia, na
fonoaudiologia e terapia ocupacional. E é justamente neste ponto que cabe fazer
algumas reflexões, tendo em vista o caráter interdisciplinar das propostas de
intervenção com uso de animais:
- A necessidade de comunicação da equipe, com o compartilhamento de saberes,
conhecimentos e vidas a fim de definir os objetivos da intervenção e propor
maneiras de alcançá-los a partir do contato entre as pessoas atendidas e os
cachorros;
- A realização de atividades dirigidas não significa a imposição do gesto dos
profissionais sobre os jovens - o que tenderia a configurar relações invasivas e de
introjeção extrativa. As intervenções podem se configurar de modo a permitir a
apropriação da experiência por parte das pessoas participantes: buscar a realização
147
de atividades que despertem o gesto espontâneo e, portanto, o verdadeiro self,
sendo o jovem aceito como ele é. O Encontro 11 evidencia forma de manejo da
situação de intervenção.
Por fim, a análise dos encontros revelou que o contato com os cães pode ser
facilitador de processos afetivos, cognitivos e motores, quando se considera o papel
da provisão fornecida pelos profissionais, pois o ser humano se constitui na
presença afetiva de uma outra pessoa que lhe seja significativa.
148
CAPÍTULO 6:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste momento do presente trabalho, gostaria de retomar os questionamentos
iniciais que desencadearam o interesse pela investigação psicanalítica da relação
entre pessoas e animais, bem como os seus possíveis desdobramentos na prática
clínica. Ao presenciar a vivência de uma garota - que naquele momento se
encontrava retraída quanto ao contato com o mundo - diante de um cão que lhe
surgiu às vistas, percebi que algo aconteceu em seu universo psíquico que a
possibilitou entrar em contato com o outro e com o mundo, num gesto espontâneo
de descoberta e encantamento, partilhado com o animal. O que aconteceu entre
essa garota e o cão que não ocorreu entre ela e as pessoas que ali estavam
presentes? Quais mecanismos psicológicos foram despertados possibilitando que a
garota saísse de seu retraimento e buscasse contato com o mundo, através do cão?
Que uso dessa relação pode o psicólogo fazer com o objetivo de promover o
desenvolvimento emocional? Muitas são as perguntas e a cada novo
questionamento, abre-se uma possibilidade de investigação.
A oportunidade de desenvolver uma pesquisa, psicanaliticamente orientada, sobre a
relação entre pessoas e animais a partir de uma proposta interventiva, possibilitou a
compreensão de importantes aspectos envolvidos nessa relação.
6.1 A RELAÇÃO ENTRE PESSOAS E ANIMAIS
A análise dos encontros entre os adolescentes com síndrome de Down e os cães
revela que cada jovem se relacionou com os animais a partir de sua própria maneira
de ser, confirmando a compreensão de Fuchs (1987) de que o significado atribuído
ao animal depende das características individuais das pessoas em interação: “O
animal vivido é diferente para cada um dos sujeitos, depende das necessidades
psicológicas de cada um” (p. 164). Pude observar que, para todos, a forma de se
relacionarem com os animais revelava o valor psicológico destes, inserindo os cães
na denominada Ordem dos Animais Psíquicos, quando se tornam animais únicos,
criações da vivência de cada um, depositários de atributos e projeções das pessoas
(Fuchs, 1987).
149
Foi percebida a existência de algumas características da espécie canina que
contribuíram para o desenvolvimento de uma relação revestida de valor psicológico
para as pessoas:
- os comportamentos dos diferentes cães eram extremamente plásticos, pois eles
iam se adaptando ao ritmo e às situações apresentadas, iniciando ações no contato
com as pessoas ou reagindo a elas. Sabe-se que esta capacidade canina presente
nos encontros é tida como facilitadora do processo de vinculação com os humanos
(Lantzman, 2004)
- a docilidade e a ausência de reações agressivas também foram observadas,
facilitando a formação de vínculos. Também a presença de comportamentos infantis
foi percebida, quando os cães se deixavam afagar ou corriam atrás das bolas. Tais
características observadas estão de acordo com as evidenciadas por Bradshaw e
Brown, 1990 (apud Lantzman, 2004, p.13) a respeito da neotonia.
- os momentos em que os cães se deixavam conduzir evidenciavam um
comportamento hierárquico, como numa matilha, em que os adolescentes estavam
na liderança. Em outros momentos, quando os animais recebiam afagos dos jovens,
sendo abraçados por estes, os animais demonstravam habilidades sociais de
manutenção de vínculo. Lantzman (2004) também evidenciou que estas habilidades
dos cães muito contribuíram para sua alta flexibilidade adaptativa com os humanos.
- a comunicação não-verbal mostrou-se como uma característica fundamental para a
compreensão das relações entre pessoas e animais. Seria plausível supor que esta
forma de comunicação está presente em toda e qualquer relação com animais.
Todavia, gostaria de destacar que as características dos cachorros permitem o
surgimento de alto grau de sofisticação nesta comunicação, pois, como bem afirmou
Abrantes (!997, p. 75, apud Lantzman, 2004) “Os es são especialistas em
comunicação não-verbal. Eles ficam atentos a cada um dos pequenos e perceptíveis
movimentos”. E esta comunicação não ocorre apenas na relação intra-específica,
eles a usam para se comunicar com os humanos, prestando atenção a nossa
linguagem não-verbal.
150
- outra importante característica percebida nos encontros é a de que, apesar dos
cachorros compreenderem a comunicação de algumas palavras (por meio de
treinamento), como por exemplo: Senta, Deita, Fica – conforme foi observado –, sua
comunicação não-verbal conduz a uma maneira de ser desta espécie que não inclui
a presença de valores e conceitos oriundos da cultura humana. Nossa espécie é
dotada de conceitos e valores que são desenvolvidos por meios da cultura e esta é
transmitida pelos costumes e pelo discurso verbal que traz consigo representações
do mundo. O cachorro não se constitui a partir destes elementos e, portanto, estes
valores e costumes não têm sentido pra eles. Portanto as relações estabelecidas
entre pessoas e animais acontecem de outra maneira: os animais agiram com as
pessoas, independentemente de serem adultos ou adolescentes, do sexo masculino
ou feminino, serem brancos ou negros, possuírem ou não a síndrome de Down.
Todas estas características dos cachorros, especialmente a comunicação não-verbal
e a capacidade de formar vínculos influenciam na criação uma relação
qualitativamente diferente das relações interpessoais ou das com objetos
inanimados. O ser humano se constitui na presença de um ambiente
suficientemente bom, que atenda às suas necessidades, através do holding,
handling e apresentação de mundo (Winnicott, 1960). Estas funções apenas podem
ser desempenhadas, como vimos anteriormente, por uma pessoa capaz de se
identificar e cuidar do bebê, geralmente a mãe (Winnicott, 1956). Sendo esta,
sustentada pela família e pela cultura. Uma vez que o desenvolvimento do indivíduo
se torna possível graças ao ambiente humano, talvez faça sentido supor que a
organização psíquica, incluindo o uso de recursos defensivos, é estruturada para
lidar com as pessoas. As relações com objetos inanimados aparece como uma
forma de relação com o mundo, porém, são experimentadas na medida em que o
individuo lhes atribua algum sentido ou função.
Tendo em vista estas considerações, arriscaria dizer que no encontro com os
animais que povoam o mundo, alguns mecanismos psíquicos talvez não tenham
sentido em nossa relação com eles. Um animal é o que é, seus comportamentos,
como pudemos observar nos cães, são diretos e desprovidos de ambivalência, sua
maneira de ser é autêntica e espontânea, estando o animal vivendo o presente. Será
151
que os mecanismos de introjeção e projeção afetam as relações com os animais
como afetam as com pessoas? E a idealização e a racionalização? A interação com
animal parece não depender das intenções e sentimentos humanos, uma vez que
ocorre por meios dos fatos, atitudes e comportamentos. Será que isto não permite
maior liberdade para o desenvolvimento de um contato livre das tensões e
complexidades humanas? A análise dos encontros evidenciou que certos aspectos
da personalidade dos adolescentes fluíam com maior facilidade na relação com o
animal, tais como o investimento amoroso e a agressividade.
As situações relatadas por Berzins (2000), Corson e Corson (1980, apud Bergler,
1988), Silveira (1981) e Minerbo (2002) contribuem para esta compreensão: os
velhos ouvidos por Berzins, apresentavam uma precária relação com as pessoas,
sendo-lhe muito difícil tanto investir afetivamente nos humanos, quanto até
pertencerem a este mundo, no entanto, para eles era possível a vida na relação
afetiva com os animais; Sonny, o rapaz que sofria de depressão e ficava a maior
parte do tempo na cama, conseguiu estabelecer vínculo com o cachorro (Corson e
Corson, 1980, apud Bergler, 1988); Carlos, paciente de Nise da Silveira, dizia ao cão
suas confidências; a maneira encontrada por Minerbo (2002) para despertar o eu-
amoroso de Thaís foi por intermédio dos cães. Levinson (1962) coloca que se sentir
aceito pelo cão pode levar a uma experiência enriquecedora e que, nas situações
em que o indivíduo experimentou falhas ambientais, a confiança poderia ser
estabelecida no contato com animais. Creio ser plausível supor que no contato com
os cachorros - quando não medo - o despertar de aspectos do self difíceis de
serem experienciados nas relações interpessoais é possível diante do
relaxamento das defesas psíquicas, tendo por conseqüência maior confiança no
ambiente no caso o cão - para a expressão de outras maneiras de ser, num gesto
espontâneo de emergência do verdadeiro self.
Além disso, percebeu-se que a maneira de ser do cachorro e sua forma de
comunicação poderia ser um facilitador na emergência de espaços potenciais, onde
a criatividade, a exploração e a descoberta de si eram experimentadas. Por vezes o
cão era incluído nos fenômenos transicionais dos jovens, já em outras ocasiões o
contato com o animal como um interesse comum tendia a facilitar uma situação
grupal onde era possível a sobreposição de diferentes áreas do brincar, como
152
aconteceu no Encontro 11. Concordo com Delarissa (2003) quando reflete acerca
desta função do cão de facilitar a criação de espaços potenciais, agindo como um
ente aliviador na pós-modernidade. Acredito ser esta uma das razões do significativo
vínculo afetivo estabelecido pelas pessoas com os cachorros, seja em situações
interventivas ou nos lares.
Penso que estas são algumas reflexões e considerações que abrem caminhos para
futuras investigações.
6.2 ENQUADRES DIFERENCIADOS NA CLÍNICA WINNICOTTIANA O ANIMAL
COMO RECURSO
Tendo em vista o desenvolvimento de uma proposta de intervenção que considere a
inserção do animal especialmente o cachorro como um recurso terapêutico,
torna-se necessário um posicionamento criterioso quanto à diferenciação entre
Terapia e Atividade Assistida por Animais (TAA e AAA, respectivamente).
Retomando as definições internacionais, em que a AAA promove oportunidades
para benefícios motivacionais, educacionais, recreacionais e/ou terapêuticos para
melhorar a qualidade de vida e a TAA é uma intervenção com objetivos definidos na
qual um animal que obedece a critério específico é parte integral do processo de
tratamento. Fica evidente a distinção entre elas, pois, enquanto uma se destina à
oferta de um ambiente recreacional (AAA), outra busca atender aos critérios
necessários ao desenvolvimento de um trabalho terapêutico (TAA). Considero que
ambas têm seu valor e seu espaço. Ao analisar as características dos encontros
entre os adolescentes e os cães, tendo em vista tais definições pode-se notar que:
- eram oferecidas oportunidades para o desenvolvimento de capacidades, tanto
motoras, quanto de aprendizado e como também emocionais;
- mesmo com o intuito de desenvolver atividades a partir de objetivos definidos,
pôde-se notar que havia uma precária organização neste sentido;
- a proposta pesquisada não tinha por base a oferta de um tratamento específico,
configurando-se como um espaço de desenvolvimento.
153
Portanto, os encontros entre os adolescentes com síndrome de Down e cães numa
situação estabelecida, configurou-se como uma Atividade Assistida por Animais
(AAA).
Conforme foi evidenciado anteriormente, estes encontros revelam um potencial
terapêutico a ser explorado como Terapia Assistida por Animais (TAA) nas áreas de
pedagogia, terapia ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia. É sobre
esta última possibilidade que me interessa investigar. Para tanto alguns conceitos
psicanalíticos serão aqui desenvolvidos a fim de fornecer subsídios teóricos.
Bleger (1988), em seu texto Psicanálise do Enquadramento Psicanalítico, parte da
concepção winnicottiana de setting para fundamentar a noção de enquadre e a
importância de sua manutenção ao longo do processo de análise. Para este autor o
termo situação psicanalítica significa a totalidade dos fenômenos envolvidos na
relação terapêutica entre analista e paciente, abarcando tanto o processo quanto o
enquadramento. O processo consiste naquilo que a psicanálise estuda, analisa e
interpreta, o enquadramento é formado pelas constantes dentro de onde o
processo se dá, o que inclui o papel do analista, o conjunto de fatores espaciais e
temporais, e parte da estratégia (o contrato analítico). E é justamente a manutenção
das constantes que compõe o enquadre que permite a formação de um processo
analítico. Portanto, o rompimento do enquadre por parte do analista abre uma fresta
por onde se introduz a realidade, podendo ser prejudicial ao processo terapêutico.
Vemos que, uma das condições para o desenvolvimento do processo analítico é o
rigor na manutenção do enquadre. A proposta clínica em psicologia tendo o cachorro
como recurso deve ser pensada tomando por base estes pressupostos, por isso a
importância em manter, dentre outras coisas: um espaço adequado e constante para
o atendimento, não susceptível às condições climáticas (que podem agir como
elementos perturbadores do enquadre); também a necessidade do tempo tanto de
início da sessão quanto de sua duração ser fixo; acrescento ainda um outro fator, o
de que os cachorros disponibilizados para participarem da terapia estejam sempre
presentes, para poder emergir elementos significativos da personalidade do paciente
diante desta constante. A questão do papel do analista será discutida mais adiante.
154
Concordo com Vaisberg (2004b) que o dispositivo padrão de análise é “apenas um
enquadre possível” (p. 8). As resistências de Freud e das instituições psicanalíticas
oficiais quanto às proposições de mudanças ‘técnicas’ teve como conseqüência, de
acordo com a autora:
A difusão de um pensamento segundo o qual deixamos de fazer psicanálise, quando
não utilizamos o dispositivo clássico, para nos tornarmos meros aplicadores do
pensamento psicanalítico. A meu ver, esta visão, muitíssimo estreita, não contribui
em nada para o desenvolvimento do conhecimento psicanalítico nem para a
extensão de seus benefícios àqueles cujo sofrimento não se traduz como
problemática neurótica passível de ser abordada individualmente (p. 8)
Partindo de uma perspectiva winnicottiana na compreensão do ser humano a autora
desenvolve o importante conceito de Enquadres Clínicos Diferenciados, como forma
de “ser um psicanalista fazendo outra coisa, mais apropriada para a situação”
(Winnicott, 1962). Ancorada na experiência de trabalho com enquadres
diferenciados, tais como as oficinas psicoterapêuticas que fazem uso de diversas
materialidades mediadoras, a autora sustenta que o enquadre pode ir além do
registro contratual para ser a criação de um mundo (p. 9), onde diferentes
materialidades (papéis, flores, dramatizações, fotos, velas, tecidos) “concorrem para
a configuração de mundos simbólicos, nos quais os indivíduos se fazem presença,
coexistem, convivem, vinculam-se...” (p.9). Criação de mundos esta onde se possa
favorecer a expressão subjetiva, tendo em vista a provisão de cuidado
psicoterapêutico:
Tanto se cria um mundo temporário no dispositivo padrão, desde uma perspectiva
teórica que intenta conjurar transferencialmente o passado emocional, como quando
se cria, por exemplo, um mundo papeleiro, tendo em vista favorecer experiências
mutativas que permitam o resgate da continuidade do ser, a partir da qual a vida
pessoal possa ser sentida como real e verdadeira e gestos transformadores e
criativos possam fluir com espontaneidade (Vaisberg, 2004b, p.10)
As contribuições desta autora abrem novas formas de compreensão para os
encontros entre os adolescentes com síndrome de Down e os cães. Havia ali a
criação de um mundo: estes jovens saíam de sua rotina escolar para irem a um sítio,
onde encontrariam cães: estes animais estavam e faziam parte do enquadre
adotado. A análise da intervenção mostrou a emergência de acontecimentos
155
significativos, em termos de afetividade, entre estes jovens e os cachorros. O mundo
criado era o de encontro entre duas espécies, a humana e a canina.
Entretanto, deve-se ter em mente que aquela não foi uma proposta
psicanaliticamente orientada e, como vimos, havia situações por vezes o
favorecedoras da expressão do verdadeiro self. O caso de Thaís, apresentado por
Marion (2002) revela a importância vital da relação terapêutica quando cachorros
são usados como recurso. A adoção bilateral ocorreu entre elas por intermédio do
animal. Mas será que a paciente teria se beneficiado apenas do contato com o cão?
A própria psicanalista reponde a esta pergunta quando afirma “O cão, apesar de ser
o melhor amigo do homem, nada pode dizer sobre a personalidade de sua dona...”
(p.235). Encontro em Vaisberg (2004a) ressonância para responder a este tipo de
questão, ao refletir sobre o uso de materialidades mediadoras, diz “Evidentemente,
não consideramos, ingenuamente, que a mera presença de materialidades capazes
de afetar sensorialmente garanta, por si mesma, nem a sustentação da continuidade
do ser, que se dá em ambiente inter-humano, nem o gesto espontâneo” (p.20).
A riqueza do potencial expressivo e experiencial da relação entre pessoas e animais
torna-se mais significativa, numa proposta analítica, quando entendida como
manifestação do mundo interno do paciente para o terapeuta. Neste sentido o Jogo
do Rabisco, tão fertilmente explorado por Winnicott, evidencia a importância da
experiência ocorrida ser entendida como comunicação:
O jogo dos rabiscos é simplesmente um meio de se conseguir entrar em contato com
a criança. O que acontece no jogo e em toda a entrevista depende da utilização feita
da experiência da criança, incluindo o material que se apresenta. Para se utilizar a
experiência mútua, deve-se ter em conta a teoria do desenvolvimento emocional da
criança e o relacionamento desta com fatores ambientais (1984, p.11).
Nesta passagem o autor anuncia a importância do papel do analista como alguém
capaz de entrar em contato e receber a comunicação do paciente, estando
firmemente ancorado em termos teóricos. O uso de enquadres diferenciados exige
como condição básica o rigor na postura psicanalítica (Vaisberg, 2004a, 2004b;
Minerbo, 2002).
156
Penso, ainda, que a inclusão do cachorro como recurso terapêutico na psicoterapia
não exclui a presença de outras formas de manifestação da subjetividade, como as
que ocorrem por meio de materiais gráficos e brinquedos.
Outra questão a ser pensada é a especificidade de inserir um animal no enquadre.
Diferentemente das materialidades mediadoras (papéis, flores, velas), o animal
precisa ter suas necessidades básicas atendidas (alimentação, acomodação e
outros). Na situação aqui estudada os animais pertenciam e eram cuidados pela
equipe do canil. Há casos que os animais são dos terapeutas envolvidos. Considero
que a realização das terapias e atividades assistidas por animais é necessariamente
interdisciplinar pois, além da função da equipe terapêutica ou do terapeuta que
trabalha individualmente em consultório o veterinário e o adestrador são
fundamentais: o primeiro pelos cuidados com a saúde do animal, realizando as
vacinações devidas, os exames de rotina e os complementares para controle de
zoonoses; o segundo por seu papel na seleção e no treinamento do cachorro. O
adestrador, sendo um profissional com conhecimentos sobre o comportamento
canino, desempenha, a meu ver, tanto esta função de preparar o animal para
participar de intervenções, quanto de fornecer orientação para a equipe técnica a
respeito dos animais. De qualquer maneira, acredito ser necessário que o terapeuta,
além de sua formação técnica, esteja familiarizado com a espécie animal
participante e detenha conhecimentos básicos sobre seu comportamento e suas
necessidades.
Gostaria de enfatizar que as considerações desenvolvidas neste estudo são, ainda,
considerações iniciais se pensarmos nas diversas possibilidades de investigação e
desdobramentos nos estudos das relações entre pessoas e animais tanto em
situações não interventivas, quanto em propostas de atendimento em fisioterapia,
terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicopedagogia e, especialmente, em propostas
clínicas winnicottianas com enquadres diferenciados.
Por fim, a partir da análise e das reflexões tecidas nesta pesquisa, acredito termos
encontrado subsídios necessários para sustentar uma proposta de intervenção
psicanaliticamente orientada com o uso de enquadre diferenciado que inclui o
cachorro como recurso.
157
158
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Imago, 1984.
________________ Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990.
163
8. ANEXOS
164
ANEXO A – TERMO DE CONSENTIMENTO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA
TERMO DE CONSENTIMENTO PÓS-INFORMAÇÃO
Obrigatório para pesquisa científica com seres humanos
Resolução Nº 01 de 13.06.1988 - CNS - Conselho Nacional de Saúde
I - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO PARTICIPANTE DA PESQUISA OU RESPONSAVEL LEGAL
1. NOME DO PARTICIPANTE DA PESQUISA:
DOCUMENTO DE IDENTIDADE Nº: ÓRGÃO EXPEDIDOR:
SEXO: M F DATA NASCIMENTO:
ENDEREÇO: APTO
BAIRRO: …………………………………………… CIDADE:
CEP: TELEFONE: DDD -
2. RESPONSÁVEL LEGAL
NATUREZA (grau de parentesco, tutor, curador etc.)
DOCUMENTO DE IDENTIDADE Nº: ÓRGÃO EXPEDIDOR
SEXO: M F DATA NASCIMENTO:
ENDEREÇO: API'O
BAIRRO: …………………………………….. CIDADE
CEP: …………………………………….. TELEFONE:
II - DADOS SOBRE A PESQUISA CIENTIFICA
1. TITULO DO PROTOCOLO DE PESQUISA: O uso de cães como mediadores no atendimento a crianças
portadoras de síndrome de Down: um estudo exploratório
a) COORDENADORA do projeto: Dra. Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
CARGO/FUNÇÃO: Professora Doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia
da USP
INSCRIÇÃO NO CONSELHO REGIONAL: CRP: 06/4667
b) PESQUISADORA: Sabine Althausen
CARGO/FUNÇÃO: aluna graduação em psicologia e de Iniciação Científica do Departamento de Psicologia
Clínica
UNIDADE DA UNIVERSIDADE: Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da USP
c) AVALIAÇÃO DO RISCO DA PESQUISA:
X SEM RISCO RISCO MINIMO
(probabilidade de que o indivíduo sofra algum dano como conseqüência imediata ou tardia do estudo)
RISCO MÉDIO ALTO RISCO
165
2. DURAÇÃO DA PESQUISA: DOIS ANOS (com início previsto para março de 2002).
III - EXPLICAÇÕES DO PESQUISADOR AO PARTICIPANTE DA PESQUISA OU A SEU
REPRESENTANTE LEGAL
1. Justificativa e os objetivos da pesquisa
A interação com animais tem se mostrado como um forte componente na terapia com pessoas portadoras de
deficiência. O objetivo da presente pesquisa é identificar os meios pelos quais esta interação ocorre.
2. Procedimentos que serão utilizados e propósitos, incluindo a identificação dos procedimentos que são
experimentais
Os participantes serão convidados a participar da pesquisa quando forem atendidos com a interação com o
animal
O procedimento consiste em filmagens da interação durante as sessões.
3. Desconfortos e riscos esperados
Não há desconforto, nem risco, uma vez que os procedimentos consistem em filmagem e observação, as
quais serão aceitas pelos participantes e eles deverão passar por um período de adaptação ao equipamento e
ao pesquisador presente.
4. Benefícios que podem ser obtidos
Poderão ser beneficiados tanto os profissionais quanto os participantes da pesquisa uma vez que o uso e a
comprovação dos efeitos desta terapia poderão ser aprimorados.
5. Esclarecimento: Ao participante está assegurado o direito de receber informações sobre qualquer pergunta
ou esclarecimento, procurar esclarecer sobre qualquer dúvida acerca dos procedimentos, riscos, benefícios e
outros assuntos relacionados com a pesquisa
6. Esclarecimento: O participante tem a liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar
de participar no estudo, SEM que isto traga prejuízo a continuação do seu cuidado e tratamento .
7. Sigilo profissional: Compromisso sobre a segurança de que não se identificará o individuo e que se manterá
o caráter confidencial das informações relacionadas com a sua privacidade
8. Informação: Compromisso de proporcionar informação atualizada obtida durante o estudo
Observações complementares:
____________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________
166
IV - TERMO DE CONSENTIMENTO PÓS-ESCLARECIDO
Declaro que, após ter sido convenientemente esclarecido pelo pesquisador, conforme registro dos itens I a III,
consinto em participar, na qualidade de participante da pesquisa, do Projeto de Pesquisa coordenado pela Prof.ª
Dra. Leila S. P. Cury Tardivo, professora doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de
Psicologia da USP, referido no inciso II deste documento.
São Paulo, ….. de março de 2002.
_______________________________________________
Assinatura do participante ou responsável legal:
________________________________________________
Assinatura do pesquisador que obteve o consentimento
(carimbo ou nome legível)
Obs.: Este termo deverá ser elaborado em duas vias, ficando uma via em poder do participante da pesquisa ou
seu representante legal e outra deverá ser anexada ao prontuário do participante da pesquisa.
167
ANEXO B – DECLARAÇÕES IAHAIO
IAHAIO
Geneva Declaration
Preamble
Recent research is demonstrating the various benefits of companion animals to people's well-
being, personal growth, and quality of life.
In order to enable their presence and ensure the harmonious companionship of animals in our
lives, owners, and governments both have duties and responsibilities.
IAHAIO members have adopted five fundamental resolutions at their General Assembly, held
in Geneva on 5 September 1995. IAHAIO urges all international bodies concerned and all
national governments to consider and activate the following resolutions.
Resolutions
1. To acknowledge the universal non-discriminatory right to pet ownership in all places
and reasonable circumstances, if the pet if properly cared for and does not contravene
the rights of non-pet owners.
2. To take appropriate steps to ensure that the human environment is planned and
designed to take the special needs and characteristics of pets and their owners into
account.
3. To encourage the regulated presence of companion animals in schools and school
curricula, and to work to convince teachers and educators of the benefits of this
presence through appropriate training programmes.
4. To ensure regulated companion animals access into hospitals, retirement and nursing
homes, and other centres for the care of people of all ages who are in need of such
contact.
5. To officially recognize as valid therapeutic interventions those animals that are
specifically trained to help people overcome the limitations of disabilities; to foster the
development of programs to produce such animals; and to ensure that education about
the range of capabilities of these animals is included in the basic training of the health
and social service professions.
168
IAHAIO
Prague Declaration
Preamble
There is much research now available to prove that companion animals can add to the Quality
of Life of the humans to whom they may provide practical assistance or therapy.
IAHAIO members believe that those who train animals and deliver the service to others must
ensure the Quality of Life of the animals involved. Programmes offering animal-assisted
activities or animal-assisted therapy for the benefit of others should be governed by basic
standards, regularly monitored, and be staffed by appropriately trained personnel.
IAHAIO members have therefore adopted four fundamental guidelines at their General
Assembly held in Prague in September, 1998. IAHAIO urges all persons and organizations
involved in animal-assisted activities and/or animal-assisted therapy, and all bodies governing
the presence of such programmes in their facilities to consider and abide by the following
points.
Guidelines
1. Only domestic animals which have been trained using techniques of positive
reinforcement, and which have been, and will continue to be, properly housed and
cared for, are involved.
2. Safeguards are in place to prevent adverse effects on the animals involved.
3. The involvement of assistance and/or therapy animals is potentially beneficial in each
case.
4. Basic standards are in place to ensure safety, risk management, physical and emotional
security, health, basic trust and freedom of choice, personal space, appropriate
allocation of programme resources, appropriate workload clearly defined roles,
confidentiality, communication systems and training provision for all persons
involved.
Organizations adhereing to the above four guidelines will be invited to join IAHAIO as
Affiliate Members.
169
IAHAIO
Rio Declaration
The IAHAIO Rio Declaration on Pets in Schools
Given the strong evidence that has accumulated in recent years demonstrating the value, to
children and juveniles. of social relationships with companion animals it is important that
children be taught proper and safe behaviour towards those animals and the correct care,
handling and treatment of the various companion animal species.
Realising that companion animals in school curricula encourage the moral, spiritual and
personal development of each child, bring social benefits to the school community and
enhance opportunities for learning in many different areas of the school curriculum, IAHAIO
members have adopted fundamental guidelines on pets in schools at their General Assembly,
held in Rio de Janeiro in September 2001.
IAHAIO urges all school authorities and teachers, as well as all persons and organizations
involved in pet programmes for schools, to consider and abide by the following guidelines:
1. Programmes about companion animals should, at some point, allow personal contact
with such animals in the classroom setting. Depending on school regulations and
facilities, these animals will :
a) be kept, under suitable conditions, on the premises, or
b) be brought to school by the teacher, or
c) come to visit, in the context of a visiting programme, together with their owners,
or
d) accompany, as a service dog, a child with special needs.
2. Any programme involving personal contact between children and companion animals
must ensure:
a) that the animals involved are
safe (specially selected and/or trained),
healthy (as attested by a veterinarian),
prepared for the school environment (e.g. socialized to children, adjusted to
travel in the case of visiting animals),
properly housed (either in the classroom or while at home), and
always under supervision of a knowledgeable adult (either the teacher or the
owner);
b) that safety, health and feelings of each child in the class are respected.
3. Prior to the acquisition of classroom animals or visitation of the class by programme
personnel with companion animals that meet the above criteria, both school authorities
and parents must be informed and convinced of the value of such encounters.
170
4. Precise learning objectives must be defined and should include:
a) enhancement of knowledge and learning motivation in various areas of the school
curriculum
b) encouragement of respect and of a sense of responsibility for other life forms
c) consideration of each child's expressive potential and involvement.
5. The safety and well-being of the animals involved must be guaranteed at all times.
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