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O estado místico é geralmente definido na tradição filosófica ocidental como uma
experiência de superação dos limites da consciência individual capaz de proporcionar a
união do ser com uma instância transcendente, totalizante e inefável. Para Plotino, essa
instância identifica-se com o Uno; para Santo Agostinho, com o Deus cristão; para
Schopenhauer, com o Nada. Na história da literatura moderna, o problema do
misticismo tem um importante capítulo na passagem do século XVIII para o XIX, com
“a sede de infinito, o afã de integridade e de totalidade, que alentou a disposição
religiosa dos [poetas] românticos
1
”. Mais tarde, a busca incansável dos simbolistas
franceses, especialmente de um Mallarmé, pelo Absoluto
2
, pela transcendência da
história, pela abolição do acaso, aparece, talvez, como o melhor exemplo da influência
da filosofia mística sobre a poesia moderna. Em alguns desses poetas, a superação do
particular abre espaço para o que Hugo Friedrich
3
chamou de “idealidade vazia”,
conceito que identifica o mundo das essências ao Nada. Se em Baudelaire e Rimbaud, a
experiência de transcendência vazia apresenta-se ainda com a função purificadora de
libertar o homem da realidade opressiva, é em Mallarmé que ela assume de vez caráter
ontológico. Mediante o total afastamento do particular, aniquilando pouco a pouco a
dimensão referencial da linguagem, o projeto literário do autor de Un coup de dés
perseguiu insistentemente a realização poética de uma experiência semelhante em
diversos aspectos àquela que se conhece como mística
4
.
O fracasso de Mallarmé, após a experiência radical de seu último poema, Un coup de
dés jamais n’abolira Le hasard, coincide com os limites do Simbolismo. Até encontrar
1
NUNES, A visão romântica, p.65.
2
Grafada com inicial maiúscula, essa palavra deve ser entendida, ao longo desta dissertação, à luz das
concepções românticas de Homem e de Mundo, que exercem influência direta sobre a poesia moderna,
especialmente sobre o Decadentismo e o Simbolismo franceses. O termo refere-se, para nós, à ânsia
romântica pela unidade e pela totalidade. Mais propriamente, refere-se ao seu ponto final, que pressupõe
sempre o problema da superação do abismo sujeito-objeto, bem aos moldes da experiência mística. No
contexto do pensamento romântico, a noção de Absoluto apareceu sob o influxo, principalmente, das
filosofias de Fichte e Schelling, ora apontando para a preeminência do Eu (sujeito) ora para a da Natureza
(objeto). Mas, a despeito de suas variantes filosóficas, a noção está sempre ligada à superação idealista da
dualidade, à instância da unidade transcendente e primordial do universo. Como fundamento dessa
questão, é central para o ideário do Romantismo, tão afeito à tradição cristã, a “imagem de uma plenitude
originária perdida”. (Cf. NUNES, A visão romântica e BORNHEIM, A filosofia do Romantismo.)
Evidentemente, para os poetas simbolistas, principalmente para Mallarmé, a questão do Absoluto assume
forma diferente da que assumiu para os românticos; passa a ser um problema de linguagem e acaba por
assumir uma feição esvaziada, niilista.
3
Cf. FRIEDRICH, A estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX.
4
Para FRIEDRICH, a experiência poética de Mallarmé associa-se a “uma mística do Nada”. Cf. Op. Cit,
p.118.