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RENATA DA ROCHA
O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E AS PESQUISAS CIENTÍFICAS EM
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS HUMANAS
MESTRADO EM DIREITO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2007
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RENATA DA ROCHA
O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E AS PESQUISAS CIENTÍFICAS EM
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS HUMANAS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito (Filosofia do
Direito), sob a orientação da Professora
Doutora Maria Garcia.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2007
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Banca Examinadora
______________________________________
______________________________________
______________________________________
AGRADECIMENTOS
A Deus.
Ao meu pai, Narciso João da Rocha, in memorian, com saudades.
À minha mãe, Benedita Ângela Rocha, pelo exemplo de coragem, de
determinação, de honestidade, de responsabilid ad e e de generosidade, com todo
respeito e amor que houver nesta vida.
À CAPES e à PUC, pela concessão de bolsas de estudos, sem as quais a
concretização deste trabalho e a realização deste sonho estariam comprometidas.
Ao Professor Gabriel Cha lita, por me fazer descobrir, dentro da ciência do
Direito, um outro mundo, o mundo da Filosofia. E por me e nsina r que não
tarefa mais nobre que a de educar.
Por fim, meu agradecimento especial à Professora Maria Garcia, pelo
tratamento carinhoso, pela confiança depositada , pelo in centivo, pelo apoio, pela
dedicação e pelo compartilhar.
RESUMO
Nos últimos anos, no â mb ito da biomedicina, a grande promessa que vem
sendo rea liza da pelos cientistas à sociedade, no que co n ce r ne à saúde humana,
refere-se à pesquisa científica em células-tronco embrionárias. Os pesquisadores
supõem que o potencial terapêutico dessas células poderá ser usado na cura de
diversas enfermidades.
A par dessa expectativa, o problema fundamental que essa atividade
suscita e que conduz a dilemas jurídicos e é ticos gira em torno da aceitabilidade
do uso de e mbr iõe s humanos como fonte de células-tronco. Isso porque essa
utilização implica, a o momento, na destruição do embrião e na
instrumentalização do ser humano.
A proposta do presente trabalho é refletir acerca dessa realidade
conflitante e ambiv alente e recordar que a vida humana é um bem absoluto,
pressuposto e requisito dos demais direitos, que possui um valor supremo, que é
intangível, irrevogável, imprescritível, irrenunciável e inviolável e que qualquer
prática científica que se pretenda legítim a de ve , no respeito ao direito
fundamental à vida e na dignidade que lhe é inerente, buscar sustentação e
fundamento.
ABSTRACT
In the latest years, within the scope of biomedicine, scientific research
on embryonic steam cell has been the g re at promise made by scientists to society
as far as hu man health is co nc e rn ed . Resear ch er s suppose the therapeutic
potential of cell trunk can be possibly used to heal a myriad of diseases.
Aware of this expectation, the acceptability of using human embryo as a
source of steam cell is the main issue b rought b y this ac tivity. Such research also
leads to lega l and eth ics dilem ma s due to its implication in the destruction of the
embr yo and in the view of human being as an a ppa r atu s.
The proposal of the present paper is to reflect upon this ambivalent
realit y and to reafirm human life as a n absolute blessing and further rights as no
more than implications of this supreme value. Thus human life is seen as
intangible, not to be renounced, revoked, prescribed or violated. Therefore a ny
legitimate sc ientific action should be based on the respect to the fundamental
right to life and to its inherent dignity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
I. DA VIDA COMO PREFIXO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA 12
1.1 Da natureza humana 16
1.2 Vida, ciência e tecnologia 28
1.3 O DNA: a vida reduzida a um código 31
1.4 A vida como produto: a questão das patentes 36
1.4.1 Patente de organismos vivos 40
1.4.2 Patente e gene humano 43
II. DAS PESQUISAS CIENTÍFICAS EM CÉLULAS-TRON CO
EMBRIONÁRIAS HUMANAS 49
2.1 Das pesquisas em células-tronco 51
2.2 Das células-tronco embrionárias 56
2.3 Da reprodução humana assistida: a técnica da fertilização in vitro: a
questão dos embriões excedentes 61
2.4 Da manipulação das células-tronco embrionárias e das técnicas
relacionadas: a engenharia genética 67
2.4.1 Do diagnóstico genético pré-implantatório 68
2.4.2 Da terapia gênica 71
2.4.3 Da clonagem reprodutiva e terapêutica 76
2.4.4 Outras técnicas de manipulação genética 84
III. ESTATUTO JURÍDICO DO EMBRIÃO HUMANO 89
3.1 O direito e o início da vida humana 94
3.2 Teorias acerca do início vital do ser hu ma no 96
3.2.1 Teoria concepcionista 97
3.2.2 Teorias genético-desenvolvimentistas 103
3.2.3 Teoria da pessoa humana em potencial 116
3.3 Da equiparação do embrião humano ao nascituro 117
3.4 Do embrião humano como valor pré-normativo 121
IV. DO DIREITO À VIDA 130
4.1 Direitos humanos e direitos fundamentais: evolução histórica 131
4.2 A vida como direito 142
4.3 O direito à vida na legislação supranacional: do Código
de Nuremberg à Declaração de Viena 144
4.4 Da exigibilidade das declarações 158
V. O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA COMO LIMITE À PESQUISA
CIENTÍFICA EM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS HUMANAS 164
5.1 O Biodireito: guardião da vida 165
5.2 O direito à vida no Direito brasileiro 168
5.3 A Constituição Federal de 1988 e o Biodireito: arts. e 225 170
5.4 A Lei 11.105 de 24 de março de 2005 175
5.5 O direito fundamental à vida e os limites à pesquisa científica em células-
tronco embrionárias humanas: a dignidade da pessoa humana e a ética da
responsabilidade 184
CONCLUSÕES 199
BIBILOGRAFIA 206
ANEXO 224
9
INTRODUÇÃO
A pesquisa científica em lulas-tronco embrionárias humana s vem
despontando, no limiar de ste novo século, como a grande pro messa da
biomedicina. Nesse c ontexto, os cientistas supõem que as técnicas que a ela se
relacionam, fertilização in vitro, por exemplo, bem como os procedimentos q ue
dela decorre m, terapia gênica, diagnose genética, clona gem, entre outros, em
conjunto, serão capazes de revolucionar a medicina convencional e de mudar a
face da saúde humana.
A despeito dessa auspiciosa expectativa, cumpre-nos considerar que, se
por um lado essas técnicas representam a esper an ça d e cur a de inúmeras
enfermidades, entre el a s as doenças neuro degenerativas como Mal de Parkins on
e Alzheimer, por outro lado, os r isc os que o procedimento acarreta, tanto no que
diz respeito à vida humana individualmente tutela da , quanto no que concerne ao
ser humano enquanto esp éc ie a ser preservada, n ão consu b stanciam meras
expectativas, ao contrá r io, são reais e verificáveis, dentre os q ua is destacamos a
destruição d a vida, a instrumentalização do ente humano, a alter aç ã o do
patrimônio genético, entr e outras co nseqüências que se revelam jurídica e
eticamente questionáveis e que serão, no d ec or re r do presente estudo,
pormenorizadamente analisadas.
Diante dessa realida de antagônica, ambígua, contraditória, o Direito,
enquanto ciência que se destina a reger as relações dos seres humanos em
convivência, é chamado a baliza r os aspectos divergentes dessa atividade, de
modo a compatibilizar vida e ciência, isto é, de maneira a garantir que o
10
conhecimento científico possa avançar, sem que esse avanço represente ameaça
ao homem.
Nesse sentido, o pr e sente estudo, com base no Biodireito, ramo específ ic o
do Direito que tem por fim a tutela da vida em sua plenitude, do homem em sua
integralidade física, p síquic a e moral, compromete-se a demonstrar que os
mesmos valores inerentes ao ser humano, que lhe asseguram o respeito a direitos
essenciais como o direito à vida, à dignidade, à igualdade, à libe r dad e, à
segurança, entre outros, deve m, igualmente, ser atribuídos ao embrião, uma vez
que o homem, da concepção à morte, é sempre um continuum do mesmo ser.
Para tanto, propomo-nos a apontar os limites a serem observados no que se refere
à pesquisa científica em células-tronco embrionárias humanas.
Assim, no pr imeiro capítulo destacamos que a b usc a pelo conhecimen to,
tendência natural do s er humano que acompanha o homem desde o início de sua
existência, conduziu-o do mito à ciência e que, de posse desse conhecimento, a
vida, que antes era concebida pelo homem como graça divina, passa a ser
considerada um fenômeno mecânico, equiparando-se o organismo humano a uma
máquina, que pode ser desmontado e remontado com vistas a bem atender os
interesses da sociedade. Assim, assinalamos que, de acordo com o enf oqu e
adotado, a vida às vezes resta reduzida a um código - e nfoque químico - ou tra s
tantas a um amontoado de células - enfoque biológico -.
Segue-se a esse capítulo uma análise mais aprofundada do q ue de fato
vêm a ser as células-tronco embrionár ia s. Desse modo, discorre-se acerca da
progressão das pesquisas em células-tronco, da origem dessas células, de sua
capacidade d e especialização, das técnicas e dos procedimentos a elas atrelado s ,
da expectativa de terapias que o uso das referidas células suscitam, dos riscos que
trazem aos seres humanos e dos dilemas jurídicos e éticos que motivam.
11
O terceiro capítulo ocupa-se, em apertada síntese, em destacar a forte
presença do setor privado no âmbito da pesquisa c ie ntífica em lulas-tronco
embrionárias, demonstra nd o a sobreposiç ã o dos interesses econômicos frente aos
interesses terapêuticos, a ameaça eugênica que decorre dessa atividade e, por fim,
ocupa-se das teorias que são formuladas no sentido de determinar o início da vida
humana e da necessidade de se conferir a o embrião humano va lor pré-normativo.
Em seguida, o q u arto capítulo propõe uma reflexão acerca da
ambivalência do poder científico, capaz de c ria r, transformar e exterminar não
o homem, mas também a humanidade, confronta ndo a esse poder o valor
absoluto da vida humana, demonstrando sua afirmação como direito humano
fundamental ao longo da História, reservando-se destaqu e à análise de
documentos internacionais que se relacionam com o tema em questão.
No quinto capítulo, encerramos o presente estudo sublinhando que a
Constituição Federal de 1988 prevê a proteç ão do dir e ito à vida não com
relação às presentes gerações, como também com relação às futuras, que essa
tutela compreende não a vida orgânica, considerada como princípio vital,
como natureza animada, como antítese da morte, em grego, zoé, mas, sobretudo,
que nossa Carta Constituc iona l guarda, sob sua égide, a vida enquanto proc es so
vital a evoluir no tempo, em gre go , biós. Destacamos que a tarefa de zelar por
essa existência e por essa subsistência, de apontar os limites, as divisas, as
fronteiras a serem observadas na prática da pesquisa científica em lulas-tronco
embrionárias e de, afinal, compatibi liza r os valores essenciais assegurados a cada
ser humano e a necessidade humana legítima de buscar novos conhecimentos é,
indubitavelmente, a missão à qual se destina o Bio dire ito.
12
Sou homem: nada do que é humano me é
estranho. (Terêncio)
1. DA VIDA COMO PREFIXO
DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Um dos fatores mais significativos na organização política, econômica e
social de uma sociedade é a sua cosmovisão, isto é, su a visão de mundo. Ne sse
sentido, da Antigüidade aos dias atuais, grand e foi a mudança que se operou no
olhar do homem em relação a si e ao universo que o cerca.
Um dos marcos inaugurais a deflagrar essa mudança foi a formulação da
teoria heliocêntrica dos planetas realizad a por Nicolau Copérnico no séc. XV. A
partir desse feito, as respostas aos questionamentos humanos mais íntimos e
legítimos não foram mais encontradas nos mitos, na religião, nem tampouco na
filosof ia , foram, pois, oferecidas pela ciência.
O conhecimento científ ico revela-se, assim, a partir da Modernidade, um
traço característi c o do comportamento humano. Essa característica consiste,
efetivamente, no estabelecimento d a razão instru mental, isto é, na hegemonia do
pensamento racional como forma de conhecimento e domín io do “em redor”
1
, na
1
“Saliento, em primeiro lugar, que isso que se chama razão, e que se expande hodiernamente como uma
atividade dotad a de uma auto-suficiência de fato extraordinária, na verdade, teve suas origens em u m
plano que tende a ser encoberto, por exemplo, pe lo rigorismo do pensa mento lógico, e a mesmo, pela
interminável expan são da tecnologia e do consumo. Nos i nício s, no entanto, a razão apresentava uma
índole essencialmente instrumental, totalmente voltada para os afazeres pr áticos, a mão e o pensamento
não se distinguiam, e, entrosados, perseguiam objetivos comuns. A razão servia, assim, para o homem
13
idéia de desenvolvimento e progresso tecnológico com o meio eficaz, capaz de
responder aos anseios do homem moderno, de solu cio na r os conflitos, os
dilemas, as intempéries, enfim, as vicissitudes que aflige m a soc ie da de
contemporânea.
2
Não obstante, apesar do êxito alcançado pelo homem em seu propósito de
determinar a tecnicização de seu meio e a artificialização da vida em todos o s
níveis existentes, a saber, animal, vegetal e mineral, cumpre destacar,
entrementes, a indagação realizada por Gilberto Dupas
3
:
“... somos, por conta deste tipo de desenvolvimento, mais sensa tos
e mais felizes? Ou podemos a tribuir parte de nossa infelicidade
precisamente à maneira como utilizamos os conheci ment o s que
possuímos? Nada impede que reconheçamos e desejemos maior
prover-se, defender-se e, em última instância, pa ra inventar sua própria criatividade”. BORNHEIM, Gerd.
Sobre o estatuto da razão. In: NOVAES, Adauto. (O rg.) A crise da razão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 97.
2
“Partimos de um diagnóstico que já se tornou comum, mas que está excelentemente formulado por Lima
Vaz: ‘as perplexidades de uma civiliz ação que fez da razão seu emblema maio r e caminhou ousadamente
sob o signo desse emble ma têm sua expressão mais aguda e mais dramática no desconcerto e na suspeita
que invadem o universo dos valores e dos fins e que se exprimem de forma radical pelo niilismo ético’. A
complexidade e a perplexidad e parecem ter se tornado constitutivos do ethos do nosso tempo. [...] A
ciência, como mostrou Heidegger, inclui a técnica como conseqüência direta e imanente do seu
desenvolvimento. A razão moderna, por articular desde o seu surgimento o conhecimento e o poder,
possui na aplicação técnica da ciência a última instância de sua própria definição. A inseparabilidade
entre o saber e o domínio da natureza impede que se faça qualquer separação autêntica entre ciência e
técnica. É essa continuidade que oculta o verdadeiro significado da práxis. [...] ‘Prescindindo de todo
nosso mundo, primeiramente apre ensível e que nos é familiar, a ciência se converte em num
conhecimento de co ntextos d omináveis através da investigaç ão isolada. A pa rtir daí, sua relação com a
aplicação de ve ser entend ida como situada em sua própria essência moderna’ (Gadamer, 1983, p. 42) [...]
As soluções são buscadas através de uma razão cujo progresso é visto como meio de superação de todas
as carências [...] ‘Tudo se passa como se nós, em nosso sistema econômico-social, co nseguíssemos uma
racionalização de to das as relações vitais - que seguem uma coação objetiva imanente e responsável pelo
fato de sempre continuarmos inventando e aumentando cada vez mais nossa atividade técnica, sem que
possamos saber como podemos sair desse círculo diabólico’ (Gad amer, 1 983, p. 52) [...] Temos a opção
de recolher na tradição a possibilidade de ‘reencontrar a trilha platônico ar isto télica’ (Vaz, 1995, p. 78)
para tentar restabelecer na nossa atualidade uma relação positiva entre ética e cultura. Po demos também, a
partir de uma temporalização do presente, exercer esse modo de conhecimento sui generis que Foucault
indica como crítica ontológica da atualidade, par a fazer dos limites histór icos de nossa situação c ultural
novas possibilid ades de re inventar a liberd ade. Ambas as direções dependem de u m movimento racional
de rearticulação da experimentação histórica, que proporcione condições favoráveis para a reagregação do
ethos. SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e razão In: NOVAES, Adauto (Org.). Op. cit., p. 352, 362 e
364.
3
DUPAS, Gilberto. O mito do progresso ou progresso como ideologia. São Paulo: Unesp, 2006, p.12-14.
14
progresso e, ao mesmo tempo, constatemos que obtê-lo não
melhora ne c e ssar iamente a qualidade de vida para a maioria das
pessoas. As sociedades são mais felizes que dez anos porque
temos telefone celular ou internet e, agora, tela de plasma? Ainda
que reste a delicada tarefa de conceituar felicidade, certamente o
senso comum diz que não, embora seja inegável que certos
confortos a umentaram. Como seres humanos, éramos os mesmos
sem esses aparatos, quando ninguém ainda os tinha. Fissão ou fusão
atômica e inte r ferência genética são bons exemplos típicos da ‘faca
de dois gumes’; e, muitas vezes, o gume dos riscos parece mais
cortante qu e o ou tro. Montaigne já nutria os mesmos sentimentos
sobre a pólvora, e estava coberto de razão”.
De modo similar Hilton Japiassu
4
assevera:
“O homem ocidental, a partir da revolução científica moderna do
século XVII, sempre f ez a pe lo aos princípios da ciência e da
racionalidade considerados como o único modo equilibrado de
tratar dos problemas humanos. Mas trata-se de um ape lo que
freqüentemente tende a afirmar esses princípios de modo bastante
rígido, apodítico e quase dogmático. Parece bastante equivocada a
convicção segundo a qual tudo pode ser compreendido e resolvido
graças à combinação de uma visão científica e de uma abordagem
tecnológica, como se a tecnociência pude sse constituir uma
panacéia para todos os males.”
4
JAPIASSU, Hilton. Ciência e Destino Humano. Rio de Janeiro: Imago, 2005, p. 95.
15
Para que se apreenda a real dimensão dessa tendência
5
humana e natural
de conhecer, de se apropriar
6
do mundo à sua volta, para que se compreenda a
adoção dessa nov a postura, dessa inusi tada consciência que permitiu à
humanidade, a partir do século XVII, tornar-se dona e senhora da phisis, dessa
disposição qu e possibilitou ao homem, a contar da se gunda metade do século
XIX, produzir a vida humana in vitro, decifrar o código genético, desenvolver
técnicas de recombinação genética, reproduzir artificialmente seres vivos
idênticos e diferenciar as células humanas em nível embrionário
7
. Entre outros
procedimentos, que se considerar não o ser humano em si, mas, sobretudo,
sua natureza.
5
Essa tendência irresistível do ser h umano de ampliar seus horizontes através do conhecimento j á havia
sido observada po r Aristóteles para quem: “T odos os seres humanos desejam o conhec imento. Isso é
indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos, pois independe ntemente do uso destes, nós o s
estimamos por si mesmos, e mais do que todos os outros, o sentido da visão. Não somente objetivando a
ação, mas mesmo quando não se visa nenhuma ação, preferimos a visão no geral a todos os demais
sentidos, isto por que, de todos os sentidos, é a visão que melhor contribui para o nosso conhecimento das
coisas e o que revela uma multiplicidad e de distinções.” ARISTÓTELES. Metafísica. o Paulo: Edip ro,
2006 , p. 43.
6
“O problema do conhecimento, da ciência demonstra-se, portanto, uma questão filosófica (a
necessidade humana do saber), uma questão política (o fenômeno do poder, de dominação da realidade) e,
por certo, uma questão jurídica: a liberdade do homem e suas limitações.” GARCIA, Maria. Limites da
ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004 , p. 33-34.
7
“De Aristóteles a Descartes, uma pergunta tem sido constante, vindo a constituir-se como centro e vetor
principal no campo da ética e d a política: o que está e o que não está em nosso poder? [...] A filosofia
parece haver capitulado em relação à pretensão racionalista. Cap itulação paradoxal porque a reaparição
da fortuna (o signo e o símbolo da adversidade e da felicidade imprevistas, da relação do homem com a
exterioridade e com o tempo) coincide com o insta nte e m que a biofísica, a bioquímica e a biogenética
parecia lançar-nos de volta às malhas da necessidade natural absoluta, enquanto a tecnologia, permitindo
o aparecimento de práticas como as da e ngenharia soc ia l, e ngenharia política e engenharia genética,
parecia prometer-nos o máximo de controle racional sobre as ações humanas, que, agora, estariam
totalmente em nosso poder. [...] Probabilismo cientí fico, engenharia política, engenharia genética
automação, jogo e acaso financeiro, dispersão e abstração da produção, velocidade da informação e da
comunicação, proliferação de imagens: tudo isso se a rticula para determinar a crise da ra zão, a afirmação
da contingência radical da n atureza e das ações humanas, e pede a re organização do fragmento e do
disperso pelo caminho do mito, da magia, da astrologia e do fundamentalismo religioso. ” CHAUÍ,
Marilena. Contingência e necessidade. In: NOV AES, Adauto. (Org.). Op. cit., p. 20-23.
16
1.1 Da natureza humana
Das diversas espécies vivas existentes, somente a espécie humana
interroga-se acerca de sua origem e da origem do mundo, somente o homem se
autoquestiona e demonstra necessidade de conhecer a si e de desvendar sua
natureza, isso porque, segundo Ernst Cassirer
8
, “O autoco nhecimento [...] é o
primeiro pré-requisito da auto-realização. Devemos tentar romper as cadeias que
nos ligam ao mundo exterior para podermos desfr uta r nossa i nte ira liberdade”.
Essa marca indelével do espírito humano, essa sede de autoconhecimento,
havia sido observada na Grécia Antiga, através do preceito conhece-te a ti
mesmo feito pelo Oráculo de Delfos
9
ao filósofo Sócrates.
Destarte, se a busca por um conhecimento de si mesmo encontra-se entre
as mais anti ga s metas de indagação humana, para responder a esse
questionamento o ser humano não poderia deixar de consid er a r seu entorno,
posto que “para todas as necessidades imediatas e interesses p rá ticos, o homem
depende de seu ambiente físico”
10
.
Nesse permanente empreendimento de dar sentido à sua existênc ia e de
organizar o universo que o envolve, o homem faz uso de faculdades essenciais de
seu ser, tais como racionalida de e af e tivida de
11
, e com ba se ne ssa última
desenvolve mitos
12
acerca de sua cosmogênese e de sua antropogênese.
8
CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 9-10.
9
Oráculo (do latim oraculu, a partir do grego oras, que significa “ver”) seria um pronunciamento dos
deuses sobre o destino dos homen s que os consultavam. Essa fala divina sempre era revelada às pessoas
por intermédio de um sacerdote, de uma sacerdotisa ou de um adivinho. A palavra designava também o
local onde essas profecias eram formuladas. O Oráculo de Delfos, localizado na encosta sul do monte
Parnaso, região central da G récia, era o principal templo do deus Apolo, que se manifestava por meio de
sua sacerdotisa pítia ou sibila. Suas revelações eram feitas na forma de enigmas e de frases misteriosas.
Cf. CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p . 47.
10
CASSIRER, Ernst. Op. cit., p. 12.
11
Para Hilton Japiassu inteligência e emoção interagem a todo tempo no espírito humano. “Pobre daquele
que não consegue mais sonhar! O desenvolvimento de nossa inteligência anda junto com o de nossa
17
Legítimo representante do conhecimento mitológico, Hesíodo
13
, em sua
obra Teogônia - teo: deus; gônia: or igem, anunciava que do Caos teria surgido
Gaia, enten dida como a Terra, caracterizada pelo princípio passivo, feminino,
maternal, d ela nasceriam todos os seres e uma de suas virtudes básicas seria a
humildade, termo que etimologicamente prende-se a húmus, de que o homo -
homem - originou-se e foi modelado. Por essa teoria, o homem é considerado
fruto da Terra.
Desse modo, durante séculos o mito esteve presente na consciência
coletiva, servindo de refe r ên cia justificadora e de modelo, tecendo no imaginário
humano garantias capazes de suprir o vazio das angústias, fornecendo r e spostas
às questões sobre o mal, o sofrimento, a morte, o destino da alma, o sentido e a
origem da Vida, a existência e a natureza de Deus, permitindo ao homem melh or
ordenar o caos de sua existência.
Contudo, é possível verificar que as respostas trazidas à lume por meio
dos mitos aos questionamentos humanos mais elementares reprov av am essa
busca pelo con he c imento. Assim, se por um lado as narrativas mitológicas
garantiam a o homem determinada segurança na medida em que o situavam no
Universo, por outro, restava notório um juízo de reprovação e certo temor acerca
dessa te ntativa de desvendar os mistérios do Cosmos. Essa reprovação fica
afetividade [...] sem ela, não poderíamos desenvolver e aprimorar [...] nossa sede de conhecer, nossa
pulsão de saber e crer, nossa aptidão a procurar entender o mundo, c ompreendê-lo, torná-lo inteligível e
amável. Pobre da inteligência que tenta afirmar-se e impor-se em detrimento da afetividade. Ambas estão
condenadas a se cruzar, num diálogo permanente e numa interfecundaçã o constante”. JAPIASSU, Hilton.
Op. cit., p. 287
12
O mito “... designa uma forma atenuada de intelectualidade, usada como instrumento de controle
social; o u seja, mito seria uma forma aproximativa e imperfeita que a ver dade assume, usualmente unida a
uma validad e moral ou religiosa.” D UPAS, Gilberto. Op. cit., p. 23.
13
Hesíodo, agricultor-poeta na Beócia do século VIII a. C., legou alguma s das melhores narrativas a
respeito dos deuses gregos e seus relacionamentos com os mortais. Informava que das profundezas de
Gaia (Terra) teria surgido Tártaro (escuro) e o Eros (amor), dando, esse último, origem a tod as as outras
coisas.
18
sublinhada tanto no Mito de Prometeu quanto no Mito de Pandora
14
e levam
Aranha e Martins
15
a observar que “ao entrar em contato com o mundo, o homem
não é apenas uma cabeça que pensa’ d iante de um mundo como tal’. Entre os
dois existe a fantasia, a imaginação. Antes de interpretar o mundo, o homem o
deseja e o teme. Nesse sentido volta-se para e le ou dele se oc ulta .”
Da concepção mitológica ao senti mento religioso, Battista Mo nd in
16
assinala que o mito é “... o primeiro degrau no processo de compreensão dos
sentimentos religiosos mais profundos do h omem; é o protótipo da teologia.”
No mesmo sentido, Ernst Cassirer
17
esclarece:
“No dese nvolvimento da cultura humana, não podemos fixar um
ponto onde termina o mito e a re ligião começa. Em todo curso de
sua história, a religião permane ce indissoluvelmente ligada a
elementos míticos e impregnada deles. Por outro lado o mito,
mesmo em suas formas mais grosseiras e rud ime nta re s, traz em si
alguns motivos que de certo modo antecipam os ideais religio sos
superiores q ue chegam depois. O que leva de um estágio para outro
não é nenhuma crise repentina de pensamento ne m qualquer
revolução de sentimento.”
14
“Prometeu, um semideus que roubou o fogo de Zeus para salvar os homens (ainda sem mulheres) da
extinção. O obstinado Prometeu, amigo da humanidade, enganou Zeus ao conservar para si as melhores
partes de uma rês sacrificada. Por isso Zeus urdiu problemas e aflições para os homens. Ocultou o fogo.
Mas Prometeu, nobre filho de Iápetos, roubou-o e de vo lveu-o aos homens [...] Ferido até o âmago de seu
ser, Zeus acorrentou Prometeu a um rochedo, com um abutre que lhe comia o gado [...] Como retaliação
pela rebeldia de Prometeu, Zeus enviou Pandora, a primeira mulher. [...] p ara tentar o ingênuo irmão de
Prometeu, Epimeteu. Caindo vítima de seus encantos, Epimeteu trouxe para nosso meio a fêmea cujo
nome significa ‘doador a de tudo’ ou ‘dádiva de todo s’. O que Pando ra nos deu ao remover a tampa do
frasco, ou caixa, que os deuses mandaram junto com ela, fora m os sofrimentos, as pr eocupações e todo o
mal.” SH ATTUCK, Roger. Conhecimento Proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 28-29.
15
ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à Filosofia.
ed. São Paulo: Moderna, 2002, p. 55.
16
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Paulus. 2003, p. 11.
17
CASSIRER, Ernst. Op. cit., p.145 -146.
19
Das muitas concepções religiosas acerca da origem do Universo, chama a
atenção a teoria judaico-cristã por ser o resultado das influências sofridas pelas
civilizações indo-européia e semita
18
. Por essa teoria, o Universo é concebido
como objeto de criação a partir do Caos. Uma análise um pouco mais detida a
respeito do termo utilizado - criação - explicita a idéia primo rdia l da
cosmogênese segundo a Bíblia, de acordo com a qual a origem da e xistê nc ia do
mundo e dos seres que nele ha bitam, em última instância a origem da Vida, é
atribuída a Deus, que parad oxa lmente teria criado tudo o que existe ex nihilo, a
partir do nada
19
. Sua ação criadora teria sido a cau sa inicial da existê ncia
material do mundo.
Em ambas as conce pções, tanto mitológica q u an to religiosa, verifica-se a
presença de elementos fantástic os, mágicos, místic os e poéticos . Esses elementos
são de extre m a importância para a evolução do conhecimento humano, e
exercem, acima de tudo, a função de mola propulsora que impulsiona, instiga e
incentiva o ser humano a compreender sua condição.
Battista Mondin
20
assinala:
18
A influê ncia c ultural e religiosa entre os semitas e os indo-europeus se verifica quando Alexandre
Magno, com sua s muitas campanhas bélicas, u niu o Egito e todo Oriente, até a Í ndia, à civilização grega.
Dessa união, resultou em princípio para a civilização greco-romana e, posteriormente, para todo o
Ocidente, a cosmovisão religiosa judaico-cristã conforme é relatada no Antigo Testamento. Por semitas
compreendem-se os povos originários d a península da Arábia, aproximadamente dois mil ano s e que,
assim como fizeram os indo-europeus, também se e xpandiram por diversas partes do mundo. As três
grandes re ligiões ocidentais que dec orrem da cultura semita são: o juda ísmo, o islamismo e o
cristianismo. Em comum, as tr ês religiões possuem a crença em um único Deus. Por indo-europe u
compreendem-se os povos primitivos que viveram aproximadamente quatro mil anos nas
proximidades do mar Negro e do mar Cáspio e dali migraram para o sudeste - Irã e Índia -, sudoeste -
Grécia, Itália e Espanha -, oeste - Inglaterra e França -, noroeste - Escandinávia -, e para o norte - Rússia.
Claras ligações podem ser observadas entre essas diversas culturas indo-europé ias, tal como o fato de
conceberem o mundo como um imenso palco no qual se desenrola o drama da luta incessa nte entre as
forças do b em e do mal e, sobretudo, o fato de serem politeístas, de a creditarem em muitos e diferentes
deuses. São de origem indo-e uropéia as duas grandes religiões orientais - o hinduís mo e o budismo.
19
“No princípio Deus criou os c éus e a terra [...] E disse Deus: produza a terra alma vivente conforme a
sua espécie; gado e répteis [... ] e assim foi [...] E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança [ ...] E criou Deus o homem à (sic) sua imagem; à imagem de Deus o criou
[...]”. Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus, 2003, p.3-4.
20
MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. ed. São Paulo:
Paulus, 1980, p. 69.
20
“Ao nosso juízo, a fantasia é uma faculdade e xtremamente
importante característica do ho mem, porém mais por su a
contribuição teleológico-prática do que pela gnosiológico-
especulativa. Sem dúvida é importante também essa última
porque a fantasia serve como uma ponte entre os sentidos e a
razão; mas é importante, sobretudo, a primeira contrib uiç ão,
porque com seus sonhos, seus projetos e suas v isõe s
utópicas, a fantasia alimenta aquele impulso de
autotranscendência que move continuamente o home m e o
empurra mais para diante.”
A imaginação, termo que surge da união de dois outros, a saber, imagem e
ação, constitui a essência do ser huma no , único ser capaz de sonhar, de desejar e
de agir em direção à realiza çã o. Assim, a imaginação leva o homem dos sentidos
à razão, conduzido-o a uma outra etapa de seu desenvolvimento marcada, por
assim dizer, pelo início de um pensamento que se pretende mais racional,
rigoroso, crítico, isto é, marcada pelo limiar do pensamento filosóf ic o.
O conhecime nto filosó fico ergue-se, então, a partir da capacidade
essencialmente humana de reflexão
21
. Com a filosofia, o homem percebe q ue,
21
“Se q uer emos resolver essa questão (cuja solução é tão necessária para a Ética da Vida quanto para o
conhecimento puro...) da ‘superioridade’ do Homem sobre os Animais, eu não vejo senão um meio: pôr
decididamente de lado, no feixe dos comportamentos humanos, todas as manifestações sec undárias e
equívocas da atividade interna e encara r bem de frente o f enômeno central da Reflexão. [...] a Reflexão,
como a própria palavra indica, é o pode r adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de
tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e de se u próprio valo r:
não apenas conhecer, - mas conhecer-se; não mais apenas saber , mas saber que sabe ... o ser reflexivo,
precisa mente em virtude de sua inflexão sobre si mesmo, torna-se de repente susceptível de se
desenvolver numa esfera nova. Na verdade é um outro mundo que nasce. Abstração, lógica, opçõ es e
invenções ponderadas, matemáticas, arte, percepção calculada do espaço e da duração, ansiedad es e
sonhos de amor ,,, Todas essas ati vidades de vida interior nada mais são que a eferve scência do centro
recém-formado explodindo sobre si mesmo. Isto posto, eu pergunto. Se como decorre do que foi dito, é o
fato de se encontrar ‘refletido que constit ui o ser verdadeiramente ‘inteli gente’, podemos nós seriamente
duvidar de que a inteligência seja o apanágio evolutivo do Homem e do Homem?” CHARDIN, Pierre
Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 186.
21
para conhecer melhor o mundo e colocá-lo melhor a seu serviço, deveria
encontrar em si as po ssibilidades e a c ora gem para enfrentá-lo. Assi m, de acor do
com Robert Lenoble
22
, “a história qu e se desenrola de Sócrates a Descartes é,
pois, a do homem que pouco a pouco domina o mundo, dominando-se a si
mesmo”.
Da mesma man e ir a que procede com a mitologia e com a religi ã o, o
homem, através do pensamento filosófico, intenta fornecer uma explicação
exaustiva a respeito do Universo e da Vida. No entanto, a concepção filosófica
diferencia-se das demais, na medida em que as respostas por ela oferecidas o
têm sua gênese em preceitos divinos, são formuladas tendo por base a observação
da realidade, da phisis - da natureza - e fundamentadas no logos - no
conhecimento.
Segundo Battista Mondin
23
:
“Embora tendo fundamentalmente o mes mo objetivo que o mito, a
saber, o de fornecer uma explicação exaustiva das coisas, a f ilosofia
procura a tingir esse se u objetivo de modo completa ment e diferente.
De fa to, o mito procede mediante a re pr esentação fantástica, a
imaginação poética, a intuição de analogias, sugeridas pela
experiência se nsív el; permanece, pois, aquém do logos, ou seja, da
explicação racional. A filosofia, ao contrário, trabalha com a
razão, com o rigor gico, com espírito crítico, com motivações
racionais, com argu mentações rigorosas, baseadas em princípios
cujo valor foi prévia e firmemente estabelecido de forma explícita”.
22
LENOBLE. Robert. História da idéia da natureza. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 22.
23
MONDIN, Battista. Curso de filosofia. São P aulo: Paulus, 1 e d., 2003, vol. 1, p.11.
22
Os pri meiros questioname ntos filosóficos a respeito da origem da vida
foram propost os pelos naturalistas e físicos pré-socráticos, entre eles, Talles de
Mileto
24
, Anaximandro
25
, Anaxímenes
26
e Heráclito.
Do pensamento filosófico pré-socrático ao pensamento so cr á tico
propriamente dito, importante destacar a contribuição de Heráclito, não tanto por
ter nomeado o fogo como p rinc ípio primordial do Unive r so, nem ta mpo uc o por
determinar que tudo esteja em permanente mudança e que o equilíbrio encontra-
se na necessária complementaridade entre os opostos, mas, principalmente, por
determinar que, para penetrar os segredos da natureza, antes teria o homem que
conhecer seus próprios segredos.
Nesse sentido, Ernst Cassirer
27
observa:
“Heráclito porta-se n a fronteira entre o pensamento cosmo lógico e
o antropológico. Embora fale ainda como filósofo natural e faça
parte dos ‘antigos fisiologistas’, e stá convencido de que é
impossível penetrar o segredo da natureza se m ter est uda do o
segredo do h omem. Deveremos cumprir a exigênci a de auto-
reflexão se quisermos manter nosso domínio sobre a realidade e
entender o seu sentido. Assim, Heráclito pôde caracterizar o
conjunto de sua filosofia pelas duas palavras ‘busquei a mim
mesmo’. Mas essa nova tendência do pensamento, embora fosse
24
Talles d e Mileto questiona racional e sistematicamente sobre a causa última e o princípio supremo de
todas as coisas. Observa que em toda a natureza existem alguns elementos comuns, a saber: terra, ar, fogo
e água. Nesse último elemento - água - enco ntra sua archê
24
e a consagra como sendo a origem do
Universo.
25
Anaximandro explica que não se pode determinar o pr incíp io primordial de todas as coisas a partir de
elementos determinados como a terra, o ar, o fogo e a água. Estabelece, assim, a origem do Universo no
apeíron, termo do qual se utiliza pa ra repre sentar um princípio primordial indete rminado, sem fim e em
movimento infinito. Desse movimento surgiriam as primeiras qualid ades sensíveis: quente e frio, seco e
úmido.
26
Para Anaxímenes, o princípio primordial de todas as coisas é encontrado no ar, que se diferencia em
várias substâncias segundo o grau de rarefação e de condensação ao qual foi submetido.
27
CASSIRER, Ernst. Op. cit., p. 14.
23
inerente à filosofia grega primitiva, alcançou sua plena
maturidade na época de Sócrates. Portanto, é no problema do
homem que se encontra o marco que separa o pensamento socrático
do pré-socrático.”
Com Sócrates, Platão e Aristóteles, um novo olhar é lançado sobre o
Cosmos. A partir desse novo enfoque, o Homem, em substituição ao lugar que
anteriormente era reservado à Phisis, é alçado ao centro do Mundo. O Universo
que se reco nhe c e doravante é o universo humano com toda sua sutileza e
complexidade.
A partir dessa nova perspectiva, Sócra te s concentra sua investigação na
natureza huma na ; Platão distingue o problema metafísico do pr ob lema
cosmológico a partir de dois planos de realidade, um de ordem física, ou
material, e outro de ordem metafísica, ou ide al, e a pr es en ta no Timeu a origem e
a estruturação do mundo material que teria sido produzido pelo Demiurgo
28
;
Aristóteles
29
adota persp e ctiva oposta à de Platão e afirma que o Universo não
tem um criador, sendo eterno e espacialmente infinito.
28
“Este ao contemplar as Idéias (isto é, tomando as idéias como modelos) assistido e auxiliado por outras
Potências , plasma a matéria informe, fazendo-a assumir aquelas qualidades e características próprias dos
seres que povoam este mundo. Terminada a formação do mundo, o Demiurgo lhe infunde uma alma
universal, a qual tem por função conservar vivo o mundo, sem necessidade d e uma intervenção contínua
por parte do Demiurgo” Cf. MONDI N , Battista. Introdução à Filosofia. 14ª ed. São Paulo: Paulus, 200 3,
p. 47-48.
29
“Toda matéria é composta pelas quatro substâncias básicas: terra, ar, fogo e água [...] os objetos
celestes são feitos de um quinto tipo de matéria, o éter [...] ao postular a existência do éter, Aristóteles
efetivamente dividiu o Universo e m dois domínios, o sublunar, onde o movimento ‘natural’ era o linear e
os fenômenos naturais, que envolviam mudanças e transformações materiais er am possíveis, ou seja, o
domínio do devir, e o celeste, onde o movimento ‘natural’ era circular e nada podia mudar, o d omínio
imutável do ser [...] por mais de dois mil anos, do séc. IV a.C até o séc. VII, o pensamento de Aristóteles
exerceu profunda influência no mundo Ocidental. De fato podemos dizer até que a história da ciência
durante esse período se resume, grosseiramente, em duas partes. Na primeira, encontramos uma série de
tentativas semidesesperadas de fazer com que a Natureza e a teologia cristã se adaptassem ao legado
aristotélico. Na segunda, que ocupou os últimos cem anos desse longo período, presenciamos o
nascimento da ciência moderna, que por fim levou ao total aba ndono das idéias aristotélicas [...] a mais
importante razão para o domínio exercido pelo pensamento aristotélico sobre o mundo o cidental foi a
aprop riação de suas idéias pela Igreja cristã. Até o século XII, a teologia cristã era influenciada
principal mente pelo neoplatonismo de Santo Agosti nho, desenvolvido no início do século V em suas
Confissões e A Cidade de Deus. Paralelamente à influência neo platônica, alguns elementos do
pensamento aristotélico foram apropr ia dos pela Igreja durante esse mesmo período. O reto rno total de
24
Após esse período de significativas conquistas da razão humana, quando
o pens amento filosófico ainda se confundia com o pensamento científico,
sobreveio uma fase intermed iár ia , também conhec ida como Idade Média em que,
por razões históricas e políticas, o homem foi relegado a segundo pla no, devendo
Deus ser o centro, a razão, a causa primeira e última d e todas as coisas.
30
Esse
período intermediário pode ser sintetiz ado na afirmação de Santo Agostinho
31
para quem “aquilo que a verdade descobrir não pode contrariar os livros
sagrados, quer no Antigo quer no Novo Testamento”.
Segue-se a esse interr e gn o a Modernidade, e com ela novamente um
profundo interesse do homem pelo Homem, pela Naturez a, pela Vida, pela Arte
e, sobretudo, pela Ciência.
32
Eduardo Carlos Bianca Bittar
33
ensina que a
Aristóteles se no séc. XII I, devido à influência de santo Tomás de Aquino . [...] a filosofia aristo télica
servia como uma luva a uma teologia baseada na separação entre a vida na Terra, decadente e efêmera, e
a perfeita e eterna existência do Paraíso”. GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: dos mitos de
criação ao Big-Bang. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2003, p . 74 e ss.
30
“A sabedoria do pa ssado foi esquecida, condenada pela Igreja como paganismo [...] o esplendor das
civilizações grega e romana era uma memória distante [...] Por q ue isso aconteceu? Qual a relação entre
ascensão da Igreja e a quase completa ruptura com a Anti guidade? Para respondermos a essa pergunta,
temos de considerar a situação po lítica na Europa durante o século IV d. C.O Império Romano estava em
pleno colapso, tanto interna c omo externamente. Dividido entre o Império Oeste, ond e a ngua falada era
o latim, e o Império do Leste (conhecido como Império Bizantino), onde a língua falada er a o grego, na
região onde, hoje, o r io Danúbio encontra a Sérvia e a Romênia, o Império Romano sofria contínuos
ataques tanto de tribos germânicas, no Norte como os vândalos e o s godos -, como dos persas, no Leste.
Internamente a corrupção e a decadência moral provoca vam o contínuo enfraquecimento do famoso
‘orgulho romano’. Mudanças radicais eram desesperadamente necessárias, algo que pudesse restaurar o
senso de direção de uma sociedade profundamente dividida e confusa. Em 324, Constantino , o Grande
Imperado r do Leste, converte u-se ao cristianismo. Ele mudou o nome de sua Capital de Bizâncio para
Constantinopla (hoje Istambul, Turquia), que rapidamente se transformou no mais impo rtante centro
cristão. À medida que o Império Bizantino cre scia em força, Constantino tentava retomar o Oeste do
domínio das tribos ger mânicas, disseminando o cristianismo como a nova dos romanos e oferecendo
apoio às várias comunidades cristãs espalhad as pela Europa. Mesmo q ue o Império tenha falhado no seu
empreendimento e Roma tenha sid o conquistada pelas tribos ger mânicas no séc. V, a Igreja cristã
sobreviveu, guiada por líderes como Santo Agostinho e o papa Gregório I (590-604)”. Ibid., p.93-94.
31
ARANHA, Maria Lucia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Op. cit., p.10 1.
32
Enquanto a Europa estava pe rdida em completa desorde m política, um novo império floresceu durante o
séc. VIII: O Império Muçulm ano, cujas fronteiras se estendiam do Norte da África e Espanha, no oeste,
até a China no leste, passando pelo Egito, Pérsia e Ásia Central. Mais uma vez os trabalhos de Aristóteles
e Ptolomeu foram lidos, e o desenvolvimento das artes e da arquitetura foi encorajado pelos califas. Os
árabes levaram aos seus domínios um amor pe lo conhecimento que havia muito estava esquecido.
Juntamente com sábios judeus, eles forjaram na Península Ibérica uma nova classe cultural que, durante
os cinco séculos seguintes, iria redefinir p or completo o mapa cultural da Europa. Seu entusiasmo pelo
legado cultural dos gregos lentamente d ifundiu-se pelo continente (era densa a neblina medieval!),
criando o clima intelectual que mais tarde floresceu na Renascença”. GLEISER, Marcelo. Op. cit., p. 96.
33
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42.
25
Modernidade se deu a um tempo no plano d os fatos e no plano das idéias e
determina:
“A modernidade implica um longo processo histórico , a iniciar-se
em meados do século X II I e a desdobrar-se em sua cons olidação até
o século XVIII, de desenraizamento e laicização, de autono mia e
liberdade, de racion alização e de mecaniza çã o, bem como de
instrumentalização e industrialização. Desta forma, pode-se dizer
que a modernidade envolve aspectos do ideário intelectual
(científico e filosófico) associados a outros aspectos econômicos
(Revolução Industrial e ascensão da bu rgu esia ) e políticos
(soberania, governo centra l, legislação) conjunturalmente
relevantes.”
No plano intele c tua l, é possível dizer que a Modernidade mar cho u rumo à
dessacralização do mundo, vida e ciência foram termos que se confundiram e que
se fundiram. O conhecimento científico tor nou -se , a partir de então, o único
conhecimento capaz de oferece r res p osta s satisfatórias às inquietude s e aos
anseios humanos. Da teoria heliocêntrica do movimento dos planetas em
substituição à teoria ptolomaica, passando pelas leis de Kepler até as leis de
Galileu sobre a queda dos corpos e a síntese da ordem cósmica de Newton,
consubstanciou-se a ruptura entre filosofia e ciência, cabendo à primeira exercer
os juízos de valor, enquanto a esta última f oi reservada a tarefa de constatação da
realidade.
A distinção entr e os dois saberes e a con so lidaç ã o do conhecimento
científico como instrumento do pensamento humano moderno é uma conquista
atribuída a Descartes
34
que, em sua obra Discurso do Método, buscou formular
34
“Com o pensamento cartesiano, segundo alguns, é que se teria iniciado a consciência da subjetividade
cognitiva. Este seria o start da modernidade co mo forma de dominação e colonização do mundo (res
26
uma teoria do homem baseada e m observações empíricas e em princípios lógicos
gerais. A vid a natural como um todo, ante riormente considerada um mistério, ou
mesmo uma graça divina, tornou-se, com o pensamento cartesiano , um fenômeno
mecânico, equiparando-se o organismo a uma máquina que deve ser desmontada,
remontada e reajustada com vistas a bem atender aos interesses humanos
35
.
O estabelecimento do pensamento científico, portanto, está
inexoravelmente ligado à cultura moderna e nela, co nforme Eduardo Carlos
Bianca Bittar
36
assinala:
“... se desdobrou no sentido de demonstrar, pouco a pouco, de
Bacon a Darwin, de Descartes a Spencer, que a natureza poderia ser
testada, analisada, aproveitada com vistas a servir à satisfação dos
desejos humanos, desde os desejos de conhec imen to (pulsão pelo
saber e pelo explicar) até os desejos utilitários (a pe rfeiçoar técnicas
de plantio, curar doenças, controlar modificações ambientais).”
Esse novo modelo de racio na lida de concedeu espaço e preparou o terreno
no qual iriam brotar as ciências de acordo com o entendiment o que se tem
atualmente delas. A origem da vida a partir de então é uma questão que a Física,
a Quí mica, a Biologia e a Medicina, entre outras ciências, por meio de seus
diversos ramos de especialização, empreender ão seus esforços em d esvendar.
extensa) pela razão (res cogitans). Isso, no e ntanto, não é consenso entre os autore s, e os referenciais
teóricos mudam. A modernidade, para Habermas, por exe mplo, teria nascido com Hegel, e seu
racionalismo onipresente seria a máxima manifestação da vontade co lonizadora moderna do mundo. A
modernidade para Foucault, teria nascido com Kant, na medida em que ninguém melhor que ele te ria se
pronunciado sobre a dimensão do indivíduo e sobre a consciência ética do dever ...” Cf. B ittar, Eduardo
Carlos Bianca. Op. cit. p. 45.
35
“No Discurso do Método, que constitui uma espécie de manifesto da civilização tecnológica, Descartes
afirmou que ‘... les notions nérales touchant la ph ysique m’ont fait voir qu’il est possible de parvenir à
des c onnaissances que soient for utiles à la vie, et qu’au lieu de c ette philosophie speculative, qu’on
enseigne dans les écoles, on en peut trouver une pratique, p ar laquelle connaissant la force et les actions
du feu, de l’ eau, de l’air, des asters, des cieux et de tout les autres cor ps que nous environnement, aussi
disitnctement q ue nous connaissons les divers métiers de nos artisans, nous pourrions emplo yer en meme
façon à tous les usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous render comme maîtres et possueurs d e la
nature.’” COMP A RATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 541.
36
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Op. cit., 259
27
Para Aranha e Martins
37
:
“[...] a revolução metodológica iniciada por Galileu promove a
autonomia da ciên cia e seu desligamento da filoso fia. Pouco a
pouco, desse período até o século XX, aparecem as chamadas
ciências particulares - física, astronomia, química, biologia,
psicologia, sociologia etc. - delimitando um campo de estudo
específico de pesquisa. Na verdade , o que estava ocorrendo era o
nascimento da ciência, como a entendemos modernamente. Com a
fragmentação do saber, cada ciência se ocupa de um objeto
específico: à física cabe investigar o movimento dos corpos; à
biologia, a natureza dos seres vivos; à química, as transformações
substanciais, e assim por diante.”
Assim, do estabelecimento da vida como fenômeno passível de
conhecimento e de compreensão - biós; logos - biologia - à manipulação desta
em laboratório - biós; tékhné - biotecnologia - foi-se um curto espaço de tempo,
um passo que o homem não hesitou em dar, cujo caminho percorrido caracteriza
sobremaneira a passagem do saber especulativo à ciência aplicada, engendrando,
por assi m dize r , a tecnologia, levando a humanidade a experimentar
incontestáveis ava nç os, como a descoberta da penicilina, e a vivenciar inegáve is
retrocessos, como a barbárie perpetrada em Auschwitz, esses extremos
denunciam o permanente desequilíbrio da condição humana.
38
37
ARANHA, Maria cia Arruda; M A RTINS, Maria Helena Pires. Op. cit., p. 73.
38
Para Edgar Morin, esse desequilíbrio e as ameaças dele decorrentes, com relação à insólita destruição
do homem pelo próprio homem, são da natureza, é resultado do apogeu do pensamento racional legado da
modernidade. O autor convida a refletir sobre a teoria dos trê s cérebros do ser humano: o dos antigos
mamíferos ( sede da inteligê ncia e afetividade), o r etilíneo (sede da agressão) e o neocórtex (sede das
operações lógicas) e determina: “Não existe soberania do racional sobre a afetividade, mas hierarquias em
permanente permuta, onde nossos insti ntos mais bestiais vão controlar nossa inteligê ncia para realizar
suas finalidades. Assim, a racionalização de Auschwitz (a indústria da morte humana) é um
empreendimento de destruição utilizando os poderes racionais, tecnológicos do espírito humano. Nossa
razão não controla nossa afetividade e nossas pulsões mais profundas. De fato, este desequilíbrio
permanente é a o mesmo tempo a fonte do que de mais horrível (destruição, assassinato) e do que de
mais belo (invenção, criação, poesia, imaginação). Se a racionalidade contro la sse tudo, não haveria mais
28
1.2 Vida, ciência e tecnologia
A Biociência ou Biologia compreende o estudo do s seres vivos e das leis
gerais da vida
39
e, enquanto área de conhecimento, é uma conquista recente do
gênio humano segundo observa Michel Foucault
40
:
“Pretende-se fazer histórias da biologia no século XVIII; mas não
se tem em conta que a biologia não existia [...]. E que se a biologia
era desconhecida, o era por uma razão bem simples: é que a própria
vida não existia. Exi stiam apenas seres vivos que apareciam através
de um crivo do saber constituído pela história natural.”
Prossegue o autor interrogando-se que campo seria esse do conhecimento
humano “... em que a natureza apar e c e próxima de si mesma o bastante para que
os indivíduos que ela envolve pudessem ser classificados, e suficientemente
afastada de si, para que o devessem ser pela análise e pela reflexão?
41
Em
resposta ao questionamento do ilustre pe nsador francês, poder-se - ia informar que
esse novo campo se tornaria o vértice de onde decor re riam futuros saberes, ainda
mais competentes e im p ositivos no ato de classificar e manipular seres vivos, a
saber: a biotecnologia.
inventividade na espécie humana. Sem dúvida , d evemos esperar regular esta máquina cerebral que tende
a tornar-se demente. Certas c ondições culturais e soc iais lib eram os monstros que o ser humano traz em
si. Estamos diante de um problema muito ambíguo: não podemos esperar um reino so berano da p ura
lógica, pois não so mos computadores; mesmo que os computadores adquirissem sempre qualidades
novas, não possuiriam nem expe riências vividas, nem os sentimentos. É tudo isso que não podemos
dissociar de nossa inteligência. ” MORIN, Edgar; CYRULNIK, Bo ris. Diálogo sobre a natureza humana.
Lisboa: Instituo Piaget, 20 04, p. 55-56.
39
Cf. GARCIA, Maria. Op. cit., p. 44.
40
FOUCAULT. Michel. As Palavras e as Coisas. 8 ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 175.
41
Ibid, p. 175.
29
Íñigo d e Miguel Beriain
42
, a respeito do conceito de biotecnologia,
assevera que “... la biotecnología , como tal, puede definirse, en un se ntido
amplio, como ‘la utilización de org an ismos biológicos, siste ma s y procesos, en
actividades industriales, de fabricación y servicios’.”
Maria Helena Diniz
43
conceitua biotecnologia como:
“... a ciência da engenharia genética que visa ao uso de sistemas e
organismos biológicos para aplicaç õe s medicinais, científicas,
industriais, agrícolas e ambientais. Através dela os or ga nismos
vivos passaram a ser modificados gen etic amente, possibilitando a
criação de organismos transgênicos ou geneticamente
modificados.”
Enquanto técnica capaz de manipular organismos vivos, a biotecnologia
revela-se uma atividade que remonta a um período a nterior ao nascimento de
Cristo, amplamente utilizada na produção de álcool e vinagre, muito embora à
época, a hu manid a de ignorasse que utilizava microorganismos na fabricaçã o
desses produtos
44
. Somente mais tarde, com os estudos de Pasteur
45
e Koch
46
,
42
BERIAIN, Íñigo de Miguel. El embrión y la biotecnología: un análisis ético-jurídico. Granada:
Comares, 2004, p. 1.
43
DINIZ, Ma ria Helena. O estado atual do biodireito. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 450.
44
GAFO, Javier. Problemas éticos de la manipulación genética. Madrid: Paulinas, 1992 , p. 99.
45
Pasteur, Louis (1822-1895), químico e biólogo francês que fundou a ciência da microbiologia,
demonstrou a teoria dos germes como causadores de d oenças (agentes patogênicos), inventou o processo
que leva seu nome e desenvolveu vacinas contra várias patologias. Concluiu que as moléculas orgânicas
podem existir em uma ou duas formas chamadas isômeros, aos quais denominou, respectivamente,
formas levógiras e formas dextrógiras. Trabalhos sobre a fermentação: Pasteur demonstrou que a
produção de álcool na fermentação se deve, na verdade, às leveduras e que a indesejável produção de
substâncias (como o ácido láctico ou o ácido acético) que azedam o vinho se deve à presença de bactérias.
Estendeu esses estudos a outros proble mas, como a conservação do leite, e propôs uma solução
semelhante: aquece r o leite à temperatura e pressão elevadas, antes de engarrafá-lo. Esse processo recebe
hoje o nome de pasteuriza ção.Teor ia dos germes como causa de doenças: mostrou que a o rigem e
evolução das doenças era análoga às do processo de fermentação. Ele considerava que a doença surge
devido ao ataq ue de germes procedentes do exterior do organismo, do mesmo modo que os
microorganismos não desejados in vadem o leite e causam sua fermentação. A vacina contra a raiva:
Pasteur dedicou grande parte de sua vida a investigar as causas de diversas doenças, como a septicemia, o
cólera, a difteria, a tuberculose e a varíola, e sua prevenção por meio da vacinação. É especialmente
30
cientistas precursores da microbiologia, é que a biotecnologia encontrou um fértil
terreno pa ra o seu desenvolvimento, isso ocorreu ma is especificamente no século
XIX, com o advento da ciência genética.
A Genética , em apertada síntese, pode ser considerada como a ciência que
se dedica ao estudo da transmissão de heredit a rie da de dos organismos vivos, ou
de acordo com o que estabelece Stela Neves Barbas
47
, como “a ciência que
estuda a hereditariedade e os mecanismos e leis da transmissão dos cara cte r es,
bem como a formação e evolução das espécies animais e vegetais”.
Pioneiro nesse ramo da ciência biológica, o monge austríaco Gregor
Mendel
48
publicou seus estudos acerca da transmissão da hereditariedade em
1866
49
. A partir de experiê nc ias re a liza das com ervilhas, demon strou que as
características hereditárias transmitidas durante o processo de reprodução são
determinadas pelos genes.
No entanto, o termo gene ficou conhecido no mundo científico em 1911
com o botânico d inamarquês Joahnnsen, que se r e fere a ele como unidade
conhecido por suas investigações sobre a pr evenção da raiva. Encarta Enciclopédia. São Pa ulo: Microsoft
Corporation, 1993 -2001.
46
Koch, Robert (1843-1910), cientista ale mão, Prêmio Nobel de Medicina em 1905. Pioneiro na
bacteriologia médica moderna, isolou várias bactérias patogênicas, inclusive a da tuberculose, e descobriu
os vetores animais de transmissão de uma série de doenças.Demonstrou, ao confirmar que o Bacillus
anthracis provoca determinada condição infecciosa, que as doenças não são c ausadas por substâncias
misteriosas e sim por microorganismos específicos.Também identificou o bacilo causad or do lera e
descobriu que essa enfermidade é transmitida aos seres humanos principalmente através da água. Mais
tarde, viajou para a África, onde e studou as ca usas das doenças transmitidas por insetos. Encarta
Enciclopédia. São Paulo: Microsoft Corporation, 1993-2001.
47
BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Co imbra: Almedina, 1998,
p.16.
48
Mendel (1 822-1884) trabalhou c om a planta da ervilha, descreveu os padrões da herança em função de
sete pares de traços contrastantes que apareciam e m sete variedades diferentes dessa planta. Por meio
dessas observações, elaboro u as leis da hereditariedade q ue foram publicadas em sua obra denominada:
Experimentos com vegetais híbridos. Encarta Enciclopédia. São Paulo: Microsoft Corporation, 1993-
2001 .
49
No início do século XX, as leis de Mend el que haviam sido p ub lic adas e ignoradas pela comunidade
científica em 1866, foram redescobertas de forma independente por três cientistas: Hugo Vries, Carl E rich
Correns e Erich T schermark. Encar ta Enciclopédia. São P aulo: Micro soft Corporation, 1993-2001.
31
hereditária de informação que ocupa lugar fixo no cro moss omo, este últi mo um
componente do núcleo da célula. Atribui-se també m ao botânico uma das
conquistas ma is importantes para o desenvolvimento dos estudos sobre a
hereditariedade em geral, e os princípios mendelianos em particular, a separação
entre genótipo
50
e fenótipo
51
.
Esses dois f a tor es, genótipo e fenótipo, dão origem à essência individual
do ser humano, engendram a concepção da pe sso a humana que Boécio
apropriadamente conceituou: persona proprie dicitur natureae rationalis
individua substantia”, isto é, “diz- se propriamente pessoa, a especificação
individual da substância racional.”
52
Essa individualidade, tão bem expressa na d efinição boeciana, na qual se
assenta todo o universo axiológico, isto é, todos os valores e direitos
fundamentais iner en tes ao homem e que podem ser representados em uma única
palavra, qual seja dignidade, restou reduzida no século XX a um código genético,
composto por uma seqüência de quatro letras a ser decifrado pela ciência
genética humana e recombinado pela en ge nharia genética
53
.
1.3 O DNA: a vida re du zida a um
código
A partir da releitura dos trabalhos de Gregor Mendel, o americano Walter
Sutton percebeu que as características hereditárias que o monge havia observado
nos vegetais - ervilhas - eram co mpa rá ve is à ação dos cromossomos nas células
50
O genótipo refere-se aos genes que o organismo possui e é capaz de transmitir à geração seguinte no
tocante à composição genética de um organismo, com relação às características físicas.
51
O fenótipo refere-se às carac terísticas de correntes do aspecto externo, ou seja, do ambiente cultural,
social e familiar no qual o o rganismo irá se desenvolver
.
52
Boécio, apud COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 19.
53
Lei 11.105/05, art. 3º, inciso IV, “engenharia genética: atividade de produção e manipulação de
moléculas de ADN/ARN recombinante.”
32
dos animais - humano s - em divisão e, por conseguinte, sugeriu que as unidades
mendelianas de herança, os genes, s e localizavam nos cromossomos, que , por sua
vez, variam em forma e tamanho e, em geral, apresentam-se nos seres humanos
em pares
54
.
Em seguida, os cientistas canadenses Avery e McLeod, juntamente com o
americano Maclyn Mac Car ty, demonstraram que as células que co mpõem a
maioria dos org an ismos vivos contêm, em sua parte ce ntr al, um corpúsculo
arredondado deno minado núcleo, em cujo inte rio r se encontra o material
genético, constituído pelo ácido desoxirribonucléico, conhecido pela sigla DNA.
O DNA
55
é a molécula que define a herança dos caracteres específicos
transmitidos na reproduç ão . Possui a capa c ida de de se autoduplicar, o que
explica como a mensagem genética que ele contém transmite-se
hereditariamente. Cabe ainda ao DNA co man da r “o feitio, a estrutu ra e a função
de todo organismo mediante a produção de proteínas”
56
.
Na década de 1950, os geneticistas Watso n e Crick descre ve ram a
estrutura da molécula de DNA. De te rminaram que ela é integrada por duas
cadeias de nucleotídeos que se enredam uma na outra de maneira semelhante a
54
Por cromossomos entende-se a estrutura formada por ácidos nucléicos e proteínas presentes em todas as
células vegetais e animais. Contêm o ADN (ácido desoxirribonucléico) que se divide em pequenas
unidades chamadas genes. Nos seres humanos, a maior ia das células do corpo apresenta 23 pares de
cromossomos. Cada cromossomo contém inúmeros genes e cada um deles se localiza em uma posição
específica, e m um lócus. Outra célula q ue integra esse processo de reprodução é o gameta, trata-se de
uma célula sexual que se une a outra durante a fecundação. Nos organismos supe riores, que se
reproduzem de forma sexuada, estão presentes dois tipos de gametas, o feminino chamado de óvulo e o
masculino chamado de espermatozóide. Originam-se po r meio da meiose, uma divisão na qual se
transmite a cada célula nova um cromossomo de cada um dos pares da célula original. Quando na
fecundação se unem dois gametas, a célula resultante é chamada zigoto e contém toda a dotação dupla de
cromossomos, a metade desses cromossomos procede de um progenitor e a outra metade, de outro.
Encarta E nciclopédia. São Paulo: Microsoft Corporation, 1993-2001.
55
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Do gene ao direito. São Paulo: Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais, 1999, p. 23.
56
No momento em que a célula se divide, dando iníc io ao processo de reprodução, o acido
desoxirribonucléico DNA contido no seu interior individualiza-se numa série de e struturas
microscópicas em forma de bastonetes que recebem o nome de cromossomos. Cada unidade de
informação hereditária presente no cromossomo, também chamada de gene, será responsável pela
produção de determinado caráter biológico
.
Cf. BRODY, David Eliot; BRODY, Arnold. As sete maiores
descobertas científicas da história. São Paulo: Companhia da Letras, 1999, p. 365.
33
uma escada helicoidal
57
. A ordenação dessas informações, em se qüências de
ligação de A com T e C com G, resultou no que se convencionou chamar de
código genético ou código da vida e levou os cientista s, conforme ref er e Maria
Garcia
58
, ao “segredo bioquímico da vida.”
A conjugação dos e sforços de pesquisadores de diversos países visando
decifrar o código genético e compreender o funcionament o dos genes hu manos, a
partir do mapeamento do ge noma humano, consiste em um projeto idealizado
pela primeira vez no início dos anos 80, pelo gov er no dos Estados Unidos da
América.
Autoridades americanas, atentando para a multiplicação, na década de 70,
de empresas privadas ligadas ao setor da engenharia genética, multiplicação essa
que se de u em virtude da então recente descoberta da tecnologia do DNA-
recombinante
59
, e compreende nd o a importância de se apropriar desse novo
campo do conhecimento técnico-científico, fez introduzir no âmbito dessas
pesquisas um órgã o federal de caráter militar, o DOE (Departament of E ne rgy -
Departamento de Energia dos Estados Unidos)
60
.
A ingerência de um órgão feder al militar que se ocupava , até aquele
momento, c om a produção de armas nucleares, bem como com questõ es
57
As extremidades dessa escada são formadas de açúcares e fosfatos; os degraus, de bases nitrogenadas
ligadas em pares. Essas bases são: a adenina (A), a aguanina (G), a citosina (C) e a timina (T). E ssa nova
perspectiva do conhecimento biológico em pouco tempo levou os cie ntistas a co mpreenderem as regras
básicas do código genético e dos processos por ele compreendidos, co mo o da síntese protéica.” LEITE,
Marcelo. O DNA. São Paulo: Publifolha, 2003, p. 22-29.
58
GARCIA, Maria. Op. cit., p . 45.
59
“... no final dos anos de 1960, quando Smith e Wilkox isolaram a cep a bacteriana Haemophylus
influentiae, uma enzi ma (definida endonuclease de restrição) [...] capaz de cortar em pedaços o DNA em
sítios espe cíficos e com absoluta precisão. Pensou-se logo que esse mecanismo de defesa das bactérias
pudesse ser utilizado como uma espécie de tesoura biológica para cortar e refazer o DNA. Na sceu assim a
tecnologia d o DNA-recombinante e, já em 1972, a revista Science podia contar cerca de quinhentos
projetos de pesquisa”. NERI, Demetrio. Filosofia moral: manual introdutório. São Paulo: Loyola, 2004,
p. 233-234.
60
RIFKIN, Jeremy. O Século da Biotecnologia: a valorização dos genes e a reconstrução do mundo. São
Paulo: Makron Books, 1999, p. 11.
34
relacionadas à segurança nuclear, no âmbito das pesquisas de biologia molecular,
tinha como principal motiva çã o o aspecto estratégico do domínio das tecnologias
de engenharia genética por parte do Estado
61
. A proposta do D O E consistia em
um financiamento por parte do gover no americ a no para determinar a seqüência
de todos os três bilhões de pares de G, A, T e C que compõem o genoma
humano.
Apesar de os recursos ofertados pelo DOE serem fundamentais para a
viabilização das pesqu isas, a presença de um organismo militar nessa moda lida de
de ciência , praticada até aquela época exclusivamente por cientistas civis, causou
nesses últimos certa desconfiança, levando-os a buscar o apoio do INH (National
Institutes of Health - Instituto Nacional de Saúde), e ntidade blica liga da ao
governo federal
62
. Assim, em maio de 1986, no Encontro de Biologia Molecular
do Homo Sapiens, realizado e m Cold Spring Har bor , Nova York, restou
estabelecida uma aliança entre os pesquisadores do DOE e os geneticistas
moleculares civis, por intermédio do INH
63
.
O Prêmio Nobel de fisiologia e medicina James Watson, destacado c omo
co-descobridor da estrutura em hélice dupla do DNA ao lado do biof ísico Francis
Crick, assumiu inicialmente a direção dos trabalhos.
Doravante, diverso s países da Europa, bem como o Japão e a Austrália,
demonstraram interesse em participar da pe squisa , unindo-se à iniciativa
americana, fazendo surgir assim o PGH (Projeto Genoma Humano) que se tornou
conhecido internacionalmente pela sigla HUGO (Human Genome
Organization)
64
. Barchifontaine
65
estabelece que, devido à ousadia e à
61
Cf. OLIVEIRA, Fátima. Engenharia genética: o sétimo dia da criação. ed. São Paulo: Moderna,
2004 , p. 52 e ss.
62
Ibid, p. 60.
63
Ibid, p. 60.
64
Atualmente, “basicamente 18 países estão participando das pe squisas sobre o PGH, os maiores centros
de pesquisas se desenvolvem na Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, Chi na, Coréia, Dinamarca, EUA,
35
complexidade do Projeto Genoma Humano, pode ele ser considerado o terceiro
grande projeto da ciência do século XX e comenta:
“... o primeiro foi o Projeto Manhatta m, que descobriu e utilizou a
energia nuclear, bem como produz iu a Bomba Atômica que
destruiu Hiroshima e Nagasaki (1945), pondo fim à II Guerra
Mundial. É descoberto o ‘coração’ da matéria, o átomo, e dele se
extrai energia . O segundo grande projeto foi o Projeto Apollo, que
jogou o ser huma no no coração do cosmos. A data símbolo é o
primeiro passo do homem na Lua (1 969). O ser humano começa a
navegar interplanetariamente. Descobrimo- n os como um grãozinho
de areia na imensidão do universo. Especula-se a respeito da vida
em outros planetas! O terceiro e mais recente é o Projeto Genoma
Humano, que começou no início de 1990, e no dia 26 de junho de
2000 foi comemorado o mapeamento ou seqü e nc iamento do código
genético humano. Isso leva o ser humano ao mais profundo de si
mesmo em termos de conhecimento de sua he r a nç a biológica, numa
verdadeira caça a os genes.”
A meta do PGH era identificar, até o ano de 2005, cada um dos
aproximadamente cem mil genes e três bilhões d e pares de nucleotídeos que
compõem a molécula do DNA. O trabalho de identificação c onsistia no
mapeamento do código genético, isto é, no registro da posição de cada um dos
genes nos 23 pares de cromossomos humanos
66
, e e m seu seqüenciamento, ou
determinação da ordem precisa de ocorrência dos nucleotídeos que compõem
cada gene.
França, Holanda, I sr ael, Itália, Japão, México, Reino Unido , Rússia, S uécia e União Européia, sob
liderança dos EUA e Reino U nido”. RIFKI N , Jeremy. Op.cit., p. 11
65
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Genoma humano e bioética. In: BARCHIFONTAINE,
Christian de Paul de; PESSINI, Léo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.
244.
66
“El genoma es el conjunto de todos los genes de uma especie. El genoma humano, el de la especie
humana”. BERIAIN, Íñigo de Miguel. Op. cit., p. 364.
36
As expectativas, com relação à realização desse feito, em especial na área
da biomedicina , eram as melhores e mais promissoras. Segundo Celeste Gomes e
Sandra Sordi
67
, conhecer o genoma humano representava:
“... a possibilidade de se personalizar a medi cin a, ou seja, realiza r
tratamentos que se baseiam em conhecimen to mais detalhado da
fisiologia de cada pe ssoa, uma vez que o código genético da pessoa
determina, em muitos casos, sua reação a um medica me nto,
inclusive efeitos colaterais”.
A partir do acesso ao material genético, a expectativa era identificar e
isolar os genes responsáveis por milhares de doenças genéticas que acometem os
seres humanos, tanto nas diversas etapas de seu desenvolvimento quanto na fase
pré-embrionária, não s ome nte as moléstias de caráter hereditário, como também
aquelas ad vindas da interação entre os genes e o meio ambiente. Todavia,
embora a diminuição do sofrimento humano r epr e se nte o fim a que se destina a
atividade médico-cien tífica, outros interesses motivaram os investimentos
efetuados no Projeto.
1.4 A vida como produto:
a questão das patentes
Com vistas ao incomensuráve l mercado biomédico e às incontáveis
possibilidades de retor no financeiro decorrente s do investimento nas pesquisas
realizadas no Projeto Genoma Humano, J. Craig Venter, médico e cientista norte-
americano, fundou e m 1994 o Instituto de Pe squ isas TIGR (The Institute for
67
GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira; SORDI, Sa nd ra. Aspectos atuais do Projeto Genoma
Humano. In: SANTO S, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Biodireito: ciência da vida, novos desafios.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 169.
37
Genomic Research), subsidiado por empresas privadas, com a finalidade de
começar a decodific a ção do genoma em grande escala. E, quatro anos após, em
maio de 1998, o c ientista fundava a empresa Celera Genomics, seu próp rio
projeto privado de seqüenciamento do genoma, em parc e ria com outra empresa
americana, a Perkin-Elmer Corporation
68
.
A conclusão do projeto, prevista para 2005, foi ante c ipada, sobretudo, em
razão desse apor te científico e financeiro do setor privado, levado ao Projeto pela
Celera Genomics
69
.
Assim, em 14 de abril de 2003, o consórcio internacional que constituiu o
HUGO anunciou oficialmente o término do seq üe nc iamento das três bilhões de
bases de DNA da espécie humana.
A partir da divulgação oficial da parceria estabelecida entre as agê nc ias
governamentais e a empre sa privada Celera Genomics, inaugurou-s e um novo
espaço. Inúmeras empresas privadas ligadas ao setor de biotecnologia e
biomedicina acrescentaram às pesquisas desenvolvidas no PGH propostas
abrangendo outras áreas de pesquisa relacionadas ao conhecimento do código
genético, entre elas destaca-se a pesquisa envolvendo células-tronc o
embrionárias humanas.
68
Na co rrida para decodificar o genoma humano, a principal frente d a Celera Genomics era a disputa com
o Projeto Genoma Humano pelo pioneirismo na realização e conclusão das pe squisas, financiadas até
então com fundos públicos. O co nsórcio internacional - HUGO - e a empresa privada Celera Genomics
firmaram um acordo assumindo em conjunto a autoria do mapa genético dos seres humanos.
69
A concorrência-parceria público-privada estabelecida entre a Celera Genomics e as agências de
pesquisas governamentais, associada à alargada cooperação da comunidad e científica internacio nal e aos
avanços da bioinformática e das tecnologias de informação, permitiu acelerar substancialmente o
processo de seqüenciamento do genoma humano e no ano de 2000 o INH, em conjunto com a Celera
Genomics, divulgou simultaneamente nos Estados U nidos e na Grã-Bretanha, por meio de seus
respectivos chefes de governo, Bill Clinton e Tony Blair, o seqüenciamento de mais de 90% do genoma
humano.
38
Nesse sentido, Marília Bernardes Marques
70
observa:
“No reino empresarial [...] a p rin cipa l referê ncia da atualidade é a
Advanced Cell Techonology ACT [...] empresa sediada no estado
norte-americano de Massachusetts, fundada [...] com o propósito de
desenvolver técnicas de clonagem em rebanhos e animais
transgênicos, usados pa ra produzir medicamentos no leite. Sua
trajetória te cnológica mescla animais e humanos nas pesquisas com
células-tronco e clonagem, gerando elementos híbridos. Mais
recentemente, essa empresa direc ionou o foco de seu interesse para
as técnicas em medicina regeneradora, volta ndo- se para as
pesquisas com células-tronco embrionárias humanas”.
Com efeito, o pesado investimento realizado por empresas privadas no
Projeto Gen oma Humano se justificava, quando se levava e m conta o re tor no
financeiro que adviria desse mercado recém-descoberto pela ciência: mercado
genômico. De acordo com Rifkin: “O mercado comercial potencial para os testes
genéticos é estimado em dezenas de bilhões de dólares, nos primeiros a nos do
século 21 (sic)”
71
. No mesmo sentido, Barchifontaine
72
aduz que “... tudo indica
que o fio condutor da economia do século XXI será a Engenharia Genética, tendo
como locomotiva o Projeto Genoma Humano”.
Assim, era preciso g arantir, por mei o de algum mecanismo efic ien te, o
efetivo retorno à iniciativa privada do investimento realizado nas pesquisas
70
MARQUES, M arília Be rnardes. O que é célula-tronco. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 46.
71
RIFIKIN, Jeremy. O século da biotecnologia: a valorização dos genes e a reconstrução do mundo. São
Paulo: Makron Books, 1999, p. 28.
72
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de . Op. cit. p. 244.
39
científicas relacionadas ao conhecimento do genom a humano. A solução
encontrada foi o estabelecimento do instituto da patente
73
.
A partir do estabelecimento do instituto da patente, a vida humana que
outrora havia sido reduzida a um digo genético constituído por quatro letras,
poderia agora ser obj e to de apropriaç ão por parte de empresas do ramo da
biotecnologia e indústrias do setor farmacêutico, entre outras.
Fabio Konder Comparato
74
a esse respeito destaca:
“Chegamos, nesta passagem de milênio, ao apogeu do capita lismo,
no preciso sentido etimológico do termo, isto é, à f a se histórica em
que ele se coloca n a posição de maior distanciamento da Terra e da
Vida (...) nesse tipo de civilização, toda a vida social, e não apenas
as relações econômicas, fundam-se na supremacia absoluta da razão
de mercado (...) na ve rdade, para a menta lidade capitalista, somen te
aquilo que tem pre ç o no mercado, possui valor na vida social (...)
com a geral admissibilidade do pa ten teamento de genes, inclusive
do homem, para exploração da indústria farmacêutica e utilização
de tratamentos médicos, chegamos a o ponto culminante da ânsia
capitalista: instituiu-se a propriedade sobre as matrizes da vida.”
73
A patente surge com a Revolução Industrial inglesa e a nova ordem econômica vigente que passava a se
alicerçar, em substituição à servidão coletiva e à posterior manufatura, num sistema fabril, mecanizado. O
instituto da patente era, assim, determinado sobre produtos inanimados, máquinas e equipamentos.
74
COMPARAT O , Fábio Konder. Op. cit., p. 536 e ss.
40
1.4.1 Patente e organismos vivos
O instituto jurídico que assegura o direito de patente está previsto na Lei
de Proprieda de Industrial e tem por fim a proteção dos bens imateriais, entre eles
assegurados aqueles qu e decor ram do talento de uma invenção . Na lição de Fábio
Ulhoa Coelho
75
, a patente diz respeito à invenção, e invenção, segundo o autor, é
“o ato original do nio humano”, atendidos os requisitos da novidade, da
atividade inventiva, da aplicação industrial e do não-impedimento.
Dessa forma, o Estado concede a patente através de uma autarquia federal,
concedendo, assim, o direito à exploração exclusiva do objeto da patente,
dispondo a respeito de sua alienação, por ato inter vivos ou mortis causa; so bre
sua licença compulsória; acerca dos prazos de dura çã o e finalmente determina as
causas de sua extinção
76
.
Fabio Konder Comparato
77
noticia que “A primeir a patente de ser vivo foi
concedida na França a Louis Pasteur, em 1865, tendo por objeto o levedo de
cerveja, livre d e contaminação bacteriana”. Segundo o aut or , a decisão que
permitiu ao homem, por intermédio do seu conhecimento, se apropriar de um
organismo vivo, determinou a tônica da relaç ão que iria se desenvolver e se
consagrar nas sociedades futuras.
75
COELHO, Fá bio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 73-76.
76
No Brasil a competência para concessão de patentes é do INPI (Instituto Na cional de Propriedade
Industrial). É pertinente esclarecer que a obtenção de uma patente não garante ao seu titular o direito de
propriedade, como equivocadamente se acredita. O que o instituto jurídico assegura é o direito de
percebe r royalties pelo uso da informação ou o ressarcimento no caso de sua viola ção .Cf. GOMES,
Celeste Leite dos Sa ntos Pereira e SORDI, Sandra.Op. cit.,p. 188.
77
COMPARAT O , Fábio Konder. Op. cit., p. 428.
41
François Ost
78
, ao analisar a questão, sublinha:
“A vida torna-se objecto de ciência: uma ciência não mais
descritiva (anatómica) , como vimos, mas realmente criadora
(genética). A vi a e stá aberta: deixam-se entreve r inú me ra s
aplicações práticas, desenha-se um mer ca do potencialmente
imenso, o modelo industrial de transformação-exploração da
natureza alcança então o último refúgio que ainda lhe escapava ..., e
o direito das patentes, sujeito às pressões que se adivinham, cede,
um após outro, aos bastiões do vivo. Pode-se hoje escrever a
história bastante breve, contudo desta irresistível ascensão da
patente: das plantas aos homens, dos microorganismos aos animais
superiores, nenhuma espécie de seres vivos escapará à lógica da
conquista e da apropriação ...”
A patente sobre uma forma de vida consagra, portanto, a associação
definitiva entre vida, ciência e técnica . A fusão dos três conceitos constitui
aspectos - teórico e prático - da mesma realidade. A técnica, a partir do século
XVIII, se converte na aplicação dos conhecimentos fornecidos pe la ciência,
desaparecendo desse mo do a tékhné, fazendo surgir a tecnologia. Com ela tem
início uma ordem econômico-fin an ce ira alicerçada na promissora potencialidade
de comercialização d o conhecimento.
Na esteira dessa nova perspectiva, em que a tecnologia se converte em
moeda de troca das relações co merciais e, no breve espaço de te mpo que encerra
o período do final do século XIX ao início do século XX, o conhecimento do
código genético determinou que a vida, não sendo dádiva divina e sim um
engenho do gênio humano, é passível de ser patenteada. A partir dessa
78
OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito Lisboa: Instituo Piaget.
1995 , p. 83.
42
mentalidade, tinha início o que Rifkin
79
convencionou chamar de “o século da
biotecnologia”.
Embora os primeiros efeitos ac e rc a da grande polêmica em torno do
patenteamento de organismos vivos pudessem ser antevistos desde o anúncio
de ob ten çã o de pa tente por Pasteur, em 1873, a amplitude e os possíveis
desdobramentos dos problemas decorre ntes de ssa questão só se fizeram perceber
quando Ananda Chakrabarty, microbiologista indiano, funcionário da G. E.
(General Eletric), empresa privada norte-americana, solicitou na década de 1970,
junto ao PTO (U.S. Patents and Trademark Office), o Instituto Nacional da
Propriedade Industrial dos Estados Unidos, a conce ssã o de patente para o
microorganismo (Pseudomas) geneticamente projetado e construído co m a
capacidade de dragar o derramamento de petróleo nos oceanos
80
.
O PTO, com base na Lei de Patentes norte-americana, recusou a
concessão da patente, alegando que seres vivos não o passíveis de serem
patenteados. Alegou, ainda, que em raras ocasiões haviam sido co nc ed ida s
patentes para forma de vida de plantas que se reproduzem assexuadamente,
entretanto, ressa ltou que tais concessões eram objeto de exceção especial que
se poderia verificar por meio de um ato legislativo do Congresso Americano.
Após a interposição do recurso de ape la çã o por parte de Chakrabarty e da
G.E. perante o Tribunal de Tributos Alfandegários e Patentes (Court Of Customs
and Patents Appeals) e de inúmeras outras disputas judiciais em torno desse
caso, a decisão da Suprema Corte dos Est a dos Unidos, em 1980, concedia a
patente do Pseudomas ao cientista indiano e à empresa norte-americana.
79
RIFIKIN, Jeremy. Op. cit., p. 47.
80
Ibid, p. 44.
43
A decisão causou surpresa a todos ao ignorar os argumentos da peça
processual escrita pelo advogado Ted Howard, da Fundação para Te ndê nc ias
Econômicas, que havia se associado à PTO como terceiro interessado
81
. Na peça,
Ted Howa rd tocava diretamente no âmago da questão do valor intrínseco e do
significado da vida, sustentando que em decorrência da decisão da Suprema
Corte, favor á ve l à concessão de patente de microorganismo v ivo, a vida
fabricada - em qualquer nível - teria sido categorizada como menos do que vida,
como nada além de um simples produto químico
82
.
Desde então tem se admitido a patenteabilidade de microorganismos vivos
sem restrições, abrindo-se precedentes para fu tura s demanda s, envolvendo não
somente o universo dos microorganismos vivos, mas, sobretudo, de outras
espécies de vida, incluída a espécie humana.
1.4.2 Patente e gene humano
Acerca da decisão da Suprema Corte americana, que concedeu a patente
de um ser vivo ao microbiologista indiano Chakrabarty, chama atenção o
questionamento efetuado por Leon Richard Kass
83
nos seguintes termos:
“Que princípio ético delimita essa primeira extensão do âmbito da
propriedade p riva da e do controle da natureza (...)? O princípio
aplicado a Chakrabarty afirma que não n ad a na natureza de um
ser, nem mes mo na daquele que solicita a patente, que o torne
imune a ser patenteado”.
81
RIFIKIN, Jeremy. Op. cit., p. 44.
82
Ibid, p. 44.
83
KASS, Leon Richard. Patenting Life. Commentary, dez embro/198 1, p. 56, apud RIFKIN, Jer emy.
Op.cit., p.46.
44
No mesmo sentido Rifkin
84
:
“Pela primeira ve z em uma questão judicial, determinou-se que,
para fins comerciais, não havia mais necessidade de se distinguir
entre seres vivos e objetos inanimados. A partir daí, um organismo
geneticamente construído seria como uma in ve nç ão , da mesma
forma que computadores e máquinas são considerados invenções.
Se o microorganis mo de Chakr abarty pôde ser patentea do, por que
não qua lque r outra forma de vida que tenha sido, de qualquer
modo, construída geneticamente? Q ua l o significado dessa decisão
para as futuras gerações, se crescerem em um mundo onde a vida
será considerada uma mera invenção, onde as fronteiras entre o
sagrado e o profa no, entre o valor intrínseco e o utilitário terão
simplesmente desaparecido, reduzindo a vida à condição de objeto,
destituído de qualquer característica exclusiva ou essencial que o
diferencie daquilo que é estritamente mecânico?”.
Da concessão da patente sobre a bactéria geneticamente modificada, que
tinha por objeto metabolizar o derramamento de petróleo nos oceanos, à
concessão de patente de genes humanos passaram-se somente d ez anos.
Desse modo, em abril de 1988 o Harvard College obteve junto ao OPUS
(U.S Patents Office Escritório de Patentes dos Estados Unidos) a primeira
patente de animal eucariótico - superior - , um mamífero transgênico nã o
humano denominado oncorato
85
, um camundongo geneticamente manipulado,
contendo genes humanos, predisposto a desenvolver câncer. A patente foi
84
RIFKIN, Jeremy. Op.cit., p.46.
85
Cf. GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira; SORDI, Sandra. Op. cit.,p. 189.
45
concedida à empresa Du Pont e o produto comercializado no mercado
biomédico, como modelo de pesquisa para o estudo da doença
86
.
A questão do oncorato constituído de genes humanos abriu precedente
para que dois anos mais tarde Craig V e nter, co-fundado r da empr es a nor te-
americana de biotecnologia Celera Genomics, solicitasse junto ao OPUS patente
sobre uma linha celular humana extraída de uma indígena da N ova Guiné
87
. O
pedido constava de 2.750 seqüências parciais de DNA humano e, em meados do
ano 2000, o escritório de patentes dos Estados Unidos atendeu a soli c itaç ã o.
Abre-se um parêntese nesse ponto para destac a r o fato de que a grande
maioria de paten tes sob re o genoma humano é concedida em países
subdesenvolvidos a empresas privadas sediadas em países desenvolvidos
88
, como
ocorre com a Celera Genomics. A par dessa realidade, não se pode afirmar que
os resultados científicos e financeiros alcança do s com a instituição dessas
patentes se conve rtam em benefício da melhoria da saúde ou da qualidade de
vida dessas populações. De acord o com Salvador Darío Bergel
89
“...obtém-se
material genético desses países sem que se faça a transferência de tecnologia”.
Nesse sentido, notícia divulgada em fevereiro de 2000 informa que o
Governo da Islândia, em decisão inédita, vendeu, pela quantia de US$ 16
86
Ibid, p. 49.
87
(
patente US 5,397,696), útil no tratamento e diagnóstico de pessoas infectadas por uma variante do
vírus HLTV I24 associado à leucemia. A comunidade internacional preocupa-se com o intere sse
manifestado neste ca so, p elas forças armadas americanas. A pr eocupação é pertinente, sobretudo, por
razões históricas recentes, Cf. GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira e SORDI, Sandra. Op. cit., p190.
88
Nesse sentido, Fábio Konder Comparato assinala que, de acordo com o Relatório Mundial de
Desenvolvimento Humano elabora do em 1999 pelas Nações Unidas, ao final do século XX os países
industrializados detinham 97% do total das patentes registradas no mundo inteiro. Mais de 80% das
patentes concedidas em países subdesenvolvidos têm como titulares empresas sediadas em países
desenvolvidos [... ] entre 1981 e 1991, menos de 5% dos novos medicamentos lançados no mercado pelos
25 maiores grupos farmacêutico s foram produzidos sem o concurso de recursos públicos. No mesmo
período, no seto r da biotecnologia, a parte da s patentes detida pelos Poderes Públicos, cuj a licença de
utilização foi concedida a empre sas particulares, passou de 6% a mais de 40%. COMPARATO , Fábio
Konder. Op. cit., p.539-45.
89
BERGEL, Salvador Darío. Genoma humano e patentes. In: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Léo.
(Orgs.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003, p.146.
46
milhões, o direito de exploração do DNA de toda a população do país, c e rc a de
270 mil pessoas, à deCode empresa norte-americana de biotecnologia, cujo dono
é um islandês radicado nos Estados Unidos.
90
A decisão do gove rno islandês confirma as suspeitas de que o material
genético humano torno u-s e, após seu seqüenciamento pelo HUGO, um produto
altamente rentável. Assim, Franç ois Ost
91
anuncia: “... o humano é reduzido ao
celular, o celular ao mecânico, o mecânico ao produto e o produto à mercadoria
convertida em moeda”.
Salvador Darío Berge l
92
convida a refletir sobre o fato de que “...
um genoma humano, s ua propriedade estabelece um monopólio que vai contra a
biologia”. No mesmo tom, Fabio Konder Compa r ato
93
adverte:
“É fundamental, nessa matéria, r econhecer que nenhuma espécie de
ser vivo pode ser monopolizada por ninguém, e que o genoma
humano de qualquer espécie biológica é um patrimônio universal,
cujos componentes não podem, legitimamente, ser objeto de
apropriação”.
Atualmente, mesm o os domínios mais essenciais que constituem o ser
humano, a saber, genes e células-tronco embrionárias, estão sendo demarcados e
reduzidos à propriedade comercial priv ad a, podendo s er comprados e vendidos
no mercado global. Merece destaque matéria veiculada em jornal de grande
circulação, a saber:
90
Islândia vende DNA da população à empresa. O Globo, Rio de Janeiro, 05 fev.2000, p. 39.
91
OST, François. Op.cit. , p. 98.
92
BERGEL, Salvador Darío. Op. cit. p. 142.
93
COMPARAT O , Fabio Konder. Op. cit., 428 .
47
“É proibido vender chicletes de hortelã em Cingapura. Mas e
células-tronco embrionárias human as? a histór ia é outra. No mês
passado, uma empresa local, a ES Cell International, foi a primeira
companhia a produzir comercialmente linhagens que servem para
testes clínicos. Os pesquisadores podem comprá-las por cerca de
R$ 12 mil o frasco”
94
.
Assim, a ciência contemporânea faz, do mesmo modo que a ciência
moderna fe z , uso do método cartesiano, dividindo, desmontan do , reduzindo o ser
humano à sua parte infinitesimal, realidade que leva François Ost a declarar:
95
“... a inda ninguém tentou obter uma patente para um Homo
Sapiens mutante, mas, em contrapartida, são pedidas e obtidas
patentes sobre ‘ material humano’: genes manipulados, células,
linhas celulares tanto mais fáceis de manipular quanto o seu aspecto
menos evoca o ser humano vivo”.
Diante desse fato, urge proceder a uma reflexão que ultrapasse a questão
da propriedade ind ustrial e alcance limites jurídicos e éticos. Com esse
desiderato, Jean François Mattei
96
recorda que o ser h umano tem dignidade, por
isso não pode ser comercializado. O autor destaca que ór gã os, tecidos e células
não podem ser vendidos nem comprados, encontram-se além do mercado. O
gene, o mais diminuto constituinte de um indivíduo, o pode ser tratado de outra
maneira. Não pode entrar direta ne m indiretamente na lógica do comércio. O
genoma humano pertence à humanidade, sendo co-propr ie dade dos seres
humanos ao ser transmitido de ge r aç ã o a geração e pa rtilhado por famílias e
populações. Como pertence a todos, nenhuma pessoa isolada pode ter o direito à
sua propriedade exclusiva por meio de uma patente.
94
LEITE, Marcelo. Fuga de células. Caderno M ais! Folha de São Paulo, 20 ago. 2006, p. 9.
95
OST, François. Op.cit., p. 87.
96
MATTEI, Jean François. Le genome humanin. Strasbourg: Éd. du Conseil de l’Europe, 2001, p. 143.
48
A despeito desses ar gumentos, patentes de genes humanos vêm sendo,
reiteradamente, concedidas nos Estados Unidos e na Europa. Essa prática
sistemática abriu precedente para uma outra atividade igualmente controversa e
inquietante, a saber: a pesquisa científica em células-tronco embrionár ias
humanas.
49
2. DA PESQUISA CIENTÍFICA EM
CÉLULAS-TRONCO
97
EMBRIONÁRIAS
HUMANAS
A segunda metade do século XX marca o início de uma nova era para as
ciências da vida. A decodif ic a çã o da molécula de DNA ensejou descobertas,
achados, avanços e um contínuo desenvolvimento no mundo científico.
A biologia, associada à química e à medicina, deu início ao que hoje se
denomina biologia molecula r . A genética investiu, com sucesso, esforços visando
conceber a vida hu m ana em uma proveta e, quando se pe nsava que se tinha
alcançado o ápice no que diz respeito às conquistas biomédicas, foram
oficialmente anunciados pela comunidade científica procedimentos de
clonagem
98
e experimentos envolvendo células-tronco embrion ár ia s humanas
99
,
97
“Embora na linguagem coloquial seja co stume utilizar o termo “célula-mãe”, prefiro usar o termo
célula-tronco como tradução mais correta do original inglês steam cell. De fato, no Vocabulário
Científico da Real Academia de Ciências Exatas Físicas e Naturais (3. ed., 1996) se inclui o termo
‘célula-tronco’ como sinônimo de célula pluripotencial ou ‘célula pluripotente’, mas não inclui ‘célula-
mãe’ ...” LACADENA, J uan Ramón. Experimentação com embriões: o dilema ético dos embriões
excedentes, os embriões somáticos e o s embriões partenogenéticos. In: MARTÍNE Z, Julio Luis (Org.).
Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Loyola, 2005, p. 65.
98
“A ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado a partir do núcleo de uma célula somática adulta, por
meio de técnicas de reconstrução embrionária por transferência nuclear, nasceu no dia 5 de julho de 1996,
e seus criadores, liderad os pelo cientista escocês Ian Wilmut, a apresentaram ao resto do mundo em um
artigo na revista Nature publicado e m fevereiro de 1997 (I. WILMUT, A.E.SCHNIEKE, J . MCWHIR,
A.J. KIND, K.H.CAMPBELL, Viable offspring derived from fetal and adult mammalian cells, Natrure
385 [1997], 810-813).A ovel ha morreu no dia 14 de fevereiro de 2003, aos seis anos e meio de idade,
sacrificada por seus criad ores ao se constatar a deterioração irreversível de sua saúde, sem aparente
relação com o p rocesso de clonagem e sim p roduto de uma infecção viral que degenerou um tumor
pulmonar que a impedia de respirar de forma normal”. JOSÉ, Lluís Montoliu. Células-tronco humana s:
aspectos científicos. In: MARTÍNEZ, Julio Luis (Org.).Op. cit., p. 21-22.
99
James A. Thomson publicou os resultados de sua e quipe em 6 de novembro de 1998, em um artigo
publicado na revista Science (J.A. THOMSON, J. ITSKVITZ-ELDOR, S.S. SHAPIRO. M.A.
WAKNITZ, J.J. SWIERGIEL, V.S. MARSHALL, J.M. JONES, Embryonic stem cell lines derived from
human b la stocyts, Science 282 [1998], 1.145-1.147). John D. Gearhart publicou as desco bertas de seu
grupo no mesmo mês, em um artigo na revista Proceedings of de National Academy of Sciences USA (M.
J. SHAMBLOTT, J. AXELMAN, S.WANG, E. M. BUGG,J.W.LITTEFIELD, P.J. DONOVAN, P . D.
BLUMENT H A L, G. R. HUG G INS, J.D. GEARHART, Derivation of pluripotent stem cells from
50
dois feitos que demonstraram de forma inequívoca infinitos horizontes a serem
ainda descortinados pela ciência , bem como a necessidade de se repensar e de
redimensionar conceitos e valores, de se refletir, uma ve z mais, ac erca da posição
do ser humano, do conhe c imento científico, da ética e do direito no mundo
contemporâneo.
Assim, Lluís Montoliu José
100
observa:
“... o nascimento da ovelha Dolly, divulgado oficialmente em
1997, trazia consigo uma verdadeira revolução n o campo da
biologia celular e na biologia do desenvolvimento. Pela primeira
vez era possível conseguir que a informação genética presente em
uma célula adulta, somática, diferenciada, se rv isse para orientar o
desenvolvimento de u m novo embrião, reconstruído a partir da
fusão entre o núcleo daquela célula adulta e um óvulo enucleado
[...]. Em 1998, eram conhecidos os primeiros experimentos
realizados, de forma independente, pelos grupos liderados pe lo s
cientistas norte-americanos Thomson e Gearhart, que obtiveram,
também pela primeira vez, células embrionárias pluripotentes
humanas”.
A partir desses feitos, a medicina tem acenado com inúmeras promessas,
com base na utilização de células-tronco embrionárias hu m an as, de terapias
relacionadas a uma série de doenças até então tidas como incuráveis. Nesse
panorama auspicioso, in scr e vem-se como candidatas dive rsas enfermidades:
patologias renais e hepáticas, lesões da medula espinhal, doenças
cultured human primordial germ cells, Proc. Natl. Acad. Sci. USA 95 [1998], 1 3.726-13.731. Para obter
as células-tronco embrionárias humanas pluripotentes, no ca so da e quipe liderada por THOMSON foram
utilizados blastocitos provenientes de fecundações in vitro - FIV ; no caso de GEARHART, as célula s
ES foram obtidas d e blastemas germinais de fetos de 5-9 semanas provenientes de abo rtos tera pêuticos.
Cf. JOSÉ, Lluís Montoliu. Op. cit., p. 22-28.
100
Ibid, p. 22.
51
neurodegenerativas como Mal de Parkinson, Alzhei mer e e scle rose múltipla,
entre outras. Muito embora, é preciso que se sublinhe isto, até o momento
presente inexistam quaisquer registros de tratamentos seguros e eficazes
envolvendo o uso de células-tronco embrionárias humanas
101
. Existe, ainda, uma
expectativa de que essas células possa m ser utilizadas para fazer crescer órgãos
que sirvam como substitutos àqueles órgãos que porventura estejam
comprometidos em razão de alguma deficiência.
O problema fundamental que o emprego dessas células deflagra refere -se
à aceitabilidade do uso de embriões humanos em pesquisas científicas. A
diminuição do sof rimento humano é, inquestionavelmente, objetivo da mais alta
prioridade, entretanto, a par dessa realidade, não se pode esquecer que o emprego
de embriões humanos, como fonte genuína de onde se derivam as células-tronc o
embrionárias, implica na destruição e na instrumentalização desses seres, prática
que se revela jurídica e eticamente questionável.
2.1 Das pesquisas em células-tronco
As células-tronco estão presentes nos primeiros estágios do
desenvolvimento embrionário. Surgem quando d a estruturação de um novo
organismo.
De acordo com Marília Bernardes Marques
102
:
“As células-tronco [...] são as grandes precursoras que construirão
as pontes entre o ovo fertilizado, que é a nossa origem, e a
101
MARQUES, M arília Be rnardes. O que é célula-tronco. São Paulo: Brasiliense, 2006, p.19 e 82.
102
Ibid., p. 09.
52
arquitetura complexa na qual nos tornamos. Dito de outra forma, as
cerca de 75 trilhões de células que constroem um corpo humano
derivam das células-tronco e também, à medida que crescemos e
envelhecemos, o el a s que repõem os tecidos danificados ou
enfermos. Gra ç a s a essa habilidad e , atuam como um verdadeiro
sistema reparador do corpo, fazendo a substituição das células ao
longo de toda a vida de um organismo”.
As pri meir a s pesquisas em células-tron c o foram realizadas em 1960,
porém, somente em meados de 1970 esses estudos começaram a se aprofundar.
De início, os cientistas partiram de investigações realizadas em teratomas
ou teratoca rc inomas,
103
que são tumores que foram provocados em roedores, isso
porque o desenvolvimento e mbrionário pré-imp la nta tório de roedores é muito
parecido com o desenvolvimento embrionário humano
104
. Desse modo, os
pesquisadores descobriram que, a partir desses tecidos, poderiam extra ir células-
tronco, dando origem assim às células primordiais germinais
105
.
A progressão desses estudos envolveu a produção d e animais quiméricos,
formados a partir de dois genótipos diferentes
106
e, após, alcançou a derivação de
células-tronco do blastocito de camundongos.
103
“Os teratocarcinomas são processos neoplásicos que aparecem em gônadas de indivíduos adultos
(testículos ou ovários), embora majoritar ia mente em indivíduos de sexo masculino, que representam o
crescimento descontrolado e desorganizado de células da linha germinal, que começam a dividir -se e
diferenciar-se sem controle em todas as linhas celulares do organismo, or iginando assim u m tu mor.”
JOSÉ, Lluís Montoliu. Op. cit., p. 24.
104
Cf. JOSÉ, Lluís Montoliu. Op. cit., p. 25.
105
“O primórdio germinal é uma estrutura embr ionária presente nas chamadas cristas gonodais (do inglês,
genital ridges) que originará as gônadas (testículos ou ovários, segundo o sexo do embrião) em
indivíduos adultos. Em embriões humanos esse processo ocorre entre a quinta e a nona semana após a
fertilização. Portanto, o primórdio germinal contém células da linha germinal destinadas a produzir
células gaméticas necessárias para realização da reprodução sexual do organismo.” Ibid, p. 25.
106
Cf. BARTH, Wilmar Luiz. Células-tronco e bioética: o progresso biomédico e os desafios éticos.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 20.
53
Em meados de 1 994, f o ra m diferenciadas as primeiras células-tronco de
blastocitos humanos, a partir de embriões excedentes da técnica de fertilização in
vitro, criados pa ra fins reprodutivos e doados para fins de pesquisas. Embora as
células-tronco extraídas tivessem apresentado cariótipo normal, ou seja, o
número de cromossomos pertinente a u m embrião humano regular, essa cultura
se manteve até o es tá gio de duas células não alcançando, portanto, a fase em
que a célula-tronco embrionária apresenta sua principal propriedade, isto é, a
pluripotência.
Em 5 de novembro de 1988, po rém, a empresa Geron Corporation, de
Merlon Park, na Califórnia , EU A, a nunciou que seus pesquisadores, James
Thomson da Universidade de Wisconsin, Madison, e John Gearhart, da
Universidade de Johns Hopkins, Baltimore, haviam co nse guido isolar e cultivar
em laboratório linhas de células-tronco provenien tes de embriões humanos em
estágio de blástula.
As células-tronco embrionárias humanas destacadas quando o embriã o
está na fase de blástula, ou seja, contendo aproximadame nte duzentas células e
contando com quatro ou cinco dias de fecundação, são aquelas que apr e sen tam a
característica da pluripotência, equivale dizer, possuem a capacidade d e se
converter nas mais de duas centenas de tecidos que constituem o ser humano,
além de possuírem a habilidade de se auto-replicar e de s e auto-re nova r
infinitamente.
A respeito do feito de Thomson e Ge arhart, Wilmar Luiz Barth
107
sublinha:
“Em ter mos de importância, nada se compara às pesquisas em
células-tronco publicad a s no ano de 1998. Este ano foi fundamental
107
Ibid, p.22.
54
para o desenvolvimento e maior conhe cimento das células-tronco,
iniciando-se uma nova etapa, definida por alguns como ‘totalmente
revolucionária para a medicina’...”.
A pesquisa desenvolvida pelo cientista James Thomson isolou e cultivou
células-tronco de embriões humanos em fase de blastocito , oriundos de clínicas
de f er tiliza ç ão in vitro. Esses embriões haviam sido produzidos com vistas a
atender a um pr oje to parental. Contudo, como não seriam mais utilizados para
essa finalidade foram destinados às pesquisas
108
.
John Gearhart, por sua vez, derivou célula s-tronco embrionárias humanas
de uma população de células-tronco fetais, oriundas de fetos abortados,
destinados pelos pais, depois de terem decidido pôr fim à gravidez, ao
desenvolvimento de pesquisas. As células-tronco extraídas das células ger minais
desses fetos foram cultivadas in vitro, apresentaram um conjunto normal de
cromossomos, f or am capaz e s de se dividir e, e spor a dic amente, deram origem a
corpos embrióides
109
.
Pouco tempo depo is da divulgação dos resultados obtidos pelos
pesquisadores norte-americanos, o jornal The New York Times publicou o saldo
da experiência conduzida por Michel West, antigo integrante da Geron
Corporation e co-fundador da empresa Advanced Cell Technology, empresa que
passou a atuar forte me nte no r amo da biotecnologia. Nessa pesquisa afirmava-se
o êxito na derivação de células-tronco da massa celular interna de um blastocito
108
“O uso corrente d as expressõe s destacadas denota a designação de coisas e não de seres humanos.”
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e a sua proteção jurídica. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 29.
109
Por corpos embriódes entende-se uma amontoado de células das três linhas cel ulares primordiais, cuj o
desenvolvimento se assemelha muito ao desenvolvimento de um embrião normal. C f. BARTH, Wilmar
Luiz. Op. cit., p . 24.
55
produzido a partir da clonagem de uma célula somática humana com o óvulo
desnucleado de uma vaca.
110
Por fim, além das pesquisas envolvendo embriões humanos, fetos,
fundamentos da técnica de clonagem e fusão de interespécies, empreendeu -se
uma outra linh a de pes q uisa de extrema importância. A equipe d e pesquisadore s,
liderada pelo italiano Ângelo Vescovi, conseguiu isolar e cultivar in vitro
células-tronco extraídas de organismos adultos.
111
Em princípio, argumentou -se que as células-tronco derivadas de
organismos adultos possuiriam capacidade limitada de diferenciação se
comparadas às cé lulas-tronco embrionárias. Não obsta nte , pesquisas recentes tê m
contrariado esse argumento e demonstrado a habilidade das lulas-tronco
adultas de se especializarem e m diferentes tecidos. A partir dessa constatação,
abrem-se novas perspectivas para as pesquisas biomédicas e as células-tronco
adultas tornam-se uma alternativa frente aos dile mas decorrente s das pesquisa s
com células-tronco embrionárias humanas.
Nesse contexto, Wilmar Luiz Barth
112
informa que cientistas, partindo de
células cerebrais, conseguiram fazer com que essas se especializassem em células
nervosas e em células do sangue e músculos.
Da mesma forma, Marília Bernardes Mar ques
113
anuncia:
“... pesquisadores da Universida de de Pittsburgh, atuando no campo
da medicina r egenerativa (transpla nte de fígado), em agosto de
2004, localizara m no amnion da placenta, células geneticamente
110
Ibid, p. 25.
111
Ibid, p. 25.
112
Ibid, p. 25-26
113
MARQUES, M arília Be rnardes. Op. cit., p, 76.
56
muito primitivas que, quando induzidas a formar vários tipos de
células, mostraram-se similares às células-tronco embrio ná r ias.
Sendo a placenta um órgão fetal essencial à nutrição apenas durante
a etapa intra-uterina, seu aprove itamento não deverá motivar
controvérsias morais. Trata-se, portanto, de uma notícia que renova
esperanças, pois, com milhões de crianças nascendo a cada ano,
cada plac en ta pode tornar-se uma alternativa inesgotável e imediata
como fon te de células-tron co , que, sendo primitivas como as
embrionárias, não demandam, entretanto, a destruição de
embriões.”
Desse modo, em razão da diver sida de de resultados alcançados com a
realização das pesquisas levadas a t e rmo no cenário mundial, bem como em
razão das vastas possibilidades de aplicaç ã o que de la s surgiram, era
imprescindível que os pesquisadores procedessem a uma clas sificação que
levasse em conta características fundamentais referentes a essas células, tais
como sua capacidade de diferenciação e as fontes de onde derivam.
2.2 Das células-tronco embrionárias
Uma compreensão u m pouco mais acurada acerca das célul a s-tronco
embrionárias requer , necessariamen te , uma pré-compreensão dos diferentes tipos
de células-tronco identificados pela ciência.
Assim, é possíve l informar que as células-tronco carac ter izam-se por duas
propriedades fundamentais: a primeira delas consiste na capacidade que essas
células tê m de se autoperpetuar ou auto-replicar, dividindo-se a partir delas
mesmas, dando origem a outras células com características idênticas; a segunda
57
propriedade representa o principal interesse dos cientistas nas pesquisas em
células-tronco humanas e consiste na habilidade que algumas células-tronco
apresentam de, em determinadas circunstâncias, se converterem em outros tipos
celulares especializados, responsáveis pela formação dos mais diferentes órgãos
do corpo humano.
A respeito de sua capacidade de diferenc iaç ã o, as células-tronco podem
ser: totipotentes, pluripotentes, multipotentes e unipotentes.
As células-tro nc o totipotentes são aquela s que apresentam a capac idade de
se desenvolver em um embrião e em tecidos e membra na s extra-e mbr ion ár ias.
Contribuem para a formação de todos os tecidos celulares de um organismo
adulto
114
.
As células-tronco pluripotentes, presentes nos es tágio s iniciais do
desenvolvimento em brionário, podem gerar todos os tipos de célula n o feto e no
adulto e o capazes de auto-renovaç ã o, no entanto, não são capazes de se
desenvolver em um organismo completo, isto é, não dão origem a um embrião,
nem tampouco aos anexos embrionários. A pluripotência é a capacidade
funcional que uma célula tem de gerar várias linhagens celulares e tecidos
diferentes
115
.
a multipotência é a característica presente nos tecidos e órgãos adultos,
apropriadamente também são ch amadas de células somáticas - d o grego, que
significa soma, corpo - , porque não são, necessariamente, coletadas em um corpo
adulto, podem ser extraídas de uma criança, do sangue do cordão umbilical etc.
Acreditava-se, como afirma do anteriormente, que e ssas células-tronco, por se rem
114
“A totipotência é a capacidade funcional de uma célula de gerar um indivíduo completo após um
processo de desenvolvimento normal [...] No embrião humano, parece que são totipo te ntes apenas os
blastômeros até o estágio de mórula de 16 dias.” LACADENA, Juan Ramón. Op. cit., p. 66.
115
“As células-tronco embrionárias humanas ou células ES (de embryo stem cell) pre sentes na massa
celular interna do blastocito humano são pluripotentes ...”. Ibid., p. 66
58
especializadas, p ossuiriam uma capacidade limitada de se converterem noutros
tipos celulares, contudo novos experime ntos têm conduzido à conclusão
diversa.
116
Por último, os pesquisadores destacam ainda as células-tronco
unipotentes, que apresentam a capacidade de se converter em apenas um tipo de
célula, mas que possuem a habilidade de se auto-renovar, o que as distingue das
células que não são células-tronco.
117
As células-tronco encontra m-se, ainda, divididas em categorias de acordo
com a fonte onde são encontradas. Nesse aspecto, Marília Berna rdes Marques
118
ressalta que essas células podem ser obtidas: no cordão umbilical, no organismo
adulto e no embrião.
119
As células-tronco e ncontradas no cordão umbilical e na placenta m
sendo utilizada s desde 1988 para tratar muitas patologias, sobretudo, em cr ian ças
portadoras da doença de Gunther, as síndromes de Hunter, de Hurler e a leucemia
linfócita aguda. Esse uso se tornou tão comum, que hoje existem muitos bancos
de armazenamento de sangue do cordão umbilical.
120
as células-tronco provenientes do organismo adulto são as células
indiferenciadas presentes em tecidos diferenciados ou especializados, como o
sangue, por exemplo. Assim, quando o organismo necessita, elas se multiplicam
e passam a ocupar o lugar da célula morta ou enferma.
116
Muitos utilizam o termo plasticidade ao se referir em às células-tronco somáticas, a plasticidade
equivale pois à capacid ade funcional que uma célula tem de gerar algumas linhagens celulares, mas não
todas. Ibid., p. 66.
117
Cf. MARQUES, Marília Bernard es. Op. cit., p. 11-12.
118
Ibid., p. 11.
119
“... para poder ser cultivadas, são extraídas de uma massa interna de células indiferenciadas, que
formam o embrião quando este ainda está em estágio muito precoce, ou seja, quando atingiu entre 50 e
150 células. Neste estágio o embrião é denominado pelos cientistas de blastocito. MARQUES, Marília
Bernardes. Op. cit., p. 11-12.
120
Ibid., p. 11.
59
A princípio os pesquisadores acreditavam que essas célula s eram capazes
de dar origem somente aos te c idos dos quais provinham, característica essa que
acabava por impingir-lhes a especificidade da multipotência. Porém, a lista dos
tecidos onde vêm sendo localizadas células -tr onc o adultas, dotadas de
pluripotência, aumenta com o avanço das pesquisas e na relação são citados o
sangue, a medula óssea, o rebro, vasos sanguíneos, músculos, intestinos,
fígado, pâncreas, como também o sistema nervoso e a pele.
121
A fo nte de células-tronco que resta por analisar encerra o problema
fundamental das pesquisas científicas em células-tronco, trata -se, pois, do
embrião humano.
É no embrião que são encontradas, em abundância, as lulas-tronco
embrionárias humanas, também conhecidas como células ES (Embryo Stem Cell)
dotadas de pluripotência, ou seja, capazes de se convertere m e m outros tipos
celulares e de serem utilizadas na reparação de tecidos específ ic os, ou mesmo, na
produção de órgãos.
Provenientes da massa celular interna do blastocito - do inglês ICM de
Inner Cell Mass - ou das células germinais das quais se formarão os óvulos e o
espermatozóide, são derivadas do embrioblasto em uma fase onde estão
orientadas a se desenvolver em um e mbrião, sendo, por isso, chamadas de
pluripotentes, porque, segundo a conclusão dos cientistas, elas podem formar
todos os tipos celulares que formam um organismo, incluindo as células das três
linhas primordiais, ou seja, elas são capazes de formar um organismo completo,
mas, por não darem origem às células que formarão o trofoblasto, essas células
não con seguirão originar um embrião viável. Par a melhor compreender a
questão, é importante recordar o processo da reprodução humana.
121
Cf. B ART H, Wilmar Luiz. Op. cit., p. 43.
60
Segundo Marília Bernardes Marques
122
:
“O óvulo fecundad o inicia seu processo de divisão celular e, pelo
menos at é o estágio em que atinge oi to células, denominado
mórula, considera-se que as primeiras cé lulas resultantes dessa
divisão possuem capacidade para diferenciação total (totipotência)
[...] entre cinco e sete dias, segue-se o estágio denominad o
blastócito, quando o conjunto dessas células precoces ganham a
forma de u ma bola, com uma cavidade interna. Nesse blastócito, as
células se agruparão em uma camada mais externa, de nome
trofoblasto. É esse conjunto denominado trofoblasto que dará
origem à placenta e aos ane xo s embri oná r ios. Outras células se
agruparão e m uma capa que reveste a cavidade interna do
blastócito, formando uma espécie de parede interna, com c e rc a de
trinta células-tron co ditas embrionárias. Será a partir dessa ca ma da
de células mais int erna que se dará o processo comumente
denominado organogênese, ou seja, de gênese de vários órgãos que
um organismo adulto possui. São, portanto, cé lula s dotad as de
pluripotência, de capacidade de engendrar as mais de duas
centenas de tecidos que compõ em o corpo de um embrião humano,
menos a placenta e os demais anexos embrionários e f e tais , que por
isso são ditas pluripotentes e nã o totipotentes. Essas são as células-
tronco embrioná ria s co m as quais muitos a lmeja m realizar
pesquisas.”
Geneticamente manip uláveis, as células-tronco embrionárias, derivadas de
embriões humanos, podem ser congeladas e clonadas, isto é, de uma única célula
embrionária pode-se criar uma colônia de células geneticamente idê n tica s, com
as mesmas propriedades da célula original, a serem induzidas a se p roliferar o u
122
MARQUES, M arília Be rnardes. Op. cit., p. 25-26.
61
se diferenciar, podendo ser utilizad as, de acordo com os cientistas, na reparação
de tecidos específicos e na produção de órgãos.
Em princípio, os cientistas reivindicam a r e alização de experiment a ç õe s
científicas em embriões humanos excedente s, oriundos da técnica de fertilização
in vitro, em seguida, passam a pleitear a produção de embriões humanos em nível
laboratorial, por meio da clonagem terapêutica, para que deles se possam servir
às pesquisas com células-tronco embrionárias. Ambas a s rei v indic a çõ es
enfrentam dilemas jurídicos e éticos, posto que esbarram na questão do direito à
vida, uma vez que a derivação das lulas-tronco do embrião acarreta a sua
destruição
123
e implica na instrumentalização do ente humano.
2.3 Da reprodução humana assi s tida: a
técnica da fertilização in vitro e a
questão dos embriões excedentes
Antes de passar à questão dos dile mas que a investigação em célu las-
tronco embrionárias humanas suscita, consigna- se que foi por intermédio da
medicina reprodutiva que a ciência recente mente alcançou, com suas
intervenções, o embrião humano.
123
Robert Lanza, pesquisador e sócio da Advanced Cell Technology afirmou, recentemente, ter derivado
células-tronco embrionárias humanas sem causar a destruição do embrião, o que colocaria um ponto final
nas polêmicas em torno das pesquisas. Assim, po r meio de pipetas finíssimas, as mesmas empregadas
quando da manipulação de óvulos e espermatozóide s na fertilização in vitro, o cientista extraiu uma das
oito células q ue compõem o embrião de apenas d ois dias. O procedimento é o mesmo que permite a
realização de testes de DNA para verificação de ocorrência de doenças e síndro mes genéticas. A novidade
é que em vez de se proceder aos testes, o pesquisador deu início a uma cultura de células-tronco
embrionárias humanas. Ocorre que os riscos da retirada de uma célula do e mbrião em um estágio tão
precoce ainda não foram avaliados pe la ciência, sem contar q ue no caso do teste de DNA o risco é
assumido em benefício do pr óprio embrião, ao passo que no procedimento descrito pela Advanced, o risco
é suportado pelo embrião e m favor de outrem. LEITE, M arcelo. Embriões éticos. Caderno Mais! Folha
de São Paulo, p . 09, 27 ago. 2006.
62
A reprodução humana medicamente assistida é a pr átic a terapêutica que
tem por fim promover a realização de um projeto parental e se verifica através da
união artific ia l dos gametas feminino e masculino, qu e são as células
germinativas humanas, dando orige m, assim, a um novo ser.
Como bem observa Juliana Frozel de Camargo
124
, “a ausência de f ilhos
rompe a cadeia familiar, frustra todos os projetos do casal”. É, por essa razão,
que a Constituiç ão Federal de 1988 consagra, entre outros, o direito de constituir
família, o direito ao planejamento familiar, e, ainda, a proteção da
maternidade.
125
Contudo, a reprodução assistida, além de poder ser utiliz ad a como terapia
para superar uma incapacidade, ou mesmo, uma dificuldade física de ordem
natural do ser humano, também pode ser utilizada para fins espúrios. Isso porque,
através da rep rod uç ão humana assistida, é permitido a o médico identificar o
conteúdo genético das células germinativas e d os embriões, sendo possível
intervir geneticamente para e vitar o desenvolvimento de um feto portador de
determinada doença genética, bem como para garantir a presença de certos
fenótipos.
Com efeito, todas essas possibilidades levam Gerson Amauri Calgar o
126
a
afirmar que é sobre a reprodução humana assistida que estã o “os desdobramentos
de maior re pe rc ussão moral no que tange ao patrimônio genético, e exige do
jurista uma co nceituação acerca do que seja vida, pesso a, ser hu ma no, e mbrião e
nascituro.”
124
CAMARGO, Juliana. Fro zel de. Reprodução humana: ética e direito. Campinas: Edicamp, 2003, p.
19.
125
Constituição Federal de 05 .10.1988, art. 226, § 7º, e art. 27, § 1º, I.
126
CALGARO, Gerson Amauri. Patrimônio Genético: comércio e proteção de substância do corpo
humano. Revista do Direito Privado. São Paulo, n. 16, 2003, p. 109.
63
Levada a termo, a técnica da reprodução assistida pode se desenvolver de
dois modos: pela ectogênese, ou fertilização in vitro, e pela inseminação
artificial.
A inseminaç ã o artificial pr oc es sa- se pelo método GIFT (Gametha Intra
Fallopian Transfer), através do qual ocorre a inoculação do sêmen na mulher
sem que haja qualquer manipulação externa de óvulo ou emb riã o. a ectogênese
ou fertilização in vitro, conhecida pela sigla ZIFT (Zibot Intra Fallopian
Transfer) concretiza-se na retirada de óvulo da mulher, na sua fecundação em
uma proveta, com o sêmen do marido ou de outro homem, e na introdução do
embrião no útero da mulher ou no de outra
127
.
Dar-se-á ênfase à fertilização in vitro, em detrimento da inseminação
artificial, em razão de ser ela a técnica que tornou possível a manipulação do
embrião humano nos primeiros estágios de seu desenv olvimento, bem como por
ser o procedimento que resvala na produção do s denominados embriões
excedentes nos quais os pesquisadores, embevecidos pelas infinitas
possibilidades terapêuticas, pleiteiam pesquisar.
Assim, o primeiro bebê a nascer fruto da fertilização in vitro (FIV) foi
Louise Brown em 25 de junho de 19 78
128
no Reino Unido. De acordo com Stella
127
Cf. DINIZ, Maria Helena Op.cit., p. 551 e ss.
128
Coordenaram os trabalhos os cientistas Patrick Steptoe dico da Bourn Hall Clinic de Cambridge e
Robert Edwards biólogo do Physicological Laborato ry de Cambridge Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris.
Manipulação Genética e Direito Penal. São Paulo: Ibccrim - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
1998 , p. 35. No Brasil, o primeiro be bê de proveta nasceu n o ano d e 1984, “Ana Paula foi o primeiro bebê
de proveta da América Latina. Gerada no la boratório do médico paulista Milton Nakamura [...] usando
uma técnica semelhante à do médico inglês Steptoe, nasceu Ana Paula em 07 de outubro de 1984”.
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Imaculada concepção: nascendo in vitro e morrendo in
machina: aspectos históricos e bioéticos da reprodução humana assistida no Direito Penal Comparado.
São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 35-42; ABDELMASSIH, Roger. Aspectos gerais da reprodução
assistida. In: Bioética. Revista publicada pelo Conselho de Medicina, Brasília, v.9, n.2, 2001, p.15-24. “...
hoje já existem mais de 5.000 ‘bebês de proveta’ no nosso país”. DINIZ, Maria Helena. Op. cit, p. 570.
64
Maris Martínez
129
o procedimento é aconselhado “... a mulher que produzindo
óvulos de f or ma normal e possuindo um útero apto para a gestação, não obtém
uma gravidez devido a problemas de qualquer índole em suas trompas de
Falópio, o que impede que o óvulo fecundado chegue ao útero”.
Desse modo, a mulher que se submete à terapia de fertilização in vitro é
estimulada, através de hormônios, a produzir uma múltipla ovulação, em seguida,
esses óvulos são retirados e coloca dos junto ao esperma em meio a uma cultura
de 37 graus centígrados por um período de 12 a 18 horas, na expectativa de que a
fecundação tenha lugar. Em caso positivo, os pré-embriõe s
130
são transferidos ao
útero feminino, dando início à gestação.
Na maioria das vezes, em virtude da hiperovulação provocada com intuito
de atingir êxito na utilização da técnica, um grande mero de fecundaçõ es é
observado, co n tudo, somente três, ou no máximo, quatro pré-embriões devem ser
transferidos ao útero feminino, de acordo com a orientação médica majoritária
131
.
Assim é em razão do risco da ocorrência de uma gravidez múltipla, de aborto, ou
mesmo, de nascimento prematuro.
Os pr é- embriões que não são transferidos ao útero feminino, também
denominados de e mbriões excedentes ou supranumerários, são submetidos à
crioconservação ou congelamento, técnica que permite “... conservar durante
129
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., p.32. “A fecundação pode ser homóloga se feita com os
componentes genéticos advindos do casal, ou heteróloga, se com material fertilizante advindo de terceiro
...”. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 489.
130
A expressão pré-embrião ou e mbrião pré-implantatório ora utilizada, tem a finalidade de d emonstrar,
unicamente, uma das muitas fases pelas quais o embrião humano atravessa em seu contínuo processo de
desenvolvimento no período compreendido entre a concepção e a sua efetiva implantação na mucosa
uterina.
131
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina recomenda que o número ideal de oócitos e pré -embriões a
serem transferidos para a receptora não seja superior a quatro, com o intuito de não aumentar os riscos
existentes de multiparidade. Resolução 1.358/92 do CFM, Seção I Dos Princípios Ge rais 6. O
referido normativo, embora possa servir de parâmetro na área médica, enquanto r egra de ordem
deontológica carece de exigibilidade no plano jurídico.
65
longo tempo os óvulos fecundados [...] po ssibilitando a c onc reção de uma nova
gravidez na doadora do gameta ou seu implante numa mulher estéril.”
132
Entretanto, na prática as hipóteses
133
acima vislumbradas para o
aproveitamento dos embriões c oncebidos o m sendo verificadas. O que se
tem de fato observad o é que, alcança ndo-se êxito na utilização da téc nic a e
consumando-se a gravidez, os embriões produzidos em excesso são,
freqüentemente, abandonados, esquecidos, deixados ao largo nas clínicas de
fertilização in vitro, sendo, após um determinado pe ríodo
134
, sumariamente
descartados.
135
Por tais razões é permitido concluir que a cnica da fertilização in vitro
distanciou-se muito de sua finalidade original. Atualmente, es pe cula-se sobre a
possibilidade de estarem sendo deliberadamente produzidos embriões em número
superior ao que seria necessário para atender ao projeto parenta l, com o propósito
único de destiná-los à pesquisa científica. Nesse sentido, é a advertência de
Jussara Maria Leal de Meirelles
136
segundo a qual “... existem nos dias atuais,
132
As primeiras experiências com crioconservação ocorreram e m 1981 e foram levadas a cabo por um
grupo de cientistas australianos liderados por TROUNSON. Importante ressaltar que após serem
submetidos à crioconservação , o número de pré-embriões v iáveis, até o momento atual, não é elevado. Cf.
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., p. 38.
133
A hipótese de os genitores oferecerem, em doação, para outros casais inférteis, foi defendida por Paulo
Lins e Silva em tese apresentada na XII I Co nferência Inter-American Bar Association, em Tampa,
Florida, EUA, 1982, sob o título de Paternidade e Maternidade, não obstante, Jussara Marial Leal de
Meirelles considera incorreta a referência feita ao termo ‘doação’, posto que os embriões, portadores de
vida humana e de carga genética própria, não podem ser considerados obj etos de direito, seja para fins de
doação a um casal in fértil, seja para fins de pesquisas científicas, muito embora a a utora reconheça o uso
do vocábulo no que concerne aos procedimentos referentes à disposição de órgãos, substâncias e partes
do corpo humano. Cf. M EIRELLES, Jussara Maria Leal de. Op. cit., p. 21e 28.
134
Embriões, espermas e óvulos têm possibilidade de permanecer em estado de vida latentes a té durante
anos, se congelados a uma temperatura de 196º. Para sair da conservação a frio crioconservação são
aquecidos, e após, utilizados normalmente Cf. BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Op. cit., p. 99,
p. 22. Alguns países adotam em sua legislação o prazo máximo de cinco a no s para a co nservação dos
embriões, entre estes estão a Espanha (Lei 35, de 22 de novembro de 1988, art. 11, 3 ) a França ( Lei
94-654, de 29 de julho de 1994, art. 9º) e a Inglaterra (Lei de de novembro de 1990, art. 14, 4) .
135
A Bourn Hall, a maior e ma is antiga clínica de britânica de reprodução humana, destr em de
agosto de 1996, em torno de 900 embriões . Dados mais recentes e q ue abrangem todo o país dão notícia
de que esse número já foi muito ultrapassado, atingindo o registro de 5000 embriões destruídos Cf.
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Op. cit., p. 23.
136
Ibid., p. 26.
66
fortes rumores sobre a produção excedentária de embriões humanos, por meio da
fertilização in vitro medicamente assistida, com o intuito da experimentação”.
Não obstante, a autora chama a atenção para o fato de que, ao contrário do
que se possa imaginar, nem sempre essas experimentações visam atingir o
benefício do embrião, advertindo que:
“... assim como os embriões são usados como objetos de estudos
tendentes a aprimorar as condições do seu desenvolvimento, ou
identificar anomalias cromossômicas ou genéticas, tem-se notícia
de sua utilização como matéria-prima para a indústria cosmética e
outros fins de caráter ético duvidoso. Exemplifica-se a solicitação
governamental f ormulada por dois médicos ingleses para implantar
embriões humanos em animais [ ...] e também a pr oposta do
advogado australiano Paul GERBER, no sentido de se estudar a
possibilidade de implantação de embriões no útero de mulheres
com morte cerebral, em substituição às denominadas ‘mães de
aluguel’...”
137
Informa a autora que a reação da sociedade à idéia de Gerber foi tão
negativa que, apenas 24 horas após seu pronunciamento em um congresso sobre
ética médica realizado em Brisba ne , leste da Austrália, alterou-se a lei
australiana, para incluir os mortos na classificaç ã o de pessoas, de maneir a a se
estender sobre eles a proibição relativa às mães de aluguel, que somente se
referia aos seres dotados de personalidade.
De modo similar, Juan Ramón Lacadena
138
destaca qu e, do ponto de vi sta
ético, é majoritária a posição contrária à criação de embriões com a finalidade
137
Ibid., p. 24.
138
LACADENA, Juan Ramón. Op.cit., p. 68.
67
única de serem utilizados em pesquisas e exp er imentos. O autor admite que o
ideal seria se os programas de fertilização in vitro fossem realizados sem a
produção de embriões excedentes, de modo q ue prevalecesse essa prioridade em
relação à da eficácia médica, a exemplo do que ocorre na Alemanha, onde a
legislação atual determina que sejam transferidos ao útero materno todos os
embriões obtido s. Na Itália, país no qual a lei de reprodução assistid a encontra-se
no Parlamento, também se encaminha a proibição de embriões excedentes.
139
Desse modo, é possível crer que a medicina, com o con h ec imento da
técnica da fertilização in vitro, of er e ce u solução aos reves e s rela c iona do s ao
desejo humano natural e legítimo de procriar, a partir desse conhecimento
derivou procedimentos, técnicas , terapias e experimentos até então
inimagináveis, e, acima de tudo, desencadeou uma questão jurídica
extremamente complexa diante da possibilidade de uso dess es embriões para
outros fins, que não a realização do projeto parental.
2.4 Da manipulação d a s células-tronco
embrionárias humanas: a engenharia
genética
No iníc io da década de 1970, a ciência conseguiu separar e voltar a
combinar genes humanos. Os pesquisadores Smith e Wilkox isolaram a
haemophylus influentiae, uma enz ima capaz de cortar em pedaços o DNA com
absoluta pre cisão e passaram a utiliz á -la c omo uma tesoura biológica para
refazer o DNA, fazendo surgir a tecnologia de DNA-recombinante
140
.
139
Ibid., p. 68.
140
Cf. NERI, Demetrio. Op. cit., p. 233-234
68
Segundo ensina Maria Helena Diniz
141
:
“A engenharia ge nética, ou tecnologia do DNA recombinante, é um
conjunto de técnicas que possibilita a identificação, o isolamento e
a multiplicação de genes dos mais variad os org a nismos. É uma
tecnologia utilizada em nível laboratorial, pela qual o cientista
poderá modifica r o genoma de uma célula viva para a produção de
produtos químicos ou até mesmo de novos seres, ou seja,
organismos geneticamente modificados (OGM) (Lei 11.105/2005,
art. 3º, IV e V) ...”.
A engenharia genética se apresenta, então , como uma técnica que,
associada ao procedimento da fertilização in vitro, torna possível a manipulação
de células -tronco germinais humanas, compreendendo a totalidade das técnicas
capazes de interferir, alterar ou modificar a carga hereditá ria da espécie humana,
a saber: o diagnóstico genético pré-implantac iona l, a terapia gênica e a clonagem,
entre outras.
142
2.4.1 Do Di a gn óstico Genético
Pré-implantacional
O diagnóstico genético pré-implantacional ou PGD (Pré-implantacional
Genetic Diagnostic), consiste na retirada de uma célula de um embrião co m 8 a
16 células, com a finalidade de exe c utar exames capazes de diagnosticar
patologias genéticas hereditárias, trata-se pois, de uma biópsia da célula
embrionária. O procedimento permite ao médico analisar o material genético e
141
DINIZ, Ma ria Helena. Op. cit., p. 449.
142
DINIZ, Ma ria Helena. Op. cit., p 449-50; HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. Sã o
Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 23-24.
69
chegar ao diagnóstico de mais de três mil doenças congênitas, entre elas a anemia
falciforme, a doença de Tay-Sachs, a talassemia, a anencefalia, a miopatia de
Duchenne etc. Não obsta nte , é importante frisar que os efeitos, a longo prazo, de
se retirar um célula-tronco do embrião, num estágio tão precoce, ainda não foram
avaliados pelos cientistas.
A técnica d esc r ev e, portanto, um procedimento screening
143
de embriões,
o que acaba por suscitar sérios problemas jurídicos e éticos, pois, embora o
diagnóstico genético p ré -implantacional tenha como fim diagnosticar moléstias
com grandes chances de comprometer o feto du ra nte o proces so de gestaçã o, ou
mesmo após o nascimento, no decorre r de sua vida, tem-se verificado qu e tal
prática vem sendo utilizada como um meio para a escolha de determinados traços
genéticos, co mo por exemplo, a escolha do sexo do bebê , a cor da sua pele, o seu
coeficiente intelectual, entre outros atributos.
Nesse sentido, Jeremy Rifkin
144
alerta que um estudo demonstrou que
11% dos casais abortariam um feto com pre dispo siç ão para a obesidade. Do
mesmo modo, um periódico nacional de grande circulação recentemente
divulgou a notícia de q u e muitas clínicas de reprodução assistida testam embriões
para que os pais escolham o sexo e outras características da criança
145
.
Assim, feita a triagem, n o caso dos embriões não atenderem à preferência,
de apresentarem traços genéticos indesejáveis, ou mesmo, genes considerados
defeituosos ou anormais, não são transferidos ao útero materno, isso porque,
apesar do procedimen to aferir a predisposiçã o para um grande número de
moléstias, não existem terapias para todas a s patologias por ele diagnosticadas.
143
O termo screeming no inglês indica uma avaliação preliminar, baseada em uma determinada escolha
pessoal, em conformidade com uma imagem previamente proje tada.
144
Cf. RIFKIN, Jeremy. Op. cit., p. 148.
145
LEOLELI, Camargo. A solução no início da vida. Revista Veja, São Paulo, n. 37, 20 nov. 2006, p. 94.
70
Sendo assim, não sendo considerados satisfatórios, os embriões são de sc ar ta dos
ou enviados para pesquisas científicas.
Os dilemas j ur ídic os e éticos se impõe m inexoravelmente, quan do se
intenciona conceituar o que é indesejável, o que vem a ser defeito e
anormalidade e quem estaria legitimado a determinar esses conceitos .
Stella Maris Martínez
146
atinge o cerne da questão quando observa:
“Estabelecerão os Estados um ‘controle de qualidade’ que defina
quais as características devem ter os seres humanos para integrar-se
à comunidade? Embora estas opções possam desenvolver-se em
determinadas ideologi as, parece-nos claro que devem merecer
repúdio absoluto por p a r te de um Estado Social e Democrático de
Direito, em cuja estrutura filosóf ic a não podem merecer acolhida. O
respeito à dignidade humana impede taxativamente todo tipo de
discriminação”.
Desse modo, a biópsia embrionária é permitida pelo Conselho Federal
de Medicina quando forte suspeita de doença grave, como hemofilia
147
. O
procedimento se verifica, pois, por intermédio de uma micropipeta que a ssoc iada
a uma sonda genética emite um sinal fluorescente quando ide ntificado o
cromossomo que possui a doença congênita a ser tratad a
148
. A partir daí , entra em
cena a terapia gênica ou gene te ra pia.
146
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op.cit., p. 258.
147
Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 473.
148
Ibid, p. 406.
71
2.4.2 Da terapia gênica
A terapia genética ou genetera pia consiste na supressão, alteração ou troca
do gene relacionado ao aparec imento de determinadas enfermidades, por outro,
geneticamente modificado. Segundo Eliane Azevêdo
149
, na geneterapia os
cientistas utilizam “... genes em lugar de drogas para tratament o de doenças
genéticas e não-genéticas.”
As doenças geradas por def e itos genéticos podem ser de origens diversas.
Serão de origem hereditária, quando o gene defeitu oso foi transmitido pelos pais
aos filhos. Serão consideradas não-hereditárias, quando s urg irem e m decorrência
de anomalias causadas por e rros imprevistos na formação das células sexuais e,
por fim, serão consider ad as congênitas quando ocorrerem durante o
desenvolvimento embrionário por mutações diversas.
A terapia gênica pode ocorrer tanto nas células-tronco humanas germinais,
quanto nas somáticas. Na lição de Stella Maris Martínez:
150
“As somáticas são células do organismo humano, qualquer que seja
a sua função, q ue possuem vinte e três pares de c r omossomos e que
não intervêm (em circunstâncias normais) na reprodução,
conseqüentemente, na transmissão hereditária. Chamam-se
germinativas, a o contrário, a s células repr odu tiva s, tanto
masculinas como femininas, ou seja, os espermatozóides e os
óvulos; cada uma delas é portadora de uma única série de vinte e
três cromosso mos e o responsáveis pelo processo de reprodução e
da transfe rê nc ia de patrimônio genético dos progenitores. De fato, a
149
AZEVÊDO, E liane. Aborto. In: GARRAFA, Volnei.; COSTA, Sergio Ibiapina. (Org.). A bioética do
século XXI. Brasília: UnB, 200 0, p. 91.
150
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., p . 226.
72
respeito destas células, a diferença fundamental não se fundamenta
em que se trate de c é lulas in vivo ou in vitro, e sim que se destinem
ou não à geração de um novo ser.”
Na terapia genética de célula somátic a , o genoma do indivíduo é
modificado, todavia, a referida alte ra ç ão não é transmitida para as ge rações
futuras. A finalidade terapêutica consiste em possibilitar que as c élulas c umpram
a funç ão para a qual foram destinadas desde o início e que, por falhas na
informação hereditária, não puderam se desenvolver. Por tanto, por não
comprometer o patrimônio genético das gerações futuras e por se traduzir em
uma prática que visa proporcionar ao paciente uma melhor qualidade de vida,
revela-se jurídica e eticamente ac e itável
151
.
Em contrapartida, a terapia genética em célu las ge rminativas realiza-se na
fase pré- implantatória do embrião, quando ainda dotado de lulas-tronco
totipotentes, ou mes mo, antes da fertilização, atuando sobre o espermatozóide ou
sobre o óvulo, tendo por finalidade o tratamento das patologias nele
identificadas. Con tudo, a interferência nos gametas masculinos ou femininos,
bem como nas fases iniciais do desenvolvimento embrionário, resultaria em uma
modificação nã o no indivíduo, mas também alcançaria seus descendentes,
posto que interfere na constituição de seu código genético.
Assim, ao se permitir alterações de qualquer natureza em células
germinais humanas, ou no embrião ainda dotado de células não-e specializadas,
estar-se-ia interferindo de maneira irreve rs ível e imprevisível no patrimônio
genético da humanidade, ameaçando, assim, o futuro da espécie humana.
151
No Brasil somente é lícita a terapia genética em células somáticas, vedando-se a manipulação genética
de lulas germinais humanas. Cf. Lei n. 11.1 05/05, art. 6º, III.
73
Nesse sentido, Stella Maris Martínez
152
observa:
“Toda multiplicação que recaia sobre células germinativas
destinadas à reprodução a fetará a descendê nc ia do doador do
gameta manipulado, interferindo, de maneira irreversível, no curso
natural da tra nsmissão do patrimônio ge nético; a partir desse
momento, essa mutação artificial, e suas imprevisíveis
conseqüências, ficarão definitivamente integradas ao recurso
genético da humanidade. Se pensarmos no delicadíssimo equilíbrio
do mecanismo de transmissão hereditária, que, através de diversas
gerações, conservou e reproduziu a informaç ã o correta da espécie,
assumiremos o incomensurável risco de inter ve nç ã o humana nesse
processo. O patri mônio genético da humanidade perma ne c eu
inalterado durante milê nios , submetid o ape na s às modificações
impostas pela evolução, o que permitiu ao homem sobreviver c omo
espécie e do min ar o mundo. Some-se a isso o fato de que, embora
os cientista possam decifrar o genoma como é, não poderão jamais
afirmar, na atualidade, como foi originalmente, e tampouco poderão
assegurar com suficiente certez a, quais são as conseqüências
absolutas da supressão de determinado gene.”
Por essas razões o a legislação nacional Lei n.11.105/2005, art. 6º, II e III
em consonância com o art. 225, caput, d a Constituição Federal, veda a
manipulação gené tica de células germinais humanas, a intervenção de material
genético humano in vivo e o manejo in vitro de ADN/ARN natura l ou
recombinante, salvo para fins terapêuticos, limitando a a tivid ade do pesquisador
à manipula çã o do genoma na linha somática, visando evitar a proliferaç ã o de
seres humanos germinalmente modificados que pud essem transmitir a alteração
152
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., p. 226-27.
74
para seus descen de ntes, causando modificações irreparáveis e incontroláveis ao
genoma das gerações futuras.
Outra questão que merece atenção quando se trata da terapia genética em
células germinais e, até mesmo, do diagnóstico genético pré-implantacional,
questão essa que vem sendo relegada a segundo plano, é o fato da análise do
genótipo o poder se sustentar sem a do fenótipo, sob pena de fracassar.
Assim, bio Konder Comparato
153
ensina:
“Efetivamente, o acelerado desenvolvimento da genética, no campo
científico e no tecnológico, desde a segunda metade do século XX,
tem suscitado opiniões extremadas sobre o futuro da human ida de.
assim, os que esperam mediante o de se nvolvimento progressivo
do mundo dos genes, poder eliminar, dentro em pouco, as
incertezas que sempre estiveram ligadas ao comportamento
humano. Seria perfeitamente possível nessa linha de pensamento, a
par da identificação dos genes r esp onsá ve is, pelas características
psicossomáticas de cada individuo, ou pelas moléstias e mal
formações que afetam o organismo huma no , explicar
geneticamente os principais traços de caráter moral das pessoas, e
mesmo prever, com certeza científica, os gra nde s rumos da vida
social. Em complemento a essa visão determinista do fenômeno
humano, o extraordinário avanço da biotecnologia vem também
suscitando a esperança de uma reconstrução genética integral do
homem, desde a clonagem de indivíduos, até a criação programada
de uma espécie humana modelar, segundo a tábua de valore s aceita
pelos grupos so cia is domina nte s, detentores do monopólio do saber
153
COMPARAT O , Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia da Letras, 2006, p. 28-31.
75
e dos recursos materiais tecnológicos . É triste rec on he ce r que, neste
início do século XX I, ainda possa medrar um pensamento tão
grotescamente simplificador da realidade humana. O patrimônio
genético é, obviamente, u m dado natural primá rio , que não pode
jamais ser afastado na compreensão do homem. Mas não é menos
certo que, a par do genótipo, outros fatores intervêm, de modo
indefectível, na formaç ã o do indivíduo e, por via de conseqüência,
na construção da socied ad e: o meio ambien te geográ fico, o meio
social mais amplo em que se inserem indivíduos, bem como cada
um destes, numa atuação reflexa sobre si mesmo. A gr an de
especificidade do gênero humano reside no fato de que , embora
produto e elemento integr an te da biosfera, ele passou a alterá-la
decisivamente no curs o do processo evolutivo, e tornou-se, afin al,
capaz de interferir na geraç ã o e sobrevivência de todas as espécies
vivas. Na etap a atua l da evolução, como todos r e co nhecem, o
componente cultural, ou seja, o elemento criado pelo próprio
homem, é mais acentuado que o componente natural, ‘herdado ’
pelo gênero humano [...] O homem perfaz a ssim, indefinidamente,
a sua própria natureza, ao mesmo tempo que transforma a Te rr a,
tornando-a sempre mais dependente de si própr io. O fantástico
progresso da biotec nologia representa, na verdade, a mais cabal
afirmação da liberdade humana, em completo contraste com o
determinismo evolutivo das demais espécies vivas. Todo problema
reside, porém, em saber o que faremos com essa capacidade
crescente de interferir na biosfera e na ev o lução do gênero humano.
Seremos capazes de conduzir a humanidade a uma vida mais plena
e feliz? Ciência sem consciência, como advertiu Rabelais, é o
caminho c er teiro para a ruína do homem. O patrimônio genético
não é, porém, o único f a tor condicionante básico da vida hu mana.
76
Outros existem, e a ele se ligam estreitamente, em uma vinculação
indissolúvel entre natureza e cultura.”
Jeremy Rifkin
154
, no mesmo norte, de sta ca que Jonathan Beckwith,
professor de microbiol og ia e genética da Universidade de Harvard, pioneiro no
campo da biologia molecular, argumenta que é preciso fazer publicamente uma
apresentação mais equilibrada das relações entre genética e meio ambiente. Caso
contrário, a nova ciê ncia corre o risco d e ser colo ca da a serviço de programas
baseados em eugenia. Beckwith chama a atenção para o fato de muitas doenças,
como cânc er e depressão, serem resultantes de interações sutis e não tão sutis
entre predisposições genéticas e estímulos ambientais.
Destarte, embora o genótipo seja a base sobre a qual se edifica a
individualidade de um ser, distinguindo-o dos demais seres vivos existentes, o
fenótipo, isto é, a soma dos fatores ambientais, quí micos, psicológicos e culturais
agindo sobre os genes é que torna cada ser humano um projeto s ingular, disso
resulta que o ser humano não é apenas, e tão somente, a soma de seus genes, e
pensar de modo oposto, anuindo a um pro cesso de seleção, é assumir o risco de
viver uma nova eugenia.
2.4.3 Da clonagem reprodutiva e
terapêutica
A clonagem é a técnica por meio da qual se reproduz, por síntese a r tificial
e assexua da , um organismo ou parte dele, tendo por base um único substrato
genético, podendo ser classific ad a, conforme sua aplicação e seus fins, em
reprodutiva ou terapêutica.
154
Cf. RIFKIN, Jeremy. Op. cit., p. 166-67.
77
Levada a termo no ano de 1997 pelos cientistas do Instituto Roselin, na
Escócia, liderados pe lo cientista Ian Wilmut, a equipe, após 277 tentativas,
obteve êxito na clonagem de um mamífero que recebeu o nome de Dolly. O
procedimento partiu de uma célula mamária retirada de uma ovelha de trê s anos e
o organismo produzido se revelou uma pia fiel do organismo doador do
material genético.
De acordo com Roger Abdelmassih
155
, a clonagem se verifica:
“... sem a c ontr ibuição dos dois gametas: trata-s e, portanto, de uma
reprodução assexuada e agâmica. A fecundaçã o propriamente dita é
substituída pela ‘fusão’ de um núcleo retirado de uma célula
somática de um indivíduo adulto que se deseja clonar, ou da própria
célula somática, com o óvulo desprovido de núcleo, ou seja, do
genoma de origem materna.”
É pre c iso lembrar que a natureza produz clones naturalmente. Em um
determinado momento da divisão celular dos embriões, é pos síve l que a célula se
divida e origem a dois seres humanos idênticos, que recebem o nome de
gêmeos monozigóticos.
a clonagem reprodutiva realizada pel o homem pode se dar de duas
formas: a) imitando a natureza e separando-se as células do embrião, produzido
em laboratório, mediante a técnica d a fertilização in vitro, em estágio inicial de
multiplicação celular, criando-se, assim, vários embriões com idêntico genoma e
b) pela substituição de núcleo de um óvulo por outro núcleo proveniente de uma
célula de um indivíduo existente.
155
ABDELMASSIH , Roger. Clonagem reprodutiva e clonagem tera pêutica: significado clínico e
implicações biotecnológicas. Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal. Brasília, n. 16,
2002 , p. 30.
78
Ao analisar a questão, a geneticista Mayana Zats
156
aponta inúmeras
dúvidas e inc er tezas que o tema suscita tais como: qual seria a idade do clone ao
nascer, posto que a dimen sã o dos telômeros extre mida de s do cromossomo que
diminuem com o envelhecimento celular apresentaram-se reduzidas em
experimentos env olve ndo animais, como por exemplo, no caso da ovelha Dolly;
como se comportariam os genes de imprinting genes que sofrem uma mutação
diferente de acordo c om a origem do game ta masculino se no clone não
união de gametas; quantas mutações estariam acumuladas nas células somáticas
do doador do material genético no momento da clonagem, e se seriam repassadas
ao clone; como se detectariam mutações deletérias nas células do indivíduo que
seria clonado, uma vez que o ser humano possui mais de trinta mil genes e, em
geral, as doenç as resultam da co m bina ç ão de mutações ocorridas em até mil
genes.
Os questionamentos apontados pela geneticista encerram razões de ordem
biológica que obstaculizam a clonagem reprodutiva humana e demonstram a
temeridade do procedimento. Ressalte-se, porém, que a técnica não implica
somente óbices de ordem cien tífica e, a pa r desses, encontra impedimentos
jurídicos e éticos.
No âmbito jurídico, assim como no ético, a grande preocupação acerca da
clonagem reprodutiva é que ela infrinja os princípios de autonomia, dignidade e
individualidade, bem como que seja prej ud icia l aos indivíduos porventura
gerados, e que coloque em risco a sobrevivência da espécie humana.
Nesse sentido, Márcia Lachtermacher-Triu nfol
157
observa:
156
ZATS, Mayana. Genética e Ética. Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal.
Brasília, n. 16, 2002, p. 23.
157
LACHTERMACHER-TRIUNFOL, Márcia. Os Clones. Sã o Paulo: Publifolha, 2003, p. 12.
79
“A individualida de humana não é apen as questão de pr inc ípios; em
termos biológicos, ela representa a d iv er sidade biológica, que o
individuo é único não somente em seus s onho s, dese jos e
personalidade, mas também em seu patrimônio gené tico . A
diversidade biológica é fundamental para a sobrevivência de nossa
espécie, e a clona gem humana [...] poderia constituir u ma ameaça à
espécie, pois diminuiria a variabilidade gené tica de nossa
população.”
José Afonso da Silva
158
lembra que a diver sidade designa a riqueza do
conjunto de seres vivos, biocenose, localizados em uma determinada área,
biotopos, e que preserv ar a div e r sida de e a integridade do patrimônio genético
implica na preservação de todas as espécies existentes.
Do mesmo modo Maria Garcia:
159
“... onde vida (biologia) e coexistência (bioética), de haver
proteção (biodir e ito). De tudo remanescem como princípios
fundamentais do biodireito: que a Humanidade é constituída de
indivíduos iguais em dignidade e direitos e, ao mesmo tempo,
diferentes na sua individualidade; que todo ser humano é livre,
único, incondicional e irrepetível; que o reconhecimento de sua
diversidade implica, simultanea me nte , a aceitação de sua liberdade,
igualdade e individualidade; que a dignidade do ser humano
sobrepaira acima de tudo.”
Assim, visando à proteção do patrimônio gené tico humano, a clonagem
reprodutiva foi categoricamente condenada pela Organização M und ial da Saúde,
158
SILVA, Jo Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 64.
159
GARCIA, Maria. Op. cit., 1 76 .
80
pela Unesco, pela Conv enç ã o Européia sobre os Direitos do Ho me m e da
Biomedicina e p elo Parlamento Europeu no ano de 1997, de 1998 e 2000, e, n o
ano de 2005, pela Organização das Nações Unidas
160
sempre com fundamento no
artigo da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos do
Homem, in verbis:
“Art. - O genoma humano subja z à unidade fundamental de
todos os membro s da família humana e também ao reconhecimento
de sua dignida de e diversidade inerentes. Num sentid o simbólico, é
a herança da humanidade”.
Maria Celeste Cordeiro Leite Santos
161
esclarece que a expressão
patrimônio comum da humanidade, havia sido utilizada por alguns juristas do
século XIX, bem como por outros precedentes recentes, destacando que o jurista
Lapradelle a utilizou ao referir-se ao estatuto jurídico do mar. Antes, contudo, o
pensador latino-americano André s Belo empregou a expressão, patrimônio
indivisível da espécie humana em certos bens que po diam a todos se rv ir sem,
contudo, deteriorar-se.
Assim, e m vá rios instrumentos internacionais aparece a idéia de que a
Humanidade possui certos interesses ou direitos em determinados âmbitos físicos
ou com relação a determinados recursos. Desse modo, ela é tida como uma
entidade coletiva, titular de direitos e interesse s específicos, como é o caso da
proteção dos direitos humanos.
A autora observa:
160
BARTH, Wilmar Luiz. Op. cit., p. 199.
161
Cf. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo: bioética e a lei: implicações
médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998, p. 64.
81
“... que algo faça parte do patri mônio comum da Humanidade não
significa que o homem, o ser individual, seja excluído de toda
relação jurídica. Pelo contrário, o ser humano e suas car ac te rístic as
culturais e genétic a s são um dos elementos integrantes desse
patrimônio. Indivíduo e humanidade se integram em uma relaç ã o
necessária, mutuamente enriquecedora.”
162
De outro modo, a transferência nuclear de célula somática, também
designada pela sigla - NTSC - de Nuclear Transfer Somatic Cell - ou ainda
denominada clonagem terapêutica, é a téc n ica r ea liz ada com o escopo de
produzir o cultivo de tecidos ou órgãos, para o tratamento de doenças, partin do
de embriõe s ou células stem, que são as células-tronco embrionári as humanas
pluripotentes, bem como de célula s-tr onco somáticas, que o as células
encontradas n o cordão umbilical, na placenta, no tecido fetal e no indivíduo
adulto.
Marília Bernardes Marques
163
assinala:
“A principal discussão ética que a tr a nsposição nuclear motiva,
sendo essa uma técnica de manipulação de célula germinativa, diz
respeito aos fundamentos da consideração da construção celular
que dela deriva: trata-se ou não de um embrião humano clonado?
Se a reposta a essa indagação é afirmativa, então a transferência
nuclear somática é duplamente controvertida: existe destruição de
embriões humanos e, além disso, ela engendra embriões
exclusivamente para pesquisas, apenas para servir de meras fontes
de célula-tronco.”
162
Ibid., p. 65
163
MARQUES, M arília Be rnardes. Op. cit., p. 53.
82
Acrescenta, ainda, que o procedimento da clonagem terapêutic a encerra
sérios problemas a começa r pela própria expressão, destacando que a liberdade
com que os cientistas passaram a empregar a expressão clonagem terapêutica na
mídia acabou levando a u ma banalização do conceito e contribuind o par a o
aumento das ambigüidades em torno da transferência nuclear.
164
Por fim, lembra
que, até o presente, inexiste qualquer evidência científica suficiente para afirmar
a eficácia da clonagem terapêutica, informando, outrossim, que nada se pode
falar sobre sua segurança, pois os ris co s potenciais, cancerígenos e
teratogênicos
165
, capazes de causar malformações em embriões e fe tos ainda
estão sendo analisados.
166
A divulgação sensacio n alista da imprensa, no sentido de anunciar a cura
de inúmeros males que afligem a humanida de , divulgaçã o essa que tem como
único objetivo a venda da notícia, gera falsas expec tativ as e leva a população a
interpretações e quivo cadas dos fatos científ ic os, acarretando conseqüências
negativas para a própria sociedade .
Assim, Marília Bernardes Marques
167
pontua:
“Em toda parte, muitos não hesitam em afirmar que as células-
tronco emb rion ár ias oferecem as maiores promessas para o
desenvolvimento de novos trat amentos na, assim chamada,
medicina regenerativa, quando são as células-tronco adultas que
têm demonstrado persp ec tiva s excepcionais no âmbito das diversas
164
Ibid., p. 54.
165
Teratogênese: termo médico aplicado aos casos de massas celulares anormais, de senvolvidas durante a
gestação que originam defeitos físicos no feto, como o palato fendido, anencefalia e de feito do sep to
ventricular. Deriva de teratologia, o estudo da freqüência, das ca usas e do desenvolvimento de
malformações co ngênitas. grande número de substâncias e medicamentos que causam esses defeitos,
como a talidomida, e o Agente Laranja, este último diss eminado como arma química na Guerra d o
Vietnã. O vírus da rubéola também é ter atogênico, assim como o uso de álcool e tabaco durante a
gravidez. O termo vem do grego, cujo significado literal é gerar monstro. Cf. MARQUES, Marília
Bernardes. Op. cit., p. 54.
166
Ibid., p. 51.
167
Ibid., p. 55.
83
tentativas ter apêuticas realizadas até o presente. Tal argumento
termina por comprometer o processo de escolha de prioridades para
financiamento público e privado da pesquisa em saúde . No
debate político e jurídico brasileiro, sob a argumentação de que
uma legislação muito restritiva ergue barreiras ao avanço científico
do país, foi defendido o direito de acesso às técnicas de produção
de células-tronco embrionárias. Tratou-se, porém, de mera astúcia
argumentativa que abusou da expressão ‘c lo na gem terapêutica’
para se beneficiar da compreensível emoção que a enorme demanda
por mais e melhores resultado s terapêuticos provoca. Apesar de
legítima, essa defesa foi conduzida de forma indevida por alguns,
como se estivessem ameaçados os direit os de acesso a um recurso
terapêutico miraculoso. O debate ético e jurídico atual focaliza a
legitimidade do emprego de células-tronco embrionárias na
pesquisa, ou seja, como material ou meio d e investigação ou
experimentação e não o aproveita mento de células-tronco
embrionárias em tratamentos eficazes e seguros de pacientes
humanos que, por ora, inexistem.”
A clonagem terapêut ica somente seria terapêutica para aquele embrião que
viesse a nascer e se beneficiasse das células do seu clone. Entretant o, não é isso
que se obse rva . O emb riã o é colocado a serviço de terceiros, portanto, o adjetivo
terapêutico serve como ameniz ad or da consciência social e mola propulsora para
obter a aprovação ética da sociedade.
168
que se considerar, ainda, que a clonagem de embriões para servir de
matéria-prima de pesquisa e de fonte de células-tronco embrionárias, além de
168
Cf. B ART H, Wilmar Luiz. Op. cit., p. 205.
84
reduzir os embriões ao status de simples mercadorias, acarreta riscos à mulher
enquanto fornecedora de óvulos
169
.
Assim, a p ar tir desses fatos e independentemente dos embriões humanos
utilizados em pesquisas científicas serem excede nte s, isto é, provenientes das
técnicas de fertilização in vitro, ou derivados da técnica da clonagem, o que se
quer consigna r nessa oportunidade é que o problema fundamental j urídico e ético
a ser enfrentado com relação à pesquisa científica em células-tronco embrionária s
é sempre o mesmo: a retirada de células-tronco desses embriões, para ulterior
cultivo laboratorial, imp lica na destruição e na conseqüente instrumentalização
desses seres, destarte, o bem jurídic o constitucionalmente tutelado e que vem a
ser violado com e ssa prática é o respeito do direito à vid a presente e futura (arts.
5º, caput, e 225 da CF/88) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da
CF/88) dos seres em formação.
2.4.4 Outras técnicas de
manipulação genética
A engenharia genética possui, ainda, outros conhecimentos e técnicas que
permitem manipular o ser humano nos diferentes estágios de seu
169
Nesse sentido, nos a no s de 2004 e 2005 uma equipe de cientistas da Universidade Nac ional de Seul,
aplicando a mesma técnica utilizada na clonagem da ovelha Dolly, anunciou ter derivado , a partir de
blastocitos humanos, onze novas lin hagens de células-tronco embrionárias. Essas linhagens seriam
dotadas de pluripotência, sendo cópias perfeitas das lulas extraídas de 138 pacientes d oadores e
portadore s de diabetes. Te riam conseguido, por tanto, engendrar embriões humanos clones,
exclusivamente para fins de pesquisa. Ocorre que, no mesmo ano de 2005, o líder da equipe, o
pesquisador Hwang Woo-Su k, admitiu ter mentido. Embora tenha afir mado que os 2 .061 óvulos
empregados em sua pesquisa tivessem sido obtidos graças à doação espontânea de 129 coreanas, o
cientista havia comprado a maior parte deles de p essoas extremamente carentes d e recursos financeiros,
incluindo duas de suas pe squisadoras subordinadas, caracterizando coer ção e de sr espeitando os principais
limites éticos a serem observados nas pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, a saber: obter,
sem impor qualquer constrangimento, o c onsentimento informado para a doação d e ó vulos e o repúdio à
clonagem reprodutiva humana. Cf. MARQUES, Marília Bernardes. Op. cit., p . 36-38.
85
desenvolvimento. Essas técnicas são menos comun s, mas devem restar analisadas
posto que, do ponto de vista científico, são perfeitamente possíveis de serem
realizadas. São elas: a partenogênese, a fecundação interespécies e a ectogê ne se.
A partenogênese é a técnica que possibilita a duplicação de um óvulo sem
a participação de um espermatozóide, dando origem a um ser do sexo feminino,
geneticamente idêntico à doadora do óvulo. O risco premente que advém de tal
prática é a perpetuação da descendência feminina, levando ao perigo do próprio
extermínio da espécie humana, porque impede a diversidade gené tica.
A fecundação interespécies, por sua vez, resvala na possibilid ade de
criação de seres híbridos, com p ar te do patrimônio genético humano e parte de
genoma de anima is, bem como na pro duç ã o de quimeras, fusão d e liber a da de
embriões, um sadio e outro com enfermidade genética, dando origem assim a um
ser dotado de quatro progenitores.
Tais práticas são inadmissíveis jurídica e eticamente por implicarem na
manipulação de c é lulas germinais, z ig oto e embrião hu man o, constituindo
afronta à intangibilidade do patrimônio genético humano e ato contrário à
dignidade da pessoa humana. Essa ina d missibilidade está diretamente
relacionada ao fato de que a mutação constante e natural do DNA impe de que se
garanta o comportamento do gene incor por ado. Incerteza essa que repre se nta
grave ameaça às futuras gerações.
Recorda-se, contudo, que a introdução de material genético humano em
animais pode destinar-se, também, à obtenção de proteínas ou substâncias de
valor terapêutico e a empresa Advanced Cell Technology constitui exemplo
flagrante dessa prática. Fundada em 1994, passo u a atuar forte ment e no ramo da
biotecnologia co m o propósito de desenvolve r técnicas de clonagem em rebanhos
e animais transgênicos usados para pro duzir medicamentos no leite. Sua
86
trajetória tecnológica mescla animais e humanos na s pesquisas com células-
tronco e clonagem, gerando elementos híbridos
170
.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz
171
uma vez mais ensina:
“Permitidas serão também, se feitas com prudência, cuidado e bom
senso, sem caráter espec ula tivo, não a inclusão de genes
humanos no cro mos somo de organismos ani mais, de sde que se
tenha por objetivo a produção de substância essencial para o ser
humano, mas também, havendo fim terapêu tico conducente a
melhorar o estado de sa úd e de um paciente, a manipulação de
células somáticas, por não serem responsáveis pelo processo de
reprodução humana e de transferência do patrimônio genético”.
Quanto à ectogê ne se, essa técnica consiste na gestação integral de um
embrião humano fora do útero materno , que poderá ser artificial ou animal,
prática que se espera ser alcançada em um futuro próximo em decorrência dos
estudos e experimentos realizados em laboratórios de engenharia genética
172
.
170
Cf. MARQUES, Marília Bernard es. Op.cit., p. 46.
171
DINIZ, Ma ria Helena. Op. cit., p. 492 .
172
“No laboratór io de pesquisas obstétricas e ginecológicas da Universidade de Tóquio, uma caixa
transparente de parede dupla de acrílico expõe um retrato impressionante do futuro. Dentro dela, repousa
placidamente o feto de um cab rito em seus últimos dias de gestação. O equipamento é o mais
aconchegante útero artificial criado pela ciê ncia. Nele, o cabritinho consegue vive r mais de três
semanas, um período de gestação equivalente a um mês e meio quando comparado com gravidez humana.
Imerso em líquido amniótico artificial e mantido a temperatura constante, o feto sobrevive graças a um
engenhoso equipamento que faz a troca de dióxido de carbono por oxigênio em seu sangue, simulando o
sistema respiratório existente na placenta natural. O maior obstáculo dos cientistas até agora tem sido
prepar ar o aparelho para d osar a quantidade exata de nutrientes que pr ecisa ser c olocada à disposição do
feto. Quando tudo estiver calibrado, eles vão partir para a ousadia suprema: instalar no útero artificial um
embrião humano. ‘A técnica foi dominada’, anuncia o pesquisador Nobuya Unno [...]. Centros de
pesquisas da Espanha e dos Estados Unidos também estão desenvolvendo seus protótipos de útero
artificial. ‘O que mais impressiona nessa pesquisa é que os cabritos nascem anêmicos, da mesma forma
como Aldous Huxle y previu em Admirável Mundo Novo, 67 anos. Ele descrevia as crianças anêmicas
saindo de úteros artificiais’, conta o pesquisador. É de arrepiar.” Ru mo à fronteira final. Revista Veja, 3
nov.1999.
87
Uma visão panorâmica do cenário tr aç ado a aqui permite inferir que a
liberação da pesquisa científica em células-tronco embrionárias implica em riscos
reais ta nto para os embriões quanto para os pacientes que se submetam às
terapias e, por fim, constitui risco também às gerações futuras.
Para recordar esses riscos, Marília Bernardes Marques
173
destaca:
“Desconhece-se porque esses grupamentos celulares se tornam
capazes de originar , por exemplo, em vinte dias, um coração
pulsante. Da mesma forma, não se sabe por que motivo são tão
instáveis quando extraídas de sse mesmo conjunto orga niz ad o. Com
efeito, células-tronco embrionárias são tão potentes quanto
instáveis. Apr esentam propensão para formar os denominados
teratomas, que são massas tu morais formadas por vários te cidos
(dentes, pele, cabelo e ossos), e para sofrer mutações, que são
aberrações que surgem na composição genética e dão origem a
doenças e deficiências funcionais, além dos problemas de rejeição
por incompatibilidade entre receptor e doador.”
Aqueles que insistem e m desconsiderar essa realidade e anunciam que a
terapia c om células-tronco embrionárias é a resposta para todos os males que
afligem a hu ma nida de , advogam a tese da utilizaçã o de embriões humanos como
fonte de células-tronco e argumentam que se trata apenas e tão somente de um
amontoado de células disformes, que os benefícios terapêuticos futuros que
podem resultar da utilização dessas células justificar ia os danos causados por sua
prática, trata-se, p ois, de um comportamento guiado pela ética utili ta rista
174
, de
acordo com a qual um uso será eticamente aceitável quando o benefício que se
poderá derivar do mesmo compense o prejuízo que a e le se associa.
173
MARQUES, M arília Be rnardes. Op. cit., p.27.
174
Dentre os filósofos expoentes da ética utilitarista destacam-se Jeremy Bentham e John Stuart Mill.
88
Outros, porém, que se posicion am em detrimento dessa tese,
compreendem que a partir da concepção, seja ela in útero o u in vitro, é colocada
em marcha a constituição de um novo ser humano, o embrião, e que sua
instrumentalização implica em flagrante desrespeito do direito à vida e ao
princípio da dignidade humana, trata-se, aqui, da ética da responsabilidade.
Diante desse impasse, o Direito é chamado a balizar tais condutas, a
determinar em que momento a vida humana se inicia, com vistas a delimitar as
práticas científicas que envolvam a utilização de embriões como fonte de células-
tronco embrionárias, a fim de harmonizar a livre expressão da ativida d e científica
(CF, art. 5º , IX), o dir eito à v ida , presente e futura (CF, art. , caput e art. 225) e
a dignidade da pessoa hu mana (CF, art. 1º, III) dos seres em formação.
Assim, como bem assevera Albin Eser
175
“... não se pode tratar aqui de
alimentar uma inocente inimizade frente à tecnologia, e, sim, de assegurar-se dos
possíveis riscos e correspondentes pr ec a uç õe s, antes que deslisemos, sem nos dar
conta, na direção de avan ço s científicos qu e possam ser caracterizados por um
caminho sem retorno.”
175
ESER, Albin. Genética, Gen-ética, Derecho Genético: Reflexiones político-jurídicas sobre la actuació n
en la herencia humana. Revista La Ley, Madri, año VII, n. 1937, 1986, apud MARTÍNEZ, Stella Maris.
Op. cit., p. 32.
89
3. ESTATUTO JURÍDICO DO EMBRIÃO
HUMANO
O vertiginoso progresso alcançado no âmbito da biomedicin a, consoante
restou demonstrado nos capítulos anteriores , permite afirmar que a ciência já
sabe como fabricar a vida humana em lab oratório e muitas são as fontes que
servem de substrato para essa afirmação.
Assim, Cláudio Tognolli
176
destaca:
“As empresas norte-americanas Creative Biomolecules, Orquest,
Sulzer, Genetics Institut, Regeneron e Osíris Therapeutics detêm
técnicas de alterações nos ossos. As companhia s Organogenesis e
Lifecell tra ba lham com pele. Biomatrix, Regen e Integra lidam com
alterações biogenéticas de cartilagens. Guilford, Cytotherapeutics e
Acorda alteram geneticamente os nervos da espinha.”
Essas e outras empresa s do setor de bio tecnologia pavimentam suas
atividades a partir da utilização de células-tronco embrionárias como matéria-
prima de pesquisas bio mé d ica s e, frente aos argumentos jurídicos e éticos de que
a utilização de embriões excedentários ou mes mo a produção de embriões, por
meio da clona gem para derivação de células-tronco, acarreta a destruição desses,
conduz à re ificação do ser humano e viola o direito fundamental à vida, contra-
argumentam informan d o que, no estágio em que ocorre a extração das células,
176
TOGNOLLI, Cláudio. A Falácia Genética: a ideologia do DNA na imprensa. São Paulo: Escrituras,
2003 , p. 45.
90
não que se falar em embrião, e sim em um amontoado disf o rme de células
177
,
porquanto, se não q ue se falar em vida humana, em ser humano, tampouco em
direito à vida ou em respeito ao princípio da dignidade humana.
A primeira consideração que cabe aqui registrar é a realizada por Maria
Böhmer
178
, segu ndo a qual “as idéias de desvincular do embrião humano o
direito integral à vida e à dignida de humana, assim como de qualquer momento
posterior ao início da vida humana, diferente do da fecundação, são
desenvolvidas em espaços não isentos de interesses.”
Assim, se, como ficou sublinh ad o anteriormente, o uso terapêutico de
células-tronco embrionárias humanas oferece riscos importantes aos pacientes,
posto que acarreta a formação de tumores e, se as células-tronco adultas têm se
revelado uma alternativa mais segura, mais eficaz e menos polêmica no
tratamento de inúmeras enfermidades, inevitável que surgisse o questionamento
no sentido de saber a quem de fato poderiam interessar as pesquisas em células-
tronco embrionárias humanas.
179
177
Cf. SCHOCKENHOFF, Eberhard. Quem é um embrião? In: Bioética. Rio de Janeiro: Cadernos
Adenauer, III, n. 1, 2002, p . 37 .
178
BÖHMER, Maria. Pesquisa com células-tronco humanas com responsabilidade política. In: Bioética..
Rio de Janeiro. Cadernos Adenauer, III, n. 1, 2002, p. 71.
179
“Com efeito, o pleno uso bem sucedido de células-tronco adultas em numerosos procedimentos
terapêuticos não evita o problema ético da destruição de embriões como apresenta duas vantagens
opcionais: a) como as células podem ser isoladas dos próprios pacientes que estão requerendo o
tratamento, se evitaria o problema da rejeição imunológica, a q ual pode dificultar o uso das lulas-tronco
embrionárias; b ) poderia implicar numa redução do risco de formação de tumores, que ocorre com
freqüência [...] até o presente, o score registrado no embate células-tronco adultas versus células-tronco
embrionárias em termos de benefícios já obtidos em pacientes humanos é totalmente favorável às
primeiras, contabilizando mais de 64 condições médicas”. MARQUES, M arília Be rnardes. Op. cit., p. 24.
91
Introduzindo a questão
A forte presença do setor privad o em áreas que deveriam ser,
essencialmente, subvencionadas pelo setor público, entre elas a saúde, tem sido
um traço caracterís tic o das sociedades capitalistas. Assim, a falta de investimento
de r ec ur sos públicos nesse âmbito acabou conduzindo a uma lenta e gradual
privatização desses serviços.
180
Desse modo, 90% das n ova s descobertas ligadas ao setor farmacêutico são
atualmente da responsabilidade de empresas, clínicas e laboratóri o s privados.
Cabe lembrar aqui a observação feita por Lucien Sève
181
de acordo com a qual
“... alguém viu a biotecn olog ia moderna desenvolver-se e expandir-se sem
investimentos e alguém fazer investimentos sem esperança de rentabilidade ...?”
Sem dúvida, é admissível que todo aquele que trabalhe neste setor busque
lucro sobre os investimentos feitos. No entanto, o problema é que na maioria da s
180
No que concerne especialmente às pesquisas em células-tronco embrionárias humanas, muitos
governos, como os dos Estados Unidos e da Ale manha, por não quererem se envolver nas polêmicas
questões que essas pesquisas motivam, optar am por não financiá-las com f undos públicos. Não obstante,
temerosos por terminarem sendo condenados ao subdesenvolvimento tecnológico e científico,
necessitando, no futuro, importar essa tecnologia patenteada de pa íses como a China, a Índia, o Japão e
Israel, que não assumem a mesma posição, acabam permitindo que empresas do setor privado realizem
esses experimentos. Assim, o presidente G.W. Bush fez um pronunciamento em rede aos norte-
americanos, na noite do dia 09 de agosto de 2001, informando que somente ser iam financiadas com
recursos públicos as pesquisas nas linhas de células-tronco já existentes, aproximadamente, sessenta.
Estabelecendo, ainda, algumas condições para sua ut ilização: que tenham sido obtidas a partir de
embriões excedentes pro duzidos para fins reprodutivos e que os doadores dos embriões tenham
manifestado seu consentimento para essa utilização. A utilização de fundos públicos foi proibida para as
pesquisas que destroem os embriões, tanto os existentes ou produzidos especificamente para a pe squisa
ou obtidos atr avés da clonagem. na Alemanha, a lei ap rovada no final do mês de janeiro de 2002 proíbe
toda e qualquer pesquisa com embriões humanos, assim como sua utilização e produção interna de
embriões para derivar células-tronco, mas permite sua importação, reforçando a instalação de um
mercado internacional de células-tronco. Cf. BARTH, Wilmar Luiz, Op. cit., p. 250. Acerca do mercado
internacional de células-tronco, é d e se destacar, ainda, notícia re centemente veiculada no periódico
Correio da Manhã, segundo a qual “Na Ucrânia, bebês recém-nascid os saudáveis terão sido mortos pa ra,
presumivelmente, abastecer o florescente comércio internacional de células estaminais”. 13.12.2006, p.
18.
181
SÈVE, Lucien. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: I nstit uto Piaget, 1994, p. 306.
92
vezes se cria um conflito entre os interesses ec on ômicos e os interes se s humanos,
haja vista que na intenção de obter lucros econômicos cada vez mais elevados, o
respeito à vida e à dignidade passam a segundo plano.
Giovanni Berlinguer
182
afirmou, com muita propriedade, que o mer cado
econômico é “ausente nas questões bioéticas” e Jean Bernard
183
, no mesmo tom,
advertiu que “a ética não tem pior adversário que o dinheiro”. Ambos os autores
referiam-se ao estabelecimento das ciências médicas como ciências-busine ss, que
se dedicam a alcançar resultados que são relevantes em termos de cifras
econômicas e não tanto em termos de saúde.
Destarte, em consonância com essas observações, o comércio de embriões
e, particularmente, o de células-tronco, é uma realidade. As empresas do set or
não produzem altruisticamente linhas d e células-tronco para doá-las para
pesquisas ou para fins terapêuticos. Tudo é vendido.
184
Outro importante aspecto a ser destacado no que tan ge à prevalência dos
interesses econômicos frente aos interesses terapêuticos no que diz respeito às
182
BERLINGUER, Giovanni. Corpo humano: mercadoria ou valor? Revista de Estudos Avançados
USP, v.7, n. 19, dez. 1993, p. 167-192.
183
BERNARD, Jean. Da biologia à ética. Campinas: Editorial PSY, 1994, p. 247.
184
“Os glóbulos brancos chamados por causa de seus prolongamentos de glóbulos brancos cabeludos,
que d efinem uma variedade de leucemia, m a propriedade, através da cultura de células, de fabricar
substâncias úteis em terapêutica, como o interferon. Um dos tratamentos dessa leucemia é a ablação do
baço. J ames, um americano vítima dessa leucemia, foi ope rado. Seu ba ço foi re tirado. Os glób ulos
brancos do baço, postos em cultura de tecidos, produzem o interferon, fatores de crescimento. O
laboratório universitário que obteve essa cultura a transmitiu, como se faz de forma habitual, para outro
laboratório universitário que, menos escrupuloso, a vendeu para uma empresa farmacêutica, a qual
começou a organizar seu comércio”. BERNARD, Jean. A bioética. São Paulo: Ática, 1998, p. 77. Em
sentido similar, a revista Science, no mês de setembro de 2002 anunciou a criação do primeiro Banco de
células-tronco da Inglaterra, no qual se estima ser possível reunir 4.000 linhas de lulas. O projeto está
avaliado em mais de 4 milhões de lares. O mesmo periódico, na edição de outubro d o ano citado,
publicou outra reportagem que se re fere a U$ 8,1 milhões de dólares distribuídos a várias empresas da
Suécia, especialmente por o rganizações norte-americanas, p ara que essas possam realizar suas pesquisas.
Essas empre sas contratam os melhores cientistas e pagam os melhores salários para que realizem
pesquisas visando ao desenvolvimento de produtos e de procedimentos de aplicação em medicina, depois,
patenteiam esses c onhecime ntos e os vendem às empresas tipo start-up, que são empresas menores
interessadas em ala rgar o rol de produtos oferecidos. A partir daí, assi ste-se à criação de indústrias cuja
matéria-prima c onsiste na utilização de embriões, fetos e tecido s humanos, com ISO 9002, isto é, de
excelente qualidade, tipo exportação. Cf. BARTH, Wilmar Luiz. Op. cit., p. 247
93
pesquisas em células-tronco é que, não raras vezes, cientistas reconhecidos
mundialmente ultra passam limites éticos e legais e m virtude da concorrência
para se ob ter o pa te nteamento de produtos e de técnicas, anuncian do descobertas
ainda não realizadas, feitos ainda não concretiza dos , remédios e tratamentos de
eficácia ainda nã o comprovada, o que demonstra, in equivocamente, que nesse
setor, assim como e m qualquer outro em que o interesse finance ir o dite as regras,
vale a máxima segundo a qual tempo é dinheiro
185
.
Nesse sentido Wilmar Luiz Barth
186
informa como se dese nvo lve a gica
do empreendedorismo biomédico:
“... não se p ode esperar ta nto tempo para testar remédios, seus
efeitos colaterais ou a sua ef iciê nc ia e muito men os para apostar em
alternativas. Para que gastar tempo e dinheiro com células-tronco
de organismos adultos ou de cordão umbilical, se os embriões estão
à disposição e são, aparentemente, de melhor qualidade?
Diante dessa mentalidade, vale re co rda r as palavras de François Ost
187
,
para quem:
“À sua maneira, o gê nio ge né tico confirma esta lição: a própria
vida e o homem também pode ser recriada em la bor a tório. A
esta ilimitação tecnológica junta-se, hoje, a ilimitação por parte do
mercado, que se baseia na forç a do desejo, e o extraordinário efeito
de dessimboliza ç ão que produz a troca monetária. Contraria m en te à
185
“Em 2001, Robert Lanza e José Cibelli, híbridos de empresário e pesquisador da ACT, de estilo
bombástico, anunciaram na revista Scientific American terem obtido a clonagem humana. Esse feito
produzir embriões humanos por clonagem foi, porém, duramente questionado porque o s embriões não
resistiram o suficiente para permitir a ex tração d e células-tronco. Coincidência ou não, Cib elli, hoje na
Universidade de Michigam, é também co-autor do fraudu lento artigo do sul -co reano H wang, de 2004.”
MARQUES, Marília Be rnardes. Op. cit., p. 46.
186
BARTH, Wilmar Luiz. Op. cit.., p. 252.
187
OST, François. Op. cit., p. 101.
94
natureza que está à marge m do comércio, o artifício avalia-se em
dinheiro e vende-se num mercado. É contra esta aliança moderna
do artifício e do mercado nova forma da contemporânea que o
direito é cha ma do a estabelecer limites, em nome dos símbolos que
conferem um sentido à nossa existência.”
3.1 O Direito e o início da
vida humana
O Direit o , como mecanismo regulador de condutas, e por encontrar-se
indissoluvelmente atrelado às tra nsformações que experimenta m os diferentes
comportamentos h umanos, transformações essas que podem ter como origem
significativas modificações da ide olo gia dominante em uma determinada
sociedade, ou, como no caso em questão, espetaculares avanços científicos, que
ameaçam conceitos que se revestiam, até bem pouco tempo, d a qualidade de
certezas incontestes
188
, não pode se furtar a atender o chamado de sua vocação
genuína, qual seja, assegurar o pleno desenvolvimento da vida humana.
Para tanto deverá, auxiliado p o r outras áreas do conhecimento
189
, tais
como a biologia e a medicina, determinar em que momento a vida humana tem
188
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., p. 20-21.
189
“Todas as Constituições, pela própria natureza do objecto, rodeiam seus conceitos de co nceitos
exógenos, vindos de outros setore s e ramos do Direito ou extrajurídicos, seja m políticos, económicos,
filosóficos, etc. e com estes entra largamente a realidade constitucional a agir. Sem embargo, todos esses
elementos e conceitos, desde que apreendidos em disposições constitucionais, devem ser interpr etados em
conexão com o s demais, situados no mesmo plano e, assim, analisados não tanto no seu sentido o riginário
quanto no sentido que lhes advém da sua colo cação sistemática.” MIRANDA, Jo rge. Manual de direito
constitucional. ed. Coimbra: Coimbra Ed., t. II, 1996, p. 230; BASTOS, Celso. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 63.
95
seu início. Não obstan te , a esse respe ito, importa não olvidar o ensinamento de
José Afonso da Silva:
190
“Não intentaremos da r uma def in içã o disto que se chama vida,
porque é aqui que se corre o grave risco de in gre ssa r no campo da
metafísica supra-real, que não nos levará a nada. Mas alguma
palavra de ser dita sobre esse ser que é objeto de direito
fundamental. Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput), não será
considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-
atividade funcional, peculiar à matéria o r gâ nic a, mas na sua
acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é
algo de d ifícil compreensão, porque é algo dinâmico, que se
transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É
mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção
(ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua
identidade, a que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida
para ser morte . Tudo que interfere em prejuízo deste fluir
espontâneo e incessante contraria a vida.”
Há, portanto, um c onceito claro a respeito da vida que deve ser observado
pela biomedicina, quando do exercício da atividade científica em geral, e da
experimentação envolvendo a vida humana em particular, esse limite está,
inexoravelmente, relacionado ao status que se pretende conferir ao embrião.
Assim, diante da necessidad e de se estabelecer um marco a par tir do qual
se garantisse respeito efetivo ao embrião humano, foram elaboradas diferentes
teorias acerca do início da vida humana. Essas teorias foram produzi da s sempre
com base nas diversas etapas do desenvolvimento embrionário e com a fina lidad e
190
SILVA, José Afonso d a. Curso de direito constitucional positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999,
p. 200.
96
de servirem de orientação na i mplementação, por parte dos Estados, de normas
que determinassem o estatuto jur ídic o do embrião hu man o, e, por via de
conseqüência, foram também formuladas com o propósito de nortear o
implemento de políticas públicas relacionadas às pesquisas em células-tronco
embrionárias humanas.
3.2 Teorias acerca do início vital
do ser humano
São três as teorias que se f or maram a fim de determinar o início do
processo vital humano: a teoria concepcionista, que na concepção a origem de
todo ser humano e o ter mo inicial do necessário amparo; a teoria genético-
desenvolvimentista, que pretende analisar diferentemente a proteção, conforme as
fases de desenvolvimento do novo ser que s e forma; e a teoria que considera o
embrião uma pessoa humana potencial, que se apresenta com autonomia tal a lhe
impor um estatuto próprio.
191
Todas e las partem de um determinado estágio d ura nte o processo de
desenvolvimento embrionário. Assim, em que pese serem esse s estágios noções
mais próximas da seara médica, eles serão, resumidamente, apontados adiante,
posto que tendam a fundamentar as discussões sobre a individualidade e a
proteção jurídica do embrião.
191
Alguns autores referem-se a essas teorias empregando outra denominação. Mantovani, por exemplo,
emprega as expressões tese do momento da fecundação e tese das fases sucessivas, respectivamente.
Segundo o autor, par a a primeira tese, personalista, o ser humano te m início no momento da fecundação
do óvulo com o gameta masculino. A tese se funda na “racionalidade biológica”, posto que, com a fusão,
tem i nício uma nova e autônoma individualidade humana. para a tese das fases suces sivas, utilitarista,
o início do ser humano se pospõe convencionalmente Cf. MANTOV ANI, Fernando. Uso de gametas,
embriões e fetos na pesquisa genética sobre cosméticos e produtos industriais. In: ROMEO CASABONA,
Carlos María (Org.). Biotecnologia, direito e bioética. Belo Horizonte: Del Rey, PUC Minas, 2002, p.
187-88.
97
De acordo com Santos Cifuentes
192
as etapas do desenvolvimento
embrionário h umano são as seguintes: a) fusã o do ovócito com o
espermatozóide, criando uma célula diplóide, do tad a da capacidade de
subdividir-se reiter a damente; b) início da subdivisão celular (2-4 em 30 horas, 8
em 60 horas); c) aparecimento da mórula e de pois da blástula; d) nidaçã o ou
fixação por meio de enzimas e diminutos prolongamentos te nta culares no útero;
d) atividade contráctil (15 a 25 dias); e) começo do sistema nervoso (30 dias); g)
córtex cerebral (ao s três meses).
3.2.1 Teoria concepcionista
A teoria concepcionista, considerando a primeira etapa do
desenvolvimento embrionário humano, ent en de que o embrião possui um
estatuto moral equivalente ao de um ser humano adulto, o que equivale afirmar
que a v ida humana inicia-se, para os concepcionistas, com a fertilizaçã o do
ovócito secundá rio pelo espermatozóide. A p ar tir desse evento, o embrião
possui a condição plena de pessoa, compreendendo, essa condição, a
complexidade de valores inerentes ao ente em desenvolvimento
.
Amparada pela embriologia,
193
conhecimento cien tífico que se dedica às
características genéticas, histológicas e biofísicas do período embrionário, a
teoria concepcionista advoga a tese de que, a p ar tir da fusão das d ua s células
germinativas, provenientes de organismos difer e nte s, deve ser aceita a existência
de um novo ser, sobretudo, por ser ele dotado de um sistema único e
192
Cf. CIFUENTE S, Santos. El embrión humano: principio de existência de la persona, p. 12, apud
BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. In: ROMEO CASA BONA, Carlos
María; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Orgs.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 262 .
193
Cf. MARQUES, Marília Bernard es. Op. cit., p. 69.
98
completamente distinto daqueles que lhe deram origem. A primeira célula desse
novo ser recebe o nome de zigoto.
O zigoto, embrião humano unicelula r , possui uma identidade genética
individual, perfeitamente distinguível dos demais. Assim, cada embrião humano,
desde o momento da concepção, é geneticamente homem ou mulher e
contém todas as características pessoais de um ser humano adulto, tal como
grupo sa ngüíneo, cor da pele, olhos etc., exceção feita no caso de gê meo s
idênticos e de clones hipotéticos. O embrião é, pois, único e irrepetível.
A contar da fusão das células germinais, masculina e feminina, a
continuidade da identidade genética é mantida por toda a vida de um indivíduo, o
que garante essa identidad e contínua é o genoma. O zigoto, a pri meira célula da
duração de uma vid a humana, possui o mesmo genoma que uma pessoa terá no
decorrer de toda sua vida, da concepção à morte.
Desse modo, o ciclo vital humano tem seu início com a fertilização do
óvulo pelo espermatozóide, em seguida, por meio de um processo autônomo,
forma-se o zigoto, este evolui naturalmente transformando-se em mórula, esta,
em blastocito, e assim sucessivamente, toda essa transformação é auto-
impulsionada e auto-governada pelo próprio embrião.
A co nsta taç ã o dessa realidade levou Jérôme Lejeune
194
, professor de
genética fundame nta l, pesquisado r mundialme nte reconhecido por seus estudos
em genética humana e cientista responsável pela descober ta da causa da
Síndrome de Down, a assinalar:
194
LEJEUNE, Jérôme apud VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in
vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006, p. 37.
99
“Não quero repetir o óbvio, mas na verdade, a vida começa na
fecundação. Quando os 23 c romossomos masculinos se encontra m
com os 23 cromossomos femininos, todos os dados genéticos que
definem um novo ser humano est ã o presentes. A fecundaçã o é o
marco da vida”.
No mesmo norte, a geneticista Elaine S. Azevedo
195
assevera:
“É biologicamente ine xiste nte e tecnicamente impossível
promover-se a geração de um ser huma no a partir de outro
momento qualquer do de se nvo lvimento embrionário. O ponto
inicial é a formação do zigoto; é o estágio unicelular. Por mais
tecnicamente arrojadas que sejam as técnicas de fertilização in
vitro, todas elas partem da fertilizaç ão , conforme o próprio no m e
indica. Essas evidências levam à conclusão de que a re produção
humana ou in vitro não oferece começos alternativos, toda e la se
inicia com uma única célula. Conseqüentemente, o zigoto é vida
humana em início.”
Importante frisar que, apesar de a maioria dos estudiosos tratar e m de
forma análoga os termos fertilização e concepção, e que embora estejam eles
intimamente ligados, esses conceitos exprimem re alidades distintas e
representam estágios sucessivos no processo de geração de um ser humano.
Com efeito, a fertilização ocorre no exato momento em que o
espermatozóide consegue atr a ves sar a zona pelúcida do óvulo. Após essa
195
AZEVEDO, Elaine S. Aborto. In: GARRAFA, Volnei; COSTA, Sérgio Ibiapina (Orgs.). A bioética no
século XXI. Brasília: UnB. 200 0, p. 89.
100
travessia, ocorre um lapso temporal de aproximadamente 12 horas, necessário
para que se consubstancie a concepção.
196
Assim, com base nesse la pso temporal de 1 2 horas, decorrem, da teoria
concepcionista, duas outras teorias: a teoria da singamia e a teoria da
cariogamia.
Teoria da singamia
A teoria da singamia relaciona o início da vida ao instante em que ocorre a
penetração do espermatozóide no óvulo, isto é, no momento preciso da
fertilização, antes mesmo da concepção.
Os a de ptos dessa corren te defendem que, com a fertilização, inúmera s
reações químicas são desen ca de adas e o “processo de individualização e
personalização”
197
de um novo ser humano é posto em andame nto, sendo
irrelevante a não ocorrência, ainda, da fusão dos pronúcleos d as células
germinativas e, conseqüentemente, a formação do zigoto.
196
Durante esse período, a membra nas plasmáticas do ovo, antigo óvulo que após a fertilização passa a
se chamar ovo, e do espermatozóide se fundem. No interior do ovo, o dote genético materno começa a se
organizar, etapa de no minada pronúcleo. O mesmo ocorre com o dote genético paterno constante da
cabeça do espermatozóide que, após soltar-se do seu colo e calda, esses últimos d egeneram-se no
citoplasma do ovo, migra para o centro do ovo e, igualmente, organiza-se em pronúcleo, ali, os
pronúcleos do gameta masculino e feminino perderão suas membranas e se fundirão. A ntes dessa fusão,
quando ainda em pronúcleo, possue m um complemento haplóide ou n (23 cromossomos), após a fusão
possuirão u m complemento diplóide ou 2n (46 cromossomos) engendrando o zigoto. Somente após o
decurso desse período e da efetiva junção dos pronúcleos é que se pode falar em concep ção, em uma vida
geneticamente distinta da do s genitores Cf. SILVA, Reinaldo P ereira e. Bioética e biodireito: as
implicações de um retorno. In: Acta Bioethica. Revista Publicada pelo Programa Regional de Bioética da
Organização Panamericana de Saúde/o rganização Mundial de Saúde (OPS/OMS), Santiago, ano VIII, n.
2, 2002, p. 199.
197
Cf. ANDORNO, Roberto. El derecho argentino ante los riesgos de coisificación de la per sona em la
fecundación in vitro. In: ANDORNO, Roberto (Org.). El derecho frente a la procriación artificial.
Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo de Palma, 1997, p. 62.
101
Teoria da cariogamia
A teoria da cariogamia, por sua vez, relaciona o início da vida ao
momento da concepção, ou seja, ao momento em que ocorre a fusão dos
pronúcleos dos gametas masculino e feminino, os pa r tidár ios dessa corrente
sustentam que, após essa fusão, ocorrerá a formação de um novo ser, dotado
de uma identidade genética individualizada.
Fundamentam essa posição em quatro a r gumentos cientificame n te
comprovados, de acordo com os q uais: somente com a junção dos pronúcleos
inicia-se uma nova célula, constituída de uma estrutura única, diferente de
qualquer outra e xistente; essa nova célula desenvolve-se de forma autônoma,
gradual e coordenada por informações contidas no seu próprio código genético; a
força que impulsiona essa célula é intrínseca e contínua; de sorte que o zigoto,
resultado desse proce sso precedente, representa o primeiro estágio de um ser
humano original no limiar de seu ciclo vital.
198
Desses argumentos é possível derivar três propriedades f un damentais: a
identidade especificame nte humana d o concepto o riginado, haja vista que
decorre da fusão de duas células germinais hu manas; a individualidade do
concepto, visto que seu código genético o diferencia de todos os demais seres
humanos ex istentes e, por derradeiro, a doação de um programa genético que
198
Cf. SERRA, Angelo. Per um’analisi integrada dello “status” dell’e mbrione umano. Alcuni dati della
genetica e dell’embriologia. In: B IOLO, Salvino (Org.). Nascita e morte dell’uomo. Problemi filosofici e
scientifici della bioetica. Genova: Marietti, 1993, p. 58; SERRA, Ângelo. Chi o che cosa è l’embrione
umano? I dati della scienza. In: SGRECCIA, Elio ; PIETRO, Maria Luiza di (Orgs.). Bioetica ed
educazione. Milano: Editrice de la Scuola, 1997, p. 129, apud SILVA, Reinaldo Pereira e. Introdução ao
biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo: LTr, 2002,
p. 87.
102
garante ao concepto a plena capacidade para o desenvolvimen to de sua
humanidade.
199
Mesmo diante dessas constatações, continua havendo, por parte de alguns
respeitados estudiosos, o não reconhecimento da natureza humana do embrião
desde a fertilização. Nesse sentido, a posição adotada por Drauzio Varella
200
, que
refere:
“A vida se iniciaria com a formação do zigoto ou mesmo antes, mas
a condição humana começaria a ser esbo ç ad a ao surgirem os
primeiros esp asmos da atividade cerebral, pela décima segunda
semana de gestação, fase em que o embrião pesa menos que 15
gramas. Antes disso, seríamos apenas um grupamento de células
não muito diferente dos embriões de aves ou sapos.”
Em sentido oposto, pertinentemente, ensina Jérôme Lejeune:
201
“Se logo no início, justamente depois da concepção, dias antes da
implantação, retirássemos u ma célula do pequeno ser individual,
ainda com aspecto de amora poderíamos cult ivá -la e examinar os
seus cromossomos. E se um estudante, olhando-a ao microscópio
não pudesse reconhecer o número, a forma e o padrão das bandas
desses cromossomos, e não pudesse dizer, sem vacilações, se
procede de um chipan ou de um s er hum a no, seria reprovado.
Aceitar o fato de que depois da fertilização, um novo ser humano
começou a existir não é uma questão de gosto ou de opinião. A
natureza humana do ser humano desde a sua concepção até sua
199
Cf. SILV A, Reinaldo Pereira e. Bioética e biodireito: as implicações de um retorno. In: Acta Bioethica.
Revista Publicada pelo Programa Regional da Bioética Pa namericana de Saúde/ Organização Mundial de
Saúde (OPS/OMS), Santiago, ano VIII, n. 2, 2002, p. 1 99.
200
VARELLA, Drauzio. Ilustra da. Folha de São Paulo, 25 jan. 200 3, p. E12.
201
LEJEUNE, Jérôme apud VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p. 37-38.
103
velhice não é uma disputa metafísica. É uma simples evidência
experimental.”
3.2.2 Teorias genético-
desenvolvimentistas
A teoria genético-desenvolvimentista relaciona o inicio d a vida humana à
eleição das fases que vão se impondo no decorrer do desenvolvimento
embrionário. Para os partidários dessa corrente, o embrião humano adquire status
jurídico e moral gradualmente, à medida que seu desenvolvimento avança no
tempo.
Desse modo, tomando-se como ponto de partida os difere nte s estágios
constantes do processo evolutivo embrionário, decorrem da teoria genético-
desenvolvimentista as mais diversas teorias acerca do início da vida humana,
dentre as quais destacam-se: a teoria da nidação do ovo, a teoria da formação
dos rudimentos do sistema nervoso central e a teoria do pré-embrião.
202
Teoria da nidação
A nidação consiste na fixação do o vo no útero da mulher. Para essa teoria,
somente apó s a ocorrência desse fato é que se origina uma nova vida humana.
202
Martínez registra, ainda , a teoria da gastrulação “... que reivindica o nome de embrião para a entidade
biológica gerada no final desse período, no décimo oitavo dia, considerando que esta e não o zigoto é
a ‘peça de construção’ do futuro organismo”. MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., p. 88; ainda aqueles
que consideram necessár io o a parecimento da plana neural, no 18º dia e, por último, o s que adotam a
‘teoria da viabilidade’, segundo a qual a natureza humana do concebido é outorgada somente àqueles que
alcancem maturidad e suficiente p ara viver fora do útero Cf. ME IRELLES, J ussara Maria Leal de. Op.
cit., p. 126-130.
104
Aqueles que se filiam a essa corrente defendem que sem fixar-se no útero
materno o em briã o não teria condiçõe s de se desenvolver. Todavia, em maio de
1983, a imprensa divulgou o nascimento, com êxito , de uma menina oriunda de
uma gestação abdominal.
Ademais, Jussara Maria Leal de Meirelles
203
pondera:
“... ao se subordinar a a qu isiçã o de direitos pelo embrião pré-
implantatório à condiçã o represe nta da pela sua transferência a o
útero seguida da nida ção, seja s ob o caráter suspensivo, seja pe lo
resolutivo, estar-se-ia reduzindo a referida titularidade à vontade de
outrem.”
No mesmo sentido, Cristiane Beuren Vasconcelos
204
adverte:
“Uma vez elucidadas as fases biológicas da fertilização humana,
sendo perfeitamente visível do ponto de vista da ontologia
humana o começo da vida, submeter o embrião humano a
condições ou pré-requisitos exteriores a ele próprio para outorga e
amparo jurídico de sua personalidade é incoerente na medida em
que o coisifica, torna-o objeto de direito.”
Importante ressaltar aqui que a teoria da nidação pode ser útil como
critério para se determinar o diagnóstico de gravidez, conqu an to ressalte-se que,
conforme a Sociedade A le de Ginecologia, a gravidez é identificada com a
nidação. Cont udo , é totalmente equivoca da a tentativa de rela c ioná-la ao início
de uma nova vida humana, posto que a questão do diagnóstico pertence ao plano
203
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Os embriões humanos mantidos e m laboratórios e a p roteção da
pessoa: o novo código civil brasileiro e o texto constitucional. In: BARBOZA, Heloisa He lena;
MEIRELLES, Jussara M aria Leal de; BARRETO, Vicente d e Paulo (Orgs.). Novos temas de bioética e
biodireito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 88.
204
VACONCE LOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p. 45.
105
gnoseológico, enquanto o início de uma nova vida, a existência de um s er , insere-
se no plano ontológico. O ser que se desenvolve desde a concepção não existe ou
deixa de existir somente pelo fato de ser, ou não, possível o seu conhe c imento.
205
Teoria da formaç ã o dos
rudimentos do sistema nervoso
A teoria dos rudiment o s do sistema nervoso central relac iona o início da
vida humana ao aparecimento dos primeiros sinais de formação do córtex central,
que ocorre entre o décimo quinto dia e a qu ad ra gé simo dia da evolução
embrionária.
A atividade elétrica do cérebro co meça a ser registrada a partir da oitava
semana de desenvolvimento embrionário. O conhecimento desse fato levou os
simpatizantes da teoria da formação do sistema nervoso central a sustentar que
somente após a verificação da emissão de impulsos elétricos cerebrais é que se
pode afirmar que se iniciou uma vida especificamente humana.
O principal defensor dessa teoria é o renomado biólogo Jaques Monod,
que entende que, por ser o homem um ser f und amentalmente consciente , não é
possível admiti-lo como tal antes do quarto mês de gestação, momento em que se
verifica, eletroencefalograficamente, a atividade do sistema ner v oso centr al
diretamente relacionado à possibilidade de possuir consciência.
206
205
Cf. MERI RELLES, Jussara Maria Leal de. Op. cit., p. 118.
206
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., 87.
106
A inconsistência dessa teoria é enunci a da por Stella Ma r is Martínez,
207
segundo a qual:
“Do ponto de vista jurídico, e sta teoria é particularmente atraente a
partir do momento em que numerosas legisla ç õe s estabeleceram
que o fim da vida humana é dado pelo falta de atividade elétrica do
cérebro. No entanto, encontramo-nos frente a situações
conceitualmente diversas, que não é comparável o caso da morte
cerebral, onde se detecta uma suspensão irreversível da função,
com o do embrião, onde essa emissão elétrica é a culminaçã o de um
processo de formação do sistema nervoso central, desenvolvimento
inequivocamente iniciado com o aparecimento do sulco neural.
Teoria do pré-embrião
A teoria do pré-embrião, de ntr e as te oria s genético-dese nvolvimentistas, é
a que mais exerceu influência no cenário legislativo mundial. Surgiu como
resultado de um parecer para assun tos de reprodução assistida, formulado no ano
de 1984, na Inglaterra, sob a epígrafe de Relatório Warnock
208
.
A comissão que elaborou o relatório entendeu que até o 14º dia após a
concepção o que existe não é um ser humano, mas sim uma célula progenitora
dotada de capacidade de gerar um ou mais indivídu os da mesma espécie,
pronunciando-se, assim, favoravelmente à experi me ntaç ã o c ientífica em
embriões humanos até essa data. Conseqüência natural desse entendimento foi a
207
Ibid., p 87.
208
Para aprofundar a análise do Informe Warnock vide SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Imaculada
Concepção: nascendo in vitro e morrendo in machina. São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 128-9.
107
aprovação das pe squ isas com embriões humanos durante os pri me iros quatorze
dias após a concepção.
Dentre os vários argumentos apontados no relatório que justificam o
critério do 14º dia estão: a impossibilidade de detecção (por cisão gemelar) de
gêmeos monozigóticos até o 14º dia; a perda a partir dessa etapa da qualidade de
totipotência das células que constituem o embrião e o aparecimento, após o 14º
dia, da linha primitiva, que organiza a estrutura do corpo embrionário, após a
qual a possibilidade de ocorrência de gêmeos é nula.
Faz-se, pois, necessário demonstrar a fragilidade do s argu me ntos
sustentados pela teoria.
Em primeiro lugar, a respeito da possibilidade de ocorrência de c isã o
gemelar, informa-se que a origem do gêmeo monozigótico o aniquila a
unidade orgânica ori gina l do primeiro ser. Para a f or mação do gêmeo
monozigótico tem-se sempre um pri meiro ente do qual se origina um segundo,
“não existe prova científ ic a de que a divisão do zigoto dissolva a unidade
orgânica original.”
209
, assim, a pe na s porque existem duas ou mais
individualidades, não significa que não tenha havido individualidade anterior,
além de não se poder olvidar que existe ali pelo menos uma vida humana de
fato.
O segundo arg umento, de que a partir do 14º dia é que ocorr e a perda da
qualidade de totipotência, não merece melhor sorte que o primeiro, posto que,
como demonstrado alhures pela teoria da c a rio gamia, as células contêm em
si, a contar da conc ep ção, toda informação necessária para especializar-se em um
209
SILVA, Reinaldo Pereira e. Introdução ao biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto
da concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 202.
108
organismo completo, sendo essa especialização somente uma questão meramente
temporária.
Por derradeiro, o argume nto de que após o aparecimento da linha
primitiva iniciar-se-ia o ser humano, justamente pelo início da formação do seu
corpo também não deve prevalecer, haja vista que o desenvolvimento
embrionário é, essencialmente, um processo de constante evolução, onde suas
fases se entrelaçam numa inter-relação complexa de estrutura e de função. O
surgimento da linha primitiva é apresentado, pelos adeptos da teoria do pré-
embrião, com uma lógica pura mente analítica, desfoca da do compr omisso de sua
totalidade e ignorando a divisã o biológica natural e gradual, intrínseca ao
processo de desenvolvimento da espécie humana.
210
Por todas essas razões, Reinaldo Pereira e Silva
211
considera a
terminologia pré-embrião, cunh ad a pe la co missã o ingle sa, uma f a lác ia a
mascarar o real sentido ideológico, qual seja , o de ga rantir a experimentação
científica com seres humanos vivos.
Nesse mesmo sentido também é o entendimento de Marília Bernardes
Marques
212
:
“Com efeito, enquanto muitos consideram que o resultado imediato
da fecun da çã o é um e mb riã o, outros tratam d e introduzir critérios
artificiais, alegando que a mórula e o blastocito são meros
conjuntos de células. Esses critérios permitem q ue a par tir de um
momento escolhido arbitr ar iamente se poderia falar em embrião.
Foi desse modo que no Reino Unido, uma importante autoridade
constituída para assuntos de reprodução assistida (Comissão
210
Ibid., p. 203 .
211
Ibid., p. 89.
212
MARQUES, M arília Be rnardes. Op. cit., p. 70.
109
Warnock) estabeleceu uma distinção arbitrá r ia entre pré-embrião
(até o 14º dia após a fecundação) e embrião pro priamente dito (a pós
o 14º dia), para atender unicamente à rápida ap rovação dessas
pesquisas e não perder a corrida internacional.
E ainda Jérôme Lejeune:
“Cada ser h umano tem um começo ú nic o, que ocorre no mo men to
da concepção. Embrião: ‘... Essa a mais jovem forma do se r ...’ Pré-
embrião: essa palavra não existe. Não necessidade de subclasse
de embrião a ser chamada de pré-embrião , porque nada existe ante s
do embrião; ante de um embrião existe apenas um óvulo e um
esperma; quando o óv ulo é fertilizado pelo espermatozóide a
entidade assim constituída se transfor ma em um zigoto; e quando o
zigoto se subdivide torna-se embrião. Desde a existência da
primeira célula todos os elementos individualizadores (tricks of the
trade) para transformá-lo em um ser huma no estão presentes.
Logo após a fertilização, no estágio de três cé lula s, ‘um pequeno
ser humano existe’. Quando o óvulo é fertilizado pelo
espermatozóide, o resultado disso é a ‘mais especializada das
células sob o sol’; especializada do ponto de vista de que nenhuma
outra célula jamais terá as mes ma s instruções na vida do indivíduo
que está sendo criado. Nenhum cientista jamais opinou no sentido
de que um embrião seja um bem (property). No momento em que é
concebido, um homem é um homem.”
213
Assim, o ato de se autorizar a disposição do embrião humano para fins
experimentais até o 1 dia após a conc e pção, demonstra, de maneira bastante
transparente, o não reconhecimento de seu caráte r humano até a da ta
213
LEJEUNE, Jérôme apud VASCONCELOS, Op. cit., p. 43.
110
determinada. Disso decorre necessa riamente que, se antes desse prazo o embrião
não é compreendido como pessoa, lhe resta, portanto, ser considerado um
bem, ou então, em sentido amplo, uma coisa.
214
Dessa compreensão, resulta o fato de poder ser o embrião
instrumentalizado como melhor aprouver àqueles que detêm a sua propriedade,
inseridas prática s de pesquisa científica, experimentação ou transplante de
tecidos; transferência nuclear de célula somática, com intuito de produção de
embriões pa ra a retirada de células-tronco e mb rion ár ia s; produção de embriões
em excesso por meio da fertilização in vitro para comercializá-los no mercado da
bioengenharia; introdução de embriões humanos em fêmeas de animais;
manipulações genéticas com finalidade s não terapêuticas como a utilização d e
embriões na indústria cosmética e, até mesmo, experimentações no sentido de
desenvolver seres humanos com melhor design e performance.
215
Acerca desse último aspecto, cumpre destacar que o impulso de aprimorar
a espécie, com o fim de construir u m ser humano melhor em termos de qualidade
de um produto, com atributos como mais alto, mais forte, mais branco, mais
inteligente, mais longevo, entre outros adje tivos, constitui uma predisposição e
214
Lembra Ser pa Lopes que coisa e bem distinguem-se como o gênero da espécie. Coisa é tudo quanto
existe na natureza, à exceção do homem, enquanto bem é somente a coisa passível de apropriação e que
possa proporcionar ao ser humano uma utilidade. Cf. LOPES, Miguel Mar ia de Serpa. Curso de direito
civil: introdução, parte geral e teoria dos negócios jurídicos. Rio d e Janeiro: Freitas Bastos, v. I, 1953, p.
270.
215
Muito embora pareça surreal a produção, a seleç ão, a comercialização, ou seja, a utilizaç ão
indiscriminada de embriões como matéria-prima, Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa i nformam que “...
na discussão parlamentar que levou à aprovação do Embryo Bill, que autorizava a experimentação com os
assim chamados pré-embriões, o ministro da Saúde declarou possível sua comercialização, desde que com
a licença das autoridades”. BERLINGUER, Giovanni; GARR A FA, Volnei. O mercado humano: estudo
bioético da compra e venda de partes do corpo. Brasília: UnB, 1996, p. 74-75. no que concerne à
utilização de embriões e de fetos como fonte de células-tronco pela indústria cosmética, destaca-se
matéria veiculada na qual se noticia : “Mercado que inclui bizarrices, como o tratamento
antienvelhecimento à base de injeções de c élulas-tronco extraídas de fetos. Quatro sessões, ao custo total
de 50.000 dólares, seriam capazes d e eliminar r ugas, aumentar a disposição, evitar a calvície e manter a
libido a mil [...]. Mulheres jovens e pobres em sua maioria são incentivadas a interromper a gravidez por
volta do terceiro mês para vender o feto. O preço: 200 dólares cada um. Par a ganharem um dinheiro extra,
algumas delas engravidam apenas para abortar.” NEIVA. Paula. As biofábricas. Revista Veja, 31 ago .
2005 .
111
configura u ma realidade científica que muito inquieta alguns estudiosos.
Dentre esses estudiosos, Cláudio Tognolli cita:
216
“Heidegger, 47 anos, criava um discurso em que mostrava suas
preocupações morais e éticas com os avanços da biologia. Dizia:
‘sendo pois o homem a mais importante maté ria -p rima, pode-se
prever que, com base na atual pesquisa em química, serão erguidas
fábricas para a produção de material huma no . As pesquisas do
químico Khun, qu e fo i laureado este ano (1951) com o prêmio
Goethe da cidade de Frankfurt, abre a possibilidade de que se venha
a organizar a produção plane jad a de seres masculinos e femininos’.
Heidegger manté m essa postura até a sua morte em 197 3, e te me
que cada vez mais ‘tudo seja cada vez mais planejado e calculado
para que seja possível que tudo seja cada vez mais planejado e
calculado ... ’.”
Do risco da eugenia
A permissão para se utilizar embriões humanos para fins de pes qu isa
científica, permitindo-se deles derivar células-tronco embrioná rias, atendam eles
ou não o critério, arbitrário, de 14 dias, sejam ou não proveniente s da técnica da
fertilização in vitro, estejam ou não congelados mais de três ou de cinco anos,
resultem ou não da técnica da clonagem terapêutica, abre espaço para que
experiências de toda orde m sejam colocadas em prática, inclusive, experimentos
científicos de cunho eugenético.
216
TOGNOLLI, Claudio. Op. cit., p. 205-06.
112
O termo eugenia advém da junção do radical grego eu, que quer dizer
belo, bem, bom - eupátrida, o bem nascido, eutanásia, tanatos - morte, a boa
morte, a morte sem dor com a união do sufixo genia, que deriva de gene, gerar,
surgiu no século XIX, co m o ingl ê s Francis Galton.
A eugenia apresenta duas feições. A chamada eugenia negativ a que
envolve a eliminação sistemática dos chamad os traços genéticos considerados
indesejáveis e a eugenia dita positiva, que se detém na aplicação de uma
reprodução seletiva, de modo a procede r a um aprimoramento das características
de um determinado organismo ou espécie.
Acerca dessa noção de eugenia p ositiva, na qual, delib e ra damente, se opta
por um design do ser humano em devir, Hilton Japiassu
217
aduz que “o velho
eugenismo é sub stituído pela noção de dons (talentos) e pela concepção de
desigualdades programadas.”
Assim, é de se notar que esse dese jo de ap rimorar vidas individ uais, ou
mesmo populações inteiras, não é novo. Alcançou seu ápice nos EUA durante a
chamada Gr ande Depressão, no final dos ano s 20. Mas sua prática encontra
registro desde 1890 e relaciona -se à ideologia da elite branca, anglo-saxônica,
ávida por impedir que o sonho americano
218
, isto é, que a esperança de uma vida
melhor, fosse estendida às hordas de imigrantes que se encaminhavam aos EUA
no início do século passado.
De acordo com o pensamento eugênico, os laços de sangue e a
hereditariedade têm muito mais importância do que os fenômenos sociais,
econômicos e culturais. Cientistas que gozavam de imenso prestígio inte le ctua l,
como Davi Starr Jordan, reitor da Universidade de Stanford, e Charles
217
JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência: estudos de história das ciências. São Paulo: Letras &
Letras, 1991, p. 290.
218
Cf. TOGN O LLI, Claudio. Op. cit, p. 34.
113
Davenporte, professor emérito da faculdade de Chic ago, partilharam desse
pensamento e en cabeçaram o quadro constitutivo do primeiro Comitê sobre
Eugenia, fundado em 1906, que se propunha a ressaltar as virtudes de uma raça
superior
219
.
Um discurso proferido pelo presidente americano Theodore Roosev elt
(1901-1909) melhor dimensão do que passou a representar o fenômeno
eugênico na primeira metade do séc. XX:
“Um dia percebemos que o principal dever, o dever inevitável de
um cida d ão correto e digno, é o de deixar sua descendê n cia no
mundo. E também que ele não tem o direito de permitir a
perpetuação do cidadão incorreto. O grande problema da
civilização é assegurar um aumento relativo daquilo que tem valor ,
quando co mparado aos elementos menos valiosos e nocivos da
população. O pr oblema não será resolvi do sem uma ampla
consideração da imensa influência da hereditariedade. Eu desejo
muito que se possa evitar completamente a procriação de pessoas
erradas. E o que se deve fazer, quando a na tureza maligna dessas
pessoas for s uficientemente fla gr an te? O s cr iminoso s dev em ser
esterilizados, e aqueles mental ment e retarda do s devem ser
impedidos de deixar descendência. A ênfa se de ve se r dada à
procriação de pessoas adequadas.”
220
Após essa incursão eugênica americana, o eugenismo veio à tona
novamente n a Alemanha nazista e, em 14 de julho de 1933, Hitler decretou a Lei
da Saúde Hereditária, usada como primeiro passo de um programa eugênico de
eliminação em massa das raç a s inferiores, que culminou com o m ass ac r e de 6
219
Ibid., p. 35.
220
Ibid., p. 35.
114
milhões de judeus no ano de 1945, pouco mais que 60 anos. O chefe do
referido programa eugênico do governo alemão era o médico Josef Mengele.
Muito embora esses relatos apresente m contornos de questões superadas
após a publicação de inúmeros diplomas legais e éticos, tais como o Código de
Nuremberg em 1947, a D ec la ra ç ão Universal dos Direitos Humanos em 1948, a
Declaração de Helsinki em 1964, o Relatório Belmont em 1978, entre outras
disposições jurídicas, elaboradas com a finalidade de estabelecer princípios que
orientem a prática da experiência científica envolvendo seres humanos,
garantindo-se o direito à vida, à integridade física e psíquica dos envolvidos, e o
respeito à dignidade da pessoa humana, o espectro do eugenism o voltou a rondar
a sociedade contemporânea com a incipiente capacidade demonstrada pelos
cientistas em manipular genes humanos.
Stella Maris Martínez,
221
temerosa frente ao in comensurável ava nço
alcançado, nos últimos cinqüenta anos, pelas ciências biomédicas, observa:
“A magnitude desses avanços de mon stra a possibilidade real de
levar a cabo programas de eugenia ativa, nos qua is, mediante a
manipulação genética, se defina o sexo, a cor dos olhos, ou a
contextura física dos indivíduos por nascer. E mais ainda: não é
descartado imaginar a seleção hipotética de um indivíduo perfeito
segundo os cânones culturais vigentes em determinado momento
histórico e a subseqüente produção, mediante clonação, de seres
humanos em série, idê ntic os ao modelo; ou, ao contrário, supor a
criação de seres de baixíssimo nível intelectual, mas dotados de
extraordinária força física, a os quais se destine a realização das
tarefas mais rudes”.
221
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit., 31.
115
Apesar de a autora desenvolver seu raciocínio em termos hipotéticos, parte
da tese se comprovou quando o antropólogo Brunetto Chiarelli
222
divulgou, em
1987, a viabilidade da fertilização em laboratório de um óvulo de macaca
chipanzé por um espermatozóide humano. O antropólogo ha via assistido ao
procedimento no ano de 1984 e, e mbora tenh a declarado que o chipanzomem não
fora implantado em nenhum útero para que se desenvolvesse, admitiu que “um
híbrido de chipanzomem poderia ser útil para tra ba lhos humilhantes ou como
banco para tranplantes de órgãos”.
Ignorando-se, assim, que as experimentações com embriões hu ma nos
tenham propósitos eugênicos e, admitindo-se que a pesquisa se desenvolva
somente para fins de terapia, destinada à superação ou correção de alguma
moléstia gra ve , ou mesmo, que a manipulação genética de células-tronco seja
empregada com vistas a evitar doenças congênitas, ainda assim, a prática
demonstra-se extremamente ambígua. Isso porqu e, conforme recorda Stella
Maris Martínez
223
o gene produtor da anemia falciforme é o mesmo que torna ,
quem o possui, resiste n te a malária e observa: ... este panorama revela que
qualquer tentativa destinada à criação artificial de um suposto genoma perfeito,
não somente es destinado ao fracasso científico, como também car ec e de toda a
fundamentação ética ou jurídica que a respalde”.
222
Referida declaração foi publicada na Revista Veja em 10 de j unho de 1987. Nessa época, o
antropólogo ocupava o cargo de secretá rio geral da Associação de Antropologia Européia. Cf.
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p . 50.
223
MARTÍNEZ, Stella Maris. Op. cit.,
116
3.2.3 T eo ria da p es soa humana
em potencial
224
A teoria que considera o embrião humano uma pessoa em potencial
apresenta-se como alternativa às duas teorias anteriorment e aprese ntadas, a sabe r,
a concepcionista e a genético-desenvolvimentista.
Sob a ótica da teoria da pessoa huma na e m potencial, não é possível
identificar totalment e o embrião humano com a pessoa humana, posto que ainda
não dotado de personalidade, para tanto, o embrião teria que ser capaz de exercer
direitos e de contrair obrigações. Por outro lado, também não se admite reduzir
seu status a um mero ag lomerado de células, uma vez que seu desenvolvimento
destina-se, inelutavelmente, à formação de um ente humano.
Diante disso, os autores que se filiam a essa corrente preferem reconhecer
no embrião uma pessoa humana em potencial, ou seja, referem-se à
potencialidade de pe ssoa para designar a autonomia embrionária e reivindicar um
estatuto próprio.
Para a teoria da pessoa humana potencial, as propriedades relacionadas à
pessoa human a , como consciência e inteligênc ia , entre outras, encontram-se no
embrião desde o momento da conce pç ão , contudo, apresentam-se nele em um
estado latente, isto é, em um estado de potência, assim, para fins de se determinar
efetiva proteçã o jurídica ao embrião, permanece a questão de se saber em que
momento haverão, essas características, de passar da potência ao ato, em que
momento haverá de ser a vida contida no embrião humano realmente respeitada.
224
“A noção de potê ncia foi introduzida por Aristóteles em sua Metafísica. O filósofo, ao estabe le cer a
diferença fundamental entre potência e possibilidade determina: ‘P ossível é algo que p ode tornar-se
alguma coisa, ao passo que potência é algo que pode tornar-se alguma coisa por virtude própria e se
tornar assim, de fato, se não lhe foram impostos obstáculos.’” BARTH, Wilmar Luiz. Op. cit., p. 98.
117
Advogar a tese de um esta tuto progressivo, no qual a proteção jurí dica se
amplia na medida em que o embrião se desenvolve, não parece ser uma solução
original, nem tampouco, efic a z no sentido de salvaguardar a vida h uma na que a
ciência demonstrou, incontestavelmente, existir desde a concepção.
Nesse sentido é a análise de Elio Sgrec c ia
225
segundo o qual não é
admissível ver representada no embrião humano uma sim ple s potên cia , pois,
mesmo encontrando-se em uma fase pa r ticu lar de seu desenvolvimento,
corresponde à substância viva e individualizada. O autor subl inha que “... o
embrião é em potência uma cr iança, ou um adulto, ou um velho, mas não é em
potência um indivíduo humano: isso ele o é em ato”.
Desse modo, a dificulda de enfrentada por essa teoria, de superar a questão
- potência versus ato - obriga a d esc a rtá -la. Lucien Sève justifica essa dificuldade
apontando que o problema de se determinar o início da vida humana consiste em
se pretender “...tratar em te rmos cronológicos, um p roblema que é
essencialmente axiológico”.
226
3.3 Da equiparaçã o do embrião
humano ao nascituro
Ainda com a intençã o de se garantir amparo jurídico ao embrião humano,
alguns au tores acenam com a possib ilidade de se lhe este nder o mesmo
tratamento que é ofertado ao nascituro. Nesse sentido, a teoria tradicionalmente
225
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética biomédica. São Pa ulo: Loyola, 1996, p.
365.
226
SÈVE, Lucien. Op. cit. , p. 113.
118
adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro
227
que visa salvaguardar os direitos
da pessoa humana é a teoria natalista.
A referida teoria condiciona o início da considera çã o da personalidade
jurídica da pessoa ao seu nascimento com vida, colocando-se a salvo, contudo, ao
nascituro, os direitos de ordem patrimonial e penal
228
desde a concepção.
A teoria natalista é fruto d e uma construção doutrinária decorrente da não
compreensão da autonomia biológica do concepto humano. De acordo com essa
teoria, o concepto humano é um hospede iro do organismo materno, isso porque a
referida teoria foi elaborada em uma época na qual a ciência aind a não havia
comprovado o que hoje é uma realidade científica incontestável, q ue o
concepto humano, desde a concepção, é um indivíduo a utônomo e
autogerenciador do seu próprio desenvolvimento.
Nesse norte o biólogo Botella Lluziá
229
ensina que “... o embrião ou feto
representa um ser indiv idua lizado, com carga genética própria, que não se
confunde nem com o a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a
vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe.”
A proposta de se estender ao embrião pré-implantatório a mesma tutela
outorgada ao nascituro sofre críticas por parte de alguns autores, que
compreendem que o embrião concebido in vitro não se insere na categoria
jurídica de nascituro, uma vez que na época da elaboração do conceito de
nascituro, e ra possível supor que a concepção se efetuasse in útero,
227
ALMEIDA, afirma que o direito civil brasileiro deveria se pautar pela teoria concepcionista, tend ência
dominante no direito contemporâneo, rec onhecendo a personalidade jurídica do nascituro desde a
concepção, independentemente de qualquer condiç ão. Cf. ALMEIDA, Silmara Juny Abreu Chinelato e.
Proteção civil do nascituro e as novas técnicas médicas. Opinião. Folha de São Paulo, 24 maio 1992, p. 4.
228
No âmbito patrimonial, ressaltem-se aqui as relações jurídicas or iundas do Direito de Sucessões, em
que a fixação da existência do sujeito pode determinar a aquisição ou a perda de direitos. No âmbito
penal, consagra-se a vida desde a concepção com vista a proibir-se o aborto.
229
LLUZIÁ Botella apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. ed. São Paulo: Atlas, 1 998,
p. 57.
119
inexistindo, ainda, a possibilidade hoj e bastante comum, de se conceber um ser
humano extracorporeamente.
230
Em contra partida, outros doutrinadores a firmam que, se a vida humana
merece proteção desde a concepção, conforme consta de inúmeros diplomas
legais nacionais e internacionais
231
que ademais serão analisados, esse termo
deve ser compreen dido de ntr o do seu significado atual, considerando a
hipótese de que a concepção ocorra tanto in útero quanto in vitro.
232
Assim, partindo- se das teorias até o momento apontadas , infere-se, a
princípio, não se adequar o embrião pré-implantatório à categorização de pessoa
natural, ne m tampouco à de nascituro, ou mesmo, de prole eventual, elabo ra da
pelo direito tradicional. Isso porque, com base no direito civil clássico, não é
possível compreender o embrião como pessoa natural antes do nascimento com
vida; não é permitido considerá-lo nascituro, porquanto à época dessa
classificação, evidentemente caracterizava-se como tal apenas o ser concebido e
em desenvolvimento no útero materno; descar ta da do mesmo modo está a
230
Entre os autores encontramos LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos do direito privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 149.
231
Pacto de São José da Costa Rica (1969), art. 4º; Convenção sobre os Direitos da Criança (1989),
preâmbulo; Recomendaçõe s n. 934/82, 1.046/86, n. 5, e 1 .100/89, n. 7, do Conselho da Europa; Código
Cível Bra sileir o, art. 2º, são alguns exemplos de diplomas legais que resguardam o direito à vida desde a
concepção.
232
Nesse sentido, GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da
responsabilidade, p. 154; VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do embrião in vitro na
era da biotecnologia, p. 73; ALMEIDA, Silmara J un y Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo:
Saraiva, 2000, p. 161. LEITE, Eduardo de Oliveira, O direito do embrião humano: mito ou realidade?
Revista d e Ciências Jurídicas. São Paulo, ano 1, n.1, 1997, p. 31-52; SILVA, Reinaldo Pereira e.
Introdução ao biodireito, p. 18; BRANDÃO, Denirval da Silva. O embrião e os direitos humanos. In:
PENTEADO, Ja cques de Camargo; BRANDÃO Denirval da Silva; MARQUES, Rica rdo Henry Dip et.
al. A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999;
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e a sua proteção jurídica. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 11; BARBOZA, Heloisa Helena; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de;
BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar,
2003 , p . 78; SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos
desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; D INIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito.
ed. São Paulo: Saraiva, 200 6; BONAVIDE S, Paulo. Prefácio. I n: Silva, Reinaldo Pereira e. Introdução ao
biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo: LTr, 2002,
p. 9-15
120
hipótese de prole eventual, vez que houve a concepção, fato esse que afasta a
eventualidade.
Desse modo, adotando a teoria concepcionista como ponto de partida, por
entender que nela mais garantia e mais fidelidade a o perfil de tutela global da
vida humana , num ato que Fernando Man tova ni
233
denomina de lealdade
científica, no sentido de fundar o início da vida humana na rac ion alid ad e
biológica, porque o critério da fecundação, dentre todos os outros meramente
convencionais, utilitaristas, perigosos e divergentes entre si, é o único critério
com base ontológica. Não como negar que uma nova vida se inicia co m a
concepção, tampouco se pode negar a natureza humana dessa vida incipiente.
Essa constatação é, por si só, su ficiente para que se lhe reconheça a necessidade
da outorga de pro te ç ão jurídica em todas as etapas da vida humana, a qualquer
momento e onde quer que ela se encontre.
Importante nesse ponto lembrar o ensinamento de Maria Garcia
234
para
quem:
“... não importa adentrar na clássica divisão doutrinária da área civil
[...] nem considerar se este ou aquele ordenamento jurídico não
tenha acolhido a teoria concepcionista. Importa sim, que o Direito
admita essa possibilidade e o sistema jurídico a consagre, embora
outros se demonstrem retrógrados à idéia. É este um fenômeno
comum na História do Direito: o surgimento, a evolução e a
aceitação de novos institutos jurídicos e a sua a ssimilação, afinal,
pela evolução e dinâmica das sociedades humanas.”
233
Cf. MANTOVANI, Fe rnando. Op. cit., p. 189.
234
GARCIA, Maria. Op. cit., p. 186-87.
121
Prossegue a autora:
235
“... uma realidade biológica de que a pessoa começa na
concepção, inevitavelmente, no momento em que se inicia a
fecundação e o embrião ou pré-embrião existe, com uma carga
genética própria , desenvolve nd o-se a partir daí, até a ces saç ã o da
vida bio-p síquica-jurídica, a morte [...] em outros termos, no
momento biológico do início da vida que é este o bem cuja
inviolabilidade vem protegida na constituição aqui, já, em área do
Direito Constitu c ional, e especificamente na Constituição
Brasileira, área em que a divisão doutrinária da teoria civilista deve
ficar ao largo , em face dos avanç os da Biociência, haverá
necessidade de se rever o conceito privatista de pessoa humana”.
Em consonância co m o ensinamento de Maria Ga rc ia , Edgar Morin
236
aduz que “o desenvolvimento atual da ciência e, sobretudo da Biologia,
desenvolvimentos a um tempo cognitivos e manipuladores, nos obrigam a
redefinir da noção de pessoa humana.”
3.4 Do embrião humano como
valor pré-normativo
A utilização de embriões humanos por parte da ciência b iomédica como
fonte de células-tronco para pesquisas científicas, independentemente de onde
quer que provenham, remete à questão de se saber que valor vem sen do atribuído
a esse ser e à vida nele imanente.
235
Ibid, p. 187-88.
236
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 130-131.
122
Aqueles que pronta me nte defendem sua utilização, tanto como fonte de
células-tronco, quanto como matéria-prima da indústria cosmética, informam que
não razão para oferecer proteção integral à vida humana embrionária desde o
momento da concepção, posto que o conceito tradicional de pessoa humana não
alcança o embrião. Para melhor compreender a questão que se apresenta,
imprescindível que se recorde algumas noções da doutrina c láss ica do direito
civil.
Com efeito, no âmbito jurídico, em conseqüência da influênc ia exercida
pela tradição romana
237
, a compree ns ão de pessoa está intimamente ligada ao
conceito de pe r son alidade, sendo esta última, conceituada, em linhas g e r ais,
como a aptidão para exercer direitos e contr air o brig aç ões. Assim, Rubens
Limongi França
238
ensina que “persona lida de é a qualidade do ente que se
considera pessoa. A pessoa a po ssui desde o início até o fim d e sua existência.
Com efeito, a capacidade é um dos atributos da pe r sona lidade. Está estreitamente
ligada à noção de estado, mas com este também não se confunde.”
Importante le mbrar que o termo pessoa é oriundo do latim persona, que
designava a máscara utilizada pelos atores teatrais na Antigüidade e que tinha por
finalidade fazer ecoar melhor a voz dos atores. Mais tarde, o vocábulo passou a
exprimir a atuação do papel desempenhado pelo ator e, por último, tornou-se a
representação do próprio homem que representava o pap el.
237
“No direito romano, em funçã o do respectivo estado (status) ou dos modos particulares de existência na
sociedade, previam-se direitos à pessoa corr espondentes a: a) status libertatis (condição de liberdade da
pessoa, em co ntraposição à situação do escravo, que, como res, sofria da chamada capitis diminutio
maxima’; b) status civitatis (si tuação de nascimento na cidade), de que goza vam os cidadãos romanos ou
cives, ou quirites, cuja ausência significava a capitis diminutio media’, própria do estrangeiro; c) status
familiae (posição do cidadão enquanto chefe de família) cuja falta importava em subordinação a
ascendente masculino, na d enominada capitis diminutio minima’”. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos
da personalidade. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 2 8.
238
“O estad o compreende o conjunto de fatos ligados à pe ssoa, em virtude dos quais a mesma pessoa se
enquadra ou deixa de enquadrar-se nas diversas esferas dentro das quais de desenvolvem as relações
jurídicas. Esse enquadramento d etermina a maior ou menor capacidade, isto é, a maior ou menor,
possibilidade, em abstrato, de exercer os diversos direitos”. FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de
direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, v.1, p. 139.
123
A doutr ina tradicional do direito civil, par tindo da noção latina de
persona, passou a determinar como tal o ser capaz, em termos bio-psíquic os, de
atuar no mund o jurídic o. Desse modo, o ser humano foi substituído por frias
figuras formais como: comprador, testador, locador, doador, entre outras.
Com efeito, a pa rtir de ssa noção, torna-se evidente a incapacidade do
embrião humano de exercer direitos, de contrair obrigaçõ es , ou seja, de figur a r
no mundo jurídico e, por via de conseqüência, de ter reconhecida sua
personalidade. Determina-se, com esse entendimento, uma distância
aparentemente intransponível entre a pessoa humana e o embrião humano.
Todavia, apesar desse aparente distanciamento, não como negar que
ambos possuem, desde a concepção, natureza humana. Nesse sentido, Jacques
Testart
239
, médico geneticista respo nsável pela primeira fecundação in vitro
realizada com êxito em território francês observa que “se nem todos os pré-
embriões se tornam embriões, os quais não se tornam tod o s crianças, a verdade é
que cada homem e cada mulher não foram, ao princípio, mais que um ovo
fecundado.”
Assim, para que s e reconheçam os limites e as possibilidades de proteç ão
jurídica que deve ser outorgada ao embrião pré-implantatóri o, importa,
sobretudo, pôr-se em relevo essa semelhança entre o embrião e a pessoa n asc ida .
Sob tal perspectiva, ao embrião in vitro, tal como os seres humanos
nascidos, por meio de uma noção pré-normativa
240
assegurar-se-ia o respeito à
239
TESTART, Jacques. Le désir du gène, p. 173, apud SÈVE, Lucien. Op. cit., p. 104.
240
“A noção e o reconhecimento da pessoa representa, para o Direito, muito mais do q ue um princípio
normativo. Constitui-se na aceitação da própria estrutura lógica sobre a qual o Direito se assenta. A
concepção do Dir eito é possível à medida q ue se destine aos seres humanos em c onvivência. Sua
finalidade é reger as relações oriundas des sa convivência humana.” PINTO, Carlos Alberto da Mota.
Teoria Geral do Direito Civil. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1992, p. 84.
124
sua existência individual, ao direito à vi da , à integridade física, à libe r dad e, à
intimidade, à honra, enfim, os direitos intrínse c os à personalidade.
Nas palavras de Paulo Otero
241
:
“... não é a personalidade que justifica a titularidade de direitos por
parte do ser humano, antes é a qualidade de ser humano que
envolve a natura l titularidade de certos direitos e que,
conseqüentemente, justifica o reconhecimento da personalidade
jurídica: a personalidade ju rídic a é sempre uma conseqüência e
nunca a causa da titularidade de direitos inatos ao ser humano.”
Assim, é de s e inferir que onde não dignida de , também não
personalidade. Se o embrião humano merece respeito é porque encerra
dignidade; se possui dignidad e, possui, do mesmo modo, personalidade. Esta não
admite gradações ou restrições; ela é, pois, ilimitada, infinita. se p ode falar em
gradação, pe lo direito positivo, da capacidade, nunca da personalidade. De sorte
que não se incorre em excesso afirmar que qualquer norma restritiva da
personalidade é, de antemão, inconstitucional.
242
Para Jussara Maria Leal de Meirelles:
243
“O v alo r da pe ssoa humana que informa todo o orde namento
estende-se, pelo caminho da similitude, a todos os sere s humanos,
sejam nascidos, ou desenvolvendo-se no útero, ou mantidos em
laboratórios, e o reconhecimento desse valor dita os limites
241
OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil
constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999, p. 83-102.
242
Cf. VASCONCELOS, Cristiane, Beuren. Op. cit., p. 114.
243
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Os embriões humanos mantidos e laboratório e a proteção da
pessoa: o novo código civil brasileiro e o texto constitucional. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal de;
BARBOSA, Heloísa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.) Novos temas de biodireito e bioética.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 94.
125
jurídicos para as atividades biomédicas. A maior ou menor
viabilidade em se caracterizarem uns e outr os como sujeito de
direitos não implica diversificá-los na vida que representam e na
dignidade que lhes é essencial.”
Oportuna, ainda, a lição de Silmara Chinelato e Almeida
244
, segundo a
qual, a personalidade é um valor, ao passo qu e a capa c ida de é um quantum não
meia personalidade ou personalidade parcial. Mede-se ou qualifica-se a
capacidade, não a pe rsonalidade. Por isso se afirma que a capacidade é a medida
da personalidade. Esta é integral ou não existe.”
Assim, o fato de o embrião existir a um, dois , três ou a quatorze dias, ou
mesmo, o fato de ser um conjunto de oito ou de cem milhões de células, não
autoriza a ciência médic a a desqualificá-lo na vida que contém e na dignidade
que lhe é intrínseca. Essa tomada de postura, que atribui ao embrião o mesmo
valor e o mesmo tratamento dispensado à pe ssoa humana em razão de sua
natureza, deu ensejo à doutrina a que Reinaldo Pereira e Silva qualifica como
realista
245
versão jurídica da filosofia personalista
246
-, que b usc a conceber as
coisas tais quais elas são em si mesmas e não nas su as causas constitutivas,
assim:
244
ALMEIDA, Silmara Juny de Abreu Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p.
168.
245
A doutrina que se contrapõe à re alista recebe o nome de idealista ou formal-positivista e é a expressão
do direito enquanto norma posta pelo legislador. Essa doutrina encontra seu limite na ordem natural de ser
das coisas (natureza), mas corre o risco de tornar-se reificante sempre que deturpar a realidade posta,
impondo-lhe uma artificialidade autoritária. É assim que, no aspecto que aqui interessa, a personalidade é
indissociável à pessoa. Conceber à pessoa, ser humano, uma personalidade “legal” dissociada do instante
inicial de sua existência (provado por evidências experimentais) não pode ser outra coisa que não a
imposição de uma or dem não natural (artificial) autor itá ria e inconcebível. Cf. SILVA, Reinaldo Pereira
e. Op. cit., p. 219.
246
A filosofia personalista funda -se na concep ção jusnaturalista do direito, que, baseado na alte ridade
enquanto realidade estruturante do direito, justifica a dinâmica intersubjetiva (baseada na naturalidad e)
das relações entre os sujeitos. E o “direito somente se justifica a si mesmo enquanto padrão que disciplina
dignamente as relações entre as pessoas humanas. A reificação, ao contrário, admite que as pessoas sejam
tratadas como objeto das relações, que não são rigorosamente de d ireito (artificialidade).” SILVA,
Reinaldo Pereira e. Op. cit., p.22 0.
126
“Se são as pessoas em ato, enquanto realidade estruturante do
direito, a razão de ser de sua dinâmica intersubjetiva, e se a pessoa
humana, pela ‘natureza das coisas’ é o próprio ser humano, ao
concepto, que não é objeto relacional em hipótese alguma , não se
pode desconhece r o atributo da personalidade desde a concepção,
ou seja, a a ptidã o jurídica para figurar como verdadeiro e atual
sujeito de uma relação de d ire ito. Mesmo porque, na perspectiva
realista, quem é pessoa em sentido ontológico é ta mbém pessoa em
sentido jurídico.”
247
Destarte, na visão realista-pe r sonalista dos direitos da personalidade, a
noção de pessoa, no ção pré-normativa, não é construída p elo ordenamento, mas
por ele recepciona da . E, ao re ce bê - la, o Direto a dmite toda a ca rga valorativa que
é inerente ao ser humano, não sendo permitido diminuí-la ou desprezá-la.
247
SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit. , p. 221. Nesse sentido, com relação à po ssibilidade do feto de
apenas 15 semanas figurar no lo ativo, como autor do processo, em ação proposta pela Defensoria
Pública em favor de presas grávidas, requerendo o devido atendimento pré- natal, bem como a adoção de
medidas urgentes para p reservar o direito do autor ao nascimento com vida e em cond iç ões saudáveis, foi
proferida decisão pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo contra o Juízo da
Vara da Infância e Juventude de São Bernardo, que no despacho de fls. 44 determinava a emenda da
inicial para a regularização do pólo ativo, segundo o qual “antes do mais, a inicial deverá ser e mendada,
no pr azo d e dez dias, pena de indeferimento, regularizando o lo ativo e a representação processual, pois
em se tratando de pro teção jurídica ao nascituro, desprovido de personalidade civil, ex vi do ar t. 2 º do
novel digo Civil, incumbe aos seus pais o dever de defender os seus direitos”. A questão cinge-se,
portanto, à possibilidade do nascituro vir a juízo. Assim, o Desembargador José Cardinale, acompanhado
pelo Desembargador Canguçu de Almeida (Presidente) e Sidnei Beneti, ao conhecer o Agravo interposto
pelo Defensor Público contra a referida decisão de primeira instância decidiu: “Eleito o nascituro p ara
integrar o pólo ativo da ação, não poderia o juiz determinar a emenda da inicial por entender impossível a
figuração do feto como autor em qualquer espécie de demanda. Isso porque, segundo a jurisprudência,
pode o feto, devidamente representado, desde o momento da concepção, ainda que desprovido de
personalidad e jurídica, pleitear j ud ic ialmente seus direitos: ‘investigação de paternidade ação proposta
em nome de nascituro pela mãe gestante legitimidade ad’ causam - Extinção do processo afastada.
Representando o nascituro po de a mãe propor ação investigatória, e o nascimento com vida investe o
infante na titularidade da pretensão de direito material, até então apenas uma expectativa de direito
(TJSP AP. Cível 193.648. Rel. Des. Renal Lotufo). Destarte, admitida, em tese, a possibilidade da
presença do nascituro no pólo ativo da ação, de rigor a anulação do despacho de fls 44, que termina a
emenda da inicial, ressalvando-se que a le gitimidade do nascituro para postular o direito de sua mãe ao
recebimento de tratamento pré-na ta l deve ser aferido pelo juízo a quo no momento processual adequad o,
assim co mo a competência da Vara da I nfância e Juventude para conhecer e julgar a causa. Por esses
fundamentos, aos quais se acre scem os da bem lançada manifestação da douta Procura doria Geral de
Justiça, não se conhece em parte o agravo e, na parte conhecida, a ele se dá provimento, nos termos do
acórdão.” São Paulo, 26 de outubro de 2006, José Cardinale, Relator.
127
Desta feita, Francisco José Ferreira Muniz e José Lamartine Corrêa de
Oliveira
248
ensinam que não é possível conceber a tutela ef e tiva dos direitos da
personalidade fora do contexto de uma tutela dos direitos do homem, que no
Estado de Direito essa tutela alcança real efetivação e , reciprocamente, que
Estado de Direito se existir uma ordem j u rídica baseada na proclamação de tais
direitos e na sua efetiva proteção. Em verdad e, se poderá falar em Estado de
Direito na medida em que o Estado rec onheça de modo absoluto os direitos
fundamentais. Estes constituem verdadeiros princípios destinados a estabelecer
uma escala fundame ntal de valores, centra da no reconhecimento da pessoa
humana e de sua dignidade, e que deverá vincular a A dministração, a legislação e
a jurisdição.
Ao analisar a questão, Sergio Ferraz
249
declara:
“... direito à absoluta integridade física ou moral; repulsa a
experimentos científicos que rebaixem a dignidade do homem
(degradando o ser humano, c omo ele é compreendido) ou a terapias
que o submetam a sofrimentos injustificados. Destinatário da
norma: todo ente, vindo à luz ou não. Obrigados à sua observância:
não o estado, mas toda e qualquer pessoa física ou jurídica”.
Para Jussara Maria Leal de Meirelles
250
:
“Essa é a noção qu e deve ser assimilada pelo ordenamento jurídico,
de maneira a reconhecer-se, indistintamente a todos os seres
humanos, em qualquer fase de seu desenvolvimento, o valor da
pessoa humana. E, com esse r ec on hecimento, afasta r- se a
248
Cf. MUNIZ, Francisco Jo Ferreira; OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. O estado de direito e os
direitos da personalidade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 69, n. 532, jan. fev. 1980, p. 11-23.
249
FERRAZ, Sergio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto
Alegre: Fabris, 1991, p. 25.
250
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de . Op. cit., p. 86.
128
possibilidade de serem excluídos do manto da proteção jurídica
alguns seres que, apenas por se encontrarem nas etapas inic ia is da
vida, não se adaptam aos parâmetros da ordem positivada.”
Cabe, ainda, lembrar uma ve z mais a doutrina de Francisco José Ferreira
Muniz e José Lamartine Corrêa de Oliveira
251
de acordo com a qual:
“[...] em uma visão positivista, formalista, da pessoa e da própria
ordem jurídica, [...] termina -se por redu zir a noçã o de pessoa a um
centro de imputaçã o de direitos e deveres, e a atribuir-se sentido
idêntico às noções de pes soa e de sujeito de direitos. Em uma visão
personalista, o orde namento jurídico, ao construir, dentr o de um
sistema, a noção de personalida de , assu me uma noção pré-
normativa, a noção de pessoa humana, faz de tal noção uma noção
aceita pe la ordem positiva. Não a assume nem a aceita porém no
mesmo sentido de p ura aceitação da rea lidade externa com que
aceita e a ssume a qualidade de objetos, de coisas, que têm uma
árvore ou um animal. É que, no caso do ser humano, o dado pré-
existente à ordem legislada não é um dado apenas ontológico, que
radique no plano do ser; ele é ta mbé m axiológico. [...] O homem
vale, tem a excepcional e primacial dignidade de que estamos a
falar, porque é. E é inconcebível que o ser humano seja sem valer.”
Assim, sob o prisma da valoração do ser humano, em qualquer fase de seu
processo vital, o que informa semelhança entre o concepto e a pessoa humana
nascida, reclamando proteção em tempo i nte gr a l, é a natur e za humana em
comum, é aquilo que representam axiologicamente em vir tu de dessa natureza, e
não a maior ou menor possibilidade d e se a de qua r em à categoria abstr a ta
previamente fixada pela ordem jurídica.
251
MUNIZ, Francisco José Ferreira; OLIVEIRA, Jo Lamartine Corrêa de. Op. cit., 16.
129
Essa compreensã o do ser humano levou Miguel Reale
252
a afirmar que “a
criatura humana é pessoa porque vale de per si, como centro de reconhecimento
e convergência dos valores sociais”. No mesmo norte, Goffredo Telles Júnior
253
ensina que a person alidade não é um direito, e sim qualidad e natural, ou seja, é
própria de um ser, logo é uma propriedade. Propriedade não no sen tido jurídico,
mas entendida como qualidades próprias, que caracterizam o indivíduo, aq uilo
que lhe é pe c ulia r, um atributo necessário de cada ser humano, “sem mediação de
qualquer norma jurídica.”
Desse modo, cu mpre afirmar que a declaração expressa do direito à vida,
para fins e efeitos jurídicos não em níve l de tratados internacionais, como
também em qualquer outra instância do ordenamento jurídico, é de ser
considerada apenas e tão somente uma declaração fo rmal, ou seja, o
reconhecimento de uma realidade subjacente e, portanto, anterior e inelutável.”
254
252
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 2 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 232.
253
TELLES JR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 297-98.
254
“Essas circunstância s todas [da discussão sobre a existência de valores anteriores ao Direito e
norteador es do mesmo] foram patenteadas, em um simpósio que teve a cidade do México por pa lc o [XIII
Congresso Internacional de Filosofia Symposium sobre Derc eho Natural y Axiologia 1963] e do qual
participar am alguns dos mais representativos juristas de nossa épo ca. Mais uma vez, na aludida reu nião,
se tornou claro que o pensamento jurídico contemporâneo não repudia, ao contr ário, reconhece
francamente a imprescindibilidade de certos dados, marcadamente de natureza axiológica, como
essenciais à ordem jurídica positiva. É com base neles que se ergue, em qualquer época e em qualquer
lugar, o edifício jurídico que institui ordem e permite convivência e m termos jurídicos, isto é, em termos
de segurança.” CAVALCANTI FILHO, Teóphilo. O problema d a segurança no direito. Revista dos
Tribunais, São Paulo, 1964, p. 62.
130
4. DO DIREITO À VIDA
A idéia de que o homem possui, independentemente de quaisquer
condições, direitos que lhe são inerentes, a saber, o direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança, entre outros, única e exclusivame n te pelo fato de
pertencer ao gênero humano, engendrou os chamados direitos humanos.
Para Daury César Fabriz:
255
“A idéia em torno dos direitos humanos surge da confluência de
várias fontes f ilosóficas, jurídicas e teológicas -, num imbricado
jogo de concepções em torno de leis universais, que se impõem
acima de qualquer lei criada pelo próprio homem. Apregoam-se
idéias univ er sa lizantes, direitos que possam alcan ça r todos os
indivíduos, independentemente da nacionalidade, credo ou raça.”
À medida que esses direitos são reconhecidos pelas sociedades
politicamente organiz adas e sã o positivados, isto é, passam a co mp or as cartas
constitucionais, as leis, os tra tad os internacionais e a vigorar no interior dos
Estados, recebem , então, o nome de direitos f un da mentai s
256
, constituindo-se a
partir daí em paradigmas
257
de um Estado Democrático de Direito.
255
FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 232.
256
A distinção que se faz entre direitos humanos e direitos fundamentais foi elaborada pela doutrina
jurídica germânica. Cf. COMPARATO, Fabio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos. 4 ed.,
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 5 7. A pretensão de universalidade, a força emancipatória e a tendê ncia à
imposição política e j urídica formam o perfil normativo dos direitos humanos Cf. BIELEFELDT, Heiner.
Filosofia dos direitos humanos: fundamentos de um ethos de liberdade universal. São Leopoldo:
Unisinos, 2003, p. 38.
257
“No sentido que T. Kuhn a esta palavra, ou seja, uma idéia mestra segundo a qual se torna
necessário proceder a uma revisão de muitas das teses havidas como assentes, quer para substituí-las, quer
131
Ao se referirem a esses direitos, alguns autores empregam a expressão
“geração de direitos”
258
como é o caso de Norberto Bob bio e Paulo Bonavides.
Outros existem, como ocorre com Willis Santiago Guerra Filho, que consideram
mais adequado o uso da expressão “dimensão de direitos”
259
.
Ressalta-se, todavia, que quer como gerações, quer como dimensões, o
intuito é demonstrar que, embora natura is, esse s direitos não foram reconhe cido s
pelo Estado todos de uma vez. Foram se estabelecendo gradativamente ao
longo da história da humanidade, em conformidade com as necessidades que as
sociedades foram experimentando devido às transformações econômicas,
políticas e culturais sofridas.
4.1 Dire itos humanos e direitos
fundamentais: evolução histórica
Os chamados direitos de primeira geração ou dimensão são con siderados
direitos naturais porque inerentes à pessoa humana , baseiam-s e, sobretudo, em
para re tificá-la s.” REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. ed., São Paulo: Saraiva,
2005 , p. 9.
258
BOBB IO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992, passim. BONAVIDES, Paulo.
Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993, passim.
259
O autor ensina que a utilização do vocábulo dimensões “não se justifica apenas pelo preciosismo de que
as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas. Mais importante é que os
direitos ‘gestados’ em uma geração, quando aparecem em uma orde m jurídica que j á traz dir eitos da
geração sucessiva, a ssumem outra dimensão, pois os direitos da geração mais recente tornam-se um
pressuposto para entendê-los de forma mais adequada e, conseqüentemente, também para melhor
realizá-los. Assim, por exemplo, o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a
segunda dimensão dos direitos fundamentais, pode ser exercido observando-se sua função social, e
com o apareci mento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental”. GUERRA
FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. ed. Sã o Paulo: Celso Bastos,
2003 , p. 39.
132
uma clara demarcaçã o entre Estado e não-Estado, fundamentada n o
contratualismo de inspiração individualista.
260
Assumem p articular relevo no rol desses direitos, o dir eito à vida, à
liberdade - de reunião, de associação, de religião e de imprensa e à propriedade,
representando, segundo Fábio Konder Compa rato,
261
“a emancipação histórica do
indivíduo perante os grupos sociais aos quais sempre se submeteu: a família, o
clã, o estamento, as organizações religiosas”.
Constituem exemplo desse primeiro momento, no qual esses direitos
foram afirmados como liberdades civis e políticas dos cidadãos frente ao poder
estatal, a Magna Charta Libertatum, firmada em 1215, pelo Rei João Sem-Terra
e pelos bispos e barões ingleses. Muito embora esse documento tenha alijado, em
princípio, a grande população d o acesso ao s direitos estabelecidos, tendo as
garantias afirmadas nesse pacto alcança do somente a nobreza e o clero, não
obstante não se pode negar que serviram d e inspiração para que outros
documentos fossem elaborados, tais como: a lei de Habeas-Corpus de 1679, que
limitava o poder real de prender opositores políticos se m antes submetê-los a um
processo regular, gara ntindo assim, a liberdade de locomoção; e a Bill of Rights
de 1689, que pôs fim ao regime de monarquia absolutista vigente na Inglaterra,
no qual tod o poder emanava do rei e em seu no me d ev eria ser exercido,
estabelecendo a instituição do Parlamento, bem como conferindo a este a
competência para legislar e criar tributos.
260
Por isso são direitos individuais: (I) quanto a o modo de exercício é individualmente que se afirma,
por exemplo, a liberdade de opinião; (II) quanto ao sujeito passivo do direito pois o titular do direito
individual pode afirmá-lo com relação a todos os demais indivíduos, que esses direitos têm como limite
o reconhecimento do direito do outro, isto é, nas palavras do artigo da Declaração Fr ancesa de 1789.”
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia da Letras, 20 03, p. 126.
261
COMPARAT O , Fabio Konder. Op. cit., p. 52.
133
A instauração dessas garantias primária s forjou uma nova consciência e
preparou o terreno para que, a partir do século XVIII, por meio das Declarações
americana e francesa, essas afirmações fossem feitas em favor de todos os
homens. Assim, Ingo Wolfgang Sarlet
262
ensina:
“Tanto a declaração francesa quanto as americanas tinham como
característica comum a sua profunda inspiração jusnaturalista,
reconhecendo ao ser humano direitos naturais, inalienáveis,
invioláveis, imprescritíveis, direitos de todos os homens e não
apenas de uma casta ou estamento.”
Com es se espírito de isonomia, f oi declarada, em 1776
263
, a
Independência dos Estados Unidos através da Declaração de Direitos do Bom
Povo da Virgínia e, em 1787, elaborada a Constituição Americana nas quais se
afirmam:
“Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber,
que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador
de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a
busca da felicidade”. (Declaração de Independência dos Estados
Unidos da América).
262
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 51.
263
Esta Declaraçã o marca o nascimento dos direitos humanos na História Cf. COMPARATO, Fab io
Konder. Op. cit., p. 49. A e sse respeito, SARLET destaca que “A influência dos documentos americanos,
cronologicamente anteriores, é inegável, revela nd o-se principalmente mediante a contribuição de
Lafayete na con fecçã o da Declaração de 1789. Da mesma forma, i ncontestável a influência da doutrina
iluminista francesa, de modo especial de Rousseau e Montesquieu, sobre os revolucionários americanos,
levando à consagração, na Constituição Americana de 1787, do princípio democrático e da teoria da
separação dos poderes [...] que se re conhecer a i nequívoca relação de reciprocidade, no que concerne à
influência exercida por uma declaração de dire itos sobre a outra ...”. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit.,
p. 51.
134
“Todos os seres humanos são, pela sua na tureza, igualmente livres
e inde pe ndentes, e po ssuem certos direitos inatos, dos quais, ao
entrar no estado de sociedade, não podem, por nenhum contrato,
privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da
vida e da liberdade, os meios de adquirir e possuir propriedade, e a
busca da felicidade e da segurança”. (Seção 1 da Declaração de
Direitos da Virgínia de 12 de junho de 1776)
A mesma verve libertária, igualitária e dem oc rá tica que cul min ou nas
Declarações acima ref er ida s, conduziu, e m 1789, à Revolução Francesa
264
e à
conseqüente Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão segundo a qual:
“Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos
[...] Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão” (artigos e da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, 1789)
Ambas as Declarações, americana e francesa , sur giram como fruto da
inspiração provocada p elo s discursos de Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau
e Kant, para citar apenas os pensadores mais expressivos
265
.
Assim, Hobbes
266
determinou que os pactos em que se estabelecessem a
renúncia do direito à vida seriam nulos; Locke
267
, ao analisar os limites do poder
264
Embora os postulados da Revolução Francesa fossem liberdade, igualdade e fraternidade, o
reconhecimento da fraternidade, ou seja, da exigência de uma organização solidária da vida em comum,
se logro u alcançar com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 10 de d ezembro de 1948 Cf. COMPARATO, F. K. Op. cit., p. 49.
265
Cf. SILVA, Jo Afonso da. Op. cit., p. 157. Integram essa lista, ainda, os filósofos Hugo Grotius,
Spinoza e Punfendorf segundo FABRIZ, Daury César. Op. cit., p. 234.
266
“Portanto, se o sobe rano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou
se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar alimentos, o ar,
os medicamentos, ou qualquer outra c oisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de
desobedecer”. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.
São Paulo: Nova Cultural, 2000, c apítulo 14, p. 113 e ss. e 175.
135
legislativo, informava que este não poderia ser arbitrário sobre a vida e sobre os
bens do povo, apregoando que as autoridades devem respeitar os direitos que os
homens lhes conferem ao ingressar na sociedade politicamente organizada,
determinando que “ninguém pode transferir mais poder do que possui, e ninguém
detém um poder arbitr á rio absoluto sobr e si mesmo, ou sobre qualquer outro,
para destruir a própria vida ou tomar a vida e a propriedade de outrem”;
Montesquieu
268
afirmava que qua ndo na mesma pessoa ou no mesmo co rpo de
magistratura o poder legislativo e stá unid o ao poder executivo, não e xiste
liberdade, para que essa ocorra, afirmava o filósofo, é necessário que se proceda
à separação entre os poderes; Kant,
269
inspirado em Rousseau
270
, def iniu a
liberdade jurídica do ser humano como a faculdade de obedecer somente às lei s
às quais deu seu livre consentimento
271
.
Desse modo, vida, liberdade, propriedade e s egurança integram a primeira
geração dos direitos simboliza ndo a passagem do Estado Absoluto para o Estado
Constitucional, Representativo ou de Direito conforme leciona Jorge Miranda
272
:
“As corre ntes filosóficas do c ontr atu alismo, do individualismo e do
iluminismo, que são expoentes doutrinais, LOCKE (Segundo
Tratado sobre o Governo), MONTESQUIEU (Espírito das leis)
ROUSSEAU (Contrato Social), KANT (além das obras filosóficas
267
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil:ensaio sobre a origem, os limites e os fins
verdadeiros do governo civil. Rio de Janeiro: Vo zes, 1994, p. 163.
268
MONTE SQU IEU,Charles Luis de Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo: Saraiva, 19 98.
269
“Age como se a máxima da tua acção se d evesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza.” KAN T, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 20 05 , p.
59.
270
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de
cada associado e p ela qual cad a um unindo a todos obedeça, todavia, apenas a si mesmo e permaneça tão
livre como antes. Eis o p roblema fundamental para o qual o contrato social o ferece solução.”
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Edipro, 2000,
p. 35.
271
Cf. BOBBIO, N orberto. Op. cit., p. 86.
272
Para o jurista português, a Revolução Francesa simboliza o ápice do movimento que deu or igem ao
chamado constitucionalismo. Cf. MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 44.
136
fundamentais. Paz Perpétua) e importantíssimos movimentos
econômicos, sociais e políticos conduzem ao Estado constitucional,
representativo ou de Direito.”
Na esteira desse pens a me nto, em um momento histórico subseqüente,
marcado pela consolidação do Estado Liberal
273
e pelo fenomenal
desenvolvimento da economia industrial, observou-se a necessidade de
reconhecimento da existên cia de direitos de uma outra dimensão, chamados de
direitos de segunda geração.
Destarte, como resposta às péssimas condições de vida enfrentadas pela
grande maioria da população, em virtude do estabelecimento da economia de
mercado, foi elaborada a Constituição Mexicana, de 1917, e a Constituição de
Weimar, de 1919, que passaram a afirmar direitos econô micos e sociais, tendo
como titulares des ses direitos não os indivíduos em si, mas as classes sociais
então incipientes, tal como a classe operária, que surge nesse cenário e que, em
razão da total o missã o do Estado, passa a se r aviltada, vilipendiada, achincalhada
pelo modo capitalista de produção
274
.
De acordo com Paulo Bonavides,
275
os direitos de segunda geração são:
273
“... são mais do que conhecidos os abusos sociais ocasionados pela concepção liberal sobre o p apel do
legislativo do E stado. Do ponto d e vista histórico, o liberalismo, indi fere nte às condições
socioeconômicas, or ientou-se para a anulação das c ondições reais de liberdade individual.” SILVA.
Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 211.
274
No liberalismo, o individualismo foi levado às últimas conseqüências e o Estado restringiu-se a exerce r
funções que garantissem, apenas e tão somente, a ordem social e a proteção contra ameaças externas. “...
a essa ascensão do indivíduo na História, a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa tornou-o
muito mais vulnerável às vicissitudes da vida [...] Patrões e empregados eram considerados, pela
majestade da lei, como contratantes perfeitamente iguais em direito [...] O resultad o dessa atomização
social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira
metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e por
provocar a indispensá vel organização da c la sse trabalhadora”. COMPA RATO, Fabio Konder . Op. cit., p.
52. “A Revolução Russa, de outubro de 1917, abrindo o caminho para o E stado Socialista, iria despertar a
necessidade de assegurar aos trabalhadores um nível de vida compatível com a dignidade humana. Surge,
então, a co nsciência de que os indivíduos que não m direitos a conser var são os que mais precisam do
Estado.” D A LLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva,
2005 , p. 211.
275
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 518.
137
“... os direitos s oc iais, culturais e econômicos bem como os direitos
coletivos e de coletividades, introduzido s no c o nstituc ionalismo das
distintas formas de Estado social, depois q ue germinaram por obra
da ideologia e reflexão antiliberal deste século.
Afirmados os direitos de pri mei r a e segunda geração que buscavam não
tutelar a vida, mas acima de tudo, estabelecer garantias como educa çã o, saúde,
trabalho, laz e r, que permit issem aos homens não viver, mas viver dignamente,
o adv en to do século XX e no interr e gno de cinqüenta anos o saldo de duas
guerras mundiais, indicou a necessidade de se reconhecer a existência de uma
terceira dimensão de direitos, a queles que m como fundamento a solidariedad e
sendo esta equivalente ao ideário francês de fraternidade e co mo destinatários
os seres humanos em sua totalidade, isto é, a humanidade .
Nesse âmbito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de d ez embro de 1948, e a
Convenção Internacional sobre a prevenção e p unição do crime de genocídio,
aprovada um dia antes, também no quadro da Organização das Nações Unidas,
simbolizam os marcos inaugurais dessa nova fase histórica
276
.
Paulo Bonavides
277
identifica cinco direitos de fr ate rn ida de : o direito ao
desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito à
propriedade sobre o patr imônio comum da humanidade e o direito de
comunicação. O autor sintetiza a evolução histórica dos direitos humanos nos
seguintes termos:
276
Cf. COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 55-56.
277
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 523.
138
“Direitos de primeira geração, no c on senso dos publicist a s, foram
os direitos individuais; direitos de segunda gera ç ão , os direitos
econômicos, s oc iais e culturais e, de último, na idade da tecnologia,
direitos de terceira g e ração, aqueles q ue entendem como a paz, o
desenvolvimento, o interesse dos consumidores, a qu alid ade de
vida e a liberdade de informação. Três gerações regidas e inspiradas
sucessiva e cumulativamente pelos princípios da liberdade, da
igualdade e da solidariedade”.
278
Consagradas essas três geraçõe s- dimensões de direito s, atualmente
admite-se a n ec e ssidade do reconhecimento da existência de uma quarta
geração
279
, dec or re nte do avanço desenfreado no âmbito da biotec n ologia , da
biociência, da biomedicina, enfim, das ciências que tornaram possível a
manipulação da vida humana em seus diferentes estágios. Nesse sentido Norberto
Bobbio
280
adverte:
“... se apre sen tam novas exigências que poderiam chamar-se
de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais
traumáticos d a pesquisa biológica, que permitirá manipulações no
patrimônio genético de cada indivíduo. Quais são os limites dessa
possível (e cada vez mais certa no futuro) manipulação?”
Hannah A r endt
281
, ao refletir sobre o poderio bioté c nic o e biocientífico
conquistado na s últimas décadas e na potencial ameaça que esse conh e cimento
representa à condição humana, pondera:
278
Ibid., p. 350 .
279
“Entre nós, a existência d e u ma quarta dimensão de direitos fundamentais é preconizada pelo ilustre
mestre P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 524 e ss. Recentemente, houve a té mesmo quem
sugerisse a existência de uma geração (ou d imensão). Neste sentido, o posicionamento de J. A. de
Oliveira Junior, Teoria Jurídica e Novos Direitos, p. 97, ss.” SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 59.
280
BOBB IO, Norberto. Op. cit., p. 6.
281
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 10.
139
“A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que
sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz
de oferecer aos sere s humanos um habitat no qual eles pode m
mover-se e respirar sem esforço nem ar tifício. O mundo artifício
humano separa a existência do homem de todo ambiente
meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo
artificial, e através da vida o homem p ermanece ligado a todos os
organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando por
tornar ‘artificial’ a própria vida, por cortar o último laço que faz do
próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da
prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa
proveta, no desejo de misturar ‘ sob o microscópio, o plasma
seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de
produzir se re s humanos superiores’ e ‘alterar(-lhes), o tamanho, a
forma, a função’; e talvez o desejo de fugir à condição humana
esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida
humana para além dos cem anos. Esse homem futuro, q ue segundo
os cienti sta s será produzido em menos de um século, parece
motivado por uma rebelião contra a existê ncia humana tal como
nos foi dada um dom gratuito vindo d o nad a (secularmente
falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido
por ele mesmo. Não razão para duvida r que sejamos capazes de
realizar essa troca, tal como não motivo para duvidar de nossa
atual capa c idade de destruir toda a vida orgânica na Terra. A
questão é apenas se desejamos usar nessa direção noss o
conhecimento científico e técnico e esta questão não pode ser
resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira
grandeza, e portanto não deve ser dec idida por cientistas
profissionais nem por políticos profissionais”.
140
A reflexão da au tora avança no sentido de demonstrar a ambivalência do
poder do conhecimento conquistado pela ciência, capaz de criar, transformar e
exterminar não o homem individualmente considerado, mas a humanidade
como um todo. A autora denuncia, ainda, a pretensa neutralidade científica
quando afirma ser a ciência uma questão política de primeira gr and eza.
A advertência arendtiana leva a inferir que, atualmente, vive-se a época da
big science, da tecnociência que desenvolveu poderes titânicos
282
. Contudo,
importa recordar que esses poderes não emanam mais dos c ien tistas, encontram-
se atualmente nas mãos dos dirigentes de grandes empresas, conforme restou
demonstrado n o capítulo anterior, be m como nas mãos das autoridades do Estado
que, sejam civis ou militares, deram prova inconteste em Hiroshima, Nagasaki
e em Auschwitz de que a união entre o conhecime nto científico e o poder político
resulta no biopod e r
283
e que o respeito à vida humana, diante deste, fica relegado
a segundo plano.
Aqui, é pertinente lembrar a observação feita por Giovanni Berlinguer e
Volnei Garrafa
284
:
“O homem é a única espécie que desenvolveu a ciênc ia , por ser a
única infelizmente senciente a povoar o planeta. Aprendemos a
tomar remédios, a fazer abortos, a usar próteses, a construir armas,
a fazer cirurgias de peito aberto, a construir bo mba, a irradiar
tumores, a clonar, a fazer transplantes de órgãos e a conhecer o
nosso ge noma. Os problemas residem no conhe c imento?
Certamente não. Os problemas residem na utilização dos
282
Cf. MORIN, Edgar. Op. cit., p. 126.
283
Para um estudo mais acurado acerca do tema do biopoder vide FOUCAULT, Michel. Microfísica do
poder. 20ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2004; Vigiar e punir, 24ª ed., São Paulo: Voz es, 2001; Em Defesa
da Sociedade. São Pa ulo: Martins Fontes, 20 05; AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e
a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
284
BERLINGUER, Giovanni; GARRAFA, Volnei. Op. cit., p. 13.
141
conhecimentos. Saber quebrar o átomo não é bo m ne m ruim. O
juízo de valor deve ser feito com a aplicação do conhecimento ou
com os meios adotados para se chegar à utilização.”
Por essas razões, bem como pe lo fato de a ciência considerar o embrião
humano única e exclusivamente como uma fonte, um recurso, um caminho, um
meio que conduz às o caras e versá teis células-tronco embrioná rias, e por esse
fato implicar em conseqüências diretas ao gênero humano, é que se tem b usc a do
firmar compromissos inte rn ac ionais que busquem tutelar esse bem maior
universal, a saber: a vida humana.
A esse respeito assinala Daury César Fabriz:
285
“Se às ciências da vida cabe o livre exercício do espetacular em
torno das várias possibilidades dos elementos que integram, cabe ao
Direito proceder ao enquadramento legal, no sentido de pres er var a
integridade da vida e da pessoa humana [...] a vida é a premissa
maior, donde tudo o mais deve ser derivativo.”
Em consonância com Daury César Fabriz, Dalmo de Abreu Dallari
286
preleciona que “entre os valores inerentes à condição humana está a vida [...] sem
ela a pessoa humana não existe como tal, razão pela qu al é de primordial
importância para a h umanidade o respeito à origem, à conservação e à extinção
da vida”.
285
FABRIZ, Daury César. Op. cit.,p . 273.
286
DALLARI, Dalmo de Abreu. B ioética e direitos hu manos: a vida como valor ético. In: GARRAFA,
Volnei; FERREIRA, Sergio Ib ia pina. (Orgs.). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de
Medicina, 1998, p. 231.
142
4.2 A vida como direito
Muitos são os pactos, a s leis, os ordenamentos que buscam tutelar a vida
humana conforme a ssinalado acima, entretanto, ousa-se afirmar que tantos
quantos forem elaborados, esses dispositivos serão sempre em número
insuficiente se não se tiver, ef etivamente em conta, que a vida humana é digna de
respeito e que este re spe ito não deriva somente de uma i mpo sição jurídica,
advém, principalmente, por se constituir a vida humana um bem
287
, na acepção
mais comum do termo, que designa ser “aquilo que enseja as condições ideais ao
equilíbrio, à manutenção, a o aprimoramento e ao progresso de uma pessoa ou de
um empreendimento humano ou de uma coletividade”.
Alicerçada nesse entendimento, Maria Helena Diniz
288
ensina:
“O respeito a ela e aos demais bens jurídicos correlatos decorre de
um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a
ninguém é lícito des obe de c e r. Ainda que não houve sse tutela
condicional ao direito à vida, que, por ser decorrente da norma de
direito natural é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria
aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o
fundamento do dever - ser, ou melhor, do direito positivo, uma vez
que se baseia num consenso, cuja expressão máxima é a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, fr uto concebido pela
consciência coletiva da humanidade. [...] Assim sendo, se não se
pode recusar humanidade ao bárbaro, ao ser humano em coma
profundo, com maior razão ao embrião [ .. .] A vida humana é um
bem anterior ao direito, que a ordem jurídica d ev e re spe ita r. O
287
Dicionário Houai ss da língua portuguesa. Instituto Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.
429.
288
DINIZ, Ma ria Helena. Op. cit.., p. 24-25.
143
direito ao respeito da vida nã o é um direito à vida. Esta não é uma
concessão jurídico-estatal, nem tampouco, o direito de uma pessoa
sobre si mesma.”
Nesse sentido, a vida humana, ao ser reconhecida pela ord em jurídica,
torna-se um direito primário, personalíssimo, essencial, absoluto, irre nu nc iáv el,
inviolável, impre sc r itível, indisponível e intangível, sem o qual todo s os outros
direitos subjetivos perderiam o interesse para o indivíduo.
A ela integram-se elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais
(espirituais)
289
e, no conteúdo do seu conceito, envolvem-se os direitos à
dignidade da pessoa humana, à liberdade, à igualdade, à solidariedade, à
privacidade, à integridade físico-corporal, à integridade moral, à existência, ao
nascimento, à prestação de alimentos, à saúde, entre outros.
Parece pertinente, pois, afirmar, juntamente com Ingo Wolfgang Sarlet
290
que, na sua essência, tod as as demandas na esfera dos direitos fundamentais
gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tra dic ionais e perenes valores da
vida, lib er da de , igualdade e d a solidariedade, tendo, na su a base, o princípio
maior da dignidade da pessoa. No ent an to, essa afirmação, conf r onta da com a
realidade da utilização de embriões humanos como matéria-prima para pesquisa
científica com c élulas-tronco, remete ao questionamen to efetuado por Maria
Garcia
291
, conforme o qual:
“Diante do desenvolvimento possibilidades da engenha r ia genética
e a existência de algo como embriões, pré-embriões, genoma
humano, clones eventuais coloca-se a questão das novas
289
Cf. SILV A, José Afonso da. Op. cit. p. 201.
290
Cf. SAR LET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 59.
291
GARCIA, Maria. Op. cit. p. 109.
144
titularidades dos direitos humanos. Será possível, com efeito, a
atribuição de direitos humanos nesses casos?”
Prossegue a autora:
“Poder-se-ia afir mar que a pr ote çã o aos direitos humanos se
estende a tudo o que contém a individualidade desde o genoma
até o embrião e o feto humanos?
292
A esses que stionamentos, a mesma vem, prontamente, responder de modo
afirmativo, indicando que a tutela da vida hu mana desde o momento da
concepção
293
“... extrapola o campo constitucional, para alçar-se a nível
internacional”
294
sendo, então, objeto de elaboração de códigos, declarações,
pactos, convenções, e pareceres, entre ou tros construtos do ordenamento jurídico
supranacional.
4.3 O direito à vida na legislação
supranacional: do Código de Nuremberg
à Declaração de Viena
A fina lida de do pr e se nte tópico é destacar os diplomas legais
supranacionais que buscam tutelar a vida humana no tocante à experimentação
292
Ibid, p. 149.
293
“A tese - conforme entende mos, com Jo Afonso da Silva - de que vida humana e personalidade
jurídica a partir da concepção pois somente pode existir aquilo que tem um i nício , um princípio, u ma
origem, qual seja, - vai encontrar novo fundamento a partir , precisamente, das modernas técnicas de
procria ção assistida, conforme assinala Stella Ne ves Barbas, com a possibilidade de criação e
desenvolvimento da vida humana sem o ato natural de nascer. Não é pelo nascimento que se torna
humano algo que não seja; o ser humano, em todos os estados ou etapas, ‘é homogêneo em si mesmo’.
Variam as formas, até o nascimento, na s ua fase completa: ‘a embriologia moderna pode afirmar com
segurança que o processo evolutivo embriológico é contínuo, vai desd e o momento da concep ção até o
momento do nascimento e prossegue após este”.GARCIA, Maria. Op. cit., 154.
294
Ibid, p. 164.
145
científica. No entanto, por serem muitas as iniciativas nesse sentido e todas de
extrema relevânci a, haja vista a magnitude do tema em si, discorr e r- se-á prévia e
brevemente a respeito de a lguns institutos precurs ore s dessa tutela, reservando-se
ênfase àqueles diretamente relacionados ao presente trabalho, isto é, aos
documentos que versem sobr e a utilização do embrião humano como fonte de
células-tronco embrionárias em pesquisas científicas.
O Código de Nuremberg
Durante a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha nazista, em nome da
pesquisa científica e do avanço da medicina, inoculou-se proposita lmente sífilis,
gnococos por via venosa, tifo, células cancerosas e vírus de toda sorte em seres
humanos prisioneiros; efetuar am-se esterilizações e experimentos genéticos com
o objetivo de obter uma raça superior; queimaduras de e graus foram
provocadas através da exposição aos compostos de fósforo; doses de substâncias
tóxicas foram ministradas com vistas a conhecer seus efeitos; mulhe re s com
lesões pré-cancerosas no colo do útero fo ra m, delib e ra damente, deixadas se m
tratamento com o escopo de analisar a evolução da moléstia. No Japão,
prisioneiros chineses f or am infectados com bactérias causadoras da peste
bubônica, antraz, febre tifóide e cóle ra e, em seguida, expostos a vivissecções
sem anestesia.
Em re sposta a essas atrocidad es foi elaborado, em 1947, o Código de
Nuremberg. Em que pese o Código de Nuremberg não fazer expressa r eferência
às pesquisas envolvendo seres humanos concebidos e não n a sc idos
295
, tinha
295
“Já o Código Internacional de Ética Médica, estabelecido em outubro de 196 9, determina
expressamente que ‘o médico de sempre lembrar-se da importância de preservar a vida huma na, d esde
a concepção até a morte’. E assim o é porque, consoante afirma a Declaração apresentada pela associação
médica finlandesa, em outubro de 1996, ‘a vida de um ser huma no individual co meça com a concepção e
146
como propósito estabelecer diretrizes gerais que inibiam os experimentos nos
quais n ão houvesse uma bem definida finalidade diagnóstica ou tera pê utic a,
determinando a precedência da vida e da saúde do sujeito da pesquisa sobre os
avanços da biomedicina
296
.
A Declaração Universal dos
Direitos do Homem
Um ano após a edição do Código de Nuremberg, em 1948, foi promulgada
pela Organização das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, documento de cunho internacional que reconhece certos direitos como
essenciais a todos os seres humanos. Importante frisar que tal documento
limitou-se a procl amar a existência desses direitos e não a criá-los, por isso o fez
sob a epígrafe de “declaração”
297
.
Embora, te cn icamente, a Declara çã o Universal dos Direitos do Homem
representasse uma recomendaç ão
298
efetuada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas aos Estados membros, seu valor histórico fez com quase todas as nações
termina com a morte’ (Declaração-Proposta da Associação Médica finlandesa na 48ª Assembléia Geral da
Associação Médica Mundial, realizada na África do Sul)”. SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 248.
296
Ibid, p. 248.
297
É assim que Schoo yans expressa seu posicionamento acerca da DUDH: “é uma declaração de direitos,
e não uma atribuição de direitos aos homens, porque esses direitos os homens possuem por naturez a,
sejam eles reconhecidos ou não; a declaração é igualmente universal porque tais direitos todos os homens
os p ossuem, e ninguém está autorizado a exercê-los em detrimento de outrem.” SCHOOYANS, Michel.
Dominando a vida, manipulando os homens. São Paulo: IBRASA, 1993, p. 19-20.
298
É tema pacífico hoje que a vigência dos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos
Direitos do Ho mem independe de sua declaração em constituintes, leis e tratados internacionais, haja
vista o direito internacional não se esgotar somente neles, mas por ser constituído também por costumes e
princípios gerais de direito, conforme declara o art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
Assim, os direitos humanos enunciados na Dec laração de 1948 correspondem, na sua totalidad e, àquilo
que os costumes e princípios jurídicos internacionais rec onhecem como elementos básicos de reverência à
dignidade humana Cf. COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit. p. 224.
147
do mundo acabassem por reconhe c er a máxima contida em seu art. , segundo a
qual “todos os seres humanos nasce m livres e igu ais em dignidade e direitos”.
Uma interpretação açodada do dispos itivo poderá dar margem a
entendimentos equivocados, que o preceito empreg a o ter mo nascem, como se
houvesse sido considerada pela Assembléia a possibilidade de dispensar
tratamento diferenciado entre os seres humanos nascidos e aqueles ainda por
nascer.
Não obstante, oportuno recordar que a determinação contida no art. d o
mesmo diploma legal é capaz de dissipar qualquer interpretação distorcida que
venha a fugir ao espírito igualitário que anima a Decla ra ção Universal dos
Direitos do Homem. Desse modo, o referido artigo acentua que “todos são iguais
perante a lei e m direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei...”.
Com efeito, se todos devem ser igualmente pr ote gido s pela lei, descabido
o entendimento, de acordo com o qual, distinguem-se os homens nascidos dos
homens ainda não nascidos, mas concebidos. Tal interpretação colidiria com o
direito amplo e irrestrito à vida, proclamado no art. da Declaração que
estabelece ca te gor ic amente que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal”.
299
Do Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos e Do Pacto dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais
Em continuidade ao objetivo perseguido in icialmente pela Dec lar a ção de
1948, a saber, a institucionalização dos direitos do homem em âmbito unive r sal,
299
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10/12/1948.
148
a As sembléia Geral das Nações Unidas adotou, em 1966, dois pactos
internacionais de direitos humanos: o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Ao primeiro deles, foi anexado um Protocolo Facultativo, atribuindo ao
Comitê d e Dire itos Humanos, instituído p or aquele Pacto, competência para
receber e processa r denúnc ia de violação de direitos humanos, formuladas por
indivíduos contra qualquer dos Estados-Partes.
300
Em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
estabelecem os pactos em seu art. que “o direito à vida é inerente à pessoa
humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém deverá ser
arbitrariamente privado de sua vida”. Mai s à fre nte , por meio do art. 16º
determina-se o reconhecimento do direito da personalidade jurídica a qualquer
pessoa, onde quer que esta se encontre.
301
Do Pacto de São José da
Costa Rica
Também conheci do como Convenção Americana de Direitos Humanos, o
Pacto de São José foi aprovado na Conferência Interamerica na de Direitos
Humanos, realizada em 22 de novembro de 1969, na Costa Rica.
Subscrita pelo Brasil nessa mesma data, a Convenç ã o somente foi
aprovada pelo Congr e sso Nacional em 26 de maio de 1992, através do decreto
300
Ambos os pactos foram ratificados pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de
dezembro de 1991, e promulgado pelo Decreto n. 595, de 6 de dezembro de 1992. Cf. COMPARATO,
Fabio Konder. Op. cit., p. 275.
301
Ibid, p. 290.
149
legislativo n. 27, sendo ordenada sua integral observância em 25 de setembro de
1992 pelo decreto executivo n. 678, incorporando-se, assim, definitivamente ao
ordenamento jurídico pátrio
302
.
De início, o Pacto é taxativo ao determinar em seu art. 1º, § , que, para
efeitos da Convenção, “pessoa é todo ser humano”, não determinando, assim,
qualquer desigualdade ao trato para com a vida intra ou extra-uterina.
Mais adiante, em seu art. 4º, § 1º, expressamente anuncia:
“Toda pe ssoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito
deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da
concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
No concernente ao emprego da expressã o “em geral”, constante do
referido artigo, existe a possibilidade de, af asta nd o-se da intenção da Comissão
que re digiu o texto, interpretar que se uma regra geral que implica na
observância do respeito d o direito à vida, há, da mesma forma, uma exceção que
autorizaria, em certos casos, a não observação do preceito. É nesse sentido a
interpretação de muitos Estados tendentes a legalizar o aborto.
Não obstante, é preci so recordar qu e, em seguida, o § do mesmo
dispositivo faz uma ressalva cap az de dirimir qualquer dúvida, det e rm ina ndo a
proibição da aplicação da pena de morte, para os Estados que ainda não a
aboliram, à mulher em estado de gravidez.
302
No que concerne aos órgãos de fiscalizaç ão e julgamen to, a convenção atribuiu competência ao
Tribunal Europeu de Direitos Hu manos. O Protocolo n. 11 à Convenção Européia de Direitos Humanos
extinguiu a Comissão prevista no art. 44 do Pacto de São José da Costa Rica, atribuindo sua competência
ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). O mesmo protocolo vinculou, de pleno direito, todos
os Estad os –Membros à jurisdição do tr ibunal. Cf. VASCONCELOS, Cristiane B euren. Op. cit., p.96.
150
Importante consignar qu e o artigo 29, visa ndo evitar qualquer
entendimento isolado e dissonante dos dispositivos constantes da Conve nç ã o, ao
tratar das regras de interpretação, é contundente ao proibir quaisquer
interpretações que suprimam ou limitem os direitos e as libe rda des nela previstos
(§1º); excluam outros direitos e garantias inerentes ao seres humanos ou que
decorram da forma democrática representativa de governo (§3º); e exclu am ou
limitem a Declaração dos Dire itos e Deveres do Homem e demais atos
internacionais de idêntica natureza em seus efeitos (§4º).
303
Nesse sentido, oportuno recordar o ensinamento preciso de Hélio
Bicudo
304
para quem “... a Convenção de 1969 quis afirmar, simplesmente, que o
direito à vida deve ser protegido ordinariame n te, comumente (em geral) a partir
do momento da concepção”.
Em sentido análogo Fabio Konder Compara to
305
, ao se manifestar acerca
do citado art. 4º, afirma que “tal como redigido, o artigo proíbe também [...] as
práticas de produções de embriões humanos [...] bem como da clonagem humana
para finalidades não reprodutivas e, portanto, com destruição do embrião.”
Desse modo, no que diz respeito ao e sta tuto da concepção humana,
forçoso admitir, junta me nte com Reinaldo Pereira e Silva
306
, que três sã o as
diretivas enunciadas no Pac to de São José da Costa Rica: “a pri me ir a prevê o
respeito universal à vida; a segunda esclarece que a vida deve ser respeitada
desde o momento da concepção; e a terceira afirma o respeito incondicional à
vida.”
303
Ibid, p. 96.
304
BICUDO, Hélio Pereira. Direitos humanos e sua proteção. São Paulo: FTD, 1997, p. 62.
305
COMPARAT O , Fábio Konder. Op. cit., p. 364 .
306
SILVA, Reinald o Pereir a e. Op. cit., p. 252.
151
Da Declaração Universal do
Genoma Humano e dos Direitos
Humanos
Originária da apresentação para adoção, na 29ª sessã o da Con ferência
Geral da Organização das N a çõ es Unidas para a Educação, a Ciên cia e a Cultura
UNE SCO -, realizada de 21 de outub ro a 12 d e novembro de 1997, a
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Dire itos Humanos em seu art.
determina que “o genoma humano su bja z à unidade fundamental de todos os
membros da humanidade e também ao r ec onhecimento de sua dignidade e de sua
diversidade inerentes...”.
A particular preocupação em tutelar os direitos das gerações futuras fica
registrada em seguida, qua nd o estabelece, como assinalado anteriormente, que
o ge noma humano “... num sentido simbólico é herança comum da
humanidade.”
307
Assim, resta evidente, pois, o caráter inclusivo do dispositivo,
uma vez que se destina a “todos os membros da humanidade” e que constituem,
na sua própria redação, uma “unidade fundamental”.
308
Para Stela Marcos de Almeida Neves Barbas
309
, a Declaração de 1997
proclamando o genoma humano e a informação nele contida patrimônio c omum
307
Comparato, ao refletir acerca da extensão da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os
Direitos Humanos, assinala que se o genoma humano constitui um patrimônio da humanidade , a ninguém
seria permitido reivindica r direitos de propriedade intelectual sobre suas seqüenciais como vem sendo
feito, sistematicamente, desde 1991 “segundo o mais vulgar espírito capitalista”. Cf. COMPARATO,
Fabio Konder. Op. cit., p. 228.
308
Vide artigo da aludida Declaração.
309
Cf. BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Coimbra: Almedina,
1998 , p . 21-22 . É da mesma autora a r eferência a Daniel Serrão (A Unesco e o genoma humano), o qual
ressalta: “na realidade o genoma é assumido como um recurso humano cuja utilização ficará submetida a
um Comitê Internacional das Nações Unidas. Pode dizer-se que este recurso tem um lugar físico que é a
estrutura físico-química do gene e é constituído pela informação que nele está depositada. Esta
informação, que é um componente constitutivo d a pessoa humana, passará a ser patrimônio comum da
humanidade e será entregue à guarda da humanidade pelo seu órgão representativo, as Nações Unidas.”
152
da Humanidade deu origem a uma noção e um conceito inteiramente novos, em
termos de Direito Internacional, na medida em qu e a Humanidade, presente e
futura, passa a ser sujeito de direitos.
Com esta declaração, à figura jurídica da pessoa humana como sujeito de
direitos, acrescenta-se uma nova figura: o genoma humano como objeto e sujeito
de direitos. Cada país, segundo seus próprios valores culturais, éticos, sociais,
religiosos e econômicos etc., tutelará o conjunto de g en es de cada pessoa, não
no aspecto tangível (DNA e RNA) como também no aspecto intangível, a saber,
a informação nele inserida, desde o momento em que essa informação possa ser
manipulada, isto é, desde a formação do zigoto.
310
No que diz respeito a quaisquer discriminações, a D e cla ra ç ão em seu art.
estabelece que “todos m o direito ao respeito por sua dignidade e seus
direitos humanos...” não especificando, o documento, q ualquer distinção no
tratamento para com o ser h umano, conforme o e stágio evolutivo no qual se
encontre. o é admissível, portanto, imagin ar que o ente hu ma no nascido
mereça mais respeito ao direito fundamental à vida que o ente em de vir. E assim
o é porque “o proces so da vida é um continuum, desde a concep çã o, impossível
de cindir sem perda ou anulação”
311
, o ser human o é, pois, único e indivisível, da
concepção à morte, assim, a unidade da vida adquire, sobretudo, um “valor
absoluto”
312
.
No tocante à delineação dos limites intransponíveis que devem ser
observados na atividade científica, o art. 10 da Declaração enuncia que
“nenhuma pesquisa ou aplicação relativa ao ge noma humano, em especial nos
310
Cf. B ARBAS, Stela Marcos d e Almeida Neves. Op. cit., p. 21- 22.
311
GARCIA, Maria. Op. cit., p . 167.
312
BARBAS, Stella Marcos de Almeida Neves. Op. cit., p. 78.
153
campos da biologia, genética e medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos
direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana.”
313
Da Convenção sobre os Direitos d o
Homem e da Biomedicina do Conselho
da Europa: as Recom e nda ç õe s 1.046 e
1.100
Em 04 de a bril de 1997, abriu-se à adesão, em Oviedo, capital do
principado de Astúrias, o Convênio do Conselho da Europa para a Proteção do
Ser Humano em relação à s aplicações da Biologia e da Medicina, també m
chamado de Convênio de Biomedicina. Apesar de o Convên io não ter o Brasil
por Estado destinatário, nem por isso deixa de merecer destaque, que seu art.
dirige -se a todos os seres humanos
314
. Assim, proclama in verbis:
“Art. 1º- As partes na presente convenção pr o teg er ão a dignidade
e a identidade de todo s os seres humanos e garantir ã o a todas as
pessoas, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos
313
“É preciso lembrar que essa declaração transita no confuso campo ainda que de ordem transacional
das recomendações éticas que não m for ça de lei e, destarte, sem e xigibilidade jurídica, seguindo o
exemplo das cartas de boas intenções e dos códigos deontoló gicos do direito interno posto.”
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit.,p. 98.
314
“O Convênio de Biomedicina foi firmado por trinta Estados. Dos quinze membros da União Européia,
dez o firmaram: Dinamarca, Finlândia, França, Grécia, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Por tuga l,
Suécia e Espa nha; não o fizeram Áustria, Bélgica, Alemanha, Irlanda e o Reino Unido. Também não o
firmaram as Comunidades Européias, nem o s Estados o-membros que participaram da elaboração
(Austrália, Canadá, Vaticano, Japão e Estados Unidos); entrou em vigor em quatorze Estados dia primeiro
de janeiro do ano 2000: Dinamarca, Grécia, San Marino, Eslováquia, Eslovênia, Espanha , Suécia, Chipre,
República Tcheca, Estô nia, Geórgia, Hungria, Portugal e Romênia”. JIM ÉNEZ, Pilar Nicolá s. A
regulamentação da clonagem huma na no Conselho da Europa: o Protocolo de 12 de janeiro de 1998. In:
ROMEO CASABONA, Carlos Mar ía ; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Orgs.). Biotecnologia e suas
implicações técnico-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 324.
154
seus direitos e liberdades fundament a is face às aplicações da
biologia e da medicina.
315
Antes, porém, da aprovaç ã o da Convenção sobre os Direitos do Homem e
da Biomedicina, o Conselho da Europa havia sancionado, em 24 de setembro
de 1986, por intermédio da sua Assembléia Parlamentar, a Recomendação 1.046
sobre “o uso de embriões e fetos humanos para fins de diagnóstico, terapêuticos,
científicos e industriais”. Reconhecendo que “o progresso (em particular na
embriologia humana) tornou pr ec á rio o status do embrião”
316
, destarte, em seu
considerando V, a Recomendação afirma:
“Desde o momento da fertilização do óvulo, a vida humana se
desenvolve como um projeto contínuo, e que não é possível fazer
uma distinção nítida entre as fa se s (embrionais) do seu
desenvolvimento, e que a definição do status do embrião é,
portanto, necessária.”
Ao assumir a tutela de todos os entes que perten çam ao gênero humano, a
Recomendação 1.046 pugna pela “proibiçã o da geração de embriões in vitro para
315
“Deliberadamente, a centua Daniel Serrão, o artigo traz uma sutil distinção entre ser humano e pessoa,
sem definir tais conceitos. Para o autor, tr ata-se de uma mostra da diversidade legislativa so bre o estatuto
da concepção humana na União Européia. Segundo o mesmo, a contrapartida para a ac eitação de tal
redação foi ‘a aprovação de uma pr oposta para a futura elaboração do protocolo sobre a vida humana
antes do nascimento’. Rosár io Sapie nza, ao contrário de Da niel Serrão, advoga que o fato de o art.
falar, inicialmente, da pr oteção do ser humano (protezione dell’essere humano) e, depois, de direitos da
pessoa (dirritti della persona) não implica uma distinção que admita exclusão dos seres humanos
concebidos e não nascidos d a titularidade de direitos. O argumento de Ro sário Sapienza ganha ainda mais
consistência com a análise dos considerandos do Protocolo Adicional n. 168 à Convenção sobre os
Direitos do Homem e da Biomedicina do Co nselho da Europa, de 12 de janeiro de 1998, que versa
especificamente sobre o veto à clonage m humana. Em um d e seus considerandos, o Protocolo Adicional,
ao tratar do objeto da Convenção européia, utiliza a expressão ser humano para identificar o titular dos
direitos ameaçados pela clonagem, pela lógica de Daniel Serrão, o correto seria o emprego da expressão
pessoa. Eis a redação do considerando na sua versão italiana: ‘Considerato l’og getto della Convenzione
sui diritti dell’uomo e la biomedicina, in particolar e il principio enunciato all’articolo 1 che tende a
proteggere l’esser e umano nella sua dignità e nella sua identità’”.SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p.
253.
316
Considerando VI da aludida Recomendação.
155
fins de pesquisa durante a sua vida ou depois da morte”
317
; pela “proibição da
geração de seres humanos idênticos por clonagem ou qualquer outro método, seja
ou não para aprimoramento da raça”;
318
e pela “proibição de experimento em
embriões humanos vivos, quer vitais, quer o vitais”
319
.
Para fins diagnósticos, a Recomendação 1.046 não permite intervenções
em embriões e fetos humanos vivos, tanto in vitro, como no útero
320
, a menos
que tal intervenção seja para o bem do ser humano que deve nascer e para a
promoção do seu desenvolvimento
321
. Para fins terapêuticos, a Recomendação
1.046 segue a mesma orientação antecedente, não per mitind o experimentação em
embriões e fetos humanos vivos, tanto in vitro quanto in útero, exceto para
favorecer-lhe o nascimento
322
.
Quanto à Recomendaçã o 1.100, merece destaque por ter afirmado que “ é
correto determinar a tutela jurídica a ser assegurada ao embrião humano desde a
fertilização do óvulo
323
, pela seguinte razão:
“O embrião humano, embora se desenvolva em fases sucessivas
indicadas com nomes diversos (zigoto, mórula, blástula, embrião
pré-fixado, embrião, feto), manifesta também uma difere nc iaç ã o
progressiva do seu organismo, mantendo continuamente a própria
identidade genética”
324
.
317
Item 14 , letra “a”, inciso III, da aludida Recomendação.
318
Item, 14, letra “a”, inciso IV, da aludida Recomendação.
319
Item, 14, letra “a”, inciso IV, da aludida Recomendação
320
A recomendação e xcepciona as intervenções já autorizadas pela legislação nacional.
321
Apêndice, letra “a”, inciso I, da aludida Recomendação.
322
Apêndice, letra “b”, inciso I da aludida Recomendação.
323
Considerando VI da aludida Recomendação.
324
Considerando VII da aludida Recomendação.
156
Da Declaração e do Programa de
Ação de Viena
A primeira Conferência da Organização das Nações Unidas dedicada aos
direitos humanos realizou-se, no auge da Gue rra Fria, de 22 de abril a 13 de maio
de 19 68, vinte anos, portanto, após a D ec laração Universa l dos Direitos do
Homem de 1948, e ocorreu na capital do Irã. Em contraste com os apenas
cinqüenta e oito Estados sob er anos que participaram da votação da Declaração
em Pa ris, oitenta e quatro nações sobe ranas fizeram-se repre sentar por seus
líderes no encontro ocorrido em Teerã
325
.
na segunda Con ferência da ONU , ded icada aos direitos humanos,
realizada de 14 a 25 de junho de 1993, e m Viena, na Áustria, mais de 170 países
representando as mais diversificadas culturas, religiões e sistemas
socioeconômicos e políticos adotaram, por conse nso e sem reservas, o
documento final oriundo do e nc ontro. Lindgren Alves
326
refere-se à Declaração
como o documento mais abrangente e legítimo so br e os direitos humanos de que
dispõe a humanidade.
Prevê a Conferência, em seu art. a promoção, o respeito, a observ â nc ia
e a proteção em nível universal de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, enfa tiz an do, ao f ina l, que “a na ture z a universal desses direitos e
liberdades está fora de questão”
327
; também se faz presente no documento o
aprofundamento da no ç ão de invisibilidade dos dir eitos humanos, expresso no
art. 5º, in verbis:
325
Durante a primeira Co nferência da ONU, dois terços da humanidade vivia em territórios coloniais. Cf.
SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 206.
326
ALVES, José Augusto L indgren. A declaração dos direitos humanos na pós-modernidade. In:
BOUCAULT, Car los Eduardo de Abreu; ARAÚJ O, Nadia de ( O rgs.). Os direitos humanos e o direito
internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 144.
327
Artigo 1 º da aludida Conferência.
157
“Art.5º Todos os direitos humano s são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional
deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e
eqüitativa, em de igualdade e com a mesma ênfase. As
particularidades nacionais e regionais dev e m ser levadas em
consideração assim como os diversos co ntex tos históricos, culturais
e religiosos, mas é dever dos Estados pro m over e proteger todos os
direitos humanos e liberdades fu ndamentais, independentemente de
seus sistemas políticos, econômicos e culturais”.
Prossegue afirmando em seu art. 10 que a pessoa é “sujeito central do
desenvolvimento”, e , ainda, que “todas as pessoas têm direito de desfrutar dos
benefícios do progresso científic o e de suas aplicações”, re ssalvando a posição
assumida pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que reconhece em
“determinados avanços, principalmente na área das ciências biomédicas e
biológicas, a capacidade de implicação de conseqüências, potencialmente
adversas para a integridade, dignidade e os direitos humanos do indivíduo”,
solicitando, assim, a coopera çã o da comunidade internacional no sentid o de
garantir o “pleno r espeito dos direitos humanos e à dignidade, nessa área de
interesse universal”, conforme art. 11; declara, ainda, no art. 13, in verbis que:
Art. 13 Como os direitos humanos e as liberdades fundame nta is
são indivisíveis, a plena realização dos direitos civis e políticos
(direitos de liberdade) sem o gozo dos direitos econômicos, sociais
e cu ltura is (direitos de igualdade) é impossível. O alcance de
progresso duradouro na i mple me nta çã o dos direitos humanos
depende de políticas nacionais e internacion ais saudáveis e eficazes
de desenvolvimento econômico e social.”
158
4.4 Da exigibilidade das Declarações
Antes de tecer quaisquer considerações acerc a da exigibilidade dos
direitos afirmados no âmbito da legislação supranacional, cumpre esclarecer que,
independentemente da designação adotada pelos documentos internacionais
indicados no item anterior , inexiste diferença substancial no que diz respeito à
conceituação que as tipificam. Desse modo , quer como tra tad o, que r como
estatuto, carta, protocolo, ato, pacto, acordo, entre tantos outros termos adotados,
todos eles são, para efeito dos art. 49
328
, inciso I e art. 84
329
, inciso V III da
Constituição Federal de 1988, indistintos entre si.
Feita essa ressalva, uma vez que os tratados lançam suas considerações
com base naqueles direitos clássicos, isto é, no direito à vida, à dignidade, à
liberdade, à igualdade etc., c umpre esclarecer como se sua recepção no direito
interno posto.
Para tanto, necessid a de de se confrontar o disposto no art. 5º, § 2º, da
Constituição Federal de 1988, que estabelece, in verbis:
“§ Os direitos e garantias fundamentais expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes d o regime e dos
princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.”
328
“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarrete m encargos ou
compromissos gravosos ao patrimônio nacional.”
329
“Art. 84. Compete p rivativamente ao Presidente da Repúbli ca:
VIII celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.”
159
Sem deixar de considera r, ainda, o dispositivo que, com a Emenda
Constitucional 45/2004, passou a integrar a Carta Política pátria, § 3º, in
verbis:
“§ Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso
nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
330
Destarte, é possível inferir que a expressão “decorrentes do regime dos
princípios” constante do § evidencia a existência de direitos fundamentais não
escritos , isto é, que o foram objeto de previsão expressa pelo direi to positivo
seja ele constitucional seja internacional -, mas que estão ou pod em ser contidos,
via interpretação, naqueles existentes implicitamente na Carta ou coerentes
com seu regime democrático e princípios.
331
É assim, pois, que a fórmula se constitui em conce ito “materialmente
aberto” e de uma “amplitude ímpar”, por encerrar , expressa e simultaneamente,
“a possibilidade de identificaç ão e construção jurisp rud encial de dir e itos
330
“No que concerne ao § do art. da Constituição, acrescido por o casião da Emenda Constitucional
45/2004, referido parágrafo teve o condão de regulamentar definitivamente a posição hierárquica dos
tratados e convenções internacionais, guiando-os à ca tegor ia de emendas constitucionais desde que
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros. Dessa forma, pretende-se suplantar a atual miríade interpretativa instalada em torno
do § do texto const itucional, ratificando-se o entendimento daqueles que vislumbram o reconhecimento
expresso dos tratados que versem sobre direitos humanos ao patamar constitucional ou, como preleciona
Mazzuoli com ‘índole e nível materialmente constitucional. Os demais tratado s, na forma pre conizada
pelo art. 1 02, II I, b, da CF/88, esses sim, equiparam-se às leis ordinárias fed erais. Pela utilização d o
contido no § do texto, os tratados trans formados em Emendas Constitucionais passaria m a produzir
efeitos mais amplos pois reformariam a Constituição e todos os seus textos conflitantes; além disso, não
poder ia m ser denunciados nem pelo Congresso Nacional sob pena de responsabilidade do Presidente da
República -, nem pelo pr óprio presidente, d e forma unilateral, pois as emendas constitucionais referentes
aos direitos humanos constituem-se em cláusulas pétreas insculpidas no art. 60, § , IV, da CF/88.”
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p . 104.
331
“Também entre nós, não é a lei a única fonte do direito, porque o ‘regime’, quer dizer a forma de
associação política (Democracia Social), e os ‘princípios’ da Constituição (República Federal
Presidencialista) geram direitos”. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 99.
160
materialmente fundamentais” ainda não positivados, além daqueles dispostos
em outras partes da Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacio na is
332
.
a parte final do preceito estabelecido no § do art. 5º, que se refere aos
tratados em que “a Repúblic a Fede r ativa do Brasil fizer parte”, reforça a
prevalência dos direitos humanos como um dos princípios pelo qual r e ge -se o
Brasil nas sua relações internacionais, confo rme pre o inciso II do art. , in
verbis:
“Art. - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas
relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
II prevalência dos direitos humanos;”
Assim, f eita s essas conside ra çõ es e estabelecidas essas premissas, o
Brasil, enquanto signatário do Pacto de São José da Costa Rica - Convenção
Americana de Dir e itos Humanos - e do s Direitos Civis, Políticos, Econômicos,
Sociais e Culturais, p ela ordem emanada do aludido § 2º, art. 5º, da Constituição
Federal de 1988, deve contar como recepcionadas todas aquelas disposições ao
seu catálogo.
333
Ao analisar a questão, Helio Bicudo infere:
334
332
Cf. SAR LET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 99.
333
Dentre os autores que não reconhecem o status constitucional dos tratados internacionais dos direitos
humanos dos quais o Brasil é signatário, a tribuindo-lhes, assim, força de lei ordinária federal, estão:
Manuel Gonçalves Ferreira Filho, Ivo Dantas, Pinto Ferreira, , Alcino Pinto Falcão e José Cretella Jr. Cf.
MELLO, Celso Albuquerque de. O § do art. da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Lobo
(Org.) Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p . 17-18. Em sentido
oposto, isto é, pelo reconhecimento do patamar co nstitucional desses dir eitos, dentre o utros: Flavia
Piovesan, Antonio Augusto Cançado T rindade, José Afonso da Silva, Jo Carlos de Magalhães,
Christian Courtis, Vitor Abramowich, Hélio Bicudo e Valério de Oliveira Mazzuoli. Cf.
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p. 101-102.
334
BICUDO, Helio. Direitos humanos no parlamento bra sileir o. In: PENTEADO, Jacques de Camargo;
BRANDÃO Denirval da Silva; MARQUES, Ricardo H enry Dip et. al. A vida dos direitos
humanos:bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 88.
161
“Se não compartilharmos da idéia de que tratados assinados o
meros farrapos de papel, estamos na obri gação ética e moral de
nortear a legislação ordinária no sentido por eles apontados.”
Com efeito, o Pacto de São José da C o sta Rica, alheio ao estádio atual em
que se discute o início da vida humana sob os primas biológico e jurídic o, prevê
a pr ote çã o da vida como “ direito que de ve ser protegido, em geral, desde o
momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” (ar t.
4, § 1º)
335
. Não é demais, aqui, repetir a ordem expressa no art. 29, alínea 1 do
mesmo diploma legal, que proíbe qualquer interpreta ç ão que tenha por finalidade
limitar ou suprimir d ireitos e garantias pr ev istos no p ac to. Do mesmo modo, o
art. do Pacto Interna c ion al de Direitos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e
Culturais prevê a vida como um direito inerente à pessoa humana a ser protegido
por le i e cuja privação arbitrária é terminantemente proibida. Ademais, a
Constituição brasileira, além de catalogar, de forma expressa, o direito à vida,
estabelece em seu art. 60, § 4º , inciso IV, in verbis:
“§ não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir: [...] os direitos e garantias individuais”.
336
335
Veja-se, a esse respeito, decisão emitida pelo Tribunal criminal paulista: “Em boa hora se vem
invocando nos pretórios o Pacto de São José d a Costa Rica (Convenção Americana de Direitos
Humanos), que se fez direito interno brasileiro, e que, pois, não configura, entre nós, simples meta ou
ideal de lege ferenda. É mesmo re clamável seu cumprimento integral, porque essa Convenção foi
acolhida sem reservas pelo Estado brasileiro. Pa rece que ainda não se compreendeu inteiramente o
vultoso signif ic ado da adoção do Pacto entre nós: bastaria lembrar, a p ropósito, pela vistosidade de suas
conseqüências, que seu art. modificou até mesmo o conceito de pessoa anteriormente versado no art.
do Código Civil, que atualmente, pes soa, para o direito posto brasileiro, é todo ser humano, sem
distinção de sua vida extra ou intra uterina.”(Habeas Corpus 323.998/6, TACRIM-SP, 11ª m., v.u.,
Rel. Ricardo Henry Marques Dip, j. 29.06.98).
336
A exigibilidade das disposiçõ es constantes nos tratados e conve nções internacionais encontra um
complicador, contudo, naqueles intérpretes que reconhecem as decisões dos tribunais internacionais,
competentes para receber e processar denuncias como meras declarações de princípios. Nesse sentido,
Vasconcelos assevera que “os Estados subscritores dessas convenções, escoimados no principio da
soberania, não reconhecem nos tr ibunais internacionais essa competência contenciosa. É assim que o
Pacto de São José da Costa Rica, ratificado e adotado no direito interno brasileiro, não o alcança do ponto
de vista contencioso pelo simples moti vo de que, para tanto, haveria necessidade de reconhecimento
expresso dessas cláusulas, o que até hoje não aconteceu. O que é o reco nhecimento obrigatório pelos
Estados subscrito res da Conv enção Americana da competência da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos para a consideração de queixas individuais. Nesse co ntexto, está em seu campo d e atuação u m
162
Conforme ensina Hélio Bicudo
337
, nítido é o posiciona mento da
Constituição brasileira, que recepciona o Pacto de São José da Costa Rica
estabelecendo, definitivamente, a inviolabilidade do direito à vida a partir da
concepção.
Destarte, u ma análise, superficial que seja, da evolução histórica dos
direitos humanos, das declarações que surgiram, ger a ção após geração, bem
como da disposição dos Estados em subscre vê -la s, permite const a ta r que em
comum essas iniciativas repr e sentam um esforço jurídico e político no sentido de
proteger, amparar e tute lar um bem pri macial, primordial, supremo, o bem da
vida.
Assim considerada, a vida, antes de ser u m direito humano, é pressuposto
e fundamento de todos os demais direitos, não que se falar em liberdade, em
igualdade, em solidariedade, em segurança, em proprie da de , em saúde, em
educação, em dignidade da pessoa humana, entre outros direitos ig ua lmente
essenciais, se não houver o respeito ao direito à vida e é, no respeito a esse
direito fundamental, que a atividade da pesquisa científica em lulas-tronco
embrionárias devem encontrar o seu limite de atuação.
Em consonância com esse entendimento, François Ost
338
sublinha:
“O que é certo, em todo o caso, é que se quiser resistir ao
reducionismo biológico e às poten ciais ameaças [...], o direto
deverá deixar de se pôr a reboque da norma tecnocientífica. Não
amplo leque de atribuições, dentre as quais a de, primeiramente, buscar um acordo entre as partes, dando-
se ao Estado, em seguida, um prazo razoável para o acatamento das medidas recomendadas. Se ele não as
cumprir, a questão será encaminhada ao domínio público (na forma de r esolução incluída no relató rio
anual). Tendo caráter quase judicial, são de cunho declaratório ou não de culpa, indicando medidas
concretas de reparação (após e fetivação de a ud iê ncias individuais e investigações quando necessário)”.
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p . 103.
337
Cf. BICUDO, Helio. Op. cit. p. 88.
338
OST, François. Op. cit., p. 100.
163
assumirá o seu papel social senão quando conseguir impor as suas
ficções, ou seja: uma ordem de realidade que, por estar deslocada
em r elação à evidencia científica (para a qual, por exemplo, o
homem é um conjunto de células), não será menos expressão de
escolha de valore s conscientes e democráticos. Deverá, por
exemplo, estabelecer qu e o corpo humano e a informação genética
que ele contém, são patrimônio comum da humanidade e, a esse
título, indisponíveis, mes mo com o conse ntimento do interessad o.
Deste modo, o Direito exerc e rá o papel que é necessariamente o
seu: lembrar a existência de limites.”
164
5. O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA
COMO LIMITE À PESQUISA
CIENTÍFICA EM CÉLULAS-TRONCO
EMBRIONÁRIAS HUMANAS
Qualquer consideração que se pretenda tecer acerca do conhecimento
científico e d e seus limites deve pa rtir do magistério de Maria Garcia
339
que, ao
refletir acerca do conhecimento e dos caminhos percorridos pela ciência, ensin a:
“O problema do conhecimento, da ciência demonstra-se, portanto,
uma q ue stão filosófica (a necessidade humana do saber), uma
questão política (o fenômeno humano do poder, de dominação da
realidade) e, por certo, uma questão jurídic a : a liberdade do homem
e suas limitações.”
O tema da limitação do conhecimento científico é, no entanto, sempre um
tema muito pol êmico. Isso porque, de um lado, encontram-se aqueles que
consideram que estab elecer limites para o de senvolvimento da pesquisa científic a
consiste em admitir que a humanidade regresse à idade das tre va s. Os que assim
se posicionam argumentam que “limitar a ciência pela legislação jamais vai dar
certo.”
340
Em contrapartida, existem aqueles que, diante das avassaladoras técnicas
que a biologia molecula r associada à biotecnologia demonstrou-se capaz de faz er
engendrar, incluída a diagnose genética para fins de seleção ou eugenia, a
339
GARCIA, Maria. Op. cit., p . 33-34.
340
GLEISER, Marcelo apud GARCIA, Maria . Op. cit., p. 248.
165
manipulação de lulas germinais e o risco de alteração definitiva do p atr imônio
genético da humanidade, a hiper-estimulação hormonal feminina para produção
de óvulos com a finalidade de comercialização, a produção de embriões e fetos
utilizados como matéria-prima da indústria c osmética, enfim, diante da
possibilidade de reificaçã o do ser humano, afirmam que, “aquilo q ue devemos
‘evitar’ a todo o custo deve ser determinado por aquilo que devemos ‘preservar’
a qualquer preço”
341
, isto é, a vida humana.
Determinar um limite seguro , que permita harmonizar essas realidades
possibilitando que a ciênc ia avance, sem que esse avanço configure uma ameaça
para a vida e o f utur o da espécie humana, constitui a missão à qual se destina o
Biodireito.
5.1 O Biodireito: guardião da vida
Aspirando estabelecer u m conce ito ace rca do Biodireito, Daury César
Fabriz
342
enuncia:
“O B iodir eito, um novo ramo do Direito que vem despontando,
refere-se a os fatos e eventos que surgem a partir das pesquisas da s
ciências da vida; que nascem a partir do ‘a um en to de poder do
homem sobre o próprio homem qu e acompanha inevitavelmente o
progresso técnico, isto é, o progresso da cap ac ida de do ho me m de
dominar a natureza e os outros homens ou c ria r novas ameaças à
liberdade do indivíduo, ou permitir novos remédios para as suas
indigências.’ Caracteriza-se o Biodireito como o ‘ramo do Direito
341
GARRAFA, Volnei. Crítica bioetica a um nascimento anunciado. Revista dos Centros de Estudos
Judiciários da Justiça Federal. Brasília, v. 06, n. 16, mar. 2002, p. 28.
342
FABRIZ, Daury César. Op. cit., p. 288.
166
que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às
normas reguladoras da conduta humana, em face dos avanços da
biologia, da biotecnologia e da medicina’. O Biodireito concede
tratamento ao homem não como ser individual, mas acima de
tudo como espécie a ser preservada.”
Para que se apreenda a real amplitude do Biodireito, é necessário, pois,
que se façam algumas considerações preliminares acerca da etimologia do termo
biós.
Originário do vocabulário grego, biós signifi ca vida. Contudo, não possui
a mesma conotação de vida designada pela língua portu gu es a. Isso porque, no
uso corre nte da língua portuguesa vida é a antítese de morte e, no vocabulário
grego, a antítese de morte - thanatos - não é biós, e sim, zoé, ou seja, os gregos,
por atribuírem dois sentidos à palavra vida, possuem duas expressões distintas
para designá-los.
Assim, biós corresponde ao decurso da vida, ao seu período de duração, a
sua continuidade, relaciona-se com o tempo, chronos
343
, apresenta-se interligada,
portanto, à consideração dos meios e das condiç õe s nas quais a vida evolui,
condições essas no sentido de posse, propried ad e, opulência, recursos que a vida
possui para desen volver-se dignamente, abrangendo a vida, enquanto processo
vital, a desenvolver-se em toda sua oikos - casa onde se vive - em todo seu meio
ambiente. Par a a civilização grega, biós está, desse modo, diretamente
relacionado à ética, posto que enfatiza a condição, o status do ser .
344
343
O vocabulário grego tem duas palavras para designar o tempo: chronos e chairos. Chronos é o tempo
que transcorre; Chairos é o tempo como oportunidade.
344
LINK, Hans-George. O novo dicionário internacional de teologia do novo testamento. São Paulo:
Sociedade Religiosa Ediçõe s Vida Nova, 198 3, p.748-749.
167
Fermim Roland Schramm
345
, também anota estas distinções informando
que vida, enquanto zoé, é compreendida no sentido de vida orgânica, “como
princípio vital, como naturez a animada que contém um ímpeto (tymós) ou a alma
(psyche), considerados como princípios do movimento de cada ser vivo” e, biós
“como modo que o homem vive na prática sua vida, conforme os melhores
costumes e normas de convivência social”.
O campo de atu aç ã o do Biodireito é demarcado, destarte, por uma tênue
linha que divide o espaço reservado às recomendações éticas daquele destinado
aos mandamentos jurídicos, que distingue aquilo que é posto da quilo que é
imposto no que concerne ao respeito à vida, à sua proteção e a sua conservaçã o.
Assim, se ao Direito é rese r vada a tarefa de tornar possível a vida em
sociedade, lembrand o a lição de Goffredo Telles Junior
346
, segundo a qual “viver
é conviver”, ao Biodireito cumpre a missão de guardar a vida humana, no sentido
de pr ote ge r, de tutelar, de assegurá-la, tanto com relação ao ser humano
individualmente considerado quanto com relação ao gênero humano, tanto com
relação às presentes quanto com relação às futura s gerações, em qualquer etapa
de seu desenvolvimento, da co nc ep çã o à morte, onde quer que se encontre,
garantindo não a vida, mas, sobretudo, a dignidade.
Nesse sentido Francisco Vieira Lima Neto
347
ensina:
“O direito fo rne c e instru mentos formais a fim de que as normas
éticas se transformem em doc umentos e proc e dimentos efetivos.
Mas é a ética (que é também polític a) que vai questionar os valores
e as práticas do direito positivo, introduzindo novos valores e
345
SCHRAMM, Fermim Roland. As diferentes abordagens da bioética. In: PEGORARO, Olinto (Orgs.).
Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 33.
346
TELLES JR. GOFFREDO. A criação do direito. 2ª ed. São Paulo: Juarez d e Oliveira, 2004, p. 472.
347
LIMA NETO, Francisco Vieira. Responsabilidade civil das empresas de engenharia genética. São
Paulo: LED, 1997, p. 76-77.
168
procurando responder aos desafios que emergem da
contemporaneidade.”
Entre esses desafios cer tamente figura a questão da pesquisa científica em
células-tronco embrionárias.
5.2 O direito à vida no Direito
brasileiro
Se no âmbito da legislação supranacional o direito à vida apresent a va -se
como visto, sob o prisma dos d ir e itos humanos, em sede nacional é tido como
direito fundamental, previsto pela Constituição Federal de 1988 no título II Dos
Direitos e Garantias Individuais
348
.
Assim, a vida, alé m de ser tutelada pelo art. da Constituição Federal de
1988, também o é em outros dispositivos consta nte s na Magna Car ta de 1988 tai s
como: o direito à saúde (arts. 194 e 196), a inadmissibilidade da pena de morte
(art. , XLVII, a), a proteção à criança e ao adolescente (art. 227 , caput e § 1º,
II), o direito de subsistência (art. 7º), o amparo aos idosos e a assistência àqueles
que dela necessitem (arts. 230, 203, IV e 3º, IV), e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado (art. 225).
348
No que d iz respeito aos termos direitos e garantias re ssalva-se a distinção entre os vocábulos, segundo
a qual os direitos assumem nítido caráter enunciativo ou declaratório e, quando violados, deverão ser
corrigidos pelos chamados remédios constitucionais, as garantias, por sua vez, têm caráter assecuratório
ou instrumental consistente nas prescrições que vedam dete rminadas condutas do poder públic o, que
buscam prevenir e não corrigir os direitos violados. Nesse sentido recorda-se que “a distinção entre
direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições
meramente declaratórias, que são as que imprimem existência le gal aos direitos reconhecidos, e as
disposições assecuratórias, que são as que , em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas, instituem os
direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro, juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a
fixação da garantia, com a declaração do direito” . MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 251.
169
No que concerne à tutela da vida humana n a esfera infraconstitucional, o
art. do novo Cód igo Civil resguarda os direitos do nascituro desde a
concepção, prevê o direito à existência (CC, arts. 1.694 a 1.710, 948 e 950 e Leis
n. 5.478 /68, 8.971/94, art. e parágrafo único, e 9.278/96, art. ) e impõe
responsabilidade civil ao lesante em razão de dano moral ou patrimonial por
atentado à vida alheia.
Não bastassem a outorga da proteção constitu c iona l e ci v il, a vida humana
mereceu, outrossim, amparo jurídico-penal e, com esse es co po, foram tipificados
como crimes pelo Código Penal brasileiro de 1940 o homicídio simples ( CP, art.
121) e qualific a do (art. 121, § 2º), o infanticídio (art. 123), o aborto (arts. 1 24 a
128), o induzimento, a instigação e o auxílio a suicídio (art. 122).
349
Assim, a observ aç ã o do esforço no sentido de tutelar a vida humana, não
com r e laç ã o à instituição dos dispositivos acima assinalados, constitucionais e
infraconstitucionais, como também atravé s da ratificação de tratados,
anteriormente ana lisados, remete ao ensinamento de Maria Hel en a Diniz
350
segundo a qual, “a vida tem prior idade sobre todas as coisas, uma vez que a
dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido”.
É por essa razão que se afirma o direito fun da men tal à vida como fie l da
balança, no que concerne à pesquisa científica em célula-tronco embrionária,
como norte a orientar o or de na men to jurídico pátrio, exigindo-se, quando da
aprovação de novas le gislações e da interpretação daquelas em vigor, que por ele
se orientem e que nele busquem sustentação.
349
“A vida é resguardada, salvo nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade e e xer cício
regular de um direito, q ue excluem a ilicitude, e de aborto legal (art. 128, I e II) , que exting ue a
punibilidade.” DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 27.
350
Ibid, p. 28
170
5.3 A Con stituição Federal de
1988 e o Biodireito: arts. e 225
No que concerne à Constituição, Celso Bastos
351
ensina que ela deve ser
entendida como:
“... conjunto de regras e princípios de maior força hierárquica
dentro do o rde namento jurídico e que tem por fim or ga niz ar e
estruturar o poder político, além de definir os seus limites, inclusive
pela concessão de direitos fundamentais para o cidadã o” .
Para José Afonso da Silva
352
:
A Constitu içã o é algo que tem como forma, u m complexo de
normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta
humana motivada pelas relações sociais (econômicas, política s,
religiosas etc.); como fim, a realização de valore s que apontam para
o existir em comunidade; e, finalmente, como causa criadora ou
recriadora, o poder, que emana do povo. Não pode ser
compreendida e interpretada se não tiver em mente essa estrutura
considerada como con e xã o de sentid o, como é tudo aquilo que
integra um conjunto de valores.”
351
BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 52.
352
SILVA, Jo Afonso da. Op. cit.,, p. 41.
171
É de se ressaltar, todavia, que essa concepção
353
axiológica da
Constituição, na qual o Direito passa a ser considerado um conjunto de normas -
regras e pr inc ípios
354
- a regulamentar a vida em sociedad e, pautado, sobretudo,
em valores supremos como a vida, a dignidade e a liberdade, é fruto de uma
consciência jurídica deno minada, por muitos doutrinadores, de pós-positivista, e
que r e sulta da superação da doutrina juspositivista, acrítica aos valores, e da
doutrina jusnaturalista.
353
Quando da análise do conceito da Constituição de um Estado, outras concepções, além dessa jurídico-
pós-positivista, são possíveis de sere m formuladas, tais como: a concepç ão socioló gica, a política e a
jurídica positivista. A concepção sociológica da Constituição, apregoada p or Lassale, defende a
necessidade do diálogo entre a realidade em que se encontra a sociedade políticos, econômicos e
religiosos - e a Constituição, sob pena desta tor nar -se uma “folha de papel”, desse modo, a essência da
Constituição para o autor é “a soma dos fatores re ais do poder que regem uma nação.” LASSALE,
Ferdinand. A Essência da Constituição. ed. Rio de Janeiro: Lú men Júris, 199 8, p. 32. Teixeira observa
que a escola sociológica alerta para a necessidade de conhecer “... a realidad e social, a conjuntura
histórico-social, não apenas explicar os fenômenos políticos e jurídicos à luz desses conhecimentos, mas
também orientar os legisladores e o s aplicadores do Direito na tarefa incessa nte de uma concretiz ação,
cada vez mais per feita, dos ideais de Justiça e Bem Comum.” TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso
de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 53. A concepção política da
Constituição é formulada por Carl Schmitt. O autor classifica as acepções da p alavra “Constituição ” em
quatro grandes grupos, a saber, no sentido absoluto, a Constituição tomada como um todo unitário; no
sentido r elativo, a Constituição co mo pluralidade de leis particulares de diferentes alcance e valor; no
sentido positivo, como d ecisão concreta, de conjunto, sobre o modo e a forma de organização política; e
no sentido ideal, como expressão de um certo conteúdo ideal com o qual e la se identifica, e que, desde a
Revolução Francesa, é o conteúdo liberal-democrático do Estado de Direito. Cf. TEIXEIRA, Jo
Horácio Meirelles. Op. cit., p . 42. Por fim, a co ncepção jurídica positivista da Constituição, que
encontra em Kelsen seu expoente máximo e q ue nega qualquer influência sociológica, política, filosófica
ou de Direito natural que possa haver sobre as normas cons titucionais. Por essa concepção, a Constituição
assume, no sentido lógico-jurídico, o caráter de norma hipotética fundamental, a qual determina o
cumprimento da própria Constituição, isto é, impõe a todos o dever de obediência às normas estabelecidas
pelo poder constituinte e, no sentido jurídico positivo como “norma ou as normas positivas através das
quais é reg ulada a produção de normas jurídica s gerais”. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 247.
354
A esta altura, cumpre destacar a distinção que se faz entre regras e princípios. Assim, seguindo a lição
de Willis Santiago Guerra Filho “... as regras trazem a descrição de estados-de-coisas formados p or um
fato ou um c erto mero deles, enquanto nos princípios uma referência direta a valores. Daí dizer que
as regras se fundam nos princípios, os quais não fundamenta riam diretamente nenhuma ação, dependendo
para isso da intermediação direta de uma regra concre tiz adora. Princípios, por ta nto, têm um alto grau de
generalidade [...] e abstração” . O autor acrescenta, ainda, que na ocorrência de conflito, quando este se
verifica em relação às regras, resulta em antinomia, a ser resolvido pela perd a d e validade de uma das
regras e m colisão. Quando o conflito ocorre entre princípios, resolve-se pelo acatamento de um, se m que
isso implique no desrespeito completo do outro. Por último, na hipótese de choque entre regra e princípio,
é crucial que este prevaleça sobre aquela. FILHO, Willis Santiago Guerra. Op. cit., p. 43 e ss. Na clássica
lição de Bandeira de Mello, princípio é o “mandamento nuc le ar de u m sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de
critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, no que lhe confere a nica e lhe se ntido harmônico.” BANDEIRA DE ME LLO,
Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 11ª ed. Sã o Paulo: Malheiros, 1999, p. 628-629.
172
no q ue diz respeito ao Biodireito, restou anotado acima que é dele a
missão de tutelar a vida em sua plenitude, isto é, biós e zoé. Assim, Maria
Garcia
355
justifica o Biodireito constitucional, informando que “... a Constituiç ã o
trata, em caráter de s upremacia, da pessoa, da vida e da liberdade.”
Da in ter se cç ã o da Constituição com o Biodir eito resulta, para Oliveira
Baracho
356
, a Bioconstituição, que o autor conceitua nos seguintes termos:
“... conjunto de normas (princ ípios e regras) formal ou
materialmente constitucionais, que tem por objetivo as ões ou
omissões do Estado ou de entidades privadas, com base na tutela da
vida, na identidade e na integridade das pessoas, na saúde do ser
humano atual ou futuro, tendo em vista também as suas relações
com a Biomedicina.
Com base nesse conceito, ficam consagrados como dispositivos
medulares, sobre os quais se erige o Biodireito, os arts. e 225 da Constituição
Federal de 1998.
Individualmente considerada, a tutela da vida está prevista no art. 5º, caput
da Constituição Federal de 1988, in verbis:
“Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estra ng eir os residentes
355
GARCIA, Maria. Biodireito constitucional: uma introdução. Revista de Direito Constitucional e
Internacional, ano 11, n. 42, janeiro-março de 2003, p. 106.
356
BARACHO, José Alfred o de Oliveira. A identida de genética do ser humano. Bio constituição: bioética
e direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 8, n. 32, julho-setembro 2000,
p. 91.
173
no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:”
357
Ao refletir a respeito do alcance que é a tribuído ao direito à vida, através
do caput do art. da Co nstituição de 1998, Sérgio Ferraz
358
acentua:
“... além do princípio cardeal da igualdade, o a r tigo também refere
o direito à vida. E o fez com muito mais ênfase que em 1967/69,
quando o que se assegurava era a ‘inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida’. Agor a não: a inviolabilidade é do próprio
direito à vida (inclusive células, tecid os, etc.), vocacionando à vida,
ainda quando incapaz de mante r, por si só, sua existência.”
357
“Na Irlanda, o art. 40 de sua Constituição, com redação d ada por The Pro-Life Amendment, reconhece
claramente à c riança por nascer o direito à vida. A constituição russa, de 1 993, afirma que ‘a Feder ação
russa é um Estado Social, cuja política está dirigida à criação de condições que asseg urem a v ida digna e
desenvolvimento livre ao homem’. O art. 17 da Lei Constitucional da República Popular da Angola, após
impor ao Estado a proteção da pessoa humana e sua intrínseca dignidade, dispõe que ‘a lei protegerá a
vida de cada cidad ão’. No seu art. 28, a Constituição da República da Bulgária prevê que ‘todo indivíduo
tem direito à vida’, advertindo que ‘atentar contra a vida humana se castiga como o crime mais grave’. O
art. 31 da Constit uição da República do Cabo Verde determina que ‘todo cidadão tem direito à vida’. O
art. 57 da Constituição da República Popular da Hungria prevê que ‘na República o s cidadãos têm direito
à proteção de sua vida’. No seu art. 21, a Constituição Política da República da Costa Rica afirma que ‘a
vida humana é inviolável ’. O art. da Co nstit uição da República de El Salvador assevera que ‘toda
pessoa tem direito à vida’. A Constituição Política da República do Equador, em seu art. 19, dispõe que,
‘sem prejuízo de outros direitos necessários ao pleno desenvo lvimento moral e material que se deriva da
natureza da pessoa, o Estado lhe garante a inviolabilidade da vida’. O art. 15 da Constituição espa nhola
alega que ‘todos m direito à vida’. A lei Constitucional da Finlândia, em seu art. , prevê que ‘todo
cidadão finlandês será pr otegido pela lei em sua vida’. O art. 19 da Constituição Política da República do
Chile assegura a todas ‘as pessoas o direito à vida’, disp ondo, além disso, que ‘a lei protege a vida
daquele que e sta por nascer’. O art. 32 da Constituição da República de Guiné- Bissau dispõe que ‘todo
cidadão tem direito à vida’. A Co nstit uição do Japão, após rec onhecer, em seu a rt. 11, que ‘os dir eitos
fundamentais humanos assegurados por esta Constituição serão concedidos ao p ovo desta e das futuras
gerações como direitos eternos e invioláveis’, dispõe, em seu art. 13, que o ‘direito de todos à vida
receberá a suprema consider ação na legislação e em outros assuntos governamentais’. A Constituição da
Nicarágua, em seu art. 23, assegura que “o direito à vida é inviolável e inerente à pessoa humana”. A
Constituição da Rep úblic a do Paraguai, em seu art. 50, prevê que ‘toda pessoa tem o direito a ser
protegida pelo Estado em sua vida’. Na Constituição Política do Peru, enquanto o seu art. assevera que
‘a pessoa humana é o fim supremo da sociedade e d o Estado’, o seu art. dispõe q ue ‘toda pessoa tem
direito à vida’ e que ‘aquele que está por nascer, se considera nascido para tudo q ue lhe é favorável’. O
art. 24 da Constituição de Portugal afirma que ‘a vida humana é inviolável’. A Constituição da República
do Suriname, em seu art. 14, alega que ‘todos têm direito à vida. Este direito é protegido por lei’. O art.
da República Or iental do Uruguai pre que ‘os habitantes da República Oriental m direito de ser
protegidos no gozo de sua vida’. E o art. 58 da Constituição da República d a Venezuela garante que ‘o
direito à vida é inviolável.’” SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 201-20 3.
358
FERRAZ, Sérgio. Op. cit., p. 25.
174
O direito à vida protege, assim, o ser humano em qualquer etapa de seu
desenvolvimento: zigoto, mórula, blástula, concepto, e mbrião, feto, recém-
nascido, a criança, o adolescente, o homem adulto e o idoso, posto que o que é
sempre “um continuum do mesmo ser.”
359
a proteção da vida humana enquanto espécie a ser preservada restou
elencada no art. 225, in verbis:
“Art. 225 Todos m direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do po vo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defender e preservá-lo, para a s presentes e futuras
gerações.”
Para Celeste Gomes e Sandra Sordi
360
:
“... a espécie transcende ao indivíduo e à humanidade. É um primus
antropológico e étic o no que o homem se reconhece a si mesmo
pelo caráter transpessoal do genoma. À espé c ie humana pela sua
própria dignidade convém a condição de sujeito de direito para
preservar a identidade e a inviolabilidade da essência do humano. A
espécie é o vínculo qu e permite pr oteger os direitos das gerações
presentes e futuras.”
Assim, em que pese a Constituição Federa l de 1988 consagrar a primazia
do direito à vida
361
, tanto em re lação ao homem individual, quanto em relação ao
359
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Op. cit., p. 152.
360
GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira; SORDI, Sandra. Op. cit., p. 173.
175
gênero humano, enunciando-o como um direito fundamental, superior, essencial,
a ser observado com relação às gerações presentes e às futuras, conforme consta
dos dispositivos referidos acima, foi sancionada, em março de 2005, a Lei
11.105, que autoriza a pesquisa científica em células-tronco embrionárias.
5.4 A Lei 11.105 de 24 de março
de 2005
Conhecida como Lei de Biossegurança, a Lei 11.105, entre outras
providências
362
, visa regulamentar o dispositivo constituciona l que determina a
todos os indivíduos o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado
(incisos II, IV e V do § do art. 225, da CF/88)
363
estabelecendo em seu art. 1º,
in verbis:
361
No que concerne à colidência entre pr incípios, Diniz e Nery postulam o primado do direito à vida. Cf.
NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções preliminares de direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002 , p. 111; DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 25.
362
Mensagem do veto Regulamenta os incisos II, IV e V do § art. 225 d a Constituição Federal,
estabelece as normas de segurança e mecanismos d e fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança
CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio, dispõe sobre a Política
Nacional de Biossegurança PNB, revoga a Lei 8975, de 5 de janeiro d e 1995, e a Medida Provisória
2. 19 1-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º, 6º, , 9º, 10 e 16 d a Lei 10.814, de 15 de
dezembro de 2003, e o utras providências. Lei 11.105, de 24 de março de 20 05.
363
“Art. 225 Todos m direito a um meio ambiente ecologicamente eq uilibrado, bem de uso c omum do
povo e essencial à sadia qualidade d e vida, impondo-se ao Po der Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I [...]
II preservar a integridade e diversida de do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético;
III [...]
IV exigir, na forma da lei, para a instalação, obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que
comportem risco para a vida, a qualida de de vida e o meio a mbiente”. Constituição da República
Federativa de B rasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
176
“... nor m as de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a
construção, o cultivo, a pr odu çã o, a manipulação, o transporte, a
transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a
pesquisa, a comercializaçã o, o consumo e a liberação no meio
ambiente e o descarte de orga nismos genetic ame nte modificados
OGM e seus derivado s, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço
científico na área da biossegurança e biotecnologia, a proteção à
vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do
princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”
364
.
Antes de sua edição, os procedimentos relacionados a embriões humanos
supranumerários, oriundos das técnicas de fe r tiliza çã o in vitro, eram
regulamentados com base na Lei 8.974/95.
Quanto à Lei 8.974/95, cu mpre cons igna r que se apresentava mais
consoante c om as tendências - internacionais e nacionais das instituições
engajadas na defesa dos princípios e das prerrogativas jurídicas e éticas
essenciais a os seres huma n os. Nesse sentid o, a referida lei vedava ex p re ssamente
a manipulação genéti ca de células germinais, be m c omo a intervenção em
material genético h umano in vivo (art. 8, incisos II e II) determinando, para o
caso de inobservância do dispositivo, a pena de seis a vinte anos de reclusão ( a rt.
13).
Na esteira do preconizado pela Lei 8.975/95, o Conselho Nacional de
Saúde elaborou, no ano de 1996, a Resolução 196, que disponibiliza no
cenário normativo nacional um conjunto de elementos conceituais inclinados a
obedecer a o man damento constitucional do respeito à vida e à dignidade da
pessoa humana. Embora a Resolução não tenha aprofundado o exame
concernente à apropriação e uso dos produtos de pesquisa genética, prevê um rol
364
Art. da Lei 11.105 /2005 .
177
principiológico de cunho ético que visa à prote ç ão do ente pesquisado e que
consiste: na autonomia (com especial mençã o à defesa dos seres humanos
vulneráveis); na beneficência; na o-maleficência e na justiç a e eqüidade
365
.
Assim dispõe a Resolução 196/96
366
:
“Aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. As
pesquisas envolvendo se r es humanos devem atender às exigências
éticas e científicas fundamentais.
[...]
III 1. A eticidade da pesquisa implica:
a) O consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a
proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes
(autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolve ndo seres
humanos deve rá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-
los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade.
b) Ponderação entre r iscos e benefícios, tanto atuais como
potenciais, individuais ou coletivos (beneficência),
comprometendo-se c om o máximo de benefícios e o mínimo
de danos e riscos.
365
Esse rol principio lógico previsto pela Resolução 196 refere-se aos princípios infor mados pela
bioética, entendida como “... a filosofia moral da investigação e da prática biomédica.”. SGRECCIA,
Elio. Manual de Bioética: aspectos médicos e sociais. o Paulo: Loyola, 1997, p. 27. Podem ser
sintetizados nos seguintes termos: O princípio da autonomia impõe respeito à p essoa que não p ode ser
considerada objeto de pesquisa e de experiências, independentemente de seu estado. O princípio da
beneficência enuncia a obrigatoriedade d o profissional da saúde e do investigador de promover
primeiramente o bem do paciente. Se ba seia na r egra da confiabilidade. Beneficência de bonum facere,
do latim, fazer o bem, e seu reverso, a não maleficência, non nocere, encontra suas raízes no juramento de
Hipócrates: Juro, por Apolo médico, Esculápio, Higía e Panacéia: [...] aplicarei os regimes para o bem
dos doentes, segundo o meu saber e a minha razão, e nunca para prejudicar ou fazer o mal a quem quer
que seja...” Cf. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos, Op. cit., p. 42. O princípio bioético da justiça
estabelece, por sua vez, a impa rcialidade na distribuição dos benefícios dos serviços de saúde. Maria
Celeste Cordeiro Leite Santos assinala que é “o principio da justiça que obriga a garantir a distribuição
justa, eqüitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde. Impõe que todas as pessoas sejam
tratadas de igual mane ira, não obstante, suas diferenças”. Ibid, p. 45.
366
Conselho Nacional de Saúde. Resol ução 196, de 10 de outubro de 1996. Regulamenta as pesquisas
envolvendo seres humanos. Presidente: Adib D. Jatene. Rio de Janeiro: FIOCRU Z, 1997, p. 7.
178
c) Garantia de que os danos previsíveis ser ã o evitados (não-
maleficência)
d) Relevância social da p e squ isa com vantagens significativas
para os sujeitos da pesquisa e mini mização do ônus para os
sujeitos vulneráveis, o que garante igual consideração dos
interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua
destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade).”
Em març o de 2005, dez anos após a edição da Lei 8.974/95, foi
sancionada pelo Presiden te da República, após prévia aprovação da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, a Lei 11.105.
Redigida com linguagem imprecisa, confusa, ambígua e de valor
semântico demasiadamente amplo, a Lei mescla temas extremamente relevantes,
polêmicos, controversos e dissociados como a questão da produção de sementes
transgênicas e a disponibilização de embriões humanos para fins de pesquisa e
terapia e autorizando em seu o art. in verbis:
“Art. É permitida, p a ra fins de pesquisa e terapia, a utilização de
células-tronco embrionárias obtidas de e mbriões humanos
produzidos por fertilização in vitro e não utiliz a dos no respectivo
procedimento, atendidas as seguintes condições:
I sejam embriões inviáveis; ou
II sejam embr iõe s congelados 3 (três) anos ou mais, na data da
publicação desta Lei, ou que, c ongelados na data da publicação
desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contado s a partir da
data do congelamento.”
179
Digna de severas críticas, tanto por parte de representantes da comunidade
médica científica, posto que conscientes do r isc o
367
que tais pe sq uisas
representam aos seres humanos e da necessidade de pautarem suas atividades
sempre em sólidos princípios éticos, quanto por parte de renomados juristas no
que se refere à inobservância do resp eito do d ire ito à vida humana e da dignidade
que lhe é inerente, revela-se, desse modo, um contra-senso jurídico e ético.
Nesse sentido Ives Gandra Martins e Lílian Piñero Eça
368
asseveram:
“Do ponto de vista jurídico, dúvida n ão existe. Declara a
Constituição que o direito à vida é inviolável. O tratado
internacional sobre os direitos fun damentais da São José determina
que a vida começa na concepçã o e que a pena de morte é
condenável tanto para o nascituro quanto para o nascido. E o
Código Civil impõe que todos os direitos do nascituro seja m
garantidos desde a concepção. Seria, pois, ridículo, se todos os
direitos estivessem garantidos, menos o direito à vida. A v ida
começa, portanto, na concepção, não se justificando que seres
humanos sejam, como nos campos d e concentração de Hitler,
também no Brasil objeto de manipula ç ão embrionária. A lei é
manifestamente inconstitucional do ponto de vista jurídico. Do
ponto de vista científico, a lei não merece melhor sorte.”
367
Embora os riscos reais e potenciais oriundos das pesquisas científicas em células-tronco embrionárias
humanas já tenham sid o objeto de discussão nos capítulos anteriores, cumpre registrar, ademais, a
advertência feita por Herdegen e Dederer que recordam q ue a utilização das informações dos elementos
genéticos humanos, contidos nos ácido s nucléicos e células adultas d o cor po humano, pode apresentar
resultados imprevisíveis para os pacientes como para seus descendentes, provocando mutações genéticas
das células reprodutoras, assim co mo a possibilidade de multiplicação e surgi mento de novos vírus. Cf.
HERDEGEN, Matthias; DEDERER, Hans-Georg. Aspectos jurídicos de la terapia genétic a somática en
humanos. In: Contribuciones, Buenos Aires, ano 14, n. 3, jul./sept. 1997, p. 163-205.
368
MARTINS, Ives Gandra da Silva; PIÑERO E ÇA, Lílian. Verdade sob re cé lulas-tronco embrionárias.
Tendências e debates. Folha de São Paulo, 08 jun. 2005.
180
Inconcebível, desse modo, empres ta r legitimidade à Lei 11.105/05, que à
revelia da ordem jurídi c a interna posta e dos tratados internacionais dos q ua is o
Brasil é signatário, permite a manipulação e a instrumentalização do embrião
humano.
Acerca dos parâmetros fixados pela referida Lei, em seus incisos I e II,
que informam que os embriões humanos utilizados para fins de pesquisa e terapia
devem ser considerados inviáveis ou estarem congelados três anos ou mais,
Cristiane Beuren Vasconcelos
369
indaga:
“Afinal, qual o exato sentido do termo inviável constante no
normativo? Se no sentido literal a palavra inviável quer d izer ‘não
executável’, como então classificar a inviabilidade dos embriões?
Por acaso seriam aqueles pa de ce dores de anomalias genéticas ou
defeitos congênitos resultante s da fertilização? Ou seriam aqueles
que, restando excluídos da chance de i n teg ra çã o em projeto
parental, por motivos econômicos, também restaram excluídos da
possibilidade d e criopreservação? Afinal, qual o alcance legal do
termo? Pelo subjetivismo interpretativo que encerra, chaga-se à
conclusão de que qual que r hipótese p oderia facilmente configurar
uma invibialidade!”
Quanto à observação do prazo de 3 (três anos) determinado pel a Lei de
Biossegurança para a permissão do uso de embriões, a autora
370
acrescenta,
ainda:
“Referido n ormativo consegue ser ainda mais incongruente quando,
em seu art. , III, prescreve taxativamente a proibição de se
369
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p. 127.
370
Ibid, p. 128.
181
promover engenharia genética em célula germ ina l, zigoto e embrião
humanos (!); a respeito da proibição, leia-se: antes de expira do o
seu prazo de validade!”
Ofensiva, assim, aos direitos e às garantias relacionados à proteção da
vida, express os na Carta Constituciona l Federal, dos quais o Biodireito vem se
firmando na ordem jurídica - interna e externa - como gua r diã o, que se admitir
que a referida lei apresenta-se, pois, eivada de vícios intrínsec os essenciais no
plano da validade e da legitimidade, tornando-se, portanto, suscetível de
denúncia por inco nstitucionalidade tanto pela via do co n trole jurisdicional
incidental como pela via direta.
371
Entretanto, se por um lado resta flagrante que a Lei 11.105/ 0 5 ate nta
contra o direito fundamental à vida (art. 5º, caput da CF/88), conforme ficou
demonstrado acima, por outro lado que se recordar que a liberdade científica
é, também, um direito fundamental de acordo com o pró prio art. 5º, inciso IX da
CF/88, in verbis:
“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença;”
Um equívoco, contudo, acreditar que essa liberdade, à qual se refere o
inciso I X do art. 5º, por não exp licita r um limite em seu próprio bojo, seja,
portanto, ili mita da . Os limites a se rem observados quando do e xe r cíc io da
liberdade científica são determinados pela própria Constituição, bem co mo pelo
371
O referido normativo é alvo de Ação Direita de Inconstitucionalidade interposta em 30 de maio de
2005 pelo então procurador -geral da República Cláudio Lemos Fonte les e contesta especificamente a
permissão ao uso de células-t ronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia. Pro tocolada so b o
3510 -0 junto ao Supremo Tribunal Federal (tendo como Relator o Ministro Carlos Ayre s Britto), defende
com propriedade a inconstitucionalidade do art. e seus incisos e parágrafos, alegando sua manifesta
afronta ao art. , III, da CF/88. Referida ação continua pendente de julgamento.
182
Biodireito e re ferem-se: ao princípio da dig nidade da p es soa huma na e à ética da
responsabilidade.
Para Paulo Otero
372
:
“... sempre que exista uma situação de concorrência aplicativa ou
de tensão entre, por um lado, os valores da dignidade da pe sso a
humana e da inviolabilidade da vida humana, e, por outro lado,
quaisquer outros pr incípios, tem sempre de prevalecer a solução
dotada de maior conexão imediata ou directamente bas eada na
dignidade humana e na inviolabilidade dessa mesma vida.”
No mesmo sentido Maria Helena Diniz:
“A Constituição Federal de 1988 , em seu art. 5º, inciso IX, a
liberdade da a tividade científica co mo um dos direitos
fundamentais, mas isso n ão significa qu e ela seja absoluta e que
não contenha qualquer limitação, pois outros valores e bens
jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a
integridade física e psí quic a, a privacidade etc., que poderiam ser
gravemente afetados pelo mau uso da liberdad e da pesquisa
científica. Ha ve ndo conflito entre a livre expressão da atividade
científica e outro direito fundamental da pessoa hu man a , a solução
ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade humana,
fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no art. ,
inciso III, da Constituição Fed e ra l. Nenhuma libe rdade de
investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a
pessoa humana e a sua dignidade . A liberdade científica sofrerá as
372
OTERO, Paulo. Op. cit., p. 99.
183
restrições que f or em imprescindíveis para a preservação do ser
humano em sua dignidade.”
373
Maria Garcia
374
, por sua vez, ao refletir acerca da liberdade jurídica frente
a norma pe rmissiva infere: “como agir, por ém, no silêncio da lei é um outro
problema de cada um e de todos.” Nesses termos, a autora insere a
responsabilidade como verdadeiro limite da liberdade, isto é, como um binômio -
liberdade e responsabilidade - nivelado e mediado pelo Direito.
Maria Celeste Cordeiro Leite Santos
375
sintetiza:
“Sendo ordenadas pelo homem (ciência e técnica), de quem
recebem origem e incremento, é na pessoa e em seus valore s que
vão buscar a indicação de sua finalidade e a consciência de seus
limites.”
Tarefa do Biodireito, nesse contexto, é med iar a tensã o dialética entre a
liberdade científ ica e o direito fundamental à vida, fixando pautas que permitam
compatibilizar os valore s essenciais assegurados a cada indivíduo e a necessidade
humana legítima de buscar novos conhecimentos.
373
Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 8-9.
374
GARCIA, Maria. Considerações sobre a relação entre a liberdade jurídica e a norma permissiva.
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 3, n. 12, julho-setembro de 1995, p. 60.
375
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Imaculada concepção: nascendo in vitro e morrendo in
machina: aspectos históricos e bioéticos da reprodução humana assistida no direito penal comparado.
São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 189.
184
5.5 O direito fundamental à vida e os limites à
pesquisa científica em células-tronco
embrionárias humanas: a dignidade da pessoa
humana e a ética da responsabilidade
O primeiro diploma jurídico inte rna c ional a proclamar a dignidade da pessoa
humana foi a Carta das Nações Unidas de 26 de junho de 1945, que e m seu
preâmbulo enuncia:
“... o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”
Da sua proclamação em âmbito internacional à sua previsão como um dos
princípios fundamentais a estruturar a República Federativa do Brasil passaram-
se apenas quarenta e três anos. Assim, a Constituição Federal de 1988 estabelece
em seu art. 1º, inc iso III, in verbis:
“Art. A República Federativa do Brasil, f ormada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Fed er al,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
I - [...]
II - [...]
III - a dignidade da pessoa humana ...”
Para melhor e luc ida r a expressão que permeia todo o ordenamento
jurídico brasileiro e sobre a qual se funda o Estado Democrático de Direito,
185
exige-se precisar o sentido e o a lc a nc e da e xpr e ssã o dignidade da pessoa
humana, tanto no que lhe designa a conc epção filosófica, quanto no que lhe
reserva a concepção jurídica.
376
Assim, em sua concepção filosófica, dignidade termo originár io do latim
dignitas (merecimento, nobreza, valor), desig n a a qualidade moral que infunde
respeito; consciência do próprio valor; honra, autoridade, nobreza; qualidade do
que é grande, elevado.
377
Ingo Wolfgang Sarl e t partindo dessa noção encontra no cristia nismo
378
medieval e na filosofia estóica
379
as origens dessa concepção, indicando que teria
sido Tomás de Aquino quem expr e ssamente utilizou a expressão dignitas
humana”.
380
376
O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se inserido no texto Constitucional “entre os
valores supe riores que fundamentam o Estado” Cf. leciona Garcia, Maria. Op. cit., p. 207. Surge como
critério de resolução de conflitos. Nes se sentido também Cleber Francisco Alves reflete a respe ito do
princípio da dignidade humana e questiona se se trata de um princípio (dimensão normativa) ou valor
(dimensão axiológica ou teleológica). Concluindo tod avia que, quer como princípio, quer como valor, o
sentido que se é unívoco, pois os doutrinadores de uma e de outra posição, quase que de modo
uniforme, propugnam pela sua força vinculan te e cogente. Assim, a idéia da dignidade da pessoa humana
não é cláusula retórica ou de estilo, mas “verdadeira f orça vinculante, de caráter jurídico, apta a
disciplinar as relações sociais pertinentes”. ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
119-125.
377
E ainda: “ modo de alguém proceder ou de se apresentar que inspira respeito, solenidade, gravidade,
brio, distinção, prerro gativa, título, honraria, função ou cargo de alta graduação”. Na esfera eclesiástica,
designa o “benefício vinculado a cargo pro eminente ou a alto título em um cab ido”. Dicionário Houaiss
da língua portuguesa. Instituto Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 1040.
378
Tanto no Antigo qua nto no Novo Testamento podemos encontrar referências no sentido de que o
homem foi criado à i magem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristia nismo extraiu a
conseqüência de que o ser humano é dotad o de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser
transformado em mero objeto ou instrumento. Cf. SARLET, Ingo Wolfgan g. Op. cit., p. 113.
379
A dignidade da pessoa humana, no âmbito do pensamento clássico, correspondia à po sição ocupada
pelo indivíduo na sociedade, bem como no seu grau de reconhecimento p elos demais membros da
comunidade, de tal sorte que era possível falar em maior ou menor grau d e dignidade. Por o utro lado, a
dignidade era tida também como qualidade que, pelo fato de ser inerente aos seres humanos, os distinguia
das demais criaturas. “Esta noção de dignidade, suste ntada de modo especial no âmbito da filosofia
estóica, encontra-se, por sua vez, imediatamente vinculada a noção de liberdade pessoal de cada indivíduo
(o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como à idéia d e que todos os
homens, no que tange à sua natureza, são iguais em dignidade”. Ibid, p. 113.
380
“Em que pese a existência de diversos autores de renome, tais como Marx, Me rleau-Ponty e Skinner,
que tenham negad o qualquer tentativa de fundamentação religiosa ou metafísica da dignidade da pessoa
humana, e apesar das desastrosas experiências pelas quais tem passado a humanidade, de modo especial
neste século, o fato é que esta continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no
186
Em seguida, Pico Della Mirandola
381
, “centra ndo sua reflexão acerca do
homem na liberdade, retrata a sua condiçã o específica no mundo e a sua
dignidade humana, que ‘o eleva acima de todas as criaturas’”
382
.
Na esteira desses conceitos, no âmbito do pensamento jusnaturalista d os
séculos XVII e XVIII, a concepção de dignidade da pessoa humana, assim como
a idéia do direito natural em si , sofreu um proce s so de laicização e de
racionalização, conservando, n o entanto, a noção fundamental da igualdade
substancial de todos os homens em dignidade e liberdade.
De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet
383
, firma-se, definitivamente, a partir
desse período, o pensamento de Immanuel Kant e com ele a n oç ão da autonomia
ética do ser humano, auto - nómos - capacidade de determinar normas a si
mesmo a autono mia assim conce bid a, além de ser considerada o fundamento da
dignidade do homem, conduz ao imperativo categórico
384
de que o ser humano
não pode ser tratado, nem mesmo por ele próprio , como mero objeto, posto que,
pensamento filosófico, político e jurídico, do que conta sua qualificação como valor fundamental da
ordem jurídica por parte de um expressivo número de Constituições. Da co ncepção jusnaturalista
remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que de forma direta ou indireta -
consagra a idéia da dignidade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em
virtude tão somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra
circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeita dos pelo seus semelhantes e pelo
Estado”. Ibid, p. 114-115.
381
“Ó Adão, não te demos um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma
específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente
desejar es, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada
por le is por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhu ma limitação, determiná-la hás
para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí
possas olhar melhor tudo o que no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem
imortal, afim de que tu, árbitro e sobre artífice de ti mesmo, te p la smasses e te informasses, na forma que
tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até o s seres que são as bestas, poderás regenerar-te até
às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.” PICO DELLA
MIRANDOLA,Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Ediç ões 70, 1989, p. 38-39.
382
Cf. Garcia, Maria. Op. cit., p. 194 .
383
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 114.
384
“Um imperativo se denomina hipotético quando se limita a indicar quais os meios deve empregar-se
ou q uer er-se para realizar outra coisa que se pressupõe como fim; e se denomina categórico quando
constitui um postulado incondic ional cuja vigência não tem por que derivar-se nem se deriva da de outro
fim, senão que vai implícita dentro de si mesma, na afirmação de um valor último e certo por si mesmo.”
Ibid, p. 289.
187
ao contrário do que ocorre com os outros seres, no homem sua natureza raciona l
reserva-lhe o reino dos fins, e não o dos meios.
De grande valia nesse ponto o conce ito de autonomia for mulado por E rn st
Cassirer
385
, segundo o qual:
“A autonomia é aquela vinculação da razão teórica e da razão moral
em que esta tem a consciênc ia de vincular-se a si mesma. A
vontade não se submete nela a outr a regra senão a que ela mesmo
estabelece e acata como norma geral. Somente entramos no campo
problemático da ética ali onde se alcança esta forma, onde as
apetências e os desejos individuais se sabem submetidos a uma lei
válida, sem exceção, para todos os sujeitos éticos e onde, ao mesmo
tempo e por outro lado, o sujeito compreende e afirma esta le i como
‘sua própria.’”
Nicola Abbagnano
386
elucida:
“Por princípio da dignidade humana entende-se a exigência
enunciada por Kant como segunda fórmula do se u imperativo
categórico: ‘age de tal for ma que trates a humanidade tanto na tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como
um fim e nunca unicamente co mo meio’. Esse i mperativo
estabelece que todo homem, a liás, todo se r racional, como fi m em
si mesmo, possui um valor não relativo (como é, p. ex., um preço),
mas intrínseco, ou seja, a dignidade. ‘O que tem preço pode ser
substituído por outra coisa equivalente; o que é supe r ior a qu alqu er
preço, e por isso não permite nenhuma equivalência, tem
385
CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. México: Fondo de Cultura Econômica, 199 3, p. 287.
(tradução livre da autora).
386
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 2003, p. 276.
188
dignidade’. Substancialmente, a dignidade de um ser racional
consiste no fato de ele ‘não obedecer a nenhuma lei que não seja
também instituída por ele mesmo.’”
Nas palavras de Immanuel Kant
387
:
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente como meio.”
Do plano filosófico, à esf e r a jurídica José Afonso da Silva
388
refere-se à
dignidade da pessoa humana como “ um valor supremo que atrai o conteúdo de
todos os direitos fundamentais do ho me m, desde o d ire ito à vida”.
Celso Bastos
389
anota igualmente que a referênc ia à dignidade da pessoa
humana “pare ce englobar em si todos aqueles d ire itos fundamentais, quer se jam
os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social”.
Maria Garcia
390
considera que “a dignidade da pessoa hu ma na
corresponde à compreensão do ser humano na sua integridade física e psíquica,
como autodeterminação consciente, gara ntida moral e juridicamente.”
Alexandre de Moraes
391
informa:
“A d ignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral
inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na
387
KANT, Immanuel. Op. cit.,69.
388
SILVA, Jo Afonso da. Op. cit., p. 105, 197 e 198.
389
“Em última análise, a dignidade tem uma dimensão também moral [...] o Estado se erige sob a noção da
dignidade da pessoa h umana.” BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à
Constituição do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. São Paulo: Sara iva, 1988, v. 1, p. 425.
390
GARCIA, Maria. Op. cit., p. 211.
391
MORAES. Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002, p. 128-129.
189
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que
traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas,
constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar ...”
José Alfredo de Oliveira Baracho
392
conceitua:
“A dignidade humana é um valor intrínseco, originariamente
reconhecido a cada ser humano, fundado na sua autonomia ética,
tendo como base uma obrigação geral de respeito da pessoa,
traduzida num elenco de direitos e deveres correlatos.”
Ingo Wolfgang Sarlet
393
declara:
“... temos por dignidade da pessoa humana a qua lida de intrínseca e
distintiva de cad a ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e devere s
fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de
cunho de gr a da nte e desumano, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participaçã o ativa e co-responsável nos
direitos da própria existência e da vida em c omunhão com os
demais seres humanos.”
392
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit., p. 89.
393
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
190
A concepção jurídica da dignidade da pessoa humana, como visto,
fundamenta-se na ética kantiana e em sua conseqüente noç ão de autono mia,
considerada c omo a capacid ad e de saber o que a moral exige do homem. Assim
formulada, a autonomia não funciona como a liberd ade irrestrita para atingir
determinados fins, mas como o poder que tem um agente de se comport ar
segundo regras de c onduta universalmente válidas e objetivas, avalizadas apenas
pela razão. A dignidade humana que dela se retira, por o a dmitir um
equivalente, assume um valor incondicional, incomparável, para a qual somente a
palavra respeito designa-lhe a real d imensão.
A propósito a reflexão de Maria Garcia
394
:
“Conceito fundamental concernente ao indivíduo é o da autonomia
(autodeterminação que envolve a questão da conduta moral) e, por
conseqüência, da responsabilidade: campo normativo, pelo que,
diante do risco decorrente do potencial técnico da c iên cia e da
tecnologia, exigência de uma ética da responsabilidade solidária
(Apel) do homem-no-mundo e, portanto, do cientista . A ética da
responsabilidade impli ca que todos os que detemos o poder de agir
somos igualmente re sponsáveis pelas ‘previsíveis conseqüências de
nossos atos’ (Weber). Razão, consciência, moral, responsabilidade
são, portanto, características básicas do ser humano.”
Tem-se, então, a responsa bilida de como a out r a face da autonomia, como
o reverso da liberda de , sendo impreterível a dmitir a necessidade de se forjar uma
Ciência que se fundamente não apenas no compromisso que o cientista tem para
com ele mesmo, mas, principalmente, com tudo aquilo que possa significa r vida.
394
Garcia, Maria. Op. cit., p. 334-335.
191
Oportuna a reflexão de Celso Furtado
395
nesse contexto:
“Cabe a nós, intelectuais e cientistas, balizar os caminhos que
percorrerão as futuras gerações. O domínio avassalador da razão
técnica limita cada vez mais o espaço de aç ão das criaturas. A
história, insisto, é um proc es so aberto, e o homem é alimentado por
um gênio criativo que sempre nos surp r e enderá. Resta-nos velar
para que a chama criativa se mantenha acesa e ilumine as áre a s
mais nobres do espírito humano.”
A Ciência pode e de ve adotar a postura acima referida, de modo a afirmar
um compromisso do cientista para com o todo circunda nte, que o mundo
científico não é um mundo separado, mas construído junto com os outros
396
.
Assim preceitua Maria Celeste Cordeiro Leite Santos:
397
“O p rinc ípio da dig nidade [...] nos obriga a um compromisso
inafastável: o do absoluto e irrestrito respeito à identidade e à
integridade de todo ser hu mano. Isso porque o homem é sujeito de
diretos; não é, jamais, objeto de direito e muito menos objeto mais
ou menos livremente manipulável.”
No entanto, não é essa a tendência que vem se firmando atualmente.
Diante da possibilidade das p esquisas em células-tronco embrionárias, o que se
verifica é que se tem, de um lado, uma c iê ncia que, alheia aos potenciais riscos
(formação de tumores, surgimento de novos vírus, alteração do patrimônio
395
FURTADO, Celso. A responsabilid ade d os cientistas. Folha de São Paulo, 13 jun. 2003, p.3.
396
MATURANA, Humberto R ; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas
da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 22.
397
SANTOS. Maria Celeste Cordeiro Leite. dos. Imaculada concepção: nascendo in vitro e morrendo in
machina: aspectos históricos e bioéticos da procriação humana assistida no Direito Penal Comparado.
São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 199.
192
genético) e aos reais e irreparáveis danos (destru içã o do embrião humano) que a
referida pesquisa pode causar ao homem (presente e futuro), vem fazendo uso
regular desse procedimento e, de outro lado, tem-se a vida humana,
vocacionando proteção. Urge atender a esse chamado, sob pena de se ver
constituir uma sociedade inumana.
Cabe aqui trazer à cola a argumentação d e Reinaldo Pereira e Silva
398
:
“Em verdade, apenas a ‘certeza’ científica de que a individualidade
humana não se firma desde a concepção e a ‘certeza’ filosófica de
que existem seres humanos com diferentes graus de dignidade
autorizariam, juridicamente falando, a manipulação do zigoto e das
células dec orrentes de sua clivagem. Caso contrário, a proteção que
se lhes é deferida não pode distingu ir-se daquela que é conferida a
qualquer ser humano. Em outra s palavras, apenas a certeza de que
os indivíduos humanos ainda não nascidos, porém concebidos,
não são pessoas humanas, justifica o pouco caso com a sua morte”.
Inobstante, a “certeza cie ntífica” à qua l se refere o autor leva justa m ente à
direção oposta, fazendo concluir pela impossibilidade da pesquisa científica em
células-tronco embrionárias conforme preleciona Márcia Mattos Gonçalves
399
:
“Embora, no final do sécu lo XX, muitos processos biológicos ainda
se aprese ntem como um eni gma para os cientistas, a Biologia como
Ciência possui leis e princ ípios que não p odem ser modificados. No
398
SILVA, Reinald o Pereir a e. Op. cit., p. 205.
399
PIMENTEL, Márcia Mattos Gonçalves. M édica P hD e m Genética Humana da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, apud VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p. 111.
193
que diz respeito ao momento em que tem início a vida humana,
alguns fatos biológicos s ão incontestáveis. [Entre eles] O primeiro
passo para a f o rmação de um novo indivíduo é a fusão de duas
células altamente especializadas chamadas gametas ... [a partir
desta fusão] tem início um processo c ontínuo de multiplicação e
diferenciação celular , até que, ao tornar-se a d ulto, o indivíduo terá
cerca de 100 milhões de células... É no mo mento e xa to da fusão dos
gametas que o mero cromossômico da espécie é recomposto ( 46
cromossomos) ... O zigoto, portanto, começa a existir e a operar
como unidade desde o momento da fecundação. É a expressão dos
seus genes que controlar á todos os aspectos da embriogênese, de
seu desenvolvimento, crescimento e metabolismo ... Cada embrião
é uma combinação gênica singular. Nunca ocorreu nem ocorrerá
outro genoma igual”.
Estabelecida essa premissa e partindo-se do preceito biológico de que
todas as pessoas humanas nascidas foram embriões e, em u m futuro não muito
distante, em mero bem significativo, pode r ão ter sido embriões in vitro, a
similitude entre a quelas e esses conduz ao entendimento de que tod a e qualquer
prática agressiva dirigida ao ser humano, sobretudo aquelas relacionadas à
diferenciação de células-tronco embrionárias, que implicam na destruição de
embriões e na sua instrumentalização atingem, por via de conseqüên c ia , o direito
fundamental à vida e o princípio da dignidade da pessoa hu mana.
Ernst Benda
400
informa que “no es em juego una mera imagem abstracta
del hombre, sino el destino de futuras geraciones resp ec to del que so mos
responsables.”
400
BENDA, Ernst. Dignidad humana y derechos de la persona. Manual de derecho constitucional.
Madrid: Instituto Vasco de Administración Pública Marcial Pons Edic iones Jurídicas y Sociales, 1996, p.
135.
194
Em sentido similar Rosa Ner y
401
, esclarece que o princípio da dignidade
da pessoa humana “é a razão de ser da proteção fundamenta l do valor da pessoa
e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem
tem pelo outro.”
Matura e Varela
402
dispõem que “... toda ação humana tem sentido ético.
Essa ligação do humano ao humano é, em última instância, o fundamento de toda
ética como reflexão sobre a legitimidade da presença do outro.” Assim, o dever
para com o futuro e a responsabilidade para com o outro constitui a base de uma
sociedade que se pretenda humana.
Em termos similares Hans Jonas
403
:
“A responsabilidade é princípio primordia l e norteador deste
momento da história de utopias caídas e novos paradigmas
levantados, no qual o ser humano busca desesperadamente
categorias que o ajudem a continuar vivendo uma vida digna e que
continue merecendo o nome de humana.”
Para Hans Jonas, filósofo da heurística do temor (heuristik der furcht)
como ficou conhecida sua doutrina filosófica, a responsabilidade decorre da
liberdade de escolha que o ente humano p oss ui. Chama a atenção nesse ponto
a escolha feita por um legítimo repre sentante da biomedicina que, considerando o
desenfreado avanço nessa área do conh e c imento hu ma n o, e, ciente da
responsabilidade que essa atividade reclama, propõe a ética da não-pesquisa.
Trata-se, pois, de Jacques Testart
404
, cientista responsável pelo nascimento do
401
NERY, Rosa Maira de Andrade, Op. cit., p. 113.
402
MATURANA, Humberto R. VARELA, Francisco J. Op. cit., p 269.
403
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006, p. 19.
404
TESTART, Jacques. O ovo transparente. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 25-26.
195
primeiro bebê de proveta em território francês, que analisa a questão nos
seguintes termos:
“Creio que c he gou o momento de fazer uma pausa, o momento da
auto-limitação do pesquisador. O pesquisado r não é o executor de
todo pro je to surgido na lógica própria da técnica. Colocado no
cadinho do espiral dos possíveis, ele adivinha, a ntes de qualqu er
outra pessoa, para onde tende a curva, o que ela vem apaziguar, e
também o que vem abolir, censurar, renegar. Eu, ‘pesquisador de
procriação humana assistida’, decidi parar. Não a pesquisa p ar a
fazer melhor o que f az e mos, mas a que opera uma mudança
radical da pessoa huma na no ponto de encontr o da medicin a
procriativa e da medi c ina p re ditiva [...] Reivindico também uma
lógica da não-descoberta, uma ética da não pesquisa.”
Contudo, não se pod e es pe ra r que esse comportamento responsável,
norteado por princípios éticos que visam salvaguardar valores humanos, resulte
pura e si mples me nte da consciência de cada um, ou mesmo, de preceitos
meramente declaratórios, cabe ao Dire ito assegurar sua efetiva observância.
Assim, para Maria Garcia
405
:
“... somente a recondução do Direito e do Estado, para a sua
finalidade pr e cíp ua , o s er humano e a sua compreensão, como valor
preponderante e razão última, numa concepção realista, portanto,
sob uma ética que se quer universal, a ética da responsabilida de ,
complementar ao que vem alertando Miguel Reale, de que ‘o
homem contemporâneo se acha ameaçado em sua in d ividua lidade
pessoal por uma série de estruturas tecnológicas ou políticas, por
405
GARCIA, Maria. Op. cit., p . 320.
196
ele mesmo criadas, e que se voltam contra seu próprio criador,
atingindo o que ele tem de mais íntimo e reservado.”’
A partir daí, a necessidade de se reconhecer a relação de
complementaridade entre o dire ito e a moral racional, conforme a ssinala Jürgen
Habermas
406
:
“Segundo Kant refere, o conceito do direito não se refere
primeiramente à vontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários;
abrange a relação externa de uma pessoa com outra; e recebe a
autorização para a coerção, que está autoriz ad o a usar contra o
outro, em caso de abuso. O princípio do direito limita o princípio da
moral sob esses três pontos de vista. A partir dessa limitação, a
legislação moral reflete-se na jurídica, a mora lida de na legalidade,
os deveres éticos nos deveres jurídicos etc. [...] Uma o rdem jurídica
pode ser legítima quando não contrariar princípios morais. [...] A
moral autônoma e o direito positivo, que depende da
fundamentação, encontram-se numa relação de complementação
recíproca.”
Assim, admitir que se realizem pesquisas em células-tr on co embrionárias
humanas, mes mo sabendo que e ssa prática implica na destruição do embrião, qu e
o reduz a um meio e que conduz à reificação do ser humano, que lhe nega o
direito f u ndamental à vida e o respeito à dignidade da pessoa humana, que
desrespeita valores intrínsecos ao homem e comum a toda humanidade, valores
esses que, como visto, muito foram de c lar ados pelo Estado, e que a esse cabe,
apenas e tão somente, reconhecer a ex istência e assegurar proteção, é negar
guarida a um bem que é pressuposto de outros dir e itos, a saber, a vida; é
406
HABERM AS, Jürgen. Direito e democracia: entre a faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 140 e ss.
197
consentir que o ser humano seja tratad o como coisa, não como pessoa; é retirar
os fundamentos sobre os quais se er gue u, ao longo dos últimos três séc ulo s, a
ciência jurídica moderna
407
; é, pois, desconsiderar os alicerces sobre os quais se
edifica o Estado Democrático de Direito.
408
A propósito a reflexão de Ernst Cassirer
409
:
“Os seres cuja existência não responde à nossa vontade, senão à
natureza, so mente m, se são seres irracionais, um valor puramente
relativo, como meios e se chama, portanto, coisas; enquanto os
seres racionais recebem o nome de pessoas porque sua natureza
caracteriza-os co mo fins em si mesmos, é dizer, como algo que não
pode ser empregado como meio e que, portanto, põe termo a todo
capricho.”
Esse é o entendimento que deve prevalecer no que concerne a o emprego
de e mbri õe s humanos como fonte de células-tronco, como matéria-prima de
pesquisa científ ic a . o sendo possíve l, pois, refutar sua n atu reza eminentemente
humana, não é p ossível, do mesmo modo, refutar-lhe respeito, valor, reverência.
407
Eberhard Schockenhoff, em um artigo intitulado Quem é um embrião?, informa que “a questão de
momento e m que a vida humana se inicia não faz parte dos problemas públicos da c osmovisão sobre os
quais democratas livres possam ter o mesmo direito a esta ou aquela opinião. Também não é uma questão
de religiosa, como insinuam todos aqueles que querem atribuir um posicionamento católico à exigência
de proteção à vida desde o início. Seria possível, do mesmo modo, ver nesse postulado uma questão de
interesse de uma política de d ireitos liberal, porque deve sua existência ao afastamento das teo rias
animistas aristotélico-escolásticas da teologia medieval e da mentalidade de direitos humanos do
iluminismo. Foi ninguém menos que Immanuel Kant que, em sua Metafísica dos Costumes, publicada em
1797 , forneceu a fundamentação filosófica a um decreto do Direito Geral Prussiano (DGP) promulgado
três anos antes, segundo o qual ‘os direitos da humanidade cabem i nclusive às crianças ainda em gestação
a partir do momento da sua concepção’ (pará grafo 10 I, I)”. SCHOCKENHOFF, Eberhard. In: Bioética,
Cadernos Adenauer, ano III, n. 1, 2002 , p. 35-38.
408
“Com o reconhecimento expresso, no título dos p rincípios fundamentais, da dignidade da pessoa
humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º, inc. III, da
CF) o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamen ta l a respeito d o sentido, da
finalidade e da justificação do exercíc io do poder estatal e do próp rio Estado, reconheceu que é o Estado
que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade
precípua, e não meio da atividade estatal”. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 112-113.
409
CASSIRER, Ernst. Op. cit. p. 292.
198
Com o fim de assegurar-lhe esse tratamento, o Biodireito - zoé e biós - consagra
o direito fundamental à vida, o princípio da dignidade e a ética da
responsabilidade, co mo inelutáveis limites à pesquisa científica em células-
tronco embrionárias humanas.
199
CONCLUSÕES
1- Constitui uma tendência natural do ser humano (Aristóteles) a busca pelo
conhecimento. Essa busca acompanha a humanidade desde os pr imórdios
de sua existência, levando do mito à ciência (Ernst Cassirer).
2- Na Modernidade o homem percebe que deve buscar em si os meios para
conhecer o mundo (logos) e colocá-lo a seu serviço (tékhné). Consagra,
então, a razão que lhe é inerente e que o singulariza entre as espécies
vivas, como ún ico instrumento capaz de fazê-lo compreender e dominar o
Universo que o envolve.
3- Fazendo uso do conhecimento racional, o homem partilha o saber e
engendra as ciências conforme a conhecemos atualmente. Assim, fica
reservada à Química a observação das substâncias; à Biologia, os estudos
dos seres vivos e das leis gerais da vida. É certo que essa fragmentaç ão
conduz à superespecialização.
4- Esses saberes segmentados revelam, de um lado (biológico), o
conhecimento do gene, componente responsável pela transmissão da
informação hereditária; e do outro (químic o), o DN A, a informação
propriamente dita, “o segredo bioquímico da vida” (Maria Garcia).
Unidos, esses saberes dão origem à Biotecnologia, “ciê nc ia da e n genharia
genética” (Maria Helena Diniz), conhecimento capaz de produzir e de
modificar artificialmente seres vivos.
200
5- A medicina, de posse desses conhecimentos, passa a conceber a vida
humana em labor atório - fertilização in vitro técnica que, além de
realizar o projeto parental d e casais inférteis, faz surgir a questão dos
embriões excedentes, nos quais a ciência, sob o argumento de que serão
descartados e de que as cé lula s que os constituem (células-tronco
embrionárias) possuem grande potencial terapêutico, pleiteia pesquisar.
6- O dilema jurídico e ético se apresenta quando se informa que as retirada s
de células- tronco embrionárias (pluripotentes) diferenciadas nos primeiros
estágios do dese nvolvimento embrionário (cinco a sete d ias após a
fecundação) provoca a destruição do e mb riã o, acarreta a reificação do ser
humano e implica em riscos às presentes e às futuras gerações.
7- Alheia a esses contra-argumentos, a ciência considera que no estágio em
que as células-tronc o são retiradas do em brião humano (trofoblasto) não
que se falar em ser humano, em vida humana, nem tampouco e m
dignidade, o que é somente u m “amontoado disforme de células”
(Eberhard Schockenhoff).
8- O D ire ito, enquanto ciência que regula a vida em sociedade - “sua
finalidade é reger as relações oriundas da convivência humana” (Carlos
Alberto da Mota Pinto) - é chamado a balizar essa questão. Para t a nto ,
deve fixar pa râmetros que permitam de te rminar quando tem início a vida
humana e a partir de que momento o respeito a ela se impõe frente a
qualquer outro. “Deste modo, o Direito exercerá o papel que é
necessariamente o seu: lembrar a existência de limites” (François Ost).
9- Contudo, por ser a vida um termo exógeno à ciência jurídica (Celso
Bastos), o D ir eito , para determinar seu início, busca auxílio e m outras
ciências, encontr ando, na afirmação de um ilustre representante da
201
medicina, cientista responsável pela descoberta da causa da Síndrome de
Down, a seguinte afirmação: “Não quero repetir o óbvio, mas na verdade,
a vida começa na fecundação. Quando os 23 cro mosso mo s masculinos se
encontram com os 23 cromossomos femininos, todos os dados genéticos
que definem um novo ser humano estão presen tes. A fecundação é o
marco da vida” (Jérôme Lejeune).
10- Essa afir mação constit ui o substrato da teoria concepcionista, de acordo
com a qual a vida humana se inicia a partir da fecundação do óvulo pelo
espermatozóide. E ssa união origem ao zigoto, primeira célula de um
novo ser, e que possui, desde esse momento, toda a dotação genética
que irá aco mpanhar o ente humano por toda a sua vida. “O ponto inicial é
a formação do zigoto” (Elaine Azevedo).
11- A par da teoria concepcionista, foram elaboradas outras teorias acerca do
início vital do ser humano. Lapsos temporais arbitrários (teoria do pré-
embrião - 14 dias) e eventos que decorrem de uma evolução natural do
processo de desenvolvimento embrionário (teoria do surgimento dos
rudimentos do sistema nervoso e teoria da nidação) foram fixados co m o
intuito de justificar a pesquisa em células-tronco embrion ár ia s. Essas
tentativas de desvincul ar o embrião do instante inicial da concepção não
são, no entanto, motivadas com fim únic o e altruístico de promover a
saúde humana.
12- Fato é que 90% das novas descobertas ligadas ao se tor farmacêutico são
atualmente da responsabilidade de empresas, clínicas e laboratórios
ligados ao setor pr iva do; células-tronco m sido produzidas (clonagem) e
comercializadas por US$ 3.000 o f ra sc o no mercado internacional;
embriões e fetos humanos vêm sendo utilizados como fonte de células-
tronco em clínicas de estética e como matéria-prima da indústria
202
cosmética. “Alguns analistas econômicos, inicialmente, projetaram para
2010 u m mercado de US$ 10 bilhões para as tecnologias de lulas-
tronco” (Marília Bernardes Marques).
13- Um outro mercado que despontou com a possibilida de de ma nipulação
das células-tronco embrionárias refere-se à eugenia dita positiva, no qual
os pais, além de poderem realizar o projeto parental pelas vias naturais,
recorrem à fertilização in vitro para, assim, predeterminar atributos físicos
aos bebês designers babies (Marília Bernardes Marques).
14- Nesse cenário, o Biodireito, ramo específico do Direito Público que tem
por objetivo a proteção da vida zoé e biós existência e subsistênc ia
(arts. e 225 da CF/88), passa a dete rminar as fronteiras a serem
observadas quando da prática da pesquisa cie ntífica em células-tro nc o
embrionárias. Para isso pauta-se: na compreensão da vida como um
“processo vital” (José Afonso da Silva), na necessidade de lhe assegurar
tutela “onde quer que se encontre” (Maria Garcia), no entendimento do
embrião humano como um continuum do mesmo ser (Maria Cele ste
Cordeiro dos Santos) e na consideração do embrião humano como valor
pré-normativo “a criatura humana [...] vale de per si (Miguel Reale).
15- A vida, por ser um “valor inerente à condição humana” (Dalmo de Abreu
Dallari) pressuposto e fundamento de todo s os demais direitos, certo que
sem ela não que se falar em liberdade, em igualdade, em segurança , em
propriedade, em educação etc., assume, conforme o Biodireito, condição
de “primado” (Maria Helena Diniz), d e direito fundamental (art. 5º, caput,
CF/88), personalíssimo, essencia l, irrenunciável, inviolável, imprescritível
e intangível e passa a con stituir o primeiro óbice às pesquisas em células-
tronco embrionárias.
203
16- O princípio da dignidade da pessoa humana, “fundamento do Estado
Democrático e (Social) de Direito” (Ingo W olfgang Sarle t) alicerçado na
ética kantiana, estabelece que a tod as as coisas pode-se atribuir um preço,
o ser humano, ao contrário, por p ossuir autonomia capacidade de
autodeterminação - possui valor - devendo, por essa razão, ser
considerado sempre como fim em si me smo e nunca co mo meio. É,
portanto, a d ignida de da pessoa humana que assegura ao embrião humano
o direito de não ser instru mentalizado, reificado, manipulado c omo mera
fonte de onde se re tira m as células-tronco embrionárias. Configur a , pois, a
dignidade, o segundo obstáculo à referida pesquisa. Um outro aspecto que
reafirma a dign idade como limite é o apar en te conflito entre o direito
fundamental à vida (art. 5°, caput, CF/88) e o direito fundamental à
liberdade científica (art. 5º, inciso IX, CF/88). “Havendo conflito entre a
livre ex pre ssão da atividade científica e outro direito fundamental da
pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à
dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito,
previsto no art. 1º, inciso III, da Co nstituição Federal.” (Maria Helena
Diniz).
17- Na ética da responsabilidade en co ntramos - “todos os que detemos o
poder de agir somos igualmente responsáveis pelas previsíveis
conseqüências de nossos atos” (Weber) - o terceiro impedimento à
pesquisa científica em células-tronco embrionárias. Isso porque a
responsabilidade configura a outra face da liberdade. Assim, se de um
lado temos o direito à liberdade científica (art. 5º , inciso IX da CF/88), de
outro lado temos o dever para com a vida, não das presentes (art. 5º,
caput, CF/88) como também das futuras geraçõ es , não o dever d e
promover a vida, mas, sobretudo, de promover uma vida com qualidade,
uma vida digna (art. 225 da CF/88). Assim, pelos risc os que representam,
como “ a lter a çã o do patrimônio genético, formação de tecidos
204
cancerígenos, práticas eugênicas, produção de seres híbridos (Marília
Bernardes Marques), entre outros, impossível não impor limites a tais
pesquisas.
18- Por tais razões, bem como pelo fato de inexistir até o presente , qualquer
relato de sucesso terapêutico baseado nas células-tronco embrionárias”
(Marília Bernardes Marques) e, afinal, por constituírem as células-tronco
adultas uma alternativa segura e eficaz uma vez que “pesquisas recentes
têm c onfirmado a habilidade de as células-tronco adultas se
especializarem em diferentes tecidos” (Wilmar Luiz Barth) incumbe ao
Biodireito: a) imp ed ir a retirada de células-tronco embrionárias; b) proibir
a manipulaçã o do embrião h umano e de células germinativas; c)
estabelecer normas jurídicas que impeçam o excesso de embriões
humanos, determinando que somente seja fecundado o número de óvulos
suficientes para a utilização imediata, a exemplo do que ocorre na
Alemanha; d) proibir o co mé rc io de embriões e de células-tronco; e)
proibir a terapia gênica em células embrionárias; f) autorizar a terap ia
gênica e m cé lula s somáticas; g) proibir tanto a clonagem r ep rodutiva
quanto a clonagem terapêutica; h) autorizar a diagnose genética somente
no caso de fundadas suspeitas de doenças gra ve s e para as quai s haja
terapia; i) incentiva r a pesquisa científica e m células- tronco adultas por
consubstanciar u ma alternativ a que se coaduna com as exigências
jurídicas e éticas.
19- Com relação à Lei 11.105/05 que autoriza, em sede nac ion al, a pesquisa
científica em célula- tronco embrionária, “do ponto de vista jurídico,
dúvida não existe” (Ives Gandra Martins), de dever ter declarada sua
inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal posto que eivada de
vícios intrínsecos essenciais no plano da validade e da legitimidade.
205
20- Assim, é permitido inferir que o direito fundamental à vida, o princí pio da
dignidade da pessoa humana e a ética da r esp onsa bilidade, erguem- se
como fronteira intransponível diante da pesquisa científica em células-
tronco embr ioná rias humanas. Por de trás dessa fronte ira encontramos o
embrião, ser humano a ser protegido, gênero humano a ser preservado.
Zelar para que e ssa divisa não seja ultrapassada constitui a missão do
Biodireito.
206
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CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (1969)
(PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA)
PREÂMBULO
Os Estados Americanos signatários da presente Convenção,
Reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições
democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos
direitos humanos essenciais;
Reconhecendo que os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela
nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter c o mo fundamento os atributos da
pessoa humana, razão por que j ustificam uma proteção internacional, de natureza convencional,
coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos;
Considerando que esses princípios foram consagrados na Carta da Organização dos Estados
Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, e que foram reafirmados e desenvolvidos em outros
instrumentos internacionais, tanto de âmbito mundial como regional;
Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pode ser
realizado o i d eal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem cr iadas condições
que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como
dos seus direitos civis e políticos; e
Considerando que a Terceira Conferência Interamericana Extraordinária (Buenos Aires, 1967)
aprovou a incorporação à própria Carta da Organização de n ormas mais a mplas sobre os direitos
econômicos, sociais e educacionais e resolveu que uma Convenção Interamericana sobre
Direitos Humanos determinasse a estrutura, competência e processo dos órgãos encarregados
dessa matéria;
Convieram no seguinte:
PARTE I - DEVERES DOS ESTADOS E DIREITOS PROTEGIDOS
Capítulo I - ENUMERAÇÃO DOS DEVERES
Artigo - Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua
jurisdição, se m discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões
políticas ou de qualquer outra natureza, origem n acional ou so cial, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social.
2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é tod o ser humano.
Artigo - Dever de adotar dis posições de direito interno
225
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por
disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a a dotar, de
acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas
legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e
liberdades.
Capítulo II - DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS
Artigo - Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica
Toda pessoa t em direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Artigo - Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que s e respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei
e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
2. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, e sta poderá ser imposta pelos
delitos mais graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em
conformidade com a lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido
cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação a delitos aos quais n ão se aplique atualmente.
3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido.
4. Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada a delitos políticos, nem a delitos comuns
conexos com delitos políticos.
5. Não se deve impor a pena de morte a pessoa que, no momento da perpetração do delito, for
menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez.
6. Toda pessoa condenada à morte tem direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena,
os quais podem ser concedidos em todos os casos. Não se pode executar a pena de morte
enquanto o pedido estiver pendente de decisão ante a autoridade c o mpetente.
Artigo - Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou
degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à
dignidade inerente ao ser humano.
3. A pena não pode passar da pessoa do delinquente.
4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais,
e devem ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas.
5. Os menores, quando puderem ser processados, devem s er separados dos adultos e conduzidos
a tribunal e specializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento.
226
6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação
social dos condenados.
Artigo - Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de
escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em
que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos
forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o c umprimento da dita
pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a
dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.
3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:
a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de
sentença ou resolução formal expedida pela autoridade j udiciária competente. Tais trabalhos ou
serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os
indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou
pessoas jurídicas de caráter privado;
b) serviço militar e , nos países em que se admite a isenção por motivo d e consciência, qualquer
serviço nacional que a lei estabelecer em lugar daquele;
c) o serviço exigido em casos de perigo ou de calamidade que ameacem a existência ou o bem-
estar da comunidade;
d) o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações vicas normais.
Artigo - Direito à liberdade pessoal
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições
previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo
com elas promulgadas.
3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem
demora, da acusação ou da s acusações formuladas contra ela.
5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz
ou outra autoridade autorizada por lei a exercer fu nções judiciais e tem o direito de ser julgada
em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua
liberdade pode ser condicionada a garantias que as segurem o seu comparecimento em juízo.
6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a
fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua
soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda
227
pessoa que se vir ameaçada de s er privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou
tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não
pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra
pessoa.
7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade
judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
Artigo - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo
razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido
anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não
for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena
igualdade, às se guintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não
compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua
escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado
ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear
defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir a s testemunhas presentes no Tribunal e de obter o
comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre
os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo
processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da
justiça.
Artigo - Princípio da legalidade e da retroatividade
228
Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram
cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco pod er-se-á
impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de
perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o de liquente deverá dela
beneficiar-se.
Artigo 10 - Direito à indenização
Toda pessoa tem di reito de s er indenizada conforme a lei, no caso de haver sido condenada em
sentença transitada em julgado, por erro judiciário.
Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas e m sua vida privada, em sua
família, em seu domicílio ou e m sua correspondência, nem d e ofensas ilegais à sua honra ou
reputação.
3. Toda pessoa tem direito à proteção d a lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa t em direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a
liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem
como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou
coletivamente, tanto em público como em privado.
2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que pos sam limitar sua liberdade de
conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às
limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a
saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que s eus filhos e pupilos recebam a
educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a
liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem
considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou
por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia,
mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se
façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da r eputação das demais pessoas;
229
b) a proteção da segurança nac ional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o di reito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de
controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de
equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios
destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de
regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do
disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apol o gia ao ódio
nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime
ou à violência.
Artigo 14 - Direito de retificação ou resposta
1. Toda pessoa, atingida por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo por
meios de difusão legalmente re gulamentados e que se dirijam ao público em geral, tem direito a
fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a
lei.
2. Em nenhum c aso a retificação ou a resposta eximirão das outras responsabilidades legais em
que se houver incorrido.
3. Para a efetiva proteção da honra e da reputação, toda publicação ou e mpresa jornalística,
cinematográfica, de rádio ou televisão, deve ter uma pessoa responsável, que não seja protegida
por imunidades, nem goze de foro especial.
Artigo 15 - Direito de reunião
É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício desse direito pode estar
sujeito às restrições previstas em lei e que se façam nece ssárias, em uma soci edade democrática,
ao interesse da segurança nacional, da segurança ou ordem públicas, ou para proteger a saúde ou
a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
Artigo 16 - Liberdade de associação
1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins i deológicos, religiosos,
políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.
2. O exercício desse direito pode estar sujeito às restrições previstas em lei e que s e fa çam
necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e
da ordem públicas, ou para prote ger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades
das demais pessoas.
3. O presente artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do
exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia.
Artigo 17 - Proteção da família
230
1. A família é o núcleo natural e fundamental da s ociedade e deve ser protegida pela soc iedade e
pelo Estado.
2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de constituírem
uma família, s e tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida
em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção.
3. O casamento não pode ser celebrado sem o conse ntimento livre e pleno dos contraentes.
4. Os Estados-partes devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de
direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento,
durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, serão adotadas as
disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e
conveniência do s mesmos.
5. A lei deve re conhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do ca samento, como aos
nascidos dentro do casamento.
Artigo 18 - Direito ao nome
Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve
regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.
Artigo 19 - Direitos da criança
Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte
da sua família, da sociedade e do Estado.
Artigo 20 - Direito à nacionalidade
1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Toda pessoa te m direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido, se não
tiver direito a outra.
3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de s ua nacionalidade, nem do direito de mudá-la.
Artigo 21 - Direito à propriedade privada
1. Toda pessoa tem direito ao us o e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao
interesse social.
2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização
justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos c asos e na forma estabelecidos
pela lei.
3. Tanto a usura, como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, devem ser
reprimidas pela lei.
Artigo 22 - Direito de circulação e de residência
231
1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele
livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.
2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.
3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em virtude de lei, na
medida i ndispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para
proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públic as, a moral ou a saúde públicas, ou
os direitos e liberdades das demais pessoas.
4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em
zonas determinadas, por motivo de interesse público.
5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional e nem ser privado do
direito de nele entrar.
6. O estrangeiro que se encontre legalmente no território de um Esta do-parte na presente
Convenção poderá dele ser expulso em decorrência de decisão adotada e m conformidade
com a lei.
7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de
perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delit o s políticos, de acordo com a
legislação de cada Estado e com as Convenções internacionais.
8. Em nenhum caso o estrangeiro pode s er expulso ou entregue a out ro país, seja ou não de
origem, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação e m virtude de
sua raça, nacionalidade, religião, condição s o cial ou de s uas opiniões políticas.
9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros.
Artigo 23 - Direitos políticos
1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes
livremente eleitos;
b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e
igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
2. A l ei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior,
exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade
civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.
Artigo 24 - Igualdade perante a lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação
alguma, à igual proteção da lei.
232
Artigo 25 - Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo,
perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem se us direitos
fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo
quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções
oficiais.
2. Os Estados-partes comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade c o mpetente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre
os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o c u mprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha
considerado procedente o recurso.
Capítulo III - DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo
Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito in terno, como
mediante cooperação i n ternacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir
progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais
e sobre ed ucação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados
Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis,
por via legislativa ou por outros meios apropriados.
Capítulo IV - SUSPENSÃO DE GARANTIAS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO
Artigo 27 - Suspensão de garantias
1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência
ou segurança do Estado-parte, este poderá adotar as disposições que, na medida e pelo tempo
estritamente l imitados às exigências da s itua ção, suspendam as obr igações contraídas em virtude
desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações
que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação a lguma fundada em
motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.
2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes
artigos: 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à
integridade pessoal), 6 (proibição da escravidão e da servidão), 9 (princípio da legalidade e da
retroatividade), 12 ( liberdade de cons ciência e religião), 17 (proteção da família), 18 (direito a o
nome), 19 (direitos da criança), 20 (direito à nacionalidade) e 23 (direitos políticos), nem das
garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.
3. Todo Estado-parte no presente Pacto que fizer uso do direito de suspensão deverá comunicar
imediatamente aos outros Estados-partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário
Geral da Organização dos Estados Americanos, as disposições cuja aplicação haja suspendido,
os motivos determinantes da suspensão e a data em que haja dado por terminada tal suspensão.
233
Artigo 28 - Cláusula federal
1. Quando s e tratar de um Estado-parte constituído como Estado federal, o governo nacional do
aludido Estado-parte cumprirá todas as disposições da presente Convenção, relacionadas com as
matérias sobre as quais exerce competência legislativa e judicial.
2. No tocante às disposições relativas às matérias qu e correspondem à competência das
entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas
pertinentes, em conformidade com sua Constituição e com suas leis, a fim de que as autoridades
competentes das referidas entida des possam a dotar a s disposições cabíveis para o cumprimento
desta Convenção.
3. Quando dois ou mais Estados-partes decidirem constituir entre eles uma federação ou outro
tipo de associação, diligenciarão no sentido de que o pacto comunitário respectivo contenha as
disposições necessárias para que continuem sendo efetivas no novo Estad o, assim organizado,
as normas da presente Convenção.
Artigo 29 - Normas de interpretação
Nenhuma di sposição d a presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o e xercício dos
direitos e l iberdades rec onhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela
prevista;
b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em
virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte
um dos re feridos Estados;
c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma
democrática representativa de governo;
d) excluir ou limitar o efeito que possam pr o duzir a Declaração Americana d os Direitos e
Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.
Artigo 30 - Alcance das restrições
As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e exercício dos di reitos e
liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com leis que forem
promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido
estabelecidas.
Artigo 31 - Reconhecimento de outros direitos
Poderão ser incluídos, no regime de proteção desta Convenção, outros direitos e liberdades que
forem reconhecidos de acordo com os processos estabelecidos nos artigo 69 e 70.
Capítulo V - DEVERES DAS PESSOAS
Artigo 32 - Correlação entre deveres e direitos
234
1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade.
2. Os direitos de c ada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela se gurança de todos e
pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática.
PARTE II - MEIOS DE PROTEÇÃO
Capítulo VI - ÓRGÃOS COMPETENTES
Artigo 33 - São competentes para conhecer de assuntos relacionados com o cumprimento dos
compromissos assumidos pelos Estados-partes nesta Convenção:
a) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e
b) a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte.
Capítulo VII - COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Seção 1 - Organização
Artigo 34 - A Comissão Interamericana de Direitos Humanos compor-se-á de sete membros,
que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos
humanos.
Artigo 35 - A Comissão representa todos os Membros da Organização dos Estados Americanos.
Artigo 36 - 1. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembléia Geral da
Organização, a partir de uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados-
membros.
2. Cada um dos referidos governos pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os
propuser ou de qualquer outro Estado-membro da Organização dos Estados Americanos.
Quando for proposta uma lista de três candidatos, pelo menos um de les deverá ser nacional de
Estado diferente do proponente.
Artigo 37 - 1. Os membros da Comissão serão eleitos por quatro anos e s ó poderão s er r eeleitos
um vez, porém o mandato de três dos membros designados na primeira eleição expirará a o cabo
de dois anos. Logo depois da referida eleição, serão determinados por sorteio, na Assembléia
Geral, os nomes desses três membros.
2. Não pode fazer parte da Comissão mais de um nacional de um mesmo país.
Artigo 38 - As vagas que ocorrerem na Comissão, que não se devam à expiração normal do
mandato, serão preenchidas pelo Conselho Permanente da Organização, de acordo com o que
dispuser o Estatuto da Comissão.
Artigo 39 - A Comissão elaborará seu e statuto e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral
e expedirá seu próprio Regulamento.
235
Artigo 40 - Os serviços da Secretaria da Comissão devem ser desempenhados pela unidade
funcional especializada que fa z parte da Secretaria Geral da Organização e deve dispor dos
recursos necessários para cumprir as tarefas que lhe forem confiadas pela Comissão.
Seção 2 - Funções
Artigo 4 1 - A Comissão tem a função principal de promover a observância e a defesa dos
direitos humanos e, no exercício de seu mandato, tem as seguintes funções e atribuições:
a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América;
b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar
conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no
âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas
para promover o devido respeito a esses direitos;
c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas
funções;
d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações sobre as
medidas que adotarem em matéria de direitos humanos;
e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da Organização dos Estados
Americanos, lhe formularem os Est ados-membros sobre questões relacionadas co m os direitos
humanos e, de ntro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que lhes solicitarem;
f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de
conformidade com o disposto nos a rtigos 44 a 51 desta Convenção; e
g) apresentar um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.
Artigo 42 - Os Estados-partes devem submeter à Comissão cópia dos relatórios e estudos que,
em seus respectivos campos, submetem anualmente às Comissões Executivas d o Conselho
Interamericano Econômico e Social e do Conselho Interamericano de Educação, Ciência e
Cultura, a fim de que aquela zele para que se promovam os direitos decorrentes das normas
econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos
Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires.
Artigo 43 - Os Estados-partes obrigam-se a proporcionar à Comissão as informações que esta
lhes solicitar sobre a maneira pela qual seu direito interno assegura a aplicação efetiva de
quaisquer disposições desta Convenção.
Seção 3 - Competência
Artigo 44 - Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente
reconhecida e m um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão
petições que contenham den úncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-
parte.
Artigo 45 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de
ratificação desta Convenção, ou de adesão a ela, ou e m qua lquer momento posterior, declarar
236
que reconhece a competência da Comissão para receber e examinar as comunicações em que um
Estado-parte alegue haver outro Estado-parte incorrido em violações dos direitos humanos
estabelecidos ne sta Convenção.
2. As comunicações feitas em virtude deste artigo podem ser admitidas e examinadas se
forem apresentadas por um Estado-parte que haja feito uma declaração pela qual reconheça a
referida competência da Comissão. A Comissão não admitirá ne nhuma comunicação contra um
Estado-parte que não haja feito tal declaração.
3. As declarações sobre reconhecimento de competência podem ser feitas para que esta vigore
por tempo indefinido, por período determinado ou para casos específicos.
4. As declarações serão depositadas na Secretaria Geral da Organização dos Estados
Americanos, a qual encaminhará cópia das mesmas aos Estados-membros da referida
Organização.
Artigo 46 - Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou
45 seja admitida pela Comissão, será necessário:
a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os
princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos;
b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido
prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva;
c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de s olução
internacional; e
d) que, no caso d o artigo 44, a peti ção contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o
domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que
submeter a petição.
2. As disposições das alíneas "a" e " b" do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando:
a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a
proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;
b) não se h ouver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da
jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de es gotá-los; e
c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.
Artigo 47 - A Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada de
acordo com os artigos 44 ou 45 quando:
a) não preencher algum dos requisitos estabelecidos no artigo 46;
b) não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção;
c) pela exposição do próprio peticionário ou do Estado, for manifestamente infundada a petição
ou comunicação ou for evidente sua total improcedência; ou
237
d) for substancialmente reprodução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela
Comissão ou por outro organismo internacional.
Seção 4 - Processo
Artigo 48 - 1. A Comissão, ao receber uma petição ou co municação na qual se alegue a violação
de qualquer dos direitos consagrados nesta Convenção, procederá da seguinte maneira:
a) se reconhecer a admissibilidade da petição ou comunicação, solicitará informações ao
Governo do Estado ao qual pertença a autoridade apontada como responsável pela violação
alegada e transcreverá as partes pertinentes da petiçã o ou comunicação. As referidas
informações devem ser enviadas dentro de um prazo razoável, fixado pela Comissão ao
considerar as circunstâncias de cada caso;
b) recebidas as informações, ou transcorrido o prazo fixado sem que sejam ela s r ecebidas,
verificará se existem ou subsistem os motivos da petição ou comunicação. No caso de não
existirem ou não subsistirem, mandará arquivar o expediente;
c) poderá também declarar a inadmissibilidade ou a improcedência da petição ou comunicação,
com base em informação ou prova supervenientes;
d) se o expediente não houver sido arquivado, e com o fim de comprovar os fatos, a Comissão
procederá, com conhecimento das partes, a um exame do as sunto exposto na petição ou
comunicação. Se for necessário e conveniente, a Comissão procederá a uma investigação para
cuja eficaz realização solicitará, e os Estados interessados lhe proporcionarão, todas as
facilidades necessárias;
e) poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente e receberá, se isso for
solicitado, as exposições verbais ou escritas que apresentarem os interessados; e
f) pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do
assunto, fundada no respeito aos direitos reconhecidos nesta Convenção.
2. Entretanto, em casos graves e urgentes, pode s er realizada uma investigação, mediante prévio
consentimento do Estado em cujo território se alegue houver sido cometida a violação, tão
somente com a aprese ntação de uma petição ou comunicação que reúna t o dos os requisitos
formais de admissibilidade.
Artigo 49 - Se se houver chegado a uma sol ução amistosa de acordo com as disposições do
inciso 1, "f", do artigo 48, a Comissão redigirá um relatório que será encaminhado ao
peticionário e aos Estados-partes nesta Convenção e posteriormente transmitido, para sua
publicação, ao Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos. O referido r elatório
conterá uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada. Se qualquer das partes no caso o
solicitar, ser-lhe-á proporcionada a mais ampla informação possível.
Artigo 50 - 1. Se não se chegar a uma solução, e dentro do prazo que for fixado pelo Estatuto da
Comissão, esta redigirá um relatório no qu al e x porá os fatos e suas c onclusões. Se o relatório
não representar, no todo ou em parte, o acordo unânime dos membros da Comissão, qualquer
deles poderá agregar ao referido relatório se u voto em separado. Também se agregarão ao
relatório as exposições verbais ou escritas que houverem sido feitas pelos interessados em
virtude do inciso 1, "e", do artigo 48.
238
2. O relatório será encaminhado aos Estados interessados, aos quais não será facultado publicá-
lo.
3. Ao encaminhar o relatório, a Comissão pode formular as proposições e recomendações que
julgar adequadas.
Artigo 51 - 1. Se no prazo de três meses, a partir da remessa aos Estados interessados do
relatório da Comissão, o assunto não houver sido solucionado ou submetido à decisão da Corte
pela Comissão ou pelo Estado interessado, aceitando sua competência, a Comissão poderá
emitir, p elo voto da maioria absoluta dos seus membros, sua opinião e conclusões sobre a
questão submetida à sua c onsideração.
2. A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado
deve tomar as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada.
3. Transcorrido o prazo fixado, a Comissão de cidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus
membros, se o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou n ão seu relatório.
Capítulo VIII - CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Seção 1 - Organização
Artigo 52 - 1. A Cort e compor-se-á de sete juízes, na cionais dos Estados-membros da
Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas d a mais alta autoridade moral, de
reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas
para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual
sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos.
2. Não deve haver dois juízes d a mesma nacionalidade.
Artigo 53 - 1. Os juízes da Corte serão eleitos, em votação secreta e pelo voto da maioria
absoluta dos Estados-partes na Convenção, na Assembléia Geral da Organização, a partir de
uma lista de candidatos propostos pelos mesmos Estados.
2. Cada um dos Estados-partes pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os
propuser ou de qualquer outro Estado-membro da Organização dos Estados Americanos.
Quando se propuser um lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional do
Estado diferente do proponente.
Artigo 54 - 1. Os juízes da Corte serão eleitos por um período de seis anos e poderão ser
reeleitos uma vez. O mandato de três dos juízes designados na primeira eleição expirará ao cabo
de três anos. Imediatamente depois da referida eleição, determinar-se-ão por sorteio, na
Assembléia Geral, os nomes desse três juízes.
2. O juiz eleito para substituir outro, cujo mandato não haja expirado, completará o período
deste.
3. Os juízes permanecerão em suas funçõe s a o término dos seus mandatos. Entretanto,
continuarão funcionando nos casos de que houverem tomado conhecimento e que se
encontrem em fase de sentença e, para tais efeitos, não serão substituídos pelos novos juí zes
eleitos.
239
Artigo 55 - 1. O juiz, que for nacional de algum dos Estados-partes em caso submetido à Corte,
conservará o seu direito de conhecer do mesmo.
2. Se um dos juízes chamados a conhecer do caso for de nacionalidade de um dos Estados-
partes, outro Estado-parte no caso poderá designar uma pessoa de sua escolha para integrar a
Corte, na qualidade de juiz ad hoc.
3. Se, dentre os juízes chamados a co nhecer do caso, nenhum for da nacionalidade dos Estados-
partes, cada um destes poderá designar um juiz ad hoc.
4. O juiz ad hoc deve reunir os requisitos indicados no artigo 52.
5. Se vários Estados-partes na Convenção tiverem o mesmo interesse no caso, s erão
considerados como uma parte, para os fins das disposições anteriores. Em caso de dúvida, a
Corte decidirá.
Artigo 56 - O quorum para as deliberações da Corte é constituído por cinco juízes.
Artigo 57 - A Comissão comparecerá em todos os casos perante a Corte.
Artigo 58 - 1. A Corte terá sua se de no lu gar que for determinado, na Assembléia Geral da
Organização, pelos Estados-partes na Convenção, mas poderá realizar reuniões no território de
qualquer Estado-membro da Organização dos Estados Americanos em que considerar
conveniente, pela maioria dos seus membros e mediante prévia aquiescência do Estado
respectivo. Os Estados-partes na Convenção podem, na Assembléia Geral, por dois terços dos
seus votos, mudar a sede da Corte.
2. A Corte designará seu Secretário.
3. O Secretário residirá na sede da Corte e deverá assistir às reuniões que ela realizar fora da
mesma.
Artigo 59 - A Secretaria da Corte será por esta estabelecida e funcionará sob a direção do
Secretário Geral da Organização em tud o o que não for incompatível com a i n dependência da
Corte. Seus funcionários serão nomeados pelo Secretário Geral da Organização, em consulta
com o Secretário da Corte.
Artigo 60 - A Corte elaborará seu Estatuto e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral e
expedirá seu Regimento.
Seção 2 - Competência e funções
Artigo 6 1 - 1. Somente os Estados-partes e a Comissão têm direito d e submeter um caso à
decisão da Corte.
2. Para que a Corte possa conhecer de qualquer caso, é necessário que sejam esgotados os
processos previstos nos artigos 48 a 50.
Artigo 62 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de
ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar
240
que reconhece como obrigatória, de pl eno direito e sem convenção especial, a competência da
Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.
2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por pr azo
determinado ou para casos específicos. Deverá ser apresentada ao Secretário Geral da
Organização, que encaminhará cópias da mesma a outros Estados-membros da Organização e
ao Secretário da Corte.
3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação
das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso
tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por d eclaração especial, como
prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial.
Artigo 63 - 1. Quando decidir que ho uve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta
Convenção, a Corte determinará que se assegure ao pr ejudicado o gozo do seu direito ou
liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam rep aradas as
consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem
como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
2. Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos
irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as
medidas provisórias que considerar pertinentes. Se se tratar de assuntos que ainda não estiverem
submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão.
Artigo 64 - 1. Os Estados-membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a
interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos
humanos nos Estados americanos. Também poder ão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos
enumerados n o capítulo X da Carta da Organização dos Est ados Americanos, reformada pelo
Protocolo de Buenos Aires.
2. A Corte, a pedido de um Estado-membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a
compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos
internacionais.
Artigo 65 - A Corte submeterá à consideração da Assembléia Geral da Organização, em cada
período ordinário de sessões, um rel atório sobre as suas atividades no ano anterior. De maneira
especial, e com as recomendações pertinentes, indicará os casos e m que um Estado não tenha
dado cumprimento a suas sentenças.
Seção 3 - Processo
Artigo 66 - 1. A sentença da Corte deve ser fundamentada.
2. Se a sentença não expressar no todo ou em parte a opinião unânime dos juízes, qualquer deles
terá direito a que se agregue à sentença o seu voto dissidente ou individual.
Artigo 67 - A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o
sentido o u alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde
que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença.
241
Artigo 68 - 1. Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte
em todo caso em que forem partes.
2. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país
respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado.
Artigo 69 - A sentença da Corte deve ser notificada às partes no caso e transmitida aos Estados-
partes na Convenção.
Capítulo IX - DISPOSIÇÕES COMUNS
Artigo 7 0 - 1. Os juízes da Corte e os membros da Comissão gozam, d e sde o momento da
eleição e enquanto durar o seu mandato, das imunidades reconhecidas aos agentes diplomáticos
pelo Direito Internacional. Durante o exercício dos se us cargos gozam, além disso, dos
privilégios diplomáticos necessários para o desempenho de suas funções.
2. Não se poderá exigir responsabilidade em tempo algum dos juízes da Corte, nem dos
membros da Comissão, por votos e opiniões emitidos no exercício de suas funções.
Artigo 7 1 - Os cargos de juiz da Corte ou de membro da Comissão são incompatíveis com
outras atividades que possam afeta r sua independência ou imparcialidade, conforme o que for
determinado nos respectivos Estatutos.
Artigo 72 - Os juízes da Corte e os membros da Comissão perceberão honorários e despesas de
viagem na forma e nas condições que determinarem os seus Estatutos, levando em conta a
importância e independência de suas funções. Tais honorários e despesas de viagem serão
fixados no orçamento-programa da Organização dos Estados Americanos, no qual devem ser
incluídas, além disso, as despesas da Corte e da sua Secretaria. Para tais efeitos, a Corte
elaborará o seu próprio projeto de orçamento e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral,
por intermédio da Secretaria Geral. Esta última o poderá nele introduzir modificações.
Artigo 73 - Somente por solicitação da Comissão ou da Corte, conforme o caso, cabe à
Assembléia Geral da Organização resolver sobre as sanções aplicáveis ao s membros da
Comissão ou aos juízes da Corte que incorrerem nos casos previstos nos respectivos Estatutos.
Para expedir uma resolução, será necessária maioria de dois terços dos votos dos Estados-
membros da Organização, no caso dos membros da Comissão; e, além disso, de dois terços dos
votos dos Estados-partes na Convenção, se se tratar dos juízes da Corte.
PARTE III - DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS
Capítulo X - ASSINATURA, RATIFICAÇÃO, R ESERVA, EMENDA, PROTOCOLO E
DENÚNCIA
Artigo 74 - 1. Esta Convenção está aberta à assinatura e à ratificação de todos os Estados-
membros da Organização dos Estados Americanos.
2. A ratificação desta Convenção ou a adesão a ela efe tuar-se-á mediante depósito de um
instrumento de ratificação ou adesão na Secretaria Geral da Organização dos Estados
Americanos. Esta Convenção entrará em vigor logo que onze Est ados houverem depositado os
seus respectivos instrumentos de ratificação ou de adesão. Com referência a qualquer outro
242
Estado que a ratificar ou que a ela ad erir ulteriormente, a Convenção e ntrará em vigor na data
do depósito do seu instrumento de ratificação ou adesão.
3. O Secretário Geral comunicará todos os Estados-membros da Organização sobre a entrada em
vigor da Convenção.
Artigo 75 - Esta Convenção pode ser objeto d e reservas em conformidade com as disposições
da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tr atados, assinada em 23 de maio de 1969.
Artigo 76 - 1. Qualquer Estado-parte, diretamente, e a Comissão e a Corte, por intermédio do
Secretário Geral, podem submeter à Assembléia Geral, para o que julgarem conveniente,
proposta de emendas a esta Convenção.
2. Tais emendas entrarão em vigor para os Estados que as ratificarem, na data em que houver
sido depositado o respectivo instrumento de ratificação, por dois terços dos Estados-partes nesta
Convenção. Quanto aos outros Estados-partes, entrarão em vigor na data em que eles
depositarem os seus respectivos instrumentos de ratificação.
Artigo 77 - 1. De acordo com a faculdade estabelecida no artigo 31, qualquer Estado-parte e a
Comissão podem submeter à consideração dos Estados-partes reunidos por ocasião da
Assembléia Geral projetos de Protocolos adi cionais a esta Convenção, com a finalidade de
incluir progressivamente, no regime de proteção da mesma, outros direitos e liberdades.
2. Cada Protocolo deve estabelecer as modalidades de sua e ntrada em vigor e será aplicado
somente entre os Estados-partes no mesmo.
Artigo 78 - 1. Os Estados-partes poderão denunciar esta Convenção depois de expirado o prazo
de cinco anos, a partir da data e m vigor da mesma e mediante a viso prévio de um ano,
notificando o Secretário Geral da Organização, o qual deve informar as outras partes.
2. Tal denúncia não terá o efeito de desligar o Estado-parte interessado das obrigações contidas
nesta Convenção, no que diz respeito a qualquer ato que, podendo constituir violação dessas
obrigações, houver sido cometido por ele anteriormente à data na qual a denúncia produzir
efeito.
Capítulo XI -
DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS
Seção 1 - Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Artigo 79 - Ao entr ar em vigor esta Convenção, o Secretário Geral pedirá por escrito a cada
Estado-membro da Organização que apresente, dentro de um prazo de noventa dias, seus
candidatos a membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Secretário Geral
preparará uma lista por ordem alfa bética dos candidatos apresentados e a encaminhará aos
Estados-membros da Organização, pelo menos trinta dias antes da Assembléia Geral seguinte.
Artigo 80 - A eleição dos membros da Comissão far-se-á dentre os candidatos que figurem na
lista a que se refere o artigo 79, por votação secreta da Assembléia Geral, e serão declarados
eleitos os candidatos que obtiverem maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos
representantes dos Estados-membros. Se, para eleger todos os membros da Comissão, for
243
necessário realizar várias votações, serão eliminados sucessivamente, na forma que for
determinada pela Assembléia Geral, os candidatos que receberem maior número de votos.
Seção 2 - Corte Interamericana de Direitos Humanos
Artigo 81 - Ao entrar em vigor e sta Convenção, o Secretário Geral pedirá a cada Estado-parte
que apresente, dentro de um prazo de noventa dias, seus candidatos a juiz da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. O Secretário Geral preparará uma lista por ordem
alfabética dos candidatos apresentados e a encaminhará aos Estados-partes pelo menos trinta
dias antes da Assembléia Geral seguinte.
Artigo 82 - A eleição dos juízes da Corte far-se-á dentre os candidatos que figurem na lista a
que se refere o artigo 81, por votação secreta dos Estados-partes, na Assembléia Geral, e serão
declarados eleitos os candidatos que obtiverem o maior n úmero de votos e a maioria absoluta
dos votos dos representantes dos Estados-partes. Se, para eleger t odos os juízes da Corte, for
necessário realizar várias votações, serão eliminados sucessivamente, na forma que for
determinada pelos Estados-partes, os candidatos que receberem menor número de votos.
244
DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE O GENOMA HUMANO E OS DIREITOS
HUMANOS
A Conferência Geral,
Lembrando que o Preâmbulo da Carta da Unesco refere-se a “os pr incípios democráticos de
dignidade, igualdade e respeito mútuo entre os homens”, rejeita qualquer “doutrina de
desigualdade entre homens e raças”, estipula “que a ampla difusão da cultura, e a educação da
humanidade para a justiça e liberdade e a paz são indispensáveis à dignidade dos homens e
constituem um dever sagrado que t odas as nações devem cumprir em espírito de assistência e
preocupação mútuas”, proclama que “a paz deve ser alicerçada na solidariedade intelectual e
moral da humanidade” e afirma que a Organização procura avançar “através das relações
educacionais, científicas e culturais entre os povos do mundo, os objeti vos de paz internacional
e bem-estar comum da humanidade pelos quais a Organização das Nações Unidas foi
estabelecida e cuja Carta proclama.”
Lembrando solenemente sua ligação com os princípios universais dos direitos humanos, em
particular com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948; as
Convenções Internacionais das Nações Uni das sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e
Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966; a Convenção das Nações Uni das sobre
Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 9 de dezembro de 1948; a Convenção das
Nações Unidas sobre Eliminação d e Todas as Formas de Di scriminação Racial, de 21 de
dezembro de 1965; a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Portadores de
Deficiência Mental, de 20 de dezembro de 1971; a Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Portadores de Incapacidade Física, de 9 de dezembro de 1975; a Convenção das
Nações Unidas sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mu lheres, de
18 de dezembro de 1979; a Declaração das Nações Unidas dos Princípios Básicos de Justiça
para as Vítimas de Crimes e Abuso de Poder, de 29 de novembro de 1985; a Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989; as Regras
Padronizadas das Nações Unidas sobre Igualdade de Oportunidade para Por tadores de
Incapacidade Física, de 20 de dezembro de 1993; a Convenção das Nações Unida s sobre a
Proibição do Desenvolvimento, da Produção e da Acumulação de Armas Bacteriológicas
(Biológicas) e Toxinas e sobre sua Destruição, de 16 de dezembro de 1971; a Convenção da
Unesco sobre Discriminação na Educação, de 14 de dezembro de 1960; a Declaração da Unesco
dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional, de 4 de novembro de 1966; a
Recomendação da Unesco sobr e a Situação d os Pesquisadores, de 20 de novembro de 1974; da
Declaração da Unesco sobre Raça e Preconceito Racial, de 27 de novembro de 1978; a
Convenção da OIT (N
o
111) sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, de 25 de
junho de 1958 e a Convenção da OIT (N
o
169) sobre Povos Indígenas e Tribais em Países
Independentes, de 27 de junho de 1989,
Levando em consideração, e sem prejuízo de, os instrumentos internacionais que possam incidir
na aplicação da genética no campo da propriedade intelectual, entre outros, a Convenção de
Berna sobre a Proteção de Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886, e a
Convenção da Unesco sobre Direitos Autorais Internacionais, de 6 de setembro de 1952, na
última versão revisada, de 2 4 de jul h o de 1967, em Par is; a Convenção de Paris de Proteção da
Propriedade Industrial, de 20 de março de 1983, na última versão revisada, de 14 de julho, em
Estocolmo; o Tratado de Budapeste da Organização Mundial de Propriedade Intelectual sobre
Reconhecimento do Depósito de Microorganismos para Fins de Solicitação de Patente, de 28 de
abril de 1977, e os Aspectos Relacionados ao Comércio dos Acordos de Direitos de Propriedade
Intelectual (TRIPS), anexados ao Acordo que estabelece a Organização Mundial do Comércio,
em vigor a partir de 1
o
de janeiro de 1995,
245
Levando também em consideração a Convenção da s Nações Unidas sobre Diversidade
Biológica, de 5 de junho de 1992, e enfatizando, nesse respeito, que o reconhecimento da
diversidade genética da humanidade não deve levar a qualquer interpretação de natureza social
ou pol ítica que possa questionar “a d ignidade inerente a todos os membros da família humana e
(...) seus direitos iguais e inalienáveis”, de acordo com o Preâmbulo da Declaração Universal
dos Direitos Humanos,
Lembrando os textos da 22 C/Resolução 13.1, 23 C/Resolução 13.1, 24 C/ Resolução 13.1, 25
C/Resoluções 5.2 e 7.3, 27 C/ Res olução 5.15 e 28 C/Resoluções 0.12, 2.1 e 2.2, instando a
Unesco a promover e desenvolver estudos sobre a ética das implicações do pr ogresso científico
e tecnológico nos campos de biologia e genética, no marco do r espeito aos direitos humanos e
às liberdades fundamentais, bem como a empreender as conseguintes ações.
Reconhecendo que a pesquisa do genoma humano e das a plic ações resultantes abrem vastas
perspectivas para o pr ogresso no aprimoramento da saúde das pessoas e da humanidade como
um todo, mas enfatizando que essa pesquisa deve respeitar plenamente a dignidade humana, a
liberdade e os direitos humanos, assim como a proibição de toda forma de discriminação
baseada em car acterísticas genéticas,
Proclama os seguintes princípios e adota a presente Declaração Universal sobre o Genoma
Humano e os Direitos Humanos.
A. DIGNIDADE HUMANA E GENOMA HUMANO
Artigo 1
O genoma humano constitui a base da unidade fundamental de tod os os membros da família
humana, assim como do rec onhecimento de sua inerente dignidade e diversidade. Em sentido
simbólico, é o legado da humanidade.
Artigo 2
a) Toda pe ssoa tem o direito de respeito a sua dignidade e seus direitos,
independentemente de suas características genéticas.
b) Ess a dignidade torna imperativo que nenhuma pessoa seja reduzida a suas
características genética e que sua singularidade e diversidade sejam respeitadas.
Artigo 3
O genoma humano, que por natureza evolui, é sujeito a mutações. Contém potenciais que são
expressados diferentemente, de acordo com os ambientes natural e social de cada pessoa,
incluindo seu estado de saúde, suas condições de vida, sua nutrição e sua educação.
Artigo 4
O genoma humano no seu estado natural não deve levar a lucro financeiro.
246
B. DIREITOS DAS PESSOAS
Artigo 5
a) Qualquer pesquisa, tratamento ou diagnóstico que afete o genoma de uma pessoa
será realizado após uma avaliação rigorosa dos riscos e be nefí cios associados a essa ação e em
conformidade com as normas e os princípios legais no país.
b) Obter-se-á, sempre, o consentimento livre e esclarecido da pessoa. Se essa pessoa
não tiver capacidade de autodeterminação, obter-se-á consentimento ou autorização conforme a
legislação vigente e com base nos interesses da pessoa.
c) Respeitar-se-á o direito de cada pessoa de decidir se quer, ou não, ser informada
sobre os resultados do exame genético e de suas conseqüências.
d) No caso de pesquisa, submeter-se-ão, antecipadamente, os protocolos para revisão à
luz das normas e diretrizes de pesquisa nacionais e internacionais pe rtinentes.
e) Se, de acordo com a legislação, a pessoa tiver capacidade de autodeterminação, a
pesquisa relativa ao seu genoma poderá ser realizada em benefício direto de sua saúde,
sempre que previamente autorizada e sujeita às condições de proteção estabelecidas na
legislação vigente. Pesquisa que não se espera traga benefício direto à saúde poderá s er
realizada excepcionalmente, com o maior controle, expondo a pessoa a risco e ônus mínimos,
sempre que essa pesquisa traga benefícios de saúde a outras pessoas na mesma faixa etária ou
com a mesma condição genética, dentro das condições estabelecidas na lei, e contanto que essa
pesquisa seja compatível com a proteção dos direitos humanos da pessoa.
Artigo 6
Ninguém poderá ser discriminado c o m base nas suas características genéticas de forma que
viole ou tenha o efeito de viola r os direitos humanos, as liberdades fundamentais e a dignidade
humana.
Artigo 7
Os dados genéticos relativos a pessoa identificável, armazenados ou processados para efeitos de
pesquisa ou qualquer outro propósito de pesquisa, deverão ser mantidos confidenciais nos
termos estabelecidos na legislação.
Artigo 8
Toda pessoa tem dir eito, em conformidade com as normas de direito nacional e internacional, a
reparação justa de qualquer dano havido como resultado direto e efetivo de uma intervenção que
afete seu genoma.
Artigo 9
Com vistas a proteger os direitos humanos e as l iberdades fundamentais, qualquer res trição aos
princípios de consentimento e confidencialidade poderá ser estabelecida mediante lei, por
razões imperiosas, dentro dos limites estabelecidos no direito público internacional e a
convenção internacional de direitos humanos.
247
C. PESQUISA SOBRE O GENOMA HUMANO
Artigo 10
Nenhuma pesquisa do genoma humano ou das suas aplicações, em especial nos campos da
biologia, genética e medicina, deverá prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos, às
liberdades fundamentais e à dignidade humana de pessoas ou, quando aplicável, d e grupos de
pessoas.
Artigo 11
Não é permitida qualquer prática contrária à dignidade humana, como a clonagem reprodu tiva
de seres humanos. Os Estados e as organizações internacionais pertinentes são convidados a
cooperar na identificação dessas práticas e na implementação, em níveis nacional o u
internacional, das medidas necessárias para assegurar o respeito aos princípios estabelecidos na
presente Declaração.
Artigo 12
a) Os benefícios resultantes de progresso em biologia, genética e medicina,
relacionados com o genoma humano, deverão ser disponibilizados a todos, com as devidas
salvaguardas à dignidade e aos direitos humanos de cada pessoa.
b) liberdade de pesquisar, necessária ao avanço do conhecimento, é parte da liberdade
de pensamento. As aplicações da pesquisa, incluindo as aplicações nos campos de biologia,
genética e medicina, relativas ao genoma humano, deverão visar ao alívio do sofrimento e à
melhoria da saúde das pessoas e da humanidade como um todo.
D. CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DE ATIVIDADES CIENTÍFICAS
Artigo 13
Dar-se-á atenç ão especial às responsabilidades inerentes às atividades dos pes q uisadores,
incluindo meticulosidade, cautela, honestidade intelectual e integridade na realização de
pesquisa, bem como na apresentação e utilização de achados de pesquisa, no âmbito da pesquisa
do genoma humano, devido a suas implicações éticas e sociais. As pessoas responsáveis pela
elaboração de políticas públicas e privadas no campo das ciências também têm responsabilidade
especial nesse respeito.
C. PESQUISA SOBRE O GENOMA HUMANO
Artigo 14
248
Os Estados deverão tomar medidas apropriadas para promover c on dições intelectuais e
materiais favoráveis à liberdade de pesquisar o genoma humano e considerar as implicações
éticas, jurídicas, sociais e econômicas dessa pesquisa, com base nos princípios estabelecidos na
presente Declaração.
Artigo 15
Os Estados deverão tomar as medidas ne cessárias ao estabelecimento de um ambiente adequado
ao livre exercício da p esquisa sobre o genoma humano, respeitando-se os p rincípios
estabelecidos na presente Declaração, a fim de salvaguardar os direitos humanos, as liberdades
fundamentais e a dignidade humana e proteger a saúde pública. Os Estados deverão procurar
assegurar que os resultados das pesquisas não são utilizados para propósitos não pacíficos.
Artigo 16
Os Estados deverão reconhecer o valor de promover, nos vários níveis, conforme apropriado, o
estabelecimento de comitês de ética pluralistas, multidisciplinares e independentes, com o
propósito de avaliar as questões éticas, legais e sociais levantadas pela pesquisa do genoma
humano e de suas aplicações
E. SOLIDARIEDADE E COOPERAÇÃO INTERNACIONAIS
Artigo 17
Os Estados deverão respeitar e promover a prática da solidariedade em relação a pessoas,
famílias e grupos populacionais particularmente vulneráveis a doença ou incapacidade de
natureza genética, ou por elas afetados. Os Estados deverão promover, en tre outros, pesquisa
visando à identificação, à prevenção e ao tratamento de doenças de base genética ou
influenciadas pela genética, em especial doenças raras e endêmicas que afetem grande número
de pessoas n a população mundial.
Artigo 18
Os Estados deverão envidar esforços, co m devida e apropriada atenção aos princípios
estabelecidos na presente Declaração, para continuar a promover a divulgação internacional de
conhecimentos relativos ao genoma humano, à diversidade humana e à pesquisa genética e,
nesse respeito, promover a cooperação científica e cultural, em especial entre países
industrializados e países em desenvolvimento.
Artigo 19
a) No marco da cooperação internacional com países em desen volvimento, os Estados
deverão procurar incentivar medidas que permitam:
1. realizar uma avaliação dos riscos e benefícios da pesquisa sobre o genoma
humano e pr evenir a busos;
2. desenvolver e fortalecer a capacidade d os países em des e n volvimento de
realizar pesquisa em biologia e genética humanas, levando em consideração os
problemas específicos de cada país;
249
3. beneficiar os países em desenvolvimento, como resultado das reali zações da
pesquisa científica e tecnológica, de maneira que seu uso, em prol do progresso
econômica e social, possa beneficiar a todos;
4. promover o livre intercâmbio de conhecimentos e informações científicas nas
áreas de biologia, genética e medicina.
b) As organizações internacionais p ertinentes deverão apoiar e promover as iniciativas
dos Estados visando aos objetivos antes relacionados.
F. PROMOÇÃO DOS PRINCÍPIOS ESTABELECIDOS NA DECLARAÇÃO
Artigo 20
Os Estados deverão tomar as medidas necessárias para promover os princípios estabelecidos na
presente Declaração, mediante intervenções educacionais e de outra natureza, como a realização
de pesquisa e treinamento em campos interdisciplinares e a promoção de capacitação em
bioética, em todos os níveis, em especial para os responsáveis pela po lítica científica.
Artigo 21
Os Estados deverão tomar medidas apropriadas para i ncentivar outras formas de pesquisa,
capacitação e divulgação de informações que promovam a conscientização da sociedade e de
todos seus membros acerca de sua responsabilidade em questões fundamentais relativas à
proteção da dignidade humana, que possam ser levantadas por pesquisa nos campos da biologia,
genética e medicina, e por s uas aplicações. Os Estados também deverão facilitar a discussão
aberta desse assunto, assegurando a liberdade de expressão das diversas opiniões socioculturais,
religiosas e filosóficas.
G. IMPLEMENTAÇÃO DA DECLARAÇÃO
Artigo 22
Os Estados deverão e nvidar esforços para promover os princípios estabelecidos na presente
Declaração e facilitar sua implementação através de medidas apropriadas.
Artigo 23
Os Estados deverão tomar medidas apropriadas para promover, por meio de treinamento,
capacitação e divulgação de informações, o respeito aos princípios antes mencionados, assim
como inc entivar seu reconhecimento e sua efetiva aplicação. Os Estados também deverão
encorajar o intercâmbio e a articulação entre comitês de ética independentes, à medida que
forem estabelecidos, de maneira a promover s u a plena colaboração.
250
Artigo 24
O Comitê Internacional de Bioética da Unesco deverá contribuir à divulgação dos princípios
estabelecidos na presente Declaração e aprofundar o estudo das questões levantadas por s ua
aplicação e pela evolução dessas tecnologias. Deverá organizar consultas com a s partes
interessadas, como os grupos vulneráveis. Em conformidade com os procedimentos estatutários,
deverá formular recomendações para a Conferência Geral da Unesco e prover assessoria relativa
ao acompanhamento desta Declaração, em especial quanto à identificação de práticas que
possam ir de encontro à dignidade humana, como as intervenções em linhas de germes.
Artigo 25
Nenhuma disposição da presente Declaração poderá ser interpretada como o reconhecimento a
qualquer Estado, grupo, ou p e ssoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer
ato contrário aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, incluindo os princípios aqui
estabelecidos.
251
LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005.
Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da
Constituição Federal, estabelece normas de segurança e
mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam
organismos geneticamente modificados OGM e seus
derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança CNBS,
reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança
PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a
Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os
arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de
dezembro de 2003, e outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES PRELIMINARES E GERAIS
Art. 1o Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a
construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a
exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio
ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados OGM e seus derivados,
tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia,
a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução
para a proteção do meio ambiente.
§ 1o Para os fins desta Lei, considera-se atividade de pes quisa a realizada em laboratório,
regime de contenção ou campo, como parte do processo de obtenção de OGM e seus derivados
ou de avaliação da biossegurança de OGM e seus de rivados, o que engloba, no âmbito
experimental, a c onstrução, o cultivo, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação,
a exportação, o armazenamento, a liberação no meio ambiente e o descarte de OGM e seus
derivados.
§ 2o Para os fins desta Lei, considera-se atividade de uso comercial de OGM e seus
derivados a que não se enquadra como atividade de pesquisa, e que trata do cultivo, da
produção, da manipulação, do transporte, da transferência, da comercialização, da importação,
da exportação, do armazenamento, do consumo, da liberação e do descarte de OGM e seus
derivados para fins comerciais.
Art. 2o As atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao
ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento
tecnológico e à produção industrial ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou
privado, que serão responsáveis p ela obediência aos preceitos desta Lei e de sua
regulamentação, bem como p e las eventuais conseqüências ou efeitos advindos de seu
descumprimento.
252
§ 1o Para os fins desta Lei, consideram-se atividades e projetos no âmbito de entidade os
conduzidos em instalações próprias ou sob a responsabilidade administrativa, técnica ou
científica da entidade.
§ 2o As atividades e projetos de que trata este artigo são vedados a pessoas físicas em
atuação autônoma e independente, ainda que mantenham vínculo empregatício ou qualquer
outro com pessoas jurídicas.
§ 3o Os interessados em reali zar atividade prevista nesta Lei deverão requerer autorização
à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio, que se manifestará no prazo fixado
em regulamento.
§ 4o As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais,
financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos no caput deste artigo
devem exigir a apresentação de Certificado de Qualidade em Biossegurança, emitido pela
CTNBio, sob pena de se tornarem co-responsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do
descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação.
Art. 3o Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I organismo: toda entidade biológica capaz de reproduzir ou transferir material genético,
inclusive vírus e outras classes que venham a ser conhecidas;
II ácido desoxirribonucléico - ADN, ác ido ribonucléico - ARN: material genétic o que
contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência;
III moléculas de ADN/ARN recombinante: as moléculas manipuladas fora das células
vivas mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético e que possam
multiplicar-se em uma cé lula viva, ou ainda a s moléculas de ADN/ARN resultantes dessa
multiplicação; consideram-se também os segmentos de ADN/ARN s intéticos equivalentes aos
de ADN/ARN natural;
IV engenharia genética: atividade de produção e manipulação de moléculas de
ADN/ARN reco mbinante;
V organismo geneticamente modificado - OGM: organismo cujo material genético
ADN/ARN tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética;
VI d erivado de OGM: produto obtido de OGM e que não possua capacidade autônoma
de replicação ou que não contenha f orma viável de OGM;
VII célula germinal humana: célula-mãe responsável pela formação de gametas presentes
nas glândulas sexuais femininas e masculinas e suas descendentes diretas em qualquer grau de
ploidia;
VIII clonagem: processo de reprodução assexuada, produzida artificialmente, baseada em
um úni co patrimônio genético, com ou sem utilização de técnicas de engenharia genética;
IX clonagem para fins reprodutivos: clonagem com a finalidade de obtenção de um
indivíduo;
X clonagem terapêutica: clonagem com a finalidade de produção de células-tronco
embrionárias para utilização terapêutica;
253
XI células-tronco embrionárias: células de embrião que apresentam a capacidade de se
transformar em células de qualquer tecido de um organismo.
§ 1o Não se inclui na categoria de OGM o resultante de técnicas que impliquem a
introdução direta, num organismo, de material h ereditário, desde que não envolvam a utilização
de moléculas de ADN/ARN r ecombinante ou OGM, inclusive fecundação in vitro, conjugação,
transdução, transformação, indução poliplóide e qualquer outro processo natural.
§ 2o Não se inclui na categoria de derivado de OGM a substância pura, quimicamente
definida, obtida por meio de processos biológicos e que não contenha OGM, proteína heteróloga
ou ADN recombinante.
Art. 4o Esta Lei não se aplica quando a modificação genética f or obtida por meio das
seguintes técnicas, desde que não impliquem a utilização de OGM como receptor ou doador:
I mutagênese;
II formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal;
III fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida
mediante métodos tradicionais de cultivo;
IV autoclonagem de or ganismos não-patogênicos que se processe de maneira natural.
Art. 5o É permitida, par a fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados
no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I sejam embriões inviáveis; ou
II sejam embriões congelados 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei,
ou que, congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,
contados a p artir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com
células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e a provação
dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua
prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Art. 6o Fica proibido:
I implementação de projeto relativo a OGM sem a manutenção de registro de seu
acompanhamento individual;
II engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro d e ADN/ARN natural ou
recombinante, r e ali zado em desacordo com as normas pre vistas nesta Lei;
III engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano;
254
IV clonagem humana;
V destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em de sacordo com
as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de re gistro e fiscalização,
referidos no art. 16 desta Lei, e as constantes desta Lei e de sua r egulamentação;
VI liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de
pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de l iberação comercial, sem o
parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental
responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de
degradação ambiental, ou s em a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança CNBS,
quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma desta Lei e de sua regulamentação;
VII a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de
tecnologias genéticas de restrição do uso.
Parágrafo único. Para os efeitos de sta Lei, entende-se por tecnologias genéticas de restrição
do uso qualquer processo de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas
geneticamente modificadas para produzir estr uturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer
forma de manipulação genética que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à
fertilidade das plantas por indutores químicos externos.
Art. 7o o obrigatórias:
I a investigação de acidentes ocorridos no curso de pesquisas e projetos na área de
engenharia genética e o envio de relatório respectivo à autoridade competente no prazo máximo
de 5 (cinco) dias a contar da data do evento;
II a notificação imediata à CTNBio e às autoridades da saúde pública, da defesa
agropecuária e d o meio ambiente sobre acidente que possa provocar a disseminação de OGM e
seus derivados;
III a adoção de meios necessários para plenamente informar à CTNBio, às autoridades da
saúde pública, do meio ambiente, da defesa agropecuária, à coletividade e aos demais
empregados da instituição ou empresa sobre os riscos a que possam estar submetidos, bem
como os pr ocedimentos a serem tomados no caso de acidentes com OGM.
CAPÍTULO II
Do Conselho Nacional de Biossegurança CNBS
Art. 8o Fica criado o Conselho Nacional de Biossegurança CNBS, vinculado à
Presidência da República, órgão de assessoramento superior do Presidente da República para a
formulação e implementação da Política Nacional de Biossegurança PNB.
§ 1o Compete ao CNBS:
I f ixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades fed erais
com competências sobre a matéria;
255
II anali sar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade
socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e
seus derivados;
III avocar e decidir, em última e definitiva instância, c om base em manifestação da
CTNBio e , quando julgar necessário, dos órgãos e entidades referidos no a rt. 16 desta Lei, no
âmbito de suas competências, sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso
comercial de OGM e seus derivados;
IV (VETADO)
§ 2o (VETADO)
§ 3o Sempre que o CNBS deliberar favoravelmente à realização da atividade analisada,
encaminhará s ua manifestação aos órgãos e entidades de r egistro e fiscalização referidos no art.
16 desta Lei.
§ 4o Sempre que o CNBS de liberar contrariamente à atividade analisada, encaminhará sua
manifestação à CTNBio para informação ao re querente.
Art. 9o O CNBS é composto pelos seguintes membros:
I Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, que o presidirá;
II Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia;
III Mini stro de Estado do Desenvolvimento Agrário;
IV Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;
V Ministro de Estado da Justiça;
VI Ministro de Estado da Saúde;
VII Ministro de Estado do Meio Ambiente;
VIII Ministro de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior;
IX Ministro de Estado das Relações Exteriores;
X Ministro de Estado da Defesa;
XI Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República.
§ 1o O CNBS reunir-se-á sempre que convocado pelo Ministro de Estado Chefe da Casa
Civil da Presidência da República, ou mediante provocação da maioria de seus membros.
§ 2o (VETADO)
§ 3o Poderão ser convidados a participar das reuniões, em caráter excepcional,
representantes do setor público e de entidades da sociedade civil.
256
§ 4o O CNBS conta com uma Secretaria-Executiva, vinculada à Casa Civil da
Presidência da República.
§ 5o A reunião do CNBS poderá ser instalada com a presença de 6 (seis) de seus membros
e as decisões serão tomadas com votos favoráveis da maioria absoluta.
CAPÍTULO III
Da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CT NBio
Art. 10. A CTNBio, integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, é instância
colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de
assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e i mplementação da PNB de
OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de
pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso
comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à
saúde humana e ao meio ambiente.
Parágrafo único. A CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e
científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o obj etivo de
aumentar sua capacitação para a proteção da s aúde humana, dos animais e das plantas e do meio
ambiente.
Art. 11. A CTNBio, composta de membros titulares e suplentes, designados pelo Ministro
de Estado da Ciência e Tecnologia, será constituída por 27 (vinte e sete) cidadãos brasileiros de
reconhecida competência técnica, de notória atuação e saber científicos, com grau acadêmico de
doutor e com destacada ati vidade profissional nas áreas de biossegurança, biotecnologia,
biologia, saúde hu mana e animal ou meio ambiente, sendo:
I 12 (doze) especialistas de notório saber científico e t écnico, em e fetivo exercício
profissional, sendo:
a) 3 (três) da área de saúde humana;
b) 3 (três) da área animal;
c) 3 (três) da área vegetal;
d) 3 (três) da área de meio ambiente;
II um representante de cada um dos seguintes órgãos, indicados pelos respectivos
titulares:
a) Ministério da Ciência e Tecnologia;
b) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;
c) Ministério da Saúde;
d) Ministério do Meio Ambiente;
e) Ministério do Desenvolvimento Agrário;
257
f) Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior;
g) Ministério da Defesa;
h) Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República;
i) Ministério das Relações Exteriores;
III um especialista em defesa do consumidor, indicado pelo Ministro da Justiça;
IV um especialista na área de saúde, indicado pelo Ministro da Saúde;
V um especialista em meio ambiente, indicado pelo Ministro do Meio Ambiente;
VI u m especialista em biotecnologia, indicado pelo Ministro da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento;
VII um espe cialista em agricultura familiar, indicado pelo Ministro do Desenvolvimento
Agrário;
VIII um especialista em saúde do tra balhador, indicado pelo Ministro do Trabalho e
Emprego.
§ 1o Os especialistas de que trata o inciso I do caput deste artigo serão escolhidos a partir
de lista tríplice, elaborada com a participação das sociedades científicas, con forme disposto em
regulamento.
§ 2o Os especialistas de que tratam os incisos III a VIII do caput deste artigo serão
escolhidos a partir de lista tríplice, elaborada pelas organizações da sociedade civil, conforme
disposto em regulamento.
§ 3o Cada membro efetivo t erá um s u plente, que participará dos trabalhos na ausê ncia do
titular.
§ 4o Os membros da CTNBio terão mandato de 2 (dois) anos, renovável por até mais 2
(dois) períodos consecutivos.
§ 5o O presidente da CTNBio será designado, entre seus membros, pelo Ministro da
Ciência e Tecnologia para um mandato de 2 ( do is) anos, renovável por igual período.
§ 6o Os membros da CTNBio devem pautar a sua atuação pela observância estrita dos
conceitos ético-profissionais, sendo vedado participar do julgamento de questões com as quais
tenham algum envolvimento de ordem profissional ou pessoal, sob p ena de perda de mandato,
na forma do regulamento.
§ 7o A reunião da CTNBio poderá ser i nstalada com a presença de 14 (catorze) de seus
membros, incluído pelo menos um representante de c ada uma das áreas referidas no inciso I do
caput deste arti go.
§ 8o (VETADO)
258
§ 9o Órgãos e entidades integrantes da administração pública federal poderão solicitar
participação nas reuniões da CTNBio para tratar de assuntos de seu especial interesse, sem
direito a voto.
§ 10. Poderão ser convidados a participar das reuniões, em c aráter excepcional,
representantes da comunidade científica e do setor público e entidades da sociedade civil, sem
direito a voto.
Art. 12. O funcionamento da CTNBio será definido pe lo regulamento desta Lei.
§ 1o A CTNBio co ntará co m uma Secretaria-Executiva e cabe ao Ministério da Ciência e
Tecnologia prestar-lhe o apoio técnico e administrativo.
§ 2o (VETADO)
Art. 13. A CTNBio constituirá subcomissões setoriais permanentes na área de saúde
humana, na área animal, na área vegetal e na área ambiental, e poderá constituir subcomissões
extraordinárias, para análise prévia dos temas a serem submetidos ao plenário da Comissão.
§ 1o Tanto os membros titulares quanto os suplentes participarão das subcomissões
setoriais e cabe a todos a distribuição dos processos para análise.
§ 2o O f u ncionamento e a coordenação dos trabalhos nas subcomissões setoriais e
extraordinárias serão definidos no regimento interno da CTNBio.
Art. 14. Compete à CTNBio:
I estabelecer normas para as pesquisas com OGM e derivados de OGM;
II estabelecer normas relativamente às atividades e aos projetos relacionados a OGM e
seus derivados;
III estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação e monitoramento
de risco de OGM e seus derivados;
IV pr oceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades e
projetos que envolvam OGM e seus derivados;
V estabelecer os mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de
Biossegurança CIBio, no âmbito de cada instituição que se dedique ao ensino, à pesquisa
científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial que envolvam OGM ou seus
derivados;
VI estabelecer requisitos relativos à biossegurança para autorização de funcionamento de
laboratório, instituição ou empresa que desenvolverá a tividades relacionadas a OGM e seus
derivados;
VII relacionar-se com instituições voltadas para a biossegurança de OGM e seus
derivados, em âmbito nacional e internacional;
VIII autorizar, cadastrar e acompanhar as atividades de pesquisa com OGM ou derivado
de OGM, nos termos da legislação em vigor;
259
IX autorizar a importação de OGM e seus derivados para atividade de pesquisa;
X prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao CNBS na formulação da PNB
de OGM e seus derivados;
XI emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança CQB par a o desenvolvimento de
atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa e enviar cópia do
processo aos órgãos de registro e fiscalização referidos no art. 16 desta Lei;
XII emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGM e seus derivados
no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seus derivados, inclusive a
classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança e xigido, bem como medidas de
segurança exigidas e restrições ao uso;
XIII definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM e seus usos, e os respectivos
procedimentos e medidas de segurança quanto ao seu uso, conforme as normas estabelecidas na
regulamentação desta Lei, bem como quanto aos seus derivados;
XIV classificar os OGM segundo a classe de risco, observados os critérios es tabelecidos
no regulamento desta Lei;
XV acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico-científico na biossegurança de
OGM e seus derivados;
XVI emitir resoluções, de natureza normativa, sobre as matérias de sua competência;
XVII apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de prevenção e
investigação de acidentes e de enfermidades, verificados no curso dos projetos e das atividades
com técnicas de ADN/ARN recombinante;
XVIII apoiar tecnicamente os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no
art. 16 desta Lei, no exercício de suas atividades relacionadas a OGM e seus derivados;
XIX divulgar no Diário Oficial da União, previamente à análise, os extratos dos pleitos e,
posteriormente, dos pareceres dos processos que lhe forem submetidos, bem como dar ampla
publicidade no Sistema de Informações em Biossegurança SIB a sua agenda, processos em
trâmite, relatórios anuais, atas das reuniões e demais informações sobre suas atividades,
excluídas as informações sigilosas, de interesse comercial, apontadas pelo proponente e assim
consideradas pela CTNBio;
XX identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados
potencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causar riscos à
saúde humana;
XXI reavaliar suas decisões técnicas por solicitação de seus membros ou por recurso dos
órgãos e e ntidades de registro e fiscalização, fundamentado em fatos ou conhecimentos
científicos novos, que sejam relevantes quanto à biossegurança do OGM ou derivado, na forma
desta Lei e seu regulamento;
XXII propor a realização de pesquisas e estudos científicos no campo da biossegurança
de OGM e seus derivados;
XXIII apresentar proposta de regimento interno ao Ministro da Ciência e Tecnologia.
260
§ 1o Quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisão técnica da
CTNBio vincula os demais órgãos e entidades da administração.
§ 2o Nos casos de uso comercial, dentre outros aspectos t écnicos de sua análise, os órgãos
de registro e fiscalização, no exercício de suas atribuições em caso de solicitação pela CTNBio,
observarão, quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e s eus derivados, a decisão técnica
da CTNBio.
§ 3o Em caso de decisão técnica favorável sobre a biossegurança no âmbito da atividade de
pesquisa, a CTNBio remeterá o processo re spectivo aos órgãos e entidades referidos no art. 16
desta Lei, para o exercício de suas atribuições.
§ 4o A decisão técnica da CTNBio deverá conter resumo de sua fundamentação técnica,
explicitar as medidas de segurança e restrições ao uso do OGM e seus derivados e considerar as
particularidades das diferentes regiões do País, com o objetivo de orientar e subsidiar os órgãos
e entidades de registro e fiscalização, referidos no art . 16 desta Lei, no exercício de suas
atribuições.
§ 5o Não se submeterá a análise e emissão de parecer técnico da CTNBio o deri vado cujo
OGM já tenha sido por ela aprovado.
§ 6o As pessoas físicas ou jurídicas envolvidas em qualquer das fases do processo de
produção agrícola, c omercialização ou transporte de produto geneticamente modificado que
tenham obtido a liberação para uso comercial estão dispensadas de apresentação do CQB e
constituição de CIBio, salvo decisão em contrário da CTNBio.
Art. 15. A CTNBio poderá realizar audiências públicas, garantida participação da
sociedade civil, na forma do regulamento.
Parágrafo único. Em casos de li beração comercial, audiência pública poderá ser requerida
por partes interessadas, incluindo-se entre estas organizações da sociedade civil que comprovem
interesse relacionado à matéria, na forma do regulamento.
CAPÍTULO IV
Dos órgãos e entidades de registro e fiscalização
Art. 16. Cabe aos órgãos e entidades de registro e fiscalização do Ministério da Saúde, do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente, e da
Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República entre outras atribuições,
no campo de suas competências, observadas a decisão técnica da CTNBio, as deliberações do
CNBS e os mecanismos estabelecidos nesta Lei e na sua regulamentação:
I fiscalizar as atividades de p esquisa de OGM e seus derivados;
II registrar e fiscalizar a liberação comercial de OGM e seus derivados;
III e mitir autorização para a importação de OGM e seus derivados para uso comercial;
IV manter atualizado no SIB o cadastro das instituições e responsáveis técnicos que
realizam atividades e projetos relacionados a OGM e seus derivados;
261
V tornar públicos, inclusive no SIB, os registros e autorizações concedidas;
VI aplicar as penalidades de que trata esta Lei;
VII subsidiar a CTNBio na definição de quesitos de avaliação de biossegurança de OGM
e seus derivados.
§ 1o Após manifestação favorável da CTNBio, ou do CNBS, em caso de avocação ou
recurso, caberá, em decorrência de análise específica e decisão pertinente:
I ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento emitir as autorizações e
registros e fiscalizar produtos e atividades que utilizem OGM e seus derivados destinados a uso
animal, na agricultura, pecuária, agroindústria e áreas afins, de acordo com a legislação em
vigor e s e gundo o regulamento desta Lei;
II ao órgão competente do Ministério da Saúde emitir as autorizações e registros e
fiscalizar produtos e atividades co m OGM e seus derivados destinados a uso humano,
farmacológico, domissanitário e áreas afins, de ac ordo com a legislação em vigor e se gundo o
regulamento desta Lei;
III ao órgão co mpetente do Ministério do Meio Ambiente emitir as autorizações e
registros e fiscalizar produtos e atividades que envolvam OGM e seus derivados a serem
liberados nos ecossistemas naturais, de acordo com a legisl ação em vigor e segundo o
regulamento desta Lei, bem como o licenciamento, nos casos em que a CTNBio deliberar, na
forma desta Lei, que o OGM é potencialmente causador de significativa degradação do meio
ambiente;
IV à Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República emitir as
autorizações e registros de produtos e atividades com OGM e seus derivados destinados ao uso
na pesca e aqüicultura, de acordo com a legislação em vigor e segundo esta Lei e seu
regulamento.
§ 2o Somente se aplicam as disposições dos incisos I e II do art. 8o e do caput do art. 10 da
Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, nos casos em que a CTNBio deliberar que o OGM é
potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente.
§ 3o A CTNBio delibera, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a
atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a
necessidade do licenciamento ambiental.
§ 4o A emissão dos registros, das autorizações e do licenciamento ambiental referidos
nesta Lei deverá ocorrer no prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias.
§ 5o A contagem do prazo previsto no § 4o deste artigo será suspensa, por a té 180 ( cento e
oitenta) dias, durante a elaboração, pelo requerente, dos estudos ou esclarecimentos necessários.
§ 6o As autorizações e registros de que trata e ste artigo estarão vinculados à decisão
técnica da CTNBio correspondente, sendo vedadas exigências técnicas que extrapolem as
condições estabelecidas naquela decisão, nos aspectos relacionados à biossegurança.
§ 7o Em caso de divergência quanto à decisão técnica da CTNBio sobre a liberação
comercial de OGM e derivados, os órgãos e entidades de registro e fiscalização, no âmbito de
262
suas competências, poderão apresentar recurso ao CNBS, no prazo de até 30 (trinta) dias, a
contar da data de publicação da decisão técnica da CTNBio.
CAPÍTULO V
Da Comissão Interna de Biossegurança CIBio
Art. 17. Toda instituição que utilizar técnicas e mét od os de engenharia genética ou realizar
pesquisas com OGM e seus derivados deverá criar uma Comissão Interna de Biossegurança -
CIBio, além de indicar um técnico principal responsável para cada projeto específico.
Art. 18. Compete à CIBio, no âmbito da instituição onde constituída:
I manter informados os trabalhadores e demais membros da coletividade, quando
suscetíveis de s erem afetados pela atividade, sobre as questões relacionadas com a saúde e a
segurança, bem como sobre os p rocedimentos em ca so de acidentes;
II estabelecer programas preventivos e de inspeção para garantir o funcionamento das
instalações sob sua responsabilidade, dentro dos padrões e normas de biossegurança, definidos
pela CTNBio na regulamentação desta Lei;
III encaminhar à CTNBio os documentos cuja relação será estabelecida na
regulamentação desta Lei, para ef eito de análise, registro ou autorização do órgão competente,
quando couber;
IV manter registro do acompanhamento individual de cada atividade ou projeto em
desenvolvimento que envolvam OGM ou seus derivados;
V notificar à CTNBio, aos órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art.
16 desta Lei, e às entidades de trabalhadores o resultado de avaliações de risco a que estão
submetidas as pessoas expostas, bem co mo qualquer acidente ou i ncidente que possa provocar a
disseminação de agente biológico;
VI investigar a ocorrência de acidentes e as enfermidades possivelmente relacionados a
OGM e seus derivados e notificar suas conclusões e providências à CTNBio.
CAPÍTULO VI
Do Sistema de Informações em Bios segurança SIB
Art. 19. Fica criado, no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, o Sis tema de
Informações e m Biossegurança SIB, des tina do à gestão das informações decorrentes das
atividades de análise, autorização, registro, monitoramento e acompanhamento das atividades
que envolvam OGM e seus derivados.
§ 1o As disposições dos atos legais, regulamentares e administrativos que alterem,
complementem ou produzam efeitos sobre a legislação de biossegurança de OGM e seus
derivados deverão ser divulgadas no SIB concomitantemente com a entrada em vigor desses
atos.
§ 2o Os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, deverão
alimentar o SIB com as informações relativas às atividades de que trata esta Lei, processadas no
âmbito de sua competência.
CAPÍTULO VII
Da Responsabilidade Civil e Administrativa
263
Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos
danos a o meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou
reparação integral, independentemente da existência de cu lpa.
Art. 21. Considera-se infração administrativa toda ação ou omissão que viole as normas
previstas nesta Lei e demais disposições legais pertinentes.
Parágrafo único. As infrações administrativas serão punidas na forma estabelecida no
regulamento de sta Lei, independentemente das medidas cautelares de apreensão de produtos,
suspensão de venda de produto e embargos de atividades, com as seguintes sanções:
I advertência;
II multa;
III apreensão de OGM e seus derivados;
IV suspensão da venda de OGM e seus derivados;
V embargo da atividade;
VI interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento;
VII suspensão de registro, licença ou autorização;
VIII cancelamento de registro, licença ou autorização;
IX perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo governo;
X perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em estabelecimento
oficial de crédito;
XI intervenção no estabelecimento;
XII proibição de contratar com a administração pública, por período de até 5 (cinco)
anos.
Art. 22. Compete a os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16
desta Lei, definir critérios, valores e aplicar multas de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$
1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), proporcionalmente à gravidade da infração.
§ 1o As multas poderão ser aplicadas cumulativamente com as demais sanções previstas
neste artigo.
§ 2o No caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
§ 3o No caso de infração continuada, caracterizada pela permanência da ação ou omissão
inicialmente punida, será a r espectiva penalidade aplicada diariamente até cessar sua causa, sem
prejuízo da paralisação imediata da atividade ou da interdição do laboratório ou da instituição
ou empresa responsável.
264
Art. 23. As multas previstas nesta Lei serão aplicadas pelos órgãos e entidades de registro e
fiscalização dos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abasteci mento, da Saúde, do Meio
Ambiente e da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República,
referidos no art. 16 desta Lei, de acordo com suas respectivas competências.
§ 1o Os recursos arrecadados com a aplicação de multas serão destinados aos órgãos e
entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, que aplicarem a multa.
§ 2o Os órgãos e entidades fiscalizadores da administração pública federal poderão
celebrar convênios com os Estados, Distrito Federal e Municípios, para a execução de serviços
relacionados à atividade de fiscalização prevista nesta Lei e poderão repassar-lhes parcela da
receita obtida com a aplicação de multas.
§ 3o A autoridade fiscalizadora encaminhará cópia do auto de infração à CTNBio.
§ 4o Quando a infração constituir crime ou contravenção, ou lesão à Fazenda Pública ou ao
consumidor, a autoridade fiscalizadora representará junto ao órgão competente para apuração
das responsabilidades administrativa e penal.
CAPÍTULO VIII
Dos Crimes e das Penas
Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5o desta Lei:
Pena d etenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou
embrião humano:
Pena reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 26. Realizar clonagem h umana:
Pena reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Art. 27. Liberar ou descartar OGM no meio a mbiente, em desacordo com as no rmas
estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização:
Pena reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1o (VETADO)
§ 2o Agrava-se a pena:
I de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se resultar dano à propriedade alheia;
II de 1/3 (um terço) até a metade, se resultar dano ao meio ambiente;
III da metade até 2/3 (dois terços), se resultar lesão c orporal de natureza grave em
outrem;
IV de 2/3 (dois terços) até o dobro, se resultar a morte de outrem.
265
Art. 28. Utilizar, comercializar, registrar, patentear e l icenciar tecnologias genéticas de
restrição do uso:
Pena reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Art. 29. Produzir, armazenar, transportar, comercializar, importar ou exportar OGM ou
seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e
pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização:
Pena reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.
CAPÍTULO IX
Disposições Finais e Transitórias
Art. 3 0. Os OGM qu e te nh am obtido decisão técnica da CTNBio favorável a sua liberação
comercial até a entrada em vigor desta Lei poderão ser registrados e comercializados, salvo
manifestação contrária do CNBS, no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data da publicação
desta Lei.
Art. 31. A CTNBio e os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16
desta Lei , deverão rever suas deliberações de caráter normativo, no prazo de 120 (cento e vinte)
dias, a fim de promover sua adequação às disposições desta Lei.
Art. 32. Permanecem em vigor os Certificados de Qualidade e m Biossegurança,
comunicados e decisões técnicas emitidos pela CTNBio, bem como, no que o contrariarem
o di sposto nesta Lei, os at os normativos emitidos ao amparo da Lei no 8.974, de 5 de janeiro de
1995.
Art. 33. As instituições que desenvolverem atividades reguladas por esta Lei na data d e sua
publicação deverão adequar-se as suas disposições no prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado
da publicação do decreto que a regulamentar.
Art. 34. Ficam convalidados e tornam-se pe rmanentes os registros provisórios concedidos
sob a égide da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003.
Art. 35. Ficam autorizadas a produção e a comercialização de sementes de cultivares de
soja geneticamente modificadas tolerantes a glifosato registradas no Registro Nacional de
Cultivares - RNC do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Art. 36. Fica autorizado o plantio de grãos de soja geneticamente modificada tolerante a
glifosato, reservados pelos produtores rurais para uso próprio, na safra 2004/2005, sendo vedada
a comercialização da produção como semente. (Vide Decreto nº 5.534, de 2005)
Parágrafo único. O Poder Executivo poderá prorrogar a autorização de que trata o caput
deste artigo.
Art. 37. A descrição do Código 20 do Anexo VIII da Lei no 6.938, de 31 de agosto de
1981, acrescido pela Lei no 10.165, de 27 de dezembro de 2000, passa a vigorar com a seguinte
redação:
266
ANEXO VIII
Código Categoria Descrição Pp/gu
........... ................ .............................................................................................................. .............
20 Uso de
Recursos
Naturais
Silvicultura; exploração econômica da madeira ou lenha e
subprodutos florestais; importação ou exportação da fauna e flora
nativas brasileiras; atividade de criação e exploração econômica de
fauna exótica e de fauna silvestre; utilização do patrimônio genético
natural; exploração de recursos aquáticos vivos; introdução de
espécies exóticas, exceto para melhoramento genético vegetal e uso
na agricultura; introdução de espécies geneticamente modificadas
previamente identificadas pela CTNBio como potencialmente
causadoras de significativa degradação do meio ambiente; uso da
diversidade biológica pela biotecnologia em atividades previamente
identificadas pela CTNBio como potencialmente causadoras de
significativa degradação do meio ambiente.
Médio
........... ................ ............................................................................................................... .............
Art. 38. (VETADO)
Art. 39. Não se aplica aos OGM e seus derivados o disposto na Lei no 7.802, de 11 de
julho de 1989, e suas alterações, exceto para os casos em que eles sejam desenvolvidos para
servir de matéria-prima para a produção de agrotóxicos.
Art. 40. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal
que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão co nter informação
nesse sentido e m seus rótulos, conforme regulamento.
Art. 41. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 42. Revogam-se a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, a Medida Provisória no
2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15
de dezembro de 2003.
Brasília, 24 de março de 2005; 184o da Independência e 117o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
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