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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
MARCELO TAVELLA
O Conceito de Masoquismo na
Obra de Freud
São Paulo
2006
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MARCELO TAVELLA
O Conceito de Masoquismo na
Obra de Freud
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo para a obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Clínica
Orientador: Profª Dra. Eva Maria Migliavacca
São Paulo
2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Tavella, Marcelo.
O conceito de masoquismo na obra de Freud / Marcelo Tavella;
orientadora Eva Maria Migliavacca. -- São Paulo, 2006.
143 p.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-
Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica)
Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Masoquismo 2. Freud, Sigmund, 1856-1939 3.
Metapsicologia
4. Psicanálise 5. Pulsão de morte I. Título.
RC533.M36
FOLHA DE APROVAÇÃO
Marcelo Tavella
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo para a obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Clínica
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof.:____________________________________________________________________
Instituição:_______________________________Assinatura________________________
Prof.:____________________________________________________________________
Instituição:_______________________________Assinatura________________________
Prof.:____________________________________________________________________
Instituição:_______________________________Assinatura________________________
À Luciana e Gustavo,
com amor.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profª Dra. Eva Maria Migliavacca, pela atenção e apoio durante a
realização deste trabalho.
Ao professor Dr. Nelson Ernesto Coelho Jr. e à Professora Dra. Léia Priszkulnik, pelas
idéias e sugestões apresentadas no exame de qualificação.
Aos professores do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, pelas idéias e
sugestões durante as aulas nas disciplinas que cursei.
Ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, pela oportunidade de realização
deste curso de mestrado.
À minha esposa Luciana pelo amor, carinho, apoio e compreensão durante o período de
elaboração deste trabalho. Minha gratidão também pela leitura do texto, pelas sugestões e
pela revisão.
Ao meu filho Gustavo que nasceu durante a elaboração deste trabalho, trazendo ainda mais
força, amor e alegria ao meu caminho.
Aos meus pais, por tudo que me ensinaram.
RESUMO
TAVELLA, Marcelo. O Conceito de Masoquismo na Obra de Freud. 2006, 143 p.
Dissertação (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006.
Esta dissertação é uma pesquisa teórica em psicanálise cujo objetivo é investigar o conceito de
masoquismo no pensamento freudiano através de um percurso que torne possível articulá-lo a
outras figuras de passividade, como o desamparo, a sedução, a pulsão de morte e a
feminilidade. Segundo Freud, apesar do binômio atividade-passividade presentes na
sexualidade humana, a pulsão seria algo da ordem de uma plena atividade. Assim, o
masoquismo como figura de passividade coloca-se como um paradoxo desde o início do
pensamento freudiano quer como um entrave à tese do sonho como realização de desejo, quer
como obstáculo ao postulado fundamental do princípio de prazer. O desenvolvimento do
conceito masoquismo se daria de forma subterrânea em Freud, pois o que fica em primeiro
plano é a positividade da pulsão, sua efetividade. De forma análoga, a chamada Teoria da
Sedução, que enfatiza uma condição de passividade do sujeito, também é abandonada em prol
de uma atividade do sujeito no plano fantasmático, o que, entretanto, dá à psicanálise seu
terreno e seu fundamento. Também a sedução caminhará de forma subterrânea no pensamento
freudiano e questionará a partir de sua referência primária de passividade e de desamparo
frente a um outro que ao mesmo tempo cuida e assedia. O ponto de reviravolta no qual os
processos apassivadores ganham maior vulto é a teoria pulsional de 1920, com a hipótese de
uma pulsão de morte. Através dela, o masoquismo ganha primariedade sobre o sadismo,
possibilitando uma maior compreensão de certos fenômenos clínicos e podendo ser postulado
como um conceito chave na própria estruturação do sujeito psíquico. Apesar de após 1920 o
conceito de masoquismo enriquecer-se através de sua articulação tanto com o novo dualismo
pulsional quanto com a segunda tópica; apesar da sedução retornar em Freud como veiculada
pelos cuidados maternos, a via ativa, positiva, continuará gozando de certa primazia em seu
pensamento. Prova disso são a ênfase no referencial paterno e fálico e a dificuldade em
compreender e articular em seu pensamento a feminilidade, figura de passividade, relacionada
à castração a partir de um referencial fálico e relacionada ao masoquismo frente à potência
paterna. Faz-se necessário, portanto, problematizar tais questões para conceber de forma mais
ampla a atividade-passividade humana e as condições pelas quais o sujeito se coloca frente à
alteridade. É neste sentido que se o “abandono” da Teoria da Sedução trouxe para primeiro
plano a atividade veiculada pela fantasia, a fantasia masoquista proporciona um movimento
dialético que permite conceber tanto um originário passivo, retorno de um elemento crucial da
Teoria da Sedução, quanto uma atividade, a ação, dimensão ética inescapável do sujeito
enquanto tal, autor e ator de suas cenas.
Descritores: Masoquismo, Sigmund Freud, Metapsicologia, Psicanálise, Pulsão de Morte.
ABSTRACT
TAVELLA, Marcelo. The Concept of Masochism in the Works of Freud. 2006, 143 p.
Dissertation (Mastership) - Psychology Institute, University of São Paulo, São Paulo, 2006.
This dissertation is a theoretical research in psychoanalysis which aim is to investigate the
concept of masochism in the Freudian thought by means of an approach that makes possible to
connect it to other figures of passiveness, such as a destitution, seduction, the death drive and
femininity. According to Freud, in spite of the binomial activity - passivity present in the
human sexuality, this drive would be related to a complete activity. Then, masochism as a
figure of passiveness places itself as a paradox since the beginning of the Freudian thought as a
restraint to the thesis of dream as a desire performance, or being it as a barrier to the
fundamental proposition of the pleasure principle. The development of the masochism concept
would then show itself in an underground way in Freud, since what shows in the first place is
the positivity of the drive, its efectiveness. In the same manner, the so called Theory of
Seduction, wich gives emphasis to a condiction of passivity of the subject, is also forsaken in
favor of an activity of the subject in the fantastic plan, and that, nonetheless, gives
psychoanalysis its ground and its basis. The seduction, as well, will move in an underground
way in the Freudian thought and will call in questions starting with its primay reference of
passivity and of destitution towards another one that at the same time cares and haunts. The
point of reversal in which the calming processes gain a bigger importance is the pulsional
theory of 1920, with the hypothesis of death drive. Through it, masochism gains in importance
over sadism, allowing a better understanding of certain clinical fenomena and can be proposed
as a key-concept in the own structure of the psycho subject. In spite of the fact that after 1920
the concept of masochism became richer by means of its connection to the new pulsional
dualism as well as with the second topic; despite the fact that the seduction returns in Freud by
means of the maternal care, the active way, positive, will continue to have a certain privileged
place in his thought. A proof of this are the emphasis in the paternal and phallic referential and
the difficulty in understanding and the connection in his thought to femininity, a figure of
passiveness, related to castration as from a phallic referential and connected to masochism
towards the paternal power. It becomes necessary, therefore, to debate such questions in order
to produce, in a larger concept, the human activity-passiveness and the conditions by which the
subject places itself concerning the alter-like relationships. It is in this sense that the
"abandon" of the Seduction theory brings to first plan the activity connected to fantasy, the
masochism fantasy allows a dialectic movement which permits to conceive a passive start a
return to an crucial element of the Theory of Seduction, as well as an activity, an action, an
ethical dimension unavoidable as long as being author and actor of its scenes.
Key-words: Masochism, Sigmund Freud, Metapsycology, Psycoanalysis, Death Drive.
SUMÁRIO
1 - INTRODUÇÃO ____________________________________________________8
2 - OBJETIVO _______________________________________________________13
3 - MÉTODO ________________________________________________________15
4 - O MASOQUISMO NO PARADIGMA DA PERVERSÃO ________________20
5 – SOBRE A PASSIVIDADE, O TRAUMÁTICO E A SEDUÇÃO: FINAL E
PERMANÊNCIA DE UM MODELO ____________________________________33
6 – “MUDANÇA” DE PARADIGMA CLÍNICO: A NEUROSE OBSESSIVA __48
7 – DA FANTASIA DE SEDUÇÃO À FANTASIA DE ESPANCAMENTO ____65
8 – O MODELO DA MELANCOLIA: A IDENTIFICAÇÃO E A FORMAÇÃO DO
SUPEREGO _________________________________________________________78
9 – A PULSÃO DE MORTE, O MASOQUISMO E O SUPEREGO___________97
10 - ARTICULAÇÕES ENTRE ALGUMAS FIGURAS DA PASSIVIDADE: O
MASOQUISMO, A PULSÃO DE MORTE, A FEMINILIDADE, A SEDUÇÃO E O
DESAMPARO.______________________________________________________119
11 - CONSIDERAÇÕES FINAIS_______________________________________134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS___________________________________139
1 - INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como proposta estudar o conceito de masoquismo em
Freud, a partir de uma pesquisa teórica que retrate a evolução deste conceito em seu
pensamento. Trata-se de retratar o percurso freudiano, privilegiando uma possível
articulação do conceito de masoquismo com as noções de passividade e de traumático. De
certa forma, para abordar tais conceitos será necessário defrontar-se também com seus
contrários indissociáveis: o sadismo e a atividade. Acredito que tal objeto de estudo possui
uma importância capital tanto em termos clínicos quanto metapsicológicos, pois diz
respeito à relação do sujeito com seu sofrimento.
O pensamento de Freud se defrontou desde muito cedo com os “impulsos
masoquistas da mente” no que parecia ser um impasse à sua teoria da realização de
desejos. “Convém lembrar que existem na mente impulsos masoquistas que podem ser
responsáveis por uma inversão como essa. Eu não faria objeção a que essa classe de sonhos
fosse distinguida dos “sonhos de realização de desejo” sob o nome de “sonhos de punição”
(FREUD, 1900, p. 508).
Embora o termo masoquismo
1
tenha sido cunhado para descrever uma perversão,
seu uso, por assim dizer, generalizou-se para retratar certo “gosto” pelo sofrimento, certas
repetições de situações de desprazer a que o sujeito se entrega. Neste uso “coloquial”, a
dimensão manifestamente sexual fica obscura e o caráter mais propriamente perverso se
camufla na conduta do sujeito. Ou seja, há uma extensão do conceito para outros domínios
que não o das práticas sexuais. O que permanece, porém, para além deste movimento de
extensão, é o vínculo entre sofrimento e prazer. Vínculo denunciado, não sempre de forma
1
Termo cunhado em referência à obra de Sacher-Masoch.
evidente, na participação voluntária do sujeito, ainda que tudo isso pareça paradoxal tanto
para o sujeito quanto para um outro que o constata.
Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1905), o masoquismo se
coloca como um enigma nas postulações psicanalíticas, pois se é verdade que a
agressividade está presente na sexualidade enquanto meio para dominação e pode tornar-se
um fim, quando desenvolvida de forma desmedida (no sadismo), o masoquismo se
configura, por si só como entidade paradoxal, pois seria uma tendência voluntária à
submissão da agressão alheia, uma tendência mesma da pulsão à passividade e talvez seja
aí que se situe o paradoxo.
Apesar da presença constante da antítese passividade versus atividade na
sexualidade humana, antítese fundamental no par sadismo/masoquismo, a pulsão sexual
propriamente dita só comportaria um caráter de plena atividade, independente da
passividade manifesta por um dos parceiros na cena sexual. Pensar, portanto, numa
tendência originalmente “apassivadora” da pulsão era algo, pelo menos na época,
paradoxal. Desta maneira, a solução encontrada por Freud foi continuar concebendo a
agressividade, enquanto componente pulsional, como pura atividade. A manifestação
clínica masoquismo seria um deslocamento deste componente da pulsão contra o próprio
eu, que afinal também pode ser objeto da pulsão. A futura conceitualização da pulsão de
morte dará conta desta tendência apassivadora, possibilitando a conceitualização de um
masoquismo primário.
A questão masoquista se torna enigmática e paradoxal não apenas do ponto de vista
econômico, pois o sujeito se faz objeto, se faz passivo, entrega-se à agressão de outro. O
entregar-se à agressividade, entendida como domínio de outro, parece supor para Freud, a
posição feminina, e há aí uma caracterização do feminino como o passivo, o
anatomicamente receptivo, apesar de conceber que a pulsão, independente do gênero, terá
10
seu caráter ativo assegurado. Assim, a mulher pode ter um papel ativo de domínio na cena
sexual, assujeitando o outro, sem que se possa falar numa relação sado-masoquista, embora
esta pareça ser a matriz da trama masoquista masculina (ser dominado e humilhado por
uma mulher). A entrega à agressividade do outro no âmbito da sexualidade, para além do
domínio, é o que caracterizaria o masoquismo perverso, ser objeto de maus tratos, de
humilhações, de procedimentos dolorosos e repugnantes. As barreiras do pudor, da
vergonha, da dor, sendo ultrapassadas não pela violência de alguém que faz do indivíduo
um joguete passivo, mas o próprio indivíduo sendo, por assim dizer, sujeito de seu próprio
infortúnio. Ou seja, o indivíduo não é propriamente uma vítima, mas assim se faz e assim
se satisfaz. O ultrapassar das barreiras
2
, o transbordamento, se faz voluntariamente e é
dirigido a um fim. Pode-se pensar, conforme Deleuze (1983), no caráter ativo do
masoquista ao dirigir a cena, sendo apenas na aparência vítima e objeto. Embora dirija, é a
montagem de uma cena em que é submisso, objeto, vítima, que o faz gozar.
A questão da atividade versus passividade e a primazia do sadismo perpassa a
teoria pulsional de Freud até 1920, quando então esta antítese pode ser vista também sob o
prisma pulsional como pulsão de vida versus pulsão de morte. O que então ocorre é uma
inversão que deixa em primeiro plano, na origem e no fim, a pulsão como potência
destruidora, uma tendência inexorável ao passivo, ao inorgânico. Daí a mudança que
possibilita o postulado de um masoquismo primário e que fornece a chave para ampliar a
compreensão dos fenômenos de repetição e, principalmente, na clínica, a reação
terapêutica negativa.
Neste sentido, pretendo articular a noção de masoquismo com a passividade e com
o traumático, pois é no sentido de uma passividade radical inicial que pode ser concebido
um masoquismo primitivo. Passividade que relaciono com o desamparo e com o
2
Refiro-me aqui às barreiras ou diques psíquicos referidos por Freud nos Três Ensaios (1905), que, segundo
ele, no caso do masoquismo, seria a dor.
11
traumático, pois esta parece ser uma matriz que dará origem às diversas formas de relação
do sujeito com seu padecimento, tais como a responsabilização, a punição, a vitimização, o
alheamento. O masoquismo nesta ordem pode ser pensado como sob o prisma da angústia
primeira, do desamparo, da passividade, da sujeição a um outro que me ultrapassa. Desta
forma, trata-se de uma efração para além do sentido propriamente econômico, em uma
referência também ao outro, frente ao qual sou primariamente objeto, estando à mercê de
seu desejo.
A referência ao outro sob este prisma teórico é inescapável. Impossível pensar nesta
matriz masoquista de passividade e de sujeição sem se pensar em sua contraparte: algo que
é plena atividade, sedução, ataque, assenhoreamento, violência, perversão (ainda que se
frise o quanto disso pertence ao domínio da fantasia, faz-se necessário considerar a radical
assimetria existente entre os atores da cena), mas também cuidado, amor, proteção, etc. Ou
seja, a dupla face dos processos de identificação e, na segunda tópica, do superego. Não
causa espanto que as mesmas figuras provoquem em diferentes indivíduos, ou nos
mesmos, em diferentes momentos, diversas representações que evocam tanto a idealização,
a proteção, o cuidado, quanto a perseguição, a sedução, a violência. O mais freqüente,
porém, é a coexistência de ambos os pólos ainda que de forma dissociada.
Dentro deste enfoque caberá considerar a questão paterna que perpassa todo o
pensamento de Freud, na primeira teoria da sedução (o pai é o sedutor perverso)
3
, ao
abordar a neurose obsessiva e a melancolia, passando pelo superego da segunda tópica, até
chegar na figura do sujeito em desamparo que busca no pai (no superego e seus
representantes; a divindade, por exemplo) a proteção. O percurso ao longo do pensamento
de Freud tendo o conceito de masoquismo como guia se justifica na relação feita pelo
próprio Freud entre o masoquismo e a passividade. Relação que se estabelece tanto no
3
No entanto, é necessário acrescentar que sob a ótica de uma sedução generalizada, o outro sedutor, ao
mesmo tempo traumatizante e convocador, passa a ser a mãe.
12
nível econômico pulsional, quanto no nível do encontro com um outro no qual o sujeito se
coloca como objeto, submetendo-se, sofrendo, porém tendo prazer. Este outro pode ser
algo impessoal, como o destino, mas traz uma marca de origem paterna.
Esta linha de pensamento pode ser conjecturada a partir do Projeto para uma
Psicologia Científica quando então Freud (1950 [1895], p.370) fala no desamparo como
“fonte primordial de todos os motivos morais”. O pai e seus substitutos estão na resposta
ao desamparo da passividade, são tentativas de garantias frente à angústia, mas ao mesmo
tempo alguém a quem temer, a quem se submeter, prestar culto, flagelar-se, numa reedição,
agora fantasiada, de uma relação originariamente passiva (masoquista) com o outro. Este
encontro com o outro no desamparo estrutural é lido por Freud a partir do Édipo e revela,
de fato, a possibilidade de se pensar na moralidade como um de seus destinos. O Édipo
como resposta a esta condição primeira seria um ponto de confluência entre a sexualidade
e a moral e o masoquismo moral uma forma elaborada e disfarçada, tal como o sonho, de
satisfazer-se em uma relação de aparente passividade frente ao outro.
13
2 - OBJETIVO
Farei um trajeto ao longo dos textos freudianos, tendo como diretriz o conceito de
masoquismo, com o objetivo de descrever o deslocamento teórico que ocorre
progressivamente, bem como o retorno de algumas noções esquecidas ou mesmo
abandonadas. No entanto, o que se pretende é abordar a questão do masoquismo e da
passividade. Embora no âmbito da pulsão o caráter ativo tenha uma importância nos
primeiros anos/décadas da psicanálise, veremos como a passividade (vide sedução)
caminha de forma subterrânea, manifesta-se na clínica e por fim eclode na teoria via pulsão
de morte (a tendência à passividade inorgânica). Trata-se de uma hipótese necessária, em
Freud, para dar conta do que a princípio se situava no âmbito do paradoxo, mas que
interrogava a partir da clínica e da cultura.
Entretanto, pretendo argumentar que a importância da passividade, que aqui
relaciono com o desamparo, com o traumático e com a pulsão de morte, inscreve-se em um
momento primordial, mas que é ultrapassado com o nascimento da subjetividade, resposta
singular a esta condição passiva. Assim, a passividade permanece como matriz, uma
angústia primária, que se reedita na fantasia e na conduta. Porém, uma vez instituído o
sujeito e sua vida fantasmática não há como se pensar unilateralmente na passividade, mas
principalmente na atividade do sujeito, no seu papel de agente das cenas
4
, o que nos coloca
numa dimensão ética da responsabilização do sujeito. O masoquismo principalmente no
âmbito moral pressupõe um ser sádico que goza com o sofrimento do indivíduo, mas apaga
a participação deste como ser que também goza, ou seja, há um enfoque no padecimento,
4
Refiro-me, sobretudo, à vida fantasmática e, mais particularmente, a fantasia de espancamento em Uma
Criança é Espancada (FREUD, 1919). Embora objeto no conteúdo da cena, o indivíduo é sujeito em sua
produção.
14
no fazer-se vítima frente a um outro, deixando no escuro o papel de agente do próprio
sujeito.
Trata-se, portanto, de repensar a importância da dialética atividade e passividade
para além do âmbito propriamente pulsional no que se refere ao traumático e ao
sofrimento, alcançando originariamente, a partir do desamparo inicial, a questão da
alteridade na constituição subjetiva. Ou seja, problematizar esta dialética a partir de um
momento originário e traumático, masoquista, momento em que se estaria no pólo da
passividade, do padecimento, frente a um outro que seria plena atividade. É importante
ressaltar desde já que esta referência plena que situa a criança e a passividade de um lado
e, do outro, o adulto e atividade, constituí um modelo teórico para pensar a polarização
atividade versus passividade a partir da psicanálise freudiana. Como veremos em capítulos
futuros, estes pólos devem ser relativizados de tal forma que possamos falar em uma
atividade muito precoce na criança, bem como numa passividade do adulto perante este
outro singular que é a própria criança. Num segundo momento desta linha de raciocínio, a
permanência desta relação inaugural (nas fantasias de sedução, de espancamento, e na
maneira singular como o sujeito age e interpreta sua ação realização inconsciente da
fantasia), masoquismo feminino e masoquismo moral, e a possibilidade de se pensar na
dimensão da responsabilização, no caráter ativo do sujeito enquanto tal, na sua dimensão
ética.
15
3 - MÉTODO
Esta dissertação consiste em uma pesquisa teórica em psicanálise, utilizando o
método hermenêutico, a partir do texto freudiano, procurando fazer um percurso que
retrate o desenvolvimento e o diálogo de certas noções freudianas de maneira articulada.
Neste sentido, farei uso principalmente do texto freudiano e de uma re-leitura de Freud
através de alguns aspectos teorizados por J. Laplanche, a saber, retomada da noção
freudiana de apoio para explicitar a gênese da sexualidade, da fantasia e do masoquismo a
partir do tempo auto”, e, principalmente, sua formulação de uma teoria da sedução
originária. Tese que procura resgatar algo fundamental presente na teoria da sedução
freudiana: o profundo desencontro entre os protagonistas da cena (a criança e o adulto),
enfatizando a condição passiva do primeiro e o caráter desviante do segundo, marcado pela
sua sexualidade inconsciente, que se constituirá em enigmas a serem decifrados pela
criança. “A situação originária é o confronto do recém-nascido, da criança no sentido
etimológico do termo, aquele que ainda não fala, com o mundo adulto” (LAPLANCHE,
1992, p.96).
Em um primeiro momento, farei a caracterização do masoquismo no paradigma da
perversão, pois foi assim que o conceito começa a ser inserido de maneira mais sistemática
no arcabouço teórico da psicanálise. Embora o termo masoquismo não tenha sido citado
pela primeira vez nos Três Ensaios (FREUD, 1905) texto escolhido para definir meu
objeto de estudo, é neste texto em que se discutem os fundamentos do fenômeno
masoquista sob o prisma perverso. Há uma teorização envolvendo a agressividade ligada à
função sexual e a postulação de um sadismo primário (que também será abordado a partir
de Pulsões e destinos da Pulsão (1915) e Uma Criança é Espancada (1919)), já que a idéia
16
de um masoquismo originário parecia situar-se no âmbito do paradoxo, considerando-se
outros fundamentos teóricos como o princípio do prazer. Freud fala do par sadismo-
masoquismo como fenômeno complementar, no qual se delineiam de forma clara os
caracteres ativo e passivo da sexualidade humana. Falar sobre o caráter ativo parece não
ser fonte de grandes problemas para Freud, mas a passividade mostra seu paradoxo
pulsional e sua não articulação teórica nesta etapa de seu pensamento.
A seguir, abordarei a questão da passividade em Freud através de um retrocesso:
iniciamos com considerações acerca dos Três Ensaios que, se é o texto da perversão,
também o é da sexualidade infantil. Voltarei, então, a um período anterior, para a chamada
Teoria da Sedução, para falar da passividade, suas conseqüências, destinos e permanência.
Neste sentido, abordarei a Teoria da Sedução como algo que teoricamente nos remete a
passividade e ao traumático no pensamento freudiano e sua articulação na gênese da
histeria. O “abandono” deste trajeto teórico por Freud abre caminho para noções
fundamentais na psicanálise, como a fantasia, a realidade psíquica, a sexualidade infantil e
o complexo de Édipo. Este último, porém, fica como que não articulado completamente, o
que explicaria as poucas referências nos Três Ensaios. De qualquer forma, o caminho da
sedução, da passividade e do traumático permanecem vivos e interligados, ainda que de
forma subjacente no pensamento de Freud e retornam em alguns momentos, fazendo-se
enigma e exigindo, progressivamente, desenvolvimentos que persistirão até o final de sua
obra. Exemplos: os sonhos que contrariam a realização de desejos, o próprio masoquismo,
a culpa, os processos de repetição, a reação terapêutica negativa, tudo culminando na
pulsão de morte.
Neste sentido, cabe considerar o esquema da realização de desejos da Interpretação
dos Sonhos (FERUD, 1900) e situar novamente o paradoxo dos sonhos traumáticos.
Paradoxo da realização de um desejo que remete não ao prazer, mas ao desprazer. Freud
17
falará já em 1900 de tendências masoquistas e masoquismo mental. A questão retornará de
forma mais plena após 1920, com Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920), com a
Reação Terapêutica Negativa, em O Ego e o Id (FREUD, 1923) e, principalmente, no
Problema Econômico do Masoquismo (FREUD, 1924). No entanto, é interessante verificar
como neste período intermediário que vai de 1900/1905 até os anos vinte a questão se
desenvolve, sempre a partir da clínica e suas indagações, particularmente na neurose
obsessiva e na melancolia, principalmente pelo viés da culpa e pelo progressivo
delineamento do que viria a tornar-se o superego da segunda tópica.
Abordarei, então, a questão da passividade e do traumático segundo o
“deslizamento” do pensamento freudiano através da clinica da histeria para a da neurose
obsessiva e depois para a da melancolia (em capítulo referente à identificação).
Visto não haver qualquer dúvida de que a histeria tem forte afinidade com
a feminilidade, da mesma forma que a neurose obsessiva com a
masculinidade, afigura-se provável que, como determinante da ansiedade,
a perda do amor desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameaça
da castração nas fobias e o medo do superego na neurose obsessiva.
(FREUD, 1926, p.141).
Ou seja, trata-se aqui de delinear algumas questões clínicas que interrogaram Freud
e exigiram revisões, ampliações e reconsiderações. Acompanharei o percurso freudiano
através de alguns textos que demonstram este novo foco de atenção clínica e teórica, como
o Homem dos Ratos (FREUD, 1909), Atos Obsessivos e Práticas Religiosas (FREUD,
1907) e Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico (FREUD, 1916).
Vale lembrar que o texto Uma Criança é Espancada (FREUD, 1919) tem por subtítulo
Uma Contribuição ao Estudo da Origem das Perversões Sexuais, porém os casos clínicos
apresentados por Freud são de neuroses obsessivas. Isto de alguma forma demonstra certa
ampliação do conceito de masoquismo através do que é observado na clínica da neurose.
18
Realizarei a seguir uma tentativa de articulação entre a Fantasia de Sedução e a
Fantasia de Espancamento, tendo por base o texto Uma Criança é Espancada (FREUD,
1919) e a leitura laplancheana (1985) deste texto. A questão do originário nas fantasias,
principalmente no que diz respeito ao Édipo, e a abertura para um ano depois (1920)
pensar-se em um masoquismo primário. Desta forma, farei algumas considerações a
respeito da mudança nas cenas, da sedução para o espancamento, bem como a
possibilidade de uma articulação mais consistente com o Édipo.
Para falar da constituição do sujeito através da segunda tópica, caberá fazer em meu
percurso uma passagem pelo conceito de identificação. Conceito que é fundamental para
se postular o superego dentro do jogo da segunda tópica, bem como entender sua ação na
trama masoquista. No entanto, como veremos, a identificação por si só não explica
totalmente o superego, há algo que não se articula e que resistiu em ser articulado por
Freud em seu sistema de pensamento: a pulsão de morte. Meu percurso teórico nos levará,
a seguir, ao Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920), no qual será possível proceder a
um outro nível de articulação às questões do traumático e da passividade, à hipótese de
uma pulsão de morte que, por assim dizer, começa a alinhavar antigas dúvidas e
paradoxos. Será precisamente neste texto que Freud falará pela primeira vez em um
masoquismo primário, revendo, portanto, sua antiga concepção. À reformulação da teoria
pulsional segue-se a segunda tópica do aparelho psíquico, na qual pode-se inclusive
observar a presença teórica do complexo de Édipo articulado de maneira mais ampla, sem
os impasses passados, possibilitando, inclusive, uma maior compreensão da confluência
entre moral e sexualidade, noções a princípio antagônicas na psicanálise freudiana.
Veremos como no texto O Problema Econômico do Masoquismo (FREUD, 1924) o
conceito de masoquismo ganha uma maior compreensão teórica, sendo articulado tanto
com a segunda tópica e o Édipo quanto com a teoria pulsional. É também neste texto em
19
que se teoriza a respeito do masoquismo moral, através do qual será possível pensar na
sexualização da moral e no importante papel do superego, herdeiro não só do Édipo, mas
da pulsão de morte. Com o masoquismo moral, a questão da montagem fantasmática
continua sendo o estar passivamente à mercê do outro, ainda que este seja a figura
impessoal do destino, substituto, segundo Freud, da figura paterna. Esta questão é também
abordada por Freud para pensar a importância desta potência paterna atuando na produção
do sentimento de culpa, na perpetuação de uma relação infantil de dependência do sujeito,
bem como sua importância para os interesses da cultura, conforme O Mal-Estar na
Civilização (FREUD, 1930).
Já tendo este pano de fundo da confluência da nova teoria pulsional com a segunda
tópica, articulados por Freud ao Édipo, re-contextualizarei o desamparo, o traumático, a
sedução, a passividade, de forma mais ampliada, considerando a noção de repúdio da
feminilidade (FREUD, 1937). De certa maneira, acredito que assim será possível efetuar
uma releitura da antiga formulação do Projeto: “o desamparo inicial dos seres humanos é a
fonte primordial de todos os motivos morais (FREUD, 1950 [1895], p. 370).
20
4 - O MASOQUISMO NO PARADIGMA DA PERVERSÃO
Neste primeiro momento, contextualizarei o masoquismo entre as chamadas
perversões sexuais, para depois verificar as futuras expansões do conceito dentro do
referencial psicanalítico e sua articulação com outros conceitos fundamentais. Neste
sentido, cabe considerar inicialmente as particularidades da perversão dentro do
pensamento freudiano.
O masoquismo é descrito como uma das muitas perversões sexuais, chegando
mesmo a ocupar, ao lado de seu par complementar, o sadismo, um lugar de destaque entre
as formulações freudianas. O fenômeno, porém, era também fonte de grande dúvida e
perplexidade para Freud. Como conciliar o masoquismo com o princípio do prazer? Falar
em prazer no desprazer parece um contra-senso que só será plenamente resolvido na
década de 20. Nesta ocasião futura (1920), uma nova compreensão será alcançada acerca
do masoquismo envolvendo as questões edípicas, já indicadas no texto Uma Criança é
Espancada (FREUD, 1919), bem como será possível uma releitura através da nova teoria
pulsional e da segunda tópica do aparelho psíquico. Neste sentido, começarei por
caracterizar a sexualidade e a perversão no pensamento freudiano, a partir das
considerações constantes nos Três Ensaios (FREUD, 1905b).
No texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud (1905b) escreve sobre
o masoquismo como uma das muitas perversões sexuais, sobressaindo-se até com um certo
destaque entre elas. Tendo este texto como base, será possível constatar qual a concepção
de perversão presente no pensamento freudiano em 1905 e qual a sua importância para as
teorizações futuras no que tange ao meu objeto de estudo.
21
O texto supracitado marca um profundo questionamento do paradigma de
sexualidade humana então vigente no início do século XX. Haveria uma concepção de
normalidade na sexualidade, baseada na noção de instinto, no sentido que lhe dá a biologia,
como um padrão relativamente fixo de comportamento. Desta forma, no âmbito do sexual,
o ser humano estaria pré-determinado instintivamente a praticar o coito, definido como a
conjunção genital entre indivíduos de sexos opostos, a fim de aliviar uma tensão sexual.
Assim, a normalidade estaria definida por um alvo sexual normal, o coito, e por um objeto
normal, o indivíduo do sexo oposto. De forma subjacente a esta determinação biológica,
estaria uma motivação da natureza em perpetuar a espécie. Ou seja, por normal, neste
contexto, entenda-se também natural, fruto da suposta intencionalidade da natureza.
Baseando-se nesta concepção de normalidade, haveria transgressões, desvios de tais
condutas normais, o que nos leva ao conceito de perversão dentro de tal paradigma. O
primeiro dos Três Ensaios é denominado Aberrações Sexuais e trata dos desvios do
instinto quanto ao objeto (inversão de objeto e crianças e animais como objetos sexuais) e
quanto ao fim sexual (transgressões anatômicas e fixação dos fins sexuais preliminares).
Quanto aos desvios no alvo sexual, diz Freud (1905b, p.142):As perversões são ou (a)
transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à união sexual, ou (b)
demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual, que normalmente seriam
atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual final”.
No entanto, destaca o quanto estas chamadas aberrações sexuais estão presentes na
chamada vida sexual normal,
Todavia, mesmo no processo sexual mais normal reconhecem-se os
rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas
como perversões. É que certas relações intermediárias com o objeto sexual
(a caminho do coito), tais como apalpá-lo e contemplá-lo, são
reconhecidas como alvos sexuais preliminares (FREUD, 1905b, p. 141).
22
Ou ainda, “Um exame mais atento sempre mostra que esses novos propósitos, mesmo os
que se afiguram mais estranhos, já se esboçam no processo sexual normal” (FREUD,
1905b, p. 147). Desta forma, a perversão propriamente dita estaria configurada nos casos
em que o desvio teria um estatuto de exclusividade na obtenção do prazer sexual, “[...]
quando há nela as características de exclusividade e fixação, então nos vemos autorizados,
na maioria das vezes, a julgá-la como um sintoma patológico” (FREUD, 1905b, p. 153).
De certa forma, Freud procura mostrar que a própria existência das aberrações
sexuais e mais ainda a presença de seus traços como componentes da chamada sexualidade
normal testemunharia contra a impropriedade do conceito de instinto aplicado ao ser
humano. Devido a tal impropriedade, Freud utilizará a noção de pulsão sexual, na qual não
figuram nem fins nem objetos pré-determinados, naturais.
Segundo Freud, haveria diques psíquicos (o pudor, a repugnância, a moral) que
colocariam limites à pulsão sexual, limitando ou desviando seu curso. Tais barreiras
promoveriam o recalcamento da pulsão e das representações a ela associada que então não
teriam acesso à consciência. A perversão se daria quando a atuação destes diques ou
barreiras fosse incapaz ou insuficiente para dar conta do afluxo pulsional.
Se as barreiras são mantidas, a pulsão seguiria seu curso que é a sexualidade
normal. No entanto, apesar destas barreiras, a sexualidade perversa se manifestaria tanto na
chamada sexualidade normal quanto nos sintomas neuróticos. Freud não deixa explícito,
neste momento teórico, se a construção destes diques é fruto da cultura, chegando a afirmar
que independeria da educação, mas poderia ser ajudado por ela
5
. Ou seja, a constituição de
uma sexualidade adulta não perversa, através da formação dos diques, seria uma
determinação intrínseca do ser humano, da sua natureza, porém poderiam surgir desvios,
5
Talvez isso se deva a uma falta de referências mais explícitas ao Complexo de Édipo nos Três Ensaios,
ficando antes restrito a notas acrescentadas ao texto posteriormente. Um exame mais detido sobre os motivos
do recalque surgirá, segundo Strachey, no texto Uma Criança é Espancada (FREUD, 1919). Sobre as
escassas referências ao Édipo nos Três Ensaios ver o texto Freud, O Movimento de um Pensamento
(MONZANI, 1989, p. 27-55).
23
falhas na consolidação dos diques, o que acarretaria a perversão. O que Freud não diz neste
momento (talvez não explicitamente) é que o natural no humano é fundamentalmente a
perversão, ou melhor, a sexualidade humana é primária e essencialmente perversa, o que,
de certa forma, inviabilizaria a utilização do termo perversão. Já em Fragmento da Análise
de um caso de Histeria, Freud (1905a, p.56) escreve: “Portanto, quando alguém se torna
grosseira e manifestamente pervertido, seria mais correto dizer que permaneceu como tal,
pois exemplifica um estágio de inibição do desenvolvimento”.
Isso também se deduz das suas formulações, ao dizer que a criança manifestaria sua
sexualidade de maneira perversa-polimorfa, sendo que a ação dos diques a canalizaria,
progressivamente, no sentido da genitalidade. A partir de então, as antigas tendências
tornar-se-iam acessórias para o fim sexual adulto.
Procurar a ação do instinto (na definição própria do termo) num humano adulto
levaria obrigatoriamente à noção de normalidade: um indivíduo buscaria por objeto alguém
do sexo oposto ao seu, a fim de praticar o coito (alvo ou fim sexual). O que essa
observação oculta é que tal “instinto” não seria uma fabricação inata, natural, mas algo
construído, moldado. Afinal, na origem do que se considera normal, falseando um instinto,
haveria uma profusão de tendências querendo cada qual sua satisfação de forma
independente e anárquica. Tais tendências teriam sido, por assim dizer, contidas pela tal
primazia dos genitais, mediante a construção dos diques psíquicos. “É lícito conjecturar
que essas forças contribuam para circunscrever a pulsão dentro dos limites considerados
normais [...]” (FREUD, 1905b, p. 153). É neste sentido que Laplanche (1985, p. 22-3)
propõe uma possível nomeação alternativa para o primeiro ensaio de “o instinto perdido”,
pois desconstrói a noção vigente de um instinto sexual no homem.
É-nos, pois, necessário insistir no fato de que a ‘concepção popular’, que
Freud resume para em seguida combatê-la, coincide com uma imagem que
24
pode parecer científica no sentido da ciência da vida, uma imagem que,
finalmente, seja talvez válida, pelo menos em outros domínios que não o
da sexualidade humana. [...] A sexualidade, pode-se dizê-lo depois desse
primeiro capítulo, aparenta ser no adulto, no adulto dito normal, um
instinto, mas isso apenas é o resultado precário de uma evolução histórica
que, em cada uma de suas curvas, pode bifurcar-se diferentemente, para
dar origem às mais estranhas aberrações.
No final do primeiro ensaio, Freud (1905b, p. 155) compara a perversão com a
neurose, dizendo que esta última tira sua energia da vida sexual dos pacientes A
sexualidade perversa mostraria seus traços através da análise destes pacientes, entretanto
esta perversão não seria atuada, mas contida de forma violenta através do recalque
(diques), e expressar-se-ia através de sintomas, solução de compromisso entre as
tendências sexuais e as forças repressivas. O neurótico seria o indivíduo marcado pelo
conflito de uma “necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia ao sexual”
(FREUD, 1905b, p. 156). Desta forma, um tanto esquematicamente, pode-se dizer que na
perversão a sexualidade (no que ela tem de perverso no humano) se faz ato e na neurose,
sintoma. “Portanto, os sintomas se formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal;
a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão” (FREUD, 1905b, p.157). De fato,
neste texto, Freud fala em perversões positivas, sendo, portanto, a neurose a perversão
negativa, contida pelos diques, pela repressão, mas que se expressaria, não obstante,
através de formações substitutivas. Os sintomas em certa medida satisfazem as exigências
pulsionais sem que o sujeito tenha consciência disso, pois a forma pelo qual se manifesta
não transgride as barreiras do recalque, apesar de, não obstante, provocar certa dose de
sofrimento ao sujeito. Este sofrimento, como veremos posteriormente, terá papel
importante na economia psíquica, principalmente na satisfação da sexualidade masoquista.
Ao demonstrar as moções perversas enquanto formadoras de sintomas nas
psiconeuroses, aumentamos extraordinariamente o número de seres
humanos que poderiam ser considerados perversos [...] Assim, a
25
extraordinária difusão das perversões força-nos a supor que tampouco a
predisposição às perversões é uma particularidade rara, mas deve, antes,
fazer parte da constituição que passa por normal (FREUD, 1905b, p. 162).
O segundo dos Três Ensaios afirma que a sexualidade adulta não teria início na
puberdade como se acreditava até então, mas seria o resultado de uma história que se
iniciaria na infância do sujeito, que atravessaria algumas fases e que seria interrompida,
para então retornar na idade adulta. Ou seja, a noção da sexualidade humana em dois
tempos. As manifestações sexuais infantis teriam as características das perversões
observadas na vida adulta. Características sádicas, masoquistas, exibicionistas, voyeristas,
etc., bem como obtenção de prazer oral e anal, estariam presentes de forma simultânea
(caráter polimorfo) e buscariam a satisfação de forma independente umas das outras, como
um fim em si mesmas (caráter perverso) e não como meio, como uma preliminar, à
satisfação genital. É neste sentido que Freud, através das chamadas pulsões parciais,
desvincula sexualidade de genitalidade.
A sexualidade infantil seria, então, uma matriz precursora das manifestações
sexuais adultas. A sexualidade normal após a puberdade (tema do terceiro ensaio), seria
marcada por uma primazia dos genitais, subordinando as tendências perversas em torno de
si, de forma a poderem se tornar preliminares ao coito, à conjunção genital. Na perversão
sexual, por outro lado, não seria a genitalidade que se tornaria o eixo organizador, mas uma
das tendências perversas infantis que, tal qual a genitalidade, teria a exclusividade na
obtenção da satisfação sexual, podendo também subordinar as outras tendências. Neste
caso, segundo Freud, haveria uma fixação de uma determinada tendência perversa durante
a infância que na vida adulta se desenvolveria e se manifestaria plenamente.
Neste cenário, o processo de recalque tem um papel fundamental. Como a
sexualidade se manifesta de forma perverso-polimorfa na infância, as tendências perversas
seriam, por assim dizer, interditadas pelos diques psíquicos no período de interrupção da
26
sexualidade infantil (latência) e poderiam ou não retornar na vida adulta de forma
manifestadamente sexual. Na normalidade, como preliminares ao coito; na perversão,
como fim em si mesmas na obtenção do prazer sexual. Entretanto, estas tendências
poderiam retornar de formas não diretamente sexuais. Além dos sintomas neuróticos, que
representariam uma manifestação da sexualidade perversa em compromisso também com
as forças repressoras, Freud escreve sobre um outro destino das pulsões perversas: sua
transformação, através de um processo de dessexualização ou sublimação, em formações
do caráter. E mais, seriam destas pulsões parciais perversas sublimadas que extrairíamos a
energia para nossas realizações culturais
6
.
Aquilo a que chamamos “caráter” de um homem constrói-se, numa boa
medida, a partir do material das excitações sexuais, e se compõe de
pulsões fixadas desde a infância, de outras obtidas por sublimação, e de
construções destinadas ao refreamento eficaz de moções perversas
reconhecidas como inutilizáveis. Por conseguinte, a disposição sexual
universalmente perversa da infância pode ser considerada como a fonte de
uma série de nossas virtudes, na medida em que, através da formação
reativa, impulsiona a criação delas (FREUD, 1905b, p. 225).
Entre as perversões, Freud (1905b, p.149) atribui um lugar de destaque para o par
sadismo/masoquismo. “A inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua
contrapartida, que são as mais freqüentes e significativas de todas as perversões, foram
denominadas por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de “sadismo” e “masoquismo”
(passivo)”. Ou ainda, quanto à antítese atividade versus passividade, “O sadismo e o
masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já que o contraste entre
atividade e passividade que jaz em sua base pertence às características universais da vida
sexual” (FREUD, 1905b, p.150).
6
Quanto às relações entre perversão e sublimação, ver trabalho de Janine Chasseguet-Smirgel (1991, p.143-
183).
27
Com relação ao sadismo, Freud (1905b, p.149) diz que a sexualidade comporta um
componente agressivo cuja finalidade é dominar o objeto sexual para efetivar o coito. O
sadismo seria, então, um desenvolvimento independente e prioritário deste aspecto
agressivo que, de certa forma, dominaria o fim sexual propriamente dito, a satisfação
obtida perante a humilhação e maus tratos impostos ao objeto. O masoquismo, por outro
lado, “abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais
extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao padecimento de dor física
ou anímica advinda do objeto sexual” (FREUD, 1905b, p.150). No entanto, Freud destaca
o quanto o masoquismo se distancia de um alvo ou fim sexual normal se comparado ao
sadismo e conjectura que o primeiro seria na verdade uma transformação do segundo, um
sadismo que teria por objeto o próprio eu, colocado como objeto sexual. Isso de certa
forma mostra familiaridade com o conceito posterior de narcisismo (FREUD, 1914),
entendido em sentido amplo: o eu como objeto de amor, de investimento libidinal. Em
1914, porém, Freud não escreve sobre o componente agressivo que poderia estar mesclado
ou fusionado à libido. Esta teorização só viria a ocorrer anos mais tarde no texto O Ego e o
Id (FREUD, 1923) no qual figuram ao mesmo tempo a nova teoria pulsional e a
importância do mecanismo de identificação na consolidação do ego e do superego como
instâncias psíquicas.
Desde os Três Ensaios, o masoquismo se coloca como um enigma nas postulações
psicanalíticas, pois se é verdade que a agressividade está presente na sexualidade enquanto
meio para dominação e pode tornar-se um fim, quando desmedidamente desenvolvida (no
sadismo), o masoquismo se configura, por si só como entidade paradoxal, pois seria uma
tendência voluntária à submissão da agressão alheia, uma tendência mesma da pulsão à
passividade. Freud chega a mencionar uma única vez no texto que o dique psíquico a ser
28
ultrapassado no masoquismo é a dor. No entanto, fica a questão: seria propriamente a dor
uma barreira contra a pulsão no sentido que Freud lhe empresta nos Três Ensaios?
Talvez o paradoxo se situe precisamente na possível tendência da pulsão à
passividade. Apesar da presença constante da antítese passividade versus atividade na
sexualidade humana, antítese fundamental no par sadismo/masoquismo, a pulsão sexual
propriamente dita só comportaria um caráter de plena atividade, independente da
passividade manifesta por um dos parceiros na cena sexual. Pensar, portanto, numa
tendência originalmente “apassivadora” da pulsão era algo, pelo menos na época,
paradoxal. Desta maneira, a solução encontrada por Freud foi continuar concebendo a
agressividade, enquanto componente pulsional, como pura atividade. A manifestação
clínica masoquismo seria um deslocamento deste componente da pulsão contra o próprio
eu, que afinal também pode ser objeto da pulsão. A futura conceitualização da pulsão de
morte dará conta desta tendência apassivadora que será explicada em 1920 através de um
masoquismo primário, conforme examinarei em um outro capítulo.
Quanto às formações de caráter evocadas mais acima, uma tendência masoquista da
infância poderia, portanto, persistir na vida adulta como traço de personalidade, o que pode
nos fazer pensar no ulterior conceito de masoquismo moral, sem entrar propriamente nas
questões intrapsíquicas do conflito no sujeito dividido, a partir de 1923, em ego-superego-
id. Aqui, no texto de 1905, a problemática conflitiva está ainda configurada entre o que é e
pode ser consciente e o que é inconsciente, porque foi interditado, mas que por sua
valência energética força passagem para o ato, mas é contido e só se permite sua expressão
(no caso do neurótico) mediante transformações, o sintoma, por exemplo.
Ficando ainda restritos às conceitualizações teóricas deste período inicial do
pensamento freudiano, pode-se dizer que a sexualidade perversa negativada, interditada
pelos chamados diques psíquicos buscaria, não obstante, sua expressão através de sintomas
29
e formações de caráter que, em maior ou menor grau, causariam sofrimento ou dor
anímica. “A contribuição desta última [pulsão de crueldade em sua forma passiva, ou seja,
masoquista] é indispensável à compreensão da natureza sofrida dos sintomas e domina
quase invariavelmente uma parte da conduta social do doente” (FREUD, 1905b, p.158). A
qualidade de sofrimento poderia gratificar o masoquismo interditado, independente de
uma formação de caráter propriamente masoquista. No caso de uma tal formação de
caráter, a força pulsional teria um poder tal (como uma fixação) que impulsionariam a vida
do sujeito a uma série de desventuras
7
, para gratificar-se sem ter uma manifestação sexual
direta. Ou seja, o processo de dessexualização de uma pulsão masoquista deixaria um traço
de caráter marcado moralmente por certa provocação de auto-sofrimento. Ser um
masoquista sexual para tal sujeito poderia ser algo impensável, devido ao destino pessoal
dado a uma tendência perversa infantil.
O texto de 1905 é o da perversão e da sexualidade infantil e, neste momento, como
vimos, Freud vislumbra a importância do par sadismo e masoquismo e de como
“personificam” a oposição ativopassivo da sexualidade humana. No entanto, é
interessante salientar que na Interpretação dos Sonhos, Freud (1900) já faz uso do conceito
de masoquismo para além da perversão. Ao teorizar sobre a universalidade da realização
de desejos no mecanismo formador dos sonhos, ele se deparou com um fenômeno que
haveria de o perseguir por mais vinte anos. Há sonhos em que a motivação parece não estar
no desejo, mas na repetição de experiências traumáticas. O modelo fundamental de
realização de desejos dos sonhos, transformado em chave para a compreensão dos
fenômenos anímicos, mostra-se sujeito à uma exceção. Como pensar os sonhos
traumáticos? O modelo dos sonhos mostrava falhas que novamente remetiam ao
traumático. Freud, naquele momento, para dar conta de um paradoxo lança mão de outro, o
7
O caráter auto-acusatório surgirá no pensamento freudiano primeiramente através da clínica e da teoria a
respeito da neurose obsessiva e da melancolia e, posteriormente, através das formulações que
progressivamente irão desenhando o que se tornará o superego da segunda tópica do aparelho psíquico.
30
masoquismo. Sua referência já neste contexto situa-se para além da perversão, fazendo par
antagônico com o desejo, e antecipa o que seria o masoquismo como um componente
fundamental do psiquismo. De qualquer forma, a questão toda, incluindo tanto os sonhos
traumáticos como o masoquismo, fica como que inarticulada com o princípio de prazer. [A
referência ao traumático apesar do “final” da teoria da sedução perpassa toda a teoria
freudiana] As principais passagens na Interpretação dos Sonhos (1900) ocorrem em dois
momentos, sendo que no primeiro além de falar do masoquismo como uma inversão do
sadismo tal postulado permanecerá no seu pensamento até 1920 não concebe o sonho
desprazeroso e traumático como um desmentido à realização de desejos. Porém, um desejo
masoquista.
O segundo motivo para os sonhos com o oposto do desejo é tão óbvio que
é fácil deixá-lo passar despercebido, como eu mesmo fiz por tempo
considerável. Há um componente masoquista na constituição sexual de
muitas pessoas, que decorre da inversão de um componente agressivo e
sádico em seu oposto. Aqueles que encontram prazer não na inflição de
dor física a eles, mas na humilhação e na tortura mental, podem ser
descritos como “masoquistas mentais”. Percebe-se de imediato que essas
pessoas podem ter sonhos com o oposto do desejo e sonhos desprazerosos
que são, ainda assim, realizações de desejos, pois satisfazem suas
inclinações masoquistas. (FREUD, 1900, p.192).
Já no segundo momento, refere que não objetaria uma classificação de sua teoria
dos sonhos que abarcasse os dois tipos de sonhos, de realização de desejo e punitivos. Ou
seja, parece estar diante de um impasse que a realização de desejos não consegue abarcar,
necessitando abrir-se uma outra via, que, no entanto só será plenamente delineada vinte
anos depois.
Convém lembrar que existem na mente impulsos masoquistas que podem
ser responsáveis por uma inversão como essa. Eu não faria objeção a que
essa classe de sonhos fosse distinguida dos “sonhos de realização de
desejo” sob o nome de “sonhos de punição” (FREUD, 1900, p. 508).
31
Como conceber que alguém a quem é dada a possibilidade de realizar seus mais
íntimos e inconfessáveis desejos, ainda que de forma disfarçada, possa realizar o que lhe é
experimentado como sofrimento e desprazer? O desejo ficaria obstaculizado, paralisado,
frente a algo que o ultrapassa, algo da ordem de uma necessidade, ou o sujeito desejaria
sua desgraça? Se assim for, como poderia alguém, a quem tudo seria possível (no sonho),
desejar o sofrimento, a desventura, o padecimento? São questões com que Freud se
defrontou, mas que talvez só tenha alcançado maior clareza a partir da teoria pulsional de
Além do Princípio do Prazer (1920), com a hipótese da pulsão de morte e de um
masoquismo primário. Neste sentido, é interessante lembrar que os sonhos de punição, que
pareciam ser uma exceção à realização de desejos na Interpretação dos Sonhos, retornam
no texto de 1920 como um dos três fenômenos de repetição que Freud utiliza em sua
argumentação. Quanto à questão de o desejo ser, por assim dizer, ultrapassado por uma
necessidade vale indicar o desenvolvimento da noção de necessidade de punição presente
no masoquismo moral (FREUD, 1924).
O pensamento de Freud sofrerá modificações que permitirão conceber este
interjogo de maneira mais distante da problemática propriamente perversa, enfocando mais
diretamente o próprio processo de constituição do sujeito (dividido), no qual se faz uma
premissa assentada na moralidade, na cultura, para a manifestação de uma dor moral, ou
seja, a própria moralidade (um dos diques psíquicos nos Três Ensaios) se converte em
condição para o gozo. Embora o masoquismo como perversão permaneça como algo
observável e paradoxal, progressivamente passa a ser concebido para além da perversão,
como algo presente na relação do indivíduo com seu próprio sofrimento e será observado
talvez em maior escala na medida em que o pensamento clínico de Freud avança pela
neurose obsessiva e pela melancolia. Paralelamente, delineiam-se lugares no aparelho
32
psíquico (a segunda tópica) para se pensar o interjogo conflitante de forças anímicas
atuantes na economia do sofrimento.
33
5 SOBRE A PASSIVIDADE, O TRAUMÁTICO E A SEDUÇÃO: FINAL E
PERMANÊNCIA DE UM MODELO.
Através do que se segue pretendo iniciar uma linha de raciocínio que visa
demonstrar como a questão da sedução vincula-se à da passividade originária no humano.
Posteriormente, será possível constatar as ressonâncias desta passividade no conceito
ampliado de masoquismo após 1920. A teoria da sedução, como veremos, não morre na
carta a Fliess (carta 69) e nem é inviabilizada pelas noções de fantasia e sexualidade
infantil. O encontro com o outro para além da perversão, da violência, virá em teorizações
freudianas futuras que darão conta do desamparo original do humano, sua disposição a ser
traumatizado pela sexualidade do outro, à qual não é possível esquivar-se, daí sua
passividade, pois este próprio submeter-se ao que vem do outro é condição para o
surgimento da subjetividade, daí o caráter estrutural do masoquismo.
Com o objetivo de pensar o aspecto intersubjetivo deste encontro com o outro,
parto da proposta da intersubjetividade pensada em termos de quatro matrizes
suplementares (Transubjetiva, Traumática, Interpessoal e Intrapsíquica) propostas por
Nelson Coelho Júnior e Luiz Cláudio Figueiredo (2004). Neste sentido, privilegiei em
minha argumentação a matriz traumática articulada à noção de Sedução. A questão do
traumático da intersubjetividade é pensada em termos do quanto o outro é para mim algo
traumatizante, invasivo, solicitador, algo que me assedia com sua presença. Ou seja, o
outro em seu caráter estrangeiro que me traumatiza, porém me constitui como ser
responsivo, mas também ser enigmático para outro. Pode-se, neste sentido, pensar a
intersubjetividade traumática no referencial psicanalítico, articulado com a noção de
sedução em Freud, Ferenczi e Laplanche. A partir daí será possível extrair algumas
34
considerações a respeito da natureza constitutiva deste encontro traumático com a
alteridade que constantemente assedia, exigindo, através de sua presença, de seu semblante
em forma de enigma a ser desvendado, uma resposta.
A questão do traumático em Freud surge primeiramente na chamada Teoria da
Sedução, na qual se postula ocorrência factual de uma sedução, da criança por um adulto,
como geradora, ainda que num segundo tempo, da neurose no sujeito adulto. Neste
paradigma, a criança sofreria passivamente a sedução sem dispor ainda de meios para
“significar” a experiência. Somente na idade adulta, uma outra experiência remeteria o
sujeito retroativamente à cena primeira, resignificando-a. O efeito traumático, portanto,
dar-se-ia em dois tempos, levando à eclosão da neurose. Freud partia de observações
clínicas para chegar neste modelo, seus pacientes invariavelmente rememoravam tais
situações de sedução, geralmente cometidas por figuras parentais.
Para Freud, trata-se de estabelecer sem contestação o vínculo que ele
descobriu entre a sexualidade, o traumatismo e a defesa: mostrar que é da
própria natureza da sexualidade ter um efeito traumático e, inversamente,
que só se pode, em última instância, falar de traumatismo e nele descobrir
a origem da neurose, na medida em que interveio a sedução sexual
(LAPLANCHE & PONTALIS, 1964, p.27).
O modelo passa a ser desconstruido a partir de 1897 (na famosa carta 69 a Fliess),
quando Freud passa a postular a sexualidade infantil e atribuir à fantasia o papel
fundamental no drama psíquico. A questão de factualidade da sedução é minimizada e
talvez na mesma proporção são acentuadas as noções de realidade psíquica e fantasia na
determinação dos sintomas neuróticos. Como aponta Laplanche, o abandono da teoria da
sedução trouxe como conseqüência, além do próprio nascimento da psicanálise como
disciplina autônoma, a necessidade teórica de se postular, em um texto como os Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905b), a origem e curso endógenos do desenrolar
35
da sexualidade infantil, quanto da própria fantasia. Segundo seus argumentos, o fator
constitucional passa a ser preponderante com a retirada desta intrusão de um outro que se
imporia como sedutor de uma criança. “Se o evento se esquiva, então o outro termo da
alternativa a constituição é reabilitado. Pois se o real, numa de suas modalidades, falta
e revela não passar de ‘ficção’, cumpre buscar alhures um real que sirva de alicerce para
essa ficção” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1964, p.37).
Desta forma, a exigência de corresponder a uma realidade experienciada
objetivamente cede lugar a uma experiência subjetiva “nascida de dentro”, da vida
pulsional do sujeito, daí a importância da teoria da sexualidade infantil, porém orientada
dinâmica e evolutivamente de maneira constitucional. A dimensão do encontro entre
subjetividades se dilui num “realismo biológico”.
Laplanche postula que é esta exigência teórica em favor do constitucional que
explicaria inclusive as referências marginais a um conceito crucial como o de complexo de
Édipo nos Três Ensaios. Segundo ele, tudo se passa como se Freud encontrasse uma
dificuldade teórica em articular o Édipo com a sexualidade infantil. O Édipo que nasce
teoricamente (alicerçado na auto-análise e na análise dos pacientes) no bojo da teoria da
sedução, que pode ser vista dentro de um referencial intersubjetivo e no pólo do factual,
perde seu poder teórico quando Freud se vê na necessidade de renunciar a factualidade em
prol da fantasia. A materialidade buscada a partir de então na constituição deixaria poucos
recursos para articular o Édipo como experiência intersubjetiva, pois o sexual na criança
não viria de fora, mas de dentro, sendo a fantasia uma derivação deste sexual endógeno.
Anteriormente, a materialidade estava no evento sedução. “Se houve desbravamento do
traumatismo real e da cena de sedução, na medida em que ele foi efetivo, não foi ao Édipo
que ele deu lugar, mas à descrição de uma sexualidade infantil espontânea, de
desenvolvimento essencialmente endógeno” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1964, p.38).
36
Ainda no que tange à “materialidade” da antiga cena de sedução e a um tempo
primeiro, o pensamento de Freud após abandono da teoria da sedução vai orientar-se
também pela busca do originário da fantasia num processo de retrocesso temporal que não
hesitará em ultrapassar os limites da ontogênese,
Se a fantasia se revela como um campo autônomo, consistente, explorável,
deixa intacta a questão de sua própria origem, não somente a de sua
estrutura, mas também a do seu conteúdo, dos seus detalhes mais
concretos. Nesse sentido, nada mudou, e a busca cronológica, o retrocesso
no tempo em direção aos elementos originários, reais e verificáveis, não
deixa de orientar a prática de Freud (LAPLANCHE & PONTALIS, 1964,
p.45).
Neste sentido, a busca pelo originário, pelo tempo primeiro, de algo que desde a
Teoria da Sedução se daria em obrigatoriamente dois tempos, levou Freud a postular a
noção de fantasia originária para dar conta de um “alicerce para o evento” e, ao mesmo
tempo, “basear a estrutura da própria fantasia em alguma outra coisa que não o evento”
(LAPLANCHE & PONTALIS, 1964, p.51), ainda que ao preço de um retrocesso cronológico
até a filogênese. É no passado da espécie que Freud postula a realidade factual que seria
suporte da realidade psíquica das fantasias do sujeito.
Há, no entanto, um segundo tempo no pensamento freudiano em que a sedução é
retratada em outros termos. Embora os pólos da atividade e passividade se mantenham para
designar uma assimetria entre os personagens da cena no vínculo intersubjetivo, a
estreiteza que via o perverso no sedutor cederá lugar ao desejo inconsciente e ao próprio
atravessamento do sedutor pelo Édipo como constituintes da cena, porém também
constituídos por ela. Não se tratará mais da intrusão perversa de um adulto sobre um
infante assexuado, mas do encontro entre a sexualidade adulta, principalmente na figura da
mãe, e a sexualidade da criança através dos cuidados corporais dispensados a esta.
37
Por mais instrutivos que casos desse tipo possam ser, um grau ainda mais
alto de interesse deve ligar-se à influência de uma situação pela qual toda
criança está destinada a passar e que decorre inevitavelmente do fato de ser
ela cuidada por outras pessoas e viver com os pais durante um período
prolongado. Estou pensando no complexo de Édipo, [...] O primeiro objeto
erótico de uma criança é o seio da mãe que a alimenta; a origem do amor
está ligada à necessidade satisfeita de nutrição. Não há dúvida de que,
inicialmente, a criança não distingue entre o seio e o seu próprio corpo;
quando o seio tem de ser separado do corpo e deslocado para o “exterior”,
porque a criança tão freqüentemente o encontra ausente, ele carrega
consigo, como um “objeto”, uma parte das catexias libidinais narcísicas
originais. Este primeiro objeto é depois completado na pessoa da mãe da
criança, que não apenas a alimenta, mas também cuida dela e, assim,
desperta-lhe um certo número de outras sensações físicas, agradáveis e
desagradáveis. Através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna
seu primeiro sedutor. Nessas duas relações reside a raiz da importância
única, sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a
vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de
todas as relações amorosas posteriores para ambos os sexos. (FREUD,
1940, p. 201).
Ou seja, através deste enfoque se privilegia novamente o aspecto relacional,
presente na Teoria da Sedução e deixado na sombra por uma tendência biologizante.
Segundo a interpretação de Laplanche, este retorno de Freud à sedução proporciona a
resolução dos impasses teóricos que levaram Freud ao organicismo determinista presente
nos Três Ensaios e à dificuldade em articula-lo ao complexo de Édipo. A seu ver este
retorno à sedução proporciona a via de articulação faltante entre os fatores internos
constitucionais, que remetem ao pulsional e em última medida, em Freud, ao biológico, e
os fatores externos, relacionados principalmente ao caráter intersubjetivo do complexo de
Édipo. Laplanche (1992) chama este segundo momento da teorização freudiana de sedução
precoce, enquanto que, ao momento anterior (antes de 1897), chama de sedução restrita.
Pode-se argumentar também que o traumático da Teoria da Sedução comporta
também uma dimensão moral presente na abordagem da perversão, no entanto este caráter
de desvio moral é reabilitado nesta sedução por apoio nos cuidados maternos, o desejo
inconsciente da mãe, por assim dizer, se apoiando nos cuidados maternos. No entanto, se a
questão da perversão é minimizada, do ponto de vista teórico, através do encontro da
38
sexualidade adulta, marcada pela fantasia inconsciente, e a sexualidade infantil, a questão
da culpa se amplia na compreensão do Édipo, deste encontro que, não obstante, jamais
deixa de comportar algum grau de traumatismo. Desta forma, a intrusão da sexualidade
adulta não é abandonada neste segundo momento da teoria da sedução, porém tratada em
outros termos.
Para entrar nesta questão é interessante extrair algumas considerações do texto
Confusão de Línguas entre os Adultos e a Criança, de Ferenczi (1933), que, de certa
forma, estarão em consonância com outra formulação laplancheana: os significantes
enigmáticos” e o papel fundamental da criança como tradutora destes significantes
provenientes do adulto.
O texto de Ferenczi propõe que haveria um descompasso fundamental entre
adultos e crianças, descrito em termos de duas linguagens distintas. Enquanto a criança
operaria em suas interações com o mundo adulto na esfera da ternura”, o adulto
estabeleceria, no seu encontro com a criança, algo da ordem da “paixão”. Trata-se da
sexualidade adulta se impondo à criança como algo que vindo de fora, da alteridade, a
ultrapassa e à qual não tem a possibilidade de significar, posto que opera em outro nível.
De certa forma, mantém a idéia original de Freud acerca dos dois tempos do trauma, não
mais enfatizando o caráter temporal desta distancia, mas antes esta vista como de
linguagens distintas. O desenvolvimento endógeno da sexualidade tal qual exposto nos
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1905b) não inviabilizaria, como
Freud percebeu mais tarde, a hipótese de uma sedução que se impõe à criança pelo simples
fato da sexualidade adulta atravessar sua linguagem e contaminar a criança. No entanto,
segundo esta abordagem que privilegia o aspecto traumático da intersubjetividade, isso é
pré-condição para a subjetivação.
39
Segundo Ferenczi (1933, p.102), as reações “previstas” por parte da criança frente a
paixão de um adulto “[...] seria a recusa, o ódio, a repugnância, uma resistência violenta
[...]”. Entretanto, destaca que tais reações são inibidas devido ao medo, à sua
vulnerabilidade física e moral, o que levaria a criança a identificar-se com o agressor e a
“alienar-se” no desejo do adulto. Tal introjeção faria com que o caráter agressivo,
traumático, da realidade exterior (sedução) se tornasse intrapsíquico e, de alguma forma, a
ternura assim seria preservada. Vale destacar que o texto de Ferenczi se inicia
descrevendo certos pacientes que não melhoram e que se opõe a apresentar objeções ou
críticas ao analista, mesmo quando incitados a isso. Sua exposição parece indicar que isso
que se dá na transferência é a repetição do mecanismo da sedução, marcado pelo encontro
de dois níveis de linguagem.
Neste ponto, há algo digno de nota, a introjeção se coloca como corpo estranho,
através de uma relação apaixonada e agressiva que a sustenta mesclada pela culpa do
adulto. “Mas a mudança significativa, provocada no espírito da criança pela identificação
ansiosa com o parceiro adulto, é a introjeção do sentimento de culpa do adulto: o jogo até
então anódino apresenta-se agora como um ato merecedor de punição” (FERENCZI, 1933,
p.102). Aqui parece colocar-se a questão da tradução. Um segundo tempo (o retorno sobre
a própria criança) em que algo que pertence ao adulto, agressão do sentimento de culpa,
passará a atacar a criança no espaço da intersubjetividade. Os limites ficam imprecisos e a
culpa do adulto faz confusão na própria criança. “Se a criança se recupera de tal agressão,
ficará sentindo, no entanto, uma enorme confusão; a bem dizer, já está dividida, ao mesmo
tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está
desfeita” (FERENCZI, 1933, p.102).
Ferenczi retoma a tese freudiana que o amor objetal na criança é precedido por uma
fase de identificação (primária) e chama a este momento de “estágio do amor objetal
40
passivo, ou estágio de ternura”, no qual, por outro lado, estariam presentes “indícios” do
amor objetal na fantasia e de maneira lúdica,
É assim que as crianças, quase todas sem exceção, brincam com a idéia de
ocupar o lugar do progenitor do mesmo sexo, para tornar-se o cônjuge do
sexo oposto, isto, sublinhe-se, apenas na imaginação. Na realidade, elas
não quereriam, nem poderiam, dispensar a ternura, sobretudo a ternura
materna. Se, no momento dessa fase de ternura, se impõe às crianças mais
amor, ou um amor diferente do que elas desejam, isso pode acarretar as
mesmas conseqüências patogênicas que a privação de amor até aqui
invocada [...] a conseqüência só pode ser essa confusão de línguas a que
fiz alusão no título desta conferência (FERENCZI, 1933,p.103).
A implantação brutal da sexualidade adulta na criança, segundo Ferenczi,
provocaria uma maturação prematura de disposições latentes que deveriam, em tese,
ocorrer de forma gradual. Enquanto certas partes do psiquismo sofreriam desta “progressão
traumática” outras permaneceriam cristalizadas e não desenvolvidas. É neste sentido que
descreve uma verdadeira fragmentação ou atomização do sujeito através de sucessivas
clivagens que tentam dar conta deste desencontro traumático entre os dois mundos: adulto
e infantil.
Considerando-se o “gradual”, conforme o exposto, pode-se pensar em um contato
não traumático” com a sexualidade adulta que progressivamente a faria ingressar nos
processos de subjetivação adulta. Considerando, porém, o paradigma de uma matriz
traumática, até mesmo este gradual seria um excesso a ser assimilado por um ser ainda não
capacitado para isso, ainda operando em uma “outra linguagem” e, por isso, traumatizante.
A constituição da subjetividade se daria, portanto, neste interjogo entre a criança e um
adulto (uma subjetividade constituída e constituinte), sendo que o fator desencontro
próprio a estas duas linguagens ou a estes dois tempos seria traumático, mas condição para
o surgimento subjetivo. Assim, o entre seria, ao mesmo tempo, fonte dos processos de
traumatização e local de formação da subjetividade nascente. Cabe ressaltar a articulação
41
entre o traumático - aquilo que rompe um limite como efração -, e a passividade, o
sofrimento, matrizes da culpa e de formas de gozo com o sofrer. O texto de Ferenczi, neste
sentido, sugere reações terapêuticas negativas de seus pacientes.
Laplanche, por outro lado, utiliza-se da noção de significantes enigmáticos para
teorizar a respeito do fato de linguagem abordado por Ferenczi, em termos de um
desencontro, de duas línguas diferentes e, em certa medida, incompatíveis. Propõe o que, a
seu ver, seria um avanço frente a esta questão, pois, “Ferenczi não dá o passo de levar em
consideração que esta ‘linguagem da paixão’ só é traumatizante na medida em que um
sentido ‘de si mesmo ignorado’, isto é, que manifesta a presença do inconsciente parental”
(LAPLANCHE, 1988, p.118).
De fato, coube à psicanálise constatar e trabalhar com a presença marcante do
infantil no adulto, na (sobre)determinação de seus sintomas, e como fundamento no qual se
edifica o psiquismo. Neste sentido, pode-se pensar também utilizando desta confusão de
línguas como operando no próprio adulto, enquanto sujeito dividido, operando em sua
conflitiva e como substrato a partir do qual se dará seu encontro com a criança, encontro
em que o lúdico da ternura estará fusionado com o passional da sexualidade adulta,
marcada por significantes inconscientes. Cabe lembrar que Freud falava de duas correntes,
a da ternura e da sensualidade que, quando tudo vai bem, confluem-se na vida sexual
adulta. As grandes questões do sujeito em sua fantasia inconsciente que dizem respeito à
sua sexualidade, ao Édipo, à diferença entre os sexos, à castração estariam presentes em
sua linguagem, principalmente no que ela contém de desconhecimento. O enigma que se
configura perante a criança, então, não se dá apenas pela simples assimetria mundo infantil
mundo adulto, na impossibilidade da criança em significar uma experiência que a
ultrapassa como transbordamento. Antes disso, há o enigma que fundamenta o próprio
42
adulto em sua constituição (recalque originário) e que interpelará de forma inexorável,
como ser falante, a criança.
Pelo termo sedução originária qualificamos, portanto, esta situação
fundamental na qual o adulto propõe à criança significantes não-verbais
tanto quanto verbais, e até comportamentais, impregnados de significações
sexuais inconscientes. Do que chamo significantes enigmáticos, não é
necessário procurar longe para encontrar exemplos concretos. O próprio
seio, órgão aparentemente natural da lactação: podemos negligenciar ainda
seu investimento sexual e inconsciente maior pela mulher? Podemos supor
que este investimento ‘perverso’ não é percebido, suspeitado, pelo bebê,
como fonte deste obscuro questionamento: que quer ele de mim?
(LAPLANCHE, 1988, p.119).
Desta forma, apesar da ampliação da noção de sedução para além dos limites da
perversão, permanece, não obstante, seu caráter traumático tendo em vista a implantação
dos significantes enigmáticos no bebê. Assim o traumático é abordado, sobretudo, nos
efeitos da sexualidade de um adulto em um ser “em constituição”. A ênfase, porém, não
está mais no aspecto econômico
8
, mas na experiência do encontro do mundo infantil com o
adulto, enquanto este exige daquele uma resposta para os enigmas que veicula, ainda que
sem o perceber.
Mas este mundo adulto não é um mundo objetivo, que a criança teria que
descobrir e aprender, como aprende a caminhar e a manipular coisas.
Caracteriza-se pelas mensagens (lingüísticas ou simplesmente
semiológicas: pré ou paralinguisticas) que questionam a criança antes que
ela as compreenda, e às quais deve dar sentido e resposta (LAPLANCHE,
1988, p.118).
Colocado desta forma, o adulto estaria no pólo da atividade, daquele que endereça
questões, e o bebê no da passividade, no lugar de quem tem de responder ao outro que se
apresenta como enigma a ser decifrado. Este processo traumático de encontro com um
8
Freud (1916-1917, p.283) escreve em Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: “Realmente, o termo
‘traumático’ não tem outro sentido senão o sentido econômico”.
43
outro que questiona e ao qual se exige resposta desencadearia a subjetivação no bebê,
numa espécie de sedução para a experiência humana. A natureza deste processo
responsivo dar-se-ia de forma defensiva, o psiquismo sendo constituído como defesa frente
ao estar exposto em sua passividade à alteridade que o questiona, o excede, o escapa, o
enche de terror. Embora não saiba o que, nem a quem responde, o sujeito se instala com a
“missão” de dar conta da alteridade, de tornar o outro menos outro, menos aterrorizante,
assimilável a mim.
No entanto, pode-se argumentar também e em que medida o bebê e o mundo
infantil faz enigma ao adulto em seu desconhecimento. Ou seja, pode-se conjecturar o
quanto o próprio adulto pode estar também no pólo da passividade, ser seduzido pelo outro
(a criança) que o interpela. O encontro se daria numa dimensão em que a sexualidade e a
materialização do desejo inconsciente, atravessando o sujeito e as gerações, permitisse ao
adulto assistir e participar de seu florescimento, sua factualidade onipresente através da
linguagem da criança e o choque do que esta presença é desconhecimento, enigma, em si
mesmo. O adulto talvez contemple, como retroação, sua própria constituição frente a algo
que o antecede, que pede resposta, e que, frente a esta impossiblidade fundamental,
também o ultrapassa. O sujeito, enquanto resposta singular e sempre original a um enigma
que lhe vem do outro, contempla o outro infantil como fundamento de si, como origem
impessoal que sustenta algo que possa chamar de um eu, por oposição, como defesa, a uma
alteridade radical e indiferenciada, cuja extremidade oposta está em sua própria
mortalidade. Ou seja, embora o sujeito adulto seja continuamente provocado e responda à
alteridade em seu ininterrupto processo de subjetivação através do encontro com outra
subjetividade, o encontro com o mundo infantil talvez seja uma experiência privilegiada na
qual a dimensão do entre” lhe faça enigma ao qual terá de responder, marcado por
enigmas que o sustentam, de forma enigmática. “Ainda aqui, é através do expediente da
44
incapacidade dos adultos de se explicar isto a si mesmos que se produz o efeito
traumático” (LAPLANCHE, 1988, p.119).
Segundo o percurso traçado até aqui, pode-se conjecturar que o caráter traumático
da sedução permanece ao longo dos desenvolvimentos teóricos de Freud a Laplanche e
passando por Ferenczi. No entanto, a natureza do fenômeno sedução se transmuta ao longo
das teorizações. A princípio, a realidade da sedução é postulada para explicar
etiologicamente a neurose, e é concebida, sobretudo, como uma violência, um
traumatismo, para tanto se faz necessário postular a presença de um perverso como
sedutor. Alguém que ousa violar, com sua sexualidade, a pureza e inocência do mundo
infantil. Depois, postula-se que tanto a inocência infantil quanto a perversão do adulto
devem ser relativizadas.
O abandono da Teoria da Sedução trouxe relevo aos conceitos de fantasia e
realidade psíquica, porém impediu uma articulação teórica com o Édipo, pelos menos num
primeiro momento. Posteriormente, com o desenvolvimento teórico, a sedução se
generaliza, ocorre em idade ainda mais precoce, tem a figura materna por agente e, apesar
de visar o cuidado corporal, veicula a sexualidade, marcada por significantes
inconscientes, do adulto. Isto se dá em grande parte, no pensamento freudiano, devido a
desenvolvimentos clínicos e teóricos que avançam em torno do narcisismo, da
identificação e, posteriormente, da segunda tópica do aparelho psíquico.
A sedução poderia ser vista, para além de seu aspecto traumático, como
fundamental na constituição do sujeito e no seu despertar para o prazer, para a instalação,
legitimação, da pulsão de vida no seio de uma experiência intersubjetiva primordial.
Experiência que se dá num solo indiferenciado, que pode ser visto não apenas sob signo da
intrusão, mas também da eclosão interna, de um progressivo despertar subjetivo. Ainda no
plano intersubjetivo, a própria subjetividade do adulto seria marcada pelo encontro com o
45
outro da criança, como outro que também o interroga e que dele exige uma resposta, numa
espécie de círculo no qual um e outro se interrogam e respondem mutuamente em um
campo intersubjetivo, de limites imprecisos, mas que, paradoxalmente, se exige um grau de
diferenciação.
Cabe pensar também na questão da perversão e do quanto seu estatuto se modifica
ao longo destes desenvolvimentos. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(FREUD, 1905b), enfatiza-se, entre outras questões, uma “universalidade” da perversão
devido ao caráter plástico da pulsão que não tem objeto e/ou fins naturais, pré-definidos,
sendo a genitalidade uma conquista não necessária que tem por antecedentes uma sucessão
de fases em que a pulsão mostraria sua diversidade perversa. A neurose chega inclusive a
ser postulada como perversão negativada, daí mais um reforço à suposição de
universalidade. Em Fragmento da Análise de um caso de Histeria, Freud (1905a, p. 56)
escreve: “Portanto, quando alguém se torna grosseira e manifestamente pervertido, seria
mais correto dizer que permaneceu como tal, pois exemplifica um estágio de inibição do
desenvolvimento”. Ao longo do desenvolvimento da psicanálise freudiana, porém, a
perversão é articulada
9
com o Édipo e depois, na segunda tópica, sob o paradigma do
fetichismo, é relacionada com uma das possibilidades de posicionamento do sujeito frente
à castração.
Voltando à sedução, o perverso do primeiro tempo da teoria se transmuta em quem
presta cuidado essencial a sobrevivência do bebê e assim o libidiniza com sua própria
sexualidade e o convoca a responder singularmente a isso. Embora essa ação de marca da
sexualidade adulta no bebê ocorra de forma inconsciente, fica patente, como disse Freud, o
quanto o bebê é tomado como objeto sexual neste cuidado, “[...] essa pessoa usualmente,
a mãe contempla a criança com sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a
9
Seguindo o trabalho de Chasseguet-Smirgel, J (1991), no qual se concebem três momentos fundamentais do
pensamento freudiano a respeito da perversão.
46
acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto
sexual plenamente legítimo” (FREUD, 1905b, p.211).
Quanto ao masoquismo e suas futuras relações com a culpa e o superego, este
movimento também é observado partindo da perversão masoquista até algo originário
presente nos processos de constituição do sujeito. O desenrolar de tal processo ocorrendo
tanto num nível intrapsíquico: relação culposa (sadomasoquista) entre ego e superego,
quanto interpessoal na relação do sujeito com o outro, embora Freud frise o quanto esta
experiência interpessoal é, por assim dizer, reencenação do drama intrapsíquico. No que
tange propriamente a cena masoquista, pode-se enfatizar seu caráter de aparente
passividade e, segundo Freud, de feminilidade, o que permite articulá-la à questão da cena
de sedução também em seu duplo caráter traumático e constitutivo.
Concebendo-se a sedução em sentido amplo, universalizando-a, considera-se que
toda criança será por assim dizer seduzida pelo adulto, ainda que de forma inconsciente, a
participar da fruição e padecimento no mundo, opondo, porém, uma resistência a isso. O
encontro com o que vem do outro, o convite inconsciente, marcado pela sexualidade do
outro, marca também uma resposta que em essência é defensiva, sendo que tal resposta é a
própria subjetividade. Subjetividade que, ao se defender frente ao que é vivido como
invasão traumática pelo outro, responde afirmativamente. Que na fantasia o paciente
(sujeito) retrate isso como sedução e a veicule como evento traumático é a forma como a
subjetividade concebe o seu próprio ultrapassamento por algo só parcialmente
metabolizável: o outro em sua dimensão de desconhecimento, de estranho, estrangeiro.
Outro que, especularmente, remete ao que no próprio sujeito há de desconhecimento e ao
qual é necessário se defender, mas também (aqui talvez se toque o limite do traumático) se
faz necessário, em alguma medida, se relacionar, num campo para além do defensivo.
47
Em certa medida, a cena de sedução diz respeito fundamentalmente ao erótico
(Eros) e, como vimos, exerce, não obstante um efeito que pode ser chamado de traumático
e convoca a própria subjetividade, num mecanismo essencialmente defensivo. No entanto,
como pode ser observado no texto Uma Criança é Espancada (FREUD, 1919), a cena de
sedução (a fantasia) adquire uma outra configuração na qual o aspecto agressivo e
masoquista ganha destaque, articulado com o complexo de Édipo. Na cena de
espancamento, o indivíduo continua em posição passiva, há um adulto que agride, também
uma figura parental ou seu substituto, há uma clara conotação sexual (é uma fantasia
masturbatória). O que fica em primeiro plano, porém, é um caráter agressivo da cena,
fusionado ao prazer sexual que comporta. Há momentos em que Freud fala em regressão à
fase sádico-anal, mas o que se está prestes a alcançar é a própria destrutividade e a
passividade como elementos fundamentais na própria estruturação do sujeito. Este, por
assim dizer, já “nasce” neste fundo indiferenciado de passividade, de sujeição, e repete na
fantasia este modelo fundamental. “A última característica dessa factualidade da sedução
infantil será a mais essencial, pois define a própria sedução: é a relação de passividade, a
passividade da criança em relação ao adulto” (LAPLANCHE, 1992, p.117).
48
6 – MUDANÇA DE PARADIGMA CLÍNICO: A NEUROSE OBSESSIVA
Enquanto o pensamento freudiano na matriz da histeria percorria com maior
exclusividade os domínios ativos da pulsão e princípio do prazer, na neurose obsessiva
passa a percorrer progressivamente a via “negativa”, das tendências apassivadoras, da
culpabilidade, da punição (anteriormente enigma na teoria da realização de desejos
oníricos) e sua paradoxal satisfação. Além da neurose obsessiva, Freud chega, via
narcisismo, à melancolia e aí as tendências destrutivas já delineadas naquela patologia
chegam a sua plenitude e começa-se a esboçar algo intrinsecamente mortífero, uma
tendência apassivadora que em 1920 explicará os sonhos punitivos de vinte anos antes. A
neurose obsessiva, anteriormente conectada à atividade, leva à passividade da culpa e da
punição frente a um outro que freqüentemente é a figura paterna e impessoal do destino.
Neste momento, cabe considerar um deslizamento de “indagação” clínica que
progressivamente se observa no pensamento de Freud da histeria para outras matrizes
clínicas. Inicialmente abordarei a neurose obsessiva para repensar a questão atividade
versus passividade e para verificar a que esta patologia nos conduz, à questão paterna, a
passividade, a culpa, os precursores teóricos do conceito de superego e ao que será uma
dimensão moral do masoquismo.
O nascimento da psicanálise está, por assim dizer, calcado na clínica da histeria. A
princípio, Freud foi profundamente influenciado pelas idéias de Charcot e Breuer quanto à
histeria, chegando a utilizar o método catártico, através da hipnose, para curá-la. Segundo
o pensamento de Charcot e Breuer, a hipnose poderia ser vista como uma histeria artificial
e assim somente os indivíduos histéricos poderiam ser hipnotizados (Breuer falava em
histeria hipnóide). A experiência da hipnose era, e ainda é, algo sedutor, um instrumento
49
de poder e de submissão. Seu artifício demonstrava a existência de processos anímicos não
disponíveis à consciência, tornando possível inferir uma segunda consciência, um grupo
psíquico separado como um “corpo estranho” que produziria efeitos sintomáticos.
Freud, posteriormente, irá contestar o modelo hipnóide da histeria e irá propor a
noção de defesa como causa fundamental determinante da dissociação psíquica e da
formação de grupos separados, inconscientes. Haverá uma mudança de enfoque que
relativizará os fatores constitucionais, hereditários, em favor dos adquiridos e também uma
ênfase no conflito psíquico como determinante da defesa. Já no campo da técnica, haverá
uma mudança da hipnose para a técnica da pressão e depois para a associação livre. De
qualquer maneira, o nascimento da psicanálise a partir da histeria, como quadro clínico, e
da técnica hipnótica parece exercer uma influência nos destinos tanto da metapsicologia
quanto da técnica e alguns de seus detalhes são interessantes para meu objeto de estudo.
A figura do hipnotizador é algo digno de nota. O paciente (o histérico predisposto
constitucionalmente a entrar em hipnose) colocar-se-ia em posição passiva, seria induzido
a uma condição de inatividade semelhante ao sono e, nesta condição, seria dirigido
segundo o objetivo do hipnotizador. Acontece que alguns pacientes não eram
hipnotizáveis. Provavelmente, não conseguiam se deixar desta forma passiva e ameaçadora
nas mãos de alguém, mesmo que este alguém fosse um médico disposto a aliviar seus
sintomas. A experiência de não estar de posse de sua vontade, de não ter o controle da
situação pode ser algo, para muitas pessoas, insuportável. A resistência de alguns pacientes
em utilizar o divã o comprova, mas também a experiência analítica de maneira geral.
Há, neste sentido, uma afirmação de Freud (1920, p.47), embora com ênfase na
compulsão à repetição:
Pode-se supor também que, quando pessoas desfamiliarizadas com a
análise sentem um medo obscuro, um temor de despertar algo que,
50
segundo pensam, é melhor deixar adormecido, aquilo que no fundo têm
medo é do surgimento dessa compulsão com sua sugestão de posse por
algum poder ‘demoníaco’.
O que fica, porém, no que concerne ao inconsciente e à psicanálise é o temor de não
ser o senhor de suas experiências, de seus pensamentos, no que poderíamos evocar um
medo de enlouquecer, mas essa talvez seja apenas uma das figuras, uma outra poderia ser a
morte. De qualquer forma, parece se tratar de um temor à sujeição, à condição feminina e
isso foi algo que Freud alcançou no final da obra como um repúdio da feminilidade
(FREUD, 1937), embora sua ênfase com esta expressão se situe na angústia de castração.
Contudo, fica uma questão que será desenvolvida posteriormente neste trabalho: este
temor, esta angústia, não seria também a marca de um desejo?
Num primeiro momento, porém, esta experiência de passividade, de uma
submissão, era privilégio da histeria. Condição passiva frente aos estados hipnóides, de
maneira geral, e frente o hipnotizador, em particular, artificialmente. Através do trabalho
de Bernheim, Freud chega ao elemento chave da hipnose: a sugestão. A maior parte das
pessoas pode ser sugestionada, em maior ou menor grau, sendo a hipnose uma experiência
possível a indivíduos muito sugestionáveis. É a partir deste elemento de sugestão que
Freud passará a utilizar a técnica da pressão (expediente primeiramente utilizado por
Bernheim no tocante à sugestão pós-hipnótica) para evocar as lembranças recalcadas. De
certa forma, parte do terror para com a hipnose basear-se-ia num falso pressuposto, o de
que em estado hipnótico o sujeito estaria totalmente desprovido de sua vontade, de seu
controle. No entanto, não é bem isso o que acontece: o sujeito mesmo sob hipnose
apresenta resistências e não é capaz de agir de forma a contrariar seus padrões morais. O
sujeito só avança até aonde o grau de sugestão que o hipnotizador é capaz de evocar o
permitir. Note-se que há uma grande aproximação, em mão dupla, da sugestão com a
51
sedução, de tal forma que poderíamos também dizer que o sujeito só avançaria até aonde
tivesse sido seduzido para tal pelo hipnotizador. Há algo nitidamente erótico neste
processo de estar de forma passiva perante este outro. De certa forma, toda experiência de
cura pressupõe esta polaridade em que aquele que a procura está nesta condição passiva, de
estar “nas mãos de”, de ser objeto, de ser manipulado, de ter de confiar, de deixar-se levar
e, no outro pólo, está aquele que age, e que sabe porque e como age. Tais as polaridades:
padecimento e ação.
No entanto, o ponto em que pretendo chegar é que, apesar desta polaridade
inescapável, o sujeito nunca fornece uma procuração de plenos poderes a quem quer que
seja e de forma irreversível durante a hipnose. O deixar-se nesta condição passiva supõe
uma ação inicial e sua permanência ao longo do “sono” hipnótico que fala da sua intenção
de estar nesta condição que poderíamos chamar de infantil ou ainda de feminina frente a
um outro que estaria na condição do adulto, ou na condição masculina, fálica. A própria
experiência de hipnose fornece uma “repetição” de uma experiência de sedução.
Embora o artifício hipnose tenha sido abandonado pela psicanálise, seus
fundamentos ainda permanecem nesta polarização passividade/atividade da situação
analítica
10
, na transferência. Futuramente, Freud (1921) em Psicologia de Grupo e Análise
do Ego irá associar a figura do hipnotizador com a do líder, para daí extrair considerações
a respeito da figura paterna e da função do ideal.
A hipnose contém um elemento adicional de paralisia derivado da relação
entre alguém com poderes superiores e alguém que está sem poder e
desamparado [...] É de notar que, mesmo existindo uma completa
submissão sugestiva sob outros aspectos, a consciência moral da pessoa
hipnotizada pode apresentar resistência. Porém, é possível que isso se
atribua ao fato de que na hipnose, tal como é habitualmente praticada,
pode ser mantido um certo conhecimento de que o que está acontecendo
seja apenas um jogo, uma reprodução inverídica de outra situação muito
mais importante para a vida (FREUD, 1921, p. 125 grifos meus).
10
O paciente deitado no divã talvez seja a indicação mais concreta do legado da hipnose.
52
Ou seja, a relação de sujeição durante a hipnose e, posteriormente, durante a
experiência transferencial é a reprodução de uma situação muito mais antiga do sujeito em
desamparo e em condição passiva perante o pai. Há aqui novamente em ação o modelo da
sedução.
De qualquer forma, neste momento, trata-se de aqui indicar algumas relações de
origem da histeria com a passividade. Primeiramente, pelo vínculo histórico desta com o
feminino e com o corpo. Depois, do vínculo entre a histeria e uma exclusiva pré-disposição
a entrar num estado determinado em que ou se era avassalado por um outro, que na
verdade estava no próprio sujeito como segunda consciência, ou se entrava no mesmo
estado mediante sujeição a um outro na figura do médico (sugestão - transferência). Assim,
para além do gênero, ficava assegurada a condição feminina da histeria: estar em estado de
vassalo, de sujeição, de objeto, à segunda consciência ou, artificialmente, à vontade do
médico (note-se que há implicitamente, no início da psicanálise, uma outra sujeição: a da
hereditariedade o estar sujeito a salvaguarda o sujeito de seu desejo e de sua ação, a
sujeição é temor, mas também álibi).
A seguir, mais uma relativização: o que está em jogo na hipnose não é a histeria,
mas a sugestão, a qual todas as pessoas estariam sujeitas, em graus diversos. A relação
entre histeria e hipnose perde sua exclusividade, através da universalização da sugestão, e
assim também com a experiência de sujeição, cuja hipnose é apenas um exemplo.
Extrapolando em sentido inverso, poderíamos dizer que a histeria seria outro exemplo de
sujeição e também o sofrimento de maneira geral. O sofrimento (phatos), isso não é
novidade, sugere esta condição de passividade, de sujeição. É através da histeria que Freud
chega à defesa, ao conflito psíquico, à fantasia, ao inconsciente, à questão de que o eu não
é senhor em sua morada, ou (posteriormente) ser aquele que serve a três senhores. Há uma
continuidade entre esta caracterização feminina/passiva da histeria e do eu frente aos
53
poderes a que está submetido. É necessário, porém, muito cuidado ao falar nesta relação de
aparente submissão ou passividade que mais adiante no pensamento freudiano permitirá se
falar em um masoquismo do eu.
O pensamento de Freud, porém, avança pelos caminhos “masculinos” da pulsão, do
erótico, do inconsciente. A clínica avança, para além da histeria, através da neurose
obsessiva, seu par masculino. Enquanto o referencial histérico estava, sobretudo, no corpo
(domínio feminino), o da neurose obsessiva está no pensamento (domínio masculino).
Num primeiro momento, Freud utiliza a chave da sedução para compreender a neurose
obsessiva e encontra a atividade sexual, porém constata que uma experiência de
passividade primeira estava em sua origem [reação à passividade ação neurose
obsessiva]. A sedução como acontecimento pontual e factual é abandonada, mas a fantasia
mostra a marca de primariedade de uma construção em que o sujeito esta numa condição
passiva. De qualquer forma, cabe examinar a que nos conduz um exame da neurose
obsessiva no pensamento freudiano.
Segundo Laplanche (1987, p.256), “A neurose obsessiva é uma enfermidade em
que se situam em primeiro plano as preocupações centradas na moral, na culpabilidade, na
dimensão do escrúpulo e da dúvida ou ainda na dimensão religiosa”. Tais características
estão intimamente relacionadas com a problemática do superego e, embora o termo só
tenha surgido na década de 1920, será possível constatar como as futuras articulações e
implicações do conceito já estavam “embrionariamente” presentes nas primeiras
formulações clínicas de Freud acerca do que se tornaria futuramente a estrutura clínica na
qual a ação do superego ocorre da maneira mais implacável.
No texto As Neuropsicoses de Defesa, Freud (1894) descreve o mecanismo
psíquico das assim chamadas “Histerias de Defesa”, para assim distinguí-las das outras
duas formas: de retenção e hipnóide. Segundo ele, na histeria de defesa, uma representação
54
incompatível com o “eu” é reprimida, ou tornada inconsciente, através da retirada de sua
cota de afeto, o que a privaria de sua capacidade associativa. O afeto, tornado livre,
manifestar-se-ia como angústia e teria, basicamente, dois destinos possíveis: a-) o afeto
atingiria a inervação somática e produziria o sintoma histérico da conversão ou b-) O afeto
ligar-se-ia (falsa ligação) a uma outra representação que, justamente por portar agora um
afeto redobrado, teria um caráter obsessivo. Freud destaca, no entanto, que em ambos os
casos a manifestação sintomatológica é um compromisso entre as forças recalcadas e as
recalcadoras.
Segundo Freud (1894, p.55), a repressão ocorreria devido à impossibilidade do
indivíduo de assimilar uma determinada representação ao seu “eu”: “[...] o sujeito decidiu
esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a
representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento”. Já o afeto livre
deve ser utilizado, ligado, de alguma forma, pois sua expressão psíquica se dá sob a forma
de angústia: “mas a soma de excitação desvinculada dela [da representação] tem de ser
utilizada de alguma forma” (FREUD, 1894, p.56).
Neste texto, Freud conjectura, ainda que de forma introdutória, que a natureza desta
representação incompatível seria sexual, porém não chega a um aprofundamento da
questão sobre a gênese desta representação. Entretanto, em Observações Adicionais sobre
as Neuropsicoses de Defesa (1896), postula claramente o caráter sexual e traumático de tal
representação, oriunda de uma experiência vivida na infância do indivíduo. No caso da
histeria, a criança teria sido objeto, de maneira passiva, da investida sexual por parte de um
adulto ou criança mais velha. Já na neurose obsessiva, a criança teria um papel ativo em
uma experiência de natureza sexual, tendo uma outra criança por objeto. De qualquer
maneira, diz Freud, mesmo na neurose obsessiva haveria uma experiência de sedução
sexual passiva anterior ao papel ativo, posteriormente desempenhado contra outrem. Ou
55
seja, uma experiência de passividade frente ao outro estaria na origem de ambos quadros
clínicos.
Desta forma, e em consonância com o texto A Etiologia da Histeria (1896), Freud
postula que na origem da neurose haveria uma experiência precoce (ocorrida na infância)
de ser alvo da sedução de um adulto. É importante ressaltar que nesta época Freud ainda
não considerava a hipótese da sexualidade infantil e, assim sendo, a experiência sexual
precoce não seria significada como traumática no momento da sua ocorrência na infância,
mas sim num segundo momento. Tal momento se daria na puberdade, quando então uma
outra experiência de natureza sexual, e reconhecida como tal, resignificaria retroativamente
a experiência de sedução da infância. Ou seja, não seria a experiência de sedução em si,
mas sua recordação, que produziria um efeito traumático sobre o psiquismo, mobilizando a
defesa ou recalcamento.
Freud sintetiza da seguinte maneira o mecanismo da neurose obsessiva: “A
natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As idéias
obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que reemergiram do
recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual praticado com prazer na
infância” (FREUD, 1896, p.169, grifo meu).
De maneira geral, Freud concebe que a neurose obsessiva se daria conforme uma
certa seqüência temporal. Primeiramente, como já foi dito, haveria experiências de sedução
sexual (passiva) durante a infância, seguidas, posteriormente, de experiências ativas, de
atos sexuais, agora sentidos como prazerosos, dirigidos à outra criança. Na puberdade,
quando então ocorreria a maturação sexual, uma auto-acusação ligar-se-ia à recordação
das ações prazerosas praticadas na infância. Tais recordações, ou representações, seriam
recalcadas e substituídas por um “sintoma primário de defesa”, manifesto como
56
conscienciosidade
11
, vergonha e autodesconfiança. Freud chama este período de “período
de aparente saúde”, durante o qual a defesa é realizada e mantida com sucesso. O próximo
período, no qual ocorre a manifestação da doença, é caracterizado pelo retorno das
representações recalcadas, ou fracasso da defesa. Seria neste período que as lembranças e
auto-acusações decorrentes reemergiriam na consciência como representações e afetos
obsessivos, de forma a “substituir” as lembranças patogênicas originais infantis, em uma
“formação de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras” (FREUD,
1896, p. 170). Segundo Freud, o conteúdo da representação infantil recalcada é distorcido
de dois modos ao expressar-se na representação obsessiva: algo contemporâneo substitui
algo do passado, e algo de natureza sexual é substituído por outro de natureza não sexual.
De forma subjacente a tais substituições, existem relações associativas de pensamento,
reconstituíveis pela análise.
Além desta expressão da representação recalcada (do ato sexual praticado na
infância) através da idéia obsessiva, haveria na neurose obsessiva outras manifestações
sintomáticas elementares. Em uma delas, o que rompe a defesa é o conteúdo auto-
acusador “por ter praticado o ato sexual na infância” (FREUD, 1896, p.171) e não a
representação infantil de tal ato. Esta auto-acusação manifestar-se-ia, também em
compromisso com as forças recalcadoras, sob a forma de vergonha, angústia
hipocondríaca, angústia social, angústia religiosa, em delírios de ser observado, em medo
de tentação, etc.
Um outro grupo de formação de sintomas, chamados por Freud (1896, p.171) de
Defesa Secundária”, ocorre quando o indivíduo procura reprimir as próprias idéias
obsessivas, substitutas do recalcado (lembrança ou auto-acusação), mediante a utilização
de “medidas protetoras”. Neste processo, estas medidas protetoras adquirem o caráter
11
Segundo Freud, será precisamente este sintoma primário que fará difícil, ao neurótico obsessivo, a tarefa
de reconhecer a auto-acusação subjacente às suas idéias obsessivas.
57
obsessivo das idéias que procuram reprimir, transformando-se em “ações obsessivas” ou
atos obsessivos”, que segundo Freud podem ser classificados segundo seus objetivos:
Medidas penitenciais (cerimoniais opressivos, observação de números);
medidas de precaução (toda sorte de fobias, superstição, minuciosidade,
aumento do sintoma primário de conscienciosidade); medidas relacionadas
como medo de delatar-se (colecionar pedaços de papel, isolar-se), ou
medidas para assegurar o entorpecimento [da mente] (dipsomania)
(FREUD, 1896, p. 173).
Freud conclui o texto de 1896 dizendo que os casos mais graves de neurose obsessiva
acabam por “terminar na fixação das ações cerimoniais, ou um estado generalizado de
mania de duvidar, ou numa vida de excentricidades condicionadas pelas fobias” (FREUD,
1896, p.173).
Posteriormente, no texto Atos obsessivos e práticas Religiosas, Freud (1907) diz
que estes cerimoniais e atos obsessivos dos quais o paciente não pode se furtar, sob a pena
de ser acometido por intensa angústia, constituem uma espécie de religião particular, por
analogia aos rituais religiosos, executados pelos fiéis com toda conscienciosidade e
sacralidade: “[...] podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva com o correlato
patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade
individual e a religião como uma neurose obsessiva universal” (FREUD, 1907, p. 116).
Conforme capítulo anterior, com o “final” da teoria da sedução e a descoberta da
sexualidade infantil e da presença marcante da fantasia no desenvolvimento psicossexual,
Freud passa a conceber que as “lembranças” de sedução relatadas pelo paciente, em grande
parte dos casos, eram na verdade fantasias de sedução, decorrentes da manifestação da
sexualidade já na infância, tendo as figuras parentais por objeto. No entanto, é interessante
notar que no texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud (1905b) fala da
escolha de objeto sexual realizada em dois tempos: um na infância, na relação com os pais;
58
outro, na adolescência, quando então graças a maturação sexual e possibilidade
reprodutora, haveria a eleição definitiva de objeto. O complexo de Édipo, naquele texto, é
situado neste segundo momento (puberdade), porém o momento precedente, a infância,
parece lançar as bases das futuras escolhas de objetos. É possível verificar, portanto, nestes
dois tempos da escolha de objeto sexual, um eco dos dois tempos da vivência traumática,
presente na “abandonada” teoria da sedução.
Apesar do “final” da Teoria da Sedução, alguns aspectos importantes da
caracterização da neurose obsessiva se mantém presentes nos textos posteriores, tais como
a questão da repressão das representações incompatíveis e sua futura expressão na forma
de sintomas obsessivos, o caráter sexual “ativo” e prazeroso destas representações, ligados
provavelmente a atividade masturbatória dos anos infantis, e a descrição dos mecanismos
psicológicos de formação de pensamentos e atos obsessivos. Na verdade, os textos
posteriores aos da década de 1890 não alteram as teorizações anteriores em torno do tema,
antes lhe acrescentam outros elementos importantes, enriquecendo a compressão dos
dinamismos psicológicos subjacentes. Neste sentido, por exemplo, pode-se constatar como
Freud relaciona a neurose obsessiva ao erotismo anal, teorizando o quanto do antigo prazer
infantil presente no ato de defecar, reter e manipular os excrementos permanece sob a
forma de traços de caráter, tais como a ordem, a limpeza, a avareza.
No texto Notas sobre um caso de Neurose Obsessiva (1909) - Homem dos Ratos -,
a ênfase situa-se na profunda ambivalência de sentimentos (amor-ódio) envolvendo
pessoas significativas da vida do paciente, no caso o pai e a dama.
Segundo Freud, foi a repressão do ódio sentido contra o pai, enquanto interditor de
suas atividades sexuais infantis, o que teve o papel preponderante no desenvolvimento de
sua neurose: “Podemos considerar a repressão de seu ódio infantil contra o pai como o
evento que colocou todo o seu modo de vida subseqüente sob o domínio da neurose”
59
(FREUD, 1909, p.206). Como a mesma figura que é odiada é também amada pela criança,
o que subsiste conscientemente é justamente o amor, que luta incansavelmente por manter
inconsciente o seu par oposto. O que se produziria, portanto, seria uma exacerbação do
amor, como forma de sobrepujar o ódio, que apesar de inconsciente encontra formas
diversas de expressão na vida do indivíduo.
O amor não conseguiu extinguir o ódio, mas apenas reprimi-lo no
inconsciente; e no inconsciente o ódio, protegido do perigo de ser
destruído pelas operações do consciente, é capaz de persistir e, até mesmo,
de crescer. Em tais circunstâncias, o amor consciente alcança, via de regra,
mediante uma reação, um sobremodo elevado grau de intensidade, de
maneira a ficar suficientemente forte para a eterna tarefa de manter sob
repressão o seu oponente (FREUD, 1909, p. 207).
Neste sentido, é possível observar, no caso do Homem dos Ratos, o ódio inconsciente
agindo como desejo de que algo de mal ocorresse à sua amada. Entretanto, como a
expressão deste ódio, de forma consciente, entraria em conflito direto com o amor que
também sentia pela dama, a solução é a expressão de tal ódio como medo de que algo de
mal lhe acontecesse, ou seja, uma formação reativa. Segundo Freud, este mecanismo
sintomático parece ser uma característica geral da neurose obsessiva.
Há uma clara inter-relação entre esta ambivalência amor-ódio e a função paterna
como interditora da sexualidade da criança e de suas vivências edípicas. Ou seja, sob este
prisma do pensamento freudiano, pode-se pensar numa transformação do pai: de
sedutor/perverso causador da histeria e da neurose obsessiva para um pai interditor dos
desejos da criança. Se pensarmos em termos da “perversão”, ela se desloca do pai para a
criança e, neste sentido, cabe ao pai aplicar a sua lei.
É o complexo que abrange os impulsos mais precoces da criança, tanto
ternos como hostis, dirigidos aos seus pais, irmãos e irmãs [...] Constitui
60
uma característica global do complexo nuclear da infância que o pai da
criança desempenhe o papel de um oponente sexual e de impedidor das
atividades sexuais auto-eróticas (FREUD, 1909, p.181).
Um outro aspecto discutido no texto Homem dos Ratos é a presença marcante da
incerteza ou dúvida na vida do neurótico obsessivo. Tais sintomas seriam meios utilizados
pela neurose a fim de “[...] atrair o paciente para fora da realidade e isolá-lo do mundo o
que é uma das tendências de qualquer distúrbio psiconeurótico” (FREUD, 1909, p.201).
Segundo Freud, na gênese desta incerteza generalizada estaria o próprio conflito amor-
ódio, cuja conseqüência seria uma “paralisia parcial da vontade e uma incapacidade de se
chegar a uma decisão a respeito de qualquer uma das ações para as quais o amor deve
suprir a força motivadora” (FREUD, 1909, p.208). Ou seja, o poder paralisador do conflito
entre o amor e o ódio, através do mecanismo psíquico de deslocamento, estender-se-ia aos
mais diversos âmbitos da vida do indivíduo. “Um homem que duvida de seu próprio amor
permite-se, ou, antes, tem de duvidar de alguma coisa de menor valor” (FRUED, 1909,
p.209). Neste sentido, tal característica do neurótico obsessivo o predisporia a uma certa
preferência por assuntos de natureza “filosófica”, versando sobre temas envoltos em
profundas incertezas, tal como a vida após a morte, por exemplo. “A predileção dos
neuróticos obsessivos pela incerteza e pela dúvida leva-os a orientar seus pensamentos de
preferência para aqueles temas perante os quais toda a humanidade está incerta e nossos
conhecimentos e julgamentos necessariamente expostos a dúvidas” (FREUD, 1909, p.202).
Na década de 1920, o desenvolvimento teórico psicanalítico envolvendo os
conceitos de identificação, complexo de Édipo, superego, bem como o novo dualismo
pulsional, traz consigo um enriquecimento ainda mais profundo à compreensão da neurose
obsessiva. No que tange ao superego, por exemplo, a figura paterna internalizada, através
de processos identificatórios, terá um poder superior aos pais da infância, dados os
61
componentes sádicos e masoquistas da pulsão de morte. A relação do neurótico obsessivo
será com este pai interno, onisciente dos desejos mais profundos do sujeito e que não
hesitará em atormentá-lo com intensos sentimentos de culpa, sempre passíveis de expiação
através da busca, muitas vezes compulsiva, por situações que lhe tragam mais sofrimentos,
o que nos remete para a questão do masoquismo.
De fato, Freud já havia atentado para estes fatos antes da formulação do conceito de
superego, embora ainda não os caracterizassem como masoquismo. No texto, Alguns Tipos
de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico (1916), terceira parte: “Criminosos em
Conseqüência de um Sentimento de Culpa”, formula a hipótese de que alguns crimes são
cometidos na tentativa, inconsciente, de expiar uma culpa que atormenta o sujeito:
O trabalho analítico trouxe então a surpreendente descoberta de que tais
ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua
execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um
opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar
uma ação má, essa opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava
pelo menos ligado a algo (FREUD, 1916, p.347).
Já neste texto, Freud propõe uma origem para este sentimento de culpa, trata-se,
pode-se dizer, de uma conseqüência da problemática edípica, a respeito dos desejos
incestuosos e homicidas com relação aos pais da infância.
O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse
obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e constituía
uma reação às duas grandes intenções criminosas de matar o pai e de ter
relações sexuais com a mãe. Em comparação com esses dois, os crimes
perpetrados com o propósito de fixar o sentimento de culpa em alguma
coisa vinham como um alívio para os sofredores (FREUD, 1916, p.347).
62
De fato, é possível constatar como no caso do Homem dos Ratos a ligação do ódio
ao pai (fruto da problemática edípica) com o sentimento de culpa relaciona-se diretamente
com as conseqüentes obsessões, visando aplacar, precisamente, esta culpa que pesa sobre o
sujeito.
Ainda com relação ao texto Os Atos Obsessivos e as Praticas Religiosas, Freud
(1907) compara a neurose obsessiva à religião, principalmente no que se refere aos
cerimoniais, ações praticadas pelo neurótico, e às proibições auto-impostas. Entretanto, é
importante frisar, encontra as motivações para estas manifestações na vida pulsional do
sujeito que, apesar da repressão, exercem uma pressão sentida pelo indivíduo como
tentação e a necessidade concomitante de aplacá-la de forma semelhante a que faz o
crente, com cerimônias e expiações. “Assim, os atos cerimoniais e obsessivos surgem, em
parte, como uma proteção contra a tentação e, em parte, como proteção contra o mal
esperado” (FREUD, 1907, p. 114).
Trata-se, portanto, de correlacionar a pulsão e sua satisfação ao pecado, tanto na
neurose quanto na religião. É neste sentido que Freud especula sobre a culpabilidade
inconsciente do neurótico obsessivo e sua expectativa de uma desgraça iminente, como
castigo. A seqüência lógica parece ser: um pecado original que em um tempo primitivo o
indivíduo se entregou, a repressão desta tendência primitiva (atualidade da proibição),
pressão desta tendência por atualizar-se, o que relembra o pecado de origem e renova o
ímpeto pela transgressão. Este jogo de forças entre a pulsão e a defesa manifesta-se ao
sujeito como se culpado fosse, já que espera um castigo e, assim, faz-se necessário
proteger-se através de certas restrições e atos cerimoniais. Entretanto, Freud salienta que
progressivamente os atos obsessivos se aproximam do ato proibido, manifestado
licitamente na infância (FREUD, 1907, p.115).
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Desta forma, o ato representa a consumação deformada do ato proibido infantil e,
ao mesmo tempo, uma medida protetora contra a punição que advém da consumação do
ato, da satisfação pulsional. O sujeito é culpado pelos seus pecados/crimes de infância e
pela atualidade dos mesmos que continuam a exercer pressão. Esta pressão lembra, embora
o sujeito não se dê conta disso, da atemporalidade de seu ser pecador e o faz tremer frente
à iminência de uma desgraça punitiva. A lógica do pecado punição é muito semelhante
na neurose obsessiva e na religião. A imagem do pai já prefigurada neste texto de Freud o
levará a desenvolvimentos posteriores em Totem e Tabu (1913b), em Futuro de uma Ilusão
(1927) e Mal Estar na Cultura (1930). O pai é a potência da qual se espera a punição e,
regressivamente, subentende-se que é a quem se comete um crime. O que ronda esta linha
de raciocínio, bem como os textos supracitados, é o Édipo que a partir da segunda tópica
terá um estatuto mais solidamente articulado e ganhará uma figura que também vinha se
desenvolvendo embrionariamente em seu pensamento, como o atesta inclusive o texto de
1907, e que ganha uma forma conceitual mais nítida: o superego. Freud (1907, p.115)
escreve, “Na realidade, as recaídas totais no pecado são mais comuns entre os indivíduos
piedosos do que entre os neuróticos, dando origem a um nova forma de atividade religiosa:
os atos de penitência, que têm seu correlato na neurose obsessiva”. O cair no pecado! E de
que pecado se trata? Pode-se dizer que em Freud o pecado se refere em ultima instância ao
Édipo, incesto e parricídio. Quanto à penitência, o próprio ato obsessivo comporta tal
dimensão. É proteção contra a desgraça, contra a angústia, contra o desamparo (origem da
moral, no Projeto), mas veicula sua paga de destruição como sofrimento insensato. Por que
se entregar a algo que não se compreende, que consome tempo, que traz a marca da
insensatez, mas que é insuportável furtar-se? A proteção contra o pior cobra um preço caro.
No entanto, a aproximação postulada por Freud entre o ato insensato e o ato proibido
denuncia a satisfação. Neste momento, a satisfação é da pulsão, não se fala na satisfação
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do sofrer, o sofrimento é um resultado inevitável do conflito entre a pulsão e a cultura. No
entanto, é no caráter também penitencial do ato que se denuncia a virulência do que há de
destrutivo no interditor. A forma do ato é ditada antes pelo interditor que pela pressão que
quer a todo custo expressar-se, fazer-se ato. É o interditor, as forças repressivas, que dão ao
ato seu caráter repetitivo e insensato e, mais importante, cobram uma punição sempre atual
pelo pecado de origem. É preciso que o ato comporte algum sofrimento, seu caráter de
pagamento pelo crime cometido. É uma lógica que retornará em Uma Criança é
Espancada (1919). No final do texto, Freud também fala dos crimes dos deuses versus
crime dos homens, o que prefigura Totem e Tabu (1913b) pecados do pai e pecados do
filho.
Nos próximos capítulos, veremos como o conceito de masoquismo, a princípio
restrito ao âmbito da perversão, começará a estender-se de forma mais explicita à
estruturação do sujeito de maneira geral, até o ponto de ser claramente relacionado, na
segunda tópica, com as instâncias psíquicas e com o conceito de pulsão de morte.
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7 – DA FANTASIA DE SEDUÇÃO À FANTASIA DE ESPANCAMENTO
No texto Uma criança é espancada, Freud(1919) descreve uma fantasia de certos
pacientes neuróticos, particularmente os obsessivos, na qual uma criança é espancada por
um adulto; fantasia esta acompanhada por satisfações masturbatórias. Tais pacientes
apresentariam fortes resistências para relatar estas fantasias ou detalhá-las durante a
análise, e só o fariam manifestando vergonha e sentimento de culpa. Esta fantasia de
espancamento, tal como é relatada pelo paciente, seria a manifestação final de um processo
muito mais antigo, iniciado na infância do indivíduo: “Assim, pode muito bem ser que
tenham um histórico anterior, que atravessem um processo de desenvolvimento, que
representam um resíduo e não uma manifestação inicial” (FREUD, 1919, p.199). Desta
forma, Freud descreve, a partir da infância, as sucessivas transformações pelas quais passa
a fantasia de espancamento até atingir sua forma final, utilizando-se, sobretudo, de
exemplos femininos para fundamentar suas hipóteses.
Seriam basicamente três as fases, ou cenas, da fantasia de espancamento no caso de
pacientes do sexo feminino. A primeira e mais primitiva fase remontaria aos primeiros
anos da infância e teria por cena uma criança sendo espancada por um adulto, no princípio
indeterminado, porém posteriormente reconhecido como pai da própria criança que
fantasia. À semelhança da fantasia em sua forma final, nesta primeira cena a criança que
fantasia é mera espectadora do espancamento. Na segunda cena, a intermediária, a criança
que fantasia é quem é objeto do espancamento por parte do pai. A cena é experienciada
com prazer, o que denuncia seu caráter masoquista. Na terceira cena, a fantasia em sua
forma final, a criança que fantasia é espectadora da cena e a pessoa que bate ou é
indeterminada ou representa uma substituta da figura paterna, um professor, por exemplo.
66
A criança ou as crianças que apanham geralmente são do sexo masculino. Apesar das
semelhanças com a primeira cena, a terceira cena comporta agora uma elevada excitação
sexual, passível de ser satisfeita de forma masturbatória, revelando, portanto sua natureza
aparentemente sádica, levando-se em conta o conteúdo da cena, a posição do indivíduo na
mesma (espectador) e a excitação sexual concomitante.
Analisando mais profundamente esta seqüência de três fases, Freud observa que, na
primeira cena, o pai da criança (que fantasia) bate em uma outra criança que é concorrente
no amor deste pai. O sentido deste estágio da fantasia seria que o pai não ama a criança em
que bate, mas a que observa com deleite a desafortunada. No entanto, Freud evita chamar
de sádica esta primeira manifestação da fantasia, pois em sua motivação estaria em ação,
principalmente, o complexo de Édipo, com a erotização da relação com o pai e o ciúme
com relação aos irmãos.
Desta forma, a fantasia em sua primeira manifestação cumpre a função de
representar o desejo da criança de se sentir exclusiva em sua relação amorosa com a figura
paterna. Segundo Laplanche (1985, p.103),
[...] o ego quer destruir quem o incomoda, o que causa obstáculo à sua
‘autoconservação’, e pouco importa, nesse nível estrito, que ele o faça
diretamente, ou através de uma pessoa interposta. Existe entre o pai e o
ego uma espécie de transitividade implícita, que se deve distinguir, aliás,
cuidadosamente, de uma introjeção fantasmática. O importante é que o
essencial da ação se situe no plano dos interesses vitais ou ‘egoístas’.
Ou seja, haveria antes uma significação agressiva que propriamente sádica (sexual)
nesta primeira cena: “Em todo caso, contudo, não há motivos para suspeitar de que nessa
primeira fase a fantasia já esteja a serviço de uma excitação que envolve os genitais e
encontra saída por meio de um ato masturbatório” (FREUD, 1919, p.203).
67
Entretanto, na medida em que o complexo de Édipo sucumbe à repressão, surgem
os sentimentos de culpa, ligados aos agora inconscientes desejos incestuosos, que buscam
expressão através da segunda cena, tendo a própria criança como objeto da ação de
espancamento. Este segundo estágio da fantasia, segundo Freud, permaneceria
inconsciente, sendo passível de reconstrução apenas através da análise, e seria
fundamentalmente uma “solução de compromisso” entre a relação incestuosa com o pai e o
sentimento de culpa/castigo decorrentes.
Esse ser espancado é agora uma convergência do sentimento de culpa e do
amor sexual. Não é apenas o castigo pela relação genital proibida, mas
também o substituto regressivo
12
daquela relação, e dessa última fonte
deriva a excitação libidinal que se liga à fantasia a partir de então, e que
encontra escoamento em atos masturbatórios. Aqui temos, pela primeira
vez, a essência do masoquismo (FREUD, 1919, p.205).
Já a terceira e última cena seria a substituta, agora consciente, da segunda cena,
apesar de seu conteúdo ser muito semelhante ao da primeira. A modificação residiria na
mudança de significado: de ‘meu pai bate em uma criança, ele só ama a mim’ para alguém
(um professor) bate em uma criança, ou seja, o conteúdo incestuoso sofre repressão e
desaparece. O pai é transmutado em professor ou outra figura de autoridade e a criança (o
paciente) que fantasia volta, mais uma vez, a ser espectador da cena. Desta forma, apesar
deste retorno ao conteúdo formal da primeira cena, o seu significado, na verdade, remete à
segunda cena, inconsciente, sendo, portanto, sua substituta. O pai é substituído por um
professor, a criança que fantasia é substituída pelas crianças que sofrem o espancamento.
Assim, apesar das distorções, a cena continua a ter um caráter masoquista, não obstante o
12
A regressão é da “fase genital” (Fálica) para a anal-sádica. Daí o prazer obtido pelo apanhar do pai, devido
à conversão do sadismo em masoquismo por influência do sentimento de culpa. Apanhar do pai atua como
substituto de uma relação sexual genital com o mesmo: “meu pai está me amando ao bater-me”, porém, ao
mesmo tempo, representa o castigo (apanhar) pelos desejos incestuosos.
68
aparente sadismo de seu conteúdo manifesto, e é utilizada de forma a obter satisfações
masturbatórias, desta vez conscientes.
Com relação ao masoquismo, Freud reafirma o que dissera anteriormente no texto
Pulsões e Destino da Pulsão (1915), a saber, que o masoquismo não é primário, mas uma
manifestação do sadismo que, mediante um processo de regressão, é dirigido para o
próprio ego, tendo-o por objeto:
Para começar, parece haver confirmação do ponto de vista de que o
masoquismo não é a manifestação de um instinto primário, mas se origina
do sadismo que foi voltado contra o eu ou seja, por meio de regressão de
um objeto para o ego (FREUD, 1919, p.209).
No texto Pulsões e Destino da Pulsão, Freud (1915, p.148) representa a pulsão
como plena atividade, pressão exercida de forma ininterrupta no sentido de satisfazer-se.
“Toda pulsão é uma parcela de atividade; assim, quando, de maneira menos rigorosa,
falamos de pulsões passivas, estamos nos referindo a pulsões cuja meta é passiva”. Esta
forma de caracterizá-la enfatiza muito mais uma positividade que produz ações, porém o
que está na base do pensamento de Freud é um princípio geral que rege o funcionamento
econômico: o princípio de constância, manter o nível energético constante ou o mais baixo
possível. Ou seja, tal princípio denota muito mais um aspecto da negatividade, ou uma
tendência à negatividade, ao repouso. As pulsões cuja meta é passiva revelam de forma
mais flagrante este aspecto geral que subjaz a atividade pulsional e pode-se dizer que será
por meio delas, das tendências masoquistas, que Freud formulará em 1920, algo mais
primitivo que o princípio do prazer, que fará um contra-ponto a esta caracterização da
pulsão como plena atividade, ligação.
O que se assistirá no plano da teoria das pulsões será a emergência de uma força
mais antiga que tende ao desligamento, à passividade, à morte. O texto de 1915 já
69
caracteriza, tal qual o de 1919, o par sadismo-masoquismo atuando em três etapas. A
primeira, chamada por Freud de sádica, consistiria num exercício de violência e poder
dirigido contra outra pessoa, contra o objeto. Na segunda, haveria uma troca de objeto [e aí
está implícita a idéia de uma renúncia, ou mais propriamente uma perda de objeto, tempo
do auto-erotismo]: a própria pessoa passa a ser objeto e então a meta pulsional muda de
ativa para passiva. Já na terceira, uma outra pessoa [aparentemente como na primeira
etapa] é procurada como objeto, que agora com o fim pulsional tornado passivo, deverá
assumir o papel de sujeito, o papel de agente nesta relação. Um objeto procurado para ser o
sujeito. Laplanche, porém, argumentará que a primeira etapa não poderia ser chamada de
sádica, pois ainda não se situa no âmbito da sexualidade, mas da auto-conservação, do
prazer de função. Já a segunda, seria o tempo do retorno sobre si, do auto-erotismo, tempo
primeiro no âmbito da sexualidade e, portanto, uma referência à primariedade do
masoquismo. Com relação à neurose obsessiva, Freud (1915, p.153) escreve:
Na neurose obsessiva, encontramos o redirecionamento contra a própria
pessoa, sem fazer-se acompanhar da passividade perante outra pessoa. A
transformação vai somente até a etapa b. A compulsão de atormentar se
transforma em autotormento, autopunição, mas não em masoquismo. O
verbo na voz ativa não se transforma na voz passiva, mas na voz reflexiva
média.
Posteriormente, esta concepção será revista e passível de ser descrita como
masoquismo moral e seu mecanismo de ação como necessidade de punição e a outra
pessoa que o Freud de 1915 ainda não consegue visualizar assumirá a forma da instância
superegóica da segunda tópica.
É interessante que quanto ao outro par de opostos analisado, o voyeurismo e
exibicionismo, Freud propõe uma etapa preliminar às três acima, que seria uma fase auto-
70
erótica, “uma formação narcísica” (FREUD, 1915, p.156). As etapas subseqüentes seriam
derivações deste primeiro momento narcísico:
A pulsão de olhar ativa se desenvolve justamente pelo abandono dessa
etapa narcísica, ao passo que a pulsão de olhar passiva manterá o objeto
narcísico aprisionado. De modo análogo, pode-se dizer que a
transformação do sadismo em masoquismo significaria um retorno ao
objeto narcísico. Em ambos os casos, por meio da identificação, o sujeito
narcísico sofre uma troca por outro Eu estranho. Portanto, considerando
também a etapa preliminar do sadismo que aqui construímos, chegamos a
uma visão mais abrangente, segundo a qual os destinos pulsionais de
redirecionamento contra o próprio Eu e de transformação de atividade em
passividade são dependentes da organização narcísica do Eu e carregam a
marca dessa fase (FREUD, 1915, p.156).
Ou seja, Freud de certa forma admite um primeiro momento subjacente aos três
tempos e este momento revela-se semelhante ao segundo tempo da seqüência, tempo em
que o próprio eu é tomado como objeto. Este tempo preliminar do narcisismo primário,
porém, sugere uma passividade primária. De fato, Freud ao se referir à transformação de
conteúdo da pulsão, de amor em ódio, também descreve a questão em termos de atividade
(amar) e passividade (ser amado) e também estabelece um tempo preliminar ligado ao
narcisismo (amar-se a si mesmo) e aproxima a segunda fase passiva com o este narcisismo
preliminar: “Assim, dependendo de o objeto ou o sujeito ter sido trocado por um elemento
estranho, teremos como resultante uma vertente amorosa ativa dirigida à meta ou uma
vertente amorosa passiva de ser amado, e esta última se situa próximo ao narcisismo
(FREUD, 1915, p.157, grifo meu).
Voltando ao texto de 1919, Freud diz que além da passividade, é característica
marcante do masoquismo a busca pelo “desprazer”: “A característica do desprazer também
pertence a ele um desconcertante acompanhamento para a satisfação de um instinto”
(FREUD, 1919, p.209). Acompanhando seu raciocínio, o processo de repressão que origina
o masoquismo e que é retratado pela passagem da primeira para a segunda cena de
71
espancamento se daria através da ação de três fatores: “torna inconsciente as conseqüências
da organização genital, obriga essa organização a regredir ao anterior estádio sádico-anal e
transforma o sadismo deste estádio em masoquismo, que é passivo e novamente, num certo
sentido, narcísico” (FREUD, 1919, p.209).
Segundo Freud, a transformação do sadismo em masoquismo se faz por exigência
do sentimento de culpa, que interdita tanto o sadismo quanto a escolha objetal incestuosa.
Já com relação à origem deste sentimento de culpa, Freud, ainda que de maneira incerta, a
atribui a suposta instância mental de consciência crítica, anteriormente descrita no texto
Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914).
A segunda cena da fantasia de espancamento seria a mais importante das três, pois
além de continuar ativa, de maneira latente, através da terceira cena, expressa-se sobre o
caráter do indivíduo, principalmente através de uma sensibilidade e irritabilidade com
relação aos substitutos da figura paterna. O indivíduo buscaria, então, através destas
atitudes o que seria o substituto do ato de espancamento recaindo sobre si mesmos: “são
facilmente ofendidas por uma pessoa assim e, desse modo (para sua própria tristeza),
efetuam a realização imaginada de serem espancadas pelo pai” (FREUD, 1919, p.210). É
possível relacionar este fato com o que é posteriormente descrito como masoquismo moral,
no qual o indivíduo busca uma espécie de “espancamento” efetuado pelo destino como
representante parental. Ou seja, o indivíduo, impelido pelo sentimento de culpa, procura
provocar situações que tenham por conseqüência uma punição na qual a culpa é expiada.
No entanto, o sofrimento, além de aplacar a culpa, gratifica o componente masoquista (da
segunda cena), levando-se também em conta todo o seu sentido edípico subjacente.
Em indivíduos do sexo masculino a fantasia de espancamento difere
fundamentalmente de sua vertente feminina. A fantasia masculina tem por conteúdo, em
sua forma final, o indivíduo que fantasia estar sendo espancado por uma mulher. A cena
72
correlata à intermediária e inconsciente das mulheres tem no caso dos homens conteúdo
idêntico, ou seja, também estão sendo espancados pelo pai. Só posteriormente é que esta
fantasia é substituída por outra, também intermediária, porém consciente, de estarem sendo
espancados pela mãe. “A fantasia de espancamento do menino é, portanto, passiva desde o
começo e deriva de uma atitude feminina em relação ao pai” (FREUD, 1919, p.213). Ou
seja, “em ambos os casos, a fantasia de espancamento tem sua origem numa ligação
incestuosa com o pai” (FREUD, 1919, p.213). Desta forma, no caso dos meninos, trata-se
do Édipo em sua forma negativa, e a situação originalmente homossexual (era o pai quem
batia/amava) foi “disfarçada” em um conteúdo em que há oposição entre os sexos, não
obstante a atitude do indivíduo continuar passiva, objeto do espancamento: “o menino
burla seu homossexualismo ao reprimir e remodelar a fantasia inconsciente” (FREUD,
1919, p.214). No entanto, a cena em sua forma final nos homens mantém também seu
caráter masoquista apesar de transformar a figura de quem bate em uma mulher (substituta
da mãe) e manter a figura masculina (a dele própria) na de quem apanha. Assim, na
fantasia final consciente, apesar do indivíduo não efetuar uma escolha de objeto
homossexual, mantém uma atitude tipicamente feminina em relação a um objeto
heterossexual: “O menino, que tentou escapar de uma escolha homossexual de objeto, e
que não mudou o seu sexo, sente-se, não obstante, como uma mulher nas suas fantasias
conscientes e dota as mulheres, que o espancam, de atributos e características masculinas”
(FREUD, 1919, p.213).
O texto Uma Criança é Espancada (1919) tem por subtítulo “Uma contribuição ao
estudo da origem das perversões sexuais” e, de fato, a análise que Freud conduz no
tocante a fantasia de espancamento busca uma maior elucidação acerca da origem das
perversões, em particular do masoquismo. A compreensão do fenômeno é buscada,
73
sobretudo, no complexo de Édipo que parece deixar como herdeira a neurose, em alguns
casos, e a perversão, em outros. Com relação às perversões, declara Freud (1919, p.207):
É levada a uma relação com o objeto de amor incestuoso da criança, com
seu complexo de Édipo. Destaca-se, de início, na esfera desse complexo; e
depois que o complexo sucumbiu, permanece, quase sempre por si, como
herdeiro da carga de libido daquele complexo, oprimido pelo sentimento
de culpa ligado a ele. A constituição sexual anormal, finalmente, mostrou a
sua força impondo ao complexo de Édipo uma determinada direção e
compelindo-o a deixar para trás um resíduo incomum.
Ou ainda, sintetizando novamente a questão: “Desta forma, a fantasia de espancamento e
outras fixações perversas análogas também seriam apenas resíduos do complexo de Édipo,
cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo que terminou [...]” (FREUD, 1919,
p.208). Fica, porém uma questão que diz respeito ao vínculo existente entre algumas
formas de neurose, nas quais a dimensões da moralidade e da sexualidade se encontram
mescladas, e a perversão. Posteriormente no pensamento de Freud, haverá uma
conceitualização do masoquismo em três vertentes, que talvez também objetive não cair
num jogo de indiferenciação neurose-perversão, conforme veremos em capítulo posterior.
Conforme já foi dito, no texto Pulsões e Destinos da Pulsão, Freud (1915)
considera o masoquismo como um destino da pulsão secundário em relação ao sadismo.
No entanto, Laplanche (1985), em Vida e Morte em Psicanálise, propõe que a idéia de um
masoquismo primário já estaria presente, ainda que de forma implícita, no texto de 1915.
Uma das idéias mestras deste trabalho de Laplanche é a utilização da noção freudiana de
“apoio” (“étayage”), segundo a qual haveria:
[...] uma gênese marginal da sexualidade gênese da sexualidade no
tempo do retorno sobre si mesmo. De um lado, com efeito, o apoio
(“étayage”) implica que a sexualidade, a pulsão, apareça a partir de
atividades não sexuais, instintivas o prazer de órgão a partir do prazer de
função [...] (LAPLANCHE, 1985, p.91).
74
Desta maneira, segundo Laplanche, o primeiro momento ativo da pulsão, dirigida
para um objeto externo (hetero-agressividade), é chamada por Freud de sádica de uma
maneira imprópria
13
, pois trata-se, na verdade, “de um tempo não sexual, portanto
propriamente dito agressivo, destruidor” (LAPLANCHE, 1985, p.93). Seria precisamente
no retorno desta agressividade sobre si mesmo, num segundo tempo “cronológico”, que
seria instaurada a sexualidade e com ela um masoquismo propriamente dito. Desta
maneira, este masoquismo, chamado por Laplanche de reflexivo, fruto do retorno da
agressividade, pode ser considerado primário no âmbito da sexualidade. “Para a
sexualidade, o momento reflexivo (selbst ou auto-) é que é constitutivo, momento do
retorno sobre si mesmo, ‘auto-erotismo’, quando o objeto foi substituído por uma fantasia,
por um objeto refletido no sujeito” (LAPLANCHE, 1985, p.91).
O primeiro momento “cronológico” de agressividade dirigida para o exterior
consistiria na atuação das chamadas “pulsões de dominação”:
Essa pulsão é a que em outros momentos Freud chama de ‘pulsões de
dominação’, ou seja, a tendência a se tornar senhor do outro para chegar a
seus fins, mas sem que essa ação, que poderíamos chamar de puramente
instrumental, implique, por si mesma, algum gozo sexual (LAPLANCHE,
1985, p.94).
O segundo momento cronológico, o retorno sobre si, é que inaugura o masoquismo e é a
partir dele que pode se originar também o sadismo, agora corretamente denominado por já
estarmos no âmbito da sexualidade. É interessante notar que mesmo este sadismo assenta-
se, por assim dizer, no masoquismo que lhe é primário, e, desta forma, o gozo com o
sofrimento, com a dor do outro, seriam obtidos através de uma identificação masoquista
13
Com a finalidade de obter um maior rigor metodológico nesta análise, Laplanche reserva os termos
sadismo e masoquismo para designar o que envolveria necessariamente a excitação ou gozo sexuais e o
termo agressividade (auto-agressividade ou hetero-agressividade) para considerar algo não sexual.
75
com o objeto: “Assim, quando falamos de fantasia tanto quanto de sexualidade, é o tempo
masoquista que é o primeiro. A fantasia masoquista é fundamental, enquanto que a fantasia
sádica implica na identificação com o objeto que sofre; é na posição de ser que sofre que
reside o gozo sexual” (LAPLANCHE, 1985, p.94).
Segundo Laplanche, é na passagem da hetero-agressão para a auto-agressão
(masoquismo reflexivo) que se situa a gênese da sexualidade, sendo que as posteriores
transformações que partem deste masoquismo reflexivo constituem os destinos da
sexualidade, podendo, portanto, dar origem ao sadismo e ao masoquismo enquanto
perversões sexuais. O momento reflexivo (auto) poderia ser considerado, portanto, uma
interseção entre os planos de auto-conservação (agressividade) e de sexualidade. “É o
retorno da agressividade em auto-agressão que está ligado o aparecimento do componente
sexual, por apoio (“étayage”), de modo que é sempre ao tempo “auto” que corresponde a
emergência da sexualidade” (LAPLANCHE, 1985, p.96).
Verifica-se, portanto, que a fantasia de espancamento, em suas consecutivas fases,
retrata esta linha de raciocínio proposta por Laplanche a respeito do movimento dinâmico
em torno dos conceitos de apoio, sexualidade e masoquismo, movimento presente nos
textos freudianos anteriores à década de 1920. Laplanche observa que, enquanto a primeira
cena pode ser a recordação de algo realmente vivido: o pai batendo em um irmão, a
segunda cena é uma produção fantasmática: “Ao contrário, o estádio dois é puramente
fantasmático, ele é o primeiro tempo da fantasia propriamente dita, o que Freud acentua
designando como ‘fantasia original’ (ursprüngliche phantasie), o cenário: meu pai me
espanca” (LAPLANCHE, 1985, p.102). Ou seja, é na segunda cena, a cena masoquista,
que a sexualidade é instaurada, e com ela a fantasia propriamente dita:
Percebemos que é na passagem para o estágio 2 que aparecem, num só
movimento, a fantasia, o inconsciente e a sexualidade, na forma de
76
excitação masoquista. Além disso, no conteúdo fantasmático, a passagem
da fase 1 para a fase 2, comportando um ‘retorno contra a própria pessoa’,
nos encoraja a lembrar o esquema da gênese da pulsão sadomasoquista [...]
(LAPLANCHE, 1985, p.103).
Com relação à temática edípica presente na primeira cena de espancamento,
Laplanche observa que a mesma pode ser tomada em seu aspecto de autoconservação, a
serviço da sobrevivência da criança. No entanto, o retorno da pulsão sobre si mesmo,
inaugurando a sexualidade no campo do auto-erotismo e a concomitante erotização dos
genitais levaria a criança a “intuir”, de maneira rudimentar, a participação dos mesmos no
que seria uma relação sexual com os genitores. Tal configuração do complexo de Édipo
estaria, porém, destinada à repressão e produziria no inconsciente um substituto da relação
genital com os pais: a segunda cena de espancamento, mediante uma regressão à antiga
fase sádica anal. Assim sendo, observa que a própria recordação, um dia consciente, na
qual se baseara a fantasia em sua primeira cena, poderia tornar-se inconsciente, a partir do
desfecho final do complexo de Édipo, pois poderia ser retroativamente significada agora
sob o prisma da sexualidade genital: “É evidente, entretanto, que o recalque da fantasia
pode arrastar consigo no inconsciente a própria recordação, recordação que posteriormente
toma sua significação sexual: ‘meu pai espanca uma outra criança ele me ama
(sexualmente)’” (LAPLANCHE, 1985, p.104).
Laplanche conclui sua análise conjeturando que o tempo reflexivo, inferido através
da segunda cena de espancamento e presente já no texto freudiano de 1915, seria
constitutivo da sexualidade humana, o que além de afirmar (ao contrário de Freud em
1915) o primado do masoquismo, o eleva também a uma magnitude de importância no
campo da sexualidade, independente da hipótese de uma pulsão de morte:
[...] refletir a ação, interiorizá-la, fazê-la entrar em si mesma como
fantasia. Fantasiar a agressão é voltá-la para si, agredir-se: tempo do auto-
77
erotismo, no qual se confirma a ligação indissolúvel da fantasia como tal,
da sexualidade e do inconsciente [...] Se levarmos essa idéia até o fim,
somos conduzidos a acentuar o caráter privilegiado do masoquismo na
constituição da sexualidade humana. Em seu próprio conteúdo, a análise
dessa fantasia essencial que é a “cena originária” ou “cena primitiva”
ilustraria igualmente isto: a criança, impotente em seu berço, é Ulisses
atado ao mastro, ou Tântalo a quem se impõe e se inflige o espetáculo do
coito parental. A essa perturbação da dor responde a “co-excitação” que
não se pode traduzir, regressivamente, senão pela defecação: a posição
passiva da criança em relação ao adulto não é somente passividade na
relação real com a atividade adulta, mas passividade com relação à
fantasia do adulto que faz intrusão nela (LAPLANCHE, 1985, p.105
grifo meu).
No entanto, será somente a partir da década de 1920 que o próprio Freud admitirá
um masoquismo primário, expressão original da pulsão de morte em seu processo de fusão
com a pulsão de vida. No texto O Problema Econômico do Masoquismo (1924), por
exemplo, apesar da questão do masoquismo ser explicitada num plano econômico
envolvendo processos e fusão e desfusão entre as duas novas classes de pulsões, é possível
reconstruir a idéia proposta por Laplanche: a confluência da auto-agressão e da sexualidade
(por apoio) na constituição do masoquismo reflexivo (originário ou erógeno no texto de
1924).
78
8 O MODELO DA MELANCOLIA: A IDENTIFICAÇÃO E A FORMAÇÃO DO
SUPEREGO
No texto Luto e Melancolia, Freud (1917) se propõe efetuar uma comparação entre
o luto pela perda de um ente amado e a melancolia, definida a princípio através de suas
manifestações fenomenológicas,
Um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo
externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer
atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de
encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento,
culminando numa expectativa delirante de punição (FREUD, 1917, p.250).
Segundo Freud, a única das características acima descritas que está ausente nas
manifestações do luto é a perturbação na auto-estima, e é precisamente nesta característica
que centraliza sua análise, para chegar à questão fundamental da identificação.
O luto, de maneira geral, seria uma reação dolorosa pela perda de um objeto de
amor, de investimento libidinal. Embora o teste de realidade ateste ao sujeito o
desaparecimento do objeto, aquele se recusa a dissolver seus investimentos e só o faz de
maneira lenta e progressiva. Desta forma, o indivíduo tende, a princípio, a desconsiderar as
exigências do mundo externo, sentindo-se absorvido nas representações do objeto de amor,
ainda fortemente investidas, daí sua inibição e perda de interesse com relação à realidade.
Segundo Freud, na melancolia ocorreria também uma perda de objeto de amor,
embora tal perda não implique necessariamente na morte deste objeto. No entanto, uma
característica marcante da melancolia, no que se refere à perda do objeto, diz respeito ao
fato do sujeito não ter consciência do que foi perdido: “Isso, realmente, talvez ocorra dessa
forma, mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia,
79
mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém”
(FREUD, 1917, p.251).
Com relação ao prejuízo observado na auto-estima do melancólico, característica
que talvez seja a própria essência da melancolia, Freud (1917, p.252) escreve:
No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de
valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível, ele se
repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se
perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem
ligados a uma pessoa tão desprezível [...] Esse quadro de um delírio de
inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela
recusa a se alimentar, e o que é psicologicamente notável por uma
superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida.
Ou seja, pode-se observar que o quadro melancólico suplantaria a própria pulsão de
autoconservação. Não obstante, seria totalmente contraproducente tentar refutar tais
crenças do paciente, pois talvez, num certo sentido, ele tenha razões, inconscientes, para
apresentar tais argumentos contra si mesmo
14
. Segundo Freud, enquanto uma pessoa
“normal” oculta de si mesmo seus defeitos, o melancólico faz o pior uso possível até
mesmo das mais pequenas falhas para se auto-flagelar. Em 1924, este mecanismo, para
além do quadro melancólico, será descrito por Freud como masoquismo moral ou
necessidade de punição.
A comparação com o luto indicou a Freud que o indivíduo melancólico teria
perdido um objeto de investimento, porém, baseando-se na tão premente perturbação
sofrida em sua auto-estima, levanta a seguinte hipótese: a perda teria se dado no próprio
ego. Explicitando esta dinâmica psicológica, Freud propõe uma “divisão” no ego de forma
que uma parte do mesmo, um agente crítico, se volta contra a outra, atacando-a com as
14
Futuramente, com a segunda tópica, Freud dirá que o superego sabe mais dos desejos inconscientes do
sujeito que o próprio ego.
80
mais diversas acusações. “Realmente, encontraremos fundamentos para distinguir este
agente do restante do ego. Aqui, estamo-nos familiarizando com o agente comumente
denominado ‘consciência’ [...]” (FREUD, 1917, p.253).
Analisando de forma paralela a perda de objeto no luto e a perda provocada no ego
pela melancolia, Freud propõe uma solução para explicar a aparente contradição suscitada
por esta comparação. Como já foi mencionado, também na melancolia haveria uma perda
de objeto, passível de ser constatada através da análise. Na verdade, o paciente estaria, por
trás das próprias auto-recriminações, atacando um objeto perdido. A reação ambivalente
com tal objeto é, por assim dizer, mascarada pelas auto-acusações do paciente. Isso é
evidenciado pelo fato do paciente não manifestar qualquer vergonha com os impropérios
dirigidos contra si mesmo, pois, na verdade, teria por alvo um objeto de amor perdido.
Além disto, fica claro que através de seu sofrimento o indivíduo busca fazer sofrer também
o próprio objeto, externamente, o que revela a agressividade subjacente ao estado
melancólico. “É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemos que as
auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas
desse objeto para o ego do próprio paciente” (FREUD, 1917, p.254).
Desta maneira, a chave para compreender esta questão é alcançada através do
conceito de identificação, mecanismo proposto como subjacente ao problema da
melancolia, mas que, progressivamente, ampliará seu alcance para a compreensão da
própria constituição do sujeito, de maneira geral.
Haveria, num primeiro momento, a escolha de um objeto de investimento libidinal.
Posteriormente, tal objeto teria sido perdido, a relação objetal desfeita e, assim, o objeto
enquanto tal seria desinvestido de sua parcela de libido. Libido que agora livre se refugia
no ego do sujeito de forma a representar, no interior do mesmo, o objeto amado e perdido.
Esta parte do ego identificada com o objeto será atacada pelo agente crítico, que ao invés
81
de atingir o objeto, alvo de sua agressão, atingirá o próprio ego, daí as constantes auto-
acusações manifestadas objetivamente pelo melancólico.
A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada.
Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o
ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas
serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto
abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí
por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o
objeto abandonado (FREUD, 1917, p.254).
Segundo Freud, a escolha objetal que inicia a seqüência acima descrita é realizada
numa base narcísica, o que explicaria a contradição aparente entre a forte fixação amorosa,
num primeiro momento, e a facilidade com que se efetua a dissolução de tal investimento
libidinal quando ocorre a perda do objeto. Desta forma, o indivíduo mantém, poderia se
dizer, a relação amorosa com o objeto, porém no interior do próprio eu; ou ainda,
inversamente, o indivíduo mantivera, durante o período de relacionamento amoroso com o
objeto, uma relação amorosa consigo mesmo, de forma narcísica. “A identificação
narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em
conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação
amorosa” (FREUD, 1917, p.255).
A identificação, segundo Freud, é uma etapa que antecede a escolha de objeto ou
ainda uma forma primeira de escolhê-lo. É também digna de nota a ambivalência inerente
ao processo de identificação. Ambivalência devida ao modelo sobre o qual se assenta o
processo identificatório, a saber, a fase oral ou canibalista do desenvolvimento. Nesta fase,
a incorporação do objeto comporta, de maneira concomitante, a destruição do mesmo.
A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se
expressão de ternura com tanto facilidade quanto um desejo do
afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase
82
da organização da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e
pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira
aniquilado como tal (FREUD, 1921, p.115).
Ou seja, poder-se-ia ver nesta dinâmica proposta por Freud uma caracterização econômica
da melancolia como processo de “regressão da catexia objetal para a fase oral ainda
narcisista da libido” (FREUD, 1917, p.255).
No tocante à ambivalência, Freud (1917, p.256) diz ainda: “A perda de um objeto
amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas
se faça efetiva e manifesta”. Segundo esta ótica, uma pessoa enlutada com uma disposição
à neurose obsessiva vivenciaria, devido justamente à ambivalência afetiva, uma forte
culpabilidade pela morte da pessoa querida. Assim, o componente agressivo desta
ambivalência desejou, ainda que inconscientemente, a morte da pessoa, e é precisamente
com relação a este desejo “proibido” que a culpa se manifesta, caracterizando um luto
patológico. Embora, neste caso, a culpabilidade pela morte da pessoa amada e as auto-
acusações possam ter um peso considerável sobre o ego do indivíduo, não há uma retração
regressiva da libido, tal qual é observada na melancolia. “Esses estados obsessivos de
depressão que se seguem à morte de uma pessoa amada revelam-nos o que o conflito
devido à ambivalência pode alcançar por si mesmo quando também não há uma retração
regressiva da libido” (FREUD, 1917, p.256). Desta maneira, segundo Freud, o que
diferenciaria a melancolia do luto patológico observado na neurose obsessiva, seria,
fundamentalmente, que na primeira haveria uma regressão à fase oral e narcisista da libido,
e, neste sentido, a própria escolha de objeto teria se efetuado num “tipo narcisista”. Na
segunda, por outro lado, não haveria uma identificação narcisista com o objeto perdido,
como elemento subjacente às auto-acusações, antes haveria uma intensa culpa por ter
provocado, através do desejo inconsciente, a morte do ente querido.
83
O componente agressivo da ambivalência presente nas relações amorosas seria o
responsável pelas auto-acusações, que, na verdade objetivam atingir e causar sofrimento no
objeto, agora internalizado no ego do sujeito, mediante o processo de identificação.
Se o amor pelo objeto um amor que não pode ser renunciado, embora o
próprio objeto o seja se refugiar na identificação narcisista, então o ódio
entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o,
fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento” (FREUD,
1917, p.256).
Desta forma, a “perda de objeto” subjacente à melancolia causaria, além da
identificação narcisista com tal objeto, a implementação de um sadismo, oriundo da
ambivalência, que instauraria o conflito, no interior do próprio eu. O objeto passa a ser, de
certa forma, um pedaço do próprio ego, e o conflito agora inteiramente deslocado para o
interior do mesmo é expresso como auto-acusações.
A catexia erótica do melancólico no tocante a seu objeto sofreu assim uma
dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte,
sob a influência do conflito devido à ‘ambivalência’, foi levada de volta à
etapa de sadismo que se acha mais próxima do conflito (FREUD, 1917,
p.257).
Veremos mais adiante como este componente agressivo, sádico, presente
principalmente na melancolia e na neurose obsessiva, embora com dinâmicas diferentes,
ganhará enorme importância na nova teoria das pulsões e na segunda tópica, quando então
será “assumido” pelo superego.
Freud encontra no sadismo a chave para compreender o suicídio nos melancólicos.
Segundo seu raciocínio, quando o melancólico tenta tirar sua própria vida, ele, na verdade,
busca matar o objeto internalizado:
84
A análise da melancolia mostra agora que o ego só pode se matar se,
devido ao retorno da catexia objetal, puder tratar a si mesmo como um
objeto se for capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a
um objeto, e que representa a reação original do ego para com objetos do
mundo externo
15
. Assim, na regressão desde a escolha objetal narcisista, é
verdade que nos livramos do objeto; ele, não obstante, se revelou mais
poderoso do que o próprio ego. Nas duas situações opostas, de paixão
intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras
totalmente diferentes (FREUD, 1917, p.257).
Ou seja, o impulso agressivo e assassino que o ego gostaria de ter infligido contra o
objeto é agora direcionado a si mesmo, porém objetivando o objeto. O suicídio mostra sua
face masoquista, porém, mais uma vez, este masoquismo ainda é um sadismo refletido no
próprio sujeito. Seria somente por objetivar, em última instância a destruição do objeto, e
não a si mesmo, que as pulsões de autoconservação ou mesmo a libido narcísica tornar-se-
ia impotente para sobrepujar a autodestruição suicida. Somente na década de 1920, com a
pulsão de morte, é que se postulará uma destrutividade primária autodirigida, um
masoquismo originário ou primário. No entanto, mesmo aí Freud falará de uma tendência
sádica do superego relacionando-se diretamente a sua contraparte masoquista no ego.
É importante ressaltar que a luta libidinal devido à ambivalência em torno do objeto
de amor se daria na esfera inconsciente. Somente com o abandono do objeto e a regressão
da libido de volta ao ego é que se instauraria o conflito psíquico consciente, agora
representado pelos seus dois personagens: o ego e o agente crítico. Tal conflito seria
expresso, fundamentalmente, pelas auto-acusações e desvalorizações da auto-estima. O que
o processo não revela, porém, é que estas acusações visam o objeto, cujo investimento foi
abandonado, e com o qual o ego do indivíduo se identificou narcisicamente (porque fruto
de uma anterior escolha de objeto narcisista).
15
Relação original de agressividade dirigida contra os objetos externos, que segundo Laplanche, conforme já
mencionado, é chamada impropriamente de sadismo por Freud nos textos anteriores a 1920.
85
Isso, como sabemos, consiste no abandono, por fim, do objeto pela catexia
libidinal ameaçada, só que, porém, para recuar ao local do ego de onde
tinha provindo. Desta forma, refugiando-se no ego, o amor escapa à
extinção. Após essa regressão da libido, o processo pode tornar-se
consciente, sendo representado à consciência como um conflito entre uma
parte do ego e o agente crítico (FREUD, 1917, p.262).
Em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, Freud (1921) volta a debruçar-se
novamente sobre a identificação, desta vez para além da melancolia, procurando descrevê-
la atuando na constituição do sujeito desde as suas origens. O modelo da perda do objeto
que acarreta a implantação do mesmo, via identificação, cede lugar momentaneamente a
uma outra possibilidade de identificação, independente do objeto, ou melhor, independente
de uma prévia ligação com o objeto. Desta forma, Freud a caracteriza como a forma mais
primitiva de ligação à outra pessoa, anterior, portanto, aos investimentos objetais. A figura,
ou o objeto
16
, desta primeira identificação seria o pai e tal processo ocorreria antes mesmo
da instauração do complexo de Édipo:
A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota
expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um
papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um menino mostrará
interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e
tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai
como seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com uma atitude
passiva ou feminina em relação ao pai (ou aos indivíduos do sexo
masculino em geral); pelo contrário, é tipicamente masculina. Combina-se
muito bem com o complexo de Édipo, cujo caminho ajuda a preparar.
(FREUD, 1921, p. 115).
Ou seja, é a anterioridade da identificação com o pai que “justificaria” a posterior
eleição da mãe como objeto e a também posterior matiz hostil desta primitiva identificação
paterna. A ressalva que Freud faz acerca da atitude masculina do menino, e não passiva,
16
Há evidentemente um certo paradoxo proposital no uso deste termo: como falar em objeto se esta ligação
antecede as relações objetais? Trata-se, portanto, do objeto não da pulsão, mas o “visado” pela identificação.
Porém, pensando que estamos nos primórdios do sujeito psíquico, quem visa?
86
deixa claro que o pai não é seu objeto de amor, mas de identificação, é seu ideal. Ser igual
ao pai significará em outro momento ter a mãe. Por outro lado, no mesmo texto, Freud
volta a utilizar o mecanismo da perda de objeto seguida de identificação para descrever o
homossexualismo masculino, no qual haveria forte fixação objetal edipiana na mãe
seguida, após a puberdade, do abandono da mesma como objeto e identificação com ela.
Ser como a mãe, neste contexto, significa agora sim a posição feminina e passiva:
estabelecer relações amorosas como outros homens. No entanto, ainda aí há uma outra face
da identificação que testemunha a permanência da relação edipiana (heterossexual) com a
mãe: a que o eu estabelece com estes outros homens como estando no lugar que o próprio
sujeito um dia esteve: “[...] procura então objetos que possam substituir o seu ego para ele
[...]” (FREUD, 1921, p.118). Ou seja, parte do eu se identifica com a mãe também no
sentido de amar a si mesmo nos objetos (homens) substitutos do próprio eu. Há nesta
caracterização, que remonta ao texto Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância
(1910), uma linha que permite conectar o narcisismo à passividade e, de fato, o próprio
Freud (1914) escreveu que as relações efetuadas em base narcísica são mais freqüentes nas
mulheres, em contraste com as relações masculinas, cuja base é o apoio.
A caracterização da identificação como mecanismo primitivo anterior à ligação de
objeto e, mais especificamente, uma identificação primária com o pai permanece em textos
posteriores ao lado das descrições mais abundantes e teoricamente mais fáceis de justificar
da identificação como permanência do objeto (perdido) no interior do eu, na melancolia e
na normalidade, com sua marca narcísica mais ou menos evidenciada. Mais adiante farei
uso de um outro modelo que constitui uma crítica à hipótese freudiana de uma
identificação paterna e que será útil a meus propósitos de pensar as questões referentes ao
masoquismo e à passividade primária.
87
No texto O Ego e o Id (1923), o agente crítico ganha um lugar especial na segunda
tópica freudiana, como uma das três instâncias psíquicas: o superego. Neste texto, o
mecanismo de identificação anteriormente explicitado por Freud para compreender a
melancolia é estendido para outros domínios de forma a fazer parte da constituição do
sujeito, não estando, portanto, restrito ao âmbito da psicopatologia.
Quando acontece uma pessoa ter de abandonar um objeto sexual, muito
amiúde se segue uma alteração de seu ego que só pode ser descrita como
instalação do objeto dentro do ego, tal como ocorre na melancolia; a
natureza exata dessa substituição ainda nos é desconhecida. Pode ser que,
através dessa introjeção, que constitui uma espécie de regressão ao
mecanismo da fase oral, o ego torne mais fácil ao objeto ser abandonado
ou torne possível esse processo. Pode ser que essa identificação seja a
única condição em que o id pode abandonar os seus objetos. De qualquer
maneira, o processo, especialmente nas fases primitivas de
desenvolvimento, é muito freqüente, e torna possível supor que o caráter
do ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém
a história dessas escolhas de objeto (FREUD, 1923, p.42).
Assim, a identificação proporcionaria a manutenção do investimento libidinal,
porém dirigido ao ego que passa a ser, de certa forma, o “representante” do objeto
perdido
17
: “Quando o ego assume as características do objeto, ele está-se forçando, por
assim dizer, ao id como um objeto de amor e tentando compensar a perda do id, dizendo:
‘Olhe, você também pode me amar; sou semelhante ao objeto’” (FREUD, 1923, p.43).
Freud acrescenta que a identificação com o objeto poderia, talvez, objetivar
também um maior controle do ego sobre o id, estreitando a relação entre ambos. No
entanto, salienta que o ego pagaria um preço por isto: a sujeição às exigências pulsionais
do id.
É importante salientar que neste texto Freud concebe que o id é o grande
reservatório da libido e não o ego, como supusera anteriormente no texto sobre o
17
A perda do objeto pode significar o abandono de um tipo de relação fantasmática, e não necessariamente a
perda da presença física do objeto.
88
narcisismo (1914). Desta maneira, o investimento objetal partiria, desde o princípio, do id,
alcançando o ego de maneira secundária através das identificações, o que nos leva ao que
Freud, neste momento, chama de narcisismo secundário:
Isto pareceria implicar uma importante amplificação da teoria do
narcisismo. Bem no início, toda a libido está acumulada no id, enquanto o
ego ainda se acha em processo de formação ou ainda é fraco. O id envia
parte dessa libido para as catexias objetais eróticas; em conseqüência, o
ego, agora tornado forte, tenta apoderar-se dessa libido do objeto e impor-
se ao id como objeto amoroso. O narcisismo do ego é, assim, um
narcisismo secundário, que foi retirado dos objetos (FREUD, 1923, p.58).
A gênese do superego estaria precisamente na mais primitiva identificação do
sujeito: a identificação com o pai. Tal identificação, neste primeiro momento, acorreria de
maneira imediata, sem a necessidade de investimentos ou perdas objetais. Posteriormente,
no período em que já há o investimento objetal propriamente dito, a identificação
decorrente das relações amorosas incestuosas, tendo a figura dos pais por objeto, reforçaria
a identificação primitiva.
Isso nos conduz de volta à origem do ideal do ego
18
; por trás dele jaz
oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a sua
identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Isso
aparentemente não é, em primeira instância, a conseqüência ou resultado
de uma catexia do objeto; trata-se de uma identificação direta e imediata, e
se efetua mais primitivamente do que qualquer catexia do objeto. Mas as
escolhas objetais pertencentes ao primeiro período sexual e relacionadas ao
pai e à mãe parecem normalmente encontrar seu desfecho numa
identificação desse tipo, que assim reforçaria a primária (FREUD, 1923,
p.44 grifo meu).
A constituição do superego, neste sentido, seria fundamentalmente condicionada ao
complexo de Édipo, sobretudo ao seu desfecho, quando então a identificação com as
figuras paternas, objetos das tendências eróticas da criança, formaria o superego.
18
No texto “O Ego e o Id”, Freud utiliza indistintamente o termo superego e Ideal do ego.
89
O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo
pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado no
ego, consistente dessas duas identificações unidas uma com a outra de
alguma maneira. Esta modificação do ego retém a sua posição especial; ela
se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou
superego (FREUD, 1923, p.46).
O complexo de Édipo é descrito por Freud neste texto, sobretudo, em sua forma
completa, tendo por base a constituição bissexual humana. Esta forma pode ser expressa,
no caso dos meninos, por exemplo, como uma relação objetal com a mãe, tendo o pai
como figura de identificação e rivalidade, e, ao mesmo tempo, uma relação objetal com
este mesmo pai, tendo a mãe como rival e figura de identificação. Ou seja, a dissolução do
complexo de Édipo, teria como conseqüência a identificação tanto com pai quanto com a
mãe, isso sendo válido para ambos os sexos. “Na dissolução do complexo de Édipo, as
quatro tendências em que ele consiste agrupar-se-ão de maneira a produzir uma
identificação paterna e uma identificação materna” (FREUD, 1923, p.46).
Entretanto, diz Freud, o superego não se restringe a introjeção de uma relação de
objeto perdida, mas também, e principalmente, uma “proibição” envolvendo esta
identificação, ou o que ela representa, a saber, a relação incestuosa com os genitores.
A sua [do superego] relação com o ego não se exaure com o preceito:
‘Você deveria ser assim (como seu pai)’. Ela também compreende a
proibição: ‘Você não pode ser assim (como seu pai), isto é, você não pode
fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele’. Esse aspecto
duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de
reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário
que ele deve a sua existência (FREUD, 1923, p.47).
O superego, de certa forma, seria a um só tempo substituto do antigo investimento
libidinal e representante da lei, da proibição, enfim do aspecto interditor da figura paterna.
90
“Quando éramos criancinhas, conhecemos essas naturezas mais elevadas, admiramo-las e
tememo-las, e, posteriormente, colocamo-las em nós mesmos” (FREUD, 1923, p.48).
Neste sentido, segundo Freud, o superego seria “o herdeiro do complexo de Édipo, e,
assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes
vicissitudes libidinais do id. Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de
Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id” (FREUD, 1923, p.48). Ou seja, o
superego teria em sua gênese os primitivos investimentos pulsionais do id, daí seu caráter
ao mesmo tempo inconsciente ao ego e onisciente dos desejos mais profundos do sujeito,
devido, justamente, à sua intrínseca relação com o id. Assim sendo, o aspecto interditor do
superego, sobre o qual repousa a edificação da civilização humana (a proibição do incesto
e do assassinato), tem sua origem na própria vida pulsional do sujeito, que, a princípio
(onto e filogeneticamente), “gostaria” de satisfazer-se através do incesto e do assassinato.
“O que pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado,
mediante a formação do ideal no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de
valores” (FREUD, 1923, p.49).
É interessante ressaltar uma constatação clínica descrita por Freud, a saber, o fato
de inúmeros pacientes parecerem se opor, ainda que de maneira inconsciente, a qualquer
possibilidade de melhora durante a análise, como se isso representasse um perigo, e
parecerem obter satisfações advindas de seu sofrimento. Isso sugere que o papel
desempenhado por este sofrimento na economia psíquica é o de expiação de um
sentimento de culpa, do qual o paciente não tem consciência, e por isso nega qualquer
intervenção do analista tentando explicitar-lhe este estado de coisas. Posteriormente, essa
constatação, chamada por Freud de Reação Terapêutica Negativa, o levará a teorizar sobre
o “masoquismo moral” no texto O Problema Econômico do Masoquismo (1924).
91
As duas principais patologias que Freud utiliza para descrever a ação do sentimento
de culpa, posto em ação pelo superego são a neurose obsessiva e a melancolia. Na
primeira, o sentimento de culpa manifesta-se de maneira incisiva, porém o ego do paciente
lhe opõe resistência, pois não tem consciência dos seus motivos subjacentes
19
,
considerando, portanto, “injusta” esta imputação de culpa.
A análise acaba por demonstrar que o superego está sendo influenciado
por processos que permanecem desconhecidos ao ego. É possível descobrir
os impulsos reprimidos que realmente se acham no fundo do sentimento de
culpa. Assim, nesse caso, o superego sabia mais do que o ego sobre o id
inconsciente (FREUD, 1923, p.64).
Ou seja, poder-se-ia dizer que o ego estaria sendo julgado por desejos reprimidos
(principalmente hostis) dos quais nem sequer tem consciência, e se defende tanto destes
desejos (do id) quanto dos ataques do superego através de formações reativas.
Por outro lado, na melancolia, conforme já foi enfatizado anteriormente, o ego
parece conformar-se com o sentimento de culpa, considerando-o, por assim dizer, legítimo,
já que o objeto da ira do superego encontra-se, devido ao processo de identificação, no
próprio ego. A força do superego somada a aquiescência do ego com relação a sua
culpabilidade acabam por conferir à melancolia uma destrutividade ímpar,
Se nos voltarmos primeiramente para a melancolia, descobrimos que o
superego excessivamente forte que conseguiu um ponto de apoio na
consciência dirige sua ira contra o ego com violência impiedosa, como se
tivesse se apossado de todo o sadismo disponível na pessoa em apreço.
Seguindo nosso ponto de vista sobre o sadismo, diríamos que o
componente destrutivo entrincheirou-se no superego e voltou-se contra o
ego. O que está influenciando agora o superego é, por assim dizer, uma
cultura pura do instinto de morte e, de fato, ela com bastante freqüência
19
Na neurose obsessiva, através de uma regressão à organização pré-genital, os impulsos amorosos seriam,
de certa forma, transmutados (devido à desfusão pulsional) em impulsos de agressividade contra o objeto, o
que nos remete ao que já foi dito no capítulo precedente a respeito da regressão operada entre as cenas da
fantasia de espancamento...
92
obtém êxito em impulsionar o ego à morte, se aquele não afasta o seu
tirano a tempo, através da mudança para a mania (FREUD, 1923, p.66).
Neste momento, cabe uma breve digressão para apontar na citação acima a ausência
de uma referência ao narcisismo para abordar a melancolia. Segundo André Green (1988),
as teorizações em torno do narcisismo não foram revistas por Freud à luz da segunda
tópica e da última teoria pulsional. A ênfase teórica a partir dos anos 20 fica, sobretudo,
nas pulsões de destruição, mesmo na melancolia, conforme a citação acima, embora seja
precisamente nesta patologia que a conceituação sobre o narcisismo ainda continue com
força suficiente para tornar possível sua articulação com a pulsão de morte. São
precisamente estas articulações e suas conseqüências, não desenvolvidas por Freud, que
Green teorizou sob a denominação de narcisismo negativo, descrevendo-o, sobretudo sob
os auspícios do ideal
20
, como renúncia, ascetismo e empobrecimento progressivo das
relações com o objeto. “O narcisismo negativo, cujas extensões recobrem, a meu ver, todas
as valorizações da satisfação narcisista pela não-satisfação do desejo objetal, julgadas mais
desejáveis do que uma satisfação submetida à dependência, ao objeto...” (GREEN, 1988,
p.52). Neste sentido, Green concebe ser esta a principal diferença entre o masoquista e o
narcisista: a dependência ou não do objeto. Enquanto na montagem masoquista o sujeito é
caracterizado como se submetendo ao outro (o objeto)
21
, no narcisismo o sujeito busca,
através de uma orgulhosa renúncia, depender apenas de si mesmo. “O masoquista
conserva, através da negativação do prazer e a busca do desprazer, um vínculo rico com o
objeto, o que o narcisista tenta abandonar” (GREEN, 1988, p.204). À exigência pulsional
de satisfação objetal, o sujeito responde com o investimento objetal narcisista que o expõe
à melancolia no caso da falta do objeto.
20
Segundo Green (1988, p.49), seria a função do ideal a principal “sobrevivente” das formulações do
narcisismo a partir da segunda tópica e da última teoria pulsional.
21
“No masoquismo, trata-se de ser batido, humilhado, maculado, reduzido à passividade, mas uma
passividade que exige a presença do Outro” (GREEN, 1988, p.202).
93
A crueldade do superego, sua agressividade tendo o ego por objeto teria se
constituído mediante o processo de desfusão pulsional ocorrido na dissolução do complexo
de Édipo. As tendências eróticas, anteriormente dirigidas aos pais da infância, teriam sido
sublimadas através do processo de identificação com esses antigos objetos de amor
incestuoso. Este processo acarretaria a liberação do componente agressivo anteriormente
fusionado ao componente erótico. Assim a identificação com as figuras paternas de forma
libidinalmente dessexualizada formaria o superego, herdeiro tanto do Édipo como da
agressividade liberada pela desfusão pulsional. Observa-se, portanto, que neste ponto
ocorre uma intercessão da segunda tópica freudiana, com o novo dualismo pulsional dos
anos 1920, segundo o qual haveria duas classes de pulsões: a pulsão de vida, ou Eros, e a
pulsão de morte.
Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a
totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é
liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa
desfusão seria a fonte do caráter geral da severidade e crueldade
apresentado pelo ideal o seu ditatorial ‘farás’ (FREUD, 1923, p.67).
Neste capítulo, fiz algumas considerações sobre o conceito de identificação em
Freud, pensando-o principalmente em sua articulação com a melancolia e com a formação
do superego. A identificação, neste sentido, foi articulada ao Édipo e seu mecanismo de
ação como fundamental tanto para a formação do ego quanto para o que Freud chamou de
herdeiro do complexo de Édipo: o superego. A instância superegóica está profundamente
vinculada em Freud a uma representação paterna, tanto punitiva quanto protetora. Neste
sentido, no que concerne a identificação no pensamento freudiano, pode-se constatar a
presença marcante de um referencial masculino, uma caracterização do Édipo
fundamentalmente masculina, um primado do fálico e a conseqüente angústia de castração.
Tanto que podemos verificar o uso eventual da expressão complexo paterno como
94
sinônima de complexo de Édipo. Neste referencial fálico, vimos como Freud descreve o
que seria identificação paterna primária anterior aos investimentos objetais.
No entanto, Paulo de Carvalho Ribeiro (2000), em O Problema da Identificação em
Freud, sustenta a hipótese de que o próprio pensamento freudiano teria sido marcado pelo
recalcamento da identificação feminina primária e do desejo de castração (RIBEIRO,
2000, p.135), demandando por parte de Freud esforços teóricos para manter e consolidar o
primado fálico: “Identificação feminina primária ou identificação primária com a mãe são
hipóteses que Freud nunca ousou formular, mas que marcam seu pensamento pelas
contorções e malabarismos conceituais que seu recalcamento na teoria impõe” (RIBEIRO,
2000, p.111). A linha de raciocínio do autor leva como um de seus fundamentos o conceito
laplancheano de sedução originária, porém questiona a tese de um bebê tradutor e
conjectura o papel do adulto como tradutor originário: “... não é o lactente que traduz, mas
sim o adulto que, ao mesmo tempo em que implanta elementos excitantes e fragmentadores
no corpo do lactente, propicia também elementos de contenção e organização que
culminam na formação do eu” (RIBEIRO, 2000, p.216).
Ribeiro (2000, p.221) pensa um bebê primordial e radicalmente aberto ao mundo,
mundo como pura excitação, num momento em que não haveria propriamente nem sujeito
nem objeto. Neste sentido, não enfatiza tanto o caráter sexual inconsciente dos estímulos
que partem do adulto, mas fundamentalmente o primeiro momento destas excitações em
seu caráter sexual-pré-sexual que somente a posteriori assumirá o caráter de:
[...] excitação de um corpo completamente entregue à penetração,
completamente destituído de barreiras em relação a qualquer intrusão do
outro. Nesse momento [a posteriori] ela se tornará plenamente sexual e
traumatizante. [...] Esse corpo, então, que, num momento de hesitação
entre a fragmentação e a totalização, delimita e localiza o que era pura
excitação, transformando-a, assim, em excitação de alguma coisa; esse
corpo que, ao ser delineado, revelará não somente o agente e o objeto da
excitação, mas também sua violência fragmentadora e consumptiva, estará
fadado ao recalcamento (RIBEIRO, 2000, p.222-3, grifo meu).
95
Segundo Ribeiro, a própria formação do eu-instância que emerge neste processo se
assentaria, por assim dizer, sobre o recalcamento deste corpo (constituído, a posteriori, no
momento do vislumbre de sua delimitação) asujeitado às excitações intrusivas,
fragmentadoras e excessivas. É importante ressaltar que é no instante desta primeira
delimitação de um corpo (corpo originário recalcado) que as primitivas vivências
excitatórias adquirem todo seu potencial traumático e são alvo de um primeiro
recalcamento sobre o qual se instaura, como afirmação, um eu-instância.
O recalcamento secundário, no qual se daria a formação da identidade de gênero e a
escolha do objeto sexual, viria a conferir ao corpo recalcado originário, num efeito a
posteriori, o caráter de feminilidade (RIBEIRO, 2000, p.238). De fato, o pensamento de
Ribeiro retrata uma profunda afinidade entre a posição seduzida originária, a posição
feminina e o recalcado originário. Ou seja, o autor sustenta a caracterização de um corpo
invadido primordial numa “relação” de penetração indiferenciada entre mãe e bebê, sendo
que apenas num segundo momento (a posteriori) haveria uma delimitação corporal em que
se ofereceria um vislumbre de uma identificação feminina primária, sendo esta alvo de um
enérgico recalcamento. Tal identificação primária estaria, por assim dizer, subjacente às
posteriores identidades masculina e feminina.
A linha de raciocínio de Ribeiro é um questionamento do primado fálico de Freud,
chegando, inclusive, a postular, por trás de uma angústia de castração, o desejo de
castração, num esforço de manter no menino a identificação narcísica com a mãe. Pode-se
também postular que seria o recalcamento desta identificação feminina primária que
justificaria, sob um outro prisma, o repúdio da feminilidade (FREUD, 1937), mesmo no
plano da produção teórica. De certa forma, este primado da feminilidade pode ser
articulado com as hipóteses freudianas de pulsão de morte e de masoquismo primário,
ainda que o próprio Freud não tenha conseguido ou podido fazer tais articulações, o que
96
poderia ser conjeturado, na esteira de Ribeiro, como um retorno do recalcado. Cabe
acrescentar também como curioso o fato de que a própria caracterização de Freud que
concebe as íntimas relações entre a identificação e a oralidade, inclusive para falar da
ambigüidade, não tenha esbarrado na relação entre a oralidade e vínculo primário com a
mãe.
Voltemos, neste momento de nosso percurso, à problemática masoquista através de
um exame da introdução da última teoria das pulsões no pensamento freudiano (1920) para
a seguir situá-la no prisma da segunda tópica em O Problema Econômico do Masoquismo
(1924). Neste texto, o superego será claramente teorizado como principal representante e
ator da pulsão de morte, no pólo sádico de uma relação intrapsíquica, cujo outro pólo
(masoquista) será desempenhado pelo ego, o que serve
22
a três senhores (FREUD, 1923).
Ou seja, a caracterização de um ego baseada, sobretudo, num imperativo de servidão, de
submissão, um ego primariamente masoquista. Terminarei este capítulo com uma citação
de Mezan que diz respeito à articulação entre a identificação, o Édipo, a castração e a
violência no pensamento freudiano.
Mas se a identificação é a forma mais antiga do relacionamento afetivo, os
primeiros objetos a serem incorporados por esta via não podem ser outros
senão os pais. A promoção da identificação à categoria de processo
estruturador por excelência da personalidade vai desembocar assim numa
reflexão sobre o Édipo e sobre seu complemento necessário, a castração,
reflexão cujos passos introduzem a violência no próprio coração da
intersubjetividade (MEZAN, R. 2006, p.278).
22
Este aspecto de servidão é uma característica marcante do pensamento freudiano desde sua origem, através
do conceito de inconsciente e da idéia de que o eu não é senhor em sua morada. Porém, no texto Inibição,
Sintoma e Angústia (1926), Freud parece tentar reabilitar o eu desta servidão, enfatizando sua “força” e
autonomia perante os três senhores (id, superego e realidade).
97
9 A PULSÃO DE MORTE, O MASOQUISMO E O SUPEREGO
No texto Além do Princípio do Prazer (1920), Freud, partindo de três fatos
observados: os sonhos da neurose traumática, a repetição na transferência e o jogo infantil
( “fort-da” ), postula a existência de uma pulsão que suplantaria o princípio do prazer. Esta
pulsão, chamada por Freud de Pulsão de Morte, atuante na compulsão à repetição
evidenciada pelos três eventos acima, visaria o restabelecimento de um estado anterior que,
em última instância, remontaria a um retorno à inorganicidade. É interessante notar que
Freud expõe suas hipóteses neste texto utilizando-se da construção de um modelo
biológico, fazendo reservas quanto ao seu caráter especulativo, deixando talvez suspenso o
alcance destas hipóteses no conjunto de seu pensamento até então. Os anos seguintes dão
testemunho que a hipótese acabaria por se tornar algo fundamental em seu pensamento e
ficaria como a sua última teoria das pulsões. Como já foi dito, era uma hipótese exigida
para dar conta de suas indagações na clínica e na cultura. A pulsão de morte, uma espécie
de chamado ao estado anterior inorgânico, supõe uma passividade primordial e à qual
tende, ainda que por caminhos tortuosos, a vida, a atividade, tudo aquilo que poderíamos
chamar genericamente de ação humana e que Freud concebe como domínio da
sexualidade, ainda que sublimada. Sim, pois para Freud não haveria ação humana sem
sexualidade e sem sublimação. Tudo isso, que comumente relacionamos a um progresso,
não seria fim próprio da pulsão em sua origem conservadora-regressiva, mas antes o
resultado indireto da ação da pulsão contra tudo aquilo que tenta frear seu impulso básico e
primitivo: a descarga total e imediata, a redução a zero de toda a tensão.
A Respeito dos sonhos na neurose traumática diz Freud, retomando a antiga
hipótese de 1900:
98
Se não quisermos que os sonhos dos neuróticos traumáticos abalem nossa
crença no teor realizador de desejos dos sonhos, teremos ainda aberta a nós
uma saída: podemos argumentar que a função de sonhar, tal como muitas
pessoas, nessa condição [da neurose traumática] está perturbada e afastada
de seus propósitos, ou podemos ser levados a refletir sobre as misteriosas
tendências masoquistas do ego (FREUD, 1920, p.24).
Ou seja, a explicação para o antigo impasse situa-se no mesmo ponto que
anteriormente: no masoquismo. Há, no entanto, um outro elemento que ganha força para
compreender o que ocorre: a compulsão à repetição.
Quanto ao jogo infantil, Freud (1920, p.27) postula: “No início, achava-se numa
situação passiva, era dominada pela experiência, repetindo-a, porém, por mais
desagradável que fosse, como jogo, assumia papel ativo”. Ou seja, Freud toca novamente,
como nas considerações acerca do par sadismo e masoquismo, na antítese atividade versus
passividade. Algo vivido passivamente é repetido de forma ativa, porém é algo que causa
desprazer, sofrimento. Já com relação à transferência, Freud se pergunta porque as penosas
experiências da infância, envolvendo, sobretudo, o complexo de Édipo, são repetidas na
transferência se esta repetição na experiência é algo mais desprazeroso que sua recordação.
“Os pacientes repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções
penosas, revivendo-as com a maior engenhosidade” (FREUD, 1920, p.32). Freud avança
em sua análise da repetição e alcança as montagens inconscientes nas quais as experiências
cotidianas expressam o caráter de compulsivo.
O que a psicanálise revela nos fenômenos de transferência dos neuróticos,
também pode ser observado nas vidas de certas pessoas normais. A
impressão que dão é de serem perseguidas por um destino maligno ou
possuídas por algum poder ‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi
de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas
próprias e determinado por influências infantis primitivas (FREUD, 1920,
p.32 grifo meu).
99
Em determinado momento, fala sobre uma participação aparentemente passiva do
sujeito que é “alvo” desta perseguição repetitiva do destino.
Essa ‘perpétua recorrência da mesma coisa’ não nos causa espanto quando
se refere a um comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e
podemos discernir nela um traço de caráter essencial, que permanece
sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma repetição das
mesmas experiências. Ficamos muito mais impressionados nos casos em
que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possui
influência, mas nos quais se defronta com uma repetição da mesma
fatalidade (FREUD, 1920, p. 33).
A ocorrência destas experiências que revelam antes um pólo passivo, numa espécie
de vitimização, supõe um caráter de perseguição por parte do que é externo ao sujeito,
enquanto o caráter mais ativo do sujeito na repetição destas experiências supõe mais
claramente o que, mesmo no senso comum, é denominado como uma característica
masoquista. A não participação do sujeito é que supõe seu aspecto de vítima, de certo
desamparo frente a algo que o escapa. Porém, o que Freud revelará ao longo do seu
pensamento é a participação inconsciente do sujeito na determinação destas situações
repetitivas de infortúnio, o que pode nos sugerir uma ética de responsabilização. Pode-se
dizer que o sujeito não se dá conta do papel ativo que desempenha na própria repetição.
Sua posição é de objeto destas circunstancias, ficando a mercê do outro, em posição
infantil, dependente e vulnerável. Como novamente se vê, a questão não é puramente de
ordem econômica, mas do sujeito frente à ação, frente ao mundo e frente ao outro, outro
que pode assumir os mais variados e impessoais formatos.
Na origem dos três fenômenos está a experiência traumática que, não obstante seu
desprazer, é repetida no sonho, no jogo, na análise e na vida. Por fim conclui sua exposição
destes fenômenos, dizendo:
100
Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no
comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e
mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente
na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer,
como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa
compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso
que leva as crianças a brincar (FREUD, 1920, p.33).
Freud faz uso de um modelo biológico em que postula uma primitiva vesícula viva
e a progressiva formação de um escudo protetor contra os estímulos externos. A
característica primeira do traumático estaria ligada a uma tal magnitude do estímulo
externo que foi suficiente para romper o escudo protetor. No entanto, as excitações atacam
não somente de fora, mas de dentro e é necessário sujeitá-las, ligá-las, sob pena de produzir
algo semelhante a uma neurose traumática. Segundo Freud, esta tarefa de sujeitar as
excitações seria mais primária que o princípio de prazer, atuando mesmo de forma
independente e oposta a ele. A repetição do mesmo sugere um caráter instintual que
assume uma forma demoníaca quando atua em oposição ao princípio de prazer. Parece que
é devido ao fato de certas excitações, como as provenientes de experiências que estão na
origem dos três fenômenos analisados, não estarem em estado de sujeição, não estarem
ligadas, que o psiquismo operaria em oposição ao princípio de prazer.
A repetição dentro deste enfoque estaria sendo postulada como uma tentativa de
ligar tais excitações, de sujeitá-las, independente do desprazer deste processo. Freud, então,
lança mão de outra hipótese: o instinto [e sua força de repetição] seria uma força atuante no
orgânico para restaurar um estado anterior que, em última análise, remeteria ao inorgânico.
Parece, então, que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a
restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi
obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou
seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro
modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica (FREUD, 1920,
p.47).
101
No entanto, parece que o sentido é que o que foi abandonado não foi o impulso,
mas o estado anterior de coisas o inorgânico. Um elemento importante na argumentação
de Freud é que o que vem de fora é considerado como perturbador e traumático, é o que
rompe o “repouso” primordial. “A tensão que então surgiu no que até aí fora uma
substância inanimada se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro
instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado” (FREUD, 1920, p.49). Esta tendência
de retorno ao inanimado agiria primordialmente de forma a colocar novamente em repouso
as excitações, as forças perturbadoras, o movimento, numa tentativa, cedo ou tarde bem
sucedida, de fazer a substância viva, esse quantum de excitações, retornar ao estado
primitivo de não atividade. À medida que a vida foi se tornando mais complexa, o caminho
regressivo a ser trilhado por essa tendência para o estado de repouso (que Freud equipara
com o estado quiescente) também o foi.
Esta tarefa árdua de neutralização, de sujeição, dos estímulos perturbadores seria
mais primária que o princípio de prazer e explicaria aqueles fenômenos que contrariam seu
mecanismo de ação. A repetição seria uma manifestação desta tendência primordial de
sujeição que não se importa com o desprazer que se desenvolve, de forma ruidosa nestas
condições, no aparelho psíquico. Este caráter conservador, regressivo, é para Freud, em
1920, a própria essência do instinto. No entanto, apesar desta condição mortífera inerente
ao instinto de maneira geral, Freud concebe a existência de uma classe de instinto, Eros,
cuja finalidade seria “combinar substâncias orgânicas em unidades cada vez maiores”
(FREUD, 1920, p.53), numa referência aos instintos que primordialmente buscariam unir
as células germinativas, justamente aquelas que conferem uma suposta e relativa
imortalidade à substância viva. Trata-se dos instintos sexuais cujo objetivo seria prolongar
a vida. Freud algumas vezes descreve Eros como o perturbador ou complicador e seu
raciocínio parece situar-se justamente na perturbação do que seria um caminho curto e reto
102
para a morte. Com Eros, ou as pulsões de vida, o caminho inexorável à morte se prolonga e
fica sinuoso. Freud, porém, nega que esta pulsão de vida seja uma tendência inerentemente
progressiva, um instinto de perfeição, pois todo instinto visaria a perseverança do mesmo
ou a regressão. A progressão seria decorrente de um mecanismo em que a repressão
condicionaria a impossibilidade de satisfação completa e, assim sendo, com o caminho
para trás barrado, a alternativa seria a satisfação substituta, minguada se comparada à
outra, e sempre insatisfeita, numa espécie de fim indireto, que impulsionaria para frente.
Desta forma, a satisfação direta, sem mediação, sem atraso, sem complicadores,
estaria relacionada a algo mortífero, uma descarga total, o princípio de nirvana em toda a
sua potência destrutiva. O instinto de vida supõe um circuito complexo pelo qual a energia
circula e produz efeitos, produz movimento, calor, luz e há uma reserva de potencial
energético. Já o instinto de morte seria uma tendência a um curto-circuito”, a zerar o
potencial energético. O princípio de prazer supõe um “atraso”, um adiamento, em relação a
seu antecessor, o princípio de nirvana: “o princípio de prazer, então, é uma tendência que
opera a serviço de uma função, cuja missão é libertar inteiramente o aparelho mental de
excitações, conservar a quantidade de excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa
quanto possível” (FREUD, 1920, p.73). É possível relacionar Eros, com sua tendência vital
perturbadora do repouso mortífero e das forças de desligamento, com as influências
externas, aquelas que vêm romper o sono primordial do inorgânico. Em Pulsões e Destinos
das Pulsão (1915) já encontramos esta idéia do fator externo agindo de forma perturbadora
num sujeito que o recebe passivamente e da pulsão como uma plena atividade do sujeito:
“o Eu-sujeito é passivo em relação aos estímulos externos e ativo por meio de suas
próprias pulsões” (FREUD, 1915, p.158).
Neste sentido, é possível fazer uma extrapolação na via traumática externa da
alteridade como condição para a subjetividade. Pode-se dizer que o bebê humano em seu
103
desamparo, que poderíamos relacionar com o repouso inorgânico primordial, necessita
(trata-se realmente do plano da necessidade) das forças perturbadoras externas que iriam
despertar-lhe para a vida, não a biológica, mas a subjetiva. Como se a vida humana
(subjetiva) também devesse provir de fora, num descentramento, e despertar não o
organismo que já funciona desde o útero materno, mas o sujeito, animá-lo, convocá-lo à
existência. Trata-se de uma extrapolação e não quero com isso sugerir que o bebê seja
primariamente fechado em si mesmo. Há nele evidentemente algo inerentemente dirigido
para o exterior, talvez numa tentativa também de seduzir quem quer esteja ali. De qualquer
forma, pode-se dizer que ainda não se trata de uma ação propriamente humana, marcada
por um desejo, mas algo talvez da ordem de uma sobrevivência orgânica, mas que sozinha
não é capaz de concretizar seu “intento”, ou seja, trata-se da condição de desamparo, a
dependência total de outro. Segundo Laplanche (1992, p.108),
A criança, mesmo possuindo certas montagens e aptidões adaptativas que
começamos a conhecer bem, continua fundamentalmente destinada (sem
nenhum patos...) à Hilflosigkeit; ela precisa necessariamente ser
substituída por alguém, tanto para a satisfação de suas necessidades quanto
para a prevenção dos perigos, e até para a aprendizagem do medo, que nela
é deficitário.
Quanto ao caráter puramente mortífero da pulsão de morte, sua tendência ao
desligamento, é importante sublinhar uma relativização possível que procura dar conta de
um papel diferenciador por parte desta função que, apesar de seu fim último, poderia atuar
segundo interesses vitais. Enquanto Eros em sua função unificadora e aglutinadora pode
dar margem a uma indiferenciação mortífera, a pulsão de morte pode ser postulada como
algo que tende a uma separação, no sentido de uma individuação, algo indispensável para o
nascimento da subjetividade a partir de um solo indiferenciado. Neste sentido, utilizando-
se do modelo primário de um narcisismo que seria uma mônada fechada em si mesma,
104
pode-se conjecturar a atuação da pulsão de morte como aquilo que rompe esta ligação de
plenitude mortífera. Neste sentido, e apesar do próprio Freud não chegar a tecer estas
hipóteses, cito Zaltzman (1993, p.59, grifo meu):
Falar de pulsão de morte única, cega, mortífera, ligada exclusivamente ao
destino edipianamente datada ou antidatado das pulsões libidinais, só
funcionando numa direção contra a vida -, me parece trair a importância
deste conceito e a expansão do funcionamento do funcionamento desta
categoria pulsional. Ao lado do que se entende habitualmente por este
termo, ou seja, um fluxo de energia livre realizando por descarga direta a
supressão de toda tensão e instaurando assim, ao menos
momentaneamente, uma suspensão de vida, ou sob a forma de energia
ligada, realizando por fluxos agressivos e auto-agressivos sua missão de
destruição, é preciso reconhecer outras formas “demoníacas” que se
afastam das vias banalizadas e contribuem à vida psíquica e não à
destruição.
Fiel ao dualismo pulsional presente em toda a sua obra, Freud desloca a antiga
oposição entre pulsões sexuais e pulsões do ego, para pulsões de vida e pulsões de morte.
(Sendo que em pulsão de vida Freud agora agrupa todo o antigo dualismo pulsões
sexuais e do ego e em pulsão de morte introduz a grande inovação teórica que possibilita
o “algo” além do princípio do prazer). Neste sentido, ao teorizar a respeito da oposição
entre essas duas classes de pulsões recém introduzidas, Freud retoma a questão da presença
de um componente sádico na pulsão sexual que visaria a dominação do objeto com o
intuito de efetivar o ato sexual. Este “sadismo” passa, a partir de então, a ser concebido
como expressão da pulsão de morte que, fundida à pulsão de vida (Eros), atuaria sobre os
objetos sexuais. Nesta mistura, o sadismo enquanto perversão, envolvendo a totalidade da
vida sexual do sujeito, representaria a predominância da pulsão de morte sobre Eros,
buscando a destruição do objeto externo.
Freud argumenta, então, que este componente sádico, dirigido para o exterior,
anteriormente estava presente no próprio sujeito e tinha por objetivo destruí-lo, todavia foi
105
“expulso” do ego por influência da libido narcisista e, a partir de então, voltado à relação
com os objetos, “dividindo” espaço com a libido. Dentro deste referencial, o masoquismo
passa a ser concebido como um retorno, uma regressão, ao estado primevo anterior à
projeção deste componente agressivo ao exterior. Assim sendo, Freud formula, em 1920, a
hipótese de um masoquismo primário, revendo o que pensara até então: um sadismo
primário, sendo o masoquismo a expressão do próprio sadismo que teria, em um segundo
momento, o ego por objeto.
Em O Problema Econômico do Masoquismo , Freud (1924) reitera as hipóteses de
1920 e analisa o masoquismo em três vertentes: masoquismo feminino, masoquismo
erógeno e masoquismo moral.
O masoquismo feminino se refere ao que é normalmente descrito como perversão,
tendo por conteúdo manifesto “[...] ser amordaçado, amarrado, dolorosamente espancado,
açoitado, de alguma maneira maltratado, forçado à obediência incondicional, sujado e
aviltado” (FREUD, 1924, p.179). No entanto, o conteúdo latente estaria vinculado a uma
certa caracterização feminina do sujeito, significando “[...] ser castrado, ou ser copulado,
ou dar à luz um bebê” (FREUD, 1924, p.180). Ou seja, trata-se de uma condição que tem
por fundamento a feminilidade, daí seu nome masoquismo feminino, e que caracteriza sua
presença num sujeito do sexo masculino. A respeito deste masoquismo, Claude Le Guen
(1997) aponta para a identificação feminina inerente ao seu conteúdo latente
(fantasmático), enfatizando tanto relação de dependência à mãe quanto seu caráter
universal e precoce, o que, de certa forma, permite aproximá-lo das conceituazações de
Ribeiro (2000) em torno de uma feminilidade originária, conforme já abordado em
capítulo anterior.
[...] se numa tal situação predominam tantos elementos primários de
dependência à mãe, significativos na vida da criança pequena, esta posição
106
deve ser considerada como universal e precoce, situando-se portanto bem
antes da tomada de consciência, por parte da criança, da diferença
anatômica entre os sexos (LE GUEN, 1997, p.6).
O masoquismo erógeno ou originário estaria, segundo Freud, presente desde o
início e seria manifestação direta da pulsão de morte, cuja finalidade é destruir
internamente o organismo. Entretanto, tal tendência primordial da pulsão de morte sofreria
o que Freud chama de um “amansamento” por parte da libido (Eros) e seria então dirigida
para fora como agressividade ou ainda acompanhando a função sexual enquanto
componente sádico. A parte desta pulsão de morte que não foi dirigida ao exterior, mas que
sofreu o processo de fusão com a libido e ficou no próprio organismo seria o masoquismo
originário ou erógeno. É interessante notar que esta conceitualização é claramente uma
maior elaboração do que foi por Freud descrito anteriormente em 1920 como masoquismo
primário, conforme descrito acima, e que o masoquismo erógeno se constitui como o que
há de originário na fusão pulsional e seria, por assim dizer, a matriz dos outros dois tipos: o
feminino e o moral.
O masoquismo moral designa o indivíduo que parece tirar alguma espécie de
satisfação de seu sofrimento, chegando inclusive a provocá-lo, independente de qualquer
relação com um objeto amoroso. Esta concepção já estava presente no texto O Ego e o Id
(1923), no qual se insere a presença de um sentimento inconsciente de culpa como
responsável por muitos insucessos na análise de certos pacientes que parecem obter
satisfações através de sua doença:
Ao final, percebemos que estamos tratando com o que pode ser chamado
de fator ‘moral’, um sentimento de culpa, que está encontrando sua
satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento. [...]
Mas, enquanto o paciente está envolvido, esse sentimento de culpa
silencia; não lhe diz que ele é culpado; ele não se sente culpado, mas
doente (FREUD, 1923, p.62).
107
Freud conjectura que se o uso lingüístico reteve a expressão “masoquismo” para se
referir ao indivíduo que parece se aproveitar de situações que lhe causem sofrimento, ou
mesmo de provocá-las, é porque na origem de tal atitude, na aparência unicamente
destrutiva, deve haver a participação de uma certa cota libidinal.
O sentimento inconsciente de culpa, subjacente a este masoquismo moral, seria
expresso fundamentalmente por uma necessidade de punição, buscada no superego ou nos
representantes parentais externos: “O fato do masoquismo moral ser inconsciente nos leva
a uma pista óbvia. Podemos traduzir a expressão ‘sentimento inconsciente de culpa’ como
significando uma necessidade de punição às mãos de um poder parental” (FREUD, 1924,
p.189). Cabe ressaltar, no entanto, que a questão do sentimento inconsciente de culpa já
ocupava claramente o pensamento de Freud (1907, p.133) no texto Atos Obsessivos e
Práticas Religiosas, no qual faz a seguinte observação acerca da neurose obsessiva:
Podemos dizer que aquele que sofre de compulsões e proibições comporta-
se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa, do qual,
entretanto, nada sabe, de modo que podemos denominá-lo de sentimento
inconsciente de culpa, apesar da aparente contradição dos termos.
Conforme já abordado no capítulo referente à neurose obsessiva, cabe enfatizar o
poder paterno e sua intrínseca relação com a culpa, que, por sua vez está articulada à
problemática edípica no pensamento freudiano. A culpa e punição podem ser postuladas
como formas ou manifestações da castração. Porém, via masoquismo, uma castração que
goza com seu lugar de passividade, ou seja, o próprio castigo se converte em condição para
um gozo masoquista.
Segundo Freud, enquanto a moralidade surge da “dessexualização do complexo de
Édipo”, o masoquismo moral promove um retorno da moralidade em direção ao complexo
de Édipo. A libido, anteriormente dessexualizada por ocasião da identificação com os
108
objetos de investimento, volta a sexualizar-se, oferecendo assim o suporte necessário à
manifestação da pulsão de morte através das satisfações sádicas e masoquistas
correspondentes, respectivamente, ao superego e ao ego. Através desta regressão, a
moralidade, ao torna-se sexualizada, poderia levar a um enfraquecimento do senso ético do
sujeito, que, por outro lado, passaria então a criar uma série de ações “pecaminosas” para
assim atrair a punição sádica que viria de sua consciência moral ou mesmo do Destino
como representante parental.
Partindo destas formulações, Freud conclui que o nascimento do senso ético no
indivíduo seria devido, em um primeiro momento, à atuação do poder paterno externo
sobre os investimentos libidinais, visando sua inibição. A partir de então, passariam a agir
a partir do próprio sujeito através de seu superego, que é a introjeção deste poder parental,
passando então a agir criticamente sobre as realizações do sujeito, controlando seus
investimentos.
É interessante notar que Freud utiliza a nova concepção em torno do problema do
masoquismo moral como prova de sua teoria acerca da fusão pulsional, elaborada em O
Ego e o Id (1923). Segundo ele, no masoquismo moral pode-se observar como a
autodestruição, atuação evidente da pulsão de morte, pode ser levada a cabo tendo por
suporte a satisfação do componente libidinal. Ou seja, desta forma fica evidente que as
manifestações “ruidosas” da pulsão de morte são evidenciadas, sobretudo, nos fenômenos
onde esta pulsão encontra-se vinculada à pulsão de vida: “Percebemos que, para fins de
descarga, o instinto de destruição é habitualmente colocado a serviço de Eros” (FREUD,
1923, p.54). Em Mal Estar na Civilização, Freud (1930, p.123) retoma esta questão da
fusão pulsional, mais uma vez em referência ao par sadismo e masoquismo: “Ao mesmo
tempo, pode-se suspeitar, a partir deste exemplo, que os dois tipos de instinto raramente
talvez nunca aparecem isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em
109
proporções variadas e muito diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para o nosso
julgamento”.
Na opinião de Freud, a inibição da agressividade, do “sadismo” dirigido ao mundo
externo, acarretaria o incremento do masoquismo do ego (masoquismo secundário) e do
sadismo do superego, sendo que ambos atuariam de maneira conjunta e mesmo
complementar. De fato, é possível averiguar no texto a presença marcante do aspecto
sádico do superego, que como “herdeiro do complexo de Édipo”, herda também o
componente agressivo dos investimentos objetais introjetados. Desta forma o ego, que
através do processo identificatório tenta atrair para si os investimentos libidinais do Id,
atrai também uma dose do componente agressivo do superego, expresso, sobretudo, em seu
rigor para com as realizações do ego.
Neste sentido, é possível postular que o objetivo da pulsão de morte é destruir o
organismo vivo e sua ação se processa em silêncio. A agressividade e destrutividade são
manifestações externas desta pulsão de morte, porém são frutos da fusão deste componente
com Eros que se gratifica com tais ações, além de salvar o ego da destruição, que poderia
ocorrer caso a pulsão de morte não tivesse sido projetada. Dentro de um ponto de vista
econômico, uma inibição da expressão desta destrutividade ao exterior acarretaria o
incremento da mesma no interior do organismo, levando-o à autodestruição. Desta Forma,
o “sadismo” e “masoquismo” seriam os exemplos clássicos da fusão dos dois tipos de
pulsão e, principalmente, constituem os eventos onde se pode ouvir o barulho das pulsões
de morte através da voz de Eros. O texto O Problema Econômico do Masoquismo (1924)
trata justamente da intrínseca relação entre o masoquismo e a questão econômica em torno
da fusão entre pulsão de vida e de morte. Seguindo o texto observa-se que a temática se
centraliza, sobretudo, na existência de um masoquismo originário, erógeno, momento da
primeira fusão das duas pulsões, anterior a agressividade dirigida para o exterior, e no
110
posterior desenvolvimento de um masoquismo moral, no qual o texto se detém e a
problemática econômica é aprofundada.
No entanto, ao tratar especificamente do masoquismo moral, observa-se que Freud
atribui também grande importância ao sadismo, especificamente o sadismo do superego.
Provavelmente isso se deve à complementaridade do fenômeno, no qual se faz necessário
pensar em um componente masoquista com sua contraparte que o satisfaça: o componente
sádico
23
. Desta forma, o próprio sadismo do superego postulado por Freud também é prova
dos fenômenos de fusão e desfusão pulsional, na medida em que o próprio rigor do
superego seria resultado da desfusão pulsional por ocasião da dissolução do complexo de
Édipo, mediante identificação do ego com seus objetos de amor. Através desta desfusão a
libido se tornaria sublimada, distante de seus antigos objetivos sexuais e a pulsão de morte,
que segundo Freud não pode ser sublimada, é tornada livre para dotar o superego com seu
rigor.
Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada
de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu
próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o
resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’,
está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que
o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A
tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós
chamada de sentimento de culpa; expressa-se como necessidade de
punição (FREUD, 1930, p.127).
23
Segundo Deleuze (1983, p.44-46), esta complementaridade entre o sádico e o masoquista é apenas aparente
e se deve a uma abstração do sádico de seu mundo e o masoquista do seu, para depois uni-los no que, grosso
modo, seria o casamento perfeito. Deleuze argumenta que não faz parte do “mundo sádico” uma vítima
masoquista, alguém que possa gozar dos sofrimentos que ele lhe inflige. Assim como não faz parte do
“mundo masoquista” um carrasco sádico, alguém cuja crueldade não seja intrínseca ao mundo masoquista.
Pelo contrário, o masoquista quer formar, educar, seu carrasco, ou seja, quem dirige a cena é,
fundamentalmente, o masoquista. Através desta linha de raciocínio, pode-se postular o quão enganoso pode
se tornar a concepção de um masoquismo como plena passividade. O mundo masoquista sempre será uma
montagem em que o sujeito figura como tal, autor, ator e diretor, ainda que o conteúdo desta montagem possa
sugerir a passividade, a submissão, o padecimento. No interior deste mundo masoquista, o sujeito nunca será
assolado por algo que lhe seja completamente extrínseco.
111
Paralelamente a esta questão econômica, é possível pensar na fantasia de ser
espancado pelo pai, derivada do desejo de ter uma relação passiva com ele, como
produtora do conteúdo manifesto de “necessidade de sofrer”, “de ser punido”. Dentro deste
prisma a punição ou o sofrimento, por um lado, representariam a própria fantasia e, por
outro, poderiam evocar a necessidade de ser punido devido ao sentimento de culpa
provocado pela realização do desejo, da fantasia edípica, atraindo assim a fúria do
superego. Ou seja, a própria punição gratifica, a um só tempo, a libido, através da
realização “disfarçada” da fantasia inconsciente sob a forma de sofrimento (o masoquismo
moral), e o componente agressivo do superego erotizado que se satisfaz sadicamente como
punição.
Assim sendo, o sentimento inconsciente de culpa de que nos fala Freud viria do
retorno das antigas fantasias incestuosas reativadas pela ‘erotização’ de certos aspectos do
superego, mas que são por ele mesmo condenadas e pedem a expiação através da punição,
que através disso as gratifica, gera mais culpa e mais punição num circuito aparentemente
interminável. Ainda tomando por base esta linha de raciocínio, pode-se dizer que esta
caracterização do masoquismo (moral) foi pensada tendo o indivíduo do sexo masculino
por modelo, caracterizando, desta forma o seu complexo de Édipo na forma negativa:
“relação passiva com o pai - espancado pelo pai - ‘espancado’ pelo superego”. Ou seja,
estamos no âmbito da passividade e da feminilidade na caracterização do sujeito, assolado
por algo que é plena atividade: a potência paterna, o referencial fálico, o superego
24
e seus
representantes. No texto Dostoievski e o Parricídio, Freud (1928, p.190) escreve:
Há algo de novo a ser acrescentado, a saber: que, apesar de tudo, a
identificação com o pai finalmente constrói um lugar permanente para si
mesma no ego. É recebida dentro deste, mas lá se estabelece como um
24
Vale lembrar que o superego como herdeiro do Édipo, mediante complexo de castração, é também um
“guardião”, um “protetor” da integridade narcísica do sujeito. Um protetor que traz em seu cerne a própria
ameaça a que deve sua origem.
112
agente separado, em contraste com o restante do conteúdo do ego. Damos-
lhe então o nome de superego e atribuímos-lhe, como herdeiro da
influência parental, as funções mais importantes. Se o pai foi duro,
violento e cruel, o superego assume dele esses atributos e nas relações
entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é
restabelecida. O superego se tornou sádico e o ego se torna masoquista,
isto é, no fundo, passivo, de uma maneira feminina. Uma grande
necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se oferece
como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos que
lhe são dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda
punição é, em última análise, uma castração, e, como tal, realização da
antiga atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última
instância, não passa de uma projeção tardia do pai.
Pode-se pensar no masoquismo como um fenômeno que é a própria manifestação
da pulsão de morte e seu conflito, desde a origem com as pulsões de vida que estariam, por
assim dizer, no pólo do narcisismo. O masoquismo segundo o enfoque freudiano poderia
ser pensado como algo estrutural anterior ao sofrimento, ligado mais primordialmente à
passividade e ao desamparo originais. Fica, porém, uma relação intrínseca entre o
masoquismo e a perversão que é sua marca de origem como noção. Como já foi abordado
neste trabalho, no que tange ao masoquismo há uma certa zona “indiferenciada”, de limites
pouco nítidos da neurose e da perversão. Constatamos a respeito de Uma Criança é
Espancada (1919) a aparente contradição entre o que diz seu subtítulo e os casos de
neurose apresentados por Freud. Neste sentido, Rosenberg (2003), fala sobre o
masoquismo moral como uma falha na organização neurótica: “Podemos dizer que, se o
masoquismo moral guarda a aparência da culpa com uma realidade de satisfação
masoquista, é para guardar a aparência da neurose com uma prática perversa escondida”.
(ROSENBERG, 2003, p.49) No entanto, pode-se também argumentar que o masoquismo
moral, embora distanciando-se explicitamente da perversão, não deixa de lembrar, na
forma pela qual o sujeito se coloca, uma montagem fantasmática perversa. Talvez o texto
de 1919, traga como revelação a marca da fantasia masoquista no paciente neurótico
25
,
25
Pode-se dizer, de forma um tanto genérica, que a fantasia do neurótico é perversa.
113
vista enquanto cena no sentido que emprestamos à perversão, porém trata-se de uma cena
estruturante que diz da passagem do sujeito pela vivência edípica. Nesta experiência, a
criança vivencia o outro que dela cuida como veiculando sua sexualidade intrusiva e
agressiva e representa isso em seu aspecto erótico e mortífero, ao mesmo tempo traumático
e “convocante” para a vida.
Segundo Freud, a pulsão de vida ou Eros seria responsável por propiciar a união
dos seres humanos em grupos, nas mais diversas formas de organização e complexidade,
abrangendo desde a família até a civilização de maneira geral, sendo que os vínculos que
sustentariam esses agrupamentos humanos seriam fundamentalmente libidinais. Por outro
lado, a pulsão de morte, quando expressa em termos de agressividade ou destrutividade,
trabalharia contra os interesses da civilização.
Freud (1930) escreve em O Mal Estar na Civilização que a forma utilizada para
“dominar” esta destrutividade seria introjetá-la no próprio superego do sujeito que então
passa a utilizar desse potencial destrutivo para, através do sentimento de culpa, controlar o
ego em suas relações com os mais diversos objetos. A autoridade outrora externa, de quem
a criança um dia temeu a perda do amor e a punição, é internalizada através do desfecho do
complexo de Édipo e se estabelece no próprio sujeito, passando a exercer um importante
papel no contínuo policiamento não só de suas ações, mas principalmente de seus mais
secretos pensamentos e desejos. “Nesse ponto, também, o medo de ser descoberto se
extingue; além disso, a distinção entre fazer algo mau e desejar fazê-lo desaparece
inteiramente, já que nada pode ser escondido do superego, sequer os pensamentos”
(FREUD, 1930, p.129). Freud diz que, nas primeiras etapas do desenvolvimento, ocorreria
a renúncia pulsional devido ao medo da autoridade externa; posteriormente, com a
introjeção dessa autoridade, o sujeito passa a temer o superego e prossegue na renúncia
114
pulsional, apesar desta não mais o proteger dos castigos da autoridade, justamente devido à
onisciência do superego com relação aos desejos inconscientes do sujeito:
[...] a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do
amor. Uma ameaça de infelicidade externa perda de amor e castigo por
parte da autoridade externa foi permutada por uma permanente
infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa [...] Nessa segunda
situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem
sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da
consciência continua a agressividade da autoridade (FREUD, 1930, p.131).
No entanto, observa Freud, as contínuas renúncias pulsionais, longe de livrar o
sujeito da agressividade do superego, a fortalece a cada renúncia. De certa forma, pode-se
pensar num círculo vicioso no qual a renúncia pulsional “cria” a consciência (por medo do
castigo e da perda do amor), e esta renúncia se mantém (embora ineficazmente),
objetivando evitar a agressividade da consciência, que, no entanto, se fortalece ainda mais
e passa a exigir mais e mais renúncias, indefinidamente. “O efeito da renúncia instintiva
sobre a consciência, então, é que cada agressão de cuja satisfação o indivíduo desiste é
assumida pelo superego e aumenta a agressividade deste (contra o ego)” (FREUD, 1930,
p.132).
Freud salienta que mesmo a agressividade herdada pelo superego é também fruto de
uma renúncia pulsional, e não simplesmente uma mera transposição da agressividade da
figura de autoridade para dentro do superego. De certa forma, essa agressividade primeva
teria se originado na própria criança tendo por alvo as figuras de autoridade, pois estes “a
impedem
26
de ter suas primeiras e, também, mais importantes satisfações” (FREUD,
1930, p.132). Entretanto, a criança tem de renunciar também a esta agressividade
27
e a
solução encontrada para este desfecho é a identificação com esta figura de autoridade,
26
No Homem dos Ratos, o ódio ao pai era fruto da interdição que este realizava em seus desejos sexuais...
27
Pois a figura objeto desta agressividade é também objeto de amor. Além disso, vale ressaltar, tal figura tem
importante papel no “complexo de castração”.
115
dando origem ao superego que, como vimos, herda esta mesma agressividade que um dia
esteve endereçada à autoridade externa.
O relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno,
deformado por um desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o
ego, ainda individido, e um objeto externo. [...] A diferença essencial,
porém, é que a severidade original do superego não representa ou não
representa tanto - a severidade que dele [do objeto] se experimentou ou
que se lhe atribui. Representava, antes, nossa própria agressividade para
com ele (FREUD, 1930, p.133).
Ou seja, é o componente pulsional agressivo do próprio sujeito, impedido pela repressão de
expressar-se no mundo externo, o responsável pelo rigor do superego.
Conforme observa Freud, um superego rigoroso não seria, necessariamente,
dependente da agressividade das figuras paternas. Uma figura paterna excessivamente
fraca, por exemplo, poderia acarretar o surgimento de um superego rigoroso na criança. Ao
receber irrestrito amor paterno, tal criança tomada pelo conflito devido à ambivalência não
poderia expressar sua agressividade, tendo por alvo figura tão “bondosa”, e a recolheria em
seu superego. De fato, com o novo dualismo pulsional torna-se possível resignificar a
questão da ambivalência emocional tendo em vista o conflito entre Eros e pulsão de morte.
Tal ambivalência manifestar-se-ia no sujeito sob a forma de intensos sentimentos de culpa,
pois a figura que se odeia também é amada. Ou seja, nossos investimentos estão sempre
mesclados das duas classes de pulsões e talvez Freud tenha em mente a inerência de tal
conflito ao dizer que a principal fonte de sofrimento provenha da relação dos homens entre
si: “O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que
qualquer outro” (FREUD, 1930, p.85).
É importante salientar que a relação “sadomasoquista” entre o ego e o superego
remonta às primitivas vivências edípicas da infância entre a criança e seus pais. A
dissolução do complexo de Édipo, além de ser determinante na constituição do sujeito,
16
deixaria como possibilidade a sua própria perpetuação através da ligação erótica entre um
superego sádico e um ego masoquista. Isto, de certa forma, explicaria a razão pela qual o
indivíduo, mesmo consciente da sua parcela de responsabilidade na determinação de seus
tormentos, sente-se incapaz de os evitar. Na verdade, seu ego está empenhado na tarefa de
atrair para si a fúria do superego e gozar da satisfação aí obtida, apesar do concomitante
mal-estar. Para Freud, trata-se de uma reedição em nível intrapsíquico da relação entre a
criança e a figura paterna. O sujeito, de certa forma, continua sendo uma criança em
posição passiva perante o poder parental, o que, de certa forma, faz lembrar a antiga cena
de sedução.
O medo desse agente crítico (medo que está no fundo de todo
relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma manifestação
instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de
um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado
para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma
ligação erótica com o superego (FREUD, 1930, p.139).
Com o objetivo de reconstituir filogeneticamente a trajetória do superego, Freud
retoma as idéias anteriormente expressas em Totem e Tabu (1913b) e afirma que naquele
tempo mítico do assassinato do pai primevo pelos filhos, a agressividade satisfeita através
de tal ato deixou como figura o amor que também lhe devotavam, dando origem ao
remorso e ao superego, via identificação com o pai morto. Desde os primórdios, então, o
superego tem a função de punir este crime de agressão original e de impedir a sua
repetição, e o faz através do sentimento de culpa, progressivamente incrementado na
história da humanidade e na história de cada sujeito pelas sucessivas renuncias da
agressividade que cada sujeito gostaria de satisfazer em outrem, mas que ao se abster
fortalece seu superego, que exerce sua tortura no sujeito.
117
O sentimento de culpa estaria presente em qualquer neurose, buscando nos
sintomas uma punição, o que reforçaria sua caracterização masoquista: “No decorrer de
nosso trabalho analítico, descobrimos, para nossa surpresa, que talvez toda neurose oculte
uma quota de sentimento inconsciente de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas,
fazendo uso deles como punição” (FREUD, 1930, p.141).
No entanto, o sentimento de culpa desempenha papel de destaque não apenas na
neurose, mas no indivíduo de maneira geral e, segundo Freud, isto parece ser uma
exigência da civilização. O indivíduo cede parte de sua agressividade para a autoridade
externa e interna; a primeira representada pelas instituições sociais e a segunda pelo
superego. De qualquer maneira, a renúncia pulsional, tanto das tendências eróticas quanto
das agressivas, é a grande exigência da civilização que, entretanto, parece atuar na
contramão dos interesses individuais, em benefício da comunidade:
Assim também as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal
e a que se dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar
entre si em todo indivíduo, e assim também os dois processos de
desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa
oposição hostil um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do
terreno (FREUD, 1930, p.143).
Ainda em referência ao prejuízo da felicidade individual, Freud diz que as
exigências do superego não levam em conta no seu rigor a posição pouco confortável do
ego, que além de observar suas leis (do superego), tem de atender tanto a pressão dos
impulsos do id, quanto às exigências da realidade externa (a servidão aos três senhores).
[...] mas corresponde fielmente à minha intenção de representar o
sentimento de culpa como o mais importante problema no
desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos
por nosso avanço em termos de civilização é uma perda da felicidade pela
intensificação do sentimento de culpa (FREUD, 1930, p.137).
118
A questão chave do texto, portanto, parece ser a questão de como o sentimento de
culpa é utilizado pelos interesses da civilização e de Eros para conter a agressividade,
porém a custa desta mesma agressividade dirigida pelo indivíduo contra si mesmo: “Que
poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode
causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade!” (FREUD, 1930, p.146). Toda
esta culpa que o homem é obrigado a suportar em benefício da cultura seria expressa,
talvez no melhor dos casos, por um mal-estar. Mal-estar difuso, sem sentido e,
aparentemente, sem motivação, que dissimula a culpa, buscando redimi-la das mais
diversas formas, dentre as quais, à título de exemplo, a religião, que chama esta culpa de
pecado e, sob a ótica freudiana, talvez tenha razão em nos chamar a todos de pecadores.
Fundamentalmente, pecado de incesto e parricídio, com castigo de castração, sendo a
culpa, a punição, o sofrimento suas emanações. O lugar do sujeito marcado por tais
infortúnios é um lugar de castração, de feminilidade. Condição para o gozo do pai... e do
filho.
Segundo Mezan (2006), o quarto e último período do pensamento freudiano,
período que se dá após 1920, seria marcado pela temática da violência. Violência
manifesta na repetição, na luta pulsional entre pulsão de vida e pulsão de morte, no Édipo e
na castração, na natureza ambivalente da identificação, na liberação de mais agressividade
através da desfusão pulsional que ocorre tanto na identificação quanto na sublimação.
Enfim, violência na luta permanente entre o ego e os “três senhores”: o id (pulsões), o
superego (moralidade) e a realidade (cultura). “Violência das pulsões, violência da
moralidade, violência da cultura, eis os fatores determinantes da angústia. Por sua vez, o
drama do ego consiste na oscilação perpétua entre dominar ou ser dominado, isto é, entre
exercer a violência ou sofrê-la na carne” (MEZAN, 2006, p.334, grifo meu).
119
10 - ARTICULAÇÕES ENTRE ALGUMAS FIGURAS DA PASSIVIDADE: O
MASOQUISMO, A PULSÃO DE MORTE, A FEMINILIDADE, A SEDUÇÃO E O
DESAMPARO.
O movimento do pensamento freudiano em torno da questão do masoquismo e da
passividade que procurei seguir parte de uma concepção que, por assim dizer, atravessa sua
obra: a concepção do homem em estado primário de desamparo (Hilflosigkeit),
dependendo totalmente de um outro para sua sobrevivência. Tal condição é retratada no
Projeto (1895) como a fonte dos motivos morais. Esta concepção pode ser utilizada para se
pensar no vínculo intersubjetivo que se estabelece desde seus primórdios, bem como a
possibilidade de se articular esta condição tanto com a teoria pulsional dos anos 20 quanto
com a segunda tópica.
No plano econômico, foi possível verificar o quanto o princípio de
constância/prazer é uma concepção negativa do prazer e que traz em si a possibilidade de
se pensar numa tendência mortífera dos circuitos do prazer
28
. No entanto, a pulsão é
pensada em sua positividade e atividade o que, de certa forma, passa a chocar-se com uma
série de fenômenos que poderíamos chamar de negativos. O primeiro destes fenômenos
inquietantes é o dos sonhos traumáticos que coloca em cheque tanto a tese do sonho como
realização de desejos quanto o próprio princípio de prazer. A saída de Freud, porém, num
primeiro momento, é através de outro fenômeno paradoxal, o masoquismo ou, para citar A
Interpretação dos Sonhos, “impulsos masoquistas” (FREUD, 1900, p.508).
Freud, porém, avança no plano teórico através de suas concepções dualistas quanto
à pulsão e a sexualidade humana, falando sobre os pares de opostos masculino e feminino e
28
Conforme Monzani,L. R., 1989, p.218-224.
120
atividade e passividade
29
. A passividade, contudo, é pensada não em si, mas como um fim,
um destino passivo, pois a pulsão é plena atividade, uma exigência de trabalho.
Entretanto, as figuras negativas não cessam de interrogá-lo através da clínica,
principalmente na neurose obsessiva e na melancolia, porém de maneira mais geral nas
manifestações da culpa. Neste sentido, seu pensamento avança pela questão paterna, no seu
progressivo poderio perante o sujeito, o que de certa forma sugere a posição infantil,
passiva e feminina deste. A potência paterna aparece em seu aspecto grandioso quer no
pólo do ideal, quer no pólo perseguidor, vide Homem dos ratos (1909), Totem e Tabu
(1913b), Introdução ao Narcisismo (1914), Luto e Melancolia (1917), Psicologia de
Grupo e Análise do Ego (1921), O Ego e o Id (1923), O Problema Econômico do
Masoquismo (1924). O texto de 1924, de fato, trata deste destino do Édipo, da permanência
desta potência paterna sexualizada no masoquismo moral que edifica a continuidade de
uma relação tipicamente feminina (masoquista) com o pai.
Paralelamente a esta ascensão do pai, o masoquismo ao longo do tempo ganha um
estatuto de primariedade graças à nova teoria pulsional dos anos 20 que postula também
uma primazia da pulsão de morte. A desde sempre positividade da pulsão tem agora ao seu
lado uma tendência negativa que a rege, um princípio de nirvana, retorno sob um enfoque
mais propriamente mortífero do antigo princípio de constância, de Breuer.
Se por este aspecto as figuras negativas da morte e do masoquismo adquirem um
maior destaque e articulação, a feminilidade parece continuar um enigma de difícil
articulação. Embora, é importante frisar, existam no pensamento freudiano fortes vínculos
entre o feminino e o masoquismo e entre o feminino e a morte. Sobre este último, basta
lembrar na morte como a terceira das três figurações do feminino no texto O Tema dos
Três Escrínios (FREUD, 1913). A ênfase de Freud, porém, não se desloca para a
29
Em Freud, isto deve ser contextualizado tanto com sua concepção da bissexualidade humana quanto com a
diferença entre os sexos, o que, por sua vez, diz respeito à castração.
121
feminilidade, mas recaí fundamentalmente sobre a figura paterna, sobre a identificação
paterna primária (em 1921 e 1923), sobre o referencial fálico e a conseqüente angústia de
castração.
Entre estas figuras da passividade, Freud avança até a castração como barreira que
impõe um limite, um repúdio da feminilidade (FREUD, 1937). Nossa argumentação,
porém, é que este repúdio não estaria ligado a uma angústia de castração, mas
fundamentalmente à condição passiva, feminina primordial que procurei articular com a
condição de desamparo já destacada por Freud desde o Projeto (1895) e com a hipótese
laplancheana de uma sedução generalizada e originária. No pensamento freudiano, porém,
é o referencial paterno que surge como uma resposta ao desamparo, uma proteção, cujos
destinos permanecem atuantes ao longo da existência do sujeito, através da eleição de
ideais, cujos exemplos clássicos são as figuras do líder e a religião. Ou seja, o pensamento
de Freud caracteriza uma continuidade do sujeito na condição desamparada, feminina e
infantil perante o poder paterno, principalmente através do superego. Freud chega a
articular o desamparo à castração, porém, preso a uma certa concepção “falocentrica”, não
chega a postular um primado da passividade, da feminilidade, apesar da primariedade da
pulsão de morte e do masoquismo o permitir.
Outro ponto a que Freud chega mais ao final da obra é a factualidade da sedução a
partir dos cuidados maternos, que Laplanche (1992) chama de sedução precoce. O que, tal
qual a abandonada teoria da sedução, supõe a passividade primeira, a condição de
desamparo e feminilidade frente a um outro que é ativo e invasor. Neste sentido, fica
possível postular uma sedução que não enfatize tanto a perversão do adulto, que, ao
contrário de outrora, passa a ser a mãe. Contudo, apesar deste avanço, Freud não fala de
uma feminilidade primária, não obstante continuar concebendo o sujeito (em posição
feminina) assolado por um pai perverso-sádico (permanência da Teoria da Sedução) e ao
122
mesmo tempo protetor-idealizado contra o desamparo (outra marca da posição infantil)
ou seria contra a mãe, contra o feminino? Estes, ou mais propriamente o feminino,
continuam, apesar das reviravoltas da sedução, apesar da pulsão de morte e do
masoquismo, sendo um rochedo de difícil transposição no pensamento freudiano.
Meu percurso até aqui objetivou a evolução do conceito de masoquismo no
pensamento freudiano, pensando-o como uma matriz de passividade originária que, no
entanto, em um “momento seguinte” passa a dialogar com sua referência oposta: a
atividade, resposta singular do sujeito frente ao que lhe convoca e provoca. Há aí, neste
movimento, como o mostra a vida e a clínica uma ampla gama de saídas possíveis,
algumas pendendo mais para um pólo, outras para outro.
Os vínculos teóricos entre o masoquismo, a passividade e a feminilidade foram
feitos por Freud desde o início de sua obra e assim se mantiveram com poucas
modificações até o final. No entanto, na medida que seu pensamento avançava através da
clínica e de suas indagações, principalmente no que se refere à neurose obsessiva e à
melancolia, o problema do masoquismo se enriquecia e dialogava com outros conceitos e
formulações emergentes. Pode-se enumerá-las pensando na expressão de “gozo” do
Homem dos Ratos, nos criminosos em decorrência do sentimento de culpa, na relação que
começa a se estabelecer entre o masoquismo e a questão paterna (questão que desembocará
no superego), na hipótese de uma pulsão de morte que torna possível pensar em uma
primariedade do masoquismo, nas relações ente o masoquismo e a segunda tópica e no
repúdio da feminilidade (FREUD, 1937) que diz respeito ao limite da castração.
O masoquismo coloca, nos Três Ensaios (FREUD, 1905) um problema econômico
a partir do princípio do prazer, no que seria, grosso modo, um prazer no desprazer. Como
já foi dito, um outro ponto no qual o masoquismo inicialmente interroga é o modelo da
realização de desejos da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900), como algo que
123
contraria esta tese. Neste sentido, é interessante notar que o masoquismo vai ganhando
progressivamente maior compreensão quando articulado à culpa, depois à pulsão de morte
e ao superego, sendo o fenômeno por excelência em que se postula (desde o masoquismo
erógeno/originário) a fusão das duas pulsões. No entanto, apesar desta “promoção” do
masoquismo, através do postulado de uma pulsão de morte, a feminilidade continua, de
certa forma, sendo um enigma em Freud e não gozando de tal primazia.
A matriz de passividade originária, que aqui articulo à sedução originária
(LAPLANCHE, 1988), pode ser também relacionada com o chamado masoquismo
erógeno/originário que é o momento da primeira fusão pulsional. Momento situado nos
primórdios da subjetividade, anterior ao narcisismo, relacionando-se, como destaca
Rosemberg (2003, p.85-90), à condição de desamparo do humano. A posição de
Laplanche situa o plano da sexualidade infantil com um momento segundo, assentado
sobre o plano da auto-conservação, por apoio, e, portanto, sob a égide de um outro que
vem dar conta do desamparo infantil. Ou seja, pode-se pensar também na referência
primária de passividade, levando-se em conta o outro primordial que faz nascer na criança,
implantando na mesma, ainda que num segundo tempo, a sexualidade e a fantasia. Neste
sentido, Laplanche critica a solução freudiana das fantasias originárias que implicam uma
atividade espontânea, endógena, do sujeito sob a forma de fantasias que lhe preexistem.
A chamada teoria da sedução é uma referência a esta condição primeira de
passividade frente ao outro
30
. Outro referenciado em Freud à figura do pai, que
primeiramente é postulado como perverso que vem corromper a inocência infantil, mas
que depois é redimido, e a perversão, via fantasia, passa a ser situada na própria criança. O
pai, no entanto, continua a atacar, ainda que no plano fantasmático, e assume
30
Na teoria da sedução, o Édipo não figura, tudo provém do adulto e a criança é totalmente passiva.
Passividade relacionada à etiologia das neuroses, mas que dentro de nossa argumentação relacionamos a uma
“etiologia” do sujeito. O “abandono” da teoria da sedução por Freud, como aponta Laplanche (1992),
promoveu também um relativo abandono do que é uma dos postulados fundamentais da psicanálise: o
descentramento do sujeito.
124
progressivamente um duplo aspecto: como protetor, no plano dos ideais, e como agressor,
no plano de uma moralidade sexualizada via superego. Apesar da fantasia colocar em
destaque uma atividade que surge do sujeito (como autor das fantasias), a marca do desejo
supõe a tentativa de reedição de uma condição primeira de passividade frente ao outro
paterno.
Na fantasia de sedução, a ênfase fica na sexualidade, porém via sujeição (no
conteúdo da cena) frente a um outro que opera em uma outra linguagem, sendo que o
caráter de agressão viria da própria assimetria, em tudo que ela comporta, entre o adulto e a
criança. Em Freud, porém, até o texto Uma Criança é Espancada (1919), não há uma
ênfase no masoquismo que este caráter sexual agressivo e de passividade permite postular
partindo-se do próprio conteúdo da cena. Não há uma articulação da dimensão do desejo
como motor da fantasia (portanto, do aspecto do sujeito como autor da cena) com o
conteúdo de passividade masoquista.
No entanto, na fantasia de espancamento, tal qual Uma Criança é Espancada
(1919), fica em relevo a expressão A Criança que Fantasia (ou seja, o autor da cena) por
oposição ao personagem da cena. Há toda a ênfase na sexualidade, como na fantasia de
sedução, porém aqui, ao lado do papel passivo do sujeito, há também um certo caráter
ativo na medida em que produz algo ainda que imaginariamente. Acontece que aquilo que
é produzido conta a história de si mesmo como estando em posição passiva, sofrendo à
mercê do outro, novamente o pai. Esta articulação do ativo do desejo na produção da
fantasia com a caracterização do próprio sujeito como objeto na cena, como padecendo, é o
que determina mais propriamente seu aspecto masoquista. Aqui a agressão não advém da
simples assimetria, há algo mais declaradamente agressivo o pai, ou seu substituto bate.
O apanhar nesta fantasia atua como substituto do sofrer o coito, uma satisfação regressiva
125
e, sobretudo, passiva. Parece também que, neste contexto, o vínculo amor versus ódio fica
mais em destaque.
Minha linha de raciocínio parte da relação de oposição freudiana passividade
versus atividade pensada contra este pano de fundo do desamparo, condição que é possível
pensar como da passividade extrema e inaugural, condição que diz respeito ao fato do
animal humano necessitar de um outro (numa relação primariamente masoquista) para
tornar-se humano e sujeito. Em termos intersubjetivos, essa relação primordial se dá como
assujeitamento frente ao outro que, a posteriori, assume o papel grandioso e ideal de
protetor frente ao desamparo. Porém devido à dualidade da pulsão, à ambivalência, o outro
também é experenciado e fantasiado como agressor, sedutor, perseguidor. Tanto a
assimetria criança-adulto quanto a dualidade da pulsão deixam suas marcas na constituição
do sujeito e seus vínculos intersubjetivos futuros.
Desta forma, o masoquismo apresenta um problema econômico fundamental que
atravessa o pensamento freudiano, mas também um problema intersubjetivo que diz
respeito a esta condição primordial de desamparo frente à pulsão e frente a um outro que
exige algo de mim. Vínculo com um outro que assume o caráter de cuidador, protetor (no
pólo do ideal), mas também o pólo do condenador, do perseguidor, de uma lei moral
muitas vezes insensata, que submete o sujeito, tal qual um outro sádico (pólo superegóico).
Dentro deste enfoque, o masoquismo poderia ser visto como defesa contra a
angústia da condição primária de desamparo. Conforme Rosemberg (2003, p.90), “[...] é o
masoquismo primário erógeno que torna possível ao pequeno ser humano suportar o
desamparo primário, e é ao mesmo tempo o primeiro aparecimento da co-excitação”. Ou
seja, este modelo do masoquismo como defesa contra o desamparo permite compreender a
possibilidade posterior de erotizar a dor e o sofrimento. Neste sentido, utilizando um
exemplo de inscrição no próprio corpo, pode-se pensar naqueles que se auto-mutilam para
126
não ficarem submetidos (submissão/desamparo) à angústia, como forma de “sentirem-se
vivos”, uma forma de ligação ainda que resulte em uma outra ordem de sofrimento
31
. Desta
forma, se o desamparo é uma primeira referência, a submissão é uma segunda. Momento,
portanto, de uma relação assimétrica frente a um outro que está ao mesmo tempo no pólo
da ação, mas também da invasão. Sob este prisma, o masoquismo em si é uma saída, é uma
condição segunda, uma resposta, uma ação, uma defesa contra a passividade, e não a
própria passividade. Talvez uma primeira forma de se repetir ativamente (como no fort-da)
uma experiência inicialmente passiva de desamparo. No plano econômico, é importante
enfatizar, o masoquismo não é sinônimo de pulsão de morte, mas a própria fusão desta
com Eros. A pulsão de morte, por si, seria a tendência de conduzir o organismo ao
inorgânico, porém esta fusão primordial, o masoquismo erógeno, garante, segundo Freud, a
possibilidade de sobrevivência do organismo, marcando a estruturação do sujeito psíquico.
A relação com o outro adulto que cuida é uma saída, já no plano
erótico/masoquista, ao desamparo; uma saída na qual o sujeito está passivo perante um
outro ativo, mas é uma saída vital. Trata-se de um momento segundo da passividade: uma
passividade marcada pela sexualidade que vem do outro. Isso, de certa forma, situa este
momento originário dos primórdios da intersubjetividade como algo marcado
primariamente por uma referência masoquista, ainda que isso seja uma construção a
posteriori. O desamparo, então, seria o correlato de uma condição inicial de morte psíquica
da qual o sujeito possui a condição potencial de emergir. É necessário que esta relação com
um outro, outro que neste momento ainda não existe como tal, seja erotizada e é a isto, no
plano econômico, que responde o primeiro masoquismo: a fusão da pulsão de morte
32
com
Eros. É importante salientar que a radicalidade da passividade é uma referência a um
31
O mesmo movimento pode ser conjeturado a partir das afecções psicossomáticas.
32
Relacionada por nós, num outro plano, à condição de desamparo.
127
momento originário, impalpável, mas que é necessário postular teoricamente, para a seguir
relativizá-lo no plano da experiência.
O desamparo é fonte do traumático, mas também o é o encontro com o outro, que
minimiza os efeitos deste desamparo até que o sujeito “não mais” esteja nesta condição.
Seria realmente possível ultrapassar esta condição? Para Freud, não. Trata-se de algo
estrutural e seu exemplo crucial para o demonstrar é a religião: forma de continuidade da
relação infantil e passiva perante o pai (deus). O desamparo diminui ao longo dos anos e a
autonomia aumenta, mas somos estruturalmente desamparados e a castração parece ser
uma referência constante nesta estruturação, porém uma referência a posteriori.
Este encontro com o outro é uma condição para ultrapassar o desamparo, mas é
uma referência também de passividade, numa relação assimétrica entre alguém que está
nesta condição (desamparada) e outro que “não”. Entre um que age e outro que padece,
entre um ativo e um passivo (modelo de sexualidade, para Freud). Ou seja, trata-se de
pensar este desamparo como uma condição feminina primordial, uma passividade do
sujeito que talvez explique o repúdio da feminilidade (FREUD, 1937), justamente pelo
traumatismo inicial que comporta (este traumatismo é minimizado em maior ou menor
grau pelos cuidadores). Entretanto, é neste encontro assimétrico, a partir do desamparo,
que nasce a subjetividade, como exigência de um “deciframento”. O pólo da atividade
(adulto) assedia e exige, segundo Laplanche (1988), uma resposta aos significantes
enigmáticos que oferece à criança; significantes que, entretanto, constituem um enigma
para o próprio adulto, veiculando sua sexualidade inconsciente
33
.
É interessante salientar que estas duas faces do outro (faces matizadas pelas duas
pulsões) vão ser assumidas no sujeito dividido da segunda tópica por seu supereu. O
sujeito ao longo da existência será atraído para ambos pólos, mas também para os que
33
Laplanche (1992) chama este “resto” não passível de tradução de objeto fonte da pulsão.
128
compõem sua relação frente a este outro de duplo aspecto: os pólos de sujeito e objeto, do
agir e de padecer de seu destino. Sustento, no entanto, que nascido o sujeito até mesmo
este padecer já é um agir, o que nos leva a um caráter inescapável do sujeito com relação a
si mesmo, a dimensão ética de seu sofrimento. O padecer, neste sentido, tem uma força de
atração oriunda da condição primeira do humano. O sujeito que vive sua experiência neste
pólo do padecimento e do outro (o supereu e seus representantes), que assume um matiz
sádico, agressivo, estaria reeditando sua condição infantil de desamparo, de passividade.
Esta é a lógica do raciocínio de Freud a respeito do homem frente à religião tal qual
demonstrada em Futuro de uma Ilusão (1927) e também da massa frente ao líder em
Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921). Neste último, tanto a posição do indivíduo
perante o hipnotizador, quanto a da massa frente ao líder são reedições de uma condição
infantil do sujeito perante o pai. A figura paterna, segundo Freud, sobrevive como ideal de
eu e como superego. São, por assim dizer, resíduos da condição primária de desamparo.
A hipnose contém um elemento adicional de paralisia derivado da relação
entre alguém com poderes superiores e alguém que está sem poder e
desamparado [...] É de notar que, mesmo existindo uma completa
submissão sugestiva sob outros aspectos, a consciência moral da pessoa
hipnotizada pode apresentar resistência. Porém, é possível que isso se
atribua ao fato de que na hipnose, tal como é habitualmente praticada,
pode ser mantido um certo conhecimento de que o que está acontecendo
seja apenas um jogo, uma reprodução inverídica de outra situação muito
mais importante para a vida (FREUD, 1921, p. 125 grifos meus).
Há, portanto, um aspecto traumático inerente ao desamparo que impõe, num
“segundo momento”, uma passividade sexualizada frente ao outro como saída ou resposta
possível. O estar à mercê do outro, no entanto, estabelece um vínculo masoquista em que
se é objeto, em que se coloca passivamente, porém é também condição para se erguer
como sujeito da ação, como aquele capaz de agir no mundo. Ou seja, embora o fundo seja a
passividade, desde muito cedo há um jogo de forças conflitante com a atividade nascente a
129
partir de um chamado do outro. Outro que veicula tanto a permanência do modelo passivo,
via condição estrutural de desamparo, quanto à exigência de uma resposta do sujeito (o
outro interroga). Resposta ao humano e ao responder o pequeno ser se faz sujeito humano.
O adulto, porém, como já foi conjeturado em capítulo anterior, vivencia também sua
passividade frente ao bebê que, de certa forma também o interroga, exige também uma
resposta, num movimento dialético. A referência da passividade, de ser interrogado,
permanece, apesar da emergência do sujeito como ser responsivo, como uma condição
primeira, fundamental, mas também última, marca da pulsão de morte, no início e no fim.
Acontece que Freud tem como ponto de partida e chegada a referência paterna e
pensa o sujeito masculino. Ou seja, trata-se fundamentalmente da relação do sujeito com o
seu pai vide Totem e Tabu (1913b). Com relação ao desamparo, é possível constatar em
Freud que é a figura do pai que vem dar conta desta condição estrutural que se mantém e
que tem relações estreitas com a castração. É o pai e seus representantes, no pólo
intrapsíquico: o superego; no pólo da realidade: seus substitutos, que estão erigidos como
protetores contra a angústia, mas, paradoxalmente, também como castradores e
dominadores. A mulher, porém, é quem atesta a realidade da castração e a castração é o
castigo por um crime, crime contra o pai figura mítica que tem o monopólio do comércio
sexual e sua satisfação total, sem mediação
34
. Segundo Mezan (2006, p.282),
[...] a castração passa a ser uma possibilidade efetiva, e o medo de perder
seu órgão mais importante se instala no menino. Com ele se instala
também a percepção ainda confusa de uma outra relação possível entre os
adultos e as crianças, a relação da violência e da dominação, que subverte
completamente a realidade psíquica infantil.
34
Depois do crime, o pai continua vivo, agora no interior do sujeito, com mais força, e o sujeito não pode se
apossar do que sempre foi prerrogativa do pai. A mulher continua inacessível...
130
Ou seja, a relação entre a castração e a destrutividade se estabelece no pensamento
freudiano a partir da potência paterna e da pulsão de morte, e é talvez devido a isso que
também o superego comporta o ambíguo papel de protetor (narcísico) contra a castração e,
ao mesmo tempo, na sua violência para com o eu, como a própria marca viva da castração.
No entanto, uma outra referência além da fálica e da castração é a da feminilidade. O
repúdio da feminilidade (FREUD, 1937) talvez diga respeito não à angústia de castração,
mas a esta condição de passividade, de já estar castrado, de ser um objeto do desejo e da
agressão do outro, de continuar à sua mercê. A angústia de castração poderia ser vista
também como tentativa, um desejo, de uma emasculação do sujeito, sua transformação em
mulher.
Enquanto, do ponto de vista econômico, a referência ao masoquismo surge como
momento fundador da fusão pulsional, do ponto de vista da subjetividade e da
intersubjetividade surge em função do desamparo humano, da exigência de estar
primariamente assujeitado ao outro. Ou seja, trata-se de um movimento que vai do
desamparo à sujeição. O problema do masoquismo interroga, então, a partir da
feminilidade e desta relação primária de sujeição. A princípio estamos todos nesta
condição feminina, receptiva, passiva. O referencial fálico, conforme sustenta Ribeiro
(2000), surge apenas num segundo momento, sendo o momento primário marcado pela
sedução originária, numa relação de invasão, de passividade, de feminilidade.
Freud pensa uma primazia do falo que sustenta o complexo de castração. Porém,
pode-se conjecturar como Ribeiro (2000, p.287), conforme já exposto em capítulo
precedente, em uma feminilidade originária, sendo a castração fundamentalmente uma
fantasia marcada pelo desejo (do menino “voltar” a ser como a mãe), o que justificaria a
hipótese de uma identificação feminina primária. Para Ribeiro, a referência fálica, não só a
presente no pensamento de Freud, mas a do humano e, neste sentido, da cultura, se
131
constitui mediante o recalcamento da condição de feminilidade originária que lhe é
subjacente (RIBEIRO, 2000, p. 257). A passividade e a feminilidade, portanto, seriam
primárias no ser humano, uma primeira referência que, em termos pulsionais, talvez diga
respeito a um primado da pulsão de morte, da ausência primária de ligação. Ultrapassado
este momento originário quando então ocorre a primeira ligação o masoquismo erógeno
algo começa a dirigir-se para fora, a visar, surge a atividade, a ação, o caráter ativo da
pulsão. A passividade inaugural passa a “conflitar” com a estrutura ativa da pulsão no que
tem de erótico, produzindo efeitos que trarão as duas marcas. No entanto, a que mais se
fará sentir será a marca ativa, positiva, fálica. A marca passiva, embora primária, atuará em
silêncio, mas tornar-se-á evidente no masoquismo, na culpa, na reação terapêutica
negativa.
Ao lado desta tendência ao passivo (marca da pulsão de morte), destaca-se,
paradoxalmente, a defesa contra esta passividade representada por tudo que é vital e que se
lança ao mundo em busca de ligação (marca erótica). Portanto, nesta conflitiva montada,
talvez o elemento mais recalcado, mais inacessível ao sujeito seja precisamente o pólo
passivo, da feminilidade. O que fica mais em evidência nas montagens fantasmáticas do
sujeito desta relação conflitante entre passividade e ligação/atividade é o pólo ativo,
representado principalmente pelo que lhe é alheio, a dimensão da alteridade. Nas fantasias
de sedução e espancamento, no masoquismo moral, assumindo um caráter relacional,
intersubjetivo, em que na cena montada o indivíduo está em posição passiva frente a um
outro que pode ser alguém de suas relações, alguém desconhecido ou até forças
impessoais, porém alguém que goza. O sujeito, porém, se furta a reconhecer que também
goza. A ênfase fica no pólo sádico, encarnado pelo outro, que fica em um lugar de
atividade, de destrutividade, de violência, de domínio. O sujeito, pelo contrário, fica na
posição do padecimento, de quem sofre o coito, na posição feminina, castrada.
132
Dizer que a cena de sedução é vivida passivamente não significa apenas
que o sujeito tem um comportamento passivo nessa cena, mas ainda que a
suporta sem que ela possa evocar nele qualquer resposta, sem que ela faça
eco a representações sexuais: o estado de passividade é correlativo de uma
não preparação, a sedução produz um “pavor sexual” (Sexualschreck)
(LAPLANCHE e PONTALIS, 1994, p.470, grifos meus).
Relaciono este estado de não preparação com o de desamparo mediante o qual o
sujeito é lançado ao mundo e está primariamente “condenado” a estar à mercê de outro do
qual depende sua sobrevivência. O fato de este outro ser atravessado pela sexualidade, pela
fantasia inconsciente, vai exigir do sujeito uma resposta que, progressivamente, o tira deste
primeiro momento originário de sujeição total. O estado de não preparação é algo
paulatinamente ultrapassado e o novo sujeito emerge. Há uma referência primeira de
dependência total, de sujeição total que é possível associar com a condição de desamparo e
com a sedução originária (LAPLANCHE, 1988), pelo sujeito ser de fato seduzido por um
adulto, seduzido de forma a nascer como sujeito, seduzido de forma a despertar sua
sexualidade a partir da sexualidade e do desejo que vem do outro. O despertar da
sexualidade apoiada não só nos cuidados maternos, na autoconservação, mas também na
sexualidade do adulto no que esta é enigma inclusive para si mesmo. Sexualidade que
nasce auto-erótica num tempo segundo, tempo da atividade, da ação, que jamais
abandonará o sujeito enquanto tal, enquanto sujeito da ação. Porém, a referência da
passividade primeira se manifestará através de diversas figuras, na fantasia e na vida,
através de um masoquismo que constitui a confluência da passividade com a atividade,
marca do sujeito enquanto tal e de sua fantasia.
No que diz respeito a uma vertente moral do masoquismo, a ênfase parece estar que
algo ou alguém esteja neste papel de sádico, ou seja, o sujeito prioriza o sadismo do outro e
mantém recalcada sua posição masoquista. Ou seja, no âmbito intrapsíquico, o que figura é
a ação sádica do superego contra o eu. Meu argumento é que, na verdade, trata-se de uma
133
submissão ativa, dirigida, ainda que sem o saber, que faz uso do outro como um meio para
atingir esta cena masoquista em que se está à sua mercê, sendo por ele humilhado, usado,
etc. Para Freud, isso seria uma posição feminina, passiva, infantil, frente ao outro
(fundamentalmente, o pai). “O superego se tornou sádico e o ego se torna masoquista, isto
é, no fundo, passivo, de uma maneira feminina” (FREUD, 1928, p.190). Porém, o que se
pretende aqui é enfatizar o papel de sujeito como autor da fantasia o que remete talvez à
primazia do masoquismo como pólo do passivo, no âmbito da submissão, mas também de
uma primazia da ação no plano da sexualidade e da fantasia (LAPLANCHE, 1985, p.105).
A priorização de um outro sádico parece conduzir a uma “desresponsabilizaçao” do sujeito
e o peculiar posicionamento de vítima perante seus tormentos, vítima do pai, vítima do
destino, vítima do que desde o início o ultrapassa. Porém, além de vítima, de objeto,
também sujeito, pólo da atividade, da responsabilidade (resposta) àquilo que lhe assedia
desde a origem.
134
11 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Particularmente, a questão do masoquismo merece nossa atenção no mundo
moderno. É, pois, relativamente comum ouvir alguém se referir ou a outrem como
masoquista, no sentido de ser alguém que parece “gostar de sofrer”, por mais paradoxal
que isto lhe pareça. O “gosto” pelo sofrimento, embutido na sentença, parece provir de
uma certa repetição de situações que têm em comum o sofrimento e a participação, ainda
que sutil, do indivíduo objeto da sentença. É interessante notar que a tomada de
consciência deste movimento por parte do sujeito constituí um duplo sofrer: sofre-se por
prazer e, depois, através da autocondenação, por buscar prazer em forma tão destrutiva. De
fato, Freud foi quem primeiro conjecturou a satisfação erótica presente nestes casos, ao
atentar para a própria utilização lingüística do termo “masoquismo”, para designar, além da
perversão masoquista, também os indivíduos que parecem provocar, quase que
voluntariamente, situações de sofrimento e aparente desprazer, na busca compulsiva por
punição na tentativa de aplacar uma culpa inconsciente.
Mais uma vez em referência ao movimento que vai de uma manifestação patológica
específica até chegar em algo ligado à estruturação do sujeito psíquico, é interessante
observar como Freud, partindo da perversão masoquista, chega a conjecturar, através do
novo dualismo pulsional da década de 1920, o masoquismo originário, ligado tanto à
pulsão de morte quanto ao erótico (Eros). Neste sentido, tais conceitos se entrelaçam
dinamicamente ao conceito de superego, o que além de ampliar nossas concepções
teóricas, nos auxiliam na compreensão clínica.
Quanto ao conceito de superego estritamente ligado à questão do masoquismo,
pode-se considerar que sua ação se processa segundo os interesses da civilização, na
135
medida em que “controla”, através da ação do mecanismo psíquico da culpa, as satisfações
pulsionais do sujeito, principalmente no que se refere aos seus impulsos agressivos ou
destrutivos, relacionados à pulsão de morte. No entanto, é possível constatar, seguindo o
texto freudiano, que há um alto preço a ser pago: um incremento substancial desta mesma
agressividade no próprio superego que, com mais rigor, tortura o sujeito através da ação
implacável da culpa, o que tende a restringir ainda mais suas realizações. Toda esta culpa,
decorrente da inserção do homem na cultura, trabalharia contra os interesses da felicidade
individual, porém, de certa forma, em consonância aos interesses de Eros, da reunião de
homens em grupos, enfim da civilização.
Embora este aspecto do superego como “representante” da cultura seja de suma
importância, pode-se argumentar que, em termos dinâmicos e econômicos, a sua relação
com o ego se faz através da atuação da pulsão de morte, por ele (superego) assumida
através de cada renúncia da expressão desta pulsão no ambiente externo. Ou seja, o
superego é também “representante” da pulsão de morte, na relação sádica que estabelece
com o ego.
Na gênese do superego, como foi visto, está o complexo de Édipo que sedimenta
uma relação e sua interdição na própria estrutura do sujeito. A agressividade que fora
dirigida contra as figuras de amor incestuoso, ao ser posteriormente assumida pelo
superego, quando da dissolução do complexo, passa a “atacar” o ego com suas exigências
ideais e com punições. Desta forma, perpetua-se, num processo de repetição, a primitiva
relação edípica, na qual agora são protagonistas um superego sádico e um ego masoquista,
numa relação onde se mesclam em diferentes graus elementos eróticos e agressivos.
De certa forma, supera-se o paradigma da perversão no tocante ao par sadismo-
masoquismo, ao se ingressar no campo propriamente da moralidade. No entanto, trata-se
de uma moralidade sexualizada e, seguindo o caminho freudiano, pode-se dizer que toda
136
moralidade tem por substrato o sexual edípico. Desta maneira, concebe-se que o
sofrimento psíquico acaba por desempenhar um importante papel no jogo de forças
pulsional. Afinal, trata-se de uma relação masoquista do sujeito consigo mesmo, na qual se
obtém uma satisfação que é custosa renunciar.
Muitos pacientes colocam-se perante seu sofrimento como se não tivessem escolha.
De certa forma, terceirizam a responsabilidade para outros, familiares, pessoas de seu
convívio, o destino, deus ou o demônio. Há um outro sádico que persegue, que atrapalha,
mas que se considera sua satisfação em nos prejudicar. O que fica de fora dessa montagem,
que pode adquirir conotações variadas chegando até o delírio, é o pólo masoquista. Seria
precisamente esse que atestaria a participação do sujeito no que aqui chamo de montagem
de uma cena trágica e traumática. Sabemos desde Freud que o outro a quem se atribui a
perseguição e gozo sádico é o superego que adquire, segundo a singularidade do sujeito, as
conotações mais variadas. Sua hostilidade se mostra com sua mescla erótica e culposa e
mantém o sujeito longe da responsabilização sobre o próprio sofrimento. Este outro sádico
apresenta-se em sua face perversa e faz do paciente o objeto dos seus caprichos, da sua
fúria, do seu prazer, da sua destrutividade. Ou seja, trata-se aqui da mesma estrutura que
fundamenta a cena de sedução e a cena de “espancamento
35
”: há um outro que assedia ou
que bate. A outra face da moeda, precisamente a de mais difícil acesso
36
, é a do próprio
sujeito em posição feminina, passiva, masoquista. Porém, fornecendo o roteiro e dirigindo
a cena, colocando-a em movimento através de seu desejo. Desta forma, atividade e
passividade se entrelaçam e chegamos ao caráter também ativo do masoquismo na
estruturação da cena.
35
Conforme texto Uma Criança é Espancada (FREUD, 1919).
36
Vale lembrar que em Uma Criança é Espancada (FREUD, 1919) a cena masoquista é a mais importante e
a que permanece inconsciente. A fantasia relatada pelos pacientes de Freud aparenta ser sádica (uma criança
apanhando de um adulto e o sujeito que a fantasia obtendo satisfações masturbatórias), mas na verdade
encobre uma fase anterior da fantasia: a do próprio sujeito em posição de quem apanha, obtendo daí
satisfações masoquistas. Conforme já foi enfatizado, a primariedade masoquista fica oculta ao próprio
sujeito.
137
O que fica oculto é que o paciente é, paradoxalmente, sujeito da cena que constrói,
não é mero “padecende”, mas agente sem o perceber, é agente na medida em que constrói
algo, uma cena, uma montagem, um sonho, na qual sua posição é de passividade, de
vitimização. Algo, porém, lhe apraz nesta cena que como sabemos é a fantasia de Uma
Criança é Espancada. É possível postular que a antiga fantasia de sedução pode variar e
mostrar seu outro pólo (masoquista), precisamente o pólo que o sujeito esconde de si
mesmo em seu processo de “terceirização”, na sua covardia moral.
A fantasia, como vimos, não comporta apenas a dimensão sexual presente em uma
cena que o sujeito gostaria de ver realizada, embora interdita, da consumação da sua união
com o outro primordial que cuida, alimenta e protege. Este mesmo outro é fonte de ataque,
de invasão, de transbordamento e isso na fantasia é reproduzido desta forma quer como
sedução que mostra uma assimetria quer como uma violência mais declarada, como no
espancar. Em ambas, porém fica o prazer sexual o que demonstra a coerência interna do
pensamento freudiano ao longo do tempo até desembocar em uma hipótese fundamental
como o dualismo pulsional dos anos 20.
A passividade, porém, é uma referência estrutural que é necessário ultrapassar para
que advenha o sujeito, mas é também uma marca que retorna, que se repete através de uma
serie de fenômenos. Na neurose, o sofrimento é experimentado como padecimento e
novamente como sujeição a um outro. Ao mesmo tempo sujeição, dependência,
sobrevivência, mas violência. Isso tudo reproduzido na fantasia e no sintoma. Talvez este
seja um dos pontos mais obscuros para o sujeito acerca de si mesmo. Como conceber que
sou roteirista e diretor numa cena em que apareço como a vítima? Há, neste sentido uma
colocação de Deleuze (1983) que gostaria de reproduzir com referência à caracterização do
indivíduo masoquista na obra de Sacher-Masoch: “De uma outra maneira o herói
masoquista parece educado, formado pela mulher autoritária, mas mais profundamente é
138
ele que a forma e a disfarça, e sopra para ela as palavras duras que ela lhe diz. É a vítima
que fala através de seu carrasco, sem comedimento” (DELEUZE, 1983, p.26). Na
montagem de uma suposta cena perversa em que se é precisamente o alvo, objeto,
desaparece o pólo masoquista que seria precisamente o que permitiria colocar-se a
responsabilização do sujeito, sua escolha, seu caráter ativo, de sujeito da determinação da
cena, da fantasia marcada pelo desejo, que é também encenada na experiência.
139
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