porta da igreja que chegassem os missionários com o cortejo das mulheres encapuchadas, muito ramelosas,
estralejando os seus tamancos ferrados na grade do adro que vedava a passagem aos porcos.
Enquanto na igreja, depois da missão, se depunha a hóstia nas línguas saburrentas e gretadas das beatas –
que engoliam aquela farinha triga como quem devora sevamente um Deus – cá fora armavam-se no adro dois
tabuleiros, assentes em tripeças de engonços, com seus pavilhões de guarda-sóis de paninho azul. Algumas mulheres
de aspectos repelentes, sujas da poeira das jornadas, com os canelos calosos e encodeados, expunham nos tabuleiros
as suas mercadorias, e ao mesmo tempo injuriavam-se reciprocamente por velhas rixas invejosas à conta de
subornarem freguesas com caramunhas e palavreados. No silêncio do templo, ouvia-se cá de fora: – Arre, bêbeda! –
Cala-te aí, calhamaço!
A exposição bibliográfica, feita nos tabuleiros, além das obras em brochura e encadernadas dos
missionários, constava da Regra de S. Bento, da Missão Aumentada, da Missão Abreviada, das Piedosas
Meditações, das Horas do Cristão, do Mês de Maria, do Mês de Jesus e do Livro de Santa Bárbara. Havia também
Novenas, Via-sacras com estampas de um horror sacrílego, uns Cristos que pareciam manipanços do Bié. Seguia-se
a camada dos Escapulários; uns eram de N. S. do Carmo, de N. S. das Dores, da Conceição; outros do Preciosíssimo
sangue de Jesus, do Coração do mesmo, da Santíssima Trindade e de S. Francisco. Tinham grande saída os
Cordões do mesmo santo, e as Correias de S. Agostinho, com um botão de osso, a apertar na cintura – arnês
impenetrável ao Diabo, por causa do botão, que, posto na correia, tem virtudes para osso muito admiráveis, quase
como as da carne, mas no sentido inverso – ela atraindo o cão tinhoso, e ele repulsando-o. De Santo Agostinho e do
Anjo da Guarda também havia Rezas enfiadas em metal, ou em cordão, simplesmente, mais baratinhas. Na espécie
medalheiro, grande profusão: as medalhas mais procuradas eram as do Coração de Maria do Coração de Jesus, do
Anjo da Guarda e de Santa Teresa, a 10 réis.
As coroas, penduradas em barbantes ou estendidas em meadas, eram diversas no tamanho e na
nomenclatura: as seráficas com sete mistérios, e cada mistério com dez ave-marias; as da Srª da Conceição com
doze Aves e três mistérios: – uma certa conta que os missionários lá graduavam com a gafaria espiritual das
confessadas. Havia algumas que se aguentavam com os Rosários de quinze mistérios, e a Coroa dos nove coros dos
Anjos, e a do Preciosíssimo sangue e coração de Jesus. Mas o grande consumo era de contas de azeviche,
refractárias aos maus-olhados; de modo e maneira que, se o azeviche é legítimo, senhores, logo que um inimigo nos
encara a conta racha de meio a meio.
Marta, a beata, a senhora brasileira de Prazins, como lhe chamavam as regateiras das drogas da salvação,
fornecera-se de tudo em duplicado; mas sobre todos os devocionários o da sua leitura dilecta era o Pecador
Convertido ao Caminho da Verdade, edição do seu confessor varatojano, Frei João de Borba da Montanha.
São impenetráveis os segredos revelados no tribunal da penitência por Marta ao seu director espiritual. O
padre Osório, não obstante, suspeitava que a penitente revelasse, com escrupulosa consciência, solicitada por miúdas
averiguações do missionário, saudades, reminiscências sensualistas, carnalidades que se lhe formalizavam no
espírito dementado, enfim, visões e sonhos com o José Dias. Inferia o padre a sua conjectura, sabendo que Frei João
lhe mandara ler no Pecador Convertido, três vezes por dia, o capítulo 33, intitulado Resistência às tentações contra
a castidade. Fortalecia esta hipótese ter dito Marta a D. Teresa que a alma de José Dias lhe aparecia em sonhos; e às
vezes, mesmo acordada, lhe parecia senti-lo na cama à sua beira; e então mordia o travesseiro para que o tio a não
ouvisse chorar. Pode ser que estas revelações, comunicadas ao confessor, um simplório incapaz de destrinçar entre
doença e pecado, fossem acompanhadas de particularidades sensitivas que Marta por vergonha não contava à sua
amiga. É certo que a confessada do varatojano lia, declamando, diante do seu oratório, três vezes, por dia, a
Resistência às tentações contra a castidade.
A oração dizia assim:
Senhor amorosíssimo, não vos escondais, não me deixeis sozinha, que me cerca o leão para me devorar; os
seus rugidos me atormentam para que não goste das suavidades do vosso amor. Cercarei todo o Mundo, subirei aos
Céus, não descansarei enquanto não achar o meu amor. Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, criaturas da terra que,
se encontrares o meu amado, lhe digais que morro de amor. E, se quereis os sinais para conhecê-lo, ouvi. O meu
amado é cândido e rubicundo, escolhido entre milhares; cândido por divino, e rubicundo por humano, cândido
porque inocente, e rubicundo por chagado. Ai! doce amor, onde vos escondestes? Tende compaixão de quem vos
busca. Estes sinais que de vós tenho só servem de avivar-me a saudade, são setas que me ferem; morro, desfaleço,
se vos não acho.
Os cabelos da sua cabeça são como p ouro mais puro e mais precioso, são como palmitos e pretos como o
corvo. Se não entendeis, filhas de Jerusalém, nem eu vo-lo saberei explicar; o que vos digo é que os seus cabelos
são fortes laços que bastam para prender a todo o Mundo, bastam para abrasar tudo de amor. Ai! amado do meu
coração, se as admirações do que sois abrasam a alma, que vos vê por enigmas, que será quando vos vir
claramente! Os seus olhos são como pombas sobre correntes de águas, mansos, puros, suaves, benignos, amorosos.
Que majestosos, que humildes, que graves, que serenos, que doces, que suaves! Oh dulcíssimo amor, já que tanto
fechais os olhos para não serem vistos, ao menos não os fecheis para me não verem! As suas faces são como
canteiros de flores aromáticas, sempre belas, sempre cheirosas; passam os dias, os meses e os anos, e os séculos, e
as faces do meu amor sempre são flores, nem o sol as murcha, nem o frio as corta, nem a água as corrompe, nem o
vento as desfolha; são rosas, são açucenas, são brancas e encarnadas. Oh! quem me dera uma gota da água que as
rega, um grão do calor que as vivifica; quem me dera que o Jardineiro que as compõe me quisera semear umas