
proclamam a sua salubridade ou o seu sossego. Os vendedores ambulantes entram por ali como por terreno novo a
conquistar. Aparece a primeira reclamação nos jornais contra a lama ou o capim. É o batismo. As notas policiais
contam que os gatunos deram num dos seus quintais. É a estréia na celebridade, que exige o calçamento ou o
prolongamento da linha de bondes. E insensivelmente, há na memória da produção, bem nítida, bem pessoal, uma
individualidade topográfica a mais, uma individualidade que tem fisionomia e alma.
Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem
aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as
nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos, matando-as
ao cabo de um certo tempo.
Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres,
delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam
para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas,
snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...
Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando
parte em tudo, mas desertando, correndo os taipais das montras
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à mais leve sombra de perigo.
Esse beco inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente
oposicionista, criou o boato, o “diz-se...“ aterrador e o “fecha-fecha” prudente. Começou por
chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos os desvios muita gente boa. No
tempo em que os seus melhores prédios se alugavam modestamente por dez mil réis, era a Rua
do Gadelha. Podia ser ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo ao número prodigioso de
poetas nefelibatas que a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do Ouvidor
sem que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calunia, e elogia, como insulta e
aplaude, porque era preciso denominar o lugar em que todos falam de lugar do que ouve; e
parece que cada nome usado foi como a antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa
irresponsável artéria da futilidade.
A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a
desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a
primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os
gananciosos, os escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a
flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o
primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo
atirado aos céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram,
como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças,
ribeirinhas do mar. Mas, soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela
continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão augustiosa e franca e verdadeira na sua
dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar
das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendiga velha: — Misericórdia!
Há ruas que mudam de lugar, cortam morros, vão acabar em certos pontos que ninguém
dantes imaginara — a Rua dos Ourives; há ruas que, pouco honestas no passado, acabaram
tomando vergonha — a da Quitanda. Essa tinha mesmo a mania de mudar de nome. Chamou-se
do Açougue Velho, do lnácio Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até
mesmo Canto do Tabaqueiro. Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos indivíduos que
organizam o nome conforme a posição que ocupam, cortou o marisco e ficou só Quitanda. Há
ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras — a das
Laranjeiras; há ruas lúgubres, por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte — o
Largo do Moura por exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do Necrotério lá
se erguia a Forca. Antes da autópsia, o enforcamento. O velho largo macabro, com a alma de
Tropmann e de Jack, depois de matar, avaramente guardou anos e anos, para escalpelá-los, para
chamá-los, para gozá-los, todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem
assassinados. Tresanda a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada com
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Vitrine.