estivéssemos vendo, um grande lago a ferver em borbotões, e a nadarem nesse lago serpentes,
cobras e lagartos e outros muitos animais ferozes e espantosos, e sair do meio do lago uma voz
tristíssima, que diz: “Quem quer que sejas, cavaleiro, que o temeroso lago estás mirando, se queres
alcançar o bem que debaixo destas negras águas se encobre, mostra o valor do teu forte peito, e
arroja-te ao meio do negro e inflamado líquido; porque, se assim o não fizeres, não serás digno de
ver as altas maravilhas que em si encerram e contêm os sete castelos das sete fadas, que debaixo
desta negrura jazem”; e que, apenas o cavaleiro acaba de ouvir a voz, sem mais reflexões, e sem
considerar o perigo a que se arrisca, a até sem despir as fortes e pesadas armas, encomendando-se a
Deus e à sua dama, se arroja ao meio do refervente lago, e quando mal se precata e mal sabe aonde
irá parar, se encontra no meio duns floridos campos, que deixam os Elísios a perder de vista? Ali
lhe parece que é mais transparente o céu e que o sol brilha com mais vívida luz; oferece-se-lhe aos
olhos uma aprazível floresta composta de viçosas e frondosas árvores, que lhe alegra a vista com o
seu verdor, e lhe afaga os ouvidos com o doce e não ensinado canto dos infinitos, pequenos e
matizados passarinhos, que volteiam na intrincada ramaria. Aqui descobre um arroio, cujas frescas
águas, que parecem líquidos cristais, correm sobre tênues areias e brancas pedrinhas, que se
assemelham a ouro em pó e a puríssimas pérolas. Acolá vê uma fonte artisticamente construída com
mármore liso e pintalgado jaspe; outra mais adiante ordenada a brutesco, onde as conchinhas dos
mariscos e as retorcidas casas brancas e amarelas dos caracóis, engastadas em aparente mas bem
disposta desordem, e mescladas com luzentes cristais e finíssimas esmeraldas, formam um variado
lavor; de maneira que a arte, imitando a natureza, parece aqui vencê-la. Eis de súbito se lhe
descobre um forte castelo ou um vistoso alcáçar, cujas muralhas são de ouro maciço, de diamantes
as ameias, e as portas de jacintos, e, finalmente, de tão admirável arquitetura que, apesar de serem
diamantes, escarbúnculos, ouro, pérolas, rubins e esmeraldas, os materiais que o formam, ainda o
feitio é de mais estimação; e depois de ter visto tamanhas maravilhas, não é dobrado encanto ver
sair pela porta do castelo um grande número de donzelas, cujos trajos vistosos e gentis, se eu me
pusesse agora a descrevê-los como as histórias os contam, me dariam largo assunto; e vir logo a
principal de entre elas tomar pela mão o ousado cavaleiro que se arrojou ao lago fervente, e levá-lo,
sem dizer palavra, para dentro do rico alcáçar ou castelo, e despi-lo, e banhá-lo de lépidas águas, e
depois ungi-lo com as mais preciosas essências, e vestir-lhe uma camisa de finíssimo cendal, toda
rescendente e perfumada, e virem outras donzelas e deitarem-lhe um manto aos ombros, manto que,
pelo menos, costuma valer uma cidade? E quando em seguida nos contam que, depois disto, o
levam para outra sala, onde acha as mesas postas com tanto gosto, que ele fica suspenso e
admirado? e deitarem-lhe às mãos água destilada de âmbar e de fragrantes flores? e fazerem-no
sentar numa cadeira de marfim? e todas as donzelas a servirem-no, guardando maravilhoso
silêncio? e trazerem-lhe tanta variedade de manjares, tão saborosamente guisados, que não sabe o
apetite qual há-de escolher? e ouvir a música que soa enquanto ele come, sem imaginar donde vem
a voz e o mavioso acompanhamento? e depois de acabada a comida e levantada a mesa, ficar o
cavaleiro recostado na cadeira e talvez espalitando os dentes, como é costume, e entrar a desoras
pela porta da sala outra donzela muito mais formosa do que nenhuma das primeiras, e sentar-se ao
lado do cavaleiro, e começar a dar-lhe conta que castelo é aquele, e de como ela se acha ali
encantada, com outras coisas que o suspendem e enchem de admiração os que lêem a sua história?
Não quero alargar-me mais nisto, pois daqui se pode coligir que qualquer parte que se leia de
qualquer história de cavaleiro andante há-de causar gosto e maravilha a quem a ler; creia-me Vossa
Mercê, e, como já lhe disse, leia estes livros, e verá como lhe desterram a melancolia e lhe
melhoram a condição, se acaso a tiver má. Eu de mim sei que depois de me ter metido a cavaleiro
andante, sou bravo, comedido, liberal, bem-criado, generoso, cortês, audaz, brando, paciente,
sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos, e ainda que há tão pouco tempo me vi metido
dentro duma jaula, como se fosse doido, espero, pelo valor do meu braço, ser dentro de poucos dias
rei de algum reino, onde possa mostrar o liberal agradecimento que o meu peito encerra; que, por
minha fé, senhor, está inabilitado o pobre de poder mostrar com pessoa alguma a virtude da
generosidade, ainda que em sumo grau a possua, e a gratidão, que só consiste no desejo, é coisa
morta, como é morta a fé sem obras. Por isso quereria que a fortuna me oferecesse depressa alguma