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EDNA CASTILHO PERES
CARAMURU DE SANTA RITA DURÃO:
EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E ANOTADA
ASSIS
2006
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EDNA CASTILHO PERES
CARAMURU DE SANTA RITA DURÃO:
EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E ANOTADA
Tese apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade
Estadual Paulista “Júlio e Mesquita
Filho” – câmpus de Assis, para obtenção
do título de doutor em Letras.
(Área de Conhecimento: Literatura e
Vida Social)
Orientadora: dra. Ana Maria Domingues
de Oliveira
Co-orientadora: dra. Diléa Zanotto
Manfio
ASSIS
2006
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR, Brasil)
Peres, Edna Castilho
P337c Caramuru de Santa Rita Durão: edição adaptada em prosa e
anotada / Edna Castilho Peres. -- Assis : [s.n.], 2006.
227 f.
Orientadora : Profª. Drª. Ana Maria Domingues de
Oliveira. Co-Orientadora Profª Drª Diléa Zanotto Manfio.
Tese(doutorado) - Universidade Estadual Paulista "Julio
de Mesquita Filho". Programa de Doutorado em Letras, 2006.
1.Literatura brasileira - Caramuru (Santa Rita Durão)
2.Literatura brasileira - Caramuru (Santa Rita Durão) -
Edição em prosa. I. Universidade Estadual Paulista "Julio
de Mesquita Filho". Programa de Doutorado em Letras. II.
Título.
CDD 21.ed.B869.1032
EDNA CASTILHO PERES
“CARAMURU” DE SANTA RITA DURÃO: edição adaptada em prosa e
anotada
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras – UNESP para obtenção do título de
Doutor em LETRAS (Área: Literatura e Vida
Social)
Data da Aprovação: 18/08/2006
.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: DRA. DILÉA ZANOTTO MANFIO – UNESP / Assis
Membros: DRA. MARILURDES ZANINI – UEM / Maringá
DRA. RAIMUNDA DE BRITO BATISTA – UEL / Londrina
DR. ÁLVARO SANTOS SIMÕES JUNIOR – UNESP / Assis
DR. MÁRCIO ROBERTO PEREIRA – UEL / Londrina
CARAMURU DE SANTA RITA DURÃO: EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E
ANOTADA
RESUMO
O episódio histórico de Diogo Álvares Correia, apelidado de Caramuru pelos índios, no
período colonial brasileiro, gerou o poema épico de Durão, padre-escritor árcade da época
setecentista da nossa literatura. A referida poesia sobre a aventura do descobrimento da Bahia
permanece em destaque no cenário cultural do Brasil e tem inspirado representações em
diversos gêneros: música, teatro, cinema. Tem provocado também estudos e outras edições do
texto. Editoras e instituições têm se preocupado em reproduzir os clássicos literários,
tornando-os acessíveis aos leitores comuns de hoje, ao menos do ponto de vista comercial.
Entretanto, nossa epopéia, escrita há 225 anos nos moldes camonianos, foge ao horizonte de
expectativas do leitor comum atual. A adaptação em prosa visa eliminar os impedimentos da
leitura. São reorganizados os 6.672 versos decassílabos agrupados em 834 estrofes divididas
em dez cantos. A reescritura da obra atualiza a linguagem e a ortografia, desconstrói as
estrofes e estrutura períodos e parágrafos; agrega notas explicativas que auxiliam no
entendimento e apreciação do poema. A nova versão procura ser fiel à primeira edição (1781),
respeitando o estilo e a intenção do autor, mesmo seguindo os ditames da lingüística moderna
e da gramática atual do português. A tese inclui ainda dados sobre o autor e seu tempo, a obra
e sua fortuna crítica, e discussões sobre pontos polêmicos, além de análise dos procedimentos
que nortearam a feitura da composição. O texto adaptado pretende possibilitar a recepção do
clássico para que se possa fazer leitura efetiva e eficiente da obra-prima de Santa Rita Durão,
favorecendo reflexões acerca de nossa memória cultural e dos temas então suscitados.
Palavras-chave: Caramuru; poema épico; adaptação em prosa; notas explicativas.
FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO’S CARAMURU: EDITED IN PROSE WITH
EXPLICATORY NOTES
ABSTRACT
The historical events of Diogo Álvares Correia, commonly known as Caramuru by native
Amerindians, during the colonial period in Brazil, gave rise to an epic poem written by Durão,
a 17
th
century Arcadian writer priest. The epic poem on the discovery of Bahia is still
conspicuous on the Brazilian cultural scene and has been a source of inspiration for
representations in different genre, including music, theatre and cinema. Whereas the poem has
inspired analyses and several textual editions, many publishing houses and institutions have
been concerned, at least from the commercial point of view, in reproducing and making
available for the common reader the Brazilian literary classics. However, the 225-year-old
epic poem, written according to Camoens’s style, goes beyond the expectations of the
contemporary reader. In the current prose adaptation of the poem, originally totaling 6,672
decasyllable verses grouped in ten cantos with 834 stanzas, certain impairments in reading
have been eliminated. Rewriting has updated the language and the orthography, deconstructed
the stanzas, structured the sentences and paragraphs, and added explicatory notes which will
surely help the reader’s understanding and appreciation of the poem. The new version is
totally faithful to the 1781 first edition, coupling a deep respect for the author’s style with his
intention, even though the rules of contemporary linguistics and of the Portuguese grammar
have been fulfilled. Current thesis also comprises data on the author and his times, his works
and their critical response, discussions on polemical points and an analysis of the procedures
used in the style. The adapted text will facilitate the reception of this classic work so that an
effective and efficient reading of Durão’s classic may be undertaken. It will also favor
reflections on Brazilian cultural memory and related themes.
Key words: Caramuru; epic poem; prose adaptation; explicatory notes.
CARAMURU DE SANTA RITA DURÃO: EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E
ANOTADA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................7
CAPÍTULO I
Considerações gerais sobre a época, o autor e a obra
1. Panorama histórico da época do descobrimento e colonização do Brasil. ...................14
2. Estágio literário do período em que a obra foi produzida. ...........................................17
3. Dados sobre o autor do poema. ....................................................................................25
4. O épico Caramuru. .......................................................................................................34
CAPITULO II
História editorial e procedimentos de adaptação do texto
1. A tradição impressa de Caramuru e outras publicações baseadas no poema .............46
2. Critérios adotados na composição do texto em prosa...................................................66
CAPÍTULO III
Versão adaptada do poema, com notas explicativas no rodapé da página. ..............................82
CONCLUSÃO........................................................................................................................219
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................222
INTRODUÇÃO
Tendo sempre me dedicado ao estudo e ao ensino de língua portuguesa e
literatura, o trabalho com textos tem sido a motivação de minha vida profissional e
acadêmica. Não há dúvida de que os falantes de uma língua, quer seja para se comunicar e dar
informações, quer seja para expressar seus estados psíquicos e emocionais, têm lançado mão,
desde as mais remotas épocas, de elaborações textuais que materializam seus discursos e seus
anseios. Neste sentido, a literatura é prova evidente e cabal de que o ser humano produz,
através da escrita, obras que vão retratar os estados mentais de pessoas, povos e nações, numa
determinada época e em diferentes circunstâncias. Pelos personagens de poemas, romances,
contos e crônicas, autores registram idéias, fatos, sensações e, de certa forma, perpetuam
experiências, hábitos, costumes e acontecimentos através de seus escritos, destacando o que
acham relevante.
Estes escritos, muitas vezes, atravessam gerações e atingem tempos e
situações distantes daquelas em que foram gerados. Em termos lingüísticos e estilísticos, um
período da civilização dos homens difere do outro; mudam as palavras, modificam-se as
formas de construir frases e atualizam-se modos expressivos, ainda que se considere o mesmo
idioma. Estudos semânticos dão conta da evolução de significação e uso dos vocábulos, e das
constantes transformações por que passa a linguagem das comunidades e da sociedade com o
passar das gerações. Tanto mais o português, atualmente falado em vários países tão diversos
em suas culturas quanto em seus hábitos lingüísticos.
A revista Época (maio / 2002, p.107) publicou resenha de Luís Antônio
Giron sobre o romance Ensaio sobre a lucidez do Nobel José Saramago, em que se pede
urgentemente uma tradução ou adaptação brasileira para o texto. O resenhista afirma que “um
8
bom tradutor faria mágica com o romance: adaptaria a grafia, limaria arestas, reviveria o
léxico caduco”. Evidentemente este não é procedimento que se aplique a Caramuru; é o caso
apenas de, considerando não o espaço geográfico, mas o temporal, transpor o limite das
mudanças de comportamento lingüístico, tentando sanar os problemas que bloqueiam a
fruição da cultura escrita. Uma boa adaptação torna palatável o nosso épico ao leitor comum
de hoje, ou seja, aquele que tem apreço por leitura e tem escolaridade média ou superior, não
sendo portanto um letrado ou especialista em literatura. Para este leitor, os termos eruditos e
arcaicos, a forma estabelecida pela poemática e a estrutura morfossintática de influência
latina, de início, podem ser entrave para uma leitura prazerosa, embora ele já domine o
conteúdo da matéria de que se serviu o poeta. Se o assunto é familiar a este leitor, a forma de
expressão, ideal na época do autor, hoje é tida como ultrapassada. Assim, trilhando os
caminhos de uma versão adaptada, é possível chegar à intimidade com uma obra clássica em
sua forma original. Aí estão inúmeras adaptações de clássicos a demonstrar que eles
continuam no cânone literário e no mercado editorial dada a boa acolhida reinante entre a
população de modo geral.
Acredito que Caramuru adaptado cairá no gosto do leitor brasileiro
contemporâneo, reavivado, novinho em folha e, principalmente, muito lido. E o gosto do
leitor em idade escolar funde a apreciação e interesse por textos jornalísticos do seu tempo
com os textos de outrora, sobretudo os de temas sociais e ambientais abordados no épico de
Durão. Neste ponto, a leitura de Caramuru pode aliar-se a outras de artigos e reportagens de
jornais e revistas em que o elemento indígena, as riquezas naturais do Brasil e a própria
história do país são postos em questão. Isto propicia a fusão dos horizontes de expectativa,
evidenciando a força do tripé autor/obra/público, já que os traços comuns assim casados
promovem a autêntica leitura, um ato comunicativo de verdade.
9
Das obras literárias produzidas no período colonial brasileiro, Caramuru
chamou minha atenção. Frei José de Santa Rita Durão, seu autor, conseguiu perpetuar com
seu texto épico um período, até longo, da história do Brasil e episódios que em seu litoral
ocorreram, com simplicidade, porém com apreciação do problema étnico e compreensão do
elemento histórico. Tem valor porque é uma produção natural e constitui um resumo histórico
do País nos três séculos de colônia: XVI, XVII e XVIII. Merece pois que seja recriada para
ser mais bem apreciada.
Tamanha importância de autor e obra me leva a realizar um trabalho na
tentativa de, tanto quanto possível, atualizar o texto, comentar o contexto de produção da
obra, o momento literário e histórico, procurando, entretanto, manter as características
próprias do original manuscrito, tendo por base a primeira edição (1781). Trata-se do estudo
de um poema que guarda a essência de uma época e um estilo de vida dos brasileiros, em
meio às buscas do Velho Mundo por novas terras para colonizar. É nossa grande epopéia, uma
de nossas primeiras produções literárias; enfim, um clássico.
A noção de clássico da literatura tem sido alargada atualmente,
cristalizando-se como um texto que é lido por várias gerações e continua tendo
reconhecimento e inclusão no cânone literário; é obra que desfruta de uma certa perenidade.
“O termo clássico vem do latim [...] e tornou-se sinônimo de obra dotada de elegância e
correção formal, simplicidade, dignidade, contenção, ordem e proporção, qualidades que lhe
garantiam validade universal e duradoura” (ANTUNES, 1997). Ainda segundo este
pesquisador, “Hoje diz-se clássica qualquer produção que, em seu gênero, seja exemplar, da
cultura erudita à cultura de massa”.
Destarte, ressalto aqui, mais uma vez, o estatuto de clássico que deve ser
conferido a Caramuru. Para que seja lido espontaneamente e com prazer, pelas vias do
entendimento, proponho-me a fazer a adaptação em prosa do poema, com anotações
10
esclarecedoras e informativas sobre questões que, presumo, necessitem de tal artifício. Com
isto, pretendo adequá-lo ao universo do leitor comum contemporâneo, colocando o poema ao
alcance da sociedade hodierna e motivando para a leitura literária, não somente a comunidade
acadêmica como dos leitores em geral.
Quanto à necessidade de atualização do poema, vejamos algumas
considerações a respeito de língua, linguagem e literatura, esta sob a perspectiva de
receptividade dos escritos. Não entro aqui no quesito aproveitamento de textos literários no
ensino formal, uma vez que as discussões didáticas e pedagógicas podem ficar para uma
próxima etapa.
Com a expansão da Lingüística, o modelo de língua padrão não repousa
mais nos textos literários tradicionais, até porque com o passar do tempo a língua muda,
transforma-se, sofre acréscimos ou subtrações em seu interior. Surgem também novas formas
de ver o mundo, outros valores se levantam, a linguagem fica envelhecida e antigas
manifestações nem sempre acompanham, em seu estado original, a formação cultural e de
competência lingüística dos leitores de novas eras. Entretanto, o assunto e o conteúdo de um
poema, como de Caramuru, por exemplo, podem ser considerados atuais: o elemento
indígena tem até hoje remanescentes em nossas selvas e a exuberância ambiental do país salta
aos olhos e atrai turistas. Neste caso, é necessário que estudos, reflexões e ações promovam
relações autênticas com aquele nosso clássico. Assim, disponibilizar aos leitores a versão
adaptada do poema pode ser uma via simplificadora na consecução deste objetivo.
O professor João Luís C. T. Ceccantini, da Unesp de Assis, em artigo escrito
para o periódico Proleitura (abril de 1997, p.6), faz um estudo da questão, por ele citada
como “problema espinhoso”, da adaptação dos clássicos. Na verdade, ele recupera a discussão
da especialista Nelly Novaes Coelho no Jornal do Alfabetizador (ano VIII, nº 44, 1996).
Tratando da validade ou não das adaptações literárias, a conceituada pesquisadora e
11
professora paulista expõe as opiniões em que se dividem os teóricos da literatura: uns são
contra, alegando que a obra perderia “a sua verdade ou autenticidade de criação literária”;
outros são a favor, “fundamentados no fato de que certas obras literárias atingem tal grau de
verdade humana que ultrapassam sua natureza literária e se transformam em matéria mítica (a
que conserva sua força e valor em todas as formas lingüísticas ou outras que a traduzam)”.
Esta segunda posição, a dos adeptos da recriação dos clássicos, teve
representantes de peso. Causando arrepios nos puristas, Monteiro Lobato (1882-1948) deu
“nova vida a uma série de textos que o tinham impressionado vivamente na infância e que
julgava fundamental serem conhecidos das novas gerações”. (CECCANTINI, 1997). E
prossegue o articulista: “Reconhecia o problema do envelhecimento dos códigos estéticos e a
barreira que poderiam significar para novos leitores através do tempo, sobretudo os mais
jovens”. Também Nelly Novaes Coelho (1974) endossa a idéia da importância da contínua
adaptação dos clássicos, junto com mais alguns autores citados no segundo capítulo desta
tese, além, é claro, de mim que me pus a reescrever o poema Caramuru... em prosa.
Considerado um trabalho difícil, a versão em prosa de uma poesia é missão
complicada; imponho-me o desafio de realizá-la. Ao reformular o poema, todo articulado
conforme os moldes da arte poética, tenho sempre em mente sua natureza épica. “Sendo a
epopéia uma longa narrativa literária de caráter heróico, grandioso e de interesse nacional e
social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos [...], uma atmosfera
maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e
deuses, podendo-se apresentar em prosa [...] ou em verso” (SOARES, 1989).
A adaptação em prosa suprime um empecilho muito presente nos dias
atuais: a forma versificada da epopéia de Durão não é comum para os leitores de hoje, que a
consideram de leitura complexa e desanimadora, conforme constato em minha militância no
magistério e por análises que empreendo. No entanto, perdura na nova composição em prosa
12
o sentido do épico na medida em que “se tem a intenção de abarcar a multiplicidade dinâmica
da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade” (SOARES, 1989). Some-se a tudo isto
o rigor que constato ser indispensável nas adaptações e que procuro manter através de
cuidadosa pesquisa e estudo criterioso a fim de criar soluções ao mesmo tempo fiéis ao
original e eficientes para a elaboração do novo texto. De resto, a adaptação, atividade não
levada muito a sério pela literatura no Brasil, precisa ser considerada como um bom recurso
para a difusão das obras e sua aceitação pelo público leitor quando o original, como foi
criado, não satisfaz à necessidade mental de intelecção do texto. Muitas vezes, só o professor,
como mediador de leituras que é, não consegue pôr ao alcance do estudante e outros possíveis
leitores a totalidade da obra criada. Neste caso, a adaptação entra como eliminadora de
barreiras e propulsora de leituras mais amenas, pela fluência textual evidenciada pela
descomplicação da linguagem. Naturalmente não se descarta a hipótese de que o poema seja
lido depois em sua forma original; neste caso, a versão adaptada e comentada pode despertar
o interesse para a leitura.
Rabaça e Barbosa (1987) definem adaptação como “transposição de uma
obra para outro gênero ou meio de comunicação. É a adequação de uma obra originalmente
escrita na linguagem e na técnica de um determinado veículo [...] para códigos característicos
de outro”. Estendendo o conceito do termo, em literatura pode-se dizer que adaptação é a
transformação de uma obra, dentro de um mesmo código, no caso a escrita, para adequá-la a
uma outra realidade sociocultural, com um objetivo determinado. Em minha tese a intenção é
tornar o texto assimilável pelo leitor médio contemporâneo, conforme classificação dos
críticos literários. Estes o consideram não-iniciado, porém com nível sociocultural suficiente
para lhe dar perfil de leitor e consumidor de livros.
Enfim, a edição adaptada e anotada, ou seja, que inclui notas e comentários
destinados a esclarecer, complementar ou atualizar o texto original de ordem histórica,
13
religiosa, mitológica, lingüística, política ou geográfica, é o ideal que anima a pesquisa
acadêmica nesta terceira etapa de minha existência.
CAPÍTULO I
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A ÉPOCA, O AUTOR E A OBRA.
1. Panorama histórico da época do descobrimento e colonização do
Brasil
Hoje, em pleno século XXI, desenha-se um painel para a população mundial
de mais de seis bilhões e meio de pessoas num estágio avançadíssimo de desenvolvimento.
Em vários países o arado cedeu lugar a tratores e colheitadeiras; há um ativo comércio
internacional, a informatização e as redes mundiais de computadores anulam as distâncias,
aproximando as sociedades e integrando mercados num planeta cada vez mais econômica e
culturalmente globalizado.
Entretanto, seis ou sete séculos atrás tudo era muito diferente, claro, porém
as aceleradas mudanças deste século já se esboçavam devido ao avanço do capitalismo sobre
o feudalismo e à aproximação dos mercados, das sociedades e das culturas. “Esse longo
processo, que moldou o mundo contemporâneo, teve seu grande centro de irradiação na
Europa ocidental.” (TEIXEIRA, 2000). Concentrando-se a maior parte da população do globo
na Ásia e na Europa, entre o final do século XV e o início do século XVI, ali se praticava
intensa atividade agrícola, manufatureira e mercantil: uso do arado no campo, câmbio de
moedas e títulos financeiros e operações comerciais entre mercados distantes e diferenciados.
Na América e na África, havia manufatura em argila, madeira e metais, além do cultivo
manual da terra, pescaria e coleta florestal de víveres.
15
A partir da queda de Constantinopla (hoje Istambul) em 1453, quando foi
dominada pelos turcos otomanos, encerra-se o Império Romano do Oriente. Inicia-se o
período de descobrimentos marítimos e de novas terras; em 1494 é assinado o Tratado de
Tordesilhas dividindo entre Portugal e Espanha as terras a serem descobertas. Em 1492
Cristóvão Colombo chega ao arquipélago das Bahamas, na América, e seis anos mais tarde,
Vasco da Gama, partindo de Lisboa, chega a Calecute na Índia atual. Após dois anos, Cabral
chega ao Brasil “pela fé e pelo império”, já que a expansão marítima era uma necessidade
econômica e política e as Cruzadas, uma realidade. Ele saiu do porto de Tejo em março de
1500 e cá chegou em abril do mesmo ano, trazendo cerca de mil e duzentos homens, entre
marinheiros, artífices, comerciantes, padres, funcionários, soldados, degredados e experientes
navegadores. Aportaram no sul da Bahia, na enseada que denominaram Porto Seguro, o tão
propalado recôncavo do poema de Durão.
Os navegantes portugueses fizeram contato com os nativos avistados nas
praias, rezaram duas missas e, depois de dez dias, a esquadra retomou o rumo das Índias,
conforme instruções do rei dom Manuel, o Venturoso. Batizaram a nova terra de Ilha de Vera
Cruz e comunicaram o feito ao rei, sendo para isto enviado um navio de volta a Portugal com
uma carta escrita por Pero Vaz de Caminha, descrevendo a terra e seus habitantes, mas
contando algumas mentiras, como afirma Ariano Suassuna no jornal Porantin de Brasília, em
maio de 1999.
Em 1502 começava a exploração das riquezas brasileiras, sobretudo o pau-
brasil, por arrendamento a Fernão de Noronha, chefe de um grupo de cristãos-novos (judeus
convertidos à força ao cristianismo). No decênio de 1520, por causa dos traficantes europeus,
principalmente franceses, Portugal viu-se obrigado a enviar frotas que vieram proteger o
litoral brasileiro, as expedições guarda-costas. Naquela época, o reino ainda não possuía uma
estratégia definida para aproveitar o seu quinhão de terras americanas que tinha litoral extenso
16
com fartos ancoradouros naturais, como o depois famoso recôncavo baiano. O governo
português, na era de dom João III (1521 – 1557), considerou a necessidade de proteger e
administrar seu novo território e então começou a formar sua colônia brasileira. Em âmbito
mundial, ocorre a excomunhão de Martinho Lutero que iniciou a Reforma Protestante;
Henrique VIII, da Inglaterra, cria a Igreja Anglicana e em Portugal é instalada a Inquisição.
Em 1539, Inácio de Loiola funda a Companhia de Jesus; todos eram movimentos religiosos,
mas de fundo político e ideológico. No cenário político, Hernán Cortez conquista o império
asteca (atual México), Francisco Pizarro conquista o império inca e funda a cidade de Lima
(Peru) em 1534. São criadas as primeiras universidades na América (Cidade do México e
Lima) e nasce Buenos Aires em 1580.
Com uma paisagem exuberante e população estimada entre oitenta e cem
milhões de indígenas, formando aproximadamente 1500 grupos étnicos distintos, nossa terra
sofreu as conseqüências do impulso civilizador e do interesse mercantilista reinante. “A
colonização trouxe consigo o extermínio e a escravização de muitos ameríndios, além da
destruição sistemática da floresta”. (TEIXEIRA, 1999).
As bases de sustentação e funcionamento da colonização portuguesa no
Brasil, como se sabe, repousam no mercantilismo absolutista, no monopólio e no tráfico
negreiro. Predominava a aristocracia escravista e a Igreja era submissa ao Estado, o qual
controlava as consciências pela religião. O sentido dado pelos conquistadores à colonização
era de, além de consolidar a conquista, agregar riquezas ao reino, beneficiar as elites (intenção
que, ao que parece, vigora até hoje), fortalecer o Estado, engrandecer o império e expandir os
domínios da fé católica.
Para concretizar seu intuito e cristalizar a idéia de que a colônia existia para
servir à metrópole, dom João III decidiu aplicar no Brasil uma solução já experimentada e
bem sucedida no reino e nas ilhas atlânticas. Entre 1534 e 1536, o território brasileiro foi
17
dividido em catorze faixas de terra, as capitanias hereditárias ou donatários. Foram entregues
a doze capitães-donatários para que promovessem seu povoamento e exploração em troca de
favores, direitos e privilégios por parte da coroa. Algumas poucas capitanias prosperaram, de
sorte que, em fins de 1548, o rei português criou o governo-geral do Estado do Brasil, sendo
Tomé de Sousa o escolhido para ser seu primeiro governador. Tinha a incumbência de
supervisionar o desempenho das capitanias, estimular a instalação de novos engenhos de
açúcar, apoiar o reconhecimento e a exploração do interior (o sertão), promover o
povoamento e a fundação de vilas, controlar as relações com os indígenas e apoiar a catequese
e defender a terra contra os estrangeiros. Para sede do governo foi indicada a Bahia de Todos
os Santos, cujo donatário era Tomé de Sousa e ali ele fundou, em 1549, a cidade de São
Salvador. Com ele vieram os primeiros jesuítas para o Brasil, chefiados pelo padre Manuel da
Nóbrega.
Defender a terra contra invasores, expandir e ocupar totalmente a colônia e
também explorá-la em suas riquezas naturais eram as motivações para a continuidade da
colonização do Brasil pelos portugueses. Desta forma, o avanço territorial, político e
econômico resultou da pressão dos interesses coloniais dos dois países da Península Ibérica,
combinada com a luta pela defesa do território contra os estrangeiros, especialmente franceses
e holandeses. Até o final do século XVII pode-se dizer que a ocupação portuguesa na
América, por lusitanos e espanhóis, estava consolidada, constituindo uma sociedade em
formação, dotada de grande diversidade social, cultural e econômica e que já fazia história.
2. Estágio literário do período em que a obra foi produzida
Literatura e história sempre andaram atreladas nas sociedades; assim,
convém que seja lembrado aqui o contexto histórico do final do século XVIII. De 1722 a
18
1784, quando viveu Santa Rita Durão, sucederam acontecimentos e ideologias que
transformaram o mundo: guerras na Polônia e na Áustria, em que a França se envolveu; a
Guerra dos Sete Anos a que Portugal também não pôde fugir.
As grandes monarquias européias conheceram a ruína financeira e
econômica, o que foi agravado pelos escândalos nas cortes. Isto provocou um
descontentamento geral muito favorável à fecundação de idéias e sentimentos revolucionários.
Com a monarquia absoluta, a religião católica perdeu seu prestígio por causa
das polêmicas entre seus teólogos. Surge um gradual acatamento e admiração pelas
instituições políticas da Inglaterra e pela sua literatura, sua filosofia e seus assombrosos
progressos científicos. Entretanto, também a Inglaterra enfrentava problemas e fracassos.
Tentando refazer-se do desarranjo financeiro causado pela Guerra dos Sete Anos, em que se
batera contra França e Espanha, tributou pesadamente sua grande colônia americana a qual se
revoltou e, em 1766, proclamou sua independência, criando a República dos Estados Unidos
da América.
A criação do país no Novo Mundo, a liberdade política e de pensamento na
Inglaterra do Velho Mundo, as instituições modelares da França enciclopédica, o Iluminismo
italiano, a Holanda como refúgio de inconformistas perseguidos, tudo isso acontecia na época
de Durão, como focos de incêndio que subverteriam princípios, instituições e normas de vida
individual e coletiva, anos mais tarde.
O Absolutismo procurava manter-se pelo Despotismo Esclarecido. O
Iluminismo favorecia novos valores nas ciências, nas letras e nas artes. Também as técnicas
apressavam o desenvolvimento da indústria e do comércio, com a conseqüente reabilitação do
trabalho como produtor de riqueza, acarretando o fortalecimento da burguesia. Não só a
burguesia se alentava para os novos rumos: Rousseau, que era da realeza, proclamava que o
homem nascia bom e a sociedade o corrompia. Criou-se então o mito do bom selvagem.
19
Estas revoluções ideológicas refletiram-se em Portugal. Ao contato com as
culturas francesa e inglesa, dom Pedro II e dom João V apresentam as primeiras iniciativas de
renovação mental. Não se dissipou apenas em igrejas e magnificências suntuosas os
rendimentos totais dos quintos do ouro do Brasil. Bolsistas foram enviados aos países mais
cultos e os oratorianos (padres da Congregação do Oratório – Roma, 1564) foram chamados a
colaborar com o saber experimental no ensino secundário, antes monopolizado pelos jesuítas.
Em 1750, governam Portugal dom José e seu primeiro ministro Sebastião de
Carvalho e Melo, depois feito Conde de Oeiras, em 1759, e Marquês de Pombal, em 1769.
Viajado e culto, Pombal tinha vontade férrea e dureza de coração; pretendeu imprimir à vida
portuguesa os rumos que o Despotismo Esclarecido tomava na Áustria e na Inglaterra.
Formou-se a classe média através da criação de novas indústrias, estimulação do comércio e
pela formação de companhias privilegiadas de comércio e navegação, ligando metrópoles e
províncias ultramarinas. Pombal tentou prover o país do necessário, já que tudo era
importado. Além disso, aboliu as distinções entre cristãos velhos e cristãos novos, de sorte
que todos podiam contribuir igualmente para o progresso econômico, e também aboliu a
escravatura no reino e libertou os índios no Brasil.
Promoveu-se em 1772 a reforma da Universidade de Coimbra,
proporcionando-se na antiquada e fechada instituição amplas penetrações dos ares
fecundantes que sopravam dos países de mais avançado progresso científico. No entanto,
houve resistências: o ministro teve contra si a nobreza e, no Brasil, os jesuítas. Estes haviam
organizado, com os indígenas do Paraguai, uma vasta república comunista e teocrática, de
dócil obediência a chefes políticos e militares aos quais consideravam de autoridade sagrada.
Aos inacianos se atribuía a resistência em aceitar a soberania portuguesa dos ameríndios das
suas “reduções” espanholas, que com o Paraguai se pactuava fossem incorporadas aos
20
domínios portugueses em troca da Colônia do Sacramento. O acontecimento é assunto do
poema de Basílio da Gama, O Uraguai (1769).
Em 3 de setembro de 1758, ocorre um atentado contra dom José e o
primeiro-ministro, desumana e horrorosamente, executa os réus e expulsa os padres da
Companhia de Jesus, considerando-os coniventes com o atentado, de acordo com declarações
arrancadas durante torturas aos nobres. Mais tarde, em 1773, Pombal conseguiu, juntamente
com os ministros espanhol, francês e italiano a supressão da Companhia pelo papa Clemente
XIV. O Tribunal da Inquisição, a terribilíssima Fortaleza do Rossio, foi submetido à
legislação dos tribunais régios e o marquês nomeou inquisidor-geral seu próprio irmão.
Estes triunfos todos e mais o destemor de sua ação contra a violência cega
da natureza, por ocasião do incrível terremoto que assolou Lisboa em 1755, provocaram
grande admiração do rei, que outorgou a Pombal plena onipotência. Entretanto, estes poderes
sobrepujaram sua capacidade administrativa e redundaram em crueldade e barbaridades. Suas
providências governativas eram mais espetaculares que bem-logradas.
No Brasil, o reflexo dessa situação histórica, como colônia de Portugal na
época, é conseqüência dos acontecimentos e posturas da metrópole. Coincidentemente, aqui a
crise da lavoura açucareira e a exploração das minas de ouro e pedras preciosas deslocaram o
eixo econômico do País do Nordeste para a região de Minas Gerais (extração de minério) e do
Rio de Janeiro (porto de escoamento desse minério).
Caramuru foi escrito entre 1779 e 1780, segundo biógrafos de seu autor;
Santa Rita Durão redigiu o poema ao retornar a Portugal após a morte de dom José, sendo já
professor de teologia na Universidade de Coimbra, onde discursara na abertura do ano letivo
de 1778. Segundo Varnhagen, “foi só depois deste ano que Durão começou o poema
Caramuru”. Em Portugal, era o tempo da “viradeira”, ou seja, a queda do marquês de Pombal
e a restauração da cultura passadista. Ao mesmo tempo, ocorrem na Europa marcantes
21
mudanças. O intenso progresso científico na biologia, na filosofia e na física conduz à
tecnologia e esta, ao aumento da produção. Generaliza-se a idéia de que ciência e negócios
não devem juntar-se à religião. Vigora o movimento cultural caracterizado como o Século das
Luzes e definido como Iluminismo. A crença iluminista consolidou-se na Enciclopédia
publicada em 1751 na França, tendo como organizadores D’ Alembert, Diderot e Voltaire. No
Brasil, por causa dos bons ventos soprados pela confortável situação econômico-financeira,
acentua-se o gosto pela cultura e surgem grupos de escritores, ligados a agremiações e eventos
coletivos. Alguns eram brasileiros de nascimento porém radicados há tempos na Europa,
como Durão; outros eram portugueses que aqui se criaram, às vezes com formação em
Portugal, como alguns poetas inconfidentes. Em ambos os casos, o encanto e o amor pelo
Brasil ou ligações outras tidas com a colônia manifestam-se em seus escritos.
Designada por Amora (1968) como a era luso-brasileira da literatura, a
época setecentista (1724-1808) teve nas academias e arcádias sua máxima representação. O
arcadismo, ou neoclassicismo, como manifestação literária, consiste na recuperação dos traços
principais da arte clássica, já que os clássicos, da Antigüidade ou do Renascimento, foram
considerados fonte de equilíbrio e sabedoria.
Como reação ao Barroco, tendência artístico-literária tida como
extremamente emocional e desequilibrada, criaram-se na Europa as arcádias, em consonância
com as idéias iluministas nas quais as palavras razão e ciência eram a base para análise e
explicação do universo. Para a burguesia em ascensão, a razão era considerada como
sinônimo de bom-senso, impedindo o homem de se entregar aos caprichos da imaginação e da
fantasia. Com esta visão de mundo instala-se o Arcadismo ou Neoclassicismo, como reação
ao Barroco, criando-se arcádias e academias. Seus grandes doutrinadores foram Luís Antônio
Verney, com o Verdadeiro método de estudar (1747) e Francisco José Freire com Arte
poética (1748).
22
Homem de pouca sensibilidade artística, Verney preconizou uma literatura
de cunho didático e uma poesia sem lances imaginários, presa à verossimilhança e à expressão
direta. Freire “corrigiu e amainou o pragmatismo quase obtuso de Verney” (CÂNDIDO e
CASTELLO, 1968). E prosseguem os citados autores: “Partindo da verossimilhança como
base, admitiu larga margem de liberdade ao escritor, reconhecendo os direitos da inspiração,
da imaginação e da linguagem figurada, própria à literatura”. Tudo, é claro, sem os exageros
cultistas.
A exemplo das academias portuguesas que reuniam, desde o século XVII,
religiosos, militares, desembargadores e altos funcionários para práticas eruditas de ciências e
artes, principalmente a literatura, o Brasil viu florescerem também estas agremiações que
visavam ao cultismo acadêmico. Este academicismo, nascido na Itália, firmou-se no País no
século XVIII com as sociedades literárias em torno das quais girava a vida intelectual da
colônia, agora com algumas comunidades já formadas, mormente na Bahia, no Rio de Janeiro
e em Minas Gerais, devido ao desenvolvimento econômico resultante da mineração do ouro.
“As academias eram celebrativas por excelência, e o seu louvor ia desde a ênfase nativista
com que se exaltava a natureza ou a história do país, até à adulação pura e simples aos
poderosos” (MOISÉS, 1968, p. 91).
No Brasil, havia na época quase quarenta academias que, em geral,
manifestavam o espírito cultista e conceptista e foram de grande importância na formação da
nossa literatura. Porém, eram efêmeras e amadorísticas e somente algumas tiveram destaque
na história literária do País. De natureza essencialmente social, estimularam o trabalho da
inteligência e resultaram em progresso nos estudos no Brasil colonial, despertando a
consciência coletiva e nacional: agrupavam profissionais de diversas áreas, que se ajudavam
mutuamente na divulgação e repercussão das obras por eles produzidas, mantendo aceso o
gosto pela leitura e por padrões cultos de vida.
23
Antônio Soares Amora (1968) destaca as características destas agremiações
literárias, históricas ou científicas, perto de vinte, segundo ele: eram de curta duração; ligadas
ao mercantilismo oficial da metrópole, cujo representante era dom João V; muitas vezes
geraram uma literatura bajulatória, de pouca originalidade. No entanto, o crítico literário
ressalta seu valor como “estimuladoras da atividade mental e literária” e [como] focos
receptivos das idéias e das tendências dominantes na Europa, no século XVIII” (p. 28).
Este é o quadro da primeira metade do século, em que prevalece a
mediocridade das produções; as academias funcionavam, segundo alguns estudiosos, como
enfatuados focos de culteranismo (cultismo, em Portugal). Entretanto, surge tardiamente em
Portugal uma nova orientação estética, a exemplo da Itália com a Arcádia Romana e da
França (Boileau e a crítica clássica), anticultista e anticonceptista. Esta tendência denominada
Arcadismo ou Neoclassicismo, quer dizer, um retorno às fontes puras do Classicismo, gerou a
Arcádia Lusitana, em 1756. Assim, chega ao Brasil a reforma neoclássica e arcádica, sendo
criada doze anos depois a Arcádia Ultramarina. Após o mal saiu algum bem: depuraram as
academias e a literatura brasileira rejuvenesceu.
No entanto, a partir de 1724, com a criação da Academia Brasílica dos
Esquecidos na Bahia, criaram-se outras: Academia dos Felizes, no Rio de Janeiro (1736-
1740); Academia dos Seletos, também no Rio de Janeiro (1752); Academia Brasílica dos
Acadêmicos Renascidos, na Bahia (1759); Colônia Ultramarina, em Ouro Preto-MG (1768);
Academia dos Felizes, em São Paulo, (1770); Sociedade Literária do Rio de Janeiro (1786-
1790); Sociedade Bahiense dos Homens de Letras (1810) e a Arcádia Franciscana
Fluminense, no primeiro quartel do século XIX, já no período do rei dom João VI, que para cá
se transportou em 1808, fugindo do exército de Napoleão.
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Para Massaud Moisés (1985, p. 235), “Até o final do século XVIII, [as
academias] ascendiam a três dezenas, número expressivo, se atentarmos para o precário meio
cultural da Colônia.” E continua o respeitado crítico:
No geral, os temas eram de natureza literária e/ou histórica e,
por vezes, científica, como a Academia Científica do Rio de
Janeiro, que vigorou entre 1772 e 1779, destinada ao exame da
Cirurgia, História Natural, Física, Química, Farmácia e
Agricultura.
Moisés (1985) sugere ainda a consulta a Manifestações literárias da era
colônial, de José Aderaldo Castelo, e O movimento academicista no Brasil, publicação do
Conselho Estadual de Educação de São Paulo, para o conhecimento do rol completo das
academias brasileiras.
Na relação das arcádias, mais simples e mais úteis, figurava o Grupo
Mineiro ou a Escola Mineira, com o seu arcadismo pastoril prenunciando o Romantismo
brasileiro. Dele faziam parte os poetas inconfidentes e a ele pertenceu frei José de Santa Rita
Durão, juntamente com Basílio da Gama, ambos autores de festejados épicos da nossa
literatura. Caramuru e O Uraguai são alvo de estudos até hoje. E cá estou a falar do primeiro
deles, primeiro em minha preferência e dedicação.
Segundo o professor Carlos de Assis Pereira (1971), foi no ambiente da
Academia Brasílica dos Renascidos que “pela primeira vez, fatos da vida de Diogo Álvares
Caramuru serviram de motivo a dissertações de caráter histórico, e o seu nome compareceu no
esboço de um poema épico sobre o descobrimento do Brasil” (p. 1). Ele menciona ainda o fato
de que José de Oliveira Beça aponta Caramuru como o primeiro restaurador da Bahia, em
1531, depois de seu descobridor e explorador Cristóvão Jacques (1520) e seu conquistador e
povoador Francisco Pereira Coutinho (1522). Segundo alguns estudiosos, o arcadismo no
Brasil teve sua melhor representação justamente com os autores vinculados ao Grupo Mineiro,
que se notabilizou não só pela produção literária como também pelo lado trágico de suas vidas
e por sua importância histórica.
25
Para encerrar esta parte, transcrevo as observações de Massaud Moisés em
sua História da Literatura Brasileira (1985, p. 253).
A época do Arcadismo, como se vê, abrange quase oitenta anos
de uma atribulada e complexa vida política, econômica, social
estética, etc. Nela se registram vestígios barrocos, a inserção do
neoclassicismo em meio a elementos rococós, o impacto das
propostas iluministas, o advento de um estilo de arte
fundamentado no sentimento, numa evolução em espiral que
não se interrompe de todo em 1836.
Por ora, é o que basta para a preparação e continuidade do trabalho que
empreendo apoiado no épico Caramuru. Afinal, vem depois o Romantismo.
3. Dados sobre o autor do poema
Ao introduzir as considerações que faz sobre o épico no Florilégio da
poesia brasileira, tomo I (1946), Varnhagen observa: “Durão deixou-nos o Caramuru. Só
esse legado já bastaria para que falássemos dele hoje.” (p. 35). No entanto, a par com o
movimento histórico-literário que ladeou a época de criação da obra e o tempo de sua fábula,
convém comentar a história de vida de seu autor, um homem do passado que procurou
estilizar os sentimentos que experimentava e as observações que fazia. De sua biografia se
ocuparam principalmente Arthur Viegas (1914) e Varnhagen (1845), os quais, de certa forma,
fomentaram a profusão de informações que passaram para enciclopédias, dicionários, outras
edições do poema e livros didáticos.
Os dois mencionados estudiosos propuseram discussões acerca de
elementos e circunstâncias da existência do poeta, às vezes aspectos prosaicos da vida, ou
então importantes fatos que envolveram outros personagens da história, como é o caso do
“pombalismo” e do “jesuitismo” contemporâneos de Santa Rita. Os dados triviais resumidos
de sua biografia já fartamente foram disseminados, mas têm lugar aqui também a fim de que
26
sejam ponto de partida para revelações mais contundentes e que interessam ao leitor, já que,
para se processar o ato comunicativo da prática social da leitura, há de haver uma simbiose
entre autor, obra e leitor.
Diante da escassez de dados seguros e averiguados comprovadamente, as
datas por vezes são vagas e conjecturais e, pelas argumentações e refutações de seus
biógrafos, estabeleceu-se com alguma precisão o ano de nascimento e de morte e outras datas
importantes na vida do frade-escritor. Viegas (1914), na Ementa biográfica que inclui em seu
livro, proclama: “À luz dos documentos inéditos que hoje se publicam pela vez primeira, já
podemos fixar definitivamente as datas até agora incertas da biografia de Durão.” (p. XLIV).
O autor refere-se à Autobiografia do poeta inserida em seu credenciado estudo de 1914,
trazendo, inclusive, textos em latim sobre sua retratação formal perante o público e diversos
depoimentos. Assim ele introduz sua autobiografia, escrita quando estava em Roma:
Tencionando escrever de alguns sucessos que atualmente se
encontram muito escurecidos e desfigurados por indústria de
caluniadores, cumpre-me declarar desde já quem sou eu e por
que maneira e ocasião tive notícia das coisas que vou narrar;
ainda que, para o fazer, haja de manifestar, com grande
vergonha e confusão minha, as próprias iniqüidades.
Santa Rita Durão nasceu em 1722, na povoação de Nossa Senhora de
Nazaré, vulgarmente chamada Inficionado, pela impureza do seu ouro, na diocese de Mariana,
província de Minas Gerais, no Brasil. Filho de pai português e mãe brasileira, teve como
padrasto o secretário do governador da capitania de Goiás, um sanguinário partidário do
conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal. Estudou no Rio de Janeiro no Colégio dos
Jesuítas e aos nove anos foi mandado a Lisboa para estudar; aos dezesseis, professou na
Ordem dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho (1738). Depois, em Coimbra, cursou
filosofia e teologia durante sete anos. Como teólogo, seguiu para Braga, ficando lá por cinco
anos, como mestre de Teologia, tendo muito se orgulhado do cargo, a ponto de afirmar:
“Assim, por este público testemunho se prova a boa opinião que a esse tempo tinham de mim
27
os meus confrades e superiores.” (VIEGAS, 1914, p. 8). Retornando a Coimbra em 1754,
lecionou a mesma disciplina no colégio agostiniano onde estudara.
Em 1756, Durão recebeu o grau de doutor em Teologia pela Universidade
de Coimbra e dois anos mais tarde foi inscrito como membro da Academia Litúrgica, tendo
sido indicado pelo bispo conimbricense e pelo prior geral dos cônegos agostinhos. No
catálogo, figura seu nome: frei José de Santa Rita; exercia a função de censor. No tomo I de
Memórias da citada academia, na página 59 vem uma carta de agradecimento pela indicação,
escrita em latim por Durão, e neste volume, seu nome é várias vezes citado, sempre o último
nome, pelo qual aliás ficou conhecido.
A partir de então, a aparentemente pacata e bem-sucedida vida do poeta
sofre reveses e os entraves se acumulam. Tudo tem início quando, chamado pelo superior da
Província Lusitana e bispo eleito do Porto, vai a Leiria para defender o bispo dom João de
Nossa Senhora da Porta, futuro cardeal Cunha. Este religioso, que era sobrinho de dom
Antônio de Távora, temia represálias em razão do atentado contra dom José, ocorrido em
1758. Durão é forçado a criticar os jesuítas, pregando contra a Companhia de Jesus,
responsabilizando-a pela tentativa de regicídio, para que o bispo caísse nas graças de Pombal.
Ele escreve também uma carta, assinada pelo bispo dom João, protestando contra a queima
dos escritos de Sebastião de Carvalho pela Inquisição espanhola.
Estas intrigas políticas e desavenças no meio eclesiástico que promoveram o
bispo a arcebispo de Évora, prejudicaram Santa Rita. Em 1761, desentendeu-se com os
prelados de Leiria, que não o recompensaram por sua intromissão e pelas cartas que redigira
no lugar do bispo e fugiu de Portugal rompido com sua Ordem e temeroso de represálias,
mesmo tendo sido nomeado professor de hebraico. Em sua Autobiografia, o poeta narra em
detalhes as injustiças que sofreu e os tais percalços dos quais se envergonhava. Depois de
28
falar com o arcebispo, pleiteando pagamento pelas aulas de hebraico, já que lhe fora negado
empréstimo de quatrocentos mil réis, não tendo sido atendido, assim desabafou:
Saí eu dali furioso; e encontrando-me com o padre Carlos da
Cunha, irmão do arcebispo, disparei contra a ingratidão deste as
mais desabridas censuras. Correu ele logo a falar ao prelado,
aconselhando-o a que, pelo menos fingidamente, se mostrasse
benigno comigo, não fosse o caso que eu soltasse a língua
contra ele, como era de temer.
Entretanto, quando Carvalho comunicara ao arcebispo que nomeara Durão
para a cadeira de Hebraico, tentando obsequiá-lo, já que considerava o frade seu amigo, este
respondeu que não faria isso, pois só o tivera a seu lado para dele se servir. “Lá talentoso é ele,
mas creio que em pouco mais deve ser empregado que em coisas galhofeiras, como são
poesias e assunto de igual jaez.” (VIEGAS, 1914, p. 43). Segundo Viegas, todos estes
conflitos têm origem na perniciosa ingerência dos religiosos no governo. E eu completo: assim
o é como sempre foi, de ontem até hoje. Como todo poeta é filho do seu tempo,
provavelmente estes dissabores, que pensou serem “a mão vingadora de Deus” por causa das
acusações aos jesuítas, refletiram no seu Caramuru, como se verá adiante.
No dia do aniversário do seu sermão contra os jesuítas, Durão caiu
gravemente enfermo e então fez votos de retratação e retirou-se do colégio de Coimbra. As
pessoas a quem ajudara e apoiara passaram a ameaçá-lo “com o cárcere e outras penas”. Ele
contara a alguém as articulações do padre Carlos e do arcebispo com o marquês de Távora,
“quando se tentou matar el-rei”, tendo sido traído. Daí as perseguições e, para se pôr a salvo,
em combinação com os doutos teólogos, fugiu para a Espanha em dois de janeiro de 1762,
indo para Cidade-Rodrigo, no reino de Leão. Lá foi considerado fugitivo inocente e assumiu a
diocese. Naquela época, escreveu ao padre Carlos, provincial de Portugal, “dando conta de
tudo e rogando-lhe, com submissão”, uma comunicação ao provincial espanhol explicando os
acontecimentos. Nem obteve resposta, ao contrário, foi declarado fugitivo e acentuaram-se as
censuras.
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Vendo que tudo se agravava para o seu lado, Santa Rita apresenta-se ao
marquês de Sarria e pede-lhe passaporte para a Itália. Este solicita então que o frei redija a
Informação sobre as perseguições aos jesuítas em Portugal. Feito o serviço, o marquês lhe dá
generosa quantia em dinheiro, cartas de recomendação e o encaminha para Saragoça, no
convento dos Agostinhos, sendo porém preterido por ter feito a apologia aos jesuítas. Passou
então à França (Toulouse), com o intuito de chegar a Roma. Alguns prelados o auxiliaram
dando-lhe “doze mil réis de viático” e as suas bênçãos.
No chuvoso janeiro de 1763, Durão pôs-se a caminho, tendo um moço por
acompanhante; chegou a Nice a pé, com muita dificuldade pois, conforme declarou, era “de
compleição bastante delicada”. Com vergonha de esmolar, pediu abrigo aos agostinhos.
Escreveu uma carta ao pontífice geral de Roma, fazendo-lhe saber que, por razões de
consciência empreendera a viagem.
Este lado injustiçado da biografia do poeta, pouco difundido em suas
minúcias, põe a claro sua inabalável fé em Deus e sua firmeza de caráter e de propósitos. Aqui
se vê o homem disposto, como Jó, a reconhecer os favores divinos, em sua Biografia inserida
em Viegas (1914, p. 58).
Desde que saí de Nice não se passou dia algum sem eu
experimentar o favor quase milagroso da infinita clemência de
Deus, pois havendo partido sem dinheiro, e não pedindo
esmola, encontrei almas de eleição que, ouvindo-me, logo me
proviam com fartura.
Chegando a Florença, Durão teve oportunidade de se identificar como o
“desgraçado” autor das cartas contra os jesuítas, justamente ao núncio apostólico de Lisboa, o
cardeal Aciajuoli, expulso de lá pelo testa-de-ferro de Pombal, dom Luís da Cunha. O
“deplorável conflito” e a “rude grosseria” é contada em detalhes pelo poeta em sua biografia
(p. 60). De Florença ele foi para Viterbo (cidade italiana próxima de Roma), onde era
esperado pelo vigário-geral da cúria da Ordem agostiniana para ser julgado. “O parecer quase
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unânime foi que me condenassem a cárcere perpétuo, de sorte que nunca mais se ouvisse falar
de mim.”, escreveu mais tarde. Apesar de seus rogos e súplicas, os agostinhos obrigaram-no a
voltar para a Espanha, temerosos de que o encontrassem por eles abrigado. Argumentou que
poderia ir para a Alemanha, Índias Ocidentais ou qualquer outra parte do mundo, menos para
as vizinhanças de Portugal. Tudo foi embalde. O bispo de Montefiascone, em Corneto,
propõe-se a defendê-lo, mas o frei prefere obedecer a seus superiores e vai para a região da
Andaluzia. Foi por isto elogiado pelo bispo, o qual lhe foi clemente em outras circunstâncias.
Já em 1763, no mês de maio, Santa Rita estava em Cádiz. Com receio da
perseguição do primeiro-ministro de Portugal, o marquês de Pombal, sempre ligado aos
irmãos de sua Ordem, por instâncias destes, fugiu para a França, em outubro. Tão assustado
ficou que atravessou a pé a região de Catalunha, atingindo a cidade de Urgel, sendo recebido
generosamente pelos padres agostinhos franceses. Entretanto, foi denunciado, sendo preso no
caminho para Montpellier e interrogado com severidade no Parlamento de Toulouse. O poeta
observa, a propósito do acontecido: “Neste lance dei-me por perdido, mormente refletindo
que sucedia isto no dia 26 de janeiro [de 1764], exatamente o mesmo em que eu partira para
Leiria, em 1759, a pregar o sermão contra os jesuítas.”
Para escapar de novos embaraços, assegurou que nada dissera contra a
França, temendo ser acusado de ter praticado crime de Estado, conforme aponta em suas
memórias. Seu interrogador, Mr. Gispert, alegando ser o réu conspirador, a despeito de seus
desmentidos, condena-o pelo episódio no qual se envolvera em Portugal, em 1759, juntamente
com o padre Malagrida. No entanto, foi bem tratado e mantido em prisão benigna até
chegarem ordens da corte de Paris. Depois de quatro meses, ofereceram-lhe residência na
França em troca de jamais se comunicar com jesuítas ou amigo deles, “e isto sob graves
penas”. O frei respondeu então: “[...] preferia obter passaporte para a Itália, visto faltar-me
perspicácia para conhecer os corações dos que eram amigos dos jesuítas”. Parece que nosso
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poeta aprendeu finalmente a lição e pensou em não mais ser ludibriado, traído e explorado.
Conseguiu por fim o salvo-conduto para viajar para a Itália, no qual constava que nunca
desacatara o rei francês e nem as leis do país.
Em 20 de junho daquele ano, no porto de Marselha, recebeu documento da
Sagrada Penitenciária que lhe possibilitou o embarque, chegando a Montefiasco em 21 de
agosto, após uma viagem difícil e sofrida por causa da extrema pobreza. Ali foi recebido e
tratado com caridade: os prelados vestiram-no, deram-lhe dinheiro e o aconselharam a se
arrepender do que já fizera e a ser prudente nas suas falas em Roma e cauteloso contra os
ímpios. Considera ele que assim fizera-se justiça. Com isto vem nova etapa em sua vida. Em
Roma, consegue audiência com o papa Clemente XII, ao qual apresenta o resumo dos
acontecimentos (Epítome) e a retratação de seus erros (Retratação). Foi tão enfático neste
mister a ponto de confessar: “Se lanço os olhos para a minha vida e misérias, e considero a
enormidade dos meus pecados, mal posso alentar o meu espírito para não cair em
desesperação.”
O poeta permaneceu vários anos na Itália, tendo sido simples bibliotecário na
Livraria Pública Lancisiana, cargo que exerceu por nove anos. Depois disso, pobre e
desempregado, escreveu ao bispo de Beja, próximo de Pombal, pedindo interferência para sua
nomeação como professor em alguma vaga deixada por jesuíta expulso. Cópia desta carta,
datada de 10-8-1773 e arquivada no Cenáculo em Évora, figura na edição de 1885 do
Dicionário Bibliográfico Português (p. 194-195). Com a “viradeira” provocada pela queda do
marquês de Pombal do governo lusitano, em 1777, Santa Rita Durão retorna a Portugal e
obtém a cátedra de Teologia na Universidade de Coimbra, onde recitou a oração de sapiência
(aula inaugural) do ano letivo de 1778. Segundo Varnhagen (1845, p.409), transformou-se em
discurso impresso em abril do mesmo ano com o título Josephi Duram Theologi
Conimbricensis O. E. S. A. pro annua studiorum instauratione oratio. Para o biógrafo, no
32
discurso se confirmam as suas viagens à Itália. “Se bem que às vezes empolado e com uma ou
outra hipérbole, passa por uma das mais eloqüentes peças em latim, que se tem proferido em
tal ato de ostentação solene.” Nela o então professor mostra seu amor à ciência. Ainda na
mesma instituição, publica em 1779 a Novena do glorioso são Gonçalo de Lagos. Em 1781,de
volta a Lisboa, vê editada sua obra-prima Caramuru: Poema épico do descobrimento da
Bahia. Entra para a história e deixa à posteridade a epopéia dos brasileiros, mesmo sem nunca
ter voltado ao Brasil. Três anos mais tarde, em 24 de janeiro de 1784, estando já muito doente,
morre em Alfama, para onde havia sido levado. Foi enterrado no Hospício do Coleginho
daquela cidade portuguesa. Sobre sua morte, conforme explica Varnhagen, a pedido do
secretário geral do governo civil, empreende uma pesquisa biográfica de Santa Rita, cujo
resultado se publicou em parte na edição de 1860 do Dicionário. Tomou depoimento do idoso
padre agostiniano João de Saavedra, em presença do administrador do bairro do Rossio, em
14-8-1845. Assegurou o religioso que a morte do poeta ocorrera entre abril de 1783 e maio de
1784, durante o seu noviciado, mas que não se lembrava exatamente. Entretanto, no mesmo
Dicionário (p.113), seu editor assim imprimiu: “Anos depois tive a satisfação de ver elucidada
a matéria, quando a fortuna me deparou as Memórias obituárias dos padres gracianos que
foram escritores”. Coligidas no fim do século XVIII, esclarecem que Durão morrera no
colégio de Santo Agostinho em 24-1-1784. E Savedra recordara: “Num dia em que se
reuniram os noviços para o exercício da manhã” rezaram pela alma do mestre Durão, que
havia falecido naquela noite invernal.
Ao longo de sua vida, o dom de escritor sempre se manifestou em Durão,
possibilitando que deixasse muitos textos, uns por solicitação ou necessidade, outros por
inspiração e vontade. Escritos em latim ou em erudito português, pertencem a diversos
gêneros: documentos, dissertações, sermões, aulas, cartas, pastorais, poesias, epítomes que
atestam sua cultura e versatilidade nas letras. Culminou sua trajetória por este mundo
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brindando a humanidade com um belo poema; e foi como poeta que se consagrou. Afirma seu
biógrafo Varnhagen (1845) que “Por informação de outro religioso da mesma ordem, [...]
consta que em mãos de seus confrades existiam cópias de muitos sonetos, versos líricos e até
jocosos do mesmo Durão [...]”. (p. 410). Diz ainda que o frei não permitira que fossem
impressos e que naturalmente restaram perdidos com a supressão dos conventos. Além disso,
sabe-se que Santa Rita Durão teria destruído vários poemas líricos inéditos assim que soube da
fraca repercussão, nos meios literários portugueses, do seu livro publicado.
Contudo, apesar de inegável a ligação quase obrigatória do poeta com seu
poema épico, o frei-escritor produziu numerosos textos, desenvolvendo extensa atividade
neste campo. Chegaram até nós, porque arquivados, impressos ou divulgados, outros trabalhos
além dos já citados neste capítulo da tese, onde se fala da atribulada vida do escritor. Ao
mencioná-los agora, tento ressaltar a cultura e habilidade de quem, ao que tudo indica, viveu
para escrever.
Dentre seus primeiros trabalhos está Descrição da função do imperador de
Eiras que se costuma fazer todos os anos no mosteiro de Cellas, junto a Coimbra, dia do
Espírito Santo escrito em vernáculo, com versos macarrônicos. O poemeto de setenta e cinco
hexâmetros foi dado a publicação por Mendes dos Remédios, que o prefaciou, na Revista de
Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, vol. 6, 1920, pp. 8-82. A poesia não é citada no tomo
quinto do Dicionário Bibliográfico Português, figurando porém no tomo treze (linha 10 418) o
qual informa que ela teria aparecido também no Portugal pitoresco (número 9 e número 10).
O referido dicionário, no tomo quinto, menciona a Novena de são Gonçalo
de Lagos, advogado dos mareantes como de autoria de Durão, conforme se registra nas
Memórias obituárias dos padres gracianos que foram escritores, já citadas. A novena foi
publicada em Lisboa (agosto de 1781), sem que constasse o nome de seu autor. Ainda em
português, Santa Rita escreveu Écloga piscatória de Forgino e Durian. Esta poesia pastoral
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dialogada, conforme observa Rubem Borba de Morais na Bibliografia brasileira do período
colonial (1969), permanece inédita. Da mesma forma, o dicionário inclui Ode lírica
defendendo conclusões de retórica de um menino de idade de sete anos como de autoria de
Durão, sem data de composição, e que teria sido publicada por Teófilo Braga em 1901.
Concluindo, faço algumas reflexões sobre os dados biográficos do poeta.
Inocêncio Francisco da Silva, compilador do Dicionário bibliográfico português (1860),
considerou incompletas e deficientes quanto a fatos importantes da vida de Santa Rita Durão,
as informações divulgadas por Varnhagen. Penso que isto em parte já se corrigiu com a
publicação de Arthur Viegas, de 1914, a qual põe em apenso a autobiografia do frade e três
valorosos documentos inéditos: Retratação, Epítome e Informação. Outras referências (como
livros, artigos de jornais, revistas e periódicos), assinadas por eminentes pesquisadores, dão
conta de comunicar ao público interessado como viveu o autor de Caramuru. Em Portugal,
órgãos governamentais mandaram proceder a investigações oficiais, algumas para agradar a
ministros brasileiros, de sorte que, após indagações, depoimentos e pesquisas históricas e
biográficas, tem-se um panorama dos passos por ele trilhados.
É fato que, com relação ao poeta, há muito ainda para ser investigado, mas
com o que já sabemos dele é interessante que falemos de sua obra capital, aliás, o motor que
faz mover toda esta tese.
4. O épico Caramuru
Se Basílio da Gama vaticinou “Serás lido, Uraguai,” Santa Rita Durão teve,
para apologia da sua obra-prima vozes e mais vozes de historiadores, críticos literários e
professores, como eu, que nela viram valor histórico e literário, representante valorosa de
nossa cultura. Provavelmente comungava deste pensamento o historiador Varnhagen quando
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afirmou (está no Florilégio): “O Caramuru ganhará, de dia para dia, mais partido, e chegará
talvez a ser um dia popular no Brasil.” Em certa medida isto se realizou e, se depender de
mim, continuará acontecendo ainda, agora em versão adaptada em prosa, a qual procura
manter a mesma essência do original e é acrescida de anotações complementares. É a forma
de repartir com o público a antiga poesia de temas tão atuais, uma flor que vai demorar a
murchar.
“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não
outra, que nos exprime.” (CÂNDIDO, 1964, p. 10). Nada mais sábio poderia proferir o
entusiasta defensor dos nossos textos literários! É estimulada por esta valorização das
produções brasileiras que me animo a falar dos versos de Durão e vou tentar difundi-lo entre o
público leitor.
Sendo professor da Universidade Restaurada, de Lisboa, Durão compõe seu
poema com exatidão de palavras, simplicidade e forma erudita, componentes ideais para os
leitores de então, geralmente cultos e letrados, pois os populares às vezes nem ler sabiam.
Segundo Cidade (1961), “informa da futura história do Brasil” e demonstra “o amor
comovido e exaltante do brasileiro saudoso” (p. 12). E continua: nele, “o próprio sonho é de
nítido e minucioso realismo”. E seu apreço pela terra natal o levou a escrever o épico que,
segundo ele, o País merecia pelos acontecimentos aqui ocorridos. Não que ele os tivesse
vivenciado, mas pelas pesquisas que realizara nos livros de história, em documentos de
arquivos públicos e religiosos, em textos de cronistas da época e, ao que parece, na carta de
Caminha. A universidade onde dava aulas era bem equipada, tinha excelente biblioteca, assim
como a de Lisboa, porém contou muito o que ele tinha na mente e no coração como imagem
de uma terra promissora. Na verdade, ele idealizou um Brasil engrandecido pelas belezas
naturais e culturais, elevando-o a potência histórica; dá-lhe estatuto político representativo na
geografia mundial. Ao introduzir sua obra, fazendo uma síntese do poema, Durão termina
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sugerindo consultas a Simão de Vasconcelos, Francisco de Brito Freire e Sebastião da Rocha
Pita. Cita apenas estes nomes, omitindo com certeza outros tantos em cujas fontes bebeu.
Além de Caminha, talvez tenha visitado Itaparica. Disto e de outros assuntos mais escrevo na
parte da tese sobre a tradição impressa de Caramuru.
Muitas vezes atrelado a O Uraguai, o poema de Santa Rita, produzido doze
anos depois dele, segundo Varnhagen, lembra aquela composição “ao menos na mistura e
têmpera das cores,” observando que “nenhuma referência faz porém a isso Durão.” Um
estudo comparativo entre os dois poemas árcades evidencia que, apesar de pertencerem ao
mesmo período literário brasileiro, ou seja, o setecentismo ou período neoclássico, são bem
diferentes em seu argumento e forma. No poema de Basílio da Gama, o argumento histórico é
a briga pelas terras do sul do Brasil. Estruturado em cinco cantos, estrofação livre,
decassílabos brancos, O Uraguai situa-se em posição anticamoniana, num momento em que
Os lusíadas eram o modelo de poesia épica; apesar disso, a presença de Camões é notada em
muitos passos do poema. As severas críticas feitas por Verney ao gênio português e sua obra
não vingaram. Segundo Hernâni Cidade, “naturalmente, a severidade do Barbadinho, tão mau
julgador da poesia pura, não podia deixar de ser repelida pelos verdadeiros poetas.”
(CIDADE, 1961, p. 9). Em Durão, “a recusa da ficção mitológica, na linha da poesia
filosófica em moda no tempo, poderia ser interpretada como perfilhamento da restrição ao
poema de Camões.” (MOISÉS, 1985, p.301). Porém o próprio crítico conclui que isto se
deveu muito mais à condição eclesiástica do autor de Caramuru.
A ação de Caramuru gira em torno do descobrimento da Bahia, conforme
anuncia seu subtítulo, e gravita em torno de Diogo Álvares Correia e sua lendária existência
entre os índios brasileiros. O poeta considerou este assunto digno de um poema e usou o tema
com certa falta de rigor crítico, é verdade, acentuado pela sua condição sacerdotal. “Usou a
obra como instrumento de ataque a uma doutrina contemporânea, ou seja, polemiza os
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libertinos, mostrando-lhes, no poema épico, um quadro histórico capaz de desmentir-lhes as
pretensões.” (MOISÉS, 1985, p. 300). Assim, empregou o talento literário para outros fins
que não a criação da beleza estética. Ora, ao que me parece, este fato não desmerece o poema;
nada impede, creio, que a arte sugira o aperfeiçoamento ético do ser humano.
Evidenciando em seus versos imitação direta e assumida do modelo
camoniano (mais neoclássico impossível), na saga de Diogo Álvares Caramuru o poeta
apresenta uma panorâmica histórica, política e natural do Brasil, sempre inspirado em
cronistas, historiadores e na religião. No entanto, convenhamos, há grande distância entre os
feitos portugueses marítimos decantados por Camões e a epopéia de um só português
enaltecido por Durão, dentro da perspectiva histórica: é uma nação contra um indivíduo. Há
que ressaltar, porém, a intenção do poeta de representar, na pessoa do colonizador, a própria
nação brasileira. (Ver p. 44, l. 21). Salva-se o poema pelas descrições minuciosas da terá e
seus habitantes, pelas narrativas detalhadas de lutas e viagens, além da lírica apresentação do
romance entre Diogo e Paraguaçu, onde não faltou o ciúme desmedido de Moema. Some-se a
isto a pregação religiosa, a elevação moral dos costumes e o combate à antropofagia; tem-se
então a bela página literária com que Durão nos brindou.
Estruturalmente, o poema é uma imitação do modelo camoniano: dez cantos
em oitava-rima e decassílabos heróicos (ABABABCC), observando a divisão tradicional em
proposição, invocação, dedicatória, narrativa ou exposição e epílogo, além do uso da
linguagem mitológica e do maravilhoso. As únicas discordâncias são de imposição
neoclássica: substituição do maravilhoso pagão pelo maravilhoso cristão, representado pelas
visões da Virgem Maria, e a busca de verossimilhança, mantida por investigações em dados
reais.
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Em Caramuru, a matéria épica está assim distribuída: na primeira estrofe do
canto I, a proposição (cantar o valor do varão que chegara ao recôncavo da Bahia); na
segunda, a invocação (ao Santo Esplendor e à Virgem); na terceira, a dedicatória (ao príncipe
dom José), que se prolonga até à oitava estrofe; na nona estância ainda do primeiro canto tem
início a narrativa, que se desenvolve até a quadragésima-oitava estrofe do último canto (desde
o naufrágio do lusitano herói até sua volta triunfal ao Brasil, após visitar a França e lá casar
com a índia); a partir da estrofe 49 deste décimo canto há o epílogo (chegada de Tomé de
Sousa e a entrega da colônia a ele que ali representava o rei, em pomposa cerimônia) que
durou até a derradeira estrofe 77. Na ocasião, Diogo e Catarina/Paraguaçu são homenageados
na colônia por decreto real, com grandes honrarias. É o final feliz do lado romanesco do
poema. É também uma espécie de constatação de que o Brasil pertencia a Portugal,
representando ainda o triunfo da verdade dos dogmas católicos propostos na Contra-Reforma
protestante.
O que para alguns estudiosos é enfadonho relato histórico e enumeração de
itens da flora e fauna, para outros a narrativa é por eles enriquecida, sendo a matéria descritiva
e informativa bastante relevante. Antônio Soares Amora (1968, p. 34) destaca: “O poema
despertou interesse, sobretudo pelo pitoresco indígena e pela tese (sentido ecumênico do
imperialismo português; caráter piedoso dos heróis da colonização, e o exigente sentido da
lealdade ao rei, na gente portuguesa)”. De acordo com as convenções que regiam a arte
clássica, em pelo menos quatro características a epopéia duraniana pode ser enquadrada:
valorização da natureza; universalidade do tema, sem individualismo; presença de entidades
mitológicas e predomínio da lógica, tudo num estilo pouco rebuscado, porém brilhante. Durão
paga um tributo ao século XVIII valorizando a vida natural, mais pura e distante da
corrupção. Seria um revide por causa dos ambientes corrompidos e nefastos nos quais viveu?
Seria o seu discurso endereçado aos religiosos e políticos “pecadores”, numa ação salvadora e
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evangelizadora da humanidade? Para ele, o meio não corrompeu, sacrificou, mas ele, como
homem, soube acabar seus dias dignamente; retribuiu com uma produção benfazeja para a
sociedade. Além de seu valor literário, a obra de Durão pode ser vista como expressão do
triunfo português na América e manifesto de posições particulares dos americanos do sul.
Serve também para representar a lusitanização do Brasil, sem contudo desmerecer o nativismo
que vicejava no país então.
Como tudo não são flores, Mário Faustino (1930-1962) em polêmico texto
de 1959, republicado em 2003, só vê defeitos em Caramuru, para ele, “um enorme e
tediosíssimo fracasso”. Não concordo com seu discurso, já que me ponho a apreciar as
virtudes e belezas do poema. Subjetivo em excesso, chega a dizer: “Na estrofe 88 desse canto
[terceiro] a imitação de Camões (Aljubarrota) chega a ser caso de polícia”. (p.173). Ora, o
poeta nunca negou ter no renascentista o seu modelo. Ainda forte no verbo, chama de
“críticos levianos” os que afirmam ser o trecho que narra a morte de Moema, no sexto canto,
o ponto alto do poema. Neste caso sou obrigada a concordar com Faustino. Acredito que se
alguma parte merece ser destacada é o sétimo canto. Nas belas e pitorescas descrições
retrospectivas do Brasil, a pena do poeta se transformou em pincel a tecer vários quadros, à
parte a imitação de frei Manuel de Santa Maria Itaparica (1704–1769), autor de “Descrição da
ilha de Itaparica” inserida na Antologia dos poetas brasileiros da fase colonial organizada por
Sérgio Buarque de Holanda e publicada em 1953. De todo modo, este canto vale a leitura do
poema inteiro pois nele Durão foi poeta e nacionalista, colocando nos lábios do herói a
descrição do meio físico brasileiro e suas riquezas vegetais e minerais, além de sua variada
fauna. A partir da estrofe 23, a pedido do rei francês, descortina-se um Brasil lindo, rico e
prazeroso, artisticamente desenhado.
A seguir, apresento um resumo dos dez cantos do poema para que se tenha
formada uma idéia da estrutura macrotextual. No primeiro canto, após o exórdio
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(apresentação do assunto) e da invocação a Deus, relata-se o naufrágio de Diogo Álvares
Correia e alguns companheiros de viagem e sua chegada às praias do recôncavo, exaustos;
logo se vêem rodeados pelos indígenas. Assistem à prática da antropofagia que aqui era
comum e já imaginam o seu fim. Enquanto esperam, distraem-se com a narrativa de
Fernando, um dos náufragos, sobre a lenda da estátua profética erguida na deserta ilha
açoriana do Corvo; ela apontava para o promissor Brasil. A história inserida vai da estrofe 36
à 66. Os cativos suplicam a Deus um anjo salvador; surge Sergipe, inimigo do tupinambá
Gupeva, que ataca, destrói a aldeia e leva submissos os companheiros de Diogo; o sacrifício é
adiado, mas deles não se tem mais notícias.
O segundo canto apresenta um Diogo magro e doente; não apetecera aos
canibais. Todavia, ele pensa num modo de salvar os companheiros. Veste a armadura, toma a
espingarda e pólvora que havia guardado numa gruta. Amedronta a todos, inclusive Gupeva;
tenta amansar os índios e ameaça acabar com tudo em fogo se persistirem na antropofagia. Na
claridade da gruta onde havia uma candeia acesa, vêem o retrato da Virgem. Na caçada com
os nativos, Diogo atira certeiramente numa ave e imediatamente é aclamado “Caramuru”,
“Filho do Trovão” (estrofe 43). Caramuru então dá início ao seu projeto de catequização dos
índios. O poeta fala agora dos selvagens, suas aldeias, suas cabanas e seus costumes, entre
eles o “couvage” ou puerpério. É também neste canto que Diogo, além de ser comparado a
Tupã, conhece Paraguaçu, sua intérprete no relacionamento com os índios: aprendera o
português com um prisioneiro. Eles se apaixonam e o caso de amor percorre todo o poema, a
partir da estrofe 83.
No terceiro canto, prossegue a evangelização de Gupeva por Caramuru,
tendo como intérprete a formosa Paraguaçu. Falam sobre a existência de um ser supremo que
governa o mundo. Aí é maior a cultura do teólogo Durão que a inspiração do poeta; mesmo
assim este é um trecho apreciável da poesia, sobretudo quando aborda a problemática do
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tempo. Diogo pasma de ver que tinham exata noção de Deus, do céu e do inferno. Narra-se a
lenda da pregação de são Tomé (Sumé) em terras americanas, suspensa repentinamente por
causa dos inimigos caetés que se aproximavam. O herói tranqüiliza Gupeva lembrando-o de
sua arma de fogo.
O quarto canto trata das lutas entre os caetés, cerca de trinta mil em seis
brigadas, comandados por Jararaca, e os tupinambás chefiados por Gupeva. Estes são os
versos mais movimentados do poema; abordam as formas de luta, as leis e armas, os trajes
guerreiros e as tribos envolvidas. Prevalece a imaginação do poeta e entra o elemento ciúme,
já que Jararaca amava a donzela que o rejeitara por amor a Diogo. Vence Gupeva o qual
impera na Bahia, povoada pelos tupinambás, com cerca de trinta mil arqueiros e mil
amazonas comandadas pela valente Paraguaçu. Esta se expõe a grande perigo e Diogo
intervém a tempo, antes que a devorem.
No quinto canto, após a batalha, Caramuru faz um discurso convencendo
sua amada da bondade divina. Conversam sobre a maldade humana e as razões por que Deus
a permite, já que é bom e amável. Aí continua o teólogo-poeta uma obra em que, ao
patriotismo épico se mistura o proselitismo religioso. Novamente o herói lusitano tem ocasião
para disparar seu fogo, ao defender o chefe Gupeva de um ataque dos adversários que vinham
por mar. Jararaca, que comandava as trezentas nações, morre com o tiro certeiro na cabeça.
Diogo é novamente aclamado e dez mensageiros vindos do sertão confirmam sua sujeição ao
“príncipe”. Curiosamente, um selvagem com o corpo coberto de marimbondos, padecendo a
morte, recusa-se a se sujeitar a Diogo. Aqui o poeta expõe com dramaticidade o dilema da
colonização e o objetivo português de organizar a colônia. Encerra o canto com digressões
sobre o valor do espírito, da razão e do pensamento com relação à carne.
O sexto canto se inicia com as tribos, através de seus chefes, oferecendo
presentes e esposas a Diogo; este aceita Paraguaçu e as moças desprezadas tramam contra a
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vida da preferida. Ao penetrar na mata, o herói encontra uma gruta em forma de igreja e a vê
como símbolo da disponibilidade dos índios para a aceitação da fé católica. Depois ele socorre
a tripulação de um navio afundado na costa; eram viajantes espanhóis. Saudoso da Europa,
Caramuru parte com sua Paraguaçu em uma nau francesa que ali aportara. O poeta descreve
aqui o conhecido episódio da morte de Moema e seus lamentos quando perseguia a nado a
embarcação (estrofe 42). A pedido de Duplessis, comandante do navio, Caramuru narra a
história do descobrimento do Brasil e fala de suas províncias e sua geografia.
No sétimo canto, o casal chega a Paris, é recebido na corte e a índia é
batizada, recebendo o nome da rainha: Catarina. Catarina de Médicis, esposa de Henrique II,
foi sua madrinha. A seguir, ocorre seu casamento com Diogo; há um banquete no paço e os
dois são recebidos em audiência particular pelos reis. Este quer saber como é o Brasil. Agora
têm lugar as mais belas estrofes do poema pelo pitoresco das cenas e pelas minúcias das
descrições, claramente inspiradas em Itaparica, Pero Vaz de Caminha e Rocha Pita, apesar de
Durão citar a apenas o último escritor. Sem dúvida, este é o canto que mais encanta; fauna e
flora deslumbrantes são retratadas com riqueza de detalhes, destacando-se a comparação que
o poeta faz da flor de maracujá com os martírios de Cristo.
O oitavo canto tem início com a disposição de Henrique II, através de
Duplessis, em ajudar Diogo Álvares na tarefa de doutrinar e aculturar os indígenas,
oferecendo-lhe tropa e recompensa, em troca de fidelidade à França. O patriótico lusitano, fiel
ao seu país, nega-se a tornar o Brasil colônia francesa, invocando o feito de Cabral. Duplessis
o admira por isso. A viagem de volta ao Brasil ocupa boa parte deste canto. Assim, nestes
versos, Paraguaçu/Catarina cai em profundo êxtase e profetiza o futuro da nação brasileira,
não sem antes falar da rainha e de sua estada na corte. Todos pedem que narre a visão que
tivera ao desmaiar no barco. Apresenta o Brasil como um país rico, opulento e vasto.
Descreve as terras da Bahia, suas povoações, igrejas, engenhos, fortalezas. Fala dos
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governadores e da luta contra os tamoios e o invasor francês Villegaignon, travada por Mem
de Sá na enseada de Niterói. Fala ainda de Estácio de Sá que, aliado aos tapuias, funda a
cidade do Rio de Janeiro. Surge então uma imagem, simbolizando a paz e prevendo setenta
anos de um governo justo para o Brasil, dirigido por Martim Afonso de Sousa. A voz do
evangelho, a ação dos jesuítas e as armas da cruz falam mais alto. No final do canto, são
surpreendidos por uma tempestade; Catarina cala-se e todos passam a se preocupar com o
comando do navio.
O nono canto expõe o prosseguimento do vaticínio de Paraguaçu/Catarina
para o Brasil, após o término da tempestade. Com base em sua visão, ela conta a luta contra os
holandeses até a expulsão destes e a restauração de Pernambuco. Com grande eloqüência, a
sucessão dos episódios, a galeria dos heróis, tudo é apresentado em perfeita conformidade
com a realidade histórica. Baseado nos historiadores e cronistas portugueses da época, o poeta
distancia-se da imaginação e garante um alto grau de verossimilhança, citando nomes, datas e
acontecimentos verdadeiros, diferentemente de sua narração das guerras entre os indígenas,
apresentadas no quarto e quinto cantos.
No décimo e último canto, Paraguaçu/Catarina termina o seu relato. A visão
profética é substituída pela visão da Virgem Maria, abordando a criação do universo. Ao
chegar, o casal é recebido pela caravela de Carlos V que agradece a Diogo o socorro aos
náufragos espanhóis (canto VI, estrofes 22 a 34). Depois disso são relatados os
acontecimentos memoráveis da Bahia anteriores e posteriores à volta do casal. Narra-se a
história de Pereira Coutinho que, para a dominação dos campos baianos e povoamento do
Recôncavo, aliou-se aos tupinambás. A índia reconhece, numa imagem roubada do navio,
aquela que lhe aparecera em sonho; funda então uma igreja. Em cerimônia realizada na Casa
da Torre, o casal é revestido de realeza, porém transfere-a para dom João III, representado na
ocasião pelo primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa. Ele toma posse e manda
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cessar a guerra no sertão, castigar os homicidas e proibir a antropofagia. A penúltima estrofe
canta a preservação da liberdade do índio e a responsabilidade do reino na divulgação da
religião cristã entre eles. Resume-se aí o teor da ação expansionista como sempre a
conceberam os que bem representaram a espiritualidade portuguesa. Na última estrofe, o
epílogo: por decreto real, Diogo e Catarina recebem as honras da colônia lusitana no Brasil.
Enfim, Caramuru, em sua totalidade, trata dos temas principais do período
colonial brasileiro, sendo apreciado pelos aspectos lírico, histórico, político, religioso,
antropológico e, sobretudo, artístico. A despeito de análises que o consideram de linguagem
pobre, às vezes áspera, estilo sem grandes recursos, de expressão pouco animada e de colorido
pálido, compensa tudo isto com amplitude de gáudios, variedade de cenas e abundância de
episódios. Tem valor porque é uma produção natural e realista na qual toda a matéria “flui
num verso relativamente fácil, quase sempre elegante, freqüentemente harmonioso que se
organiza em estrofes de construção regularíssima”. (CIDADE, 1961, p. 15).
Este mesmo autor, em sua antologia para a coleção Nossos Clássicos
(1957), inclui no final do livro opiniões de diversos críticos literários sobre o poema de
Durão. Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco consideram o poeta um pouco gongórico.
Fernando Wolf admira “o seu domínio da língua, a surpreendente beleza e harmonia da
versificação e a maneira como conduz os episódios”. Enxergando na epopéia alguns defeitos,
José Veríssimo afirma que o poeta, apesar das boas intenções, era “mal servido por um
medíocre talento poético”, do que discordo completamente. Fidelino de Figueiredo chega a
declarar: “o Caramuru é esteticamente mais europeu, mas nos sentimentos que o animam é
mais ousadamente americanófilo”. Sim, o próprio Durão confessa seu nativismo: canta
Portugal, porém também canta “o povo do Brasil convulso”. Ronald de Carvalho ressalta a
cultura, erudição, eloqüência e pureza lingüística do poeta. Artur da Mota indica o poema um
“predecessor e orientador do indianismo romântico de Magalhães e Gonçalves Dias”. Antônio
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Soares Amora observa: “exigentemente fiel aos preceitos estéticos do neoclassicismo, [o
poema] não teve o sentido renovador de O Uraguai, e daí não ter sido tão estimado pelo
Romantismo”.
Em suma, resistindo a diferentes julgamentos críticos, ora homogêneos, ora
conflitantes, Caramuru sobrevive e ainda se destaca nos anais de nossa história e no cânone
literário; precisa ser lido e relido, mesmo em nova roupagem. Narrativas histórico-ficcionais
sempre seduziram leitores. Como história se atrela a tempo, e este corre sem parar, na
retomada de acontecimentos passados e narrados num determinado estágio lingüístico, é
imperioso que medidas sejam tomadas para que a recepção do texto em outra época e por um
público maior se efetive e seja profícua. Isto se dá, com certeza, pelo exercício da leitura. Se
os usos da linguagem são reguladas socialmente, impõe-se a necessidade de tornar a
expressão dos textos clássicos passível de ser assimilada pelo leitor de outros tempos . Esses
textos, quase sempre, revivem episódios que a humanidade repete ainda hoje. Lendo-os, os
mecanismos de reflexão acionados podem originar ações e novos comportamentos.
Este é um importante papel da leitura que também desejo resgatar com a
adaptação de Caramuru.
CAPÍTULO II
HISTÓRIA EDITORIAL E PROCEDIMENTOS DE ADAPTAÇÃO DO TEXTO
1. A tradição impressa de Caramuru e outras publicações baseadas no
poema
Considerando que este trabalho visa a uma edição adaptada da epopéia de
Santa Rita Durão, importa cuidar com especial dedicação deste item da pesquisa. Compulsei
todos os volumes encontrados, alguns em forma de xerocópias dos originais (os mais antigos
e mais raros), e os livros atuais, incluindo variantes produzidas em prosa ou em versão
adaptada para jovens e crianças, além da tradução francesa. De posse do material sobre o
autor e sua obra, foi feito criterioso exame dos textos e das informações e fiz uma análise
minuciosa de cada exemplar a fim de organizar a história editorial deste clássico da nossa
literatura, ainda muito presente e que precisa e merece ser lido. É necessário esclarecer, no
entanto, que não se trata de recensão, até porque a intenção não é de ordem filológica: o que
se pretende é reescrever o texto em outro formato. Observo também que desconsiderei as
impressões de excertos e fragmentos do poema, contando apenas com as edições completas,
exceção feita à edição de Hernâni Cidade (1957), uma antologia.
Consultei textos antigos, até de contemporâneos de Durão, donde retirei
subsídios para comentários e citações, não desprezando, porém, as críticas e discussões
recentes. O aprofundamento dos estudos e o confronto das edições influem na leitura que faço
da obra e, muito mais, na reescritura dela. Neste mister é indispensável levar em conta os
achados científicos e manter o empenho de pesquisadora com olhos também de lingüista ao
elaborar a nova composição. Enfim, do levantamento e cotejo das edições e do manuscrito,
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elaboro a minha edição, contando ainda com o respaldo oportuno de importante bibliografia
sobre Caramuru, Santa Rita Durão e o contexto histórico-literário de criação e divulgação do
poema.
a) O manuscrito (1779-1780)
Antes de descrever os exemplares impressos, dou lugar a observações sobre
o manuscrito apógrafo, com certeza o começo de tudo e uma das bases da pretendida edição.
Depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, adquiri através da Fundação Pró-
Memória, em 2002, o microfilme e, para facilidade de manuseio, fiz cópias impressas no
Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (Cedap) da Unesp de Assis, o que me
possibilitou inúmeras consultas.
Do manuscrito saiu a editio princeps; esta reproduz o original, destacando-se
a substituição de uns versos por outros, as emendas e correções que neles foram introduzidas.
Carlos de Assis Pereira (1974, p.95) cita exemplos de outras intromissões do autor: “No rosto
do manuscrito – onde comparece o título e o subtítulo da obra: Caramuru/Poema Epico/Do
Descobrimento da Bahia/Comprehendendo/Em varios episodios a historia do Brazil,/Dos
ritos, tradições, e Milicias dos seos Indigenas,/ e assim a natural, e Politica das Colonias –
estão riscadas as palavras desde Comprehendendo até Colonias, as quais foram transpostas
para as Reflexões Previas, e Argumentos, lugar em que aparecem, com leves alterações e em
letra mais pequena (para caber na entrelinha), finalizando o segundo parágrafo [...]. E assim
vemos na edição príncipe.” Da mesma forma, o que foi eliminado no manuscrito não figura na
primeira edição. Assim é que, em desacordo com a vontade do poeta, os compositores da
edição ignoraram a observação manuscrita, toda riscada em traços sinuosos de alto a baixo, a
propósito da ortografia. Carlos de Assis Pereira (1974) transcreve-a em seu artigo; nela se lê a
justificativa do poeta para a não-duplicação de algumas consoantes sob a alegação de que o
nosso idioma tem escrita fonética e não etimológica. E o pesquisador conclui: “Infelizmente,
48
não se obedeceu, na composição tipográfica, ao ideal simplificacionista do Autor [...] optando-
se pela grafia etimológica ou pseudo-etimológica, mais consentânea, aliás, com os hábitos e o
espírito da época.”
Todas as edições seguintes mantiveram esta ortografia; porém em 1945
adotou-se a simplificação das consoantes e abolição da letra agá em algumas palavras.
O manuscrito consta de 287 páginas e contém uma errata que dá conta de
resolver pequenos problemas tipográficos. Após as Reflexões, começa na página quatro o
poema; nela aparece o título Caramuru, vindo logo abaixo a expressão Poema épico e as duas
primeiras estrofes. Estas e todas demais são encimadas por numerais ordinais seqüenciais,
sendo variável (de 74 a 92) a quantidade de estrofes de cada um dos dez cantos. A maioria das
páginas abriga três estrofes. Os cantos são marcados desta forma: Canto 1º, Canto 2° e assim
por diante. As notas do autor estão lançadas na margem esquerda da estrofe pertinente; têm
numerais cardinais, começando sempre do um em cada página, isto é, a seqüência numérica
vale só para ela. São ao todo 87 anotações, predominantes nos três primeiros cantos (14, 14,
29). Cinco notas foram apagadas pelo próprio poeta e não chegaram à edição impressa. Na
última folha há três linhas de escritos indecifráveis, podendo-se ler apenas: “Moura, 25 de
janeiro de 1781”. Quanto ao restante do texto manuscrito, é legível e compreensível se se levar
em conta a grafia da época e os maneirismos do ato de escrever de então, além, é claro, da
influência da sintaxe latina.
A propósito do manuscrito, Arthur Viegas (1914, p. LVI) descreve uma
situação especial para introduzir sua fala sobre o momento de criação do poeta. Diz ele que,
por causa das muitas peripécias que o jovem frade José Agostinho de Macedo cometia no
Convento da Graça, em Lisboa, fora transferido para o Colégio de Coimbra, por volta de 1779.
Lá se encontrava o padre-mestre frei José de Santa Rita Durão, doutor em teologia, recém-
chegado da longa peregrinação forçada pela Itália. Na época, ele dava aulas na Universidade
49
Restaurada e escrevia seu Caramuru; acolheu com benevolência aquele discípulo, também
amante da poesia.
Posteriormente, José Agostinho relatou como o brasileiro compunha, junto à
ribeira de Cozelhas próxima do convento, o seu poema: tomava banho pela manhã (costume
que conservava de sua terra natal) e depois ditava “com facilidade pasmosa” as estâncias que
ele ia escrevendo, levando horas neste afã. Esse testemunho é confirmado por José
Mascarenhas da Costa e Silva no Ensaio biográfico e crítico de sua autoria. À tarde, sentado
em uma pedra junto à cerca do mosteiro, o discípulo lia os versos escritos pela manhã e Durão
ia fazendo as emendas que achava necessárias. Então, dava ordem ao amanuense para que
passasse a limpo o texto. Segundo Varnhagen (1845, p. 410), era um “certo pardo liberto” que
trouxera do Brasil a quem chamavam Bernardo, pronunciado com a vogal e tônica aberta.
Assim nasceu o manuscrito apógrafo do Caramuru; supõe-se que nem houve um autógrafo
pois o frei em sua velhice doentia ditava os versos a quem pudesse escrevê-los.
b) A edição primeira (1781)
Publicado o poema ainda em vida do seu autor, esta primeira edição, feita
em Lisboa, reproduz o manuscrito apesar de algumas modificações do editor. Todas as
demais publicações do poema estão calcadas, até hoje, nesta princeps; garante-se assim a
manutenção da obra no cânone literário.
Com relação ao original, houve modificações de natureza editorial ou
ortográfica, conforme já foi dito anteriormente. Segundo Carlos de Assis Pereira (1974, p.
102), “As circunstâncias em que o texto impresso se afasta do texto manuscrito dizem respeito
à grafia, à pontuação e ao emprego das maiúsculas [...]”. Houve substituição de algumas
formas arcaizantes como ilusoens. Também aconteceram adaptações quanto aos numerais
ordinais que foram trocados por algarismos romanos na seqüenciação de cantos e estrofes.
Além disso, as notas explicativas foram colocadas no final de cada canto, agrupadas e
50
numeradas com cardinais entre parênteses conforme a numeração recebida no corpo da estrofe
pertinente. Afora isso, manteve-se quase a mesma disposição das estrofes nas páginas. Nestas,
os versos um e cinco figuram mais à esquerda da folha e os demais obedecem a um recuo,
exatamente como está no manuscrito. Esta ordem é seguida na maioria das edições posteriores.
Entretanto, a edição impressa usa letras maiúsculas no início de cada verso, o que não ocorre
no manuscrito.
Varnhagen (1845) explica que foi o livreiro Du-Beux quem tratou da edição
com a imprensa, porém reforça que o autor já se achava em Lisboa na ocasião, embora
internado em um hospício.
Impresso na Régia Oficina Tipográfica de Lisboa, o volume em forma de
brochura possui 307 páginas numeradas no canto superior, na forma retangular vertical (13,5
cm x 9 cm), forma esta que se repete, com pouca variação, na maioria dos livros compulsados.
Teve tiragem de dois mil exemplares. Esta informação é dada no Dicionário Bibliográfico
Português, tomo quinto (1860) e ratificada no tomo treze (1885). Nesta pesquisa foi utilizada
cópia conseguida na Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1988, do volume tombado com o
número 27 654. Existem lá outros quatro exemplares, um sem folha de rosto e dois sem a folha
de erratas. O exemplar examinado traz na folha de rosto o título Caramuru e o subtítulo
Poema Epico/ do/ Descubrimento/ da /Bahia,/ composto/ por/ Fr. José de Santa Rita/ Durão,/
Da ordem dos Eremitas da Santo Agostinho, na/ tural da Cata-Preta nas Minas Geraes.
Figura ainda o emblema da editora em destaque com o nome Lisboa logo abaixo, o nome da
tipografia e o ano M. DCC. LXXI. Na primeira página vem a epígrafe Et quoniam Deus ora
movet, sequar ora moventem./ Rite Deum./ Ovid. Metamorph. XV. Transcrito do poema latino
de Públio Ovídio Nasão (43 a.C. – 17 da nossa era), a tradução dos versos é a seguinte: E
porque Deus fala por meu intermédio, seguirei sua inspiração. A seguir, vêm as Reflexões
Previas, e Argumento; o poema começa na página nove. Nesta, apareceu o título Caramuru,
51
vindo abaixo a expressão Poema epico e depois as duas primeiras estrofes. Daí por diante
seguem-se as demais estrofes, em geral, três em cada página.
A adaptação que faço do poema pautou-se por este exemplar, com eventuais
consultas ao manuscrito e às outras edições mencionadas.
Fato curioso ocorreu com o subtítulo. Ao citar as obras de Santa Rita, (pág.
113) no tomo quinto do Dicionário Bibliográfico Português (1860), imprimiu-se “do
descobrimento do Brasil”. No volume treze (1885), retificou-se: “não é do descobrimento do
Brasil, mas do descobrimento da Bahia”. Segundo o organizador do dicionário, Brito Aranha,
este erro foi reproduzido no Anno Bibliographico, tomo um, e no Manual Bibliographico de
Matos (p. 543).
Há discussões até hoje sobre a data do naufrágio de Diogo Álvares Correia
(1510? 1529? 1530? 1535?). Deste tema polêmico surgem as dúvidas sobre o status do
personagem histórico. Abordado por Varnhagen, José de Oliveira Beça e, mais recentemente,
Carlos de Assis Pereira e outros, o assunto traz à tona os epítetos: protetor, colonizador,
explorador, conquistador, povoador, restaurador e, por fim, descobridor. Envolve os nomes de
Cristóvão Jacques, da expedição guarda-costa de 1526, e de Francisco Pereira Coutinho,
donatário de capitania hereditária em 1535. Varnhagen afirma que o nosso herói naufragara
em 1510 (1845, p. 420) e Carlos de Assis Pereira (1971, p. 2) conclui: “com base na
anterioridade cronológica”, Caramuru foi de fato o “primeiro descobridor e explorador” do
Recôncavo Baiano e o primeiro povoador da Bahia. Certamente a história não erra ao citar
seus numerosos descendentes que formaram a família revestida de nobreza, prolífera e atuante
na região.
E Rocha Pita (1950 p. 45) confirma: frei José de Santa Rita Durão, com seu
poema Caramuru, é o “responsável pela sublimação da lenda” sobre o naufrágio de Diogo,
que pode ser considerado o descobridor da Bahia. Na epopéia ele é o protagonista (ao lado de
52
Paraguaçu), o grande herói, apesar de o poeta ter tido o intuito de louvar os sucessos de
Portugal e sua colônia brasileira.
Pelas razões expostas, consagrou-se o subtítulo da epopéia, que acompanha
até hoje as suas edições. Por simplificação, passou a ser chamada, às vezes, de Caramuru de
Santa Rita Durão. Este é o nome com que a designo em minha tese.
c) Tradução francesa (1829)
Segundo Georges Raeders (1961), o editor-livreiro francês François Eugène
Garay de Monglave (1795-1873), tendo servido ao exército de dom Pedro I, esteve em 1827
no Brasil, país que considerava sua pátria adotiva. Teve de regressar a Paris por causa da
malária, porém guardou muitas lembranças daqui. Como jornalista e escritor, publicou estudos
sobre o Brasil e traduziu algumas obras da literatura universal para o português, que ele dizia
ser “língua rica, sonora e expressiva”. Verteu também uma dúzia de romances portugueses
para o francês; quanto à literatura brasileira, ocupou-se de O Uraguai (1769), Marília (1792) e
Caramuru (1781). Escreveu em sua História Literária (1826) que este poema era o grande
exemplo de literatura nacional. E complementou: “indica bem o alvo a que deve tender a
poesia americana”.
Estimulado pelos elogios que Ferdinand Denis fazia ao poema, Monglave
fez publicar em 1829 pela editora Garnier de Paris a versão francesa do épico de Santa Rita
Durão: Caramourou ou La Découverte de Bahia. No prefácio desta edição, “largamente se
transcreve Ferdinand Denis”, segundo Hernâni Cidade (1957, p.98). Aliás, inadvertidamente,
este autor declara na mesma página que a tradução é anônima. Esta é uma das muitas falhas
em que incorre Hernâni Cidade no volume 13 de Nossos Clássicos. O Dicionário bibliográfico
português, na página 113 do tomo quinto, confere a Monglave a autoria da versão francesa, do
que não se pode duvidar.
53
O autor iniciou com a apresentação dos dados biográficos do poeta e alguns
aspectos curiosos da poesia, como ele mesmo mencionou. Destacou na folha de rosto: roman
poème brésilien. Produziu um texto em prosa em três volumes, seguindo a ordem dos cantos e
estrofes, com base na primeira edição da obra que, segundo ele, “compreende diferentes
episódios da história do Brasil, suas tradições, os rituais e os combates indígenas”. Com sua
publicação, Monglave tornou conhecida na França uma das primeiras obras da nossa literatura.
Distanciado no tempo, ele pôde fazer comentários de ordem histórica: “E assim Durão nem se
deu conta de que estava prevendo a independência do Brasil e a influência de seu império
sobre os destinos de Portugal” (MONGLAVE, 1826).
Tudo leva a crer que o sucesso do texto em francês foi medíocre e não
correspondeu às expectativas do tradutor porque ele mesmo não se dedicara de fato ao
empreendimento, apesar de seu interesse por um país e uma literatura que ele tinha no coração.
Também influiu o fato de ter feito poucas traduções de livros brasileiros, mas valeu seu
empenho em difundir nosso clássico. Aos brasileiros resta a satisfação de ver que o poema
épico do início da sua história mereceu versão francesa já no começo do século XIX. Aliás,
dizem os estudiosos que esta edição francesa teria servido para reavivar e valorizar o poema
que fora desprestigiado no Brasil e em Portugal ao ser publicado pela primeira vez. E no dizer
de Antônio Cândido (1961, p.64), “e nós nos gloriamos de possuir uma epopéia brasileira”.
d) Segunda edição
(1836)
Caramuru foi publicado pela segunda vez, agora com melhor aceitação, em
1836, pela Imprensa Nacional (Lisboa), com correções e uma estampa, conforme consta na
folha de rosto. A gravura que vem logo depois desta mostra o português e sua consorte
Paraguaçu sentados em uma espécie de banco tosco; esta imagem dos protagonistas da trama
ilustra muitas outras edições da obra, porém não se informa o autor do desenho,
54
provavelmente a bico-de-pena. Utilizei o microfilme depositado na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro com o número 1951-8.250, o qual tornei impresso.
Esta segunda edição teve mil exemplares e foi custeada pelo livreiro-editor
Jorge Rey, conforme Varnhagen escreveu na “Apostilla acerca desta edição”, apensa à sua
publicação do poema em 1845. São 307 páginas que muito se assemelham às da primeira
edição, sem modificações substanciais; houve mudanças na ornamentação: o título aparece
floreado e o traço que encima o início de cada canto é diferente. Na folha de rosto vê-se o
acréscimo de: “Vende-se na Loja de Jorge Rey, Mercador de Livros aos Mar-/tyres Nº 19”, no
rodapé. Quanto à ortografia, destaca-se a atualização do esse; na primeira edição assemelha-se
a um efe e nesta de agora figura como hoje se imprime.
e) Terceira edição (1837)
Em 1837, saiu uma impressão do poema, apontada como terceira edição no
Dicionário bibliográfico brasileiro organizado em 1860 por Inocêncio Francisco da Silva,
quando trata da biografia de Durão. Esta foi a primeira publicação brasileira da obra, ocorrida
na Bahia, pela Tipografia de Serva e Comp. O volume de 313 páginas traz uma breve
advertência do editor, dizendo ser esta a terceira. Também Varnhagen assim anotou em sua
“apostilla” anexada à edição de 1845, observando que do épico de Santa Rita “já se tem feito
três edições completas, não contando impressões de excertos, traduções, etc”. No geral, as três
primeiras edições são quase iguais, mantendo o mesmo formato e a mesma ortografia.
f) Quarta edição (1845)
Antes das considerações a respeito desta propalada edição, convém
mencionar o que se falou sobre as edições. Georges Raeders, em artigo publicado no Bulletin
des Études Portugaises, tomo XXIII, p. 3, refere-se a publicações em 1843, 1845, 1870 e 1878,
no Rio de Janeiro. Não me foi possível localizar a de 1843 nem a de 1870, mas aqui fica o
55
registro da divulgada existência destes livros. De qualquer forma, a maioria dos estudiosos da
literatura, a quase unanimidade considera a quarta edição a de Varnhagen; até o próprio
historiador da literatura assim estabelece.
Indiscutivelmente, depois da princeps, importante por representar a vontade
expressa do autor e por ser ela a levar a público o poema, esta quarta edição é a que tem
consolidado e completado a divulgação de Caramuru e seu autor para o mundo e por séculos.
A publicação saiu em Épicos Brasileiros, pela Imprensa Nacional de Lisboa, da página 69 à
383, logo após o poema O Uraguai de Basílio da Gama. Nesta obra, Francisco Adolfo de
Varnhagen, visconde de Porto Seguro, ilustre historiador e diplomata brasileiro (1816-1878),
apresenta a biografia de Durão “em presença de escassos subsídios que para ela apurou”,
conforme consta no Dicionário bibliográfico português (1860, p. 111). Seu texto foi depois
reproduzido na Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo III e em
outras edições do poema, como por exemplo, a de 1913.
A respeitada edição veio trazer à tona, depois de oito anos, a existência de
nosso clássico; é de grande valor também pelo apêndice ao final do livro: Notícia de frei José
de Santa Rita Durão (p. 405 a 415), publicada outra vez em 1847 na revista do instituto acima
citado, oitavo volume. O volume traz ainda fragmento de O Caramuru perante a história
(págs. 415 a 437), que confronta a epopéia com dados da história real a respeito de datas,
locais e documentos. Varnhagen encerra sua edição com uma Apostila acerca desta edição
(págs. 445 a 449) e com Correções essenciaes a fazer, uma espécie de errata, nas duas últimas
folhas. O nome de Varnhagen não figura na folha de rosto do livro, porém no final, logo após
a data – 8 de julho de 1845 – está seu nome.
Como novidade, a publicação apresenta argumentos precedendo todos os
cantos, redigidos por A. J. da Serra Gomes. Estes são uma espécie de síntese do que trata cada
canto. Também nesta edição houve mudança nas notas que o poeta fizera no manuscrito: elas
56
desaparecem, dando lugar a comentários de Varnhagen, alguns destacados por Durão, outros
criados para explicações do compilador. Curiosamente, não aparecem a epígrafe e as Reflexões
prévias e argumento constantes em todas as demais edições da obra completa. Esta mutilação
só pode ter como causa a necessidade de condensar o texto para atender a razões editoriais ou
porque o interesse era mesmo só o poema. A grafia manteve-se a mesma, isto é, a etimológica,
apesar da recomendação de que “a ortografia (aliás já irregular nas primeiras edições) fosse a
mais usada e cômoda para a maioria dos leitores de hoje, com acentuação nos casos duvidosos,
se bem que por enquanto muita vez ainda esqueceu”. (VARNHAGEN, 1845, p.449).
As estrofes receberam numerais cardinais.
Varnhagen, tendo realizado inúmeros estudos históricos, filológicos,
etnográficos e literários foi o melhor biógrafo de Durão. Ele afirma ser esta a quarta edição de
Caramuru, proclama a genialidade do autor desta Brasilíada, como designou o poema, numa
alusão a Os Lusíadas e conclui: “[...] o acolhimento público, a popularidade, ainda não fez
justiça ao mérito do Caramuru”, justificando a reimpressão de 1845 e desejando que no
futuro fosse “tão popular quanto merece”. De minha parte, ele o será, com certeza.
g) Quinta edição (1878)
Na tentativa de dirimir dúvidas a respeito das edições, convém observar o
que diz Massaud Moisés (1985, p. 299 e 300).
Considerando quarta edição a que Varnhagen inseriu em Épicos
Brasileiros (Lisboa, Imprensa Nacional, 1845), Haroldo
Paranhos (História do Romantismo no Brasil, 2 vols., São
Paulo, Cultura Brasileira, 1937-1938, vol I, p. 158) classifica de
quinta edição aquela em que nos baseamos, e atribui-lhe a data
de 1878, no que é seguido por Otto Maria Carpeaux (Pequena
Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, 4ª ed., Rio de
Janeiro, Edições de Ouro, 1968, p. 52). A edição que
compulsamos declara na ‘Advertência’ que se trata da quarta
edição, mas traz no calofão a data de 1913: decerto
corresponderia a uma reimpressão da quarta edição: Rubens
Borba de Morais (op. cit. p.124) ainda registra uma edição
aparecida em 1887.
57
Com isto, o historiador e crítico literário tenta elucidar as discrepâncias a
respeito das datas em que o poema teria sido levado a público.
Caramuru foi publicado outra vez em 1878, pelo editor Mamiliano de C.
Honorato, no Rio de Janeiro, com 244 páginas. O exemplar que utilizei está na Biblioteca
Central do Estado da Bahia; ele traz na Advertência inicial: “Nela fizemos apenas as alterações
aconselhadas pela arte tipográfica moderna e as que são autorizadas pela ortografia hoje em
uso”. Precedendo o poema, foi incluída a biografia do autor (a de Varnhagen), extraída do
volume oitavo da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1847).
Equivocadamente, Hernâni Cidade (1957) considerou esta como a primeira
edição brasileira do poema. Entretanto, em 1837 ele já fora publicado na Bahia e a própria
advertência de 1878 confirma que esta seria a segunda publicação no Brasil.
É de notar, ainda, que as publicações de Polito (2001) e de Martin Claret
(2004) consideram esta a quarta edição do poema por não levarem em conta a edição de
Varnhagen (Épicos brasileiros – 1845). Ato falho porquanto nela o poema foi publicado na
íntegra e deve ser considerada edição.
Até a quarta edição, poucas dúvidas há quanto às publicações de Caramuru,
porém, a partir desta quinta edição tem havido discordâncias com relação às datas em que
saíram as diferentes edições do poema. Pesquisadores, historiadores e críticos da literatura
brasileira têm procurado pôr às claras as datas corretas. Por esta razão, de agora em diante
passo a mencionar as datas em que ocorreram as publicações, interrompendo assim a
seqüência ordinal com que designava cada edição, nos subtítulos deste capítulo.
h) Edição de 1887
Em alguns textos em que se traz à tona Santa Rita Durão e sua obra, fala-se
da edição popular de Caramuru lançada pela Livraria dos Dois Mundos. Rubens Borba de
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Morais assim o faz ao editar a Bibliografia brasileira do período colonial (USP, 1969, p.
126).
i) Edição de 1913
Apesar da edição de 1887, pode-se considerar a edição integral do texto
publicada em 1913 como a sexta. Na verdade, esta seria uma reimpressão da quarta edição,
segundo Massaud Moisés (1985), feita pela Editora Garnier do Rio de Janeiro, em tudo
semelhante àquela.
j) Edição de 1935
Em 1988, em visita à Biblioteca Nacional de Lisboa, encontrei dois
exemplares de O Caramuru: aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil. É
uma adaptação em prosa do poema épico de Santa Rita Durão. De autoria de João de Barros e
ilustrações de Martins Barata, saiu pela livraria Sá da Costa Editora, de Lisboa, em 1935.
Adquiri recentemente a sétima edição do mencionado livro, datada de 1993, o que demonstra a
aceitação e atualidade do poema, já que tem recebido reimpressões, mesmo de adaptações.
Como autor português, João de Barros vê na adaptação de Caramuru a
lembrança do “prodigioso esforço lusitano nas terras de além-mar ao mesmo tempo que dá a
conhecer as primeiras afirmações da energia brasileira, despontando para a existência gloriosa
do seu porvir” (p. 10).
O texto, empregando a linguagem de Portugal, foi totalmente reorganizado
em sua estrutura. Barros dividiu-o em onze partes às quais deu títulos de acordo com seu
conteúdo, seguindo a ordem mesma dos cantos. Em seu discurso narrado ele reconta, em
prosa, o que retrata o poema. Fala da terra encontrada, do episódio de Diogo Alvares
Correia/Caramuru, das guerras entre os indígenas, da viagem à França, do casamento do herói
com Paraguaçu, da visão da índia, do triunfo do casal e do final feliz. No epílogo, o autor
59
aproveita a ocasião para falar do amor entre as duas pátrias. Já no prefácio ele destaca o “valor
literário e cívico do poema e, numa visível hipérbole, exalta a pródiga natureza brasileira e
conclui que “A adaptação do Caramuru, em linguagem correntia e fácil, que à gente moça e ao
leitor mais ou menos culto prenda e cative, não obedece apenas ao simples intuito de trazer ao
conhecimento de todos uma obra digna de atenção e respeito” (p.9).
O volume inclui uma pequena bibliografia de Durão, sempre exaltando-o e
também à sua obra-prima, transcrevendo elogios de Sílvio Romero, Almeida Garrett, Pinheiro
Chagas, Ronald de Carvalho e José Agostinho de Macedo, este com a difundida frase:
“homem a quem só faltava a antigüidade para ser reputado grande” (p. 177). Então completo:
agora, mais de dois séculos já passados, ele a tem e é lembrado por causa do seu Caramuru.
A levar em conta a inserção do épico na coleção Os grandes livros da
humanidade, que reúne adaptações dos mais famosos textos da literatura universal, João de
Barros tem mesmo razão ao atribuir inestimável valor ao grande poema. Um dos objetivos da
coleção, como o meu, é promover nos jovens e no povo o gosto pela cultura.
k) Edição de 1945
Para Antônio Cândido (1961, p.65) “a sexta, última até agora, é de 1944”.
Na verdade, o ano é 1945, conforme o volume que compulsei. Cem anos depois da histórica
publicação de Varnhagen, eis que, em pleno período literário de tendências contemporâneas
(BOSI, 1994), novamente o texto integral de Caramuru é publicado. A série brasileiro-
portuguesa Os mestres da língua, dirigida por José Perez, apresenta como trigésimo volume o
poema duraniano com grafia atualizada. Publicado pela Edições Cultura, de São Paulo, com
248 páginas, tem logo após a folha de rosto uma síntese bio-bibliográfica do autor muitíssimo
sucinta e confusa nas datas. Nas demais páginas, constam a epígrafe, as Reflexões e os dez
cantos, tendo as anotações do poeta agrupadas ao final de cada canto; um breve índice encerra
o volume.
60
l) Edição de 1957
A conhecida publicação de Hernâni Cidade (1957) certamente tem valor pelo
estudo que faz das circunstâncias que ladearam o momento da criação do poema, o valor de
seu criador e a trajetória percorrida na recepção do mesmo. Sendo de caráter didático,
apresenta apenas excertos da epopéia de Durão permeando os comentários críticos. Inserido na
coleção Nossos Clássicos, volume 13, a poesia aparece de modo fragmentado, como figura em
todos os livros consultados de ensino de literatura de ontem e de hoje. Entretanto, esta é uma
questão pedagógica que não é cabível discutir agora. Importa que, mesmo assim, foi difundida
a nossa única epopéia, uma das primeiras obras literárias de nosso país.
O exemplar que examinei é o de 1961, reedição do de 1957; houve uma
outra reedição em 1977 pela mesma editora Agir, do Rio de Janeiro. Em 106 páginas (12,5 cm
x 16 cm), o exemplar traz cópia da gravura apensa à segunda edição do poema. Logo após a
folha de rosto estão os dados biográficos do autor, em ordem cronológica (de 1722 a 1784).
Na Apresentação, Hernâni Cidade comenta a situação histórica da época em que viveu o
poeta, sobretudo na Europa, focalizando Portugal e suas conquistas. Como a justificar seus
comentários, afirma: “(...) o poema é urdido com substância ideológica bem daquele momento
histórico-cultural, em que as virtudes da classe feudal começavam a ceder o passo às virtudes
burguesas, opostas à truculência guerreira” (p.14).
Igualmente interessante e valioso é o estudo crítico que Cidade faz de Santa
Rita e seu Caramuru (p. 8 a 15). Na Antologia, transcreve algumas estrofes fazendo
apontamento de notas no rodapé para esclarecer termos e expressões dos versos; tem por base
a edição de 1878, que sempre é citada. Ao todo, são 209 estrofes (mais ou menos 25% do
poema), predominando o segundo canto, sendo que do quinto, do sétimo e do nono nada se
colocou. Após uma breve bibliografia do autor, em que cita as suas quatro obras conhecidas, e
uma bibliografia sobre o autor, que inclui opiniões de Varnhagen, Teófilo Braga, Artur Viegas
61
e Mendes dos Remédios, entre outros, vem o Julgamento Crítico (p. 99 a 103). Nele são
transcritas as apreciações de onze literatos. Esta parte, mais criteriosa que as demais, reflete o
que se tem pensado e divulgado sobre o poeta e seu poema ao longo de 130 anos (de 1826 a
1956): vícios e virtudes de ambos, em observações de onze autores e estudiosos da literatura,
destacando-se Almeida Garrett, Fernando Wolf, Sílvio Romero, José Veríssimo, Fidelino de
Figueiredo, Ronald de Carvalho e Antônio Soares Amora entre outros.
Antes do índice, na parte final, vem um questionário de quinze perguntas,
reforçando a organização didática do livro, indicado principalmente para estudantes
secundaristas de então. Obviamente a metodologia de ensino por ele empregada no ensino da
literatura não se adapta ao alunado de hoje; no entanto, nos idos de 1960, tive de responder a
este questionário quando cursava o científico e confesso que daí surgiu meu interesse pelo
Caramuru. Amor antigo. Comprei a antologia por sugestão do professor de Literatura
Brasileira, Oscar Lermen, e este é o exemplar que até hoje me acompanha; sirvo-me dele
agora, às vezes folheando-o com emoção.
m) Edição de 2001
A história editorial do nosso grande épico, iniciada no século XVIII,
passou pelos séculos XIX e XX e cá está no século XXI a reforçar canonicamente o valor da
obra.
Na coleção Poetas do Brasil, o volume nove trata de Santa Rita Durão,
considerado um autor representativo da história da poesia brasileira. Preparado desde 1991
pelo historiador Ronald Polito, da Universidade Federal de Ouro Preto, o livro veio a lume em
2001 pela editora Martins Fontes, de São Paulo, e compõe-se de 351 páginas (12,5 cm x 18
cm). A edição, com introdução, organização e fixação do texto tem por base, segundo seu
editor, a primeira edição e outras, além de consultas ao manuscrito apógrafo. Na introdução,
Polito inclui traços biográficos do poeta e comentários sobre Caramuru, num discurso objetivo
62
e consistente que apresenta também um resumo dos dez cantos e importantes notas de rodapé
que complementam as discussões. Ao todo são 29 anotações, indicando também referências
bibliográficas.
Conforme explica o autor, manteve-se a mesma disposição gráfica dos
versos, presente na edição original, que é a mesma do manuscrito. Atualizou-se a pontuação
apenas o estritamente necessário e os nomes próprios, ainda segundo o organizador. Algumas
palavras foram mantidas como na princeps “em função de sua raridade ou porque também
produziriam alteração na métrica ou no ritmo dos versos” (p. LXI).
O editor deste volume incluiu uma cronologia bastante detalhada que vai de
1722 a 1957, envolvendo dados biográficos de Durão e datas de publicações, tanto de seu
poema quanto de textos sobre ele. Inicia o poema com a epígrafe, Reflexões prévias e
argumento, e dá seqüência com os dez cantos, numerando-os com algarismos romanos, assim
como as estrofes. Transcreve rigorosamente os apontamentos feitos pelo poeta, no rodapé da
página. Depois dos cantos, Polito apresenta Notas em que traduz a epígrafe: “E porque Deus
fala pela minha boca, eu vou seguir sua inspiração”. Nelas esclarece pontos obscuros ou
fornece informações, sempre apontando o canto, a estrofe e o verso pertinente. No apêndice há
documentação e iconografia: desenhos, reproduções fac-similares de algumas páginas de rosto
de outras edições, xilogravuras, óleos e ilustrações.
n) Edição de 2002
A editora Rideel, de São Paulo, publicou em sua coleção Clássicos
Universais o poema de Santa Rita com organização e adaptação de Paula Adriana Ribeiro. Na
última capa, onde são citados clássicos como A divina comédia, Os lusíadas e Romeu e
Julieta, entre outros, Caramuru é destacado “por relatar a história de amor entre Diogo, o
explorador europeu, e Paraguaçu, a índia de pele branca”. Em 29 páginas, sendo quinze de
ilustrações, a autora narra, com base no poema, o episódio do náufrago português, seu
63
casamento na França e o reconhecimento pela lealdade do casal, por parte da coroa
portuguesa, através de Tomé de Sousa.
Em linguagem muito simples, reconta-se em prosa, abreviadamente, a
história dos dois amantes e sua convivência na colônia. Pode-se classificar o livro como um
paradidático para escolares de ensino fundamental. Na terceira capa o autor do poema é
lembrado e fala-se das poucas informações, ao menos no entender da adaptadora, que há sobre
ele.
O livreto, de capa dura, formato 17 cm x 24 cm tem valor na medida em que
põe a criança em contato com um texto que talvez ela vá ler quando jovem, além de informar
sobre a existência deste autor da literatura nacional, difundindo assim a epopéia de Santa Rita
Durão referente ao período colonial brasileiro.
o) Edição de 2003
Envolvidos pelas campanhas do governo federal e da mídia para que o jovem
leia mais, editores e escritores se puseram a restabelecer o interesse pelos clássicos da
literatura, paralelamente à motivação para leitura de novos gêneros e textos recentes. Assim é
que, em 2003, a editora Landy publicou O Caramuru: épico do descobrimento da Bahia, de
autoria de Cecília Casas. Trata-se de uma adaptação em prosa do poema duraniano enquadrada
como literatura infanto-juvenil e traz o selo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil
como “leitura altamente recomendada”.
Em formato vertical (11,5 cm x 21 cm), a brochura de capa dura e 86
páginas tem duas orelhas onde se sintetiza a poesia e fala-se um pouco de seu autor. Na quarta
capa, com o título de Retrato tem-se a observação de que “[...] o Caramuru é ao mesmo tempo
uma lenda que pinta o nosso país com as cores de uma terra promissora, de natureza
exuberante e fértil, algo já impresso na Carta de Caminha, primeiro documento que dá notícia
da existência e descoberta do Brasil”.
64
Auto-qualificando-se como adaptação para jovens da obra de Frei José de
Santa Rita Durão, o livro tem estabelecimento final do texto e apresentação de Vilma Maria da
Silva, a qual informa sobre o conteúdo do poema destacando as belezas naturais, a figura do
índio e a idealização de nosso passado colonial. Arrisca também um brevíssimo comentário
crítico-literário sobre a epopéia e sua composição. Segue-se a adaptação dos dez cantos em
discurso narrado, de modo bastante abreviado; a linguagem é simplificada e omitem-se as
anotações do poeta, a epígrafe e as Reflexões Prévias.
Não cabe aqui discutir o mérito de adaptações como esta da editora Landy.
Ao tempo em que se pode ver nelas o perigo de reducionismo, pode-se enxergar também a
possibilidade de colocar nossa epopéia no horizonte de expectativas dos jovens de hoje, se é
que assim os alcança. Só o tempo dirá se o objetivo está sendo atingido.
p) Edição de 2004
Recentemente, eis que surge nova edição do texto integral de Caramuru:
poema épico do descobrimento da Bahia, demonstrando assim que o texto vive, a obra tem
valor e merece respeito e louvor em forma de publicação. Já em 1935 João de Barros dizia:
“Santa Rita Durão fixou em páginas de entusiasmo e de lirismo sadios essa alvorada de uma
pátria vitoriosa. Por isso, a irradiação da sua obra e do seu talento alcançou a posteridade, e a
ninguém consente que a olvidemos ou deixemos olvidar”. (p. 163).
Publicado pela editora Martin Claret, de São Paulo, o volume integra a
coleção A obra-prima de cada autor, que organizou a série após pesquisa de campo pela qual
constatou que o brasileiro atualmente está lendo mais. Ainda segundo os editores, o critério de
seleção dos títulos foi “o já estabelecido pela tradição literária e pela crítica especializada”,
conforme consta na orelha do livro.
Em formato de bolso (11,5 cm x 18cm), 255 páginas, e com boa qualidade
editorial, a obra tem prefácio do próprio editor Martin Claret o qual resgata a história do livro
65
e o define como um “produto industrial”, “o suporte de uma informação” e transcreve o
verbete da Enciclopédia Abril (1972) sobre o assunto. Fala também do seu valor na sociedade,
da sua implicação cultural e comercial e da importância da leitura, concluindo didaticamente
com a proposta da coleção. Ao prefaciar o livro, Claret deixa transparecer o discurso
mercantilista em que se visa ao lucro e a sua intenção de “preencher uma lacuna editorial”. De
qualquer modo, vale o efeito, qual seja o de ser mais um exemplar do nosso épico posto à
disposição dos leitores de hoje para consumo e apreciação.
O Caramuru de 2004 tem ortografia atualizada, mas em tudo segue as
edições anteriores. Traz anotações no rodapé, sobretudo de ordem léxico-semântica ou
histórica, porém omite as notas originais apontadas pelo poeta, ou cita-as objetivamente. Há
também considerações filológicas em que são confrontadas as diferentes edições da poesia. No
final, vem o Perfil biográfico, seguido de uma Cronologia (1722 a 2003) a qual menciona
treze publicações da obra, incluindo textos integrais, fragmentos, traduções e adaptações.
Acompanha esta edição, ao que parece preparada para atender à demanda escolar, um
Complemento de leitura com esclarecimentos sobre o guia de leitura, informações sobre o
autor e a obra e mais um item de Reflexões com dez questões, sendo a última uma proposta de
redação. É de natureza claramente didática, apesar de linguagem de difícil compreensão.
Em síntese, este é o rol das publicações do épico brasileiro até o presente
momento, dentro do que foi possível conhecer. Por ele percebe-se a sua aceitação e também a
necessidade de uma adaptação que se coloque entre a formalidade e a erudição do texto
original e a atualização tão útil ao entendimento e continuidade de recepção da obra, sem
contudo desvirtuá-la.
A partir de meados dos anos 1960, com a nova proposta de Hans Robert
Jauss (1974), situando a estética da recepção como uma vertente da história da literatura,
sendo ela considerada de cunho político e intelectual, houve “uma inversão metodológica na
66
abordagem dos fatos artísticos”, segundo Regina Zilberman (1989, p. 10). Sendo assim, deve-
se focalizar também o leitor / receptor e não apenas o autor e sua produção ao estudar uma
obra literária. Ora, pela trajetória percorrida pelo Caramuru ao longo dos anos, conclui-se que
tem cumprido sua função social como arte e merece continuar sendo acolhido por um público
receptor moderno, o que pretendo que aconteça com maior intensidade (e popularidade) com a
adaptação em prosa, acessível a ledores de hoje não só os letrados ou iniciados em literatura.
Afirma Antônio Cândido (1961, p. 64): “Desde que o grupo da [revista]
Niterói proclamou em Paris a literatura autônoma do Brasil, em 1836, Durão e Basílio
estiveram sempre nos escritos dos jovens, como exemplos por excelência do que o passado
apontava de mais válido na direção dos temas nacionais”. Naquela época já preconizavam os
literatos que novas edições sairiam do prelo e que o poema se tornaria popular.
A respeito das publicações de Caramuru, vale transcrever Cândido (1961. p.
65): “Uma breve referência às edições do poema sugere não apenas que ele foi redescoberto
pelo Romantismo [...], mas conheceu, então, o fastígio da sua voga”. Revendo, agora, a
história da recepção em forma de novas edições e adaptações do nosso épico, sintetizo-a em
quatro séculos: no século XVIII, uma vez; no século XIX, provavelmente seis vezes; no século
XX, cinco vezes; no século XXI, quatro vezes. Espero que ainda neste momento de nossa
história muito se vá editar o poema e sobre ele e seu autor falar. Também serás lido,
Caramuru!
2. Critérios adotados na composição do texto em prosa
Hoje em dia, há uma avidez às vezes incontrolável pelo que é moderno e
que se mostra dentro de padrões avançados da sociedade. É a atração pelo novo, mais
condizente com os progressos da ciência, das artes e da tecnologia. Assim, a leitura de textos
67
antigos, como foram originalmente formados, tornou-se desinteressante nem sempre pelo
assunto, mas pelo seu modo de expressão. Nas epopéias, o fundo é quase sempre atraente e as
temáticas se repetem. Entretanto, elas se fixam num tipo de língua não mais praticado entre os
falantes de hoje. A própria dificuldade de entendimento é fator desmotivante para a leitura.
Tornar o texto assimilável, sem contudo tirar-lhe a graça e o brilhantismo é
tarefa que necessita de critérios estabelecidos, além do cuidado de evitar substituições,
acréscimos ou cortes dispensáveis. Estas ações poderiam levar a perdas qualitativas na
apreciação da obra, pelo desvirtuamento da proposta inicial. Deve-se procurar o equilíbrio
entre vocabulário e sintaxe clássicos dos anos mil-e-setecentos e o linguajar do século XXI. O
objetivo será não apenas o de compreender o texto, decodificando-o simplesmente, mas o de
provocar no leitor as sensações sugeridas pelo poeta.
Em sua Obra aberta (1962), Umberto Eco defende “o papel ativo do
intérprete [leitor] na leitura de textos dotados de valor estético”. A maior dificuldade do
receptor pode se dar em virtude da diversificação do idioma em sua constante renovação, o
que faz com que o texto envelheça. Para vivificá-lo, há que haver, no entanto, segurança na
observância dos fatos literários, metódica disciplina em sua distribuição, fundamentação nas
ciências lingüísticas e no princípio máximo de fidelidade possível àquilo que o autor deixou
como sua vontade e criação artística. Com isto, é possível adaptar os textos antigos em edições
receptíveis pelo leitor contemporâneo. Segundo Emanuel Araújo (1986), este leitor “deve ter
orientação no que diz respeito aos padrões utilizados” quanto à atualização e comentários
inseridos através de notas. Em atendimento a este quesito, incluo na tese o item sobre critérios
adotados na adaptação do corpus. Na verdade, pode-se dizer que eles se atrelam a uma análise
das possibilidades da nova redação, de vez que esta parte foi desenvolvida concomitantemente
à reescritura do poema.
68
O estabelecimento do texto em prosa do épico de Santa Rita Durão, como já
foi dito, teve por base a primeira edição da obra, consultas ao manuscrito e a várias outras
edições, na tentativa de preservar, assim, a vontade do autor ao manifestar as idéias e também
como o fez. Em outras palavras, tentei manter seu estilo; as modificações remeteram sempre à
necessidade de simplificação de linguagem, já que esta característica domina o lado
pragmático do idioma português falado no Brasil atualmente. Também a adequação vocabular
e transformações sintáticas ocorreram na medida em que a adaptação tendia a exercer uma
função propedêutica, trazendo à tona o não-dito, ao alcance do leitor comum.
As adaptações, em certa medida, têm a ver com traduções, apesar de se
tratarem de transcrições para a mesma língua. Neste caso, às vezes justifica-se adaptar por
causa da distância temporal que há entre o leitor de outrora e o leitor de hoje. O público-alvo
da época em que o autor produziu a obra difere do público-alvo a ser atingido agora.
Acrescente-se, ainda, a diversidade cultural: no tempo de sua produção os leitores visados
eram outros. Como nas traduções, as alterações estruturais feitas no poema, ao ser
recomposto, obviamente não resultaram em uma nova obra, no limite em que assim se pode
conceituá-la. Em outros termos, o re-arranjo das estrofes transmutadas em parágrafos procura
manter a mesma ordem das idéias.
Com relação a todo tipo de texto, a tendência é para apresentação deles
inteiramente transpostos para a linguagem vigente a fim de que, assim, sejam consumidos.
Esta é pratica observada nas igrejas, no mercado, na publicidade, na mídia, na burocracia
oficial, enfim, em todos os meios, até no jurídico. Todavia, é importante que o acervo
histórico mantenha textos em seus formatos originais; Caramuru continuará, espero, a ser
preservado em bibliotecas e museus como guardião da cultura do povo. A atualização visa
tão-somente trazê-lo das prateleiras e arquivos para as mãos (e olhos e mentes) dos brasileiros
de hoje, comuns e nem sempre iniciados em língua e literatura.
69
Como proceder nesta missão?
Ao preparar a adaptação e edição do poema de Santa Rita Durão, procurei
me aproximar mais da crítica textual e dos Elementos de bibliologia (HOUAISS, 1983). No
primeiro caso, por apego às fontes, à primeira edição, aquela autorizada pelo autor; no
segundo, para me assegurar da cientificidade do trabalho. Foram ainda considerados os
estudos de Nida (1974) sobre tradução, uma vez que a adaptação pode ser considerada
atividade correlata à da tradução. Tive olhos também para os pressupostos da teoria sobre
estética da recepção de Jauss (1994) em voga nos estudos literários recentes, além, é claro, da
observação constante da sistematização gramatical da língua conforme o uso corrente
(BECHARA, 2001, ALMEIDA, 1979). A própria palavra texto se liga à idéia de filologia,
sobretudo os textos que atravessaram séculos e várias gerações lingüísticas. Naturalmente não
falo aqui daquela filologia de Karl Lachmann (1793-1851), microscópica e referente a
documentos medievais. Tento aproveitar conceitos e procedimentos mais brandos
preconizados pela evolução desta ciência. Emanuel Araújo (1986) adverte que “o italiano
Ettore Romagnoli, por exemplo, já em 1917, defendia, de algum modo, as edições populares
dos clássicos, despojadas daquele cotejo escrupuloso dos códices, tão caro aos alemães”
(p.194). Ora, para popularizar, é preciso simplificar e meu objetivo principal não é cotejar
edições e sim reescrever o poema em prosa.
Tendo por foco a simplificação, melhor diria, a atualização, proponho aqui
critérios para a elaboração do texto prosaico. Como já disse, eles foram se evidenciando a
cada verso analisado, a cada estrofe decodificada, enquanto organizava o novo texto,
devidamente adaptado e anotado, atendendo à necessidade de padronização dos
procedimentos em todos os dez cantos. A meu ver, esta uniformidade de conduta garante
coesão e coerência ao texto. A análise filológica simplificada, sem aparato crítico ou estemas,
limitou-se à contribuição para dirimir dúvidas interpretativas e redacionias e para a
70
consecução dos efeitos estilísticos almejados pelo poeta. Ressalto, porém, que a simplificação
não remete, de forma alguma, à vulgarização da linguagem. O nível de língua adotada é o
padrão que, de resto, impõe-se em textos acadêmicos e formais, como é o que se exige nesta
adaptação. Apenas algumas construções frasais foram modificadas para atender à estética
textual dos dias de hoje, e outras em razão da própria estrutura do texto em prosa que dispensa
os artifícios da versificação.
As notas de rodapé, de caráter explicativo ou complementar, se estruturam
aproveitando aquelas inseridas pelo próprio autor no poema e outras mais resultantes de
pesquisas e consultas em livros, documentos, enciclopédias, dicionários e gramáticas. Estas
informações foram deslocadas para as notas para não prejudicar a fluência e favorecer a
concisão do texto. Tenho em mente, ainda, o que diz Umberto Eco (1990) na epígrafe de seu
livro: “Entre a intenção do autor e o propósito do intérprete existe a intenção do texto”. Deixei
prevalecer, por vezes, a inteligibilidade sobre a beleza. A realização estética pode dar lugar,
em alguns casos, à causa da diminuição da distância entre a língua do Caramuru e a língua do
leitor médio de hoje, que naturalmente variou no tempo, no espaço e na sociedade, como
convém a línguas vivas dinâmicas e criativas como o português.
Destaco alguns itens que, no geral, orientaram a proposta da edição
adaptada e comentada do poema duraniano, dentro das possibilidades cognitivas, técnicas e
científicas. A bem da verdade, cada item seria um longo estudo, o que não é o caso aqui e
agora. Limito-me a citar as alterações, indicando cantos e estrofes em que se encontram na
edição de 1781. A reformulação se verá na edição adaptada e anotada, de 2006, de minha
autoria, além de atualizações menos ocorrentes que não se comentam neste item.
1. Grafia
Evidentemente, os sinais com que se grafam as letras do alfabeto português
são os mesmos dos tempos de Santa Rita Durão, tanto os manuscritos quanto os de tipos
71
impressos. Ocorreu uma única modificação: a letra esse, desenhava-se semelhante a um efe
sem cortar, imitando o traço manuscrito. Assim ela foi grafada em todo o poema na primeira
edição, sendo que a partir da edição de 1836 a letra figura como se imprime hoje. Para
alcançar o ideal da legibilidade, a atualização e padronização se impuseram.
2. Ortografia
O alfabeto empregado na primeira edição é praticamente o mesmo de hoje:
dele não constavam duas letras (k e w) que depois foram incorporadas. Quanto ao ipsilon, ele
ocorre em diversos vocábulos, sempre com valor de i
. Este é um símbolo de origem grega
proscrito pelo grande foneticista luso Gonçalves Viana em 1904, mas que foi reintroduzido
em nosso alfabeto em 1971, sendo empregado apenas em termos ou abreviaturas de nomes
científicos e nos derivados de nomes próprios estrangeiros. Na edição primeira do poema de
Durão a letra figura abundantemente, como por exemplo, em Egypcio (C.1-6)
; tamoyos (C.6-
78); abysmo (C.1–9); mysterios (C.10–14) neofyta (C.7–18); Lyra (C.1–8); symbolo (C.10–
10); labyrintho (C.8–43); Lybia (C.1–76); gyro (C.8–1). Entretanto, houve grandes
transformações na grafia das palavras quanto aos agrupamentos das consoantes, por questões
fonéticas, etimológicas ou pseudo-etimológicas. Nosso idioma passou por reformas impostas
por portarias e acordos governamentais às vezes amadorísticos e inconseqüentes, no dizer de
Napoleão Mendes de Almeida (1979, p.5).
Hoje, além do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, os
parâmetros ortográficos residem nas gramáticas idôneas da língua. Na adaptação do texto
proposta nesta tese, a atualização lingüística se rege pelo sistema ortográfico vigente
atualmente no Brasil (1943 e 1971), estruturado por especialistas em ciências da linguagem.
Fiz o cotejo de quatro das principais obras orientadoras da exposição, normalização e
funcionamento da língua portuguesa no Brasil moderno. Elas descrevem os fatos lingüísticos
do português atual, em sua forma culta, e retratam a excelência do idioma. Assim, entre
Esta é a forma com que passarei a indicar a localização da ocorrência citada, na maioria das vezes como
exemplo.
72
Napoleão Mendes de Almeida (1979), Celso Cunha e Lindley Cintra (1988), Rocha Lima
(1982) e Evanildo Bechara (2001), optei pelo último pela data de sua última publicação, desde
1961, com trinta e sete edições e inúmeras reimpressões. Sua gramática atende aos valores
tradicionais e afetivos das formas idiomáticas em uso pelos brasileiros, fundamentada em
princípios técnicos e científicos, já que é um respeitável e atuante filólogo brasileiro.
Dito isto, passo a citar as principais alterações de natureza ortográfica
havidas entre a primeira edição e esta que proponho, tendo em mente a atualização da
linguagem e transmutação dos versos em prosa. Sigo as propostas do item gramatical (da p.93
à p.106) do livro, cujas Instruções foram aprovadas pela Academia Brasileira de Letras (ABL)
e sancionadas pela comunidade culta de falantes em todo o território nacional, contando
também com o mais atual e popular dicionário, o Novo Aurélio Século XXI, além de textos
com comentários filológicos e lingüísticos referidos.
a) A letra agá, que não é propriamente uma consoante, hoje só subsiste no
início de várias palavras, no fim de algumas interjeições e nos dígrafos ch, lh, nh. Por razões
etimológicas, o agá aparecia no português antigo freqüentemente em palavras que já o tinham
em latim. Como conseqüência desse emprego, hesitante, esta letra surgia também muitas
vezes onde etimologicamente não se justificava; é o caso da grafia “he” para forma verbal do
verbo ser. Diz Edwin Williams (1975, p.35) que “o h
era provavelmente usado para distinguir
o verbo da conjunção e, indicando assim o monossílabo tônico.” Todavia, apesar de, já no
século XVII a forma verbal ser grafada com acento, figura no poema com agá, letra que foi
eliminada na versão adaptada, claro. Apareceu numerosas vezes no texto, como no C.5–11.
Também por razões gramaticais, foi eliminada de palavras como: comprehendendo
(Reflexões...); sahia (C.2–9); hombros (C.2–8); hia (C.2–12); amethistas (C.7–52);
exhortando (C.3–50); dirte-hei (C.3–61) outras mais que, pela evolução interna da língua
desapareceram dos vocábulos. A questão do artigo/numeral um
(e suas flexões e
combinações) sempre impresso no poema com agá inicial, como no seu primeiro verso,
merece comentário à parte, até porque inúmeras vezes percorre todas as estrofes, tendo às
73
vezes a variante hu. A letra agá foi usada antes de vogais iniciais, talvez, para indicar hiato
com a vogal final da palavra precedente. Mais tarde, esquecido este objetivo, veio a ser
considerada parte da grafia regular da palavra, sendo abolida na reforma ortográfica de 1943.
Há uma certa inconsistência na primeira edição de Caramuru, onde figuram também, muito
raramente, formas sem agá. Ainda quanto ao uso da polêmica letra, são muitas e variadas as
situações: entre duas vogais para marcar hiato (comprehendendo, cahira ...) e nas palavras
Christo (C.1-43) e christianismo (C.1–4) onde aparece na composição do dígrafo de origem
grega. Aos poucos esta letra muda, vai desaparecendo do formulário ortográfico do português.
b) Quanto às consoantes mudas, hoje em dia, no português do Brasil não se
escrevem as consoantes que não são proferidas, orientação esta seguida na adaptação do
poema. Por exemplo, damnos (C.3–53). Estas letras, que formavam encontros consonantais
heterogêneos, representam a reunião de duas ou mais diferentes consoantes contíguas no
corpo do vocábulo. Estes grupos podem ser, quanto à formação, próprios ou impróprios;
quanto à posição podem ser iniciais, mediais ou finais e quanto à procedência, latinos ou
românicos. Na primeira edição do poema foram empregados todos os tipos de encontros
consonantais. Com o tempo, a maioria desses grupos se desfez pelo desaparecimento da letra
muda e sem valor distintivo para nós brasileiros de hoje. Alguns poucos permaneceram,
sobretudo no português de Portugal, mas há propensão para uma simplificação radical neste
sentido.
Há mais ou menos dez anos, comissões de filólogos e lingüistas portugueses
e brasileiros foram formadas para unificação da grafia entre os países lusófonos; no Brasil
pouquíssimas palavras conservam hoje as consoantes mudas, porém os europeus e africanos
as mantêm em suas regras gramaticais. O filólogo Segismundo Spina assevera que também
eles logo cederão à grafia em que o grupo consonantal se liberta da sua prepositiva. E assim
procedo ao imprimir tais vocábulos na versão adaptada, mantendo apenas aqueles de cujas
74
palavras se tem registro no Aurélio. Relaciono agora os grupos como figuram no original,
sendo o tipo assim formatado.
CT activo (C.9–69); dicta (C.6–55); extinctos (C.1-15); luctando (C.1–
13); lucta (C.4–56); afecto (C.9–70); victima (C.1–74); contricto (C.1–73). Destas palavras,
algumas conservam o grupo até hoje, mas a maioria teve síncope da letra cê. Curiosamente,
“plectro” (C.1–8) figura sem esta letra, porém hoje escreve-se com o cê, que também soa na
pronúncia, apesar de, em geral não termos o hábito de pronunciar a gutural no comum das
palavras em que ela persiste na escrita.
GM – Aparece pouquíssimas vezes, como em augmenta (C.1–8), e o gê
desapareceu na versão atual.
MN As palavras deste grupo perderam a letra eme que tinha função
nasalizadora; o ene já tem som nasal. Aliás, no manuscrito, a grafia é de consoante simples.
Exemplo: alumno (C.1–9); calumnia (C.9–39); somno (C.1–45); damnosa (C.1–69);
condemnados (C.7–64).
PH Este grupo que a partir do século IV recebeu a pronúncia de efe,
passou depois a ser grafado com esta letra, mas no poema de Durão imprimiram-se palavras
com aquele “dígrafo”. É o caso de: prophetica (C.1–35); athmosphera (C.1–65); e algumas
outras que, obviamente escrevi com efe. Pode-se notar também outras ocorrências da letra
agá, por razões etimológicas, fonéticas ou gráficas (Ver p. 73).
PT – Neste conjunto, o pê desapareceu na maioria dos casos; aliás, ele não
figura no manuscrito em palavras como: baptismo (C.7–6); Neptuno (C.1–9); redemptor
(C.1–18).
SC – As palavras que apresentavam este grupo consonantal inicial, em
geral, ou recebiam um e
protético ou perdiam o esse, por exemplo: scetro (C.1–8); sciencia
(C.6–63); sceptro (C.1–8); sciencias (C.9–79).
75
TH Este é um dígrafo helenizante condenado pelos gramáticos desde o
princípio do período etimológico, e não mais existe no português, mas na primeira edição de
Caramuru era bastante ocorrente: Catharina (C.9–80); Carthago (C.1–18;. thesouro (C.10–
29); author (C.10–8); cithara (C.1–23); ethereo (C.1–73).
Além destes casos elencados, outros há que, não podendo ser agrupados,
como Nhighe-teroi (C.8–34) e Nhiteroi (C.6–78), logicamente pautaram-se pela grafia
dicionarizada hoje, na elaboração da edição adaptada. Continuando, mais alguns fenômenos
lingüísticos merecem comentários.
c) A junção do pronome oblíquo ao seu verbo podia se dar de três maneiras:
ligando-se diretamente ao verbo, com consoante de ligação; duplicando-se a consoante de
ligação ele, sem usar hífen; anexando a consoante ao verbo, ligando o pronome com hífen. No
manuscrito ocorre como no primeiro caso; na primeira edição, como no segundo. Assim, entre
as inúmeras ocorrências destacamos: admitillo (C.1–3); chamallos (C.3–50); entendello (C.3–
47); devorallo (C.1–76); escutalla (C.1–67). Na adaptação: admiti-lo, chamá-los, entendê-lo,
devorá-lo, escutá-la, como atualmente se grafa.
d) Quanto à acentuação, a crase era marcada com acento agudo, como
acontece, por exemplo, nas estrofes 15, 43, 78, e 91 do canto um e no C.6-54. Também o
acento agudo indicava a vogal subtônica (sómente – C.1–59). Outros casos de acentuação:
Caramurú (no título); Paraguaçú (C.4–52); abaixára (C.2–87); tacápe (C.3–53). Este é um
assunto gramatical em que houve grandes mudanças do século XVIII até hoje, de sorte que a
adequação feita para a versão em prosa foi intensa, de acordo com as regras gramaticais
vigentes (Acordo ortográfico de 1943 e reforma ortográfica de 1971).
e) A escrita cursiva trouxe grandes problemas para os copistas, que eram
praticantes de abreviações, pois tinham de ser rápidos. Usavam, como se faz ainda hoje,
numerosas abreviaturas para os vocábulos corriqueiros, monossilábicos ou não: um til sobre o
76
“que” ou mesmo só a primeira letra valia pela palavra. Estas formas abreviadas figuram várias
vezes na edição impressa em 1781, o que não se repete na versão em prosa. Algumas
ocorrências: C.8–13; C.1–23; C.9–66; C.1-69. Nos casos em que se usou o til, este não tem
função nasalizadora, como acontece com “algu” (C.7–32), mas sim, abreviadora (q – C.1- 4
e C.6 – 41).
f) As formas verbais do presente e do pretérito do indicativo, na terceira
pessoa do plural, hoje grafadas com am, foram impressas com ão, em todos os verbos, que
não são poucos. No período da ortografia fonética da língua portuguesa, tentava-se
representar o som das palavras que se escreviam. Surgiam então novas grafias, nem sempre
correspondendo à etimologia, mas por analogia a formas já existentes. É o caso destas formas
verbais. Elas são abundantes no poema e cito alguns exemplos: degolão (C.4–62); cubrião
(C.1–89); deixão (C.9–80); afugentão (C.4–62); fazião (C.1–14); corrião (C.9-80); levão
(C.1–75); parecião (C.10–3).
g) Segundo os gramáticos, a língua portuguesa manifesta acentuada
tendência para evitar o hiato; a ditongação foi uma das maneiras de fazê-lo. Na primeira
edição da obra surgem muitas palavras escritas na forma antiga, antes de passarem pelo
metaplasmo. Alguns exemplos: ceo (C.6–60); manea (C.1–78); arêa (C.6–20); fêa (C.1–19);
Deos (C.10–9).
h) A duplicação de consoantes, abusiva nesta edição de Caramuru, é uma
das características dentre as muitas arcaizantes da grafia. Na verdade, é um retrocesso
paradoxal: mesmo quando os tipos impressos eram dispostos um a um, a abundância de
duplicações de letras era desproposital. Nem no manuscrito isto acontecia e estas letras nunca
representavam sons longos; a simplificação já acontecera no latim vulgar. Os erres e esses
intervocálicos eram duplas que materializavam sons diferentes, por isso não caíram como as
demais e persistem até hoje na língua portuguesa. São usadas até nos compostos modernos:
77
minissaia, desserviço... Em geral, os grupos consonantais homogêneos reduziram-se a
consoantes simples na passagem do latim para o português. À parte a posição intervocálica,
muitos outros usos da duplicação da consoante parecem ter tido fins fonéticos: marcação da
sílaba tônica, nasalização da vogal anterior ou caracterização de som velar. Como disse, há
muitíssimos casos exemplares desta prática na primeira edição, o que, obviamente
simplifiquei. Apresento apenas alguns: affamado (C.1-1); immenso (C.5–1); mette (C.7–57);
bellico (C.1–23); innocente (C.2–88); officios (C.3–74); annos (C.1–59); peccados (C.1–54).
Segundo observa Coutinho em seu Pontos de gramática histórica (1970, p.75), “no
período pseudo-etimológico, as grafias de vocábulos de origem latina e grega foram feitas
com acintosa desatenção à pronúncia”. É o caso da inserção do agá (falsa regressão
ortográfica), duplicação de consoantes e formação de certos grupos consonantais. Por
influência latina, neste período (séc. XVI até 1904) a grafia era conforme a origem da palavra,
embora nem todas as letras fossem pronunciadas.
i) Grafia de palavras com cê-cedilhado, esse, esse-cê, xis, xis-cê e zê
merecem comentário especial neste item pela grande inserção na escrita do poema em sua
primeira edição e que agora sujeitam-se às regras gramaticais e ao dicionário. Os
fonemas, no português arcaico, tomavam diferentes formas, de acordo com o
conhecimento e cuidado do copista ou do tipógrafo. Naquele período setecentista, abundaram
regressões ortográficas, dentre elas a troca de esse por zê e vice-versa: empreza (C.10–27);
revezes (C.4–60); portgueza (C.9–67); prizão (C.1–21); quizeres (C.7–31); baptise (C.1–60);
francezes (C.6–45); Brazil (C.6–53); paiz (C.1–34); agonisante (C.1–37); poz (C.1–89); goso
(C.1–45).
Quanto à troca de esse e dois-esses, ela ocorria porque a letra simples tinha
o valor da geminada. Também aqui há exemplos: resurge (C.1–42); presago (C.1–74). No
manuscrito é abundante a troca do esse final por zê: Barretoz (C.1–7); almaz (C.1–74); olhoz
78
(C.1–58). A grafia que envolve a letra xis comporta discussão: a estrofe 36 do canto um traz
assim o quinto verso: “Felis [por Félix] foi o ditoso, e feliz era”. Mesmo no estágio atual da
língua há divergências: grafado com xis, por razões etimológicas, esta letra deve soar /s/ e não
/k/ no nome próprio. No adjetivo, o zê é resultante do abrandamento do cê (felice). Já a
palavra “cálice” permaneceu na antiga forma, e o nome “Luís” foi impresso com zê.
O vocábulo “exsangue” (C.1–75) originou a grafia atual “exangue”; na
junção com o prefixo grego, o esse foi absorvido. O cê-cedilhado figura arcaicamente em
palavras como descançado (C.1–3); arremeço (C.1–89) e descançava (C.6–1); é que esta letra
tinha aí valor de fricativa surda. A cedilha podia figurar até quando ela era seguida de e ou i.
Hoje as palavras citadas são grafadas com esse e dois-esses. Na estrofe 64 do canto um, foi
impresso “sima” porque, às vezes, o esse substituía o cê e até o cê-cedilhado nos vocábulos do
português arcaico. Já na estrofe 38, escreveu-se “estravagante”. Aqui a explicação é outra:
seguido de uma oclusão surda, o xis é pronunciado /s/. Esqueceu-se porém o copista (ou não
sabia) de que aqui se trata do prefixo “ extra” e não “ex”, daí a confusão. Ela não aconteceu
quando se grafou “extraordinária” na mesma estrofe. Coloco também neste item a grafia de
“crecer” na qual o dígrafo, por razões etimológicas, ainda não existia; a constritiva fricativa
era representada apenas pela letra cê. Apesar disso, grafou-se “nascer” na estrofe 48, na
primeira edição; no manuscrito não se encontra o dígrafo.
j) A leitura do poema às vezes é dificultada em virtude de sua sintaxe quase
latina e outras vezes pelo uso arbitrário das letras maiúsculas. Esta questão nunca deixou de
preocupar os editores em língua portuguesa. Há milênios, quem escrevia sentia a necessidade
de utilizar destaques ou efeito de realce; no estabelecimento do texto adaptado só foram
mantidas as maiúsculas devidamente justificadas pelas regras gramaticais vigentes, ou por
razões estilísticas. No poema de Durão há emprego excessivo de maiúsculas. Estas devem ser
grafadas apenas no começo do período, verso ou citação e nos substantivos próprios de
79
qualquer natureza, que são quinze grupos segundo a gramática de Bechara (2001 – p.103 a
105) pela qual me pautei nesta adaptação do poema. Também assim aconteceu com as aspas,
parênteses, travessões e demais sinais de pontuação e realce gráfico no corpo do texto. No
campo dos arcaísmos sintáticos surgem dificuldades de intelecção do texto pela falta, excesso
ou irregularidade de pontuação. Como objetivo produzir um texto em prosa corrente, eliminei
alguns sinais, alguns livres e irregulares, sem prejudicar a expressão do autor, procurando
estabelecer um texto que o leitor contemporâneo pode bem entender. Outras vezes, mudei os
sinais, principalmente vírgula e ponto-e-vírgula, em virtude de orientações de gramática
vigentes no Brasil para a organização frasal.
Quanto ao hífen, seu uso foi bastante limitado no texto original, sendo
mesmo dispensado em situações em que a ortografia o exige, como por exemplo, em
coherdeiro (C.1–43). Nem nas ligações entre o verbo e seu pronome, como foi visto, o hífen
garantiu sua presença, o que, evidentemente se corrigiu na versão atualizada. Exemplo raro de
hifenização ocorre no canto quatro, estrofe 55 (Avista-se) e na estrofe seguinte (Arroja-se). Já
os parênteses foram largamente empregados para isolar frases insertas no poema a fim de
esclarecer antecedentes, para destacar exclamações ou para evidenciar o verbo “dicendi” (a
bela diz) (C.6–38). Neste caso, transformei o discurso direto em indireto, ou mantive o direto,
usando dois-pontos. Outras acomodações deste tipo ocorreram, sempre visando à
compreensão. Outras vezes, como no início do canto dois, simplesmente foram eliminados os
parênteses, sem perda de clareza. A maioria dos casos foi mantida; quando não, utilizei
vírgulas ou travessões ou então transformei a frase. Na edição de Varnhagen (1845) também
assim foi feito. O grifo com um traço sob a palavra ocorreu pouquíssimas vezes até mesmo no
manuscrito; uma delas está no canto um, estrofe 40: seja. Na prosa, usei tipos itálicos por
serem mais adequados. Da mesma forma, na edição de 1781 os tipos itálicos foram usados
com certa freqüência. Alguns casos, como na estrofe 82 do canto um, este recurso possibilitou
80
retratar o pensamento dos náufragos. Na versão em prosa ele foi dispensado, conforme o uso
em voga nas redações.
Ainda tratando do aspecto formal da adaptação do texto, uma observação
final. São inúmeros os casos em que, na edição atualizada, convinha remodelar palavras,
expressões, frases com a finalidade de dar características de modernidade à poesia
transformada em prosa. A impossibilidade de agrupar os fenômenos ocorridos e a não-
necessidade de aprofundar os comentários motivam apenas para citação de casos mais visíveis
e que demandaram trocas evidentes. Por exemplo, a troca de gê por jota e vice-versa foi
inevitável; “creatura” passou a “criatura”; “quasi” foi grafado com e no final; “titubiante”
passou a “titubeante”; “aeria” passou a “aérea”; “peleija” perdeu o i; “cuberto” tornou-se
“coberto”; “comsigo” foi anotado “consigo”; “pagé” virou “pajé”; “assucenas” passou a
“açucenas”; “fegundo” renovou-se em “fecundo”; “em fim” passou a “enfim” e assim por
diante. Em referência à conjunção “entanto”, teve ela valor temporal e valor adversativo;
“tanto” é empregado com valor quantitativo. Esta diversidade reflete-se na grafia. Considerei
cada caso e, de acordo com o sentido, grafei “no entanto”, “entretanto” (adversativo);
“enquanto” (temporal); “em tanto” (quantitativo). Nestes casos, a consulta ao manuscrito foi
proveitosa. Obviamente os nomes próprios de pessoas e lugares foram atualizados em suas
grafias. “Brasil” e todos os seus derivados, que não são poucos, foram sempre grafados com
esse. Houve também atualização de termos como “ignívomo instrumento” (arma de fogo).
Finalmente, os numerais que indicam cantos, estrofes e as notas de rodapé
receberam o seguinte tratamento: cada um dos dez cantos é identificado com numeral romano
(Canto I, Canto II...). As estrofes, por se tratar de organização do texto em parágrafos, são
numeradas no início dos parágrafos, os quais agrupam frases sobre o mesmo assunto,
independentemente da estrofação. Estes são construídos na seqüência das estrofes, em
observância dos pressupostos da lingüística atual portuguesa para elaboração de um texto bem
81
formado, coeso e coerente. As notas recebem numeral cardinal tanto no corpo do texto quanto
na parte inferior da folha.
Falando agora da linguagem empregada pelo poeta, constato que seu estilo é
simples, mas vibrante; Durão consegue, através de metáforas, metonímias, hipérboles,
repetições, personificações, dar graça à composição. Por esta razão, sempre que possível, as
figuras são mantidas. Alguns hipérbatos e cavalgamentos foram desfeitos, optando-se por
ordem direta dos termos nos casos imperiosos de clareza e concisão, a despeito de saber do
estágio de língua da época e da composição métrica dos versos. A idéia é justamente atualizar
a linguagem, tornando o texto mais contemporâneo, sem contudo tirar o brilho da expressão
artística do poeta em sua epopéia. Assim, questões de ordem gráfica, vocabular,
morfossintática, semântica e estilística foram analisadas para se obter o melhor efeito. A
preferência do autor por palavras de raízes eruditas, optando por resquícios de gerúndios e
gerundivos (miserando, horrendo, naufragante, infando, dominante, venerando,
nigromantes...) foi contornada com a manutenção dos vocábulos em uso atualmente e a
substituição daqueles termos já arcaicos ou repetitivos demais. As elipses, quando necessário,
foram escritas entre colchetes, assim como os clareamentos de desordens quanto a regência e
concordância; às vezes foi preciso mencionar o termo regido e os complementos ocultos, pois
a falta de harmonia entre os termos da frase dificulta compreensão e interpretação imediatas.
Como meu intuito é tornar o texto mais inteligível ao leitor comum, realizo a adaptação,
operando com modernos conceitos e práticas de composição textual, mantendo a opção do
autor no que não interfere neste processo. Pressuponho também que, mesmo o leitor comum
tem certo domínio vocabular e pode (e deve) consultar dicionários.
CAPÍTULO III
VERSÃO ADAPTADA DO POEMA, COM NOTAS EXPLICATIVAS NO RODAPÉ DA
PÁGINA.
CARAMURU – POEMA ÉPICO DO DESCOBRIMENTO DA BAHIA
FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO (1781)
EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E ANOTADA
EDNA CASTILHO PERES
2006
83
Et quoniam Deus ora movet,
Sequar ora moventem.
Rite Deum.
Ovid. Metamorph. XV.
CARAMURU DE SANTA RITA DURÃO:
EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E ANOTADA
REFLEXÕES PRÉVIAS E ARGUMENTO
Os sucessos do Brasil não mereciam menos um poema que os da Índia.
Incitou-me a escrever este o amor da pátria. Sei que a minha profissão exigiria de mim outros
estudos, mas estes não são indignos de um religioso porque não o foram de bispos, e bispos
santos; e o que mais é, de santos padres como são Gregório Nazianzeno, são Paulino e outros,
principalmente sendo este poema ordenado a pôr diante dos olhos dos libertinos o que a
natureza inspirou a homens que viviam tão remotos das que eles chamam preocupações de
espíritos débeis. Oportunamente o insinuamos em algumas Notas [por exemplo, a nota 36]:
usamos sem escrúpulo de nomes tão bárbaros: os alemães, ingleses e semelhantes não
parecem menos duros aos nossos ouvidos; e os nossos [nomes] aos seus [ouvidos]. Não faço
mais apologias da Obra porque espero as repreensões para, se for possível, emendar os
defeitos, que me envergonho menos de cometer que de desculpar.
A ação do Poema é o descobrimento da Bahia, feito quase no meio do
século XVI, por Diogo Álvares Correia, nobre vianês, compreendendo em vários episódios a
história do Brasil, os ritos, tradições, milícias dos seus indígenas, como também a [história]
natural e política das colônias.
E porque Deus fala por meu intermédio, seguirei sua inspiração. Livro XV de Metamorfoses de Ovídio (43 a. C
– 17 da nossa era).
84
Diogo Álvares passava ao novo descobrimento da Capitania de São Vicente
quando naufragou nos baixos de Boipebá, vizinhos à Bahia. Salvaram-se com ele seis dos
seus companheiros, e foram devorados pelos gentios antropófagos, e ele [foi] esperado, por
vir enfermo, para melhor nutrido servir-lhes de mais gostoso pasto. Encalhada a nau,
deixaram-no tirar dela pólvora, bala, armas e outras espécies de que ignoravam o uso. Com
uma espingarda matou ele, caçando, certa ave; e espantados, os bárbaros o aclamaram Filho
do Trovão e Caramuru, isto é, Dragão do mar. Combatendo com os gentios do sertão,
venceu-os e fez-se dar obediência daquelas nações bárbaras. Ofereceram-lhe os principais
[chefes] do Brasil as suas filhas por mulheres, mas de todas escolheu Paraguaçu, que depois
conduziu consigo à França, ocasião em que outras cinco brasileiras seguiram a nau francesa a
nado, por acompanhá-lo, até que uma se afogou; intimidadas, as outras se retiraram.
Salvou um navio de espanhóis que naufragaram, com o que mereceu que lho
agradecesse o imperador Carlos V com uma honrosa carta. Passou à França em nau daquele
reino que ali abordou, e foi ouvido com admiração por Henrique II que o convidava para em
seu nome fazer aquela conquista. Ele recusou, dando aviso ao senhor dom João III por meio
de Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo da Bahia. Entregou o monarca a empresa a
Francisco Pereira Coutinho, fazendo-o donatário daquela capitania [Bahia de Todos os
Santos]. Mas este, não podendo amansar os tupinambás que habitavam o Recôncavo, retirou-
se à capitania de Ilhéus; pacificado depois com os tupinambás, tornava à Bahia quando ali,
infaustamente, pereceu em um naufrágio.
Entanto, Diogo Álvares assistiu em Paris ao batismo de Paraguaçu, sua
esposa, nomeada nele [no batismo] Catarina, por Catarina de Médicis, rainha cristianíssima
que lhe foi madrinha; e tornou com ela para a Bahia onde foi reconhecida pelos tupinambás
como herdeira do seu principal [chefe] e Diogo [foi] recebido com o antigo respeito. Teve
Catarina Álvares uma visão famosa em que a Virgem Santíssima, manifestando-se-lhe cheia
85
de glória, lhe disse que fizesse restituir uma imagem sua roubada por um selvagem. Achou-se
esta nas mãos de um bárbaro; e Catarina Álvares com exclamações de júbilo se lançou a
abraçá-la, clamando ser aquela a imagem mesma que lhe aparecera. Foi colocada com o título
de Virgem Santíssima da Graça em uma igreja que é hoje [o] Mosteiro de São Bento, célebre
por esta tradição.
Chegou então de Portugal Tomé de Sousa com algumas naus, famílias e
tropas para povoar a Bahia. Sebastião da Rocha Pita, autor da História brasílica, e natural da
mesma cidade, assevera que Catarina Álvares renunciara, em favor do senhor dom João III,
aos direitos que tinha sobre os tupinambás, como herdeira dos seus maiores principais. Ele
mesmo atesta que aquele monarca mandara aos seus governadores que honrassem e
atendessem Diogo Álvares Correia Caramuru pelos referidos serviços. E foi com efeito ele o
tronco da nobilíssima Casa da Torre na Bahia e Catarina Álvares, sua mulher, foi honrada por
aquela metrópole com um seu retrato sobre a porta da Casa da Pólvora ao lado das Armas
Reais. Leia-se Vasconcelos na História do Brasil, Francisco de Brito Freire e Sebastião da
Rocha Pita.
86
CARAMURU DE SANTA RITA DURÃO:
EDIÇÃO ADAPTADA EM PROSA E COMENTADA.
CANTO I
(1) Cantarei o valor de um forte homem em mil casos respeitado que,
percorrendo as praias do Ocidente, descobriu o famoso Recôncavo da potente capital
brasileira
1
. Chamado Filho do Trovão, ele soube domar os selvagens mesmo em sorte
adversa, sendo por isso um herói; só conheço herói quem nela é forte.
(2) Santo Esplendor que do grande Pai emanas ao seio intacto de uma
Virgem bela, se da enchente de luzes soberanas tudo dispensas pela mãe donzela, rompendo
as sombras de ilusões humanas, revela tu a pura luz do grande caso. Faze que em ti comece e
em ti conclua esta grande obra, que por fim foi tua.
(3) E vós, Príncipe excelso, mandado do Céu para base imortal do luso
trono, vós que sois forte candidato à sucessão real do áureo Brasil, enquanto conduzis o
Império sobre o seio da paz, com doce sono, não queirais julgar indigno de vós o meu verso,
de [nele] pôr os olhos e admiti-lo ao reino. Nele vereis nações desconhecidas que em meio
dos sertões a fé não consegue domar, porém elas poderão ser transformadas para vós num
império maior que o da Grécia ou de Roma.Vereis povos e terras escondidas onde, se um raio
da verdade assoma, amansando-as, tereis na numerosa turba outro reino maior que o da
extensa Europa. Devora-se a infeliz mísera gente, sempre reduzida a menor território, e se
extinguirá, infelizmente, pois em campo menor, maior a guerra. Olhai e refleti com piedade,
1
Naquele tempo, quando foi escrito o poema, a Bahia era a capital do Brasil.
87
senhor, para tantos mortais que vivem na floresta; se os livrardes do abismo profundo, vireis a
ser monarca de outro mundo.
(6) Príncipe do Brasil, futuro dono que governa a Pátria-mãe, ponde,
excelso Senhor, aos pés do trono as desgraças do povo miserável. A recompensa para tanta
esperança é o vosso título e nome que, ao ser invocado, se chamará dom José, salvador de um
mundo novo, como o Egito chamou ao outro [José do Egito]. Nem podereis temer que não
haja heróis no povo luso que desejem dedicar-se ao santo intento e apresento-vos o antigo
Portugal renascido no Brasil, como novo. Vereis do domador da região indiana alta renovação
nas guerras do Brasil e que os seguem [aos heróis] nas bélicas idéias os Vieiras, os Barretos e
os Correias
2
. Portanto, senhor dom José, dai-me potente ímpeto para que eu possa entoar
sonoro verso sobre o invicto pulso da gente brasileira que aumenta o império do vosso reino.
E enquanto eu canto em nova lira e novo plectro o povo convulso
3
do Brasil, fazei que vosso
Trono fidelíssimo se veja em propagar a Igreja [católica].
(9) O vasto espaço da nova Lusitânia Diogo ia povoar, a quem bisonho
chama o Brasil, temendo o forte braço horrível do trovão medonho. Essa Fúria saiu do abismo
a cortar-lhe o passo, como suponho, da qual o Paganismo, aluno do Inferno, fez Netuno
dando-lhe o império das águas
4
. Este cravou seu grande Tridente, com o qual agita o mar, na
horrível montanha dos Órgãos
5
, e na escura caverna onde Jove (outro espírito) espalha a luz
tremenda, faz mil relâmpagos e chove coriscos. Bate-se o vento em horrível contenda, arde o
céu, zune o ar, treme a montanha e o mar se ergue em frente igual a outra montanha. O Filho
do Trovão seguia em um navio, passando por tormentas, ruinoso; vê que na travessia o alto
2
O autor remete a João Fernandes Vieira e ao general Francisco Barretos de Meneses, que se distinguiram na
expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1654; e Manuel Alves Correia que tomou parte na defesa da
Colônia do Sacramento contra os sitiantes espanhóis, segundo Hernâni Cidade (1961)
3
Referência bíblica às profecias de Isaías: convulso, conforme esclarece o próprio Durão no manuscrito, é o
epíteto que ele dá aos povos pecadores (primeiro capítulo do livro de Isaías), no caso, os americanos.
4
Diz a mitologia: foi o Paganismo, doutrinado pelo Inferno, que atribuiu o império dos mares a Netuno; seu
símbolo era um grande tridente com o qual agitava as águas. A ele se alude na estrofe seguinte. A Júpiter ou Jove
foi concedido o domínio dos ares, onde ele troveja.
5
O autor esclarece no manuscrito que esta montanha é um ramo da célebre cordilheira que percorre o Brasil,
saindo de suas cavernas névoas tempestuosas.
88
mar cheio de ondas suga a embarcação. Embora preocupado não teme a morte; invoca no
perigo o Céu piedoso ao ver que a fúria horrível da procela rompe a nau, quebra o leme e
arranca a vela. Para aliviar o peso da embarcação, a arma de fogo é lançada ao fundo do mar.
O passageiro, para nadar no túmido elemento
6
, abraça a primeira tábua que encontra.
Temendo o vento, lança-se ao mar confiante na tábua como se ela fosse um barco, até que a
quilha bate no penhasco e a nau se despedaça. Do batel perdido, apenas sete homens chegam
à praia cruel
7
, lutando a nado, e bárbara multidão fingindamente os socorre acolhendo ao
brado. Ao ver o falso benfeitor na praia, o náufrago enganado estende-lhe as mãos. Tristes por
verem o fim que os espera, [pensam] que com tanta sede teriam bebido a morte [no mar].
(14) Já em terra o infeliz náufrago via-se rodeado pela turba americana;
olham-se pasmados ao se defrontarem; uns e outros não crêem [ser] da espécie humana. Os
cabelos, a cor, a barba e o semblante faziam crer àquela gente insana que seria alguma espécie
de animal desses que o mar abrigava em seu seio. Um [índio], aproximando-se dos miseráveis
que o mar lançara à areia, observa o corpo; ora tenta despi-lo ora receia que ele o assalte de
surpresa, com astúcia. Outros pensam tratar-se de um jacaré
8
, temendo que ele, com o
violento insulto, acorde do sono fingido e os segure entre as presas cruéis e os mate. Mas
vêem Sancho, um náufrago que expira, com a cabeça partida numa pedra aguda e que trêmulo
tentava erguer-se. [Ele] caíra ao implorar ajuda com voz lastimosa, os olhos revirados, a face
cadavérica e a boca muda. Pela experiência, reconhecem também que aquilo é morte. Crendo
nisso, acorrem ao pasto horrendo e, retalhando o corpo em mil pedaços, famélicos vão
trazendo pés, mãos e braços e vão comendo a carne crua; outros as vão assando em fossos
ardentes ou [vão] torrando os ossos na chama, na devassidão da gula infame.
6
Túmido elemento: o mar. Na ciência antiga, a terra, o ar, a água e o fogo eram os quatro elementos que
compunham a força da natureza. O adjetivo túmido (saliente) justifica-se por se encontrarem as águas revoltas,
na descrição inserida na narrativa.
7
Cruel porque, se no mar corriam perigo, na praia mais ainda por causa dos selvagens antropófagos.
8
Conforme explica Durão, jacaré é uma espécie de crocodilo brasileiro.
89
(18) Que horror da humanidade! Ver consumida a carne da própria espécie,
já apodrecida! Quanto não deve a Europa abençoada à Fé do Redentor, que humilde escuta?
Porém, não só aquela gente bruta e miserável praticava tal infâmia: Roma e Cartago
conheceram o horrível sacrifício de Saturno
9
.
(19) No entanto, os sete [náufragos] que ainda com vida chegaram a tocar na
infame areia
10
, pasmam ao ver na crescente multidão a aparência brutal, horrível e feia, a pele
pintada de vermelho, uma cor diferente que os enfeia, pedras e paus de embiras
11
enfiados na
face e nariz furados. Na boca ensangüentada de carne humana está o beiço inferior todo caído
porque [eles] a têm toda esburacada, e o lábio superior cheio de pedras vis. Os dentes (que é
beleza que lhes agrada)
12
, um sobre outro desponta saliente; nem se lhe vê nascer na barba o
pêlo, a cara e o nariz [são] achatados, o cabelo [é] rijo. Vê-se o pejo no sexo recoberto com
nada mais além da antiga peça que Eva usava quando, por castigo pelo voraz desejo, se
envergonhara da sua nudez. Os homens andam sem pudor, como Adão sem culpa andava,
porém por ocasião dos sacrifícios usam tangas de penas, conforme ordenava a mãe natureza.
Uns enfeitam-se com vistosas plumas loiras, brancas, purpúreas e verdes das belas araras.
Outros tingem-se com várias resinas balsâmicas, como se vestissem lustrosas túnicas, sem
temer as chuvas procelosas nem o frio rigor de ásperas brumas; não receiam o mordaz
besouro como se fossem antas ou tatus
13
protegidos pela sua couraça.
(23) Suas armas [são] flechas, pedras, bestas, espada de pau-ferro. Por
escudo [têm] as redes de algodão nada trabalhosas onde a ponta do dardo agudo se embarace.
9
Segundo a mitologia, Saturno ou Cronos era pai de Júpiter, Netuno, Plutão e Juno. Uma promessa que fizera a
seu irmão Titã obrigava-o a devorar os filhos assim que nascessem, daí a alusão do poeta ao fato, ao falar do
antropofagismo. No verso 4 da estrofe 29 deste canto ele repete a referência. Durão explica que os antigos
italianos foram, como se colige de Homero, antropófagos; eram eles os lestrigões e os liparitanos. Os fenícios e
os cartagineses usaram de vítimas humanas e a própria Roma, nos seus maiores apertos. São espécies vulgares na
História, conclui o poeta.
10
A atribuição de má fama ao litoral brasileiro devia-se ao fato de nele se praticar a antropofagia.
11
O poeta esclarece: embira é uma espécie de cordão feito da casca interior de algumas árvores.
12
Certamente para fazer colares, conforme a estrofe 81.
13
O autor anota que tatu é uma espécie de animal coberto de uma concha duríssima e impenetrável. E explica
ainda: os selvagens tingem-se com várias resinas, senão com o fim, ao menos com o efeito de os livrar das
mordeduras dos insetos; ainda que alguns se tinjam com ervas inúteis para esse uso.
90
Por capacete [trazem] nas guerreiras testas cintos de penas dispostos com galhardia, mas o
povo, na ameaça bélica luta somente com unha ou dente, ou punho ou braço. Assim armada a
multidão confusa investe contra o náufrago enfraquecido que, ao se ver despido, não reage
por querer que se enxugue a umedecida veste. Em troca deste mimo [a roupa] que usa, quando
a bárbara gente o vê rendido, traz-lhe a batata, o coco, o inhame
14
. Todavia, o que crêem
piedade é apenas gula infame. Assim, cevavam os desditosos desfeitos pelas fadigas
marítimas para engordarem os pastos horrorosos, sendo refeitos nas míseras carnes.
(25) Feras! Feras não, porque são mais monstruosos os efeitos bárbaros da
nossa alma e cabe mais furor na razão corrupta, tanto que um bruto não sabe imaginar!
(26) Não muito longe do mar, no duro penhasco, mal aberta está a boca de
um antro escuro, encoberta de ramas externamente. Ali se acha enclausurado, sob vigilância,
o grupo infeliz e, para cevá-lo mais, dão-lhe o recreio de ir pela praia em plácido passeio.
Diogo, por ser de sangue nobre, comandava o bando miserável e percebia que a turba
abominável nem sabia usar o mosquete de ferro. Recolhe muita pólvora e bala da nau
esfacelada que vê ao lado. E como enfermo cambaleante serviu-se de uma espingarda por
bastão. Apesar de forte, por sua natureza delicada Diogo tem febre desde a tormenta. Por seu
rosto descorado e por estar pálido, com a carne macilenta sobre os ossos, foi poupado da
comilança graças à afortunada doença; a gente cruel pretendia poupá-lo para que fosse
comido com os demais, quando se restabelecesse.
(29) Acredita-se que, já na Antigüidade era barbárie devorar a prole, desde
que fora atribuída ao velho Saturno esta cruel voracidade. Enfim é lenda, mas na verdade, a
partir da invenção do diabólico homicida, uns cá se matam, outros lá se comem e tanto
aborrece aquela fúria ao homem.
14
Frutos bem conhecidos ainda da nossa Europa, observa o autor.
91
(30) Passadas três luas-cheias no luminoso visual do vasto globo, o temido
chefe dos bárbaros decreta fulminantemente que os seis homens sejam oferecidos no altar em
sacrifício de sangue, sendo suas cabeças quebradas e [sendo] saciada a gula abominável de os
comer
15
. Enquanto se prepara a brutal festa, nada sabiam na gruta os habitantes da funesta
prisão, pois a bruta gente ardilosa lhes esconde isso. E quando a pompa animalesca já se
aproxima, a pena se lhes comuta em seu favor e é dada ordem para que apenas comam e,
comendo, engordem. Mandam carnes mimosas, doces frutas: o araçá, o caju, o coco e a
mangaba. Enchem as grutas do bom maracujá e de rimas e rimas de goiaba. Servem-lhes
sempre vinho
16
e a imunda catimpoeira que eles costumavam fazer com a baba e que
embrulha o estômago só de ouvir falar.
(33) Um dia, repousavam à sombra calmamente para dar alívio à sua dor,
ampliada por se verem escravos de gente tão feroz. Fernando, um deles, docemente entoa
canções na cítara, embalado pelas ondas que o mar lança na terra; espera que com isso se
esqueçam da fúnebre lembrança. Era um jovem muito polido, doutor em letras e celebrado
por suas habilidades. Nascido nas ilhas do Atlântico, tinha conversado muito com as musas.
Tinha seguido os rumos do Brasil por ter visto o celebrado monumento de uma estátua
17
famosa que, [posta] num pico, aponta para o Brasil, o país rico. Luís, que isto escutara, pediu-
lhe [para contar] o conto inteiro da profética estátua, se foi verdade ou se foi clara invenção de
gente rude ou povo noveleiro. Então Fernando, que já cantara em versos o sucedido, que
atesta ser verdadeiro, toma nas mãos a cítara suave e começa a entoar em canto grave.
15
Em nota, o poeta, dando razão ao padre Simão de Vasconcelos, esclarece que os brasileiros não tinham forma
específica de sacrifício; a função solene e os rituais de matança de seus prisioneiros eram vestígios dos antigos
sacrifícios praticados pelos fenícios de que acima se falou em outra nota (nº 9).
16
O esclarecimento vem no manuscrito: vinho – com este nome vêm da América vários extratos de caju, coco e
de outros frutos conhecidos, que podem competir com nossos vinhos. Observa ainda o autor que a catimpoeira
era a imunda bebida dos selvagens, uma potagem abominável feita de milho mastigado (mistura de saliva e suco
do milho).
17
Consta do manuscrito um apontamento do autor segundo o qual é considerada prodigiosa a estátua que se vê
ainda hoje (por volta de 1780) na ilha do Corvo, uma das Açores. Achada no descobrimento daquela ilha, sobre
um pico, ela aponta para a América. Foi encontrada ali apesar de o lugar não ter sido habitado por humanos. E
Durão completa dizendo da possibilidade de haver uma história manuscrita da estátua, obra do seu amigo,
grande fidalgo, o português eruditíssimo João de Barros, que a escrevera provavelmente entre 1522 e 1528.
92
(37) Oculto foi o tempo e incerta a era em que o grande caso contam que
aconteceu. Mas em parte é sem dúvida sincera a bela história que convido a escutar. Félix
18
foi o ditoso e feliz era quem tanto foi favorecido do céu, pois em meio ao gentilismo corrupto,
soube merecer de Deus o seu batismo. Errante, um varão santo caminhava pelas brenhas
quando um anjo o elevou pelos cabelos para onde o sol já se escondia. Mostra-lhe um
selvagem
19
quase lutando em última agonia, e lhe diz: ouve o justo agonizante. E tomou uma
brilhante estrada de luz. Auréu (assim se chama o sacro enviado), aproximado-se do velho
titubeante, ignorando-lhe o idioma, no seu diz, mas o enfermo o desconhecia. E ouve-se
responder (caso admirado!) numa língua de todo extravagante que, sendo em tudo
extraordinária e bruta, faz-se entender, e entende-se ao ser ouvida.
(39) Então ele diz: Sou mensageiro do grande Criador e te ofereço a bênção,
homem ditoso. Inicialmente ignorado neste mundo, quer que escutes o seu nome glorioso,
laço amoroso do eterno Pai, de um Filho verdadeiro e do Espírito também. Quer que saibas o
mistério da verdade: são três pessoas numa só unidade. Um só Senhor que todo o ser governa,
que só com dizer seja o fez do nada, que desde a eternidade fixou certa época para criar a
natureza. Que, liberal, abrindo a mão paterna, abençoa todas as coisas que são animadas. Que
nos fez à sua imagem e quer que o homem reine sobre o mundo. Que havendo colocado
nossos primeiros pais em mil delícias num paraíso, em consideração a este império dado,
privou-os de um fruto com severo aviso. Vendo-se desrespeitado e profanado, para
compensar, entregou seu filho ao duro lenho e aos férreos cravos para salvar o escravo [do
pecado]. Este Redentor, mestre e luz da criatura, nasceu no seio de Virgem pura, invocada
com o nome de Maria, pregou e morreu na cruz ímpia. Rompeu a imóvel fechadura do
18
Como no manuscrito figura o acento grave, considero então, numa interpretação fonética, o nome próprio que
hoje se grafa com xis e acento agudo. Ocorre também na estrofe 60.
19
Apesar de, aqui, a grafia selvagem figurar em todas as edições, por se considerar o estágio de língua, preferi
atualizar o termo. Sobre estes índios, Durão explica: não supomos que este tenha sido o único selvagem que o
padre Anchieta tenha assim encontrado; muitos teólogos se persuadem de que Deus, por meios extraordinários
instruíra a quem vivesse na observância da lei natural.
93
abismo, depois ressurgiu no terceiro dia e enfim subindo ao céu, donde comanda, envia os
mensageiros aos confins da terra. Um destes, venho a ti e intento levar-te se quiseres aceitar
meu catecismo; servindo de porta o Sacramento [desejo] incorporar-te ao santo cristianismo.
Purga o teu coração, teu pensamento, para chegar puro às águas do batismo, onde se entras
com dor do mal primeiro, morrerás co-herdeiro de Jesus Cristo.
(44) Aos primeiros barulhos que escutara, Guaçu (este é seu nome) empina
a frente, ouvidos atentos e rosto fixo, acenando apenas com a cabeça. Dos olhos mal se serve
pois cegara, apesar de a vista parecer serena. De quando em quando estende as mãos e toca, e
pende atento [ao que sai] da sagrada boca. Então responde: Bom ministro do piedoso, excelso
grande Tupã
20
que dirige o céu; não és novo, para mim, não; já tive o prazer de ouvir-te em
sonho; pudera ver-te! Se tens a imagem que o sono fabuloso há muito gera em minha mente,
serás, disse (e na barba o vai tocando), homem com barbas, branco e venerando. Louvores a
Tupã porque enfim chegaste e o caminho me ensinas, de onde escolho buscar logo o grande
Deus que me anunciaste, o qual desde a infância desejo com ardor. Nunca soube que era
assim como contaste, mas não sei como sentia o que ouço e quase vejo, como sombra mal
formada. Não que assim acreditasse, mas por costume. Vendo desse universo a massa imensa
sem ter maior entendimento, não cri que fosse produzida; o pensamento infere que ele [Deus]
o dispensa, tem, rege e guarda. Notava atento que repugna à criatura estar perplexa, sem ter
último fim. E este ente que me fez um segundo Deus
21
é o grande Tupã, criador do mundo.
(48) Vi as chagas da própria natureza, a ignorância, a malícia, a variedade e
bem reconheci que esta torpeza não pode ter nascido da eternal bondade. Sem o saber,
acreditei que antiga chama era acesa neste incêndio comum da humanidade, donde nos veio o
mal. Que assim Deus nos fez... eu não creio. Também vi que o grande Deus que criou o
mundo nunca quisera deixar em tanta perdição a natureza humana e que haveria de estender a
20
Nota do autor: Os selvagens do Brasil têm expressa noção de Deus na palavra Tupã, que entre eles quer dizer
excelência superior, coisa grande que nos domina. (Ver nota 64)
21
Quer dizer, à sua imagem e semelhança fui criado.
94
mão piedosa ao profundo lago de tais misérias. Como o faria? Fiquei vacilante, sempre
incerto e vago, mas nunca duvidei de que alguém nos remisse de tantas misérias. Era a maior
que [eu] experimentava ao ver que o mal seguia livremente e que a Suprema Bondade se
agravava; aí um homem de bem se agravaria vendo que a afronta causada por esta ação só se
pagaria se houvesse outro deus. [No entanto], impossível reconhecer mais de um. Daqui não
passo e, cego, me interrompo
22
.
(51) Agora sim, entendo a grande verdade: um só Deus se fez homem sem
defeito e, sendo três pessoas na Unidade, do Filho ao Pai podia haver um elo. A segunda
pessoa da Trindade seria um novo homem feito de terra, como nós. Procura estabelecer a paz
do homem com Deus, Redentor pio da imortal criatura. Neste creio, este adoro, este confesso.
Venero esta santa mensagem e o reconheço firmemente por meu Deus e Senhor, a quem
pertence o comando da terra e do céu. Hoje te peço o batismo santo para quando estiver
entrando na porta celestial, suba o [meu] espírito à glória que deseja e com estes meus olhos
ainda o veja.
(53) Assim disse o ditoso velho; e acompanhando a voz com devoto suspiro,
bem mostra que a oculta unção do Espírito sublime está tocando em seu peito. Chorando,
levanta as mãos ao céu, e na face se lhe imprime tanto ardor que parece que o humilde rogo é
acompanhado de um dilúvio de água e outro de fogo. Então o bom ministro lhe dizia: É justo,
amigo, que chores o teu pecado por não teres amado a Deus, ser seu inimigo, blasfemar contra
ele e não honrá-lo; por não ter servido a teus pais, com ódio antigo; se não foste honesto e por
teres roubado; e se causaste dano a mulher, bens ou fama em caso feio ou se cobiçaste o
alheio. Esta é a lei santa
23
que está em nós impressa: ninguém ofende que mereça escusa,
porém quem confessa suas faltas a Deus (que tanto deve quem abusa do pecado) merece o
22
Aqui o poeta comenta o porquê da interrupção: estes são os limites do lume natural e com ele somente a
filosofia o alcança. Porém o remédio da natureza humana, ferida pela culpa, não pode ser constatado senão pela
revelação.
23
Referência aos dez mandamentos.
95
perdão. [Em contrapartida], quer-se a promessa de vida melhor no que se é acusado pela lei,
pois quem tiver pecado e assim não proceder, receberá o sacramento, mas não a graça [do
perdão].
(56) Eu, disse o americano, antes de tudo amei de coração a quem me dera o
ser. Seu nome ignoro, mas procuro honrá-lo e o adorei com fé sempre sincera. Em certos dias,
recolhido e mudo, cuidava em venerar a quem governa sobre tudo. Não quis matar e nem
comia morto algum, pois não queria que a mim mo fizessem. Mulher tive, mas apenas uma,
convencido de que uma é suficiente. Ação impura
24
meteu-me sempre horror: entendo que só
no matrimônio [a prática sexual] é segura. Nunca roubei, temendo ser roubado e para
conservar [boa] fama, honrei a fama alheia; não me lembro de ter caluniado nem ter falado
mal dos outros, que é coisa feia. E creio que quem fala mal dos outros, assim também lhe
farão. Não tive inveja por ver que quem a tem é castigado. Enfim, passei meus anos desde a
infância, sem ofender (que eu saiba) esta lei justa, sem desprezar o bem, tudo mercê da mão
de Deus augusta
25
. Suportava meus males somente pela tolerância e foi este o meu desejo e o
meu zelo: saber quem era Deus, tratá-lo e vê-lo.
(60) Assim falando o velho, como se na alma se lhe ateasse um fogo, reclina
a humilde fronte e interrompe a voz. Caindo em desmaio nesta aflição, o ministro [Auréu]
corre atento ao ocorrido e, buscando água para logo batizá-lo, diz apenas: Félix
26
, eu te batizo.
E ele partiu feliz num vôo ao paraíso. O saudoso Auréu pensava em sepultá-lo; porém, de
espessa névoa, que condensa o ar, ouve um coro entoando harmonioso louvor eterno à
Majestade imensa. Raiando luz ali na atmosfera do ar nebuloso, intensamente iluminada, viu
Félix na glória que o cobria lhe agradecer pela graça batismal. E a alma venturosa diz: Que
Deus te conceda, ministro justo, o prêmio eterno, pois vens do antigo mundo a tanto custo a
24
Neste caso, ação impura é adultério, ato sexual fora do casamento.
25
Traduzindo: graças a Deus.
26
É costume dar-se um nome de batismo ao convertido, na religião católica. Desta forma, Guaçu passa a se
chamar Félix; pressupõe-se feliz citado no verso 5 da estrofe 36, quando Fernando inicia a narrativa. (Ver nota
18, a propósito da grafia).
96
libertar-me do poder do inferno. No entanto, o Dominante augusto dos céus manda que
retornes ao teu ninho paterno, e sobre a névoa formada em nuvem, vás navegando pela aérea
estrada. Que este cadáver meu siga transportado na própria nuvem que te indico. Que o vejam
colocado numa ponta do alto pico na Ilha do Corvo de onde acene ao país do metal rico. E o
ambicioso europeu, vendo-o indicado, faça que nele seja ouvida a doutrina do céu e a voz da
Igreja.
(64) Dito isso, ao cessar a voz e a visão dela, Auréu viu na nuvem que o
rodeava a bela alma transformar-se em luminosa estrela; viu que a nuvem voava sobre o mar.
Nela, o cadáver sublime chegava ao cume do grande pico onde a névoa, sublimando-se, depôs
o corpo como uma estátua. E este, ali batido pelo nevado vento, penetrado por sol, gelo e
chuva, é visto petrificado. Tem um arco por bélico instrumento
27
, um cinto de plumas
enfeitado sobre a frente e outro, onde era decente, na cor vermelha; sem pêlo na barba e velho
no aspecto. Está voltado às partes do Ocidente, mostrando a dedo o áureo Brasil, como a
ensinar à gente lusitana que [para] ali deveria navegar logo. Foi destino dado pelo céu
onipotente a fim de que sem receio ou torpe medo o povo corra à piedosa empresa e que,
quem morrer nela, alegre morra.
(67) Fernando então calou-se, mas outro canto não cala na cítara dourada,
onde a mão parece também falar, repetindo o que a voz dissera. No entanto, um bárbaro saíra
para escutá-la, encantado pela doce melodia; toma nas mãos o instrumento musical, toca-o
sem arte e salta de contentamento. O congresso dos nossos não pode ver tanta rudeza sem ser
tentado a rir. Por mais que se tenha expresso um pesar, a prevenção dá lugar ao siso. Diante
do insucesso [do indígena], é preciso rir, humanamente. É uma pessoa que chora apaixonada e
passa do gemido a uma risada.
27
O poeta em seu manuscrito expõe por que na ocasião representou o traje arbitrariamente: as memórias da
estátua evidenciam que o traje do índio era desconhecido (a propósito da expressão um arco).
97
(69) Então Diogo, que interiormente media a condição danosa da cruel
gente, não sossega de noite nem de dia, antevendo a desgraça lastimosa. E vendo rir os demais
com alegria pela ação engraçada do selvagem, estranhou-lhe o prazer mal concebido,
arrancando do peito este gemido: Oh! triste condição da vida humana, que rapidamente do seu
mal se esquece, pois vendo enfim a liberdade perdida, sentimos menos quando a dor mais
cresce! Vemos que a gente infeliz que perece no mar, ao chegar às praias, na mesma hora o
brutal gentio
28
nem bem a vê logo a devora. Quem sabe se os cuidados que nos dispensam e o
bom sustento dado se justifiquem pela grata chacina desse horrível e barbárico alimento?
Tanta atenção dispensada mal combina sem mostrar-se o maligno pensamento: quem os
próprios mortos brutalmente come, como é crível que dos vivos mate a fome?
(72) Já é tempo, aflitos companheiros, de levantar ao Rei supremo dos céus
humildes vozes, votos verdadeiros como quem luta no perigo extremo. Mas vós que agora
rides prazenteiros, oh quanto, meus amigos, oh quanto temo que essa gente cruel só nos
namore para cevar mais a presa que vão devorar! Antes, com fervor piedoso voltemos os
tristes olhos ao etéreo espaço, esperando de Deus um fim ditoso, onde a morte se avista a cada
passo. Com o peito contrito, o coração choroso implore a proteção do excelso braço. O
coração me diz que, por infelicidade, o cruel sacrifício é premeditado
29
.
(74) Enquanto o herói prudente assim dizia, alguém, comovido pelo temor
justo, humildemente levanta as mãos ao céu clemente, antevendo o futuro funesto. Já imagina
presente a cruel morte, já vê sobre a cabeça o golpe injusto. [Todos] batem no peito e,
levantando as palmas, fazem das próprias almas vítimas para Deus. Chega às praias numerosa
turba e levam os seis à miserável arena onde a plebe cruel havia montado a pompa do
espetáculo execrável. Mal se continha a gente bruta e enquanto com suas tristes mãos vão
28
Gentio – pessoa estranha; estrangeiro. Neste caso, eram os índios encontrados na costa brasileira, todos tidos
como brutos selvagens. Em outros casos pode ser o europeu.
29
As estrofes 70 a 73 revelam o triste canto de Diogo sobre a condição humana, a vida e a morte. Ele faz estas
reflexões ao observar os companheiros a rir na hora da desgraça que lhes pesa, sem disso tomarem consciência.
É o poeta expondo suas idéias através do personagem.
98
tocando os corpos pálidos de susto, não sorvem ainda o sangue infeliz dos vivos. Como pelo
campo da Líbia o mouro caçador derruba um leão enorme, em longa nuvem, o sagaz corvo
empreende devorá-lo sempre atento ao pasto. Negro parece o chão, negra onde pende a planta
que expõe o rasto de sangue, até que avista a presa e voa em chusma, não deixando parte que
voraz não roa. Tal foi a fúria infanda do caboclo, e o fanatismo que cega sua mente faz que,
tendo esta ação por respeitável, invoque o grande Tupã que emprega o raio. E vê-se que o
matador eleito anda em mil voltas no centro, como quem prega a brados, exortando o povo
insano a ensopar toda a mão no sangue humano.
(78) À roda! À roda!
30
Com gritos, a multidão fremente corresponde à
infame idéia enquanto o selvagem, em gesto de valente, bate o pé, fere o ar com um pau que
maneja. Erguem-se varas e o paciente se encadeia em prisões de embira. Acende-se fogo nos
profundos fossos nos quais se torrará os ossos com a carne. Dentro de um enorme cercado que
a numerosa plebe rodeia estão os principais [chefes] de cada tribo, com belas plumas de
variadas cores. Outros, que têm os cabelos desgrenhados cheios da pasta feral do sangue
humano que verte ao matar, são os necromantes que, em vã magia, chamam as sombras do
inferno escuro. Seguem de um lado a turma e de outro lado seis torpíssimas velhas,
companheiras de ofício tão nefando, aparando o sangue sem um leve menosprezo. Tão feias
são que a face pinta a própria imagem do Diabo: o corpo todo pintado de amarelo, o rosto tal
que faz ser belo o da Medusa
31
. As cruéis sacerdotisas têm no colo, por conta dos funestos
sacrifícios, fios de dentes que lhes são divisas de mais ou menos tempo em tais ofícios. Elas
se crêem gratas ao céu por juntas trabalharem nos tartáreos malefícios e em testemunho do
mister abominável, vêm tocando seus cocos com facas.
(82) Quem pode calcular a dor que transpassa o miserando e infausto grupo,
vendo tais feras rodear a arena, bebendo-lhes o sangue com os olhos? Ver que os dentes lhes
30
Exclamação típica dos portugueses com que animam uma brincadeira em grupo.
31
Na mitologia, Medusa é a deusa transformada por Minerva em um ser horripilante, abjeto.
99
rangem por provocação, se não é que os agita a fome impiedosa, e dizer lá consigo: Em
poucas horas serei pasto destas feras tragadoras. Mas o Pai Onipotente põe-lhes a vista,
compadecido da desgraça cruel, e envia um anjo do céu clemente que desvaneça tanto terror e
faça que o presente espetáculo venha a ser, enfim, sonho fingido. Quem recorre ao Céu no
mal que geme, se teme a Deus, nada mais teme. Então, seis dos infames necromantes lançam
mão das vítimas pacientes e atam cruéis as mãos dos inocentes às seis varas fatais que
ergueram antes. Postos no Céu os olhos lacrimejantes como a lembrar-se das penas veementes
que Deus sofreu na cruz, nele fiados, pediam-lhe o perdão dos seus pecados.
(85) Ali, o discreto Fernando anima o grupo com voz sonora; cheio de viva
fé, pede socorro. Quando a dor permite que se exprima, diz: Grande Senhor de quem tudo
procede, a glória, a pena, a confusão e a estima, que justo dás as graças e os castigos, alívio na
dor e amparo nos perigos. Aqui não peço vida (morte não temo), nem menos choro o caso
desgraçado. O que me dói, que sinto, que só gemo é, piedoso Deus, o meu pecado. Serei feliz,
Grande Pai, se no final for perdoado pela tua bondade, pelo cálice amargo que aqui bebo, pela
morte cruel que hoje recebo. Mas, grande Deus que vês nossa fraqueza no duro transe desta
cruel hora, não sofras porque essas feras com crueza hão de devorar a quem te adora. Porque a
frágil natureza estremece vendo a gula brutal agora realizada em fazer sacrifício ao torpe
abismo destas carnes tingidas pelo batismo
32
.
(88) O Céu piedoso ouviu a infeliz gente: quando o selvagem já levanta a
maça
33
para esmagar a fronte do mísero paciente, ouve-se [um] trovão fatal que tudo espanta.
Treme a montanha e cai a rocha ingente quebrantando as árvores em ruína. Porém o que mais
confundia os brutos era o rumor marcial que então se ouvia. Pedras, flechas e dardos de
arremesso cobriam todo o ar porque o inimigo postado atrás de um monte próximo aguardava
32
É crença no cristianismo que, ao ser batizado, o cristão é lavado pelo sangue de Jesus, daí a expressão usada
pelo poeta.
33
Maça é uma arma de ferro ou de outro material, com uma extremidade esférica provida de pontas aguçadas.
Era costume abreviar a vida do agonizante com um golpe na cabeça. Esta prática também é citada no verso 68 do
segundo canto.
100
expressamente aquele ataque. De um lado e de outro do mato espesso ameaça o furor, cerca o
perigo. E a gente crua [vê] transformada a sorte: quando cuidava em matar, padece a morte.
(90) Era Sergipe, o príncipe valente da esquadra valorosa que atacava.
Varão entre os seus bom, manso e prudente, comandava os povos com justiça. O forte chefe
tramava contra Gupeva que reinava com crueldade sobre as aldeias que havia naquele tempo
no ameno recôncavo da Bahia. Por toda parte o baiense é preso, é trucidado o bruto
necromante; muitos são lançados no fogo aceso e os demais se rendem ao vencedor possante.
Todavia, ficara em vida, ileso, o mísero europeu. Ali em flagrante
34
faz desatar o bom Sergipe
e manda à escravidão no seu país mais branda
35
. Mas a gente infeliz foi dividida no vasto
sertão por matos e montanhas. É fama que uns foram pasto de tigres e outra parte foi comida
pelos bárbaros. Não houve mais notícia ou leve rasto [deles], como se houvessem perdido a
amada vida. Mas há boa suspeita e firme indício de que se safaram do infame sacrifício.
CANTO II
(1) Era a hora em que o sol, na grande corrida do tórrido zênite está a pino e
que as sombras acompanhantes dos corpos extingue-se na terra com o raio ardente. Quando
partiu a turba carniceira, Diogo se viu só na imensa praia entre mil pensamentos, mil terrores
que a dor faz grandes e o temor maiores. Parecia-lhe ver o bárbaro furor, a fome cruel da
gente insana e a agonia dos seus na ação tirana; temendo a [sorte] dos demais, presume a sua.
Quisera opor-se à empresa desumana. Pensa em mil possibilidades com que solucione o
34
Consta no manuscrito e nas primeiras edições “fragrante”. Esta palavra quer dizer perfumado, o que não é o
caso neste verso. É adequado flagrante: ato que se observa no momento em que é praticado.
35
Sabe-se, pela História do Brasil, que para colonizar o país foram mandados presos e degredados; esta seria sua
pena. Quando Sergipe decidiu enviar o sobrevivente de volta a Portugal, mencionou o cumprimento do tal
castigo.
101
impasse: Fugirá? Para onde? Investe contra eles? Porém, enfermo e só, não vale para nada. E
dizia então: Oh! Mil vezes afortunados os que, entregues à fúria do elemento, acabaram seus
dias sossegados, nem viram tanta dor como experimento! Estavam finalmente a mim
guardados este espanto, este horror, este tormento! Escapei (Santos Céus!) desse mar vasto
para servir de horrível pasto às feras! E hei de agora (infeliz!), fraco e inerme, ver essa
patrulha vil que me mortifica, fazer dos meus um pasto horrendo, vendo-me sem força e
ardendo em febre. Ah! Se pudesse ver-me em meu vigor agora! Sinto em meu peito o ardor
irromper e a turba vil, fazendo em mil pedaços, truncar pescoços, mãos, cabeças, braços.
(5) Não pode (é certo) a débil natureza. Porém, que esperas mais, mísero
Diogo? Que pode resultar de forte empresa? Será mal morrer já, se há de ser logo? Faltam-me
as forças, sim, sinto a fraqueza. Mal o espírito age e, neste sufoco, revela forças ocultas da
nossa alma, [forças] que ela não mostra ter vivendo em calma. E como quer, enfim, que a
sorte mande, talvez eles morram se tiver sucesso numa ação forte praticada temerariamente ao
acaso. E quando o céu irado me enviar a morte, e que a mão do Senhor punir meus erros,
recebo o golpe que me for mandado e morrerei, se for assim, porém vingado. Espero que a
gente bruta, vendo o estrago da espada e do mosquete, não se encha de pavor na estranha luta,
mas creia que força maior a acomete. Se [eu] tomar as armas que encontrei na gruta (escudo,
cota
36
, malha e capacete), posso esperar que nem um só me resista, antes que me submetam ao
ferro.
(8) Assim disse e, entrando na caverna habitual, cobre com o capacete a
valorosa fronte e [põe] por escudo a rebater a flecha, um peito de aço de firmeza eterna. Tudo
dispõe e administra de tal forma que nada possa temer se for atacado em campo, tendo nas
mãos uma alabarda
37
de ferro, à cinta, uma espada e nos ombros, a espingarda. Saía assim da
gruta quando vê o monte coberto de bárbara caterva e, no que infere da perturbada mente,
36
Ferramenta provida de gume afiado.
37
Arma antiga constituída de uma haste longa arrematada com ferro pontiagudo, atravessado por outro em forma
de meia-lua e machado.
102
observa sinais de fuga e de derrota. O medo obriga alguns a transpor o monte, outros se
escondem pelo mato ou erva; muitos vêem com medo a morte e fogem, crendo achar na
caverna um lugar seguro. Mas o prudente Diogo, que entendia bem a obscura linguagem
daquela situação porque nela estava atento havia alguns meses, escolhe um lugar para
combater seguro. Atento a toda voz que podia ouvir, para escutar alguma manifestação dos
seus, entre esperanças e receio intenso, estava não assustado, porém perplexo.
(11) Adiantando-se aos demais, Gupeva, vendo a imagem medonha das
armas, incerto do que vê, estava irresoluto, sem mais se lembrar do ataque inimigo. Imaginava
que dentro do grande fantasma escondia-se algum dos anhangás
38
e, à vista do espetáculo
estupendo, tremendo, o miserável caiu por terra. Junto com ele caiu a gente bruta sem saber o
que pensar da figura, vendo-a brandir com a alabarda enorme e olhando pelo morrião
[capacete] que a transfigura. Ouve-se um rouco tom de voz fremente com que o herói procura
espantá-los mais, e para que temam ruína maior, faz da horrenda voz uma buzina. Entretanto,
a gente bárbara, prostrada, está tão fora de si que, sem sentido, estúpida, assombrada, só
mostra estar viva porque treme. Como varas verdes de árvore copada se assopra a viração do
meio-dia, os vis se movimentam de uma parte a outra
39
e de medo esperneiam no chão.
(14) Mas Diogo, naqueles intervalos, suspendendo o furor do duro Marte,
concebe a esperança de amansá-los, uma vez com terror, outra com arte. Levanta a viseira e
vai buscá-los, mostrando-se risonho em toda parte, e lhes diz: Levantai-vos! E assim dizendo,
ia erguendo-os da terra com as próprias mãos. Gupeva, de traje mais distinto, parecia ser o
principal mandatário da multidão do seu povo, meio acabado pelo horror do espetáculo tão
recente. Tremendo, ficou em pé sem voz nem iniciativa e cairia, sem dúvida, de novo se
Diogo não o tomasse nos braços e lhe borrifasse da água ali corrente. Disse afável: não temas.
38
Durão anota em seu manuscrito: anhangá – nome do demônio, em língua brasileira, conhecido daqueles
bárbaros pela pratica habitual da necromancia.
39
O dicionário Novo Aurélio Século XXI cita estes versos para exemplificar a significação do verbete “manear”
na acepção de “mover-se de um lado a outro”. (p. 1270, entrada 3).
103
Pedindo alento, e complementando com gestos o idioma dá-lhe a entender que todo esse
armamento protege amigos se domar inimigos. [Diz ainda]: O bélico instrumento não os
ofenderá se alguém não comer carne humana; se a comerem ponho tudo em cinza... E dizendo
isto bate o pé medonho. Toma-o nas mãos (lhe diz); verás que nada de mal lhe há de fazer. E
assim falando, põe-lhe na mão a partasana e a espada e vai colocando o morrião em sua
fronte. Diminui-se o horror na alma assombrada e vai-se pouco a pouco recobrando, até que
torna a si, reconhece onde está, com quem fala e o que lhe oferece.
(18) Se de além das montanhas
40
o grande Tupã para cá te envia, lhe diz
[Gupeva], que em nuvem negra escurece com sombra o claro dia, e manda o claro Sol que o
mundo alegra; se vens de onde o sol dorme e se trazes à Bahia alguma nova lei, acharás, na
cabana, se gostares, mulheres, caça, peixe e carne humana.
(19) A carne humana! Replicou Diogo e, como pôde, explicou em voz e
acenos: Se eu vir que alguém come, botarei fogo e farei que este terreno se inunde de sangue.
O bárbaro lhe responde com firmeza: Pois se os bichos logo nos devem comer, a nós faz-nos
horror se eles nos comem e é menos triste se nos devore um homem. Então disse o herói
prudente: o corpo humano
41
não é como o de um ser bruto; desde que nasce, é morada do
espírito eminente, imitando a face do grande Tupã. É sepultado na terra qual semente que, se
não apodrece, não renasce. Virá o tempo em que unida ao corpo a nossa alma respirará com
vida. A luz da razão condena a atitude pois se o infando apetite adula o gosto, sem mais
comentários, para extinguir a natureza humana, bastaria a gula. Se em vós a malícia ou a
rudeza anula de todo o instinto universal, é contudo entre os demais a coisa mais temida que
outros, por vos comer, vos tire a vida.
40
Nota do manuscrito: Persuadem-se os brasileiros que, além das montanhas que dividem o Brasil do Peru seja o
Paraíso. Veja Martinière, Dicionário geográfico, verbete “Brasil”, onde se lerá a maior parte dos ritos e
costumes do Brasil, que aqui e no decorrer do poema escrevemos.
41
Nesta altura, o autor observa: razão suficiente, porque é ilícito comer a carne humana por princípios teológicos
(religiosos) na presente estrofe e por motivos naturais (a gula) na estrofe seguinte (21).
104
(22) Dizendo isto, Diogo conduzia à gruta o chefe da bárbara caterva;
seguido ali pela gente bruta, atento observa o lugar conhecido. Gupeva a tudo atenta e tudo
escuta, mas conserva sempre o horror concebido por ele e olhando as armas sem que alguma
se arroje, chega com a mão furtiva, apalpa e foge. Então já vinha a noite com seu negro manto
despontando na lúcida atmosfera, quando as aves buscam sossego ao seu quebranto no ninho
e a fera, na toca. É quando o sono com suave encanto modera a dor aos míseros mortais,
porém não modera em Diogo a intenção mordaz de amansar o furor da gente dura.
(24) Para dissipar na gruta a sombra fria, toma o férreo fuzil que o fogo ateia
e a gente rude, vendo que o acendia, fazendo brilhar de improviso uma candeia e notando a
pronta luz que no óleo ardia, cheia de assombro nem quer acreditar. Crêem entretanto que o
fogo nasce do céu ou que Diogo o faça nascer de suas mãos. Era costume do selvagem rude
roçar um pau em outro com tal jeito que, por elétrica virtude, vinha a acender lume, mas com
efeito tardio. Porém, observando o fogo feito em menos de um momento sem ajuda dos paus,
imaginou que o mesmo a Grécia creu quando viu Prometeu
42
atear fogo. Acesa a luz na
lôbrega caverna, vê-se o que Diogo ali da nau levara: roupas, armas e, mais no interior, a
pólvora em barris que transportara. Tudo vão vendo à luz de uma lanterna, sem que nada
apeteça à gente pouco avarenta: a inveja não lhe atiça pelo ouro e prata. Nação feliz! Ignora o
que é cobiça.
(27) Mas entre os vários objetos que encontra, Gupeva nota, extático, a
pintura num precioso quadro ali pendurado o qual representava a Mãe da formosura. Não
entende que seja coisa viva, mas suspeita bem pela figura digna da pessoa que a imagem era
da mãe de Tupã, se ele a tivera. Esta (pergunta o bárbaro), tão bela, tão linda face, acaso
representa alguma formosíssima donzela que o grande Tupã intenta fazer [sua] esposa? Ou
porventura nascera dela esse que sobre os céus no sol se assenta? Quem poderá saber de
42
Prometeu era o deus grego do fogo.
105
geração tão elevada? Se há mãe que o tenha gerado, sem dúvida é esta. O pio lusitano está
encantado de ouvir tal verdade em rude boca; e adorando o mistério soberano, disse: A
divindade não pode ter mãe. Mas sendo Deus eterno, fez-se humano e, sem lesão da própria
virgindade, a donzela que pisa a lua o gerou, digna mãe de Tupã, mãe minha e tua. Peçamos,
pois ela é mãe, que nos defenda e que te dê dócil orelha para ouvir e a teu povo. Assim
falando o herói, devoto se ajoelha. Gupeva faz o mesmo com fé estupenda e imitando Diogo
que o aconselha, levanta as mãos como ele levantava e vendo-o chorar, também chorava. Mas
como vivia rudemente, acreditando que fosse coisa viva a imagem santa, que por [ser] mãe de
Tupã tudo sabia, tinha poder conforme tanta glória. Repete o que ouve de Diogo com voz pia
e levanta o coração à mãe de Deus. Encostando a cabeça entre os rogos, a noite e o desvelo o
fazem adormecer.
(32) Já no purpúreo e trêmulo horizonte, a aurora parece que espalha rosas e
o sol nascente sobre o monte oposto derrama a bela luz criadora. Ouvem-se as avezinhas junto
à fonte, saudando a manhã com voz sonora e os mortais, já desapegados do sono, tornavam
novamente aos seus afazeres. Então Gupeva, manso e diferente do que fora antes na fereza
bruta, convoca para ouvi-lo a multidão fremente que estava em volta da profunda gruta. Posto
no meio da confusa gente que atenta o escuta, diz assim: Valentes paiaiás
43
, que herdais o brio
da raça forte! Se ontem vimos o grande terreiro dominado, surpreendidos pelo vil Sergipe,
fomos cercados, sim, mas não vencidos. Não foi vitória [dele]; foi traição de um fraco. Sabia
bem, por golpes repetidos, com quanto esforço ataco na peleja, e como sem traição nada faria,
vem com mão armada, não tendo eu armas.
(35) Sombra do grande Tatu [ancestral de Gupeva] de quem me ferve nestas
veias o sangue, de quem trago a invicta geração, que na guerra serve de espanto, de horror, de
estrago a todos! Para que se conserve a glória a teu nome e para que enalteça o lago da Bahia,
43
Explica Durão em anotação à esquerda da estrofe 33: Paiaiás – nome honorífico em língua brasileira,
equivalente a nobres ou senhores. O poeta acompanha o costume destas gentes entre as quais os príncipes fazem
longos discursos aos seus compatriotas, exortando-os pelos princípios aqui referidos.
106
mandas de lá de onde o mundo acaba, para nosso socorro, este emboaba
44
! Tu lhe mudaste em
ferro a carne branda e fazes que na mão lhe acenda e lhe arda a viva chama que Tupã nos
manda. Tupã que rege o céu, que o mundo guarda. Com ele hei de vencer em qualquer lugar,
com ele em campo armado já me tarda o covarde inimigo; se o encontrar vivo, me animo a
devorá-lo vivo.
(37) Sabeis, tapuias meus, sabeis como morriam nossos irmãos e pais, que
eles matavam, postos já debaixo do golpe horrendo, para vingá-los, tristes chamavam vosso
nome. Também vistes quando combatiam nas guerras, que estrago neles estas [minhas] mãos
faziam. E tantas vezes que, no campo vasto, vos dei mil e mil deles por saboroso pasto. Mas o
estrangeiro não come nem consente comer-se carne humana e só teria outra carne qualquer,
por inocente: aves, feras, tatus, paca ou cotia. Que ele receba, pois, de nós o grato presente de
tudo que houver nos matos da Bahia; saia-se à caça e, como lhe convém, prepare-se a
hospedagem de um banquete.
(39) Separa-se a multidão em breve espaço [de tempo]. Dispõe-se em alas
numerosa tropa: alguns com armadilhas de taquara de onde pende o laço; a incauta avezinha
nela cai, se a topa. Outros com diferentes armadilhas suspensas nos ombros ou no braço.
Outro ensopa em visgo
45
as longas ramas do palmito onde caia o imprudente periquito. Os
demais vão com flecha que, a um tempo seja tiro a ofender a fugitiva caça, ou armas na
peleja, se [esta] ocorresse, quando o inimigo a fizesse de emboscada. E Gupeva passa à frente
do esquadrão para que presida a todos e tudo veja. Diogo, que tudo via, não fica só, mas segue
armado o forte pelotão. Não levou mais arma que uma espingarda e postou-se ao lado do
amigo Gupeva, pronto para qualquer acidente; posto em guarda, por cautela traz o escudo se
houver perigo. No entanto, a esperta gente aguarda a caça e algum afoito penetra no abrigo
onde a pantera esconde os seus cachorros; outro a segue por brenhas e por morros.
44
Durão esclarece: emboaba é a palavra com que os selvagens nomeiam os europeus. (Originalmente, imboaba)
45
Visgo: suco vegetal glutinoso no qual se envolvem varinhas para apanhar pássaros.
107
(42) Depois, sob o comando de Gupeva, forma-se um círculo fechado e fica
no meio, cingido por um cordão, o quanto há de caça já apreendida. Ali, a rês amedrontada
pelo estrondo está num centro de espaço reduzido, bem à mão. Coisa bela! Dá mais gosto ver
do que comê-la. Com as aves fugitivas não era assim: umas eram flechadas no ar; outras, o
caçador tomava vivas em laços arranjados. Uma, porém, [voando] nos líquidos espaços,
escapa das setas, deixando a lisa pena os golpes lassos. Diogo mira nela, acerta o ponto e dá-
lhe um tiro com a espingarda, derrubando-a.
(44) Como a turba não estava esperando, o bárbaro fica estremecido com o
golpe e cai por terra tremendamente abalado pela chama, pelo estrondo e pelo estampido. Por
causa do horrível trovão com raio e estalo, alguém cai, fica aturdido. Assim Gupeva ficou,
crendo formada no arcabuz
46
de Diogo uma trovoada. A turba rude, em mísero desmaio, toda
prostrada em terra exclama e grita. E o horror faz que, estúpida, repita: Tupã, Caramuru
47
,
temendo um raio. Quanto possível, pretendem ter por Deus o que estão vendo em pavorosa
experiência: entre os horríveis trovões do jogo marcial, vomitar chamas e abrasar com fogo.
Desde esse dia, é fama que o forte Diogo foi celebrado com o nome de grande Caramuru e
que, ouvido, este apelido domou o bárbaro espantado. Indicava o Brasil [este] sobrenome: era
um dragão vomitado dos mares; nem de outra forma entre nós na Idade Antiga tem-se por
deidade Jove, Apolo e Marte. Foram como hoje o rude americano o valente romano, o sábio
argivo. Nem foi de Salmoneu
48
o engano mais torpe do que outro rei fizera altivo em Creta.
Nós que zombamos deste povo insano, se bem cavarmos no solar nativo, não acharemos mais
que outros selvagens nas imagens dos antigos heróis.
46
Arcabuz: antiga arma de fogo portátil, espécie de bacamarte.
47
Esta estrofe (45) (e as seguintes) tem grande importância na medida em que é nela que se relata o memorável
acontecimento passado para os livros de História do Brasil, o qual influiu também na colonização da terra
descoberta. Em suma, é nele que se dá apelido ao náufrago português, apelido este que batiza a consagrada obra
de Santa Rita Durão. Atribui-se a ele a fixação da lenda de que o herói recebeu o apelido por fazer fogo com a
espingarda.
48
Salmoneu, esclarece o autor no manuscrito, é o príncipe que pretendia imitar o raio para espantar os gregos,
então bárbaros e semelhantes aos nossos brasileiros. O mesmo aconteceu com o rei de Creta, que aqueles
habitantes das ilhas gregas chamaram de Júpiter.
108
(48) É fácil propensão na brutal gente quando em vida ferina admira um
feito, chamar o seu autor a Deus do grande universo e dar ao guerreiro a fama de um deus
Marte. Talvez por causa do sulfúreo fogo ardente, tanto se ouviu de Jove/Júpiter por toda a
parte. Hércules e Teseus, Jasões no Ponto
49
seriam coisas tais como as que eu conto. Não
merece mais que se cante por herói em sábia lira quem é pio e justo onde a cega nação, em
delírio, reduz um povo injusto [as divindades mitológicas] à humanidade? Se no mundo só se
admira como herói quem [era] tirano e ganhava um nome augusto, quanto não será maior que
o vil tirano quem infunde nas feras um peito humano? O grande Caramuru, então, volvia na
alma tal pensamento, vendo prostrada a rude multidão, que acreditava em Deus e esperava
destarte achar domada. Política infeliz a da idolatria, causada pela antiga cegueira
50
! Mas
Diogo, que abomina o feio ataque, quando aumenta o terror, recusa o culto. E disse: Sou
humilde escravo do onipotente Tupã e como vós me humilho, mas este raio do horrendo
trovão que arrojo ardente vos mostra que dele sou filho. Disse isso e outra vez disparou,
incontinenti. Do meio do relâmpago em que brilho, abrasarei alguém que ainda se atreva a
negar obediência ao grande Gupeva. Prazeroso, deu logo a mão amiga ao mísero Gupeva que,
convulsionado no horror daquela visão de fogo, jazia sem sentido e já sem pulso. [Diogo] diz-
lhe: Não temas, amigo, eu prometo que de meu braço não haverá impulso senão contra quem
for tão temerário que, em sendo eu teu amigo, for teu inimigo.
(53) O bom Gupeva recobra um novo alento, sentindo a grata mão que à
vida o chama; nem pode duvidar, pela experiência, de quanto Diogo o ama com fineza. Mas
sempre com receio do instrumento, teme que outra vez lance a horrível chama. E Diogo
deixa-o na dúvida a fim de que, incerto pelo pavor, ninguém se chegue perto. Mas para deixar
49
No manuscrito, o autor argumenta sobre o valor de sua obra épica, dizendo que os heróis dos tempos lendários
foram sem dúvida semelhantes aos nossos descobridores, celebrizados pela rudeza e ignorância da sua época.
Diz ainda que estabelece este paralelo para despertar a crítica de quem acaso apreciasse a matéria e objeto de sua
epopéia, segundo ele, indigna de comparar-se à que escolheram os antigos poetas épicos.
50
Aqui Durão complementa: é certo que a idolatria dos gregos teve grande espaço entre os artistas; e vimos
outro tanto nos americanos, dispostos a acreditar na imortalidade dos europeus.
109
indecisa a gente desconfiada, astuto dá-lhe o arcabuz sem carga e diz: E quem é fiel, com vida
pode tê-lo na mão sem a horrível descarga. Porém, se alguém faltar à fé devida sofrerá pena
amarga pela traição, com próprio dano seu, com risco mortal, relâmpago e trovão, fogo e
corisco. Se eu estiver acordado ou adormecido, vigio e guardo o fogo oculto. Quem tentar
fazer-me um leve insulto, pagará a traição com a cabeça. Porém, se eu não quiser que mal
aconteça, pode um menino como pode o adulto e o mais fraco que houver da vossa gente, ter
o trovão nas mãos sem que arrebente. Entretanto, guardai-vos de ter no peito ou na alma
intenção maligna [senão] vereis o que o trovão faz em meu favor e virá com o estampido a
vossa ruína. Gupeva treme ouvindo esta fala e, humilde, inclina a fronte ao grande Diogo,
certo de não faltar na fé que rende pois crê depender dela o raio e [o] trovão.
(57) Assim, o temido chefe convoca as esquadras da turba então dispersa e
pede rendido ao grande Caramuru que escolha nova casa no país. E que deixe a gruta e suba
junto para a vasta cabana onde o povo vive. Não duvide [ele] que a gente fera e brava o sirva
humildemente e escrava se sujeite. Havia no recôncavo ameno um lugar cercado de troncos
imortais, trincheira natural que impedia toda entrada a quem quisesse penetrá-lo. Abria-se no
seu centro um vasto espaço onde, construindo à moda pátria, com troncos, varas, ramos,
vimes, canas
51
, formaram oito cabanas como num quadrado. Todas elas muito amplas ficam
em linhas paralelas; mais compridas que largas, não têm paredes ou colunas belas. Um ângulo
no cume as faz vistosas e são cobertas de palmas amarelas, apoiadas em árvores, altas e boas,
capazes de abrigar de seiscentas a mil pessoas.
(60) Como o velho Noé na imensa barca, que a bárbara cabana em tudo
imita, previdentes, embarcam animais ferozes onde a turba brutal habita tranqüila. Assim o
rude tapuia fica na grande arca: ali dorme, ali come, ali medita, ali se faz humano e, de
51
Segundo o poeta, esta é a descrição das tabas ou aldeias brasileiras.
110
imenso amor alimenta a mulher e afaga a prole. Dentro da grande choupana
52
, a cada passo, a
rede extensa pende de pau a pau; ali descansa o corpo fatigado, ali se esconde a marital
licença
53
. Em rede especial, repousa a filha no materno abraço. Em tal vivenda, ninguém se vê
(que é raro) ofender a mulher ou a filha de outrem. Ali chegando feliz a esposa que pariu, o
pai nunca se omite de pôr na rede a prole amada, e o amigo ou parente o felicita. E como se a
mulher nada tivesse sofrido, admite-se tudo ao pai reclinado, como se tivesse sido na verdade
seu próprio puerpério e não das mães
54
. Quando recosta na rede a tenra criança, pinta-a toda
de negro e de vermelho; põe ao lado um pequeno arco e flecha volante e um bom cutelo. Em
tom de idoso, com discurso patético e zeloso, vai-lhe inspirando o paternal conselho (como se
o ouvisse) e diz para ser forte, que saiba vingar e que não fuja. Dá-lhe depois o nome
apropriado por semelhança da criança com alguma coisa ou com algo de célebre que a espera
um dia, se não é por defeito que a nomeia. A algumas, imprimia-se o nome na fronte ou
pintava-se com verniz, que têm por gala. Conforme se lhe observa a aparência, dão [à criança]
o nome de fera, fruto ou erva.
(65) No entanto, a mãe trabalha sem novos cuidados quando conclui o parto
e, em tempo breve, sem mais artes que as da providencial natureza, sente-se ágil e sã, robusta
e leve. [Seria] gente feliz se unisse com fé pura a sóbria educação que teve! O que a nós nos
faz fracos, sempre estimo, não é mais que pena ou dor, melindre e mimo.
(66) O solícito pai vai com o filho adulto à caça ou pesca em busca do
alimento; traz à mulher o peixe e a carne fresca e à tenra prole, a fruta para seu sustento. A
nova provisão sempre providencia e neste afã demonstra uma verdade: quem nega o sustento
52
Durão refere-se, em anotação feita no manuscrito, ao padre Martinière, célebre crítico e testemunha ocular, o
qual atesta parte destes costumes. Diz ainda não citar Osório, Vasconcelos e Pita “por serem espécies vulgares”.
53
A prática do ato sexual entre os esposos.
54
Esta cerimônia do “couvade” (conjunto de restrições e de ritos a que um homem está obrigado durante a
gravidez da mulher e logo após o nascimento da criança) era costumeira no Brasil de então. O poeta fizera
anotação a propósito dela ao lado da estrofe no manuscrito, tendo apagado com riscos depois. Na verdade, o
puerpério é resguardo quanto aos órgãos genitais da mulher, mas entre os indígenas, cabe ao pai.
111
a quem deu vida, quis ser pai para fazer-se um parricida
55
. Se acontecer de alguém ficar
enfermo, a turba amiga acode com piedade e dá-lhe um remédio conveniente, consultando-se
entre si com a gente antiga. Buscam quem saiba de uma erva ou da cura que possa dar alívio
ao que está em perigo. Ou talvez façam sangria, numa febre ardente servindo-se como lanceta
de um fino dente. Mas vendo-se o mortal já na agonia, sem ter esperança no remédio, a bruta
gente acredita que seja ação piedosa tirar-lhe a vida com a maça ou lança
56
. Se morre o tenro
filho, a mãe é tida como cruel pois a criança vinda ao mundo pouco antes não torna ao seu
lugar no próprio seio [da mãe].
(69) Assim era o povo rude praticante de tal costume em vício equivocado.
Diogo tudo nota na esperança de, por fim, corrigir tão cego abuso. No lugar da cabana em que
descansa isolado da multidão confusa, Gupeva põe-lhe a rica rede entretecida de muitas
plumas. Mas eis que um grande número de emplumados e feíssimos selvagens o rodeia; ouve-
se a casa cheia de clamores, o que era costume deles por ocasião das hospedagens. Alguém
ainda receia aproximar-se de Diogo por ter visto os horríveis acontecimentos. Mas exclamam
de longe: mair ma apadu que significa bem-vindo o estrangeiro
57
. Por acostumada gentileza,
os mais esclarecidos tomam Diogo nos braços e o apertam contra o peito, comedidamente,
como sinal entre eles do hospitaleiro respeito. Com pressa tiram-lhe as roupas e vestidos,
pondo-o sobre a rede como num leito. Sem nada mais dizer e sem ouvi-lo, todos se afastam e
deixam-no tranqüilo.
(72) Com maior cerimônia outro cortejo celebrava a visita. [Era] uma turba
feminina que o costume incita a oferecer-se, honesta, ao seu desejo. Senta-se sobre os pés e o
felicita, cobrindo o rosto com as mãos como por pudor. Vêm vestidas de folhas tão brilhantes
55
Evidentemente o autor cometeu aqui uma impropriedade vocabular, a menos que se refira ao assassinato do
pai, mãe ou qualquer ascendente. No entanto, ao que tudo indica, será mais lógico usar o termo infanticida (que
mata crianças ou o próprio filho pequeno).
56
Esta seria a prática de eutanásia, também quase realizada em Diogo (estrofe 88 do Canto I)
57
Observação do autor: nas hospedagens assim costumam fazer os brasileiros; copiamos do padre Martinière as
palavras que então proferem e a sua interpretação.
112
que o que falta ao valor têm de galante. Um selvagem que parecia ser o serviçal da mesa
pergunta-lhe o nome e se tem fome ou se primeiro queria beber e logo traz para o terreiro,
sem ouvir resposta, muita comida; uiçu de peixe e carne crua e o mimoso cauim que é paixão
sua
58
. Todos comem com gula furiosa, sem olhar, sem falar, sem distrair-se; tanto se
absorvem na paixão gulosa, que ao vê-los mal se pode distinguir se são feras ou homens.
Vergonhosa e triste miséria humana! Confundir-se um ser racional com um ser bruto e feio,
no horrendo vício de onde nos veio o mal
59
.
(75) Acabada a comida, a turba bruta grita outra vez: bem-vindo o
estrangeiro e a tropa feminina que isto escuta cobre as faces com as mãos, imitando o pranto.
Gupeva, pois que ao hóspede reputa a causa do seu prazer e autor dela, ateava-lhe ao redor o
fogo sagrado, cerimônia de hospedagem que o povo usava
60
. No que observa, Diogo presume
algum mistério oculto internamente. Lembra-lhe a chama que o caldeu adorava e recorda-se
do fogo eterno das vestais
61
. Não duvidava que esta fora a origem deste costume ritual trazido,
se é possível que se creia, na dispersão das gentes da Caldéia. Quisera perguntar isto aos
índios, mas com os gestos e a língua se atrapalha. Soube por acaso que viera com Gupeva
certa dama gentil brasileira a qual, vivendo em Taparica um dia, compreendia boa parte da
língua lusitana por causa dos portugueses escravos
62
ali deixados de quem aprendera a língua
pelo ouvir.
(78) Gentil Paraguaçu (tal nome teve), bem diferente da gente repulsiva, de
cor tão alva como a branca neve e onde não era neve era de rosa. [Tinha] o nariz natural, boca
58
Uiçu é uma farinha de carne torrada ou o peixe. Cauim é bebida semelhante à que já mencionamos como
catimpoeira, escreve o poeta no manuscrito. É a catimpoeira da nota 16.
59
Referência ao pecado original de comer o fruto proibido por Deus no paraíso edênico.
60
Durão anota no manuscrito que os indígenas tinham esta cerimônia como religiosa, convencidos de que ela
afugentava o demônio.
61
Os caldeus eram habitantes da antiga região da Ásia e realizavam o culto das vestais, sacerdotisas romanas que
cuidavam do fogo sagrado no altar de Vesta, deusa do fogo. Obrigavam-se à castidade enquanto durava o seu
ministério. As que violavam este voto ou deixavam apagar o fogo sagrado eram enterradas vivas.
62
Anota o poeta, a propósito do português escravo: ficção poética sobre o verossímil, não sendo difícil que
alguns dos portugueses deixados por Cabral, ou por outros capitães, na costa para aprenderem a língua,
comunicassem parte dela aos habitantes.
113
pequena, olhos de bela luz, testa espaçosa. Honesta, encobria tudo com manto espesso de
algodão, fazendo ver-se-lhe o valor. Um chefe das terras do entorno tem por filha a bela
americana: nobre sem ostentação, amável, sem adorno; sem gala encanta e sem alarde brilha.
Servia aos carijós que tinha ao redor, mais que de amor era objeto a maravilha. [Era] de um
desdém tão gentil que a quem olhava, se mirava imodesto, causava horror. Foi destinada por
seus valentes pais para esposa de Gupeva, mas a dama fugia de seus olhos impacientes; nem
presente dele aceitou porque não o amava. As bárbaras gentes nada sabem de amor, nem arde
no peito rude a amante chama. Gupeva, que não sente despeito, tratava-a sem amor, mas com
respeito. Deseja vê-la o forte lusitano para que seja intérprete da língua que entendia e toma
como graça do céu soberano ter como entender o idioma da Bahia. Mas quando avista esse
prodígio, humano, contempla a elegância do semblante; um vendo o outro pára mudo e
estático como um penedo junto de outro penedo.
(82) Só tu, anjo tutelar que o acompanhas, sabes quanto a virtude ali se
arrisca, e as estranhas fúrias da paixão que [ele] acende, essa doce faísca de insano amor.
Sentiu tamanhas ânsias no coração (ânsias que nem na morte o tempo apaga), que haveria de
perder-se naquela hora se não fosse cristão, se herói não fosse. Porém a santa inteligência do
céu mitiga a chama com doce inspiração; a paixão de amante cede à prudência e a razão pode
mais que a ardente chama. Em Deus, na natureza e na consciência, reconhece que quer mal
quem assim ama e que seria um sacrilégio chamar à culpa amor e não ódio. No raio deste
heróico pensamento, Diogo refletiu consigo: a donzela amiga era um cômodo instrumento
mandado do Céu para intermediar na língua. Imbuído de boas intenções pensa na solução para
o perigo. Que poderá acontecer? Sou fraco, ela é formosa... Sou livre, ela é donzela... Será
esposa.
(85) Então lhe disse: Bela, gentil menina (tornando a si do pasmo em que
estivera), não é sorte humana mas divina nos encontrarmos neste novo mundo. Ela aqui te
114
ensina a frase que falo. Ela, se não me engana o que a alma espera, acende um fogo em nós
que, de resto, haja de arder eterno se arder honesto. Desde hoje, se a meus olhares
corresponde o meigo olhar das lúcidas pupilas, se é amor... porque o amor quem é que o
esconde? Se por ele essas lágrimas destilas... Com chamas meu peito te responde; poderás
senti-las com mão de esposa, disse. E estendendo-lhe a mão, ofereceu-a. Ela que nada diz,
sorri e dá-lhe a mão. Desvia dele os olhos, abaixando-os e um tão belo rubor lhe tinge o rosto
ou por amor ou por vergonha, como quando entre os lírios nasce a rosa. Três vezes quis falar,
três vezes se calara. E ficou tão formosa na perturbação quanto ele ficou cego. E em tal
enlevo, nem um nem outro sabia então de si.
(88) Mas o herói prudente, refletindo logo, fixou no coração, com fé segura,
não cumprir as promessas feitas sem que antes lhe entrasse na alma a formosura. Rende-lhe o
seu amor, mas inocente; faz-lhe prometer que, com pureza, viverão em sincera abstinência
enquanto não se lavar e regenerar [pelo batismo]. E diz-lhe: Por esta fé em Deus, esposa
querida, hoje prometo guardar-te em laço eterno até banhar-se na água prometida, por cândida
afeição de amor fraterno. Amor que sobreviva à própria vida, amor que prezo em laço sempre
eterno, que arda depois da morte em maior chama, que assim trata de amor quem por Deus
ama.
(90) Esposo (a bela diz), teu nome ignoro, mas não teu coração que adoro
desde o momento em que te vi. Não sei se já era amor, se era respeito, porém sei do que vi
então, do que hoje procuro saber: dois corações feitos num só; quero o batismo teu, quero a
tua igreja, meu povo seja o teu, teu Deus seja o meu. Ter-me-ás, caro, ter-me-ás sempre a teu
lado. [Serei] vigia tua se te ocupa o sono. Sairei armada, vendo-te armado. [Serei] tão fiel nas
prisões como num trono. Não temas que ame outro; só tu serás, senhor, meu dono. O mesmo
lhe diz Diogo e ambos juraram, e em fé de juramento, as mãos tocaram.
115
CANTO III
(1) Já nos confins extremos do horizonte o Sol dourava com raio tíbio, no
rubro ocaso, o pico do alto monte e as sombras caíam sobre o vale fundo. Ia morrendo a cor
no prado e na fonte e a noite, que chegava ao Novo Mundo, trazia nas asas com a suave
viração o descanso aos mortais, em sono profundo. Só com Gupeva e com Diogo, a dama
servia de agradável intérprete aos dois. Perguntado sobre o fogo sagrado, para que fim fora
inventado e para que servia, Gupeva logo deu-lhe a simples razão, dizendo: De noite, supre a
luz do dia e como Tupã acende a luz ao mundo, assim costuma-se fazer ao hóspede. Se elevas
o pecado ao mau espírito, sucede que talvez, cruel, sinta repulsa; como é pai da noite e autor
das trevas, aborrece-se com a luz e foge. Porém se elevas o peito à luz eterna, não há fúria do
inferno que ataque, talvez por lhe excitar tristes idéias das chamas que tiveram por cadeias.
(4) O pio herói admira que a nação rude conheça as legiões do inferno
63
, e
não duvida que do céu desça até ela a clara luz de um princípio sempiterno. [E Gupeva fala
então]: Dize-me, hóspede amigo, se teu povo adora algum deus através de culto. Adoram
algum deus? Qual é? Onde vive? Há um deus somente ou há vários outros? E continua
dizendo: Um Deus
64
, um Tupã, um ser potente, quem poderá negar que rege o mundo, ao ver
a nuvem fulminar trovejante ou enfurecer-se o mar profundo? Quem enche o céu de tanta luz
brilhante? Quem borda a terra de um matiz fecundo? E aquela sala azul, vasta e infinita, se
não está lá Tupã, quem é que a habita? Quem rege a chuva, a neve, o vento, a tempestade? A
quem seguem ou quem os move? Quem nos derrama a bela claridade? Quem chove tantas
63
Para a expressão “legiões do averno” o autor faz a seguinte observação: é constante o conhecimento que têm
os bárbaros da América dos espíritos infernais. De quem o aprenderam? Quem lhes inspirou estes sentimentos?
Respondam os materialistas e libertinos. Como era possível que concordassem com as outras gentes estas nações
ferinas e sem comércio? Como era factível que conservassem, depois de tantos séculos, tão clara noção de
espíritos separados?
64
O poeta escreve no manuscrito, ao lado desta estrofe 5, que alguns autores cometem injúria ao supor que os
brasileiros (indígenas) não possuíam conhecimento de Deus, rei e legislador. Eles tinham a palavra Tupã com
especial significação, a de um ente supremo, como sabemos pelos missionários e pelos peritos dos seus idiomas.
(Ver nota 20)
116
trevas sobre o mundo? E este espírito amante da verdade, inimigo do mal, que promove o
bem, coisa tão grande já realizada, se não lhe dera o ser, quem vence o nada? Quem seja este
ente e qual [é] seu nome eu, cego, ignoro. Feliz quem pode saber! E mesmo sem o saber,
humilde o adoro pois sei que é quem tudo faz. Não duvido de que domine os céus e a terra
quando observo as nuvens com terror, deixando [meu] peito mortal em vil desmaio,
ameaçarem com o trovão e punirem com o raio. Só pasmo que, se nos fez, deveria amar a
obra da sua mão e, num mundo cercado e cheio de anhangás, livrar o homem desta besta
cruel. Como é possível que não desse um jeito de a mente ignorante, enferma e nua pudesse
juntar-se a ele, quando está claro que o pai não deixa o filho em desamparo? Sinto bem
remoer dentro em meu peito [uma] lembrança que me acusa e que perdura por me fazer bem:
é néscio quem o ingrato beneficia. Talvez outro povo mereça ser eleito para a assistência dos
céus, rica de graças. Não se justifica a queixa contra Deus de que [ele] costuma deixar quem
não o deixa. Mas se do trono celestial e eterno, apesar da malícia nos visita, quem sabe se
hoje, por zelo paterno, tenciona mandar-te aqui para o nosso bem. Creio que contra o fogo
infernal trazes a chama que imita o raio ou que vens como luz do etéreo assento para levar-
nos contigo ao firmamento.
(11) O lusitano pasmava da eloqüência de tão elevado pensamento numa
alma rude, notando como a eterna sabedoria mostra a todos a face da virtude. E reputava
maior clemência para quem, se a fé conhece, ingrato se ilude; que Deus negasse a luz que os
outros viam porque tendo-a maior, mais cegariam. Diogo respondeu: O céu piedoso não
deixa nunca os seus. À terra indigna manda o seu Unigênito [filho] glorioso; para que ofereça
a mão benigna a quem o invoca. Mas se antevisse no homem pernicioso
65
uma leve propensão
ao maligno, para dar-lhe menos castigo em falta menor, podia deixá-lo suspenso nas sombras
tão altas.
65
Aqui o poeta esclarece que não vê em Deus ciência condicionada e exploratória, mas tem certeza de que Deus
conhece os objetivos e suas condições e que, pelo menos na prática, concede sua graça a alguns que anteviu
abusarem livremente dela.
117
(13) No entanto, tendes um claro sentimento de que nos concede espírito
imortal
66
... Sim, diz Gupeva que está atento a tudo, participante e reflexivo. Mas, mirando o
seu próprio pensamento, vê que se excedeu e reconsidera: como pode a razão sofrer a morte?
Quantas vezes comigo mesmo um pensamento na alma eu partilhara: todo o mal, enfim, que o
homem padece vem da imagem cruel que tem em mente. Mas a impressão internalizada tanto
mais cresce quanto o peito ansioso mais suspira. E vejo que há em mim mesmo, oculto e
interno, um laço eterno entre a mente e a verdade
67
. Sendo a mente mortal, voltará ao nada ao
apagar-se a luz do extremo dia; antes de ser punida ou premiada, uma alma justa ou ré
pereceria. Se [a alma] sempre em desejos nunca saciada, mas sem castigo ou perdão piedoso
perder a essência sem chegar ao seu fim, como crer que Deus tem providência
68
? Se se
perguntasse sobre o fim do inerte bruto, no contexto das obras responderiam que fora feito
para nos servir e que não tivera previsto um destino eterno. Seria melhor que a morte o
destruísse pois não nascera para fim imortal; por que lhe daria o céu divino outro corpo, outra
forma, outro destino
69
? Pensa-se que o bruto escolhe viver, evidentemente, como suas ações
nos mostram, mas cada espécie concorre a um curto fim: sem órgãos [pensantes] e aptidões
para outras obras. O homem tudo quer, luta por tudo: tem órgãos para tudo e tudo sente. [É]
infinito em pensar e, ao que vejo, maior que no pensar é seu desejo. Sozinho domina tudo,
tudo governa, sem costumar servir a outro animal; todas as outras espécies são suas
66
Observação do autor menciona que os bárbaros americanos têm distinta idéia da imortalidade da alma, do
paraíso, do inferno, da lei, etc. E manda consultar Martinière, Osório “de rebus Emmanuelis”, e outros; grande
argumento contra os libertinos e materialistas. E completa: quem lhes transmitiu estes conhecimentos senão a
antiga tradição dos tempos diluvianos, e a harmonia que estas tradições têm com a natureza?
67
Durão explica no manuscrito que a verdade e a indelével impressão que dela sentimos no espírito é um grande
argumento da imortalidade a que se referiam Platão, Santo Agostinho etc. Os costumes e ritos dos brasileiros se
fundamentam neste conceito que tinham da imortalidade da alma.
68
E vem esclarecimento no próprio poema, com anotação ao lado da estrofe 15. O argumento da pena ou castigo
que se deve aos injustos, e do prêmio que se concede aos bons é prova inegável da imortalidade da alma, suposta
a Divina Providência, porque vemos morrer sem prêmio a piedade de muitos e sem castigo a injustiça.
69
Novamente o escritor comenta que esta é a invencível e universal prova da mortalidade do animal irracional:
por experiência e pela sua organização, vemos que tem um fim limitado, temporal; é destinado a servir ao
homem em sua existência finita. O contrário acontece com o homem.
118
subalternas. Se nascera imortal fora um lume
70
com arbítrio universal e razão eterna, capaz de
receber a intensa luz que maior seria não fosse dissipada pela morte e aniquilada por céu, terra
e inferno.
(19) Diogo, pasmado com o que atento ouve, não crê que a singular filosofia
possa ser invenção da gente bruta, mas a bela intérprete lhe advertia que a antiga tradição,
nunca interrompida, todos compreendem pelas cantigas que o povo repetia e que [eles]
aprendiam a cantar com seus pais e suas mães. As canções
71
que ouvia de Gupeva (e talvez de
todos) eram fragmentos das que entoavam. Soam docemente em poético estilo, feitas por
sábios de sublime estudo. Haveria entre eles alguns com tal habilidade que, juntando o
harmônico e o agudo, parece que lhes inflama a fantasia algum ente divino da poesia, se o há.
(21) Tendo dito [isto] a discreta Paraguaçu, Gupeva então prossegue o seu
discurso. Se as almas morressem, que seria da memória dos mortos? Para que serviria a lei
que nos orienta a pôr no sepulcro comidas, arcos e flechas? Quem resiste a quem depois da
morte não subsiste? Logo que a nossa alma deixa este corpo, o inimigo anhangá com fúria o
invade, e ela se queixa do mal cruel que aqui fizera, até que entre em sombras ou em
claridade. O ritual do sepulcro
72
deixa expresso que, enterrando-se em pé, buscamos o fim na
eternidade para a qual Deus nos criou e que antes de o alcançar se segue a via. Deste princípio
nasce [o costume] de chorar noite e dia com prantos o seu passamento; nos velórios louvam-
nos como santos, colocando-se no sepulcro uma inscrição. Não vejo por que tantas memórias
e tantas cerimônias para este fim, se a alma se acaba. Seria inútil a expiação e os obséquios se
ela não vivesse ou se não purgasse algum pecado.
70
Pela boca de Gupeva, o poeta continua o seu discurso religioso em anotação no manuscrito: a imortalidade,
por natureza e essência é privilégio da divindade. Adão nasceu imortal por graça.
71
Observação do autor: Martinière afirma não ter percebido indícios de religião nas canções brasileiras que
ouvira. Entretanto, Durão supõe que ele não teria ouvido todas e que acha impossível eles terem conservado as
tradições, mencionadas pelo próprio Martinière, sem ser por este meio (o das canções).
72
O poeta explica que estes rituais adotados pelos americanos (colocar nos túmulos comidas e armas)
convencem que as almas sobrevivem aos corpos, sendo portanto imortais.
119
(24) São costumes da obscura Antigüidade que o grande Tamandaré
73
,
desde os primórdios, ensinou às pessoas que todas as almas no mundo são direcionadas à
piedade. E quando alguém contesta esta verdade, provam-na os anhangás que nos afligem,
pedindo aos necromantes que vendam e “encomendem” sua alma imortal. Desde nossos pais é
história corrente que, onde o sol se põe nessas montanhas
74
, há um lugar profundo onde habita
o pérfido anhangá com cruéis sanhas. Ali, numa escuridão de enxofre exalado, com tamanhas
portas Tupã [o] encerrou que com as mãos não pode forçar o inferno; a morte é a chave e o
cadeado é eterno. Dentro, nada se vê na sombra escura, mas no vislumbre fúnebre e tremendo
mal se distingue um vasto antro, tenebroso e horrendo. Não tem ordem alguma; tudo aponta
para o sempiterno horror em que, mordendo-se mutuamente, um [anhangá] agarra outro se o
primeiro solta. Se viste onda sobre onda procelosa quando bate espumando na areia funda,
esta a engolir aquela, e vem mais furiosa montanha dágua até que ambas se afundam, assim
na caverna lôbrega e horrorosa, ondas e ondas de fogo inundam os maus; este sobe, este desce
e um cataclismo alaga as nuvens e descobre o abismo.
(28) Aqui (se conta) caiu o feral anhangá quando rompeu o jugo do grande
Tupã e veio montado soberbo nos astros para ser verdugo do homem como vil castigo. Ali,
com mão cruel, com pronta fúria, pune o vil refugo da nossa espécie. Em vez de mãos,
enrosca as miseráveis gentes em cruéis laços de serpentes. Ali, por lei severa do grande Tupã,
está no incêndio que o tempo não apaga quem torpe pratica incesto, quem adultera, quem é
réu de lascívia infame e vaga. Conforme a culpa que cometera cada um, assim no próprio
membro paga pelo crime: fere-se a quem feriu. Mas o homicida, para que sofra mais, não
perde a vida. Sentado no meio da morada horrenda, de cabelos brancos, imóvel, tem a cauda
73
Conforme Durão observa, Tamandaré era Noé, segundo as noções do dilúvio que serão referidas adiante (Nota
80).
74
Consta do manuscrito: crêem os brasileiros que no meio das montanhas que dividem o Brasil do Peru há vales
profundíssimos onde os ímpios são punidos. Concordam, como todo mundo, com a idéia de inferno e
demonstram sabê-lo por tradição herdada dos primeiros povoadores da América. Não pode haver argumento
mais convincente para confundir deístas, liberais e materialistas. Uma tradição tão antiga e tão firme nestes
selvagens seria porventura invenção de alguns supersticiosos e impostores asiáticos ou europeus?
120
de uma cobra presa na horrível boca. Com voz rouca e timbre tremendo, ao mesmo tempo
engasgada nas dobras viperinas, diz, retumbando em eco na cavidade: Oh! vida! Oh! tempo!
Oh! morte! Oh! eternidade!
(31) Além da grande montanha
75
em que se oculta o horroroso cárcere das
sombras, num lugar de mil delícias, escuta quem justo viveu ou quem morreu piedoso. Não se
acha imagem nesta terra inculta que se pareça com o país ditoso; ali o templo da paz foi
levantado, sempre aberto ao prazer e fechado à dor. Há na vasta entrada do ameno jardim
uma grande porta de safiras belas onde da eterna luz refletida se pinta em vasto fundo um mar
de estrelas. Toda ela é decorada em torno com belíssimas e floridas capelas. Ao lado há um
precipício devorador que absorve a quem se aproxima infecto em vício. Vêem-se dentro
campinas deleitosas, geladas fontes, árvores copadas, outeiros de cristal, campos de rosas, mil
plantas frutíferas delicadas. O chão [está] coberto das frutas mais mimosas matizadas de mil
formosas cores. E à maneira de serpentes, entre as flores vão volteando as líquidas correntes.
Há sombrios caramanchões de martírios
76
que com as ramas e flores formam passeios onde
passam distraidamente
77
os claros dias, gozando sem temor de mil recreios. Ali não há
chuvas, nem brumas frias, nem receios de horrorosas procelas. Nem há na primavera e nos
verdes maios quem receie o trovão ou tema os raios. Ali, entre o sussurro das fontezinhas
escuta-se a voz sonora e harmônica com que mil inocentes avezinhas entoam a alvorada à
fresca aurora. Muitas voam em grupo pelo céu, outra segue o consorte a quem namora e,
gorjeando em mil doces voleios, vai saltando de raminho em raminho.
(36) Há uma ave que se destaca entre as outras
78
; seja fato ou seja boato,
corre do jardim e vem até nós como fiel correio de outra vida. Dizem que voa quando morre
75
Diz o autor que os selvagens acreditam que haja lugar destinado para prêmio dos bons, sendo eles colocados
além das montanhas do Peru, conforme nota anterior.
76
Martírios são arbustos da família das euforbiáceas.
77
O manuscrito registra “sem calma”. Achei mais adequado o advérbio usado (distraidamente) por considerar
que faz mais sentido no contexto.
78
O poeta explica: os brasileiros acreditam haver uma ave, que chamam de colibri, a qual leva e traz notícia do
outro mundo. Argumento inegável da sua crença sobre a imortalidade da alma, conclui.
121
alguém e exprime no seu canto enternecida o que as almas passam na eternidade e que nos
leva e traz doces saudades. Vivem contentes neste calmo jardim as almas que, valorosas no
mundo, guardaram diligentes a santa lei, praticando ações gloriosas na vida. Os que foram
mais valentes nas guerras e guardaram a pátria com ações honrosas, os que em bélico horror,
com peito forte, temem mais uma afronta do que a morte. Aqui no amado seio do grande Tupã
conversam, dançam, jogam sem fastio. Uns contam o caso ímpio da crua guerra, dos males
[nela] passados. Outros recordam sem pavor o golpe feio da própria morte e o contam com
brio pois o recordar um mal que já é passado dá mais prazer depois que aconteceu. Ali as
almas venturosas dos pais estão sempre unidas ao filho amado e gozam no peito um do outro,
sem preocupação, o prêmio pelas laboriosas fadigas. A mãe abraça as filhas amorosas, como o
esposo a consorte em puro carinho. Sem guerra, sem contenda, sem porfia, passam tranqüila a
noite e alegre o dia.
(40) Mas o que é mais suave, o que é mais doce é gozar-se entre tanta
amenidade de todo o bom desejo a inteira posse, nem ter necessidade de coisas vãs. Oh!
Quem dera ser possessor de tanto bem! Grato país! Amável liberdade! Onde pela graça
infinita de Tupã ninguém padece, teme ou passa necessidade. Dizendo assim, Gupeva
enterneceu-se, sentindo a força que eleva o mortal à bem-aventurança. Diogo também
comoveu-se vendo que em tanta luz tão pouco de Deus se sabe. A todos foi dada a eterna luz
reveladora da lei santa, mas apesar de inundar-se de esplendor um mar, quem é indigno de
Deus fica mais cego.
(42) Que valem, disse [Diogo] ao bárbaro ignorante, jardins, flores, delícias
e prazeres, se falta enfim o objeto mais importante, que é a face de Tupã? Pois se não a vires,
todo outro bem de que desfrutes, brilhante, belo, por maior que o conceberes, é vil, é vão, é
pouco, é fumo, é nada para a nossa cobiça mal saciada. O homem finge que pode desfrutar
destes bens cá da terra um vasto rio; se Deus pode criar tudo e muito, quem dele não gozar
122
fica vazio. Eu não pergunto se o mundo a uma alma basta; creio que ela goze infinitos
[mundos] tal qual hidropisia
79
: quantos mais possuir, tantos mais queira. Toda essa glória que
me tens apresentado não é mais que um bem pertencente ao mundo. Não é, Gupeva meu, mais
que um bocado para quem só se farta de infinito. E quando tudo o mais for logrado como bem
transitório, se é finito, em breve hás de sentir e sem remédio, ânsia do futuro e tédio do
passado. Deus, caro amigo meu, é somente Deus quem pode saciar nossa vontade de chegar
ao ponto de, contente, vê-lo ali por toda a eternidade. Todo o bem nele está superior e
eminente; honra, glória, grandeza, majestade: esta é, se estiveres em bom juízo, a idéia que
hás de ter de um paraíso. Porém, conta-me o que se pensa entre vós sobre o princípio deste
mundo. Quando? Como? Quem dominou a imensidão do céu profundo? Quem foi o primeiro
homem, e de qual crença? Tens notícia do segundo Adão? De qual origem e de qual gente
sois? Quem veio a povoar tal continente?
(47) Gupeva disse: Nunca ouvi falar de onde o homem nascera
80
, mas
compreendo que houve princípio, enfim que o criasse, pois eu nada concebo sem fim e [sem]
princípio. Como foi criado não sei e mesmo se o soubesse não poderia entendê-lo.
Reconhecendo que entre o nada e o ser há tal distância que a ti te creio igual nesta ignorância.
Lembrança geral do primeiro homem, antes do dilúvio, a tradição dos velhos mais antigos não
alcança. Sabemos só que uns homens inimigos, na falaz confiança de seu forte braço,
encheram todo o mundo de perigos e deram motivo para que o extenso dilúvio sepultasse a
terra num mar imenso. O patriarca do renovado mundo desceu do alto monte, onde escapou,
depois que a grande canoa, imensa barca em que subiu ao alto, foi descendo. Dominou como
monarca a prole imensa e, tendo dividido as várias tribos por continentes e ilhas do mar
profundo, é pai de toda a gente que habita o mundo.
79
Hidropisia é o acúmulo anormal de líquido ceroso em tecidos ou cavidades do corpo.
80
No manuscrito o autor esclarece que os indígenas do Brasil não tinham idéia da criação, mas conheciam Noé e
o dilúvio e faziam confusão com os antediluvianos. E diz mais: tudo é argumento para convencer os incrédulos
da história sagrada e do dilúvio universal nela referido. E orienta: veja-se Sebastião da Rocha Pita e Francisco de
Brito Freire na História brasílica (Ver nota 73).
123
(50) Sabedor do grande castigo, o justo ancião exortava os homens à
penitência: nem à vista do perigo próximo pôde chamá-los à justa obediência
81
. Cansado
então Tupã de ser pacífico, quis vingar-se o Pai onipotente do cruel latrocínio e da violência
[mandando] águas para apagar a chama ardente. Faz que se abra o céu carregado de águas
torrenciais como imensos rios; inundando a face da terra [faz que] se afoguem bons e maus,
justos e ímpios. Em guerra destruidora, os elementos
82
confundem-se em medonhos desafios:
do céu cai um mar e na mesma hora a terra se põe no centro dele. O grande Soberano já havia
posto as ondas nas brancas praias, rompendo as margens e as águas passavam das extremas
raias na altura do monte, ficando no mesmo plano [deste]. O peixe nadador, nas altas faias
83
,
está no ninho do tucano alado e as baleias podem ser vistas nos covis dos tigres e nos antros
das panteras.
(53) No entanto, iam os homens miseráveis de um monte a outro para fugir
das águas; sem destino algum, bandos e bandos correndo gritam com piedosos lamentos.
Suplicam aos brandos céus que os escutem, mas a ira de Tupã com justas amarguras,
fulminando centelhas e coriscos, faz maiores os danos que os riscos. Mal segura em longa
tábua, via-se nadar por sobre a água a mãe desventurada que, tendo o filho preso ao colo, ora
é batida pela água, ora é elevada. [Há] quem se pendure do alto das casas, quem faça jangadas
com madeiras; concebendo o horror da fome mortal, há quem creia que seja menos mal beber
a morte.
(55) Porém, Tamandaré, amigo de Tupã, enquanto a grande procela horrível
soa, salva o naufragante mundo pelo abrigo que procurou dar aos filhos na grande canoa. E
para lembrança do castigo, deixou a barca suspensa sobre o pico das altas serras que,
81
Começa-se a narrar aqui a história do dilúvio bíblico, quando Deus ameaçara destruir sua criatura caso
continuasse pecando.
82
Os quatro elementos: terra, ar, água e fogo.
83
Faias são arvores fagáceas da Europa, muito cultivadas por serem ornamentais.
124
claramente, têm nome semelhante ao das Araras
84
. Daqui, os homens que cremos serem seus
netos [foram] espalhados por várias terras. Uns tiveram as frontes queimadas pelo claro sol
que nasce em seus extremos
85
. Outros que habitam climas diferentes, [ficaram] dessa cor
branca que em vosso rosto vemos; separados pelo mar, direcionam a nós as proas das vossas
canoas. Se sois [descendentes] de nós ou se o somos das vossas gentes, são coisas que todos
ignoramos pois sempre contentes em solo pátrio não nos preocupamos com outras terras e
[outros] tempos. Mas vós que viajais pelos imensos mares podereis inferir se os que aqui
estamos, tendo nascido de um só pai, nos parecemos com alguns dentre vós. Se entre vós
houve ou há quem seja assim
86
, quem se governe deste jeito, quem edifique ou combata com
armas assim como nós e quem se dedique totalmente à caça. Se há quem devore os homens
quando os mata, a quem a imagem feroz seja imberbe, podemos crer que são nossos parentes
desde Tamandaré que é pai das gentes.
(59) Conservar-se-ia num povo os antigos rituais se o rito estrangeiro não os
alterasse e se sempre ficasse escrito algum vestígio, como tradição do primeiro século. Vós
sabereis, se a História o tiver dito, que houve um tempo em que o mundo, quase inteiro, não
sabia se era habitado por uns ou outros; e como nós erramos, todos erraram. Se os mares
nunca dantes navegados
87
percorrestes por climas diferentes, sabereis de outros homens
descobertos talvez pelo vosso povo. Pode ser que, por estreitos gelados, transitaram nos
nossos continentes. Vós direis se há na roxa aurora homens nus e pintados como agora. E para
que saibas mais do nosso costume e julgues melhor a antiga origem, dir-te-ei como, seguindo
a luz apontada as prudentes nações para cá se dirigem. Não se presume o vício de muitas e
84
Durão anota no manuscrito, a propósito das araras: entende o poeta os montes Arará, onde ficou a arca de Noé.
85
Da mesma forma, ele observa que entende que a referência é aos africanos que ficam ao oriente da América.
86
A maior parte destes sinais se acha nos tártaros da Coréia, e em outros selvagens fronteiros à Califórnia. Não
duvidamos de que estes, gelando-se ali os mares, passassem ao continente da América pela parte mais
setentrional. Assim escreve o poeta para complementar a informação.
87
A expressão “por mares nunca dantes navegados” é transcrição do terceiro verso, canto um, de Os lusíadas de
Camões. Nosso, poeta, apesar de ter declarado ser esta obra uma das suas fontes de inspiração, não colocou em
destaque a famosa expressão.
125
nem aquelas que sábias se corrigem. Também creio que entre vós se ouve [falar] de quem,
tendo boas leis, tem má conduta.
(62) Como vês, trememos espavoridos diante de Tupã que manda o trovão
com fogo, mas quando vemos que a tempestade abranda, ficamos esquecidos de Tupã. Bem
suspeito que deste outro lado aconteça o mesmo, se o horror vem dos sentidos, e que também
entre vós se veja gente que não teme Tupã se [ele] não troveja. [Há] quem contra ele
blasfeme, afronte, ou quem o invoque por testemunha quando mente. Entre nós nunca se ouve
infâmia furiosa
88
e só de o imaginar as pessoas se assombram. É raro quem o adore ou quem o
ame, porém mais raro será [encontrar] quem, insolente, tenha tão cego descaso para com o
supremo ser, ou que trate seu nome com tanta injúria.
(64) Há pouco indício de realização de culto a Deus, senão naquilo que
consideras engano brutal, de fazermos cruento sacrifício não do sangue de animais irracionais,
porém do [sangue] humano
89
. À luz da razão vejo que é feio vício, que repugna ao instinto por
[ser] tirano, mas matar a quem comete crime contra os demais, não é um caso digno de
justiça? Reconhecemos a justiça do céu contra quem, delinqüindo, a profanasse, impondo
suplícios contra os maus extremos e dando a pena em justo sacrifício. O malfeitor, o réu,
quando o prendemos, fazemos um ritual sagrado com cerimônia, oferecendo a Deus o sangue
impiedoso, que é aplacado com o sacrifício
90
.
(66) Entre nós, a forma de governo, abusiva e anárquica, se mostra sem lei,
mas os que fazem bom uso da razão parecem reinar com justa legislação. Não nos tomes por
88
O autor faz uma observação ao lado da estrofe 63 dando conta de que o juramento, a blasfêmia e a imprecação
(xingamento) são vícios ignorados entre os selvagens e quase não ocorre entre os tártaros (povos mongóis que,
na Idade Média, invadiram a Ásia e a Europa).
89
Aqui o poeta conclui: não há indícios de sacrifícios nos indígenas brasileiros, mas sendo as vítimas humanas
praticadas no México, Peru e em outras nações da América, persuadimo-nos que a solenidade dos homicídios
nos habitantes do sertão é um vestígio dos sacrifícios praticados pelos demais americanos.
90
Vem o esclarecimento no manuscrito: sacrifício é, com efeito, uma destruição da vítima e, como ato
expiatório, satisfazia à justiça com o sangue.
126
povo tão confuso que não conhece o poder público: há entre nós senado
91
sábio e prudente ao
qual se sujeita o nobre e a gente humilde. Vagamos sempre e os exercícios da caça nunca nos
deixam ter um assento fixo; nela buscamos os próprios alimentos e habitamos onde há caça ou
indícios dela. E estes são, de ordinário, os fundamentos de nos ocuparmos em bélicos ofícios:
verás as gentes em contínuo choque por causa da posse de terreno ou praia. É costume vagar
divididas pelo sertão em várias castas e nações diversas. Apesar de errantes e dispersas,
confederam-se as tabas
92
de cada uma. Em guerra e paz e em sedições perversas nenhuma se
nega a [honrar] o nome da pátria. Se o senado quer, por motivos justos, põem-se todos em paz
ou armam-se todos. Nos senados, são membros e cabeças os velhos sábios, capitães valentes,
os que têm socorrido apressadamente à pátria com os mais prudentes conselhos. Emanando
destes as ordens expressas, não se verá um só das nossas gentes que, não cedendo ao poderio,
rompa este laço da sociedade humana. Destes, uns são ministros
93
da suprema divindade; nos
dias festivos, fazendo-se qualquer solenidade, exortam o povo com piedosas lembranças.
Cantando, honram a eterna majestade com sons, que para nós são melodias, coisas que se
anhangá corrompeu tanto, vê-se que nascem de princípio santo. Estes chefes do culto
venerando mantêm em nós a oferenda do povo crente. São mestres santos que oram por nós e
nos apontam a luz da razão. Ministrando tão sublime ofício, têm direito a que o público os
sustente, pois é mais justo fazer valer para eles a lei: cada um coma do seu trabalho.
(72) Punimos o homicídio; quem mutila, quem bate ou fere não foge da
pena. A sentença ele mesmo a dá
94
e deve ser executada conforme a culpa, com justiça plena:
91
Sobre o senado, Durão explica: todos os que escrevem sobre os costumes dos brasileiros confessam que
presidem ao seu governo os anciãos e os príncipes das tabas ou aldeias. E ele indaga: e que outra coisa é o
senado?
92
Tabas – assim chamam os brasileiros às suas aldeias, diz o poeta, sugerindo ainda: veja-se o Dicionário da
gramática e língua brasílica, no verbete “taba”.
93
Durão explica que a função de ministro é uma espécie de sacerdócio entre os brasileiros e consta que o povo
concorre com ofertas para o seu sustento.
94
Esclarecimento do poeta: os autores da História do Brasil descobriram nos índios do sertão a célebre lei de
Talião (punição semelhante à ofensa, pena que remonta à legislação mosaica/de Moisés). Da mesma forma, são
atribuídas leis para punir o adultério e o incesto em primeiro e segundo grau.
127
quem matou deve morrer (assim se pune por lei sagrada, dentro da eqüidade); quem cortou pé
ou mão, braço ou cabeça, no pé, no braço e mão tanto padeça.
(73) Declara-se fé no matrimônio
95
pois o amor livre ofenderia a lei; se se
pudesse “usar” sem casamento, quem é que neste mundo casaria? Quem quer que adulterasse
deveria morrer; sem isso, quem conheceria seu pai? E o que nega a paternidade não vê que
[assim] repugna a humanidade? Quem conhece o incesto com pai ou mãe, ou quem corrompe
a irmã merece a morte. Nas atribuições dos pais
96
é evidente que nasceria confusão desta
prática: não é honesto ter a filha por mulher, ficando o seu pai como consorte. Se o irmão se
casa com a irmã, a união será perniciosa para o gênero humano. Em geral, a sociedade
humana deve, para desfrutar de paz e amizade, prescrever para os mortais um casamento feliz
e amistoso
97
. Deu-nos o céu por companheira, como se fosse outra mão, outro braço, a
consorte que excita o amor com fé, e não para pasto brutal de um apetite [sexual]. Não haveria
prisão, o que seria bom, se do inferno não viesse para dominar os homens a discórdia cruel e a
inveja grave e se evitasse o casamento fraterno. Nasce do amor a paz; o amor é a chave, é a
doce cadeia, vínculo eterno que, se o vil interesse desune alguns, os peitos abre e o coração
nos une. Tendo este objetivo por salutar costume, antigamente nossos pais julgaram que o
incesto seria ofensa à escritura sagrada, contrariando a paz da sociedade. E se o santo Nume
do céu providencia o sossego da triste humanidade, quem duvida que seja pouco honesto
conhecer-se os irmãos com feio incesto? Entre nós, quem elege a esposa amada pede-a ao pai
ou parente; sem pedir não se considera a fêmea desposada, para deixar a família tranqüila. Se
acaso fosse órfã abandonada, caberia apenas ao vizinho dar a permissão. Se convier ao seu pai
ou seu parente, ela é dada em matrimônio, de presente.
95
Comentário do autor: Martinière afirma que os brasileiros solteiros não guardam fidelidade alguma. Será
dissolução da gente bárbara, mas a constante tradição de se casarem é demonstração de que aos seus costumes
repugna a Vênus (amor) livre e desenfreada.
96
Durão observa que esta é razão suficiente para se considerar ilícito o incesto. É incoerente tomar a filha por
esposa, entregar-lhe o poder sobre o seu corpo, sendo ela inteiramente sujeita ao seu domínio por ser sua filha.
97
Durão explica que assim deve ser porque o incesto em segundo grau é repulsivo nos direitos sociais. A
expansão e agregação do gênero humano estaria prejudicada se os matrimônios fossem permitidos aos irmãos,
quer dizer, se fossem lícitos.
128
(79) Furto entre nós não há: para que haveria? O que se tem come-se logo e,
sem aborrecimentos um tira do outro o que acha para comer. E a caridade vem junto com a
pobreza. A calúnia, a traição, a mágoa têm por pena comum a inimizade. Não há, se o entendo
bem, maior castigo que ter o mundo todo por inimigo.
(80) É caso antigo que outra lei depois desta já fora observada por nossas
gentes, mas ignoramos se ela vigora ainda hoje porque os nossos chefes, pouco crentes,
achando-as inimigas de seus vícios, insatisfeitos recusaram-se a guardá-la
98
. Porém, como o
tempo não apaga a memória, o santo emboaba Sumé a pregará. Ele foi homem de semblante
respeitável, de cor branca e, como tu, barbado; foi um filho de Tupã mandado por ele, vindo
de onde o sol nos vem nascendo. Chegara andando a pé sobre esse vasto mar (caso
estupendo!) e na santa doutrina que ensinava, chamava a todos para o caminho do céu.
Lamentavelmente, ignora-se o que disse, mas não se ignora que da santa boca se ouvisse um
utilíssimo conselho: plantar e moer mandioca. Também profetizou que haveria de retornar ao
Céu a que tão amigo nos chama e que eu [Gupeva] o iria encontrar na terra ou no Céu se ele
não viesse.
(83) Contam que quando aqui pregava aos nossos, mostrara tal poder sobre
os elementos que dava ordem às ondas, se o mar se enfurecia, e só com um aceno domava os
ventos. Quando entrava nas matas, estas se abriam e os tigres ferozes atentos a seus pés
pareciam ouvir, como se fossem humanos, festejando-o com a cauda brandamente. Se tocasse
com os pés ligeiramente as águas de um rio ou lago, estas não pareciam ser líquidas, mas
pedra dura ou terreno sólido. Só com chamar seu nome cessa o estrago se o furacão com
horrível tempestade se levanta em nuvem negra ou derruba a cabana ou quebra a planta.
98
Pela leitura do verso 4 da estrofe 82 deste canto, infere-se que a outra lei, desagradável para os chefes, seria a
de trabalhar. Nóbrega, o santo emboaba Sumé, aconselhou a plantar e moer mandioca; metaforicamente pedia
para trabalharem.
129
(85) Porém, não dando ouvido às pregações, vinha o caboclo do sertão mais
bruto atacar o justo Sumé
99
querido de Deus e matá-lo e comê-lo, resoluto. Sendo ofendido,
ele poderia fazer que eles colhessem o fruto da sua cegueira; no entanto, prostrado só pede a
Deus que o coroe e que perdoe a ignorância dos miseráveis
100
. Então os selvagens,
contumazes na fúria, tomam as flechas e, brandindo, atiram-nas contra quem viram pelo ar.
(Mas quanto pelos teus, Tupã, não fazes!) E nem assim se mostram mais atentos aos anúncios
de paz que tanto ouviram. Deixa-os Sumé e chega a um rio cheio e só com pôr-lhe um pé,
partiu-o ao meio.
(87) Contam (e a vista faz que a gente o creia) que as correntes dágua
arrebatadas foram marcando na branca areia quatro pegadas de seus pés; ficaram tão evidentes
sem que a água as tenha mudado. E enxerga-se muito bem sobre os penedos toda a forma do
pé, com planta e dedos. Assim Gupeva concluiu dizendo não haver mais tempo para o
discurso: fora avisado de que a turba inimiga vinha batendo pelos campos em grande pelotão.
Grita: Às armas, armas! E o eco horroroso, retumbado nas árvores sombrias, fez que as mães
ao escutar os murmúrios apertassem no peito os seus filhinhos.
(89) Então Diogo diz: Não te espantes, não alteres a paz dentro das cabanas
belicosas. Enquanto não souberes notícias precisas, basta pôr guardas fortalecidas nas
fronteiras. De noite, não te movimentes; se temeres que te invadam com tropas numerosas,
põe-te na defensiva. Quem ataca fremente à noite é quem te teme. Tanto mais que preparo
com as mãos o trovão contra teus inimigos neste apuro. Não duvides: logo que o disparar,
tudo se tornará em chamas e arderá em fogo. Dizendo isto saiu da claridade, disparou o
mosquete em jogo marcial. Enquanto atira, todo o bosque atroa pelo horror da buzina que soa.
99
A propósito de Sumé, (o apóstolo são Tomé), o autor explica ser o nome referência ao padre Nóbrega,
primeiro e notável missionário do Brasil. E manda confrontar com Imagem da virtude em que o padre Antônio
Franco escreve sobre a vida de Nóbrega. Na verdade, a ele são atribuídas aqui ações praticadas por Jesus quando
esteve na terra: sossegar o mar, andar sobre as ondas, acalmar tempestades... Diz a lenda que também o padre
assim procedia.
100
No seu afã proselitista e no enaltecimento dos jesuítas, Durão equipara a fala de Nóbrega à do próprio Jesus;
compara-o também a Moisés, na divisão do Mar Vermelho. Por outro lado, a História comprova que o padre
morrera flechado pelos índios.
130
Uma tropa nojenta talvez como macacos saiu do interior do mato em negro bando; se um é
derrubado pela flecha, medroso, vai saltando pelas árvores em fuga. Ouvindo a buzina
pavorosa e o arcabuz relampagueando trovões, correm, caem, despencam, pensando que o céu
todo lhes caía em cima.
CANTO IV
(1) O invasor noturno era um chefe errante, terror do sertão vasto e dos
mares, príncipe dos caetés, nação potente, o qual tinha por nome grande Jararaca. Este era
perdido amante de Paraguaçu e vinha ardendo de ciúmes da donzela; tal ímpeto, batendo as
asas, apaga a clara luz da razão e acende as brasas. A formosa Paraguaçu dorme à sombra
onde corre um límpido ribeirão; está lânguida como a branca rosa e calma como o vigor nas
plantas morre. Buscando a frescura deleitosa de um grande [pé de] maracujá ali existente,
recostou-se a bela sobre um aparato que, encobrindo-lhe o mais, descobre-lhe o rosto. Respira
tão tranqüila, tão serena e adormecida em langor tão suave repousa dando pausa à doce vida,
como quem [vive] livre de temor ou pena. Ali o bravo Jararaca pretende passar a ardente sesta
atraído pela frescura do lugar e pela convidativa sombra, [vendo] dentro dágua a imagem do
caramanchão. No diáfano reflexo da onda pura, avistou tremulando na água buliçosa a
belíssima figura. Pasma e nem acredita que imagem tão formosa seja cópia de criatura
humana. Mirando novamente a face prodigiosa, olha de um lado e de outro e busca atento
quem seria o original daquele portento.
(5) Ao explorar tudo com cuidado, seus olhos encontram a gentil donzela e
fica arrebatado, sem fôlego, concentrando seu ânimo em vê-la. Deslumbrados, ambos ficam
fora de si: ele mais, por observar um ser tão belo, encantado em contemplar-lhe o rosto; ela,
131
absorta no sono em que se achava. Bem que [ele] quisera falar, mas não conseguia por mais
que tentasse. Com um suspiro seu ela despertou e ele ficou mais mudo com aquele olhar. Mal
coberta, a donzela levanta-se, tomando um ramo por modesto escudo; então põe-lhe os olhos,
porém o vê tão brutal como nunca pudesse ter tido beleza. [Ela] não corre: voa pelo denso
mato a buscar refúgio na cabana. E indo ele a suspirar vê que, de repente, ela fugira do seu
suspiro. Não volta a si por longo tempo até que, dando à mágoa alguma trégua por saber onde
mora ou quem ela era, seguiu, voando, os passos da donzela.
(8) O cego amante veio em breve a saber que a formosa maravilha havia
nascido de Taparica, um príncipe poderoso que dominava e dava nome à fértil ilha. Vendo em
sua frente a bela filha ao lado de seus pais, pediu-lha Jararaca. Todos concordam, mas ela não
consente porque esperava mais do céu potente. Irritado pela ânsia, pela dor, pela raiva e por
despeito, o bravo Jararaca parte e ataca embravecido tudo que encontra, com sombras na
razão e fúrias no peito. E o pai, vendo que a chama [da filha] não se aplaca, para dar-lhe um
esposo melhor, destina-lhe Gupeva por consorte, com quem mais se compatibiliza no sangue
e no modo de ser. Logo que corre de boca em boca a notícia do esposo eleito, o caeté irado
raivoso brama. Declara a guerra e arma todo o sertão, acendendo tudo em belicosa chama.
Astuto, pensa em atacar de surpresa para empreender a guerra. Paraguaçu morre ou será sua!
(11) Entretanto, sendo posto em terror, de improviso, ao ouvir do arcabuz a
fama e o efeito, não permite que o susto se assome em seu rosto, mas reprime o terror dentro
de seu peito. Convoca um exército composto pelas nações do campo com as quais havia feito
alianças em outras guerras
101
e, excitando a sanha voraz no povo, cobre de legiões toda a
planície. Na vanguarda vieram em seis brigadas trinta mil raivosos caetés
102
armados.
Deformados com mil talhos horríveis no nariz, na face e na boca [eram] monstruosos. Ao ver
a bruta gente, espantados todos fugiram amedrontados. Eram feios como demônios; é certo
101
Também eles, como os políticos de hoje, faziam parcerias, conchavos e coligações.
102
Caeté, explica o poeta, era o gentio (de outra nação) que infestava o sertão da Bahia. Jararaca era o chefe.
132
que se não o eram, faltava pouco. Jararaca foi eleito capitão para brutal comando da gente
feroz porque era o mais feio dentre outros mil horrorosos, na cara dura e no gesto abominável.
Para os bravos guerreiros, uma horrível figura lutando tem entre eles a fama de valente: só
com a cara faz fugirem as pessoas.
(14) Dez mil aparentam ter cor negra, a fronte impura pintada como a noite
escura; negreja-lhes na testa um cinto preto, as armas são negras e negra é a [sua] figura. São
os ferozes margates com que Alecto
103
pinta o inferno sobre a sombra escura. Como sinal de
sua raça, cada pessoa raspa o cabelo no meio da cabeça. Cupaíba, que empunha a maça feral,
guia o bruto esquadrão da gente cruel; Cupaíba que abraça os miseráveis, devora vivos na
batalha ardente. Enlaça um fio em torno do pescoço no qual enfia um dente de quantos come.
Traz um cordão com tantas voltas que já é mais que cordão, é um longo vestido. Urubu,
monstro horrendo e cabeludo, domina vinte mil ovecates
104
ferozes. Seu corpo é todo
encoberto pela longa cabeleira espessa: uma terrível figura. Monstro disforme, horrendo, alto
e de membros vigorosos, com imagem de leão rugindo, extremamente feio e horrível que
perto dele um Polifemo é formoso
105
. Todos fogem dele, toda a população de outras gentes;
ou, se se vissem forçados a encará-lo, ninguém consente se aproximar além de trinta e poucos
passos. Se alguém se aproxima mais, por imprudência, investem como leões ou tigres
esfaimados, mordendo os que foram incautos e a carne crua, crua lhes devoram.
(18) Samambaia conduzia outra turba; era certeiro ao flechar as aves que,
mesmo voando no céu, a volante flecha não lhes errava o tiro. Cobria-lhe um manto de pluma
e um cinto [também] de pluma o cingia; pelas plumas grudadas na cara, imaginava-se outra
espécie de monstro. Seguem-no dez mil maquis
106
, gente dura acostumada a cultivar
mandioca, tão úteis na agricultura como valentes com as espadas nas batalhas. Estes eram
103
Margates são demônios. Alecto é uma das três Fúrias que viagiavam o Tártaro (inferno); são também
conhecidas por Euríneas ou Eumênides.
104
Segundo o autor, ovecates são membros de nação feríssima.
105
Polifemo ou polimo é um gênero de crustáceos dos lagos europeus; espécie de polvo.
106
Maquis: pequenos seres que habitam as florestas; lêmures; duendes.
133
encarregados de prover de víveres a gente armada: alguns torravam o aipim, uns as
mandiocas, outros [faziam] nas cinzas as cândidas pipocas
107
. O bom Sergipe, aliado aos
demais, conduzia os potiguares
108
que, tendo pouco antes triunfado, tinham fartos colares de
dentes dos inimigos. Dez milhares de pessoas valorosas acompanhavam-no em guerras,
decantando seu nome; usando todo o estoque de armas, disparavam o bodoque com balas.
(21) Nem tu faltaste ali, grande Pessicava, guiando o carijó das auríferas
terras. Tu que as folhetas do ouro que te enfeita desenterras das margens do teu rio.
Proclamas-te dono do ouro do torrão por achares o mais fino ao pé das serras. Porém este é
enfim um feito desprezível e baixo que recebeu o nome de ouro inficionado
109
. É lenda que
muitos destes [índios] traziam destas altas colinas por eles habitadas pedras que embutiam nos
beiços, formosos e belíssimos diamantes. Outros lhes introduziam preciosos topázios, alguns,
safiras e rubis cor de brasa, pedras que eles desprezam e nós amamos: nem direi quais de nós
nos enganamos.
(23) O feroz Sabará, animoso, faz moverem seis mil arcos dos
agirapirangas, homens valentes que, de arma em punho, eram nada modestos em batalhas
sanguinolentas. Deixaram seu terreno prazeroso e passaram do mar às minas de ouro, por
matos densos e pantanosos charcos, ouvindo o horrível estouro dos canhões.
(24) Há um [chefe] tão robusto nas forças quanto feio no aspecto, em traje
horrendo, que esculpira com fogo sobre o torpe busto dois tigres combatendo. É o bravo Tatu
que enche tudo de susto atacando com o grande tacape
110
; dando mil golpes espessos, derruba
troncos, braços e cabeças. Sob seu comando, formados em dez fileiras, iam doze mil itatis;
[eram] surdos porque, habitando as cachoeiras, com o grande rumor das águas ensurdeciam.
107
Diz o poeta que aipim é raiz de que se faz uma espécie de farinha; mandioca é outra semelhante. Chamam
pipoca o milho que, lançado na cinza quente, rebenta como em flores brancas.
108
Membros da tribo indígena tupi que habitava as praias do rio Paraíba do Norte.
109
Durão anota no manuscrito: Inficionado – Povo importante das Minas do Mato Dentro, chamado assim
porque o ouro (que tinha subido muito) perdeu os quilates mais altos e ficou sendo chamado ouro inficionado. E
completa: Assim o soube o poeta dos antigos daquela paróquia, de que ele é natural. (Durão nasceu lá).
110
O autor explica: tacape é espada de pau-ferro, ou semelhante, usada pelos selvagens.
134
Penduram os seus marraques
111
em longas hastes como bandeiras, agitando-os no ar, suprindo
o ruído dos bélicos tambores com seus confusos rumores. Em colunas de guerra, a feroz gente
assombra a todos pelo horror da figura. Trazem por arma uma enorme maça e têm um forte
escudo de madeira dura; flechas e arco no braço guerreiro, nas mãos um dardo pontiagudo de
pau-santo. Sobre os ombros, a rede, na cintura as cuias. Esta era a imagem dos cruéis tapuias.
(27) O forte Sapucaia conduz ao campo quarenta mil, todos de cor
vermelha; dez mil têm a longa orelha furada: são amazonas, da espécie feminina. O amor
conjugal as aconselha a descer dos sertões à vasta praia para estarem ao lado dos seus
maridos, sem temor, nos lances mais temidos. Uma brava matrona cheia de coragem, a quem
o jogo marcial não perturba, bela na forma porém tornada feia pelos artifícios, vai
comandando o grupo feminino. Os seus lhe deram o nome de Grande Baleia, nome que
perturba os selvagens ao ser ouvido: uns enamorados pois a têm por bela, mas outros por
temê-la.
(29) Ouve-se [um] rouco som que estremece o ouvido; retumbando com eco
o barulho horroroso soa de um grosseiro instrumento com o qual se inflama entre eles a
contenda. E quanto mais o horrível som destoa, mais faz acender o furor no peito. As cornetas
são de paus retorcidos e as flautas e trombetas, de ossos humanos. Vêem-se batalhões a
espaços separados, formados em três fileiras; ordenados e em admirável silêncio, postam-se
ao redor do outeiro central. Um orador costuma falar-lhes aos brados e, com o rosto ardendo
em mil fúrias, furibundo corta o ar com a espada, exortando a turba a combater valentemente.
Jararaca, então, como primeiro comandante, presidia ao ritual sacro e civil. E no [ponto] mais
alto do sublime outeiro, se distinguia entre o senado de anciãos. Superior aos outros na
estatura, às costas de um tapuia que o trazia, correndo majestoso de um lado a outro, estando
tudo num silêncio geral, assim discorre.
111
Marraque é uma haste da qual pende um cabaço ou coco, cheio de pedras miúdas que, sacudindo-o fazem
barulho. É insígnia sacerdotal e militar entre os selvagens. Esclarecimentos anotados por Durão no manuscrito.
135
(32) Paiaiás generosos! Hoje é o dia que devemos honrar às gerações
vindouras, em que mostreis que a vossa valentia não receia o trovão e subjuga o destino.
Sabeis que a covardia de Gupeva tem aclamado como filho do trovão um emboaba
112
vindo
do mar, por causa de um fogo que acendera. O vil, prostrado aos pés desse estrangeiro, rende
as armas com fuga vergonhosa e, conta-se, adora-o lisonjeiro e até lhe cede com o cetro a
esposa. E que poderá acontecer desse erro grosseiro senão que em exército numeroso o
estrangeiro aterrorize as nossas gentes e que devore a uns e outros desterre? Se o sagrado
ardor fervente no meu peito não me deixa enganar, vereis que um dia (vivendo esse impostor)
por influência dele se encherá de emboabas a Bahia. Os tupis pagarão pelo feito insano e
vereis em meio à bélica porfia esses estranhos já próximos tomar por escravas as mulheres
com os filhinhos. Vereis as nossas gentes desterradas viverem entre os tigres no sertão,
cativas, tendo as tabas arrombadas e sendo levadas para além do mar profundo nossos filhos e
filhas desgraçadas. Ou quando as deixam cá no nosso mundo, poderemos sofrer, paiaiás
bravos, ao ver filhos, mães e pais escravos.
(36) Mas teme o seu trovão, e tanto o medo oprime aquele vil que [ele] não
pondera que por esse trovão inofensivo há de ver cheio de trovões o mundo. Que grande mal
será se [Caramuru] provocar o raio? Se o mundo por causa de um raio se perder, isto pode
assustar, causar espanto, porém morrerão todos é de medo, isto sim. Diante do desânimo
geral, eu sozinho irei ao encontro do relâmpago, sem mais ajuda, e quando ele disparar o falso
raio, ou descubro a impostura, ou morro como um forte. Será um banal ensaio de necromancia
com que o astuto pretende, desconfio, para fazer que a nossa tropa desfaleça antes de
conhecer a causa do terror. E se for (o que não creio) o estrondo abominável triste ameaça do
sublime Tupã, fará como costuma ao trovejar, que mate um ou outro, não mais que tanto. Se
112
Novamente (ver estrofe 35 do segundo canto), o poeta define emboaba: nome que dão aqueles selvagens aos
nossos europeus. Já paiaiás seriam os patrícios companheiros. (Ver nota 43)
136
eu vir que o raio horrível vai vibrando, a um homem como eu nada, nada atrapalha; se for
mortal quem causa tanto abalo, irei matá-lo em meio ao próprio raio.
(39) Eia, ânimo, valentes! Sus, bravos companheiros! Tomai coragem!
Afinal, que será? Embora seja um raio verdadeiro, se não é Deus que o lança, eu não temo.
Quem quer que seja o autor, se não for o Criador Supremo, não há forças criadas que nos
domem; sobre tudo o mais domina o homem. Assim disse o grande chefe e, entre os furores,
com a mão que já tinha levantada, bate nos ombros dos príncipes maiores e dá-lhes uma
palmada dizendo Orsu
113
. Também as deram tão fortes uns nos outros que assim se incitava a
multidão armada. Gritavam: Vinguemo-nos, companheiros, se forem seus raios verdadeiros.
Depois, Jararaca, num sagrado ritual, lança furioso as mãos a quantos alcança e abrindo a
enorme boca em grito feral, escuma e freme e ruge e range os dentes. Constrange todos a se
retorcerem em convulsão como feridos pelo mal hercúleo
114
. Depois, falando aos príncipes,
bafeja e lhes deseja o espírito de força.
(42) Esta cerimônia era um hábito patriótico, vestígio nacional de épocas
antigas. Tendo talvez origem na religião, corrompeu-se por acaso em mágico abuso. Retumba
o som confuso do marraque e, levantando mais alto o seu, como emblema, todos se inclinam
ao chão, como se fosse sinal de coisa mais divina
115
. O bélico instrumento, a flauta feral
correspondente ao bárbaro marraque, pôs tudo em ordem para o ataque. Marcham contra
Gupeva com o intento de saquear tudo nas cabanas, e para que assombrem a todos com
temores, rompem o ar com bélicos clamores.
(44) No entanto, no arraial do bom Gupeva, para rechaçar a invasão noturna,
convocam-se recrutas, forma-se uma leva com a tropa nacional e a aliada
116
. Enquanto isso,
Diogo age: pega na gruta a pólvora guardada e solta fogos arrojadamente, imitando o raio de
113
Conforme anota o autor, este é um rito militar com que se exortam à guerra.
114
Envenenados, como o foi Hércules, o mais célebre dos heróis da mitologia grega.
115
O poeta comenta: nas suas solenidades, os selvagens usam um marraque ou haste (já descrito na nota 111)
que, pelas circunstâncias, parece insígnia religiosa. Também era usado como cetro (nota 228).
116
O povo aliado era o dos carijós, chefiados por Taparica.
137
bombas fulminantes. A Bahia onde imperava o bom Gupeva era então povoada pelos
tupinambás que contavam com trinta mil arcos, todos empunhados por brava gente. Taparica
armara seis mil valentes e para cumprir acordo matrimonial, manda mais mil amazonas à
guerra, todas comandadas pela gentil Paraguaçu. Esta, dada por esposa a Diogo (por mais que
Jararaca se confunda)
117
, ia a seu lado a combater briosa, não temendo a multidão que inunda
o campo. Com ela, a tropa belicosa usa a popular seta, o bodoque e a funda. A amazona usa
um rígido colete, uma espada de ferro e um capacete. Guarnecido só com estas tropas (mais
recusa), Diogo sai para o campo de batalha; não sofre pela forma confusa do marchar e segue
todas as ordens. Prevenido, deixa em guarda nas tabas outra corporação maior: tupinaquis,
viatanos, potiguaras, tuminvis, tanviás, canucajaras
118
.
(48) O arraial de Diogo se alojava a não mais de duas léguas dali, quando o
sol já queimava com vivo fogo a tórrida região. E enquanto inspira o ar do brando vento,
buscando alívio numa sombra, medita sobre a grande ação, mede o perigo sem desprezar o
bárbaro inimigo. Conclui que a nova investida causa espanto e a novidade consome mais que
o tempo. Tem sim um peito-de-aço protetor, mas vendo a imensidão de inimigos, por mais
que o mosquete chova balas, reconhece dificuldade de vencer tendo notado já na bruta gente
que era tão contumaz quando valente.
(50) [Diogo] pensava assim com madura reflexão quando divisou ao redor
do outeiro densa nuvem de pó que se levantava em sombra escura na multidão. Não pára:
agüenta tudo. E sem temer a turba que observava, marcha para atingir o alto; posto à frente,
deu à tropa enfileirada por objetivo o monte. Já se avistava o bárbaro tumulto das tropas
inimigas em círculo e antes que empreendessem o primeiro assalto, levanta-se o infernal e
117
Ela fora prometida a Gupeva, mas pretendida por Jararaca, daí a observação do poeta, entre parênteses.
118
Estes eram os nomes das nações do sertão, segundo observa o autor em anotações no manuscrito.
138
mísero estrondo. Os marraques, os uapis
119
e o brado rude que todos juntos vão compondo
num só rumor fazem tanto barulho na esplanada como faz uma trovoada na tormenta.
(52) Tu, rápido Pajé, foste o primeiro a inundar o campo de negro sangue.
Por seres o mais ligeiro no salto, mais ligeira te colheu a cruel funda. Do outeiro, Paraguaçu
lhe atira. Chovem as pedras, abundantes no monte, e do lado e de cima dele abatem tudo com
tiros de arremesso. Entretanto, no combate não ficou ociosa a flecha do inimigo: encobriu o
ar. Jararaca começa a ação furiosa dando estímulo ousado ao valor nobre. E a turba, com
medo de Diogo, foge do grande tacape ao descobrir que provoca tanto estrago que qualquer
fera não o fizera entre cordeiros.
(54) Mas quando todos fugiam aterrorizados, o bravo Jacaré aparece; Jacaré
que se combatia com os tigres, não havia um que o vencesse. O batalhão de Jararaca treme
vendo a figura do selvagem arrogante; coberto com pele de pantera, ruge com mais furor que
a própria fera. Defrontam-se um com outro: a maça ardente deixam cair com bárbaro alarido,
no que acompanha o clamor da bruta gente e a terra em redor treme pelo mugido. Jacaré
aparou um duro golpe com um enorme escudo o qual ficou partido e enquanto Jararaca
desviava, quebrou no chão a maça com a qual o abatia. O caeté furioso não espera mais: como
onça que ataca pelo ar, atira-se impetuoso no inimigo e um sobre outro se atracam na peleja.
Não se pode discernir o mais forte. Em torno, a gente fraca imóvel olha os dois lutando no
abraço brutal: pé com pé, mão com mão, braço com braço. Porém, enquanto a luta persistia,
escorrega no chão úmido de sangue o infeliz Jacaré: na porfia, nem assim se solta do
adversário. Rolam um e outro no chão, usando os dentes ou o punho até que Jararaca desfere
um golpe e o triste [Jacaré], com a cabeça partida, expira.
(58) Sem esperar mais nada de Gupeva, a gente volta em rápida fuga; deixa
nas mãos do bárbaro potente toda a batalha numa ação vencida. Logo surge Diogo e, tendo ao
119
Segundo o poeta, estes eram instrumentos que tocavam nas batalhas.
139
lado a esposa protegida, desce do outeiro donde tudo observara e invade armado a tropa dos
inimigos. Quem poderá dizer quantos da turba inerte a forte mão talha em pedaços? Ao lado
dele, a valente Paraguaçu mandava muitos aos lúgubres espaços, semeando por onde o golpe
impelia troncos, bustos, cabeças, pernas, braços. A fraca gente não espera um momento
sequer para vê-la brandir a certeira alabarda
120
. [Ela] degolou com a espada o vigoroso pai
com três potentes e robustos filhos, e a dois nobres caetés dos mais valentes cuja mão se
levantava para o golpe; com duas pancadas violentas deixou-os pendentes no ar, com a mão
cortada. Quando Bambu veio assaltá-la, teve a cabeça partida ao meio. Muitos desconhecidos
despojou da vida; a quantos encontra o ferro não perdoa, como a leoa feroz se atira
embravecida no caçador se perde [seus] cachorros: entre mil dardos que a rodeiam, dolorida,
saltando voa e ruge e morde, esbarrando no que encontra; onde não pode morder, enfia a
garra. Assim a forte donzela movimenta a espada ou talvez lança mão do dardo pontiagudo;
ao ser fulminada por mil e mil golpes, rebate todos no colete e no escudo. As amazonas que a
cercam, vendo ocorrer tudo com a heroína, onde quer que os adversários se apresentem,
atacam, degolam e afugentam.
(63) Por outro lado, o valoroso Diogo subjuga a multidão dos bárbaros,
precipitando uns no fogo infernal, obrigando outros aterrorizados à fuga. Mas uns detém com
a espada, outros com gritos. Urubu enxuga o sangue da fronte e, opondo-se entre os demais ao
inflamado Diogo, restitui a batalha e anima a gente. Urubu se exercitara na mata; numa
caçada roubara um tigre à sua mãe, tendo-o junto de si domesticado, acostumara a combater
com ele. Lança-o contra Diogo. Arrebatado, o monstro ia fazer-lhe em mil pedaços entre as
presas cruéis que arreganhara, apesar das dificuldades causadas pelas armas.
(65) Mas o herói, tendo se prevenido contra o ataque da fera, enquanto esta
se atrasa ao saltar no ar, dispara-lhe um tiro de espingarda na testa. Como um raio vindo da
120
Alabarda é definida na nota 37 (segundo canto, estrofe 8).
140
nuvem, quando a fera retarda no impulso, trêmula pelo golpe, começa a vacilar, [ele] salta-lhe
em cima e corta-lhe a cabeça. Com o barulho, o fogo, o golpe horrível e a fumaça ocasionada
pelo tiro, ao ver o corpo tremendo no chão e a terrível cabeça sobre a espada, a imensa
multidão que o estava vendo, cai por terra, sem ânimo, assombrada. E alguns que se mantêm
em pé, tremendo, todos se rendem ao grande Caramuru
121
. Entretanto, Jararaca que seguira os
que tinham fugido no primeiro ataque, revolve tudo para encontrar Gupeva o qual se
escondera emboscado nas cabanas. O bárbaro procurava-o por aquele lado donde ouvira o
bélico tumulto com a intenção de destruir a enorme taba, matar Gupeva e tornar cativa sua
gente. Alguns se escondiam em tocas das árvores imensas em meio às ramas. Muitos se
emboscavam pelas selvas densas, outros em covas profundas que conheciam; por andarem em
contínuas desavenças, qualquer um recorria ao conhecido asilo. Chegando o inimigo de
improviso, sai gente de toda parte a atacá-lo.
(69) Enquanto a selva se mostrava escura, rodeada de imortais arvoredos, lá
foi Jararaca que a considerou segura, com o pé ferido por uma flechada. A planta do pé ficou
cravada no chão duro de tal maneira que, se tentasse arrancá-la dali despedaçaria o pé, mas
não removeria. Corre a turba a salvá-lo e imediatamente voam mil setas da espessa ramagem
e cada árvore ali do imenso bosque derrama-lhe um chuveiro de tiros. Cada tronco é um
castelo: ao lado e em frente a oculta multidão bramindo clama. E o restante, escondido em
cavernas, aproximava-se ao rumor da vitória. Já mal resiste o caeté cercado. O bom Gupeva
atende ao rumor e traz uma corporação armada da reserva, acorrendo invicto à declarada
batalha. Jararaca, com o pé encravado, vendo que não há outro remédio a socorrê-lo, para ter
a vida e a liberdade preservadas, arranca a seta e deixa parte do pé. Mal protegido vai nos
121
Conforme o dicionário Novo Aurélio Século XXI, na acepção 2, Caramuru é o apelido que os tupinambás da
Bahia puseram no português Diogo Álvares - náufrago que teria atingido as costas baianas em 1510 - e que
significa “filho do trovão” ou “dragão do mar”. (Ver nota 47) Entretanto, na acepção 1 fala de uma espécie de
peixe do mar, de dorso azulado ou acinzentado, da família dos murenídeos. Na língua tupi, caramuru é palavra
que se refere à moréia, o tal peixe encontradiço na região. Sobre o assunto escreve Varnhagen (1845, p.427).
Caramuru é também o nome dado aos imperialistas da Guerra dos Farrapos, no Sul do Brasil.
141
braços dos seus, mas com a maça horrenda que maneja reprime fortemente o bárbaro atrevido
para não haver quem se aproxime e o prenda. Sendo assim decidido pela sorte, cede raivoso
da cruel contenda; retirado para o sertão, não descansa, maquinando em furor nova vingança.
(73) Paraguaçu, porém, com poucas glórias, mantinha o pensamento na
vitória. Incauta, apartara-se de Diogo, interceptando a retirada do fugitivo. O poderoso
Pessicava anima a multidão que se emboscara, a fim de dar o socorro necessário caso
prevalecesse a força do adversário. Este, vendo a donzela valorosa agitar com fúria a gente
amedrontada, lança do alto de [uma] árvore frondosa um grosso ramo que cai de uma
pancada. Debaixo dele, a heroína valorosa, prostrada no chão pelo grande peso, ficou
desalentada e semiviva cativa nas mãos do cruel bárbaro. A turba feroz corre ao encontro da
donzela que, depois de deixar o peso das armas mostra a todos sua figura; quem a prende fica
ainda mais preso. Da rude multidão que corre a vê-la, há quem fique aceso de a ver tão linda.
Outro há que de a ter visto armada guerreando ainda a teme ao vê-la desmaiada. Logo que
respirou, tomando novo ar, sentiu mais alívio no coração e pouco a pouco foi recobrando o
alento, até que, voltando em si, chamou seu Diogo. Mas reparando na turba que a cerca,
reconhece estar cativa e a seguir, em outro bruto desmaio, fica absorta e quem a vê imagina
que morreu. Há selvagens que pensam em comê-la, mesmo sem a certeza de estar morta e,
com fúria voraz, acendem a gula com a chama impura contra a donzela. O feral coração da
gente dura nem costuma prezar a forma bela; morrendo qualquer mulher ou homem, choram
muito e depois assam-no e comem. Com esta intenção Paté a degolaria se a bela Margarita
que isto via escondida no mato não o flechasse, deixando-lhe suspensa a mão que erguia. Um
grupo de amazonas vira o rosto, e a peleja de novo se acendia. Paraguaçu, que jaz no meio,
era o preço da vitória neste enleio.
(79) Cotia, que sempre estivera ao lado da desmaiada heroína tanto na paz
como na guerra, para vingar ou resgatar o corpo amado, aterroriza o campo com o fulminante
142
tacape. Deixou prostrados Piá, Cipó e Açu e fez a Grande Baleia morder a terra, Baleia que
atacou vingativa tentando manter a donzela semiviva. Nem tu, Guarapiranga, pudeste fugir à
mão formosa na horrível luta; enquanto tocas a inúbia
122
horrorosa com que se incita a gente
bruta às armas, Cotia faz soar com a espada valorosa a música lúgubre que tu escutas. Faz
retumbar nos antros infernais a melodia que é digna só do inferno. Tudo [ele] concede à
amazona e já salvava a mortal Paraguaçu da gente feroz quando o grande Pessicava, que
observava o estrago feito ali pela amazona, ataca o esquadrão com fúria bravia. Afugentando
a todos, espera o momento em que com o impulso do braço forte consiga degolar Cotia com
um só corte. Ela [uma paca] espera destemida; assim que vê o golpe incerto do bárbaro feroz
atira-se velozmente em uma toca que o tempo tinha aberto em duro tronco. Porém, Pessicava
repete ali com maior ira outro golpe e desfere o tiro para acertar na valiosa Paca que seguira
Cotia nesta retirada.
(83) Enquanto o selvagem entra em luta atracando-se um com outro, o forte
Diogo ao escutar o caso infeliz da sua bela toma a espingarda e logo parte furiosamente.
Como pólvora encerrada na gruta, que virou fogo na oculta mina e que arremessa penhasco e
monte e o que tem em sua frente, assim se manda em furor o aflito amante.
(84) No entanto, Pessicava tinha sufocado a amazona infeliz e já lançava
mão de Paraguaçu a qual, aquebrantada, apenas levemente respirava. E eis que Diogo,
planejando um novo assalto, traz um tambor que soa horrivelmente e logo que atira a bala do
arcabuz, Pessicava cai e morde o chão com ira. Todavia, a tímida “manada” não espera mais:
ouvindo o estrondo e [seus] horríveis efeitos, há quem parta logo em fúria declarada e quem
lhe renda, humilde, os seus respeitos. Paraguaçu, porém, desanuviada tendo os inimigos
desfeitos com terror, acordou num suspiro e se viu livre; reconhecendo Diogo, olhou-o e riu-
se.
122
Durão explica que inúbia é uma espécie de corneta usada pelos brasileiros.
143
CANTO V
(1) Os trêmulos raios de luz iam se apagando debilmente no horizonte e a
noite se espalhava pelas terras do imenso monte ocidental. Morfeu, deixando os montes de
Aqueronte
123
, derramava-se nos seios dos mortais, mas da gente bárbara fugitiva só se
entregava ao sono a que morria. Fatigado, Diogo estava ao lado da esposa numa grande
floresta, sem dar lugar ao necessário sono na intenção de a proteger da gente hostil. Escutava
de um e de outro os sucessos, alimentando com novo fogo a chama honesta; depois de um
triunfo sobre o inimigo, faz-se doce a lembrança do perigo. Ao resplendor da lua que saía
misturava-se o horror com a piedade porque só se via [ali], em lagos de sangue, horrível e
sanguinolenta mortandade. O vale parecia igual ao monte dada a imensidade do estrago: o
outeiro onde fora feito o ataque estava mais alto com montes de cadáveres. A bela americana
não pôde vê-lo sem que a tocasse um triste sentimento o qual seria condição do ser humano
ou algo próprio do seu sexo. Chorou, piedosa, a sorte desumana dos que apartados da vida
terrena jaziam, como ouvira de Diogo, nas labaredas de um eterno fogo.
(5) E compassiva disse: Como é crível que um Deus como me descreves,
bom e amável, sabendo o que há de ser e o que é possível, nos crie para um fim tão
miserável? Antevendo um acontecimento tão terrível, não parece crueldade indesculpável dar
[ao homem] o ser, dar-lhe a vida, dar-lhe a inteligência para vê-lo arder eternamente? Quantos
poderia criar que o servissem, deixando de criar quem o ofendesse para que todos subissem ao
céu a fim de vê-lo, salvos pelas obras que produziram? Se nossos pais previssem isto aos seus
123
Morfeu, um dos deuses do sonho, filho da Noite, deus do sono, habitava as proximidades de Aqueronte, um
dos rios do inferno.
144
filhos, não seriam cruéis? Não devemos crer que a excelsa e grande bondade exceda à dos
nossos humanos pais?
(7) Então Diogo diz: São segredos da inescrutável majestade de Deus. Que
saberemos do seu modo de agir, sempre inefável, se não sabemos o que somos e o que
fazemos? Faltando-nos raciocínio claro e provável, é bom que toda a dúvida se acabe nos
conselhos ocultos de Deus porque ele pode mais do que o homem sabe. Mas se há lugar para
conjecturas humanas, sobre as possibilidades na longa imensidão, não se acharia uma criatura
que gozasse de plena liberdade. Ser inocente é pura graça, é livre concessão da Divindade; no
entanto, quem se atreve a perguntar por que não quis dá-la a quem não a merece? Desde a
origem da imensa eternidade ele ordena e rege tudo tendo começado do nada; devemos
presumir que a Divindade, quando encontra um ótimo, elege-o para tudo. E sendo em nós tão
grande a iniqüidade, não temos algo que cause inveja a qualquer um; entre todos os que
puderes ver nós fomos os eleitos por melhores.
(10) Embora seja assim, disse a donzela, que culpa têm estes que o
ignoravam? Acaso Deus não cuida ou pouco zela pelas almas que entre nós se condenavam?
Se assim não for, por que revela aos outros as doutrinas que aos nossos se ocultavam? Distaria
mais do céu a nossa gente porque há um mar entre o leste e o poente? Imputai a culpa a vós, e
a vós somente (o herói responde assim). Se conscientemente procurais sobre a terra o bem
presente, por que não procurais o autor de tudo? Para todas as coisas tendes clareza, instinto e
inteligência; somente contra Deus buscais a defesa à brutal culpa na vossa ignorância. Essa
ignorância é crime e não desculpa.
(12) Porém já desvelada da fadiga, Paraguaçu cerrava seus olhos claros,
tendo-a Diogo na fé mais confirmada ao responder, prudente, aos seus questionamentos.
Enquanto isso a bruta gente aprisionada, mostrando-se generosa com a vida, dança e bebe
com forte tripúdio e espera como banquete a cruel morte.
145
(13) Na grande cabana o triunfante Gupeva conduz o infeliz prisioneiro à
morte, e antevendo que a vida se lhe acaba, cada um lhe oferecia a mulher. Trazem o peixe, as
carnes, a mangaba, brindando com a taça cheia de licor, até que quando menos se espera dois
selvagens o prendem numa corda. Ficam-lhe soltas as mãos, que [ele] movimenta, tendo
apenas na cintura a corda de algodão como cadeia, sendo preso de um lado e de outro. É como
leoa feroz que na areia mourisca, ao ter no ventre o laço que a segura, toda se retorce da fronte
à cauda, e ruge e vibra a garra e o corpo torce. Então, muitos da gente furibunda dizem-lhe
injúrias mil, com mil insultos; ele se esforça por rebater valentemente, sem receio dos
bárbaros tumultos. Ali, chegando-se ao paciente alguém que acha coisa vil morrer sem ser
vingado, dá-lhe um cesto cheio de pedras para que, atirando-as nos outros, morra vingado.
(16) Embiara e Mexira [eram] dois fortes jovens caetés vindos de um só
parto que Ainubá dera à luz, tão semelhantes quanto tenros na idade e lindos nos gestos.
Muitas moças que os amaram antes choravam já pelos seus belos dias findos; mitigavam o
desgosto de perdê-los com a intenção que tinham de comê-los. Os da Bahia têm estes [presos]
na corda, dispostos a morrer no torpe costume de celebrar com sangue o venturoso dia das
vítimas triunfais da pátria. Embiara arremessa cuidadosamente a pedra, disparando muitas no
povo atrapalhado e apesar dos escudos que usam feriu alguns da turba circundante. Levanta
no ar uma grande pedra que tinha nas mãos e, erguendo os braços sobre a fronte, atira-a.
Lança por terra alguns, outros abate e esmaga com o peso o grande Tapira. Arremessou outras
três com tanta fúria que se as pessoas não fugissem dali com os tiros que o bravo lhes
disparava ficariam no chão em vingança cruel.
(19) No outro lado, Mexira fora imobilizado com o duro cordão; porém,
sem medo, esmaga com um pedregulho a cabeça do bárbaro Piri que o mantém amarrado. O
povo atacado com pedras foge, mas Mexira, atado com a corda e imóvel, com três pedaços de
uma enorme rocha derruba uns no chão e outros ameaça. Sai então Tojucane em campo
146
animoso e é aplaudido ao som dos seus marraques, tendo na frente um cinto de plumas e no
ombro um manto entretecido de pena. Todo pintado de negro, deixa na cor natural somente
[parte] do corpo enfurecido e para impor maior respeito pela feiúra varria o peito com o lábio
inferior. A cara, o peito, os braços (vista horrenda!) tem cortados pelos golpes cruéis, golpes
dados pela sua própria mão pois assim se recomenda para ter valor. Se a chaga apodreceu
tremendamente, deixando-o desfigurado e asqueroso, vendo a gente brutal que não reage à
dor, este então (que ignorância!) é o seu herói.
(22) Destarte, Tojucane vinha armado, pondo tudo em silêncio e pasmo.
Embiara atira-lhe um pedregulho (que ainda o tinha) o qual rompe o forte escudo. O tacape
ele não desembainha pois ornara-o de plumas com bom gosto e, encostando-se ousado à longa
corda, aborda os dois fortes irmãos, falando. Disse o bárbaro: não sois vós, traidores, que
viestes irados nos matar com furor, e sem respeito aos míseros clamores, os nossos tenros
filhos já comestes? Somos nós, disseram. Sem o laço com que agora nos prendes, saberíamos
dominar os teus furores; se não estivesse cativo e sim solto, te comeria vivo. Nem vivo nem
morto a mim não me tocarias porque se tu competisses braço a braço, ou ficarias em
imóvel de espanto ou de um só golpe (diz) no chão cairias. Se agora nos soltasses, verias bem
como logo me fugirias, [ele] responde. Não queira ser chamado de valente quem pretende
triunfar sobre um desarmado.
(25) Teria sido melhor que tivesses tido esse vão pensamento, como eu, em
campo bravio, mas tu (diz Tojucane), na mesma hora te viste derrotado e foste escravizado.
Como te atreves a gloriar-te agora com vil jactância, com soberba ostentação? A quem falta a
constância em resistir é vão dar lugar à arrogância. Dizendo isto, crava a grande espada na
fronte e faz a fera cair com golpe horrível e Embiara cai por terra ainda vivo. Mexira já morto,
porém tremendo, mordeu o chão com fúria ardente. E o matador, batendo em cima dele com o
pé diz: Morre, soberbo, e serás um grande troféu para nossa vingança e para nosso pasto.
147
Como se conta que um monte subjuga a Tifeu
124
, assim também é a planta [do pé] cruel que
oprime Embiara. E como faz a cobra junto à fonte, toda ferida, comprimindo-se em nós,
retorcendo em mil voltas a cauda e a cabeça, erguendo a língua que vibra no ar sublime, assim
se encontra em voltas o infeliz ao morrer e manda o espírito exalado às sombras.
(28) Às sofredoras vítimas se achega a chorosa tropa feminina que com dor
lamenta, circundando todas com a voz maviosa e tudo vai repetindo a plebe atenta. Depois
daquela lástima enganosa, alguns se assentam junto aos cadáveres e vão talhando pés,
cabeças, braços, fazendo as vítimas em mil pedaços. Chamam de moquém as carnes que
enterram e assam sepultadas, em fogo lento. Encobrem tudo com terra e ramas; por cima
fazem fogo com lenha. De vez em quando, viram-nas, cobrem e descobrem até que o calor as
assa. Detestável empresa que escondiam da indignação de Diogo, a quem temiam.
(30) O herói foi avisado do ato desprezível, horrível pasto de nação perversa
e pensa na maneira oportuna de impedir a bárbara atividade. Ia espalhando mil fogos de
artifícios de modo amedrontador e variado. A vil turba treme e, sem ação, deixa o pasto cruel
e foge para o mato. Descontrolada, a insana gente temia a presença do grande Caramuru.
Oprimido pelo terror Gupeva foge sem saber como resistir ao mal. Mas Paraguaçu mitiga o
novo pavor imposto à gente ao perceber o estrago, temendo que o povo espantado deixasse
abandonado o terreno.
(32) Entretanto, Jararaca [fora] conduzido pelos bravos caetés à taba
conhecida onde diligentemente curava o pé ferido e pensava em como revidar a grande
derrota. E havendo juntado a liga no conselho cujas forças ele representa, cogita sobre os
meios [de o conseguir]. Por conta de tamanha perda, crê que o grande Caramuru, encantador
do fogo, seja necromante
125
. Logo os selvagens se juntam na enorme choupana onde tramam
contra Diogo. Perguntam aos magos famosos, recorrendo aos encantos da virtude. Chegam os
124
Tifeu ou Tifon – um dos gigantes que escalaram o céu, tendo se afeiçoado a Vênus. Gigante gerador do leão
de Neméia, morto por Hércules. No antigo Egito, deus do mal, das trevas e da esterilidade.
125
Pessoa que invoca os mortos.
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necromantes com os corpos besuntados e, nos sussurros do seu canto rude, esperam que
matando o forte Diogo, também se livrem do temido fogo. Um deles, tido como sábio, disse:
não há quem possa apagar o ardente calor do trovão que excita o raio, lastimoso motivo da
nossa mágoa. Meditando sobre o antídoto contra o fogo, [conclui-se que] nada mais natural
que lançar-lhe água; dentro da água se apaga o ardente fogo: este é o meio que ocorre no
momento. Se desce ao porto, o Filho do Trovão não se atreverá contra as vossas canoas. Em
pouco tempo vós o vereis sair das águas sem força, como se já saísse morto. Não há quem não
saiba como estava quando o encontramos náufrago no porto: não usou do trovão que espanta
em terra nem fez a horrível guerra com fogo na água.
(36) Os diferentes anhangás reinam divididos entre a água, a terra e o mar;
uns apenas são potentes no ar e no fogo: causam ventos, trovões, raios temidos. Outros são
conhecidos por moverem o terremoto e pestes sobre as gentes na terra. Este, porém, que
protege o estrangeiro, não terá poder na água se é poderoso no fogo. Este discurso parece
conclusivo à rude gente segundo os seus princípios e [foi] ouvido com aplauso; na seqüência,
votam pela execução unanimemente. Toma a guerra, portanto, um novo curso e ao mar se
lança a belicosa gente: não há mais capitão nem há pessoa que não embarque em rápida
canoa. Nesses mares, os nossos [europeus] chamam canoa o barco construído com muita
madeira, escavado no meio por dez pares ou mais de remos e que “voa” impelido por eles.
Segue movido por impulso tão rápido com tropas e apetrechos militares; fugindo da batalha
ou enfrentando-a, parece mais ligeiro que uma seta. Juntando as nações do sertão, Jararaca
arma trezentas ou mais; tendo escolha porque o povo é muito, deixa em terra as pessoas mais
fracas. E sendo o ilhéu de Taparica mais próximo da baía, é atacado na esperança de que
Diogo acudiria vendo em perigo o sogro que o governava.
(40) Taparica repousava calmo, confiante em Diogo e na vitória; gozava de
uma paz tranqüila e rica depois que a guerra terminara com glória. E quando a rouca inúbia
149
anuncia a luta, tão longe tinha as armas na memória que, ignorando no sossego os seus
perigos, foi se meter nas mãos dos inimigos. De repente, prendem o chefe desarmado
atacando a taba descuidada. Com chama e fumaça dão infeliz aviso sobre o assalto bárbaro ao
bom Diogo. Nem seria preciso motivação maior: vendo a ilha tomada pelos bárbaros, toma
apressadamente as armas e as canoas, sem mais [gente] que Paraguaçu e cem pessoas.
(42) Tem vinte bombas cheias de pólvora que em parte já havia salvo das
naus e nas areias [havia] quatro canhões de ferro retirados do mar por bons nadadores.
Prepara metralhadoras, palanquetas
126
e correntes, pistolas e fuzis; decide lançar nas [forças]
contrárias três canoas de pólvora e resina. A vasta armada forma-se em meia-lua tentando
encerrar Diogo no meio e as nuvens condensadas de flechas esconderam a áurea luz do sol. A
turba irada do herói estava firme e, coalhando-se o mar cheio de barcos, retumba em toda a
baía o eco da gente brutal que gritava em redor. Repentinamente vê-se o bronze horrendo
soltar tiros e, sem mais esperar, dispara fogo a metralha que tudo ia varrendo, metendo a
pique logo dez canoas. Muitos, tremendo de horror saltam no mar; alguns deixam o remo,
com as mãos ardendo pelas bombas que o feroz Diogo lhes lança; outros são alcançados pela
espada de um vizinho.
(45) As canoas vão flutuando em confusão, que a gente não conseguia
comandar, e uma vai esbarrando na outra na desordem que a todas embaraçava. As três
[canoas] incendiadas iam se arrastando; um dilúvio de fogo ardia na água com tal fumaça no
intenso calor que, cobrindo-se o ar, fervem as águas. Como na selva densa na qual se ateia o
fogo, a chama sobe em colunas de fumaça, e a labareda que pelo ar ondeia vai passando de
galho em galho; assim se derrama um dilúvio de fogo na baía cheia de canoas. E o bárbaro,
por terror, espanto e mágoa, foge à morte pelo fogo e escolhe a da água.
126
Palanquetas – barras de ferro terminadas por duas balas fixas que eram lançadas por peças de artilharia nos
combates navais.
150
(47) Entretanto, Jararaca estava em terra onde prendera o incauto Taparica;
raivoso, observava toda a frota naval ficar em cinzas nas praias. A tropa que a compunha foge
dispersa e logo que a vitória se anuncia, toda a ilha, que as armas arrebata, subjuga o bando do
caeté ou mata-o. No lago ingente não se avista uma canoa sequer dos inimigos e o mar se
cobre de mil cadáveres sem que a infeliz gente saiba para onde fugir. Gupeva cerca a praia
dificultando a fuga para o continente; estende o braço em grande parte da água. Rende-se a
liberdade com a vida.
(49) Não [é] assim com Jararaca porque na praia põe por escudo o infeliz
Taparica e ameaça matá-lo quando Diogo chegasse em terra, o qual fica surpreso. A filha [de
Taparica] vê o impasse e desmaia sobre as mãos do esposo, suplicando pelo pai. Diogo vê-se
em lance embaraçoso sem saber como salvar o desgraçado. Quisera atirar em Jararaca, mas
duvida, vacilante, na intenção de matá-lo. Vendo a vida do sogro ameaçada e quase sem
alento a esposa amada, três vezes dirigiu a mira e três vezes se deteve a mão imóvel. E
retarda-se a ação em terra e mar: Jararaca com o bastão, ele com a espingarda. Que mais
espero, diz; feri-lo é incerto, mas é claro que na mão desse inimigo, em qualquer caso, enfim,
o dano é certo, e cresce na demora o seu perigo. Dizendo isto toma por alvo descoberto a
fronte do adversário e, naquela circunstância, dispara o tiro e a bala lhe atravessa a cabeça de
um lado a outro. No mesmo instante Jararaca cai por terra tal [qual] penhasco que do alto se
despenca quando o raio que o abateu fulminante o arrancou do alto da elevada rocha. A terra
se banhou num raio fumegante com o escuro sangue, onde pondo a boca, [o índio] mordia
raivoso a areia em que caíra e o fraco alento com a vida expira.
(53) Já neste tempo se encontravam os amigos Taparica e Diogo em terno
abraço, vendo por terra o pérfido inimigo que, tremendo, ocupava um vasto espaço.
Paraguaçu, aflita no perigo, tendo ficado sem sentido no horrível incidente, torna a si do
desmaio e vê o piedoso pai tomá-la nos braços, com o esposo. Alegre, Gupeva vem do
151
continente em canoas até [a ilha de] Taparica congratular-se com o herói valente que fica
calmo sendo morto Jararaca. A insana gente pasma ao ver o estrago; abaixa os arcos, suplica a
paz e, respeitando o poderio superior, compensava a paz com a obediência.
(55) Chegaram do sertão dez mensageiros em nome das nações guerreiras.
Com pactos verdadeiros confirmam a inteira sujeição ao lusitano. Entre eles vêm os príncipes
em primeiro lugar, conforme os rituais pátrios. Aclamam de modo festivo o Filho do Trovão
como príncipe de todo o sertão. Diogo não hesitou, imaginando quanto era importante para
domar a gente bruta aceitar o comando excelso das nações; prudentemente, considera os fins
consigo mesmo. Ouve-se o seu pronunciamento à platéia que a bárbara multidão humilde
escuta: fica proibido todo homicídio, sendo inibido com pena de morte. Porém, ao ver
arraigada a bárbara paixão na gente cega, julga que convém abrandar a grave pena decretada
para o crime, se ocorrer. Para tudo a gente bárbara, [quando] humilhada, só se recompensa na
gula cruel, sendo permitida na educação primária por bárbara vingança carniceira.
(58) Não tardou logo a ocasião de [Diogo] vê-la porque, apenas deixara a
companhia, o próprio Taparica faz o cruel convite, sem temê-lo. Fora em Bambu que, ao
ponto de prendê-lo, lançara-lhe as mãos com ousadia. O chefe o conservava preso na canoa
para pasto abominável da bárbara caterva. O desditoso estava acorrentado e exposto a mil
insetos que o mordiam; nem era possível ver o corpo ensangüentado pois os marimbondos
127
o cobriam todo. Corria o negro sangue derramado das cruéis picaduras que lhe abriam e ele,
no entanto, imóvel em tosco assento, parecia insensível no tormento. Diogo, vendo o quanto o
infeliz padece no modo mais desumano de penar, a tolerância lhe parece maior do que possa
caber num peito humano. Reconhece como autor do crime o cruel sogro de coração tirano;
oferece a Bambu (que a morte ameaça) socorro amigo na cruel desgraça.
127
O autor explica que marimbondo é espécie de vespa mordacíssima no Brasil.
152
(61) Perdes tempo comigo, disse o selvagem
128
. Pelo que vês e ainda mais
verás, não quero a liberdade que me dás: faço gosto na dor que tolero; assim espero vingar-me
do inimigo, disse. E sem se mexer, suporta firmemente as picadas dolorosas como se fosse
pedra ou rocha dura. Diogo diz: se o motivo pelo qual temes é porque receias padecer como
escravo e tomas este [sofrimento] em que gemes por menos mal do que uma vida em míseras
cadeias, desiste da idéia sem fundamento pela qual tremes. Posso assegurar-te, podes crer,
abandonando a obstinação do medo banal a vida e a liberdade te concedo. Nesta hora o
selvagem desvia com a mão um espesso bando de insetos de seu rosto e manda a Diogo, que
assim se condoía, em resposta um alegre sorriso. De que te admiras tu? De que serviria dar ao
reles corpo condição mais branda? Corpo meu já não é; apesar de estar comigo, na verdade
ele é corpo do inimigo. O espírito, a razão, o pensamento sou eu e nada mais. A carne imunda
forma-se a cada dia do alimento com o qual se nutre e se desenvolve. Vês tu aqui a carne que
mal sustento? Não a consideres minha: [ela] só se mantém por causa das que tenho comido
dos adversários; minha não é, mas dos inimigos. Continuamente me pastei da carne de pais e
de seus filhos; dela é composto este corpo que no presente animo, por isso dos tormentos faço
gosto. E quanto maior pena a carne sente, então mais me consolo, supondo ver-me bem
vingado do inimigo, tendo este corpo que é seu tão maltratado.
(66) Parece impossível ao sábio herói [acreditar] no que vê, no que escuta. É
incrível como com a carne mortal tão dolorida a nossa fantasia vence a dor. Magoado
interiormente se condói de ver que nada abala o infeliz que mostra tão bárbara ignorância na
brutal e rara persistência em tal valorização.
(67) No entanto, no terreiro as nações sertanejas tinham organizado festiva
pompa elegendo Diogo seu príncipe, o primeiro, com aplauso geral da comitiva. O guerreiro é
ornado de plumas e, em triunfo, cativa a multidão. E levantado sobre os demais num trono,
128
Durão esclarece: um importantíssimo professor da nossa corte me assegurou ter sucedido caso semelhante
(recusa de ajuda) no Pará, no reinado do fidelíssimo rei o senhor dom José I, onde naquele tempo este professor
ocupava cargo muito distinto do real serviço.
153
cingem de pluma o vencedor coroado. Em volta, como em círculo, [se acham] postados
sessenta principais das nações ferozes e em nome de seus povos humilhados rendem sinceras
submissões com temor. Estando os demais calados, Tujucupapo disse: Grande Filho do
Trovão que imperas combatendo em terra e mar, tudo domaste com o raio horrendo. Não, em
nossos peitos não te excederíamos na varonil firmeza, na guerra humana. Nem teríamos os
efeitos da morte se a contenda não fosse sobre-humana. Rendemos-te, fiéis, nossos respeitos
depois de constatarmos o teu valor; nos teus combates todo o céu te assiste e a quem socorre o
céu, quem lhe resiste? As nações do sertão, já convencidas, põem a teus pés os arcos e as
espadas. Interrompe o teu raio e protege as vidas sujeitadas ao teu império a partir de hoje. Se
tens submetidas as procelas, as chuvas e as trovoadas, como creio, não espantes com fogo a
humilde gente, mas faze-nos gozar da paz clemente. Sem replicar, sob teu comando estão os
povos deste vasto continente e farás, com teu nome, que te obedeça a valorosa gente em
qualquer parte. Por favor, faze que hajam de amar-te assim como a tens com terror feito
obediente. Se na esfera escura o céu troveja, também manda a luz formosa e pura.
(72) Respondendo ao discurso, disse o herói prudente: Não foi acaso, foi
destino querer o grande Tupã que a vossa gente conhecesse a mão do poder divino. Se
receberdes o sagrado ensino do céu que sobre vós brilha reluzente, sobre ele reinareis num
trono eterno, gloriosamente livres do tirano inferno. Porém, se continuardes na ignorância
rude, incapazes de entender mais, buscai com a razão maior virtude, implorando o favor do
trono santo. E quando a vossa fé o permitir, vereis no lugar do feitiço da serpente florescer
nesta pátria, de imediato, uma imagem do ameno paraíso.
(74) Assim falou o herói generoso. A multidão imensa, em sinal de prazer,
com grata dança vai em fileiras com a mão estendida, fazendo várias mudanças com os pés.
Bailando, levantam uma perna e uma turma avança sobre a outra a dar idéia dos bélicos
ataques, retumbando entretanto os seus marraques. No Brasil, os necromantes respeitam um
154
marraque venerado e o têm por insígnia nacional, aceita pelo povo que o considera um
símbolo sagrado. Um selvagem eleito sacerdote, dedicado ao ministério em seus cultos, a seu
modo pôs fim a todo aquele espetáculo, bafejando nos príncipes ao redor.
CANTO VI
(1) Terminada a guerra, então Diogo descansava no seio de uma paz
dourada; o pavor do sulfúreo horrível fogo trazia a gente bárbara assombrada. Acorrem logo
as distantes nações desde as mais afastadas regiões e tendo Diogo por viva imagem do trovão
vinha todo o sertão dar-lhe homenagem. Muitos deles, dos povos subjugados, tinham visto o
efeito da terrível chama; outros, famosos pelas suas heróicas ações, vinham somente por
terem sido convocados. Trazem plumas e bálsamos prezados e outra rude opulência, que o
povo ama, com os presentes da americana Ceres
129
, oferecem-lhe as filhas por mulheres. Era
antigo costume dos bárbaros: quando algum capitão foi bravo em guerra ou se julgavam que o
regia um deus, aparentá-lo aos principais da terra. Todos que presumem nobreza no grande
Caramuru (que tudo aterroriza) procuram, como nobre destaque, ter na sua linhagem a
descendência.
(4) Tuibaé, antigo chefe dos tapuias, oferece-lhe a celebrada Tiapira e,
dando-lhe a mão da filha, estabelece amigavelmente uma ilustre aliança. Xerenimbó trazia-lhe
a formosa Moema já negada a muitos chefes para dar-lhe esposo digno da origem famosa de
seus pais. Muitas outras donzelas brasileiras pretendiam a mão do branco Diogo, ou por
129
Na mitologia antiga, Ceres é filha de Saturno e de Cibele; deusa latina da agricultura, é identificada com a
Demeter grega. Seu nome passou para a linguagem metafórica em expressões tais como: dons, os presentes, os
tesouros de Ceres, por trigo, os cereais, as searas. No poema, a Ceres americana é a terra brasileira de campos
férteis e produções abundantes.
155
notarem suas habilidades soberanas, ou pelas grandes ações dele que ouviam. A todos ele deu
mostras de educação, sem contudo se obrigar a atendê-los, mas para não ofender as pessoas
rudes, trata os pais e os irmãos como parentes.
(6) Porém, parecia estimar especialmente Paraguaçu com jeito de esposo,
mostrando-lhe no afeto carinhoso a sincera afeição que sentia na alma. Amava nela a valentia
e o gênio dócil com que aceitava a religião. Este amor ocasionou, como é costume, inveja em
algumas e ciúme em outras. Todas aborreciam a bela dama e conspiravam ferozmente em
tirar-lhe a vida. Mas ela, percebendo o horrível intento, aborrecida pretende deixar a pátria. E
pensando na viagem à Europa deseja renascer para uma vida melhor. Esta vontade santa com
justa idéia anima Diogo a deixar aquela areia.
(8) Agitado com o novo pensamento, o pio lusitano entranhou na margem
do vasto rio e, invocando a imagem [do santo] portentoso, chama-o de São Francisco. E
estando o sol a pino, no calor, ao buscar um lugar de sombra, foi achar para refrigério calmo
uma lapa que esconde alto mistério
130
. Por mil passos a milagrosa montanha dilatou seu
domínio em toda a sua volta, obra da natureza prodigiosa quando o globo terrestre foi criado.
Ali havia uma vasta concavidade, espaçosa, onde o Criador delineou um verdadeiro templo
como os nossos, com capela maior, nave e cruzeiro. O grande cruzeiro se estendia por trinta e
três passos de largura; o comprimento da construção se prolongava por mais de outros oitenta
[passos], um lugar que ser humano não pisara. A fachada [é] de pedraria e o pavimento
interior, de terra mole; levanta-se de jaspe a grande porta entre torres fabricadas de mármore.
Dentro vêem-se magníficas capelas sustentadas por esplêndidas colunas. Pelo teto, entre
nuvens, giram estrelas e há tribunas de um lado sobre o rio as quais, servindo ao mesmo
tempo de janelas, dão luz a todo o templo. Se juntares quantos prodígios o lugar encerra,
[verás que] maravilha maior não cobre a terra. Ali se vê capela de entalhe nobre feito com
130
Diz o poeta que esta é a celebre igreja da Lapa que parece ter sido preparada pela natureza como um gracioso
e admirável edifício. E manda consultar o historiador Sebastião da Rocha Pita a respeito do caso.
156
desenho estranho e variado onde esculpido em mármore existe um natural e belíssimo
Calvário. Vê-se a base da cruz, mas nada sobre [ela]; é de jaspe ainda melhor que Egísio ou
Pário. Ao lado [há] um quadro em proporção distinta onde está pintada a mãe e o discípulo.
(13) Diogo, ao ver tanto prodígio, arrebatado pelo estranho espetáculo, sente
no peito um temor santo não sei por que sagrado e oculto sentimento. Depois, rompendo num
devoto pranto, prostrado em terra adora o Deus imenso que, quando criara o mar e a terra,
lançara o alicerce da grande construção. Eis aqui preparado o templo (disse); falta a fé, falta o
culto necessário. E ao contemplar o feito de Deus vejo que tudo é meio comum de salvação.
Desta intenção parece ser exemplo este insigne prodígio extraordinário onde parece que o
templo oculto tem preparado o lugar e espera o culto. [Deus] quis mostrar porventura nesta
imagem que não desampara esta gente selvagem e que oferece a qualquer criatura humana o
remédio da cruz. Que a estes dera a cura com seu sangue, não repudiando os instintos que
têm. Neste empreendimento nos deu por advogada, preparando o lugar, a Virgem Santa.
(16) Ó grande Senhor! Queira vossa bondade suprimir neles e em mim tanta
miséria, pois tendes vontade de salvar a todos; por estes sinais a mostrais verdadeira. Se
olhardes para a nossa iniqüidade, havereis de punir tanta gente; por causa da antiga culpa
pelos seus desgostos ninguém parece justo aos vossos olhos.
(17) Dali, [Diogo] vai sulcando o rio caudaloso, buscando o conhecido
recôncavo para ver se a enfunada vela segue navegando nas ondas do profundo rio no rumo
oriental. Não temeria atravessar o mar espaçoso na leve canoa se o perigo, que considera
imenso, não fosse temer pelo dano a ser causado na esposa. Ergue-se sobre o mar alto penedo
que tem na base uma angra, amparo das naus. Nela as ramas emaranhadas de verde aparência
provocam uma impressão rara. Ali [um] morro coberto de arvoredo serve de farol a quem
transita pelo mar; os peritos da costa dão-lhe o nome do glorioso apóstolo das gentes
131
.
131
Referência ao apóstolo Paulo que empresta o nome à imponente cachoeira de Paulo Afonso que fica no rio
São Francisco, próximo de sua foz. É nome também do citado monte.
157
(19) Aqui Diogo vê um casco que encalhara onde se esconde na água
horrível penha porque desconhecendo a costa, se arrojara sem ter esperança de socorro. Vê
uma chusma [de pessoas] em terra que se salvara e que se empenha em cativar os selvagens. E
presumindo que era isto, “voa” remando a defender os seus. Teme que, enganados, cedam aos
cruéis náufragos estrangeiros ou que fiquem sem armas presos nas mãos desses penhascos
ambulantes. Faz-lhes sinais e deixa-os avisados, fazendo ver as armas rutilantes da areia
infinda, e do cruel perigo; oferece-lhes o seu socorro amigo. Soltando o tiro do canhão fez
com que se ouvisse o formidável barulho e ao soar o eco do tambor que fora tocado, dispara a
horrível bomba ao mesmo tempo. O estrangeiro que ouvia tremeu de espanto: um pasma,
outro foge, aquele tomba. E já enxergando o grande Caramuru, correm todos humildes ao seu
comando. Juntando-se à comitiva do bom Diogo, socorrem com presteza a embarcação
avariada, retirando das águas as pessoas semivivas e conduzindo-as cuidadosamente à praia
famosa. Salvou-se-lhe a equipagem toda viva e, a fim de prepará-los para a grande derrota,
[Diogo] faz os selvagens ajudarem a aflita multidão, acudindo-a piedosamente.
(23) Paraguaçu, porém, por caridade, cuida em prover de roupas e sustento e
tanto quanto lhe é possível, de improviso, restabelece-lhes as forças com o alimento. Depois
que se saciaram do necessário, recordando-se do acontecido, Diogo logo que vê a turba
contente e unida pergunta: De onde vêm? Aonde vão? Quem são?
(24) Dentre eles, um que parecia [ser] o chefe e dominava sobre os demais
da multidão, depois de agradecer-lhe pela cortesia falando na língua castelhana, disse: Somos
da nobre Andaluzia onde o chão sevilhano o Bétis
132
lava. Se ouviste o nome de Orelhano
133
,
dele somos amigos e viemos do Reino Peruano. Se chegou a vós a fama do valoroso domador
132
Antigo nome do Guadalquivir, rio da Espanha que banha Córdoba e Sevilha.
133
Posteriormente grafado Orellana (Francisco de); este foi um célebre aventureiro espanhol, capitão de
esquadra, que acompanhou Pizarro na conquista do Peru e descobriu o rio Amazonas, em 1541.
158
das províncias peruanas e se Pizarro
134
, tão famoso no mundo, não é ignorado pelas gentes
lusitanas, fomos mandados por ele pelo grande rio cheio de ondas que desce em correntes
loucas da grande cordilheira a qual, sobranceira, aqui separa o ocaso do oriente.
(26) Navegamos buscando novas ilhas e novos mares, depois de longos
dias; às vezes com procelas, às vezes com brandos ares, chegamos ao conhecido oceano. Os
perigos, os casos singulares, que por mais de mil léguas toleramos eu não imaginara, depois
de estar errante no mar, que tivesse o peito de aço e a voz de ferro. Descendo o rio em curso
imenso, vimos sessenta ou mais línguas diferentes, incógnitas nações, bárbaras gentes e um
povo inumerável, vasto e denso. Vimos montanhas, mil campos verdadeiros e um terreno tão
extenso nas margens que poderá ele sozinho neste hemisfério formar um império com tanto
povo. Mil vezes combatemos contra canoas belicosas no rio e mil em terra, perseguidos por
tropas numerosas que ocupavam talvez o vale e a serra. Não cessava nas margens perigosas a
dura guerra de mil bravas nações até que, entrando nas zonas tropicais, chegamos à região das
amazonas
135
.
(29) Um vasto esquadrão de tropa feminina, em postura e aspecto guerreira,
percorre a ribeira com furor, determinada a atacar nossa frota. Ali o sexo feminino domina
sobre o sexo viril, turba grosseira; porque a lenda o diz, aquele rio nos fez recordar o antigo
Termodonte
136
. O leão espanhol já teria dominado o território infausto das amazonas se
Orellana não tivesse morrido por causa do clima desfavorável, exausto e em mil fadigas. A
gente pois que perdera o capitão, não podendo esperar sucesso faustoso, retorna ao solar
pátrio navegando sobre este bergantim que ali flutua.
134
Francisco Pizzarro (1475-1541) – famoso aventureiro espanhol que conquistou o Peru com o auxílio de seus
irmãos Gonçalo e Fernando. Foi morto em Cuzco pelos partidários do seu rival Almagro.
135
Amazonas – fabulosas mulheres guerreiras que habitavam as margens do rio Termodonte na Ásia Menor.
Segundo a tradição, rejeitavam seus filhos (homens) e queimavam o seio direito para colocarem o arco com mais
facilidade. Pesquisadores modernos dizem ter encontrado gente semelhante nas margens do rio Maranhão, que
eles chamaram rio das amazonas porque em suas duas margens havia mulheres que combatiam tão valentemente
como os homens. Hoje é o rio Amazonas, que nasce no Peru e tem boa parte no Brasil.
136
Termodonte – rio da Trácia, região ao norte da antiga Grécia, hoje o sul da Bulgária, célebre pelas amazonas
de suas margens.
159
(31) Não duvideis, responde o herói clemente, de achar em mim socorro
poderoso pois achais quem, como vós, aprendeu a ser piedoso na desgraça do mar fremente.
Tendes mão amiga, madeira e gente; o casco que vedes estragado, reformando-se, permite que
volte do nosso céu à desejada Espanha e ao vosso Bétis. Disse isso e ordenou à turba
americana que ajudasse o artesão na labuta naval e tanto quanto lhe permite a força humana,
faça que em breve o navio siga seu rumo. Não se demora muito a gente espanhola pois o
vento favorável a convida e obriga. Soltam a branca vela ao fresco vento e vão cortando o
líquido elemento. [Então] Diogo diz: Felizes vós, afortunados a quem é concedido retornar
hoje à cara pátria, aos abraços desejados, depois de tanto tempo a ter perdido! Enquanto isso,
eu, nestes climas distantes me vejo impedido de seguir-vos. Temo confiar em tão débil
embarcação a vida que tenho e trocá-la por outra.
(34) Dizendo assim, vê lutando com calma formosa nau de gálica
137
bandeira que parece estar buscando a terra e mete a proa sobre a própria esteira. A canoa vem
seguindo e dando sinais até que aborda a embarcação a vela e dá mostra evidente de paz e a
nau retorna às praias da Bahia. Entretanto, [Diogo] dava o último abraço em Gupeva e
Taparica; à forte esposa, revela a intenção de levá-la para ver a região famosa da Europa.
Dividida entre o alvoroço e a pena, Paraguaçu fica contente, mas saudosa, e quando começa a
chorar de saudade pela sentida fuga, o amor lhe enxuga o pranto.
(36) Conta-se então que a multidão formosa das damas que pretendiam
Diogo, vendo avançar a nau no caminho cheio de ondas, já perdiam a esperança de o alcançar.
Nadando entre as ondas com ânsia furiosa seguiam o esposo pelo mar. Nem tanta água
flutuante em vagas que as banhava apaga o ardor de seus peitos. Copiosa multidão da nau
francesa corre a ver o espetáculo, assombrada, e desconhecendo as circunstâncias da estranha
atitude, fica pasmada diante do grupo feminino que nada. Uma delas que precede as outras em
137
Relativo à Gália antiga, território onde hoje se instalam principalmente França, Bélgica, Suíça e parte da
Alemanha (Gália Transalpina).
160
gentileza não vinha menos bela que irada: era Moema, que gemia de inveja e já próxima da
nau se apega ao leme.
(38) Bárbaro (a bela diz), tigre e não homem... Porém o tigre por cruel que
brame acha forças no amor que enfim o domem; só a ti não domou, por mais que eu te ame.
Fúrias, raios, coriscos que consomem o ar, como não consumis aquele infame? Mas pagar
tanto amor com tédio e asco... Ah! que o corisco és tu... raio... penhasco. Bem puderas, cruel,
ter se esquivado quando eu confiava em tuas enganações. Escutavas-me altivo sem me
ofender como se prestasse um favor naquele momento. Porém deixavas-me o coração cativo
ao fazer-te aos meus rogos sempre humano. Fugiste-me, traidor, e assim tão crua morte paga
meu fino amor? Sentiria menos tão dura ingratidão e esse destino cruel me seria doce se não
visse transparecer o meu despeito essa indigna, essa infame, essa traidora. Seguiria a ti como
serva, como escrava, se não temesse ter de chamar de senhora a vil Paraguaçu que, sem o
saber, me é inferior, é néscia, é feia. Enfim, tens coragem de me ver aflita a flutuar moribunda
entre estas ondas; nem o amor do passado incita teu peito a um ai somente, com que aos meus
ais respondas. Bárbaro, se esta certeza teu peito atiça (disse, vendo-o fugir), ah, não te
escondas, dispara sobre mim teu cruel raio... E quando vai falar mais, cai num desmaio.
(42) Perde o brilho dos olhos, pasma e treme, pálida na cor, e de aspecto
moribundo. Com a mão já sem vigor solta o leme; entre as salgadas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar que irado freme, torna a aparecer das profundezas. Ah, Diogo cruel,
disse com mágoa. E sem mais ser vista, afundou na água. Choraram as ninfas belas da Bahia
que a nado acompanhavam Moema e vendo que, sem dor, dela se afastavam, retornam
furiosamente à branca praia. O herói branco nem pôde vê-las sem [sentir] pena por tantas
provas de amor que lhe davam. Nem mais se lembra do nome de Moema ou como amante
chore por ela ou agradecido suspire.
161
(44) “Voava” então a nau na correnteza azul impelida por um vento suave; o
espaço enorme do brilhante mar parecia igualmente um campo ameno. Encrespava-se a onda
docemente como brisa leve quando agita o feno; e como o prado tranqüilo costuma rir,
imitava as boninas com a escuma. Duplessis
138
, que governava os franceses, estando à popa
em uma noite clara a escutar os casos de Diogo, admira-se do naufrágio inesquecível. Depois
perguntava ao herói prudente quem achara o Brasil, como e quando. O lusitano império
ganhara tanto tesouro no recôndito hemisfério? Dois monarcas, responde o lusitano, já sabes
que buscaram novos mundos no ocaso e no oriente, pelo oceano, depois de haver domado a
Líbia ardente. E que aonde não chegou grego ou romano navega o forte espanhol e a lusa
gente; instruídos com técnica em náutica, descobriram outra grande parte do mundo. O
português impera do Tejo ao China
139
, de um pólo ao outro o castelhano domina e os dois
extremos da redonda esfera dependem de Sevilha e de Lisboa
140
. Mas depois que Colombo
trouxera sinais (Colombo, de quem a fama corre o mundo) deste novo admirável continente, o
luso ardente desentende-se com Castela.
(48) Já se dispunham a guerra sanguinolenta, porém o pai comum aos dois
povos os intima e [dá] arbítrio na contenda duvidosa: entrega a parte competente aos reis. Da
imperiosa Roma, Alexandre pacifica a ambos e os anima ao empreendimento. Traça uma
linha [imaginária] no céu profundo e reparte o mundo entre Fernando e João
141
. Na grande
parte que coube ao luso está contido o precioso Brasil, país cheio de gentes e de prodígios: [é]
a porção mais rica da feliz América. Aqui, no meio do vasto oceano, por causa de horrível
tormenta, o ilustre Cabral por faustoso acaso aplica à proa dezesseis graus do nosso ocaso. Da
138
João Duplessis – navegador francês, colonizador da Guiana Francesa, morto em 1635.
139
Tejo é o principal rio de Portugal e o China é, na verdade, o mar da China, uma parte do oceano Pacífico,
compreendida entre China, Indochina, Indonésia, Samatra, Bornéu, Filipinas e Formosa.
140
Sevilha era, então, a corte (sede do governo) de Espanha, conforme anota o autor no manuscrito.
141
A partir de 1492, a Espanha torna-se a grande rival dos portugueses na corrida para as Índias. Enquanto
Portugal tentava pelo Oriente, os espanhóis iam pelo Ocidente; daí a chegada de Cristóvão Colombo à América
em outubro daquele ano, sob os auspícios dos reis de Castela. Após mais de um ano de negociações, os dois
países assinaram o Tratado de Tordesilhas que regulava a posse das novas terras. Dominam então nas grandes
navegações Fernando o católico, da Espanha, e dom João II, da dinastia de Avis, de Portugal. Daí a referência
nos versos de Santa Rita. O papa Alexandre VI foi quem mediou a questão.
162
nova região que atento observa admira o clima doce, o campo ameno e entre o arvoredo
imenso a fértil erva na viçosa extensão do precioso terreno. A praia está coberta por grande
multidão de povo desconhecido que com o aceno (porque a língua ignorava) convida à paz,
erguendo o troféu do autor da vida. Era o tempo em que a verde planta que murchara no
inverno renasce alegre com os raios solares, fazendo pensar no tempo em que o rei eterno
triunfou sobre a morte. Tão sagrada lembrança incita a frota a celebrar o sacrifício do
vencedor do inferno, cedendo à fé venerável a Paixão que naquele tempo se sucedera.
(52) Em frondosa mata o lusitano construiu um altar no prado extenso de
onde o povo imenso da esquadra lusitana pudesse cultuar o mistério soberano. O sagrado
incenso queima odorífero ao rei triunfante do infernal tirano e a vítima do céu mostra a paz
para aquela gente e a nova terra santifica. É notável que o americano ali participe do
sacrossanto altar em ato sublime e tanto a gente simples a encenação entende que parece
considerar sagrado o ritual. Alguém, observando o celebrante
142
, faz um gesto de arremedo e
orando exprime-se: une as mãos e levanta-as e depois desce-as e quando o vê voltar, tamm
se volta. Como o peloso animal [o macaco] que o mato hospeda às vezes espia as nossas
ações e quando vê fazer, insistente, disposto a observar tudo, logo imita, assim o gentio
simples parecia. Nem um pé, nem um passo dali arreda: mudo e atento ao santo sacrifício,
fazia tudo o que via os outros fazerem.
(55) Então, depois que o sacro orador prega eloqüentemente à multidão,
reforça a religião com ânimo valente já que fora eleito pelo nobre povo para propagá-la. A
gente cristã participa da ceia e recebe a bênção com fiel respeito. Dizem que Cabral, que os
convocara, subindo num elevado, assim falara: Gloriosa nação, que a terra vasta vais livrar do
paganismo imundo, a quem este mundo antigo já não basta, nem a imensa extensão do mar
142
Provavelmente o frei Henrique Soares de Coimbra que, segundo os historiadores, rezou a primeira missa no
Brasil, em 26 de abril ou 1º de maio do ano da descoberta (1500), durante os dez primeiros dias que a esquadra
de Cabral aqui permaneceu.
163
profundo! Neste desconhecido país que o mar separa [de nós], teu cuidado tem por campo um
novo mundo. E se tiveres muita fé, acharás outro mundo se o outro se esconder.
(57) Oh! Profundo conselho! Abismo imenso do poder e saber do
Onipotente! Que estivesse escondido no planeta extenso tanta parte do mundo à sábia gente!
Cinqüenta e cinco séculos sem conhecimento das nações deste vasto continente e em tanta
indagação feita pelos sábios não cair em suas mentes nem suspeita! Mas combine-se o dia, o
tempo, a hora em que a alta Providência para cá nos guia quando à ignorância Cristo dá o
perdão ao morrer na cruz, no dia propício. Na bandeira vencedora do mar espalhamos as
chagas [de Cristo] com fervorosa fé pois com elas quis à Igreja que enfraquece em sombras,
vir neste dia oferecer seu sangue. Goza de tanto bem, terra bendita, e tem teu nome na cruz do
Senhor; e quanto mais tarde a luz te visita, tanto mais abundante ela seja. Sejas chamada Terra
de Santa Cruz, maduro fruto da Paixão, renovo da fé na Igreja pelo fruto nobre que nos
mostrou no dia em que te descobrimos.
(60) Dizendo isto, ajoelha-se e coloca a cruz sublime num outeiro. O
exército formado se prostra humildemente diante do signo sagrado, pondo a boca em terra.
Pasma o gentio e admira com espanto a melodia com que o céu é invocado. Pios cantores
entoam [um] hino à cruz, respondendo as tropas e os tambores. Depois, porém, a gente
chamou a terra de Brasil, não da Cruz porque atraída por outra madeira que produzia
excelentes tintas, menos se lembra da [madeira] que lhe deu a salvação. Assim o mortal ama o
bem presente, assim esquece o nome que o convoca para os interesses da futura glória, atento
apenas aos bens da [vida] transitória.
(62) O bom Cabral observa todo o panorama da imensa costa e pelo clima
puro, pela abordagem tranqüila e mar quieto, chama a enseada em que entrou, Porto Seguro. E
olhando com saudade o doce objeto do seu destino, lamenta-se sombrio que, pela empresa a
que mandado fora, não se permite mais demora da armada. Manda depois ao rei português um
164
aviso do lugar descoberto. Manuel, então reinante, não demora a enviar um cosmógrafo que
fora treinado na escola que o famoso infante
143
tinha criado para a ciência náutica. E ordena
que parta para o Brasil Américo
144
, de quem o mapa deu nome ao continente. E para ter quem
interprete aos nossos a obscura forma do desconhecido idioma, deixa em terra alguns
condenados à crua morte pelos delitos cometidos. Promete-lhes a vida como prêmio se com
peito forte permanecerem a esperar no sertão nova viagem, aprendendo os rodeios da
linguagem [indígena].
(65) Depois, com acenos aos selvagens, recomenda aos seus ali deixados
que, em caso de evidente perigo que reconheçam, deixa-lhes armas para ofensivas de guerra.
Dá-lhes objetos facilmente permutáveis ali e que possam tratar por compra e venda: espelhos,
guizos, anzóis, cutelos, campainhas, fuzis, serras, martelos. Sem mais demora, a forte armada
estende a vela ao convidativo vento. A bárbara gente amontoada acorre ao embarque das naus
da bela tropa. Ao que se pode perceber, magoada, com saudade que sente por não vê-la mais,
com acenos e voz enternecida, [eles] faziam a seu modo a despedida. Mais saudosos, os tristes
desterrados aprendem a língua, correndo imenso risco; recebem alimentos trocados por
objetos vendidos ao “estrangeiro”. Talvez os mantenham encantados com a cítara, talvez com
guizos todos se enlevem, mas o objeto que a vista mais lhes assombra é o espelho no qual
vêem a própria imagem. Algum deles, imóvel observando admira [refletida] no polido cristal
a horrível cara; pergunta-lhe quem é, como se a imagem ouvisse, e acreditando estar atrás o
que enxergara, vira o espelho de um lado e de outro. E não encontrando a figura na luz clara,
quebra o espelho para ver se encontra dentro a imagem vista.
143
O autor apresenta no manuscrito esclarecimento sobre a expressão “do famoso infante”. Diz ele que a escola
náutica e matemática, fundada em Sagres pelo infante dom Henrique, deu os últimos conhecimentos a Colombo,
Américo Vespúcio e outros cosmógrafos estrangeiros que, em nenhuma outra região da terra, poderiam achar
estudos, naquele tempo, tão célebres como os de Portugal. (A cosmografia ocupa-se da elaboração de mapas
geográficos e descrição dos astros.)
144
Américo Vespúcio foi um navegador florentino que por quatro vezes visitou o Novo Mundo, já descoberto
por Colombo. Foi ele quem divulgou pela primeira vez a idéia de que Colombo havia chegado a um novo
continente e não às Índias, e imerecidamente denominaram América a nova terra descoberta em 1492.
165
(69) Mas enquanto estes erravam vagabundos, Américo Vespúcio e o forte
Coelho
145
demarcavam no conselho náutico a longa costa e as enseadas mais profundas.
Também descobridor dos novos mundos foi (Cristóvão) Jacques, esperto e antigo na marinha,
de quem já ouvimos ter demarcado no mapa esse ameno recôncavo que vimos.
(70) Eu
146
, depois destes [navegantes] na ocasião presentes no vasto sertão
que nos cercava, pondo em fuga a bruta gente, descobri o recôncavo interno da Bahia. Notei
na vasta terra a multidão enorme que mais não teria a Europa toda, se for contar da grande
cordilheira até o mar, desde o [rio da] Prata até o Pará. Têm princípio na América opulenta as
províncias do império lusitano. O Grão-Pará que um mar nos representa, competidor em terras
com o oceano, já havia sido descoberto (como se pensa) por ordem de Pizarro, de Orellana.
[É] “país” que tem em seu interior a linha equinocial
147
de onde se estende ao centro a zona
tórrida. Espraia-se por nove léguas só de comprimento e vinte-e-seis de largura. No vasto
Maranhão, opulento de águas, [há] uma ilha bela que se estende até a praia; quinze rios regam
este precioso território e um breve estreito que lhe forma a raia pode passar por istmo a ligar
[a ilha] à terra firme por pouca areia. Depois [vem] o Ceará, província vasta que jaz inculta
sem portos nem comércio. O selvagem numeroso que em seus campos “pasta” insulta, mais
feroz que os outros, o estrangeiro. Com violento curso [um] rio se arrasta ao mar, vindo de um
lago do sertão; nele pescam nas profundas minas as pérolas brasileiras mais finas.
(74) Sem informar à vossa gente, empresas comerciais francesas instaladas
na fértil Paraíba carregam a madeira tão apreciada na Europa. Não muito longe daquela costa
vedes uma ilha menor, amena, fértil, rica e povoada chamada por nós de Itamaracá. A oito
graus do equinócio se estende Pernambuco, província deliciosa de abundante caça, pesca e
145
Gonçalo Coelho, como Américo Vespúcio, também chefiou uma das expedições que vieram ao Brasil antes
de 1530, percorrendo a costa americana para explorar e comercializar suas riquezas.
146
O pronome de primeira pessoa refere-se a Diogo, o qual continua a lembrar em sua fala aos franceses da
época em que chegara ao recôncavo baiano, por volta de 1547. Saindo do litoral, penetrou o sertão da Bahia,
sendo por isso considerado seu colonizador. Apresenta também estados do norte e do nordeste do Brasil.
147
Equinocial – relativo a equinócio, ou seja, o ponto da órbita da terra em que se registra igual duração do dia e
da noite; ocorre em 21 de março e 23 de setembro. O círculo fica próximo do Equador.
166
com muita fruta; sua madeira é a mais preciosa entre as outras. A visão da verdura frondosa
das árvores arrebata os olhos e faz-me crer (desculpe-me se erro) que fora um dia o paraíso.
Sergipe então do rei é terreno que, logo ao ser vista a beleza e o aspecto, não imagino que
possais ver outro mais ameno nem onde com mais gosto a gente viva. Clima saudável, céu
sempre sereno, a calma reinante suavizada pela névoa, palmas, mangues, mil plantas na
extensão. Não há depois do céu mais formosura.
(77) A quinze graus do sul, na foz imensa de um vasto rio cortado por ilhéus
[há] outra província de enorme cultura que tem o nome tomado aos próprios ilhéus [Ilhéus].
Depois [vem] Porto Seguro, província de espaço limitado ao qual compensa outra de âmbito
vasto que se assoma; toma o nome de Espírito Santo. Niterói, habitada pelos tamoios, estende
seu domínio por amplas terras: formosa região com uma enseada que tem dentro de si uma
grande barra. Esta é a praia freqüentada pelos vossos, o pomo da discórdia pendente entre nós;
custara, se pressago não me engano, muito sangue ao francês e ao lusitano
148
. Deram os
nomes de São Vicente e São Paulo às extremas províncias que ocupamos, se bem que ao Rio
da Prata se estenderam as que com próprio marco assinalamos. E para que se lembrassem de
que eram nossas, deixamos no lugar o nome Marco para representar às povoações vindouras
onde fica o limite entre o espanhol e o lusitano.
CANTO VII
(1) Era o tempo em que o sol na vasta esfera igualava o claro dia com a
noite, e o velho outono que ameniza o calor tecia seus pâmpanos
149
com a verde gala.
Enquanto Baco transformava todo monte enchendo os grandes tonéis da adega, a nau francesa
148
Referência às invasões francesas no Rio de Janeiro (meados do século XVI).
149
Pâmpanos são folhas ou ramos tenros de videira; sarmentos, parras; no verso seguinte o poeta cita Baco, deus
do vinho, que abastece as adegas, segundo a mitologia greco-latina.
167
tocava a praia calma na deliciosa foz do claro Sena. Na grande Lutécia
150
, capital do Estado, a
ligeira embarcação a remo lançou-se ao mar e esse mundo resumido na cidade enchia Diogo
de um alegre prazer: templos, torres, palácios, casas, prados... O famoso Ateneu, mestre do
mundo, a corte mais augusta que se apresenta enchem-lhe o coração e assombram-lhe a vista.
Paraguaçu, porém, que jamais vira espetáculo igual pára, surpresa: nem fala, nem se volta,
nem respira, olhos imóveis e o rosto fixo. E com a imaginação cheia do que admira, causa-lhe
tanto pasmo a visão rara que, sem sentido, parece ter perdido o discurso, a memória, a voz e o
ouvido. Permanece como a terna criança fica no colo da ama se ganha de presente um novo e
belo objeto, de tal maneira que nem com o chamado ao peito da doce mãe e nem com os
mimos do pai se sente comovida; põe toda a alma fixa no que vê e só parece viva pelo olhar.
O aspecto da americana não foi diferente vendo em Paris o resumo do universo.
(5) Tendo ouvido a novidade, a grande cidade se ajunta para admirar o
espetáculo, curiosa pelo acontecimento: uns se admiram, outros o contam, alguns perguntam
pois cresce o rumor sobre a verdade. E a multidão que se aproxima de Diogo tinha informação
dele e da esposa: era o rei do Brasil e ela, a rainha. E já avistavam em bela panorâmica o régio
espaço do palácio augusto; vendo o átrio repleto de troféus, entram no excelso paço do rei
francês. Protege as portas um exército robusto, brilhante guarda cujo braço invicto sustenta as
lises (Ver nota 173) e defende a coroa, sempre ao lado do rei. Ali reinava entre os franceses o
cristianíssimo Henrique II [1547 a 1559]. Ele era alvo dos alemães fulminantes porque
impusera barreiras às [pretendidas] vitórias de Carlos
151
. Monarca ortodoxo e amante da fé,
150
Lutécia foi o antigo nome de Paris. Sena é o famoso rio que banha a cidade. Ateneu é a Universidade de
Paris, uma das mais antigas e célebres da Europa.
151
Carlos V foi rei da Espanha em 1516 e imperador da Alemanha em 1519. Senhor de imensos domínios na
Europa, queria ser imperador do mundo, mas teve de lutar contra os franceses, os otomanos e os luteranos
alemães. Não conseguiu êxito em seu intento, sendo derrotado em Metz (1553).
168
fez que toda a França se rendesse ao antigo culto da religião do pai, o qual investira contra a
fúria infernal de Calvino
152
.
(8) Senta-se ao lado do rei a grande princesa, formoso lírio que, do Arno
153
florentino, trouxe à França um tesouro de beleza e, tesouro maior, seu porte estrangeiro.
Formoso par [formavam] que o instinto natural conjugou como divino porque, tendo sido
Henrique roubado pela dura morte, Catarina
154
, a forte, sustentou a França. Prostrado diante
do trono cristianíssimo, o bom Diogo, tendo a esposa ao lado, beija a régia mão dos dois
monarcas e faz que toda a corte esteja atenta. E havendo inclinado a fronte aos reis por três
vezes, desejando respeitá-los, conta-se que com este gesto reverente assim falara ao rei
poderoso.
(10) Tendes a vossos pés, senhor, invocando a majestosa grandeza do trono,
estes dois estrangeiros que, sulcando a imensidade do proceloso mar, buscam asilo na real
piedade no império que regeis com sábio comando. E se dirigem a vós e ao vosso reino do
qual Portugal herdou o nome e a origem [Portus Galliae/Portu-Galli]. O Brasil, senhor,
infunde-me a confiança de que ali renasça o império português que, contornando o Cabo da
[Boa] Esperança, descobriu para o mundo outro hemisfério. Tempo virá, se o vaticínio se
concretiza, em que o cadente esplendor do nome espanhol [Península Hispânica] recobrirá de
ouro o século presente e o Brasil lhe dará mais nobre glória.
(12) E tu, ó França heróica, que mandaste propagar ao reino lusitano uma
semente respeitável do grande Burgundo
155
, contempla o império justo como um ramo do teu
[império] que ali plantaste. Se o inculto Brasil, se o enegrecido africano forem subjugados por
teus famosos heróis, admite ao trono em primeiro lugar este teu aventureiro não indigno. E
152
João Calvino (1509 – 1564) foi propagandista da Reforma protestante na França; o calvinismo se espalhou
principalmente na Suíça, Holanda e Escócia.
153
Arno é o rio da Toscana (Itália) que passa em Florença e em Pisa e deságua no Mediterrâneo.
154
Política hábil mas sem escrúpulos, Catarina de Médicis, nascida em Florença, na Itália, casou com Henrique
II e governou a França equilibrando-se entre calvinistas e católicos durante as guerras religiosas.
155
Burgundo – menção aos duques de Borgonha, antigos moradores palacianos de Paris na época de Luís XIV,
sendo o primeiro burgundo dom Afonso Henriques, depois rei de Portugal. Daí a citação anterior sobre a origem
francesa do reino português, com a dinastia de Borgonha (de 1128 a 1367).
169
esta que ao meu lado teu cetro beija, que a um tempo fora princesa do Brasil, regenera agora
como mãe devota no seio da piedosa igreja cristã. É bom que o Brasil [assim] veja a mãe
primeira [França], sua senhora, da qual nasceu o povo, e quando for rainha da Lusitânia que o
Brasil tome a França por madrinha.
(14) Falou o herói generoso, e o rei potente, recordando os anais da antiga
história, com ares majestosos porém benevolente, demonstrou ter-lhe agradado a lembrança.
Entretanto, a gente cortesã sussurra celebrando a glória lusitana como [se fosse] sua e,
silenciosamente, por alto respeito responde apenas com os olhos e com o peito.
Montgomery
156
, intérprete do rei na assembléia, falou com bondade dando na resposta
sentimento de justiça para com Diogo o qual se mostrava digno [de assumir o trono
brasileiro]. Sem ver a Lísia [França] cheia de conquistas, o impulso maligno da ambição o
inspira a invejar-lhe já mais troféus grandiosos pois em prole sua não deseja estranhos. Ide,
disse a rainha, ó par ditoso, que o banho santo apague neste peito generoso a culpa amarga;
comigo, a França se prepara para apadrinhar. E quando o sol repetir por três vezes seu curso
luminoso na esfera clara, a bela dama será lavada pelo batismo das nódoas do infernal abismo.
(17) Era o dia em que se considera que o homem fora feito de terra como
estátua preciosa quando Deus infundira em seu peito a cópia formosa do soberano ser
157
. Em
nosso rito, era o dia dedicado ao culto de Simão e Tadeu [28 de outubro] quando, formosa,
Paraguaçu entrou com feliz sorte no banho santo, rodeando-a a corte. Em volta, o clero real e
o grande sacerdote formava uma respeitável fileira no meio da capela. Entre eles estava o bom
monarca e ao lado da neófita, a rainha. Vê-se abundância de luz e uma turba imensa formada
pelas guardas e a soberana dá nome à nobre dama: põe-lhe o seu próprio [nome] e a chama
Catarina.
156
Gabriel Montgomery foi capitão da guarda escocesa no tempo de Henrique II (1530 a 1574). Feriu
mortalmente este rei num torneio e veio a ser mais tarde um dos chefes protestantes. Durão o qualifica como
ambicioso e falso.
157
Segundo a Bíblia, no livro de Gênesis, era o sexto dia da criação do mundo, quando Deus fez o homem à sua
imagem e semelhança, ou seja, era uma sexta-feira.
170
(19) Batizada a formosíssima donzela no santo crisma que os cristãos
confirmam, marca-se o casamento com o valente Diogo amado, na real capela. A bela é
nomeada Catarina Álvares, firmando-se no troféu
158
a sua glória na Bahia, esta que em outros
tempos lhe fora senhora e [hoje] a considera sua fundadora. Prepara-se um banquete
grandioso em que a quantidade rivaliza com a elegância e para os dois cônjuges se coloca a
mesa no magnífico paço, em régio altar. Depois de os regalar com abundância, a Soberana
Alteza não se recusa a ouvi-los; curiosos, rainha e rei dão uma audiência privada aos dois
esposos. Depois (disse o monarca) que fui informado pelos meus ministros, tenho ouvido a
história de como foste agitado pelas ondas e como foste temido pela gente selvagem. Sabendo
que tens visitado os sertões e o centro do Brasil tens percorrido, quero que contes a história de
tantas províncias: das terras, dos viventes [habitantes], das plantas
159
.
(22) Diz cheio de respeito o herói prudente: Mandas-me, rei augusto, que te
exponha, pondo aos teus olhos resumidamente, a história natural da gente desconhecida. Se
esperas de mim, senhor, que componha exata narração de tantas grandezas, a empresa é
tamanha que, ao cumpri-la, faltará tempo e a voz falecerá.
(23) Mil e cinqüenta e seis léguas de costa revestida de vales e arvoredos, a
terra brasileira é composta de montes de altura desmedida: os [montes] Guararapes, [a serra
da] Borborema atingindo as nuvens com seus picos alteados, a serra de Aimorés, que atinge o
céu, as de Ibo-ti-catu [Botucatu] e Itatiaia. Os vastos rios e grandes lagoas aparentam mares
dentro das terras. O Grão-Pará [Amazonas], coberto de mil canoas, tem oitenta léguas na
espantosa foz; por boas dezessete [léguas] deságua o Maranhão [Tocantins]; o Jaguaribe mede
quarenta léguas. O São Francisco é outro que se engrossa ao adoçar o mar. O Sergipe, na
158
Explica o autor no manuscrito que o “troféu” é alusão à imagem de Catarina Álvares pintada sobre a Casa da
Pólvora na Bahia (Ver nota 225).
159
O poeta arranja aqui motivo para mais falar do Brasil, desta feita, descrevendo minuciosamente o ambiente:
rios, plantas e animais das mais variadas espécies. Fala com primor das exuberantes flora e fauna brasileiras o
que, segundo alguns críticos, torna este o mais belo canto do poema, pelas bonitas e engenhosas descrições e
comparações. Concordo plenamente.
171
realidade um licor puro, corre por vinte [léguas] regando o sertão; o Santa Cruz entra seguro
no porto: depois de percorrer trinta [léguas] lança-se ao mar. Logo vêm o [rio] das Contas, o
Taigipe impuro que morrem no oceano abrindo a vasta foz. O rio Doce, o Cananéia, o Prata e
outros cinqüenta mais, para finalizar.
(26) O mais rico e importante vegetal é a doce cana donde o açúcar brota;
pouco se compara às nossas canas, mas quanto ao milho [cana do milho] a proporção é a
mesma. Com manobra diligente e prática, [a cana] espremida em moenda solta um suco por
acaso imaginado na Antigüidade quando o néctar era celebrado na ambrosia
160
. Outra planta
desejada por muitos pela fragrância ativa que o olfato sente é a erva-santa, assim chamada
pelos nossos pais, mas chamada de tabaco depois pela gente espanhola. Manipulada pelo
francês Nicot
161
, faz expelir a bile e ataca o cérebro frágil de tal modo que, aquele que a
consome parece que o faz porque tem fome.
(28) Para o sustento comum a todos [há] uma raiz muito valorizada da qual
se extrai, com habilidade, farinha útil e saudável para o corpo e agradável ao paladar; era tida
como delícia dos brasileiros. Depois de ralada em bolandeiras
162
é espremida no tapiti e, se
convém, fazem a puba ou então a tapioca que é todo o mimo a parte mais fina da mandioca. O
agricultor chama a gostosa raiz pelo nome de aipi; no gosto é parecida com a mole castanha
saborosa da qual tira o país diversos proveitos. Sem ser cultivado, nos campos aparece em
grande quantidade ótimo arroz; feito de tal modo no Pará e Cuiabá, é igual na qualidade ao
mais perfeito. Ervilhas, feijão, favas, milho e trigo, tudo a terra produz se se plantar [como
afirmou Caminha na carta]. Também frutas: o pomo, a pêra, o figo, colhe-se dupla e
copiosamente no ano. Tudo o mais que tivesse dado em país antigo, no Brasil frutifica,
160
Ambrosia – manjar dos deuses do Olimpo que dava e conservava a imortalidade, feito à base de ovos e leite
cozidos em calda de açúcar. Também se diz ambrósia.
161
João Nicot, diplomata francês que foi embaixador em Lisboa. Mandou de Portugal (talvez levados do Brasil)
três pés de tabaco a Catarina de Médicis, exaltando as virtudes medicinais da planta. Assim foi introduzido na
França o tabaco (1530 – 1600). Ele deu o nome à nicotina.
162
Segundo Durão, bolandeiras e tapitis eram instrumentos com que se fabricava a farinha de mandioca. Ele diz
ainda: puba ou fubá é a flor [o produto] da mesma farinha.
172
qualquer planta, assim como nos deram [frutos] a Pérsia e a Líbia ardente o que destes outros
povos transplantamos.
(31) Das ervas comestíveis é elogiado o quiabo, o jiló, os maxíxeres, a folha
da mandioca tão apreciada, a taioba, agradável ao paladar. Acharás na opulenta natureza, na
mesa preparada com cuidado, o palmito de folha delicada e outras mil ervas, se quiseres usá-
las. Sensitiva chama-se a erva recatada que, quando alguém a toca com a mão, parece que se
atrapalha e foge de vergonha. Só volta a si da confusão profunda quando se ausenta o
agressor; isto prova à alma pura que quem não foi cautelosa nunca será pudica.
(33) O Brasil tem no mato e na campina espécies raras de ervas medicinais;
quem lhes explorasse todas as propriedades jamais recorreria à medicina [convencional]. Ali
nasce a jalapa, a sene
163
amarga, o filopódio, a malva, o pau-da-china, a caroba, a capeba e
outras mil que a bruta gente já conhece e a nossa ignora. [O Brasil] tem mimosos legumes que
não são inferiores aos mais valorizados que usamos na Europa: gengibre e gergelim excedem
aos demais; mendubim (amendoim) e mangaló que usam nos guisados. Alguns [legumes]
medicinais com os quais expelem do peito fluxos nasais ali instalados. Tem também o cará, o
inhame e em grande quantidade mangarás, mangaritos e batata.
(35) Das flores naturais, a rosa é com razão a rainha entre as demais pelo seu
aspecto brilhante: branca na aurora rutilante, ao meio-dia pinta-se de cor lustrosa. Porém,
aumentando o calor do sol, à tarde sua formosa cor é purpúrea. Compete com ela nesta
maravilha a clície
164
que muda a cor conforme gira o sol. Outra flor graciosa pendente em
ramos (chamam de são-joão), passa por mais bela que as outras que vivem no prado, seja na
bela cor, seja na graça. A flor se enlaça entre a copada rama que se estende em vistosa
aparência, mostrando na frente e por detrás cachos de ouro com verdes esmeraldas.
163
Sene é a designação comum a várias espécies do gênero cássia, da família das leguminosas, de cujas folhas
pequenas se extrai um purgativo.
164
Clície ou Clícia – ninfa do oceano, que foi amante de Apolo que depois a abandonou, transformando-a,
porém, em heliotrópio ou girassol.
173
(37) Nem tu, flor admirada, serás esquecida, da qual não sei o nome; a
natureza fez uma formosa e natural pintura da sagrada Paixão do Redentor. Pende do
caramanchão com mil frutos, dourados na cor, redondos no aspecto, a polpa fresca, doce e
avermelhada, indicando o sangue [de Jesus] que salvará o mundo. As folhas se derramam com
abundância, muito parecidas com a hera vulgar; permeiam pela verde ramagem mil quadros
da Paixão do autor da vida
165
. Milagre natural invocado pela mente com impulsos da graça,
convidam-na a pintar aos nossos olhos, com a flor, a cruz de Cristo, suas chagas e os
sofrimentos. É redonda na forma qual diadema de pontas como espinhos rodeando-na, tendo a
coluna no meio: um evidente emblema das chagas santas e da cruz sagrada. Vêem-se os três
cravos e, na extremidade, a cruel lança artisticamente desenhada; a cor é branca, mas
salpicada de um roxo exangue que bem lembra o piedoso sangue. Prodígio raro, estranha
maravilha com que tanto mistério se retrata! Nele, em meio às trevas a fé brilha, esta fé que
tanto desconhece a gente ingrata. Assim, [o] Deus piedoso trata a espécie humana que nasceu
sua filha e faz que quando ela despreza a graça em si, com esta flor a natureza lhe dê o
exemplo.
(41) Outras flores suaves e admiráveis bordam com variadas cores belas
campinas e em vária multidão agradável encantam a vista enlevada em vê-las. Há jasmins
vermelhos que, inumeráveis, cobrem paredes, tetos e janelas, e por serem miúdos mal se
distinguem, entretecendo purpúreos labirintos. As açucenas talvez sejam fragrantes,
distribuídas nas folhas, como as nossas; algumas brilham na alvura, outras reluzem em cores
avermelhadas. Os bredos encantadores, rutilantes, as famosas flores de courana. [Há] outras
[flores] incontáveis pelo prado imenso que deixam extasiado quem as vê.
(43) Das frutas do país, a mais famosa é o régio ananás, fruta tão boa que a
própria natureza, encantada, quis cingi-lo com coroa como a um rei. Tão gratificante cheiro
165
No julgamento de muitos críticos, esta comparação da flor do maracujá com a crucificação de Cristo é uma
passagem valiosa do poema. Sérgio Buarque de Holanda (1959) confirma a referência ao maracujazeiro. Em
francês, seu nome é “fleur du fruit de la Passion”.
174
exala que, com um talho, surpreende o olfato de qualquer pessoa; se não fosse avisada do
ananás, pensaria que era fragrância do paraíso. As cheirosas pitombas delicadas são como
gemas de ovos na aparência; as pitangas coloridas dão refrigério na hora da sede febril. As
formosas goiabas avermelhadas, as bananas famosas na doçura. [Há uma] fruta que pende em
cachos e as pessoas dizem que fora a ferida da cruel serpente
166
. Distingue-se entre as demais
na forma e [no] gosto, o coco duro pendente de alto ramo; tendo uma forte casca exterior,
enche a polpa de um licor puro, licor que, comparado com o antigo néctar, teve o nome
esquecido. Dentro tem “carne” branca como a amêndoa; ela foi vital para alguns enfermos que
a comeram. As várias frutas silvestres do Brasil não são menos saborosas que as outras
vistosas em gala de ouro e púrpura. Brilha a mangaba e os mucujês silvestres; os mamões, os
muricis e outras [frutas] famosas. Nisto os rudes caboclos foram mestres: ensinaram os nomes
e demonstraram que, se forem feridos com estilete, o jenipapo e o caju destilam vinhos (Ver
nota 16).
(47) Entre as preciosas árvores citam-se o cacaueiro, “droga” tão comum na
Espanha, pouco mais alto que [um] arbusto e que rende novo fruto a cada mês. A baunilha
desponta nos cipós de chocolate [cacau]; nasce em bainhas, como paus-de-lacre, tem um suco
oleoso de bom cheiro e é ácida. Das brenhas incultas se recolhe ótimo anil de [uma] planta
pequenina. Tece-se a roupa mais fina com algodão que em quantidade abundantíssima se
colhe. Se a fartura combina com a indústria, cessando a inércia que impede mil lucros, do
algodão ali encontrado haveria como fazer roupa com que se vestisse toda a Europa. O uruçu
[urucum], fruto de árvore pequena, com uma lima em forma de pirâmide, diligentemente tira-
se dele um extrato escarlate, meio rosado. A branda tarajuba
167
de tronco imortal rende a cor
dourada desejada pelos belgas. O pau-brasil de que o engenhoso norte costuma extrair cor de
toda a sorte.
166
Referência ao fruto que a serpente teria oferecido a Eva e esta o teria dado de comer a Adão, motivo pelo qual
foram expulsos do paraíso, segundo a Bíblia. Tornou-se conhecida com o nome de maçã.
167
O historiador Rocha Pita explica que tarajuba é nome dado à raiz de uma árvore, que serve para tintura.
175
(50) Há árvores balsâmicas copadas que se estendem por léguas e léguas, de
folhas cinzentas parecidas com as da murta, cujos troncos exalam um agradável aroma; se eles
são golpeados em certos meses, os que comercializam fazem variados usos: manipulam
remédios mil e coisas apreciáveis como contas de cheiro e caixas preciosas. A copaíba
enaltecida pelas curas que promove, que a ciência médica estima tanto; a bicuíba conhecida
pelo seu óleo; a almácega que se usa no quebranto; a preciosa madeira apetecida que merece o
nome de pau-santo; o sassafrás
168
cheiroso com o qual as lojas se vêem abastecidas com [as]
formosas taças. Como ricas ametistas vegetais são abundantes as violetas de várias espécies; o
dourado pequiá [pequi] é logo visto engastado em outros ramos. O pau-vinhático, ao ser visto,
parece massa de ouro extensa e vasta: a dura madeira compete com o ferro. [Há ainda] o
angelim, a tataipeva e o supopira [sucupira] e troncos que variam na cor e na qualidade com
os quais se podem fazer canoas inteiriças pois sua grossura tem essa capacidade; nelas podem
remar de quarenta a cem pessoas. E há por todo o Brasil em quantidade madeiras para tão
boas fabricações [de canoas] que, se trazidas ao mar através dos vastos rios, pode-se encher
toda a Europa de navios.
(54) A vasta região alimenta raros viventes inumeráveis e tão diferentes em
sua natureza dos nossos animais, que enchem a vista da maior surpresa. Dos mais comuns que
as nossas gentes têm (boi, cavalo, ovelha, cabra e cão) ignoram a tamanha quantidade;
presentes ali são incontáveis. Todo animal ali é feroz, levado de onde tinha o seu hábitat que
nem era próprio para o nosso gado; era o bruto manso e fera a gente. Como entre nós é o tigre
arrebatado, cruel a onça e o javali fremente, as antas americanas são ferozes e [são] próprias
do Brasil as suraranas [suçuaranas]. Vêem-se cobras terríveis, monstruosas, que afugentam as
gentes fracas que as avistam. As jibóias volumosas que cingem um touro com a cauda,
168
Grafado no manuscrito salsafraz, com certeza trata-se do sassafrás a que se refere Rocha Pita como
designação comum a várias espécies da família das lauráceas.
176
atacando-o com os dentes. A jararaca “voa” entre outras com forças horrorosas, batendo a
aguda cauda; fere com veneno a quem se aproxima, que logo se sente morrer em convulsão.
(57) Entre outros bichos abundantes no bosque, vê-se o modelo das pessoas
vagarosas no animal torpe de aspecto imundo, a que pusemos o nome de preguiça. Mostra
aparência de lentidão profunda e quanto mais [nela] se bate e se atiça, mais tarda no impulso
de tal modo que gasta um dia todo para dar poucos passos. Vê-se o camaleão que não se
observa ter por alimento, como os demais, folha, fruto, carne conhecida ou erva; daí as
pessoas afirmarem que pasta em vento. Mas é certo que o ambiente ferve de infinitos insetos;
creio bem que [o camaleão] se nutra na vida de quantos deles apanha ao respirar. Anda de um
lado a outro o sareué, como pirata, inimigo da domesticação. À canção sempre ingrata da
guariba responde o guassinim, seguindo-a amigavelmente
169
. Das variadas caças que o
caboclo mata, não prossigo a narração por [ser] longa: veados, capivaras e coatias [quatis],
pacas, teús [téus ou tovacas], periás [preás], tatus, cotias.
(60) O mono astuto [macaco, símio africano] que habita a floresta salta
buliçoso de um galho a outro e, para não se crer que nasceu bruto, parece que só falta falar
[para ser gente]. Imita o riso e contrapõe a tristeza; para tanto, sobre os demais demonstra ter
instinto: até onde a espécie selvagem lhe permite chegar, tem o dom de arremedar. Entre as
caças voadoras, [está] a zabelê que imita os francolins
170
; é de carne suave e deliciosa que
incita a gula ao tapuia voraz. Logo se encontra a inhapupê [espécie de perdiz] de carne
preciosa da qual a titela mais o paladar aguça. Tamm verás pombas nesses países
[americanos do sul], que no sabor, na forma e no gosto são perdizes. Juritis, pararis, tenras e
gordas; a gostosa hiraponga [araponga]; as marrecas que enchem as bordas dos rios; as
169
Sareué – sariguê: mamífero marsupial da América, cuja fêmea tem sob o ventre uma bolsa para abrigar os
filhos recém-nascidos.
Guariba – designação comum aos macacos de coloração escura, caracterizados pela maxila inferior barbada e,
sobretudo, pelo grito peculiar.
Guassinin – guaxinim ou mão-pelada: animal mamífero, carnívoro, canídeo de coloração cinzento-amarelada
salpicada de preto, cauda com anéis pretos e amarelos.
170
Zabelê – ave noctívaga, de corpo e pés vermelhos e de canto melodioso. Francolins são aves galináceas.
177
jacutingas e a aracá [araquã] apreciada. E se te puseres às margens do lago, habitados por
galeirões [viúvas] e patos, percorrendo as águas de canoa, verás a multidão aquática que
nadando “voa”.
(63) A natureza negou à maioria das aves do ar a harmonia musical, mas a
vista compensa na beleza o que pode faltar na melodia. A pena do tucano é mais cobiçada
(dizem) que uma feita de ouro fino. Os guarazes tão luzidios parecem vestidos de púrpura.
Vão pelo ar loquazes papagaios, voando como nuvens em grande abundância, iguais na
formosura aos verdes maios [espécie de lírios], proferindo palavras como a gente. Os
periquitos, com iguais ensaios, o canindé qual arco-íris reluzente. Porém falando menos,
comedidas nas palavras, [vão] gritando as formosíssimas araras. Os bicudos são negros como
os melros, mais competentes e agradáveis no seu canto. Na terra, os sabiás são sempre mudos,
mas perto da água têm a voz que é um encanto. Os coleirinhos [são] agudos no entoar; as
patativas imitam o saudoso pranto, requebrando com sons vários como os colibris e os
harmoniosos canários.
(66) Das espécies marítimas valiosas temos pérolas límpidas preciosas e não
conheço melhores aljôfares que os das famosas ostras brasileiras; [temos tamm] âmbar
cinzento do melhor, mais denso e espesso. Nas amplas costas do Ceará se vêem madrepérolas
e conchas delicadas: umas parecem de ouro, outras, prateadas.
(67) O rico mar piscoso se enche dos peixes mais mimosos conhecidos por
nós: linguados, sáveis, meros preciosos e o [peixe] agulha, de que o mar todo se inunda.
Robalos, salmonetes deliciosos, o cherne, o voador que na água se afunda, pescadas, galo,
arraias e tainhas, carapaus, encharrocos [xarrocos ou frango-do-mar] e sardinhas. [Há] outros
peixes que são próprios do clima: berupirás (bijupirás) vermelhos; o garoupa; pâmpanos;
corimás que o povo ama; os dourados que a nossa Europa preza; carapebas, parus... Nem se
178
fala da grande quantidade que os mares abrigam: a multidão enorme do vulgar xaréu que
serve de alimento à pobre gente.
(69) De junho a outubro a baleia se alastra no mar qual gigante marítimo;
mede vinte e seis palmos de largura, setenta de comprimento, horrenda e feia. Afunda nas
águas com o horrível peso; cheia de oleosa gordura em volta, convida o pescador que se lance
ao mar para fazer, derretendo-a, útil azeite. Tem os ossos demarcados por espinhas e as duras
peles parecem ferro; nelas se apegam mil búzios que se sustentam chupando-as. Os imensos
corpos assentados na areia não parecem separados da cabeça; entre os olhos medonhos se
ergue a tromba que vomita ondas como bomba aquática. Na boca horrível como vasta gruta
pende a língua comprida de doze palmos. Não tem dentes, mas ao longo da boca descomunal
e grosseira quarenta barbatanas se estendem. Com elas empurra para o estômago tudo o que
apreende na água por alimento: o peixe ou talvez carne que o mar tornou imunda e que lhe dá
sustento. Tem duas asas nos ombros como braços que medem vinte palmos. Batendo asa e
cauda, rema nos líquidos espaços, espalhando o perigo no mar. E provocando desastres no
oceano, de longe, arremessa jatos de água nas embarcações. E quando o monstro bóia sobre o
mar, o inexperiente navegante acredita tratar-se de uma ilha. O amor materno aflora no
monstro horrendo que, percebendo as pessoas armadas, deixa-se matar debatendo-se na água
para evitar a morte da prole amada. Se na caçada metem o arpão em seu filho, atraindo a mãe
para a enseada, a baleia põe-se ao lado de seus filhos se da canoa desferem a lança.
(74) No arrecife e nas ribeiras da costa colhe-se o marisco apreciado; as
lagostas e o polvo retorcido, os lagostins, as santolas [aranhas-do-mar] e as sapateiras
[crustáceos marinhos]. Também [há] ostras famosas, camarão grande e caranguejos de mil
espécies por entre os mangues, dos quais a vista humana perde a dimensão no labirinto verde.
179
CANTO VIII
(1) O sol [já] tinha dado três voltas na carreira pelos trópicos em giro
oblíquo
171
e três [vezes] na Europa, pelo clima aprico, o abril tinha ressuscitado as plantas
172
depois que o nobre Diogo se transportara do rico Brasil à França, buscando nas viagens
recursos e orientação para transformar o bárbaro costume [dos índios]. Mas com a mísera
gente na lembrança, excitada pela cara imagem da esposa, pensava em deixar a França amiga,
repetindo a viagem de volta ao Brasil. Na generosa empresa não se cansa de evocar a rudeza
do selvagem e acha, com razão, que é humanitário amansar-lhe a cruel barbaridade.
(3) Enquanto negocia o embarque e o navio solicitado ao amigo Duplessis,
foi-lhe proposta pelo rei francês a idéia de erguer as lises
173
no país de destino. Disse-lhe
então (e é fácil crer que falava-lhe mandado pelo seu rei): Terás auxílio e tropa imensa da
França e, maior que o serviço, a recompensa. Se te ocupares com empenho generoso em
melhorar a mente ímpia do estrangeiro, trazendo à França um povo numeroso, melhor será
dominá-la assim. Fora um engano pernicioso da Europa enviar [expedições] às colônias para
extinguir sem remédio a infeliz gente e despovoá-las sem as tropas. Roma fazia seu império
espalhando colônias pelo mundo e agregando outras dos países conquistados, reparando assim
o próprio engano. Em um século, o bárbaro que vivia na grande Roma romano ia se tornando.
E com este modo profundo de pensar, Roma foi mundo e o mundo foi romano.
(6) Este meio
174
, portanto, eu te sugiro; se por prudência hoje o executares,
verás em pouco tempo, como desejo, a gente bruta se tornar francesa. Vive sempre rude em
171
A expressão “a carreira dos trópicos” refere-se ao ano astronômico, equinocial, solar ou tropical que se inicia
quando o Sol cruza uma linha imaginária paralela ao Equador; é o equinócio do verão. Entre dois equinócios
ocorre um ano e o autor usou a situação para marcar o tempo de permanência do casal na França, três anos.
172
Abril era mês especial para os romanos: lembrava o mar; era época feliz para os agricultores do Lácio pois
dava início à fartura, ressuscitando as plantas.
173
Lises eram flores distintivas da realeza e das armas da França (flor-de-lis ou açucena).
174
No manuscrito, o autor anota que a estratégia é um projeto admirável de fazer úteis as conquistas à população
das nações que as fazem, pois é certo que com esta política se formou e cresceu a antiga república de Roma.
180
seu retiro quem não se comunica e nada escuta; não tirarás o selvagem da toca se outro país
[ele] não conhecer e o seu não trocar. No entanto, se a nacionalidade for transmigrada e
habitar o nosso território, suprirá as infinitas pessoas que perdemos, com a mesma utilidade.
Assim, a agricultura mais se desenvolve, cresce o povo no campo e na cidade, e a turba inerte
que estraga o solo, ou se transforma ou se desterra.
(8) Disse o francês prudente. E respondendo o nobre Diogo, leal à amada
pátria, replicou logo: Apresentais sábio projeto sobre a população, não discordo, mas não
posso concordar com o pedido exposto, sendo fiel ao rei, sendo português. Julgo correto que o
monarca luso seja senhor do que descobrir. Vivendo ex-lege [fora da lei] um povo anárquico,
tem direito o vizinho de sujeitá-lo; a própria natureza inspiraria o que fosse mais próximo a
dominá-lo. Acredito que o céu parecia querer isto dando a Cabral o instinto de buscá-lo
175
; é
conceito generalizado que quem primeiro o ocupa tem direito. E sem que a minha excusa
ofenda a França, é bom que esta conquista a Lísia faça. Mas, enquanto a Bahia não o recusa,
[ela] será para vós a melhor praça de comércio. Achareis ali em profusão grande quantidade
de especiarias e a preciosa madeira, de graça. E lá permanecendo eu fiel depositário de minha
pátria, serei francês em obrigações e agenciamentos.
(11) Duplessis em seu peito nobre admirou o generoso ardor e o zelo pátrio
[de Diogo]. Descobre, na ilustre condição estabelecida, novo motivo para o querer mais. Sem
receio de que aja de modo contrário, quer tê-lo como sócio na nova expedição. Mas antes de
embarcar, o herói prudente avisa o rei lusitano do grandioso empreendimento.
(12) Já pelo salgado oceano navega a nau francesa e avista-se o Cabo que,
no ocaso, mostra a extremidade da Europa, tido como referência pelos antigos navegantes.
Vê-se ali a terra que o [rio] Minho banha, percorrendo a costa da feliz Galiza. Então, seguindo
175
Durão observa: note-se que Colombo não foi o descobridor do Brasil, mas Pedro Álvares Cabral. Francisco
Sanches deu a Colombo, então habitante da ilha da Madeira, os roteiros com os quais descobriu a América. Uns
dizem que Sanches era andaluz, outros, que era biscainho (natural de Biscaia na Espanha). Mas o espanhol
Gomara, autor contemporâneo, e que militou entre os soldados de Colombo, atesta que era português. E conclui
o autor do poema: não é portanto ocasião de se anotar a expressão “dando a Cabral o instinto” etc.
181
o rumo do ocidente, navega-se em pleno meio-dia ardente. [A embarcação] cortava o mar não
longe do Equador quando Paraguaçu, já Catarina, atenta orava, como era seu costume,
implorando o favor da Mão Divina. E eis que, aos olhos da turba que a observava enquanto
adorava a trindade majestosa, parecia estar parada e absorta no sono; uns pensam que dorme,
outros, que está morta. Reina no ar um clima de afeto interior, mas em profunda abstração,
com doce calma, bem se lhe vê pela aparência que a alma está muito feliz. Vê-se nela o raiar
da luz eterna de quem goza no céu já vitorioso. [É] admirável vislumbre que emociona e
infunde uma piedosa afeição em quem o presencia.
(15) Assim, por longas horas abstraída, deixava o caro esposo na ansiedade:
se era o sono que a paralisava ou era efeito de cruel enfermidade. Ora suspeita que sua vida
esteja em perigo, ora crê que ela habita na celestial tranqüilidade do claro empíreo e que,
imortal, mora no céu, reinando sobre ele. Quando torna a si docemente, a multidão percorre
com o olhar em agradável giro e como quem sente ingrata esta aura, rompe os longos silêncios
num suspiro. Oh doce pátria permanente! (disse). Que escuro ar parece que respiro! Feliz
quem contemplando o céu formoso vive no seio do celeste esposo!
(12) Pasma Diogo e a multidão que a ouvia; admirados, calam-se todos com
assombro. Já nem duvidam de que seria uma visão reveladora dos mistérios. Quando Deus
confia ocultos segredos, não devem ser, diz Diogo, propalados, mas se em parte [o segredo] é
manifesto, como este, não serei temerário se perguntar o restante. Narra-nos, alma feliz, a
visão bela! Quem sabe se por ti a Providência nos manda aviso sobre os objetivos sempre
incertos dos governos dos mortais. Não nos escondas no entanto o que para nossa luz o
excelso Paraíso revela e, diante de nossos pedidos, conta tudo; lembrando prontamente, dize
tudo quanto viste.
(19) Calaram todos com ouvido atento, pendendo da expressão de Catarina,
e tomando lugar em volta da popa, sentam-se num canhão inclinado ali. A dama disse: Vós
182
me mandais expor sobre a impressão da maravilha divina; quem poderá contar coisa tão
elevada quando cessa a luz e falta a sabedoria? Não atribuo ao meu sonho uma sagrada
intuição pois a fantasia pode fingir tudo. Porque a imagem talvez que na alma [eu] pinto, por
força natural poderia ser falsa. Pode ser que tenha o pensamento pressagiador e que, sem
extraordinária profecia, anteveja o sucesso, o tempo e a duração e depois nada aconteça ou
seja coincidência.
(21) Vi, não sei se era impulso imaginário, um globo de diamante claro e
enorme, e no seu fundo [vi] aparecer um país opulento, rico e extenso
176
. Observando com o
cuidado necessário, em nada o diferencio do meu próprio [país]. Era o áureo Brasil tão vasto e
profundo que, no diamante, parecia um mundo. Fixei os olhos atenta no estupendo e
milagroso espetáculo que via. E enxergava a baía se estendendo por três léguas de abertura e
por doze de diâmetro, seis rios desembocando no golfo, engenhos, povoações que descobria
serem como ornamentos da cidade, erguida no planalto em majestade. Parecia dividida em
seis bairros, com duas praças de bom tamanho. Vi ali [uma] fortaleza erguida na barra; em
outra parte de terra majestosa, a enseada era defendida por oito [fortalezas] e havia outra,
poderosa, em Taparica. [Vi] duas casas de pólvora e, na entrada, vi-me a mim retratada em
uma delas (Ver nota 158). Dentro de um templo magnífico viam-se [pinturas] da turma
numerosa de seus prelados: uns morrendo nas mãos dos bárbaros, outro cingindo a valorosa
espada. Via muitos virtuosos percorrerem as florestas com zelosa caridade, sem poupar
tempo, estudo, ou vida, ou gasto, para propagar a religião no sertão vasto
177
.
(25) No grande palácio [estavam] retratados em pinturas os que tinham
governado o Brasil: os Sousas decantados na Bahia, os nobres Costas que depois vieram. Mas
176
Neste canto, na voz da extasiada Paraguaçu/Catarina, o poeta narra outro trecho da história do Brasil, naquele
evento ainda como profecia. Baseado em cronistas e historiadores principalmente portugueses, sem muita ficção
como fizera nos cantos anteriores, Durão procura aproximar-se bastante da verdade histórica. Ele conta a luta
contra o invasor francês no Rio de Janeiro, citando nomes e circunstâncias reais.
177
Com certeza, referência aos padres jesuítas como se verá adiante (estrofe 55 do Canto X) e também pela
história do Brasil colonial.
183
entre outros celebrados na guerra pelos troféus que, vencendo, mereceram: Mem de Sá de
gloriosa fama, aclamado pai da pátria no Brasil [primeiro governador-geral]. Deste era filho o
intrépido Fernando que ali vi empunhando a forte espada: pelejando contra a gente feroz,
vingou a morte [de Estácio de Sá]. Mas levantando os olhos da baía, vi percorrer o mar uma
potente armada que, ocupando as ilhas e a vasta terra, movia funesta guerra no Brasil. Parecia-
me ser a frota da belicosa gente francesa que atentava contra o Brasil. Pero Lopes de Sousa,
em furiosa batalha naval, por mar a combatia. Em outra ação, com numerosa esquadra Luís de
Melo e Silva pelejava. Cristóvão Jacques, que corria por este mar, dois navios lhes afunda na
baía.
(28) Era da França, sim, o povo adversário, mas eram inimigos ocultos do
rei, contrários [a ele] e ligados ao ritual calvinístico; enviaram ao Brasil tropa inimiga.
Protegidos pela facção poderosa, com forças armadas necessárias, queriam formar uma
colônia para o desprezível cerimonial de Calvino (Ver nota 152). Villegaignon
178
, de forte
peito, era cavalheiro de Malta e francês nobre, valoroso soldado antigo, muito respeitado entre
os huguenotes
179
. Cobre de mil promessas seu partido [religioso]. Havendo escolhido o Brasil
para atacar, incentivada pelo chefe esperançoso, toda a França o apóia na heresia. Vi-o
navegando em Cabo Frio, seguido de outras naus na forte empreitada, tratando afavelmente o
estrangeiro, explorava a natureza do lugar. Mostrava aos nativos alma piedosa e, questionando
sobre a gente portuguesa, induz a nação selvagem a que o ajude na realização do comércio e
da conquista.
(31) O cabo diligente voltou à França carregado de ricas especiarias.
Convocando a gente armada aos navios, retornou acompanhado de grandiosa multidão. Não
faltou abundante e poderosa gente do sertão, um povo que, aliado nas armas, estimava-se
178
Nicolau Durand de Villegaignon instalou-se na baía de Guanabara em 1555, comandando os franceses que
pretendiam fixar ali uma colônia, a França Antártica.
179
Huguenotes – nome dado aos protestantes calvinistas na França; é uma corruptela da palavra alemã
“eidgenossen” que significa “confederados por juramento”. No manuscrito foi grafado “hugnote” (estr. 29, v.4 )
e “hugonote” (estr. 32, v. 8).
184
como amigo mais sincero; inculto, sim, porém mais feroz. Ali Villegaignon alojou a tropa
junto às pessoas do sertão a ele confederadas [os tamoios] e se lançou a dominar a costa,
esperando já expulsar dela os nossos [patrícios]. Despojou os portugueses do seu comércio na
fértil Paraíba que lhes era útil. Não havia enseada na costa do Brasil que o huguenote não
tivesse bloqueado. Advertido sobre o perigo, Mem de Sá armara três navios para a guerra;
manteve consigo oito [embarcações] comerciais além das que convocara para socorro. E para
ter força igual às do inimigo, ajuntou turmas valentes de bravos carijós sobre longas canoas,
guiando-as contra os tamoios prepotentes.
(34) Nhighe-terói [Niterói] se chama a vasta enseada que apresenta uma
estreita abertura como barra, formando um lago redondo envolvido pela terra, como enorme
porto para a grande armada. Vê-se [uma] ilha cheia de penhascos na entrada, com fortaleza
que, preparada para a guerra, fazendo rumor pela boca dos canhões, fechava a barra ao
valoroso Mendo (Mem de Sá). A ilha era guarnecida de rochas, tendo em volta uma muralha
natural que rebatia a força das balas, tornando inútil a batalha dos lusos. Por três dias os
nossos foram combatidos, sem que o fogo incessante lhes valesse, até que, fatigado, o invicto
Mendo invade pelo porto o forte horrendo. Entre flechas e balas, o destemido português sobe
o morro e [vai] deixando o francês desmorecido: degola, mata, fere, invade e assalta.
Esquecido do antigo acordo, derruba o francês animoso, até que, por falta de coragem e brio,
na contenda a brava gente vencida pelo cansaço entrega a ilha. Sem mais demora, ao ver os
adversários dissipados, o invicto Mendo vai desfazendo a excelsa fortaleza e invade a costa
com a forte armada. E havendo sujeitado tudo ao seu nome, retornou à baía que, iluminada,
entre o som do clarim e alegre trompa, recebeu a Mendo em triunfo, com pompa.
(38) Mas a facção do huguenote enfurecida manda ao Brasil o poderoso
Villegaignon na intenção de fazer guerra por todos os lados para recuperar a ilha já perdida.
Nossa marinha vê-se combatida e a forte esquadra comandada pelo francês dominou no
185
oceano de tal modo que impedia o comércio em todo o Brasil. Mas a monarquia lusitana não
tolera mais e o rei cristianíssimo adere; contra a rebelde e herética porfia, envia à América
possante armada cujo chefe é o prudente Estácio de Sá. [São] vários galeões [navios de
guerra] com forte gente, que expulsando o herege da enseada, deixe ali fundada nova cidade.
O branco Mendo se abraçava obsequioso ao valoroso chefe que unira às forças da Bahia as
que trouxera para o mesmo evento. Contra os esforços do tamoio horrendo, ataca o rebelde,
incorporando à armada lusitana, vasto esquadrão de gente americana.
(41) Chama-se Pão de Açúcar o penedo erguido às nuvens em [forma de]
pirâmide, de onde, de um salto e já sem medo, a turba americana tinha desembarcado.
“Nadava” pelo mar vasto “arvoredo” de canoas lotadas de estrangeiros: tropa brilhante do
vigoroso francês que, hábil na guerra, fez a Europa. O campo luso por eles acometido se
enche de dardos, flechas, balas. Ensombreado todo o ambiente, as naus se ocultam em nuvens
de fumaça. Em meio ao ruído do eco dos canhões tudo fica cego e surdo no campo e na praça,
e no horrível relâmpago das armas, caem por terra os corpos sem cabeças. “Voam” as naus
tomadas pelas chamas, enchendo a enseada do infernal estrondo; as canoas dos nossos e os
galeões perfilados foram atingidos através de golpes que retiniam das espadas. O golfo todo
arde em chamas e terra e mar se tornam sangue tinto: um abismo, um inferno, um labirinto.
(44) Depois que dura a batalha por muito tempo em jogo marcial, com
perigo para os dois lados, cessando o ímpeto do fogo adversário, aparece todo o estrago do
inimigo. O tamoio, receoso do castigo, tinha cedido logo na contenda e os franceses, que mal
sustentavam as naus, procuravam asilo entre os penhascos. O bravo Sá não pára de atacar o
estrangeiro: a forte tropa avança pelo mato para que, abatendo o orgulho e o brio insano,
impedisse a aliança infame com o sertanejo. Muito confiante em seu valor, o tamoio não
receia o desafio e foge da aldeia para o mato ou gruta, disputando a liberdade aos portugueses.
186
(46) Era áspero o combate e lenta a guerra e sem resultado o assédio
imposto ao francês; os indígenas embrenhados terra adentro
180
haviam preparado uma
emboscada para os portugueses. Mendo, muito cuidadoso, tendo se proposto a socorrer
Estácio, organiza grupos, busca navios e incita a gente, pensando partir em auxílio dos seus. A
esquadra grandiosa já dobra o frio cabo [Cabo Frio]; ao avistar o penhasco, lança a âncora. O
rebelde pasma, vendo a armada numerosa à sua frente ocupar a estreita barra. Ali se junta a
frota da lusa gente e mutuamente narram os casos de vanglória: irmão para irmã e o filho para
o pai, festivos por terem chegado sãos e achá-los vivos. O forte Mendo chega abraçado a
Estácio e festiva e estrepitosa salva faz que o bronze [canhão] vomite o fogo horrendo contra
a ilha que avistam cheia de penhascos. E havendo consultado amplamente os dois chefes da
empresa gloriosa, tentam um feroz assalto contra o mais alto [ponto] do penedo, a peito
descoberto.
(49) Vêem-se entre as montanhas formidáveis bocas de canhões e mosquetes
trovejando, e nas quebradas e espantosas rochas, o imenso bando dos tamoios. Muitos ali vão
precipitando os nossos fuzis dos ásperos despenhadeiros; outros, das gretas da penha rachada,
contra nós cobriam todo o ar de setas. Não cessava o rebelde guerreiro, combatendo o ataque
com vivo fogo enquanto subia o luso valoroso, galgando em fúria o penedo horrendo. Alguns
em meio ao impulso impetuoso caíam no abismo carregando o vizinho. Alguns, feridos por
flecha ou bala veloz, do mais alto da montanha resvalavam para o mar. Todo o penhasco se
consumia em fogo enquanto o mar em volta fervia em chamas. Entre o estrondo e a fumaça
que saía, nada se ouvia nem se via. A terra toda ao redor estremecia, sem que a água se
poupasse do incêndio; parecia ferver com o fogo enlouquecido, escondendo a parte mais
elevada do pai Oceano. Como a boca pavorosa do Vesúvio, quando derrama rios de fogo no
oceano, parte do vasto monte envolta em chamas é arremessada ao ar com fúria impetuosa. A
180
Nesta invasão francesa de meados do séc. XVI, no Rio de Janeiro, os huguenotes tiveram ajuda dos
tupinambás e carijós, além dos seus aliados tamoios. Aos portugueses juntaram-se os tupiniquins, outros nativos
do sertão e os tapuias, chefiados por Ararigbóia.
187
cinza tenebrosa cobre o céu, “muge” o chão, treme a terra, brama o mar e o mortal espantado
e tremulante crê que o céu esteja caindo e o mundo se afundando.
(53) Também no duro penhasco de Villegaignon, com horroroso trovão
freme a tormenta e a chama; entre a fumaça horrenda e escura, representa as furnas do lago
infernal. Porém, com suas próprias armas apontadas, o inimigo avança; o português ataca o
porto de modo incerto e a peito descoberto. Já na grande montanha tremulavam as quinas
181
lusitanas [colocadas] pelo forte Estácio e as lises eram arrancadas do penhasco onde fora
erguido um palácio a Villegaignon. Os tamoios se arrastavam pela rocha e o valor dos
lusitanos, causando inveja ao Lácio
182
, investia com a espada a guarnição francesa, obrigando-
a a se retirar em duro choque. O valente francês, que já demonstrara valor em arte bélica na
Europa, opõe-se à fuga por toda a parte e faz que o fugitivo volte a cara. Vendo Estácio
sozinho junto ao estandarte, declarando-se chefe dos lusos, pensa em dar um golpe e acabar
com sua intenção de ser general da gente portuguesa. Não desfalece o capitão valente, atacado
de um e de outro lado; rebate as balas com o enorme escudo e se lança ao rebelde enfurecido.
Lebrun ataca com o mosquete ardente com o qual a muitos tinha ferido de um só golpe;
outros, arranca do íngreme lugar e atira ao mar; alguns, expulsa da soberba montanha.
(57) E já fugia a tímida multidão quando Rochefoucauld, igualmente
guerreiro, tendo-o observado com a viseira descoberta, aponta-lhe de longe [uma] bala
fumegante. Caindo o herói na espada que traz consigo, adora humildemente a cruz e perde a
fala
183
. O chão banha-se em sangue e a terra assim regada com tanta glória produziu vitória. O
francês abandona a fortaleza pois acompanhava [a cena], divertido. Parte do exército tinha
subido para finalizar a ocorrência vitoriosa. Mem de Sá admira o forte braço; embora prezasse
181
Quinas – cada um dos cinco escudos que fazem parte das armas de Portugal.
182
Antiga região da Itália central, entre a Toscana e a Campânia, ao longo do mar Tirreno. Seus habitantes
chamavam-se latinos e falavam o latim. Ao conquistar a península Ibérica, cederam sua língua, donde surgiu o
idioma português e outros.
183
Fiel à História do Brasil, Durão menciona a morte de Estácio de Sá, em combate contra os franceses
invasores, por volta de 1565. Aponta também a fundação de São Sebastião do Rio de Janeiro.
188
o valor do sobrinho no ardor juvenil, notou magoado [o fato de] o soldado tomar lugar do
chefe. E o nobre Sá, em lágrimas, diz: como vítima da religião, da liberdade, vais dando no
sangue heróico vigor à nova terra: nela se erga imortal em nova cidade. Contando o caso
doloroso aos pósteros, que seus cidadãos tenham claro exemplo no primeiro fundador do Rio
de Janeiro e lhe dêem glória eterna. Deu tal nome à enseada por lembrança do mês em que
ocorreu o admirável caso; com justiça, mostrou à cidade a invocação de um mártir santo. E
havendo recolhido a bordo as tropas, para descanso do mórbido desfecho, faz imortais no
tempo transitório os Correias, os Sás
184
no novo centro de comércio internacional.
(61) No entanto, a gente selvagem tamoia, sempre mais feroz na contenda
marcial, luta ferozmente contra a nova cidade: move tremenda guerra pelo mar. Todavia, para
a bárbara disputa, Mendo faz que um chefe tapuia defenda o mar; os índios nomeiam o
famoso Ararigbóia cujo nome cristão era Martim Afonso
185
. Foi príncipe respeitado nas tabas
ao qual foi acrescentado o nome português nas guerras em que tinha capitaneado os seus junto
a Mendo, sempre invicto no campo contra os tamoios. O rebelde tinha avançado com quatro
naus guerreiras, depois do grande conflito, e em oito lanchas Arari [foi] buscando a ponta de
Cabo Frio, a qual já iam dobrando.
(63) No silêncio escuro da noite saltam as tropas guerreiras guarnecidas por
chusmas imensas de tamoios fortes que deveriam operar unidos na campanha. E enquanto
davam segurança ao campo, jaziam pelas praias estendidas para investir, com a luz que já
raiava, a aldeia de Arari que os esperava. Mas o bravo tapuia belicoso, antevendo o descuido
do inimigo, insidioso, aproveita o manto da noite para atacá-los no abrigo noturno. Animoso,
convoca os seus guerreiros e sem dizer-lhes mais sobre o perigo, depois de os olhar
184
Durão explica que os Correias e os Sás são um nobilíssimo ramo dos condes de Penaguião, ou como querem
outros dos senhores da Tapada, que passando ao Brasil, deu os primeiros conquistadores àquele Estado. A
família existe com a antiga glória na excelentíssima casa de Asseca e nos dois digníssimos ramos da mesma, os
excelentíssimos senhores Sebastião Correia de Sá e João Correia de Albuquerque, fidalgos que o Brasil deve
considerar como seus perpétuos pais e protetores. (Ver nota 2)
185
Certamente em homenagem a Martim Afonso de Sousa, chefe da primeira expedição colonizadora enviada
pelos portugueses ao Brasil, em 1530.
189
caladamente por um breve espaço [de tempo], disse cheio de ardor, batendo o escudo: Su
186
,
valorosa, intrépida tropa! Que esperamos no nosso alojamento? Por acaso até que o campo
ferva de gente e nos alcance o francês em nossa própria casa? Sei por espião que observa o
seu campo que [o inimigo] dorme desatento pelas praias; se o surpreendermos de improviso,
sentirá todo o dano antes do aviso. Basta que prossigais em marcha silenciosa, invadindo a
turma descuidada, sem empregar a bala ou a seta, mas que tudo seja levado [só] na pura
espada. E quando atacardes o vasto campo, deixando a entrada livre às canoas, antes que a
arma vibre os seus reveses, desarmai, se puderdes, os franceses.
(67) Chamam corpo da guarda [o lugar] onde o soldado costuma pôr as
armas nas vigias [orifícios pelos quais se espreita]. Para lá correi apressadamente, seguindo
sempre o passo dos espiões; nada pode o francês desarmado e sem as chamas ímpias que
derrama, imediatamente ficará prisioneiro nas mãos da nossa tropa. Assim falou o astuto Arari
e em passo lento, cada um se dispersa pela mata, devendo a dado tempo e a certo espaço,
achegar-se a qualquer batalhão adverso. E achando o campo adversário em sono descuidado e
lasso, sem ter sentinelas, um a um, pé ante pé, em marcha lenta, assaltai juntos a adormecida
guarda.
(69) Apanham as armas ajuntadas de improviso, matando as guardas meio
adormecidas e depois de tomar todo o armamento, aqueles que vêm buscá-lo perdem as vidas.
As mortes acompanham o sono e outros, vendo os bandos sem armas, não sabendo a causa do
tumulto, buscam as lanchas para fugir do ataque. Ararigbóia como um raio ardente, degola
uns que estavam na areia; outros desarmados, sentindo-os rendidos, encadeia com cordas,
aprisionados. Pela praia imensa, a fiel tropa deixa toda a praça cheia de horror: o planalto
cobre-se de cadáveres, alagado de sangue humano com a espada.
186
Su – antiga forma da interjeição sus (eia, coragem, ânimo). Usada também na estrofe 39 do Canto IV.
190
(71) E já aparecia nos céus risonha a estrela d’alva [Dalva], apartando as
trevas; com luz trêmula, o incerto dia ia raiando no extremo do horizonte. Quando o estrago
da noite aparecia, evidenciando o francês preso ou morto, nem as lanchas se salvaram pois a
vazante as pôs na mão do vencedor, em terra. Martim [Ararigbóia] não interrompia o ataque
contra a espantada multidão de tamoios que se embrenhou e, deixando-lhe a aldeia destruída,
ninguém se esconde no mato ou brenha. Lança muitos ao inferno com a espada e outros,
fugindo para o mar, atiram-se na água. Fulminando com a maça, não perdoa alguém que se
oculte na cabana ou na canoa. Este lutador fiel do Brasil fez tanta guerra à nação dos tamoios
que, sozinho, com a espada fulminante lhes extinguiu o nome e destituiu da terra. Enquanto
Ararigbóia permanece no campo, o rebelde navegante não ousa mais desembarcar na costa
sem que o herói o combata, deixando-o morto ou escravo
187
.
(74) No entanto, vi que do excelso trono vinha uma augusta donzela
adormecida da qual brilhava, em aspecto santo, a piedade, a abundância, a ciência e a vida. Do
seio coberto com manto dourado, demonstrava a opulência apreciada pelo mundo. E logo que
foi vista sobre a terra, submergiu-se no inferno a infausta guerra. Era a divina paz enviada
pelos céus, prêmio a um reinado zeloso da fé religiosa o qual propaga o santo culto onde
governa e é amante das leis e as defende. Sem os estragos de uma guerra desprezível, o Brasil
gozará de paz constante por setenta anos de um governo justo, tendo o território tranqüilo e o
mar calmo. Não mais se ouvirá no oceano e no sertão vasto a bomba pavorosa nem a espada
[se verá]. Só a voz do Evangelho, poderosa, simples, sem artifício, manipulação ou fastio
[será ouvida]. A gente semi-selvagem, acostumada ao jugo, será tomada por um temor puro, e
pelas mãos dos seus apóstolos se verá feita a conquista com as armas da cruz.
(77) Mas vi o império lusitano submerso em sangue na Líbia ardente e o seu
domínio sobre a região da Índia invadido em suas águas pelo batavo. Ou por descuido do
187
Após a narrativa profética das lutas contra os franceses, iniciada na estrofe 21, Paraguaçu prossegue, falando
agora da visão evocadora de paz e do crescimento da colônia, sua conversão ao cristianismo e a nefasta parceria
de Portugal com a Holanda, em 1640.
191
governo ocidental ou abatido por mil contratempos, no vasto mar, por todos os lados, cedeu à
fria Holanda o império do Brasil
188
. Juntando dezesseis longos séculos aos vinte e quatro anos
da era atual [em 1624], vi a esquadra batava sulcando o mar, dirigida pelo general
Willekens
189
. O almirante Petre Petrid assombrava os mares. Aos náuticos fora dado poder
para, fingidamente, navegar para a Índia; contra a expectativa, chegaram à Bahia.
(79) Descobri à frente da gloriosa praça, governando [o Brasil] o bom
Furtado
190
que, antevendo os efeitos da desgraça, dispunha de tudo o que restava. Convoca
quantos encontra e abraça a tudo para opor-se ao perigo ameaçador. Mas a população se
dispersara sem batalha, por faltar não valor, mas gêneros alimentícios. Assim provocava o
batavo experiente, antevendo que a multidão dispersa, sem cuidadosa providência a sustentá-
la, fugisse ao esfriar sua coragem. E vendo a multidão rareada e o povo esmorecido pela
demora, quando menos a chusma fraca espera, ocupando um castelo [o holandês] ataca o povo
[novamente]. Ruyter e Duchs, com poderosa legião, invadem a porta de São Bento em fúria.
Mas despojados da aparência de valentia, param, fugindo da pretendida injúria. Mas as
pessoas concebem tão funesto horror, que ignoram a guerra com profunda imprudência.
Quando pensam que Ruyter não avançaria, deixam o terreno e fogem do vencido. Furtado de
Mendonça que jamais vira a face escura do medo vil somente com setenta [homens] a
experimentara e sem mais além de seu peito, toma a praça. O amor da pátria que lhe inspira o
furor faz que, desprezando o cuidado com a vida, o luso se lance contra o batavo que o cerca:
fere um, despedaça algum e outro desnorteia.
(83) Na manhã que o céu descobre, vendo a cidade abandonada pelo povo,
nada mais [há] além do peito nobre de Furtado e os poucos setenta na esplanada. Teme que
188
Tendo o governo espanhol determinado a invasão do território luso, sem condições de resistir sozinho,
Portugal aliou-se à Holanda que, em troca do seu apoio, manteria a posse do Nordeste brasileiro por dez anos.
Assim, Portugal e Holanda foram parceiros comerciais durante quase todo o século XVI. Para suprir as
deficiências da marinha mercante lusitana, os navios holandeses faziam o transporte de mercadorias entre os
portos brasileiros e Lisboa, e de escravos da África para o Brasil.
189
Jacob Willekens, comandante da esquadra que entrou na Baía de Todos os Santos, em 8 de maio de 1624.
190
Diogo de Mendonça Furtado, que sucedeu no governo geral do Brasil, a dom Luís de Sousa. Ele chegara ao
país em 1622 e foi, segundo Rocha Pita, o décimo-segundo governador.
192
reste a coragem num só peito e que, deixando a empreitada para trás, ofereça a rendição ao
bravo chefe do qual deveria ter vindo o socorro.
(84) Não tarda correr velozmente a fama do sucesso na capital brasileira
191
,
onde o belga que a governa colhe os louros da vitória. Treme em Madri o trono, receando que
o bélgico leão
192
com seus excessos prostre a Espanha e, como diz o povo, no México e no
Peru lhe imprima a garra
193
.
(85) Cobre-se o mar de esquadras numerosas, movimentam-se a nobreza
lusa e a espanhola e vão-se embarcando legiões famosas; o mar fervia todo de multidão
marítima
194
. Fradique comandava as poderosas naus hispânicas; Meneses, as de Lísia presidia.
No caso incerto, via-se terra e mar cobertos de apetrechos, canhões e armas. A soberba
armada, com sessenta e seis navios já entrava pela barra da Bahia; sobre eles, dez mil homens
de alta valentia ocupavam a enseada. [Havia] tanto nome na operação militar que a guarnição
da praça, assombrada, bem que fingia dar valor a esta conquista antes de vislumbrar o
momento de ancorar. A armada inteira dispõe-se em semicírculo, impedindo a fuga do belga
esmorecido; o forte exército ocupa a ribeira formado em dois quartéis divididos entre os [dois]
lados. Mas o batavo Quif, tendo atacado o campo de Fradique em primeira mão, deixou no
ardor enlouquecida e imóvel a gente lusa e derrotada a espanhola. Cheio de orgulho pela
brava ação, o belga, para mais provar o zelo pátrio, contra a esquadra que batia na murada,
arremessa um mongibelo em dois barcos. Meneses, que observava, acreditou que fosse fuga e
movimentou toda a esquadra sem avisar. E parece que Deus o inspirava no impulso de retirar
as naus do provável incêndio. A lua fez um giro na esfera azul enquanto os belgas já
enfraquecidos se dispunham a ceder, na contenda feral, ao furor incessante dos ataques. E
191
Naquele tempo, a Bahia era o centro açucareiro e sede do governo do Brasil; daí os ataques que sofria por
parte dos estrangeiros.
192
A Holanda e a Bélgica, naquela época, formavam um só bloco: Províncias Unidas dos Países Baixos.
193
É justificável o temor da Espanha: se os holandeses tomaram a capital brasileira, seria possível desejarem tirar
o México e o Peru dos espanhóis.
194
Este era o reforço que os colonos receberam dos europeus para lutar contra os invasores. A esquadra, que se
chamou Jornada dos Vassalos, era comandada por dom Fradique de Toledo Osório.
193
quando não esperava mais socorro, vendo que os mares se encapelavam nas alturas, o humilde
batavo cede ao luso-espanhol a capital do império americano.
(90) Catarina prosseguia falando, tendo a assembléia atenta ao discurso,
quando com fúria a lateral [do navio] se inclina ao mar, abatida por horrível tormenta. O
capitão envida todos os esforços na manobra e, vendo [uma] onda horrível aparecer, lança-se
o marinheiro à vela apressadamente. Diogo o ajuda e Catarina pára [de falar].
CANTO IX
(1) Depois que o tempo se torna bonançoso, e a noite vem tranqüila em
branda calma, na alma de todos se acende o desejo de ouvir mais do sonho portentoso.
Desejando saber quem teve a vitória na luta contra o belga belicoso, suplicam a Catarina que
prossiga na narração do sonho e tudo diga. Então prossegue a mulher: Vi o Brasil converter-se
em duro Marte [campo de guerra] e o batavo feroz vagar potente; [vi] Plutão encher o reino
escuro com a desditosa gente. Vi as milícias descendo do céu puro para infundir na plebe
inerme com ardente zelo um tal valor, de modo que ela pudesse contar a história, citando cada
vitória como milagre do céu.
(3) Petrid e Iolo, raios da marinha, com esquadras senhoras do mar
profundo, teriam queimado com chamas desoladoras o Brasil. A frota de Petrid que vinha das
Índias, com tempestades de fogo abrasadoras, impõe novas cadeias
195
às naus do infeliz
Brasil, cheias de tesouros. O belga ambicioso movimenta máquinas, suprindo o gasto com a
grande quantidade de prata e armando para a guerra numerosas esquadras; pretende tomar
195
Esta foi a segunda invasão holandesa no Brasil (Pernambuco, 1630). No poema, muitas vezes o holandês é
denominado belga (Ver nota 192).
194
Pernambuco dos lusos. O espanhol nem se opõe às forças poderosas da Holanda na nova
investida, a fim de dar socorro à praça para defesa contra o grande poder dos batavos naquela
contenda.
(5) Governa a terra extensa de Pernambuco o intrépido [Matias de]
Albuquerque, a tudo atento. Guarnece a tropa, condensa os esquadrões, prepara o instrumental
de guerra para abrir fogo. Então, como densa floresta, o oceano se viu coberto por setenta
proas que rompiam o mar, seguindo o general Wandenburgo.
(6) Chamam Pau Amarelo um lugar ao lado da cidade onde a frota se
alojava. [Era] cômodo para o desembarque e mal guardado por Albuquerque o qual defendia
as praias. Dali, formado com quatro legiões, o batavo se dirige à bela Olinda onde com turmas
de pessoas inexperientes o chefe lusitano se opunha ao enérgico belga. O tímido esquadrão da
gente lusa não resiste muito ao fogo incomum; preocupada com o insólito horror, empreende a
fuga em multidão confusa. Um após outro, ao fugir precipitado, não se recusa a se render ao
valente belga, e deixando a cidade infeliz vazia, eles se salvam de serem acertados. Entra o
holandês na praça abandonada e quando pensava que ela estivesse cheia de riqueza, em triste
solidão desamparada, constata que a cobiçosa idéia é inglória. [Todos] se vingam nos templos
com maldosa intenção: profanam o altar com infâmia feia, tratando o ritual sagrado e o santo
culto com mente sacrílega e horrendo insulto.
(9) Porém não sente o torpe medo da fuga o valente e fortíssimo Temudo
196
e tendo ao lado o intrépido Azevedo, a espada empunha atingindo o escudo. Ao ver o alcance
do funesto saque e a figura do holandês toda perturbada, junta alguns que odiaram a fuga vil,
dando por preço da glória a heróica vida. Oh, disse, honra imortal do nome luso, corações
valorosos que em tal sorte fazeis o melhor uso da doce vida, comprando a glória com a invicta
morte! Vedes desorganizado o batavo confuso, exposto ao corte da valorosa espada; correi às
196
André Temudo – herói brasileiro que se atirou contra dezenas de holandeses quando, em 1630, invadiram e
profanaram a Igreja da Misericórdia, no Recife.
195
armas pois se não os vencemos, não morreremos sem vingar a pátria. Assim disse e,
empregando a fulminante espada, invadiu uma esquadra que seguia com cálices da igreja
profanada, onde insultavam e se punham a escarnecer. De uns deixou no chão a cabeça
partida; de outros lanceta o peito com o ferro. Insano, ataca alguns com fremência os quais
com o braço talhado tremem sobre a terra. Os demais, Azevedo lança-os ao chão empregando
o impulso das balas. Com um golpe feroz de alabarda, alcança o horrível pulso de Ruyter que
o atacara. Despoja-o da arma e furioso avança, deixando-o em terra com tremor convulso.
Derruba Cornelisten e aplica o ferro em Blá e rega todo o chão com sangue. Com fúria igual e
ímpeto destemido, investe contra a caterva de batavos, embora a legião formada ao redor do
luso ferva em disparos. Os portugueses, nunca rendidos, resistem enquanto conservam o vigor
da vida, até que, derrubados sobre os belgas, caíram mortos, sim, porém vingados.
(14) Chama-se Arrecife um forte posto separado do continente por um
istmo, de onde o Castelo de São Jorge defende a passagem dos adversários com trânsito
iminente. Ali fazia frente aos inimigos o bravo Lima
197
que sacrifica aos seus furores trezentos
belgas ardorosos, tendo não mais que trinta invictos defensores. O insano Wandenburgo
pasma de assombro e nem podia crer se a vista não o convencesse, que com força tão pouca o
lusitano resistiu ao furor de dois mil belgas. Sai com todo o poder e ocupa o planalto e tenta a
conquista de forma regular e nem assim o Lima cede ao fogo, enquanto pede auxílio ao
general. No entanto, a valorosa gente lusa recobrava-se do primeiro terror; inexperiente no
combate belicoso, cedera no improviso do incidente. E acompanhando o ardor valente do
intrépido Albuquerque, em tropa numerosa, [os portugueses] cercaram com redutos e
trincheiras o belga usurpador, pelas ribeiras. Depois montaram um forte acampamento de
onde afrontassem o batavo inimigo, não deixando que um só pudesse sair ao campo sem dano
ou sem perigo: cortam-lhe o passo e impedem-lhe a sustentação e nem lhe concedem abrigo
197
Antônio de Lima – militar português que defendeu valentemente o Forte de São Jorge, em Pernambuco,
contra os invasores holandeses, em 1630.
196
no terreno [quer dizer, afugentam-no]. E ocupando toda a redondeza, deixam cercado o belga
cercador.
(18) Wandenburgo avança contra Albuquerque com dois mil dos seus
guerreiros escolhidos, mas os lusos estavam prevenidos, confiantes em sua capacidade. Os
belgas caíam das trincheiras, abatidos pelo fogo ou pela espada ou lança; sem ousarem a
combater mais, desordenados, fogem do campo para o alojamento.
(19) Recebendo outra vez socorro de Lisboa (uma armada com quatro
companhias), a tropa foi reforçada com gente e munições por outra [frota] de Oquendo
198
: mil
mosqueteiros, tropa exercitada no duro jogo de Mavorte
199
horrendo, conduzidos por
Sanfelice
200
, mestre de guerra, mas menos apto na [guerra] praticada aqui. Com socorro maior
da Holanda, em armas, contra Itamaracá avança o inimigo; porém duas vezes o belga foi
rechaçado com perdas [indo] para o conhecido abrigo. Enviado à Paraíba e Rio Grande,
mudava de lugar, não de perigo: já menos inexperiente, a tropa lusa põe em fuga o holandês se
o encontra em campo.
(21) No império holandês, Rimbach sucedera a Wandenburgo. Notável em
guerras, considerava vitupério para os belgas ser cada dia derrotado pelos nossos. Enquanto o
acampamento atento e sério celebrava a Páscoa em devota procissão, o batavo ataca
poderosamente e põe a tropa em confusão, combatendo-a. Não se interrompe a cerimônia
augusta; o clero, ora com o sexo pio [com as mulheres]; os ortodoxos saem contra a turma
injusta, tomando por sagrado o desafio. E depositando no céu confiança justa, pelejam com tal
fé, com tanto brio que, matando Rimbach violentamente, deram aos belgas o pagamento pela
blasfêmia. Mas o céu destinava o castigo: concede poder tão grande aos batavos que nada
198
Antônio Oquendo – almirante espanhol que chegou à Bahia em 1631 à frente de uma numerosa esquadra.
Travou renhida batalha naval contra os holandeses, matando o inimigo almirante Jansse Pater.
199
Relativo a Marte, deus da guerra; foi educado por um dos titãs que lhe ensinou a dança e os exercícios
corporais de ataque e defesa, simplificando a arte de matar-se uns aos outros.
200
Durão anota no manuscrito que Sanfelice era o célebre conde de Banholo, oficial prático, mandado de
Espanha para exercitar e disciplinar as nossas milícias.
197
impede a Vandescop, que os dirigia, depois deste acontecimento. Itamaracá fica escrava da
Holanda, desfaz-se o exército, a Paraíba cede, perde-se o Rio Grande e, em outra luta, o luso
entrega Pontal e Fortaleza.
(24) Salva-se o restante da facção perdida em Alagoas, sítio defensável onde
a turba miserável buscou asilo quando foi perseguida pelo belga feroz. Mas em breve foi
socorrida pela Espanha com brava tropa em frota respeitável; Roxas de Borja foi enviado a
Pernambuco e tomou o comando deixado por Albuquerque. Roxas, ágil no trabalho, posto em
combate investia contra as tropas de Wandescop, mas o belga Arquichofe interrompe a
investida trazendo precioso socorro. A noite que começa com tenebrosa sombra marca os
lutos da morte impiedosa pois, disposto em defesa, Roxas esperava armado o socorro
solicitado. Contudo, logo que a manhã se mostrou formosa, o grupo unido do exército inimigo
ainda não suspendera a abundante chama e a corporação batava investiu furiosamente. A
fumaça tenebrosa cobre os céus: espanhóis e holandeses perdem a vida: nem este nem outro
ali vencera, se o temerário Roxas não morrera.
(27) Sanfelice, mestre astuto na guerra, sucede ao bravo espanhol no
governo. Com tantas mortes, o brasileiro Fábio salvou o lusitano na retirada. Como
conseqüência das vitórias batávicas, o conde Nassau
201
foi enviado pelos belgas para governar
o “país” pernambucano, pois era general das conquistas que empreendia. Nassau era
celebrado nas armas, ilustrado por nobre nascimento, príncipe então no império respeitado,
nutrindo igual ao sangue o pensamento
202
. Acompanhado por forte armada, chegou a Recife e
lá se fixou. Ergueu fortes e guarneceu as colônias com castelos, como países belos. Mas
aspirando a um acontecimento memorável, preparava todo o exército e os armamentos, e
achando Pernambuco defensável, invadiu o recôncavo da Bahia. Sanfelice, com resto
201
João Maurício de Nassau, conde de Nassau-Siegen, foi enviado a Pernambuco em 1637 para consolidar e
organizar a conquista da Companhia das Índias Ocidentais no nordeste brasileiro. Nobre, militar, ilustrado e
calvinista, governou os domínios holandeses no Brasil por sete anos, revelando-se um bom administrador para o
país.
202
Quer dizer: era nobre no sangue e nas idéias.
198
miserável, pedia então ao rei novo socorro para que quando o bravo Nassau atacasse, ele
pudesse lhe opor um chefe prudente e forte. Opunha-se ao conde em tudo (em forma e arte)
para rebater as realizações do batavo. Dispõe pela cidade por toda a parte os meios e
instrumentos de defesa: organiza grossas levas [de combatentes] e reparte esquadrões,
preparando tudo para a forte empresa, de nada se esquecendo daquilo que, na milícia, a sábia
perícia militar inventa. No entanto, Nassau entra pela vasta enseada e enche as praias da Bahia
com terrível e majestosa esquadra composta de quarenta navios. E ao som da trompa marcial
que tocava em gratos ecos de horrível harmonia, com tais ensaios enchia a enseada de trovões
e o céu de raios, como horrenda procela.
(32) No entanto, o branco Silva
203
, que ocupava o sublime comando do
supremo governo, renunciava ao posto em favor de Sanfelice, ficando como soldado sob seu
comando. [A] heróica decisão que tomava pela pátria, confessando haver maior perícia em
outra pessoa, mereceu aclamações da corte e grandeza por parte do rei
204
.
(33) Nassau desembarca com grande multidão perto de Tapagipe, se apossa
do outeiro que a gente comum costuma chamar de Padre Ribeiro, seu antigo habitante. Mas
Sanfelice, que o anteviu prudentemente, abate-o do posto que ocupara primeiro e, depois de
matar seiscentos com destreza, desbarata o belga em grande parte. Por longos dias Nassau
ataca a trincheira que o quartel, com Banholo à frente (Ver nota 200) lhe opôs, mas o belga,
em verdadeira batalha, avançava furioso por muitos dias. De maneira repugnante, cobre-se a
terra de um enorme amontoado de cadáveres; mesmo vendo os belgas caírem com tanto
sangue, Nassau não desiste da conquista. O exército já se via desfeito, o oficial ferido e a
gente morta, sem que cessasse o furor nos [guerreiros] da Bahia, dirigidos por Sanfelice e
animados pelo Silva. Nesta situação, Nassau pede tréguas e transporta para as naus toda a
203
Antônio Teles da Silva – governador-geral do Brasil que secretamente ajudava os heróis da resistência: André
Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e Henrique Dias.
204
O poeta explica que, por este ato generoso que salvou a Bahia, Silva foi nomeado por Felipe IV primeiro
Conde de São Lourenço.
199
tropa, fugindo do infausto efeito do perigo com perda igual de gente e da imagem. Por
vingança, fica dois dias na enseada e a esquadra abate a cidade sem perigo, com balas e
granadas lançadas em vão, mais parecendo salva que castigo. Sobreveio ao Brasil nova
esperança de eliminar com mais forças o inimigo, mas o efeito das promessas foi vago; o mar
adverso impedia [a chegada] do socorro
205
.
(37) Vi neste tempo em confusão pasmosa a monarquia imperando em Lísia
(França) e a gloriosa casa de Bragança triunfar reinando nos quatro impérios. [Vi] a Bahia
festejar o monarca triunfante com pompa majestosa e Pernambuco, farto de desgraças, invocar
[como] pai da pátria dom João IV. O novo rei com fé comprovada negociava a paz batávica;
ao mesmo tempo, sem justiça, o belga injusto deixava-a quebrantada pela vil cobiça. Uma
armada batava ocupa o Maranhão e outra esquadra, em Sergipe, atiça o incêndio pretendendo
tomar ardilosamente toda a África e o Brasil ao lusitano.
(39) Tendo o Conselho do Recife armado mil artifícios de calúnia infanda,
afrontado, o general Nassau cede o comando do governo. Mesmo tendo se moderado, o duro
freio do governo não acalma os habitantes: a população exasperada que o experimenta
tenciona afastar o jugo, com sucesso. Nesta realização, João Fernandes Vieira (Ver nota 2) foi
o instrumento de liberdade da pátria, herói que soube usar da grande riqueza, libertando o
Brasil desta impiedade. Na defesa, tentou furtivamente a associação com amigos e com
patentes [militares]. Para complicar, o belga derruba a estátua de Nabuco, de Pernambuco.
[Vieira] nomeou cabos, tropas, companhias, pediu socorros e invocou o poderoso governo
brasileiro, por prudência, expondo as tiranias do holandês. Sem demora avisa Henrique
205
Neste ponto, Paraguaçu/Catarina interfere na narrativa, voltando a usar a primeira pessoa do discurso, como a
lembrar que é ela quem está contando o sonho que tivera enquanto orava ou dormia na viagem de volta da
França. Começa a narrar a visão do futuro do Brasil, em suas lutas e glórias, enfim, na sua história. A fala da
visão iniciada na estrofe 21 do oitavo canto (invasões francesas) adentra o nono canto (invasões holandesas) e
vai até a estrofe 79 deste.
200
Dias
206
, capitão valente dos etíopes
207
, e o forte Camarão
208
, que em muitas guerras espantara
os belgas com os seus [índios] carijós. O holandês assustado percebe o movimento e,
querendo debelar a chama incipiente, com dois mil homens preparava com atenção a nova
guerra, inflamada por Vieira. O chefe lusitano deixara o alojamento e, secretamente,
organizava a cilada para os belgas escondidos num lugar nas rochas firmes, num monte a que
chamaram de Tabocas. Entre arbustos e canas, de improviso, o luso dispara sobre a gente
incauta; precedendo o dano ao aviso, destrói o holandês com fúria ardorosa. O batavo indeciso
interrompe a marcha e, sem ver o inimigo, sente o golpe, até que, vendo o estrago dos
soldados, [todos] cedem o campo e fogem destroçados
209
.
(44) O luso [estava] aflito pois Holanda era potente e enchia Lisboa de
ameaças por ter tido notícias do infeliz conflito; preparava para o Brasil novas desgraças. Mas
para proteger os seus, o rei invicto enviou, piedoso, às províncias fatigadas providências que
pudessem garantir a paz no tumulto em que os nossos se encontravam. Da Bahia seguem com
dois regimentos destacados [Martim Soares] Moreno e [André Vidal de] Negreiros a fim de
pacificar (se é possível) a guerra que então Vieira promovia. Viram várzeas e campos
abrasados e o colono infeliz perecendo. A tropa observava com lástima todo o estrago que o
belga ali causara. Lá chegando Negreiros e Vieira, disse o primeiro: Venho dar-vos a prisão
por haverdes provocado a ira estrangeira para uma guerra que acaba de assolar-vos. É justo
que eu também vos queira prender, mas será (disse o herói) com abraçar-vos. E assim
dizendo, alegre dá um passo e recebe os dois com festivo abraço. Da mesma forma, a tropa
unia-se ao invencível esquadrão pernambucano e aplaudindo a vitória conseguida, detestam o
206
O autor complementa dizendo que Henrique Dias era um negro valorosíssimo e comandante dos negros que
tiveram grande parte na restauração do Brasil.
207
Etíopes eram os negros que habitavam as terras sul-africanas. Imitando Camões (quinto canto/62 de Os
lusíadas), Durão dá a etíope o significado de negro.
208
Dom Antônio Felipe Camarão, comenta o poeta, era americano de origem e nação, bravissímo capitão dos
índios carijós que se fez terrível aos holandeses em freqüentes combates. E nós completamos: era cognominado
índio Poti (de potiguar ou rio-grandense-do-norte). Uma curiosidade: potiguar quer dizer “comedor de camarão”
na língua tupi.
209
Apesar de pouco aparelhados e apesar do acordo de trégua entre Portugal e Holanda, os pernambucanos
derrotaram fragorosamente os holandeses no monte das Tabocas, em 1645.
201
enorme engodo do holandês. Não tarda muito, a gente mentirosa deixa de atacar a esquadra do
lusitano que desembarcara para a paz, convidando para ela o próprio batavo.
(48) No entanto, ouvem-se os míseros clamores de multidão feminina que
invocava o socorro dos seus libertadores contra o belga cruel que a aprisionava. Mas Vieira
não pára e, sem rumores, cerca o engenho onde o descuidado general belga descansava; ataca-
o, vence o combate, rendendo-o à prisão.
(49) Henrique Huss, comandante de Recife, era o soldado belga prisioneiro;
Blac, outro chefe importante, subalterno do primeiro no exército, também foi rendido. O
batavo arrogante foge do luso, espalhando fuzis no grande terreiro: teme o fogo que na
horrível luta Vieira lançara pelo vasto engenho. Com a fama por vitória tão brilhante, o povo
toma as armas e investe contra o belga. O partido popular da liberdade tomou Serenhaem, vila
poderosa; seguiu para Itamaracá com fé constante, para Porto Calvo e os arredores da cidade,
deixando em Recife o holandês com duro cerco, irremediavelmente preso. Porém a
companhia da Holanda
210
não cessa, e ao numeroso exército que comanda envia Segismundo
Van-Scop para chefiá-la investido de plena potência para a guerra. Que o experiente general
desse crédito e o prêmio ao valoroso e ao fraco, o castigo. Que empreendendo com as forças o
combate, prendesse ou matasse o inimigo Vieira.
(52) Abordando Recife então cercado, condena a inércia dos seus chefes.
Sem tardar, o exército armado vai a Olinda pretendendo conquistá-la à força. Ataca-a em
assalto duplo e a brava tropa que estava aprisionada, com tanto alento o batavo despreza.
Ferido, Van-Scop se recolhe ao alojamento. Sem desistir por causa do ocorrido, tenta de novo
o ataque da Bahia, mas nota nos portugueses a insistência, o que lhe parece injúria do poder.
Consome a abundância do Recôncavo com freqüentes investidas que empreende e para que o
210
Companhia das Índias Ocidentais – Fundada em 1621, deteve o monopólio do comércio, navegação e
conquista das terras americanas sob controle holandês por 24 anos. Foi criada pelo governo e por grupos
mercantis e financeiros das Províncias Unidas com o objetivo de dominar a produção e o comércio de açúcar,
assim como o tráfico de escravos.
202
sofrimento aumente na cidade, ocupa Taparica e lhe impõe o cerco. No entanto, Teles
pretende expulsar o batavo inimigo, mesmo sem ter força igual e, contra o senso comum,
empreende o ataque e tudo aplica no investimento arriscado. Vendo porém o luso rei que a
nada atende o belga em seus vários pactos, manda ao Brasil armada poderosa para que domine
a batava nação orgulhosa.
(55) Van-Scop teme o golpe e desanima de guardar Recife e Taparica;
antevendo que a esquadra se prepara contra seu exército, suplica-lhe auxílio. Barreto de
Meneses
211
que chegara com a nova patente de general, e elevado à chefia de Pernambuco,
com prudência e valor foi governando. O batavo manda valorosa tropa de nove mil homens,
veteranos laureados, para pôr fim à guerra pernambucana. A armada poderosa ocupa o mar e,
dominando a praia americana, apossa-se dela e tem alto domínio sobre o mar e a terra,
ameaçando os lusos de extermínio. Põe-se em campanha o batavo terrível, com sete mil
veteranos em pelotão. São densos bandos de gentio horrível com instinto dissipador, vindos da
Europa. E avaliando a potência irresistível, cede ao belga a Barreta
212
e tudo o que tem,
enquanto o luso fica na defensiva e fortifica o campo contra o belga. Segismundo, porém, que
procura assegurar as provisões em Moribeca, pensava assentar ali alojamentos, calculando a
vitória já segura. Mas Barreto e Vieira, a tudo atentos, considerando a justeza que a causa lhes
assegura, confiam que o céu lhes valha no seu propósito e vão preparando tudo para uma
batalha.
(59) Mesmo com tanto poder, Van-Scop se recusa a decidir com um gesto
toda a batalha, antevendo que, se a perde a gente lusa, não teria outra força para engendrar a
guerra. E a multidão confusa já em marcha começa a ação horrenda pelo fogo, e atrapalhando
toda a formação dos belgas, combate com valor, porém sem técnica. Nos montes Guararapes
211
Francisco Barreto de Meneses – general português, um dos heróis das guerras da restauração do Brasil.
Derrotou duas vezes os holandeses nas batalhas dos Guararapes, obrigou-os a entregar o Recife e todas as outras
praças por eles ocupadas. Acabou por expulsá-los definitivamente do território brasileiro em 23 de janeiro de
1654, na campina de Taborda.
212
Barreta – fortaleza importante dos nossos, junto de Recife, aponta Durão no manuscrito.
203
se alojava o português de prontidão, esperando pelo belga, e a brava escaramuça que tinha
preparado faz sitiado o holandês que lhe era adversário. Do alto do monte o luso fazia fogo
para ruína acentuada dos batavos: seja nas encostas, seja no cimo espaçoso, o monte cobriu-se
de cadáveres. Irado, Van-Scop reúne os batalhões e, posto à frente valorosamente, tenta
desalojar do alto o invicto Camarão que o enfrenta. Mas repelido com chuva de balas, perde
três vezes a posição alcançada e já ferido e com mil mortos cede em fuga vil na escuridão da
noite. O lusitano perde noventa dos seus e enquanto o belga se retira cambaleante, a aurora
descobre todo o monte e o planalto, coberto de bandeiras, canhões e armas. Ali muitos
batavos tiranos ficam perdidos na noite em campo aberto; desconhecedores das rotas, com o
dia, [ficam] prisioneiros nas mãos da nossa tropa.
(63) Horroriza-se a Holanda, pasma a Europa, exalta Portugal, canta a Bahia
ao ver triunfar tão pequena tropa sobre a terrível potência que a invadia. O pensamento leva a
crer que [nisto] não há nada de humano: em tudo se via claramente a mão de Deus pois
sempre ele elege para os seus portentos os mais fracos e humildes instrumentos. Em tal
conquista, a cobiçosa Holanda tinha exausta a ambição, mas não [se sentia] cansada. E
aparelhada para novo combate, escolhe os capitães e alista gente. Mas provocada às armas
pelo britano
213
, por mais alto interesse, interrompe o exercício da famosa empreita, deixando
em Pernambuco a guerra acesa.
(65) Brinck, a este tempo coronel valente, equipa a brilhante tropa de Van-
Scop com apetrechos e número suficientes para decidir toda a cruel batalha. Põe no campo
assombrado da potência [holandesa] cinco mil homens escolhidos, iguais no valor e na
diligência, guarnecidos de canhões e equipamentos. Com dois mil e seiscentos veteranos,
Barreto faz-lhe frente e invade o [campo] belga; de todo lado correm lusitanos a sustentar a
liberdade da pátria. Eles se alojam no mesmo terreno onde se passara a mortandade.
213
Britano ou bretão – povo antigo da Gália que se estabeleceu na Grã-Bretanha e na Irlanda, donde se
originaram os holandeses. Neste verso o poeta quis dizer que o sangue bretão falou mais alto nos holandeses,
incitando-os à guerra, já que os bretões eram valentes lutadores.
204
Reconhecem o belga na montanha: uns renovam o estrago, outros se vingam. Do cume,
Brinck atento a tudo, com perícia guerreira ocupa o monte onde, seguindo o costume militar,
dá forma à retaguarda e ordem à frente. Não muito ousado, o português presume que o belga
avance em vantajosa posição, esperando dali ocasião oportuna para poder atacar com mais
sucesso. Barreto reconhece o lugar e o esquadrão; vendo o ardor da gente lusitana, hábil no
movimento, informa-o da subida e faz que o bravo Vieira ataque furioso. E organizando a
invasão com sábias regras, com tiros protege contra o grande assalto até que, por mil casos
duvidosos, vê sobre o monte os campeões briosos.
(69) Impávido, o belga agita ali nova batalha com fogo vivo (e firme insiste)
e por mais que Vieira invista, onde um corpo vacila outro resiste. Há alguns que ainda
combatem semivivos; há outros já cadáveres na morte triste, que mordem a terra e furiosos
blasfemam contra o céu e se despedem da vida. Por toda parte “voa” o grande Barreto: anima
uns, ajuda outros, outros exorta e, provocando no lusitano o afeto pela pátria, incita o forte e o
inválido conforta. O feroz Brinck gritava banhado em sangue entre a multidão batava
oprimida e morta; um horrível batalhão potente ataca e reprime outros com ardente
ferocidade. Mas o invencível Camarão, vendo-o, arremessa um forte troço [parte do canhão]
da reserva e aumentando a mísera derrota, lança o belga por terra de uma vez. Logo o
almirante da soberba frota, vendo Brinck cair inválido, sem fala, ocupa o comando que já
prevê estar vago e altivo anima o batavo à peleja.
(72) Henrique Dias não se aflige; tendo observado a intimação constante do
novo chefe, apontando-lhe um tiro violento, derruba morto o intrépido almirante. Sem
comandante o belga trepidava vacilante, indo de um lado a outro. Tímido, declara uma fuga
vil e abandona o campo em desordem. O estandarte soberbo dos Estados, tendas, peças,
numerosas bandeiras, mil e trezentos mortos contados, prisioneiros, bagagens preciosas,
205
centenas de degolados na fuga, a caixa militar, armas caras: [estes] foram, nesta ocasião de
tanta glória, o merecido prêmio da vitória.
(74) Prontamente curado, o chefe lusitano aproxima-se de Recife; mas tendo
o belga feito longa guerra, era contínuo sim, mas mútuo o dano. Então Jacques, eleito para o
comando, foi visto no campo pernambucano conduzindo a frota usada, em fortuita derrota,
para o comércio lusitano. Sitiada a praça por mar e terra, depois da longa invasão de nove
anos, com mil prejuízos, fatigada e enfraquecida, [Jacques] entregou todo o Brasil aos
lusitanos. Por clara graça do céu, evidente graça, que a tão poucos e míseros paisanos cedesse
uma nação que na guerra enchia de esquadras todo o mar e de espanto a terra. Assim o Pai
Onipotente dirige a incerta sorte do ignorante mortal para tornar evidente com tais fatos que
não é mais poderoso o que é mais forte. Tudo rege na terra a mão potente; dela depende a
vitória, a vida, a morte, e sem o seu favor que distribui todo o poder humano nada realiza.
Portugal triunfou, mas [foi] castigado. Teve em tal permissão severo ensino: só logrará feliz
reinado honrando os reis da terra e o Rei Divino. E que o Brasil confiado aos lusos será, em
cumprimento do elevado destino traçado, instrumento talvez neste hemisfério para recobrar no
mundo o antigo império
214
.
(78) Vi no sonho mil casos diferentes que acontecerão no decorrer de outros
tempos. Vi províncias notáveis e poderosas, vi nascer no Brasil ricas cidades, famosos vice-
reis e ilustres gentes. Tantos sucessos, tantas variedades que somente “pintando” como em
sombra, confunde o pensamento e a vista assombra. Vi religiosos de sublime hierarquia e
entre outros, com maior celebridade, o branco Lemos que um dia enriquecerá a universidade
com novas ciências. Ele enfeitará depois a academia com construções de excelsa majestade e
de modo sábio a tornará em doutrina o mais famoso ateneu de todo o globo.
214
Após esta digressão de cunho filosófico e religioso, a índia volta a falar de sua visão profética. No canto
seguinte, Paraguaçu continua a falar, por inspiração da Virgem. É o maravilhoso cristão, segundo a teoria
literária.
206
(80) Catarina finalizou e ficou arrebatada em êxtase, vibrando ardores;
corriam pela face banhada de luz lágrimas belas, como orvalho em flores. A piedosa platéia
fica esperançosa por ouvir outros sucessos maiores e, dando tempo ao sono milagroso,
deixam-na no abraço do celeste esposo.
CANTO X
(1) Cheia de assombro, a turba admira a dama, que voltara a si do enlevo
admirável. E prossegue a ouvir-lhe a narração gostosa da nova visão que ali sentira. Mais bela
que esse sol que o mundo gira, disse, e em cor de purpúrea rosa, vi formar-se no céu [uma]
nuvem serena como nasce a aurora em madrugada amena. Vi luzeiros de chama rutilante
tecerem sobre o globo diadema de matéria mais pura que o diamante, parecendo obra de um
ser supremo. Cada estrela luzia tão brilhante, que parecia um sol, precioso emblema de
admirável e belíssima pessoa cingida com uma coroa ao redor da cabeça. Os cabelos pareciam
de ouro fino espalhando uma aura branda aos ares e uns dos outros talvez se dividiam e outra
vez um com outro se enredava. Flechas voadoras não feririam mais do que um só deles se na
alma penetrasse: cabelos tão gentis que o esposo amado se queixa por ter sido atingido por um
deles. A fronte bela, cândida, espaçosa, cheia de celestial serenidade, pela luz formosa dava
vislumbres da imortal e soberana claridade. Vê-se reinar ali mansidão piedosa e a suavidade
envolta na modéstia, com graça; quem a olha tão serena, excitando o prazer, afugenta o
sofrimento. Não há na terra idéia dos dois olhos que obscurecem astros, flores, diamantes, ou
pela beleza cheia de mil graças ou nos agrados que brilhando oferecem. Toda a alma se
207
prende num olhar seu e à sua volta, mil votos aparecem aos que se alistam em seu culto
glorioso, outorgando remédio numa olhada.
(6) Se na terra houvesse imagem capaz de retratar a face bela eu compararia
às flores mais gentis da primavera, pelo vermelho e branco. Mas não nasce flor na esfera
terrestre, não há estrela no céu tão bela e clara que não seja, arriscando uma comparação,
menor que uma breve faísca à luz do sol. Da boca formosíssima pendente pasma em silêncio
todo o céu profundo: boca que um fiat
215
poderoso pronunciou com mais efeito que se criasse
o mundo. Em todo o ambiente se espalha um cheiro agradável do lábio cor de rubi; [era]
fragrância celestial que, amante e pia, envolvia o filho com mil beijos. Enleva a todos em
admiração respeitosa o amável e formosíssimo semblante; poderoso, nele se ostenta o
soberano criador do céu brilhante. Pois quanto tem o empíreo de formoso, quanto a angélica
luz de rutilante, quanto o ardente fogo dos serafins, aquele rosto era um conjunto de tudo.
(9) Nas brancas mãos que angelicais se estendem, um desmaiado azul
pintado pelas veias faz parecer aos olhos que apreciam, alabastros com fundo de jacinto
216
.
Ambas com doce abraço conferem ao seio formosura maior, que aqui não pinto porque para
mim não há pincel, quanto Deus já criou ou já criara. Mas sem julgar indigno de mim a
palavra santa, por meu amor, fazer comparação rasteira, parece que dentro do manto virginal
apascenta-se um cordeiro por entre brancos lírios. Os olhos, com suavíssimo encanto,
ocupam-se de um doce sono lisonjeiro; ao redor, os serafins que impedem o barulho pedem
silêncio para não despertá-los.
(11) Subjugada aos pés da mãe piedosa, vê-se a antiga serpente insidiosa:
com a culpa estampada na fronte, quebra a planta virginal gloriosa. E envolvendo os mortais,
já abatida pela voz da Virgem poderosa, submerge no mais fundo do abismo e asperge do
215
Fiat – verbo latino com significado de faça-se. Na Bíblia, Deus usara a expressão fiat lux (haja luz) na criação
da luz logo no primeiro dia da formação do universo.
216
Alabastro – rocha pouco dura e muito branca, translúcida, finamente granulada. Como jacintos são flores
arroxeadas, a comparação faz sentido.
208
antro feral o veneno. Ao ver tanta beleza, o pensamento absorto, surpreendido pela linda
imagem, ouve no centro da alma um doce toque que enche o peito de vital conforto. E como
infunde às plantas novo alento o orvalho matutino em bosque fértil, assim sempre eu senti
dentro da alma os doces influxos em abundância
217
.
(13) Catarina, [a Virgem] me diz, verás ditosa outra vez a terra amada do
Brasil. Faze que a minha imagem gloriosa roubada por mão vil seja restituída. Assim dizendo,
[uma] nuvem luminosa cobre como véu a face desejada e faz que se fixe na memória a doce
visão, entre amor e saudade. Assim conclui Catarina, enchendo a companhia de duvidoso
assombro. E diziam: Que imagem seria aquela e qual deles acaso a teria roubado? Ele
entenderia ser a imagem uma cópia da Mãe de Deus envolvida em mistérios? Ou queria talvez
que num tratamento santo se recompusesse na alma o seu retrato?
(15) Entretanto, [uma] caravela apareceu flutuando junto da baía que o mar
cortava na qual tremulava o leão das Espanhas em bandeira flamante ali içada. Ela faz a
abordagem com salva fulminante e a nau francesa que velejava na direção da terra, [foi] posta
à disposição do espanhol em visita de cortesia; o branco Diogo o convida a se aproximar. E
depois que em amigável recepção o bom Gonzales festeja o hóspede, afloram nos dois clara
recordação de quem era o espanhol e quem seria Diogo. Ambos se abraçam e se desejam mil
felicidades. O luso reconhece no nobre espanhol um dos companheiros de Orellana
218
.
(17) Carlos [V], o grande e famoso imperador, envia-me a saudar-te com
gratidão, disse a Diogo o espanhol generoso, socorrido em outra ocasião na Bahia. O
invencível César, agradecido pelo teu obséquio à monarquia espanhola e pelo serviço (que
considera grandioso) retribui por mim com satisfação. E para que possa em caso semelhante
retribuir-te aquela ação piedosa, aqui te ofereço salva a gente infeliz [que estava] perdida
217
Após a descrição da Virgem, inspirada por ela, a índia conta em proféticas visões os acontecimentos em solo
brasileiro anteriores e posteriores à viagem do casal à França.
218
Neste reencontro, Gonzalez rememora os fatos acontecidos e conta a Diogo a História do Brasil daqueles idos
de 1541, na capitania Bahia de Todos os Santos. (Ver nota 133)
209
nessa praia desditosa. Vivia na opressão do trabalho escravo em cativeiro bárbaro e
inclemente até que, protegida por estas armas, resgatou com a liberdade a infausta vida. Então
Garcez, o mais distinto da gente lusitana, ouvindo o discurso, confirma o benefício à força
espanhola e começa a narrar os casos de sua história. Depois que abandonaste o povo insano,
com teu aviso a monarquia lusitana para cá mandou gente e navios poderosos a fim de sujeitar
as nações guerreiras.
(20) Pereira Coutinho
219
foi o encarregado de fazer a grande conquista da
Bahia
220
. Herói celebrado no império indiano, nele o luso avistou nova esperança. O bom
chefe tinha preparado tudo: ajuntara formosas naus e alistara gente e pensava em convidar a
grande população de um sexo e de outro. Sem demora, ocupando as praias, como te recordas,
foi visitando as potentes aldeias dos tupinambás, fazendo firme acordo com os aliados amigos.
Desciam do sertão vasto em numeroso bando festejando nosso desembarque, os carijós, os
tapuias e outras nações, considerando a fama do teu nome.
(22) Gupeva e Taparica, louvados entre os tupinambás, nação que habita os
extensos campos da Bahia, Coutinho os chama em primeiro lugar. E para vê-los aparentados
contigo, pretende povoar o Recôncavo com a gente que reconhece o teu nome, onde dia após
dia a população cresce. Utilizando todo o fértil terreno onde se oferece tanta riqueza, vai
construindo engenhos de açúcar, aldeias, casas, e máquinas instala. E permutando as drogas
preciosas, planta mandioca, arroz e cana. Não duvida de que [esta] seja em tempo breve a
melhor colônia que a Europa já teve. Escolhe nas inúmeras tabas os que acha mais ágeis no
trabalho, mas preserva para as empresas belicosas os que reconhece altivos em ferocidade. A
219
Francisco Pereira Coutinho – donatário da capitania hereditária Bahia de Todos os Santos que, apesar de tudo,
não prosperou, porém tornou-se a sede do governo-geral com a fundação da cidade de São Salvador, em 1549,
por Tomé de Sousa.
220
Com início na estrofe 19 do sexto canto, o poema fala do socorro prestado pelos lusos e brasileiros aos
espanhóis vindos do Peru, chefiados por Orellana. Agora, cem anos depois, vem o agradecimento na fala do
espanhol inserida na profecia. Relembrando os fatos, ele conta as lutas havidas entre os índios.
210
todos, com modos cativantes, mostra as claras motivações da religião cristã e observando as
condições de cada raça, umas domina com terror, outras com gentileza.
(25) Sabendo que deste tipo de gente nada se colhe depois de endurecer na
idade adulta, escolhe a maioria entre crianças para lhes dar logo educação mais culta. Não as
tira dos pais com violência, mas em proveitosas conversas com alguns, induz a gente
selvagem que o acompanha a entregar a prole à educação prazerosa. Em escolas bem
cuidadas, antes das artes ensina-se o temor santo. Dão-lhes lições de ler, contar, de canto e o
catecismo da doutrina cristã. Vendo-os, o rude pai se espanta e, pelo filho, a mãe se inclina à
fé. Não se usa de outro meio melhor entre nós que não seja apenas convencer aquela gente
rude. E estes serão, se não me engano, os meios necessários ao grande empreendimento de
tornar em breve civilizada a gente selvagem: escolas e seminários reais. Se a gente insana nos
visse como adversários em forças e poder, ela fugiria sem ser civilizada, mas, educada em
tenra mocidade, dilataria o reino e a cristandade.
(28) Mas no meio das belas esperanças em que a nova colônia florescia, a
serpente infernal provoca desconfianças entre os tupinambás e os baianos. A causa infeliz
destas mudanças foi um interesse vil de gente impiedosa: ofendendo os povos amigos e
pacíficos, cobriram toda a terra de inimigos. Gupeva foi abandonado pelos seus, Taparica foi
morto. Nos matos, a lusa gente rebelada contra os povos de outras nações, sente contínua
perda nas lavouras onde a planta foi queimada, o gado [foi] perdido e sem demora foi cercado
o arraial. Com bárbara violência, Coutinho viu perdido o seu tesouro e diligência. Na aflição
geral do povo português, nos recolhemos a um lugar mais tranqüilo; buscamos em Ilhéus
221
um lugar novo, seguro asilo contra a turba feroz. Vendo acalmado o estrangeiro, Coutinho já
se dispõe de novo a reduzi-lo, instalando [uma] colônia de maior durabilidade, menos
fecunda, sim, porém mais segura.
221
Era a capitania hereditária Ilhéus cujo donatário era Jorge Figueiredo Correia, que também teve resultados
medíocres.
211
(31) No entanto os tupinambás, pensando melhor, convidavam os nossos
fazendo-lhes promessas, apresentando mil provas de amizade e prometendo restabelecer a paz
que antes mantinham. Acreditou o infeliz Coutinho, firmou pactos que dariam segurança a
todos e sem mais temor queria voltar ao antigo Recôncavo da Bahia.
(32) E já no mar a frota se equipava e cada um de nós se achava absorvido
na façanha; sem temor ou receio, só se dedicava a se transportar para o Recôncavo.
Navegamos pelo espaço que distava e, tendo à vista o desejado porto, o mar se levanta aos
astros com fúria, fechando o céu em espantosa visão. O ar tenebroso e turvado pela névoa
tirou-nos toda a vista; sem destino, batemos cegos num penhasco duro, sem idéia ou notícia
do lugar. Neste momento horrível de transe escuro, suplicando o favor do céu divino, vimos a
embarcação desfazer-se em mil pedaços na penha, com horrorosos estrondos. Como percebes,
ficamos alagados, nadando em meio à procela horrenda: uns se afogavam devorados pelas
ondas, outros [eram atirados] na praia em confusão tremenda. E eis que os cruéis tupis
encarniçados se empenharam na contenda com flechas para nos levar da areia, semivivos
como seus míseros cativos.
(35) Vimos muitos serem comidos pelos selvagens, alguns expostos ao
funesto ocaso [a morte], todos nós aflitos e esmorecidos, esperando alguns seu triste fim, mas
condoídos sobretudo de ti, triste Coutinho, que no amargo acontecimento, depois de triunfar
na assombrosa Ásia, perdeste infelizmente a vida amada
222
. Tu que mil vezes no remoto
oriente levantaste troféus cheios de glória, a quem as potentes armadas e exércitos robustos
cederam o Malabar
223
. Tu que foste o terror da gente indiana, que humilhaste os reis augustos
da Lísia. Lá estava no entanto escrita a tua sorte de vires acabar nesta desdita. O bom Garcez
não pôde prosseguir, sufocado em amargoso pranto; relembrando, Diogo condoeu-se por se
222
Nas Reflexões prévias e argumento que precedem o primeiro canto, Durão menciona a morte deste donatário
dizendo que, quando voltava à capitania da Bahia de Todos os Santos já pacificado com os tupinambás, pereceu
num naufrágio por infelicidade.
223
Costa do Malabar – parte do Industão (vasta península triangular da Ásia meridional) banhada pelo mar de
Omana e pelo das Índias.
212
ver transportado a outro tempo neste caso. E havendo consolado os naufragantes, diz: Não sou
insensível, sei o quanto o acontecido é duro e cruel o momento: no meu perigo, aprendi a ter
piedade. Recebei, entretanto, valorosos, com magnânimo peito a adversidade. Conseguireis
por transes perigosos fazer-vos dignos da imortalidade. Deixareis monumentos gloriosos a
uma longa e feliz posteridade, e por ganho obtereis com tanta glória um nome eterno nos anais
da história. Assim disse o piedoso herói, retribuindo ao monarca espanhol o distinto favor e a
gratidão por ter se lembrado de enviar o agrado real. Depois, recolhendo os companheiros à
nau, entrava no Recôncavo pretendido, onde aparecia em ameno panorama a vista formosa da
Bahia.
(40) Para ver a gente que na estranha nau aporta, cresce uma multidão vinda
do interior do sertão; apesar de diferente em traje e porte, Catarina é reconhecida pelos seus.
Entre aplausos, a nação forte recebe o grande Caramuru como [ele] merece, mostrando pelo
amor e por reverência o antigo afeto e a renovada obediência. No entanto, a nau de Duplessis
carrega a cruz desejada que Diogo pensa ser apreciada em toda a terra, promovendo melhorias
ao talho da madeira. Um carijó, porém, ocupado disto, enquanto transporta toda a carga para a
nau, roubou uma imagem formosa e bela venerada numa capela no interior da nau. Na cabana,
Diogo observou ser ela tratada com reverência pelos tupis, estimando-a por coisa mais que
humana, que excedia a inteligência dos seus. O lusitano herói surpreendeu-se com a imagem
soberana e com a dedicação com que veneravam a Mãe Divina e chama a piedosa Catarina
para a ver. A dama pôs-lhe os olhos e, transtornada, disse: Esta é, é esta a grande Senhora que
vi no doce sonho arrebatada, mais pura que o sol, mais gentil que a aurora. Eis aqui! Esta é a
imagem veneranda, este era aquele roubo, entendo agora. Oh, minha grande sorte! Oh, imensa
felicidade! Isto me quis dizer a Mãe bendita. Falando assim com ânsia fervorosa, prostrada
abraça a imagem adorada; beija-a, aperta-a e lacrimosa lhe manda mil saudosos ais ao céu. E
213
disse: Aqui vos venho achar, Mãe piedosa, no meio desta gente abominável! Pecadora como
eu fui, se a vossa luz não me tivesse corrigido o bárbaro costume.
(45) No entanto, a gente selvagem olha arrebatada e os excessos que vê
tanto admira. Não concebe nas vozes que ouve se é prazer ou se [Catarina] suspira de dor.
Mas como consideram celestial a imagem, pelo que viram fazer a dama piedosa, todos
desejam fazer imitação: este a adora, outro a abraça e aquele a beija. Os religiosos portugueses
e franceses veneram com fé tanto prodígio, lembrando-se do sonho grandioso com claro
indício de santo presságio. Enquanto isso o povo selvagem numeroso tudo observa em êxtase
de espanto, até que a pia multidão leva a imagem a um templo em pompa reverente. Em santa
invocação foi aclamada Senhora da Graça e, com devoção, foi venerada desde aquele dia
como Singular Protetora da Bahia. Foi-lhe dedicada uma igreja primitiva em meio às trevas
daquela gente ímpia. Se a fama é verdadeira, ficou memorável porque foi a primeira em todo
o Brasil.
(48) Neste festejo a multidão se entretinha, e eis que se ouve uma salva
estrepitosa de grande esquadra que vinha chegando, enfeitada com galhardetes e flâmulas.
Todos se encaminham ao rumor da frota, vendo tremular a famosa bandeira que representa no
brasão das quinas (Ver nota 181) a redenção que o céu deseja ver na terra. Tomé de Sousa era
o comandante que para ali fora mandado como governador, com abundante multidão de
pessoas para iniciar a formação do povoado. Era um lugar verdejante, com mil mangues, onde
o grande Caramuru tinha organizado a colônia à semelhança das tabas, a qual ficou com o
nome de Vila Velha. Ali foi constituído chefe pelos tupinambás o branco Diogo, conhecido
nas tabas do sertão como Dragão do Mar, filho do fogo. Por consangüinidade, Catarina logo
herda de seus avós o império
224
. Assim sendo, convoca toda a assembléia dos seus
tupinambás.
224
Observa o autor que, ainda hoje (1781), vê-se a inscrição na sua sepultura: “Princesa do Brasil.”
214
(51) A multidão corre à taba já habitada por Gupeva, onde hoje é Vila
Velha; das outras tabas, toda a gente armada chega com seus chefes ao ser convocada. Toda a
cidade formada em corporação dirigiu-se à grande casa da torre; era o Paço de Catarina a qual,
naquela instância, comandava os tupis como princesa. Com Diogo e Sousa a seu lado, preside
à Câmara da Bahia
225
. Tendo invocado a Deus o clero santo, ouviu-se doce harmonia dos
clarins. A tropa portuguesa ocupava um lado e todo o outro espaço os selvagens dominavam;
em meio a cada tribo ali presente, brilha emplumado o poderoso chefe. O esquadrão dispõe de
uma turma de varões apostólicos puritanos que vão orientando no ritual da santa religião;
todos participam com rosto contrito. Entoando o catecismo, composto no idioma “brasileiro”,
estava o exército alistado por Inácio
226
à igreja para empreender a conquista ao selvagem.
(54) O monarca muito piedoso que imperava sentiu que poderia aproveitar o
público patriota; tinha escolhido estes varões famosos para instruir o Brasil na religião
verdadeira. Eles haveriam de fazer toda a conquista e grande quantidade de indígenas se
converteriam à fé cristã se cuidassem com fervor do santo zelo
227
, sem interesse humano em
convertê-los. São deste grupo os operários santos [catequistas] que, com dura fadiga e com
intenção correta, padecem pela fé tantas diligências: o [padre Manuel da] Nóbrega e o branco
[José de] Anchieta. Por entre perigos e sustos, sem temer a cruel seta do gentio, penetravam
por todo o vasto sertão e propagavam a religião com mil esforços incomuns. Muitos deles
velavam piedosamente escondidos dentro das tocas ocultas nas árvores, correndo riscos,
realizando tarefas, passando fome e frio, sem recear as terríveis adversidades. Penetravam
matos, atravessavam rios, buscando nos terrenos mais íngremes, com imensa fadiga e pio
ganho, esse perdido, mísero rebanho.
225
Durão esclarece que ainda hoje, por assento feito em câmara (assembléia legislativa), comemora-se na Bahia
o aniversário de Catarina Álvares em sua memória.
226
Refere-se a Inácio de Loiola, fundador da ordem dos jesuítas, autor de Exércitos espirituais (1491 – 1556).
227
Santo zelo (causa santa) mereceu explicação do poeta: não atribuímos esta expressão aos sujeitos dos quais se
fala, o que seria uma contradição, mas nos referimos vagamente a quem tivesse sido a causa de decaírem aquelas
missões. Ele queria dizer que alguém fora culpado da não-conversão dos indígenas porque o interesse humano
(ou comercial) da conquista falava mais alto que a preocupação religiosa em si.
215
(57) Verás mais de um nesta gigantesca campanha a derramar pela fé ditoso
sangue; alguns arrastados às chamas, mortos pelos selvagens, outros exangues por receberem
flechadas. Hás de vê-los caminhar de tribo em tribo onde o rude pagão jaz nas trevas; e para o
céu ganhando as miseráveis almas, subirem carregados de sublimes glórias.
(58) Com toda a corte no sublime Paço, dá-se nome à grande Casa da Torre.
Por um momento, Catarina ora, ocupa o trono e pede atenção. Tinha a fronte cheia de plumas
e no forte braço a conhecida insígnia do império; ostentava um marraque
228
por cetro e toda a
população olhava com respeito. Disse então a dama real: Venturosos patrícios que o céu ama,
povo disperso que ele chama, piedoso, ao seu rebanho desde o antigo dilúvio imerso em
sombra! Hoje vos quer livrar da chama infernal. Vendo que fostes arrastados pelo dragão
perverso, este grande Deus, em uma cruz sublime, cumpriu a pena e redimiu da culpa.
(60) O rei poderoso da antiga Lusitânia, como o sol no giro imenso, vai
rodeando todo o globo enorme desde o precioso Tago [nome latino do rio Tejo] ao China
extenso (Ver nota 139). Por seu intermédio todo o Oriente recebe a religião e cede o mouro
apavorado, e a Europa admira que o seu reino menor subjugue o mundo pelo mar profundo. É
tanto o império deste grande monarca que aonde a própria luz não chega, nos limites extremos
do hemisfério, avança o exército lusitano. A África e ilhas o árabe cimério
229
, ultrapassando
por duas vezes a imensa linha [o Equador], conquistou tantos povos que, se forem contados,
são mais vassalos que os próprios portugueses. Por providência da eternal bondade, este rei
glorioso foi o escolhido para fazer do Brasil um povo aceito e digno de a gozar na eternidade;
para tornar forte o peito desta gente, tendo na Ásia opulenta imensidade, e trocar estes nossos
sertões incultos por nações ricas e terrenos cultivados. Com as forças para cá enviadas, com
pouca utilidade, ou que a tivesse, poderia domar o mar Vermelho por toda parte e possuir o
228
Emblema ou símbolo, como um cetro, usado outrora pelos caciques. (Ver notas 111 e 115)
229
O árabe cimério – perífrase usada pelo poeta designando os valentes portugueses conquistadores. Cimério era
o povo antigo que habitava as margens setentrionais do Ponto Euxino (mar Negro) entre os rios Don e Danúbio.
No século VII a.C. ele invadiu a Lídia (antiga região da Ásia Menor, à beira do mar Egeu).
216
reino todo do Oriente. Mas a religiosidade com que comanda faz que, antepondo o Brasil a
tudo agora, mostre aos homens que o impulso que o domina é propagar no mundo a fé divina.
(64) Generoso pensar! Sagrada empresa! Longe de vã política de Estado
que, se preza a milícia e o comércio, não tem o menor cuidado com a Santa Fé. Mas aquele
que rege o vasto mundo e determina a sorte dos impérios, em tempo enfim retribuirá o zelo e
o Tago do Brasil lhe será transformado em ouro. Um rei, se não me falha a memória, quando
o Quarto
230
resgatar as lusas quinas, depois de mortos Afonso VI e dom Pedro, abrirá famosas
minas no sertão. Dom João V encherá Lisboa de ouro por altas disposições divinas, pois no
tremor e incêndio
231
que a ameaça, prepara esta compensação à grande desgraça. Tempo virá
em que a Lísia reconhecerá como soberana a dama majestosa; [será] época ilustre, insigne e
venturosa em que se terá uma santa por guia. Sobre o reino descerá a paz formosa e com a paz
virá a glória tendo como Atlantes
232
de seu Estado real quatro sábios e um ilustre sacerdote.
(67) E tu, monarca justo vindo do céu, venha-te a glória tardia sobre o
empíreo e, como o pai da pátria presidindo ao reino, terás preservado com dedicação a antiga
religião dos nossos [compatriotas]. Enaltece o grande nome, impedindo a entrada do monstro
infernal que arde nos abismos; deixa Portugal que cresce na fé e firma Cristo sobre a imóvel
pedra. Esta distinta origem o céu promete aos teus descendentes no Brasil (agora rude), que no
entanto se sujeita humildemente ao rei e oferece-lhe contente os seus tesouros. E entre tantas
nações que [o céu] submete ao jugo, manterá Portugal à sombra dos verdes louros sem
provares o furor variado da guerra, se chegares ao trono e te humilhares voluntariamente.
(69) E se me chamais princesa sublime, nascida herdeira dos vossos chefes;
se ao grande Caramuru que o raio produz jurastes vassalagem verdadeira, hoje ele exime a
todos da sujeição, cedendo a posse inteira ao trono luso. E eu cedo à pessoa do monarca real
230
Referência a dom João IV, já que naquela época reinava aqui dom João III.
231
Aqui o poeta faz alusão ao incêndio ocorrido em Lisboa em 1755.
232
Atlante ou Atlas – rei fabuloso da Mauritânia, filho de Júpiter; segundo a lenda, foi condenado a sustentar o
mundo nos ombros.
217
todo o direito e entrego a coroa. Dizendo isto, a dama generosa desce do trono e entrega o
esplêndido diadema a [Tomé de] Sousa; majestosa, toma um baixo assento com modéstia
extrema. O tupinambá pasma ao ver a formosa e nobre Paraguaçu, de linhagem branca,
entregar ao Sousa o seu régio marraque, despindo-se da pompa do comando real. Logo
Caramuru, falando na língua e estilo dos nativos ao chefe novo, tendo todos silenciado para
ouvi-lo, mostra o escudo da Bahia ao povo. Como a pomba de Noé que volta ao conhecido
abrigo com um ramo de oliveira, dava a entender que o rei clemente, com a religião,
promoveria a paz à gente rústica
233
. E disse: Este é o título verdadeiro com que ocupará nesta
anarquia do Brasil o muito elevado senhor dom João III a fim de pacificar o povo ímpio, para
que o supremo ser e entidade primeira reconheça o sertão e proteja a Bahia. E para que a
religião se veja propagada no novo império que [o rei] conquista para a igreja [católica].
(73) E tremulando as quinas, disse Diogo: Real, Real! Com voz expressiva
aclama dom João, monarca respeitável, príncipe do Brasil. Que viva feliz! Replicando, a
multidão repete os vivas com tão alto clamor que fere o ouvido. E ao rumor dos canhões e das
cornetas, respondem as bélicas trombetas.
(74) Então, sentado no enorme trono que a bela dama já havia desocupado,
Tomé de Sousa era nomeado governador pela lusa gente
234
. Toma posse legítima e patente da
baía e do sertão e, sem reclamações dos habitantes, os quais desocupam o campo, em nome
dos seus reis ocupa a terra. Depois, ao povo e ao ilustre magistrado, pelas leis do novo
império, comunica que novo santo seja venerado e que cesse nos sertões a guerra hostil. Que o
homicídio seja castigado e [também] o antropófago atroz, que a lei abomina. Que a missão
evangelizadora enviada seja ouvida com paz e que se honre o que [ela] anuncia. Que o
233
Aqui o poeta usou como metáfora a passagem bíblica em que, após o dilúvio, a volta da pomba à arca
prenunciava paz ao povo, num pacto com Deus. Assim, retornando a coroa aos portugueses, estariam pacificados
os ânimos no Brasil.
234
Na verdade, Caramuru e Paraguaçu, tidos como reis do povo baiano, transferem o título a dom João III, então
representado na cerimônia por Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil. O sistema de governo-geral
substituiu o das capitanias hereditárias que não teve sucesso na colônia.
218
indígena tenha ali ocupação e que viva tranqüilo à sombra das leis. Que viva conservado em
liberdade sem ser oprimido pelos colonizadores. Que seja educado às expensas do rei o
neófito que abraça a santa igreja. E que o régio erário subvencione o missionário no santo
ministério. Por fim, o justo monarca publica em favor de Diogo e Catarina um decreto real
honorífico, destinando merecidas honras em seu benefício. E em recompensa do leal afeto
demonstrado pela dama à coroa, manda honrar na colônia lusitana, Diogo Álvares Correia, de
Viana
235
.
235
Viana do Castelo – cidade lusitana onde teria nascido Diogo/Caramuru. Ela fica ao norte de Portugal, no
litoral, próximo da Espanha.
CONCLUSÃO
A proposta de transformação do poema de Santa Rita Durão, sobre o qual já
fiz a devida apologia e apreciação estética, ancorada em intensa pesquisa e acurado estudo,
não pode ser considerada tarefa muito fácil, de modo algum. Pelo contrário, houve
necessidade de exame criterioso dos itens lingüísticos e outro tanto de noções extra-
lingüísticas que vão além da análise textual puramente. Juntam-se nesta empresa, ao lado de
elementos literários, dados pessoais do autor, momento de produção da obra, o período
histórico (já que se trata de epopéia) e também a trajetória de recepção do poema pelos
leitores. Vê-se então a aproximação da teoria literária, da filologia, da crítica genético-textual
e de estudos da linguagem, objetivando a composição de um texto que, de fato, evidenciasse a
intencionalidade do emissor da mensagem e como a expressou ao escrever seus mais de seis
mil versos, em 1780.
Neste mister, é forçoso que leituras e leituras precedam a escritura. Assim,
antes de redigir a nova versão da poesia, inúmeras leituras foram feitas até que consegui
apreender a sua essência global, tomar ciência da sua estrutura integral e me aperceber da
partição nos dez cantos. Cada um tem sua temática particular e mesmo as estrofes foram
elaboradas de modo a abordar cada assunto de uma vez. De certa forma, isto facilitou a
reformulação do texto em parágrafos, dada a seqüência lógica dos fatos narrados e dos
eventos apresentados nas descrições e digressões.
Já no interior das estrofes, os cavalgamentos, ordem indireta dos termos na
frase (influência latina) e construções peculiares pediram atividade e procedimentos de
hermenêutica. Houve transmutação na ordem de palavras e expressões, além de pontuação
condizente com os hábitos lingüísticos modernos para aclarar o entendimento quanto à idéia
220
expressa. Neste particular, consultas a gramáticas e dicionários se aliaram a meu saber
lingüístico, à intuição de falante nativa e à minha atuação no ensino de língua portuguesa.
Como se vê, antes de escrever, foi preciso ler muito, obviamente. Conteúdo
e forma foram exaustivamente esmiuçados e detalhes foram revistos para eu chegar à redação
final do poema numa versão atualizada que se coloque ao alcance do leitor comum de hoje.
Além disso, complementei a adaptação em prosa com abundantes esclarecimentos anotados
no rodapé a fim de promover a rápida compreensão do épico.
O próprio poeta, em ação quase didática, fez glosas em seu manuscrito
certamente com o intuito de clarear o exposto e levar à intelecção textual. Nelas abordou o
léxico e situações históricas, políticas, sociais e religiosas, entre outras. Também assim o fiz,
porém com mais amplitude. Seus objetivos eram os de professar a fé católica, exaltar os feitos
de Portugal e dignificar o Brasil perante o mundo; para tanto, precisava fazer-se entender. No
meu caso, o que almejo é divulgar um clássico da nossa literatura, tornando-o pronto para ser
lido hoje, sem contudo me distanciar do original. O objetivo é destacar o poema épico
duraniano. Se assim não fosse, não faria sentido o empenho em reescrevê-lo nos moldes
modernos. Que fique claro porém: a essência é a mesma; a ordem das idéias foi mantida tanto
quanto possível, de sorte que a edição ora proposta e plenamente justificada, é de Caramuru e
não a de um outro texto com base na aventura do náufrago português.
Como inegavelmente livro é cultura, presumo que a possibilidade de leitura
da edição adaptada amplia horizontes, difunde conhecimentos e propicia reflexões temáticas
eternas para a humanidade: conquistas territoriais, o dilema da colonização, a expansão das
religiões, a resistência de aborígenes e a presença de indígenas no Brasil (os de ontem e os
remanescentes de hoje). São oportunas reflexões como: quem é o bárbaro que ataca e destrói a
natureza e seus semelhantes violentamente? Há “selvagens” nas selvas de pedras? Vivem
“civilizados” no sertão? Mudaram-se os conceitos éticos e religiosos?
221
Este fator já justificaria a existência da nova edição. Acrescente-se a ele a
necessidade de adaptação da edição original para que as reflexões se tornem possíveis nos
dias atuais, através da obra. Portanto, a atualização do texto se impôs como condição para
maior recepção, conforme aponta o senso comum e o tempo há-de confirmar.
Enfim, com a edição adaptada e comentada de Caramuru, pretendo sim que
a obra seja revistada após ser estudada e reformulada por mim, mas naturalmente não foram
esgotadas todas as possibilidades de trabalho com o poema. Há outras direções que podem
provocar novas teses, estendendo assim o alcance e o destaque da epopéia brasileira. Que
sejas lido, Caramuru, em prosa ou verso.
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