locomoção. Era o nosso grande traço de afinidade. Bem me lembro do argumento
que tivemos a propósito dessa nevrose. Foi na noite de 7 de setembro, quando
toda cidade, em uma orgia de luz e de barulho, comemorava o seu século de
independência e de selvageria. Descia a Avenida Gomes Freire, quando o
encontrei, de mãos nas costas, a cabeça baixa, o passo tardo, caminhando
humildemente ao longo da calçada. Dir-se-ia um sonâmbulo. Foi preciso que o
chamasse:
- Oh! Barreto...
Ele estacou, rápido. Tinha o rosto contrafeito, um olhar duro, mas
brilhante. E sorrindo:
- És tu, menino! Esta é a terceira vez que nos encontramos hoje.
- É exato. Mas o Rio é apenas uma grande aldeia. Eu noto todos os dias
a cor das gravatas com que os conhecidos atravessam a rua do Ouvidor. Conheço
a gente elegante da nossa sociedade pelo simples macaqueamento de exibição na
Avenida. É como na roça: todos se conhecem, todos se encontram...
- Ora, tu queres ser mais civilizado que os outros. Isso de chamar o Rio de
aldeia é literatura. Depois, eu quis dizer o seguinte: é que só me encontro contigo.
- Olha, você pode acreditar: estou cansadíssimo. As pernas doem-me, tenho
o corpo alquebrado e, entretanto, sinto quase um prazer em continuar a andar. É
como se fosse uma necessidade...
- Como tu te pareces comigo...
- Mas há diferença. O que me faz andar assim é um eterno anseio que
trago dentro de mim. Sinto sempre uma inquietação por ver e observar as coisas
mais insignificantes. Tenho sempre uma vaga certeza de que vou ver coisas novas
ou de que vou descobrir qualquer coisa. Muitas vezes, é já por mania de andar,
simplesmente. Bem no fundo, tudo isso é nervo, não acha?
Mas, Lima Barreto estava casmurro. Tinha-lhe feito muitas outras perguntas
que ele nem me respondera. E esse seu silêncio excitava-me para uma estranha
eloqüência. Sem me recordar do que disse, lembro-me que falei ainda muito. E
falei de mim, com entusiasmo, com detalhes sinceros de quem estava em um
confessionário, comovido, exaltado, arrependido de coisas que apenas me
passaram pelo cérebro. Lima Barreto foi sempre, para mim, uma dessas raras
criaturas que me inspiravam confiança. Era essa confiança profunda de duas
consciências que se olham de frente, sentindo que entre elas uma mesma voz
ecoa, subindo das coisas e dos homens... Perto dele, creio que nunca o admirei, e,
poucas vezes, lembrei-me de que era um dos mais portentosos romancistas do
Brasil. Ele nunca me ofereceu, propriamente, a companhia de um literato. Com ele,
nunca senti essa superficialidade de espírito, tão comum e tão vulgar entre os
chamados homens de letra, onde a conversação percorre toda a escala de
futilidade, sempre entremeada de anedotas mais ou menos pornográficas, a
chalaça esticando sempre a boca com o riso que estufa, a intriga alheia que
rebaixa sempre o espírito, o despeito e a inveja aviltando sempre os caros
confrades, o paradoxo brilhante que ilumina o olhar e esconde, em certos
momentos, o momento prosaico que tem os maiores artistas. Não, nada disso. Na
nossa palestra não havia esses subterfúgios, nem essas manhas, nem mesmo o
colorido da retórica. Era chã, cortante, fria, indo sempre direto a uma conclusão, a
um alvo, a um resultado.
Portanto, Barreto era sutil como um deus pagão e a sua palestra era
profunda e infantil. O que lhe parecia fácil de ser adivinhado ele não dizia. O seu
melhor detalhe era sorrir. Para ele, o que o coração sentia, não valia a pena ser