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Tradicionalmente, nos termos da filosofia da consciência, a verdade era tida como
uma relação entre sentença e coisa. Este conceito, entretanto, não se encaixa na concepção filosófica
por nós adotada, segundo a qual a linguagem cria os objetos e, sendo assim, não existe qualquer
relação entre sentença e coisa, apenas entre sentença e outras sentenças. A verdade não se descobre,
pois não há essências a serem descobertas, ela se inventa, se constrói linguisticamente dentro de um
sistema referencial, juntamente com a coisa. Por isso, a verdade de ontem já não é a verdade de hoje. O
mundo de antigamente, por exemplo, era plano, atualmente é redondo; o sol girava em torno da terra,
agora a terra gira ao redor dele; até pouco tempo Plutão era um planeta, hoje não é mais. Tudo isso
porque, o valor de veracidade atribuído a uma proposição pode ser alterado em razão do referencial
adotado.
Enxergamos as coisas dentro de uma cultura particular, própria de nossa comunidade
lingüística, de modo que, a constituição individual do objeto deve justificar-se numa interpretação
estabelecida, aceita dentro desta comunidade. Todo sistema de referência, no entanto, é mutável,
podendo sofrer alterações a qualquer momento. O índio que sai de sua aldeia para estudar na cidade
grande, por exemplo, deixa de ver o “boitatá”, na forma azulada que sai de noite dos corpos de animais
mortos, para enxergar ali o gás metano exalado no processo de putrefação. A verdade “boitatá” altera-
se para a verdade “gás metano” devido à mudança de referencial. Neste sentido, toda proposição
tomada como verdadeira é falível, podendo ser sempre revista em conformidade com novos referencias
adotados.
A pergunta “que é verdade?” aflige a humanidade desde seus primórdios
filosóficos
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. Várias correntes do pensamento voltam-se à solução de tal questão, dentre as quais
podemos citar: (i) verdade por correspondência
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; (ii) verdade por coerência
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; (iii) verdade por
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Consta, inclusive, dos relatos bíblicos que esta pergunta foi feita a Jesus Cristo, quando interrogado por Pôncio Pilatos, e
que este, justamente, por estar convicto da inexistência de verdades absolutas, nem esperou resposta para lavar suas mãos e
entregar Jesus para a crucificação. – “Pilatos perguntou: “Então, tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu o dizes, eu sou rei! Para
isto nasci. Para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta minha voz”.
Pilatos, por fim lhe perguntou: “Mas que é a verdade?”. Dito isto saiu de novo ao encontro dos judeus e comunicou-lhes:
“Não acho nenhuma culpa nele”. (João18,37-38)
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Sustenta a teoria da verdade por correspondência que esta se define pela adequação entre determinado enunciado e a
realidade referida. Um enunciado é verdadeiro quando condizente com a realidade por ele descrita e falso quando não
condizente. Tal posicionamento filosófico não é compatível com as premissas firmadas neste trabalho, segundo as quais as
coisas só têm existência para o ser humano quando articuláveis em seu intelecto, ou seja, quando constituídas em
linguagem. Assim, não há como verificar a compatibilidade de um enunciado com o objeto ao qual ele se refere, mas
somente com outro enunciado. Ademais, nenhuma sentença é capaz de captar o a totalidade do objeto, pois nossa
percepção do mundo é sempre parcial e neste sentido, não há possibilidade de correspondência entre qualquer enunciado e
o objeto-em-si, ao qual ele se refere.
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A teoria da verdade por coerência parte do pressuposto que a realidade é um todo coerente. Uma proposição é verdadeira
quando deduzida de outras proposições e não-contraditória com as demais de um mesmo sistema. Tais critérios definem a
verdade interna de um certo sistema e preservam a ausência de contradição entre seus termos.