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[...] a vivência do momento presente, para grande parte dos homens e mulheres
contemporâneos, antes de possibilitar a percepção de si como seres completos,
indivíduos na extensão do termo, fá-los sentirem-se como seres desconectados,
sem raízes e sem perspectivas.
Disto decorre – uma vez que se perdeu o sentido do pertencimento, de
participação em um “nós” – que, hoje, para a maioria das pessoas, a tradução
subjetiva da significação da autonomia individual e da realidade que a sustenta é
um profundo individualismo em que cada um se volta egoisticamente para seus
desejos e expectativas e não reconhece no outro um semelhante. O resultado
desse processo não é senão [...] a fragmentação da vida em um conjunto de atos
sem sentido e a extrema solidão que persegue as pessoas, ainda que vivam em
sociedade.
Na modernidade, a falta de reflexões sobre a finitude e sobre a perda, como uma
conseqüência do individualismo e da exigência de aproveitamento da vida, causa a sensação de
isolamento e de ausência de afetividade no âmbito social. Este processo fica bem demonstrado no
depoimento de um enlutado participante do grupo de apoio psicológico do Morada da Paz:
(Mecanicismo da vida moderna) Naquela vida sem um propósito maior, no
fundo eu tava virando um materialista, um negócio seco, eu não acreditava em
mais nada a não ser na realidade objetiva das coisas. Tudo que fosse feito,
qualquer ação que fosse desprendida tinha que ter um propósito, um resultado, a
perseguição de um objetivo. Passou a ser uma vida mecânica, é isso daí, uma
vida mecânica. Um relógio suíço. Você tem que tudo perseguir aqueles
negócios, perseguir aqueles objetivos sem turbulência, excluindo tudo que
pudesse provocar uma turbulência, como se nós pudéssemos excluir isso da
nossa vida.
(O pensamento sobre a perda) Não cabia. Na minha cabeça não. Eu não
pensava, eu simplesmente parei de pensar nisso, em termos de perda. Eu parei de
pensar e as coisas estavam rodando normalmente no mundo. Pensar é uma
possibilidade que todo mundo pensa, mas é aquele um por cento que pode
ocorrer, e não é imediato.
(Isolamento) O que mais me pesou foi isso. Sozinho porque eu não tinha
desenvolvido, eu não sabia lidar com a afetividade. O que eu sabia antes, eu
tinha perdido. Não sabia lidar com a afetividade, não sabia botar pra fora. Meus
sentimentos. (Marcos)
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Todos os nomes aqui expostos são fictícios, não correspondendo ao verdadeiro nome dos atores sociais. A
referência serve para compreensão do discurso do enlutado, conforme aconteça a repetição de depoimentos do
mesmo entrevistado. No caso, trata-se de um engenheiro, 48 anos, viúvo, pai de um casal de adolescentes.
Participante do grupo de apoio psicológico, perdeu a esposa há seis meses (contados a partir da data da entrevista),
vítima de uma infecção renal.