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para justificar os dogmas nos quais o negro era “um animal sem alma”, portanto inferior
à raça branca. Segundo esta teoria, os negros não estavam prontos para se governar. A
partir dessas reflexões fixou-se um olhar sobre o Haiti, e o Vodu conheceu suas horas
mais tristes. O Haiti tornou-se célebre através dos relatos de viajantes inescrupulosos
que transmitiam relatos do “negro comedor de negros”. Sem serem verificados, esses
portanto, liga-se geralmente (mas não necessariamente) à noção de etnocentrismo. O crítico afro-
americano Henry Louis Gates aponta o racismo latente no pensamento ocidental, no mínimo desde
Platão. Efetivamente, o diálogo platônico Fedro, com a famosa analogia entre a alma e o cocheiro
guiando dois cavalos é emblemático. O cavalo branco é belo, “de melhor aspecto”; “ama a honestidade e
é dotado de sobriedade e pudor, amigo como é da opinião certa. Não deve ser batido e sim dirigido apenas
pelo comando e pela palavra” (continuamos a citar diretamente o Fedro): “O outro [cavalo] — o mau — é
torto e disforme; segue o caminho sem deliberação; com o pescoço baixo tem um focinho achatado e a
sua cor é preta; seus olhos de coruja são estriados de sangue; é amigo da soberba e da lascívia; tem as
orelhas cobertas de pelos. Obedece apenas — e com esforço — ao chicote e ao açoite.” (Ed. de Ouro,
trad. Jorge Paleikat). Isso não significa, no entanto, que existissem desde a Antigüidade as concepções de
raça e de racismo conforme as conhecemos no mundo ocidental moderno. No início e durante boa parte
da Idade Moderna, inexistia no Ocidente a concepção de “raças distintas” — o que surgiria apenas com os
avanços da ciência iluminista. Ainda no século XVII, explicavam-se as diferenças físicas entre os homens
com teorias ingênuas como a diversidade do solo, ou “alguma virtude secreta do ar”( Dictionnaire
Théologique, Historique). A palavra “raça”, em sua acepção de grupo étnico diferenciado, segundo Léon-
François Hoffmann, em Le nègre romantique: (personage littéraire et obsession collective) não se atesta
em francês antes de 1685; e a palavra negro, de origem ibérica (atestada em francês em 1516), é rara
nessa língua até o século XVIII. Anteriormente (isto vale para o português, o espanhol, o francês e o
inglês), preferia-se utilizar denominações simplesmente geográficas ou difusas como “mouro”,
“africano”, “etíope”, para designar pessoas de pele escura, habitando o que seria depois universalmente
conhecido como o “continente negro”. No século XVIII, passou-se de um racismo dogmático a um
racismo científico. Já não bastava aos intelectuais racionalistas que as diferenças de cor entre os homens
fossem explicadas pela teologia, era preciso explicá-las pela ciência moderna. No discurso escravista
europeu, a ideologia etnocêntrica encobria os motivos econômicos subjacentes. A referência positiva é
sempre o homem branco e quaisquer diversidades em relação a este eram invariavelmente apontadas
como o desvio do normal, ou anormal. Assim justificava-se intelectual, moral e esteticamente a empresa
mercantilista ultramarina e sua força motriz, a escravidão. No século XIX, as idéias de Joseph-Arthur
Gobineau (França, 1816 - Itália, 1882) com sua teoria de determinismo racial, tiveram uma enorme
influência sobre o desenvolvimento subseqüente de teorias e práticas racistas na Europa ocidental,
culminando com o nazismo. Tais idéias foram fruto do interesse europeu vigente, notadamente desde a
segunda metade do século XIX, num determinismo biológico e sociológico. Nesse sentido, houve uma
notável convergência entre as teorias científicas da época e os interesses imperialistas em relação ao que
depois viria a ser cognominado “Terceiro Mundo” (GOMES, Heloisa Toller, As marcas da escravidão.
Rio de Janeiro: Ed.UFRJ/Eduerj, 1984).