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Universidade
Estadual de
Londrina
EDERSON VERTUAN
“DETETIVES” DO ACASO:
EDGAR ALLAN POE E ANDRÉ BRETON
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LONDRINA
2009
EDERSON VERTUAN
“DETETIVES” DO ACASO:
EDGAR ALLAN POE E ANDRÉ BRETON
Disssertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Estudos Literários da
Universidade Estadual de Londrina como
requisito para obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Marta Dantas da Silva.
LONDRINA
2009
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EDERSON VERTUAN
“DETETIVES” DO ACASO:
EDGAR ALLAN POE E ANDRÉ BRETON
Disssertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Estudos Literários da
Universidade Estadual de Londrina como
requisito para obtenção do título de Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Prof. (a) Orientador (a): Dr. (a) Marta Dantas da
Silva
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Prof. Dr. Cláudio Jorge Willer
Universidade de São Paulo
____________________________________
Prof. (a) Dr. (a) Regina Helena M. Aquino Corrêa
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, _____de ___________de _____.
A Marta Dantas e toda sua família
A meus pais
AGRADECIMENTOS
À minha Orientadora, Prof.ª Dr.ª Marta Dantas, com quem tive a sorte e o privilégio de
trabalhar, pela fidelidade, comprometimento e constante apoio moral, assim como pela
generosa e multiforme contribuição sem a qual esta pesquisa jamais teria tomado sua
definitiva forma.
Aos professores: Claudete Debértolis Ribeiro, Dr. Henrique Manuel Ávila, Dr. Volnei Edson
dos Santos, Dr.ª Regina Helena M. Aquino Corrêa, Dr. Cláudio Jorge Willer, pelo
encorajamento, disponibilidade e sábios conselhos. Agradeço, ainda, à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES, pelo apoio que me possibilitou a
realização desta dissertação, bem como ao Programa de Pós-Graduação em Letras Estudos
Literários da Universidade Estadual de Londrina, pela orientação e generosa contribuição
técnica, administrativa e científica.
À minha tia, Irmã M. Celina Vieira Martins (in memoriam), pelo fiel apoio; a meus pais,
Antônio Roberto Vertuan e Maria de Lourdes Vertuan, pelo apoio incondicional.
Magnificat anima mea Dominum
O acontecimento que cada um de nós está no
direito de esperar que seja a revelação do sentido
de sua própria vida, acontecimento que eu talvez
ainda não tenha encontrado mas no caminho do
qual me procuro, não virá ao preço do trabalho.
André Breton
[Não] penso que o trabalho humano possa
beneficiar a humanidade por forma apreciável.
Presentemente, o homem é mais ativo, mas não é
nem mais feliz nem mais sagaz que há seis mil
anos.
Edgar Allan Poe
VERTUAN, Ederson. “Detetives” do Acaso: Edgar Allan Poe e André Breton. 2009. 82 f.
Dissertação (Curso de Pós-Graduação em Letras Estudos Literários) Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2009.
RESUMO
Esta pesquisa visa a comparar a trilogia raciocinante de Edgar Allan Poe, Os Crimes da Rua
Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada, com o livro Nadja, de André Breton.
Ao se estabelecer o confronto entre estas duas obras, a aparente distância entre elas e seus
elaboradores lugar à presença de um diálogo que ultrapassa as fronteiras literárias,
revelando as diferentes posturas assumidas por esses dois pensadores com relação a um dos
enigmas mais desafiadores do cotidiano: o acaso.
Palavras-chave: André Breton/Nadja. Edgar Allan Poe. Contos de raciocínio. Acaso.
Práticas/Saberes.
VERTUAN, Ederson. “Detectives” of the Chance: Edgar Allan Poe and André Breton. MA.
Dissertation (Post Graduate Course in Literary Studies) Londrina State University,
Londrina. 2009. 82 p.
ABSTRACT
This paper aims at comparing Poe‘s trilogy of ratiocination The Murders in the Rue Morgue,
The Mistery of Marie Rogêt and The Purloined Letter with André Breton‘s book Nadja. When
a contrast is established between these two works the apparent distance among them and its
writers gives place to a dialogue which goes beyond literary boundaries, revealing different
postures assumed by these two thinkers concerning one of the most challenging enigmas of
the quotidian: the chance.
Key words: And Breton/Nadja. Edgar Allan Poe. Tales of ratiocination. Chance.
Practices/Knowledges.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
1 CAPÍTULO I O CONTO RACIOCINANTE DE EDGAR ALLAN POE .................... 14
1.1 O CONTO DE RACIOCÍNIO E SUAS RELAÇÕES COM O GÓTICO ................................................ 14
1.2 AVENTURAS E IMPREVISTOS NO GÓTICO E NO CONTO RACIOCINANTE ................................. 17
1.3 O GÓTICO DETETIVESCO E A MÚTUA CONVIVÊNCIA ENTRE RAZÃO E IMAGINAÇÃO.............. 20
1.4 HOFFMANN.................................... ..................................................................................... 21
1.5 INFLUÊNCIAS DE HOFFMANN NOS CONTOS RACIOCINANTES DE POE ................................... 23
1.6 UM POSSÍVEL ANTECESSOR DA NARRATIVA RACIOCINANTE DE POE ................................... 27
2 CAPÍTULO II A UNIDADE DA TRILOGIA RACIOCINANTE DE POE: OS
CRIMES DA RUA MORGUE, O MISTÉRIO DE MARIE ROGÊT E A CARTA
ROUBADA .............................................................................................................................. 30
2.1 OS CRIMES DA RUA MORGUE ............................................................................................... 31
2.2 O MISTÉRIO DE MARIE ROGÊT ............................................................................................. 32
2.3 A CARTA ROUBADA .............................................................................................................. 32
2.4 OS ELEMENTOS GÓTICOS DA TRILOGIA RACIOCINANTE ....................................................... 34
2.4.1 A Atmosfera .................................................................................................................... 34
2.4.2 O Sobrenatural ................................................................................................................ 38
2.4.3 O Terror .......................................................................................................................... 39
2.4.4 A Imaginação .................................................................................................................. 45
3 CAPÍTULO III SABERES E PRÁTICAS NA TRILOGIA RACIOCINANTE DE
EDGAR A. POE E EM NADJA DE ANDRÉ BRETON .................................................... 49
3.1 A TRILOGIA RACIOCINANTE ................................................................................................ 49
3.2 O ACASO NA TRILOGIA RACIOCINANTE ............................................................................... 57
3.3 ANDRÉ BRETON EM NADJA .................................................................................................. 59
3.4 O ACASO EM NADJA ............................................................................................................. 64
3.5 ERRÂNCIA E ESPAÇO GÓTICO .............................................................................................. 71
3.6 O MARAVILHOSO ................................................................................................................ 75
3.7 MICHEL FOUCAULT E SUA VISÃO CRÍTICA DO ROMANCE POLICIAL ..................................... 77
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 84
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 87
10
INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe estabelecer um diálogo entre Edgar Allan Poe e André Breton. Por
mais ―inesperada‖ que possa parecer, a proposta desta pesquisa mostra-se bastante oportuna.
Não seria de todo equivocado afirmar-se, aqui, que este trabalho representa, se não o fruto de
uma ―descoberta‖, ao menos um alerta para o fato de que existe um diálogo, não tão
silencioso, entre Poe e Breton. Atualmente, trabalhos acadêmicos que procuram estabelecer
diálogos na linha Breton-Baudelaire e Baudelaire-Poe
1
são muito frequentes, mas a situação é
outra quando se pensa em Poe e Breton. Da possível aparência ―inusitadadessa
pesquisa ao aproximar esses dois escritores.
Sabe-se que Baudelaire foi ―discípulo‖ de Poe
2
, seu tradutor e divulgador na França, e
que exerceu importante influência sobre o surrealismo. O fato de Breton ter sido leitor de Poe
também não é novo para pesquisadores desse movimento. Estudos sobre o surrealismo
oferecem numerosos comentários sobre as semelhanças e as diferenças entre o livro Nadja e o
gênero policial
3
. Mas o principal dado que vem a justificar, nesta pesquisa, a aproximação
entre Breton e Poe pode ser encontrado no primeiro Manifesto do Surrealismo, em que Breton
declara: ―Poe é surrealista na aventura‖ (BRETON, 2001, p. 41). É um comentário a partir do
qual se pode fazer algumas deduções interessantes.
Se a surrealidade é a aventura da vida e esta aventura pressupõe o ócio, aqueles que
estão a par da vida irregular de Poe
4
não tardarão em reconhecer o quanto ele, nesse aspecto,
esteve próximo da proposta surrealista. A vida de Poe foi aventureira. Pode-se, aliás,
reformular a afirmação de Breton do seguinte modo: ―A aventura de Poe é uma aventura
surrealista‖. Nesse sentido, é possível conceber a aventura dos personagens fictícios de Poe
como aventuras cuja inspiração se encontra em sua própria biografia.
1
Caso, por exemplo, da Tese de Renata Philippov, Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire: Trajetórias e
Maturidade Estética e Poética, Universidade de São Paulo, 2004.
2
Segundo informação verbal prestada pelo professor Dr. Cláudio Jorge Willer, durante a arguição desse
trabalho, imprecisão na noção de que Baudelaire foi discípulo de Poe. Cláudio J. Willer argumenta que o
poeta francês possuía uma estética sólida quando do primeiro contato com a obra de Poe. De acordo com o
professor, a crença de que Baudelaire foi discípulo do escritor americano teve origem em um equívoco tanto de
Anna Balakian em O Simbolismo (Ed. Perspectiva) quanto da própria crítica, que transformou a ideia em uma
espécie de superstição literária.
3
Refiro-me a pesquisas como as de Fernanda Rangel de Paiva Abreu, Paula Parise Pinto e Marta Dantas, bem
como a autores como Michel Beaujour, para citar alguns.
4
Poe vivia numa alternância entre meses de trabalho intelectual árduo e temporadas de intensa ociosidade que
punham a perder todos os resultados profissionais e financeiros de seus esforços prévios.
11
Procurar relações de oposição e proximidade entre Poe e Breton pode representar
apenas o início de um caminho rico em descobertas. Tanto Poe quanto Breton são herdeiros
do movimento romântico, mas ambos se posicionam criticamente com relação a ele. O
personagem Dupin é uma voz que revela a procura por desencantar o mundo. André Breton
busca o contrário, o reencantamento, ao afirmar o maravilhoso na vida cotidiana. Os contos de
raciocínio de Poe são narrativas ficcionais, mas que nem por isso estão totalmente ―vazias‖ da
vida de seu autor. Breton, com seu livro Nadja, vem oferecer um ―anti-romance‖, em que a
ficção lugar ao relato verídico, à vida real. As vidas desses escritores estão em suas obras.
Enfim, essas são apenas algumas proximidades que se pode verificar entre Poe e Breton e, ao
que parece, esta pesquisa apenas resvala sobre a superfície de algo muito maior e promissor.
Tratar da questão desencantamento-reencantamento, isto é, afirmar que Dupin busca
desencantar o mundo, pode ir na contramão do que se está acostumado a ouvir sobre Poe
(cujo nome sempre esteve associado a histórias fantásticas). Mas é preciso atentar para um
dado importante e que não é novo
5
: os contos de Dupin são contos em que predominância
do trabalho racional, apesar de o personagem possuir um duplo caráter, o racional e o
imaginativo.
Essa dúplice natureza (racional-imaginativa) de Dupin chama a atenção para o tema do
duplo na obra de Poe, tema este bastante presente na pauta de muitos pesquisadores de sua
literatura. O contato com algumas pesquisas sobre o tema revela o quanto essa discussão
requer tratamento exclusivo e cuidadoso. No caso da narrativa raciocinante, seria pertinente
retomar questões sobre o atenuamento das inclinações fantasiosas de Dupin em favor do
trabalho do raciocínio e de como o personagem ―raciocinador‖ dá voz ao outro ―lado‖ de Poe,
seu duplo ideal. No entanto, não é propósito deste trabalho apresentar provas ou argumentos
com relação ao duplo nos contos raciocinantes de Poe. Na verdade, a discussão sobre o tema
permanece restrita ao campo da ficção, o que não vem a contribuir para o estabelecimento do
diálogo a que este trabalho se propõe realizar. De fato, procurar-seesclarecer, ao longo
dessa pesquisa, como esse diálogo se dá fora do plano ficcional.
Nesse momento, convém reafirmar que esta pesquisa compara a trilogia raciocinante de
Edgar Allan Poe, Os Crimes da Rua Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada,
com o livro Nadja, de André Breton. Na trilogia raciocinante, o protagonista Dupin aplica
suas aptidões analíticas para tentar solucionar crimes misteriosos, considerados por ele como
―enigmas‖. Ele está sempre em companhia de um amigo assistente‖, o narrador da história.
5
A teoria sobre o romance policial, muito, tem mostrado como a narrativa detetivesca não passa, na verdade,
de um romance-problema, tal como o definem Boileau e Narcejac (1991).
12
Em seu livro Nadja, Breton narra fatos verídicos vivenciados em certo período de sua vida,
que permanecem, para ele, enigmáticos. O livro é escrito com o objetivo de compreender a
natureza dessas coincidências, ocorridas, em especial, no período em que Breton conviveu
com uma mulher, conhecida como Nadja, que encontrou, ao acaso, pelas ruas de Paris. Assim,
a pesquisa compara Dupin (o duplo idealizado de Poe) a Breton e deixa clara uma das maiores
proximidades entre eles: a busca por respostas, em meio ao acaso.
Este estudo é de cunho bibliográfico e qualitativo, uma vez que trabalha com
descrições, comparações e interpretações, seja no plano do conteúdo das obras como no que
diz respeito aos seus aspectos formais. O primeiro capítulo deste trabalho retoma várias
questões relativas ao gótico na literatura, como os itens relacionados à produção do medo
(terror, horror, ―gótico explicado‖), e discute a influência de Hoffmann sobre Poe e, em
especial, sobre a narrativa de raciocínio. Tratar do gótico significa retomar uma espécie de
tradição ancestral da noção de maravilhoso e da surrealidade, cujo grande pioneiro, para
ambos, foi Hoffmann. O novo posicionamento de Poe e Breton frente à tradição romântica
pode ser visto no modo como se distanciam de Hoffmann. Se, para o autor alemão, o
maravilhoso fazia parte de outro mundo, para Poe e Breton o extraordinário e o maravilhoso
são considerados elementos inerentes ao mundo cotidiano.
O segundo capítulo aprofunda as questões sobre o gótico, restringindo seu campo de
observação às narrativas de raciocínio de Poe. Essas discussões deram base para que, no
próximo capítulo, se pudesse tratar, com desenvoltura, sobre Poe e Breton, tendo em mente
suas ―heranças‖ comuns. O terceiro capítulo apresenta uma comparação entre as práticas e os
saberes do personagem Dupin e de Breton, em seu livro Nadja. Com base tanto nos
conhecimentos das ciências, aos quais recorrem o personagem Dupin e André Breton (na
tentativa de interpretar fatos misteriosos), quanto nos contextos artísticos que os escritores
produziram, pretendeu-se confrontar suas práticas e saberes e os aspectos formais de cada
obra, numa busca por identificar fatores comuns entre ambas. O terceiro capítulo alberga,
ainda, uma abordagem crítica de Michel Foucault, que se mostrou bastante relevante, acerca
do gênero policial. Foucault foi importante na discussão sobre a ficção do acaso na trilogia
raciocinante. A análise de sua visão permite que se perceba um dado interessante: assim como
o livro Nadja foi considerado ficcional pelo exagero do acaso, também o acaso na trilogia foi
considerado como ficção pelo próprio Foucault. No que diz respeito ao acaso, procurou-se
mostrar que Poe extraiu da vida e do cotidiano o acaso que deixa transparecer em seus contos
de raciocínio. Ainda que sejam ficcionais, esses contos revelam como Poe, por meio de seu
duplo Dupin, expressa sua maneira de interpretar a vida.
13
O confronto estabelecido entre os contos raciocinantes de Poe e o livro Nadja, de
Breton, mostra como obras tão distintas são capazes de dialogar entre si no que respeita a um
dos fenômenos mais intrigantes e desafiadores para a compreensão humana: os acasos.
14
CAPÍTULO I
O CONTO RACIOCINANTE DE EDGAR ALLAN POE
1.1 O CONTO DE RACIOCÍNIO
6
E SUAS RELAÇÕES COM O GÓTICO
A certeza expressa por Edgar Allan Poe de que alguns de seus contos possuíam natureza
―raciocinante‖ faz parecer curiosa a afirmação de que existem traços góticos em três contos
específicos, em que à razão é oferecido o papel central. Contudo, a observação de alguns
desses traços nos contos raciocinantes, como a ambientação e a alusão ao sobrenatural,
sugere, segundo Carpeaux (2005, p. 157), que ―também foram ‗góticos‘ [...] os primeiros
romances policiais‖. Dessa forma, serão abordados, brevemente, alguns pontos relativos ao
gótico, sem a intenção de se fazer do tópico um novo compêndio sobre o assunto.
Costuma-se apontar, como iniciador do nero gótico, o romance O Castelo de Otranto
(1764), de Horace Walpole; este teria sido o primeiro romance do estilo que se sobressai
dentre uma infinidade de obras, de questionável mérito, escritas por autores anônimos do
século XIX. No entanto, o Velho Mundo havia conhecido poetas pré-românticos como
Thomas Parnell (1679-1718), cuja obra A Night Piece on Death (1722) foi publicada
postumamente e corresponde à primeira da escola dos graveyard poets
7
. Essa poesia
melancólica, no entanto, seria popularizada com a publicação de Night-Thoughts (1742-
1745)
8
do inglês Edward Young (1681-1765), obra que estabeleceu a moda de poemas
fúnebres na Europa e difundiu o gosto pela ―poesia noturna e funérea‖ (MOISÉS, 1987, p.
138). Em Night-Thoughts, Young lamentava a morte de seus amigos e de sua esposa,
destilando versos como: ―[...] Um único e curto dia é incapaz de abarcar minha desgraça; E
6
Apesar de Boileau e Narcejac (1991) adotarem a expressão ―romance policial‖ ao se referirem aos contos de
Poe, neste estudo será adotada a denominação ―contos raciocinantes‖. Dupin, personagem poeano da trilogia
objeto desta pesquisa, não era um ―policial‖, mas um ―raciocinador‖, e sua ligação com o crime se deu de modo
acidental. O conto raciocinante pode, sim, ter prenunciado a profissionalização do raciocinador, como em
romances policiais que se seguiram a Poe e nos quais a relação do protagonista com o crime é, muitas vezes,
voluntária e não casual. Segundo Boileau e Narcejac (1991, p. 19), Poe ―não soube que tinha descoberto o
romance policial. [Ele] acreditou simplesmente que acabava de inventar uma técnica do raciocínio aplicável à
ficção‖. Os teóricos também empregam o termo ―romance-problema‖ para designar uma obra detetivesca: ―Por
definição, o romance policial é um problema‖ (BOILEAU E NARCEJAC, 1991, p. 19).
7
―Poetas de cemitério‖, os primeiros com predileção pela melancolia. A assim chamada ―escola‖ é composta por
quatorze poetas, entre os quais figuram Thomas Warton (1728-1790), James McPherson (1736-1796) e Thomas
Chatterton (1752-1770).
8
O título completo é The Complaint or Night Thoughts on Life, Death and Immortality. Esta obra também é
referenciada como: Night Thoughts on Life, Death and Immortality: In Nine Nights. É com relação a essas ―nove
noites‖ que Breton fala de Young no primeiro Manifesto do Surrealismo.
15
noite, / Mesmo o zênite de seu império enegrecido, / é brilho de sol frente à cor do meu
destino‖
9
. Assim, a publicação do livro de Parnell, em 1722, 42 anos antes de Otranto, aliada
ao sucesso popular da obra de Young, em 1745, tornou a poesia dos graveyard poets
precursora do gênero gótico na literatura.
Grosso-modo, gótica é a literatura que empresta os cenários e os temas cantados por
esses graveyard poets do século XVIII, que, como Young, abordaram ―a morte, o medo, a
noite, gemidos [...] (VASCONCELOS, 2002, p. 121). Existem algumas ligações entre os
contos raciocinantes de Poe e o gótico e estas podem ser constatadas pelas mortes em Os
Crimes da Rua Morgue e em O Mistério de Marie Rogêt; pela predileção de Dupin pela noite;
assim como pela referência a gritos ouvidos ao pôr do sol
10
ou aos que, em Os Crimes da Rua
Morgue, são lançados ―durante vários minutos talvez uns dez, [...] altos e prolongados, e
[que] causavam horror e angústia‖ (POE, 1981, p. 124).
O gótico, nos contos de Poe, seguiu os moldes do gótico anteriormente praticado por
Ann Radcliffe (1764-1823). Essa afinidade fica clara quando se verifica, em ambos, por
exemplo, a comum presença de personagens jovens e a atenção dada à criação da atmosfera.
Em seu romance mais popular
11
, Os Mistérios de Udolfo, Radcliffe:
[...] retomou o enredo do romance sentimental, calcado nas atribulações de uma bela
jovem envolvida em perigos e perseguições de toda ordem, e evolveu-o em mistério
e suspense, providenciando paisagens magnificentes e pitorescas, maras
mortuárias e propriedades em ruínas como cenário para suas histórias que conjugam
beleza e terror. A criação da atmosfera e a sugestão de terror, mais do que sua
encenação crua e direta, são traços que distinguem a autora de The Mysteries of
Udolpho de seus antecessores, tais como Walpole, que encheu Otranto de cadáveres,
sangue e horror. (VASCONCELOS, 2002, p. 127-128)
O método utilizado para envolver o enredo do romance sentimental em suspense fica
claro: aproxima-se a beleza e a juventude de uma mulher a um ambiente ―feio‖, arruinado e
antigo. Esse contraste entre o belo e o feio não faz mais do que elevar, ao exagero, o caráter
frágil de um e ameaçador do outro. A atmosfera de suspense e terror é assim criada, pois a
ameaça sugerida pelo antigo e pelo decrépito se torna iminente sobre a figura personificadora
da fragilidade e da beleza.
A perseguição da mulher jovem, bela e virtuosa por um algoz cruel não está ausente no
conto raciocinante de Poe. Em Os Crimes da Rua Morgue, a juventude e inocência
9
[…] The Day too short for my distress; and Night, / E‘en the zenith of her dark domain, / Is sunshine to the
colour of my fate‖. A grafia de colour tem procedência britânica. Todas as traduções livres são de autoria do
autor.
10
O Mistério de Marie Rogêt.
11
Segundo Orlandi (1972, p. 93), o romance Os Mistérios de Udolpho era ―o livro que andava de mão em mão
entre as melhores famílias‖.
16
personificam-se em Camille L‘Espanaye, uma jovem que vivia ―quase em completa reclusão‖
(POE, 1981, p. 123) ao lado de sua mãe, Madame L‘Espanaye. As duas ―pareciam viver em
boa harmonia, tratando-se, reciprocamente, de maneira muito afetuosa‖ (POE, 1981, p. 122).
Ambas são assassinadas pelo que, mais tarde, se soube ser um orangotango. Como Radcliffe,
Poe potencializa a ameaça iminente e o suspense através do confronto estabelecido entre a
fragilidade personificada pela figura feminina e a selvageria representada por um animal
como o orangotango.
O mesmo processo ocorre em O Mistério de Marie Rogêt. A jovem Marie:
[...] era filha única da viúva Estelle Rogêt. Perdera o pai quando ainda era criança e
a partir da época de sua morte até oito meses antes [de seu assassínio], mãe e filha
viviam na Rua Pavée Saint André, onde Madame Rogêt, ajudada pela filha,
mantinha uma pensão. (POE, 1981, p. 156)
Ora, essa breve caracterização dada por Poe não levanta qualquer desconfiança ou
reprovação em relação às qualidades morais que uma criança como Marie poderia assumir
com o tempo. No entanto, contrariando a lógica dessa caracterização, aos 22 anos, a jovem
toma duas decisões em nada ligadas aos valores familiares e à virtude, como entendidos pelo
romance gótico tradicional: desobedecendo a sua mãe, ela aceita trabalhar em um local
frequentado por maus indivíduos e decide fugir com um amante secreto, um marinheiro de
índole duvidosa e que seria seu futuro assassino. O diferencial de Marie é a não confirmação
de sua ―inocência‖ inicial.
É também comum, em Poe e Radcliffe, o uso de protagonistas jovens. É o caso de
Emily St. Aubert, de Os Mistérios de Udolpho, e da trilogia raciocinante de Poe, cujos
personagens são o Cavaleiro
12
Auguste Dupin, Camille e Madame L‘Espanaye e Marie Rogêt.
As habitações em que residem os personagens dos contos de Poe também são similares
às composições espaciais que Radcliffe utiliza para evocar certo estado de espírito e
estabelecer determinada atmosfera. Em Os Mistérios de Udolpho, encontra-se, por exemplo, a
seguinte descrição espacial:
Ele então pegou a tocha e [...] conduziu [Emily] pela passagem. Ao chegarem a
outra porta, Barnardine a destrancou e ambos desceram até uma capela. Enquanto
ele erguia a tocha para iluminá-la, Emily notou que a ermida estava em ruínas [...].
A jovem olhou amedrontada para as paredes quase sem forro, verdes e com
infiltrações, e para as arcadas góticas das janelas, nas quais a trepadeira e a briônia
assumiram por muito tempo o lugar da vidraça e se dispersaram entre os cabedais
12
Título concedido pela Legião de Honra, uma ordem francesa fundada por Napoleão Bonaparte, em 1802, para
homenagear civis e militares que ofereceram grandes contribuições ao país em todos os campos, como nas artes
e nas ciências.
17
quebrados de algumas colunas, que um dia escoraram o teto [...]. (RADCLIFFE,
2008, p. 10)
13
A imagem ressalta bem o aspecto decadente e arruinado do ambiente: a escuridão, o
mofo, as paredes corroídas e trepadeiras, de toda sorte, que invadem o local. A sensação é de
ameaça, como se o lugar transmitisse uma mensagem de iminente perigo.
Tonalidade semelhante é conseguida, também, por Poe, em suas descrições espaciais.
Escolhida e alugada pelo narrador, a habitação derruída de Os Crimes da Rua Morgue
consistia em um ―velho e grotesco casarão, arruinado pelo tempo, [...] desabitado, [...] tão
[velho] que estremecia sob nossos passos, como se estivesse prestes a ruir‖ (POE, 1981, p.
115). Contudo, o momento mais notável da criação anímica e atmosférica de Poe encontra-se
no conto A Carta Roubada. Neste conto, após uma ―escura e tormentosa noite‖ de outono, o
narrador e Dupin permaneceram ―sentados no escuro‖, por uma hora, no interior de uma
pequena biblioteca, em meio a ―volutas de fumaça que tornavam densa a atmosfera do
aposento‖ (POE, 1981, p. 211). Essa clausura revela-se, na verdade, até mesmo voluntária,
por parte de Dupin, que não demora em elucidar o motivo dessa inércia e do encerramento:
―Se se trata de um caso que requer reflexão [...], será melhor examinado no escuro‖ (POE,
1981, p. 212). Com isso, Dupin sugere a interiorização necessária ao processo racional.
Até o momento, revisitou-se, brevemente, o pioneirismo temático dos graveyard poets e
o estilo gótico das obras de Radcliffe, bem como as afinidades entre as obras de Poe e o estilo
gótico da autora. Vê-se que tais afinidades estão presentes, por exemplo, na inocência
atribuída a algumas personagens femininas e na composição de uma atmosfera particular,
sombria e misteriosa. A seguir, serão aprofundadas algumas questões específicas acerca do
gótico e sua relação com o trabalho de Poe.
1.2 AVENTURAS E IMPREVISTOS NO GÓTICO E NO CONTO RACIOCINANTE
Até o século XVII, o continente europeu havia assistido ao desenvolvimento do
romance, uma forma literária considerada, em seus primórdios, como de inexpressiva
importância artística. Essas narrativas, cujo objetivo único era o entretenimento, tiveram
13
He then took up the torch, and led her along the passage, at the extremity of which he unlocked another door,
whence they descended, a few steps, into a chapel, which, as Barnardine held up the torch to light her, Emily
observed to be in ruins […]. She looked fearfully on the almost roofless walls, green with damps, and on the
gothic points of the windows, where the ivy and the briony had long supplied the place of glass, and ran
mantling among the broken capitals of some columns, that had once supported the roof […].
18
início com o romance de cavalaria
14
medieval, centrado, tematicamente, no amor e, acima de
tudo, na aventura. A época medieval entendia aventura como uma provação principal capaz
de levar, gradualmente, determinado herói à perfeição. Essa perfeição seria o veículo por
meio do qual a ordem é restabelecida.
Além do tema da aventura, era característico do romance medieval, segundo Aguiar e
Silva (1983), os incidentes e imprevistos motivados pelo amor
15
. Essas marcas do romance
medieval serão retomadas no século XVIII com o advento do romance negro e com autores
como Radcliffe:
[...] [Radcliffe realizava] uma estruturação engenhosa do enredo, mas [incluía] o
recurso contínuo a acidentes inesperados e a mistérios e suspense que [a autora]
cuidadosamente desfazia, através de uma explicação racional. Reabilitavam-se assim
os cenários remotos ou extravagantes, as convenções romanescas, o uso das
coincidências que haviam constituído o instrumental básico da ficção até o [século
XVII]. (VASCONCELOS, 2002, p. 128, sic)
A aventura medievalesca e sua natureza propícia ao suspense são retomadas, também,
com o romance gótico. Em O Castelo de Otranto, a virtuosa Isabela foge pelas das escuras
passagens subterrâneas do castelo para evitar que seu sogro, o príncipe Manfredo, cometa
adultério e a despose contra a sua vontade. Perseguida pelos guardas do príncipe, Isabela
enfrenta seus próprios medos e os perigos secretos do castelo para defender sua virtude. O
objetivo de Isabela é alcançar as imediações de um convento, onde pretende encerrar-se, para
sempre, como religiosa e, com isso, frustrar os planos do príncipe. Essa disposição ao perigo,
em defesa da virtude, constitui uma provação, ao final da qual o estado de ―perfeição‖ de
Isabela é reafirmado. Terminado o romance, a ―perturbação‖ causada pelos desígnios do
príncipe Manfredo converte-se em ―ordem‖, por meio de sua punição e da preservação dos
valores familiares.
O estabelecimento de uma ―ordem‖ através da ―perfeição‖ adquirida pelo protagonista
aventureiro não está ausente do conto raciocinante poeano. Em Os Crimes da Rua Morgue, o
narrador e Dupin estão dispostos a correr os muitos riscos que as madrugadas urbanas têm a
14
O modelo do romance de cavalaria foi estabelecido pelas obras de Chrétien de Troyes. De acordo com Aguiar
e Silva (1983), o romance sentimental era praticado paralelamente ao de cavalaria e centrava-se no sentimento
amoroso, optando sempre por um desfecho trágico. O romance renascentista, por seu turno, era de tradição
bucólica (Virgílio e Teócrito) e foi influenciado por obras como Ninfale d’Ameto, de Boccaccio. Nestas obras, ao
invés de simples e humildes, os chamados ―pastores‖ demonstravam sensibilidade e instrução, sendo capazes de
refletir sobre temas como o amor e a hipocrisia. A obra-prima do romance renascentista foi Diana (1558 ou
1559), de Jorge de Montemor, apreciado na Europa nos séculos XVI e XVII. Finalmente, o romance barroco
assemelhava-se muito ao de cavalaria e era caracterizado pela riqueza imaginativa e pelo caráter inverossímil das
aventuras, tendo sido apreciado a partir do século XVII.
15
Outras características são: o final amoroso e feliz, e, quanto ao aspecto técnico, a capacidade de
desenvolvimento das histórias como propiciadoras do alongamento da intriga e da criação de continuações.
19
oferecer, no intuito de buscar o que o narrador chama de ―inumeráveis excitações mentais‖
(POE, 1981, p. 116). Com a chegada da noite, segundo o narrador, os dois saem
pelas ruas, de braço dado, continuando a conversa do dia e vagando a esmo até
muito longe e até horas tardias, procurando, entre as luzes e as sombras fantásticas
da populosa cidade, as inumeráveis excitações mentais que a observação tranquila
pode proporcionar. (POE, 1981, p. 116)
Esses passeios noturnos, entregues ao imprevisto e realizados sem nenhuma
preocupação com a iminência do perigo típico das grandes cidades os criminosos ,
constituem uma arriscada aventura, que chega a se repetir, de forma mais contundente, em A
Carta Roubada. Neste conto, Dupin infiltra-se em território inimigo e e sua vida em risco
para recuperar uma carta, politicamente, comprometedora. Segundo o próprio protagonista,
seu oponente era um ―homem decidido e de grande coragem‖ (POE, 1981, p. 230), que
possuía ―criados fiéis aos seus interesses‖
16
. Nessas circunstâncias, segundo ele, caso sua
intenção fosse descoberta, ―talvez não conseguisse sair vivo [da] presença ‗ministerial‘‖
17
.
Percebe-se, portanto, que essas aventuras a que Dupin se lança, em especial em A Carta
Roubada, trazem como resultado a solução de vários mistérios e a aquisição de muitas
vantagens materiais. Dupin, no conto de raciocínio, age, explicitamente, como aquele que
restabelece a ordem das coisas, que ―recoloca um pouco de ordem em nossos espíritos‖
(BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 26-27).
Depois da aventura, os imprevistos e os ―acidentes inesperados‖ são recursos ―técnicos‖
nas mãos de autores como Radcliffe e contribuem para a criação do mistério. Aqui, -se que
o acaso é também uma técnica narrativa a serviço do efeito do medo. Nos contos
raciocinantes de Poe, a presença do acaso é exagerada, de modo que se pode seguramente
pensar em uma grotesqueria do acaso produzida por Poe nesses contos
18
.
Fatos como o encontro acidental entre o narrador e o cavaleiro Dupin, em uma livraria,
em Os Crimes da Rua Morgue, aparentam, à primeira vista, serem frutos de uma
―casualidade‖ sem maiores consequências para a narrativa. Contudo, à medida em que o conto
prossegue, observa-se que o próprio assassinato da Rua Morgue, bem como o contato de dois
homens excêntricos com as notícias jornalísticas sobre o crime, derivam de uma série de
coincidências. No conto raciocinante, o acaso move todo o enredo.
16
Idem, ibidem, p. 231.
17
Idem, ibidem, p. 231.
18
O terceiro capítulo deste trabalho procurará mostrar que o acaso, na trilogia raciocinante de Poe, não assume o
caráter de mero recurso técnico ficcional e literário.
20
1.3 O GÓTICO DETETIVESCO E A MÚTUA CONVIVÊNCIA ENTRE RAZÃO E IMAGINAÇÃO
A aproximação entre razão e imaginação, recorrente nos contos raciocinantes de Poe, já
ocorria em obras góticas como as de Radcliffe:
O suspense, [...], os eventos misteriosos, as forças sobrenaturais são, todos,
elementos do enredo habilmente manejados a serviço [...] de uma história na melhor
tradição do romance sentimental. O estímulo à imaginação, as especulações
extravagantes são, dessa maneira, sempre rebatidos com as explicações racionais
com que Radcliffe contempla o leitor, devolvendo-o, são e salvo, ao mundo da
razão, da moralidade e da felicidade doméstica que caracterizava grande parte da
ficção realista do século XVIII [...]. (VASCONCELOS, 2002, p. 131)
É no mínimo curiosa a ideia de um romance que é gótico, mas que, ao mesmo tempo,
tenta oferecer explicações racionais para fatos misteriosos. Na verdade, Radcliffe praticava
um tipo de gótico cujo processo era o de sugerir causas sobrenaturais para fatos
extraordinários e, em seguida, explicar, racionalmente, a origem terrena desses eventos.
Carroll (1999) define esse tipo de gótico como gótico explicado
19
.
Segundo Vasconcelos (2002), a ―explicação‖ seria capaz de reconduzir o leitor, ―são e
salvo‖, ao mundo da racionalidade. Esse efeito é particularmente importante para o conto de
raciocínio, cuja ênfase é dada à apresentação de fatos misteriosos e de suas posteriores
elucidações. De acordo com Boileau e Narcejac (1991) dois teóricos e romancistas
policiais o ―detetive‖ exerce a função de devolver o leitor à sua tranquilidade cotidiana e
habitual. Referindo-se a Os Crimes da Rua Morgue, os autores afirmam:
[...] [O leitor] encontra-se, primeiramente, mergulhado num mundo terrível e
assustador [...]. uma navalha suja de sangue, cabelos arrancados, um cadáver
degolado cuja cabeça se destaca do tronco, etc. [...]. [...] [A] reflexão fica paralisada
pelo terror. Eis porque o leitor [...] é lançado fora de si mesmo e pede
silenciosamente socorro. Depressa! Que lhe digam o que se passou, pois, se o menor
clarão brilhasse nessas trevas, ele [...] começaria [...] a dominar uma situação até
então assustadora. Aparece então o detetive, o homem que compreende para os
outros, e eis que recoloca um pouco de ordem em nossos espíritos. Logo, o terror
muda de caráter. [O leitor] começa a retomar confiança, [...] se identifica ao detetive
médico, coloca-se sob sua dependência, [e] recebe dele, com indizível alívio, a
verdade. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 26-27)
19
Carrol (1999) divide o gótico em 4 categorias distintas: tico histórico, gótico natural ou explicado, gótico
equívoco e gótico sobrenatural. O gótico histórico situa a história em um passado fictício, porém, sem qualquer
referência ao sobrenatural. O gótico-explicado, por sua vez, introduz a sugestão de eventos sobrenaturais na
narrativa, desmistificando-os posteriormente e explicando suas origens terrenas. Segundo Almeida (2003), Os
Mistérios de Udolpho exemplifica essa última categoria. Em relação ao gótico equívoco, trabalha-se, nessa
classe, com duas possibilidades de explicação para um fato extraordinário: a racional e a sobrenatural, sem que
se possa, contudo, optar, com clareza, por uma delas. Finalmente, a narrativa que admite a presença de forças
sobrenaturais como causa de fenômenos extraordinários está inserida no âmbito do gótico sobrenatural.
21
O conto raciocinante, assim, reafirma a segurança que a razão e o conhecimento são
capazes de proporcionar após a restauração da tranquilidade no leitor por meio da intervenção
explicativa do detetive.
1.4 HOFFMANN
Antes do surgimento de Os Crimes da Rua Morgue, a literatura alemã produz um conto
em que certa personagem feminina contribui para uma investigação policial repleta de perigos
e de manifestações sobrenaturais. Alguns críticos admitem-no (e não Os Crimes da Rua
Morgue) como o primeiro conto policial da história literária. Produto do romantismo alemão,
o conto A Senhorita de Scudéry (1819) antecipa alguns elementos que estariam presentes em
Poe, sendo o gótico um deles. Seu autor, Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822),
abordava, constantemente, o tema do maravilhoso como elemento de outro mundo. Os
elementos do gótico e a posição de Hoffmann sobre o maravilhoso perpassam os contos
raciocinantes de Poe e chegam até o surrealismo
20
. Para Berlin (2001), trabalhos como o de
Hoffmann precedem o surrealismo, porque seu objetivo era
quebrar a barreira entre ilusão e realidade [...], entre noite e dia, entre o consciente e
o inconsciente, a fim de produzir um senso de ilimitação universal, de um universo
sem barreiras, de mudança e transformação perpétuas. Esse é o princípio central do
movimento romântico. (BERLIN, 2001, p. 116)
21
Por esse motivo, torna-se relevante uma breve discussão sobre Hoffmann e sua
influência sobre os dois autores, ainda que as posições destes sobre o maravilhoso sejam
diferentes da do escritor alemão
22
.
Uma vasta tradição crítica, americana e européia, atesta a influência da literatura alemã
sobre Poe, possibilitada pela influência germânica que, progressivamente, atingiu a América e
Inglaterra nas décadas de 1830 e 1840. De acordo com Cobb (1908), nos dois países, são
publicados, a partir de 1825
23
, inúmeras traduções e um grande número de artigos sobre
20
A literatura fantástica de Hoffmann, segundo Huber (2003), tem ecos até a atualidade, no surrealismo e no
realismo mágico sul americano [...]. [...] Poe, Baudelaire, Gogol, Kafka e os surrealistas franceses chamaram
Hoffmann ‗o primeiro artista moderno‖.
21
...to break down the barrier between illusion and reality […], between night and day, between conscious and
unconscious, in order to produce a sense of the absolutely unbarred universe, of the wall-less universe, and of
perpetual change, perpetual transformation [...] That is the central doctrine of the romantic movement.
22
Breton, ao contrário de Hoffmann, via o maravilhoso como parte da realidade. Nos contos raciocinantes de
Poe, o que parece ser resultado do sobrenatural é explicado como efeito de causas terrenas.
23
Poe contava então 16 anos.
22
literatura germânica, em revistas e periódicos. Um comentário no North American Review, de
1840, expõe as consequências da influência teutônica na América:
Em poucos anos, a literatura alemã progrediu muito nesse país. Em algumas de
nossas faculdades, em especial a Universidade de Harvard, quase todo estudante
com pretensão literária domina pelo menos os elementos básicos da língua alemã; e
as opiniões dos filósofos e teólogos alemães se fizeram profundamente sentidas,
para o bem ou para o mal, em meio ao caos de opiniões entre nós. (NORTH... apud
COBB, p. 18)
24
Nesse cenário, tradutores e críticos dispensaram atenção constante às obras de
Hoffmann. Segundo Cobb (1908), surgem, na Inglaterra, a tradução de Os Elixires do Diabo,
publicada, em 1824, pela revista Blackwood’s Magazine, assim como a publicação de O Vaso
de Ouro na coleção German Romance
25
, de Thomas Carlyle, para citar apenas algumas obras.
Outra tradução digna de nota é a de A Senhorita de Scudéry, publicada em Londres, em 1826,
por Robert Pierce Gilles. A crítica literária inglesa, por sua vez, dedicou mais de quarenta
artigos à literatura alemã; no caso de Hoffmann, surgiram, em 1831, artigos acerca de O
Velho da Montanha, Pietro de Albano e Barba Azul, os quais foram publicados,
posteriormente, na Blackwood’s, em 1833.
A França, cuja produção literária e crítica era observada regularmente por Poe, oferecia
farta bibliografia sobre Hoffmann:
Os periódicos literários franceses ocupavam-se constantemente de Hoffmann e uma
edição completa foi terminada em 1833, o ano do primeiro conto de Poe,
[Manuscrito Encontrado em Uma Garrafa, Baltimore Saturday Visitor, 12 de
Outubro de 1833]. (COBB, 1908, p. 16)
26
A recepção entusiástica da literatura alemã pela Inglaterra, América e França mostra
que Poe não ficou alheio a essa influência cultural, mesmo porque sua atuação profissional
implicava o domínio de toda e qualquer questão literária do período:
24
[…] Within a few years German literature has made great progress in this country. At some of our colleges,
particularly Harvard University, almost every student of any pretensions to literary distinction masters the
elements at least of the German language; and the opinions of the German philosophers and theologians have
already made themselves deeply felt, whether for good or evil, among the chaos of opinions among us.
25
Obra responsável por introduzir a literatura alemã na Inglaterra.
26
French literary journals were constantly busied with Hoffmann, and […] a complete edition was […]
completed in 1833, the year of Poe‘s first tale.
23
Poe, como editor, era um leitor atento de revistas e seguiu de perto as publicações
americanas e estrangeiras. [...] É impossível que ele não tenha sido afetado por esse
interesse geral no romance alemão. (COBB, 1908, p. 18-19)
27
De acordo com Cobb (1908), Poe preferia ler obras dos chamados ―nomes
secundários‖
28
da literatura alemã. Autores como Goethe não lhe interessavam.
Em 1827, Walter Scott publica um artigo sobre literatura alemã no Foreign Quarterly
Review
29
, intitulado Os Romances de E. T. A. Hoffmann. Em seu artigo, Scott fala da escrita
fantástica e grotesca, citando Hoffmann como um de seus pioneiros. Para Scott, o grotesco
sobrenatural de Hoffmann corresponde ao arabesco na pintura,
que se constitui quando se empregam os mais raros e disformes monstros, como
centauros, aves fabulosas, esfinges, quimeras [...] e todas as demais criaturas de uma
fantasia romântica; o contemplador fica como que ofuscado pela ilimitada fertilidade
da fantasia, e tudo isto é ainda mais acentuado pelo contraste em todas as
multivariedades de forma e colorido, enquanto efetivamente nada que seja
acessível ao entendimento ou que permita uma interpretação. (SCOTT apud
KAYSER, 1986, p. 74)
Autores como Cobb (1908), Kayser (1986) e Bauer (1999) não deixam de mencionar a
importância do artigo, ―que provou se transformar no mais influente artigo crítico sobre E. T.
A. Hoffmann‖ (BAUER, 1999, p. 69)
30
. De acordo com Cobb (1908, p. 103) ―[...] o interesse
despertado [em Poe] por esse artigo o levou a uma maior aproximação com as obras de
Hoffmann‖
31
.
1.5 INFLUÊNCIAS DE HOFFMANN NOS CONTOS RACIOCINANTES DE POE
Em relação ao aspecto formal de seus trabalhos, muitos críticos de Poe acreditavam que
ele imitava Hoffmann. No entanto, estudos como os de Cobb (1908) mostram que a influência
de Hoffmann sobre Poe se restringe apenas aos temas e aos motivos de suas histórias.
27
Poe, in his capacity of magazine editor, was a zealous reader of magazines and followed closely American and
foreign publications […]. It was impossible that he should not have been affected by this general interest in
German romance.
28
Secondary names (COBB, 1908, p. 23).
29
Publicado em Londres. Gilles era proprietário do Foreign Quarterly Review e, para promover seu periódico,
convidou Scott para publicar um artigo. Bauer (1999) levanta a hipótese de que Scott escolheu o tema devido às
traduções de Gilles.
30
Scott reluctantly agreed to write what proved to become the most influential critical article on E. T. A.
Hoffmann.
31
was probably first attracted to Hoffmann […] and the interest this article aroused in him led to a closer
acquaintance with Hoffmann‘s works.
24
Kayser (1986) percorre o mesmo caminho e encontra em Poe temas tipicamente
―hoffmannianos‖, como o do sósia, presente em obras como O Gato Preto (1843) e Willian
Wilson (1839), e o da influência fatal do passado sobre a sensibilidade, tal como em A Queda
da casa de Usher (1839). No entanto, é em sua ―inclinação para o repugnante, o horrível e o
crime‖ (KAYSER, 1986, p. 76) que Poe se diferencia de Hoffmann.
Se, a princípio, não existe, em Hoffmann, qualquer menção ao crime
32
, o escritor
alemão trabalhou muito com personagens ―investigativos‖ que demonstravam o desejo, até
mesmo frívolo, de pôr em prática suas faculdades analíticas a fim de solucionar enigmas. Em
Hoffmann, a análise é aplicada a eventos sobrenaturais numa tentativa de comprovar a sua
origem terrena. É nesse ponto que ocorre o confronto entre razão e imaginação, que tomará
rumo diferente em Poe. Segundo Kayser (1986), no caso de Hoffmann, a razão e o sinistro
desafiam-se mutuamente e o resultado é a derrota da primeira. Em Poe, o sinistro é dissipado
e a razão triunfa.
Esse desafio entre razão e sinistro pode ser encontrado, por exemplo, em Os Autômatos,
de Hoffmann. As misteriosas adivinhações de um autômato conhecido como o ―Turco‖
instigam a curiosidade de Ferdinando e despertam nele o desejo de pôr à prova a sabedoria do
boneco e de conseguir demonstrar que o mesmo é controlado por uma pessoa:
[...] Um dos mais perfeitos autômatos que já vi foi o equilibrista de Ensler, cujos
movimentos impressionavam pelo vigor autêntico, como também quando
repentinamente, sentava-se sobre a corda, acenando simpaticamente com a cabeça
algo muito estranho. Com certeza, ninguém então experimentava essa sensação
de horror provocada por tais figuras, particularmente em pessoas muito excitáveis.
Mas no que diz respeito a nosso Turco, minhas restrições são especiais. De acordo
com a descrição de todos, que o viram, seu aspecto exterior é vistoso e imponente, e
não deixa certamente de desempenhar um papel importante; evidentemente, os seus
olhos giram e ele revira a cabeça apenas para que nossa atenção se concentre nele,
justamente onde a chave do enigma não será encontrada. [...] Não dúvida de que
um ser humano, através de um dispositivo ótico e acústico que nos é desconhecido,
mantém-se em contato com aquele que pergunta, de maneira a vê-lo, ouvi-lo e
sussurrar-lhe as respostas [...]. Mas o que [...] muito me intriga é o poder intelectual
do ser humano desconhecido por intermédio de quem o autômato parece penetrar no
âmago do pensamento do interlocutor com frequência em suas respostas uma
perspicácia e ao mesmo tempo um assustador claro-escuro que fazem delas oráculos
no sentido mais restrito da palavra. Com relação a isso, ouvi de vários amigos coisas
que muito me surpreenderam, e não poderei resistir por muito tempo à tentação de
r à prova o admirável espírito profético do desconhecido. Eis porque decidi-me ir
até lá amanhã [...]. (HOFFMANN, 1993, p. 88-89)
Ferdinando, então, encontra-se com o Turco:
32
De acordo, no entanto, com informação verbal prestada pelo professor Dr. Cláudio Jorge Willer, durante a
arguição desse trabalho, existem, de fato, crimes em narrativas de Hoffmann, como se observa na noveleta O
Quebra-Nozes e o Rei dos Ratos (1816). Segundo o professor, pode-se dizer que a história é antecipadora do
William Wilson poeano, de 1839.
25
Ferdinando aproximou-se da figura e sussurrou-lhe algumas palavras na orelha. [...]
O turco virou a cabeça em sua direção. Ludwig notou que Ferdinando empalideceu
subitamente, mas depois de alguns segundos voltou a perguntar e logo recebeu a
resposta. Com um sorriso forçado, [e] por mais que Ferdinando quisesse ocultar a
sua emoção, esta se manifestava claramente em seu esforço de parecer alegre e
despreocupado [...]. A alegria anterior desaparecera [...]. Ferdinando pôs-se a falar
tão logo ficou sozinho com Ludwig [...]: ―Agora vejo que o ser invisível, que entra
em contato conosco através do Turco de maneira misteriosa, dispõe de forças que
magicamente dominam os nossos mais secretos pensamentos. [...] Talvez saiba tudo
o que nos sucederá em dias longínquos, da mesma forma que pessoas com o
infeliz dom de prever a morte em sua exata hora‖. (HOFFMANN, 1993, p. 90-91)
Em momento anterior ao encontro com o Turco, Ferdinando tem um sonho em que se
apaixona por uma jovem. A fim de testar a desconhecida inteligência por trás do objeto,
Ferdinando indaga o autômato a respeito de seu sonho, certo de que tal procedimento afastaria
o Turco da réplica correta. Mas o Turco responde, com exatidão, à indagação, demonstrando
estar a par do sonho de Ferdinando. Este, impressionado, desconcerta-se. Em lugar de
fornecer uma explicação racional para o autômato, Ferdinando consegue apenas comprovar a
força mágica do Turco.
Desafio semelhante entre razão e sinistro se em Edgar Poe. Dupin, acompanhado do
anônimo narrador, toma conhecimento, por meio da leitura dos jornais, do duplo homicídio da
Rua Morgue e do vão esforço da polícia parisiense para capturar os responsáveis pelo crime.
Só então, Dupin inicia suas considerações:
Mediante interrogatórios tão superficiais [...] não é possível descobrir-se um meio de
[encontrar o assassino]. A polícia parisiense, tão elogiada por sua perspicácia, é
astuta, mas nada mais. Não método algum em suas diligências [...]. Os resultados
não deixam [...] de ser surpreendentes, mas [...] são conseguidos devido a simples
diligência a atividade. Quando tais qualidades de nada servem, seus planos
fracassam. Vidocq, por exemplo, era um excelente adivinhador [...]. Mas não
dispondo de uma inteligência educada, errava continuamente [...]. Sua visão era
prejudicada por olhar muito de perto o objeto. [...] Quanto a esses assassínios,
façamos alguns exames por nossa própria conta, antes de formar uma opinião a
respeito [...]. Iremos examinar o local do crime com os nossos próprios olhos.
Conheço G..., o delegado de polícia, e não teremos dificuldades em obter a
necessária permissão. (POE, 1981, p. 128-129)
As vítimas do assassinato, a senhora L‘Espanaye e sua filha Camille, foram mortas no
quarto andar da casa, em um aposento trancado por dentro. Esse último dado enfatiza o
caráter sinistro do caso. Dupin está certo de que o crime foi cometido por ―seres materiais,
que escaparam mediante procedimentos materiais‖ (POE, 1981, p. 134). Como a chaminé era
demasiado estreita, a hipótese de a fuga ter ocorrido por ela é logo descartada. Restava
26
analisar as janelas do aposento, que estavam pregadas por dentro. O próprio Dupin explica
como realizou esse exame:
‗Deve haver algo errado a respeito do prego‘, disse com meus botões. Toquei-o com
a mão, e a cabeça, juntamente com que um quarto de polegada de seu comprimento,
me ficou nos dedos. O resto do prego se achava cravado no orifício em que se havia
partido. A ruptura era antiga (como se podia ver pela ferrugem existente nas bordas)
e, ao que parecia, fora causada por uma martelada, que afundou uma parte da cabeça
do prego na madeira da janela. Recoloquei cuidadosamente essa parte da cabeça no
lugar de onde a tirara, e era perfeita a semelhança com um prego intato. Não se
percebia a ruptura [...].
Até aí, estava resolvido o enigma. O assassino fugira pela janela que dava para a
cama [...]. (POE, 1989, p. 136-137)
Desse modo, o comentário de Dupin corrobora a afirmação de Kayser (1986, p. 76): ―o
que [era] sinistro logo se converteu em enigmático, algo que pode ser explicado por um
indivíduo perspicaz‖.
A exemplo de Dupin, Ferdinando considera o caso do ―Turco‖ como um enigma.
Ferdinando também está convencido de que um ser humano comanda, secretamente, o
autômato, descartando, assim, a possibilidade do sobrenatural. Para ambos os personagens
Dupin e Ferdinando , o que parece sinistro não passa de um enigma a ser desvendado. E, no
caso de Dupin, a certeza da explicação racional para a fuga do assassino não é sequer
questionada. As posturas, marcadamente esclarecidas
33
, desses personagens revelam a adesão
a um princípio iluminista que professa a inexistência de perguntas sem respostas: sempre
explicação para toda e qualquer dúvida. Trata-se de um dos princípios básicos em que a
civilização ocidental se calca, ao qual, segundo Berlin (2001), o Iluminismo emprestou uma
versão particular. De acordo com outro preceito peculiar ao Século das Luzes, as respostas a
todas as perguntas podem ser dadas através de técnicas que permitem
aprender e ensinar um meio de descobrir de que é feito o mundo, que papel
ocupamos nele, quais são nossas relações com as pessoas e as coisas, quais são os
valores verdadeiros, e as respostas para todas as demais questões sérias e passíveis
de esclarecimento. (BERLIN, 2001, p. 22)
34
As práticas de Ferdinando e de Dupin demonstram essas certezas, mas a análise de
Ferdinando mostra-se incapaz de explicar a atuação do Turco, o que faz com que a confiança
e a tranquilidade racionais sejam substituídas pela perturbação e pelo assombro.
33
Ou seja, de teor iluminista.
34
…to learn and to teach ways of discovering what the world consists of, what part we occupy in it, what our
relation is to people, what our relation is to things, what true values are, and the answer to every other serious
and answerable questions.
27
Assim, uma vez que o conto de Hoffmann foi escrito em 1819, é provável que Poe, em
sua ―inclinação para [...] o crime‖ (KAYSER, 1986, p. 76), tenha prestado atenção ao modo
como o autor alemão tratava o tema do ―investigador‖ curioso e racional.
1.6 UM POSSÍVEL ANTECESSOR DA NARRATIVA RACIOCINANTE DE POE
A afirmação de Kayser (1986, p. 76) segundo a qual, entre Hoffmann e Poe, somente o
segundo teria ―inclinação para [...] o crime‖, encontra ao menos uma exceção com A
Senhorita de Scudéry, uma novela escrita por Hoffmann em 1819. O autor datou a história no
ano de 1680, na Paris de Luiz XIV. O personagem René Cardillac é o joalheiro mais famoso
de sua época. Contudo, forte sentimento de temor surge quando os nobres compradores de
suas valiosas jóias passam a ser roubados e assassinados a caminho da casa de suas amantes,
durante a noite. Os esforços para deter os criminosos são malogrados e os roubos continuam.
A fim de poderem vagar pela noite e continuar com seus romances extraconjugais, os nobres
cavalheiros da corte enviam carta ao rei solicitando maior rigidez na caça aos ladrões de jóias.
Sobre a carta, o rei pede a opinião da Senhorita de Scudéry, uma ―velha dama muito
conhecida na corte‖ (HOFFMANN, 2008), famosa por seus poemas e romances, e fica
impressionado com a resposta. Ela responde ao rei citando um verso de J. Ch. Wagenseil, que
diz: ―Um amante que teme os ladrões não é digno de amor‖ (HOFFMANN, 2008). Com esses
versos, o rei decide não criar leis severas e permite a continuidade das investigações policiais.
Assim que deixa a propriedade do rei e volta para casa, Scudéry recebe de seus
empregados uma caixa, entregue em sua ausência por um homem desconhecido. A caixa
continha um bracelete e um bilhete iniciado com o verso ―Um amante que teme os ladrões
não é digno de amor‖, assim como um agradecimento, por parte dos ladrões, por ela os ter
livrado de rígidas perseguições. Scudéry se vê, então, envolvida no mistério dos crimes e se
dispõe a atuar na sua elucidação.
Vários estudiosos identificam influências diretas do conto A Senhorita de Scudéry em
Os Crimes da Rua Morgue. Segundo Barbosa (2005), o conto é considerado ―por alguns
críticos como a primeira importante narrativa policial da história literária‖ (BARBOSA,
2005). Em uma entrevista dada à revista L’Oeil Eléctrique, Claude Mesplède, crítico literário
especializado em literatura policial, afirma que o gênero teve início com Poe e Os Crimes da
Rua Morgue, sem, contudo, deixar de se referir a A Senhorita de Scudéry como um possível
antecessor do conto poeano. De acordo com MacChesney (2008, p. 19), A Senhorita de
28
Scudéry precede em 22 anos o conto de Poe e cria ―o primeiro e definitivo tipo detetivesco
com seu poeta sensível [a Senhorita de Scudéry] tornado detetive‖
35
.
MacChesney (2008), em sua linha crítica feminista sobre Os Crimes da Rua Morgue e A
Senhorita de Scudéry, defende que o primeiro conto poeano realiza a eliminação e o
apagamento da atuação feminina dentro da narrativa, o que perpetua, no gênero, uma imagem
de passividade feminina e de supremacia da narrativa masculina. Em A Senhorita de Scudéry,
pelo contrário, a mulher é peça atuante e fundamental para a solução do mistério, o que
termina reescrevendo as origens do gênero e fazendo de Scudéry a verdadeira mãe da tradição
detetivesca. Assim, o conto apresenta, pela primeira vez, a ideia da mulher sensível que atua
como a detetive que está um passo à frente dos policiais masculinos. Segundo a autora, o
conto prova que as mulheres são mais preparadas para resolver crimes misteriosos e gerar a
narrativa detetivesca:
Essa personagem feminina ativa obtém êxito em resolver crimes no campo onde
seus equivalentes masculinos falham e sua investigação também gera a própria
novela. Parte analista inteligente, parte poetiza criadora, a mulher e suas ações, e não
o seu apagamento, são o que resolvem os crimes misteriosos. (MAcCHESNEY,
2008, p. 19)
36
A opinião de MacChesney (2008) tem o mérito de perceber a ideia de Hoffmann
segundo a qual a união entre razão e sensibilidade oferece condições propícias para que um
―detetive‖ seja capaz de desvendar mistérios. É provável que essa tenha sido a motivação por
trás da escolha feminina de Hoffmann
37
.
Entretanto, a mulher não tem o privilégio da sensibilidade. Sabe-se que o narrador
observou em Dupin seu ―intenso ardor e extrema vivacidade de [...] imaginação‖ (POE, 1981,
35
[…] Hoffmann‘s text creates the first definitive detective type with its perceptive poet turned detective
Mademoiselle Scudery.
36
This active female successfully resolves crimes where her male counterparts fail and her investigation also
generates this novella itself. Part intelligent analyst, part poetic creator, this woman and her actions not her
erasure are what resolve the mysterious crimes (McCHESNEY, 2008, p. 19).
37
Por ultrapassar os limites desse trabalho, não serão aprofundadas as questões relativas ao conto hoffmanniano.
Mas pode-se antever certa imprecisão em considerar Scudéry uma personagem comparável a Dupin. Scudéry
atua mais como uma articuladora de informações cujo objetivo é dar condições a outrem para solucionar crimes
misteriosos. A opinião de MacChesney (2008) mostra-se frágil ao se considerar que a tradição gótica vinha
relegando às mulheres a condição de vítimas como forma de favorecer a tensão narrativa. Por fim, é preciso
considerar que o ideal estético feminino presente já no século XVII e exacerbado no século XIX exaltava a
figura da mulher pálida e fragilizada, de preferência acometida pela tísica. Para o próprio Poe, o tema da mulher
falecida ou à beira da morte era dos mais poéticos a que um artista poderia recorrer. Em minha monografia de
Especialização em Língua Inglesa, mostro que a morte feminina, nos poemas líricos de Poe, corresponde a uma
―beatificação‖. A mulher jovem não mais está sujeita à perda da inocência da vida adulta. Ela se torna uma
entidade divina perfeita, purificada das contaminações do mundo material. Por isso, o desejo de amar uma jovem
falecida é voluntário da parte de Poe, pois assim essa mulher, agora amada apenas em sua interioridade, pode
também ajudá-lo a experimentar o amor puro e resgatá-lo da corrupção do mundo físico.
29
p. 115) e que o próprio Dupin confessou ser ―culpado de certos versos‖ (POE, 1981, p. 216).
Poe, mostrando concordar com Hoffmann, equilibra o personagem racionalista com um outro
lado, o sensível, fazendo de um ―poeta‖ seu investigador sagaz. Além disso, como
previamente discutido, o próprio Poe apresentava uma estética feminina muito definida e
preferiu usar a figura da mulher de modo a contrapor dois extremos: o frágil e o selvagem.
No contexto do presente estudo, é muito importante considerar-se, também, que o conto
A Senhorita de Scudéry ―trouxe o horror, o humor e o sobrenatural para a vida cotidiana
através de obras ambientadas em lugares como Dresden‖ (GREENSILL; HANDY; NIXON,
2008)
38
. Os contos raciocinantes de Edgar Poe seguiram-lhe o rastro, mas eliminaram a
divisão de dois mundos (o natural e o sobrenatural) de Hoffmann para mostrar que o
assombroso e o mistério, assim como o elemento desencadeador do medo, não são obras de
entes sobrenaturais: eles estão presentes na própria vida e são intrínsecos à realidade humana.
Com isso, Hoffmann abre as portas para o diálogo que será estabelecido entre Poe e Breton, e
entre ambos com o próprio romantismo.
38
Hoffmann brought humour, horror and the supernatural into everyday urban life through his works set in
places like Dresden.
30
CAPÍTULO II
A UNIDADE DA TRILOGIA RACIOCINANTE DE POE: OS CRIMES DA RUA
MORGUE, O MISTÉRIO DE MARIE ROGÊT E A CARTA ROUBADA
Os contos Os Crimes da Rua Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada
constituem uma trilogia. Os três contos que a compõem podem ser considerados como um
trabalho único. Nesta pesquisa, esse trabalho único será referido com a expressão trilogia
raciocinante.
A constatação de que uma trilogia ―racionante‖ entre as obras de Poe pode parecer
estranha, uma vez que o escritor americano é mais conhecido por suas histórias de conteúdo
sobrenatural e fantástico. Esse dado chamou a atenção de teóricos como Todorov (1980), que
chegou a observar:
Ao lado dos contos fantásticos, muito célebres, como O Gato Preto ou
Metzengerstein, encontramos narrativas que parecem proceder de um movimento
contrário e que o próprio Poe qualificava de ‗raciocinantes‘: tais como O
Escaravelho de Ouro ou A Carta [Roubada]. (TODOROV, 1980, p. 155)
A principal distinção entre esse movimento ―contrário‖ das histórias de raciocínio e o
restante da obra de Poe reside na negação do sobrenatural. Ao final da narrativa, após breve
sugestão de fatos de origem extramundana, todo acontecimento insólito e aparentemente
sobrenatural é explicado através da ciência.
O conto Os Crimes da Rua Morgue, publicado na Graham’s Magazine em 1841, relata
o nascimento de uma amizade entre um anônimo narrador e o culto jovem francês Auguste
Dupin, cujas ―excentricidades‖ os levam a analisar um crime de ampla divulgação nos jornais.
O conto seguinte, O Mistério de Marie Rogêt, publicado no Snowden’s Ladies’ Companion
em 1842, apresenta uma amizade solidificada entre o narrador e Dupin e mostra o respeito da
polícia em relação a este último, desde a solução do caso da Rua Morgue. Um acordo com o
delegado leva-os a uma nova investigação acerca de um misterioso assassinato, também
bastante divulgado pelos jornais de Paris. No terceiro e último conto, A Carta Roubada,
publicado em The Gift for 1845, no ano de 1844, novamente Dupin age a pedido da polícia,
no sentido de recuperar uma carta roubada usada como instrumento de chantagem política.
31
2.1 OS CRIMES DA RUA MORGUE
Em Paris, um anônimo narrador torna-se amigo do jovem cavalheiro Auguste Dupin.
Impressionado com a sua erudição e com o seu caráter imaginativo, o narrador, em estadia
temporária na cidade, convida-o a dividir a mesma casa. O imóvel, caracterizado por sua
localização remota, constitui ambiente propício para a prática da leitura e da confabulação,
após as quais os dois amigos podem, à noite, caminhar a esmo pelas ruas de Paris. Certa noite,
os dois se deparam, por acaso, com uma manchete extraordinária no jornal Gazette des
Tribunaux sobre duplo e brutal assassinato ocorrido no interior de um aposento trancado por
dentro: o corpo de uma senhora teria sido encontrado decapitado e o de sua filha, inserido, de
baixo para cima, pela chaminé do quarto. Testemunhas são ouvidas e chegam a destacar uma
voz incomum, vinda do cômodo das vítimas durante o crime. O grau de brutalidade que
caracteriza o crime intriga as autoridades. Buscas adicionais e nova coleta de depoimentos
pouco contribuem para o avanço das investigações.
Dupin decide investigar o caso motivado por dois fatores: o desejo de distração e a
prisão de um homem inocente, chamado Le Bon, amigo seu e a quem diz querer retribuir um
favor prestado no passado. Dupin, em companhia do narrador, visita a cena do crime e
examina notícias de vários jornais. Conduzido por certa hipótese não revelada ao narrador,
ele, falsamente, anuncia no jornal a captura de um orangotango e o desejo de restituir o
animal ao seu antigo dono, mediante recompensa. Na eventualidade de alguma resposta, sua
hipótese seria confirmada. Pouco tempo depois, determinado marinheiro se dirige ao endereço
informado por Dupin no anúncio. Dupin recebe o visitante e o faz sentir-se tranquilo, para,
depois, surpreendê-lo, ordenando-o que revele sua ligação com o crime enquanto exibe uma
pistola. Acuado, o marinheiro admite ter capturado o orangotango nas Índias, com intenção de
vendê-lo. Enquanto não encontrava meios de se desfazer do animal, ele o mantinha enjaulado
em sua casa. O marinheiro diz, ainda, ter encontrado o orangotango, certa noite, fora da jaula
improvisada, com uma navalha na mão, imitando-o no ato de se barbear. Naquele momento,
tomado pelo susto, o marinheiro apanha um chicote para tentar prender o animal novamente,
o que ocasiona a fuga deste, em sobressalto. Para se esconder do dono que o perseguia, o
orangotango penetra em um aposento na Rua Morgue. Os gritos de pavor das moradoras
despertaram no animal as violentas reações que as levaram à morte. O marinheiro havia
testemunhado toda a cena através de uma abertura na janela pela qual o orangotango com
sua força incomum havia penetrado, sem nada poder fazer. Esclarecido o crime, Le Bon é
libertado.
32
2.2 O MISTÉRIO DE MARIE ROGÊT
Dois anos após a tragédia da Rua Morgue
39
, o delegado de polícia G... visita Dupin para
pedir sua opinião acerca de fatos ligados a um assassinato recente. Dessa vez, a vítima é a
jovem e famosa Marie Rogêt, funcionária de uma perfumaria do Palais Royal. Segundo os
jornais, Marie foi morta por um bando de criminosos, o mesmo bando que, dois meses antes,
havia assassinado outra jovem em circunstâncias similares. A polícia chega a oferecer uma
recompensa a qualquer indivíduo do bando que entregasse seu comparsa, mas a medida não
surte efeito. O delegado G... se pressionado pela população e pelos jornais de Paris, e sua
carreira e credibilidade são colocadas em risco.
Com a solução do caso da Rua Morgue, a fama de Dupin havia se consolidado entre os
policiais parisienses. Em sua visita, o delegado G... faz uma proposta sigilosa a Dupin,
oferecendo-lhe ―vantagens‖ em troca da solução do crime. Após aceitar ―incontinenti a
proposta‖ (POE, p. 159), Dupin examina o relatório policial do caso e todas as reportagens
dos jornais que traziam detalhes sobre o crime; revela a invalidez de alguns argumentos
jornalísticos, considera-os sensacionalistas e identifica erros cometidos pelos encarregados
oficiais na investigação. A conclusão das análises de Dupin aponta para um amante secreto
como o provável assassino de Marie. Com isso, é descartada a versão da opinião pública e
jornalística: a de que o crime foi cometido por um bando de malfeitores. A história termina
com uma referência aos indícios que levam à captura do criminoso.
2.3 A CARTA ROUBADA
Após a elucidação do caso de Marie Rogêt, o delegado G... visita Dupin novamente para
pedir sua ajuda em outro crime: o roubo de uma carta com informações capazes de arruinar a
carreira de um ilustre funcionário público. O criminoso, também homem público de alto
cargo, utiliza a carta como instrumento de chantagem. O roubo foi cometido em frente à
própria vítima, que, pelo teor confidencial do documento, não pode reagir devido à presença
de outras pessoas no momento do crime. De acordo com o delegado, o criminoso, o Ministro
D..., era grande matemático e talentoso poeta, talento esse que, para o delegado, fazia do
39
Em Os Crimes da Rua Morgue, o narrador dá a entender que permanecerá pouco tempo em Paris, somente até
conseguir ―os objetos que [...] então buscava‖ (POE, p. 115). Em O Mistério de Marie Rogêt, continuação de Os
Crimes da Rua Morgue, constata-se que sua permanência na cidade, presumivelmente curta, fora estendida para
dois anos.
33
criminoso um homem tolo e suscetível de ser apanhado pelas investigações policiais. O
delegado G... diz ter efetuado duas buscas no ―Hotel D...‖ e no apartamento do Ministro, sem
que, no entanto, a carta fosse encontrada. Segundo ele, o caso torna-se mais urgente a cada
dia; e ele próprio não hesitaria em recompensar quem quer que fosse capaz de encontrar o
documento. Dupin, entregando uma folha de cheque ao delegado, diz que ele poderia obter a
carta, naquele mesmo instante, assim que assinasse a quantia preestabelecida. Surpreendido, o
delegado assina a folha e, sem dizer palavra alguma, parte levando consigo a carta. O
narrador, assombrado, pede esclarecimentos a Dupin sobre a solução do caso.
Para Dupin, a carta permaneceu fora do raio de alcance da polícia durante toda a
investigação, apesar do esmero técnico demonstrado pelos agentes. Segundo ele, o erro da
polícia consistiu em não moldar sua investigação ao perfil do criminoso, o que, para Dupin,
representa um procedimento de extrema importância. Respaldado pelo princípio da
fisiognomonia
40
, todos os esforços de Dupin convergem no sentido de observar a maneira
com que o ladrão age, inferir seu raciocínio e reagir de modo a surpreendê-lo
41
.
Para Dupin, alguém com o perfil do ―Ministro D...‖, obviamente a par dos
procedimentos ordinários de investigação, imaginaria uma maneira pouco convencional de
esconder a carta. Sua hipótese era a de que o ―Ministro D...‖ havia escolhido deixar a carta em
local, excessivamente, evidente, à vista de todos, para não ser notada. Baseado nessa
suposição, Dupin visita o apartamento do criminoso e localiza o documento em um porta-
cartas, arranjado de modo visível, mas ―semi-camuflado‖ por entre outros documentos sem
importância. Desvendado o caso, Dupin despede-se e deixa uma tabaqueira sobre a mesa do
Ministro. No dia seguinte, a pretexto de buscar o objeto, Dupin retorna e, durante um
momento de distração do Ministro, ele recupera a carta e deixa, no mesmo lugar, uma réplica
40
A Fisiognomonia (do grego physis, ―natureza‖, e gnomon, intérprete‖ ou ―juiz‖) é uma ―ciência‖ cujos
primeiros tratados datam das épocas medievais latinas e árabes. Após um período de descrédito, a ―ciência do
rosto‖ ou ―ciência das paixões‖ ressurgiu no século XVI com Coclès, com o tratado de Jean D‘Indagine e com
G. B. della Porta e seu Physionomie humaine (1586). De acordo com Coclès (apud COURTINE e HAROCHE,
1995, p. 32), a ―fisiognomonia ambiciona ‗desnudar e revelar o coração‘‖. Segundo Courtine e Haroche (1995,
p. 32-33), ―os movimentos das paixões que habitam o homem interior são marcados à superfície do corpo. A
fisiognomonia antiga faz assim da relação entre a alma e o corpo uma relação entre o interior e o exterior, o
profundo e o superficial, o oculto e o manifesto, o moral e o físico, o conteúdo e o que contém [...]. O homem
possui duas faces, das quais uma escapa ao olhar: a fisiognomonia quer remediar isso tecendo uma rede apertada
de equivalências entre o pormenor das superfícies e as profundezas ocultas do corpo. A ciência das paixões é
uma ciência do invisível. [...] O traço morfológico remete sem mediação à qualidade psíquica; assim, o nariz
chato é indício de impudicícia e de devassidão. Ou numa inferência direta, quando é a analogia entre as formas
humanas e animais que permite predizer os caracteres. [...]. Os bois são lentos e preguiçosos, tem a ponta do
nariz grossa e os olhos grandes: são lentos e preguiçosos aqueles que possuem o nariz espesso e os olhos
grandes. A ciência das paixões é uma técnica de observação das formas naturais‖.
41
Dupin age no sentido de assumir o lugar de seu adversário e reconstituir suas ações. Trata-se de um
procedimento explicado pela metáfora de se descobrir os sentimentos ou o raciocínio do oponente por meio da
imitação de sua face‖.
34
previamente elaborada do documento. O Ministro havia se distraído por conta de uma forjada
agitação na rua, provocada por um homem a serviço de Dupin.
2.4 OS ELEMENTOS GÓTICOS DA TRILOGIA RACIOCINANTE
Serão analisados a seguir alguns elementos góticos da narrativa raciocinante de Poe:
temas como a atmosfera, o sobrenatural, a questão do ―terror‖ e a imaginação.
2.4.1 A ATMOSFERA
Poe costuma iniciar cada um de seus contos raciocinantes com elementos que
estabelecem o tom da narrativa. Já se mencionou, no primeiro capítulo desse trabalho, o perfil
da casa escolhida pelo narrador em Os Crimes da Rua Morgue: ―um velho e grotesco casarão,
arruinado pelo tempo [...]‖ e ―prestes a ruir‖ (POE, 1981, p. 115), localizado em um ―recanto
desolado e retirado de Faubourg Saint-Germain‖
42
. Nesse imóvel, ao amanhecer, os dois
amigos fechavam ―os maciços postigos [da] velha casa e [acendiam] um par de velas
intensamente perfumadas, que lançavam apenas fracos e pálidos raios‖
43
. A própria Rua
Morgue, local do duplo homicídio, é descrita como ―uma das miseráveis vielas existentes
entre a Rua Richelieu e Rua Saint Roche‖
44
, assim como ―uma rua retirada, bastante
solitária‖
45
. Quando Dupin e o narrador chegam à cena do crime, ―a tarde ia adiantada
[...]‖
46
. Na casa onde vivia Madame L‘Espanaye, uma das vítimas de Os Crimes da Rua
Morgue, ―as persianas das janelas da frente eram raramente abertas. As do fundo eram
conservadas sempre fechadas, com exceção das janelas de um grande aposento do fundo, no
quarto andar‖
47
.
Tanto a velha casa alugada pelo narrador quanto a de Madame L‘Espanaye apresentam
sinais de desgaste e envelhecimento, são retiradas e mantidas sempre fechadas. As
circunstâncias e a iluminação relacionadas a esses imóveis são sempre crepusculares, fazendo
com que seus entornos assumam um caráter de mistério, de não-esclarecimento.
Mais exemplos dessa atmosfera estão presentes no início do conto O Mistério de Marie
Rogêt. As notícias e os depoimentos sobre o assassinato de Marie dão conta de que ela, ao
42
Idem, ibidem, p. 115.
43
Idem, ibidem, p. 116.
44
Idem, ibidem, p. 130.
45
Idem, ibidem, p. 125.
46
Idem, ibidem, p. 130.
47
Idem, ibidem, p. 123.
35
completar 22 anos, passou a trabalhar em ―uma das lojas do subsolo do Palais Royal [...]‖
(POE, 1981, p. 156, o grifo é do autor deste estudo). O caso de Marie é levado até Dupin pelo
delegado G...:
[O delegado] nos visitou às primeiras horas da tarde [...]. [Ele] discorreu longamente
[...]. Em certo momento, ousei fazer uma observação ocasional sobre a noite, que
avançava. [...] Durante toda a entrevista [...], me convenci de que [Dupin] dormira
profundamente, embora sem o menor ruído, durante as sete ou oito horas, pesadas,
que precederam a saída do delegado de polícia. (POE, 1981, p. 159, o grifo é do
autor deste estudo)
Assim que decidem investigar o crime, o narrador se encarrega de obter, nos escritórios
da polícia, o relatório sobre o caso. Entre outros detalhes, o relatório revelava que:
Saint-Eustache era noivo de Marie [...]. Devia ir buscar a noiva ao anoitecer e
acompanhá-la de volta a casa. Durante a tarde, porém, choveu muito e [...] não lhe
pareceu necessário cumprir a promessa [...]. (POE, p. 160, o grifo é do autor deste
estudo)
E o relatório segue, revelando que, após o assassinato de Marie, ―Dois meninos, [...],
vagando pelo bosque [...], entraram [...] num matagal cerrado, onde havia três ou quatro
pedras grandes‖ (POE, 1981, p. 167, o grifo é do autor deste estudo). Percebe-se um apanhado
de alusões ao subsolo, à chegada da noite, à tempestade e à morosidade do tempo. Estes
elementos evocam a ideia de mistérios a serem desvendados durante um período passageiro
de obscuridade, que logo será dissipado. A companhia do delegado, que representa o mundo
exterior, extático e previsível, causa o tédio de que se queixa o narrador, uma vez que Dupin
está sempre à frente do delegado.
Exemplos assim se multiplicam pelo conto. No trecho a seguir, localidades ermas, o
crepúsculo, e, ainda, gemidos longínquos configuram toda a típica atmosfera gótica, que é
retomada por Poe:
Madame Deluc declarou ser dona de uma estalagem [...], não muito distante da
margem do rio [...]. É um lugar afastado bastante retirado mesmo. É lugar
habitual de reunião, aos domingos, de indivíduos suspeitos, que atravessam o rio em
botes. Cerca das três horas da tarde, no domingo em questão, uma jovem chegou à
estalagem em companhia de um jovem moreno [...]. Ao partir, tomaram o caminho
que conduz a um bosque espesso existente nas vizinhanças [...].
Foi pouco depois do escurecer, nessa mesma noite, que madame Deluc e seu filho
mais velho ouviram gritos de mulher, nas imediações da estalagem. Eram gritos
fortes, mas duraram pouco tempo. (POE, 1981, p. 168, o grifo é do autor deste
estudo)
36
Madame Deluc é proprietária de uma estalagem e Madame Rogêt, de uma pensão.
Madame L‘Espanaye, de Os Crimes da Rua Morgue, vivia em uma pensão desativada. Essas
habitações de grande porte e de subdivisões numerosas constituem uma versão moderna dos
castelos medievais dos romances góticos ingleses.
No terceiro e último conto da trilogia raciocinante, A Carta Roubada, a tonalidade típica
do gótico é mantida:
Em Paris, justamente depois de escura e tormentosa noite, no outono
48
de 18...,
desfrutava eu do duplo luxo da meditação [...] em companhia de meu amigo Auguste
Dupin, em sua pequena biblioteca [...], situado no terceiro andar da Rua Dunôt, 33,
Faubourg Saint Germain. Durante uma hora, pelo menos, mantínhamos profundo
silêncio; cada um de nós, aos olhos de algum observador casual, teria parecido
intensa e exclusivamente ocupado com as volutas de fumaça que tornavam densa a
atmosfera do aposento [...]. (POE, 1981, p. 211, o grifo é do autor deste estudo)
Nesse ambiente, Dupin é visitado pelo delegado G...:
Tínhamos estado sentados no escuro e, à entrada do visitante, Dupin se ergueu para
acender a luz, mas sentou-se de novo sem o fazer, depois que G... nos disse que nos
visitava para consultar-nos, ou melhor, para pedir a opinião de meu amigo sobre
alguns casos oficiais que lhe haviam causado grandes transtornos.
Se se trata de um caso que requer reflexão disse Dupin , desistindo de
acender a mecha, será melhor examinado no escuro. (POE, 1981, p. 212, o grifo é
do autor deste estudo)
49
Esses elementos, presentes, invariavelmente, nos três contos, sugerem um mundo
enfadonho, escuro e desolado. É essa a visão de mundo da trilogia raciocinante de Poe. Esse
―mundo desencantado de Edgar Allan Poe‖, de que tratou Cunha (2003, p. 43), explica porque
o acaso é tão presente nos contos raciocinantes de Poe. É que o mundo de Dupin é o mundo
determinista, em que tudo é sabido, previsto. Dessa ―pré-visão‖ de Dupin, decorre o tédio.
É, pois, natural que a dinâmica do imprevisto cause fascínio tanto no protagonista quanto em
seu amigo anônimo: ―deixamos o futuro inteiramente entregue ao acaso a adormecemos
tranquilamente no presente, transformando em devaneios o monótono mundo que nos
cercava‖ (POE, 1981, p. 155). O lado imaginativo de Dupin o aproxima do acaso.
48
O Outono é tradicionalmente associado à melancolia e introspecção.
49
Essa passagem consiste em uma analogia direta realizada por Poe entre Dupin e o mbolo mitológico da
coruja, bem como a relação desta com Atena. A coruja era [...] a ave de Atena (Minerva). Ave noturna,
relacionada com a Lua, a coruja não consegue suportar a luz do sol [...]. Guénon observou que se poderia ver
nesse aspecto, assim como na relação com Atena-Minerva, o símbolo do conhecimento racional percepção da
luz (lunar) por reflexo em oposição ao conhecimento intuitivo percepção direta da luz (solar)
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 293). Os atributos simbólicos da coruja emprestados à
caracterização de Dupin são perceptíveis a partir do momento em que se observa como o protagonista é,
fisicamente, ativo apenas após o cair da tarde e, racionalmente, ativo quando no escuro. A coruja, ave de Atena,
simboliza a reflexão que domina as trevas (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 293).
37
Ressaltou-se, momentos atrás, que a atmosfera criada é a do mistério, mas é, também,
uma atmosfera de ameaça, pois é nela que o criminoso se esconde. A relação entre o
criminoso e a atmosfera de mistério fica evidente com uma descrição do narrador acerca dos
fregueses da perfumaria onde Marie trabalhava: ―... uma das lojas do subsolo do Palais Royal,
[...] cujos fregueses eram constituídos, principalmente, dos terríveis aventureiros que
infestam aquelas imediações‖ (POE, 1981, p. 156, o grifo é do autor deste estudo). O
emprego do vocábulo ―infestação‖ implica uma pressuposta similitude entre esses indivíduos
suspeitos do Palais Royal e pragas, animais repulsivos, monstros. Essa aproximação que se
estabelece entre impureza e caráter ameaçador, segundo Carroll (1999), é elemento integrante
do procedimento de criação de monstros na literatura de terror e horror:
No contexto da narrativa de horror, os monstros são identificados como impuros e
imundos. São coisas pútridas ou em desintegração, ou vêm de lugares lamacentos,
ou são feitos de carne morta ou podre, ou de resíduo químico, ou estão associados
com animais nocivos, doenças ou coisas rastejantes. Não são muito perigosos
como também provocam arrepios. Os personagens os vêem não com medo, mas
também com nojo, com um misto de terror e repulsa. (CARROLL, 1999, p. 39)
A ―podridão‖ marca a aparência dos monstros. Seus hábitos se relacionam a ―lugares
lamacentos‖; eles assumem características de ―animais nocivos‖ e inspiram, no caso do
horror, além do medo, repulsão. Contudo, os frequentadores da perfumaria de Marie não
exibem, é claro, essa morfologia. Isso ocorre porque a monstruosidade pode estar configurada
no plano moral: ―Para fazer um monstro horrendo em virtude da exigência de impureza ,
basta unir categorias distintas e/ou opostas, sejam estas categorias plásticas, comportamentais,
morais, etc.‖ (ALMEIDA, 2003, p. 22). Assim sendo, em um criminoso como o Ministro
D..., do conto A Carta Roubada, a impureza moral se contrapõe ao seu cargo de Ministro, em
relação ao qual se espera, de quem o ocupa, características outras que não as da impureza. Os
fregueses da perfumaria onde trabalhava Marie também podem ser considerados ―monstros‖,
pois a impureza, muitas vezes, esconde-se por meio da dissimulação. É a essa categoria de
impureza moral (análoga ao comportamento de animais nocivos) que os monstros de Poe se
adéquam.
Nesse sentido, Marie Rogêt também pode ser vista como uma personagem, moralmente,
―monstrificada‖. Almeida (2003), em capítulo sobre a monstruosidade no cinema, comenta
sobre a eficácia dos atores mirins para os papéis de vítimas e de vilões. Como vítimas, eles
têm a seu favor a ideia de fragilidade e inocência, que contribui para fortalecer o elo com a
platéia. Mas, como monstros, eles aproximam categorias opostas: o aspecto frágil e inocente
38
que portam contrasta com ―a maldade e atos vis‖ (ALMEIDA, 2003, p. 21) que venham a
interpretar. Na literatura, é o que ocorre com Marie Rogêt. No primeiro capítulo, seu perfil
inocente inicial passa a assumir caracteres de desobediência e dissimulação. Poe faz do
criminoso uma versão moderna do monstro, agente causador do medo. Esse monstro ainda
exerce seu papel de assustar e repugnar, sem, contudo, estar ligado ao sobrenatural. A
proposta racional do conto raciocinante poeano é provocar o medo sem, necessariamente,
ultrapassar os limites do mundo ―natural‖.
2.4.2 O SOBRENATURAL
Na trilogia raciocinante de Poe, várias circunstâncias induzem, gradualmente, o leitor a
admitir o sobrenatural como o elemento secreto subjacente a todos os eventos misteriosos
narrados. Primeiro, tem-se a informação de que Madame L‘Espanaye ―era cartomante‖ (POE,
1981, p. 122). Em seguida, fala-se de ―uma voz estridente, bastante estranha‖
50
ouvida pelas
testemunhas que se dirigiram ao aposento das vítimas. Depois, sabe-se que ―a porta do quarto
em que foi encontrado o corpo de Mademoiselle L. estava fechada por dentro quando o grupo
chegou‖
51
e que não havia passagem alguma pela qual alguém pudesse haver descido
enquanto o grupo subia as escadas‖
52
. Quando, finalmente, as testemunhas entram no quarto,
enfatiza-se o caráter fantasmagórico dos eventos:
A porta foi forçada [...] com uma baioneta [...]. [...] Os gritos continuaram até que a
porta foi arrombada e, depois, cessaram subitamente. Pareciam gritos de uma
pessoa (ou de pessoas) tomada de grande angústia. Eram fortes e prolongados, e não
gritos breves e rápidos [...]. (POE, 1981, p. 123, o grifo é do autor deste estudo)
Poe induz o leitor a acalentar uma hipótese sobrenatural que conta de explicar os
assassinatos. Contudo, Dupin, finalmente, passa a dissipá-la. Quanto mais suas ideias se
fazem presentes, mais remota se torna a possibilidade do sobrenatural:
Transportemo-nos [...] ao referido aposento. Que é que primeiro devemos procurar
lá? Os meios de fuga empregados pelos assassinos. Não é necessário dizer que
nenhum de nós acredita em acontecimentos sobrenaturais. Madame e Mademoiselle
L‘Espanaye não foram, evidentemente, assassinadas por espíritos. O crime foi
cometido por seres materiais, que escaparam mediante procedimentos materiais.
(POE, 1981, p. 134)
50
Idem, ibidem, p. 123.
51
Idem, ibidem, p. 125.
52
Idem, ibidem, p. 127.
39
Nos momentos finais do conto O Mistério de Marie Rogêt, o narrador realiza algumas
considerações, esclarecendo a sua visão sobre o sobrenatural:
Compreender-sefacilmente que falo de simples coincidências e nada mais. Deve
bastar o que disse sobre esse assunto. Não creio de modo algum no sobrenatural.
Nenhum homem que pense poderá negar que a natureza e o Deus que a criou
constituem um todo único. Que este, criando aquela, pode, à vontade, governá-la ou
modificá-la, é coisa também fora de dúvida. [...] Não que a divindade não possa
modificar suas leis, mas sim que, imaginando uma possível necessidade de
modificação, a insultamos. Em sua origem, essas leis foram criadas para abranger
todas as contingências que pudessem achar-se no futuro. Para Deus, tudo é presente.
(POE, 1981, p. 207)
O depoimento do narrador, em O Mistério de Marie Rogêt, pode parecer contraditório.
A afirmação de descrença com relação ao sobrenatural é seguida pela informação de que se
acredita na existência divina. Contudo, é preciso esclarecer que, ao usar o termo
―sobrenatural‖, o narrador não questiona sua existência e, sim, sua manifestação no mundo
físico. Ainda que ―Deus‖ seja admitido como o criador do mundo, a necessidade de sua
interferência na criação é desacreditada. Em outras palavras: acredita-se no sobrenatural, mas
não se acredita que sua manifestação material seja necessária. Assim, tanto para Dupin quanto
para o narrador, em lugar de interferências sobrenaturais, o que existe são apenas acasos,
fenômenos ―mundanos‖. A coincidência assume o caráter misterioso outrora pertencente ao
sobrenatural.
2. 4. 3 O TERROR
O medo é um efeito a que se propõe o romance policial:
O único efeito que o romance policial se propõe produzir é o medo, ligado ao
mistério. Devo, portanto, procurar uma situação tão rara, tão horrível, que provoque
imediatamente o pavor, por exemplo, um crime selvagem cometido em um quarto de
saídas fechadas por dentro (Rua Morgue). (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 22)
Nos contos raciocinantes, os que inspiram o medo são ou os ―monstros‖, ou as
―circunstâncias‖. Como visto anteriormente, um ―monstro‖ é caracterizado com base em
elementos morfológicos (aparência) e morais (comportamento).
Um monstro assume características diferentes em enredos de ―horror‖ e de ―terror‖. De
acordo com Almeida (2003, p. 41), ―a literatura de Allan Poe é, majoritariamente, classificada
como de terror‖. A diferença entre ―terror‖ e ―horror‖ é baseada na escolha dos elementos de
40
que determinado autor se servirá para provocar o medo. Eles podem estar restritos ao mundo
natural, ou assumir caráter sobrenatural:
Em linhas gerais, o terror difere do horror pois o primeiro destina-se, basicamente,
à exploração de fenômenos psicológicos passíveis de serem destrinçados pela
ciência, enquanto que o segundo chama em causa o indecifrável, o fantástico, o
extramundano presente em enredos e personagens inclassificáveis num mundo real.
(ALMEIDA, 2003, p. 41)
O ―terror‖ não recorre ao sobrenatural para provocar o medo. Caso o sobrenatural seja
sugerido, o terror ―recorre a explicações lógicas, racionais, científicas, que dêem conta de
situar, no ‗mundo corrente‘ do leitor, toda e qualquer sorte de aberração (situações e
monstros) exposta‖ (ALMEIDA, 2003, p. 41).
No horror, de modo distinto
53
, o personagem ou situação amedrontadora deve,
obrigatoriamente, provocar asco e desagrado através da ―arquitetura peculiar [de] sua
morfologia‖
54
, ser ameaçador e estar relacionado à manifestação de forças sobrenaturais.
A reação do leitor a um enredo de ―terror‖, segundo Almeida (2003), pode ser parecida
com a de um enredo de ―horror‖, uma vez que em ambos são comuns o medo e a expectativa.
No entanto, ―a distinção [...] não impede que as duas categorias convivam numa mesma obra.
É o caso, por exemplo, de Edgar Allan Poe [...]‖
55
. Boileau e Narcejac (1991) fazem
considerações interessantes sobre o romance policial de Poe e sua relação com diversos
gêneros:
Na realidade, o romance policial contém em germe, em dose homeopática, portanto
despercebida, todos os gêneros que parecem sair dele.
No duplo crime da Rua Morgue, é a investigação científica que ocupa o primeiro
plano, mas as dissertações de Dupin sobre a análise dos caracteres anunciam as
sutilezas psicológicas [...]; a espera angustiada da solução (ela não dura muito
tempo, mas, enfim, existem, inevitavelmente) está na raiz do suspense; a brutalidade
com a qual os dois crimes foram cometidos, a mutilação dos corpos, o sangue
espalhado, em uma palavra, o horror da cena lembram-nos a tempo que a violência é
um elemento constitutivo do romance policial. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p.
19)
53
A não consideração da distinção entre terror e horror pode gerar imprecisões no emprego desses termos,
como as ocorridas recentemente na tradução brasileira do livro Dança Macabra, de Stephen King, publicado
pela editora Objetiva, em 2007. A tradutora Louisa Ibañez optou por homogeneizar os termos horror e terror,
traduzindo-os com um único termo em português ―terror‖. As palavras inglesas terror e horror empregadas por
Stephen King visavam justamente a esclarecer a distinção entre os dois gêneros.
54
Idem, ibidem, p. 42.
55
Idem, ibidem, p. 42.
41
Os contos de raciocínio, assim, possuem a capacidade de unir itens de gêneros diversos,
capacidade essa que se revela na presença de estratégias típicas do gênero ―horror‖ no interior
de uma obra de ―terror‖, como, por exemplo, a descrição da morfologia de cadáveres. Se o
horror é um elemento que provém da violência no conto raciocinante, há aí um sinal de que o
que é ―horrível‖ pode ter origem no mundo natural e, o mais importante, estar relacionado ao
crime e ao criminoso, o novo monstro da modernidade. É esse novo monstro que inspira o
medo a que Foucault se refere em Vigiar e Punir (2007). O monstro, que é composto das duas
categorias distintas, ou seja, da impureza e da virtude, é como o bandido Vidocq
56
, que, mais
tarde, compactua com o poder e se torna detetive. No lugar do monstro gótico anterior, o ―rei
monstruoso, fonte de toda justiça e entretanto maculado de crimes‖ (FOUCAULT, 2007, p.
235), aparece o monstro moderno que provoca ―outro medo; o de um acordo escondido e
torpe entre os que fazem valer a lei e os que a violam‖ (FOUCAULT, 2007, p. 235).
Exemplo da morfologia típica do horror encontra-se em Os Crimes da Rua Morgue. O
jornal Gazette des Tribunaux, que exibia a manchete ―CRIMES EXTRAORDINÁRIOS‖,
assim descreve a cena do crime:
De madame L‘Espanaye, não havia sinal algum; mas uma quantidade pouco comum
de fuligem podia ser observada junto à lareira. Isso fez com que se examinasse a
chaminé e (coisa horrível de contar-se!) o cadáver da filha, dependurado de cabeça
para baixo, foi retirado de seu interior, onde fora empurrado, pela estreita abertura,
até uma altura considerável [...]. Sobre o rosto, havia muitos e profundos arranhões
e, no pescoço, manchas escuras e acentuadas marcas de unhas, como se a vítima
houvesse sido estrangulada.
Depois de meticulosa investigação por toda a casa, sem que nada mais fosse
descoberto, o grupo de pessoas penetrou num pequeno quintal cimentado, no fundo
do edifício, onde jazia o corpo da velha senhora, com a garganta tão inteiramente
cortada, que, ao tentar-se levantar o cadáver, a cabeça se desprendeu. Tanto o corpo
como a cabeça estavam horrivelmente mutilados, sendo que esta última mal
conservava qualquer aparência humana. (POE, 1981, p. 121)
No dia seguinte, o jornal publicava o depoimento de várias testemunhas. Entre outros, o
de Isidore Musset:
[Isidore] declarou que foi chamado à casa cerca das três da madrugada [...]. A porta
foi forçada [...] com uma baioneta [...]. Não foi difícil abri-la [...]. Os gritos
continuaram a que a porta foi arrombada e, depois, cessaram subitamente.
56
Em artigo prévio sobre os contos raciocinantes de Poe, explico, sucintamente, sobre quem foi Vidocq:
―Eugène François Vidocq (1775-1857), criminoso francês que, após ser capturado, ofereceu seus serviços de
espionagem à polícia de Paris para, em troca, não ser enviado à mesma prisão de seus inimigos. Vidocq
trabalhou como um informante infiltrado entre criminosos. Em 1833, criou a primeira agência de investigação
particular, onde trabalhou com ex-criminosos como ele‖ (VERTUAN, 2008, p. 3). Foucault (2007) refere-se a
Vidocq como um dos primeiros ícones das relações entre polícia e crime e discute as implicações, para ele
negativas, dessa associação.
42
Pareciam gritos de uma pessoa (ou de pessoas) tomada de grande angústia. Eram
fortes e prolongados, e não gritos breves e rápidos [...]. (POE, 1981, p. 123)
No primeiro exemplo, as expressões como ―coisa horrível de contar-se!‖ e
―horrivelmente mutilados‖ são indícios de emoção exacerbada e da ―desagradabilidade‖
suscitada pela cena. Tem-se, ainda, um corpo mutilado (Madame L‘Espanaye) e uma cabeça,
sem traços humanos, dele separada. A imagem do horror começa a se formar: o cadáver de
Camille, disposto de cabeça para baixo, apresentava arranhões no rosto e marcas escuras no
pescoço. O horrível estado do cadáver aliado ao caráter ritualístico da posição em que foi
escondido na chaminé são apropriados para a sugestão eficaz do sobrenatural. No segundo
exemplo, os gritos das vítimas, angustiados e longos, evocam uma espécie de horror sonoro.
Em outro exemplo, apresenta-se o relato do médico-legista, com uma descrição
minuciosa dos cadáveres:
Paul Dumas, médico, declarou que foi chamado ao romper do dia para examinar os
cadáveres. Ambos jaziam sobre o enxergão da cama, no quarto em que
Mademoiselle L. fora encontrada. O corpo da jovem senhora apresentava muitas
equimoses e escoriações. O fato de ter sido introduzido na chaminé explicava
suficientemente tais ferimentos. A garganta também estava muito contundida. Havia
muitos e profundos arranhões logo abaixo do queixo [...]. O rosto achava-se
terrivelmente descolorido, e os olhos fora das órbitas. A língua havia sido mordida e,
em parte, secionada. [...] O corpo de sua mãe estava horrivelmente mutilado. Todos
os ossos da perna direita e do braço apresentavam diversas fraturas. A tíbia
esquerda, bem como todas as costelas do mesmo lado, estavam muito partidas. Todo
o corpo se achava terrivelmente escoriado e descorado. [...] A cabeça da vítima [...]
estava inteiramente separada do corpo e muito desfigurada. A garganta havia sido
secionada, evidentemente, com algum instrumento muito afiado talvez uma
navalha. (POE, 1981, p. 127, sic)
Essas imagens descritivas dos cadáveres mutilados detalham a morfologia característica
dos mesmos, como o rosto ―terrivelmente [...] descolorido‖ (POE, 1981, p. 127), ―olhos fora
das órbitas‖
57
e ―língua [...] mordida [e] secionada‖
58
. O corpo de Madame L. apresentava-se
―horrivelmente mutilado‖
59
, ―terrivelmente escoriado e descorado‖
60
, com a cabeça ―separada
do corpo e muito desfigurada‖
61
. É a descrição da morfologia cadavérica, adornada por
enfática adjetivação, a responsável por produzir a sensação de desagrado. Uma ―filosofia do
cadáver‖
62
aparece também em O Mistério de Marie Rogêt:
57
Idem, ibidem, p. 127.
58
Idem, ibidem, p. 127, sic.
59
Idem, ibidem, p. 127.
60
Idem, ibidem, p. 127.
61
Idem, ibidem, p. 127.
62
Baseio-me em uma expressão do próprio Dupin, a qual ele emprega depois de descrever todos os fenômenos
relativos à decomposição: ―Tendo assim, diante de nós, toda a filosofia do assunto...‖ (POE, 1981, p. 176). O uso
43
Um certo Monsier Beauvais, que [...] estivera fazendo indagações sobre Marie [...].
Ao ver o corpo, Beauvais [...] o identificou como sendo da jovem da perfumaria [...].
Tinha o rosto cheio de sangue escuro, o qual saía, em parte, da boca. Como acontece
no caso de pessoas simplesmente afogadas, não se via espuma alguma. Tampouco
havia qualquer descoloração no tecido celular. Em torno da garganta, havia algumas
escoriações e sinais de dedos. Os braços estavam cruzados sobre o peito, rígidos [...].
Uma parte do pulso direito também se achava muito ferida, bem como as costas, em
toda sua extensão [...]. [...] A carne do pescoço estava muito inchada [...].
Estreitamente apertado ao pescoço, [...] havia um pedaço de cordão. Estava
profundamente enterrado na carne e preso por um nó que se ocultava exatamente sob
a orelha esquerda [...]
63
.
Em seguida, uma exposição sobre o processo de decomposição:
O corpo, que supomos achar-se no fundo do rio, continuará até que, por qualquer
circunstância, seu peso específico se torne de novo menor do que o da água que ele
desloca. Esse efeito é produzido pela decomposição, ou por alguma outra causa. A
decomposição produz gases que distendem os tecidos celulares e todas as cavidades,
dando ao corpo aquele horrível aspecto de inchação. [...]. O efeito produzido por um
disparo de canhão é o de simples vibração. [...] Poderá vencer a resistência de certas
partes apodrecidas do sistema celular, fazendo com que as cavidades se distendam
sob a influência do gás
64
.
Ao apresentar essas informações acerca da putrefação cadavérica, os contos
raciocinantes preenchem as características necessárias para a composição de uma morfologia
monstruosa. Embora não pertencentes a um ―monstro‖ propriamente dito, tais características
morfológicas estão relacionadas ao desagrado e ao asco que um monstro de enredos de horror
deve, obrigatoriamente, produzir.
Apesar de Os Crimes Da Rua Morgue e O Mistério de Marie Rogêt apresentarem
algumas nuances de ―monstruosidade moral‖, é em A Carta Roubada que essa forma de
monstruosidade aparece explicitamente. O criminoso da história é o Ministro D..., para quem
a carta, roubada por ele mesmo, poderes para que o mesmo chantageie outro funcionário
público de alto cargo. O delegado G... comenta sobre o caráter moral do criminoso:
O ladrão [...] é o Ministro D..., que se atreve a tudo, tanto o que é digno como o que
é indigno de um homem. O roubo foi cometido de modo não engenhoso como
dessa expressão pode parecer inapropriado. Ainda assim, optei por mantê-la, tendo em vista a possibilidade de a
palavra filosofia, nessa expressão, ter sido empregada por Poe no sentido de ―conhecimento científico
profundo‖ ou reflexão minuciosa‖ acerca da decomposição cadavérica. Em defesa dessa expressão, basta
afirmar que Poe emprega filosofia de modo conotativo, ou seja, expandindo a significação do termo para além
do sentido literal e abrindo portas para a sugestão subjetiva de outras ideias. Por fim, cabe observar que toda
palavra empregada em sentido conotativo assume sentido incomum (figurado) e que passa a ser estreitamente
dependente de seu contexto.
63
Idem, ibidem, p. 161.
64
Idem, ibidem, p. 176.
44
ousado. [...] Nesse momento, entra o Ministro D... Seus olhos de lince percebem
imediatamente a carta. (POE, p. 213-214)
Dupin afirma não serem raras as ocasiões de envolvimento do Ministro D... com
―intrigas‖ (POE, p. 215). Ele, que ―se atreve [ao] [...] que é digno e indigno de um homem‖
(POE, p. 215), assume traços animalescos, e, portanto, monstruosos. O delegado o compara a
um ―lince‖, um felino do hemisfério norte de visão e audição aguçadas, comportamento
solitário, paciente, reservado e hábitos noturnos. Essas qualidades animalescas aplicadas à
figura de um funcionário público produzem o monstro moral de A Carta Roubada.
Como o asco, próprio do gênero horror, está inserido em contos com forte presença do
terror, os contos raciocinantes de Poe ultrapassam os limites do gênero mais tarde
denominado policial e, com maestria, conseguem produzir toda sorte de efeitos
amedrontadores, utilizando somente o ―gótico natural‖, ligado aos ―perigos‖ do mundo
natural. A quebra de fronteiras é tão significativa que Boileau e Narcejac (1991) percebem,
nos contos raciocinantes, prenúncios do romance psicológico, do suspense e da violência
exacerbada, que, relacionados ao mundo do crime, ainda seriam aprimorados.
O orangotango
65
, o ―monstro‖ de Os Crimes da Rua Morgue, assume, ao lado do
criminoso, outra forma monstruosa que pode ser oferecida pelo mundo natural. Poe encontra
um ―monstro natural‖, uma morfologia monstruosa e aterrorizante, sem lançar mão de
entidades sobrenaturais encarnadas, oriundas de outros mundos ou criadas cientificamente
66
.
Ao incorporar elementos do horror através de itens relacionados, exclusivamente, ao mundo
natural (o furioso orangotango e o cadáver), o conto raciocinante de Poe mostra que o horror,
o medo e o terror não são itens exclusivos de mundos fantasiosos, mas elementos passiveis de
constatação, a todo momento, no cotidiano, no mundo material.
Como se pode ver, o mostro moderno, no conto raciocinante, é ―humano‖ ou, como no
caso de Os Crimes da Rua Morgue, aproxima-se muito do humano. Ante a brutalidade que
configura o crime da Rua Morgue, testemunhas, investigadores e até o narrador partilham da
suposição de que o crime foi, necessariamente, cometido por um ser humano, ainda que não
exista evidência alguma que comprove essa teoria. Todos os personagens, exceto Dupin,
consideram plausível a noção de que o ―homem‖ seja capaz de praticar atos tão brutais. Desse
modo, todos os homens são entendidos como anormais, porque são entendidos como
65
Sua designação provém de duas palavras do idioma Malaio, orang, ―pessoa‖, e hutan, ―floresta‖, significando
―pessoa da floresta‖. Esse animal é conhecido por suas ―faculdades de imitação‖ (POE, 1981, p. 142). Pesquisas
recentes mostram que ele é o animal mais inteligente depois do homem, tendo superado até mesmo os
chimpanzés.
66
Refiro-me a monstros como Frankenstein, de Mary Shelley.
45
potencialmente perigosos: visão esta em perfeita sintonia com a noção de indivíduos
―anormais‖ de Foucault (2001).
Quando se descobre que um orangotango esteve por trás do crime, o resultado é
profundamente inesperado, pois reconhece-se que a brutalidade e o horror não são frutos de
outro mundo. A humanidade do homem é posta em cheque. A raça humana admite conter seus
próprios indivíduos anômalos, bestializados. O monstro é o próprio homem do cotidiano, do
mundo real. E isso é corroborado por Poe ao longo dos demais contos raciocinantes, O
Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada.
Poe, ao escolher o orangotango, ―pessoa da floresta‖, aproxima o humano e o animal, a
―pessoa da floresta‖ e ―a pessoa da cidade‖, civilizada. O orangotango é capaz de praticar atos
semelhantes aos do homem, e tão brutais quanto os deste. Contudo, sua condição animal o
inocenta, ao passo que o homem permanece imputável. Ao apresentar um orangotango
monstruoso que, ao mesmo tempo, é inocente de seus atos pelo óbvio motivo de sua
condição de animal —, Poe põe em cheque a ―humanidade do homem‖ e as expectativas deste
com relação à sua própria natureza.
Assim, o ser humano é forçado a reconhecer a si próprio como monstro, como causa de
medo; e que não como transferir culpabilidades a monstros lendários e grotescos
67
ou a
entidades sobrenaturais. Com o orangotango de Os Crimes da Rua Morgue, o homem é
compelido a assumir a sua responsabilidade e a sua condição de criatura dotada de uma
latente face monstruosa.
2. 4. 4 A IMAGINAÇÃO
Em uma resenha sobre Poe, Moraes (2008) sintetiza uma ideia bastante aceita acerca da
caracterização do personagem Dupin:
Foi [aos trinta anos] que [Poe] começou a se dedicar às histórias de raciocínio e
dedução, escrevendo o famoso conto ―Os Crimes da Rua Morgue‖ [...] e outras
narrativas policiais.
Algumas dessas histórias têm como personagem principal o francês Auguste Dupin,
um nobre falido e excêntrico cuja única diversão na vida é passar noites e noites
elucubrando sobre assassinatos misteriosos. Graças a complicadíssimos raciocínios,
ele consegue desvendar ―crimes perfeitos‖, considerados insolúveis pelo comissário
de polícia. (MORAES, 2008, o grifo é do autor deste estudo)
67
Refiro-me a monstros criados a partir do princípio de mistura entre os reinos vegetal e animal, ou mesmo
humano e vegetal árvores que falam e andam e humano e animal, como as sereias.
46
Com frequência, passagens como essa tentam mostrar que Dupin é um personagem com
interesses voltados para o crime e para os assuntos da área policial. No entanto, baseados na
observação da caracterização do protagonista, não é possível afirmar a existência dos supostos
prazer e interesse de Dupin pelos temas policialescos. Isso fica claro ao se considerar
passagens como a que segue, trecho de uma fala do narrador:
Se a rotina da vida que ali levávamos fosse conhecida do mundo, teríamos sido
considerados loucos [...]. Nossa reclusão era total. [...] Vivíamos para nós. [...]
Uma das esquisitices do meu amigo [...] era estar apaixonado pela noite [...]. A negra
divindade nem sempre se achava em nossa companhia, mas podíamos fingir que ela
estava presente. Mal raiava o dia, fechávamos os maciços postigos de nossa velha
casa e acendíamos um par de velas perfumadas [...]. Graças a elas mergulhávamos
em sonhos, lendo, escrevendo ou conversando, até que o relógio nos advertia da
chegada das verdadeiras trevas. Então, saíamos pelas ruas, de braço dado,
continuando a conversa do dia e vagando a esmo até muito longe e até horas tardias.
(POE, 1980, p. 155)
E, em A Carta Roubada, confirma-se o interesse de Dupin pela poesia:
[O Ministro] não é inteiramente tolo disse G... , mas é poeta, o que o coloca
não muito distante de um tolo.
Certo assentiu Dupin [...] , embora eu também seja culpado de alguns
versos... (POE, 1981, p. 216)
E também pelos livros, segundo esclarece o narrador:
Na verdade, os livros eram seu único luxo e, em Paris, são eles facilmente obtidos.
Nosso primeiro encontro se verificou numa modesta livraria [...], onde a procura,
acidental, do mesmo volume, raro e notável, nos pôs em estreita comunhão. (POE,
1981, p. 115)
Assim, em lugar de crimes, alude-se ao apreço por leituras, poesia, reclusão,
caminhadas noturnas ao sabor do acaso, reflexões e devaneios. A esses interesses de Dupin,
somam-se suas ―paixões‖: referindo-se ao protagonista, o narrador afirma ―estar apaixonado
pela noite‖ (POE, 1981, p. 116), ou, como conta o narrador em Os Crimes da Rua Morgue,
apresentar
uma peculiar capacidade analítica [...]. [Dupin] parecia [...] experimentar viva
satisfação em exercitar tal faculdade embora não a aplicasse concretamente e
não hesitava em confessar o prazer que isso lhe causava. (POE, 1981, p. 116)
É preciso atentar para o fato de que o ―prazer‖ de Dupin pela análise se restringe à
análise em si e não está relacionado à aplicação analítica na área policial, que ocorre por
47
mero acaso. Não se trata de um interesse voluntário ou gerado por uma motivação interior.
Em dado momento de Os Crimes da Rua Morgue, Dupin afirma haver desvendado a cadeia
de raciocínio do narrador através da observação de seu rosto. Terminada sua explanação,
ambos os personagens se deparam, repentinamente, com uma manchete de jornal:
Nessa altura [ afirmou Dupin ], interrompi suas meditações para observar que,
na verdade, ele era um sujeito muito pequeno... esse tal Chantilly... e que estaria
melhor no Theâtre des Variétés.
Pouco depois dessa conversa [interrompe o narrador], folheamos uma edição
vespertina da Gazette des Tribunaux, quando a seguinte notícia nos chamou a
atenção: CRIMES EXTRAORDINÁRIOS. (POE, 1981, p. 120)
É sem dúvida a natureza extraordinária e incomum desses crimes a responsável por
despertar a atenção de dois indivíduos tão fechados em seu mundo particular. O interesse
nasce não do crime em si, mas do que de ―diferente‖ havia nele.
Com a solução do caso da Rua Morgue, o comportamento de Dupin revela-se dos mais
frios e indiferentes com relação ao tema policial, conforme exposição do próprio narrador:
Terminada a tragédia ocorrida com a morte de Madame L‘Espanaye e sua filha,
Dupin afastou imediatamente do espírito o assunto e mergulhou em seus antigos
hábitos de sombrios devaneios. Propenso sempre à abstração, também eu me
entreguei a idêntico estado de espírito e, [...] deixamos o futuro inteiramente
entregue ao acaso e adormecemos tranquilamente no presente, transformando em
devaneios o monótono mundo que nos cercava. (POE, 1980, p. 155)
Em outro momento da narrativa, o desinteresse de Dupin pelo crime marca, de modo
ainda mais explícito, a fala do narrador:
... o caráter das simples deduções mediante as quais ele desemaranhara o mistério
[da Rua Morgue] não fora sequer explicado ao delegado de polícia ou a qualquer
outra pessoa, exceto eu. [...] Seu temperamento indolente o impedia de referir-se, de
qualquer modo, a um assunto que, havia muito, já não o interessava. (POE, 1981, p.
155)
E, ainda no mesmo conto:
Por mais estranho que possa parecer, transcorreu a terceira semana [...] sem que
fosse lançada luz alguma sobre o crime e sem que o menor rumor dos
acontecimentos que tanto abalaram o espírito público chegasse aos ouvidos de
Dupin ou aos meus. Empenhados em pesquisas que nos absorviam todo o tempo,
fazia quase um mês que nenhum de nós saía de casa ou recebia uma visita,
lançando apenas o olhar, de vez em quando, nos principais artigos políticos
publicados num dos jornais diários. (POE, 1981, p. 158)
48
Assim, não é possível constatar, em Os Crimes da Rua Morgue, qualquer entusiasmo da
parte de Dupin por práticas como solucionar crimes misteriosos ou obter notoriedade pública
às expensas de suas bem-sucedidas investigações
68
. Como pode ser observado, nem mesmo as
notícias policiais são alvo de atenção espontânea e habitual dos dois personagens.
Ao mesmo tempo em que esses exemplos mostram o desinteresse por tudo o que está
relacionado a crimes e o desprezo de Dupin pela polícia, também se percebe o desejo de uma
vida imersa em devaneios, desligada do cotidiano. A imaginação tem papel fundamental nas
práticas de Dupin; assim como a sua arguta capacidade analítica, pois entre a
engenhosidade e a capacidade analítica existe uma diferença [...]. Verificar-se-á, de fato, que
o homem engenhoso é sempre imaginoso, enquanto que o verdadeiramente imaginativo não
deixa jamais e ser analítico‖ (POE, 1981, p. 114). Assim, enquanto o matemático permanece
restrito à engenhosidade e à capacidade ―construtiva ou de combinação‖ (POE, 1981, p. 114),
o analista adota a imaginação como elemento primordial.
68
A fama e a ostentação, ―ambições mundanas‖ (POE, 1981, p. 115) renunciadas por Dupin, o primeiro
―detetive‖ da literatura policial, são elementos apreciados por muitos personagens detetivescos mais atuais, como
o agente secreto James Bond criado pelo escritor inglês Ian Fleming (1908-1964) e mostrado pela primeira vez
no livro Cassino Royale, de 1953. Esse aspecto ―sedutor‖ de detetives ficcionais do porte de James Bond,
tornado bastante comum pelo cinema, é satirizado em produções como Johnny English, filme dirigido por Peter
Howitt em 2003 e estrelado por Rowan Atkinson.
49
CAPÍTULO III
SABERES E PRÁTICAS NA TRILOGIA RACIOCINANTE DE EDGAR A. POE E EM
NADJA DE ANDRÉ BRETON
Muitos estudos relacionados à obra de Poe defendem que seus personagens são seus
porta vozes e que os ―gritos e sussurros‖ destes são ―[...] emanações do próprio Poe‖
(GARGANO, 1967, P. 165)
69
. Da mesma forma, personagens cindidos entre a virtude e seu
oposto são ecos da própria personalidade conflituosa do contista americano, como se observa
em seu conto Willian Wilson. No caso da narrativa de raciocínio, que trabalha com o duplo
aspecto razão-sensibilidade, Dupin pode ser entendido como o lado racionalista ideal de Poe,
que se sobressai em relação ao seu oposto, o imaginativo. Desse modo, o conhecimento
acerca do personagem ficcional Auguste Dupin permite que se compreenda um aspecto
específico do pensamento de Edgar Allan Poe, assim como é possível constatar, no livro
Nadja, muito do pensamento de Breton.
3.1 A TRILOGIA RACIOCINANTE
O conto Os Crimes da Rua Morgue é precedido por uma citação de Hydriotaphia
(1658), de Sir Thomas Browne (1605-1682):
Que canto entoaram as sereias, ou que nome Aquiles adotou, quando se ocultou
entre as mulheres, são perguntas que, conquanto embaraçosas, não se acham além de
quaisquer conjecturas. (BROWNE apud POE, 1981, p. 111)
Em Hydriotaphia (1658), Browne emprega uma técnica que consiste em realizar várias
perguntas sucessivas, sem, contudo, apresentar resposta a nenhuma delas. Para a crítica, a
intenção de Browne é evocar uma permanente incerteza e afirmar o caráter trágico da história,
que não é capaz de trazer respostas ao homem. Em Os Crimes da Rua Morgue, muitas
dúvidas são deixadas suspensas, até que cada uma delas é esclarecida pelo personagem Dupin.
As primeiras considerações do narrador giram em torno da capacidade analítica. Para
ilustrar o modus operandi de um analista, o narrador cita o exemplo do whist
70
. A capacidade
69
Their shrieks and groans are too often conceived as emanating from Poe himself.
70
Jogo de cartas de origem inglesa, bastante popular nos séculos XVIII e XIX, com regras muito definidas e cuja
ênfase recai na aplicação do cálculo probabilístico.
50
analítica desenvolvida por esse jogo não se restringe a ele próprio, mas pode ser aplicada, com
sucesso, em todos os empreendimentos relacionados à inteligência. O narrador define a
capacidade de análise como
[aquela] perfeição no jogo que inclui uma compreensão de todas as fontes de onde
se deriva uma legítima vantagem. Estas não são apenas diversas, mas multiformes, e
se acham, não raro, nas profundezas do pensamento, inteiramente inacessíveis às
inteligências comuns. (POE, 1981, p. 113)
A análise visa à vantagem através de todos os meios possíveis. Segundo o narrador,
qualidades como boa memória e fidelidade às regras são muito vantajosas; mas, nos casos
excepcionais, em que se ultrapassa os limites das regras, ―é que se revela a habilidade do
analista‖ (POE, 1981, p. 113). Este, como os demais jogadores, realiza ―observações e
inferências‖
71
; no entanto, a diferença está no fato de que o analista sabe ―o que observar‖
72
.
Somente ele observa sinais exteriores ao jogo, como a fisionomia dos participantes ou o modo
como estes distribuem as cartas:
Examina a fisionomia de seu companheiro, comparando-a cuidadosamente com a de
cada um de seus oponentes. Observa a maneira de distribuir as cartas [...]. Nota as
variações que se operam nas fisionomias à medida que o jogo prossegue [...],
expressões de segurança, de surpresa, de triunfo. (POE, 1981, p. 113-114)
Segundo o narrador, o analista, ao considerar não somente aquilo que está diretamente
relacionado ao jogo, adquire informações adicionais que fornecem ―indicações quanto ao
verdadeiro estado de coisas‖ (POE, 1981, p. 114).
Nas considerações do narrador, em especial quando afirma a capacidade do analista de
se identificar com seu oponente, está implícita a adesão ao pensamento e às pretensões de
pseudociências como a Fisiognomonia e a Frenologia. Percebe-se, assim, o quão importante
se torna a observação do corpo, em especial da face, quando se busca descobrir a verdade.
Para o analista, o importante é observar-se aquilo que não se vê. A observação do interior é
feita através de uma ponte externa, ou seja, das marcas no corpo. É, precisamente, esse o
método usado pelos fisiognomonistas antigos, que acreditavam na existência de uma relação
entre o traço morfológico e o psiquismo e entendiam o corpo como uma representação da
linguagem da alma. As marcas do rosto, passíveis de serem lidas por um fisiognomonista, são
indícios da personalidade e do estado de espírito de uma pessoa. Conhecida como ciência das
71
Idem, ibidem, p. 113.
72
Idem, ibidem, p. 113.
51
paixões e ciência do rosto, a Fisiognomonia é ―uma técnica de observação das formas
naturais‖ (COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 33). No conto de Poe, o analista a que o
narrador se refere é também um fisiognomonista. Todo discurso do narrador sobre as
capacidades de um analista exemplifica a maneira como o personagem Auguste Dupin
73
aplicará a análise para solucionar crimes: sempre atento a fatos exteriores aos acontecimentos
imediatos.
Como fisiognomonista, Dupin detém o poder de ―descobrir a alma corrompida sob os
artifícios da dissimulação, despojar as fisionomias mentirosas da máscara que as abriga‖
(COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 35). Pode-se dizer que ele ilustra a dimensão prática da
fisiognomonia de que falam Courtine e Haroche (1988, p. 36): Dupin é um exemplo de quem
utiliza a fisiognomonia com a finalidade de obter ―um controle social do homem interior [...]‖.
Ele está muito próximo do fisiognomonista que é ―chamado aos tribunais para atribuir
paternidades e estabelecer culpabilidades quanto à aparência‖ (COURTINE; HAROCHE,
1988, p. 36), sendo, portanto, um personagem que marca o momento em que a fisiognomonia
se aproxima do mundo policial. Em O Mistério de Marie Rogêt, Dupin critica a polícia e os
tribunais por desconsiderarem esta ciência: Constitui lamentável falha dos tribunais limitar
as provas e as discussões apenas ao que é aparentemente relevante‖ (POE, 1981, p. 185). Não
há, nos tribunais, para Dupin, o interesse em analisar fatos exteriores ao objeto de
investigação, como o faz um fisiognomonista frente a uma mesa de jogo.
Em A Carta Roubada, pode-se perceber que Dupin entende a fisiognomonia como meio
para descobrir o pensamento do oponente, identificar-se com ele e prever suas intenções.
Dupin narra a história de como conheceu um menino que sempre vencia em partidas de par ou
ímpar, adivinhando todas as jogadas de seus adversários:
Este jogo é simples e se joga com bolinhas de vidro. Um dos participantes fecha na
mão algumas bolinhas e pergunta ao outro se o número é par ou ímpar. Se o
companheiro acerta, ganha uma bolinha; se erra, perde uma. O menino [...] ganhou
todas as bolinhas de vidro da escola. Naturalmente, tinha um sistema de adivinhação
que consistia na simples observação e no cálculo da astúcia de seus oponentes.
Suponhamos, por exemplo, que seu adversário fosse um bobalhão que, fechando a
mão, lhe perguntasse: ―Par ou ímpar?‖ Nosso garoto responderia ―ímpar‖, e
perderia; mas, na segunda vez, ganharia, pois diria com os seus botões: ―Este
bobalhão tirou par na primeira vez, e sua astúcia é apenas suficiente para que
apresente um número ímpar na segunda vez. Direi, pois, ímpar‖. Diz ímpar e ganha.
[...]. Pois bem, esse sistema de raciocínio de nosso colegial [...] o que era, em última
análise?
73
Dupin, de acordo com o narrador, admite que, para ele, ―quase todos os homens [...] tinham janelas em seus
peitos‖ (POE, 1981, p. 116). Com isso, o protagonista alude a uma ideia de Sócrates segundo a qual todo homem
possui uma janela aberta em seu peito e que permit[e] observar os movimentos do coração (COURTINE;
HAROCHE, 1988, p. 35).
52
Simplesmente respondi uma identificação do intelecto do nosso
raciocinador com o de seu oponente.
De fato assentiu Dupin e, quando perguntei ao menino de que modo
efetuava essa perfeita identificação, [...] recebi a seguinte resposta: ―Quando quero
saber até que ponto alguém é inteligente, estúpido, bom ou mau, ou quais são os
seus pensamentos no momento, modelo a expressão de meu rosto, tão exatamente
quanto possível, de acordo com a expressão da referida pessoa e, depois, espero para
ver quais os sentimentos ou pensamentos que surgem em meu cérebro ou em meu
coração, para combinar ou corresponder à expressão‖. (POE, 1981, p. 221-222)
Trata-se do princípio fisiognomônico: descobrir o estado de uma pessoa após a
sondagem de seu íntimo. Uma vez em posse das informações acerca do âmago de um
indivíduo, adquire-se grande vantagem sobre qualquer oponente, tal como no exemplo do
menino. Dupin usa esse mesmo exemplo para explicar como dribla os planos do Ministro,
revertendo sua ação ilegal.
A importância da fisiognomonia para a solução de crimes está no fato de que ela
permite prever as ações dos criminosos de acordo com os seus verdadeiros estados interiores,
o que possibilita a neutralização de crimes, assim como a reconstituição do raciocínio do
criminoso e a formulação de uma hipótese para explicar a maneira com que ele praticou o
delito.
Dupin demonstra ser muito culto. O narrador se diz surpreendido por sua personalidade
erudita: ―Surpreendeu-me, também, a vasta extensão de suas leituras [...]. [...]... os livros
constituíam seu único luxo e, em Paris, são eles facilmente obtidos‖ (POE, 1981, p. 115). Seu
amplo conhecimento livresco é demonstrado, de modo surpreendente, em vários momentos,
como no comentário que faz sobre a resposta do menino, a qual ―supera em muito toda
profundidade espúria atribuída a Rochefoucauld, La Bougive, Maquiavel e Campanella‖
(POE, 1981, p. 222)
74
. Todos esses intelectuais têm em comum o fato de serem pensadores e
escritores de obras epigramáticas e aforísticas, com exceção de Maquiavel. Além desses
escritores, Dupin também cita Nicolas Chamfort (1741-1794), outro escritor francês
conhecido por seus epigramas e aforismos. Segundo Galvão (1969, p. 15), o aforismo designa
―um princípio de doutrina [...], uma espécie de [...] resumo de toda uma ciência. O estilo
aforístico resulta do hábito, num escritor, de volver seus pensamentos em sentenças‖. Dupin,
74
O primeiro é François de La Rochefoucauld (1613-1680), celebrado autor de máximas, conhecido pelo livro
Maximas (1665). O segundo, La Bougive, foi, de acordo com Knowlton Jr. (1971), um nome inventado ou por
Poe ou por seus editores e que se referia, na verdade, a La Bruyère (1645-1696), cujo livro de máximas foi o
muito popular Caractères (1688). Maquiavel (1469-1527), cuja obra mais conhecida é O Príncipe (1532), foi um
pensador, filósofo e escritor, considerado pai da ciência política moderna. Tommaso Campanella (1568-1639)
escreveu um livro de Aforismos Políticos em 1601.
53
nesse sentido, atribui à resposta do menino a qualidade do estilo aforístico, pois o que essa
resposta sintetiza é a própria fisiognomonia
75
.
Outros temas, obras e autores citados por Dupin, em vários momentos da trilogia
raciocinante, são a peça Crebillon; a estereotomia
76
; as teorias de Epicuro; a cosmogonia
nebular
77
; Moliére (1622-1673); as propriedades da retina, tema que na época de Poe
constituía-se como uma das principais preocupações da Oftalmologia; e a carpintaria. Suas
noções de perícia criminal são demonstradas quando ele reproduz, com fidelidade, em um
pedaço de papel, as marcas de mãos encontradas no pescoço de Camille L‘Espanaye, e
reconstitui o estrangulamento, deitando o papel sobre um pedaço de madeira semelhante a um
pescoço feminino
78
. Para desenhar as mãos, ele recorre a uma descrição de orangotango
extraída de um livro do zoólogo francês Frédérick Cuvier (1773-1838). Dupin também possui
conhecimentos navais, visíveis quando ele identifica a origem do tipo de nó e adereço
encontrados no local do crime, em Os Crimes da Rua Morgue. Ele também se refere à deusa
Laverne
79
e, finalmente, cita A Nova Heloísa, de Rousseau.
Vale, ainda, destacar a atenção de Dupin ao detalhe e ao pormenor. Dupin conta ao
narrador a história de sua família ―pormenorizadamente‖ (POE, 1981, p. 115), examina a cena
da Rua Morgue ―minuciosamente, sem excluir os corpos das vítimas‖ (POE, 1981, p. 130) e
analisa os jornais de modo ―sumamente minucioso‖ (POE, 1981, p. 186) em busca de pistas
sobre o assassinato de Marie Rogêt. No caso da Rua Morgue, Dupin comenta, após visitar a
75
A Fisiognomonia está muito próxima da Frenologia. Fundada pelo alemão Franz Joseph Gall (1758-1828) e
muito popular a partir de 1800, a Frenologia julgava poder acessar a personalidade de uma pessoa por meio da
leitura das formas, elevações ou depressões, presentes no crânio. Teve grandes seguidores nos Estados Unidos.
Os frenólogos Lorenzo Niles Fowler (1811-1896) e Orson Squire Fowler (1809-1887), ao lado de Samuel Wells,
fundaram a editora Foller & Wells em Nova York, através da qual lançaram o Periódico Frenológico
Americano. Em outubro de 1839, o periódico publicou um artigo sobre a biografia de Gall, além de vários outros
escritos que tratam do exame do crânio ou que discutem a personalidade destrutiva. O periódico já estava
disponível dois anos antes da criação de Os Crimes da Rua Morgue (1841), o que assegura a possibilidade de
que Poe o conhecesse.
76
Estudo detalhado das formas das rochas fragmentadas que visa a analisar a possibilidade de aplicação da pedra
a partir de sua forma inicial.
77
Relacionada estreitamente a Pierre Simon Laplace (1749-1827), de convicção fortemente determinista, a
cosmogonia, ou ―hipótese nebular‖, se refere à sua versão da origem do sistema solar, publicada pela primeira
vez em Exposição do Sistema do Mundo (1813). Nessa obra, Laplace defende que o sistema solar evoluiu de
uma massa de gás incandescente dotada de um eixo, ao redor do qual exercia o movimento de rotação. Com o
resfriamento da massa, a contração provocou a quebra dos anéis periféricos, os quais também se resfriaram e se
condensaram nos planetas. O sol foi mantido como o antigo núcleo e os planetas dele mais distantes
correspondem aos mais antigos.
78
Dupin, com essa prática típica de um perito criminal, realiza uma análise científica de indícios produzidos
durante a prática de crimes.
79
Essa referência é feita em tom de mofa. Uma vez explicada a solução do crime, o delegado repreende Dupin
por invadir uma área que não é sua. Dupin não faz caso e afirma ao narrador que a sabedoria do delegado
―carece de base. Todo ele é cabeça, mas sem corpo, como as pinturas da deusa Laverne ou, quando muito, é
todo cabeça e ombros, como o bacalhau‖ (POE, 1981, p. 150). A referência à Laverne intenta à zombaria, pois
ela é a ―deusa que favorecia os ladrões‖ (VOLPATTO, 2009).
54
cena do crime: ―Meu exame foi um tanto mais minucioso [que o da polícia]‖ (POE, 1981, p.
135). Essa valorização do pormenor é explicada nas últimas linhas de O Mistério de Marie
Rogêt, quando o narrador afirma que a razão tem ―sua propensão de procurar a verdade nos
pormenores (POE, 1981, p. 208). O pormenor, assim, está intimamente relacionado à
verdade.
A famosa e muito discutida questão do duplo na obra de Poe não poderia deixar de estar
presente, em se tratando de sua trilogia raciocinante. Ela é citada em Os Crimes da Rua
Morgue, quando o narrador, ao observar Dupin absorto durante uma análise, comenta:
―meditava sobre a velha filosofia da alma bipartida, divertindo-me em imaginar um duplo
Dupin o criador e o analítico‖ (POE, 1981, p. 116-117). Trata-se de uma dupla alma
dividida entre razão e sensibilidade.
De acordo com Poquette (2002), o tema da alma bipartida tem sido bastante recorrente
em estudos sobre a obra de Poe. Mas não foi a crítica que logrou ―descobrir‖ o duplo em
suas histórias, pois o próprio Poe trabalhava com essa noção de modo consciente, estando, ―ao
longo de sua carreira, [sempre] fascinado pela ideia de uma alma bipartida, meio razão, meio
imaginação uma ideia que esteve presente em várias de suas obras‖ (POQUETTE, 2002, p.
1)
80
. Essa dupla alma foi observada nos enredos de Poe como reflexo do duplo aspecto de sua
personalidade, o ―abandono do artista romântico autodestrutivo e o autocontrole do artista
consciente‖
81
(ASSELINEAU apud POQUETTE, 2002, p. 1).
Nesse sentido, a dúvida vem a ser: afinal, a qual das duas propostas a do gótico ou a
do trabalho racional o conto raciocinante se filia? O estudo da alma bipartida, na obra de
Poe, auxilia na compreensão da aproximação estabelecida entre razão e imaginação no conto
raciocinante:
À primeira vista, as histórias de Poe dão a impressão de que ou são exclusivamente
de horror com ênfase na imaginação ou são unicamente detetivescas, focadas
na razão. No entanto, com Poe não é assim tão simples, especialmente em se
tratando de suas histórias de detetive. Kenneth Graham observa na Introdução aos
Contos Escolhidos que Dupin ―é o exemplo mais famoso da fusão das faculdades,
com sua ‗alma bipartida‘‖. (POQUETTE, 2002, p. 1)
82
80
Throughout his career, Poe was fascinated by the idea of a ―bi-part‖ soul, half imagination, half reason an
idea that was expressed in many of his works.
81
the abandonment of the self-destructive romantic artist and the self-control of the conscious and
conscientious craftsman.
82
At first glance, somebody looking at Poe‘s stories may be tempted to label each one as either a horror story
emphasizing imagination or a detective story, which emphasizes reason. However, with Poe, it is not always
that simple, especially with Poe‘s detective stories. Kenneth Graham notes in the Introduction to Selected Tales
that Dupin ―is the most famous instance of the fusion of the faculties, in his ‗Bi-part soul‖.
55
Existem elementos no conto raciocinante que revelam a manifestação de ambas as
metades dessa alma cindida, a racional e a imaginativa. De acordo com Poquette (2002), as
ideias ilógicas e românticas de Dupin são visíveis em sua preferência pelo escuro ou na
afirmação de que seu raciocínio é favorecido pela baixa iluminação, como se observa em A
Carta Roubada: ―Se se trata de um caso que requer reflexão [...], será melhor examinado no
escuro (POE, 1981, p. 212)‖. Berlin (2001) chama a atenção para o fato de que a própria
fisiognomonia consiste em um conhecimento ilógico. A adesão de Dupin a esta
pseudociência, portanto, também constitui uma manifestação de irracionalismo.
Segundo Poquette (2002), o delegado G... não compreende a adesão de Dupin a
métodos derivados de concepções artísticas e ilógicas, em detrimento de métodos racionais.
Para o delegado G..., de nada vale a criatividade. Sendo o Ministro D... um poeta além de
matemático , o delegado G... subestima sua inteligência. No entanto, o próprio delegado
recorre a Dupin, um poeta confesso:
[...] D... [...] não é inteiramente idiota [ comentou Dupin ] e, assim, deve ter
previsto, como coisa corriqueira, essas revistas.
Não é inteiramente tolo disse G... mas é poeta, o que o coloca não muito
distante de um tolo
Certo assentiu Dupin [...] , embora eu também seja culpado de certos
versos... (POE, 1981, p. 216)
De acordo com Poquette (2002), Poe acredita que ambas as qualidades, racionais e
imaginativas, empregadas concomitantemente, sejam elementos indispensáveis na
caracterização de um criminoso eficiente. Contudo, nota-se que elas também são
indispensáveis a um bom ―detetive‖: ―Na verdade, é precisamente a habilidade de Dupin em
fundir seu lado racional e criativo
83
que o permite resolver o crime‖
84
(POQUETTE, 2002, p.
2). Tanto Dupin quanto o Ministro são criativos e racionalistas. Focado apenas no aspecto
racional da personalidade do Ministro, o delegado não considera plausível a possibilidade de
que sua índole criativa lhe inspire maneiras inusitadas de esconder a carta.
A manifestação da dualidade emoção-razão também se manifesta em outros aspectos do
conto raciocinante. Poquette (2002) reconhece no diálogo de A Carta Roubada essa
dualidade, pois ―quando o diálogo se torna emocional, Poe mostra-o como sinal de
83
Assim, nota-se a semelhança entre Hoffmann e sua Scudéry e a nova abordagem de Poe, com seu Dupin.
84
In fact, it is precisely Dupin‘s ability to merge both the rational and the creative mindsets that allows him to
solve the crime
56
inferioridade‖
85
. Isto pode ser constatado, por exemplo, no momento em que o delegado,
apesar de dissimular frieza, não faz mais que dar vazão às suas emoções:
Talvez o mistério seja um pouco simples demais Disse Dupin.
Oh, Deus do céu! Quem já ouviu falar tal coisa? [ replicou o delegado]. (POE,
1981, p. 212)
Dado semelhante ao extravasamento emocional de ―Deus do Céu!‖ pode ser constatado
na resposta do delegado ao pedido de descrição da carta, uma resposta em que transparece
ansiedade: ―Oh, sim!‖
86
. Segundo Poquette (2002, p. 2) ―sua ansiedade exagerada em fornecer
a informação a Dupin reflete sua ansiedade na busca equivocada pela carta‖
87
.
Dupin, por sua vez, age no sentido inverso, mantendo um tom equilibrado e frio ao
longo de toda a história. Contudo, sua frieza fica mais evidente durante as ações que o
levaram a recuperar o documento, tendo de se deparar com ―criados fiéis a seus interesses‖
(POE, 1981, p. 231) em uma situação ―potencialmente perigosa‖
88
. Recuperada a carta, o
narrador mostra-se curioso em saber o motivo pelo qual Dupin recupera a carta apenas na
segunda visita ao Ministro. Dupin replica que, se não tivesse sido assim, ―[...] talvez não
tivesse conseguido sair vivo de sua presença ‗ministerial‘‖
89
. A frieza de Dupin mostra-se
essencial para o bom resultado de sua perigosa aventura em território inimigo:
embora a habilidade de Dupin em combinar processos de pensamento racionais e
imaginativos seja a responsável por fazer com que ele penetre a mente do Ministro, é
somente sua conduta racional exterior, refletida em sua linguagem, que lhe meios
para recuperá-la com segurança
90
. (POQUETTE, 2002, p. 2)
A conduta racional de Dupin não se revela apenas em sua linguagem, mas também
em suas ações. No entanto, as ações de Dupin aquelas que põe em risco sua integridade
física são, de fato, poucas, se comparadas às ações do trabalho racional e analítico,
enfatizadas pelo conto raciocinante. Assim, percebe-se que, apesar das heranças góticas do
85
Idem, ibidem, p. 2. [...] when dialogue becomes emotional, Poe shows it to be inferior.
86
―Oh, Yes!‖. Tradução do autor do original em Inglês. Na versão brasileira de Breno da Silveira, a expressão
foi traduzida como ―Certamente!‖, a qual retira, consideravelmente, o tom de urgência do original. A ansiedade
do delegado é justificável, pois a recuperação da carta resgataria sua reputação e lhe traria elevados ganhos
pecuniários.
87
His over-eagerness in providing information to Dupin reflects his eagerness in his misguided search for the
letter.
88
Idem, ibidem, p. 231.
89
Idem, ibidem, p. 231
90
In other words, although it is Dupin‘s ability to combine imaginative and rational thought processes that
allows him to get inside the Minister‘s mind and leads to Dupin‘s discovery of the letter‘s hiding place, it is his
purely rational outside demeanor, reflected in his language, that gives him the means to steal it back safely.
57
conto raciocinante e de seu aspecto imaginativo, em Dupin são predominantes o trabalho da
razão e sua bem sucedida aplicação para a elucidação de crimes misteriosos.
3.2 O ACASO NA TRILOGIA RACIOCINANTE
No conto raciocinante, um momento marca o início de uma série de referências a uma
autoentrega dos personagens ao acaso, que pode parecer, a princípio, estranha. Em Os Crimes
da Rua Morgue, o narrador diz não estar ―escrevendo um tratado, mas, simplesmente,
prefaciando uma narrativa um tanto peculiar, com observações feitas bastante ao acaso‖
(POE, 1988, p. 112). Seria difícil imaginar alguma relação entre o acaso e uma história de
crime, não fossem as ligações do protagonista com a ciência. Boileau e Narcejac (1991, p. 12)
mostram como o conto raciocinante de Poe e seu protagonista estão intimamente relacionados
à ciência e aos seus métodos, tomando a narrativa de raciocínio como um ―modelo muito
aperfeiçoado da investigação científica [...]. O enigma [...] torna-se crime misterioso [...], o
cientista transforma-se em detetive‖.
De acordo com Dupin, as maiores descobertas científicas ocorrem por acaso
91
. Foi o
caso da descoberta do local em que Marie Rogêt foi morta uma descoberta realizada, de
modo inesperado, por dois meninos, conforme informava o jornal: ―Dois meninos, [...],
vagando pelo bosque, perto da Barrière Du Roule, entraram, por acaso, num matagal cerrado‖
(POE, 1981, p. 167). É uma descoberta essencial a cena do crime que leva às pistas e
possibilita a solução do caso. O acaso assume, assim, sua relação com a verdade:
No entanto, a experiência tem demonstrado [...] que uma parte muito importante da
verdade [...] surge de coisas aparentemente sem importância [...]. A história do
conhecimento humano tem revelado [...] que as mais [...] valiosas descobertas
devem-se a fatos colaterais, fortuitos e acidentais [...]. Tem-se de admitir o acidente
como constituindo uma parte fundamental. [...] a maior parte de todas as verdades
[tem] surgido de circunstâncias indiretas e fortuitas e não é senão de acordo com
o espírito de tal fato que eu desviaria as investigações... (POE, 1981, p. 185-186)
O acaso é, desse modo, um elemento que favorece a ―descoberta‖ da verdade e, como
tal, é incorporado ao processo de investigação científica. Pode-se constatar inúmeros outros
momentos em que fica clara a presença massiva do acaso a ―definir‖ o ―rumo‖ dos fatos
91
Ocorreu, na época de Poe, uma importante descoberta científica marcada pelo acaso. O cientista Edward
Jenner (1749-1823), convicto iluminista, descobre, a partir do comentário casual de uma ordenhadora, que as
trabalhadoras de ordenha infectadas com varíola bovina raramente contraíam a forma mais agressiva da doença,
letal no século XVIII. Baseado nessa informação, que obteve por acidente, Jenner infecta um menino de oito
anos com a forma bovina e, em seguida, com a versão humana da doença e constata a imunidade adquirida a
partir da primeira infecção. Assim, surge a vacina contra varíola.
58
narrados. Essa marcante presença da coincidência mostra como Dupin está cercado pelo
mundo científico, onde tudo pode ser antevisto, conhecido e descoberto. Mas o preço a pagar
por essa onisciência cientifica não pode ser outro senão o tédio. O acaso tem, então, o papel
de trazer dinâmica a esse mundo, ao promover novas descobertas que escapam às previsões da
razão. Em Os Crimes da Rua Morgue, o narrador afirma que conheceu Dupin por acaso, em
uma livraria: ―a procura acidental do mesmo volume nos pôs em estreita comunhão‖
92
. Após
decidirem dividir a mesma casa, o narrador cede à afeição de Dupin pela noite e o acompanha
―vagando a esmo até muito longe e até horas tardias‖
93
. No início de O Mistério de Marie
Rogêt, essa entrega ao acaso continua: ―Deixamos o futuro inteiramente entregue ao acaso‖
(POE, 1981, p. 155). O que implica a ideia de que a entrega da vida ao acaso é espontânea e
voluntaria. E até mesmo desejada. O ―futuro‖ a que o narrador se refere assume uma condição
dinâmica em que não há margem para o tédio. Nesse sentido, as consequências dessa amizade
iniciada pela coincidência e vivida em errância consistem em puras descobertas científicas
propiciadas pela dinâmica do acaso. A investigação em que Dupin se lança constitui-se como
uma oportunidade para que ele tenha contato com descobertas inesperadas, o que, para ele,
acaba representando uma espécie de elemento surpresa capaz de anuviar as certezas de um
mundo onde tudo está previsto.
Além disso, importa observar que o acaso não apenas favorece grandes descobertas,
mas passa a ser aceito como elemento inerente à vida, conforme explica o narrador:
Compreender-seque falo de simples coincidências e nada mais. [...] Não creio de
modo algum no sobrenatural. Nenhum homem que pense poderá negar que a
natureza e o Deus que a criou constituem um todo único. Que esta, criando aquela,
pode, à vontade, governá-la ou modificá-la, é coisa também fora de dúvida. Digo
―vontade‖ porque se trata de uma questão de vontade e não de poder, como a lógica
insensata tem suposto. Não que a divindade o possa modificar suas leis, mas sim
que, imaginando uma possível necessidade de modificação, a insultamos. Em sua
origem, essas leis foram criadas para abranger todas as contingências que pudessem
achar-se no futuro. Para Deus, tudo é presente. (POE, 1981, p. 207)
Nesse excerto, o discurso do narrador está marcado pela concepção deísta de Deus. O
narrador aceita o ―acaso‖ como parte da vida e como parte da criação de um ―Deus‖. Sendo a
coincidência uma parte da criação do mundo natural, prevista nas leis divinas, ela não assume
estatuto de sobrenatural. Ainda que a crença em um Deus criador do mundo seja afirmada, o
narrador não admite qualquer necessidade de interferência sobrenatural sobre o mundo físico,
92
Idem, ibidem, p. 115.
93
Idem, ibidem, p. 116.
59
criado perfeito e acabado. O deísmo
94
iluminista recusa os eventos sobrenaturais (milagres
e profecias) por acreditar que o plano divino para a criação não pressupõe a necessidade de
qualquer interferência na vida humana ou nas leis da natureza.
De acordo com o narrador, as pessoas comuns podem considerar ―coincidências de
caráter [...] extraordinário‖ (POE, 1981, p. 153) como eventos sobrenaturais, ao procurarem
uma resposta mistificada para fatos inexplicáveis. Contudo, o acaso, elemento trivial do
mundo, parte da vida, desmitifica-os. O narrador, portanto, imbuído do espírito iluminista,
promove o desencantamento do mundo, ao nivelar o acaso a fatos comuns da vida ordinária.
Este é o posicionamento dos que, segundo Willer (2008b, p. 346), negam o acaso como
manifestação sobrenatural e ―o reduzem à mera coincidência em nome do bom senso ou do
saber científico‖. A visão de mundo resultante é a de um mundo desencantado pela certeza de
que o que parece misterioso pode ser explanado e desmistificado pela razão.
3.3 ANDRÉ BRETON EM NADJA
Antes de qualquer exame do livro de Breton, é preciso esclarecer que Nadja não é
jamais pretendeu ser uma obra de ficção. Ao contrário das narrativas raciocinantes de Poe,
cujo enredo é ficcional
95
, os acontecimentos relatados em Nadja são verídicos e
historicamente comprovados: ―Em Nadja nada de imaginário, tudo é perfeita e
rigorosamente verdadeiro. Nadja existiu, muitos a conheceram, seu destino brilhante e
lamentável é exatamente como Breton o retrata‖ (NADEAU apud DANTAS, 2008, p. 74). No
período de sua publicação, contudo, o livro foi recebido como ficção, tal como um romance, o
que se justifica pelo fato de o livro de Breton relatar ―fatos que, de tão inacreditáveis,
pareciam inventados‖ (DANTAS, 2008, p. 74).
Breton era crítico de obras ficcionais e considerava o romance, em especial o romance
naturalista e realista do século XIX, como ―uma anedota submetida ao império da gica‖
(DANTAS, 2008, p. 76). Conforme Willer (2008a, p. 307), o ponto de partida do surrealismo
é a própria recusa em submeter a arte ―ao realismo, ao naturalismo, à literatura psicológica,
aspectos da visão cientificista e mecanicista do mundo‖. O romance realista, para Breton,
define ―o caráter dos personagens e [atribui] ao herói ações e reações previstas‖ (DANTAS,
94
O deísmo marcou a era do Iluminismo, que teve, em Voltaire, um de seus mais notáveis representantes. Os
Iluministas acreditavam que apenas a razão e a observação do mundo natural podiam conduzir a Deus, sem a
necessidade da fé ou de uma religião organizada.
95
Ainda que personagens e enredos tenham sido emprestados de crimes e fatos verídicos.
60
2008, p. 76), o que termina por lhes emprestar a condição de ―seres humanos formatados‖
96
.
Assim, esse tipo de romance é problemático porque mina as coincidências que fogem ao
controle, como se o terreno da vida fosse plano e sem ―erosões‖ lapsos de memória, troca
de palavras, acasos objetivos
97
. Os personagens realistas são ―determinados‖, o que, para
Breton, não corresponde ao homem e à vida.
O desprezo pelo romance realista se deve ao fato de que, para Breton, não
dissociação entre literatura e vida. A vida tornava-se literatura, e vice-versa. O romance
consistia em algo onde tudo seria fictício embora se baseasse na vida real e dela retirasse o
brilho, o maravilhoso. A intenção dos surrealistas era relatar tudo o que se passa na vida real,
ampliar a noção de realidade e abrir o caminho para a surrealidade. A crítica ao romance
realista e ao racionalismo não se restringe à dimensão literária, mas se baseia no que, segundo
Willer (1985, p. 15), seria o seu fundamento, ―uma tentativa [...] de repensar e refazer o
homem, a sociedade, e a relação entre o homem e a sociedade [...]‖. Criticar o romance
realista significa assumir uma postura de oposição a um racionalismo burguês que transforma
a arte em instituição, em um trabalho cujo caráter ficcional separa a arte da vida.
A liberdade da lógica buscada na crítica ao romance realista e da finalidade
prática da arte eram, igualmente, importantes. O homem moderno havia sido ―alienado‖
98
pela
racionalidade burguesa. A liberdade
99
representava o fim dessa alienação. Reprova-se, pois, a
noção de que a arte deve, necessariamente, possuir finalidade prática, e se defende arte como
algo despretensioso e autônomo
100
. Uma vez desapegada e autônoma, a arte torna-se livre de
valores morais, estéticos e de relações de subserviência a concepções políticas. Aspirar à
liberdade, inclusive a política, não significa que o surrealismo é apolítico. O engajamento
político, se existente, está na estrutura da obra, que denuncia a alienação e é capaz de chocar,
estranhar e convulsionar, para, por fim, estimular o pensamento do homem e o desalienar.
A crítica de Breton ao romance, bem como a sua preocupação em repensar o homem e a
arte fazem com que sua obra Nadja, de 1928, assuma ―a forma de um livro diferente, estranho
[...]‖ (DANTAS, 2008, p. 75). Breton compõe Nadja usando de expedientes anti-literários
101
,
96
Idem, ibidem, p. 76.
97
A noção de acaso objetivo será discutida adiante.
98
Essa alienação não se refere somente ao conceito marxista; mas, diz respeito ao processo de desencantamento
do mundo, à limitação da capacidade de se ―enxergar‖ além da realidade.
99
A liberdade assume grande importância para o movimento surrealista. Inerente ao homem, a liberdade só pode
ser encontrada na vida e não em um mundo fantástico ou no mundo transcendental anunciado por algumas
religiões, para as quais a liberdade é inatingível nesta vida.
100
Se a arte, no surrealismo, mantém alguma função, é a de desrealizar e desalienar. Mas a arte não tem função
alguma, pois o poder da arte só depende da sua autonomia. Sem ela, a arte perde qualquer função.
101
A montagem, outro exemplo de expediente antiliterário utilizado em Nadja, é um processo de criação pelo
qual são retirados apenas fragmentos de vários contextos distintos, os quais são, posteriormente, reorganizados
61
como relatos objetivos ou fotos que assumem o lugar de descrições e comprovam a
veracidade dos fatos relatados, para citar alguns. O livro foi escrito, também, tendo em vista
algumas metas. Além da crítica ao romance por meio do relato de fatos reais, buscava-se
entender a natureza de eventos assombrosos do cotidiano, as ―petrificantes coincidências‖
102
.
Além disso, procurava-se provar que o maravilhoso ou seja, aquilo que extasia, que rompe
com o cotidiano e se torna capaz de convulsionar ocorre na vida cotidiana e que a força do
desejo é algo real.
Apesar do caráter inorgânico de Nadja, não se pode deixar de observar, no livro, a
presença de elementos típicos de textos orgânicos, como os que fazem parte de um trabalho
de investigação acadêmica. As características de um trabalho científico podem ser constatadas
pela presença de fotos
103
, de notas de rodapé e, especialmente, pela exposição de uma
hipótese: a de que, ao saber o que o distingue, como afirma Breton, também saberá ―o que,
entre todos os demais, vim fazer neste mundo e qual a mensagem ímpar de que sou portador,
a ponto de a minha cabeça poder responder por seu destino [...]‖ (BRETON, 2007, p. 22).
Depois da famosa indagação que abre o livro, ―Quem sou?‖, Breton diz que, para descobrir a
si próprio, procura, dentre suas atitudes (ações) particulares, uma atitude geral
104
, ―que me
seria própria, e não concedida a mim‖ (BRETON, 2007, p. 22). Todos esses elementos, ou
seja, as imagens e a hipótese, mostram que Breton procura realizar uma investigação em
busca de respostas.
Depois de afirmar que sua intenção é narrar ―episódios marcantes‖ de sua vida ―[...] na
própria medida em que ela está confiada aos acasos [...]‖ (BRETON, 2007, p. 27), Breton cita
várias coincidências que o impressionaram, como, por exemplo, o fato ocorrido durante a
estréia da peça Couleur du temps, de Apollinaire, quando ele é abordado por um rapaz
desconhecido que o toma por outra pessoa. Pouco tempo depois, após receber a visita de Paul
Éluard, com quem havia trocado algumas correspondências, Breton o reconhece como o
rapaz que o confundira na noite do espetáculo. Ao narrar outros fatos semelhantes, Breton
sem encadeamento linear e sem comprometimento com o todo. O processo de montagem, utilizado em Nadja,
torna possível a leitura em qualquer ordem sem prejuízo para a compreensão, uma vez que o sentido é dado pela
organização dos fragmentos e não pelo seu conjunto. A montagem, em Nadja, visa eliminar a linearidade do
texto, deixando-o sem os típicos ―começo, meio e fim‖ do romance realista. O termo inorgânicorefere-se a
estas obras, que se diferem das obras de cunho ―orgânico‖, isto é, em que as partes se submetem ao todo.
102
Ao narrar as coincidências, Breton entende que se tratam de sinais. Contudo, somente na década de 30 ele irá
teorizar sobre isso, o que culminará com a noção de acaso objetivo.
103
Usadas em livros de ciências.
104
Trata-se de um elemento exclusivo de sua identidade e que o diferencie: ―esforço-me [...] por saber em que
consiste, ou pelo menos a que se deve, essa minha diferenciação‖ (BRETON, 2007, p. 22). Breton deseja separar
de todas as suas ações aquelas que são inerentes à sua identidade. É como se ele buscasse o resultado puro e
espontâneo de si mesmo, ―uma atitude geral‖ (BRETON, 2007, p. 22), depois de se espoliar de suas ―atitudes
particulares‖ (BRETON, 2007, p. 22).
62
conta como conhece Nadja, uma mulher que encontra, ao acaso, e que lhe causa forte
impressão. Breton relata vários encontros posteriores que teve com ela, nos quais pode
vivenciar mais fatos fortuitos, como o relato do dia 7 de Outubro, que termina com a narração
de um beijo:
Com respeito, beijo seus lindíssimos dentes e ela então, lenta e gravemente, diz [...]:
‗a comunhão acontece em silêncio... A comunhão acontece em silêncio‘. [...] esse
beijo, ela me explica, a deixa com a impressão de alguma coisa sagrada, em que seus
dentes ‗fazem as vezes de hóstia‘. (BRETON, 2007, p. 88)
No dia seguinte, Breton diz ter recebido uma carta de Aragon, enviada da Itália, ―e na
qual incluiu uma reprodução fotográfica do detalhe central de um quadro de Ucello que [...]
não conhecia. A obra intitula-se A profanação da hóstia(BRETON, 2007, p. 89). Em nota
de rodapé, Breton observa que viu o conjunto da obra, meses depois, e que este lhe pareceu
―carregado de intenções ocultas e, no final das contas, de interpretação bastante difícil‖
105
. Em
outra ocasião, Nadja conta a Breton que, com uma moeda fechada na mão, perguntara ―ao
empregado que perfura os bilhetes [...]: ‗Cara ou coroa?‘. Ele respondeu coroa. Acertou. ‗A
senhorita estava querendo saber se daqui a pouco vai ver o seu amigo. Pois vai‘‖ (BRETON,
2007, p. 92).
Depois de muitos outros relatos de seus encontros com Nadja e de coincidências que
vivenciou ao seu lado, Breton fala sobre a decisão de afastar-se dela. Alguns meses depois
desse afastamento, ele toma conhecimento de que Nadja havia sido internada em uma
instituição psiquiátrica. Após comentar os elementos que considera falhos na psiquiatria,
Breton defende-se de qualquer culpa que possa ter com relação ao agravamento do estado de
Nadja. Ele também apresenta imagens de vários desenhos feitos por ela e rememora algumas
frases ditas pela jovem, como ―o fim do meu fôlego é o começo do seu‖ ou ―diante do
mistério, Homem de pedra, compreende-me‖ (BRETON, 2007, p. 108).
Próximo ao final do livro, Breton passa a falar de outra mulher. Segundo ele, Nadja
havia prenunciado o amor verdadeiro, único sentido de sua procura e de sua caminhada sem
rumo determinado. Após fazer as últimas considerações sobre o período em que conviveu
com Nadja e sobre o sentido de ter conhecido uma nova mulher
106
, Breton encerra seu relato
com uma notícia de jornal que comenta a captação de uma mensagem aérea por uma estação
de telégrafo sem fio localizada na Ilha da Areia: A mensagem dizia, resumidamente:
105
Idem, ibidem, p. 89.
106
Seu nome não é revelado por Breton, mas sabe-se que se trata de Suzanne Muzard.
63
‘Alguma coisa não vai bem‘‖ (BRETON, 2007, p. 146)
107
. Segundo a notícia, o avião não
indicava a sua posição e nem as condições atmosféricas e inúmeras interferências impediram
o operador de compreender as orientações e se comunicar. A notícia serve como metáfora
para uma busca que termina no próprio ponto em que se inicia: em lugar de respostas,
encontra-se apenas a certeza da continuidade dessa busca sem rumo.
Nadja apresenta claras referências a saberes e práticas que, tal como em Poe, mostram o
caráter ―científico‖ de Breton. A observação, por exemplo, é uma prática bastante presente
em Breton e em Nadja. Breton afirma que ―observava, sem querer, as expressões, as roupas, a
maneira de andar‖ (BRETON, 2007, p. 63) e que as pessoas que observava não seriam
capazes de fazer a revolução. Em outro momento, assim que conhece Nadja, Breton diz:
―Observo-a melhor. O que poderia haver de tão extraordinário naqueles olhos?‖
108
, ou, ainda:
―Acho que a observo demais, mas como agir de outra forma?
109
. Nadja, do mesmo modo,
―revira meu chapéu, [...] para ler as iniciais no forro, [...] pelo hábito de determinar [...] a
nacionalidade de certos homens‖
110
. Breton, em certo momento, comenta como Nadja, em
Paris, senta-se em meio aos passageiros de um trem e ―procura descobrir no rosto deles o
motivo de suas preocupações‖
111
. Exemplos não faltam, deste modo, que mostrem o quanto a
prática da observação está presente nas ações do casal Nadja e Breton.
Outros saberes podem ser constatados na obra, os quais englobam desde a magia até a
mitologia, como no momento em que Breton compara a liberdade de Nadja à dos espíritos do
ar, ou quando ela se desenhava como Melusina
112
, ―de todas as personalidades míticas a de
que se sentia mais próxima‖ (BRETON, 2007, p. 122).
É bastante perceptível, também, ao longo do livro, a influência psicanalítica da teoria de
análise dos sonhos. Depois de avaliar o seu próprio sonho, Breton comenta:
[...] a produção de imagens de sonho depende sempre pelo menos desse duplo jogo
de espelhos, nela encontramos a indicação do papel muito especial, sem dúvida
eminentemente revelador, no mais alto grau ―supradeterminante‖, no sentido
freudiano, que certas impressões muito fortes são chamadas a desempenhar, nada
107
Os itálicos são do próprio Breton.
108
Idem, ibidem, p. 65.
109
Idem, ibidem, p. 86.
110
Idem, ibidem, p. 75.
111
Idem, ibidem, p. 68.
112
Melusina foi uma figura da mitologia européia, um espírito feminino relacionado a lagos e fontes. Uma
variação da lenda diz que Melusina foi condenada por sua mãe a se metamorfosear em serpente como castigo por
caluniar seu pai. A transformação ocorreria somente aos sábados e tomaria os membros inferiores de Melusina.
Ela, então, casou-se com um rei sob a condição de jamais ser vista aos sábados. Com o tempo, o segredo de
Melusina fez com que o rei começasse a suspeitar que ela o traía, o que o levou a observá-la através de uma
abertura na parede. O rei foi perdoado, até que, em uma discussão, o rei a ofendeu, referindo-se a ela como
―serpente‖. Melusina, em seguida, transformou-se em um dragão e abandonou o reino definitivamente.
64
contamináveis pela moralidade, verdadeiramente percebidas ―acima do bem e do
mal‖ no sonho [...]. (BRETON, 2007, p. 55)
A obra A Interpretação dos Sonhos foi publicada em 1899, por Sigmund Freud, (1836-
1939) e foi responsável por fundar a teoria freudiana de análise dos sonhos. Nesse livro, Freud
elabora a noção de que os sonhos promovem a satisfação de um desejo, após ludibriar a
censura do consciente
113
. No estado de sonho, o consciente não pode atuar como censor, mas
o pré-consciente continua agindo. O inconsciente é levado a driblar qualquer censura por
meio da distorção de sentido. Assim, imagens de sonho são formas distorcidas, que aparentam
algo diferente do que realmente são, por isso a necessidade de interpretá-las. Segundo Freud,
a interpretação de um sonho deve partir da análise de eventos ocorridos no dia anterior a ele.
Isso está subjacente ao comentário de Breton:
De manhã, ao despertar, tive mais trabalho que de costume para me desvencilhar de
um sonho bastante infame, que não vejo a menor necessidade de transcrever aqui,
pois decorre em grande parte de conversas que tive ontem, sobre um assunto
inteiramente diverso. (BRETON, 2007, p. 54)
Desse modo, o caráter científico perceptível na estrutura do livro Nadja e os
conhecimentos nele presentes, como a psicanálise, aproximam Breton de Poe. A discussão
sobre esse dado, que pode parecer óbvio, não deixa de merecer espaço, porque mostra quão
análogas são as buscas de Dupin e de Breton.
3.4 O ACASO EM NADJA
No início do livro, Breton diz estar à mercê de ―petrificantes coincidências‖ e ―fatos que
[apresentam] todas as aparências de um sinal‖ (BRETON, 2007, p. 27) e confessa: esses
eventos revelam ―cumplicidades inverossímeis, que me convencem de minha ilusão todas as
vezes que acredito estar sozinho ao leme do navio‖
114
. Mais adiante, Breton se refere à
―ausência completa de paz‖
115
, provocada por ―certos concursos de circunstâncias que
ultrapassam em muito o nosso entendimento‖
116
. Ele se diz, também, uma ―testemunha
espantada‖ desses fenômenos, como, por exemplo, o que experimentou com Paul Éluard. No
113
Freud distingue três níveis de consciência. O consciente, de acordo com Rowell (2009), é o estado em que se
tem ―percepção dos sentimentos, pensamentos, lembranças e fantasias do momento‖. O pré-consciente está
relacionado ―aos conteúdos que podem facilmente chegar à consciência‖ (ROWELL, 2009). O inconsciente
―refere-se ao material não disponível à consciência ou ao escrutínio do indivíduo‖ (ROWELL, 2009).
114
Idem, ibidem, p. 27.
115
Idem, ibidem, p. 28.
116
Idem, ibidem, p. 28.
65
intervalo da representação de Couleur du temps, de Apollinaire, Breton conta ter sido
abordado por um jovem
que me havia tomado por um de seus amigos, dado como morto durante a guerra. A
conversa terminou aí. Pouco tempo depois [...], passei a me corresponder com Paul
Éluard, sem que um tivesse a menor idéia da aparência física do outro. Por ocasião
de uma licença, Éluard veio me visitar: tinha sido ele quem se aproximara de mim
na Couleur du temps. (BRETON, 2007, p. 33)
Em momento posterior, Breton fala de como considerava oraculares as sessões de
escrita automática de Desnos, a ponto de se deslocar ―de olhos fechados‖ (BRETON, 2007, p.
39) aos encontros que este marcava, ―nos lugares e horas mais inverossímeis, [...] certo de
encontrar quem ele‖ anunciava (BRETON, 2007, p. 39). Nesse momento, percebe-se a
particular entrega de Breton ao acaso.
Depois de narrar alguns outros exemplos de coincidências, Breton afirma que o acaso
mostra como a vida do homem, que julga ter poder sobre ela, não é passível de controle
completo:
Espero [...] que a apresentação de uma série de observações dessa ordem [...] seja de
natureza a precipitar alguns homens na rua, depois de tê-los feito adquirir
consciência [...] da grave insuficiência de qualquer cálculo pretensamente rigoroso
sobre si mesmos, de toda ação que exige uma aplicação permanente, e que possa ter
sido premeditada. (BRETON, 2007, p. 62)
Chega-se ao momento em que Breton introduz Nadja, logo após um comentário no qual
ele critica o ―trabalho‖ por sua incapacidade de trazer respostas ao homem:
O acontecimento que cada um de nós está no direito de esperar que seja a revelação
do sentido de sua própria vida, acontecimento que eu talvez ainda não tenha
encontrado mas no caminho do qual me procuro, não virá ao preço do trabalho.
Mas me antecipo, pois talvez seja aqui, acima de tudo, o que a seu tempo me fez
entender e o que agora justifica, sem mais tardança, a entrada em cena de Nadja.
(BRETON, 2007, p. 62)
Sabendo que esse ―evento‖, essa ―resposta‖, não virá com o trabalho, Breton diz
compreender a chegada de Nadja, uma figura que se mostrará totalmente livre das amarras da
moral e do trabalho; imersa no maravilhoso. Breton e Nadja se conhecem ―ao fim de uma
dessas tardes inteiramente desocupadas e sombrias‖ (BRETON, 2007, p. 63): uma moça,
pobremente vestida [...]. Vai de cabeça erguida, ao contrário de todos os passantes. [...] Jamais
havia visto uns olhos assim [...]‖ (BRETON, 2007, p. 63-65).
66
Breton percebe em Nadja a liberdade e expressa isso em algumas passagens do livro,
como quando lhe pergunta onde iria jantar: ―E de repente aquela leveza quevi nela, aquela
liberdade, para ser mais preciso: ‗Onde? [...] ali, ou (dois restaurantes mais próximos),
onde eu estiver. É sempre assim‘‖ (BRETON, 2007, p. 70). E, antes de deixá-la, ele faz uma
―pergunta que resume todas as demais, uma pergunta que eu faria, sem dúvida, mas que,
pelo menos uma vez, encontrou resposta à altura: ‗Quem é você?‘ E ela, sem hesitar ‗Eu sou a
alma errante‘‖ (BRETON, 2007, p. 70). Nadja é alguém que está entregue ao não-
determinado, cujos rumos são livres e imprevisíveis. Depois de dizer que cria histórias para si
mesma a partir de perguntas aleatórias, ela explica: ―E não histórias de mentira: é
exatamente desse jeito que eu vivo [...]‖ (BRETON, 2007, p. 73).
No dia 6 de outubro, ocorre o terceiro encontro entre ela e Breton. O próprio encontro
dos dois ocorre ao acaso, na rua, antes do horário previamente combinado. Em um café, Nadja
pergunta o sentido que Breton atribui ao episódio de Os passos perdidos, sobre um encontro
que teve com uma bela jovem, na rua, em circunstâncias bastante incomuns
117
, ao que ele
replica: ―[...] não sei nada a respeito disso, [...] nesse campo o direito de constatar me pareceu
ser tudo o que era permitido‖ (BRETON, 2007, p. 76). Nadja se dirige por engano à Praça
Dauphine, um ―dos lugares mais profundamente ermos [...], dos piores terrenos baldios que
existem em Paris‖ (BRETON, 2007, p. 77). Escurece quando os dois se sentam a sós do lado
de fora de um café. É quando ela aponta para uma janela a afirma: ―Daqui a um minuto ela
vai se acender. Vai ficar vermelha‖
118
. Depois de um minuto, ela se acende: ―Há, de fato,
cortinas vermelhas. [...] Confesso que aqui fico tomado pelo medo, e Nadja também‖
(BRETON, 2007, p. 79)
119
. Mais uma vez, o evento assume uma atmosfera similar à gótica,
por conta de sua circunstância crepuscular, do medo e do espaço ameaçador, que constituem
alguns dos elementos presentes no conto raciocinantes de Poe.
Outras manifestações como essas ocorrem durante o encontro, assim como nos
encontros subsequentes, dos dias 7, 8, 9, 10, 11 e 12 de outubro. No encontro do dia 10, Nadja
diz a Breton que no céu um ―relâmpago que desenha lentamente uma forma de mão.
117
Trata-se do artigo ―O espírito novo‖. Nele, Breton relata a ocasião em que ele, Louis Aragon e André Derain
encontraram, em momentos distintos e com poucos minutos de intervalo, uma jovem simpática e de beleza
incomum que fazia perguntas pela rua aos transeuntes. Ao perceberem o que acontecera com eles, Breton e
Aragon voltaram às ruas para tentar reencontrar a jovem, sem sucesso. Breton a considerou uma ―esfinge sob as
formas de uma jovem encantadora [...]‖ (BRETON, 2007, p. 75).
118
Idem, ibidem, p. 79.
119
Houve quem viu o episódio como charlatanismo, como explica Willer (2008b), que encontra em Peixe
Solúvel, livro que precede Nadja, a referência a um quarto com certa ―cascata púrpura‖. Willer (2008b, p. 333)
comenta a passagem: ―Henry Béhar observa que Nadja, conhecendo a Praça Dauphine, podia saber que lá havia
um quarto com uma cortina vermelha, no qual se acendia uma luz a uma dada hora. Mas [...] em Peixe Solúvel
consta esse quarto [...] com uma ‗cascata púrpura‘. A cena estava prefigurada no texto [...]‖.
67
‗Sempre essa mão‘‖ (BRETON, 2007, p. 94). Ela mostra a Breton uma mão vermelha em um
cartaz e lhe diz: ―A mão de fogo, isso é com você, bem sabe, ela é você‖ (BRETON, 2007, p.
94). Nadja cita, muitas vezes, durante os encontros, essa imagem de uma mão de fogo e diz
que ela sempre está relacionada a Breton. Essa mão constitui um dos maiores elementos
temáticos, senão o maior, a que Nadja se refere repetidamente, quando é citada no livro.
Depois que Breton cessa suas relações com Nadja, ele se pergunta se será o fim de uma
perseguição ―desvairada [...]. Perseguição de que, não sei, mas perseguição [...]‖ (BRETON,
2007, p. 100). Embora não queira mais vê-la, Breton se diz ainda maravilhado pela forma de
Nadja se ―governar, fundamentada apenas na mais pura intuição e operando permanentemente
com o prodígio‖
120
. Breton cita desenhos de Nadja e fala sobre a mão de fogo que ela
reconheceu em um quadro de Chirico, chamado A angustiante viagem ou o enigma da
fatalidade. O Hamsá, o ―sinal‖ mais citado por Nadja em relação a Breton, estava prefigurado
no quadro. A busca que Breton realiza corresponde fielmente ao título dessa obra de Chirico.
Depois que Nadja enlouquece, Breton se diz desinteressado pelo livro que acaba de
preparar e pelo destino de ambos, livro e autor. O livro assume uma tonalidade melancólica.
Nesse estado, Breton narra o seguinte fato:
Flanando recentemente no cais [...], pouco antes do pôr-do-sol, um pintor [...] lutava
com habilidade e rapidez para terminar sua tela com a luz declinante. A mancha
correspondente à do sol descia devagar, junto com o sol. Em pouco tempo, nada
restava. De súbito o pintor se viu muito atrasado. Eliminou o vermelho de uma
parede, empalideceu um ou dois brilhos que permaneciam na água. Seu quadro, para
mim e para ele o mais inacabado do mundo, me pareceu muito triste e muito bonito.
(BRETON, 2007, p. 137, nota de rodapé)
No quadro inacabado Breton visualiza seu próprio livro. Na parte final, ele observa uma
notícia de jornal:
[...] Um jornal matutino será suficiente para me dar notícias de mim mesmo:
X... 26 de dezembro. O operador encarregado da estação de telégrafo sem fio
situada na Ilha da Areia captou um fragmento de mensagem que teria sido emitida
domingo à noite, às tantas horas pelo... A mensagem dizia, resumidamente: ‘Alguma
coisa não vai bem’, mas não indicava a posição do avião no momento, e, devido às
péssimas condições atmosféricas e a interferências que se produziam, o operador
não conseguiu compreender nenhuma outra frase, nem entrar de novo em
comunicação.
A mensagem foi transmitida num comprimento de onda de 625 metros; por outro
lado, considerando a força da recepção, o operador considera que o avião possa
estar localizado num raio de oitenta quilômetros em torno da Ilha da Areia.
(BRETON, 2007, p. 146)
120
Idem, ibidem, p. 107.
68
Breton recebe do cotidiano a notícia de uma viagem (que o título do quadro de Chirico
havia apontado). A metáfora do viajante que, em meio à turbulência, comunica-se sem
obter resposta e busca um local de chegada
121
, evoca a própria busca de Breton em meio à
beleza convulsiva do maravilhoso. Ao final do livro, o resultado de sua viagem é belo e
inacabado, tal como sua impressão de um quadro sobre o qual ele havia comentado
anteriormente.
Como mencionado, um dos objetivos de Breton ao escrever Nadja é narrar as
―petrificantes coincidências‖ que ele havia vivenciado. Contudo, somente anos mais tarde,
Breton tem condições de entender esses fenômenos e, consequentemente, de elaborar uma
nova noção de acaso. Ao teorizar sobre o tema, Breton percebe que os fenômenos que havia
experimentado ao lado de Nadja não eram apenas simples coincidências: ―As coincidências
relatadas em Nadja não são obra do acaso, mas do acaso objetivo [...](DANTAS, 2008, p.
86). De acordo com Pinto (2007, p. 27), o acaso objetivo não deve ser confundido com o
acaso em sua acepção e compreensão comuns, uma vez que Breton ―busca delimitar
exatamente a percepção surrealista do acaso, afastando-a das definições clássicas‖. O acaso
objetivo constitui ―um dos principais campos de investigação surrealista‖ (PINTO, 2007, p.
26) ―ainda na década de 20‖, porém, começa a ser teorizado ―apenas nos anos 30 pelo próprio
Breton‖ (PINTO, 2007, p. 26). O termo acaso objetivo refere-se a:
coincidências de fatos e de ―sinais‖ que, embora obviamente aleatórios,
independentes de qualquer vontade [consciente] ou de qualquer controle da
consciência, apresentam estruturalmente uma gica e uma coerência que incita a
percebê-las como uma mensagem, como correspondências inesperadas entre fatos
materiais e mentais. (PINTO, 2007, p. 27-28)
Assim, o signo ―é um sinal [...], uma injunção a agir, ou a apostar no tempo para
decifrar a significação desse signo‖ (CHÉNIEUX-GENDRON, 1992, p. 96). Não raro, o
tempo é necessário porque o acaso objetivo nem sempre pode ser interpretado de modo
imediato: certos fatos do acaso objetivo são claros, outros requerem ser decifrados e até
mesmo suscitados, o que resulta na atmosfera mágica presente em alguns textos surrealistas‖
(PINTO, 2007 p. 29)
O acaso no surrealismo acaso objetivo ocorre como resultado do poder do desejo.
Pinto (2007) e Dantas (2008) apontam para a conciliação que Breton buscava fazer entre o
121
Ou seja, a Ilha da Areia. Breton destaca o nome, provavelmente, para sugerir que até mesmo seu ponto de
chegada era incerto e suscetível aos ventos do acaso, tal como a areia. Em outras palavras, o ponto de chegada
vem a ser a própria incerteza.
69
materialismo de Engels e sua causalidade considerada objetiva e a noção de desejo
inconsciente de Freud. O acaso objetivo vem a ser ―a projeção do desejo da pessoa envolvida
num objeto, num símbolo ou num ato revelatório‖ (PINTO, 2007, p. 27), em que se reconhece
que o desejo freudiano se materializa, toma a forma de objeto. No processo do acaso objetivo
ocorrem ―correspondências inesperadas entre fatos materiais e mentais, como o encontro de
uma pessoa na qual se acaba de pensar, por exemplo‖
122
. O desejo do indivíduo torna-se
objetivado, realizado, ou seja, ―o objeto ou o ser encontrado objetiva o meu desejo [...]‖
(CHÉNIEUX-GENDRON, 1992, p. 93). Trata-se de um desejo subjetivo que se torna
objetivo, de algo ―simbólico [que] se projeta magicamente no real‖
123
, de onde surge o termo
―acaso objetivo‖.
Na configuração de um acaso objetivo, o desejo inconsciente assume papel essencial,
mesmo na própria ―filosofia do surrealismo‖ (DANTAS, 2008, p. 90). Ao contrário de Freud,
que, de acordo com Dantas (2008, p. 90), via de modo negativo a escuta dos desejos humanos,
que poderia levar ―à barbárie‖, o surrealismo entendia que a consideração dos desejos ―nos
levaria a admitir a existência de uma supra-realidade e à nossa libertação‖
124
.
O acaso objetivo é, portanto, a objetivação/concretização de um desejo inconsciente,
através de um encontro entre o desejo inconsciente e um elemento material que possibilita sua
realização. De acordo com Willer, (2002, p. 3) a manifestação do acaso objetivo se dá pelo
encontro de ―duas séries causais diferentes, uma delas externa, a outra interna, uma natural, a
outra humana, provocando acontecimentos sob o signo da espontaneidade, da
indeterminação, do imprevisível ou até mesmo do inverossímil”
125
. Chénieux-Gendron (1992,
p. 92) fala de uma ―coincidência (excepcional) entre a necessidade natural e a ‗necessidade
humana‘‖. Ocorre acaso objetivo, portanto, quando o que é mental coincide com o que é
material. Assim, o inconsciente (desejo inconsciente) e a materialização possibilidade de
realização são essenciais à noção de acaso objetivo.
O acaso objetivo é formado de dois elementos que Chénieux-Gendron (1992, p. 95)
denomina ―conjunto signo/fato‖. O signo corresponde a um sinal, inicialmente, ―sem
significação, cronologicamente primeiro‖
126
. A esse signo segue-se um ―fato considerado
‗casual‘ que mantém relação privilegiada com o signo anterior‖
127
. Este fato, em seguida, ―‗dá
sentido‘ ao signo, corresponde a certas características evocadas pelas palavras ou pelos signos
122
Idem, ibidem, p. 27.
123
Idem, ibidem, p. 27.
124
Idem, ibidem, p. 90.
125
Os itálicos são do próprio autor.
126
Idem, ibidem, p. 95.
127
Idem, ibidem, p. 95.
70
picturais, no seu significado como no seu significante‖
128
. É assim que o acaso objetivo
―realiza de modo [...] — trágico ou maravilhoso aquilo que o signo (pictural ou de
linguagem) havia precedentemente indicado‖
129
. Em 1931, Victor Brauner pinta o quadro
Autoportrait à l’oeil énucléé
130
. Sete anos mais tarde, o pintor tenta apartar uma briga entre
Oscar Dominguez e Esteban Francès, quando ―o estilhaço de uma garrafa fura o olho direito
do pintor, reproduzindo com exatidão fotográfica o seu auto-retrato. Por precaução, Brauner
nunca mais pintou um quadro seu faltando pedaços do corpo‖ (PINTO, 2007, p. 26). O caso
de Brauner corresponde a uma objetivação trágica de algo previamente sinalizado na imagem
pictórica. No caso dos acasos objetivos, momentos do maravilhoso, o desejo pode assumir
tanto a forma do maravilhoso como do trágico. É assim que, ―[...] sendo o desejo ambivalente,
o acaso objetivo pode revelar tanto o maravilhoso quanto o trágico‖ (DANTAS, 2008, p. 88),
o ―objeto do meu temor‖ (CHÉNIEUX-GENDRON, 1992, p. 94). Contudo, a possibilidade
do trágico não afasta Breton do fascínio pelo acaso objetivo, ―como se fosse preciso correr o
risco do trágico se se quer assumir o próprio desejo‖ (CHÉNIEUX-GENDRON, 1992, p. 94).
O acaso objetivo está entre as principais questões do surrealismo, pois
faz parte da crítica do surrealismo à estreita noção de realidade, aproximando-o do
mesmo movimento que, nas ciências, abalou os fundamentos do determinismo e, na
filosofia, denunciou a abstração dos sistemas lógicos. (DANTAS, 2008, p. 88)
Ele representa a importância dada pelos surrealistas ao que escapa ao determinismo e à
concepção de que tudo é passível de possuir encadeamento lógico ou de que a razão e a
tecnologia podem controlar o curso dos acontecimentos no mundo. Nem mesmo a noção de
ciência como saber objetivo é aceita no surrealismo. A ideia de que a ―subjetividade
(desejante) da pessoa envolvida se [projeta] num objeto(CHÉNIEUX-GENDRON, 1992, p.
92-93) deixa transparecer a visão bretoniana de objetivo como projeção do inconsciente. Com
o acaso objetivo, Breton faz uma crítica à noção de objetividade da ciência. Tudo parte do
campo da subjetividade, fazendo da objetividade uma projeção da subjetividade. Uma vez que
a ciência é de certo modo desacreditada como saber objetivo, ―os surrealistas buscam, através
do acaso objetivo, desvendar os mistérios do cotidiano‖ (PINTO, 2007, p. 30).
De acordo com Pinto (2007, p. 30), os surrealistas provocavam e estimulavam a
ocorrência do acaso objetivo com técnicas como a espera (l’attente), caso de Nadja,
128
Idem, ibidem, p. 95.
129
Idem, ibidem, p. 95.
130
Auto-retrato de olho enucleado.
71
uma ―postura de crença na iminência do excepcional e de vigilância/atenção aos sinais do
acaso objetivo‖. Eles acreditavam que o automatismo
131
e o sonho também favoreciam os
acasos pela sua ultrapassagem do imaginário e porque ―fazem com que o individuo
reconheça, na vida cotidiana e em si mesmo, vestígios de uma existência muito diferente e
que se encontra misteriosamente conectada com a vida real‖ (PINTO, 2007, p. 31).
Entretanto, a mais famosa dessas técnicas é a errância ou deambulação, que consistia em
passeios em grupo ou sozinho sem uma rota ou ponto de chegada p-definidos. Era
comum sortear-se uma cidade a esmo e se deslocar até ela conversando o tempo
todo, permitindo apenas os desvios voluntários para poder comer ou dormir. As
deambulações também eram feitas em um simples passeio pela cidade, caso de
Nadja
132
.
A questão da busca pelo acaso objetivo leva, de imediato, à discussão sobre o palco
dessa busca, ou seja, o espaço urbano.
3.5 ERRÂNCIA E ESPAÇO GÓTICO
Oriundo do palácio cretense de Minos, lugar em que esteve encerrado o Minotauro, e,
depois, esculpido no solo de catedrais góticas
133
, como a de Amiens, o labirinto foi aplicado
como metáfora dos espaços góticos, verdadeiros emaranhados de aposentos misteriosos que
traduzem, ao mesmo tempo, a interioridade de um indivíduo.
Na trilogia raciocinante e em Nadja, é a cidade que vai assumir o estatuto labiríntico,
dando continuidade à imagem gótica de espaços enigmáticos e entrecruzados, que são palco
de aventuras em busca da iluminação.
Como se sabe, o conto raciocinante surge a partir de circunstâncias que propiciam a sua
criação, tais como o aparecimento da ―cidade industrial‖ a qual, com o ―prodigioso
131
A técnica da escrita automática consiste em permitir, por meio da fala, do desenho ou da escrita, a
manifestação do desejo inconsciente de modo livre, sem qualquer interferência da razão e sem que seja aplicado
qualquer retoque ou revisão ao trabalho resultante. A primeira obra surrealista a empregar esta técnica foi o livro
Les Champs Magnétiques, escrita por Breton e Philippe Soupault em 1919, que se caracteriza por textos curtos
em prosa. Por permitir a manifestação do inconsciente, percebeu-se que a escrita automática operava um
enfraquecimento do autor, ou mesmo sua anulação. O automatismo, desse modo, dava aos surrealistas a chance
de boicotar a ideia de autor, num ataque à arte como instituição. No entanto, a adesão ao automatismo não deve
ser vista como apologia da irracionalidade. Para Willer (2008a, p. 288), ―quem o surrealismo exclusivamente
como apologia do delírio, criticando-o pelo irracionalismo, comete um equívoco‖. Os surrealistas visavam a um
desregramento racional, ―controlado‖, de todos os sentidos, como se pode constatar no primeiro Manifesto: ―Se
as profundezas de nossa mente albergam estranhas forças, capazes de aumentar as forças da superfície ou de
lutar vitoriosamente contra elas, é do maior interesse capturá-las: capturá-las para em seguida, se for o caso,
submetê-las ao controle da razão‖ (BRETON, 2002, p. 23-24).
132
Idem, ibidem, p. 31.
133
A peregrinação pelos labirintos, nas catedrais góticas, correspondia à peregrinação a Terra Santa. Os pontos
centrais dos labirintos representavam os locais sagrados.
72
desenvolvimento do comércio e da indústria terá por resultado fazer as fortunas, elevar um,
abaixar outro, fornecer bandos de mendigos e pessoas sem escrúpulos‖ (BOILEAU;
NARCEJAC, 1991, p. 14). É neste tipo de cidade que, em Poe, será descrita a vida errante de
Dupin em busca do contato com o extraordinário. A cidade é o labirinto em que estão
ambientadas tanto as investigações dos detetives da literatura policial como as deambulações
dos surrealistas na vida real. A cidade-labirinto, com suas várias opções de rotas, também
oferece múltiplas possibilidades de contato com o imprevisto. É nas grandes cidades que ―o
índice de imprevisibilidade cotidiana acentua-se em um cenário onde as possibilidades se
ampliam‖ (PINTO, 2007, p. 31).
Lançar-se a perambular pela cidade é lançar-se à aventura do desconhecido, é propor a
si mesmo uma longa peregrinação por um espaço urbano que, por vezes, apresenta-se como
um labirinto, cuja essência, projetada como um ―emaranhamento de veredas‖, visa a ―retardar
[...] a chegada do viajante ao centro que deseja atingir‖ (BRION apud CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2002, p. 530). O cenário labiríntico é o palco da deambulação que, em
Breton, faz com que ―o acaso objetivo [seja] uma possibilidade sempre presente para que
situações extraordinárias aconteçam‖ (COSTA apud PINTO, 2007, p. 31). A busca labiríntica
surrealista, desse modo, está muito próxima ―da busca do detetive da literatura policial‖
(ABREU apud PINTO, 2007, p. 32), que consiste em um ―esforço de desvendamento, de
iluminação e revelação, a partir de acontecimentos fortuitos no espaço urbano‖
134
.
A cidade labiríntica é o palco que estimula as aventuras do acaso, em Poe, e do acaso
objetivo, em Breton. A cidade é, para os dois, o palco do desconhecido:
A principal característica da cidade moderna é seu mistério, que se manifesta em
todas as esferas da vida urbana e até mesmo em seus acontecimentos mais banais e
insignificantes. Do esclarecimento desse mistério pelo detetive da narrativa policial
emerge uma ordem urbana perdida, da mesma forma que da busca surrealista se
esperava que emergisse a explicação das estruturas mais íntimas da psique
humana
135
.
O conto policial recoloca ―um pouco de ordem em nossos espíritos‖ (BOILEAU;
NARCEJAC, 1991, p. 27), pois atinge o seu objetivo de eliminar questões enigmáticas. É
nesse sentido que Nadja, a obra de Breton, apresenta-se como o oposto do conto raciocinante,
pois as pistas evidenciadas pelo autor não levam a nenhuma possibilidade de conclusão, pelo
menos, imediatamente.
134
Idem, ibidem, p. 32.
135
Idem, ibidem, p. 32.
73
Nas duas obras o cenário é a cidade, a urbe, onde a busca por respostas não se efetiva de
maneira ―racional‖, iluminada pela luz do dia; tampouco são visitados lugares privilegiados e
as visitas não apresentam finalidades claras, predeterminadas ou expressas. A ―investigação‖
é realizada quando a racionalidade urbana encontra-se ―enfraquecida‖, quando a cidade revela
o seu lado obscuro. No conto raciocinante poeano, a racionalidade do espaço urbano é
apagada pela exclusividade conferida a espaços e ambientes ―abandonados, ermos, selvagens
e mal iluminados‖ (VERTUAN, 2008, p. 54) e que revelam
uma predileção pela ótica noturna da modernidade. É como se Edgar Poe apagasse
as luzes da cidade e trouxesse aos nossos olhos as ―trevas‖, em plena era da ―ordem
esclarecida‖, mostrando o quanto o ―moderno‖ esconde o ―primitivo‖. [...] O espaço
detetivesco de Poe revela [...], na modernidade, [...] um ―outro‖ mundo, um ―mundo
às avessas‖ [...]. (VERTUAN, 2008, p. 61)
A cidade assume o espaço do não esclarecido e alberga o mistério, tal como a
ambientação gótica, que, outrora, emanava a sensação de estar à mercê de um poder
superior, diante do qual o homem se sente vulnerável e insignificante. Em suma, um espaço
do oculto e do não-explicável‖ (FONSECA, 2004, p. 29). A investigação na narrativa
raciocinante ocorre em locais marginais (ruas miseráveis, fundos de casas) e em
circunstâncias ilícitas (horas crepusculares e durante a madrugada).
Em Nadja, constata-se que os espaços que ambientam a deambulação são tão
marginais quanto os que ambientam os contos raciocinantes
136
parques com muita
vegetação, praças com monumentos estranhos, mercado de pulgas, museus de antiguidades.
As circunstâncias também são bastante incomuns, pois os encontros entre Breton e Nadja são
sempre marcados para o fim da tarde e se estendem até a madrugada, como no episódio em
que o casal chega ao bosque de Le Vésinet no momento e que as luzes estavam apagadas e
as portas, fechadas: ―a perambulação pela floresta não se faz tão convidativa‖ (BRETON,
1999, p. 103).
É uma aventura gótica num espaço gótico, de certa forma, que são confirmados em
Nadja. O espaço marginal e retirado, típico do gótico, é um espaço do maravilhoso, um
espaço que mexe com a sensibilidade humana é o caso, no passado, das ―ruínas
românticas‖ (BRETON, 2001, p. 30) no qual o ―medo, a atração do insólito, os acasos,
136
Durante a arguição desse trabalho, o professor Dr. Cláudio Jorge Willer observou que nem todos os lugares
frequentados por Breton e Nadja podem ser considerados como marginais. Alguns locais, pelo contrário, são
turísticos ou centrais. Nesse sentido, é possível apenas argumentar com base nas circunstâncias estas sim,
marginais em que grande número desses passeios foram realizados: ao pôr-do-sol e durante a madrugada.
74
o gosto pelo luxo‖ (BRETON, 2001, p. 30). De fato, no primeiro Manifesto, são algumas
dessas características que vemos Breton imprimir em seu castelo imaginário:
Por hoje estou pensando num castelo cuja metade não está, necessariamente, em
ruínas; este castelo me pertence, visualizo-o num recanto agreste, não muito longe
de Paris. Suas dependências são inumeráveis e, no que respeita ao interior, ele foi
terrivelmente restaurado, de sorte que nada ficasse a desejar em matéria de conforto.
(BRETON, 2001, p. 31)
Em Nadja, Breton admite o caráter gótico da aventura surrealista:
Escadas secretas, molduras cujos quadros deslizam rapidamente e desaparecem, para
dar lugar a um arcanjo de espada em punho, ou para dar passagem aos que devem
sempre avançar, botões que apertamos muito indiretamente e provocam o
deslocamento em altura, em comprimento, de toda uma sala, e a mais rápida
mudança de cenário: é permitido conceber a grande aventura do espírito como uma
viagem desse gênero ao paraíso das ciladas. (BRETON, 2007, p. 103)
Esse ―gênero‖ é o noir. A deambulação é, seguramente, uma viagem gótica. E o
espaço dessa viagem é o espaço do imprevisto. A cidade, com sua dinâmica e com seus
espaços em constante transformação, assume as características do castelo gótico, também
dinâmico, pronto a revelar passagens secretas e novos ambientes a partir do acionamento de
uma alavanca ou botão. O espaço urbano, dessa forma, consiste em uma espécie de labirinto
gótico dos tempos modernos e, portanto, espelho da interioridade humana.
Contudo, há, ainda, a questão dos espaços interiores, predominantes em Poe, que
guardam similaridades com o castelo noir. Certa vez, instigado pela fixação do psiquismo
humano pelo castelo gótico e pelo que existe dentro dele, Breton perguntou-se sobre a sua
versão moderna, ou seja, ―qual é para nossa época o equivalente de tal lugar. (Tudo leva a crer
que não se trata de uma usina.)‖ (BRETON apud MORAES, 2006, p. 110). Edgar Poe
havia respondido a essa questão. Ele transformou os ―castelos mal iluminados, localidades
distantes e hostis‖ (VERTUAN, 2008, p. 59) em ―casas abandonadas e afastadas, ruas
desertas e noturnas das cidades‖
137
. O caráter defensivo do castelo é reproduzido na
predominância de imóveis retirados e trancafiados de modo permanente, como o velho
casarão no qual Dupin e o narrador se instalam e a pensão desativada de Madame
L‘Espanaye, ambos de Os Crimes da Rua Morgue.
Breton chegou a definir o castelo gótico como ―observatório do céu interior‖
(BRETON apud MORAES, 2006, p. 110). De fato, Wilbur (1967, p. 103) acredita que as
situações e as cenas dos contos poeanos ―são sempre representações concretas de estados da
137
Idem, ibidem, p. 59.
75
mente‖. Assim, a mobília cara e diversa dos aposentos poeanos mostram que ―seus heróis são
ricamente imaginativos‖
138
. A preferência dos personagens pela baixa iluminação, da mesma
forma, representa os estados da ―mente nos quais sonho e realidade se misturam‖
139
. Essa
―imagem mental‖ (WILBUR, 1967, p. 114) traduzida por Poe por meio de seus espaços
fechados faz dele, em primeiro lugar, um ―adaptador‖ dos antigos castelos; um autor que
explorou a expressividade mórbida das casas urbanas e trouxe essa ―sombra‖ para o cotidiano
moderno
140
; em segundo lugar, um ancestral‖ na busca do que mais tarde seria conhecido
como supra-realidade.
3.6 O MARAVILHOSO
141
Ao longo da história da literatura, os mitos tradicionais foram, por muito tempo, uma
referência no desenvolvimento de narrativas ficcionais. De acordo com Marinho (2006),
existiu no romantismo a preocupação com uma nova mitologia capaz de contestar a noção
clássica de subordinação da natureza à civilização. Para tanto, os românticos usaram
elementos da mitologia corrente e os misturaram com deuses olímpicos e personagens da
mitologia cristã. Inspirado no folclore germânico, o Fausto de Goethe é um exemplo que
confirma ―o interesse dos românticos por temas folclórico-mitológicos [...]‖ (MARINHO,
2006, p. 34).
Os mitos são ―imbuídos do espírito do maravilhoso‖
142
. O mito, na literatura, renasceu
no século XX, pelas obras de escritores como Loyce, Kafka e Gabriel García Márquez, que
138
Idem, ibidem, p. 114.
139
Idem, ibidem, p. 115. This kind of lighting [...] belongs to the portrayal of those half-states of mind in wich
dream and reality are blended.
140
Poe segue o rastro de Hoffmann que, em A Senhorita de Scudéry, trouxe o sobrenatural para o cotidiano. Poe,
no entanto, procurou mostrar, no dia-a-dia pretensamente ―iluminado e racional do espaço urbano
industrializado, uma sombra que insiste em não se dissipar e que não é parte de outro mundo fantástico, mas que
está bem próxima, presente no cotidiano. Esta sombra vem a ser o crime e o criminoso.
141
O termo ―maravilhoso‖ foi usado no surrealismo com significado diferente daquele que ficou conhecido
através das teorias de Todorov em relação à questão de gênero literário. O maravilhoso de Todorov corresponde
ao gótico sobrenatural de Montague Summers (1880-1948; e retomado por Noël Carrol), pois as duas expressões
maravilhoso e gótico sobrenatural se referem à narrativa em que a manifestação do sobrenatural é aceita
como a ação e a causa de fenômenos misteriosos no mundo material. Na teoria de Todorov, os gêneros próximos
do maravilhoso são o fantástico narrativa em que ocorre a hesitação irresoluta entre a possibilidade de
explicação natural ou sobrenatural de fatos misteriosos e o estranho, referente à narrativa em que a ciência
explica os fatos extraordinários. As noções de Sommers são anteriores às de Todorov e aparecem, na teoria
deste, apenas com nomenclatura diferente. O ―[...] fantástico nada mais é do que uma hesitação prolongada entre
uma explicação natural e uma outra, sobrenatural, que concerne aos mesmos eventos‖ (TODOROV, 1980, p.
157) corresponde ao gótico equívoco de Sommers. O ―estranho‖ de Todorov corresponde ao gótico
explicado.
142
Idem, ibidem, p. 33.
76
buscaram realizar uma contraposição ao ―realismo tradicional do século XIX‖
143
. Essa
ressurgência do mitologismo marca
uma tomada de consciência da crise da cultura burguesa e da civilização frustrada
com o racionalismo positivista e com o evolucionismo [...]. No rastro dessa
retomada aos paradigmas mitológicos, o maravilhoso, que a partir do iluminismo, no
século XVIII, havia sido relegado ao esquecimento, passa a ser recuperado no
campo artístico e cultural
144
.
As razões que motivaram a luta contra o racionalismo estão no fato de ter sido ele o
racionalismo burguês gerado por um processo de ―desencantamento‖ do mundo. O termo
―desencanto‖ faz referência
à modernidade, àquilo que tanto Hegel como Max Weber designaram como
racionalismo ocidental. A modernidade ou o racionalismo ocidental provém de um
processo de desencantamento do mundo que tem início com o Renascimento e com
a Reforma, e consiste na desintegração das concepções religiosas e na substituição
da explicação mitológica pela científica. (DANTAS, 2002, p. 92, nota de rodapé)
No início do século XX, a arte surrealista reaviva o maravilhoso e amplia seu sentido
com André Breton, que, ao lado dos demais surrealistas, faz uma crítica à racionalidade
burguesa em favor do ‗maravilhoso‘, do fantástico e dos sonhos [...]‖ (PINTO, 2007, p. 10) e
apóia as ―forças atávicas, os instintos e a irracionalidade‖
145
. Para Breton, o maravilhoso
corresponde à manifestação do desejo ―de nos (se) mostrar que aquilo que nos parece
fantástico é apenas aquele conjunto de sinais que chegam das zonas obscuras e que falam, não
de um além transcendente, mas imanente‖ (DUROZOI; LECHERBONNER apud PINTO,
2007, p. 29). Ou seja, o maravilhoso tem raiz no mundo real e os sinais que dele falam do
maravilhoso surgem de uma fonte, igualmente, real: o inconsciente. A vida, e não um outro
mundo o das lendas e contos de fadas é que contém o maravilhoso: ―o onírico passa a
ser elemento constitutivo da arte não como uma fantasia alegórica, mas como uma expressão
direta do inconsciente, permitindo ao artista explorar nas artes o imaginário e os impulsos
ocultos da mente‖ (PINTO, 2007, p. 8-9). Assim, baseado nessa exploração é que se o
retorno ao mitológico e o reencantamento. Tal como o sonho, que ressignifica seu conteúdo,
143
Idem, ibidem, p. 33.
144
Idem, ibidem, p. 34.
145
Idem, ibidem, p. 35.
77
no surrealismo, aquilo que encanta é exatamente a ressignificação que provoca
ruídos, atraindo o olhar do espectador. A sensação de estranheza domina a estética
surreal, colocando-nos diante do inesperado e do enigmático. Desse modo, temos
mais um rompimento com os hábitos mentais, saindo da banalidade cotidiana e
apresentando assim uma nova visão de mundo. (MARINHO, 2006, p. 36)
Em Nadja, as anedotas repetem a mesma estrutura da criação da imagem surrealista,
que, por sua vez, segue um processo muito similar ao da formação das imagens do sonho. A
aproximação de duas realidades distintas possibilita a criação de um novo sentido, capaz de
gerar o estranho
146
e o mistério, que não é, imediatamente, desvendado. O inesperado, próprio
da imagem surrealista, provoca o maravilhoso, ou seja, aquilo que está fora da compreensão
racional e que parece inverossímil. O maravilhoso é ―não-sobrenatural‖ e ―não
transcendental‖, pois existe como parte da vida e do cotidiano. O acaso objetivo está entre
uma das manifestações do maravilhoso. Ele, igualmente, está relacionado ao encontro de duas
realidades diferentes, uma mental, outra material. Essa união, por sua vez, está estreitamente
ligada ao poder do desejo inconsciente. Uma vez unidas essas realidades dispares, tem-se o
acaso objetivo, que gera o maravilhoso.
O maravilhoso vem a ser uma revolta contra a lógica e a racionalidade que limitam a
visão do real, ou seja, ―uma espécie de rebeldia do espírito humano. Ele traduz a ousadia e a
irreverência, rompendo com os limites do possível‖ (MARINHO, 2006, p. 33). A
manifestação do maravilhoso constitui uma ―energia obscura em trabalho no coração do real,
capaz de subvertê-lo, de operar um movimento‖ (BONNET apud Dantas, 2008, p. 82).
Segundo Dantas (2008, p. 82), o maravilhoso pode ―abalar a vida‖. Ele causa um transtorno,
que culmina em uma energia de desrealização capaz de libertar o homem das garras da
alienação, alargando sua concepção de real. Segundo Dantas (2008, p. 78), Pierre Mabille
acredita que, para os surrealistas, ―a finalidade real da viagem maravilhosa é [...] a exploração
mais total da realidade universal‖ (MABILLE apud DANTAS, 2008, p. 78). Em outras
palavras, a função da busca maravilhosa é promover a exploração da supra-relidade.
3.7 MICHEL FOUCAULT E SUA VISÃO CRÍTICA DO ROMANCE POLICIAL
Em Os Anormais, Foucault (2001) faz importantes reflexões sobre o poder policial
exercido por meio da realização de exames médico-legais, clínicos e biográficos em
delinquentes sob julgamento. Ele observa o caráter anti-científico desses exames que, através
146
O estranho, ou estranhamento, culminou no choque, a estratégia que os dadaístas encontraram para afrontar a
instituição arte. Os dadaístas procuravam chocar a burguesia.
78
da avaliação psicológica, social e médica, julgam um criminoso mais pelo ―contexto de
existência, de vida e de disciplina do indivíduo, do que [pelo] próprio ato que ele cometeu‖
(FOUCAULT, 2001, p. 50). Para o pensador, o exame médico legal fere cientificamente tanto
a psicologia como a jurisprudência, ao condenar não o crime que o indivíduo cometeu, mas o
―nível de perversidade e o nível de perigo‖
147
desse indivíduo. Esse procedimento não deriva
do direito ou da medicina, nem é voltado a delinquentes ou doentes, ele é dirigido a uma nova
categoria com normas próprias, a qual Foucault denomina de ―anormais‖
148
. Existe também
um novo tipo de poder, encoberto pelas noções médicas de doença e pelas noções jurídicas de
delinquência, que assume um caráter de ciência e de verdade; não se trata do poder médico ou
do poder judiciário, mas, segundo Foucault (2001), do poder de normalização, cujo intento é
controlar o anormal e não o crime ou a doença.
Quando se refere à literatura em Vigiar e Punir (1975), Foucault intenta mostrar os
efeitos do romance policial no que tange à recepção tanto do crime quanto do poder punitivo.
Para Foucault, o papel da literatura, bem definido desde o século XIX, tem sido o de fazer
o elogio da estética do crime, do assassinato como uma das belas artes [...],
instrumento, como o jornal, o cinema e a televisão, de produzir o medo pelos
grandes criminosos e tornar natural a presença da polícia no meio da população.
(MACHADO, 2000, p. 126)
Isso faz do romance policial um instrumento educativo, cujo papel é reafirmar a
existência do bem e do mal, personificados nas figuras do policial e do criminoso. Ao
perpetuar a dicotomia entre bem e mal, o romance policial gera a aversão pelo criminoso e, ao
mesmo tempo, inspira simpatia pelos policiais, instrumentos de aplicação do poder.
De fato, em Vigiar e Punir (2007), constata-se que o romance policial é entendido por
Foucault como um instrumento a serviço do poder. Segundo o autor, o poder realizou uma
separação, dentre as ilegalidades
149
, de uma ilegalidade específica, a qual Foucault chama de
―delinquência‖. Segundo ele, essa forma mais exposta de ilegalidade acaba encobrindo o
funcionamento de outras formas ilegais. Uma vez que somente a ―delinquência‖ é punida, não
ocorrem danos políticos ou econômicos relevantes e se permite a continuidade das demais
ilegalidades. Em torno da ―delinquência‖, a faceta mais ―popular‖ das ilegalidades, cria-se
uma aura que a torna representativa de toda ilegalidade existente. Por trás disso, está a
147
Idem, ibidem, p. 50.
148
Indivíduos ―anormais‖ são indivíduos com elevado potencial para a perversidade e periculosidade, sendo esse
potencial o elemento posto em julgamento e não determinado crime cometido ou enfermidade apresentada.
149
O conceito de ilegalidade é entendido por Foucault como toda prática ilegal, seja de ordem política ou não,
cometida por todos os indivíduos, independente de suas origens sociais.
79
intenção de encobrir as demais. Desse modo, Foucault (2007) demonstra que não existe o
suposto ―fracasso‖ da prisão em punir ou recuperar delinquentes, mas sim, a intenção de se
criar uma ilegalidade economicamente e politicamente inofensiva e controlável (através do
sistema delinquente/prisão), capaz de perpetuar as outras ilegalidades e de ajudar o poder,
com base em interesses políticos.
Foucault (2007) afirma que o uso político da ―delinquência‖ pelo poder pode ser
constatado na figura de Eugène François Vidocq (1775-1857), um criminoso que, desde os 14
anos, envolveu-se em roubos, casos amorosos estéreis, falsificação de documentos, relações
ilícitas com suas alunas, fugas constantes de rivais e de prisões, além de ―vigarices de que o
mais das vezes foi ele a vítima, rixas e duelos; alistamentos e deserções em série, encontros
com o meio da prostituição, do jogo, dos batedores de carteira, o logo do grande banditismo‖
(FOUCAULT, 2007, p. 235).
O que interessa para Foucault, ao citar Vidocq, é o modo como sua história marca o
aparecimento da relação que o poder estabelece com o crime. Vidocq passa a ter relações com
o poder quando decide livrar-se dos problemas ligados à criminalidade, pois as chantagens de
uma antiga esposa e a coação de amigos para receptar mercadorias roubadas retardam seus
planos. Para livrar-se das pressões, Vidocq oferece-se à polícia de Paris como espião em troca
do cumprimento de sua pena na prisão e não nos campos de trabalhos forçados, onde estavam
seus inimigos. Por um ano e oito meses, Vidocq repassa à polícia informações ouvidas de
conversas entre prisioneiros. Tempos depois, passa a trabalhar como informante nas ruas e
sugere a criação de um grupo de segurança, a Brigade de Sûreté, mais tarde a Sûreté
Nationale. A partir de 1812, comanda doze detetives, todos ex-criminosos. Somente no ano de
1817, captura 811 criminosos, e em 1820, um ano após conseguir o perdão de Louis XVIII, já
havia conseguido diminuir, consideravelmente, a incidência de crimes em Paris.
Foucault (2007, p. 235) afirma que a ―importância quase mítica [de Vidocq] aos
próprios olhos de seus contemporâneos‖ não decorre de seu passado ou de seu sucesso
profissional, mas
antes [pelo] fato de que nele a delinquência assumiu verdadeiramente seu estatuto
ambíguo de objeto e instrumento para um aparelho de polícia que trabalha contra ela
e com ela. Vidocq marca o momento em que a delinquência, destacada das outras
ilegalidades, é investida pelo poder, e voltada para o outro lado. É então que se
opera a acoplagem direta e institucional da polícia e da delinquência. Momento
inquietante em que a criminalidade se torna uma das engrenagens do poder. Uma
figura constante nas épocas anteriores, a do rei monstruoso, fonte de toda justiça e
entretanto maculado de crimes; aparece outro medo, o de um acordo escondido e
torpe entre os que fazem valer a lei e os que a violam. (FOUCAULT, 2007, p. 235)
80
A preocupação de Foucault (2007) está em como o crime é assimilado pelo poder como
ferramenta para a sua perpetuação. Quando volta seu olhar ao romance policial, Foucault
(2007) o como um instrumento educativo em que se opera a continuidade dessa
ambiguidade poder-crime. Esta visão de Foucault não é descabida, pois o conto raciocinante
recebeu influência direta de um artigo, lido por Poe, sobre a vida de Vidocq, que foi publicado
em 1838, pela revista Burton’s Magazine
150
. Em Os Crimes da Rua Morgue, Dupin até
mesmo cita Vidocq e comenta sobre seus equívocos profissionais. Mas, com relação ao
estabelecimento de acordos bilaterais e vantajosos com o poder policial, Dupin segue à risca
seu inspirador. Nos três contos, sempre uma motivação material por trás das investigações
de Dupin, e, em especial nos dois contos finais, elas não ocorrem sem o estabelecimento de
um acordo bilateral vantajoso e pessoal entre Dupin e o delegado. Não é difícil perceber,
assim, o caráter ―vidocqueano‖ em que o personagem Dupin foi moldado.
O acordo entre polícia e delinquência que Vidocq representa e que o conto de
raciocínio de Poe reproduz quase fielmente é considerado por Foucault como uma ―tática‖.
Mas não a única. Foucault acredita que o poder também procura passar a ideia de
proximidade do bandido e seu caráter amedrontador. Usando o jornal como instrumento, o
poder visa a conferir aos
delinquentes contornos bem determinados: apresentá-los como bem próximos,
presentes em toda parte e em toda parte temíveis. É a função do noticiário policial
que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais. (FOUCAULT,
2007, p. 237)
As notícias que o jornal, cotidianamente, oferece visam a enfatizar o quão próximo pode
estar o criminoso e o perigo, assim como, a criar simpatia pela vigilância e pelo controle da
polícia através de atos heróicos dos policiais em benefício da sociedade.
Do mesmo modo que o jornal, Foucault (2007) pondera que o romance policial também
serve ao poder. Mas, ao contrário desse meio de comunicação, o ―romance de crime‖
(FOUCAULT, 2007, p. 237) atua no sentido inverso, com a ―função principalmente [de]
mostrar que o delinquente pertence a um mundo inteiramente diverso e sem relação com a
existência cotidiana e familiar‖
151
. O delinquente, portanto, é entendido como produto de
150
Tratam-se das fontes para Os Crimes da Rua Morgue. Segundo Rogers (1965), além de Vidocq, outra fonte é
a obra Count Robert of Paris, de Sir Walter Scott, da qual Poe retirou a ideia da voz de um orangotango sendo
confundida com a voz de um ser humano falando em língua desconhecida. Outra fonte, ainda, está em uma
notícia do antigo jornal inglês Shrewsbury Chronicle, de julho de 1834 e que informava sobre roubos, a grandes
alturas, cometidos por um macaco treinado.
151
Idem, ibidem, p. 237.
81
ficção. Para Foucault (2007, p. 128), a ficcionalização do real feita pelo romance policial se
―por sua origem, pelo que [o] move, pelo meio onde se mostra, cotidian[o] e exótic[o]‖. O
motivo da ênfase de Foucault na ideia de que o romance policial afasta crime e criminoso do
mundo real está, seguramente, no exagero da sucessão de acasos, desconsiderando a
coincidência em série como parte da realidade e tomando-a como mero recurso literário para
prender a atenção do leitor. Vale observar que o problema encontrado por Foucault reside no
exagero do acaso, no exotismo de um acaso tornado grotesco. Isso não significa que Foucault,
de fato, desconsidere a coincidência como elemento presente na vida cotidiana. Em Vigiar e
Punir (2007), ele ressalta que a literatura transforma o cotidiano em discurso e que esse
cotidiano pode, sim, abarcar acasos, mas não da forma exagerada como o romance policial os
apresenta.
Assim, Foucault contribui para uma questão importante: o acaso, tal como está na
trilogia raciocinante, é uma elemento ficcional, pois o fato de ocorrer no cotidiano e de modo
exagerado prejudica a verossimilhança. O que ocorre com Foucault e o romance policial é,
assim, igual ao que ocorre no caso de Nadja. O que faz com que se duvide da veracidade dos
fatos narrados por Breton é, também, o exagero da sucessão de acasos. Mas a proposta de
Nadja, que nada tem de ficcional e inverossímil, vem para confirmar que é plausível, sim,
considerar que, na questão do acaso, o conto raciocinante tenha se proposto a mostrar o
quanto o cotidiano urbano e ordenado pode ter de grotesco, de disforme.
Como esta pesquisa procurou mostrar, o livro Nadja difere-se de obras literárias
ficcionais, como é o caso da trilogia raciocinante de Poe. Contudo, não é a condição de ficção
que retira o valor da relação que a trilogia raciocinante de Poe possa ter com a vida de seu
autor e, portanto, com a não-ficção. O que se quer afirmar é que a trilogia raciocinante de Poe
é regida pelo acaso do início ao fim, da mesma forma que a obra Nadja ―é inteiramente regida
pelo acaso objetivo‖ (WILLER, 2008b, p. 330). Isso implica, portanto, em considerar o acaso
na trilogia raciocinante como um elemento fiel à realidade cotidiana a partir da biografia de
Poe
152
e, mais ainda, como expressão de sua visão de mundo. Nesse sentido, Willer (2008a, p.
316) procura mostrar que ―ao contrário do que pretendem defensores do recorte estrito do
texto, literatura também é vida [...]. Biografia é um dado contextual; por isso, está dentro da
obra‖. É assim que o que está na obra pode servir a outros intuitos expressivos do próprio
autor, que foram criados propositalmente a partir de referência à sua própria vida. Segundo
152
Cabe, aqui, lembrar que Poe, em determinado momento de sua carreira, trabalhou como escritor em vários
jornais e que, portanto, teve contato com uma mídia diretamente relacionada aos fatos do cotidiano. Não é
descabido conceber que a questão das coincidências do cotidiano não tenha, em algum momento, estimulado um
breve debruçar-se sobre o tema.
82
Willer (2008a, p. 318), Breton faz isso quando atribui ―valor poético a dados biográficos‖ ao
afirmar, no primeiro Manifesto, que ―Poe é surrealista na aventura‖ (BRETON, 2001, p. 41).
Assim, segundo Willer (2008a), a atenção que se dá à
relação entre biografia e obra equivale a respeitar intenções e propósitos do autor
[...]. Deixar de considerar essa coerência entre vida e obra, patente no modo como
exteriorizam suas ideias, equivale a amputar-lhes a dimensão de rebelião, assim
despolitizando-os ao confinar sua leitura a uma crítica exclusivamente do texto.
(WILLER, 2008a, p. 316)
O que se quer mostrar, com isso, é que o acaso, em Poe, pressupõe uma visão de
mundo, pois, ao se examinar algumas de suas declarações, a ideia de que sua biografia foi
marcada pela errância se confirma. Veja-se, por exemplo, a seguinte declaração de Poe:
Sou espantosamente preguiçoso e maravilhosamente activo, mas a espaços.
períodos em que toda a actividade intelectual constitui para mim uma tortura e em
que me satisfaz a comunhão solitária com as montanhas e os bosques [...]. Perco
assim meses inteiros a vagabundear, a sonhar, para afinal mergulhar numa espécie
de actividade frenética. [...]. A minha vida tem sido apenas capricho, ilusão,
arrebatamento, desejo de solidão, desdém do presente e sede do futuro... (POE,
1972, p. 5, sic)
Igualmente instigante é uma de suas observações, pela qual pode-se entender a relação
entre sua vida e sua obra: ―Pedis-me ‗um memorial sobre a minha vida‘. Porém, depois do
que eu escrevi, creio que estareis persuadidos de que nada mais tenho para vos expor [...]‖
(POE, 1972, p. 5). Percebe-se, a partir dessas declarações, dois dados importantes. Primeiro,
que a vida de Poe era instável, errante. Segundo, que, para Poe, sua vida estava contida em
sua obra. No primeiro caso, a vida errante de Poe pressupõe a ociosidade e suas difíceis
implicâncias materiais
153
, bem como, os riscos físicos que a deambulação oferece. Foi essa
vida aventureira e arriscada de Poe que chamou a atenção de Breton. Já no segundo caso,
basta ver como a ânsia por isolamento, o desinteresse pelo mundo e a entrega ao sonho são
atributos refletidos, de modo quase que exato, nas predileções e desaprovações do
personagem Dupin.
A discussão sobre a relação entre vida e obra, a esta altura, termina em uma bifurcação:
ou se aceita a trilogia raciocinante como ficção do acaso e como recurso técnico nas mãos de
Poe, ou se entende o acaso como decorrência de uma visão de mundo amparada na biografia
do autor. Nesta pesquisa, defende-se a plausibilidade da segunda opção. Deve ficar claro que,
pelo menos na trilogia raciocinante, não ocorre ficção do acaso, embora seu exagero empreste
153
Essa era a vida que os surrealistas viriam, mais tarde, a escolher.
83
a ele uma aura inverossímil. Também é importante esclarecer que, embora ambas as obras
sejam diferentes quanto ao gênero (ficção/não ficção), o caráter de relação com o real
prevalece na questão do acaso (visão de mundo dominado pela errância), ainda que as
definições de acaso sejam díspares (a tradicional, de Poe, e a noção de acaso objetivo, de
Breton). Esclarecido esse ponto, pode-se tratar do tema da errância, nessas duas obras
díspares, em condições de igualdade, com a certeza de que se está falando, agora, das vidas
errantes não mais de Dupin (personagem) e Breton, mas de Poe e Breton.
84
IV CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o confronto estabelecido entre a trilogia raciocinante e o livro Nadja, a primeira
proximidade a se destacar está na ―busca investigativa‖ que Poe (através de Dupin) e Breton
realizam, cujos resultados seguem caminhos opostos. A busca de Dupin chega ao fim assim
que as pistas são decodificadas e o mistério, esclarecido. Estas pistas respondem a questões
como: ―quem cometeu um duplo homicídio em um quarto trancado por dentro?‖, ―quem é o
criminoso?‖ ou ―onde está escondido o documento?‖. Entretanto, a busca surrealista relatada
em Nadja não encontra seu término, e, pelo menos de imediato, as pistas não são
decodificadas, ou não se responde a perguntas como ―qual o rumo da viagem?‖, ―o que vim
fazer no mundo e que mensagem trago? ou ―o que são as coincidências?‖. Se uma
conclusão, ela aponta para a continuidade da busca.
Com o livro, Breton concretiza seu objetivo de narrar as ―petrificantes coincidências‖
vividas por ele ao lado de Nadja. Uma vez terminado o relato, Breton percebe que a definição
tradicional de ―coincidência‖ não expressa, com exatidão, a natureza dos fatos que ele havia,
realmente, testemunhado. O livro, assim, precede uma nova acepção de coincidência, que será
designada pelo termo acaso objetivo‖. Sua teorização surge depois do relato de Nadja e
mostra que esse fenômeno pode ser apreendido a posteriori. O gesto de narrar a Breton
a chance de começar a entender que os acasos não tem sentido, mas sinalizam na direção
da realização de um desejo
154
. Isso é o que se verifica no final do livro. Após uma série de
relacionamentos que termina com Nadja, Breton encontra a verdadeira mulher amada. Tudo
havia sinalizado para esse encontro.
Em Nadja, Breton considera as coincidências como ―enigmas‖. Contudo, somente
depois de concluído o relato, percebe-se que o fenômeno não consistia apenas em um simples
evento fortuito. Dupin persegue pistas, mas as pistas perseguidas por Breton são de outra
ordem. As pistas ou sinais são as próprias coincidências, uma vez que apontam para algo
distinto cujo lugar está no futuro
155
. Tal como o sonho, é preciso relembrá-lo para que se
possa decifrar sua simbologia enigmática. Por essa razão, para Breton, a vida deveria ser
decifrada como um criptograma. Entretanto, embora se possa interpretar ou desvendar o
criptograma da vida humana e o desejo ocupe um papel essencial para o seu rumo, não se tem
controle sobre a vida. Esse desejo é inconsciente e só se torna consciente quando se realiza.
154
Breton apenas ―começa‖ a entender a ação do desejo porque, somente mais tarde, a teoria sobre o acaso
objetivo será forjada por ele. Vale lembrar que, em Nadja, ele se refere ao fenômeno como petrificantes
coincidências‖.
155
Daí toda a relação com as cartomantes e videntes, embora essa questão, presente em Nadja, não tenha sido
discutida nesta pesquisa.
85
O acaso tem relação privilegiada com a verdade, tanto em Poe e em seu cientificismo
(acaso associado à razão) como no acaso objetivo de Breton (acaso associado ao poder do
desejo inconsciente). Poe e Breton ―confiam‖ no acaso e acreditam que ele pode levar às
respostas e à verdade. São detetives do acaso. Investigam seus emaranhados fatos, desejam
que ele esteja sempre presente, provocam-no e o investigam, procurando nele seus díspares
interesses. A Dupin, o acaso interessa porque traz dinâmica a um mundo desencantado, no
qual tudo é sabido, e contribui para gerar novas descobertas científicas. Para Breton, o
acaso objetivo é importante porque se torna uma manifestação do maravilhoso, porque
reencanta a vida e o auxilia a encontrar respostas que não podem ser descobertas através do
puro trabalho racional.
O espaço em que a busca investigativa é feita por ambos é o da cidade, labiríntica,
análoga ao labirinto do castelo gótico. Ao se lançarem a perambular pelo espaço urbano,
ambos se entregam à aventura do desconhecido. Nos contos raciocinantes, o narrador e o
protagonista Dupin permanecem enclausurados, no meio da escuridão, em locais remotos,
mas descrevendo, de modo abstrato, matagais, cenas de crimes, cadáveres em rios, tavernas
distantes, tudo em circunstâncias crepusculares, tempestuosas e noturnas. Quando saem à
noite, Dupin e seu amigo deambulam, durante toda a madrugada, pelas ruas mais remotas da
cidade, vão até a miserável Rua Morgue e adentram na cena de um crime ali ocorrido. Os
cenários da investigação de Dupin e seu anônimo amigo são os mais marginais possíveis. De
modo semelhante, os passeios do casal Breton e Nadja não ocorrem em quaisquer lugares,
nem em locais turísticos, mas nos locais mais marginais e mais simbólicos, como bosques de
densa vegetação, museus, praças remotas e perigosas, estações de trem vazias, imediações de
prostíbulos, terrenos baldios, tudo durante a madrugada. Assim, a perambulação investigativa
de ambos os autores tem como cenário os lugares sombrios, justamente porque são marginais,
vulgares. Percebe-se, portanto, que a busca a que ambos os autores se entregam é possível
através da aventura pelo lado sombrio da cidade moderna, onde estão os mistérios que
desejam desvendar. A verdade é procurada nas entranhas, nos recônditos sombrios da urbe
moderna.
Esse lado obscuro da modernidade, contudo, nada tem de sobrenatural. Nota-se, tanto
em Poe como em Breton, que o extraordinário e o maravilhoso (e o acaso objetivo) são
fenômenos próprios da vida, do cotidiano, e não oriundos de outro mundo. Com Nadja,
assiste-se a aplicação das ideias de um movimento herdeiro da tradição romântica e, portanto,
também leitor do gótico, mas que promove a critica ao fantástico devido à sua
inverossimilhança. O ―gótico explicado‖ de Poe e o surrealismo de Breton também buscam
86
acontecimentos estupefativos, mas que sejam verossímeis. Todavia, por motivos
distintos, Poe busca o assombroso verossímil porque é um representante do espírito
iluminista, do cientificismo, do deísmo, que não consideram como válidas outras explicações
senão as advindas do conhecimento racional. Poe busca desencantar o mundo. A discussão e a
relação entre horror (horror, terror, monstros) e a questão do acaso surgem justamente para
que ele possa mostrar isso. Ao transferir a causa do medo para o plano físico (um prego, um
primata, o criminoso), Poe está substituindo o mito pela explicação científica. Breton, pelo
contrário, busca o assombroso verossímil porque é crítico da concepção de fantástico, que
desvaloriza esta vida, não contribui para a restituição de uma visão encantada do mundo e
retira do homem a chance de perceber, em si mesmo, a capacidade de transformar o mundo.
Breton aproxima-se do comportamento de Dupin. No entanto, ao buscar o
reencantamento do mundo, procura uma nova mitologia, uma mitologia moderna. Em Poe,
isso não acontece, pois, em suas narrativas de raciocínio, o poder da razão é predominante no
desvendamento de um mistério, ainda que a imaginação tenha seu espaço no processo
investigativo. Mas a ―investigação‖ que Breton realiza privilegia o poder do desejo (desejo
inconsciente).
Os ―detetives‖ do acaso assumem duas posturas distintas. Poe representa o detetive que
se mostra satisfeito com as respostas encontradas através dos empreendimentos da razão.
Breton, por sua vez, vem mostrar que, embora se possa estar munido do acaso objetivo, não
controle sobre a vida. O maior desvendamento de Breton surge da consciência de que a
chave do poder de transformação e de controle da vida existe: é o desejo inconsciente. Mas o
que se descobre é que essa chave não pode ser capturada e, portanto, submetida ao controle da
razão.
Talvez a representação surrealista inicial do Minotauro a percorrer o labirinto urbano na
busca por compreender as ―petrificantes coincidências‖ tenha se transformado, com a noção
de acaso objetivo, na figura de Tântalo
156
. A chave está à vista, o desejo racional consciente
procura capturá-la, mas é justamente a grande força do desejo inconsciente a responsável por
afastar de todo alcance essa chave errante da mudança e da liberdade.
156
No fim, volta-se a desejar, como no romantismo, o impossível.
87
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