
negócios, desenrolei o papelão e descobri uma série de cacos de cerâmica. “Caco”, na
linguagem marajoara, é exatamente o termo científico das peças arqueológicas. Naquele
momento, vassoura na mão, apareceu a senhora da limpeza, espiando curiosa. – Será que
prestam? Ela já tinha reparado o meu interesse, por isso só podia dar a única resposta
possível, segundo a lógica marajoara. – Prestam, sim senhor. – Para quê? A mulher quase
entrou em sinuca, no desespero de inventar uma justificativa decente. Foi só um instante.
Feliz da vida explicou: - Para entulhar o quintal. Esqueci logo o quintal e fiquei
contemplando, extasiado, aquelas amostras que pareciam fruto da coleta de um abençoado
arqueólogo. Uma careta caprichada, uma série de risquinhos ingênuos como de criança que
brinca com um espinho, uns fragmentos de decoração incisa e excisa, um jogo simétrico, a
tentativa duma figura estilizada, um peixinho, um jaburu em vôo. De tudo um pouco, só coisa
fina”. (1996: 179-180. Grifos do autor).
A narrativa apresentada por Giovanni Gallo mostra-se enquanto um mito de origem
do Museu, visto que quando a apresenta, logo faz relação com o trabalho de formação do
museu instalado em Santa Cruz do Arari e faz questão de expor que a instalação do acervo
deu-se a partir do ocorrido. Então, segundo o criador, a partir do ocorrido ele começa o
trabalho de formação de um museu no local coletando diversas peças que pudessem compor o
seu acervo. Ima Vieira (2005), ex-diretora do Museu do Marajó, na apresentação do livro
Motivos ornamentais da cerâmica marajoara diz que
“[a] obra começou quando [ele] pretendeu despertar a consciência histórica e social daquele
empobrecido povo. Os pescadores, acostumados em suas incursões diárias nos sítios
arqueológicos, dando seqüência a costumeira destruição do passado, reagiram de maneira
insólita, levando como oferta ao irrequieto padre aquilo que diziam ser “cacos de índios”.”
(2005: XV)
Tais cacos eram a cerâmica arqueológica encontrada nos tesos
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da região do Marajó
denominados cerâmica marajoara por terem sido feitos pelos antigos marajoara, que habitaram
a ilha por volta de 400 a 1300 AD.
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A ilha ficou famosa devido a sua produção de cerâmica e
dos cacos encontrados nesses tesos.
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Espécie de cemitérios indígenas onde ocorriam rituais funerários. Segundo Schaan, quando os índios morriam
(os chefes e membros de família que possuíam prestígio), tinham seus ossos “... descarnificados, desarticulados,
pintados e expostos em urnas funerárias ricamente decoradas, cercadas de oferendas e objetos pessoais ... as
urnas, com tampas e outros objetos, eram enterrados cuidadosamente.” (1999: 25). Conferir, SCHAAN, Denise
Pahl. “Cultura marajoara: história e iconografia” IN Museu Paraense Emílio Goeldi. Arte da terra: resgate da
cultura material e iconográfica. Belém, SEBRAE, 1999.
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Para aprofundar o assunto conferir:
SCHANN, Denise Paul. A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara:
um estudo da pré-história na ilha do Marajó (400-1300 AD). Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997.
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Schann, na introdução dos Motivos ornamentais da cerâmica Marajoara, afirma que os marajoara produziam
cerâmica simples, para cozinhar e para preparar alimentos, assim como confeccionavam uma cerâmica mais
elaborada para servir alimentos e bebidas em festas. Conferir: SCHANN, Denise Pahl. “Origens e significados da
cerâmica marajoara” IN GALLO, Giovanni. Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o
artesanato de hoje. Cachoeira do Arari/PA, Museu do Marajó, 2005.