Download PDF
ads:
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari (ilha
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari (ilha De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari (ilha
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari (ilha
do Marajó, PA)
do Marajó, PA)do Marajó, PA)
do Marajó, PA)
Anna Maria Alves Linhares
Anna Maria Alves LinharesAnna Maria Alves Linhares
Anna Maria Alves Linhares
Belém
BelémBelém
Belém
setembro, 2007
setembro, 2007setembro, 2007
setembro, 2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari
(ilha do Marajó, PA)
Anna Maria Alves Linhares
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Departamento de Antropologia do Programa de
Pós Graduação em Ciências Sociais, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Pará, sob a orientação da Profª. Drª.
Jane Felipe Beltrão.
Belém, PA
setembro, 2007
ads:
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA)
Linhares, Anna Maria Alves
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira de Arari (ilha do
Marajó, PA) / Anna Maria Alves Linhares; orientadora, Jane Felipe Beltrão. -
Belém, 2007
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, Belém, 2007.
1. Cerâmica - Marajó, Ilha do (PA). 2. Artesanato - Marajó, Ilha do (PA).
3. Marajó, Ilha do (PA) - Antiguidades. I. Título.
CDD - 22. ed. 738.098115
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari
(ilha do Marajó, PA)
Anna Maria Alves Linhares
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Departamento de Antropologia do Programa de
Pós Graduação em Ciências Sociais, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Pará, sob a orientação da Profª. Drª.
Jane Felipe Beltrão.
Este exemplar corresponde à redação final da
dissertação defendida e aprovada pela comissão
julgadora em 25 de setembro de 2007
Banca:
Profª. Drª Jane Felipe Beltrão (orientadora)
Prof°. Dr. Roque de Barros Laraia (examinador externo)
Profª. Drª Denise Pahl Schaan (examinadora interna)
Profª. Drª Cristina Donza Cancela (examinadora suplente)
Belém, PA
setembro, 2007
De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari (ilha do Marajó, PA)
From pieces of broken pottery to the spectacle: the production of ceramics in Cachoeira do
Arari (island of Marajó, PA)
Anna Maria Alves Linhares
RESUMO- Artesãos de Cachoeira do Arari, localizado na região dos campos do Marajó, no Pará,
reproduzem peças de cerâmica copiadas de objetos arqueológicos encontrados em tesos do lugar.
Atualmente, os objetos encontram-se expostos no Museu do Marajó, localizado em Cachoeira. O
museu foi criado por Giovanni Gallo, padre italiano que chegou na região na década de 1970. O
objetivo do trabalho é mostrar as diversas formas de apropriação e re-significação desse
patrimônio arqueológico, que são eles o artístico e/ou expositivo, o científico e o mercadológico,
ou seja, suas diversas metamorfoses. Vale frisar que a espetacularização desse patrimônio deu-se
a partir do momento que de meros cacos de índios que viveram na região, chamados marajoaras, e
que assustavam os moradores quando encontrados nos terrenos de suas casas, segundo narrativas
orais, viraram espetáculos turísticos, comerciais e de identificação cultural.
Palavras-chaves: cerâmica; ilha do Marajó; marajoara; Cachoeira do Arari; artesanato.
ABSTRACT- Artisans from Cachoeira do Arari, located in Marajó fields, in the State of Pará,
they reproduce copied ceramic pieces of archeological objects found in stiff of the place.
Nowadays, the objects are exposed in the Museum of Marajó, located in Cachoeira. The museum
was created by Giovanni Gallo, Italian priest that arrived in the area in the 70's. The objective of
this work is to analyze the several appropriation forms and reverse-significance of that
archeological patrimony, the artistic and/or expository, the scientific and marketing, in other
words, their several metamorphoses. It is worth to stress that the spectaclelization of that
patrimony felt starting from the moment that of mere bits of Indians that lived in the area, called
marajoaras, and that they cared the residents when found them in their houses yards, according to
narratives orals, they turned tourist spectacles, commercial and cultural identification.
Keywords: ceramic; island of Marajó; marajoara; Cachoeira do Arari; craft.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS i
ABREVIATURAS UTILIZADAS iv
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES v
ÍNDICE DE QUADROS vi
ÍNDICE DE FOTOGRAFIAS vii
I. O desvelar do campo de pesquisa
1
Cachoeira e os ceramistas, cidade molhada, cidade seca 2
Em campo “no barro” 8
II. As atribulações de um padre na Amazônia: Giovanni Gallo e a criação do
Museu do Marajó
23
Chega o idealizador: Giovanni Gallo 26
Museu do Marajó 38
III. De caco a espetáculo: o aprendizado do fazer cerâmica
62
Da busca do barro à produção das cópias e réplicas marajoara 86
IV. A aura dos objetos em barro marajoara: autenticidade, venda e consumo
da cerâmica de Cachoeira do Arari
107
A autenticidade das peças de barro 107
Busca de identidade e espetacularização da cultura 128
A venda dos objetos de barro e o simbolismo do consumo 134
V. À guisa de conclusão
156
Significados e simbolismo dos objetos de barro 156
Referências
160
Documentos do Acervo do Museu do Marajó (AMdM) 160
Fontes impressas citadas do acervo do Museu do Marajó (AMdM) 160
Jornais citados consultados no acervo do Museu do Marajó (AMdM) 161
Obras de referência 161
Bibliografia referida 162
Referências disponíveis na internet 166
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos e todas que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desse
trabalho, seja através de leituras, críticas, revisões ou simplesmente com suas conversas,
sorrisos e olhares, olhares esses que me acalmaram em vários momentos durante o percurso da
realização da pesquisa e escrita da dissertação. São eles e elas:
Jane Beltrão, minha orientadora, cuja paciência e dedicação seguiu comigo as trilhas e os
percalços do trabalho. Agradeço também seu acolhimento em um momento difícil “aceitando” a
tarefa de refletir sobre a cerâmica tão polemicamente marajoara. Obrigado por tudo Jane!
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa concedida a
fim de realizar meus estudos durante o segundo período do mestrado.
Prof° Heraldo Maués, coordenador do Programa na época, que facilitou processos e trâmites
burocráticos que precisei naquele momento, assim como contribuiu com suas discussões em
sala de aula. Os agradecimentos estendem-se a todos os outros professores do Departamento de
Antropologia em especial Profª Denise Schaan, Prof° Flávio Leonel, Profª Angélica Maués e
Profª Cristina Cancela que discutiram diversas vezes meu projeto e minha pesquisa quando
estava em andamento.
Prof° Guilherme Fernandes, docente do Departamento de Letras e Artes que sugeriu entre
conversas e mais conversas sugestões de leituras sobre memória e narrativas orais, mostrando-
me ainda mais a importância da fala dos sujeitos dessa pesquisa.
Meus colegas de turma do Mestrado, em especial Gilmar Matta, Gianno Quintas e Francisco
Neto, meus confidentes e companheiros de conversas dentro ou fora de sala de aula. Agradeço
em especial Francisco pela tradução feita do resumo da dissertação.
Rachel, Zezinho, Paulo, Rosângela, Rosana, Elóy, Silvana e Max, amigos de Departamento.
Cândida Barros pela representação na qualificação de meu projeto de pesquisa.
i
Ruth Cortez, Alegria Benchimol, Suzana Primo, Carlos Chaves e Lúcia Hussak van Velthem
pelos anos de pesquisa e trabalhos em conjunto no Museu Paraense Emílio Goeldi, mais
especificamente na Reserva Técnica Etnográfica “Curt Nimuendajú”.
Ricardo Gomes Lima, que gentilmente me presenteou inúmeros livros sobre cerâmica popular.
Isabela Frade que também gentilmente enviou-me artigo de sua tese de Doutorado sobre
cerâmica marajoara.
Dorotéa Lima que disponibilizou parte da pesquisa realizada no IPHAN sobre o patrimônio
material e imaterial da ilha do Marajó.
Alícia Coirolo que disponibilizou parte de sua pesquisa sobre a cerâmica de Icoaraci.
Furuya pelas conversas e ida à Icoaraci para observarmos a produção cerâmica e pelo livro
presenteado, que mesmo em outra ngua, o japonês, demonstrou seu interesse por pesquisas
sobre cultura material, mais especificamente a atual produção de cerâmica marajoara.
Paulinho Câmara, Waldir, Beto, Érick, Sidão, Jerônimo, Daniel, Ademilton, Alex, Zezé,
Simone, Rosélia, Lino Ramos, Otaci Gemaque, Graça Gemaque, Dona Ântonia, Gracinha,
Talissa, Kelly, Joel, Seu Manuel, Bárbara, Analú, Inaldo, Max, Dilma, todos os meninos,
meninas, homens e mulheres dos projetos do Museu do Marajó e todos os Cachoeirenses, sejam
eles de nascença ou de coração, representantes ou não do museu, meus informantes, que foram
essenciais para a pesquisa. Sem eles o trabalho não teria saído de meras idéias. Obrigado por
tudo!
Aos meus amigos distantes do Departamento de Antropologia que entre conversas, saídas,
petiscos e cervejas me oportunizaram relaxar durante esse período. Todos que lerem certamente
se identificarão com o agradecimento!
Tay Gama pelas traduções, imagens, fotos e conversas antropológicas. Tay, você tem toda
razão: É muito antropológico!
ii
Márcio Couto, meu companheiro, agradeço infinitamente as revisões, as leituras, as críticas, os
“puxões de orelha”, os elogios, a confiança, o apoio, a dedicação, o companheirismo, o afeto e
os carinhos. Os sentimentos amor e amizade foram os energéticos que me fizeram finalizar esse
trabalho. Obrigado por tudo, principalmente pelo amor!
Minha família que me deu todo apoio até aqui em especial rcia e Gracy, minhas mulheres,
irmãs, mães, amigas, confidentes e companheiras. Amo vocês. Obrigado também pelo amor!
iii
ABREVIATURAS UTILIZADAS
AMdM Acervo do Museu do Marajó
FUNAI Fundação Nacional do Índio
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MDB Movimento Democrático Brasileiro
PEP Plano de Educação Profissional
PLANFOR Plano Profissional do Pará
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
iv
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES
1. Motivo marajoara retirado de fragmento de vasilha, decorada com espirais incisas e pequenos
círculos em relevo (Gallo, 2005). Reprodução de Tayanne Gama, 2007. (Capa).
2. Urna 21 cat: 2606-0498. Teso Belém, sítio PA-JO-15 Camutins, ilha de Marajó. Vaso
marajoara acondicionado na Reserva Técnica de Arqueologia Mário Ferreira Simões no Museu
Paraense Emilio Goeldi. Desenho de Tayanne Gama, 2007.(Rodapé da dissertação).
3. Estado do Pará (Mesorregião do Marajó) Fonte: Prefeitura Municipal de Cachoeira do
Arari 3/3
4. Microrregiões do Mara Fonte: Prefeitura Municipal de
Cachoeira do Arari 3/3
v
ÍNDICE DOS QUADROS
1. Categorias, grupos genéricos e termos específicos da cultura material 64/64
2. Zonas de circulação de objetos 150/150
vi
ÍNDICE DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1. Rio Arari. Entrada da cidade. Foto: Márcio Henrique (mai./2006) 4/4
Fotografia 2. Pessoas percorrendo o rio Arari. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 4/4
Fotografia 3. Redes armadas em uma das embarcações que faz o trajeto Belém/Cachoeira do
Arari/Belém. Foto: Márcio Henrique (mai./2006) 9/9
Fotografia 4. Trapiche de entrada e saída de Cachoeira pelo porto. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 9/9
Fotografia 5. Imagem de vias da cidade. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 10/10
Fotografia 6. Menino è frente de sua casa à beira do Arari. Foto: Anna Linhares (mai./2006)
10/10
Fotografia 7. Mercado Municipal de Cachoeira do Arari. Foto: Anna Linhares (mai./2006)
11/11
Fotografia 8. Placa localizada no interior do Museu. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 42/42
Fotografia 9. Exposição da cerâmica arqueológica junto às cópias e réplicas. Foto: Márcio
Henrique (mai./2006) 45/45
Fotografia 10. Prato de escravos e instrumentos de castigo dos escravos negros. Foto: Márcio
Henrique (mai./2006) 46/46
Fotografia 11. Computador do acervo do Museu do Marajó com o objetivo de informar
conhecimentos sobre a língua Tupi. Foto: Márcio Henrique (mai./2006) 47/47
Fotografia 12. Computador que ensina a forma de falar do homem que vive no Marajó e suas
lendas. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 47/47
Fotografia 13 Benzedura, Medicina gica e Prática, Gestos e Palavras. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 49/49
Fotografia 14. Montagem de um local de produção e venda do açaí. Foto: Márcio Henrique
(mai./2006) 49/49
Fotografia 15. Cuias, cestarias, cabaças dentre outros objetos. Foto: Anna Linhares (mai./2006)
50/50
Fotografia 16. Bezerro com duas cabeças exposto no Museu do Marajó. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 50/50
Fotografia 17. Vaqueiro à moda antiga. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 51/51
Fotografia 18. Exposição de utensílios do pescador do Marajó.
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
51/51
vii
Fotografia 19. Maquete de uma fazenda e uma série de cabeças de búfalo. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 52/52
Fotografia 20 Computador que informações acerca da religião afro-brasileira e pajelança.
Foto: Anna Linhares (mai./2006) 52/52
Fotografia 21. Casa do Caboclo. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 53/53
Fotografia 22. Interior da Casa do Caboclo. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 53/53
Fotografia 23. Mutirão realizado no Museu do Marajó em maio de 2006. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 56/56
Fotografia 24. Banco com pinturas marajoara na Praça da Matriz em Cachoeira. Foto: Anna
Linhares (mai./2006) 74/74
Fotografia 25. Motivos marajoara pintados na recepção da Pousada Fazendas. Foto: Anna
Linhares (mai./2006) 74/74
Fotografia 26. Poste de iluminação pública com pintura de grafismos marajoara localizado em
frente ao Posto de Saúde de Cachoeira do Arari. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 75/75
Fotografia 27. Restaurante Fundo de Quintal. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 75/75
Fotografia 28. Recanto Marajoara. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 76/76
Fotografia 29. Mercado Municipal de Carne com motivos marajoara em Soure. Foto: Anna
Linhares (agost./2006) 76/76
Fotografia 30. Cerâmica Arariuna. Aqui são realizadas todas as etapas produtivas da confecção
da cerâmica. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 80/80
Fotografia 31. Ensaio do grupo Águia de Ouro. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 81/81
Fotografia 32. Equipamentos da academia Pele e Osso no meio da cerâmica. Foto: Anna
Linhares (agost./2006) 82/82
Fotografia 33. Casa da Cerâmica. Foto: Anna Linhares (agost./2006) 83/83
Fotografia 34. Casa da Cerâmica e o equipamento utilizado na confecção das peças. Foto: Anna
Linhares (agost./2006) 84/84
Fotografia 35. Moderno aparelho da casa da cerâmica. Liquidificador usado para fazer a limpeza
do barro. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 84/84
Fotografia 36. Aparelho destinado a fazer rolinhos de barro. Foto: Anna Linhares (jul./2006)
85/85
Fotografia 37. O rapaz leva a canoa para amarrá-la na ponte de madeira. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 87/87
viii
Fotografia 38. Um dos rapazes mergulhando para tirar barro no fundo do rio enquanto os outros
esperam seu retorno. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 88/88
Fotografia 39. Os rapazes carregam a caixa para dentro da canoa depois do trabalho. Foto: Anna
Linhares (mai./2006) 89/89
Fotografia 40. As caixas com o barro em cima da ponte de madeira. Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 89/89
Fotografia 41. Depositando o barro na oficina. Foto: Anna Linhares (mai./2006) 90/90
Fotografia 42. Sidão e Érick procuram o lugar apropriado para retirarem o barro que necessitam.
Foto: Anna Linhares (agost./2006) 91/91
Fotografia 43. Eles usam um pedaço de pau que encontram na beira do rio para retirarem a
matéria-prima. Foto: Anna Linhares (agost./2006) 93/93
Fotografia 44. Sidão atravessa a ponte de madeira com a matéria-prima. Foto: Anna Linhares
(agost./2006) 93/93
Fotografia 45. Daniel carrega o barro pelas ruas aa cerâmica Arariuna. Foto: Anna Linhares
(agost./2006) 94/94
Fotografia 46. Sidão amassa o barro para confecção de peças. Foto: Anna Linhares (jul./2006)
95/95
Fotografia 47. Érick e Sidão modelando um vaso marajoara. Foto: Anna Linhares (jul./2006)
97/97
Fotografia 48. Artesão passa espátula para dar homogeneidade aos anéis de barro. Foto: Anna
Linhares (jul./2006) 97/97
Fotografia 49. Vaso sendo modelado no torno elétrico da casa da cerâmica. Foto: Anna Linhares
(jul./2006) 98/98
Fotografia 50. Érick faz incisão de uma réplica. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 99/99
Fotografia 51. Daniel decora uma réplica utilizando os processos de excisão. Foto: Anna
Linhares (jul./2006) 100/100
Fotografia 52. A queima realizada no forno à lenha na cerâmica Arariuna. Foto: Anna Linhares
(jul./2006) 101/101
Fotografia 53. Érick coloca pedaços de pau dentro do forno durante a queima. Foto: Anna
Linhares (jul./2006) 101/101
Fotografia 54. Queima à gás na cerâmica Camutins. Beto introduz a mangueira do botijão dentro
do forno onde se encontram as peças. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 102/102
ix
Fotografia 55. Fim da queima das peças no forno à gás na cerâmica Camutins. Foto: Anna
Linhares (jul./2006) 103/103
Fotografia 56. Pintura de uma tanga marajoara. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 105/105
Fotografia 57. Pintura de uma réplica. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 105/105
Fotografia 58. Réplicas prontas para serem comercializadas. Foto: Anna Linhares
106/106
Fotografia 59. Panela produzida na cerâmica Camutins. Foto: Anna Linhares (mai./2006)
107/107
Fotografia 60. Objetos utilitários na cerâmica Arariuna. Foto: Anna Linhares (mai./2006)
108/108
Fotografia 61. Cerâmica artística ou estilizada (Cerâmica Camutins). Foto: Anna Linhares
(jul./2005) 109/109
Fotografia 62. Búfalos na cerâmica Camutins. Foto: Anna Linhares (jul./2005) 109/109
Fotografia 63. Luta marajoara. Foto: Anna Linhares (jul./2005) 110/110
Fotografia 64. Busto de Dalcídio Jurandir sendo modelado. Foto: Anna Linhares (jul./2005)
111/111
Fotografia 65. Cópia, arqueológica e réplica expostas no Museu do Marajó. Foto: Márcio
Henrique (mai./2006) 113/113
Fotografia 66. Réplica de objeto cerimonial marajoara (cerâmica Arariuna). Foto: Anna
Linhares (mai./2006) 114/114
Fotografia 67. Réplica de um prato (Cerâmica Arariuna). Foto: Anna Linhares (mai./2006)
115/115
Fotografia 68. Réplica com forma de animal (cerâmica Arariuna). Foto: Anna Linhares
(mai./2006) 115/115
Fotografia 69. Réplica de tigela utilitária (cerâmica Camutins
). Foto: Anna Linhares (mai./2006)
116/116
Fotografia 70. Peças expostas no espaço de venda do São José Liberto. Foto: Anna Linhares
(out./2006) 135/135
Fotografia 71. Loja Empório das Artes localizada na Estação das Docas. Foto: Anna Linhares
(out./2006) 135/135
Fotografia 72. Peças expostas na vitrine da Loja da Igreja de Santo Alexandre. Foto: Anna
Linhares (out./2006) 136/136
x
Fotografia 73. Peças de barro à venda na loja Tecatueté. Foto: Anna Linhares (out./2006)
137/137
Fotografia 74. Venda de cerâmica no mercado do Ver-o-
Peso. Foto: Anna Linhares (out./2006)
138/138
Fotografia 75. Loja Mbarayó em Salvaterra. Foto: Anna Linhares (jul./2006) 138/138
Fotografia 76. Peças expostas à venda na loja Mbarayó. Foto: Anna Linhares (jul./2006)
139/139
Fotografia 77. Tigela Joanes Pintada (Loja Tecatueté). Foto: Anna Linhares (jul./2006)
140/140
Fotografia 78. Cerâmica de Cachoeira do Arari exposta na loja Empório das Artes na Estação das
Docas. Foto: Anna Linhares (out./2006) 143/143
F
otografia 79. Cerâmica marajoara exposta no São José Liberto. Foto: Anna Linhares (jul./2006)
143/143
Fotografia 80. Cerâmica marajoara produzida em Cachoeira do Arari sendo comercializada no
Ver-o-Peso. Foto: Anna Linhares (out./2006) 144/144
Fotografia 81. Exposição Mano Pará, shopping Iguatemi. Foto: Anna Linhares (set./2006)
145/145
Fotografia 82. Exposição Mano Pará, shopping Iguatemi. Foto: Anna Linhares (set./2006)
146/146
Fotografia 83. Exposição Mano Pará, shopping Iguatemi. Foto: Anna Linhares (set./2006)
146/146
xi
I. O desvelar do campo de pesquisa
Minha primeira ida à Cachoeira do Arari ocorreu em 2005, para participar do Projeto
de Revitalização do Museu do Marajó, coordenado pela Drª. Denise Pahl Schaan, professora
do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará, à época pesquisadora do
Museu Paraense Emílio Goeldi. No período, realizou-se limpeza e inventário preliminar da
exposição permanente, da biblioteca, do acervo de peças arqueológicas e da casa de seu
fundador, Giovanni Gallo, que ficava em anexo.
A partir da oportunidade de inserir-me na equipe de revitalização do acervo
permanente do Museu do Marajó pude detectar que a exposição compunha-se de uma coleção
de peças arqueológicas, principalmente objetos cerâmicos encontrados em sítios arqueológicos
da região, doações provenientes de achados fortuitos por moradores do lugar. também
peças contemporâneas mas, nesse caso, reproduções de cerâmica arqueológica produzida por
artesãos
1
locais.
O que me chamou a atenção, a partir de então, foi a existência de peças de cerâmica
inspiradas em objetos pré-coloniais, que m sendo produzidas pelo menos 30 anos. Além
da incipiente produção de Cachoeira do Arari, também se reproduzem peças desse tipo em
outras cidades localizadas na ilha do Marajó e em Icoaraci, distrito de Belém, assim como em
cidades fora do estado do Pará, como podeser visto no decorrer do trabalho. A produção a
que me refiro, na ilha do Marajó ou fora dela, é denominada de cerâmica marajoara (como o
chamadas as arqueológicas), mesmo quando as peças não reproduzem com fidelidade as
originais.
Destarte, vislumbrou-se um provável campo de pesquisa, pois além do interesse de
investigação no âmbito da produção de objetos cerâmicos,
2
o fato da confecção de peças de
1
Ao longo do trabalho denominarei os produtores das peças de barro tanto de ceramistas quanto de artesãos, pois
ambas o sinônimos e se equivalem. Utilizo as duas expressões como forma de não torná-las repetitivas se caso
optasse por apenas uma delas ao longo do trabalho. Vale ressaltar que no município os produtores dos objetos de
barro são chamados de artesãos.
2
Desde 2002, vinha desenvolvendo pesquisa na Reserva Técnica Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi
inserida no projeto Coleções etnográficas: pesquisa e formação documental, sob a coordenação da Dra. Lúcia
Hussak van Velthem. O foco de meu trabalho no projeto era a coleção Natalie Petesch (1986), composta por
peças de cerâmica produzidas pelos povos Karajá, as chamadas bonecas Karajá. Esse projeto gerou o meu
trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará. Conferir: LINHARES,
Anna Maria Alves. Os múltiplos contextos dos objetos indígenas: uma etnografia das bonecas de cerâmica
Karajá. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Pará, 2004, mimeo.
1
cerâmica marajoara em diversos lugares, chegando mesmo a extrapolar o estado do Pará,
região onde são encontrados os vestígios reproduzidos, tornou-se atrativo à pesquisa. A partir
de então resolvi pensar uma investigação que tentasse responder questões sobre o que levou os
artesãos de Cachoeira à produzir objetos desse gênero, a principal motivação de os
confeccionarem e o simbolismo contido na apropriação do patrimônio arqueológico, a partir de
sua exposição, venda e consumo, ou seja, os significados expressos na marca marajoara.
Retornei ao município no ano seguinte com o plano de pesquisa para ser realizado. A
pesquisa foi executada nos meses de maio, julho e agosto de 2006, dividida em duas etapas.
Mas antes de tratar das etapas da pesquisa, dos objetivos e metodologia utilizada, faz-se
necessário apresentar o campo, a cidade de Cachoeira do Arari.
Cachoeira e os ceramistas, cidade molhada, cidade seca
Cachoeira do Arari está localizada à margem esquerda do rio Arari, ilha do Marajó, a
maior ilha flúvio-marítima do mundo, no Estado do Pará (ver Ilustrações 1 e 2), com 15.783
habitantes e área de 3.102 Km. A população urbana compreende 5.832 moradores na sede do
lugar.
3
O município começa na foz do rio Camará, segue a baía do Marajó até a foz do rio
Arari (Chagas Júnior e Barros, 2004 e Cruz, 1987).
4
3
Dados do censo demográfico feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2000.
4
Cf. CHAGAS JÚNIOR, Edgar M. & BARROS, Lilian. Marajó conhecer e preservar. Inventário Nacional de
Referências Culturais. Belém, Iphan, Minc, 2004. (mimeo) e CRUZ, Miguel Evangelista Miranda da. Marajó:
essa imensidão de ilha. São Paulo, M.E.M., 1987.
2
Ilustração 1. Estado do Pará (Mesorregião do Marajó)
Ilustração 2. Microrregiões do Marajó
Fonte: Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari
Fonte: Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari
3
Segundo Miranda Neto (2005),
5
o rio Arari nasce no lago do mesmo nome. A
fotografia 1 apresenta o rio visto do porto localizado na entrada de Cachoeira. A foto 2,
moradores da região que percorrem o rio de canoa, cena bastante comum no lugar.
Fotografia 1. Rio Arari. Entrada de Cachoeira
Fotografia 2. Pessoas percorrendo o rio Arari
5
Cf. MIRANDA NETO, Manoel José de. Marajó: desafio da Amazônia – aspectos da reação a modelos
exógenos de desenvolvimento. Belém, EDUFPA, 2005.
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
4
A colonização dessa região deu-se com a chegada dos jesuítas a partir de 1700,
quando teve início a colonização do rio Arari, a partir das fazendas de gado da missão. Em
1811 foi criada a Vila de Cachoeira, à margem desse rio. A Vila recebeu esse nome em
virtude do desnível do leito do rio Arari, pois segundo informações locais, “... no verão,
provocava uma precipitação de água em cachoeira.” (IBGE, 1957: 321). O município de
Cachoeira foi criado em 7 de maio de 1934 (IBGE, 1957).
6
Em 1943 foi conferido ao município novo nome, Arariuna, denominação que perdeu
para a atual, Cachoeira do Arari, em virtude de uma lei instaurada em 1956. Arariuna, nome
tupi, quer dizer ararinha preta. Arari tanto pode significar ‘ararinhas’, como ‘rio das araras’:
ará + i ou ará + g.” (IBGE, 1957: 323). Segundo o Dicionário Histórico das Palavras
Portuguesas de Origem Tupi (1989),
7
Arariuna é também conhecida por Araraúna, Ararúna,
Arauna ou Araruna.
Cachoeira do Arari, encravada no Marajó, ilha flúvio-marítima que em seus quase
50.000 km² abriga mais de 300.000 pessoas, é marcada pelo dualismo geográfico entre os
campos, onde se encontra Cachoeira e a zona da mata, que cobre a maior parte da ilha, o
sudoeste (Miranda Neto, 2005). Os campos do Marajó possuem um clima peculiar: metade do
ano sofrem inundações, e a outra passam por secas rigorosas, sujeitos aos rigores da chuva e à
intensidade do sol, respectivamente.
Inúmeros são os romances e as histórias que envolvem essas duas estações da ilha.
Não é à toa que Dalcídio Jurandir (1992),
8
fala das Chuvas nos Campos de Cachoeira; Feio
Junior (2004)
9
romantiza a entrada e a saída das chuvas da região em Ferra nas Fazendas; e
João Vianna quando trata do período dos “… incêndios estonteantes lavrando nos campos
adustos em contraste gritante com as inundações periódicas, aquêles e estas extremados em
uma porfia impiedosa que aniquila lenta e inexorávelmente a vida e a economia da região.”
(1998: 12).
10
6
Cf. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Enciclopédia dos municípios brasileiros.
V.14. Rio de Janeiro. IBGE, 1957.
7
Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem Tupi. São Paulo,
Melhoramentos, Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
8
Cf. JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. Belém, Cejup, 1992.
9
Cf. FEIO JÚNIOR, Júlio Tavares. Ferra nas Fazendas. Belém, Smith Produções Gráficas Ltda, 2004.
10
Cf. VIANNA, João. A Fazenda Aparecida. Belém, SECULT, 1998.
5
João Vianna (1998) conta a estória ocorrida na fazenda Aparecida, enfocando vários
aspectos do cotidiano e costumes do lugar e em vários momentos do romance faz questão de
frisar a importância e a influência desses dois períodos na vida do homem marajoara, como são
conhecidos os nativos do Marajó.
11
Nhá Raimunda, uma das personagens que reside na
fazenda,
“... lembrava de uma época em que o vilarejo de N. S. da Conceição de Cachoeira sorria no
contentamento feliz de sua simplicidade cabocla. O aglomerado de casas toscas, atingindo
milhar e meio de habitantes, festejavam as estiagens de junho, contando com os passarinhos
para esquecer as tristezas das chuvas. As águas desciam lentamente no nível do inverno,
levadas pelos ventos constantes que amenizam a região e carregam as lamas do caminho,
transformando-as em poeira. Uma fila de fogueiras, no meio da rua, formava a procissão das
chamas, crepitando faiscantes e mandando para o céu grossos rolos de fumo, incensando a
glória de São João, no esplendor de sua noite.” (1998: 23-24)
Giovanni Gallo, padre italiano que viveu no Marajó por cerca de trinta anos, também
trata de forma poética e literária esses aspectos peculiares do clima da região no romance
Marajó: A Ditadura das Águas, referindo esses períodos como importantes e cruciais para a
vida da região. Diz ele:
“… quem manda não é o Presidente da República, não é o Governador, não é o Prefeito
domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na Constituição ou nas Forças
Armadas. É um dado de fato, quem manda é a água. É a água quem o sustento e cria as
dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente.
Sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total.” (1997: 53)
12
Giovanni Gallo, assim como os demais autores e romancistas citados, mostram de
forma eloqüente como a natureza parece sujeitar a todos ao produzir obstáculos difíceis de
serem superados pelos marajoara.
As chuvas na região delimitam os períodos, concentrando-se entre os meses de
fevereiro e maio, ocasionando a cheia que inunda 2/3 da superfície dos campos. Esse
fenômeno se agrava por não haver escoamento para as águas que ficam represadas nos rios.
Em maio, as chuvas diminuem e o calor surge com vagar. A estiagem se prolonga de agosto a
dezembro, secando lagos e rios e estorricando os campos. (Miranda Neto, 2005)
11
Relativizo a noção genérica de homem marajoara apenas aos homens que atualmente são nativos da região do
Marajó, posto que os antigos povos que viveram na ilha, também são conhecidos como Marajoara.
12
Cf. GALLO, Giovanni. Marajó: a ditadura da água. Santa Cruz do Arari, Edições “O Nosso Museu”, 1996.
6
Segundo Gallo, “[n]o inverno o povoado, que parece flutuar nas palafitas, se apresenta
como uma nova Veneza, onde as Gôndolas deixam o lugar a infinitos casquinhos, com toda
uma poesia de nomes grandiosos e otimistas.” (1996: 53. Grifos do autor).
Vale ressaltar que o ocorre uma brusca mudança climática de um período a outro.
Segundo Miranda Neto (2005), tanto a extrema seca como as cheias são prejudiciais ao gado e
ao homem, mas de fato se pode tirar proveito, especialmente do período de clima bom e
saudável da meia estação que vai de julho a agosto e de outubro a novembro, época das
pescarias, passeios a cavalo, viagens em voadeira rio-acima, rio-abaixo. É o período em que o
pasto ainda está verde e os insetos nocivos são escassos.
A meia estação surge no romance de Vianna como período em que,
[o] sol ganha altura e [resplandece] como um disco de ouro sôbre a mataria densa do
outro lado do lago. Marrecas voa[m] em bandos ruidosos fazendo o alarido característico.
Guarás e garças [enfeitam] de encarnado e branco o emaranhado dos balsedos que as águas
[vão] deixando. O cenário magnífico e a frescura da manhã [tornam] aquêle quadro tão
belo e, todavia quase não se apercebia…” (1998: 40)
Após a meia estação chega o verão da ilha, que é demasiado rigoroso, escasseando a
água. Os rios pequenos secam por completo e os maiores baixam acentuadamente de nível,
tornando difícil e quase impraticável a navegação. (Miranda Neto, 2005)
A seguir, a chuva torrencial e intermitente referente ao início do ano se faz presente.
Nessa ocasião, a 20 de janeiro, é festivamente comemorado no Marajó o dia de São Sebastião,
fechando o ciclo de festas que se inicia com o Círio de Nossa Senhora da Conceição, padroeira
de Cachoeira do Arari, no mês de dezembro.
Assim,
“[a]s duas estações se definem: uma, que chove a cântaros, inundando tudo; outra, na qual o
sol, como um deus bárbaro e inclemente, lambe a face da terra ... [c]hamam-nas inverno e
verão talvez por analogia ou porque não tenham outro nome adequado; ou ainda, porque o
sejam na verdade. Em ambas as estações, porém as noites são sempre frescas e agradáveis”
(Gallo, 1997: 165).
Cachoeira, cidade molhada, cidade seca. Dessa forma, o homem marajoara realiza
seu trabalho, os afazeres diários, adaptando a labuta do dia-a-dia de acordo com os enredos da
estação. Mesmo que a natureza pareça sujeitar a todos e produzir dificuldades, o homem do
lugar adapta, constrói e reconstrói a vida. Por isso a importância de contextualizar ambos os
7
períodos, pois além de situar os dois principais climas dos campos do Marajó, permite
visualizar o contexto que está inserido a produção dos objetos cerâmicos, visto que as chuvas
ou secas mudam completamente a paisagem da região, principalmente os rios, fonte da
matéria-prima de confecção das peças de barro.
Quando estive em campo observei ambos os períodos, parte da cheia e o início do
verão, visto que os meses concernentes à pesquisa foram maio, julho e agosto. A retirada do
barro é feita no rio e por dever de ofício a primeira incursão a campo foi feita em maio, época
em que os rios ainda encontram-se cheios. Mesmo com os rios cheios, retira-se barro e a cheia
não impede a execução da primeira etapa da confecção da cerâmica, como se verá em Da
busca do barro à produção das cópias e réplicas marajoara. Essas estações diferenciadas
modificam a rotina das pessoas, mas o impedem as atividades, apenas torna-as difíceis.
Mas, antes de adentrar na análise do trabalho, convém apresentar a chegada na cidade e o
plano de execução projetado.
Em campo “no barro
Para se chegar ao município, o principal meio é por via fluvial. Os barcos saem de
portos localizados no bairro da Cidade Velha, no centro de Belém e do porto localizado no
distrito de Icoaraci, que se encontra a cerca de 45 minutos da capital. Geralmente, as
embarcações vão e voltam superlotadas (Fotografia 3), principalmente pelos comerciantes que
precisam vir periodicamente para Belém a fim de adquirir os produtos que comercializam em
Cachoeira do Arari. As redes armadas nos barcos se entrelaçam umas nas outras devido ao
número de passageiros na embarcação. Os viajantes que não conseguem armar suas redes
viajam em pé ou sentados ao longo do barco durante as seis horas de trajeto.
8
Fotografia 3. Redes armadas em uma das embarcações que faz o trajeto Belém/Cachoeira do Arari/Belém
As viagens ocorrem duas vezes por semana. Os barcos que chegam em Cachoeira
oriundos de Belém aportam em frente à prefeitura municipal, onde se localiza a praça da
Independência.
Assim que o barco ra, os tripulantes descem com seus pertences e atravessam um
extenso trapiche que liga o porto à praça. Chama atenção ao desembarcar e iniciar a travessia
do trapiche os inúmeros motivos marajoara pintados nas suas colunas que nos recepcionam
(Fotografia 4).
Fotografia 4. Trapiche de entrada e saída de Cachoeira pelo porto
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
9
Quando se adentra à cidade, logo se nota a quietude que lhe circula. Cachoeira,
pequenina, é uma cidade calma, normalmente com reduzido número de pessoas circulando
pelas ruas, dando ar tranqüilo ao lugar. Possui pequeno número de largas ruas (Fotografia 5),
assim como moradias ao longo da beira do rio, podendo considerá-lo como uma de suas vias
(Fotografia 6).
Fotografia 5. Imagem de vias da cidade
Essas são algumas das casas de madeira que ficam à margem do rio Arari:
Fotografia 6. Menino à frente de casas à beira do Arari
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
10
Nos períodos de intensas chuvas, elas ficam acima das águas, mas na seca o espaço ao
redor das casas e da ponte de madeira fica seco e verde, virando local de brincadeira para as
crianças que moram nos arredores.
A cidade possui posto médico, prefeitura, biblioteca municipal, escolas públicas,
mercado municipal (Fotografia 7), igrejas de diferentes orientações religiosas, um hotel e
algumas pousadas para viajantes e uma pista de pouso de transporte aéreo para aviões de
pequeno porte, localizada nos campos.
Fotografia 7. Mercado Municipal de Cachoeira do Arari
É na área do mercado municipal que as coisas acontecem. O mercado localiza-se na
principal rua de Cachoeira onde também se encontra a prefeitura da cidade e que concentra o
maior fluxo de pessoas diariamente. É nessa área que se acham lojas, supermercado,
mercadinhos, farmácia, dentre outros estabelecimentos. Outro fator que provoca o intenso
fluxo na via é a localização do porto da cidade que fica no setor.
A cidade possui poucos estabelecimentos comerciais, estando a maioria na referida
rua e muitos lugares para lazer. Os lugares de encontro o principalmente bares, lanchonetes
e um antigo clube.
Além desses pontos de encontro os moradores também fazem a própria festa. É
comum ver pessoas em suas varandas reunidas em momentos de descontração, senhoras que se
sentam na frente de suas casas no fim de tarde para bate-papo com os vizinhos, senhores que se
acomodam nas esquinas em pequenos bancos de madeira para jogar dominó, baralho ou
qualquer outro jogo com seus amigos, enquanto alguns garotos observam em pé, ou mesmo
jovens que se reúnem pelas praças ou ruas para conversar, namorar ou tomar alguma bebida,
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
11
em especial o leite-de-onça, bebida típica da região, feita da mistura de álcool e leite de vaca
ou búfala.
Outra diversão dos garotos é empinar pipa
13
na época do verão na beira dos rios, visto
que nesse período a beira encontra-se seca e agradável para as brincadeiras de criança. Além
disso, nadar no rio Arari foi a diversão que vi com mais freqüência feita pelos garotos em
Cachoeira. Muitas vezes, os via jogando-se de cima dos barcos ancorados de forma
descontraída.
O meio de transporte principal é a bicicleta. Reduzido número de carros transitam
pela cidade. Se não for de bicicleta, percorrem-se os lugares a pé. Essa forma de trânsito
facilita os encontros dos moradores pelas ruas da cidade e possibilitam paradas para rápidas
conversas com conhecidos em algum encontro durante o percurso. Vale frisar que os
moradores de Cachoeira são solícitos e sempre estão dispostos a ajudar pessoas de fora ou
“esses pesquisadores que sempre estão por aqui”, segundo afirmou um deles.
Quem percorre a as ruas de Cachoeira surpreende-se com as pinturas que enfeitam
a cidade. Andando pelas vias é comum encontrar pinturas nos postes, bancos, calçadas,
fachadas de igrejas, dentre outros lugares. São as pinturas marajoara, um dos focos de análise
do trabalho que será discutido com acuidade durante os capítulos.
Antes de refletir sobre as pinturas marajoara vistas na cidade é preciso localizar os
espaços de produção dos objetos em barro, foco principal da análise. Quem chega pela
primeira vez em Cachoeira sem qualquer informação sobre esses espaços, o consegue achá-
los facilmente, diferente dos referidos estabelecimentos comerciais e de lazer, que em sua
maioria encontram-se na orla da cidade.
Na primeira vez que estive na cidade, em 2005, com objetivo de participar do projeto
de Revitalização do Museu do Marajó, tive o conhecimento dos espaços produtivos e achei
pertinente procurá-los em uma tarde livre dos trabalhos. Infelizmente a procura não foi bem
sucedida. Os dois únicos lugares de produção da cerâmica marajoara, além do espaço do
Museu, são de difícil visualização e acesso. Apenas depois das informações dadas por um
13
Em Belém chama-se pipa, mas em outros lugares a pipa é conhecida como papagaio, rabiola dentre outras
denominações.
12
morador da cidade à época, o professor Lino Ramos, obtive os endereços de confecção dos
objetos em barro marajoara observados no acervo permanente do Museu, pois se encontrava no
lugar quando tive a oportunidade de ver as peças feitas pelos ceramistas locais.
Estive primeiramente no espaço de produção chamado Camutins, que se situa no
anexo da casa do proprietário e não possui placa ou letreiro de identificação. Arariuna foi o
segundo e último local de produção dos objetos em barro visitado nesse survey. O
estabelecimento fica no quintal de uma casa. Sua entrada é estreita e de difícil visualização por
quem passa pela rua onde se localiza.
Depois do contato inicial e de breve conversa com os artesãos nesse período, acreditei
na possibilidade da discussão acerca do simbolismo da produção dos objetos marajoara. Dessa
forma o projeto começou a ser pensado, especificamente com os produtores de cerâmica. Com
o plano de pesquisa em mãos, retornei para Cachoeira no ano seguinte.
Refletindo acerca da confecção de objetos marajoara que vêm sendo produzidos nos
últimos tempos em rias cidades, considerei pertinente ter como objetivo do trabalho
etnografar a produção de cerâmica de Cachoeira do Arari, enquanto bens culturais
comercializáveis, fazendo-se necessário compreender o processo de confecção da cerâmica de
forma completa. Evidentemente, em complementação a observação direta, também buscar
compreender como a cerâmica entrou na vida dessas pessoas e além do fabrico das peças,
acompanhar a comercialização procurando descobrir o simbolismo agregado ao consumo de
objetos considerados exóticos.
Realizei o trabalho de campo na cidade de Cachoeira em duas etapas. A primeira no
mês de maio de 2006 e a segunda nos meses de julho e agosto do mesmo ano. A primeira ida
deu-se após a qualificação do projeto, retornando para Belém em seguida com o intuito de
cumprir com obrigações acadêmicas referentes ao mestrado. O retorno à cidade efetivou-se
após o término dos créditos das disciplinas a serem executadas no período do curso.
Na primeira etapa fui em busca das narrativas orais a partir de entrevistas e conversas
informais com moradores da cidade, assim como pesquisei vasta documentação pertencente ao
acervo do Museu do Marajó. Foram entrevistadas 15 pessoas nas quais eu buscava histórias.
Não foram entrevistados apenas os produtores de cerâmica, mas moradores diversos, pessoas
13
que trabalham no Museu do Marajó, pessoas que conheceram e conviveram com Giovanni
Gallo, assim como moradores contactados em campo. As entrevistas feitas com artesãos e
moradores obedeceram a roteiro previamente elaborado.
As entrevistas realizadas com os artesãos focalizaram a busca de informações sobre
como a cerâmica havia entrado na vida deles, seus conhecimentos sobre a cultura marajoara e a
cerâmica arqueológica que reproduziam (se tinham o conhecimento de quem foi o povo
chamado marajoara e se conheciam o significado das peças) e informações sobre o saber
técnico da confecção dos objetos em barro. As entrevistas feitas com as pessoas fora do
âmbito da produção cerâmica restringiram-se à obtenção de informações acerca de Giovanni
Gallo, criador do Museu do Marajó, agente importante para a compreensão da produção de
cerâmica marajoara e de sua atuação no lugar enquanto criador do espaço museológico.
Na transcrição das narrativas o trabalho de Guilherme Fernandes
14
serviu de condutor,
pois a devida importância para as narrativas orais. O autor aconselha que no momento da
transcrição se conceda o mesmo status ao entrevistador e ao narrador. O que o autor chama de
status refere-se à importância da fala do informante, assim como atribuímos importância, nós
pesquisadores, para a escrita acadêmica. Essa forma de transcrever as narrativas orais
pressupõe respeito ao que se escuta do informante tendo em vista os aspectos únicos e
diferenciais de ambos os mundos, o leigo e o acadêmico, e a diferenciação cultural entre os
personagens.
Tendo em vista a valorização da voz do informante, as narrativas o foram editadas,
evitando assim, modificação das palavras (em seu sentido primário) dos informantes de
Cachoeira, pois é exatamente no sentido primário da narração que se encontra a importância da
oralidade e a possibilidade de compreensão dos cânones locais.
Foi refletindo acerca da importância da compreensão dos cânones locais que Clifford
Geertz tornou-se o condutor teórico metodológico da minha pesquisa de campo, tendo em vista
a sua preocupação com o ponto de vista dos nativos a partir de uma descrição densa dos fatos
14
Cf. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. “DO ORAL AO ESCRITO: implicações e Complicações na
Transcrição de narrativas Orais”. Outros Tempos IN http//:www.outrostempos.uema.br
, ISSN 1808-8031, p. 156-
167. Acessado em 12/12/2005.
14
observados em campo,
15
ou seja, a partir de uma observação direta, objetivando a
interpretações dos fatos, pois para o autor, não basta descrever os fatos é preciso construí-los
via interpretação antropológica. Para o autor o ponto de vista dos nativos é a relevância e
exposição dos acontecimentos observados na pesquisa de campo e a forma que se mostram em
cada lugar pesquisado, como formas de expressão, valores, maneiras de pensar, de agir, entre
tantos outros detalhes a serem considerados.
O autor afirma ser essencial na pesquisa etnográfica, a junção da descrição densa, a
partir da interpretação antropológica e do ponto de vista dos nativos, pois
“[s]e a interpretação antropológica está construindo uma leitura do que acontece, então,
divorciá-la do que acontece do que, nessa ocasião ou naquele lugar, pessoas específicas
dizem, o que elas fazem, o que é feito a elas, a partir de todo vasto negócio do mundo é
divorciá-las das suas aplicações e torná-la vazia. Uma boa interpretação de qualquer coisa
um poema, uma pessoa, uma história, um ritual, uma instituição, uma sociedade leva-nos
ao cerne do que nos propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos conduz, ao
contrário, a outra coisa a uma admiração da sua própria elegância, da inteligência de seu
autor ... isso pode ter encantos intrínsecos, mas é algo muito diferente da tarefa que temos...”
(Geertz, 1978: 13)
Por isso, durante a análise e escrita dos dados, foi primordial o diálogo entre a
descrição dos fatos observados em conjunto com o ponto de vista dos moradores de Cachoeira
do Arari nas diversas etapas da pesquisa, levando-se em conta a voz, como expressões, formas
de falar ou agir sobre determinado assunto.
Nessa primeira etapa, além da atenção para as narrativas orais, pesquisei a
documentação pertencente ao acervo do Museu do Marajó. Parte dela encontrava-se no
próprio Museu em Cachoeira do Arari e outra sob a guarda do Museu Paraense Emílio Goeldi,
em face do trabalho desenvolvido por Denise Pahl Schaan, em Belém.
A documentação localizada nos acervos foi toda reproduzida. Os documentos que se
encontram no Museu do Marajó estão na biblioteca, depositados em arquivos e pastas, mas não
inventário específico, nem qualquer organização. O material que está sob a guarda do
Museu Paraense Emílio Goeldi foi higienizado, restaurado, acondicionado e organizado
cronologicamente.
16
Ambos os acervos documentais são integrados por jornais, cartas, ofícios,
15
Cf. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978 e O Saber Local. Petrópolis,
Vozes, 1998.
16
Trabalho realizado dentro do sub-projeto que vinha sendo desenvolvido por Mário José Martins Júnior a partir
do plano: Codificação, acondicionamento e análise dos documentos relativos ao Museu do Marajó e seu fundador
15
discursos, artigos, diários, autobiografia e memória de Giovanni Gallo, criador do Museu.
Para além do conjunto dos documentos em papel um conjunto de fotos e slides. Reproduzi
cerca de 170 documentos. Eles foram organizados e inventariados para que pudessem compor
as referências da dissertação.
Os documentos levantados subsidiaram a escrita do capítulo II. O capítulo mostra a
chegada de Gallo no município de Cachoeira, a criação do Museu por ele e suas intenções. A
promoção do curso de cerâmica marajoara no Museu indica uma dessas intenções, que possuía
ligação com a busca de desenvolvimento econômico e turístico do lugar a partir da apropriação
da cultura marajoara tendo como suporte os objetos cerâmicos arqueológicos encontrados na
região.
Com a apropriação da cultura marajoara por meio desse projeto turístico, a partir da
“invenção de uma tradição” (Hobsbawm, 2002),
17
essa cultura acabou sendo teatralizada e
espetacularizada
18
tendo, a princípio, o Museu como repositório, expandindo-se de diversas
formas (e continua a ser) em outros espaços e de formas diferenciadas, inclusive, fazendo com
que os moradores acabassem se identificando com essa cultura pré-colonial. Entende-se por
“tradição inventada” o conjunto de práticas, reguladas por regras aceitas, sendo essas práticas
de natureza ritual ou simbólica, visando inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica automaticamente, uma continuidade em relação ao passado
(Hobsbawm, 2002). No caso de Cachoeira do Arari, a repetição se por meio da apropriação
da cultura marajoara de formas diversas e por meio da confecção das cópias e réplicas.
Para os produtores dos objetos marajoara, as cópias são reproduções infiéis dos
objetos arqueológicos, enquanto as réplicas são as fiéis. A suposta fidelidade atribuída para as
réplicas confere uma espécie de autenticidade aos objetos, sendo essa autenticidade relativa,
Padre Giovanni Gallo, inserido no projeto desenvolvido por Denise Pahl Schann, denominado: Corpo e
sociedade: bioarqueologia e rituais funerários na fase marajoara, junto ao Museu Paraense Emílio Goeldi. Cf.
MARTINS JÚNIOR, Mário José. Codificação, acondicionamento e análise dos documentos relativos ao Museu
do Marajó e seu fundador Padre Giovanni Gallo. Relatório Técnico-Científico/PIBIC/CNPQ, Belém, Museu
Paraense Emílio Goeldi, 2005. (mimeo).
17
Cf. HOBSBAWM, Eric. “Introdução: A Invenção das Tradições” IN HOBSBAWM, Eric e TERENCE, Ranger
(org.). A invenção das tradições. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2002.
18
Conceito oriundo das reflexões de Garcia Canclini sobre a utilização do patrimônio coletivo enquanto política
cultural e de identidade nacional e a forma de sua celebração. Para o autor, a celebração do patrimônio cultural
torna-se espetáculo em cena com o objetivo de ser visto. Para analisar a questão também usa os conceitos
megalização, teatralização e celebração do patrimônio. Conferir. GARCIA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, EDUSP, 2003.
16
pois depende do lugar de enunciação ou de como é re-significada nos vários espaços onde se
encontra, como será discutido. Quando trato da suposta fidelidade, quero dizer com isso que
mesmo as denominadas réplicas não são cópias fiéis, como afirmam os ceramistas, pois no
instante da produção não se preocupam com as cnicas que reproduzeriam com exatidão os
objetos. Eles as denominam de réplica para lhes conferir credibilidade no mercado
consumidor como se verá nos capítulos III e IV, mesmo sabendo que não são fiéis como
afirmam.
Nesse capítulo, o II, utilizo-me da noção de “ilusão biográfica” discutida por Pierre
Bourdieu (2005).
19
O autor faz questão de frisar a relevância da interpretação dos documentos
pesquisados e a utilização de outras fontes na análise que venham a servir de base comparativa,
ao estudo de autobiografias, visto que o autor desse tipo de trabalho, por vezes, acaba
colocando em seus relatos suas intenções e o que desejaria que fosse visto ou lido pelo
provável leitor.
Essa interpretação fez-se pertinente, pois a maioria dos documentos pesquisados
corresponde a cartas pessoais, documentos assinados pelo próprio criador do Museu e pela sua
autobiografia em que relata sua vinda da Itália até sua chegada no Marajó e a formação do
Museu no lugar.
20
Finalizando o capítulo II, contextualizo o Museu do Marajó, sua formação e
faço breve descrição de seu acervo permamente.
A segunda etapa do trabalho de campo em Cachoeira, realizada nos meses de julho e
agosto de 2006, foi sobre a investigação da produção de cerâmica e de alguns dados que não
haviam sido contemplados anteriormente. Essa etapa deu subsídio para a escrita dos capítulos
seguintes, o III e IV. Foram pesquisadas todas as etapas da produção de forma minuciosa
tendo em vista os parâmetros locais. Considero essa etapa como a mais custosa da pesquisa.
Quando iniciei o trabalho da investigação dessa etapa da pesquisa tive dificuldade de
obter os dados acerca do processo produtivo. Por mais que eu estivesse a todo o momento
explicando o objetivo e as intenções do projeto, era perceptível que os produtores de cerâmica
não se sentiam à vontade para repassar as técnicas de confecção dos objetos em barro e nem de
19
Cf. BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. IN FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.).
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2005.
20
Cf. GALLO, Giovanni. O Homem que Implodiu. Belém, Secult, 1996.
17
ter minha presença nos momentos de trabalho. Os próprios registros fotográficos assustavam
os artesãos enquanto confeccionavam as peças. Isso acarretou a dispensa da máquina
fotográfica em alguns momentos da investigação. O receio de repassarem as informações
técnicas da produção, por vezes, atrasou o trabalho e inviabilizou o registro aprofundado de
algumas etapas de confecção da cerâmica. Aos poucos os ceramistas começaram a abrir as
portas de seus espaços.
Depois que comecei a agendar previamente minhas idas aos espaços de produção,
passei a me deparar com um ca no fim de tarde para um bate-papo, filmes para assistir,
convites para ir a ensaios de grupos regionais (vale ressaltar que eles faziam questão que eu
fotografasse todos os ensaios, pois precisariam das fotos futuramente) ou mesmo para simples
conversas que às vezes tornavam-se verdadeiras consultas terapêuticas, visto que desejavam
expor dificuldades particulares e encontrar soluções a partir das nossas conversas.
Esses desvios de percursos acabaram aproximando pesquisador e artesãos fazendo
com que as barreiras iniciais fossem superadas. A informalidade fez com que eles passassem a
confiar mais no trabalho que desenvolvia e no que falava sobre as intenções da pesquisa.
Depois do choque inicial, alguns deles chegaram claramente a dizer que pensavam que meu
objetivo era a obtenção das informações sobre o saber técnico cerâmico para que eu pudesse
ganhar dinheiro em Belém com a confecção de peças marajoara. Por essas razões e pelo pouco
tempo destinado para a pesquisa, alguns levantamentos foram mais escassos que outros, mas
que não acarretaram prejuízos maiores ao trabalho.
A experiência evidenciou a subjetividade da pesquisa na área das ciências sociais
mostrando que os sujeitos pesquisados, assim como o pesquisador, são pessoas com suas
subjetividades, desejos, vontades e principalmente medos e anseios, ressaltando que essas
questões podem acarretar dificuldades ou facilidades na investigação.
Antes desse registro etnográfico, o início do capítulo III será contemplado com a
questão acerca da forma do aprendizado do fazer técnico da cerâmica marajoara pelos
ceramistas locais, adentrando na problemática da “invenção de uma tradição” que se inicia no
lugar e queo está relacionada apenas com a produção de peças cerâmicas, mas a apropriação
da cultura marajoara de forma ampla a partir da observação das pinturas marajoara por toda a
cidade de Cachoeira, como se observará no trabalho.
18
Na segunda e última parte desse capítulo III, a base inicial para a pesquisa foi o Guia
Prático de Antropologia (1971),
21
que trata de algumas das principais etapas de confecção da
cerâmica. No decorrer da análise, outros trabalhos também servirão de base comparativa e de
auxílio, como os trabalhos de Lima (1986)
22
sobre a tecnologia de objetos cerâmicos entre
diversos grupos indígenas no Brasil e o Dicionário de Artesanato Indígena, de Berta Ribeiro
(1988),
23
que trata da classificação de peças de âmbito etnográfico, dentre elas os objetos de
barro.
Nesse processo também foram observados os materiais utilizados na confecção das
peças sem desprezar o registro fotográfico de todas as etapas do processo produtivo sob a égide
da Antropologia visual.
24
A importância atribuída para a Antropologia visual está imbutida em
todos os registros realizados no trabalho e não apenas a essa parte da dissertação. Todas as
fotografias foram feitas com máquina digital.
Durante a exposição das imagens, ensaiei um diálogo entre o escrito e o visual.
Tentei a composição do conjunto entre imagem e texto como parte da análise e da escritura.
Segundo Samain,
“... as fotografias não podem ser meros “suportes”, “excrescências” do texto que escreve,
nem tão menos os “álibis” forjados em vista do texto que se pretende escrever ... as
fotografias precisam funcionar como se fossem “pontos de partida”, “desencadeadoras”,
“molas inspiradoras” do texto que, com elas, procura elaborar.” (1995: 33)
25
Samain chama de circularidade para essa forma etnográfica de utilização de imagens,
visto que diz respeito à aliança entre os aspectos visuais de determinado trabalho e o texto
escrito, “[u]nião esta que, longe de instaurar a redundância e a duplicação, representa o
indispensável esforço para se aproximar [pesquisadores] dos homens e dos fatos sociais que
estuda.”. (Samain, 1995: 30)
21
Cf. ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE of Great Britain and Ireland. Guia Prático de Antropologia.
São Paulo, Cultrix, 1971, pp. 341-343.
22
Cf. LIMA, Tânia Andrade. “Cerâmica Indígena Brasileira” IN Suma Etnológica Brasileira. v. 2. Tecnologia
Indígena. Petrópolis, Vozes/Finep, 1986.
23
Cf. RIBEIRO, Berta G. Dicionário de Artesanato Indígena. Belo Horizonte, Itatiaia, EDUSP, 1988.
24
A importância atribuída a Antropologia visual na presente dissertação foi fruto de discussões e debates no curso
ministrado por Ana Luiza Carvalho da Rocha (UFRGS) e Cornelia Eckert (UFRGS) em Belém no período de 27 a
31 de março de 2006, chamado Curso de Antropologia Sonora e Visual.
25
Cf. SAMAIN, Etienne. “Ver” e “Dizerna tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia”. IN
ECKERT, Cornélia & GODOLPHIM, Nuno (orgs.). Horizontes Antropológicos, n° 2, Antropologia Visual,
PPGAS/UFRGS, 1995.
19
Esse esforço requerido pela Antropologia visual refletido por Samain (1995) tem
haver com a importância atribuída por Geertz ao ponto de vista dos nativos no âmbito da
pesquisa etnográfica, na medida em que as fotografias somarão na interpretação antropológica
dos aspectos pesquisados.
Usadas dessa forma, além do diálogo e da complementaridade entre o visual e o
escrito, o olhar que as imagens fotográficas possibilitam abriram novas dimensões para o olhar
antropológico e para a interpretação dos discursos
não revelados através da palavra escrita
durante a pesquisa de campo. Também acabou sendo um meio valioso de análise e
apresentação
dos acontecimentos da vida cotidiana de todos os lugares registrados, pois
acabaram apresentando os cenários, nos quais os acontecimentoso vividos e asões
praticadas.
Também foi realizada pesquisa de campo nas lojas e espaços de venda da cerâmica
produzida em Cachoeira do Arari. Os espaços localizam-se em Belém e no Marajó, na cidade
chamada Salvaterra. A pesquisa realizada na loja em Salvaterra deu-se em agosto de 2006. O
espaço de venda denomina-se Mbarayó. A cidade essituada na costa leste da ilha do Marajó,
distante aproximadamente 80 km do município de Cachoeira. Em Belém a pesquisa foi
realizada nos meses de setembro e outubro de 2006. Foram pesquisados cinco espaços de
venda, sendo a loja Tecatueté, as lojas da Secretaria da Cultura localizadas na Estação das
Docas e na Igreja de Santo Alexandre, o espaço de venda São José Liberto e no mercado do
Ver-o-Peso. A investigação nas lojas foi a base de análise do capítulo IV da dissertação.
No início desse capítulo, é feita reflexão acerca da autenticidade atribuída a essas
reproduções pelos artesãos, tendo por suporte as idéias de Baudrillard (1991)
26
quando trata da
importância da historicidade do objeto para que este seja considerado autêntico, dizendo que o
que é reproduzido são apenas simulações do real, simulacros, ou melhor, falsificações, e
Benjamim (1994),
27
cujas idéias ligam-se com a proposta de Baudrillard quando afirma que o
objeto reproduzido perda a sua aura, seu conteúdo histórico.
26
Cf. BAUBRILLARD, Jean.
Simulacros e simulações. Lisboa, Relógio d’água, 1991.
27
Cf. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” IN Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
20
Essa análise i se intercalar com a discussão sobre a busca da comercialização e
consumo de objetos considerados exóticos e com a reflexão sobre um retorno ao passado que
se inicia anteriormente, mas precisamente no capítulo III, a partir da análise de Hobsbawm
(2002) sobre a “invenção da tradição”. A idéia é mostrar o interesse e os motivos do porvir de
um passado e da busca de uma identidade tendo enquanto aporte a apropriação do antigo, nesse
caso, da cerâmica arqueológica marajoara.
Ainda no capítulo IV buscarei fazer abordagem sobre a busca de identidade em
conjunto com a espetacularização da cultura marajoara, mostrando como as pessoas passaram e
passam a se identificar com a “tradição inventada”, como esses objetos o expostos para
venda nas lojas e como são apropriados, tanto pelos produtores quanto pelos consumidores.
As questões darão suporte ao último tópico do capítulo, sobre a venda das peças e ao
simbolismo do consumo. Nessa parte, mostrarei as diversas re-significações atribuídas aos
objetos de cerâmica quando estão inseridos no âmbito da comercialização e circulação, quais
os usos e significados. Para isso fez-se necessário a análise dos dados pesquisados nas lojas
que vendem a cerâmica. Nesses espaços de venda procurei saber através dos vendedores,
questões acerca do público comprador das reproduções arqueológicas e se estes comentam os
destinos que darão as mesmas.
As questões pesquisadas fizeram-se pertinentes na medida em que, através delas, pude
observar as diversas re-significações dos objetos, o provável impacto de venda e procura de
peças antigas ou consideradas exóticas e a forma que os espaços de comercialização expõem
peças oriundas de um mesmo lugar, no caso de peças de Cachoeira do Arari. Por exemplo, na
pesquisa realizada nas lojas em Belém foram observados boutiques e uma feira, o Ver-o-Peso,
que comercializam os mesmos objetos. O leitor terá a oportunidade de observar a partir das
fotografias e da análise os significados atribuídos às peças marajoara quando se encontram em
uma loja considerada boutique ou mercado, visto que o público consumidor é diferenciado,
assim como o próprio ambiente e a forma de exposição das peças a serem comercializadas
divergem entre si. Essa observação fez com que fossem analisados os diversos valores dados
aos objetos em barro nos espaços que o expostos e vendidos e de como se metamorfoseiam
de acordo com a sua circularidade.
21
São essas as principais questões que serão analisadas no decorrer desse trabalho e que
se mostram enquanto busca de análise acerca do fenômeno cultural de transformação de cacos
cerâmicos encontrados em sítios arqueológicos da região do Maraem espetáculos turísticos
que, além de estarem servindo de identificação cultural, estão servindo de fonte de renda para
algumas pessoas do lugar.
22
II. As atribulações de um padre na Amazônia: Giovanni
Gallo e a criação do Museu do Marajó
28
28
A inspiração para este título veio de MAUÉS, Raymundo Heraldo. As atribulações de um doutor eclesiástico na
Amazônia na passagem do século XIX ou Como a política mexe com a Igreja Católica”. Revista de Cultura do Pará,
12 (1), 1991, pp.61-79.
Durante pesquisa de campo ficou evidente que seria necessário, pelo menos a
princípio, direcionar o trabalho sob dois enfoques: um sincrônico, atentando para o
estabelecimento de conexões entre as diversas situações observadas em Cachoeira do Arari, e
outro diacrônico, posto que discussões relacionadas ao tema de pesquisa surgiam o tempo
inteiro envolto a questões que extrapolavam o tempo presente, empurrando o olhar para
questões cuja compreensão dependia de uma incursão por territórios mais afeitos aos
historiadores. A criação do Museu do Marajó, ponto de partida da produção de cerâmica
proposto para análise neste trabalho, “saltava aos olhos” como o resultado de um longo
processo histórico e, mais exatamente, fruto da ação de um personagem histórico específico:
Giovanni Gallo.
Ao longo dos cerca de trinta anos que viveu no Marajó, Gallo reuniu uma extensa
documentação, que hoje se configura numa das principais fontes de informação para a
compreensão do processo de criação do Museu do Marajó. A outra possibilidade de acesso a
este contexto diz respeito aos moradores de Cachoeira do Arari, cuja memória constitui um
rico manancial de informações sobre o Museu e a relação dos moradores com o seu
idealizador, conforme será discutido no próximo capítulo.
Os documentos reunidos por Gallo e atualmente pertencentes ao Museu do Marajó
são ofícios e cartas produzidos por ele próprio e enviados para políticos e/ou instituições
diversas, as respostas correspondentes a estes, recortes de jornais ou mesmo documentação
pessoal do fundador do Museu. Dentre a massa documental, poucos são, por exemplo, os que
permitem ouvir as vozes de seus opositores nos diversos conflitos que marcaram o processo de
criação do Museu.
Outra importante fonte para análise no presente capítulo foi o livro escrito por Gallo
denominado O homem que implodiu.
29
Esse livro é uma espécie de autobiografia que mostra
sua trajetória desde a Itália, onde nasceu, e seu percurso religioso a partir da sua inserção na
Ordem dos Jesuítas até sua chegada ao Brasil e seu afastamento da Ordem. O entrecruzamento
de análise dos documentos com a obra escrita por ele, permitiu que a interpretação não fosse
seduzida pelo que se encontrava escrito como relato pessoal sob pena de incorrer no que
29
Cf. GALLO, Giovanni. O Homem que Implodiu. Belém, Secult, 1996.
23
Bordieu (2005)
30
chamou de “ilusão biográfica”. Segundo este autor, geralmente as histórias
de vida são vistas como relatos unilineares e a vida como um caminho linear, que tem começo,
meio e fim e que este, de uma forma ou de outra, acaba sendo um fim que terá êxito, uma bela
carreira. Isso porque o autor da autobiografia acaba tornando-se o ideólogo de sua própria
vida, selecionando, em função de uma intenção global, certos acontecimentos significativos e
estabelecendo entre eles conexões para lhes dar coerência.
O biógrafo acaba selecionando fatos significativos de sua vida ou trajetória, a partir
de interesses pessoais de fatos relatados da sua forma e de como gostaria que fosse visto pelo
provável leitor. Sobre a autobiografia de Giovanni Gallo, nota-se que ele pintou o auto-retrato
de um homem extremamente injustiçado a partir dos conflitos em que se envolveu no Marajó.
A questão crucial, nesse caso, é a perspicácia do analista ou pesquisador em perceber
determinadas armadilhas inerentes desse tipo de trabalho e tentar não cair nelas.
Bourdieu afirma que
“... o relato de vida varia, tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo, segundo a qualidade
social do mercado no qual é oferecido a própria situação da investigação contribui
inevitavelmente para determinar o discurso coligido. Mas o objeto desse discurso, isto é, a
apresentação pública e, logo, a oficialização de uma representação privada de sua própria
vida, pública ou privada, implica um aumento de coações e de censuras específicas...” (2005:
189)
Isso põe em discussão as subjetividades desse sujeito que, ao escrever, tem suas
intenções, pois permeado de emoção, acaba colocando nas páginas de seu livro, de seu diário
ou até mesmo de sua agenda, algo que ele deseja que seja visto ou, quem sabe, revelado.
Por essas razões Levi (2005)
31
ressalta que o historiador ou o pesquisador de
documentos desse gênero, precisa buscar novos tipos de fontes, que podem ser testemunhos
para descoberta de indícios esparsos dos atos e das palavras do cotidiano, mas precisamente
daquilo que não tem relação com as intenções marcadas no documento. Isso também pode vir
a reacender o debate sobre as técnicas argumentativas e sobre o modo pelo qual a pesquisa se
30
Cf. BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica” IN: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO Janaína (orgs.).
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2005.
31
Cf. LEVI, Giovanni. “Usos da biografia” IN FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2005.
24
transforma em ato de comunicação por intermédio de um texto escrito. A própria interpretação
antropológica parece ser crucial a um melhor entendimento dessas narrativas.
Bastante inspiradora nesse sentido é a abordagem que Suely Kofes fez da trajetória de
Consuelo Caiado.
32
Longe de reproduzir a separação radical entre Antropologia e História,
Kofes constrói sua interpretação no sentido de mostrar a possibilidade de que ambas as
disciplinas trabalhem a partir de uma interconexão de temporalidades e de lugares.
Muito antes de Kofes, Lévi-Strauss havia se dedicado a essa reflexão quando no
primeiro capítulo de seu Antropologia Estrutural aborda a importância do diálogo entre as
duas disciplinas. Segundo o autor, esse problema dialógico entre História e Etnologia é
freqüente e faz-se necessário revê-lo. Ele afirma que
“[p]retender reconstituir um passado do qual se é impotente para atingir a história, ou querer
fazer a história de um presente sem passado, drama da etnologia num caso, da etnografia no
outro, tal é, em todo caso, o dilema no qual o desenvolvimento delas, ao longo dos últimos
cinqüenta anos, pareceu muito freqüentemente colocá-las.” (2003: 15)
33
Segundo Lévi-Strauss (2003), História e Etnologia não possuem diferenças quanto ao
objeto de estudo, objetivos e muito menos nos todos de pesquisa. Elas se distinguem,
sobretudo pela escolha de perspectivas complementares, na medida em que a História acaba
organizando seus dados em relação às expressões conscientes e a Etnologia em relação às
condições inconscientes da vida social. Com isso, o autor vai mostrando que os estudos em
Etnologia não podem permanecer indiferentes aos processos históricos e a essas expressões
que ele denomina de conscientes dos processos sociais, haja vista que
“... se o etnólogo consagra principalmente sua análise aos elementos inconscientes da vida
social, seria absurdo supor que o historiador os ignora. Sem dúvida, êste pretende, antes de
tudo, explicar os fenômenos sociais em função dos acontecimentos nos quais êles se
encarnam, e da maneira pela qual os indivíduos os pensaram e os viveram. Mas em sua
marcha progressiva para reunir e explicar o que se manifestou aos homens como a
conseqüência de suas representações e atos o historiador bem sabe, e de maneira
crescente, que deve socorrer-se de todo o aparelho de elaborações inconscientes [ou seja] elas
nada podem uma sem a outra.” (2003: 39-40)
É no sentido desse diálogo que será apresentada a discussão acerca da criação do
Museu do Marajó e do seu idealizador, Giovanni Gallo.
32
Cf. KOFES, Suely. Uma trajetória, em narrativas. Campinas, São Paulo, Mercado das Letras, 2001.
33
Cf. LÉVI–STRAUSS, Claude. “Introdução: História e Etnologia” IN Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 2003, pp.13-41
25
Chega o idealizador: Giovanni Gallo
Giovanni Gallo nasceu em Turim, uma cidade italiana, no dia 27 de abril de 1927.
34
Ingressou no noviciado da Companhia de Jesus em agosto de 1943, em Cuneo, na Itália.
Ainda na época do curso ginasial realizado em Turim, no último ano de seus estudos, o reitor,
reconhecido apreciador da Ordem Jesuítica, deu-lhe de presente um livro com os seguintes
dizeres: Si vis perfectus esse: Se você quiser ser perfeito… entre na Companhia de Jesus.”
(Gallo, 1996: 39).
Segundo Gallo
“[eu] sempre tinha ouvido falar que os jesuítas são os padres mais inteligentes do mundo,
tropa de elite e de choque, a nata da classe eclesiástica, e me senti altamente gratificado [pelo
presente]. Eu queria mesmo ser padre. Tendo a possibilidade de ser um padre classe A, achei
uma boa. Dei um duro para me preparar para o exame de admissão ao Liceu…” (1996: 39)
De fato, as atitudes de Gallo em seu trabalho religioso nas comunidades do Marajó
evidenciam o quanto ele se encaixava nessa perspectiva de tropa de elite e de choque dos
chamados soldados de Cristo”, seja no embate com os que não eram membros do clero, seja
com aqueles que, muito embora sendo padres ou mesmo bispos, não seguiam as orientações
dos “padres mais inteligentes do mundo”.
Mesmo tendo passado a maior parte de sua vida servindo a Companhia de Jesus,
algumas vezes viu-se indeciso, pois diferente do que pensava antes da entrada na Ordem,
“... foi um choque. Na primeira experiência prática como religioso me dava conta que a
realidade não era a tão badalada Companhia de Jesus, mestra e modelo, e sim uma máquina
mal equilibrada que rodava desesperadamente para não desmantelar-se, sustentando a
bandeira da tradição, que de fato só servia para encobrir um quadro desolador.” (1996: 71)
Mesmo diante das dificuldades observadas Gallo continuou inserido na Ordem a
1983. Segundo afirmou em sua autobiografia (1996), ele tinha grande vontade de se
especializar em Sociologia, pois considerava que essa disciplina era fundamental para realizar
um trabalho sério. O interesse de Gallo pela Sociologia vê-se mais tarde nos seus projetos de
34
Cf. Acervo do Museu do Marajó (AMdM), Certificato di Nascita. Torino, Itália, 13/02/1953. Parte dos
documentos utilizados nesse capítulo pertencem ao acervo do Museu do Marajó (AMdM) e estão em Cachoeira do
Arari, e a outra parte encontra-se no acervo de pesquisa de Denise Pahl Schaan, no Museu Paraense Emílio Goeldi.
Manteve-se a grafia e os grifos originais dos mesmos. A documentação que se encontra no acervo do Museu do
Marajóo foi inventariada.
26
inserção social observado nas comunidades onde trabalhou. Como não havia interesse por
parte da igreja de que os padres estudassem Sociologia, ele teve que se contentar, mesmo
contrariado, com os estudos de Filosofia.
35
Em sua vida sacerdotal, Gallo disse ter sido, a partir de um certo momento, designado
a ser um missionario volante, quer dizer, “... missionário voador, sempre disponível como o
verdadeiro jesuíta…” (1996: 82), estando sempre pronto para cumprir as missões para onde
fosse designado.
Sua vinda para o Brasil em 1970, por exemplo, foi uma dessas designações da
Companhia: “... não foi uma escolha minha, e sim, uma saída de emergência exigida pela
obediência da vida religiosa.” (1996: 137). Gallo interpretava sua vinda para o Brasil como o
abandono da posição de “Padre classe A”. Para ele, esse deslocamento significava o “... desejo
desinteressado de queimar as ... últimas forças em prol dos ... irmãos do Terceiro Mundo.”
(1996: 141). Os vários projetos pessoais desenvolvidos por ele no Brasil deixam claro que não
se tratava apenas de um desejo desinteressado.
Gallo chegou ao Marajó em 1973, tendo trabalhado antes em bairros pobres de
Salvador e São Luís do Maranhão (Martins Júnior, 2005).
36
Foi uma oportunidade de ... ser
pastor entre pescadores de uma perdida comunidade remanescente de índios marajoaras,
Jenipapo. Vila cabocla que resiste a estios e enchentes às margens do lago Arari...” (2005:
XV).
37
Jenipapo é uma comunidade que se localiza no município de Santa Cruz do Arari.
Segundo Martins Júnior (2005), em reportagem a uma revista chamada Brasília, Giovanni
Gallo afirmara que decidira “... assumir o destino daquela gente antevendo um futuro incerto e
cheio de pesadelos [isso porque,] percebera que muitos valores culturais da região vinham se
35
Cf. AMdM, Curriculum Vitae de Giovanni Gallo. Cachoeira do Arari, s/d.
36
Cf. MARTINS JÚNIOR, Mário José. Codificação, acondicionamento e análise dos documentos relativos ao
Museu do Marajó e seu fundador Padre Giovanni Gallo. Relatório Técnico-Científico/PIBIC/CNPQ, Belém,
Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006. (mimeo)
37
Cf. VIEIRA, Ima Célia Guimarães. “Apresentação” IN GALLO, Giovanni. Motivos ornamentais da cerâmica
marajoara: modelos para o artesanato de hoje. Cachoeira do Arari/PA, Museu do Marajó, 2005.
27
perdendo...” (2005: 5). Essa sua concepção revela um discurso peculiar de muitos padres
católicos, a saber, a idéia de que é necessário assumir os destinos do povo, atuando como
porta-voz de seus interesses, posto que se imagina que o povo não sabe falar por si próprio ao
afirmar que iria assumir o destino dos marajoara e evitar que os valores culturais daquelas
pessoas continuassem se perdendo.
Assim, instalou-se no Marajó até a sua morte no ano de 2003. A primeira estada de
Giovanni Gallo no Marajó foi em Jenipapo, para anos depois se instalar definitivamente em
Cachoeira do Arari. Foi para esta cidade por diversos percalços que contribuíram para a saída
de Santa Cruz do Arari.
Gallo fazia questão de ressaltar que sempre esteve muito ativo durante a sua vida
sacerdotal em trabalhos assistenciais, com intuito de beneficiar, pelo menos em parte, as
populações mais carentes. Frisa seus empreendimentos na área social desde a estada no
Maranhão. Com relação ao Marajó não foi diferente, mostrando-se muito ativo nos
empreendimentos sociais. Sua inserção nesse tipo de trabalho fez dele uma figura bastante
popular, o que segundo ele irritou alguns políticos locais e até mesmo seus companheiros de
vida religiosa, afetando diretamente sua relação com algumas pessoas tanto da Igreja como da
política.
Dois nomes se destacam nesses conflitos: Eurípedes Bentes Pamplona Filho, mais
conhecido como Pidizinho, ex-prefeito em Santa Cruz do Arari, filiado ao então Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) e Dom Ângelo Rivatto, na época bispo da Prelazia de Ponta de
Pedras, outro município do Marajó, próximo da localidade onde vivia Gallo. Os documentos
existentes no acervo do Museu do Marajó indicam que foram inúmeras as desavenças
envolvendo os três personagens.
Em uma das cartas que escreveu a Dom Ângelo Rivatto tratando de seu
desentendimento com Eurípedes Bentes Pamplona Filho, o Pidizinho, Gallo afirma tratar-se de
“...um homem sem escrúpulos, disposto a tudo, quanto mais agora que está reparando que a
28
liderança dele está pifando.”.
38
Sem contar com várias denúncias que são feitas, anunciando
ainda mais a hostilidade entre ambos, e ofícios de provocações e ameaças feitas para Giovanni
Gallo, as quais ele julgava que eram “... graves, o pessoal esmuito preocupado, nesses dias
não permitiam que eu me afastasse do Centro sem alguém que me acompanhasse.”.
39
A briga estendeu-se para a Prelazia de Ponta de Pedras, que coordenava os trabalhos
dos padres na ilha. Em um dos documentos, Gallo diz que existe de fato, não uma prelazia,
mas “... duas Prelazias, isto é, a Paróquia de Ponta de Pedras por um lado e as demais
paróquias pelo outro [dizendo que] qualquer pesquisa superficial leva a conclusão que de fato
existe uma diferença notável entre as obras de Ponta de Pedras e as demais Paróquias.”.
40
Nesse momento, ocorre uma disputa política e de popularidade entre os envolvidos,
fazendo com que a situação se agravasse a ponto de Giovanni Gallo pedir para sair de Santa
Cruz do Arari, pela divergência com Dom Ângelo Rivatto em conjunto com a dificuldade de
lidar
com seu superior, colocando em discussão seu voto de obediência.
A desobediência de Gallo contra a autoridade da prelazia do Marajó remete ao que
Hoornaert (1992)
41
afirmou sobre o cristianismo amazônico quando trata a Amazônia como
um refúgio religioso. Ele mostra que a partir de determinado período, a região fica diante de
um catolicismo não-sacramental em todo o vale Amazônico. O autor afirma que as distâncias,
a falta de padres, a diversidade cultural, assim como outros elementos, fizeram com que a
religião acabasse resistindo, em parte, aos ataques da romanização e da internalização da
evangelização oficial, deixando os laços e os votos da oficialidade um tanto frouxos. Quem
sabe Gallo não encontrou esse refúgio?
38
Cf. AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Jenipapo, 04/04/1975.
39
Cf. AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo Rivato. Santa Cruz do Arari, 28/11/1976.
40
Cf. AMdM, Encontro dos Padres da Prelazia de Ponta de Pedras em Salinas, 28/08 a 01/09/1976.
41
Cf. HOORNAERT, Eduardo. “O Cristianismo Amazônico a Amazônia como refúgio religioso” IN
HOORNAERT, Eduardo (coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1992.
29
No estudo realizado por Maués (1995)
42
sobre o catolicismo popular
43
e o controle
eclesiástico em Vigia, município localizado na microrregião do Salgado, litoral do Pará, em
alguns momentos o autor aborda a atuação de sacerdotes na região e a forma que interagem
entre si. Ele mostra que a Igreja, por vezes, adota estratégias diferenciadas de atuação quando
em contato com o catolicismo popular, ou seja, afrouxa suas concepções. Com isso surgem
conflitos dentro da própria instituição, por uns se adaptarem a esse novo catolicismo e outros
não, mostrando a existência de diferentes grupos dentro da mesma Igreja, voltados para linhas
de atuação às vezes conflitantes.
Os sacerdotes que se adequam ao novo catolicismo acabam, divididos nas suas
lealdades, deixando de lado os votos feitos com a Igreja, moldando-se a uma nova forma de
praticar o sacerdócio. Isso acaba contrariando a ação da Igreja. Maués (1995) afirma que
alguns sacerdotes, como instrumentos de hierarquia por estarem mais identificados com o povo
e por questões de temperamento e personalidade, acabavam por exercer um controle mais
frouxo e que estes mesmos sabiam porém agir com energia e habilidade, não importando o
quanto estivessem divididos.
Este parece ser o caso de Gallo, um homem comprometido com questões sociais,
muito embora não fosse propriamente um padre progressista e que por essas razões deixou os
laços com a hierarquia católica mais frouxos, dividindo-se em suas lealdades sacerdotais,
achando um lugar onde poderia se colocar de forma diferenciada. Essas divergências e
conflitos são perceptíveis na documentação pesquisada.
De fato, ao longo de sua trajetória religiosa, nota-se que Gallo interpretava de
maneira bastante peculiar os votos de obediência, pobreza e castidade que fez por ocasião de
sua ordenação como padre jesuíta. Em diversas passagens de sua autobiografia (1996),
observa-se que aos poucos, sua disposição em estar sempre disponível como o verdadeiro
jesuíta” vai perdendo força, substituindo seu voto de obediência por atitudes explícitas de
42
Cf. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico.
Um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém, CEJUP, 1995.
43
Segundo Maués, “... catolicismo popular, [é] ... aquele conjunto de práticas socialmente reconhecidas como
católicas, de que partilham sobretudo os não especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou às
classes dominantes.” (1995: 17)
30
desobediência. Os conflitos entre Gallo e a orientação dos superiores jesuítas chegam a tal
ponto que resultam no pedido de desligamento da Ordem, feito pelo próprio religioso. Em um
documento escrito para a diocese de Ponta de Pedras e ao Provincial Jesuíta da Bahia, Gallo
deixa isso bastante claro ao afirmar que o “... documento é para comunicar a ... renúncia à
Paróquia de Sta Cruz do Arari, da qual tomei posse desde o começo do ano de 1973. Tomei
essa decisão porque: Não concordo com a linha pastoral do Dom Ângelo M. Rivato (...) [e] não
concordo com a atuação social dele (...)”.
44
Os grifos feitos por Gallo na documentação mostram o desacordo e a desobediência
de forma clara. Não foi possível durante a pesquisa escutar as outras vozes envolvidas para o
estabelecimento de contrapontos e de diálogo, ou seja, a obtenção de outras interpretações e
narrativas dos fatos, haja vista que esse não era o objetivo do trabalho, mas as divergências
entre Gallo e as duas autoridades que estiveram em cena acaba indicando a sua dificuldade de
colocar em prática seu voto e de lidar com seu superior no Marajó.
Gallo recebeu o documento oficial de sua incardinação, em que obteve a dispensa de
seus votos religiosos na Companhia de Jesus, aos 28 de março de 1984, assinada por Dom
Alberto Gaudêncio Ramos, Arcebispo Metropolitano de Belém na época do ocorrido.
45
Durante o período que viveu no Pará, além dos trabalhos de assistência social, Gallo
atuou como Técnico Cultural na Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, em 1993, foi
Chefe da Divisão de Cultura, Desportos e Turismo, na prefeitura Municipal de Cachoeira do
Arari, depois de sua saída de Santa Cruz do Arari, Secretário Municipal de Cultura, Esporte e
Turismo, na prefeitura de Pedro Lucena em Cachoeira do Arari e sempre era convidado para
participar de reuniões e atos políticos a pedido da prefeitura da época, ou seja, também estava
inserido na política local, questão que sempre pareceu deixar de lado nos documentos e na
autobiografia (1996). Mesmo assim afirmou certa vez que: “[p]adre e político,
psicologicamente, saíram da mesma matriz. Têm a missão e a chance de ser benfeitores do
povo. o serão de fato, se conseguirem, superar as mesmas tentações profissionais.”
46
As
44
Cf. AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo Maria Rivato. Santa Cruz do Arari, 06/06/1981. (Grifos
do original)
45
Cf. AMdM, Incardinação do Pe. Giovanni Gallo. Belém, Cúria Metropolitana, 28/03/1984.
46
A Província do Pará, O padre e o político, por Pe. Giovanni Gallo. Belém, 16/12/1985, 2º caderno, p. 11.
31
disputas que ocorreram no campo da política e da popularidade em Santa Cruz do Arari
mostram que Gallo e seus opositores não conseguiram superar as mesmas tentações
profissionais. As tentações dizem respeito à popularidade disputada por ambos perante o povo
do Marajó, projetos assistenciais que mostravam executar e a participação no âmbito da
política. Talvez por isso diversos projetos que ele pretendia executar de assistência social
acabaram sendo indeferidos diversas vezes pelas autoridades locais.
47
Quando recebeu o título de Cidadão do Pará, Gallo disse que o principal motivo do
título foram os “... relevantes serviços prestados ao Estado. Nada de política no meio, o
reconhecimento do meu trabalho social, obedecendo a uma certa tradição consagrada, que
tinha dado a mesma honraria ao Papa João Paulo II na sua visita a Belém. Aliás, até o meu
Bispo já tinha recebido.”
48
Se o discurso não fosse observado nas entrelinhas e se deixasse seduzir por seu tom
apolítico, sem fazer relação com outros documentos ou fontes, como ressaltou Levi (2005),
poderíamos acreditar que realmente Gallo nunca pensou em uma atuação política, mas esses
indícios indicam o contrário. Segundo ele, “[t]em gente também que vê em mim um dedo duro
da polícia, um oportunista, ou para ser mais explícito “entre aspas” (as palavras históricas não
podem ser alteradas) peço vênia, entre aspas “puxa-saco do governo”.”.
49
O próprio recebimento do título pode ter advindo de ligações políticas e ideológicas
com políticos da época, visto que muitos títulos e honrarias recebidas desse âmbito são
concedidos pelo estabelecimento de relacionamentos dessa ordem. Essas questões fazem-se
pertinentes para serem analisadas, pois recriar a vida de um personagem é também explorar as
suas relações, os seus valores, tanto quanto a política e a história local, como frisou Kofes
47
Ele denuncia isso em diversas cartas endereçadas ao Dom Ângelo Rivatto como forma desabafo à Prelazia.
Conferir AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Jenipapo, 15/03/1975, AMdM, Carta de
Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Jenipapo, 04/04/1975, AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom
Ângelo M. Rivato. Santa Cruz do Arari, 04/04/1975 (às 21h30), AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom
Ângelo M. Rivato. Santa Cruz do Arari, 12/04/1975.
48
Cf. discurso na íntegra em: AMdM, Discurso do Pe. Giovanni Gallo na cerimônia de recebimento do título de
cidadão do Pará, na Assembléia Legislativa. Belém, 27/10/1981.
49
Cf. AMdM, Discurso do Pe. Giovanni Gallo na cerimônia de recebimento do título de cidadão do Pará, na
Assembléia Legislativa. Belém, 27/10/1981.
32
(2001). Por isso é importante etnografar os caminhos que se encontram na entrelinhas da
história e que nos dizem grandes coisas acerca do personagem.
Gallo chegou até mesmo a ser cotado para ser candidato da prefeitura de Santa Cruz
do Arari tendo em vista a idéia de que “o sacerdote conhecia a fundo os problemas da região”
[em que esperava ser] “... lançado pelos pescadores, vaqueiros, criadores” assim como
esperava contar com o apoio do prefeito da época.
50
É importante destacar a questão para
contextualizar desavenças e disputas entre personagens, e também para melhor entender a sua
saída do município e a chegada em Cachoeira do Arari.
Mesmo que Gallo não tivesse a intenção de engajamento nas questões políticas, no
momento das disputas e desavenças entre os envolvidos o padre teve que se aliar a algum
grupo. Provavelmente a aliança tenha sido estabelecida enquanto forma de defesa. Não é à toa
que na documentação pesquisada é fácil encontrar documentos de políticos que o apóiam,
como pode ser visto em alguns selecionados para análise desse capítulo. Apenas não é
conveniente divulgar a impossibilidade de política imbricada no processo, pois apoio oriundo
de governo tendo em vista algum objetivo pressupõe aliança, mesmo que o acordo não seja
formal.
Dessa forma, as intrigas e desavenças fizeram com que Giovanni Gallo se retirasse de
Santa Cruz do Arari e fosse em busca de outro lugar que pudesse abrigar o seu Museu. Sim!
Giovanni Gallo, antes de inaugurar o Museu do Marajó em Cachoeira do Arari havia criado
um museu em Santa Cruz do Arari chamado O Nosso Museu, que foi o único trabalho
desenvolvido na comunidade depois de sua incardinação, segundo nos aponta sua
autobiografia (1996).
Segundo Giovanni Gallo tudo começou assim:
“[u]m dia, seu Vadico, grande amigo e colaborador, chegou em casa com um embrulho. Sem
falar, depositou-o em cima da mesa. - O que é? Aqui estão uns negócios que não prestam,
como o senhor gosta. Gostei do cumprimento, porque era o reconhecimento do meu interesse
para tudo o que é Marajó. Intrigado, apalpei com uma certa cautela aquele conjunto de
50
Cf. A Província do Pará, Gallo candidato. Belém, 02/11/1981, 1º caderno, p. 4.
33
negócios, desenrolei o papelão e descobri uma série de cacos de cerâmica. “Caco”, na
linguagem marajoara, é exatamente o termo científico das peças arqueológicas. Naquele
momento, vassoura na mão, apareceu a senhora da limpeza, espiando curiosa. Será que
prestam? Ela já tinha reparado o meu interesse, por isso só podia dar a única resposta
possível, segundo a lógica marajoara. Prestam, sim senhor. Para quê? A mulher quase
entrou em sinuca, no desespero de inventar uma justificativa decente. Foi um instante.
Feliz da vida explicou: - Para entulhar o quintal. Esqueci logo o quintal e fiquei
contemplando, extasiado, aquelas amostras que pareciam fruto da coleta de um abençoado
arqueólogo. Uma careta caprichada, uma série de risquinhos ingênuos como de criança que
brinca com um espinho, uns fragmentos de decoração incisa e excisa, um jogo simétrico, a
tentativa duma figura estilizada, um peixinho, um jaburu em vôo. De tudo um pouco, só coisa
fina”. (1996: 179-180. Grifos do autor).
A narrativa apresentada por Giovanni Gallo mostra-se enquanto um mito de origem
do Museu, visto que quando a apresenta, logo faz relação com o trabalho de formação do
museu instalado em Santa Cruz do Arari e faz questão de expor que a instalação do acervo
deu-se a partir do ocorrido. Então, segundo o criador, a partir do ocorrido ele começa o
trabalho de formação de um museu no local coletando diversas peças que pudessem compor o
seu acervo. Ima Vieira (2005), ex-diretora do Museu do Marajó, na apresentação do livro
Motivos ornamentais da cerâmica marajoara diz que
“[a] obra começou quando [ele] pretendeu despertar a consciência histórica e social daquele
empobrecido povo. Os pescadores, acostumados em suas incursões diárias nos sítios
arqueológicos, dando seqüência a costumeira destruição do passado, reagiram de maneira
insólita, levando como oferta ao irrequieto padre aquilo que diziam ser “cacos de índios”.”
(2005: XV)
Tais cacos eram a cerâmica arqueológica encontrada nos tesos
51
da região do Marajó
denominados cerâmica marajoara por terem sido feitos pelos antigos marajoara, que habitaram
a ilha por volta de 400 a 1300 AD.
52
A ilha ficou famosa devido a sua produção de cerâmica e
dos cacos encontrados nesses tesos.
53
51
Espécie de cemitérios indígenas onde ocorriam rituais funerários. Segundo Schaan, quando os índios morriam
(os chefes e membros de família que possuíam prestígio), tinham seus ossos “... descarnificados, desarticulados,
pintados e expostos em urnas funerárias ricamente decoradas, cercadas de oferendas e objetos pessoais ... as
urnas, com tampas e outros objetos, eram enterrados cuidadosamente.” (1999: 25). Conferir, SCHAAN, Denise
Pahl. “Cultura marajoara: história e iconografia” IN Museu Paraense Emílio Goeldi. Arte da terra: resgate da
cultura material e iconográfica. Belém, SEBRAE, 1999.
52
Para aprofundar o assunto conferir:
SCHANN, Denise Paul. A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara:
um estudo da pré-história na ilha do Marajó (400-1300 AD). Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997.
53
Schann, na introdução dos Motivos ornamentais da cerâmica Marajoara, afirma que os marajoara produziam
cerâmica simples, para cozinhar e para preparar alimentos, assim como confeccionavam uma cerâmica mais
elaborada para servir alimentos e bebidas em festas. Conferir: SCHANN, Denise Pahl. “Origens e significados da
cerâmica marajoara” IN GALLO, Giovanni. Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o
artesanato de hoje. Cachoeira do Arari/PA, Museu do Marajó, 2005.
34
A partir de então resolveu ir em busca de peças cerâmicas na região e de utensílios
contemporâneos do homem marajoara, tais como instrumentos de pesca, panelas, jarros, cuias,
cestarias e outros objetos. Disposto a “… coletar coisas e, sobretudo, informações sobre este
mundo encantador que é o Marajó...” (Gallo, 1996: 180), surge a idéia da criação de um museu
que pudesse agregar peças de valor etnográfico e arqueológico, reunindo artefatos que
pudessem representar o meio ambiente marajoara, como animais e vegetais.
Criar um museu no Marajó que pudesse recuperar, preservar e divulgar ao mundo a
cultura marajoara era a idéia de Giovanni Gallo quando pensou na criação do espaço. Foi
fundamentado na perspectiva de projetar o “... desenvolvimento da comunidade através da
cultura…”, [pois se preocupava com] “... um museu fincado no meio do nada...” (Gallo, 1996:
180) e, a partir dele, a possibilidade de promover o desenvolvimento local, tendo em vista
geração de renda e melhoria da qualidade de vida da população do Marajó.
A idéia de coletar coisas, objetos diversos, para serem vistos e poder fazer parte de
uma coleção, remete para a idéia da formação dos museus etnográficos no século XIX a partir
dos pressupostos evolucionistas, que tiveram seus primeiros vestígios no século XVIII com os
gabinetes de curiosidades a partir da coleta de objetos considerados exóticos pelos europeus.
Nesse caso, o objetivo era expor objetos para admiração pública, em contraposição a um
espaço de pesquisa e ensino. Aos gabinetes de curiosidades eram incorporados pedras,
vegetais, animais empalhados, objetos indígenas como plumárias, dentre outros (Ribeiro & van
Velthem, 1992 e Schwarcz, 1993).
54
A coleta das ditas curiosidades era feita por viajantes e naturalistas. Nas Américas, o
recolhimento de objetos se deu do século XVIII ao XIX. Os objetos recolhidos eram
depositados em instituições públicas na Europa a fim de tornarem-se fontes de informação aos
Ocidentais (Ribeiro & van Velthem, 1992).
54
Cf. RIBEIRO, Berta G & van VELTHEM, Lúcia Hussak. “Coleções etnográficas: documentos materiais para a
história indígena e a etnologia” IN CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. o
Paulo, Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, Fapesp, 1992 e SCHWARCZ, Lilia Moritz, “Os
museus etnográficos brasileiros: Polvo é povo, molusco também é gente” IN O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e questões raciais no Brasil – 1870 – 1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
35
Segundo Suano (1986),
55
nesse período a formação dos museus ou locais de
armazenamento desses objetos via-se diante de tendências e posições evolucionistas, pois o
momento era de “... grande exposição de “tudo” que a natureza e o homem criasse de exótico.”
(1986: 40).
A proposta evolucionista é pautada na idéia do estabelecimento de leis, ou seja, na
busca de uma mentalidade que viesse explicar o panorama geral de um suposto progresso
humano no qual povos ditos primitivos estariam em uma escala evolutiva inferior a dos povos
ditos civilizados europeus (Suano, 1986). O pensamento intelectual e científico do século XIX
é marcado por essas idéias, tanto na área das ciências naturais como nas ciências humanas. Foi
nesse clima intelectual que floresceram os primeiros museus no Brasil.
56
A palavra de ordem era salvar o que mais se pudesse, uma vez que a idéia que
imperava era a de que as culturas se extinguiriam e os vestígios estariam bem mais preservados
em museus (Schwarcz, 1993).
57
Algumas dessas idéias estão ligadas na formação desse acervo
no Marajó e no que estava expresso nas idéias de seu criador, mas algumas ressalvas são feitas,
até mesmo pela peculiaridade do espaço e de suas atividades, como veremos mais adiante.
Pode-se exemplificar dentre os pensadores evolucionistas da época, Couto de
Magalhães,
58
a partir da leitura que este faz dos índios em seu trabalho denominado O
Selvagem (1940) e da leitura que faz da cultura material indígena arqueológica do Marajó.
Segundo este autor
“... na bacia do Amazonas conhecem-se numerosos desses aterros,
59
e alguns deles, talvez os
mais notáveis, na ilha do Marajó, onde, entre outros, ha um que forma uma ilha artificial
55
Cf. SUANO, Marlene. O que é Museu. São Paulo, Brasiliense, 1986.
56
No Brasil, D. João VI cria em 1815 o Museu Nacional segundo os moldes europeus, com uma coleção de
História Natural. No final do século XIX surgem o Museu do Exército (1864), O Museu Paraense Emílio Goeldi de
Belém (1866), o Museu da Marinha (1868) e o Museu Paulista (1892). Conferir: GROSSMANN, Martin,
RAFFAINI, Patrícia T., COELHO, Teixeira. Museu” IN Dicionário crítico de política cultural. COELHO,
Teixeira (org.). São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 270.
57
Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz, “Os museus etnográficos brasileiros: Polvo é povo, molusco também é gente” IN
O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais no Brasil 1870 1930. São Paulo, Companhia
das Letras, 1993.
58
Cf. MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1940. Em O Selvagem,
Couto de Magalhães demonstra a própria noção que a Antropologia enquanto disciplina que emergia à época, tinha
acerca dos povos indígenas e que foram adotadas em seus escritos. Percebe-se isso quando expõe que, ... a
anthropologia demonstra que o homem physico passou sempre de período mais atrazado para um mais adeantado; a
historia demonstra o mesmo facto a respeito do homem moral. Toda a raça que é encontrada no período em que usa
de metaes teve sua edade de pedra. Toda aquella que é encontrada com instrumentos de pedra polida teve seu
período de instrumentos de pedra lascada.” (1940: 69).
59
O autor descreve esses aterros de forma minuciosa nesta obra.
36
dentro do lago Arary ... no fundo desses aterros encontraram-se as mais antigas urnas
funerárias ... Si os princípios dos mesmos aterros são contemporâneos mais ou menos do
povoamento das respectivas regiões, o estado de civilisação que elles indicarem será o estado
de civilisação dos selvagens quando para ahi emigraram. Dentro dessas urnas encontram-se
não só instrumentos como ornatos de pedra polida, a que no Pará chamam itan, além de que a
própria urna funerária, de argilla cozida, indica, por si, um período de civilisaçâo mais
adeantado do que o da pedra lascada. Em consequência, quando esses selvagens emigraram
para as referidas regiões, já haviam transposto aquelle período de civilisação. Não é neste
género de industria que os vestígios de nossos selvagens indicam uma solução de
continuidade entre o período de civilização em que os encontramos e os períodos de
civilização que deviam ter percorrido antes de chegar a esse.” (1940: 73)
Henrique (2003),
60
afirma que por trás da curiosidade científica de Couto de
Magalhães, ele estaria dando a sentença de morte aos costumes desses povos por essa seleção
natural tida como inevitável a partir do pensamento evolucionista, demonstrando que é
exatamente no bojo desse pensamento que os museus aparecem enquanto locus privilegiado de
preservação. Adiante será observado como algumas dessas idéias imperam na composição do
acervo do Museu do Marajó.
Destarte, tendo enquanto suporte algumas idéias evolucionistas oriundas desse
contexto histórico, Gallo passa a projetar um museu: o Museu do Marajó. Objetivando a sua
criação, em documento escrito e assinado por ele próprio, presidente do museu em Santa Cruz
do Arari e Olga Raimunda Pamplona Monteiro, vice-presidente, aos vereadores da Câmara
Municipal de Cachoeira do Arari, convidam para
“... participar aos Membros da Câmara Municipal a fundação da Associação, afirmando que a
“intenção” de seus fundadores e membros, tem o objetivo de promover o desenvolvimento do
Marajó em todos os sentidos. Mediante uma bem elaborada programação, confiamos de
poder despertar a atenção do grande público para a nossa área, que tem uma grande
potencialidade de desenvolvimento.”
61
O museu não seria “... somente a exposição de umas coisas bonitas mas também e
sobretudo um pólo de desenvolvimento.”
62
Além de ser um acervo de exposição de coisas
bonitas, de coisas diferentes, como um gabinete de curiosidades, Gallo pretendia fazer daquele
lugar um espaço de desenvolvimento social para o povo do Marajó.
60
Cf. HENRIQUE, Márcio Couto. O general e os tapuios: linguagem, raça e mestiçagem em Couto de Magalhães
(1864-1876), Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal do
Pará, 2003, mimeo.
61
Cf. AMdM, Carta de Giovanni Gallo aos vereadores de Cachoeira do Arari. Santa Cruz do Arari, 13/04/1982.
62
Cf. AMdM, Carta de Jarbas Passarinho ao Pe. Giovanni Gallo. Brasília, 6/05/1983.
37
Inicialmente ele foi chamado de O Nosso Museu, onde era possível observar animais
empalhados e a cerâmica arqueológica marajoara em conjunto com as outras peças. Acontece
que durante as obras de ampliação do museu em Santa Cruz do Arari, a Associação foi
surpreendida com um decreto de paralisação, assinada pelo prefeito Eurípedes Pamplona Filho,
e logo em seguida um edital de embargo das obras, determinando “... não dar continuidade às
obras do Nosso Museu até ulterior deliberação desta administração.”.
63
Segundo Gallo, além do medo que o então prefeito possuía de sua popularidade, após
ter recusado se filiar ao MDB, partido do prefeito, Eurípedes Pamplona passou a encarar o
museu como um obstáculo a sua hegemonia política. Além dessas divergências, para Gallo,
“... Dom Ângelo [também] ... estaria embargando todos os projetos por ele elaborados para a
comunidade de Santa Cruz do Arari.”.
64
Assim, diante desse contexto de desavenças no campo
ideológico, ele se viu obrigado a retirar-se da cidade e pensar em um outro lugar para dar
prosseguimento ao que seria designado de Museu do Marajó.
Museu do Mara
Gallo decidiu convocar uma Assembléia Geral dos associados do Nosso Museu de
Santa Cruz do Arari para encaminhar algumas alterações que iriam ser dadas a partir daquele
momento. Os encaminhamentos foram a modificação da designação do museu para o Museu
do Marajó, a autorização e transferência da sede social e dos materiais para o local da nova
sede.
65
A justificativa dos cios em Assembléia foi a de que essa nova denominação era
bem mais abrangente por se tratar de um museu não mais apenas de Santa Cruz do Arari e sim
do Marajó. Assim, aprovaram a transferência para Cachoeira do Arari, que segundo o
documento mostra, parecia ser um local de mais fácil acesso e principalmente “... onde a
Prefeitura se compromete a facilitar meios para o maior desenvolvimento [das] atividades, o
63
Cf. AMdM, Of/65/83, de Eurípedes Bentes Pamplona Filho, prefeito de Santa Cruz do Arari, para Giovanni
Gallo. Santa Cruz do Arari, 11/05/1983 e AMdM, Edital de embargo nº 01/83. Santa Cruz do Arari, 14/06/1983.
64
Cf. A Província do Pará, Carta vai pedir a JP que evite saída do padre Giovanni Gallo. Belém, 06/08/1981,
caderno, Plano Geral, p. 3 e O Liberal
, “Um padre que precisa ficar”, por João Malato. Belém, 25/07/1981,
caderno, Opinião.
65
Cf. AMdM, Edital de Convocação para Assembléia Geral Extraordinária do O Nosso Museu de Santa Cruz do
Arari. Santa Cruz do Arari, 13/07/1983.Cf. também AMdM, Cartório Leão Júnior, Certificado de Registro da
mudança de nome do O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari para o Museu do Marajó. Cachoeira do Arari,
09/03/1984.
38
que implicaria, também na transferência para aquela cidade, dos materiais desmanchados das
construções, e de todo o acervo social”,
66
demonstrando claramente o apoio que possuía do
prefeito na época.
Sendo assim, a Associação Museu do Marajó foi fundada no dia 16 de dezembro de
1981. Observa-se que Gallo mudou-se para Cachoeira do Arari, principalmente pela facilidade
política encontrada no lugar, haja vista que as possibilidades seriam mais viáveis aos seus
projetos. Essa questão remete à discussão feita anteriormente acerca do estabelecimento de
relacionamentos no âmbito da política que faz com que projetos e vontades pessoais sejam
facilitados.
Vale ressaltar que Gallo compôs o acervo do Museu em um prédio que se encontrava
disponível para ser comprado com objetivo de formação de sua exposição visto que foi o único
local apresentado pelo prefeito da época, Edir Neves, no momento que as desavenças ocorriam
em Santa Cruz do Arari. Isso evidencia que não foi um lugar planejado e adequado para
critérios museológicos que tem em vista a preservação de peças do âmbito das pertencentes ao
acervo. Entre os documentos pesquisados foi encontrada uma carta escrita por Giovanni Gallo
a Edir Neves, que chamava atenção da proposta do então prefeito, acerca do “...convite para
Cachoeira a fim de montar no seu município O Nosso Museu, com todo o seu apoio e a sua
colaboração.”.
67
Em uma carta destinada ao Deputado Federal Manoel Ribeiro, Giovanni Gallo trata
de sua decisão de transferência do museu para Cachoeira do Arari, dizendo possuir todo o
apoio do prefeito do lugar e que
“... através do Dr. Aloysio Chaves Filho [estão] procurando de conseguir do Basa [Banco da
Amazônia] o prédio da nunca utilizada fábrica de óleos (Oléica) a fim de adaptá-la para
receber o museu ... porém confirmo mais uma vez, e mais do que antes, a necessidade de
receber ajudas para a realização do Museu do Marajó. Se conseguirmos superar este impacto,
[ele] será de verdade um pólo de desenvolvimento. Agências turísticas de Belém estão
aguardando impacientes a hora de deslocar para Cachoeira turistas famintos de Marajó.”
68
66
Cf. AMdM, Edital de Convocação para Assembléia Geral Extraordinária do O Nosso Museu de Santa Cruz do
Arari. Santa Cruz do Arari, 13/07/1983.
67
Cf. AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Edir de Souza Neves, prefeito de Cachoeira do Arari. Santa Cruz do
Arari, 11/03/1983.
68
Cf. AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Manoel Ribeiro, Deputado Federal. Belém, 02/09/1983. (Grifos do
original)
39
O turismo, atualmente um dos pontos básicos das políticas públicas, questão discutida
na maioria dos planos governamentais, tem por vezes em vista essa idéia desenvolvimentista
do lugar. O pensamento desenvolvimentista visa o crescimento de determinado lugar ou povo,
seja no âmbito da cultura, da economia, relacionada ao aumento da renda das pessoas, ou o
desenvolvimento de outros aspectos. Gallo objetivava atrair esse desenvolvimento para a
região a partir da criação do Museu. Para isso, utilizou o turismo enquanto estratégia a partir
da imagem que se tem do Marajó no Brasil e no mundo, como um lugar paradisíaco, em meio
à floresta Amazônica onde viveram os povos indígenas do passado, com florestas e matas
quase inexploradas. A necessidade de mostrar um lugar natural e inexplorado, assim como a
necessidade de estabelecimento e contigüidade com um passado se faz presente na propaganda
do lugar pelo turismo. Em sites que comercializam réplicas de cerâmica marajoara, podem-se
encontrar referências a isto:
“[f]alamos de produção marajoara do passado, os trabalhos originais de muitos séculos atrás
e misturamos isso com o artesanato atual. Claro que qualquer artesão pode localizar-se na
região e produzir o que desejar hoje em dia mas na prática uma certa continuidade do
estilo e maneira de produzir. É o peso de toda uma influência histórica e cultural. A cerâmica
feita hoje em Marajó continua sendo cerâmica marajoara na concepção histórica da coisa e
por posicionamento geográfico mas, principalmente, pelo estilo e forma. Está entre as mais
belas produções artísticas de cerâmica em todo o mundo. Basta olhar o que se faz lá e
constatar isso com facilidade.”
69
A necessidade de contigüidade com um passado histórico e a busca de identificação
cultural com esses povos antigos, remete ao que Baudrillard (2004)
70
reflete acerca da busca de
um mito de origem. Analisando o sistema dos objetos acerca da produção, comercialização e
consumo, o autor interroga:
“ [de] onde emerge essa motivação tenaz dirigida para o antigo, o velho móvel, o autêntico, o
objeto “de estilo”, o rústico, o artesanal, o feito à mão, a cerâmica indígena ... [d]e onde surge
esse espécie de fenômeno ... que arrasta os civilizados para os signos excêntricos, no tempo e
no espaço, de seu próprio sistema cultural, para os signos sempre anteriores...?” (2004: 83)
Ele afirma que isso tem relação com a busca de identidade e nostalgia das origens na
medida que os objetos funcionais, diferentes desses objetos não-funcionais, como é o caso da
cerâmica que faz alusão à arqueológica servindo como objeto de decoração nos lares, não
possuem o tempo mitológico.
Segundo Baudrillard
69
Cf. http://www.cyberartes.com.br. Acessado em: 24/09/2006.
70
Cf. BAUBRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo, Perspectiva, 2004.
40
“... a funcionalidade dos objetos modernos torna-se historicidade do objeto antigo sem
todavia deixar de exercer uma função sistemática de signo. É a conotação “natural”, a
“naturalidade” que no fundo culmina nos signos de sistemas culturais anteriores ... [o] tempo
mitológico é perfeito: ocorre no presente como se tivesse ocorrido outrora e por isso mesmo
acha-se fundado sobre si, “autêntico”.” (2004: 82-83, Grifos do original)
É como se esse tempo mitológico, passado, tivesse ligação e relação com o presente e
a partir destes objetos pudessem identificar uma identidade que, por vezes, são tradições
inventadas”. “O objeto antigo dá-se portanto como mito de origem” (2004: 84), como veremos
com mais acuidade nos capítulos seguintes quando for tratar das apropriações dos símbolos
marajoara enquanto identificação cultural em Cachoeira e desta “tradição inventada” no lugar.
Para Gonçalves (2001)
71
isso se dá em decorrência da elaboração e implementação de
políticas culturais, entre as quais se situam as políticas de patrimônio que visam a construção e
comunicação de uma identidade nacional ou étnica, em que o passado é simbolicamente usado
com o objetivo de fortalecer a identidade pessoal e coletiva presente. Essa afirmativa de
Gonçalves tem relação com a produção das réplicas designadas como autênticas pelos
produtores, a partir da produção e comercialização da cerâmica de Cachoeira.
Além da produção, Giovanni Gallo definiu o Museu do Marajó enquanto um espaço
de memória e identidade local. Existem placas e letreiros que confirmam o objetivo da busca
de identidade e preservação de memória a partir do Museu (Fotografia 8).
71
Cf. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos
patrimônios culturais” IN ESTERCI, Neide, FRY, Peter, GOLDENBERG, Mirian (orgs.). Fazendo Antropologia
no Brasil. Rio de Janeiro, DP&A, 2001.
41
Fotografia 8. Placa localizada no interior do Museu
Observa-se que tendo em vista a busca de identificação cultural por meio do Museu, a
placa contém grafismos marajoara, apropriando-se do simbolismo da cerâmica arqueológica
buscando uma identificação com esse passado.
Sobre os aspectos turísticos, ocorre uma tentativa de espetacularização do lugar por
meio da propaganda e da forma de apropriação desses objetos arqueológicos tendo como
referência o Museu e a exposição das peças, passando para a comercialização. Sobre a
comercialização, segundo Garcia Canclini (2003), essa produção considerada rústica e exótica
atrai turistas e consumidores urbanos que encontram nesses produtos signos de distinção e
referências personalizadas em oposição aos objetos funcionais e industrializados. O autor
afirma que por isso os produtores “[c]ada vez podem prescindir menos da informação e da
iconografia modernas, do desencantamento do seus mundos autocentrados e do
reencantamento que a espetacularização da mídia propicia.” (2003: 22).
Essa é uma das idéias que está no bojo da criação do Museu. Ele foi aberto ao público
em Cachoeira do Arari no dia 8 de março de 1984, sendo inaugurado oficialmente aos 12 de
dezembro de 1987 (Martins Júnior, 2005).
72
O Museu do Marajó é um espaço bastante peculiar. Logo na entrada o visitante se
depara com os seguintes dizeres: “o homem é a peça mais importante do museu”, frase que
reúne a concepção que Giovanni Gallo tinha ao projetar a exposição: o homem como centro do
72
Cf. Diário do Pará, Giovanni Gallo luta para inaugurar Museu este ano. Belém, 13/07/1984, Interior.
Foto: Anna Linhares (mai./2006
)
42
Museu. Segundo o idealizador, o Museu deveria ser da região, pois tinha o interesse de retratá-
la para ser conhecida, observada e valorizada. Quem faz determinado lugar a não ser o seu
povo! Pensando nisso planejou um lugar que viesse valorizar o homem marajoara, suas idéias,
costumes, valores e pensamento, uma interação homem/região.
Ele tentou compor o acervo a partir dessa idéia. Reuniu objetos que retratam o
homem marajoara, sua forma de falar, suas lendas e seus costumes. Tentou levar em conta o
ponto de vista dos nativos. Por esse motivo, virou um museu de caráter regional, aspecto que
se evidencia na própria designação: Museu do Marajó. O lema principal foi mostrar o homem
e não o objeto. Para Gallo isso nada mais era do que ... o elo entre o visitante e a realidade
marajoara” (1996: 261).
Com a concepção na cabeça e no papel começou a dar prosseguimento a obra,
iniciada com a doação de objetos por moradores da região, como apontei na narrativa que ele
apresenta de como tudo começou. Depois, como indica na autobiografia (1996) passou a
percorrer a região atrás de estórias e histórias sobre o lugar, seguindo as trilhas das temáticas
do Marajó, como as lendas, o folclore, os costumes, as crenças, a medicina popular e o meio
ambiente, assim como também foi em busca dos objetos que iriam compor o acervo. Foi
literalmente atrás de estórias de pescadores, que grande parte da população do Marajó vive
da pesca. Entre a documentação pesquisada observei diversas anotações, rabiscos, recortes e
divagações que me chamaram a atenção. Eram anotações de tudo que rascunhava durante suas
andanças atrás de informações para a exposição que projetava.
Além das inúmeras anotações, diversas fotografias e gravações em fita cassete
encontram-se junto aos rascunhos. São imagens dele próprio em viagens de barcos com os
pescadores, de rituais de pajelança, de animais do lugar, dentre outros registros. A quantidade
de fotografias de pessoas da região também chama atenção. São fotos de crianças, mulheres,
homens, senhoras, senhores e muitos pescadores. A grande quantidade de registros dos
pescadores por meio de fotos e registro das estórias e histórias destes homens, parece
evidenciar uma atenção especial para a categoria. Não se fez possível a oportunidade de ter
conhecimento do conteúdo das fitas, mas algumas possuíam o indicativo através de um selo
anexado, como gravações de estórias, lendas e conversas com moradores do lugar.
43
Giovanni Gallo saiu reunindo tudo que via e ouvia e aos poucos foi elaborando o
acervo. Seu projeto demonstrou ter sido um tanto solitário. Não detectei entre a
documentação, entre os livros que retratam sua história e nem pelas pessoas que o conheceram
contribuição de alguém em seu empreendimento e andanças pelo Marajó. Sendo assim, o
Museu do Marajó se fundamentou, essencialmente, na concepção de um indivíduo, dele
próprio.
Tendo em vista o material observado, percebe-se a instigante curiosidade do padre
pelas coisas da ilha, parecendo mesmo ser um pesquisador e museólogo autoditada. Assim, a
partir das curiosidades que coletou, passou a alocá-las no espaço que lhes foi designado em
Santa Cruz do Arari para depois terminar de acondicioná-las na antiga fábrica de óleos em
Cachoeira.
Para que o leitor possa visualizar o que venho apresentando a respeito da
singularidade do espaço, faz-se necessária uma descrição que minimamente venha dar noção
do acervo permanente do local. A exposição reúne objetos curiosos para serem apreciados
com a pretensão de mostrar o exótico e busca mostrar o homem e o meio ambiente marajoara,
como se fosse um grande gabinete de curiosidades, como frisei. Também expõe objetos
interativos que além de serem apreciados, devem ser tocados, pegados. A exposição está
dividida em um grande salão com oito subdivisões, divididos por biombos de madeira, sendo
uma das subdivisões localizada no andar superior do salão. Além desse grande salão, o acervo
conta com uma exposição externa.
Assim que o visitante entra na exposição, ele adentra na primeira sala que é composta
de peças arqueológicas encontradas na ilha. Em sua maioria são as cerâmicas marajoara
expostas em conjunto com as cópias e réplicas produzidas por artesãos da cidade. Além da
cerâmica, existe uma pequena quantidade de peças arqueológicas líticas. Como se pode
observar na fotografia 9, todos os objetos estão expostos em grandes vitrines com suportes de
madeira, conferindo grandiosidade e requinte aos objetos. o 39 vitrines contendo tangas,
tigelas, vasos, estatuetas, pratos, caretas e urnas funerárias marajoara, além de inúmeros cacos
cerâmicos e reproduções de algumas peças de barro. Os objetos não possuem fichas de
identificação, assim como o restante do acervo, salvo algumas cerâmicas que contêm fichas
afirmando a forma de aquisição.
44
Fotografia 9. Exposição da cerâmica arqueológica junto às cópias e réplicas
Como salientado, uma parte do material arqueológico foi proveniente de doações de
moradores da região que as encontravam aleatoriamente por fazendas na região ou pelos sítios
arqueológicos e de doações realizadas pelos próprios fazendeiros, além das incansáveis buscas
feitos por Gallo.
Não é por acaso a disposição dos objetos cerâmicos na entrada, conferindo
importância e relevância para a coleção, visto que desde a criação de seu primeiro espaço
museológico no Marajó, as peças arqueológicas sempre tiveram destaque. Isso é perceptível
na autobiografia de Giovanni Gallo (1996) e também na importância atribuída para as peças,
pois desde então se apropria desses objetos arqueológicos para espetacularizá-los, como
veremos mais adiante. Vale ressaltar que é a única coleção do Museu que possui todas as
peças acondicionadas em vitrines, inclusive a produção atual. O próprio mito de origem do
Museu traz à tona a criação do espaço a partir dos objetos cerâmicos.
Percorrendo o acervo o visitante chega ao segundo salão que contém duas
subdivisões. Numa delas a temática predominante é a questão negra. Nela encontram-se
diversos objetos de escravos que viveram na região do Marajó (Fotografia 10).
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
45
Fotografia 10. Prato de escravos e instrumentos de castigo dos escravos negros
Nesse espaço, além do prato de escravo e instrumentos de tortura, existem painéis
interativos que dão informação acerca da escravidão. Sobre os painéis interativos, ao longo da
exposição do Museu do Marajó existem inúmeros deles com outras temáticas. o os objetos
interativos, referidos anteriormente, que Gallo designou de computadores. Em sua maioria são
painéis e grandes caixas feitas de madeira com jogos que levam o visitante a obter
conhecimentos sobre o homem marajoara e de seu meio ambiente.
A fotografia 11 mostra um computador que pretende informar aos visitantes
conhecimentos sobre a língua Tupi. O visitante vai girando a caixa e vão sendo apresentados
quadros com informações sobre a língua, como se fosse uma tela de televisão ou mesmo de
computador, só que de madeira e manual.
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
46
Fotografia 11. Computador do acervo do Museu do Marajó com o objetivo de informar conhecimentos sobre a
língua Tupi
O computador da fotografia seguinte, Assim falam os caboclos, é uma espécie de
jogo de adivinhações. O visitante vai puxando as fichas e vão sendo apresentadas charadas ou
perguntas sobre o folclore, gíria e forma de falar do homem marajoara. As respostas ficam em
outras fichas equivalentes. É como se fossem caixas de surpresas, montadas de forma didática
e que precisam ser mexidas para serem descobertas.
Fotografia 12. Computador que ensina a forma de falar do homem que vive no Marajó e suas lendas
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
47
Ao longo da exposição existem outros computadores que também possuem como
lema principal retratar aspectos da região e do homem marajoara. São espécies de jogos
fazendo com que a visita ao acervo não seja monótona e meramente contemplativa.
Literalmente interação x contemplação. A palavra de ordem é, portanto, interação entre o
visitante e a exposição. Deve-se mesmo pegar na peça e não apenas contemplar, pois se não se
pega nos jogos, o se descobre o homem marajoara. Esses jogos interativos mostram-se
como a diferença e peculiaridade da exposição do Museu do Marajó, visto que não se conhece
nenhuma exposição nesses moldes na região, podendo mesmo ser considerada de vanguarda,
como afirmou Denise Schaan.
73
Schaan aponta o Museu do Marajó enquanto um acervo de vanguarda, pois a técnica
de hands on
74
atualmente é considerada contemporânea ou inovadora, mas já havia sido
projetada por Gallo cerca de trinta anos atrás. Inclusive, Schaan dá um exemplo que aponta
o atual modismo dos acervos que adotam o hands on referindo o Museu da Língua Portuguesa
localizado em São Paulo que repercute devido a interação exposição/público. O que mais lhe
chama atenção é que Gallo planejou o espaço interativo antes mesmo de vir à tona essa
concepção museológica.
Prosseguindo no acervo, ao lado da exposição que retrata a escravidão negra na ilha,
encontra-se o salão que retrata a medicina popular do Marajó. Gallo tentou fazer
contraposição dessa medicina com a alopática através de jogos e cartazes explicativos
(Fotografia 13).
73
Entrevista concedida em 07/03/07.
74
Técnicas museólogicas que permitem que o visitante interaja com as peças pertencentes de seu acervo. Que
literalmente pegue nas peças.
48
Fotografia 13. Benzedura, Medicina Mágica e Prática, Gestos e Palavras
Além da demonstração da medicina do Marajó, nessa sala encontra-se a reprodução
de local de produção e venda de açaí e uma parte destinada à exposição de utensílios
domésticos como cuias, cabaças, jarros, cestarias, peneiras, assim como outros objetos e
dezenas de imagens de santos.
Na cozinha que prepara o existe a máquina para o processamento da fruta, cuias,
prateleiras, jarros de cerâmica e uma placa indicando o local de preparo. É uma cozinha
destinada ao preparo e comercialização do açaí para ser tomado pelo caboclo da região
(Fotografia 14).
Fotografia 14. Montagem de um local de produção e venda do açaí
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
49
Na parte da exposição dos utensílios domésticos, os objetos encontram-se fixados em
barbantes e amarrados a pedaços de bambu armados no teto do salão (Fotografia 15).
Fotografia 15. Cuias, cestarias, cabaças dentre outros objetos
Continuando a percorrer o acervo, o visitante se depara com alguns animais
empalhados organizados pelas paredes, prateleiras e no chão. Têm-se a oportunidade de ver de
perto um cavalo empalhado e um esqueleto do mesmo animal, assim como outros seres como
cobras, cutias, peles de animais e jacarés. Aliás, por toda a exposição existem outros animais
empalhados como peixes, insetos, cabeças de búfalo, animais com mais de uma cabeça e outras
deformações genéticas (Fotografia 16).
Fotografia 16. Bezerro com duas cabeças exposto no Museu do Marajó
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Fotografia: Anna Linhares (mai./2006)
50
Ao lado dos diversos animais empalhados existem imagens de quatro vaqueiros: o
nordestino, o do Marajó, o tradicional e o moderno. Observa-se na fotografia 17 um vaqueiro
à moda antiga que é o tradicional na concepção de Gallo, estando ele de calça comprida,
camisa vermelha, com um grande chapéu de palha e um serrote na mão.
Fotografia 17. Vaqueiro à moda antiga
Chegando ao último salão inferior, o visitante tem a oportunidade de interagir com a
temática do pescador da ilha. Encontram-se expostas peças do pescador do Marajó como
barcos, utensílios de pesca, canoas, arpões, remos, miniatura de barcos e canoas e animais que
compõem o espaço de trabalho do pescador como piranhas e diversos peixes empalhados. Na
fotografia 18 observa-se uma canoa com uma série de objetos no seu interior como rede de
pesca, remos e fios.
Fotografia 18. Exposição de utensílios do pescador do Mara
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
Foto: Anna Linhares (jul./2005)
51
Em conjunto com as peças que retratam o trabalhador do rio encontram-se objetos
que retratam o trabalhador dos campos, o vaqueiro. São chapéis, roupas, utensílios usados em
cavalos e búfalos, selas e armas. E, finalizando a exposição do salão inferior, o visitante pode
ver a maquete de uma fazenda em miniatura com a exposição de uma rie de cabeças de
búfalos à sua frente confeccionada para compor o ambiente de trabalho do vaqueiro do Marajó
(Fotografia 19).
Fotografia 19. Maquete de uma fazenda e uma série de cabeças de búfalo
Findada a visita no salão inferior, sobe-se uma escada localizada no centro do acervo
a fim de conhecer o último salão da exposição coberta. Nessa exposição existem diversos
animais com deformação genética, alguns computadores interativos que informam lendas do
homem do Marajó, exposição de fotografias e um computador com uma série de informações
das religiões afro-brasileiras e da pajelança do Marajó. Na fotografia 20 observa-se um desses
objetos interativos. Ao levantar cada placa do computador, o visitante pode observar imagens
de rituais de pajelança:
Fotografia 20. Computador que dá informações acerca da religião afro-brasileira e pajelança
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
52
Atrás desse computador existe uma imagem cultuada pelos adeptos dos cultos afro-
brasileiros retratando a religião professada pelo caboclo marajoara.
Após esse salão, o visitante finaliza a exposição coberta e é encaminhado a conhecer
a Casa do Caboclo, localizada no quintal do Museu, entre o acervo fechado e a casa onde
residia Gallo. A exposição tenta retratar a moradia do homem do Marajó. Sua estrutura é feita
de bambu e seu telhado de palha (Fotografia 21). No seu interior encontram-se diversos
utensílios como televisão, jarros, painéis, panelas, vassoura, pilão, forno de cozinha, dentre
outros objetos (Fotografia 22).
Fotografia 21. Casa do Caboclo
Fotografia 22. Interior da Casa do Caboclo
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
53
Em Cachoeira do Arari é comum observar casas de barro com telhados de palha. Não
observei nenhum tipo de moradia com estrutura de bambu durante a pesquisa de campo.
Provavelmente Gallo tenha visto casas nesse molde pelos inúmeros percursos feitos a outros
lugares da região ou simplesmente tentou retratar a “simplicidade” do caboclo marajoara.
Além da exposição, o Museu do Marajó possui uma biblioteca e a casa que Giovanni
Gallo morou. Ela se encontra junto ao Museu. Segundo o seu criador, o Museu do Marajó
pode ser considerado um espaço de educação e pesquisa sobre a cultura marajoara. Foi
exatamente pensando um acervo destinado à educação e pesquisa a respeito do Marajó que
Gallo projetou os objetos interativos.
Como o leitor visitante pôde observar, o Museu do Marajó é um espaço curioso,
espécie de gabinete de curiosidades, repleto de coisas e peças a serem mexidas, reviradas,
observadas. Além disso, espaço de interação, reflexão e conhecimento, visto que reúne peças
de âmbito arqueológico e etnográfico. É uma espécie de gabinete de curiosidades que tem em
vista aspectos educacionais, exploratório científico e interativo. Então, como definir o Museu
do Marajó? Quem sabe um Museu de Região ou Museu Giovanni Gallo. Na realidade,
atualmente, na sua fachada encontra-se o seguinte: O Museu do Marajó: Giovanni Gallo,
evidenciando o que venho anunciando. Obviamente que não é objetivo do trabalho a
classificação de um espaço tão peculiar, mas vale ressaltar que apesar da singularidade do seu
acervo, algumas de suas especificidades e concepção o aproximam dos chamados Eco-Museus,
como frisaram van Velthem (2005)
75
e Schaan.
76
Segundo van Velthem (2005), esta categoria de museu localiza-se geralmente em
áreas economicamente desfavorecidas e em comunidades que não contam com nenhum outro
equipamento cultural, realidade vivenciada pelo Museu. Além disso, uma das principais
preocupações desse tipo de acervo fundamenta-se na relação homem e cultura e da população
com sua região, o pressuposto principal do Museu do Marajó. Para Schaan, a partir do
momento em que o espaço museológico se preocupa em retratar a região, acaba tendo
imbricado alguns princípios de um Eco-Museu.
75
Cf. VAN VELTHEM, Lúcia Hussak. O Museu do Marajó, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi. 2005.
(mimeo).
76
Entrevista concedida em 07/03/07.
54
Segundo Martins, “... em lugar de estar a serviço dos objetos, o museu deveria estar a
serviço dos homens. Em vez do museu “... de alguma coisa”, o museu “para alguma coisa”:
para a educação, a identificação, a confrontação, a conscientização, enfim, um espaço para a
comunidade.”. (1999: 158)
77
. Lembre-se que, segundo Gallo, a peça mais importante do
Museu é o homem.
Além disso, segundo a mesma autora, para que museus desse âmbito germinem, faz-
se necessário que as pessoas e moradores do lugar possam tomar consciência coletiva de seu
patrimônio através da recuperação do passado (Martins, 1999), como se deu com a
revalorização desse patrimônio a partir dessa apropriação específica, a expositiva, devendo
refletir o desenvolvimento cultural e econômico da região, conferindo dessa forma o caráter
regional.
Como afirmou Suano (1986), uma das grandes vantagens desse tipo de museu é a
efetiva contribuição na preservação de tradições e costumes da comunidade. A sua proposta é
retratar a história de um determinado período da comunidade, integrando-a com seu
significado presente, como se observa na proposta de Gallo.
Mesmo enquadrando o Museu do Marajó, a partir de algumas de suas características,
no que se designa de Eco-museu, convém chamar a atenção dos limites das tipologias ou desse
tipo de classificação. O Museu, com suas inúmeras especificidades e heterogeneidade, se
enquadra em outras classificações, que extrapolam as concepções de um Eco-museu, visto que
é um espaço de curiosidades, um lugar onde se encontram arraigados alguns aspectos da visão
de mundo européia de seu criador e um museu interativo com técnicas de hands on, por
exemplo. Por isso o convêm atribuí-lo apenas enquanto um Eco-Museu. O classifico como
um espaço de Curiosidades interativas da região.
Manter esse espaço de curiosidades interativas da região não é tarefa fácil. Os
funcionários do local são, em sua maioria, cedidos da prefeitura municipal de Cachoeira do
Arari e residem na cidade. Quem participa da administração do local e reside fora são o
tesoureiro, o presidente e o secretário, que moram em Belém. Além das pessoas cedidas da
prefeitura, também trabalham no Museu os ministrantes das oficinas realizadas no lugar, como
77
Cf. MARTINS, Maria Helena Pires. “Ecomuseu” IN COELHO, Teixeira (org.) Dicionário Crítico de Política
Cultural: cultura e imaginário. São Paulo, Iluminuras, 1999.
55
se verá mais adiante, e pessoas envolvidas em projetos. Quem cuida da manutenção do espaço
são as próprias pessoas que trabalham no lugar. São elas que cuidam dos pequenos reparos do
local como goteiras no teto do prédio, a limpeza dos outros ambientes como banheiros, quintal,
recepção, biblioteca e assim por diante. Outra forma de prestar serviços e ajudar na sua
manutenção se por meio de mutirões de limpeza feitos ocasionalmente com os funcionários
em conjunto com alguns moradores da cidade. São convocadas reuniões através das quais os
moradores da cidade são convidados a participarem da limpeza (Fotografia 23).
Fotografia 23. Mutirão realizado no Museu do Marajó em maio de 2006
Quanto à associação, tornando-se sócio, a pessoa opta por pagar ou não uma
contribuição mensal de R$ 3,00 (três reais), a fim de ajudar exatamente na conservação e
manutenção do espaço. Essa opção esrelacionada com as condições financeiras de cada um
que deseja associar-se. Mesmo sem a realização do pagamento o associado, denominado de
voluntário, pode contribuir com trabalhos de manutenção e preservação do acervo, como no
caso dos mutirões realizados.
Apesar da colaboração dos moradores e da boa vontade em valorizar seu patrimônio,
grande parte dos funcionários não é especializada. São funcionários cedidos da prefeitura de
serviços gerais e um vigia. O que pretendo afirmar com isso é que para salvaguardar e
conservar um patrimônio de cunho arqueológico e etnográfico necessita-se de uma série de
critérios museológicos, que praticamente inexistem no Museu do Marajó. Inúmeros problemas
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
56
são detectados no lugar, tais como falta de identificação das peças, pouca iluminação ou
iluminação inadequada e excessiva em alguns salões do acervo, falta de armazenamento e
acondicionamento adequados, pois por vezes os objetos recebem ação das chuvas que são
freqüentes na região, seja por aberturas existentes nas paredes ao longo do salão, seja por
inúmeras goteiras existentes no teto do prédio, dentre outros problemas.
Vale relembrar que o prédio onde se encontra o Museu do Marajó foi um espaço
adaptado para a composição do acervo, pois antes de se tornar museu era uma fábrica de óleos.
Faltam técnicas museológicas no acervo como um todo. Acredito que os problemas tenham
raízes desde a sua composição, pois apesar de sua instigante curiosidade, Gallo era um
pesquisador e museológo autoditada e a falta de formação no que mais gostava de fazer,
provavelmente tenha acarretado a atual situação, além da falta de recursos e da improvisação
da composição do acervo.
Apesar das dificuldades encontradas no espaço museológico, vale frisar que existem
projetos e esforços no sentido de sua preservação. Denise Pahl Schaan, pesquisadora e
professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará busca
reestruturar e dar sistematização ao acervo através de projetos no local.
78
Em 2005, com
parceria e apoio do Museu Paraense Emílio Goeldi, ela projetou uma revitalização do Museu.
Schaan organizou uma equipe com o intuito de revitalizar, inventariar e organizar a
exposição a partir de outros critérios museológicos a fim de uma melhor preservação do
acervo. A equipe foi composta por voluntários provenientes de diversas instituições como
alunos da Universidade Federal do Pará, da Universidade do Estado do Pará, professores de
instituições particulares, um técnico da Universidade da Amazônia, assim como técnicos do
Museu Paraense Emílio Goeldi. O trabalho durou cerca de 10 dias no mês de julho do referido
ano.
79
78
Em pesquisa no município nos meses de julho e agosto, alguns técnicos do Museu informaram que a casa que
Giovanni Gallo morou provavelmente virará um Memorial. Além da informação do Memorial, no jornal
organizado pelo Museu denominado Canto do Gallo, cuja distribuição iniciou-se em novembro de 2006,
comunica que, através de patrocínio da Petrobrás com apoio da Lei Rouanet, iniciou-se a construção da Reserva
Técnica, e a revitalização da exposição permanente do Museu, contando com a consultoria técnica da Dra.
Franciza Toledo e de Dra. Denise Pahl Schaan.
79
Revitalização no qual fiz parte e que desvelou o campo de minha pesquisa.
57
O acervo arqueológico foi todo separado de acordo com uma tipologia específica,
armazenado em um espaço do Museu, as informações das peças foram todas para um banco de
dados e grande parte do material foi fotografada. O acervo etnográfico foi limpo, inventariado
e incluído em um banco de dados e a maioria das peças foram fotografadas. A biblioteca
também foi toda organizada e inventariada, assim como todo o inventário foi incluído em
banco de dados. Grande parte dessa equipe especificamente voltada para a revitalização da
biblioteca era composta por bibliotecários. A casa que Giovanni Gallo morou foi limpa e parte
dos documentos que se encontravam no lugar foi para o acervo do Museu do Marajó e outra
parte foi para o acervo de pesquisa de Denise Pahl Schaan, no Museu Paraense Emílio Goeldi.
Alguns objetos arqueológicos encontrados na casa que Gallo morou foram
sistematizados junto ao material arqueológico do acervo. O material encontrado eram cacos
cerâmicos. Dessa forma, alguns critérios foram adotados desde o trabalho, mas que não
fizeram com que alguns problemas do espaço desaparecessem, visto que não era objetivo do
projeto. Além disso, seria inviável a solução de problemas da proporção dos existentes no
lugar em apenas dez dias de trabalho.
Mesmo diante das dificuldades encontradas, o Museu possui um acervo de
importância crucial e que merece atenção especial, pois contém peças de cunho científico,
tanto arqueológico, como antropológico e histórico e que além do caráter de cientificidade, é
apreciado por inúmeros turistas, sendo referência do lugar.
O Museu do Marajó como representação de seu criador, Giovanni Gallo, acabou
tornando-se uma instituição de importância, relevância e, sobrevivência para muitas pessoas
em Cachoeira do Arari. Isso porque foi a partir de Giovanni Gallo e da criação do Museu que
muitas pessoas se profissionalizaram, aumentaram sua renda ou mesmo passaram a ter uma
fonte de renda. A produção de cerâmica é apenas um desses exemplos. Em pesquisa no
município, em vários momentos que me encontrava no Museu, observei que os turistas quando
chegam na
cidade vão em busca de visitar o seu acervo. Isso evidencia que a instituição
acabou virando referencial turístico. Mesmo fora do lugar, quando se refere o nome de
Cachoeira do Arari, é comum a ligação com o Museu do Marajó, que acabou tornando-se
atrativo.
58
Enquanto estava vivo, Gallo incentivou projetos voltados para o artesanato com o
intuito de profissionalizar jovens e adultos da cidade. Foi o maior incentivador do curso de
bordado do Museu. Segundo relatos, ele desenhava os motivos arqueológicos contidos na
cerâmica marajoara e entregava para algumas mulheres para que elas bordassem os mesmos
em roupas que seriam destinadas à venda.
Além do bordado também foi grande incentivador das reproduções de objetos de
barro como observei em alguns documentos levantados durante a pesquisa e que serão
analisados no capítulo seguinte. Apenas depois de sua morte outros cursos se instalaram na
instituição como corte e costura, serigrafia, informática e música, este último em parceria com
a Fundação Carlos Gomes, mas que trazem a herança do legado deixado por Giovanni Gallo.
Como sempre dizia, sua intenção era “... promover a cultura e, com a cultura, o
desenvolvimento total do homem marajoara.” (1996: 266), e ele sempre acreditou que o Museu
do Marajó poderia ser um espaço que traria todos esses benefícios para o Município e para
essas pessoas.
Refletindo a sua intenção foi que em 1990 lançou a primeira edição do livro Motivos
ornamentais da cerâmica Marajoara,
80
que objetivava facilitar a inserção de motivos da
cerâmica arqueológica no artesanato local. Esse livro, atualmente em sua terceira edição,
contém uma série de fotografias dos objetos encontrados nos sítio arqueológicos da região com
os grafismos marajoara desenhados ao lado das respectivas fotografias para assim servirem de
modelo na produção artesanal contemporânea. No livro Gallo dá uma série de indicações para
o artesão aplicar os motivos marajoara em seus trabalhos:
“... apresenta modelos para o trabalho de bordado em ponto cruz: camisas marajoaras,
toalhas, sacolas, tapetes ... sem a obrigação de obedecer ao esquema do pano quadriculado,
aproxima-se mais ao desenho primitivo, oferecendo modelos para a produção de serigrafia,
cerâmica, entalho em madeira, e, por que não, das calçadas de Belém ? (2005: p. X) ... [a]
fazenda própria para este tipo de bordado é o cânhamo, chamado também de etamina para
bordar. Para camisas, conjuntos. Jogos americanos, toalhas é aconselhável o cânhamo fino.
Neste tipo de bordado é usada a linha tipo Âncora de algodão em meada ou produto similar.
O bordado pode ser executado com ponto de um, dois ou três fios, dependendo da exigência
do desenho planejado. Para cortinas, tapetes e serviços parecidos pode ser usado o cânhamo
grosso ou a serrapilheira. Neste caso usa-se a linha lã, do tipo Pingouin acrílico ou produto
similar (2005: XXXI).
80
Cf. GALLO, Giovanni. Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje.
Ed. Cachoeira do Arari,/PA, Museu do Marajó, 2005, AMdM, Carta de Giovanni Gallo para José G. de Moura,
prefeito de Cachoeira do Arari. Cachoeira do Arari, 06/02/1991 e O Liberal
, Livro, Belém, 12/05/1991. Repórter
70.
59
Observa-se a sua preocupação com a aproximação ao desenho mais primitivo, ou
seja, a necessidade de ligação e de retorno com o que havia de mais primitivo e que pudesse
representar o mais exótico para ser aplicado no artesanato, lembrando o que foi referido
anteriormente sobre a necessidade da busca do antigo, do rústico, do mito de origem, segundo
Baudrillard (2004).
Foi dessa forma que Gallo incentivou a produção local, apropriando-se e tendo como
referência a cerâmica arqueológica e seus motivos gráficos, através de cursos
profissionalizantes e de capacitação, aspecto frisado no capítulo seguinte quando se fa a
abordagem da inserção da produção cerâmica na vida dessas pessoas. A cerâmica, nesse
contexto do artesanato local atual, acabou ganhando referência devido a constante alusão feita
aos objetos arqueológicos, pois seu incentivo foi sempre voltado à confecção de cópias e
réplicas destes.
Essa produção passou a ser tida como modelo de uma identidade local em Cachoeira
do Arari a partir de cópias e plicas enquanto uma tradição não perdida no tempo, diferente
das cerâmicas arqueológicas, como aponta os artesãos e que será discutido a seguir. Será
realmente uma tradição, ou uma invenção dela? Se busca de uma identidade local, ou a
produção de bens culturais comercializáveis que, através de um apelo mercadológico, tem
como referência à encantadora ilha do Marajó, onde viveram os antigos povos pré-coloniais
que acabam fervilhando nos apelos turísticos e induzindo a criação? Mas, vale refletir se
ambas as perspectivas não se unem: busca de identidade local e comercialização pela
apropriação do arqueológico.
Como afirmei anteriormente, o apelo turístico feito à ilha do Marajó é grande,
principalmente no que diz respeito à produção de cerâmica marajoara. As réplicas da cerâmica
arqueológica circulam no mundo virtual. Basta acessar sites na internet e procurar por essa
venda. Icoaraci
81
é um desses exemplos, sendo um dos maiores pólos de venda da cerâmica
dita autenticamente Marajoara.
82
Provavelmente a produção de Cachoeira do Arari queira
tomar o mesmo rumo da produção de Icoaraci.
81
Distrito de Belém localizado a aproximadamente 45 minutos da capital. O ponto de venda da cerâmica
encontra-se em um bairro denominado Paracuri.
82
Cf. http://www.icoaraci.com.br/ Acessado em 24/09/006. Um dos sites de venda dessa cerâmica através da
internet
.
60
A questão da promoção turística do lugar por meio do Museu e da produção de
obejtos de barro faz-se importante ser lembrada, pois o principal incentivador da confecção dos
objetos em argila foi o próprio Giovanni Gallo, como acertadamente afirmou Bira Barbosa em
2000, na outorga de Gallo como Cidadão do Turismo Paraense de que “... agências turísticas
de Belém estão aguardando impacientes a hora de deslocar para Cachoeira turistas famintos de
Marajó”. Além disso, foi Gallo “[o]... promotor e reinventor da beleza da história e da cultura
marajoara”
83
referindo-se a espetacularização que se tenta fazer da cerâmica arqueológica e de
seus grafismos na cidade e da re-invenção ou “invenção de uma tradição” promovida pelo
padre a partir da apropriação desses bens culturais.
As políticas culturais empreendidas por Gallo fizeram com que ele se tornasse uma
espécie de ícone, pelo menos entre as pessoas que direta ou indiretamente fazem parte do
Museu do Marajó. Assim, no capítulo seguinte, a idéia é mostrar como a produção de
cerâmica entrou na vida dos moradores do lugar, questões captadas a partir de narrativas orais
e entrevistas feitas com os produtores, mostrar como essa tradição é inventada por meio dos
grafismos e motivos marajoara espalhados pela cidade através de pinturas e inseridos na
produção de objetos diversos, como roupas, adornos e especialmente a cerâmica, destinada à
comercialização, finalizando o capítulo com o registro etnográfico de toda a execução do
processo produtivo dessa tecnologia
84
específica.
83
Cf. Documento da Assembléia Legislativa outorgando o titulo de Cidadão do Turismo Paraense a Giovanni
Gallo, assinado pelo deputado Bira Barbosa em 02/05/2000.
84
Tecnologia da cerâmica é a técnica de se produzir os objetos em barro. Lima (1986), mostra o processo de
produção da cerâmica nas aldeias indígenas a partir das várias etapas constitutivas do processo, sendo elas: a
divisão do trabalho para se iniciar a produção, o processo de manufatura e o tratamento de superfície da peça.
Conferir: LIMA, Tânia Andrade. “Cerâmica Indígena BrasileiraIN Suma Etnológica Brasileira. v.2. Tecnologia
Indígena. Petrópolis, Vozes/Finep, 1986.
61
III. De caco a espetáculo: o aprendizado do fazer
cerâmica
No município de Cachoeira do Arari existem dois tipos de produção de cerâmica: uma
considerada tradicional baseada na produção familiar, feminina e utilitária, as paneleiras, como
são chamadas nos locais de produção e a outra voltada para a confecção de bens culturais
comercializáveis, que são as cópias e réplicas da cerâmica arqueológica marajoara.
Segundo nos aponta Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro (2002), as
paneleiras também podem ser chamadas de louceiras:
“[p]essoa que faz potes, panelas e outras cerâmicas utilitárias [n]a tradição indígena, no
Brasil, fazer objetos de barro sem uso do torno é tarefa exclusivamente da mulher. O uso do
torno na confecção de pequenos potes (reminiscência européia) é permitido somente aos
homens.” (2002: 336)
85
A produção de cerâmica utilitária está concentrada em três distritos localizados no
interior do município. Segundo Paulo Câmara,
86
mais conhecido como Paulinho, a cerâmica
utilitária é produzida nas localidades Bacuri, Caracará e Japuíra. Sobre a confecção das cópias
e das plicas, a produção se concentra apenas na sede do município, onde se localiza o Museu
do Marajó, sendo esta última o objeto da análise.
A produção analisada são bens culturais comercializáveis, pois apenas a definição de
bens culturais não caberia, visto que os bens culturais possuem um vínculo com a noção de
patrimônio coletivo, em princípio, por seu valor simbólico e o comercial (Coelho, 1999),
87
como um instrumento musical Suruí, por exemplo. Os bens culturais que possuem esse vínculo
com a noção de patrimônio coletivo também podem ser chamados de cultura material.
Especificamente, a cultura material de uma sociedade forma o conjunto dos elementos
materiais de uma cultura em oposição aos elementos imateriais. Berta Ribeiro (1988 e 1992),
88
designou os objetos incorporados à vivência cotidiana dos grupos sociais de artes da vida,
apontando a distribuição dos mesmos em diversas categorias tais como: cerâmica, trançados,
cordões e tecidos, adornos plumários, adornos de materiais ecléticos, indumentária e toucador,
85
Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo, Global, 2002.
86
Ex-ceramista, vice-presidente do Museu do Marajó, coordenador do Projeto Jovem Artesão, também do Museu
do Marajó e Secretário de Ação Social de Cachoeira do Arari. Entrevista concedida em 17 /05/ 2006.
87
Cf. COELHO, Teixeira. “Produto Cultural” IN COELHO, Teixeira (org.) Dicionário Crítico de Política
Cultural: cultura e imaginário. São Paulo, Iluminarus, 1999.
88
Cf. RIBEIRO, Berta G. Dicionário de Artesanato Indígena. Belo Horizonte, Itatiaia, EDUSP, 1988 e RIBEIRO,
Berta G. “As artes da vida do indígena brasileiro” IN GRUPIONI, Luís Donizete Benzi (org.). Índios no Brasil.
São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
62
instrumentos musicais e de sinalização, armas, utensílios e implementos de madeira, assim
como os objetos rituais, mágicos e lúdicos.
No quadro a seguir pode-se ver como Berta Ribeiro (1988), no Dicionário do
Artesanato Indígena, classificou uma série de objetos que compõem a cultura material dos
índios brasileiros, dividindo-os em categorias, grupos genéricos e termos específicos. A autora
publicou o trabalho para que este viesse dar subsídios classificatórios aos estudiosos da área de
museologia e antropologia interessados em pesquisas no campo da cultura material.
Nesse quadro encontram-se as categorias reunidas por Berta Ribeiro e apenas os
grupos genéricos com seus termos específicos dos objetos em barro. Algumas classificações
das cerâmicas serão vistas no próximo capítulo nas descrições feitas de peças de Cachoeira do
Arari analisadas no trabalho.
63
Cultura Material = Artes da vida
Categorias
Cerâmica
Trançados
Cordões e tecidos
Adornos Plumários
Adornos de
materiais ecléticos
Idumentária
e tocador
Instrumentos musicais e
de
sinalização
Armas, utensílios
e implementos de madeira e
outros materiais
Objetos rituais, mágicos e
lúdicos
Grupos
genéricos e
Termos
específicos
Utilitária para
cozinha
:
Caçarola;
panela;
torrador
Utilitária e/ ou
cerimonial para
armazenamento
e serviço
:
Bilha;
bilhas comunicante;
colher de barro;
jarra;
moringa;
pote;
taça;
tigela;
travessa;
xícara
Cerâmica para lume
:
Fogareiro;
trempe de barro
Estatuária
temático-figurativa
:
Boneca Kara
Específica para
venda
:
Cinzeiro;
pote para plantas
89
X X X X X
Aerofone
:
Apito de cerâmica
Idiofone
:
Taça-chocalho de
cerâmica
Membrafone
:
Tambor de crêmica;
apito de cerâmica;
tambor de cerâmica e;
apito transverso de
cerâmica
X
Aparelhos
para
estimulantes e
narcóticos:
Cachimbo
de cerâmica;
pote
cerimonial
bebida
alucinógena
Utensílios
Funerários
:
Urna
funerária de
cerâmica
Quadro 1. Categorias, grupos genéricos e termos específicos da cultura material indígena
A variedade dos objetos permite aos grupos humanos assimilar seu meio, utilizando-se
deles e imprimindo neles a sua marca. Berta Ribeiro (1985) afirma que por meio dos bens
culturais tais sociedades reproduzem a si mesmas e que o conjunto desses bens não inclui
apenas esses objetos portáveis, que são levados a museus, mas comportam as suas estruturas
89
Ribeiro (1988) afirma que também são específicas para venda algumas cerâmicas utilitárias e/ou cerimoniais e
estatuária temático-figurativas.
64
fixas, como as casas, as pontes, as roças, as manufaturas e outros elementos, haja vista que tudo
provém da ação humana sobre a natureza, daquilo que se designa como cultura.
90
Dessa forma,
percebe-se que a produção artística na vida desses grupos humanos é expressão do
conhecimento e da sabedoria que se exercem em muitos campos, em oposição ao objeto do
presente estudo que são bens culturais, mas comercializáveis.
Os bens culturais mercantilizados, diferentemente da cultura material, possuem seu
valor traduzido em moeda, o que os transforma em produtos culturais (Coelho, 1999), como no
caso das reproduções da cerâmica arqueológica. Isso vale também para alguns objetos
indígenas atualmente comercializados. Uma breve visita nas lojas de artesanato indígena da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), permite verificar que as peças terminam assumindo
novos significados.
Segundo os produtores dos bens culturais comercializáveis de Cachoeira do Arari, as
cópias o peças não idênticas às cerâmicas marajoara, sendo copiadas sem muita preocupação
com a semelhança formal. As réplicas são peças consideradas idênticas à cerâmica
arqueológica visto que afirmam preocuparem-se com a semelhança entre elas, por isso
designam a produção atual de cerâmica marajoara.
Segundo Weirk do Espírito Santo, mais conhecido como Érick, ceramista e
proprietário da cerâmica Arariuna,
“[a] cópia ... é aquele tipo de peça que tu copia, que tu olha a peça, não mede, não tira, assim,
altura, largura, o diâmetro dela e copia aquela peça. Tu olha e tu imagina o que seja inteira.
Olhou e tu vai colocar aquilo na tua peça, agora a réplica não, é diferente. A réplica tu vai
olhar a peça, tu vai ter que pegar na peça arqueológica, medir ela, a altura, diâmetro, cor. Até
se tiver quebrada, tu vai ter que quebrar a peça que tá sendo copiada em forma de réplica.”
91
Segundo os ceramistas, “estas são as autênticas”, sem contar que seus preços são mais
elevados em comparação com as cópias no momento da comercialização.
Na verdade, não podemos definir as réplicas como autênticas peças marajoara, pois
conforme Walter Benjamin, mesmo na reprodução mais perfeita de qualquer obra, um elemento
90
Cf. RIBEIRO, Berta G. “Artesanato indígena: para quê e para quem?” IN FUNARTE. Instituto Nacional de
Artes Plásticas/Projeto Visualidade Brasileira. As artes visuais na Amazônia: reflexões sobre uma visualidade
regional. Belém, Funarte, Secretaria de Educação e Cultura, 1985.
91
Entrevista concedida em 18/05/2006.
65
sempre fica ausente: o aqui e o agora do objeto. Esse elemento é a sua existência única no lugar
em que se encontra. É nessa existência única que se desdobra a história da peça e essa história
compreende tanto as transformações que ela sofreu com o passar do tempo, no caso da sua
estrutura física, como “... as relações de propriedade em que a peça ingressou.”. (1994: 167)
O autor quer dizer com isso que
“[o]s vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises químicas ou físicas,
irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segundas são os objetos de uma tradição, cuja
reconstituição precisa partir do lugar em que se achava a original.”. (Benjamin, 1994: 167)
Dessa forma torna-se problemática a atribuição do conceito de autenticidade para a
produção de cerâmica marajoara de Cachoeira do Arari, aspecto que será aprofundado no
próximo capítulo.
A confecção de cópias e réplicas da cerâmica marajoara em Cachoeira é recente.
Como referido no capítulo anterior, ela teve seu início no Museu do Marajó, mais
especificamente com o incentivo de Giovanni Gallo, a partir da promoção de cursos de
cerâmica para a comunidade.
O ceramista Érick afirmou que o primeiro curso foi realizado no ano de 1997.
Segundo ele, a partir dessa época foram realizadas três ou quatro oficinas com o objetivo de
aprendizagem da técnica cerâmica. Na ocasião, foram promovidos cursos tais como:
Tecnologia em cerâmica, oferecido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE); Aperfeiçoamento de Artefatos em Argila promovido pelo Plano
Profissional do Pará (PLANFOR) e um pelo Plano de Educação Profissional (PEP).
O artesão disse que alguns desses cursos foram ministrados por Levy Cardoso, que faz
parte de uma conhecida família de ceramistas do distrito de Icoaraci, sendo o seu pai o falecido
Raimundo Saraiva Cardoso, mais conhecido como Mestre Cardoso. Atualmente Icoaraci é
considerada o maior pólo de produção de peças que fazem alusão às cerâmicas arqueológicas
marajoara no Pará. Por isso Gallo, ao promover cursos, recorria aos artesãos do pólo, visto que
eles detêm as técnicas necessárias para a produção de peças do gênero marajoara.
Não foi possível observar o impacto que a cerâmica de Icoaraci gerou na produção
artesanal de Cachoeira, mas alguma repercussão pode ser vista. Qualquer referência feita da
66
família Cardoso, principalmente de Levy Cardoso, resulta em inúmeros elogios quanto suas
habilidades produtivas na produção de cerâmica marajoara. Inclusive, Adalberto Leão, mais
conhecido como Beto,
92
dono de uma das cerâmicas de Cachoeira do Arari, a Camutins,
homenageou a referida família quando adotou o primeiro nome de seu espaço de produção:
“... resolvi me inspirar na Família Cardoso. Eles usam como cerâmica também, cerâmica
Cardoso. Aí eu resolvi também colocar o nome de cerâmica. Era cerâmica ... cerâmica Leão...
[é] mais conhecido. Por isso que eu me inspirei: cerâmica Cardoso, Cerâmica Leão! Ficou
assim. depois, eu mudei. ficou legal! O pessoal gostaram, teve uma boa aceitação!
ficou assim! cerâmica, cerâmica, cerâmica! A gente não usa ateliê! A gente resolveu
desprezar esse nome.”
O espaço de produção de Beto chamava-se cerâmica Leão em alusão ao seu
sobrenome. A mudança de Leão para Camutins foi influência oriunda do Museu. A
designação cerâmica foi adotado em homenagem aos Cardoso que chamam seu espaços de
produção de cerâmica Cardoso, segundo o artesão Beto. Perguntei se eles tinham
conhecimento do significado do nome de seus respectivos estabelecimentos e Beto afirmou que
resolveu colocar Camutins pois
“ [c]amutins é um nome de um rio aí pra cima né, que significa igaçaba, em Tupi Guarani, que
as margens desse... não é um rio, é um igarapé, as margens desse igarapé, tem vários tesos
arqueológicos. Teso cemitério, teso habitação, e, e... denominaram o nome do rio Camutins,
que nesses tesos, tinham muitos vasos grandes. Camutins é vaso grande. Aí, a gente resolveu
colocar cerâmica Camutins. ficou legal! Ficou muito, muito é... como é que eu posso te
dizer assim... ficou muito regional! Muito a ver com o Marajó!”
Érick também demonstra a influência do Museu afirmando que o significado de
Arariuna,
“... é arara pequena... Nome indígena. Em Tupi Arariuna. Em português, arara pequena.
Significado que aprendi lá no Museu.”
Tanto Beto quanto Érick têm razão quanto ao significado do nome de suas respectivas
cerâmicas, pois como nos aponta o Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas em Tupi,
camutins ou camucim, significa “[v]aso em que os indígenas enterravam seus mortos; cova,
sepultura indígena” (1989: 91), podendo ser conhecido também por camucy, cammuci, camuci,
camocim e camotim. Arariuna significa arara, como frisado na abertura do trabalho.
Assim, por referência a produção dos Cardosos, os ceramistas em Cachoeira do Arari
chamam seus espaços de produção de cerâmica e o olaria, como geralmente se designa o
lugar de fabricação de objetos em barro. De qualquer forma, olaria não seria a designação mais
92
Ceramista e professor de serigrafia. Entrevista concedida em 16/05/2006.
67
adequada, pois a palavra vem do latim olla, que significa panela de barro, que é o lugar de
fabricação de tijolos, telhas, manilhas e também das panelas de barro.
93
Nas cerâmicas de
Cachoeira não se produzem objetos com fins utilitários, e sim objetos marajoara enquanto bens
culturais mercantilizados.
De acordo com o relatório do curso de Cerâmica Decorativa e Utilitária e o projeto do
Curso de Cerâmica Miniaturizada,
94
pertencentes ao acervo do Museu do Marajó, a intenção
dos cursos era a promoção de conhecimentos profissionalizantes para as pessoas do município,
para que assim pudessem aumentar a fonte de renda. Gallo mostra nos projetos a sua pretensão
voltada especificamente aos cursos de produção de cópias e plicas dos objetos arqueológicos
pertencentes ao acervo do Museu. A produção deveria ser destinada ao mercado, pois tinha
grande interesse em fazer com que o município virasse pólo turístico. A cerâmica marajoara
seria um dos possíveis atrativos. Segundo o projeto de Cerâmica Miniaturizada: [se]mpre
visando o mercado de turistas, que podem levar objetos de pouco peso e que ocupam pouco
espaço, teremos como objetivo uma produção miniaturizada ... O Museu do Marajó pretende
explorar as peças autênticas do nosso patrimônio... ”
95
Em outro projeto, afirma que
“[n]a produção fizemos as nossas opções ... pretendemos ter como carro chefe a reprodução
fiel de peças arqueológicas de tamanho reduzido, de fácil manuseio e transporte. O produto
será acondicionado convenientemente numa caixinha de camurça com relativo documento:
será uma produção personalizada.”
96
Observa-se que Gallo enfatiza a noção de reprodução fiel das peças arqueológicas,
também sendo transmissor da idéia de autenticidade dos objetos destinados ao comércio. Mas
se os produtores desejavam reproduzir peças fiéis aos artefatos arqueológicos, elas não
deveriam ser de tamanho reduzido, como objetivou o projeto. Eles parecem estar mais
interessados na venda tendo em vista o mercado turístico do que a fidelidade da reprodução.
Defendia-se a produção de peças de tamanho pequeno, pois seriam mais viáveis aos turistas no
que tange ao transporte visto que o manuseio de peças de grande porte torna-se complicado
93
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. NOVO DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira, S/D.
94
Cf. AMdM. Relatório do curso de Cerâmica Decorativa e Utilitária. SECTAM/ Museu do Marajó, 09/03/1998
e AMdM. Projeto Cerâmica Minituarizada. Museu do Marajó, s/d.
95
Cf. AMdM. Projeto Cerâmica Minituarizada. Museu do Marajó, s/d.
96
Cf. AMdM. GALLO, Giovanni. Projeto O Museu vivo o curso de cerâmica. Cachoeira do Arari, Museu do
Marajó, 30/10/1998.
68
quanto ao deslocamento de uma cidade para a outra. Seriam peças marajoara personalizadas de
acordo com uma estratégia mercadológica. O que pretendo mostrar é que o interesse voltado
para o turismo é maior do que o voltado para a fidelidade das reproduções. Na realidade, a
noção de fidelidade dos objetos é trasmitida ao comprador que geralmente desconhece as peças
arqueológicas.
Depois desse empreendimento Gallo tornou-se ícone em Cachoeira do Arari, pelo
menos entre as pessoas que atuam direta ou indiretamente no Museu do Marajó, fato registrado
via entrevistas e conversas informais. Muitas pessoas afirmaram que antes da criação do
Museu e de sua chegada ao município, não possuíam nenhum conhecimento da cultura
arqueológica e não sabiam o valor histórico que esses objetos achados nos tesos da região
possuíam. Maria José da Conceição Gama, mais conhecida como Zezé, dona do restaurante
Fundo de Quintal em Cachoeira, afirmou que
“... antes do museu existir ... ninguém tinha conhecimento de nada dessas coisas. O povo
daqui era muito... era tudo muito obscuro prá gente com relação a cerâmica, da onde vinha e
tudo mais, porque nunca ninguém teve, digamos assim, interesse em procurar fazer ... em
procurar nossas raízes realmente, né? ... prá gente que olhava... o que acha q que tem a
haver esse bando de caco velho!?! Um bando de coisa velha nesse Museu!?! ... Quer dizer,
foi que a gente começou a ter conhecimento dessas coisas e passou a dar um certo valor
prá cultura marajoara. Tudo aconteceu desde daí! Agora todo mundo quer desenho marajoara,
todo mundo quer fazer uma fantasia com enfeite marajoara, e essas coisas toda.”
97
Essa idéia é corroborada por Beto:
“... como é que posso dizer? ... reviveu a cerâmica! Os trabalhos dos motivos… A gente não
sabia nem valorizar. A gente tinha até medo de ter essas cerâmicas em casa, que era de índio.
Tinham medo! O pessoal pegava, jogavam fora, quebravam. Eu tenho relatos de pessoas, já
adulta que contam que quando eram crianças, moravam no interior, na fazenda, eles
brincavam com esse material. Eles achavam né, os pedaços de caco, pedaços de cerâmica. Até
cerâmicas boas mesmo, é, pegavam chocalhozinho e brincavam e quebravam. Não sabem o
valor que tinham...”
Observa-se que antes esses objetos causavam receio e pavor aos moradores da cidade,
mas por necessidade, os moradores perdem o temor da cerâmica indígena e passam a utilizá-la
enquanto fonte de renda. Schaan afirma que é bastante comum entre os moradores que
atualmente residem nos arredores de sítios arqueológicos a utilização de potes de cerâmica
encontrados perto das moradias para o armazenamento de água. Segundo a pesquisadora, por
97
Entrevista concedida em 15/05/2006.
69
necessidade, eles perdem o medo dos objetos que pertenceram a índios pré-coloniais e os
utilizam em casa como objetos utilitários.
98
Além da promoção de cultura e fonte de renda, a cerâmica arqueológica foi
espetacularizada, “... agora todo mundo quer desenho marajoara, todo mundo quer fazer uma
fantasia com enfeite marajoara, e essas coisas toda...”, como afirmou Zezé. A
espetacularização da cerâmica, conceito que será discutido com mais acuidade no capítulo
seguinte quando for tratar das diversas apropriações da cultura marajoara e do simbolismo da
atual produção, ocorreu na medida em que cacos encontrados por caboclos da região passaram
a ser espetáculos turísticos e/ou comerciais e até mesmo viraram símbolos de uma identidade
marajoara. Observa-se que, cacos, pedaços de cerâmica que antigamente provocavam medo
por serem de antigos povos que ali habitaram e que tampouco eram valorizados, hoje são fontes
de renda, de turismo e também de identificação cultural.
O depoimento de Beto mostra claramente as aproximações e repulsas às peças. Se,
“[e]les achavam né, os pedaços de caco, pedaços de cerâmica. Até cerâmicas boas mesmo, é,
pegavam chocalhozinho e brincavam e quebravam. Não sabem o valor que tinham...”,
atualmente, afirmam conhecer o valor desses objetos, re-significam as peças, as utilizam em
suas casas, seja por necessidade ou pela valorização atribuída às peças, assim como sustentam-
se a partir da sua apropriação. A partir do descobrimento da cerâmica arqueológica foi que os
moradores do lugar pass[aram] a dar um certo valor prá cultura marajoara. Tudo aconteceu
desde daí!”.
Seu Otaci Gemaque, mais conhecido como Seu Taci, disse que todos os moradores de
Cachoeira devem “... agradecer muito ao Gallo, de ter mostrado a cultura Marajoara...”.
99
A
apreensão dos conhecimentos da cultura marajoara e da produção da cerâmica incentivada pelo
Museu tornou-se tão marcante que Érick chegou a dizer que
“... a nossa cultura era muito, assim… BAIXA! Era muito pouco mesmo desenvolvida. A
cultura... aqui em Cachoeira, a partir do momento que a gente começamos a produzir, de 97
prá cá, ela começou a crescer.”
98
Palestra proferida em 25/10/2006 com o título: Cultura Marajoara: entre o antigo e o novo, dentro da
programação Quartas de Antropologia, promovida pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Pará.
99
Cedido da prefeitura de Cachoeira do Arari para o Museu do Marajó. Entrevista concedida em 23/05/2006.
70
A narrativa nos faz refletir sobre algumas finalidades das ões culturais ou do papel
que é exercido por animadores culturais. Segundo Cunha (2003),
100
o trabalho de agentes
culturais não é o de produzir obras, mas tem por objetivo a promoção de serviços que
conduzam a população de determinado lugar a uma espécie de enriquecimento intelectual,
cognitivo, sensitivo (estético), assim como associativo e social. Para o autor, haveria duas
perspectivas nesse sentido: a alfabetização cultural e a difusão de aspectos culturais.
A alfabetização cultural é entendida como aquela que estimula e facilita o acesso ao
aprendizado e domínio de conhecimentos e habilidades mínimas no âmbito das artes e do
artesanato, sendo o sujeito alfabetizado diletante ou semiprofissional (oficinas e ateliês, cursos,
treinamentos e programas educacionais). No caso de Cachoeira, eram sujeitos diletantes.
Antes da realização desses cursos eles o possuíam espaço de produção e tampouco
conhecimento técnico referente à produção de cerâmica. A difusão de aspectos culturais tem
por referência eventos programados e abertos, como festivais, exposição e outros, “...
destinados à fixação de um “hábito”.” (Cunha, 2003: 6), ou a invenção de determinado hábito.
Gallo traz à tona a cultura marajoara a partir da promoção da preservação e uso de
bens patrimoniais, tendo como suporte processos artísticos e intelectuais. Com isso, ele acabou
dando vazão a um dos problemas do lugar: a situação social. Grande parte das pessoas que se
engajaram em algum dos cursos promovidos na época com destino à profissionalização
desejava aumentar a renda ou não tinha de onde prover o sustento. Como afirmou Beto,
“...o Museu, ele é um banco de dados tão rico, que pode sobreviver, o compositor, pode
sobreviver o artesão, pode sobreviver vocês, fazendo pesquisa sobre o Marajó, sobre a história
do Marajó, sobre a Etnologia do caboclo, sobre a policromia dos desenhos...”.
A imagem de Gallo, enquanto ícone e a gratidão que as pessoas (pelo menos as que
estão em torno do Museu) possuem dele é tão marcante que, como se pode observar na
narrativa de Beto, tentam transferir ou fazer com que outros venham sentir a mesma gratidão,
como nesse caso, que o artesão busca mostrar o quanto o pesquisador também deve ter o
mesmo sentimento que eles possuem por Giovanni, pois além de tudo que fez pelo município,
ainda oferece oportunidades ... para pesquisa[s] sobre o Marajó, sobre a história do Marajó,
sobre a Etnologia do caboclo...”.
100
Cf. CUNHA, Newton. “Ação Cultural, animação cultural” IN COELHO, Teixeira (org.) Dicionário Sesc: a
linguagem da cultura. São Paulo, Perspectiva, 2003.
71
O trabalho de Gallo no Museu deu frutos. Mesmo criando um Museu com sua
particular visão de mundo, a visão de padre e europeu em meio à Amazônia, o Museu do
Marajó tornou-se fonte de divulgação da cultura marajoara ou de uma certa idéia de cultura
marajoara. Ele apresentou a importância histórica dos objetos arqueológicos para as pessoas da
cidade de Cachoeira, como apontou claramente Zezé. Além disso, proporcionou a inserção de
outra fonte de renda, aumentando o provimento de diversas famílias da cidade. Atualmente,
alguns artesãos sustentam-se com a produção de cerâmica e participação em atividades
profissionais envolvidas no Museu a partir da apropriação do grafismo marajoara em objetos
comercializáveis.
No período da pesquisa de campo, contactei os produtores e as pessoas que
participaram dos cursos em 1997, mesmo aquelas que não estivessem mais confeccionando
cerâmica e que se encontravam na cidade. Encontrei quatro pessoas que fizeram parte das
primeiras oficinas e apenas um deles continuou o empreendimento, é o caso de Érick,
proprietário da cerâmica Arariuna.
Além da cerâmica de Érick, existem mais dois espaços de produção em Cachoeira do
Arari: a casa da cerâmica, cujo ministrante dos cursos da produção de objetos em barro é o
próprio Érick, e a cerâmica Camutins, cujo proprietário, o Beto, aprendeu a produzir cerâmica
com Érick e não fez parte dos primeiros cursos. Os demais produtores não participaram das
primeiras turmas e, assim como o Beto, aprenderam o ofício com Érick.
Os demais entrevistados, em número de três, fizeram parte das primeiras turmas e não
mais produzem cerâmica. O primeiro entrevistado foi Paulo mara que é vice-presidente do
Museu do Marajó, coordena o Projeto Jovem Artesão e é Secretário de Ação Social de
Cachoeira do Arari. Projeto coordenado por Paulo Câmara é financiado pelo Banco Real em
parceria com os Amigos do Banco Real. A instituição bancária, a partir desse investimento,
financia os cursos de cerâmica, corte e costura, serigrafia e bordado do Museu. O público é
formado por adolescentes entre 14 e 18 anos, para isso foi preciso o aval do Conselho do
Direito da Criança e do Adolescente. Esse projeto, assim como os primeiros, também têm
como objetivo principal profissionalizar jovens.
101
Os instrutores de todas as oficinas são da
própria cidade.
101
Cf. AMdM. Projeto Jovem Artesão. Cachoeira do Arari, Museu do Marajó, 2006.
72
Paulo Câmara, disse que começou a produzir cerâmica, mas percebeu que não estava
lhe dando o lucro que esperava. Assim, achou pertinente investir na produção de roupas e
acessórios de sua esposa que trabalha com costura dizendo que
“[h]oje a gente trabalhando praticamente com confecções, mas dentro de todo o segmento
de cerâmica, tudo o que é da cerâmica a gente incorpora … os grafismos, figuras, tudo a gente
sai incorporando, da cerâmica...”
102
Em visita realizada ao ateliê de costura de sua esposa observei que eles possuem uma
pequena indústria de confecções com diversas quinas e um grupo de trabalho. Ambos
informaram que saíram do estado do Pará levando suas peças para feiras e exposições.
Mesmo o produzindo especificamente cerâmica marajoara, eles acabaram aderindo os
motivos gráficos da cerâmica arqueológica em outros objetos comercializáveis. Eles também
espetacularizam o grafismo.
Um ponto a ser ressaltado é que mesmo sem produzir a cerâmica, Paulo mara ainda
é referido pelos outros produtores como habilidoso ceramista. De uma forma ou de outra, ele
também utiliza o Museu para divulgação do trabalho de sua esposa, visto que são todos
baseados nos grafismos e motivos dos artefatos arqueológicos.
Essa apropriação é um fenômeno que está se tornando comum em Cachoeira do Arari,
assim como em algumas cidades do Marajó. As pessoas acabam inserindo o grafismo
marajoara em roupas, acessórios e outros objetos comercializáveis. Também se observam
motivos marajoara pintados em postes de iluminação pública, nas fachadas das casas, nos
bancos das praças, em lanchonetes, nos muros, nos hotéis, em restaurantes e assim por diante.
As fotografias abaixo são alguns exemplos da apropriação desse grafismo em estabelecimentos
públicos e particulares em Cachoeira do Arari:
102
Entrevista concedida em 17/05/2006.
73
Fotografia 24. Banco com pinturas marajoara na Praça da Matriz em Cachoeira
Fotografia 25. Motivos marajoara pintados na recepção da Pousada Fazendas
Foto: Anna Linhares (mai./2006) Foto: Anna Linhares (mai./2006)
74
Fotografia 26. Poste de iluminação pública com pintura de grafismos marajoara localizado em frente ao Posto de
Saúde de Cachoeira do Arari
Observa-se na fotografia a seguir pinturas em um estabelecimento particular, o
restaurante Fundo de Quintal. Na parede do lugar encontram-se pintados uma tanga marajoara
(esquerda) e uma estátua antropomorfa arqueológica (direita).
Fotografia 27. Restaurante Fundo de Quintal
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
75
A fotografia 28 é o registro do estabelecimento comercial Recanto Marajoara cujo
ambiente é decorado com motivos marajoara.
Fotografia 28. Recanto Marajoara
Situação semelhante pode ser observada em Soure.
103
Fotografia 29. Mercado Municipal de Carne com motivos marajoara em Soure
103
Soure é um município localizado na ilha do Marajó próximo de Cachoeira do Arari. De Cachoeira pode-se
chegar em Soure de barco, de ônibus ou de carro particular. Na cidade, também se produz cerâmica marajoara.
Existe mais uma cidade, Ponta de Pedras, localizada na ilha que também produz réplicas da cerâmica
arqueológica. As três cidades são turísticas.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
76
Essa efervescência de grafismos marajoara por toda parte em Cachoeira do Arari
lembra a discussão feita por Hobsbawm (2002) acerca das “invenção das tradições”, haja vista
que as pessoas da cidade acabam considerando o fenômeno como identidade local e como
marca de tradição.
De acordo com Hobsbawm, algumas tradições que são consideradas antigas ou fato de
identidade local, são na verdade recentes e inventadas. Segundo o autor
“[p]or “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por
regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-
se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.” (2002: 9)
Em Cachoeira, Ponta de Pedras e Soure nota-se essa continuidade artificial com o
passado. Ainda refletindo acerca da idéia do autor: [e]m poucas palavras, elas são reações a
situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem
seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória.”. (Hobsbawm, 2002: 10)
Considera-se que essa invenção, “... é essencialmente um processo de formalização e
ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da
repetição” (Hobsbawm, 2002: 12). É o que Meneses (2003) designa de memória coletiva
artificial.
104
A partir das fotografias registradas, nota-se como se esse culto ao passado e o
espetáculo tendo em vista os motivos marajoara pela cidade de Cachoeira e a partir da
reprodução da cerâmica arqueológica como será visto a seguir.
Além de Paulo Câmara, entrevistei mais duas pessoas que não mais produzem
cerâmica, participantes dos primeiros cursos referidos anteriormente: Rosimery Moura
Belieiro, mais conhecida como Rosi e Maria das Graças da Silva, mais conhecida como Dona
Gracinha.
Rosi afirmou que não deu continuidade aos trabalhos de cerâmica por dois motivos:
primeiro por ser muito custoso para ser executado por uma mulher, tratando da retirada do
barro e a etapa de bater o barro. Segundo a entrevistada,
104
Cf. MENESES, Ulpiano Bezerra de. “Identidade cultural e arqueologia: valorização do patrimônio
arqueológico brasileiro” IN BOSI, Alfredo (org.) Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo, Editora Ática,
2003.
77
“... porque prá gente pegar esse barro, a gente tem que ir dentro do rio né, e prá tirar esse
barro, tem que ser pessoas que saibam nadar prá afundar lá, retirar o barro, coisa que eu não
sei, eu não vou me arriscar, né?”
105
Em segundo lugar, afirmou que o Museu não lhe deu o incentivo necessário, pois logo
após o término dos cursos ministrados por Levy Cardoso, nunca mais foi chamada para
participar de cursos no local e tampouco para execução de qualquer trabalho, dizendo que
“... as pessoas poderiam nos dar [apoio], claro que a gente não tem que esperar que o peixe
prá gente comer, a gente tem que ter a nossa própria rede, mas como eu digo assim, a gente ter
pelo menos uma pessoa que se interesse pelo nosso trabalho né, dê aquele apoio né? Não digo
assim financeiro, mas pelo ao menos né, fisicamente... eu nunca entrei nesse rio...”.
Dona Gracinha reclama das mesmas questões e da idade avançada. Ela afirmou que o
Museu não deu e o oportunidade para as pessoas mais velhas, pois ... foi ficando ruim
porque, eles queriam colocar jovem... eu tinha vontade, mas só veio pra jovem, pra
menina de 14 anos até 18 anos, 16 anos...”,
106
fazendo referência ao projeto Jovem Artesão.
Rosi e Gracinha, parecem fazer queixas de discriminação de gênero e principalmente de
geração.
Durante a pesquisa, observei que cada curso delimita a faixa etária para participação.
A maioria das mulheres adultas ou com idade avançada, participam das oficinas de corte e
costura ou bordado, diferentemente do público integrante das oficinas de cerâmica, música,
serigrafia e informática. Talvez a delimitação das idades nas diversas oficinas tenha
prejudicado adultos e adultas, senhores e senhoras, como as entrevistadas, a integrarem nos
cursos de seus interesses. Sobre a questão de gênero, todas as oficinas são abertas para
inscrição de meninos e meninas, rapazes e moças, excluindo a geração mais velha (com
exceção de senhoras que trabalham no bordado e no corte e costura como acabei de frisar). Por
isso, acredito que o que mais incomoda Gracinha e Rosi seja a limitação de participação em
alguns cursos em decorrência da idade, como o de cerâmica.
Ao projetar os cursos, Gallo tinha o objetivo de profissionalizar os jovens de
Cachoeira do Arari. Ele percebera o alto índice de alcoolismo entre os adolescentes na cidade,
acreditando que as oficinas poderiam ocupar esses jovens que se encontravam marginalizados.
Segundo Dona Graça Gemaque,
105
Rosi, ex-ceramista, atualmente trabalha como emprega doméstica. Entrevista concedida em 26/05/2006.
106
Entrevista concedida em 24/05/2006.
78
“[e]le falava assim… sobre essa juventude, ele queria tirar da rua né? Como ele falava, tinha
muito, muito menino que bebiam, não tinham emprego, ele dizia né? Bora fazer um curso p
ver se a gente chama essas crianças pcá... Ele falava muito… prá tirar, porque era
briga mana. Fazia uma festa, era aquela briga! veio. Essa cerâmica que veio aqui pra
Fazendola, do rapaz que veio de Icoaraci. Chamou muito gente! ... ele também fez isso prá
chamar muito a juventude, porque aqui não tem nada mana!!! Só bebida e festa né?”
107
Inclusive, uma das justificativas para a execução do projeto Jovem Artesão, é que
desde que se iniciaram as oficinas profissionalizantes ocorreu
“[a] diminuição na freqüência dos jovens ociosos e com problemas de conduta, muitas vezes
denunciados ao Conselho Tutelar pelos próprios pais, cansados e sem saber o que fazer para
melhorar a conduta de seus filhos. Depois da execução do Projeto ... foi possível melhorar o
empenho dos jovens na escola de ensino regular, haja vista que o bom desempenho escolar é
cobrado durante a realização do Projeto.”
108
Por isso, para integrarem as oficinas profissionalizantes, é obrigatória a participação
regular na escola, assim como a família dos participantes precisa ter renda mensal inferior a um
salário mínimo.
Assim, das primeiras turmas, apenas o ceramista Érick deu continuidade na produção
de cerâmica, que além de ministrar oficina de objetos em barro marajoara no espaço de
produção do Museu, montou seu próprio local produtivo. Segundo Érick, para montar seu
negócio precisou de empréstimo bancário a ser pago de acordo com os lucros oriundos do
trabalho na cerâmica.
A cerâmica Arariuna fica anexada na sua residência (Fotografia 30). O
estabelecimento possui dois andares sendo a residência na parte superior e o espaço de
produção na parte inferior. É uma casa feita de madeira em um grande terreno. A junção
casa/estabelecimento de trabalho facilita a tarefa, pois ao mesmo tempo em que confecciona,
cuida da casa e dos afazeres domésticos, pois reside só. Era bastante comum ocorrerem
paradas no momento da produção das peças ou na hora da entrevista e/ou conversas informais,
seja para atender o telefone, para mexer a panela ou para receber alguma visita inesperada.
107
Entrevista concedida em 20/05/2006.
108
Cf. AMdM. Projeto Jovem Artesão. Cachoeira do Arari, Museu do Marajó, 2006.
79
Fotografia 30. Cerâmica Arariuna. Aqui são realizadas todas as etapas produtivas da confecção da cerâmica
Érick engaja em sua cerâmica os alunos que mais se destacam na oficina, termo
também utilizado para denominar a casa da cerâmica do Museu do Marajó. Como exemplo,
Danielson Ferreira Conceição, mais conhecido por Daniel, Sidney Barbosa Braga, mais
conhecido como Sidão e José Jerônimo, que produzem há pouco tempo com Érick, mas
possuem habilidades de um experiente ceramista. Inclusive, Sidão ministrou recentemente
oficina de cerâmica no Museu. Érick está formando novos ministrantes, uma nova geração de
artesãos de objetos em barro marajoara.
Pela manhã eles se ocupam da casa da cerâmica, horário que funciona o projeto
Jovem Artesão e pela tarde encontram-se na cerâmica Arariuna. Érick possui os equipamentos
necessários para a confecção das peças: forno, tintas, mesas, moldes e espaço suficiente para a
secagem do material produzido.
Sua cerâmica não é estabelecimento de venda, apenas de produção, afirmando em
conversa informal que fica indignado quando mandam para turistas que passam pelo Museu,
visto que o local não é preparado para receber pessoas “chiques”. Os objetos são vendidos em
algumas lojas em Belém e em uma cidade na ilha do Marajó, Salvaterra.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
80
Além dessas atribuições, Érick é vocalista e tocador de banjo de um grupo de danças
regionais chamado Águia de Ouro. Segundo o artesão, ele aproveita as apresentações do grupo
para a divulgação de sua produção. Quando não tem a oportunidade de levar as peças nas
viagens feitas pelo grupo, tenta divulgar de alguma forma a cerâmica e a cultura marajoara, seja
transmitindo a partir de conversas com turistas e de suas interrogações sobre a cultura ou
através das pinturas dos grafismos marajoara que incorpora nas roupas das dançarinas ou nos
próprios instrumentos musicais.
Na fotografia 31 os instrumentos musicais e o chapéu de Érick pintados com
grafismos e motivos marajoara podem ser observados. É o registro de um dos ensaios
realizados pelo Águia de Ouro em uma escola pública de Cachoeira para uma apresentação que
seria realizada em Belém na Estação das Docas, complexo turístico que concentra restaurantes,
cinema, teatro, bares e lojas.
Fotografia 31. Ensaio do grupo Águia de Ouro
O outro espaço de produção de Cachoeira é a cerâmica Camutins, cujo proprietário é
Beto Leão. Assim como Érick, o ceramista Beto construiu o local de produção em sua
residência, sendo que ao seu lado. É uma pequena casa de madeira com um compartimento.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
81
Diferentemente de Érick, Beto não fez parte dos primeiros cursos de cerâmica do
Museu, aprendendo o ofício com Érick na cerâmica Arariuna. Beto disse que o conheceu no
grupo de danças regionais e que a partir de então decidiu fazer objetos em barro, mas devido a
várias desavenças ocorridas entre ambos, resolveu montar seu próprio negócio. Ele não
afirmou durante as conversas e entrevistas, se recebeu qualquer financiamento para a
montagem da cerâmica ou algum tipo de apoio. Além de fazer cerâmica, ministra aulas de
serigrafia no Museu do Marajó, no projeto Jovem Artesão e administra uma academia que fica
no meio da cerâmica. A academia se chama Pele e Osso. E, realmente ela fica no meio de seu
espaço de confecção de cerâmica. Os aparelhos de ginástica encontram-se entre o material de
produção dos objetos. Na fotografia 32 é possível observar os equipamentos no seu centro.
Fotografia 32. Equipamentos da academia Pele e Osso no meio da cerâmica
Pelas manhãs Beto divide seu tempo entre o Museu e a cerâmica e pela tarde fica
trabalhando na academia. O artesão disse que seu grande desejo é fazer uma puxada para cima
da cerâmica a fim de obter mais espaço destinado à Pele e Osso. Beto parece dedicar-se mais a
esse empreendimento do que a produção de cerâmica marajoara, pois trata a academia com
mais entusiasmo.
Grande parte das vezes sua produção é solitária. Durante a pesquisa em Cachoeira do
Arari no mês de maio, observei que ele contava com o trabalho de dois rapazes, Alex
Gonçalves e Ademilton Gonçalves. No retorno à cerâmica no mês de julho não mais encontrei
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
82
os rapazes trabalhando no local. Na realidade, durante a pesquisa nos meses de julho e agosto,
quase não encontrei a cerâmica Camutins em funcionamento. Beto também possui o material
necessário para a confecção de peças e aquilo que produz é vendido em Belém.
Essas são as únicas cerâmicas da cidade, além da oficina do Museu. A diferença
observada entre os três lugares diz respeito aos aparelhos utilizados na confecção das peças.
Na cerâmica Arariuna a queima das peças é feita em forno à lenha. Na cerâmica Camutins,
Beto utiliza o forno à gás ou o maçarico como veremos a seguir. Assim como na cerâmica do
Beto, a oficina não se encontrava em funcionando no mês de julho, mês das férias dos cursos,
fazendo com que fossem escassos os registros da produção no lugar. Só foi possível o registro
inicial dos cursos que se deu logo no início do mês de agosto.
A casa da cerâmica fica no quintal do Museu do Marajó. É um grande
estabelecimento feito de madeira, onde são ministradas as aulas de cerâmica e produzidos os
objetos em argila (Fotografia 33). Possui os equipamentos necessários e espaço para produção
e secagem do material (Fotografia 34).
Fotografia 33 . Casa da Cerâmica
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
83
Fotografia 34. Casa da Cerâmica e o equipamento utilizado na confecção das peças
Na casa da cerâmica os equipamentos de produção são modernos, como dizem os
ceramistas. Observe alguns dos aparelhos nas fotografias que se seguem: a primeira imagem é
o registro do liquidificador e a segunda é o aparelho utilizado na confecção de rolinhos de
argila para ser modelada (Fotografias 35 e 36).
Fotografia 35. Moderno aparelho da casa da cerâmica. Liquidificador usado para fazer a limpeza do barro
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
84
Fotografia 36. Aparelho destinado a fazer rolinhos de barro
Mesmo com a modernidade, observei que eles ainda possuem certa relutância na
utilização desses aparelhos. Eles acham melhor produzirem a cerâmica manualmente, pois vez
ou outra a peça perde a qualidade quando produzidas nos modernos aparelhos, como afirmou
um dos participantes da oficina. Todos os objetos feitos na casa da cerâmica são adquiridos
pelo Banco Real, que financia o projeto e os alunos que participam da confecção ganham uma
porcentagem da venda.
As cópias e réplicas confeccionadas na oficina e nas cerâmicas possuem como modelo
as peças do acervo do Museu. Além de reproduzirem as peças pertencentes ao acervo, utilizam
moldes de desenhos retirados de livros de Arqueologia e da obra produzida por Giovanni Gallo
para esse fim: Os motivos ornamentais da cerâmica Marajoara.
Todos os ceramistas produzem as peças com fins comerciais, mas assim mesmo
afirmam estarem confeccionando peças marajoara autênticas por serem copiadas das
arqueológicas e do material citado acima. A discussão acerca da noção de autenticidade
atribuída às peças marajoara, tanto por parte dos produtores quanto por parte dos possuidores
ou apreciadores dessa tecnologia, será feita no próximo capítulo quando analisarei a
comercialização dos objetos de barro. Agora passo ao trajeto da produção em Cachoeira.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
85
Da busca do barro à produção das cópias e réplicas marajoara
A produção de cerâmica no município de Cachoeira do Arari é incipiente. Ela tem, se
muito, sete anos de atividades e as pessoas que produzem possuem entre 15 e 26 anos de idade.
A produção é realizada, eminentemente, por jovens, quase que exclusivamente do sexo
masculino.
Durante a segunda estada em Cachoeira, nos meses de julho e agosto de 2006, tentei
saber o porquê do interesse exclusivo por parte dos rapazes pela produção de cerâmica. Os
próprios jovens e o ministrante da oficina informaram que as garotas não consideram a
produção de cerâmica um trabalho feminino, pois “suja muito a mão” além de que o trabalho é
muito pesado em decorrência da busca do barro e de algumas das fases do processo,
principalmente a fase do preparo do barro para a confecção, o bater o barro. Por isso, as moças
acabam optando por cursos como serigrafia, corte e costura ou se integram na banda de música
do Museu. Argumento similar ao de Rosy, uma das pessoas que fez parte dos primeiros cursos
de cerâmica ao explicitar as razões pelas quais não levou adiante a produção.
Mattos (2001)
109
pesquisando a produção de cerâmica no Vale do Jequitinhonha, em
Minas Gerais, ficou intrigada com a participação de homens na elaboração das peças de barro.
A autora observava que a entrada dos homens no exercício desse trabalho, embora recente e em
número reduzido, parecia ser bastante significativa, tendo em vista suas indagações sobre
gênero. Ela pergunta se “[n]ão estaria ocorrendo um questionamento dos valores culturais?
Uma subversão do cotidiano e das relações aí cristalizadas? (Mattos, 2001: 14)
No caso referente ao Vale do Jequitinhonha, acredito que esteja ocorrendo
transformação dos valores culturais em vista do mercado de objetos de cerâmica que começa a
surgir, pois a produção do lugar tem suas raízes na tradição oleira, que até então era
eminentemente feminina e utilitária. No caso da produção de Cachoeira, diferentemente do
Vale, a participação exclusivamente masculina não es relacionada a mudanças na tradição
oleira, pois esta é recente e não tem em vista a confecção de objetos utilitários, até porque
desde o princípio objetivou apenas a modelagem de bens culturais comercializáveis.
109
Cf. MATTOS, Sônia Missagia. Artefatos de gênero na arte de barro. Vitória, Edufes, 2001.
86
Os trabalhos para a retirada do barro iniciam cedo. Às 7h30 os rapazes estão indo ao
rio Arari, fonte da matéria-prima. A retirada do barro foi registrada nos dois períodos que
marcam o clima no Marajó: a cheia, que compreende o período entre dezembro e abril, e a seca,
entre fim de julho e novembro. Na época da cheia fica difícil a retirada do barro, pois os
rapazes precisam mergulhar fundo no rio para obter a argila, por isso os mesmos evitam a
tarefa na época da chuva. Como no mês de maio os rios já estão baixando, fica mais fácil a
execução do processo, mas que não deixa de ser trabalhoso.
Para chegar ao meio do rio eles precisam de uma pequena canoa a fim de que possam
começar seus trabalhos (Fotografia 37). Os rapazes ancoram a canoa no que eles chamam de
ponte de madeira, que fica à margem do rio.
Fotografia 37. O rapaz leva a canoa para amarrá-la na ponte de madeira
Assim, distanciam-se para o meio do rio onde a coleta tem início. Parte do grupo
segura a basqueta,
110
usada para acondicionar o barro retirado, os demais mergulham para obter
a matéria-prima. Eles se revezam entre segurar o recipiente que guarda o barro e mergulhar
para a retirada do material como se observa na imagem que segue.
110
Caixa de polietileno utilizada para armazenar a argila retirada do fundo do rio. Essa caixa tem cerca de 30 cm x
60 cm de dimensão.
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
87
Fotografia 38. Um dos rapazes mergulhando para tirar barro no fundo do rio enquanto os outros esperam seu
retorno
A tarefa é bastante cansativa e necessita de força e energia por parte deles. Talvez seja
esse o motivo do revezamento dos rapazes. Nenhum equipamento de mergulho ou para
retirada de argila foi utilizado, trata-se do uso do corpo como ferramenta de trabalho.
Apesar da retirada do barro exigir força física e de ser cansativo, todo o tempo os
rapazes brincavam, nadavam, riam, jogavam barro um no outro, parecendo divertir-se com a
tarefa. Um espaço de sociabilidade. Na realidade, eles são familiarizados com o rio. O rio
Arari é atrelado ao cotidiano dos jovens e das pessoas da cidade, sendo fonte de brincadeiras
para os mesmos, assim como fonte de trabalho para muitos moradores do Marajó e de
Cachoeira. Isso faz com que as pessoas que residem no lugar mostrem-se familiarizadas com o
espaço, diferentemente de quem mora em um centro urbano, por exemplo. Isso lhes dá
segurança para entrar no rio no momento de execução do trabalho e de utilizarem também o
local como fonte de lazer nesta etapa amenizando ou suavizando a tarefa custosa de retirada da
argila.
Por várias vezes eles mergulhavam em busca do barro e voltavam com pequenas bolas
que iam organizando em grandes caixas de polietileno. No momento em que era feito o
registro da retirada da matéria-prima ocorria uma conversa entre eles acerca da dificuldade de
mergulhar mais fundo a fim de conseguirem o barro branco. Dada a dificuldade, nesse dia eles
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
88
coletaram apenas barro vermelho.
A retirada da matéria-prima ocupou de 3 a 4 horas de trabalho aproximadamente. Eles
coletaram duas basquetas cheias de barro. Assim que terminaram a coleta, desamararam a
canoa da ponte de madeira, aproximaram a mesma do local onde retiravam a argila facilitando
o depósito das caixas dentro dela (Fotografia 39). Depois que armazenaram as caixas na canoa,
todos participaram de uma disputa a nado em clima de brincadeira e muita descontração.
Fotografia 39. Os rapazes carregam a caixa para dentro da canoa depois do trabalho
Após a brincadeira todos retiraram o barro da canoa e armazenaram em cima da ponte
de madeira para que fosse levado do local para a casa da cerâmica.
Eles descarregaram as
caixas cuidadosamente e iniciaram a lavagem da canoa que estava coberta de argila. Após a
lavagem, prenderam a canoa junto aos outros barcos que se encontravam ancorados no local e
subiram para carregar o barro (Fotografia 40).
Fotografia 40. As caixas com o barro em cima da ponte de madeira
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
89
Geralmente, eles trazem um carrinho de o semelhante aos usados para carregar
material de construção, como cimento e areia, para armazenar as caixas cheias de barro, mas
que dessa vez não tiveram sorte, pois seu pneu estava rasgado e eles foram obrigados a
carregar, além das duas caixas de polietileno repletas de argila e que pareciam pesadas, o
carrinho de mão. Mesmo assim, para eles tudo parecia ser absoluta diversão.
Um grupo carregou uma caixa na mão e outro grupo veio carregando o carro de mão
com a outra basqueta em cima do mesmo. Andaram uns 200 metros, armazenando o barro na
casa da cerâmica, pois além de ser mais próximo do rio, utilizariam o material tanto na
cerâmica Arariuna quanto nos cursos da oficina (Fotografia 41).
Fotografia 41. Depositando o barro na oficina
Pensei em fazer esse registro na segunda etapa do trabalho de campo, mas a
oportunidade o se fez esperar. Na segunda vez que retornei ao município, realizei outro
registro da retirada do barro que, diferentemente da observação feita quando os rios estavam
secos, percebi que a canoa não era mais elemento essencial às tarefas. A oportunidade de fazer
dois registros permitiu observar as diferenças entre as coletas.
Chegando ao rio para mais uma etapa de campo percebi que a paisagem havia
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
90
mudado. O rio vai secando e as margens tornam-se verdes em decorrência do mato que nasce
no limo deixado pelas águas. O espaço torna-se local de brincadeiras para as crianças que
moram nos arredores. Os produtores também não precisam mais entrar no rio para a retirada
do barro, pois a matéria-prima fica disponível na beira. Nesse período de seca, eles utilizam
apenas as mãos e, algumas vezes, pedaços de pau que encontram na beira do rio, destinados a
cavar o barro para obter argila que fica mais ao fundo. Para armazenar a matéria-prima usaram
sacos plásticos, os mesmos que utilizam para armazenamento de farinha de mandioca, pois são
mais resistentes. Para o transporte até o local de produção, usaram o carrinho de mão.
Chegando ao local, os rapazes começaram a escolher onde iriam processar a retirada
do barro, preocupados com a qualidade da argila que queriam no momento. Ao observar a
preocupação interroguei-os acerca da existência de locais diferenciados para a busca de
matéria-prima e eles informaram que existem certas partes na beira do rio em que se acha com
mais facilidade o barro branco, em outras o barro vermelho (Fotografia 42).
Fotografia 42. Sidão e Érick procuram o lugar apropriado para retirarem o barro que necessitam
Para a retirada da matéria-prima, os ceramistas precisam ter um amplo conhecimento
da área para identificar os melhores lugares para a coleta. São pessoas especializadas, que
detêm um saber específico que lhes permite distinguir os diferentes tipos de matéria-prima para
a produção das peças. Especialização necessária nas diversas etapas de produção, passando
pelas misturas, tintas, formas de fazer e assim por diante.
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
91
Como observado por Carneiro da Cunha e Almeida (2002),
111
por vezes, são
conhecimentos embasados na observação e na experimentação. Segundo esses autores, certos
conhecimentos, como esses que são práticas específicas, possuem como suporte uma
“... observação ... detalhada, minuciosa, e cada um [desses participantes deve estar] atento ao
que e ouve ... [e]ssa atenção constante é posta, sem dúvida, a serviço das atividades, e o
exercício dessas atividades é crucial para que se mantenham os conhecimentos ... [n]ão existe
e não persiste um saber desvinculado da prática.”(2002: 13)
Naquele momento eles estavam procurando barro branco para a feitura do engobo.
Berta Ribeiro (1988) diz que o barro branco pode ser chamado de caulim ou tabatinga. O
caulim é dissolvido em água, servindo como engobo, que é o revestimento aplicado nas paredes
da peças de cerâmica antes da queima, ou para decoração pintada ou incisa do objeto. O
engobo consiste em uma fina camada de argila, que pode ser a branca, como a argila que os
produtores procuravam inicialmente ou vermelha.
Assim que acharam o local da retirada do barro que desejavam, tiraram as sandálias,
deixaram na beira do rio e iniciaram o trabalho. Eles iam cavando com as mãos (Fotografia
43), escolhiam o barro, e armazenavam nos sacos plásticos. Essa escolha era feita tanto pela
coloração quanto pela argila que continha menos impurezas, como cacos de vidro, pedras e
pedaços de pau. Quando consideravam que suas mãos estavam sujas, iam ao rio, lavavam-nas
e voltavam para dar continuidade ao trabalho. Provavelmente a lavagem que constantemente
fazem nas mãos ao longo da retirada da argila permita sensibilidade para detectar as texturas do
material, posto que as mãos são os instrumentos principais de coleta da matéria prima. Depois
que retiraram o barro branco, foram em busca do barro vermelho. O tempo de coleta foi bem
menor do que no mês de maio, durou menos de 2 horas.
111
Cf. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela & ALMEIDA, Mauro Barbosa de. Enciclopédia da Floresta - o Alto
Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
92
Fotografia 43. Eles usam um pedaço de pau que encontram na beira do rio para retirarem a matéria-prima
Assim que terminaram, colocaram três sacos cheios de barro no carrinho de mão, mas
o carrinho ainda estava com o mesmo problema: um dos pneus rasgados. Assim, a tarefa de
carregar os sacos foi bem mais difícil, pois dessa vez, só estavam presentes dois produtores e o
dono da cerâmica Arariuna, além do mais, eles teriam que carregar até a cerâmica, bem mais
distante do Museu. Sidão carregou os sacos nos ombros até metade do caminho, depois
levaram no carrinho de mão suspenso (Fotografias 44 e 45).
Fotografia 44. Sidão atravessa a ponte de madeira com a matéria-prima
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
93
Fotografia 45. Daniel carrega o barro pelas ruas até a cerâmica Arariuna
Um fato chamou a atenção: mesmo percebendo a dificuldade dos dois rapazes em
carregar o material, o dono da cerâmica que trabalhava na retirada na matéria-prima se recusou
em ajudá-los. Na oportunidade, pude observar a existência de hierarquia entre os rapazes, o
dono do local de produção estava pronto para retirada do barro e não para carregar o material
ao local de armazenamento. Inclusive, Érick fez uma brincadeira, dizendo que aquela era a
prova de fogo dos ceramistas, pois estavam na cerâmica pouco tempo e precisavam passar
por testes.
Depois de muito trabalho, suor e risos, os rapazes conseguiram chegar na cerâmica.
Eles se divertiram muito, pois enquanto iam carregando o carrinho de mão com o barro
ensacado, eu executava o registro fotográfico, situação que os deixava acanhados, pois todas as
pessoas iam observando o processo pelas ruas e se divertindo com a dificuldade dos rapazes e a
máquina fotográfica. Eles chegaram ao local e acondicionaram a matéria-prima em um canto
do espaço de produção Arariuna.
Lima (1986) afirma que para a coleta de argila destinada à produção de cerâmica
indígena “... é normalmente aproveitado o período das secas, quando baixam as águas dos
rios… [i]sto é feito apenas durante o verão, já que no inverno o leito fica muito profundo.”
(1986: 174).
112
Ou seja, eles são regulados pelos períodos climáticos, questão que não afeta de
forma determinante a produção em Cachoeira do Arari.
Depois de procedida a retirada da matéria-prima, os produtores passam ao preparo do
112
Cf. LIMA, Tânia Andrade. “Cerâmica Indígena BrasileiraIN Suma Etnológica Brasileira. v.2. Tecnologia
Indígena. Petrópolis, Vozes/Finep, 1986.
Foto: Anna Linhares (agost./2006)
94
barro antes de ser utilizado na confecção das peças. A etapa se inicia com o amasso da
matéria-prima ou o bater o barro (Fotografia 46). Segundo os produtores, o amasso serve para
tirar o ar da argila.
Fotografia 46. Sidão amassa o barro para confecção de peças
Eles amassam a argila por diversas vezes e depois formam grandes blocos para assim
procederem ao que eles chamam de limpeza ou decantação do material, separando as impurezas
ou sujeiras da matéria-prima.
Eles chamam de barro sujo aquele barro cheio de pedrinhas, pedaços de pau ou que
contém qualquer outro corpo estranho. Afirmam que tanto a retirada do ar quanto a limpeza
fazem-se necessárias, pois qualquer corpo estranho que fique na matéria-prima faz com que a
peça estoure no momento da queima.
O processo de limpeza é feito com um pedaço de arame que é passado por diversas
vezes no meio do bloco. Enquanto eles vão limpando, o observando se a massa possui
alguns furinhos. Se possuir, amassam mais, pois furinho na massa é sinal de que ela ainda não
está totalmente homogênea. Todo esse processo é importante para que além de limpo, o barro
fique com uma cor única e ganhe maior consistência. Eles vão fazendo toques no material para
perceber se ainda possui impurezas e se está consistente.
Na casa da cerâmica, além da limpeza manual, eles usam um liquidificador específico
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
95
(um dos modernos aparelhos referidos anteriormente) que também é utilizado para retirar a
sujeira. O barro não é comumente empregado na sua forma pura em virtude de sua excessiva
plasticidade que determina deformações nas peças e também rachaduras durante a queima,
inutilizando-as. Por isso, para tentar neutralizá-la, é muito freqüente o acréscimo de algumas
substâncias que são chamadas de antiplásticos, temperos ou desengordurantes, que endurecem
a argila. Encontram-se, o raro, misturados aos depósitos de barro naturais, mas podem ser
naturais ou artificiais.
Segundo Berta Ribeiro (1988), os naturais são constituídos de substâncias orgânicas e
os artificiais, de inorgânicas. Os principais antiplásticos oriundos de substâncias orgânicas são,
espículas de esponja calcinada, mais conhecida como cauxi, ossos moídos, conchas esfareladas,
palha picada, estrume de gado, de carvão, cinza de uma árvore do cerrado, que segundo a
autora, não é identificada botanicamente, cinza da casca e do caule da árvore cega machado
113
e,
sobretudo, do caraipé,
114
substância bio-mineral, formulada a partir da casca queimada ou
triturada de árvores ricas em sílica (Lima, 1986). Os principais temperos oriundos das
substâncias orgânicas são grãos de quartzo, mica, feldspato e cacos triturados.
Os produtores de Cachoeira do Arari geralmente adicionam ao barro caraipé e
chamote. Segundo Paulo Câmara, eles também chamam o caraipé de carepé. Segundo Berta
Ribeiro (1988), as cascas dessas plantas são cortadas em tiras e secas ao sol. Depois disso, elas
são amontoadas de modo piramidal e queimadas lentamente pelas brasas introduzidas no centro
da pirâmide. As cinzas resultantes são socadas no pilão e peneiradas, aproveitando o mais
fino como mistura ao barro. Segundo os artesãos de Cachoeira, o chamote é o tempero
artificial, que são transformados pelo homem: pedaços de tijolos moídos. Depois desse
processo, a argila fica em repouso por mais ou menos dois dias até estar pronta para ser
trabalhada. Caso o produtor utilize o barro de imediato, precisa colocá-lo em sacos plásticos
para que o mesmo não endureça.
Para modelar as peças os produtores da cerâmica Arariuna e da cerâmica Camutins
utilizam o processo de superposição de anéis de argila, que se chama espiralado ou acordelado,
consistindo na superposição de roletes de argila, de comprimento variado, dependendo do
113
Lythraceae sp.;Physocalymna sp. Ribeiro (1988).
114
De acordo com Berta Ribeiro (1988), registram-se as seguintes espécies botânicas da família das
Crisobalanáceas: Licania octandra, Licania turiuva e Hirtella octandra.
96
tamanho da peça em sentido circular ou espiralado, a construir as paredes do objeto
(Fotografia 47).
Fotografia 47. Érick e Sidão modelando um vaso marajoara
Via de regra, os vestígios da espiral se apagam esfregando-os com as mãos ou com
espátulas (Fotografia 48).
Fotografia 48. Artesão passa espátula para dar homogeneidade aos anéis de barro
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
97
Também utilizam fôrmas específicas. Além das fôrmas e da mão, as peças podem ser
produzidas no torno. No período da pesquisa, registrei apenas o processo da superposição de
anéis à mão. Apenas uma vez, dentre as estadas na oficina, tive a oportunidade de registrar a
modelagem de uma peça no torno, mas nesse caso, em um torno elétrico da casa da cerâmica
(Fotografia 49). Geralmente empregam a técnica do acordelado para confecção de vasos e as
fôrmas para a confecção de algumas cópias e réplicas de tangas marajoara ou outras peças mais
detalhadas e que precisam de molde específico.
Fotografia 49. Vaso sendo modelado no torno elétrico da casa da cerâmica
Depois de prontas, elas são colocadas para secar por dois ou três dias. A peça é levada
a secar em local que seja arejado e fresco, à sombra, e depois pode até ser exposta ao sol. Um
dos produtores da cerâmica Camutins informou que apenas põe peças secando ao sol quando
está com pressa para finalizar determinada encomenda com reduzido prazo de entrega. A
exposição direta ao sol pode trazer resultados desastrosos, podendo ocasionar rachaduras no
objeto.
Depois da seca, eles dão o acabamento da cerâmica alisando-a e dando brilho para
deixá-la pronta para receber a decoração. O Guia prático de Antropologia (1971)
115
chama
esse processo de brunição, ou seja, depois de se dar a forma, brune-se ou se polimento na
superfície da peça. Eles fazem o processo de polimento depois de levantada, depois que o
115
Cf. ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE of Great Britain and Ireland. Guia Prático de Antropologia.
São Paulo, Cultrix, 1971.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
98
objeto encontra-se com a forma desejada. No caso de um objeto que é modelado pelo processo
do acordelado, a peça encontra-se levantada quando todos os anéis foram superpostos e passou
pelo processo de secagem, precisando apenas ser polida para dar o acabamento final.
Para brunir usa-se caroço de inajá, que é uma palmeira da família das palmáceas com
cerca de 5 a 6 metros de altura, cujo fruto é verde–amarelo,
116
pedaços de PVC, tampas de
caneta e até tubos de creme vaginal, o que permite ver as adaptações e improvisos dos
instrumentos de trabalho.
Depois do polimento da peça, vem a decoração, que pode ser efetivada antes ou depois
da queima, dependendo do tipo de objeto. Passa-se o engobo branco ou vermelho, ambos
obtidos da cerâmica e depois são realizadas as incisões e excisões, que geralmente são feitas
antes da queima.
As incisões têm como expressão decorativa o corte, que é a ação de um instrumento de
ponta aguda, ou não, que risca mais ou menos profundamente a superfície da cerâmica.
Segundo Berta Ribeiro (1988), é um tipo de impressão que se desliza sobre a superfície do
objeto ainda plástico, que acaba produzindo uma ou várias linhas (Fotografia 50).
Fotografia 50. Érick faz incisão de uma réplica
116
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. NOVO DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira, S/D.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
99
Observei diversos materiais utilizados para a feitura de incisões nas peças pelos
ceramistas como: pedaços de ferro de bicicleta, pedaços de ferro de guarda chuva, pedaços de
madeira, garfo quebrado, pedaços de régua, sementes, pedras e caroços.
a excisão é o tipo de decoração que consiste em retirar porções da superfície da
peça, de tamanhos, formas e profundidades variadas, uma espécie de raspagem (Fotografia 51).
Fotografia 51. Daniel decora uma réplica utilizando os processos de excisão
As incisões e excisões o são feitas em todas as peças. A pintura é outra forma de
decoração e também não é utilizada em toda produção. Ela é aplicada apenas após a queima,
pois o processo pode danificar essa decoração. Depois do processo de excisão e incisão, as
peças vão ao forno. Na cerâmica Arariuna ainda usa-se o forno à lenha (Fotografia 52). A
temperatura do forno à lenha chega a atingir 800º. No momento da queima, o ceramista vai
introduzindo aos poucos pedaços de madeira dentro do forno (Fotografia 53). Depois de
aproximadamente 9 horas, as peças estarão queimadas. Mas eles não podem retirar a cerâmica
logo após o processo, pois senão as peças podem quebrar em decorrência do choque térmico
que pode vir a ocorrer pela diferença de temperatura do forno e do ambiente. Eles precisam
esperar o esfriamento do forno e dos objetos para retirá-los.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
100
Fotografia 52. A queima realizada no forno à lenha na cerâmica Arariuna
Fotografia 53. Érick coloca pedaços de pau dentro do forno durante a queima
Registrei uma queima nessa cerâmica. Ela iniciou 12 horas e terminou 21 horas
aproximadamente. O resultado o foi o esperado: muitas peças quebraram e estouraram.
Segundo Érick, provavelmente ocorreu choque térmico ao retirá-las do forno. O artesão ficou
ainda mais decepcionado porque as peças queimadas estavam destinadas a Mbarayó, uma loja
que fica em Salvaterra, localizada na entrada de um dos hotéis mais conhecidos do lugar, a
Pousada dos Guarás. A conseqüência do ocorrido fez com que os produtores deixassem de
lucrar com a encomenda, pois o trabalho foi dobrado.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
101
Érick disse que o forno à lenha tem suas vantagens e desvantagens. A principal
vantagem relaciona-se com a qualidade das peças. Elas ficam mais resistentes do que as
queimadas no forno a gás e a principal desvantagem está relacionado exatamente com o
acontecido, pois se torna difícil dar homogeneidade na temperatura no forno à lenha. Depois
do ocorrido, disse estar pensando em rápida mudança para o forno à gás em decorrência das
constantes encomendas que recebe. O depoimento aponta para a influência do mercado, pois
como dependem das vendas preferem perder em qualidade a deixar de vender ou trabalhar em
dobro para atender as demandas.
Na cerâmica Camutins, Beto o se arrisca mais a usar o forno à lenha. Atualmente
usa o forno à gás ou o maçarico. O tempo é praticamente o mesmo do processo realizado no
forno à lenha e a temperatura atinge aproximadamente 600º. O artesão deixa o maçarico acesso
na boca do forno por cerca de quatro horas antes de introduzi-lo (Fotografia 54).
Fotografia 54. Queima à gás na cerâmica Camutins. Beto introduz a mangueira do botijão dentro do forno onde se
encontram as peças
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
102
A queima se processa no mesmo tempo do forno à lenha. Depois de frias, as peças são
retiradas (Fotografia 55).
Fotografia 55. Fim da queima das peças no forno à gás na cerâmica Camutins
Como referi anteriormente, a qualidade do produto queimado nesse tipo de forno é
inferior da qualidade das peças queimadas no forno à lenha, pois acabam o adquirindo a
mesma consistência. O que a uniformidade na hora da queima no forno à gás impedindo
que elas quebrem é uma manta refratária de argila que reveste o seu interior.
Para Beto, a queima no forno à gás é mais limpa do que a feita no forno à lenha. A
feita à lenha deixa a peça com manchas escuras oriundas das cinzas do fogo e a feita à gás
deixa a peça limpa e branquinha, como disse o produtor. O artesão também concorda com a
menor resistência das peças queimadas no forno à gás. Para ele, tanto a queima à lenha quanto
a queima à gás foram invenções posteriores advindas do homem branco, visto que a tradição
indígena nunca utilizou esse tipo de método. Os índios queimavam suas peças ao ar livre pelo
método da coivara.
Segundo Lima (1986), entre os indígenas brasileiros a queima é processada em
atmosfera oxidante. A autora afirma que até agora não se registrou nenhum grupo que queime
cerâmica em ambiente redutor. Para tanto se arma uma fogueira, cujo tamanho vai variar em
função do número de peças a serem queimadas, geralmente com lenhas e casca de árvores em
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
103
arranjos cônicos. Esse arranjo da fogueira garante uma queima uniforme das peças, pois se o
calor for maior em um dos lados pode ocorrer quebra dos objetos.
Berta Ribeiro (1988) distingue a coloração final de peças de cerâmica em ambos os
processos: os feitos em atmosfera oxidante e os feitos em ambiente redutor. A ausência ou
presença de oxigênio e carbono afeta a coloração da pasta, uma vez que a argila reage quando
aquecida. Isso ocorre porque contém ferro e alumina. Grosso modo, se o processo ocorre em
atmosfera oxidante, ou seja, ao ar livre, a cerâmica vai apresentar coloração marrom, amarela,
laranja e vermelha, mas se ocorrer em ambiente redutor assumi tonalidades preta, cinza e
branca.
Sobre o processo de confecção das peças de Cachoeira, depois de frias elas são
retiradas dos respectivos fornos e, se preciso, passam pelo processo de pintura. Eles pintam a
peça toda ou desenham motivos marajoara. Geralmente, a tinta é natural, mas eles também
utilizam tinta artificial. Para a fabricação de tinta natural, extraem substâncias da casca de
cumatê (árvore da família das mirtáceas) e de ingá (planta da família das leguminosas -
mimosáceas, que compreende cerca de 200 espécies), para tintura vermelha, e substância da
nogueira e jenipapo, para tintura preta.
117
Segundo Ferreira (S/D), nogueira é uma árvore da família das juglandácias e o
jenipapo é o fruto do jenipapeiro, cujo suco serve para muitos índios brasileiros enegrecerem o
rosto e o corpo. Quando o fruto está maduro, fica do tamanho aproximado de uma laranja, com
coloração marrom por fora e vermelha escura por dentro, sendo essencial para a fabricação de
tinta.
Érick informou que em Cachoeira eles usam a casca de cumatê e as extraem de um dos
tesos da região, o Teso dos Bichos.
Para a tintura artificial eles utilizam tinta acrílica à base de água. Na utilização da tinta
artificial todas as cores o incluídas, mas para a feitura de tinta preta, por vezes mistura-se
tinta preta de tecido com carvão. Érick disse que a mistura da tintura natural com a artificial dá
mais consistência na decoração. Para envelhecer as plicas marajoara usam betume, cinza de
carvão e extrato de nogueira. Tanto na cerâmica Camutins quanto na cerâmica Arariuna
utiliza-se cera para proteger a pintura. Segundo Beto, o verniz o serve enquanto protetor da
117
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. NOVO DICIONÁRIO DA NGUA PORTUGUESA. Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira, S/D.
104
pintura, pois deixa a peça “grosseira”.
Lima (1986) afirma que após a pintura, os índios também aplicam resinas nos objetos
enquanto elemento protetor. Para decorá-las, os ceramistas de Cachoeira do Arari usam
pedaços de algodão, pincel de pintura e escova de dente usada que contornam os desenhos
marajoara. Nos registros das fotografias 56 e 57, o ceramista utiliza um pincel específico para
pintura no momento da decoração das réplicas.
Fotografia 56. Pintura de uma tanga marajoara
Fotografia 57. Pintura de uma réplica
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
105
Fotografia 58. Réplicas de tangas marajoara prontas para serem comercializadas
Depois de pintados, os objetos ficam secando ao ar livre. Depois de secos, são
impressos os valores das peças de acordo com os lugares a que o destinadas. Vencidas as
etapas de confecção, elas estão prontas para a comercialização (Fotografia 58). Chegando nas
grandes cidades adquirem significações diversas como veremos a seguir.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
106
IV. A aura dos objetos em barro marajoara:
autenticidade, venda e consumo da cerâmica de
Cachoeira do Arari
A autenticidade das peças de barro
Como afirmei no capítulo anterior, os ceramistas de Cachoeira produzem
basicamente cópias e réplicas da cerâmica arqueológica, mas além da produção dessas peças,
durante a pesquisa fizeram questão de mostrar que confeccionam outros estilos, mesmo que
numericamente reduzido em relação aos objetos copiados dos arqueológicos. Eles afirmam
produzirem peças utilitárias e artísticas. Classificam as peças de utilitárias devido aos aspectos
formais. A fotografia abaixo mostra uma das peças utilitárias produzidas na cerâmica
Camutins.
Fotografia 59. Panela produzida na cerâmica Camutins
Tendo enquanto suporte classificatório o Dicionário do Artesanato Indígena (1988)
de Berta Ribeiro, esta peça corresponde uma cerâmica utilitária para cozinha, especificamente
panela de barro, definindo-se como vasilha larga e funda, provida de tampa, usada para
cozinhar alimento ou fermentar bebida. Ela se aproxima dos aspectos formais de uma panela
vasiforme, pois tem forma de vaso. Possui pequenas alças em ambos os lados. O objeto
também pode ser considerado cerâmica específica para venda, pois são comprados para serem
“apreciados”, como afirmou um dos ceramistas. O objeto foi confeccionado por Beto.
Na cerâmica Arariuna também se faz objetos desse grupo genérico, mas específicas
para venda, como mostra a fotografia 60. Observando ambos os espaços, pude notar que a
produção é reduzida em relação às reproduções de peças arqueológicas. Na realidade, no
período de execução da pesquisa, observei apenas três ou quatro objetos na cerâmica Camutins
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
107
e de algumas xícaras e tigelas na cerâmica Arariuna, como se pode observar na fotografia
seguinte.
Fotografia 60. Objetos utilitários na cerâmica Arariuna
São cerâmicas utilitárias ou cerimoniais para armazenamento e serviço. Segundo
Berta Ribeiro (1988), objetos com esse aspecto formal são produzidos de variadas formas e
tamanhos e servem para guarnecer a casa. Quando de uso cerimonial ou destinada ao
comércio, são decorados e por vezes vitrificados. As duas primeiras xícaras da foto possuem
alças e bocas largas com pouca profundidade e com o diâmetro da boca diferenciado do fundo.
As outras duas peças superpostas na imagem são duas grandes tigelas podendo ser definidas
enquanto vasilhas de boca larga e profundidades medianas, usadas para servir alimentos e
outros fins (Ribeiro, 1988). Foram produzidas por Érick.
Os objetos denominados pelos artesãos de artísticos ou estilizados também se
encontram em número reduzido. Ao confeccionarem essas peças, conforme os ceramistas, eles
“deixam a imaginação funcionar”. Nas cerâmicas foram encontrados cinzeiros, pratos com
emblemas de times de futebol, porta-jóias, placas com nomes de pessoas para serem
pendurados em paredes, uma miniatura do Mangueirão (estádio de futebol em Belém), dentre
outras peças. Alguns dos objetos produzidos enquanto artísticos ou estilizados apresentam
incisões e excisões de desenhos com semelhança aos da cerâmica marajoara. Deve ser nessa
etapa que deixam a imaginação funcionar, pois fazem junção de motivos marajoara com outros
desenhos, assim como misturam formas e cores.
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
108
A fotografia a seguir mostra uma das referidas cerâmicas, específica para venda, visto
que é um objeto decorativo. É um grande prato com a pintura de um emblema de time de
futebol paraense na cor azul, em conjunto com motivos incisos marajoara ao seu redor.
Fotografia 61. Cerâmica artística ou estilizada (Cerâmica Camutins)
Integrando o estilo encontra-se a confecção de objetos que eles classificam de
Caboara que significa a cerâmica do caboclo marajoara. Compondo o estilo, são
confeccionados objetos que mostram aspectos da religiosidade do lugar, rituais ocorridos em
eventos locais, personagens que fizeram ou fazem parte da história de Cachoeira do Arari e
elementos da flora e da fauna da região. O elemento produzido com mais constância é o
búfalo, pois é um animal bastante encontrado na região dos campos do Marajó e são bastante
procurados pelos turistas (Fotografia 62).
Fotografia 62. Búfalos na cerâmica Camutins
Foto: Anna Linhares (jul./2005)
Foto: Anna Linhares (jul./2005)
109
São cerâmicas estatuárias temático-figurativas, como refere Ribeiro (1988), sendo
modelagens que mostram elementos do cotidiano da população de Cachoeira. Os búfalos são
animais bastante encontrados nas fazendas da região da ilha, que servem enquanto meio de
transporte humano e de cargas. Geralmente os ceramistas confeccionam pequenos búfalos
para que o manuseio seja facilitado pelo provável comprador.
Além dos búfalos, observei objetos que tentam reproduzir o ritual ocorrido todo ano
na Festividade de São Sebastião, uma festa religiosa do lugar, a luta marajoara e a escultura em
barro de Dalcídio Jurandir, romancista que viveu por anos em Cachoeira do Arari (Fotografias
63 e 64).
Fotografia 63. Luta marajoara
A imagem que reproduz a luta marajoara também pode ser considerada enquanto
cerâmica estatuária temático-figurativa (Ribeiro, 1988), pois tenta mostrar aspectos da vida
ritual do Marajó. São dois homens que lutam durante o ritual e abaixo das figuras encontra-se
uma grande base de apoio onde estão incisos motivos marajoara.
Foto: Anna Linhares (jul./2005)
110
Fotografia 64. Busto de Dalcídio Jurandir sendo modelado
A fotografia 64 mostra o busto do romancista Dalcídio Jurandir. Considerada
cerâmica estatuário temático-figurativa (Ribeiro, 1988), possui traços marcantes como os
grandes olhos, nariz, boca e orelhas. Nesse período a peça ainda estava sendo finalizada.
O prato com o emblema do time de futebol paraense, os búfalos, o ritual e Dalcídio
Jurandir foram todos confeccionados por Beto. Para os artesãos, a produção Caboara
corresponde ao início da valorização de aspectos culturais atuais da região. Segundo eles,
além da confecção de peças que retornam a um passado, eles passarão a valorizar os aspectos
culturais presentes.
Os ceramistas afirmam que pretendem iniciar uma nova etapa no processo produtivo
para marcar uma época como marcou a produção arqueológica marajoara. Érick
118
confirma:
“... começar desde as fases marajoara, as fases arqueológicas que são seis: ananatuba, aruã,
mangueira, formiga e a [a]í, a gente vai dessas seis, das seis ramifica vários[é] a nossa
fase ... é a cerâmica Caboara, caboclo marajoara que a gente tá tentando criar.”
Segundo Beto,
119
a produção da cerâmica Caboara será importante, pois
“... vai resgatar uma cultura, que vai fazer uma junção da cultura como uma cerâmica,
entendeu? Como, por exemplo, os índios, eles usavam seus desenhos, os seus costumes, tudo
eles colocavam na cerâmica, tudo eles agregavam na cerâmica. A gente vai ... [a]gregar lá
tudo, todos os valor que nós temos no Marajó. Colocar com certeza também o Museu do
Marajó. Isso a gente não pode deixar de lado! Entendeu? Fica nisso, fica tudo resumido a
uma peça. na peça, vai ter um lado que vai ter sobre a música, uma parte que vai ter sobre
118
Entrevista concedida em 18/05/2006
119
Entrevista concedida em 16/05/2006.
Foto: Anna Linhares (jul./2005)
111
o vaqueiro, sobre o pescador, sobre, sobre, os compositores da terra. Tudo isso.”
Mas apesar de acreditar na importância de uma nova criação, Beto se diverte em
saber que pretendem definir o estilo Caboara como uma nova etapa de um processo produtivo
de objetos cerâmicos, como ocorreu no período pré-colonial:
“[d]izem que é uma nova fase da cerâmica!! (RISOS) Eu digo: não, não é assim! Porque
fases da cerâmica é uma cerâmica arqueológica. A gente não vai dizer fase, a gente já vai
dizer assim, por exemplo, uma cerâmica contemporânea. Entendeu? não se diz fase já pra
essas coisas.”
Observa-se que, segundo Beto, eles agregarão os atuais valores do Marajó, sem
deixar de lado o incremento dos motivos marajoara nas peças desse gênero. Mesmo buscando
uma identidade Caboara, continuam a se apropriarem da cerâmica arqueológica. Basta
observar a fotografia da luta marajoara com os grafismos incisos que remetem aos desenhos da
cerâmica pré-colonial. De qualquer forma, a produção das peças artísticas ou estilizadas ainda
é pequena em contraposição às peças marajoara atuais. Quem sabe com o tempo essa cerâmica
realmente venha a se transformar em uma nova fase ou em identificação cultural da região
como começa a ocorrer com a cerâmica arqueológica e sua reprodução, esta última mais
atrativa ao comércio.
Sobre as cópias e réplicas, os artesãos dizem que as primeiras são peças sem muita
preocupação com a similitude às originais e as segundas são cópias fiéis da cerâmica
arqueológica, como frisei no capítulo anterior. A fotografia 65 mostra a exposição de três
peças de cerâmica com o intuito de apresentar a distinção entre ambas. Os objetos estão
expostos no acervo do Museu do Marajó e suas reproduções foram feitas por artesãos de
Cachoeira.
112
Fotografia 65. Cópia, arqueológica e réplica expostas no Museu do Marajó
A primeira tigela, da esquerda para a direita, é a réplica, a do meio a cerâmica
arqueológica e a terceira, a cópia proveniente da original. A tigela arqueológica,
provavelmente, foi de uso utilitário ou cerimonial pelos antigos habitantes da ilha.
Considerando a atual produção, são cerâmicas específicas para venda.
Acerca do aspecto decorativo, ambas são pintadas, predominando as cores preta,
branca e vermelha. As cores diferenciam-se pela tonalidade em decorrência das diferentes
técnicas utilizadas em cada uma delas. Observe que a réplica aproxima-se mais da
arqueológica nos aspectos formais. Basta notar a preocupação com o envelhecimento da peça,
diferentemente da cópia, que possui suas cores mais opacas e artificiais.
Veja que as peças que são denominadas de réplicas pelos ceramistas apenas
aproximam-se dos aspectos formais dos artefatos arqueológicos, como mostra a imagem
acima. Na medida em que uma réplica é o exemplar de uma obra original, não se pode
considerar a cerâmica marajoara contemporânea enquanto cópias fiéis dos objetos pré-
coloniais se se pretende dar ênfase para a fidelidade visual dos objetos. Até mesmo a técnica
de envelhecimento usada pelos atuais produtores da cerâmica não faz com estes fiquem
idênticos aos arqueológicos.
Mesmo dizendo que são idênticos, deixam escapar que, “sabe como é né, nem sempre
fica igual, igual, algumas coisas ficam diferente”, como frisou Érick. Certa vez, enquanto
pesquisava na exposição, Rosélia, uma das pessoas que trabalha no Museu, começou a explicar
Foto: Márcio Henrique (mai./2006)
113
a distinção das três peças registradas na imagem. Findando sua explicação disse o seguinte:
“chamam estas cópias de réplicas, mas tu vês que não são idênticas”. Os vendedores atribuem
fidelidade e autenticidade aos objetos em vista de sua venda. O comprador que geralmente
desconhece as peças acredita que a cerâmica marajoara atual é autêntica ou amesmo não se
importa com o significado atribuído pelos cientistas, como se verá mais à frente.
Segundo os artesãos, a réplica “tem mais crédito”, tanto por eles como pelos
consumidores, do que a cópia, sendo a principal razão para produzí-las em maior quantidade,
pois as cópias são reproduções toscas. As fotografias 66, 67 e 68 mostram algumas peças
confeccionadas na cerâmica Arariuna. Segundo o produtor Érick, são plicas de objetos
cerimoniais e utilitários indígenas.
Fotografia 66. Réplica de objeto cerimonial marajoara (cerâmica Arariuna)
De qualquer forma, a peça original reproduzida na fotografia 66 provavelmente tenha
sido um objeto utilitário ou cerimonial para armazenagem e serviço. A réplica pode ser
classificada como objeto específico para venda, pois atualmente possui outra significação. É
uma grande peça que possui pinturas e incisões na sua decoração semelhantes aos da cerâmica
arqueológica. Predominam as cores preta e vermelha.
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
114
Fotografia 67. Réplica de um prato (Cerâmica Arariuna)
A imagem da fotografia 67 possui o formato de um prato, podendo ser considerada
réplica de uma cerâmica utilitária ou cerimonial para armazenagem e serviço, assim como
específica para venda por não ser mais utilitária. É um grande prato com desenhos marajoara
ao seu redor, predominando as cores vermelha, preta e branca.
Fotografia 68. Réplica com forma de animal (cerâmica Arariuna)
A fotografia 68 é uma pequena cerâmica estatuária temático-figurativa, sendo a
modelagem de um dos elementos da fauna, a tartaruga, além de ser um objeto específico para
venda. No interior da tartaruga encontra-se uma série de sementes que ao serem chacoalhadas
emitem inúmeros sons. Destarte, também pode ser considerado enquanto um instrumento
musical, especificamente, um idiofone, pois os sons soam mediante a própria matéria de que o
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
115
objeto é feito. Esse tipo de instrumento musical pode ser utilizado como instrumento sonoro e
de sinalização, segundo classificação de Ribeiro (1988). Sobre os seus aspectos decorativos,
possui incisões e excisões de desenhos marajoara, sem a predominância de muitas cores.
O registro da fotografia a seguir também corresponde uma réplica de tigela utilitária,
segundo o artesão Beto.
Fotografia 69. Réplica de tigela utilitária (cerâmica Camutins)
É uma vasilha de boca larga com alguma profundidade, segundo a classificação de
Ribeiro (1988) gameliforme ou tigela côncava, pois se assemelha a uma gamela baixa,
atarracada com diâmetro de boca aproximadamente igual ao fundo. Usada quotidianamente
para servir e acondicionar alimentos ou como peça decorativa, visto que apresenta incisões e
excisões de desenhos marajoara. A cor da vasilha é produzida pela matéria prima usada na sua
confecção. No Brasil Colônia, usava-se para amassar pão, para banhos e também para dar de
comer a animais, escravos e soldados, conforme refere Jean-Baptiste Debret em sua obra
Viagem Pitoresca ao Brasil de 1940, citado por Guerra e Simões (2001) em Equipamentos,
usos e costumes da Casa Brasileira.
120
A peça foi feita por Beto.
Dado o fato de que os produtores fazem questão de frisar a autenticidade das cópias e
réplicas da cerâmica arqueológica, vale refletir sobre o conceito e analisá-lo no atual contexto
em que se insere a produção.
120
Cf. GUERRA, José Wilton N. e SIMÕES, Renata da Silva. Equipamentos, usos e costumes da Casa Brasileira.
São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2001.
Foto: Anna Linhares (mai./2006)
116
Segundo Walter Benjamim (1994), em todos os momentos da história objetos foram
reproduzidos. Geralmente essa imitação era feita por discípulos de grandes mestres com o
objetivo de difusão de seus objetos. Mas essas peças também era copiadas por terceiros com
intuitos econômicos.
Suano (1986) também aborda a questão da reprodutibilidade de grandes obras desde a
antiguidade, mas nesse caso, além de interesses mercadológicos, a reprodução possuía
objetivos voltados para o colecionismo. De acordo com a autora, por falta de peças originais
para colecionarem, os romanos passaram a adotar essa prática. A prática entre os romanos
ricos a partir do século II a.C se transformara em competição que elevara tanto os preços dos
objetos que o próprio imperador da época, Tibério, foi obrigado a intervir no mercado para
normalizar os valores. Eles sempre procuravam cópias fiéis de famosas obras nos ateliês de
artistas gregos. Elas eram o bem reproduzidas, que eram poucos os gregos que faziam
distinção entre ambas, a cópia e a original. Observa-se que esse costume, tendo em vista
questões comerciais, mercadológicas e simbólicas, não é recente.
Benjamim (1994) afirma que existe uma questão crucial na reprodução de obras: o
objeto copiado perde a sua existência, que é única, o aqui e o agora da peça. E é exatamente
com a perda do aqui e do agora que se perde a autenticidade dos objetos. Segundo o autor,
essa existência única
“... constitui o conteúdo de sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica
esse objeto ... como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da
autenticidade ... escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica. ...
o autêntico preserva toda a sua autoridade com relação a reprodução manual, em geral
considerada uma falsificação...” (1994: 167-168, Grifos do autor)
A reprodução de objetos arqueológicos perde o aqui e o agora apontado por
Benjamim e a partir de então pode ser considerada uma peça kitsch. Segundo Moles (2001),
121
o termo é alemão e surge por volta de 1860, significando fazer móveis novos com velhos,
trapacear ou vender algo em lugar de outro. Segundo o autor, existe um sentido pejorativo na
palavra significando negação de algo autêntico. É uma espécie de “... mercadoria ordinária ...
é uma secreção artística derivada da venda dos produtos de uma sociedade em grandes lojas
que assim se transformam, a exemplo das estações de trem, em verdadeiros templos.”. (Moles,
2001: 10)
121
Cf. MOLES, Abraham. O Kitsch. São Paulo, Perspectiva, 2001.
117
Geralmente chama-se um objeto de kitsch quando associado ao souvenir, como nos
casos da reprodução em série de objetos de artesanato para serem vendidos. Outra
característica do kitsch é a desvinculação da peça de sua função utilitária em favor da
decoração (Moles, 2001), como as réplicas de cerâmica marajoara, que se desvincularam de
sua função ritual para atualmente servirem de decoração nos lares de turistas que as adquirem.
Moles (2001) também analisa a questão da forma dos objetos copiados que ele
denomina de kitsch. Segundo o autor, os materiais, desenhos, grafismos, cores ou traçados,
raramente apresentam-se como realmente são, “[l]ogo, os materiais são disfarçados.” (p.56). E
mesmo que o objeto considerado kitsch não seja considerado autêntico, esse conceito é um dos
critérios tipológicos dessa espécie de objeto.
O autor diz que são quatro as tipologias principais atribuídas a esse tipo de material:
(1) critério de empilhamento sem pena, (2) heterogeneidade, (3) antifuncionalidade, e,
finalmente, (4) a autenticidade. O empilhamento se com a diversificação de objetos desse
tipo empilhados em um volume de espaço com superfície restrita: numa mesa, na parede, no
apartamento, dentre outros lugares. A heterogeneidade está ligada ao empilhamento, em que
na maioria das vezes os objetos reunidos não possuem ligação direta uns com os outros. A
antifuncionalidade é a distinção ao objeto utilitário, este último servindo apenas para
decoração. Por último, a autenticidade, que corresponde a uma idéia de sedimentação. É
como se fossem objetos atomizados enquanto troféus de viagens e testemunhos de exotismo ou
mesmo troféus de ascenção social, que estão estritamente relacionados ao consumo, questão
discutida mais à frente.
É o que Baudrillard (S/D)
122
denomina de pseudo-objeto, visto que o apenas
simulações, cópias, objetos fictícios e estereotipados com pobreza de significação real e com
abundância de sinais de referências alegóricas e de conotações discordantes. Segundo o autor,
esses pseudo-objetos possuem estreita ligação entre a sua organização interna e a sua aparição
no mercado, surgindo como categoria cultural.
Mesmo que a reprodução ou o objeto kitsch deixe intacto o conteúdo da obra,
conforme refere Benjamim (1994), ela desvaloriza o aqui e agora, na medida em que a
122
Cf. BAUDRILLARD. Jean. A sociedade de consumo. S/L, Edições 70, S/D.
118
autenticidade está relacionada a uma quinta-essência, o que de mais essencial e de tudo o
que foi transmitido no momento de sua criação pela tradição, a partir de sua origem, desde o
material até o seu testemunho histórico. Esse testemunho desaparece com a reprodução, mas
também desaparece com ele a autoridade da coisa e seu peso tradicional, ligando-se à sua nova
função, a decorativa, como nos apontou Baudrillard (S/D) e Moles (2001).
A produção contemporânea da cerâmica marajoara não está imbuída do peso da
tradição como está a cerâmica arqueológica, pois são peças produzidas com intuito
mercadológico. São bens culturais, mas comercializáveis.
Vieira de Jesus,
123
em artigo que analisa a produção cerâmica de Icoaraci, pólo de
produção da cerâmica marajoara, afirma que ainda existem alguns procedimentos que seguem
a cerâmica pré-colonial no momento da sua reprodução, como a habilidade manual dos
artesãos de ambos os períodos, habilidades essas que se sobrepõem em todas as etapas de
confecção de cada peça. Mas afirma também que existem diferenças cruciais entre ambas,
como as inovações tecnológicas que surgiram nos objetos contemporâneos, o que foi referido
por Moles (2001).
Segundo o autor, uma das inovações foi a introdução da utilização de pinturas
artificiais. Em Cachoeira pude observar algumas dessas mudanças. Além da utilização de
tintas industrializadas, atualmente utilizam equipamentos tecnológicos em algumas etapas
produtivas, os modernos aparelhos da casa da cerâmica. Além disso, utilizam outras técnicas
de queima. Relembrando o capítulo anterior, hoje os artesãos do local usam forno à gás para a
queima de peças de cerâmica, técnica não utilizada pelos povos indígenas.
Os atuais produtores de Cachoeira passaram a utilizar essa nova forma de queima
visando vantagens da comercialização, pois muitas queimas produzidas no forno à lenha
perdiam-se por dificuldades no controle da temperatura dentro do forno, fazendo com que as
peças rachassem ou quebrassem com facilidade. Esse foi um dos motivos que fez com que
Beto, ceramista da cerâmica Camutins, passasse a adotar o maçarico ou forno à gás. Érick,
ceramista da Arariuna, pensa atualmente em mudança depois do incidente ocorrido em objetos
encomendados para uma loja turística de Salvaterra preocupando-se em não perder seu
123
Cf. JESUS, Luiz Roberto Vieira de. “A arte marajoara na época da sua reprodutibilidade técnica” IN
http://www.ufpa.br/decom/roberto.pdf. Acessado em 14/10/2006.
119
trabalho.
A importância atribuída para a comercialização demonstra o peso não histórico das
peças reproduzidas, como afirma Benjamim (1994), até porque não estão imbuídos de uma
tradição histórica, visto que seus objetivos são rentáveis, assim como seu aprendizado técnico
teve esse propósito. uma questão a ser refletida ou repensada no trabalho de Vieira de
Jesus sobre o caráter que afirma permanecer nas cópias da cerâmica marajoara. O autor expõe
que é extremamente importante a continuidade dessas reproduções, pois elas
“... eterniza[m] essa cultura através da réplica de peças originais, não apenas comunicando e
informando sobre alguns aspectos dos modos de vida desse povo, mas proporcionando ...
colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original”...”
124
O autor quer mostrar que a unicidade, o caráter único prevalece na produção
contemporânea e além do caráter que permanece, as cópias parecem ser uma espécie de
emancipação do anonimato a que ficou submetida a cultura marajoara durantes séculos,
“...com a diáspora sem retorno de seu povo.”.
125
Essas questões abordadas por Viera de Jesus,
tendo em vista a preocupação com a divulgação da cultura marajoara, nos faz pensar sobre as
múltiplas apropriações que atualmente se faz dessa cultura.
Em artigo produzido recentemente, Schaan (2006)
126
analisa a questão. A autora
afirma que, por vezes, a apropriação da cultura marajoara se de forma confusa ou até
mesmo inadequada fazendo com que a saída desse anonimato chegue de forma distorcida ao
público leigo causadas por jargões arqueológicos bastante difundidos.
Schaan (2006) diz que o termo cultura marajoara vem sendo utilizado
indistintamente para denominar três fenômenos diferenciados, sendo eles: a cultura pré-
colonial referente aos povos que produziram a cerâmica arqueológica, a revivescência dessa
cerâmica e a cultura dos habitantes que vivem atualmente na ilha do Marajó.
Diversos estudos e pesquisas científicas da cultura marajoara foram efetivados e
continuam a ser, e isso fez com que as informações sobre o assunto ganhassem uma grande
124
Cf. JESUS, Luiz Roberto Vieira de. “A arte marajoara na época da sua reprodutibilidade técnica” IN
http://www.ufpa.br/decom/roberto.pdf. Acessado em 14/10/2006
125
Cf. JESUS, Luiz Roberto Vieira de. “A arte marajoara na época da sua reprodutibilidade técnica” IN
http://www.ufpa.br/decom/roberto.pdf. Acessado em 14/10/2006
.
126
Cf. SCHAAN, Denise Pahl. Arqueologia, público e comodificação da herança cultural: o caso da cultura
marajoara” IN Revista Arqueologia Pública, nº 1, Campinas, Unicamp, 2006.
120
audiência e repercussão, saindo do anonimato, preocupação de Vieira de Jesus. Segundo a
autora, essa repercussão chegou de formas diversas aos ouvidos do público leigo fazendo com
que ganhasse uma série de interpretações e que estas fossem filtradas e selecionadas da
maneira que julgavam verdadeiras e apropriadas.
Segundo a autora,
“... a audiência filtrou e selecionou informações que julgou serem verdadeiras e/ou
apropriadas; muitas destas informações eram simplesmente hipóteses que foram mais tarde
descartadas e desaprovadas pelos cientistas, sem terem, no entanto, tido igual repercussão
popular.” (2006: 3)
Um dos exemplos de informações que foi expandida de forma inapropriada, segundo
Schaan, refere-se ao jargão arqueológico das fases da cerâmica, Ananatuba, Mangueiras,
Formiga e Aruã. Ela afirma que o uso do termo fase, enquanto identificação de traços
cerâmicos específicos, passou a ser sinônimo de etnia ou tribo, ou seja, a fase Ananatuba seria
referente à produção cerâmica dessa tribo, a tribo Ananatuba, dentre outros exemplos.
Isso também se fez perceptível no período da pesquisa de campo em Cachoeira. Na
fase da investigação da produção dos objetos em barro do local, por vezes interrogava os
ceramistas sobre o conhecimento da cultura marajoara e da cerâmica arqueológica e se
pesquisavam ou conheciam a sua história para melhor explicarem ao turista, caso estes
perguntassem aos vendedores e produtores os significados das peças copiadas. Érick,
127
artesão da cerâmica Arariuna, afirmou que
“[n]ão… alguns, no caso os que foram catalogados no museu, a gente sabemos né? O
quê é Anajás inciso, a Joanes Pintado… algumas peças, outras não. Ainda não passou algum
arqueólogo ou algum museu, como no caso o Museu Emílio Goeldi pra vim fazer o
tombamento das peças, pra tombar elas como Patrimônio Histórico Nacional e um nome
nessas peças. Tem peças que é desconhecidas. A gente faz e o nome, apelida as peças.
Tem muitas peças que são apelidadas. Ah! Parece uma araninha: Vasilha Aranha. (RISOS).
Olha, parece uma tartaruguinha: Tartaruga! As vezes nem é, nem pode ser isso. A gente acha
uma peça funda pintada, a gente acha que é tigela, a gente diz que é tigela. Quem sabe não é
um prato cerimonial?”
Eles conhecem pouco sobre os primeiros marajoara. Não sabem com certeza o tempo
que estiveram na ilha e sua organização social, o que faziam, do que viviam, dentre outros
aspectos sociais deles. Também conhecem pouco o significado das peças e de seus motivos
gráficos. Eles fixam os desenhos ornamentados na cerâmica arqueológica que observam nos
127
Entrevista concedida em 25/07/2006.
121
inúmeros livros de Arqueologia alocados no Museu do Marajó ou em recortes de revistas com
reportagens sobre os objetos marajoara e facilmente passam para o objeto, mas seus
significados são desconhecidos.
Eles cognominam e classificam as peças quando o sabem o significado das
mesmas, pois precisam narrar alguma estória ao turista ávido pelo exótico e por algo diferente
para que este conte na sua cidade ou no círculo de amigos sobre o lugar em que passou e a
peça que comprou. Os objetos acabam sendo um signo de distinção para aqueles que os
adquirem, pois através deles poderão contar a história de mais um lugar por onde estiveram.
Garcia Canclini (1983),
128
em estudo feito no México sobre a produção e
comercialização de objetos indígenas, afirma que toda vez que se compra artesanato com os
dizeres Lembrança de Michoacán ou de qualquer outro lugar considerado exótico, sabe-se que
a peça o foi produzida para utilização, mas para decoração. Segundo o autor, essa fórmula,
supostamente destinada a garantir sua autenticidade, como no caso das réplicas marajoara, é o
signo de sua inautenticidade, até porque tal inscrição faz-se importante para o turista que
misturará suas peças com outras que foram adquiridas em outros lugares, sendo mais
significativa a distinção social ou o prestígio de quem pôde estar em determinadas cidades para
comprá-las do que os próprios objetos em si ou o que significam.
Para Garcia Canclini
“[e]squecido os usos dos objetos que agora só servem para ser vendidos e servir como
decoração, para ser exibidos e proporcionar distinção, ignoradas as relações com a natureza e
com a sociedade que deram origem à iconografia ... qual é o sentido que podemos encontrar
em formas que aludem indiretamente a este universo: flores que reclamam chuva, linhas
quebradas usadas para evocar relâmpagos?” (1983: 107)
Ou mesmo, qual a importância do conhecimento do uso ou significado de um prato
cerimonial ou de uma urna funerária para o turista que está apenas em busca de algo
“diferente” para ser mostrado? Em conversa informal com Érick, este disse que prefere não
contar ao possível comprador o significado de determinadas réplicas marajoara, pois certa vez,
expondo em uma feira, perdeu a venda por dizer que o objeto no qual o comprador estava
interessado em adquirir era a reprodução de uma urna funerária indígena. A verdade” dos
fatos fez com que o cliente desistisse da compra alegando que não colocaria em sua sala de
128
Cf. GARCIA CANCLINI, Nestor. As culturas populares no capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1983.
122
estar algo fúnebre.
Para um dos artesãos de Cachoeira, existem momentos na hora de determinada venda
que ele inventa a estória de alguma peça com o próprio turista:
[a]s vezes a gente até inventa! ... Ele inventa as vezes, ele mesmo o que é a peça e
inventa. Olha, isso daqui deveria ser um copo de beber água [n]ão, não sabemos não…
isso é cara! Isso é cara… por exemplo, até, aonde que a gente ia usar um copo… (RISOS).
Tanga! Uma vez uma turista numa exposição, teimou que a tanga, quem sabe, não era para
usar como colar … devia ser pro seio também, de cabeça pra baixo ainda. Olha, pode ser pro
seio as menores! Será?? A gente não sabe né?? Por que tudo, praticamente tudo da cultura
marajoara são suposições. Não tem nada registrado… demoraram muito pra descobrir, fazer a
descoberta da cultura marajoara, e foi isso. Praticamente a maioria são inventadas. Daí, por
exemplo, uma tigela, se a tigela ela é um pouquinho rasinha, bem rasinha, parece um prato, a
gente chama como Tigela Rasa Joanes, aí vai criando nomes. Pode ser vários tipos de tigelas,
Tigela Urubu Rei, que tem a cabeça de urubu ou parece um urubu a gente chama, Tigela
Urubu Rei. É o estilo mesmo do urubu rei, que tem esse negócio pra trás assim. Ai tudo foi
colocado apelido nelas, acabou ficando. Fica até complicado depois de muitos anos se vim
arqueólogos fazer tombamento nas peças e dá nome p peças a gente não vai mais se
acostumar (RISOS). O nome nelas, todinho nelas, olha, vasilha aranha, igual a uma
aranha…”
Observa-se a partir da narrativa desse artesão que ocorre uma significativa
desconfiança com relação aos critérios da ciência, visto que, como afirma, “praticamente tudo
da cultura marajoara são suposições, não tem nada registrado”. Além da desconfiança dessa
outra forma de interpretação da realidade, a científica, ocorre uma disputa de poder, pois
mesmo que apareça um arqueólogo ou pesquisador para classificar as peças, como aponta o
ceramista, eles codificaram a sua própria forma classificatória, supostamente deixando de lado
a categorização científica. O que chama atenção é o fato dos artesãos não ficarem esperando
que venha uma pessoa autorizada e detentora do saber científico para dizer-lhes quais os
significados dos objetos ou como eles devem ou não chamá-los ou usá-los, pois os nomeiam a
partir da relação que fazem entre a produção e seus códigos culturais. São saberes
diferenciados em confronto ou em busca de hegemonia. Por outro lado, a narrativa mostra-se
como uma crítica ao aprisionamento do saber científico dentro dos muros da universidade,
indicando que “ninguém foi no lugar dizer-lhes a ‘verdade’ ”.
Schaan afirma que são
“... conteúdos ... decodificados dentro de uma lógica particular ... inconscientemente ou não,
o público absorve e veicula a informação científica de acordo com suas necessidades e
expectativas. Na medida em que a cultura descrita pelos cientistas é considerada como o
passado regional, o público apodera-se da reconstituição deste passado agregando sua própria
interpretação.” (2006: 8).
123
Na realidade, os produtores se apropriam desse saber sem preocupação com a
verdade científica passando a valorizar seus próprios códigos culturais. De qualquer maneira,
eles se preocupam mais com os aspectos formais das peças ou o exótico que é mais atraente
para a compra, pois como afirmou Garcia Canclini, “... o turista necessita desta simplificação
do real porque ele não viaja como investigador da realidade.” (1983: 87), diferentemente do
pesquisador.
De acordo com Garcia Canclini (1983), as re-significações atribuídas às peças por
parte dos produtores e/ou vendedores, por vezes, são valorizadas pelos compradores, que
acabam dando respaldo aos relatos dos ceramistas em contraposição ao conhecimento
científico. Denise Schaan
129
narrou o fato ocorrido com um turista que entrou em contato com
ela via correio eletrônico. Esse turista contou que esteve na cidade de Soure, na ilha do
Marajó, outro lugar onde se produzem réplicas da cerâmica marajoara, e chegando no lugar
disse ao vendedor que gostaria de adquirir uma peça para presentear seu irmão, que se casaria
em breve. O vendedor, utilizando sua estratégia mercadológica e sua interpretação particular,
disse ao comprador que a caneca de cerâmica com a representação de um sapo para ser
vendida era utilizada em rituais de casamento pelos índios marajoara, sendo assim, o casal
deveria dar seqüência ao rito. A estória encantou o turista, fazendo com que ele fosse em
busca de algo mais sobre a cultura na internet, quando conseguiu o contato de Denise
Schaan.
Na posição de pesquisadora com outro conhecimento e visão da realidade, teve que
desmentir a narrativa que tanto encantou o turista, fazendo com que ele ficasse decepcionado.
Ele afirmou para Denise Schaan que a estória do comprador o encantou de forma tão
surpreendente que fez com que comprasse a peça e, mesmo que aquela explicação do ritual de
casamento fosse imaginação ou inverdade por parte do comerciante, ele preferiria ficar com a
estória fantástica que, segundo ele, era muito mais interessante.
Os produtores e vendedores inventam as narrativas que sentem necessidade e que
estejam de acordo com o momento da comercialização e de sua própria visão de mundo, pois
um relato “real” acerca de alguma história ou significado de algum objeto, pode ocasionar a
129
Palestra proferida em 25/10/2006 com o título: Cultura Marajoara: entre o antigo e o novo, dentro da
programação Quartas de Antropologia, promovida pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Pará.
124
perda da venda, como o caso da urna funerária que assustou o possível comprador. Assim
como a ciência, os produtores e vendedores também constroem as suas verdades. Segundo
Frade, “[p]ara o turista que desconhece os originais, a fantasia luxuriante dos trópicos serve
melhor que o trabalho de duplicação rigoroso.”. (1990: 125)
130
Além da forma codificada pelos artesãos da cultura marajoara, as diversas
significações e interpretações também se dão pela dimensão produtiva que vem tomando a
cerâmica marajoara mundo afora. Sabe-se que, pelo menos no Pará, o reproduzidas peças
cerâmicas marajoara em Cachoeira do Arari, Soure e Ponta de Pedras, três cidades situadas na
ilha do Marajó, e em Icoaraci, distrito de Belém. Além das cidades situadas no Pará, a
cerâmica também é reproduzida e disseminada fora do Estado, como nos aponta Isabela Frade
(1990). A autora afirma que a cerâmica também é feita em Corumbá, no Estado de Goiás,
Tracunhaém, em Pernambuco e em Itaboraí, no Rio de Janeiro. De acordo com a autora:
“[c]ada uma das fontes emissoras, ao reproduzir, acrescenta novos elementos, perfazendo um
modo particular de atualização dessa comunicação. O consumo também se diversifica, novos
sentidos são urdidos e disseminados.”. (Frade, 1990: 126)
Em cada espaço onde se encontra, o simbolismo dessa cultura cresce e enriquece, se
atualiza. Pode-se dizer que essa produção acaba encontrando-se em três dimensões: a
científica, a artística e a mercadológica. Ainda segundo Frade (1990)
“[a] réplica nasce de sua apreciação como objeto artístico, disposto a manipulação sem risco
(clone). A partir daí, a réplica se diversifica, chegando às galerias, boutiques e feiras. Como a
forma do híbrido é fluida, enriquece o marajoara em novas versões, metamorfoseando-o.”
(1990: 126-127)
Dessa forma, essa metamorfose acaba aliviando em parte a ciência, que necessita de
dados coerentes e de verdades, a arte, que precisa expor peças enquanto obras de arte e
difundir um saber exótico em vitrines, e o mercado, que visa o lucro oriundo desse novo
mercado de bens culturais. Tendo em vista a disseminação e reprodução dos objetos
arqueológicos, tanto nessas cidades, como em Cachoeira do Arari, volta-se para a questão da
autenticidade, preocupação formulada por Benjamim (1994) sobre a perda da aura desses
objetos a partir de suas re-significações, das metamorfoses.
130
Cf. FRADE, Isabela. “O Neo-marajoara em comunicação” IN Logos: comunicação e universidade. Rio de
Janeiro, UERJ, Faculdade de Comunicação Social, 1990. Vol.1, n.1.
125
Segundo o autor, toda reprodução e disseminação fazem com que a peça perca a sua
autenticidade, atrofiando-se a aura do objeto. Para Benjamim (1994), a aura de um objeto
corresponde a
“... uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de
uma coisa distante, por mais perto que ela esteja ... [r]etirar o objeto de seu invólucro,
destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar
“o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-la até o
fenômeno único.” (1994: 170, Grifos do autor)
Essa aura seria a historicidade temporal e espacial do objeto, que advém de toda uma
tradição histórica e cultural. Segundo Menezes,
131
as novas funções atribuídas aos objetos
depois de reproduzidos não alteram a sua qualidade essencial: ele não mente. Trazendo à tona
a questão da autenticidade e da perda da aura, o autor afirma que a integridade física do
artefato corresponde a sua verdade objetiva, dizendo que os discursos é que são falsos.
Pensando nessas idéias, ele cita a narrativa grega acerca do dilema proposto por Plutarco sobre
o navio de Teseu:
“[t]razido ao estaleiro para reparos, o navio de Teseu tem suas pranchas substituídas uma a
uma, até a última. Poder-se-ia então considerá-lo, ainda, o navio de Teseu? Se não, quando
deixou de sê-lo? Quando foram substituídas todas as pranchas? Metade mais uma? ... o navio
de Teseu, no dique seco A, tem cada uma de suas pranchas substituídas por pranchas novas;
as pranchas antigas são levadas para o dique seco B, os responsáveis pelos dois diques
reivindicam para o navio sobrevivente no dique A a condição de sobrevivente de ‘navio de
Teseu’.” (S/D: 5)
O navio de Teseu deixa de ser o verdadeiro navio de Teseu quando tem suas pranchas
substituídas uma a uma, perdendo sua aura, assim como a cerâmica marajoara, que passa a não
mais possuir o significado simbólico no momento de sua reprodução, pois não possui a
tradição arraigada. Ele quer mostrar também que as reproduções denotam algo, mas conotam
outro significado, diferentemente da peça original. A cerâmica marajoara contemporânea
parece ser perfeita em forma, mas imperfeita em sentido.
Segundo Benjamin, é “... a liquidação do valor tradicional do patrimônio da cultura.”
(1994:169), atribuídos por novos valores. Para Baudrillard (1991) isso corresponde a
simulacros e simulações:
“[a] simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma
substância. É a geração de um modelo de um real sem origem nem realidade: hiper-real ... É
toda a metafísica que desaparece ... [j]á não existe coextensividade imaginária: é a
miniaturização genética que é a dimensão da simulação. O real é produzido a partir de células
131
MENEZES, Ulpiano B. “Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público”. IN
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/238.pdf, Acessado em 09/03/2006.
126
miniaturizadas, de matrizes e de memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido
um número indefinidos de vezes a partir daí.” (1991: 8)
Simulação ou simulacros que põem em causa a diferença do que seja verdadeiro e do
que seja falso, ou do real e do imaginário (Baudrillard, 1991). Então, aonde se encontra a aura
das reproduções dos objetos em barro de Cachoeira do Arari? Essa aura, perdida devido a
parcial desvinculação de seu aspecto ritual e de culto, encontra-se no seu novo caráter, nos
valores mercadológico e expositivo. Trata-se de desvinculação parcial tendo em vista o que
afirma Benjamin:
“[o] que é de importância decisiva é que este modo de ser aurático ... nunca se destaca
completamente de sua função ritual. Em outras palavras: o valor único da obra ... “autêntica”
tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido,
como ritual secularizado, mesmo nas formas mais profanas do culto do Belo.” (1994: 171)
Trata-se de um ritual secularizado considerado a partir de “invenções de tradições”,
como ressaltado por Hobsbawm (2002) e tendo em busca um fundamento teológico, um mito
de origem e uma nostalgia, como aponta Baudrillard (2004). De acordo com Meneses (S/D), o
objeto puro pode existir, mas nesse caso, saturado pela hiper-realidade, apontado por
Baudrillard (2004). Ele é falso para um reconhecimento histórico, que ele chama de dilema
relíquia versus artefato em si.
Segundo Isabela Frade (1990), essa ressonância marajoara está envolvida no processo
maior que é denominado de mundialização da cultura. Segundo a autora:
“[o] fenômeno produz um movimento de mão dupla: comunica a busca de identidade,
fazendo o passado o veículo do contemporâneo, ao mesmo tempo em que nega, camuflando
as condições concretas em que é gerado, alienando-se do passado e do presente, revelando-se
como simulação.” (1990:112)
Para Garcia Canclíni (2003) a busca de uma origem através de objetos reproduzidos
ou resguardados ou a busca das origens arcaicas a partir da reapropriação dos símbolos
arqueológicos não interessa apenas a uma expansão de mercado, mas também enquanto forma
da legitimação de hegemonia, mostrando que o fenômeno faz parte de um projeto moderno
capitalista advindo da globalização ou da mundialização da cultura, como frisou Frade (1990)
e que esses modernizadores precisam persuadir seus destinatários de que compartilham de
tradições. Posto que pretendem abarcar todos os setores, esses projetos se apropriam de bens
históricos e de tradições populares.
Para Garcia Canclíni (2003), esse porvir do passado aparece muitas vezes como
127
recurso para suportar as contradições contemporâneas, a globalização que em determinado
período foi pensada como homogeneizadora, mas que com o tempo deixou as culturas ainda
mais fluidas, fazendo com que as pessoas sentissem necessidade de se apegar em coisas que
pudessem suprir uma possível crise de identidade.
A necessidade de apego e legitimação de tradições, tendo em vista o objetivo de
suprir a falta de referencial é dada através da espetacularização ou teatralização dos
patrimônios, tendo enquanto aporte os museus, as comemorações e os monumentos, a partir de
um esforço de assimilação de uma origem ou substância fundadora que tente reconhecer uma
identidade (Garcia Canclini, 2003), como veremos no próximo tópico a partir do fenômeno que
se inicia em Cachoeira acerca da apropriação do patrimônio arqueológico da região.
Busca de identidade e espetacularização da cultura
Em Cachoeira do Arari é comum encontrar alguns moradores que se identificam com
a série de grafismos e motivos marajoara encontrados pela cidade. Em conversa informal e no
momento de entrevistas com alguns destes moradores, quando eram feitas referências aos
desenhos pintados nos postes, nos bancos, nos muros, dentre outros lugares na cidade,
geralmente escutava que:
“[o]lha, eu sinto uma valorização né? Da cerâmica. Que reviveu a cerâmica! Os trabalhos dos
motivos…”
132
“[s]implesmente para divulgar a cultura marajoara né? ... prá, prá... como é que se diz, entrar,
mostrar a identidade mesmo forte do Marajó né?”
133
“[e]u vejo… é aquela história, o pessoal começa a vestir a sua própria cultura, apesar da
gente não tem geneticamente nenhuma ligação, mas a gente tem os que eles deixaram prá
gente, o legado que eles deixaram. As pessoas começam a vestir, nas camisas e se identificar
com a própria cultura marajoara na verdade né? Eu fico satisfeitíssimo de ver isso daí. Eu
fico super satisfeito de ver isso.”
134
“[p]orque assim, mostra as coisas do Marajó. A pintura marajoara, o desenho marajoara. Isso
mostra. Então, assim não sai um pouco do que é o Marajó, entendendo? Não vem trazer
um desenho do Rio de Janeiro, por exemplo, um grafite, qualquer outra coisa assim, e
colocar aqui, porque não tem nada haver. Eu acho assim, que não foge das nossas raízes
muito pelo contrário, eu acho que representa cada vez mais e mais. Um coisa muito boa
também assim, os donos de bares daqui, sempre procuram os donos de restaurante, sempre
132
Entrevista com Beto Leão, proprietário da cerâmica Camutins concedida em 16/05/2006.
133
Entrevista com Lino Ramos, ex-administrador do Museu do Marajó concedida em 14/05/2006.
134
Entrevista com Paulo Câmara concedida em 17 /05/ 2006.
128
procuram aceitar né, os restaurantes, os bares, com desenhos, com coisas marajoaras.”
135
Nota-se através dos depoimentos que os moradores de Cachoeira começam a
identificar nessa tradição inventada” suposta ligação com o que é da terra, com os valores
passados, com a cerâmica arqueológica e com seus grafismos. A partir da apropriação do
patrimônio arqueológico as pessoas começaram a fazer relação com esse passado enquanto
uma tradição não perdida no tempo. Mas, como analisado no capítulo anterior, a efervescência
arqueológica surgiu de forma um tanto artificial através de uma infindável repetição dos
grafismos por toda a cidade, seja nos estabelecimentos públicos e particulares e através das
reproduções, tendo objetivos comerciais. São práticas culturais novas apoiando-se nas antigas.
Para Hobsbawm,
“[p]ode-se observar uma nítida diferença entre as práticas antigas e as inventadas. As
primeiras eram práticas sociais específicas e altamente coercivas, enquanto as últimas
tendiam a ser bastante gerais e vagas quanto a natureza dos valores, direitos e obrigações que
procuravam inculcar nos membros de um determinado grupo: “patriotismo”, “lealdade”,
“dever” ... e assim por diante.” (2002:19)
Em Cachoeira, a identificação com o passado pré-colonial tende a ser bastante
artificial e vaga na medida em que muitos moradores do lugar, por vezes, desconhecem o
significado daqueles símbolos pintados pela cidade e da própria história dos objetos
arqueológicos e da cultura marajoara. Além disso, em conversa informal com alguns
moradores ou com pessoas que trabalham no Museu do Marajó, estes informaram que grande
parte dos moradores da cidade nunca foi ao Museu. O espaço é mais conhecido pela mídia,
pelas propagandas turísticas, pelos estrangeiros que vão com freqüência ao lugar, ou mesmo
navegando pela internet,
136
do que pelo próprio residente do lugar. De qualquer forma, o que
está contido naquele espaço é mostrado para a população nas ruas e elas passam a se identificar
com o fenômeno cultural. Mesmo as pessoas que navegam pelo endereço eletrônico, fazem
ligação da identidade do lugar com a cerâmica e a cultura arqueológica.
No site do Museu do Marajó é possível conhecer cada espaço do acervo através de
breve descrição da exposição e das atividades desenvolvidas no lugar. A apresentação da
cerâmica possui um espaço reservado no endereço eletrônico. Na gina do site logo se
observa a referência e ligação dos objetos pré-coloniais com a identidade do lugar: “[f]alando
135
Entrevista com Ademilton Gonçalves Leal concedida em 17/05/2006.
136
Cf. http://www. museudomarajo.com.br/atividades.cfm.
129
do Marajó a gente logo pensa na famosa cerâmica arqueológica, foi nela que o Museu do
Marajó encontrou a sua maior motivação. Infelizmente, o museu nasceu quando os maiores
tesouros já tinham sido saqueados e contrabandeados.”
137
Pela importância atribuída para a cerâmica pré-colonial, esta se tornou referência de
identidade cultural, mas nesse caso, uma “invenção dela”, pois se não fosse a partir dos objetos
em barro, poderia ter tido outro referencial, como por exemplo, o vaqueiro ou pescador
marajoara. Um exemplo para se pensar a questão é a tentativa de uma nova invenção através
da produção cerâmica Caboara. Mesmo que sejam peças confeccionadas sob pressão do
mercado, como no caso dos falos de barro, os ceramistas identificam-se culturalmente com
os objetos, como pôde ser percebido através das narrativas.
A própria questão da “imaginação que eles deixam fluir”, parece mais um indicativo
de identificação com a produção. Isso mostra a maneira como eles dialogam com a arte
marajoara e o mundo contemporâneo e como eles misturam digos diferentes que levam em
conta não apenas o desejo do mercado, mas sua própria subjetividade. A inserção de símbolos
copiados dos objetos arqueológicos é uma forma de se remeter à identidade marajoara ou de
marcar uma especificidade do produto, tipo made in Cachoeira. É como se cada peça que eles
produzem fosse uma miniatura do Marajó, o Marajó de ontem, de hoje e do futuro, por que
não, que eles falam em criar um novo tempo? Mas na medida em que a cerâmica
arqueológica tornou-se grande referência dessa invenção”, a produção Caboara ainda
encontra-se de lado.
Outra questão a ser refletida acerca da contrução dessa identidade diz respeito à
natureza das obrigações, dos deveres e dos direitos atribuídos, como ressaltou Hobsbawm
(2002). Alguns ceramistas acham-se na obrigação de dar continuidade na reprodução das
réplicas. Isso também é perceptível na referência feita ao simbolismo arqueológico contido
nos próprios objetos que eles designam de Caboara expostos nas peças.
Segundo Érick,
138
“[o]lha ... eu acho a gente tem por obrigação desenvolver esse projeto, esse projeto de
cerâmica... Eu queria deixar assim bem esclarecido que nós aqui, eu acho, como eu falei
137
Cf. http://www. museudomarajo.com.br/atividades.cfm. Acessado em 24/09/2006.
138
Entrevista concedida em 18/05/2006.
130
aqui pra ti, além da obrigação de desenvolver esse trabalho a gente queria deixar bem, assim,
esclarecer que, a cerâmica, ela tem muito ainda a se desenvolver.”
Gonçalves (2001) também compartilha das idéias de Hobsbawm quando fala que a
utilização do patrimônio cultural e de políticas culturais ou mais especificamente, políticas de
patrimônio, visa construção e comunicação de uma identidade nacional ou étnica. Ele diz que
esses objetos são apropriados visualmente e dispostos nos museus e pelas cidades com a
função de determinar categorias, dentre elas as categorias passado da humanidade ou
passado nacional, através das quais é definida a identidade de pessoas e de coletividades.
Segundo o autor
“... a nação ... através da posse de seu ‘patrimônio cultural’ ... define a sua identidade.
Nesse contexto, a ‘cultura’ é pensada como a ‘coisa’ a ser ‘possuída’, ‘preservada’,
‘restaurada’ ... do mesmo modo que uma pessoa pode ter a sua identidade definida pela posse
de determinados bens, a ‘nação’ se define a partir da posse de seus ‘bens culturais’.”
(Gonçalves, 2001:19
)
Esses patrimônios acabam sendo considerados enquanto parte do passado e na
medida em que são possuídos e apropriados, estabelecem relação de continuidade com o
passado histórico (Gonçalves, 2001). A posse e preservação das peças arqueológicas no
Museu do Marajó, as expressões dos moradores de Cachoeira como, “mostrar a identidade
mesmo forte do Marajó, o pessoal começa a vestir a sua própria cultura, apesar da gente não
tem geneticamente nenhuma ligação, mas a gente tem os que eles deixaram prá gente, o legado
que eles deixaram” ou “eu acho assim, que não foge das nossas raízes”, revelam o sentimento
de identificação com esse patrimônio. Todos se sentem autênticos e portadores de mesmos
atributos.
Garcia Canclini (2003) chama esse processo de hibridização, visto que se apropria do
passado a partir de re-construções no presente tendo em vista a formação de uma identidade.
O autor afirma que isso decorre de diversos processos, podendo ser eles migratórios, turísticos
e de intercâmbio econômico, oriundo da criatividade individual e coletiva, buscando re-
converter um patrimônio para re-inserí-los em novas condições de produção e de mercado. O
que ocorre em Cachoeira do Arari está imbricado nos processos turísticos e de intercâmbio
econômico, pois a produção de réplicas além de ser um meio de sustento para alguns
ceramistas, atrai o turista para a cidade onde viveram os antigos povos produtores da cerâmica
arqueológica encontrados nos tesos da região. Isso se tanto a partir dos objetos, como a
131
partir dos inúmeros grafismos pintados na cidade, que parecem querer carimbar em cada
espaço a identidade marajoara.
Benedicto Anderson (1993)
139
chama os lugares que constroem sua identidade a
partir dessas apropriações de comunidades imaginadas. Segundo o autor “[e]s imaginada
porque aun los miembros de la nación más pequena no conocerán jamás a la mayoría de sus
compatriotas, no los verán ni oirán siquiera hablar de ellos, pero en la mente de cada uno vive
la imagen de su comunión.”. (Anderson, 1993: 23. Grifo do autor)
Hall (2000),
140
em seu trabalho sobre a identidade cultural na pós-modernidade,
apropria-se do conceito formulado por Anderson (1993), comunidades imaginadas, e diz que o
fenômeno faz parte de um processo mais amplo de mudança que desloca estruturas e questões
centrais das sociedades modernas e abala os quadros de referência que davam aos indivíduos
uma ancoragem estável no mundo social.
Anderson (1993) e Hall (2000) dão pistas para que sejam observadas como são
construídas essas comunidades imaginadas a partir de características expressas. Segundo os
autores, em primeiro lugar, essa construção se dá a partir de narrativas sobre a nação, tal como
é contada e re-contada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular.
Em segundo, uma ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade.
Em terceiro lugar, fica explícita a questão da “tradição inventada”. Em quinto, nas narrativas
dos mitos fundacionais ou os mitos de origem e em sexto, construída a partir de idéias de povo
e de originalidade.
Outro autor acompanha os pensamentos de Anderson e Hall. Gonçalves (2001)
chama a identificação cultural por meio desses fenômenos de construções ficcionais, pois eles
tornam explícito o caráter artificial construído ou tecnicamente reproduzido dos chamados
patrimônios culturais. Segundo ele, isso se dá pelos projetos políticos ideológicos.
Essa forma artificial de construção indentitária tem enquanto suporte a teatralização
ou espetacularização do patrimônio a partir da reafirmação do passado no presente. De acordo
139
Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del
nacionalismo. México, Fondo de Cultura Econômica, 1993.
140
Cf. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2000.
132
com Garcia Canclini: “[s]e o patrimônio é interpretado como repertório fixo de tradições
condensadas em objetos, ele precisa de um palco-depósito que o contenha e o projete. Um
palco-vitrine para exibi-lo.”. (2003:69), sendo esse palco a cerâmica reproduzida e sua
comercialização, as pinturas marajoara e o Museu. De acordo com o mesmo autor (2003), os
museus são sede cerimonial do patrimônio:
“[é] o lugar em que é guardado e celebrado, onde se reproduz o regime semiótico com que os
grupos hegemônicos o organizaram. Entrar em um museu não é simplesmente adentrar um
edifício e olhar a obra, mas também penetrar em um sistema ritualizado de ação social.”
(2003: 69)
Ainda de acordo com Garcia Canclini, geralmente os monumentos expostos através
dessas teatralizações apresentam coleções de heróis, cenas e objetos fundadores. Eles são
colocados em praças públicas, que passam a o ser de ninguém em particular e sim de todos,
de um conjunto social claramente delimitado. Tanto o território da praça quanto dos museus
tornam-se cerimoniais pelo fato de conter os símbolos de identidade, algo que não mais existe,
mas que é resguardado porque alude à origem e à essência. Ali se conserva o modelo da
identidade, a versão autêntica.” (2003: 191. Grifo do autor).
Para Garcia Canclini (2003) a busca pelo tradicionalismo aparece muitas vezes como
recurso para suportar as contradições da contemporaneidade. O autor afirma que em uma
época em que se duvida dos benefícios da modernidade, multiplicam-se as tentações de
retornar a algum passado que se imagina mais tolerável do que o presente. Diante da
impotência para enfrentar as desordens sociais, esse presente intolerável, o empobrecimento
econômico e os desafios tecnológicos, frente à dificuldade para entendê-los, a evocação de
tempos remotos reinstala na vida contemporânea arcaísmos que a modernidade recuperou.
Esse mesmo autor chama atenção para os produtores artesanais dizendo que:
“... se [eles] não pode[m] competir com as tecnologias avançadas, celebrem .. nosso
artesanato e técnicas antigas; se os paradigmas ideológicos modernos parecem inúteis para
dar conta do presente e não surgem novos, re-consagrem ... os dogmas religiosos ou os cultos
esotéricos que fundamentaram a vida antes da modernidade.” (2003: 166)
A falta de referências oriundas da globalização fez com que esse apego ao antigo e a
busca de construções ficcionais preenchessem espaços vazios. Mesmo que a tradição seja
“inventada”, tornou-se meio de identificação cultural para os Cachoeirenses lhes dando
segurança no mundo globalizador. E por que não se ligarem a povos que habitaram sua terra?
Se um cidadão que mora na ilha do Marajó é eminentemente marajoara, agora com a ligação
133
aos povos pré-coloniais através da cerâmica arqueológica, essa marca marajoara torna-se mais
animosa. Além de muito mais marajoara, essa espetacularização acarretou e acarreta fonte de
renda para muitas pessoas, visto que é um mercado promissor.
A busca pelo exótico por parte dos turistas e a re-funcionalização e re-significação
atribuídas aos objetos que antes eram desvalorizados, esquecidos ou possuíam uma função
específica em contraposição a objetos civilizados ou artísticos, também parece estar embutida
nesse processo simbólico de identificação cultural, mas extrapolando a questão, pois o
simbolismo do consumo parece mais ligado à distinção social daqueles que os adquirem, visto
que os objetos transitam em zonas de valores de acordo com sua circulação, questões
discutidas a seguir.
A venda dos objetos de barro e o simbolismo do consumo
A cerâmica marajoara de Cachoeira encontra-se para venda em alguns espaços
turísticos de Belém: São José Liberto–Jóias e artesanatos do Pará localizado no Pólo
Joalheiro, Empório das Artes, localizado na Estação das Docas, loja de artesanato da Secretaria
de Cultura do Estado, localizado na Igreja de Santo Alexandre no Complexo Feliz Luzitânia,
na loja Tecatueté, e no mercado do Ver-o-Peso. Além da venda em Belém, algumas peças de
Cachoeira são vendidas na loja Mbarayó, localizada na entrada da Pousada dos Guarás na
cidade de Salvaterra. Essa pousada é freqüentada por turistas do mundo todo.
No São José Liberto-Jóias e artesanatos do Pará, todas as prateleiras expõem as
cerâmicas marajoara. São provenientes de Cachoeira do Arari, Ponta de Pedras e Icoaraci. O
número de objetos vindos de Cachoeira ainda é pequeno em decorrência da produção, que
também é reduzida e recente como se pôde observar no capítulo anterior. A disposição das
peças não possui ordenação por classificação e nem por lugar de origem, mas organizados
aleatoriamente. Observei pratos, potes e um grande número de jarros marajoara. Os objetos
concentram-se em armários de madeira em um grande salão e os mesmos não possuem
nenhuma segurança contra quedas, pois se aglomeram nos pequenos suportes e qualquer
descuido de quem percorre o salão pode atingí-los (Fotografia 70).
134
Fotografia 70. Peças expostas no espaço de venda do São José Liberto
Na Estação das Docas, no Empório das Artes vendem-se peças marajoara de
Cachoeira e de Icoaraci (Fotografia 71). Ambos estão exibidos em prateleiras de madeira e
vidro. É como se as peças denominadas marajoara, mesmo que vindas de lugares diferentes,
fossem homogêneas. Elas ficam em exibição na prateleira da loja para que o público, mesmo
aquele que apenas passa pelo lugar, tenha a oportunidade de visualizá-las. Dos objetos
produzidos em Cachoeira do Arari, foram encontrados basicamente tigelas.
Fotografia 71. Loja Empório das Artes localizada na Estação das Docas
No espaço de venda localizado no interior da Igreja de Santo Alexandre, no bairro da
Cidade Velha, encontrei cerâmicas marajoara de Cachoeira, Ponta de Pedras e Icoaraci
(Fotografia 72). Elas também estão protegidas em grandes armários de madeiras com portas
de vidro. No espaço foram encontrados apenas adornos de cerâmica. São colares com
pequenas peças modeladas e armadas em fio produzidas na cerâmica Camutins por Beto.
Foto: Anna Linhares (out./2006)
Foto: Anna Linhares (out./2006)
135
Fotografia 72. Peças expostas na vitrine da Loja da Igreja de Santo Alexandre
Na loja Tecatueté foi encontrado apenas um objeto produzido em Cachoeira do Arari,
sendo uma tigela. A loja tem o objetivo de vender produtos de decoração, pois o seu dono é
arquiteto e trabalha anos com designer de interiores. Como se pode observar na fotografia
73, grande parte das peças encontram-se expostas em armários, ordenadas em conjunto de
acordo com o tamanho. Os objetos maiores, como réplicas de urnas funerárias ou grandes
jarros e potes de cerâmica, encontram-se no chão da loja. Assim como no espaço de venda do
São José Liberto, as peças da loja Tecatueté não possuem seguro contra quedas, pois se
aglomeram nos armários em decorrência da grande quantidade de objetos no local.
Foto: Anna Linhares (out./2006)
136
Fotografia 73. Peças de barro à venda na loja Tecatueté
O Ver-o-Peso diferencia-se dos outros descritos anteriormente (Fotografia 74). No
mercado existe grande quantidade de peças marajoara provenientes principalmente de Icoaraci.
Devido ao grande número, o material fica todo amontoado em cima de pequenas caixas de
madeira organizadas no chão ou em prateleiras suspensas. Eles ficam uns sobre os outros ou,
às vezes, uns dentro dos outros, como no caso de jarros ou potes dentro de pratos. Por
localizar-se em um mercado ou feira livre, os vendedores o se preocupam com o aspecto
expositivo do material. O próprio local e a falta de espaço entre uma barraca e outra acaba
inviabilizando aorganização”. Na realidade, esses espaços possuem sua própria organização,
que se diferencia dos outros locais, como as boutiques, questão que será discutida mais adiante.
Foto: Anna Linhares (out./2006)
137
Fotografia 74. Venda de cerâmica no mercado do Ver-o-Peso
Na loja Mbarayó localizada na entrada da Pousada dos Guarás em Salvaterra, no
Marajó, a fachada possui pintados elementos da fauna, flora e da cultura marajoara, no caso da
urna funerária entre o cavalo e o búfalo e dos motivos marajoara na parte inferior da parede nas
cores preta e vermelha (Fotografia 75).
Fotografia 75. Loja Mbarayó em Salvaterra
A loja possui pequeno espaço e todo o material fica exposto em prateleiras de
madeira suspensas nas paredes. Devido a grande quantidade de objetos para serem
comercializados, eles também ficam juntos nos armários, estando sujeitos a quedas ou
qualquer outro tipo de acidente, como se pode observar na fotografia a seguir.
Foto: Anna Linhares (out./2006)
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
138
Fotografia 76. Peças expostas à venda na loja Mbarayó
No local existe grande quantidade de objetos produzidos em Cachoeira do Arari,
diferentemente das lojas em Belém. Isso se dá em decorrência da proximidade das duas
cidades e da facilidade de deslocamento do material, diferente do centro comercial da capital
que, além da distância, o transporte das peças torna-se mais caro. Nessa loja foram
encontradas grandes quantidades de tigelas, tangas e porta-venenos marajoara.
Os compradores desses locais de venda da cerâmica marajoara são basicamente
turistas e, em sua maioria, brasileiros. Eles chegam sem conhecer os objetos, acham exóticos e
diferentes e compram para levar de presente ou para decorar a casa. Os moradores de Belém,
em sua maioria, compram para presentear amigos ou parentes que moram fora do Estado.
Segundo informação das vendedoras de algumas lojas, quase nenhum comprador conhece a
história ou o significado das peças, por isso faz-se necessário que as mesmas repassem algo
acerca do significado destas ao comprador.
Isso faz com que os vendedores também inventem estórias sobre a cultura marajoara
ao turista ávido por algo diferente, pois na maioria das vezes desconhece totalmente a história
dessa cultura e dos significados da cerâmica arqueológica, re-atualizando ou metamorfoseando
as informações. Na pesquisa realizada na loja Tecatueté,
141
enquanto observava o lugar,
encontrei uma peça produzida na cerâmica Arariuna classificada pelos artesãos como Tigela
Joanes Pintada (Fotografia 77). Como a peça estava sem a ficha de identificação de Cachoeira
do Arari, para confirmar a origem do objeto, interroguei a vendedora sobre o seu local de
141
Pesquisa realizada em 16/10/2006. Agradeço as informações de Laura Dias.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
139
produção. Esta leu a classificação adotada pelo produtor na ficha e respondeu com
propriedade que era feita por um famoso produtor da cidade de Joanes, cidade localizada na
ilha do Marajó.
Fotografia 77. Tigela Joanes Pintada (Loja Tecatueté)
A peça da fotografia 77 foi confeccionada em Cachoeira e seus produtores designam
o objeto de Tigela Joanes Pintada. Segundo seus aspectos formais, é uma cerâmica utilitária
ou cerimonial para armazenamento e serviço. Além disso, é específica para venda. É uma
tigela que possui boca larga e pouco funda. Tem formato antropomorfo, pois possui cabeça
humana, braços e s, e o seu corpo corresponde à parte central do objeto. Possui pinturas
marajoara e predominam as cores preta e vermelha.
Também é comum as vendedoras confundirem a cerâmica da cultura marajoara com a
cerâmica da cultura tapajônica,
142
assim como homogeneizarem todas as informações sobre o
período pré-colonial. Durante pesquisa nas lojas, interroguei uma das vendedoras da Empório
das Artes, localizada na Estação das Docas,
143
de conhecimentos da cultura marajoara e das
peças que eram vendidas no espaço. A mesma informou que repassava a todos os
compradores as possíveis informações sobre esse período histórico, visto que era obrigação da
142
A cerâmica tapajônica refere-se aos objetos arqueológicos encontrados na região do rio Tapajós, no Baixo
Amazonas. Segundo Guapindaia (1999), os relatos deixados por inúmeros viajantes que percorreram a região
durante os séculos XVI, XVII e XVIII, indicam a existência de grande e complexa nação de índios que viviam a
foz do Rio Tapajós. Esses índios produziam uma cerâmica que apresentava alto grau de tecnologia. Para
aprofundar o assunto, conferir: GUAPINDAIA, Vera. “Cultura Santarém: história e iconografia” IN Museu
Paraense Emílio Goeldi. Arte da terra: resgate da cultura material e iconográfica. Belém, SEBRAE, 1999.
143
Pesquisa realizada em 13/10/2006. Agradeço as informações de Ana Machado e Silvia Braga.
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
140
loja dizer ao cliente o conteúdo das peças vendidas e que, por essa razão, possuíam material
científico adequado para aprofundar o assunto, fazendo referência ao livro Arte Rupestre na
Amazônia,
144
sobre grafismo indígena.
Esse mesmo livro foi comentado por uma comerciante do Ver-o-Peso.
145
A
vendedora do mercado do Ver-o-Peso disse que quando o turista compra uma peça e pede
sugestão de livros para aprofundar o assunto sobre a cultura marajoara, ela sempre cita o
material sobre grafismo indígena, Arte Rupestre na Amazônia. Inclusive, possuía o livro em
sua barraca.
O livro foi escrito por uma pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi e editado
em 2003. O conhecimento por parte dos vendedores se em razão da sua grande divulgação
no período da publicação fazendo com que ganhasse grande repercussão. Isso fez com que
esses vendedores e produtores se apropriassem do material e homogeneizassem o
conhecimento sobre as culturas pré-coloniais. Os produtores também indicam o material e, por
vezes, incorporam os grafismos rupestres na cerâmica que denominam de marajoara. Além
dessa junção, aspectos formais da cerâmica tapajônica de vez em quando compõe a decoração
de alguns objetos.
Parece ser um hibridismo de estilos e formas denominados genericamente de
cerâmica marajoara. O que parece importar é a referência ao antigo, ao pré-histórico e ao
objeto indígena, pois geralmente os vendedores dizem que os objetos em barro são peças que
eram usadas por índios da pré-história, cerâmica marajoara, cerâmica indígena ou objetos de
índios que viviam no Marajó, sempre citando as cidades de Ponta de Pedras ou Icoaraci.
Apenas a cidade de Ponta de Pedras encontra-se na ilha do Marajó, mas como Icoaraci tornou-
se referência na venda de peças marajoara, é como se também fizesse parte do Marajó para os
vendedores.
Em panfleto organizado pela Secretaria da Cultura distribuído na Estação das Docas,
lê-se que o artesanato vendido no local possui estreita herança com os povos indígenas do
passado:
144
Cf. PEREIRA, Edith. Arte rupestre na Amazônia: Pará. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, o Paulo,
UNESP, 2003.
145
Pesquisa realizada em 13/10/2006. Agradeço as informações da vendedora Luciana.
141
“[a] arte da natureza Amazônica: Desde os tempos em que a Amazônia era habitada somente
pelos índios, o artesanato já era uma prática cotidiana. Os recursos da terra e da floresta
foram utilizados por eles com maestria. As cerâmicas marajoara e tapajônica são uma
pequena parte desse esplêndido legado herdado por nós. A riqueza estética e a força
simbólica de produtos artísticos feitos à mão no Pará, parecem dar continuidade a essa
tradição ... [a] produção ajuda a manter a tradição, sempre renovada.” (2006: 11)
146
A ligação com os objetos indígenas é um atrativo para a venda, mesmo sabendo-se
que são peças contemporâneas e que o são produzidas por índios na atualidade. Durante a
pesquisa fui em outra loja que o possuia cerâmica produzida em Cachoeira, Chamma da
Amazônia, localizada na Estação das Docas, e perguntei para a vendedora sobre o local de
origem de um objeto que estava na vitrine. A mesma informou que eram peças feitas por
índios que viviam em uma comunidade indígena chamada Icoaraci. O local referido pela
vendedora é um distrito de Belém e não é uma comunidade indígena, mas como a vendedora
deduziu um suposto desconhecimento sobre o local da minha parte, aproveitou e atribuiu um
caráter exótico ao lugar para valorizar a peça que estava exposta para ser comercializada.
Segundo Garcia Canclini (1983), a fascinação nostálgica pelo rústico, pelo natural e
pelo indígena é uma das motivações mais invocadas pelo turismo que, segundo o autor:
“...requer é a sua mescla com o avanço tecnológico: as pirâmides ornadas com luz e som, a
cultura popular transformada em espetáculo.(1983: 67). A transformação em espetáculo se
pela disposição das peças em vitrines nas lojas de artesanato, pela publicidade feita dos
objetos através das propagandas e pela grandiosidade da disposição dos objetos em museus e
lojas para que o visitante tenha a oportunidade de apreciar.
Como se pôde observar nas imagens mostradas ao longo do trabalho, na maioria das
lojas, a cerâmica, tanto de Cachoeira quanto das outras cidades, encontra-se disposta de forma
a chamar a atenção do olhar e em grandes vitrines, diferentemente da forma que é disposta no
mercado do Ver-o-Peso, onde as peças encontram-se no chão do espaço público. Além disso,
as peças das boutiques são mais caras que as encontradas no mercado.
No Empório das Artes, todas os objetos estão armazenados em prateleiras protegidas
por vidros, dando aspecto de exuberância ao material (Fotografia 78).
146
Cf. Espia. Informativo cultural da Estação das Docas. Ano 1. n° 6, 2006.
142
Fotografia 78. Cerâmica de Cachoeira do Arari exposta na loja Empório das Artes na Estação das Docas
No São José Liberto, as peças estão organizadas para chamar atenção do público
comprador, visto que induzem formas de decoração e designer a partir da disposição em que se
encontram (Fotografia 79).
Fotografia 79. Cerâmica marajoara exposta no São José Liberto
Diferentemente, no Ver-o-Peso as peças não possuem as vitrines de vidros para que
as protejam e tampouco os armários de madeira, mas estão todas organizadas em barracas e
pelo chão do mercado, possuindo sua forma peculiar de expor os objetos, distante do requinte
que as outras lojas tentam atribuir ao material. Observe a imagem da fotografia 80, que mostra
um porta-veneno marajoara com formato zoomorfo produzido em Cachoeira por Beto
Foto: Anna Linhares (out./2006)
Foto: Anna Linhares (jul./2006)
143
parecendo equilibrar-se entre as outras peças de cerâmica.
Fotografia 80. Cerâmica marajoara produzida em Cachoeira do Arari sendo comercializada no Ver-o-Peso
Destarte, observa-se a multiplicidade de valores e as diversas re-significações que
estão relacionadas ao lugar onde se encontra e ao público consumidor. Para Garcia Canclini
(1983), por mais que qualquer objeto acabe ecoando as relações que o engendram, para
explicar o itinerário mutante do material faz-se necessário se ocupar das estruturas sociais e
espaciais por onde ele circula, que são as posições que as peças de artesanato vão ocupando
durante o seu percurso.
O mesmo autor afirma que a diferenciação dos locais de venda onde podem se
encontrar os mesmos produtos correspondem à necessidade de selecionar e apresentar os
objetos para grupos diversos de consumidores (Garcia Canclini, 1983). Os compradores de
gosto mais sofisticados adquirirem as peças vendidas na Estação das Docas ou no São José
Liberto, visto que também adquirem signos de distinção, pois junto à peça vai a embalagem do
lugar, o preço do produto e a própria passagem pelo espaço. Mas, se o consumidor deseja
apenas levar souvenirs, uma feira ou o mercado do Ver-o-Peso faz-se suficiente.
Visitando uma exposição de venda de peças marajoara produzidas em Icoaraci
observei a forma que as mesmas são re-significadas de acordo com o local em que se
encontram. A exposição, promovida pelo SEBRAE, chamava-se Mano Pará e estava
Foto: Anna Linhares (out./2006)
144
ocorrendo no shopping Iguatemi, localizado no centro comercial de Belém. Os objetos
estavam todos expostos em grandes suportes feitos de miriti
147
e vidro, uma espécie de junção
entre tradicional e moderno, de forma individual e em conjunto e, por vezes, intocável.
A fotografia 81 mostra as peças de cerâmica marajoara produzidas em Icoaraci como
pratos, bilha, potes e jarros. Observe que estão sendo apresentados em uma grande prateleira
de miriti e vidro. A forma de alocar os objetos induz ao possível comprador a forma de
organizá-los ou re-significá-los, ou seja, como serão arrumados em seus lares para serem
apreciados e exibidos nas salas de estar ou em outros cômodos da casa, longe de serem usados.
Fotografia 81. Exposição Mano Pará, shopping Iguatemi
A fotografia 82 mostra uma tigela de boca larga e pouca profundidade com motivos
marajoara no seu interior e exterior, cuja coloração é vermelha e amarela. Observe que a
vidraça que se encontra em cima do suporte de miriti induz um jogo de imagem para quem
observa, refletindo os motivos marajoara que ficam na parte inferior da peça dando um “ar
artístico” ao objeto exibido e para a exposição. Esse jogo de imagens pode ser observado em
todo o conjunto expositivo Mano Pará.
147
Corresponde a um “[p]almeira altíssima (30-50m), própria de alagadiços (Mauritia flexuosa), de frutos
globosos, e cujo caule, fendido suco doce e amilo, servindo as folhas para fazer telhados.”. (Ferreira, S/D,
p.929).
Foto: Anna Linhares (set./2006)
145
Fotografia 82. Exposição Mano Pará, shopping Iguatemi
Observe na fotografia 83 a intocabilidade de alguns objetos. Provavelmente, se esse
mesmo material estivesse no mercado, ele estaria no chão ou entre outros vários objetos, sendo
pego e levantado por turistas interessados por uma peça exótica e diferente.
Fotografia 83. Exposição Mano Pará, shopping Iguatemi
O requinte da exposição tem relação com a proposta do projeto Mano Pará que é “...
divulgar a beleza e tradição do artesanato arqueológico marajoara, tapajônico e maracá, bem
como de outras tipologias regionais, como foco nas novas tendências do mercado através de
design moderno e arrojado.”.
148
148
Dizeres contidos em panfleto distribuído durante a exposição no mês de setembro de 2006.
Foto: Anna Linhares (set./2006)
Foto: Anna Linhares (set./2006)
146
Guacira Waldeck (2000),
149
pesquisando a produção de cerâmica do Vale do
Jequitinhonha, em Minas Gerais, mostra como o trânsito de peças por lugares diferenciados,
por vezes, confunde os próprios produtores acostumados com as feiras. Segundo a
pesquisadora os produtores do Vale distinguem feiras de exposições. Para eles as exposições
são recentes e inovadoras e dizem sentir bastante diferença quando precisam vender nestes
espaços. Waldeck diz que diferentemente das feiras, onde os produtores possuem mais
independência na hora da comercialização e na forma de exibir o material, nas exposições, que
geralmente ocorrem em shoppings da cidade, eles perdem essa autonomia, pois são
organizadas e reordenadas por técnicos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
distinguindo pontos de vista de instituições e pessoas envolvidas.
Segundo Waldeck
“[p]ara os artesãos do Vale ... a feira significa a oportunidade de vendas e deflagra uma
forma de sociabilidade e de negociação, certa maneira de expor seus objetos nas barracas
ou em pedaços de tecido sobre o chão -, de empacotar as peças, de negociar o preço com o
consumidor ou de inventar expressões para atrair o público. Nesse sentido, é ao mesmo
tempo fenômeno econômico, lúdico, moral e estético. (2000: 76)
Diferentemente das exposições no espaço do shopping, que impõe exclusões, criando
fronteiras entre duas narrativas e formando dois sentidos, um criado pelos técnicos e outro
pelos produtores, acostumados com as vendas ao ar livre.
Esse exemplo, em conjunto com o que observei nos espaços de venda da cerâmica
marajoara, mostra as várias significações conferidas ao material de acordo com os lugares de
circulação. O museu também re-significa esse objetos, como citado anteriormente. Para
Garcia Canclini, “[o]s vidros que os protegem, os solenes pedestais sobre os quais são exibidos
reforçam ainda mais a sua condição isolada de objetos-para-serem-contemplados.”. (1983:
194)
Nas lojas de boutique, como as lojas da Estação das Docas e do São José Liberto, os
vendedores também possuem o cuidado com a apresentação dos objetos a serem vendidos,
diferentemente dos espaços que comercializam souvenirs. As boutiques organizam as peças
para serem vistas como em um museu. A diferença é que os museus são lugares de
apropriação privada e as lojas, privada e pública.
149
Cf. WALDECK, Guacira. “A exposição ou quando vai ser a feira?”” IN VELHO Gilberto (org.). Cultura
material: identidades e processos sociais. Rio de Janeiro, FUNARTE, CNFCP, 2000.
147
De acordo com Baudrillard (S/D), o exatamente as lojas que possuem as
exuberantes vitrines, que constituem juntamente, a publicidade e a propaganda atrelada ao
turismo. Nesses casos, o os focos principais de convenção das práticas urbanas
consumidoras, onde são por excelência os lugares da comunicação e permuta de valores por
meio da lógica espetacular da moda.
Para Baudrillard é
“... a ... magia calculada que se revela ... a falsa hesitação do shopping surge como a dança
canaca de exaltação dos bens antes da permuta. Os objectos e os produtos apresentam-se
numa encenação gloriosa e numa ostentação sacralizante ... o dom simbólico que mimam os
objectos encenados, a permuta simbólica e silenciosa entre o objecto oferecido e o olhar,
convida evidentemente a permuta real e econômica ... a comunicação que se estabelece ao
nível da vitrina não é tanto a dos indivíduos com os objectos quanto a comunicação
generalizada dos indivíduos entre si, não por meio da contemplação dos próprios objectos,
através da leitura e do reconhecimento, nos mesmos objectos, do sistema de sinais e do
código hierárquico de valores.” (S/D: 283-284. Grifos do autor)
É um espaço que não é interior nem exterior, nem privado e nem público, onde todos
podem circular e observar as peças, mas atrás da transparência do vidro, no estatuto opaco e na
distância da mercadoria disposta existe um espaço de uma relação social específica.
Garcia Canclini tratando dessa diferença diz que
“[n]o museu encontramos a herança cultural, a história das lutas dos homens com a natureza
e com os outros homens, mas esta se encontra fechada em vitrinas; a boutique neutraliza esse
passado, ou acentua o que nele pode ser subordinado à beleza, para que conviva serenamente
com o nosso presente ... [n]o museu as peças ... não podem ser tocadas; a boutique oferece
algo que tampouco é para ser utilizado mas sim para ser visto, deve ser visto como algo que é
de quem o compra, mas encarado com toda a distância que se deve ter de algo que é
decorativo, como se não fosse um objeto a ser integrado a vida ... [q]uase tudo hoje o que se
faz com o artesanato ... oscila entre a comercialização e a conservação.” (1983: 104. Grifos
do autor)
A busca pelo antigo, pelo exótico e por objetos que remetem a um passado histórico a
partir da conservação e comercialização como no caso dos objetos arqueológicos encontrados
nos tesos do Marajó, passou a ser fonte de renda para muitos produtores, mas o comércio
dessas peças, longe de suas reproduções, tempos tornou-se um mercado rentável entre
colecionadores do mundo inteiro. Para Schaan
150
esse mercado é uma das grandes
preocupações de arqueólogos, pois toca na questão da preservação desse patrimônio em sítios
150
Palestra proferida em 25/10/2006 com o título: Cultura Marajoara: entre o antigo e o novo, dentro da
programação Quartas de Antropologia, promovida pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Pará.
148
ou tesos, isso porque muitos fazendeiros já saquearam peças nos locais com o intuito de vendê-
las, descontextualizando-as, visto que são bastante valorizadas no comércio exterior.
A valorização de objetos indígenas fez com que eles entrassem no mercado das
Belas-Artes e se tornassem valiosos em conjunto com as obras de arte ocidentais. James
Clifford (1994) e Price (2000)
151
tratam das re-significações, da repercussão dos objetos no
mercado e das metamorfoses ocorridas de acordo com os espaços onde se encontram.
Segundo Clifford (1994), a partir do momento em que esse gênero de objetos se
insere no mundo das Belas-Artes, eles servem enquanto signos de distinção para aquelas
pessoas que os possuem, personificando hierarquias de valor e exclusões. Além de analisar a
questão da distinção daqueles que possuem objetos exóticos, o autor mostra como os seus
valores mudam e percorrem diversas categorias classificadas de acordo com os parâmetros
ocidentais. Clifford (1994) afirma que os objetos indígenas ou exóticos foram classificados
desde a virada do século XX de duas formas: os científicos ou artefatos culturais e objetos
estéticos ou de arte. Outros objetos, que autor classifica de produção de massa, ou arte
turística, como no caso da cerâmica marajoara, na melhor das hipóteses, foram avaliados como
peças folclóricas ou que encontram lugar em exposição de tecnologias.
A partir dessas categorizações o autor monta um diagrama da circulação dos objetos,
denominando-os de zonas. Clifford (1994) divide-as da seguinte forma: (1) zona das obras-
primas autênticas; (2) zona dos artefatos autênticos; (3) zona das obras-primas não autênticas;
e (4) zona dos artefatos não autênticos. O autor diz que os objetos adquirem status de belo e
ligam-se ao bom gosto quando percorrem as zonas dos artefatos considerados autênticos. Por
exemplo, os objetos etnográficos, que estariam na zona 2, podem transitar na zona 1 quando
passam a compor galerias de arte junto à obras de arte não etnográfica. A partir de então se
tornam obras-primas. Podemos exemplificar o caso das peças saqueadas em sítios
arqueológicos que se tornam valiosas no mercado das Belas-Artes quando estão em circulação.
O inverso também pode ocorrer quando obras-primas são culturalmente e
historicamente contextualizadas. Outro exemplo é o fluxo de objetos encontrados na zona 4
151
Cf. CLIFFORD, James. “On colleting arte and culture” IN The predicament of culture Twentieth-Century
Etnography, Literature and Arte. Cambridge, Havard University Press. 1994 e PRICE, Sally. Arte primitiva em
centros civilizados. Rio de Janeiro, Editora UERJ, 2000.
149
que transitam na zona 2. Clifford (1994) afirma que são as artes turísticas. O trânsito da zona
4 para a zona 2 remete às reproduções da cerâmica arqueológica marajoara, haja vista que esta
produção luta pelo status de autenticidade enquanto estratégia mercadológica, mas que apenas
transita nessa zona devido aos valores que lhes são imputados temporariamente. Para
visualizar o que mostro, observe o quadro a seguir:
Zonas propostas por Clifford
Zonas
1
Obras-primas autênticas
2
Artefatos autênticos
3
Obras-primas
não autênticas
4
Artefatos não
autênticos
Transição
dos
objetos
2
Artefatos autênticos
nas galerias de artes
Ex: peças arqueológicas
1
Obras-primas autênticas
historicamente
contextualizadas
X X
4
Artefatos não autênticos;
artes turísticas
Ex: Cerâmica marajoara
Quadro 2. Zonas de circulação de objetos
Price (2000) critica o novo valor dado aos objetos etnográficos pelo mercado
consumidor ocidental. Segundo a autora, esse tipo de avaliação não leva em conta os critérios
estéticos dos produtores, considerando apenas os critérios estéticos ocidentais que lhes são
conferidos, evidenciando a lógica etnocêntrica e imperialista que motiva a apreciação estética
da arte fora dos centros legitimadores do mercado de arte.
Segundo a autora,
“[o]s Ocidentais aceitam total responsabilidade pela identificação destas peças da manufatura
Primitiva, raras e escondidas, que personificam a Qualidade Estética. Embora os estudiosos
ocasionalmente coloquem critérios estéticos indígenas ao microscópio para conduzir estudos
sociais científicos, é raro que se peça aos habitantes de aldeias ... que informem aos
organizadores de exposições quais as máscaras que merecem o rótulo de “obra-prima”, e os
índios da América do Sul raramente atuam como consultores sobre os quais os cocares de
penas que merecem ocupar a posição central da exposição.” (2000: 127)
Mesmo criticando os valores conferidos aos objetos quando emigram para os centros
urbanos a partir dos critérios ocidentais, Price (2000) mostra que são questões que, por vezes,
acabam sendo inevitáveis, e por isso, faz-se essencial sair dessa “camisa de força” e da
150
armadilha de nossa própria estética como instrumento de discriminação e dominação,
defendendo de certa forma, a inclusão da arte não ocidental em exposições de arte, mas a partir
de critérios avaliados pelos próprios produtores, se possível.
Não o os objetos que falam por si sós, mas são os valores que lhes são dados, tanto
pelas mãos que passam, como pelos lugares por onde percorrem. O prestígio e a distinção
social oriunda da posse de determinadas peças o é um fenômeno isolado de determinada
época e tão pouco de determinada sociedade.
Suano (1986) mostra em seu trabalho a importância dos objetos enquanto signo de
distinção desde a antiguidade, em que as coleções romanas, para além de simples
demonstração de riqueza e bom gosto, tinham por fim último ilustrar poderio e força dos
inimigos conquistados por Roma através das inúmeras guerras e que tais riquezas faziam parte
do triunfo, que era o desfile do vencedor de volta à Roma.
Outros exemplos clássicos de estudos de bens simbólicos e de objetos enquanto
símbolos de distinção são os estudos realizados por Malinowski (1978) sobre o ritual do Kula
152
e por Mauss (1974), Ensaio sobre a dádiva.
153
Malinowski (1978) mostra que o ritual do Kula trata da troca de objetos com caráter
intertribal. São realizadas trocas de colares feitos de conchas vermelhas (soulava) e de
braceletes feitos de conchas brancas (mwali) entre aldeias, cada qual possuindo uma série de
simbolismos e estabelecendo relações. É uma espécie de comércio e essa troca é obrigatória.
Os adornos precisam estar em constante movimento e jamais podem parar, pois ficar com um
dos objetos mais de dois anos significa mesquinhez e não retribuição do objeto recebido.
As peças trocadas também perdem a função utilitária. Segundo Malinowski, mwali e
soulava são, antes de qualquer coisa, enfeites usados exclusivamente em conjunto aos trajes de
dança mais elaborados em ocasião de grandes festas ou em danças cerimoniais. Esses objetos
jamais podem ser usados como adornos diários ou em ocasiões que denotem menos
importância. Eles não são possuídos para serem usados, pois o privilégio de enfeitar-se com os
152
Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. “Características essenciais do Kula” IN Argonautas do Pacífico Ocidental.
São Paulo, Os Pensadores, 1978.
153
Cf. MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” IN Sociologia e
Antropologia. São Paulo, EPU, 1974.
151
mwali ou soulava não corresponde ao verdadeiro objetivo da sua posse.
O que o autor pretende mostrar em seu estudo etnográfico entre os Trobriand é o
poder simbólico dos objetos, visto que representam riquezas a serem retribuídas. Para
Malinowski, “[a] preciosidade do material com que foram feitos e a quantidade de trabalho
despendida em fabricá-los são os fatores que os transformaram em reservatórios de valor
econômico condensado.”. (1978: 80)
Nesse trabalho, o autor também estabelece comparação entre os colares e braceletes
com objetos ocidentais a fim de fazer contrapontos e paralelos entre seus simbolismos.
Segundo Malinowski:
“... como é sempre melhor abordar um tema desconhecido através de outro conhecido,
vamos refletir um pouco e tentar descobrir se, em nosso próprio meio, não existem também
certos objetos que desempenham papel semelhante aos desses colares e braceletes e são
possuídos e usados de maneira também análoga a deles.” (1978: 79)
Como exemplo dessa comparação o autor analisa o simbolismo das jóias da coroa
britânica afirmando que, assim como os mwali e soulava, elas são apreciadas e valorizadas
pela posse em si e pelo valor histórico que possuem.
Atentando às diferenças, Malinowski mostra que os artigos do kula são de posse
temporária, ao passo que, para ter total valor, o tesouro europeu precisa ser de posse
permanente. Refletindo acerca dessa comparação, o autor diz que “... as forças psicológicas de
uma e de outra são as mesmas; é a mesma atitude mental que leva a valorizar nossos objetos
históricos ou tradicionais e faz com que os nativos da Nova Guiné tenham seus vaygu’a em
grande apreço.”. (1978: 81)
Outra referência igualmente importante é o clássico de Mauss (1974). Sua obra trata
da troca de presentes entre habitantes da Polinésia. Essas trocas são fenômenos coletivos e a
circulação das riquezas recebidas pela dádiva é apenas um dos termos dentro do amplo
contrato entre os envolvidos. Além de honra, prestígio e poder que envolve a retribuição de
um objeto recebido, o fenômeno responde necessidades culturais, pois uma recusa nesse jogo
significa negar aliança e comunhão e isso é negativo entre os grupos envolvidos no processo.
Segundo Mauss (1974), a sociedade moderna revela práticas compatíveis com essas
152
regras estruturais de sociedades antigas permanecendo, de certa forma, vinculados à atmosfera
da dádiva e da obrigação. Os exemplos atentam para o simbolismo que envolve a posse e o
consumo de objetos em diversas sociedades em épocas distintas da história.
Refletindo o problema analisado nesse trabalho, tais categorias como, beleza, bom
gosto, arte fina, autenticidade, assim como o prestígio de quem os obtém, mudarão e estão
mudando, como nos aponta Clifford (1994), frisando que isso permeia o universo do consumo,
sendo o significado das coisas o ponto de partida.
Para Baudrillard (S/D) é preciso afirmar que o consumo surge em nossa sociedade
como um modo ativo de relação, uma relação não apenas com as peças, mas também com a
coletividade, como modo de atividade sistemática e de resposta global servindo de base a todo
o sistema cultural.
O autor diz que a partir do consumo e de suas representações nasce uma nova
mitologia, dando como exemplo a máquina de lavar que
“... serve de utensílio e actua como elemento de conforto, de prestígio, etc. É este último
campo que constitui propriamente o campo do consumo. Nele, todas as espécies de objectos
podem substituir-se à máquina de lavar como elemento significativo. Tanto na lógica dos
sinais como na dos símbolos, os objectos deixam totalmente de estar em conexão com
qualquer função ou necessidade definida, precisamente porque respondem a outra coisa
diferente, seja ela a lógica social seja a lógica do desejo, as quais servem de campo móvel e
inconsciente de significação.” (S/D: 10)
A quina de lavar é apenas um dos exemplos, pois a posse de um bracelete de
conchas, uma plumária indígena ou uma cerâmica marajoara, pode ser signo de distinção ou de
prestígio de acordo com a época e com o que se consome no momento. Se for distintivo ou
mesmo vendável, possuí-lo ou adquirí-lo significa algo e esse significado distingue seu
possuidor de alguma forma.
Analiso essa questão, pois parte da pesquisa trata da comercialização de objetos que
atualmente dão lucro, vendem para determinado público e que chamam atenção no mundo
inteiro. Não é à toa que Icoaraci tornou-se um pólo de produção de cerâmica marajoara. Além
dos espaços de produção e da forma em que se metamorfoseia a produção Brasil afora, um
breve acesso na internet em busca de compras dessa cerâmica torna-se mais prático do que ir
ao local de confecção. Existem endereços eletrônicos que realizam a venda desses objetos,
153
mesmo em outras línguas, facilitando o acesso para o estrangeiro.
154
De acordo com Slater (2002),
155
os bens acabam sendo primordialmente indicadores
que assinalam relações e classificações sociais e através dos significados públicos vinculados,
o consumo organiza a ordem social tornando visíveis divisões, categorias e classificações. Em
geral, o significado social é mutável e instável e os rituais de consumo de determinados
objetos, como as convenções de uso, consolidam esses significados e instituem definições
públicas visíveis
.
Segundo o mesmo autor,
“[o]s bens... são acessórios rituais; o consumo é um processo ritual cuja função primária é dar
sentido ao fluxo incipiente dos eventos ... [c]omo os bens indicam categoriais sociais, podem
ser usado para discriminar posições e valores, identidades e participações ... [p]ortanto, o
consumo diz respeito à ordem cognitiva estabilizadora das sociedades – haverá peru em
muitas mesas no próximo dia 25 de dezembro, não tanto porque agradam o paladar, mas
porque, ... agradam o pensamento”. (2002: 148)
Como se pôde observar durante o trabalho e pela importância atribuída a esse novo
mercado de produtos exóticos, um passado e uma nostalgia primitivista parecem estar presente
nos lares consumistas na atualidade. Mesmo que a atual produção de Cachoeira não esteja em
primeiro lugar na corrida produtiva, observa-se esse mercado promissor em Icoaraci.
O importante é observar a procura oriunda de um público ávido pelo diferente, pelo
exótico, sendo as peças autênticas ou não, kitsch ou não, em nome de uma gama de signos de
referência que está imbutida nos objetos. Como afirmou Baudrillard, “... toda uma vegetação
de [objetos] verdadeiros ou falsos, manuscritos e ícones...” (2004: 92) que invadem um
mercado que até tornou-se mbio negro, como no caso do saqueamento de inúmeros sítios
arqueológicos destinados ao resgate de peças para serem comercializadas.
A partir dos dados coletados, pude detectar a inserção da cerâmica de Cachoeira do
Arari no mercado ávido pelo diferente. Acredito que pesquisas mais aprofundadas sobre o
consumo dessas peças possam a vir mostrar outras metamorfoses e re-significações de objetos
154
Cf. alguns endereços eletrônicos de venda da cerâmica “marajoara”: http://www.bpg.com.br, http://
www.braziltour.com
, http:// www.ceramicanorio.com/artepopular/ceramicamarajoara,
http://losartesanos.com/indígena/marajoara.htm
, http://produto.mercadolivre.com.br. Acessado em
28/10/2006.http://www.oficinadaarte.com.br
. Acessado em 24/09/2006.
155
Cf. SLATER. Don. Cultura do consumo e modernidade. São Paulo, Nobel, 2002.
154
considerados exóticos nesse âmbito. Observar as zonas que estarão percorrendo daqui para
frente.
155
V. À guisa de conclusão
Significados e simbolismo dos objetos de barro
Como se pôde observar ao longo do trabalho, estudos e investigações acerca dos
objetos, cultura material, bens culturais comercializáveis ou não, mostram-se como um amplo
campo de pesquisa, visto que tecem questões pertinentes para refletir-se em múltiplas áreas de
estudo.
As reflexões podem ser feitas tanto no campo da História, da Antropologia, da
Economia, da Arte e da Estética, assim como no campo das Ciências Naturais. Basta lembrar
das matérias-primas utilizadas no processo de confecção dos objetos em barro visto no capítulo
que trata do processo produtivo da cerâmica de Cachoeira do Arari.
Dentre as inúmeras reflexões que podem ser tecidas no campo das investigações sobre
objetos ou bens materiais, a questão problematizada foi concernente ao que vem ocorrendo em
Cachoeira sobre a apropriação do patrimônio arqueológico e suas re-significações,
apropriações essas que extrapolam as reproduções dos objetos da cultura marajoara, assim
como extrapolam o lugar, na medida em que são re-significados nas lojas de artesanato dos
grandes centros urbanos, por exemplo.
A partir do que observei durante a investigação na cidade, refleti sobre o problema de
uma “tradição inventada”, haja vista que os moradores da cidade identificam-se com o
ocorrido. Eles sentem-se eminentemente marajoaras quando observam as pinturas ao longo da
cidade passando a fazer ligação de sua cultura com a cultura dos marajoara que habitaram a
região tempos atrás. Os moradores sentem que possuem uma identidade que se iniciou na
época da ocupação dos povos marajoara na ilha, e que essendo continuada por eles, mas de
forma diferenciada. Tudo teve início nessa passagem: de caco a espetáculo. São espetáculos
turísticos, visuais, mercadológicos e identitários. Novos sentidos são urdidos e disseminados.
A partir dos diversos sentidos tecidos, disseminados e metamorfoseados, a produção
de cerâmica marajoara tornou-se identidade de Cachoeira. A satisfação dos moradores por
verem que “o pessoal começa a vestir a sua própria cultura” ou que “as pessoas começam a
vestir, nas camisas e se identificar com a própria cultura marajoara na verdade...”, conforme
Paulo Câmara, morador de Cachoeira do Arari entrevistado durante a pesquisa, indicou o que
defendi. Isso “mostra as coisas do Marajó” ou não foge das nossas raízes muito pelo
156
contrário ... que representa cada vez mais e mais”, como disse Ademilton Gonçalves, morador
do lugar. Eles acabam considerando-se eminentemente marajoaras, herdeiros de um povo de
tradição milenar, pois se orgulham de expor essa tradição ou mesmo de afirmar que são de
Cachoeira, lugar onde viveram esses antigos povos, mesmo sem saber claramente sua história e
cultura.
Para Garcia Canclini,
“[t]er uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro, uma
entidade, em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse
idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é posta em cena, celebrada nas
festas e dramatizada também nos rituais cotidianos.” (2003: 190. Grifos do autor)
Isso pode ser observado no local. As pessoas sentem-se orgulhosas quando estampam
os inúmeros grafismos marajoara em roupas, quando os mostram pelas ruas ou mesmo quando
falam deles, visto que,
“[nasceram] nessas terras, em meio a essa paisagem, a identidade é algo inquestionável. Mas
como ao mesmo tempo tem-se a memória do que foi perdido e reconquistado, são celebrados
e protegidos os signos que os evocam.” (Garcia Canclini, 2002: 191)
Diz-se perdido e reconquistado, pois se reviveu a cerâmica!”, como afirmou Beto
Leão. É como se a cultura marajoara tivesse tido seu espaço em algum lugar do tempo e
depois disso, tivesse ficado esquecida. A partir da revivescência dessa cultura, veio à tona as
raízes daquelas pessoas e devido ao tempo do anonimato dessa cultura pré-colonial ou seu
esquecimento pelos povos que moram atualmente no lugar, agora esta deve ser celebrada,
evocada ou teatralizada por inúmeros meios, sejam eles o museal, o comercial e o expositivo.
As idéias também estão atreladas ao consumo, como pôde ser visto, que se mostra
enquanto um discurso eloqüente aberto a múltiplas leituras, sendo mensagem em um código,
permitindo aproximar e até mesmo diferenciar grupos sociais, sendo um operador de sistema
classificatório de pessoas e espaços através das coisas. Inúmeros objetos, produtos, bens
comercializáveis e serviços se articulam, pelo consumo, a uma série de pessoas, grupos sociais,
estilos de vida, gostos e perspectivas envolvidas em um sistema de comunicação, de poder e de
prestígio social. Sendo assim, pôde-se averiguar que o universo do consumo e do simbolismo
dos objetos permeia a vida humana diferenciando-se de sociedade para sociedade, isto porque
o consumo e o simbolismo dos objetos esligado com a relação deste e a coletividade, com
seus diferentes códigos.
157
Não são os objetos que falam por si, mas os significados atribuídos a eles pela
coletividade por onde circulam, passam ou são possuídos. Por exemplo, uma urna funerária
tinha a função de armazenar os mortos da cultura marajoara tempos atrás e depois do
armazenamento, existiam rituais funerários específicos que envolviam essa cultura material.
Essa mesma urna encontrada em tesos ou sítios arqueológicos, atualmente serve de fonte de
informação e pesquisa para arqueólogos interessados no assunto e nesse período da história;
esse mesmo objeto armazenado ou acondicionado em um museu científico também servirá de
fonte de informação e de estudos museológicos, mas se o museu for de cunho artístico, a
preocupação estará voltada para a exposição das peças a fim de serem observadas, apreciadas
ou contempladas. Um ceramista que reproduz objetos dessa cultura está pensando no lucro
oriundo da procura de objetos exóticos ou mesmo se orgulha da identidade marajoara, como
observei em Cachoeira; e um consumidor ou turista utilizará a reprodução ou mesmo o objeto
arqueológico saqueado em determinado teso, enquanto decoração de sua casa, comércio
rentável ou presenteará como souvernir a um amigo ou parente sedento pelo diferente.
Nota-se que a partir dos contextos por onde circulam, novos significados são dados,
significados esses atribuídos e marcados pela coletividade que os possui quando os adquirem.
Como afirmou Slater: “[o]s bens não são “simples mensagens”, mas sim, constituem o próprio
[sistema de informação]. Retire-os da interação humana que você desmantela a coisa toda.”
(2002: 148)
Isso permitiu pensar e ter idéia da circulação desse gênero de bem cultural e das
mudanças de significados que eles sofreram desde sua criação em Cachoeira do Arari a
ocuparem um lugar nas prateleiras das lojas e casas dos prováveis consumidores em Belém e
demais cidades. No fim das contas, o que é utilitário torna-se decorativo e o que é decorativo
pode vir a se tornar qualquer outra coisa.
Pensando nessas questões e em toda discussão feita sobre os objetos de cerâmica
comercializados em lojas de boutiques, assim como em feiras e expostos em museu, torna-se
interessante refletir mais à frente as diversas representações desses objetos em cada um dos
espaços onde se encontram e se re-significam quando migram a outros contextos após serem
adquiridos nos espaços de venda. Nesse caso, seria necessário pesquisa com o consumidor dos
objetos exóticos e nos espaços onde alocam suas peças, nos seus lares.
158
Destarte, num mundo onde as minorias étnicas e culturais se sentem ameaçadas pelas
pressões homogeneizadoras da globalização, os homens e mulheres de Cachoeira do Arari,
essa pequena cidade situada na ilha do Marajó, construíram para si uma identidade – dinâmica,
como não poderia deixar de ser -, através do simbolismo marajoara, que lhes permite fazer
frente às tentativas de eliminação das diferenças e dos particularismos. Sabendo quem são, eles
se sentem mais seguros para enfrentar os desafios do mundo atual.
159
Referências
Referências
Documentos do acervo do Museu do Marajó (AMdM)
Fontes impressas citadas do acervo do Museu do Marajó (AMdM)
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Jenipapo, 15/03/1975.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Jenipapo, 04/04/1975.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Santa Cruz do Arari,
04/04/1975 (às 21h30).
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo M. Rivato. Santa Cruz do Arari,
12/04/1975.
AMdM, Encontro dos Padres da Prelazia de Ponta de Pedras em Salinas, 28/08 a 01/09/1976.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo Rivato. Santa Cruz do Arari, 28/11/1976.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Dom Ângelo Maria Rivato. Santa Cruz do Arari,
06/06/1981.
AMdM, Discurso do Pe. Giovanni Gallo na cerimônia de recebimento do título de “cidadão do
Pará”, na Assembléia Legislativa. Belém, 27/10/1981.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo aos vereadores de Cachoeira do Arari. Santa Cruz do Arari,
13/04/1982.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Edir de Souza Neves, prefeito de Cachoeira do Arari.
Santa Cruz do Arari, 11/03/1983.
AMdM, Of/65/83, de Eurípedes Bentes Pamplona Filho, prefeito de Santa Cruz do Arari, para
Giovanni Gallo. Santa Cruz do Arari, 11/05/1983.
AMdM, Carta de Jarbas Passarinho para o Pe. Giovanni Gallo. Brasília, 06/05/1983.
AMdM, Edital de embargo nº 01/83. Santa Cruz do Arari, 14/06/1983.
AMdM, Edital de Convocação para Assembléia Geral Extraordinária do O Nosso Museu de
Santa Cruz do Arari. Santa Cruz do Arari, 13/07/1983.
AMdM, Carta de Giovanni Gallo para Manoel Ribeiro, Deputado Federal. Belém, 02/09/1983.
AMdM, Cartório Leão Júnior, Certificado de Registro da mudança de nome do O Nosso
Museu de Santa Cruz do Arari para o Museu do Marajó. Cachoeira do Arari, 09/03/1984.
AMdM, Incardinação do Pe. Giovanni Gallo. Belém, Cúria Metropolitana, 28/03/1984.
160
AMdM. Relatório do curso de Cerâmica Decorativa e Utilitária. SECTAM/ Museu do
Marajó, 09/03/1998.
AMdM. GALLO, Giovanni. Projeto O Museu vivo o curso de cerâmica. Cachoeira do Arari,
Museu do Marajó, 30/10/1998.
AMdM, Of. 28/00 G2ªVP, da Assembléia Legislativa do Estado do Pará para Giovanni
Gallo. Belém, 02/05/2000.
AMdM. Projeto Jovem Artesão. Cachoeira do Arari, Museu do Marajó, 2006.
AMdM. Projeto Cerâmica Miniaturizada. Museu do Marajó, s/d.
Jornais citados consultados no acervo do Museu do Marajó (AMdM)
A Província do Pará
, Gallo candidato. Belém, 02/11/1981, 1º caderno, p. 4.
A Província do Pará
, O padre e o político, por Pe. Giovanni Gallo. Belém, 16/12/1985,
caderno, p. 11.
O Liberal
, Um padre que precisa ficar, por João Malato. Belém, 25/07/1981, caderno,
Opinião.
Diário do Pará
, Giovanni Gallo luta para inaugurar Museu este ano. Belém, 13/07/1984,
Interior.
Obras de referência
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo, Global, 2002.
COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural: cultura e imaginário. São Paulo,
Iluminuras, 1999.
______. “Produto Cultural” IN COELHO, Teixeira (org.). Dicionário Crítico de Política
Cultural: cultura e imaginário. São Paulo, Iluminarus, 1999.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem
Tupi. São Paulo, Melhoramentos, Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo, Perspectiva, 2003.
CUNHA, Newton. “Ação Cultural, animação cultural” IN COELHO, Teixeira (org.)
Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo, Perspectiva, 2003.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. NOVO DICIONÁRIO DA LÍNGUA
PORTUGUESA. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, S/D.
GRANDE DICIONÁRIO LAROUSSE CULTURAL DA LINGUA PORTUGUESA, São
Paulo, Nova Cultural, 1999.
161
GROSSMANN, Martin, RAFFAINI, Patrícia T., COELHO, Teixeira. “Museu” IN COELHO,
Teixeira (org.). Dicionário Crítico de Política Cultural: cultura e imaginário. São Paulo,
Iluminuras, 1999.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Enciclopédia dos
municípios brasileiros. V.14. Rio de Janeiro. IBGE, 1957.
MARTINS, Maria Helena Pires. “Ecomuseu” IN COELHO, Teixeira (org.) Dicionário Crítico
de Política Cultural: cultura e imaginário. São Paulo, Iluminarus, 1999.
RIBEIRO, Berta G. Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
Bibliografia referida
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión
del nacionalismo. México, Fondo de Cultura Econômica, 1993.
BAUBRILLARD, Jean.
Simulacros e simulações. Lisboa, Relógio d’água, 1991.
______. O sistema dos objetos. São Paulo, Perspectiva, 2004.
______. A sociedade de consumo. S/L, Edições 70, S/D.
BENJAMIM, Valter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” IN Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense,
1994.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica” IN: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO
Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
2005.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela & ALMEIDA, Mauro Barbosa de. Enciclopédia da
Floresta - o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo, Companhia das
Letras, 2002
CHAGAS JÚNIOR, Edgar M. & BARROS, Lilian. Marajó – conhecer e preservar. Inventário
Nacional de Referências Culturais. Belém, Iphan, Minc, 2004. (mimeo)
CLIFFORD, James. “On colleting arte and culture” IN The predicament of culture
Twentieth-Century Etnography, Literature and Arte. Cambridge, Havard University Press.
1994.
COUTO HENRIQUE, Márcio. O general e os tapuios: linguagem, raça e mestiçagem em
Couto de Magalhães (1864-1876), Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de
Antropologia da Universidade Federal do Pará, 2003, mimeo.
CRUZ, Miguel Evangelista Miranda da. Marajó: essa imensidão de ilha. São Paulo, M.E.M.,
1987.
162
FEIO JÚNIOR, Júlio Tavares. Ferra nas Fazendas. Belém, Smith Produções Gráficas Ltda,
2004.
FRADE, Isabela. O Neo-marajoara em comunicação” IN Logos: comunicação e
universidade. Rio de Janeiro, UERJ, Faculdade de Comunicação Social, 1990. Vol.1, n.1.
GALLO, Giovanni. O Homem que Implodiu. Belém, Secult, 1996.
_______. Marajó: a ditadura da água. Santa Cruz do Arari, Edições “O Nosso Museu”, 1997.
_______. Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje.
Cachoeira do Arari, PA, Museu do Marajó, 2005.
GARCIA CANCLINI, Néstor. As culturas populares no capitalismo. São Paulo, Brasiliense,
1983.
_______. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo,
EDUSP, 2003.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar. 1978.
_______. O Saber Local. Petrópolis, Vozes. 1998.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. “Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o
problema dos patrimônios culturais” IN ESTERCI, Neide, FRY, Peter, GOLDENBERG,
Mirian (orgs.). Fazendo Antropologia no Brasil. Rio de Janeiro, DP&A, 2001.
GUAPINDAIA, Vera. “Cultura Santarém: história e iconografia” IN Museu Paraense Emílio
Goeldi. Arte da terra: resgate da cultura material e iconográfica. Belém, SEBRAE, 1999.
GUERRA, José Wilton N. e SIMÕES, Renata da Silva. Equipamentos, usos e costumes da
Casa Brasileira. São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2000.
HOBSBAWM, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições” IN HOBSBAWM, Eric e
TERENCE, Ranger (org.). A invenção das tradições. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2002.
HOORNAERT, Eduardo. O Cristianismo Amazônico a Amazônia como refúgio religioso”
IN HOORNAERT, Eduardo (coord.) HOORNAERT, Eduardo História da Igreja na
Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1992.
JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. Belém, Cejup, 1992.
KOFES, Suely. Uma trajetória, em narrativas. Campinas, São Paulo, Mercado das Letras,
2001.
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia” IN: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína
(orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2005.
LÉVI STRAUSS, Claude. Introdução: História e Etnologia” IN Antropologia Estrutural.
163
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003.
LIMA, Tânia Andrade. “Cerâmica Indígena Brasileira” IN Suma Etnológica Brasileira. v.2.
Tecnologia Indígena. Petrópolis, Vozes/Finep, 1986.
LINHARES, Anna Maria Alves. Os múltiplos contextos dos objetos indígenas: uma etnografia
das bonecas de cerâmica Karajá. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará, 2004, mimeo.
MALINOWSKI, Bronislaw. “Características essenciais do Kula” IN Argonautas do Pacífico
Ocidental. São Paulo, Os Pensadores, 1978.
MARTINS JÚNIOR, Mário José. Codificação, acondicionamento e análise dos documentos
relativos ao Museu do Marajó e seu fundador Padre Giovanni Gallo. Relatório Técnico-
Científico/PIBIC/CNPQ, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 2005. (mimeo)
MATTOS, Sônia Missagia. Artefatos de gênero na arte de barro. Vitória, Edufes, 2001.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. “As atribulações de um doutor eclesiástico na Amazônia na
passagem do século XIX ou Como a política mexe com a Igreja Católica”. Revista de Cultura
do Pará, 12 (1), 1991, pp 61-79.
_____.Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico.Um estudo
antropológico numa área no interior da Amazônia. Belém, Cejup, 1995.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a diva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” IN
Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU, 1974.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. “Identidade cultural e arqueologia: valorização do patrimônio
arqueológico brasileiro” IN BOSI, Alfredo (org.) Cultura Brasileira: temas e situações. São
Paulo, Editora Ática, 2003.
MIRANDA NETO, Manoel José de. Marajó: desafio da Amazônia aspectos da reação a
modelos exógenos de desenvolvimento. Belém, EDUFPA, 2005.
MOLES, Abraham. O Kitsch. São Paulo, Perspectiva, 2001.
PEREIRA, Edith. Arte rupestre na Amazônia: Pará. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi,
São Paulo, UNESP, 2003.
PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro, Editora UERJ, 2000.
RIBEIRO, Berta G. Artesanato indígena: para quê e para quem?” IN FUNARTE. Instituto
Nacional de Artes Plásticas/ Projeto Visualidade Brasileira. As artes visuais na Amazônia:
reflexões sobre uma visualidade regional. Belém, Funarte, Secretaria de Educação e Cultura,
1985.
______. “As artes da vida do indígena brasileiro” IN GRUPIONI, Luís Donizete Benzi (org.)
Índios no Brasil. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
164
______. & van VELTHEM, Lúcia Hussak. “Coleções Etnográficas documentos materiais
para a história indígena e a etnologia” IN História dos Índios no Brasil, São Paulo,
FAPESP/Cia das Letras/SMS, 1992.
ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE of Great Britain and Ireland. Guia Prático de
Antropologia. São Paulo, Cultrix, 1971.
SAMAIN, Etienne. “Ver” e “Dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a
fotografia”. IN ECKERT, Cornélia & GODOLPHIM, Nuno. (orgs.). Horizontes
Antropológicos, n° 2, Antropologia Visual, PPGAS/UFRGS, 1995.
SCHANN, Denise Paul. A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da pré-
história na ilha do Marajó (400-1300 AD). Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997.
______.“Cultura marajoara: história e iconografia” IN Museu Paraense Emílio Goeldi. Arte da
terra: resgate da cultura material e iconográfica. Belém, SEBRAE, 1999.
______.“Origens e significados da cultura marajoara” IN Motivos ornamentais da cerâmica
marajoara: modelos para o artesanato de hoje. Cachoeira do Arari, PA, Museu do Marajó,
2005.
______. Arqueologia, blico e comodificação da herança cultural: o caso da cultura
marajoara” IN Revista Arqueologia Pública, nº 1, Campinas, Unicamp, 2006.
SCHWARCZ, Lilia Moritz, “Os museus etnográficos brasileiros: Polvo é povo, molusco
também é gente” IN O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais no
Brasil – 1870 – 1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
SLATER. Don. Cultura do consumo e modernidade. São Paulo, Nobel, 2002.
SUANO, Marlene. O que é Museu. São Paulo, Brasiliense, 1986.
VAN VELTHEM, Lúcia Hussak. O Museu do Marajó, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi.
2005. (mimeo).
VIANNA, João. A Fazenda Aparecida. Belém, SECULT, 1998.
VIEIRA, Ima Célia Guimarães. “Apresentação” IN GALLO, Giovanni. Motivos ornamentais
da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje. Cachoeira do Arari/PA, Museu do
Marajó, 2005.
WALDECK, Guacira. “A exposição ou “quando vai ser a feira?”” IN VELHO Gilberto (org.).
Cultura material: identidades e processos sociais. Rio de Janeiro, FUNARTE, CNFCP, 2000.
165
Referências disponíveis na internet
http://www.bpg.com.br
. Acessado em 24/09/2006.
http:// www.braziltour.com
. Acessado em 24/09/2006.
http://www.ceramicanorio.com/artepopular/ceramicamarajoara
. Acessado em 24/09/2006.
http://www.cyberartes.com.br
. Acessado em 24/09/2006.
http://www.icoaraci.com.br
.Acessado em 24/09/006.
http://losartesanos.com/indígena/marajoara.htm
. Acessado em 24/09/2006.
http://www. museudomarajo.com.br/atividades.cfm.
Acessado em 24/09/2006.
http://www.oficinadaarte.com.br.
Acessado em 24/09/2006.
http://produto.mercadolivre.com.br
. Acessado em 28/10/2006.
FERNANDES, José Guilherme dos Santos. “DO ORAL AO ESCRITO: implicações e
Complicações na Transcrição de narrativas Orais”. Outros Tempos IN
http://www.outrostempos.uema.br
, ISSN 1808-8031, p. 156-167. Acessado em 12/12/2005.
JESUS, Luiz Roberto Vieira de. “A arte marajoara da época da sua reprodutibilidade técnica”
IN http://www.ufpa.br/decom/roberto.pdf.
Acessado em 1/10/2006.
MENEZES, Ulpiano B. “Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço
público”. IN http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/238.pdf
. Acessado em 09/03/2006.
166
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo