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estilo médio do fazer literário, que não dá conta da problematização dos acontecimentos reais,
a não ser pela via do erotismo, como o fez Boccaccio em seu Decameron, mas no qual se
manteve aquém de um aprofundamento humano pertinente à problemática erótica. (ibid., p.
198-9)
Não obstante todas as dificuldades enfrentadas pelos escritores a partir do fim da Idade
Média, quando já se faziam notar nos saberes que se desenvolviam as propostas humanistas
que iriam desembocar no Renascimento, a classe burguesa ofereceu à literatura os meios para
a construção de uma mimesis da realidade mais solidificada
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. A intimidade do cotidiano,
ainda que fosse comum também ao principado e ao feudalismo, nunca se havia mostrado tão
intimamente e com tanta diversificação de matizes. Além disso, os conceitos de individuali-
dade, sofrimento e mortalidade
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, apresentados ao espírito humano pela Paixão de Cristo, tor-
nam-se essenciais para o realismo que servirá de base para a sociedade vindoura.
A visualidade realista promovida pelas encenações da Paixão de Cristo, comuns no
mundo medieval, recai muito mais substancialmente sobre a parte terrena do fenômeno, tor-
nando ilimitados os temas explorados pela arte realista
(ibid., p. 217-226). Dessa forma, con-
cluímos, a sociedade de fins da Idade Média precisou redescobrir uma realidade que se coa-
dunasse mais com a prática existencial, abandonando, se não totalmente, mas significativa-
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Antoine Compagnon questiona o valor de se discutir a mimesis como vetor da literatura realista. Trata-se,
segundo o autor, de um processo pelo qual a “pretensa imitação da realidade” favorece o objeto imitado frente ao
objeto imitante. Considera ele que existia uma inocência relativa à mimesis, como no marxismo de Georg Lu-
kács, que não é mais possível no século XX. Hoje, é preciso considerar que “recusar o interesse pelas relações
entre literatura e realidade, ou tratá-las como uma convenção, é, pois, de alguma maneira, adotar uma posição
ideológica, antiburguesa e anticapitalista. Mais uma vez a ideologia burguesa é identificada a uma ilusão lingüís-
tica: pensar que a linguagem pode copiar o real, que a literatura pode representá-lo fielmente, como um espelho
ou uma janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance”. COMPAGNON. O Demônio da
Teoria – literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 106-107.
Neste ponto, consideramos ser oportuno esclarecer que o veículo motor de nosso trabalho não é o de uma
compreensão de teorias ou críticas literárias que engendrem uma discussão acerca da validade deste ou aquele
modelo, conceito ou quaisquer parâmetros que estabeleçam pressupostos teóricos fundamentais da literatura. O
que buscamos, com nossa pesquisa, é, antes de tudo, compreender o sujeito que se intenta nos fazeres literários,
considerando a origem, o suposto apagamento, o ressurgimento e a permanência de sua constituição. Não enqua-
dramos nosso trabalho na discussão de propostas idealistas sobre o fazer literário, embora não seja nosso propó-
sito ignorar completamente a discussão projetada. Por ora, apenas optamos por não pôr em relevo o que se deve
validar ou não como pressuposto teórico.
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Tais conceitos são denominados, por Auerbach, como realismo “criatural” (neologismo que em alemão cha-
ma -se kreatürliches), o que expressa o sofrimento a que o homem é submetido como criatura mortal. (AUER-
BACH. op. cit., p. 215)