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Pós-Graduação em Ciência da Religião
Doutorado em Ciência da Religião
João Henrique dos Santos
Da conciliação possível à ruptura: uma análise dos
documentos de 1520 de Martinho Lutero
Juiz de Fora
2009
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João Henrique dos Santos
Da conciliação possível à ruptura: uma análise dos documentos de 1520 de Martinho
Lutero
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião, Área
de Concentração em Ciências Sociais da
Religião, do Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Juiz
de Fora, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Ciência da
Religião.
Orientador: Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias
Juiz de Fora
2009
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FICHA CATALOGRÁFICA
Santos, João Henrique dos.
Da conciliação possível à ruptura : uma análise dos documentos
de 1520 de Martinho Lutero / João Henrique dos Santos. – 2009.
214 f. : il.
Tese (Doutorado em Ciência da Religião)–Universidade Federal
de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.
1. Lutero, Martinho, 1483-1546. 2. Cristianismo - História. 3.
Reforma Protestante. I. Título.
CDU 284.
João Henrique dos Santos
Da conciliação possível à ruptura: uma análise dos documentos de 1520 de Martinho
Lutero
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião, Área de
Concentração em Ciências Sociais da Religião,
do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Ciência da Religião.
Aprovada em 03 de dezembro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Luís Henrique Dreher
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Volney José Berkenbrock
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Angelo Adriano Faria de Assis
Universidade Federal de Viçosa
_____________________________________________
Prof. Dr. Fabiano Fernandes
Universidade Federal de São Paulo
“Eu quase que nada não sei.
Mas desconfio de muita coisa”.
(João Guimarães Rosa, in Grande
Sertão: veredas, na fala de Riobaldo
Tatarana)
“É a tarefa de quem escreve a história: juntar o
que se tem por fatos, ainda que insuficientes,
eivados de fabulações ou contraditórios, e
procurar dar-lhes forma, coerência, movimento e,
se possível, rumo, no vão intento de recriar ou
imitar o passado”.
(Alberto da Costa e Silva, in Francisco Félix de
Souza – mercador de escravos, Prefácio)
Para você, a quem eu amo, “aragem de roseira, trigo do vento”.
“Y en nosotros nuestros muertos
pa’ que nadie quede atrás”.
(Atahualpa Yupanqui, “Los Hermanos”)
À abençoada memória de Argemiro e
Neide, ou, simplesmente, Dadai e Neidão,
meus pais; pelo que são, pelo que foram,
pelo que sempre serão, e que a tudo isso
assistem com olhos de eternidade.
À memória, imensa e doída saudade, de
Aline Boechat, “Cactus Kid”, amiga
inigualável, que fez e sempre fará parte do
melhor de minha vida; que viveu breve,
bela e intensamente e que está em paz no
Paraíso.
AGRADECIMENTOS
“Mas as coisas findas,
Muito mais que lindas,
Essas ficarão”.
(Carlos Drummond de Andrade)
O longo percurso de concepção e de elaboração desta Tese não teria sido possível sem
o concurso de tantos que se dispuseram a cooperar comigo para que se chegasse a bom termo.
Inicialmente, meu carinho e minha respeitosa gratidão ao meu orientador, Prof. Dr. Zwinglio
Mota Dias, que, desde o primeiro instante, acreditou e incentivou este projeto. De orientador
passou a amigo e a parte integrante do que há de melhor em minha vida.
Minha maior gratidão aos integrantes da banca de qualificação, Profs. Drs. Luís
Henrique Dreher e Volney José Berkenbrock, por todas as importantes observações quando da
qualificação, que me permitiram retraçar os caminhos e aprofundar as pesquisas neste projeto.
Agradeço a todos e a cada um dos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião, de modo especial aos Profs. Drs. Francisco Pereira Neto, hoje na UFPel, sem cujo
aceite inicial eu sequer poderia ter ingressado no Programa, e Fabiano Fernandes, hoje na
UNIFESP, com quem tive a oportunidade e o privilégio de partilhar um momento muito
intenso de troca de informações e experiências, que resultaram no enriquecimento deste
projeto. Enfim, Fátima, Dreher, Paulo Afonso, Faustino, Camurça, Volney, Vilmar, Sidnei,
Gross, a todos vocês a minha melhor gratidão. Um agradecimento muito especial a Antonio
Celestino, Secretário do PPCIR e um amigo capaz de resolver todos os problemas com um
sorriso nos lábios.
À terra querida das Minas Gerais, que tão maternamente me acolheu ao longo destes
anos, com sua telúrica força e a energia que fala à alma; ao povo bom das Minas Gerais, em
especial da cidade de Juiz de Fora, o meu muito obrigado.
Aos muitos e queridos amigos da Especializão, do Mestrado e do Doutorado do
PPCIR, a quem tentar citar nominalmente seria correr o grande risco de cometer a injustiça de
poder esquecer um ou outro nome, mas que me permito simbolizar na pessoa de Cynthia
Cavalieri Miguel, expresso minha gratidão e meu reconhecimento, e gostaria que soubessem
que este tempo aqui compartilhado com vocês, inclusive nas muitas atividades da
“cantinologia”, fez de mim um homem melhor. Presto uma especial homenagem à memória
da colega de doutorado Cláudia Cerqueira do Rosário, companheira de seleção, de congressos
e de muitas conversas, que faleceu quando esta Tese se encontrava quase concluída.
Agradeço à bibliotecária Larissa Carvalho Pinheiro, da Biblioteca Central/Centro de
Difusão do Conhecimento da UFJF, pela paciência e atenção ao rever comigo a formatação e
a normatização final da Tese.
À Magnífica Reitora da Universidade Gama Filho, Profa. Maria José Mesquita
Cavalleiro de Macedo Wehling, expresso minha gratidão por haver permitido e incentivado
que este projeto fosse levado adiante. Igualmente apresento meu respeito e meu maior
agradecimento ao Prof. Gilberto Chaves, a Ana Heloísa Raythz e a Patrícia Maia por todo o
apoio e amizade. Aos colegas do Curso de História, especialmente a Celso Péricles
Thompson, minha gratidão pelas importantes sugestões de leitura e críticas feitas. Agradeço
às “minhas meninas superpoderosas”, Cida, Gisele e Theo, por toda a imensa cooperação
comigo, criando uma amizade para muito além de todos os laços profissionais.
Aos funcionários, professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que, na reta final deste projeto, juntaram-
se à minha vida, meu muito obrigado pelas leituras críticas e pela paciência com que me
ouviram.
Aos amigos de Instituições estrangeiras, de modo especial os Drs. Marco Grilli e
Stefania Taurino, do Archivio Segreto Vaticano, e o Prof. Dr. Hans-Martin Barth, da
Universidade de Marburg, apresento o tributo de minha maior gratidão pelo acesso que me
permitiram às fontes primárias.
Ao Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata, da Universidade Federal de Ouro Preto, minha
maior gratidão por sua inestimável cooperação e por todo o estímulo e tão importante auxílio.
Com especial gratidão, meu agradecimento a Angelo Adriano Faria de Assis por sua tão
grande amizade.
A D. Vanna Piracinni, a Milena Duchiade e a toda a equipe da Nova Livraria Leonardo
da Vinci, por uma amizade que ultrapassa três décadas, meu muito obrigado de todo o
coração.
À muito querida amiga Tereza Boechat, cuja amizade para comigo atravessa o tempo e
todo tipo de provações, fortalecendo-se e aumentando a cada dia mais, minha maior gratidão,
lembrando que este doutorado começou com uma inscrição ganha por mim como presente de
aniversário.
A Janaína França, amiga querida, meu agradecimento por tanta coisa compartilhada. A
Esther Kuperman, meu melhor muito obrigado por todo o incentivo desde o início. A Priscilla
Babo, meu muito obrigado por todo o carinho. A Gabriela, meu obrigado com um carinho que
não cabe em palavras.
À amiga Maria Angela de Oliveira, que me permitiu passar ausente de casa longos
períodos de forma despreocupada, apresento minha gratidão por sua solicitude e imensa
amizade, coisas de um anjo de guarda de carne e osso.
Aos meus familiares agradeço por tudo o que representam em minha vida. A tia
Elisinha, de modo especial, pela figura materna que sempre encarnou pra comigo,
particularmente depois que minha mãe morreu, meu melhor muito obrigado por tudo e para
sempre. Rendo um preito de gratidão à memória de tia Lourdes, que morreu pouco antes de
esta Tese estar finalizada.
A Wotan, Príncipe, Happy, Budega e Soneca, que alegram sempre meu coração, meu
muito obrigado por serem aqueles que, quando eu lhes afago a cabeça, não exigem que eu
faça sentido ou me explique.
Se este é, também, um momento de despedida, de “colocar as cartas em regra”, que
haja, para todos e cada um de vocês, bons ventos e mares tranqüilos. Bem hajam!
Como eu escrevi em minha Dissertação de Mestrado, “não creio que Deus leia teses e
dissertações”, mas em todo caso, uma vez mais, a Ele dedico a minha maior gratidão; afinal,
no melhor espírito desta Tese tão permeada pelo latim, meum studio habeo tanto: omnia
magis gratia Dei est.
RESUMO
A presente Tese de Doutorado tem seu foco nos principais tratados escritos por
Martinho Lutero no ano de 1520, dos quais os mais importantes são: Sobre o cativeiro
babilônico da Igreja; Sobre a liberdade do cristão e a Carta à Nobreza Cristã da Nação
Alemã sobre a melhora do estamento cristão. Tais documentos podem ser considerados como
o “programa da Reforma”, visto estabelecerem novas bases e postulados teológicos, assim
como fundamentarem nova estrutura e ordenamento eclesiástico. Portanto, o que se pretende
mostrar é que a Reforma efetivamente ocorreu em 1520, e não em 1517. Escritos antes de sua
excomunhão, e sendo, no limite, as razões últimas desta, os documentos apontam para uma
irreconciliável ruptura com Roma. Será apresentado também de que forma esses escritos
foram lidos pela Igreja Romana e pela nobreza e povo alemães, mostrando as repercussões
nesses estamentos. A Introdução apresentará as questões gerais que nortearam o trabalho,
traçando o plano geral da Tese. O Capítulo I mostrará o percurso intelectual e humano de
Martinho Lutero até a redação dos documentos estudados. O Capítulo II apresentará um
panorama da Igreja Católica Romana e da Cristandade do Cisma do Ocidente (1378-1418) até
o momento da eclosão da Reforma, focando especificamente na questão da crise de auctoritas
e potestas, mostrando a crise do projeto hierocrático, e na questão das indulgências. Neste
Capítulo, ainda, será apresentado o estado do Sacro Império Romano-Germânico quando da
morte de Maximiliano I e da eleição de seu neto Carlos V, em 1519. O Capítulo III
apresentará os tratados e sua repercussão nos diferentes estamentos da sociedade alemã e na
Igreja Romana. A Conclusão retomará e aprofundará as questões apresentadas na introdução,
à luz do exposto e desenvolvido nos três capítulos precedentes.
Palavras-Chave: Martinho Lutero, História do Cristianismo, Reforma Protestante.
ABSTRACT
This Thesis focuses on the major treatises written by Martin Luther in 1520, of which
the most important are: On the Babylonian captivity of the Church; On the freedom of the
Christian and the Address to the Christian Nobility of the German Nation concerning the
improvement of the Christian Estate. These documents may be taken as the “program of the
Reformation”, as they established new theological basis and postulates, and founded a new
ecclesiastical structure. Thus, what is intended to state is that the Reformation effectively
happened in 1520, and not in 1517. Written shortly before his excommunication and being, at
last, the ultimate reasons for it, such treatises point to an irreconcilable rupture with Rome.
The work presents explanations on how these writings were read by the Roman Church and
by the German nobility and people, pointing the repercussions in such estates. Introduction
will present the general questions which guided the research, outdrawing the main plan of the
Thesis. Chapter I will show Martin Luthers human and intellectual path towards the writing
of the studied treatises. Chapter II will describe the situation of the Roman Catholic Church
and that of the Christendom from the West Schism (1378-1418) to the eve of the Reformation,
focusing particularly on the crisis of auctoritas and potestas, showing the crisis of the
hierocratic project, and the question of the indulgences. This Chapter will introduce the
situation of the Holy Roman Empire at the moment of the death of Maximilian I and the
election of his grandson Charles V, in 1519. Chapter III will present the treatises and their
repercussions on the different estates of the German society and of the Roman Church.
Conclusion will retake and deepen the questions presented in the Introduction, after all
exposed in the three previous Chapters.
Keywords: Martin Luther, History of Christianity, Protestant Reformation.
ZUSAMMENFASSUNG
Die vorliegende Dissertation kreisst um die Abhandlungen, die von Martin Luther im
Jahr 1520 verfasst worden sind, dessen Hauptwerke Von der Freiheit eines Christenmenschen,
Von die babylonische Gefangenschaft der Kirche und An den christlichen Adel deutscher
Nation von des christlichen Standes Besserung sind. Solche Dokumente können als
“Programm der Reformation” betrachtet warden, denn sie stellen nichT nur neue theologische
Grundlagen, sondern auch Strukturen und Richtlinien für die kirchliche Ordnung. Sie wurden
vor der Exkommunikation Luthers niedergeschrieben und ihr Innhalt richtet sich frontal und
unversöhnlich gegen Rom. Deswegen wird hier versucht zu zeigen, dass die Reformation
nicht im Jahr 1517 sondern 1520 begonnen hat. Es wird weiterhin auf die Interpretation
solcher Texte durch die römische Kirche, durch den deutschen Adel und durch die deutschen
Völker Bezug genommen. In der Einführung wird die allgemeine Fragestellung sowie der
Plan der ganzen Arbeit vorgeführt werden. Im ersten Kapitel wird dann den Lebenslauf
Martin Luthers bis zur Abfertigung der genannten Texte behandelt. Im zweiten Kapitel wird
eine Übersicht über die katholisch-römische Kirche und die Christenheit in der Zeit vom
Großen Morgenländischen Schisma (1378-1418) vor dem Ausbruch der Reformation
gezeichnet. In diesem Kontext muss man vor allem die Krisis der auctoritas und potestas und
die Krisis des hierokratischen Projekts und die Ablassfrage in Betracht ziehen; dann aber auch
die Lage des Heiligen Römischen Reichs Deutscher Nation um die Zeit des Todes von
Maximiliam I und der Wahl seines Enkels Karl V (1519). Im dritten Kapitel werden die
obengenannte Traktate und ihre Wirkung in den verschiedenen Schichten der römischen
Kirche und der deutschen Gesellschaft behandelt. Zum Schluss werden die Fragen wieder
aufgenommem, die in der Einführung vorgestellt und in drei Kapiteln diskutiert worden sind.
Stichworte: Martin Luther, Geschichte des Christentums, Protestantische Reformation.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Gravura 1 – Cristo sentado sobre o arco-íris julgando a humanidade........................
44
Mapa 1 – O Sacro Império Romano-Germânico em 1512.........................................
108
Gravura 2 – Lutero queimando a Bula e “os livros do Papa e seus discípulos”.........
156
Gravura 3 – Hercules Germanicus............................................................................. 159
Gravura 4 Primeiro sermão publicado de Lutero e divulgado amplamente, Um
sermão pregado em Leipzig........................................................................................
161
Gravura 5 – O papa-besta de sete cabeças..................................................................
171
Gravura 6 – O “Papa-Asno”....................................................................................... 172
Gravura 7 – Sátira aos adversários de Lutero.............................................................
173
Gravura 8 – Martinho Lutero como Jerônimo............................................................
185
Gravura 9 – Lutherus Triumphans..............................................................................
185
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................
16
1.1 Dramatis Personæ......................................................................................
................
39
2 O HOMEM NO TEMPO, O TEMPO DO HOMEM................................................
40
2.1 Um monge chamado Martinho: o percurso até Wittenberg, 1517........................
42
2.1.1 A infância e a juventude.............
...............................................................................
42
2.1.2 Vocação.
....................................................................................................................
48
2.1.3 Agostiniano.............
..................................................................................................
49
2.1.4 Professor e os primeiros escritos.
.............................................................................
52
2.1.5 “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus”.................................................................................................................................
54
2.2 Um homem chamado Lutero: das “95 Teses” aos escr
itos de 1520.......................
58
2.2.1 Véspera de Todos os Santos, 1517
............................................................................
58
2.2.2 A questão das indulgências.............................................................
..........................
62
2.2.3 O Sermão Sobre a Indulgência e a Graça
................................................................
66
2.2.4 A audiência com o Cardeal Cajetan (o Debate de Augsburgo)
................................
67
2.2.5 O Debate de Leipzig
..................................................................................................
70
3 A SANTA IGREJA E O SACRO IMPÉRIO..............................................................
78
3.1 A crise da auctoritas e da potestas: o estado da Igreja no início do século XV.....
79
3.1.1 O Grande Cisma do Ocidente
...................................................................................
80
3.1.2 O fim do longo cisma do Ocidente e do antipapado de Avinhão..
............................
83
3.1.3 Concílio ou Papa? Papa ou Príncipes? Quem detém auctoritas e potestas?
...........
84
3.2
Os reformadores antes da Reforma: Hus e Wycliff................................................
93
3.2.1 As questões das indulgências e das relíquias...........................................................
99
3.3 Alexandre, Júlio e Leão: Vênus, Marte e Minerva.................................................
100
3.4 Carlos V e o Sacro Império Romano-Germânico...................................................
107
3.4.1 Os principais atores no interregno entre Maximiliano I e Carlos V........................
110
4 A DURA PENA DO MONGE ......................................................................................
118
4.1 Os “escritos menores”...............................................................................................
120
4.1.1 As Quatorze Consolações para os que Sofrem e Estão Onerados...........................
120
4.1.2 A Resposta de Lutero à Condenação Doutrinal feita por Alguns Mestres de
Lovaina e Colônia.............................................................................................................
121
4.1.3 Sobre o Papado em Roma, contra o Celebérrimo Romanista de Leipzig................
125
4.1.4 Um Sermão sobre a Excomunhão.............................................................................
128
4.1.5 Uma conclusão sobre os “escritos menores”...........................................................
129
4.2 Os “escritos maiores”.................................................................................................
131
4.2.1 Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja....................................................................
131
4.2.2 Carta de Lutero a Leão X, Sumo Pontífice...............................................................
137
4.2.3 Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã............................................
143
4.2.4 Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã acerca da Melhora do Estamento
Cristão..............................................................................................................................
146
4.2.5 Porque os Livros do Papa e de Seus Discípulos Foram Queimados pelo Doutor
Marinho Lutero..................................................................................................................
151
4.3 As repercussões..........................................................................................................
157
4.4 Os leitores do monge: modernidade, teologia e política.........................................
165
4.5 Seria inevitável a ruptura? .......................................................................................
180
5 CONCLUSÃO...............................................................................................................
188
REFERÊNCIAS...............................................................................................................
197
“In namen Gottes
Fang ich an:
Wo Gott nicht hilft
Wird nichts erreicht,
So Gott uns hilft
Wird alles leicht;
Drum, ist das beste
Was ich kann,
In namen Gottes
Fang ich an!
“Em o nome de Deus
Eu vou começar:
Sem sua ajuda,
Nada se fará;
Mas Deus auxiliando,
Tudo aliviará.
É portanto o melhor
Que eu posso tentar.
Em o nome de Deus
Eu vou começar!”
INTRODUÇÃO
Hans Baldung Grien – Lutero (1521)
17
1 INTRODUÇÃO
“Existem tantos Luteros quanto existem livros sobre
Lutero.
(Heinrich Boehmer, historiador alemão)
Quando da defesa de minha dissertação de Mestrado, o Prof. Carlos Ziller
Camenietzki fez duas observações que julguei extremamente marcantes e relevantes, dentre as
muitas feitas por ele. A primeira foi a da dupla perspectiva sobre olhar a religião: ou como um
fenômeno que uniria os homens a uma divindade ou então como um fenômeno que uniria os
homens entre si, em torno de ideias e de ideais. A outra observação foi sobre a possibilidade
de se entender a Reforma Protestante ou pelo prisma religioso ou então pelo prisma das
transformações econômicas, políticas e sociais; enfim, vê-la “a partir de dentro” e não “de
fora para dentro”.
Não me pareceu que se tratava, em ambos os casos, de entender tanto a religião como
a Reforma sob perspectivas “com” e “sem” Deus, mas sim de percebê-las a partir de um ponto
de observação que contemplasse partida e chegada como centradas no homem e na História.
Expresso minha maior gratidão ao Prof. Ziller por ter me despertado para uma abordagem
muito mais enriquecedora, porque muito mais fecunda, tanto da religião em si como da
Reforma Protestante, em particular.
Neste sentido, é necessário esclarecer que será por mim sempre usada a expressão
Reforma, e não reforma, por entender que se tratou de um movimento amplo, decisivo, dos
mais importantes da História, não se constituindo em uma mera reforma de hábitos ou de uma
reforma superficial da Igreja.
Reforma ou Reformas? A diversidade na situação de cada país ou região na Europa no
século XVI fez com que a Reforma Protestante não tenha acontecido de maneira uniforme em
todos os países onde ela se deu. Não pode, portanto, ser tratada como um fenômeno
homogêneo. No caso, a Reforma à qual esta pesquisa se refere é a Reforma na Alemanha em
seus momentos iniciais.
As leituras motivadas por essas observações evidenciaram-me que a historiografia
parece majoritariamente entender a Reforma Protestante por um viés confessional, muitas
18
vezes moralista, quase sempre anacrônico, vendo-a “de dentro”, como um movimento
eminentemente religioso, opondo Reformadores a “Romanistas”, íntegros a corruptos,
moralizantes a imorais. Não são todos os historiadores da Reforma que buscam vê-la a partir
das teias sociais e econômicas.
A integração de diversos saberes constitui-se em um desafio a ser superado. Não se
trata de oposição entre história cultural e história social ou entre história cultural e história
econômica, por exemplo. Em verdade, o que se buscou foi uma integração desses saberes, que
não são excludentes mas sim complementares. O objeto esteve presente no foco da pesquisa
todo o tempo, sendo, algumas vezes, trocada a perspectiva pela qual era visto. Esta percepção
variada não levou a uma confusão metodológica, mas buscou enriquecer o resultado final.
Como postula Jenkins,
passado e história são coisas diferentes. Ademais, o passado e a história não
estão unidos um ao outro de tal maneira que se possa ter uma, e apenas uma
leitura histórica do passado. (...) o mesmo objeto de investigação pode ser
interpretado diferentemente por diferentes práticas discursivas, (...) ao mesmo
tempo em que em cada uma dessas práticas diferentes leituras
interpretativas no tempo e no espaço.
1
Eis uma das maiores dificuldades ao se mapear o percurso da Historiografia da
Reforma. Uma expressiva maioria dos estudos dedicados a ela vem marcado, como dito,
pelo confessionalismo ou, ao menos, é acusada de ser confessional. Ernst Troeltsch, na
introdução de sua obra Protestantism and Progress, registra as dificuldades para a integração
desses saberes e a construção do conhecimento, ao afirmar que “o pensamento construtivo
não irá, de fato, seguindo o método da antiga teologia, meditar sobre os caminhos da
Providência”
2.
Eis a linha metodológica que busquei seguir, atento ao aviso de Carl Schmitt
de que
existe uma têmpera anti-romana que tem nutrido a luta contra o papismo, o
jesuitismo e o clericalismo com uma hoste de forças religiosas e políticas que
tem impelido a história europeia por séculos. Não somente fanáticos sectários,
mas gerações inteiras de piedosos protestantes e cristãos greco-ortodoxos têm
visto em Roma o Anticristo ou a prostituta babilônica do Apocalipse.
3
1 JENKINS, Keith. A história repensada. S. Paulo: Contexto, 2007, p. 24.
2 TROELTSCH, Ernst. Protestantism and Progress a historical study of the relation of protestantism to the
modern world. Eugene: Wipf and Stock, 1999, p. 5.
3 SCHMITT. Carl. Roman Catholicism and political form. Chicago: Chicago University Press, 2006, p. 3.
19
Um exemplo acerca das dificuldades envolvidas na pesquisa da Historiografia da
Reforma em razão da filiação religiosa do autor pode ser tirada de um ensaio datado de 1840,
no qual Thomas Babington Macaulay observava que “porque é que o Protestantismo fez
tanto, sem contudo fazer o bastante, porque é que a Igreja de Roma, havendo perdido uma
grande parte da Europa, não só cessou de perder, mas reconquistou quase metade do que tinha
perdido, são certamente questões muito curiosas e importantes”
4
.
No plano geral da historiografia, emergem duas visões sobre a Reforma: ou ela foi
uma “obra pessoal de Lutero”, como assinalam, entre outros, Tüchle, Bouman e Le Brun
5
, ou
resultou de uma grande crise que se abatia sobre a Cristandade desde o Grande Cisma do
Ocidente, a partir de 1378. O primeiro enfoque, excessivamente personalista, parece esvaziar
de significados a crise do mundo feudo-burguês que marcou a transição do medievo para a
modernidade. Centra todo o foco nas ações, pensamentos e na própria vida de um único
homem. A perspectiva marxista despersonaliza a Reforma, entendendo-a como um
movimento resultante da agudização da crise que atingia a sociedade europeia e,
particularmente, a alemã, no início do século XVI.
Um exemplo a ser tomado da abordagem marxista é a de Antonio Gramsci, que indaga
se “não seria a Reforma uma crise do pensamento filosófico e científico, ou seja, do
comportamento em relação ao mundo, da concepção de mundo?”
6
. A perspectiva gramsciana
esvazia a Reforma de vieses teológicos, ao afirmar que “este movimento, que se comunica ao
povo, é mais uma crise (...), naturalmente ritmada segundo a grande revolução germânica, do
que um processo de purificação e de elevação religiosa”
7
. Para o filósofo italiano, “o portador
da Reforma foi o povo alemão em seu conjunto, como povo indiferenciado, não os
intelectuais”
8
, diminuindo desta forma o papel de um homem específico Lutero e o de
toda uma categoria os intelectuais na formulação e condução da Reforma, por outro lado,
introduz uma categoria que aparece com pouca frequência nas análises sobre a Reforma, que é
4 BABINGTON MACAULAY, Thomas. Ensaios Históricos tomo II. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Nacional, 1940, pp. 253-254.
5 TÜCHLE, Herman, BOUMAN, C. A. e LE BRUN, Jacques. Nouvelle Histoire de l’Église tome 3: Réforme
et Contre-Réforme. Paris: Seuil, 1968, pp. 53-124.
6 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 5 O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 306-307.
7 Idem, p. 306.
8 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 4 – Temas de cultura, ação católica, americanismo e
fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 41.
20
o povo alemão, quase somente mencionado pela historiografia quando se aborda a Guerra dos
Camponeses (1524-1525).
Como um contraponto a essa perspectiva de Gramsci, que exclui os intelectuais, deve
ser lembrado que, de fato, foram os intelectuais como Lutero, Karlstadt, Philip Melanchton e
George Spalatino, entre outros, que produziram os documentos de contestação ao absolutismo
papal e demandando reformas na Igreja. Mais que isso, Lutero dirigiu grande parte de seus
escritos de 1520 a intelectuais
9
, como o teólogo Nicolau von Amsdorf, professor em
Wittenberg, a quem ele dedicou a introdução da “Carta à nobreza cristã da Nação Alemã”.
Esta, escrita em junho de 1520, particularmente, é endereçada aos mais altos estamentos da
sociedade alemã, inclusive ao recém-eleito Imperador Carlos V, que ainda não havia sido
coroado (eleito em 28 de junho de 1519, Carlos V somente foi coroado em outubro de 1520).
A análise da situação do Sacro Império Romano-Germânico e da Igreja Católica nos
anos imediatamente anteriores aos eventos estudados levou à necessidade de uma abordagem
da história eclesiástica. Quanto a isto, por mais que se deseje distanciar da abordagem
metodológica clássica, instituída por Eusébio de Cesareia em sua História Eclesiástica, do
século IV, não é algo que se consiga de modo completo. Assim, mesmo tendo incorporado
análises contemporâneas advindas da História Social e da História Cultural – em alguns casos,
como o das indulgências, transitando também pelos domínios da História Econômica e da
História Política –, não consegui afastar-me do modelo de História como narrativa”, de
Eusébio.
O Grande Cisma do Ocidente foi o ponto de partida para a montagem do cenário que
tem como pano de fundo a discussão do conciliarismo em oposição ao papalismo desde o
final do século XIV. Da mesma forma, a sucessão dos pontífices no período compreendido
entre 1492 e 1520 serviu para a apresentação das questões que compuseram o cerne das
argumentações de Lutero. A relevância do Cisma do Ocidente e sua vinculação com a
Reforma é apontada, entre outros, por Lortz, que afirma que “se bem que o cisma do Ocidente
conservou substancialmente a unidade da Igreja sacramental, visível e estruturada
hierarquicamente, sob a cabeça suprema do papa, não se deve esquecer que a unidade da
9 Dos três grandes tratados, dois são escritos em latim, para um público primário de teólogos, o que valoriza a
participação dos intelectuais nos debates no Início da Reforma.
21
Igreja se viu com o cisma extraordinariamente ameaçada e debilitada”
10
, para completar
dizendo que “o problema da unidade da Igreja não era mais do que uma parte de uma questão
mais ampla, para cuja solução se trabalhava desde Inocêncio III, e que durante o século XIV
se converteu em algo urgentíssimo: a questão da reforma em geral”
11
. Esse nculo torna
válido o marco referencial inicial tomado para a análise do estado da Igreja que se tomou
nesta Tese.
A análise dos escritos de 1520 de Lutero revela que a abordagem marxista aproxima-
se de uma melhor compreensão dos eventos, uma vez que os documentos apontam para uma
série de crises e tensões no seio da sociedade alemã, dos quais Lutero foi, a um tempo,
intérprete e inspirador. Em uma primeira observação, três elementos políticos distintos
emergem desses escritos de Martinho Lutero: a questão da liberdade e da servidão, a questão
da obediência e a questão do nacionalismo. Esses três pontos com especial ênfase para o
último foram bastante explorados pelos atores políticos na área do Sacro Império,
especialmente os alemães. Não se pode esquecer que, no plano doutrinal, o protestantismo
contribuiu para reforçar a distinção entre o domínio da religião e o da vida social. A afirmação
de Nay, de que “em seus escritos, Lutero e Calvino lembram o caráter divino de todo poder
secular”
12
deve ser lida de forma bastante relativizada: esta é uma formulação de alguns
textos, mas que não reflete, em absoluto, o pensamento de Lutero sobre o poder secular. Faz-
se necessário enfatizar que os escritos políticos do Reformador formulam uma clara distinção
entre a vida espiritual e a vida em sociedade, com a sendo dependente da consciência
individual, enquanto que a lei comum rege a vida social.
Quentin Skinner
13
sustenta que “a teologia luterana carrega consigo duas implicações
políticas, da maior importância, que juntas indicam ao máximo o que é distintivo e influente
sobre seu pensamento social e político”. Skinner desenvolve essas implicações
14
, que podem
ser sumarizadas na indicação dos dois pontos indicados: a negação de que a Igreja tenha
poderes jurisdicionais e, portanto, tenha o direito de regular aspecto da vida cristã; e a defesa
10 LORTZ, Joseph. Historia de la Iglesia en la perspectiva de la historia del pensamiento. Madrid: Cristiandad,
1982, vol. 1, p. 621.
11 Ibidem.
12 NAY, Olivier. História das idéias políticas. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 187.
13 SKINNER, Quentin. The foundations of the modern political thought vol. 2, p. 12. New York: Cambridge
University Press, 2005.
14 Idem, pp. 12-19.
22
da autoridade secular, esta como necessidade de preencher o vácuo causado pelo afastamento
da Igreja da esfera jurisdicional do poder secular. Salvatore Veca, no verbete “Política” da
Enciclopédia Einaudi, escreve que “o grande projeto de reforma da autoridade não esconde a
sua vocação de ‘parricídio’: o problema não pode ser senão o de cortar a cabeça ao rei”
15
.
Por que 1520? Por que os escritos desse ano? Se, efetivamente, fica virtualmente
impossível estabelecer quando se deram os primeiros passos para iniciar a Reforma da Igreja,
considerando-se, por exemplo, os escritos de John Wycliff e Jan Hus, nos séculos XIV e XV,
convencionou-se estabelecer como marco inicial da Reforma a data de 31 de outubro de 1517,
quando Martinho Lutero afixou em Wittenberg as suas “95 Teses”, na véspera da festa de
Todos os Santos. Eis, portanto, o objeto da pesquisa emergindo: houve algum momento em
1520 no qual a ruptura pudesse ter sido evitada? Os documentos de Martinho Lutero desse
ano apontam ricamente para uma mais correta definição sobre as marchas e contramarchas
havidas em 1520. Esta foi a hipótese norteadora de toda a pesquisa. Se o papado e a Cúria se
aperceberam do movimento inaugurado por Lutero a partir de 1517, o governo do Império
o percebeu em 1520. Como se nos Comentários de Carlos Quinto, “naqueles tempos
[1520], começaram a pulular as heresias de Lutero na Alemanha e as comunidades na
Espanha”
16
.
Os debates que se produziram em sequência a essa manifestação atravessaram os anos
de 1518 e 1519, culminando com o famoso “Debate de Leipzig”, que contrapôs o teólogo
papal Johann Eck e o teólogo Andreas Karlstadt, apoiador das teses de Lutero, além do
próprio Lutero. Os desdobramentos desse Debate resultaram na radicalização dos discursos de
ambos os lados. Lutero, em 1520, redigiu documentos que se constituíram no que se poderia
chamar de “Programa da Reforma”, dirigindo-se à nobreza alemã, aos teólogos e ao povo
simples. Após esses documentos, o que poderia ainda resultar em uma conciliação possível,
orientou-se a uma ruptura incontornável.
Importante ressaltar que o Debate serviu para estimular a discussão sobre as rias
questões importantes sobre a Igreja que se levantavam de modo mais concreto a partir de
1517. Eck apontou semelhanças entre a doutrina de Lutero e a de Jan Hus, condenado pelo
15 VECA, Salvatore. Política. In ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopédia Einaudi volume 22: Política:
Tolerância/Intolerância. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, p. 24.
16 DE LETTENHOVE, Kervyn. Commentaires de Charles-Quint. Bruxelas: F. Heussner, 1862, p. 15.
23
Concílio de Constança (1414-1418). Ao final do Debate, que durou de 27 de junho a 15 de
julho, Lutero afirmou que “um Concílio pode algumas vezes errar. Nem a Igreja nem o Papa
podem estabelecer artigos de fé. Estes devem vir da Escritura”
17.
Como um desdobramento
deste, em agosto e em novembro de 1519, respectivamente, as Faculdades de Teologia de
Colônia e de Lovaina, centros referenciais de produção teológica àquela época, entraram na
controvérsia, condenando algumas das proposições de Lutero, declarando-as heréticas. Tais
condenações foram publicadas em fevereiro de 1520, tendo o mesmo Johann Eck publicado
em abril daquele ano um escrito em defesa do primado do Papa, refutando e criticando
duramente a posição de Lutero sobre a matéria.
A proposição da qual se parte é a de que a Reforma Protestante, efetivamente, iniciou-
se a partir dos escritos de Lutero de 1520, e não com a afixação das “95 Teses”. Os escritos de
Lutero anteriores a 1520 são focados unicamente na dimensão espiritual, muitos de fulcro
pietista, de fundo eminentemente moralista e não tocam em questões da disciplina ou
administração eclesiástica, ainda que, entre 1517 e 1520, suas críticas à simonia, ao abuso de
autoridade eclesiástica, à imoralidade do clero e à venda de indulncias tenham apontado
uma rota de colisão com a Igreja Romana.
Em 1520 houve uma nítida inflexão na orientação dos escritos, sobretudo após a
redação da Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã sobre a melhora do Estamento Cristão,
culminando com a ação simultaneamente religiosa e política de queimar a Bula Papal Exsurge
Domine em público, em 15 de dezembro. Citando Hannah Arendt, em Vida Ativa, “discurso e
ação são as modalidades em que os seres humanos se apresentam uns aos outros não como
objetos, mas como homens”
18
. Em 15 de junho de 1520, o Papa Leão X assinou a Bula
Exsurge Domine, na qual afirmava: condenamos, reprovamos e rejeitamos cada um desses
erros como heréticos, escandalosos, falsos, ofensivos aos ouvidos piedosos ou sedutores aos
espíritos simples, e contrários à verdade católica”
19
; e concedia a Lutero um prazo de sessenta
dias para que se arrependesse publicamente e, após fazer penitência, retornasse ao seio da
Igreja abjurando todos os seus escritos, sob pena de excomunhão maior, que incluiria também
os seus seguidores. É exatamente essa íntima relação entre o discurso e a ação, ou, de que
17 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – vol. 1. S. Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 78.
18 Apud RIVA, Franco. Um abraço originário: palavra e política. In
MARTINI, Carlo Maria e MAGGIONI, B..
A política e a palavra. Bauru: EDUSC, 2006, p. 9.
19 ASV Reg. Vat. 1160, f. 251r-259v.
24
forma a ação se apropriou e deu vida ao discurso que a legitimava ou estimulava, que, no caso
dos escritos de Martinho Lutero, se procurou mostrar ao longo desta pesquisa. Nas palavras
de Carlo Maria Martini, “o ícone da força da palavra, seja da palavra divina, revelada, seja da
palavra humana, aponta para a ligação entre política e religião; ambas precisam da palavra,
não só nas grandes linhas estruturais, mas também em um epifenômeno cotidiano”
20.
Foi nesse contexto que Lutero escreveu, nesse ano específico, importantes documentos
que iam desde escritos programáticos, como a Carta à nobreza cristã da nação alemã, acerca
da melhoria do estamento cristão (“An den christlichen Adel deutscher Nation von des
christlichen Standes Besserung”), passando por considerações teológicas sobre os
sacramentos e sua disciplina, em Sobre o cativeiro babilônico da Igreja (“De captivitate
babylonica Ecclesiae”), indo até orientações para a vida prática dos cristãos, como a “Breve
forma dos Dez Mandamentos, Breve Forma do Credo e Breve Forma do Pai-Nosso”, que
viriam a se converter posteriormente no Catecismo Menor. A esses escritos somou-se uma de
suas mais importantes obras: Sobre a liberdade cristã (“De libertate christiana”). Também
vários escritos e Sermões, nos quais defendeu sua doutrina e atacou a doutrina romana, foram
por ele produzidos nesse ano, devendo ser destacada a carta que ele escreveu em Wittenberg
datando-a de 6 de setembro de 1520, endereçada ao Papa Leão X, na qual este é tratado como
refém da Cúria Romana. Assim, pode se dizer que os documentos de Martinho Lutero de
1520 são fundantes da Reforma da Igreja, derivando daí sua importância maior.
O conjunto de documentos que se analisou nesta tese foi bastante limitado em seus
recortes espaço-temporal e autoral, visto a vastidão de toda a documentação envolvendo os
escritos de Lutero e suas refutações tornar inviável sua análise. O que se quis nesta tese foi
mostrar como Lutero foi lido em Roma e na Alemanha, para isso buscando trazer à luz o
contexto da redação de cada um dos documentos analisados.
Carlo Ginzburg, em sua obra O juiz e o historiador, na qual estabelece comparações
entre esses dois ofícios, apresenta uma questão interessante acerca da questão da prova e da
verdade:
as profissões de ambos, historiadores e juízes, baseia-se na
possibilidade de provar, de acordo com regras dadas, que x fez y, na
20 MARTINI, Carlo Maria e MAGGIONI, B.. A política e a palavra. Bauru: EDUSC, 2006, p.50.
25
qual x pode igualmente indicar o protagonista (talvez inominado) de um
evento histórico (...). Obter a prova, entretanto, nem sempre é possível
e, mesmo quando o é, o resultado será mensurável em termos de
probabilidade (talvez 99,9 por cento), não de certeza absoluta.
21
Eis uma das maiores dentre as dificuldades que se apresentam ao historiador que se
dedica a estudar a Reforma Protestante: muitas vezes, os indícios são insuficientes para que se
forme uma sólida conclusão acerca daquilo que se queria afirmar, da hipótese que se desejava
demonstrar. Nesta tese, particularmente, a teia de relações se mostrou muito mais complexa à
medida que se aprofundava a pesquisa.
Para compreender o tempo do homem, julguei necessário entender o homem no
tempo. Daí a tese iniciar-se com um percurso biográfico do Reformador alemão, sem qualquer
outra pretensão que não a de situá-lo e contextualizá-lo. Dentre as dificuldades encontradas,
sem dúvida a questão da objetividade e da imparcialidade acerca de Lutero foi a maior.
Retratado como santo ou demônio, como homem de nobres e elevados ideais ou como um
bêbado insubordinado e devasso, a figura de Lutero presta-se a várias apropriações, sendo,
sem qualquer exagero, um dos personagens mais controversos da História. A visada lançada
sobre Lutero refletia talvez muito mais qual a pertença religiosa do autor do que a imagem
real do Reformador.
Robert Kolb
22
recorda que, em 1529, Johannes Cochlaeus, um adversário de
primeira hora e também o primeiro biógrafo de Lutero, descreveu o Reformador como “tendo
sete cabeças”
23
. Kolb salienta que, por outro lado, “para alguns de seus seguidores, o
Reformador funcionou como um profeta que substituiu os papas e concílios como
adjudicantes ou autoridade secundária (interpretando como primeira autoridade a Escritura)
na vida da Igreja”
24
. Scott Dixon afirma com muita propriedade que
a Reforma significou muitas coisas diferentes para muitas pessoas diferentes,
mesmo que elas tenham feito uso dos mesmos símbolos e partilhado das
mesmas referências. Alguns viram Lutero como um pregador e um pastor, um
pastor para almas perdidas; outros viram-no como o campeão dos povos
alemães e o defensor da verdade; outros viram-no como um messias,
disseminando a palavra de Deus como um profeta. Em retratos e em gravações
populares em madeira, ele aparecia inter alia como um doutor em teologia,
21 GINZBURG, Carlo. The judge and the historian. London: Verso, 1999, p. 18.
22 KOLB, Robert. Martin Luther as Prophet, Teacher, Hero. Cambridge: Baker Publishing Group, 2000, p. 9.
23 COCHLAEUS, Johannes. Septiceps Lutherus, vbique sibi, suis scriptis, contrarius in Visitationen Saxonicam.
Leipzig: Valentin Schumann, 1529.
24 KOLB, Robert. Op. cit., p. 11.
26
um monge inspirado pelo Espírito Santo, um nobre, um cavaleiro, o Hércules
alemão e mesmo a besta de sete cabeças do Apocalipse.
25
Por oportuno, citarei W. Dau:
Algumas pessoas recordam-se bastante bem que Lutero dirigiu-se ao Papa
chamando-o “Mais infernal pai!e ficam horrorizadas, esquecendo-se de que
o Papa tinha sido extremamente violento nos apelativos que aplicou a Lutero:
“Filho de Belial”, “filho da perdição” foram alguns dos termos adoráveis com
os quais Lutero foi assegurado do amável interesse que o Santo Padre tinha
por ele.
26.
A propósito, o padre jesuíta Ricardo Garcia Villoslada, um dos mais ácidos críticos de
Lutero e da Reforma, deste modo se refere à imagem de Lutero:
É muito difícil formular um juízo sintetizante sobre o chamado ‘Reformador’,
porque dele se pode afirmar que é isto e o outro; é branco e negro, é vermelho
ou é azul, segundo se olhe pelo anverso ou pelo reverso; em momentos parece
um anjo e em outros um demônio; aqui se nos apresenta simpático e amável, e
ali detestável e odioso; é um teólogo de intuições geniais e também um
falastrão irresponsável de falsidades e erros inconcebíveis em um professor de
teologia; é um convicto pregador da paz mas quando lhe convém não hesita
em pregar a guerra religiosa; enaltece a tolerância e não tolera ao que rechaça
suas doutrinas
.
27
Isso foi bastante bem apreendido por Robert Kolb, que denominou o Capítulo 1 de seu
livro Martin Luther: confessor of the faith, ‘Angel of the Lord’ or Damned Heretic’: Martin
Luther in the Trends of the Times
28
. Esse autor discorre com muita propriedade sobre as
apropriações e ressignificações da figura de Martinho Lutero ao longo da História, inclusive
entre historiadores católicos, dos quais ele destaca Joseph Lortz, Otto Hermann Pesch, Harry
J. McSorley, Jos Vercruysse, Daniel Olivier e Jared Wicks
29
, todos estes descrevendo Lutero
de forma não passional quanto à confissão religiosa e apontando suas contribuições não
apenas para a teologia, mas para a formação do mundo moderno.
Faz-se necessário ponderar, porém, que, embora Joseph Lortz reconheça que “a
Reforma se converteu em peça central da história moderna do mundo ocidental (inclusive do
25 DIXON, C. Scott. Narratives of the German Reformation. In DIXON, C. Scott (ed.). The German
Reformation: The EssentialReadings. Oxford: Blackwell, 1999, p. 4.
26 DAU, W. H. T.. Luther examined and reexamined.
St. Louis: Concordia Publishing House, 1917, p. 9.
27 VILLOSLADA, Ricardo García. Lutero visto por los historiadores católicos del siglo XX. Madrid: F.U.E.,
1990, p. 4.
28 KOLB, Robert. Martin Luther: Confessor of the Faith. Oxford: Oxford, 2009, pp. 1-10.
29 Idem, pp. 7-8.
27
não ocidental), no destino de todo o mundo moderno”
30
, esse autor inicia o capítulo dedicado
à Reforma afirmando textualmente que “a Reforma protestante é a maior catástrofe que
sobreveio à Igreja em toda a sua história”
31
. Nessa mesma linha segue o jesuíta brasileiro
Leonel Franca, que no Capítulo I do Livro II de sua obra A crise do mundo moderno, não
poupa críticas de toda sorte a Lutero, afirmando, entre outras coisas, que “na economia interna
do dogma cristão, as teorias luteranas introduzem um dissolvente poder corrosivo
ilimitado”
32
.
No século XIX, no nacionalismo alemão, Lutero foi celebrado como herói nacional,
em muitas representações, muitas das quais sem qualquer base histórica. Suas declarações
fortes sobre os judeus foram encampadas pelos nazistas para justificar a queima de sinagogas,
os quais, lembra Rieger, apresentaram “a si mesmos como preservadores e construtores da
herança cristã de Lutero, fazendo o caminho de volta a Jesus que era visto como o primeiro e
maior dos arianos”
33
.
Os ideólogos da comunista República Democrática Alemã intitularam Lutero como
indeciso, alguém que, se tinha ideias reformistas, logo compôs-se com os poderosos, e não
combateu contra eles, como Thomas Müntzer. Para a Igreja Católica Romana, Lutero foi um
sedicioso, por cuja culpa grande parte do ocidente se afastou do reto e único caminho,
enquanto que para as igrejas evangélicas, Lutero foi um iluminado pela fé. Kolb assinala que
muitos dos autores marxistas seguiram as pegadas de Engels e “tentaram forçar Lutero para
dentro das teorias de Karl Marx sobre a história”
34
. Condenado inicialmente pela
historiografia marxista por sua atuação na Guerra dos Camponeses, Lutero foi reabilitado nos
trabalhos do russo Moisei Smirin e do alemão Max Steinmetz como um “vencedor da
primeira revolução burguesa”
35
.
30 LORTZ, Joseph. Historia de la Iglesia en la perspectiva de la historia del pensamiento. Madrid: Cristiandad,
1982, vol. 2, p. 109.
31 Idem, p. 108.
32 FRANCA, Leonel. A crise do mundo moderno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 77. V. nessa obra pp. 74-
85 para uma melhor perspectiva das críticas do Pe. Leonel. Franca a Lutero.
33 RIEGER, Joerg. Cristo e Império. S. Paulo: Paulus, 2009, p. 185.
34 Idem, p. 6.
35 Ibidem.
28
Joaquim Costa faz uma importante observação acerca de Marx como sociólogo da
religião, retomando a perspectiva de Michaël Löwy, no sentido de que Marx não teve na
religião o foco principal de seu pensamento: “Marx não fez qualquer estudo sistemático sobre
religião. Fez-lhe referências sem dúvida hostis, mas esparsas. Se as retirássemos, não
perderíamos nada de essencial da sua obra”
36.
O mesmo autor aponta para a atenção maior
dada por Friedrich Engels à religião como manifestação particular das representações sociais,
relacionando-a às classes. Desta forma, creio ser importante distinguir o pensamento
marxiano do pensamento marxista.
Entendo que a definição da imagem do Reformador é bem mais complexa do que tais
simplificações. Foi, efetivamente, um líder; seguramente, a maior liderança individual da
Reforma; porém foi, ao mesmo tempo, um homem que não buscava atingir alguns dos
resultados conseguidos que lhe foram imputados. Como será exposto no Capítulo III e na
Conclusão, a perspectiva de Lutero era teológica, sendo os resultados políticos, sociais e
econômicos decorrentes da estreita vinculação entre teologia e política no século XVI.
O que expresso é que a ruptura entre os poderes da Alemanha e de Roma serviria aos
propósitos de alguns príncipes alemães e de outros estamentos da Nação Alemã. Nas palavras
de Anderson, “a reivindicação papal da plenitudo potestatis no seio da Igreja estabeleceu o
precedente para as futuras pretensões dos príncipes seculares, com frequência realizadas
precisamente contra a exorbitância religiosa daquela”
37
. Como afirma MacCulloch, “este [a
Carta à Nobreza... ] é frequentemente chamado um livro ‘nacionalista’”
38
e será empregado
pela nobreza alemã, nacionalistamente, em defesa de seus interesses, contra os do papado e
também contra os do Imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
“É ainda possível dizer qualquer coisa de novo sobre Lutero?”, indaga Otto Pesch no
capítulo inicial de sua obra de introdução teológica e histórica sobre Lutero
39
. Mesmo
concordando com esse autor que “os estudos sobre Lutero, ainda que unicamente aqueles dos
últimos decênios, encheriam bibliotecas inteiras”
40
, creio firmemente na possibilidade real de
36 COSTA, Joaquim. Sociologia da religião. Aparecida: Santuário, 2009, p. 20.
37 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1995, pp. 27-28.
38 MacCULLOCH, Diarmaid. Op. cit., p 47.
39 PESCH, Otto Hermann. Martin Lutero – Introduzione storica e teologica. Roma: Queriniana, 2007, p. 23.
40 Ibidem.
29
se acrescentar uma nova visada, uma nova perspectiva sobre o homem, sua obra e seu tempo.
É importante lembrar que a Reforma Protestante é tema sobre o qual existe
impressionante bibliografia publicada, sendo, ao lado da Revolução Francesa, talvez o assunto
sobre o qual mais se publicaram obras. A maior parte destas é confessional ou apologética,
mas, nem por isso, menos importante para os fins desta Tese. Através dessas fontes pode-se,
de certa forma, mapear os percursos historiográficos percorridos até a presente data no que se
refere à figura de Lutero e à compreensão de seus escritos de 1520.
Ao comentar o período que se estendeu de 1519 a 1521, tendo como marcos
referenciais o Debate de Leipzig e a Dieta de Worms, um de seus biógrafos, Michael Mullet
enfatiza a “destreza de Lutero em capturar o que poderíamos chamar de ‘teatro’ de uma
determinada ocasião e sua habilidade em explorar o valor de propaganda das situações que se
lhe apresentaram”
41
.
Elton assinala que “em 1520, Lutero decisivamente queimou seus barcos nos três
grandes tratados que se tornaram os fundamentos de suas crenças, de seus ensinamentos e de
sua importância histórica”
42
. Os tratados são a Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã, no
qual Lutero “destruiu os muros de papel erigidos pelos ‘Romanistas’ em defesa de seus
poderes usurpados, e no qual instou os alemães a reformar a Igreja através da convocação de
um Concílio”
43
; o tratado teológico Sobre o cativeiro babilônico da Igreja, no qual o papado
foi atacado “por privar a cristandade da verdadeira religião”
44
e no qual estabeleceu as bases
de uma nova teologia, segundo o mesmo autor, ainda, “considerando apenas três sacramentos
(batismo, penitência e eucaristia) como instituídos na Escritura”
45
, e, finalmente, o tratado
Sobre a Liberdade Cristã, vista por Elton como “uma última tentativa de estabelecer contato
com o adversário”
46
.
Nada obstante, em 3 de janeiro de 1521, o Papa Leão X editou a Bula Decet Romanum
41 MULLET, Michael A.. Martin Luther. London: Routledge, 2004, p. 41.
42 ELTON, G. R.. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell, 1999, p. 123.
43 Ibidem.
44 Ibidem.
45 Ibidem.
46 Ibidem.
30
Pontificem, excomungando Martinho Lutero. Esta Bula declarava peremptoriamente
47
:
Ele [Lutero] é agora declarado um herege, e tamm outros, qualquer que seja
sua autoridade ou posto, que tenham se descuidado de sua salvação e
publicamente e aos olhos de todos os homens tornaram-se seguidores da seita
perniciosa e herética de Martinho, dado-lhe aberta e publicamente seu apoio,
conselho e favor, encorajando-o em meio à sua desobediência e obstinação ou
escondendo a publicação de nossa dita missiva [a Bula Exsurge Domine]: tais
homens incorreram nas punições estabelecidas naquela missiva, e devem ser
tratados como heréticos e evitados por todos os fiéis cristãos, como o
Apóstolo diz (Tito 3: 10-11).
Carl Truman aponta os três tratados mencionados por Elton como dos mais
importantes dos textos de Lutero, e acrescenta a esses o opúsculo Contra a execrável Bula do
Anticristo, escrito por ele em outubro de 1520, tão logo recebeu cópia da Bula Papal Exsurge
Domine, a qual ele publicamente queimou em 15 de dezembro, em seguida ao que escreveu o
tratado Porque os Livros do Papa e seus Discípulos foram Queimados
48
. Este autor entende
que o evento crucial para o desenvolvimento dos fatos em 1520 da forma como se deram foi a
decisão de Frederico, o Sábio, de defender Lutero e de apoiar sua causa diante do Imperador.
Desta forma, para além das disputas e controvérsias teológicas, Truman salienta o pano de
fundo político e econômico daquela quadra histórica como fator decisivo para o rompimento
entre Lutero e Roma.
Mark Edwards, Jr.
49
aponta dois importantes eventos nesse período, que são a
setuplicação do número de panfletos escritos na Alemanha entre 1519 e 1521, e o fato de que
estes saltaram de um em alemão para cada três em latim para três em alemão para cada
panfleto escrito em latim. Isso evidencia que Lutero e seus seguidores (assim como seus
opositores) queriam atingir um público cada vez mais amplo, ao qual o alemão era mais
acessível do que o latim. Contudo, dos três principais tratados escritos por Lutero em 1520,
somente um, Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã, foi escrito em alemão. De fato,
buscou-se atingir a mais ampla camada da população. Neste sentido, a Reforma é tributária
da imprensa, visto os Flugschriften, os volantes, assim como os livretos, terem sido
importantíssimo veículo de propaganda. Algumas imagens da propaganda da Reforma serão
apresentadas no Capítulo III.
47 ASV Reg. Vat. 1160, f. 251r-259v.
48 TRUMAN, Carl. Luther and the Reformation in Germany. In PETTEGREE, Andrew (ed.). The Reformation
World. New York: Routledge, 2002 p. 84.
49
EDWARDS, Jr., Mark U.. Printing, Propaganda and Martin Luther. Minneapolis: Augsburg Books, 2004, p.
23.
31
“Encurralar Lutero”, afirma Martin Marty, um de seus biógrafos, “não era item
prioritário na agenda papal”
50
. Contudo, o autor reconhece que não era mais possível ao
Pontífice e à Cúria continuarem ignorando o desafio dos agostinianos em Wittenberg, o que
motivou a assinatura da Bula Exsurge Domine.
Diarmaid MacCulloch ressalta que a Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã,
endereçada não apenas aos príncipes alemães e ao Grande Eleitor Frederico, o Sábio, mas, de
modo especial, ao Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos V, indicava de
maneira explícita que Lutero não mais desejava manter a unidade com a Igreja Romana,
destacando de modo especial que Lutero afirmava que ao contrário de ser o representante de
Cristo na terra, o Papa era um impostor, colocado no lugar pelo demônio: o Anticristo e uma
ameaça para o bom governo do Império
51
.
A questão do nacionalismo e da nacionalidade foi bastante explorada pelo próprio
Lutero, que afirmava no início da Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã: “a aflição e
dificuldade que oprimem todos os estamentos da cristandade, sobretudo os territórios alemães
(...) obrigou-me também a gritar e clamar, [para ver] se Deus haveria de conceder a alguém o
Espírito de estender sua mão à miserável nação alemã”
52
.
É importante registrar que esses documentos foram escritos quando a regência do
Sacro Império estava confiada ao Grande Eleitor Frederico, o Sábio, no interregno entre a
eleição de Carlos V e sua coroação. Portanto, Lutero os escreveu quando o governo do Sacro
Império estava – mesmo que transitoriamente – nas mãos de seu maior protetor.
De modo especial, tais escritos de Lutero constituem-se em matriciais para o que se
poderia chamar de “individualismo político”. Neste campo, é necessário atentarmos para a
contribuição importante de Gabriella Cotta, em sua obra La nascità dell'individualismo
político: Lutero e la politica della modernità. Nesta obra, Cotta entende que “o pessimismo
antropológico de Lutero está na origem da política moderna”
53
. Neste ensaio, é identificado
50 MARTY, Martin. Martin Luther. New York: Penguin, 2004, p. 74.
51 MacCULLOCH, Diarmaid. The Reformation – a History. New York: Penguin Books, 2003, p. 23.
52 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 147.
53 COTTA, Gabriella. La nascità dell’individualismo politico. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 117.
32
no pensamento de Lutero uma das passagens fundamentais daquela transformação filosófica
radical destinada a incidir no âmbito religioso, político, jurídico e ético que sinaliza a
inauguração da Idade Moderna. Se a visão política de Maquiavel é portadora de uma imagem
da natureza humana, sempre pronta à superação, ao engano e à traição ainda ambivalente,
em Lutero os pressupostos antropológicos se radicalizam na teorização de um pessimismo
ontológico denso de importantes consequências no campo político, social e ético.
Destacando-se da tradição do pensamento clássico-cristão precedente, que sustentava a
sociabilidade natural dos indivíduos e a sua natural tendência à procura do próprio bem e do
bem comum, a antropologia luterana põe no centro da investigação sociopolítica a maldade
intrínseca do homem e, deste modo, sua inevitável conflitividade; uma linha que levada a
cabo por Hobbes constituir-se-á em um dos principais destinos políticos da modernidade.
Indubitavelmente, muito da visão de Lutero é herdada de Santo Agostinho, que
estabeleceu a distinção entre as duas cidades, a “Cidade dos Homens” e a “Cidade de Deus”,
com esta superior àquela. Como lembra Voegelin
54
, “um dos fatores mais importantes para a
formação das comunidades intramundanas foi a clivagem da ecclesia a partir das linhas do
espiritual e do temporal. Esta oposição irá encher-se historicamente de numerosos
significados diferentes”.
Bourdieu afirma que
a procura dos critérios ‘objetivos’ de identidade ‘regional’ ou ‘étnica’ não deve
fazer esquecer que, na prática social, esses critérios são objetos de
representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e apreciação, de
conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus
interesses e os seus pressupostos, e de representações objetais, em coisas ou
em atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista
determinar a representação mental que os outros podem ter destas
propriedades e dos seus portadores.
55
Essa discussão bibliográfica aponta para um dos focos desta Tese, que é a questão do
impacto na sociedade alemã e na Igreja dos escritos de Lutero naquele ano; sendo, inclusive,
agente mobilizador e aglutinador dos diferentes estamentos sociais alemães.
54 VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002, p. 51.
55 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 2004, p. 17.
33
Um dos pontos ao qual se deu especial ênfase é a natureza da visão de Martinho
Lutero sobre os concílios da Igreja. Sua demanda pela convocação por Leão X de um concílio
era central nas reivindicações do Reformador em muitos de seus documentos do ano de 1520,
especialmente na carta endereçada ao Pontífice de outubro daquele ano, na qual se lê: “
A Cúria
Romana está perdida. (...) Odeia os concílios, tem medo de ser reformada, não pode mitigar o furor de
sua impiedade”
56
e, mais adiante,
erram os que te elevam acima de um concílio e da Igreja
universal
57
.
Bruce Gordon salienta que muito da visão de Lutero sobre os concílios e seu papel
vem dessa visão medieval tardia, atribuindo a estes um poder que a Cúria Romana, à época,
preferia obliterar, concedendo ao Pontífice poderes ditatoriais
58
.
Na Carta à Nobreza Cristã, Lutero afirmou textualmente, acerca da realização do V
Concílio de Latrão (1512-1517) e da atitude dos seguidores do Papa (por ele denominados
“romanistas”) em relação à disciplina conciliar:
Mesmo que tenham sido obrigados a celebrar um concílio, anulam seu efeito
por antecipação, obrigando os príncipes a jurar previamente que os deixariam
como estão. Além disso, deram ao papa pleno poder sobre toda ordenação do
concílio, de sorte que tanto faz se há muitos concílios ou concílio nenhum.
59
A principal hipótese que norteou esta tese foi a de que os documentos produzidos por
Martinho Lutero em 1520 iam ao encontro de interesses da nobreza alemã e do Grande Eleitor
Frederico, o Sábio, e simultaneamente dos estamentos mais pobres da sociedade alemã, o que
conduziu a essa cisão, naquele momento tornada irreversível e irreconciliável.
A Reforma foi, como se depreende, um dos momentos fundadores do mundo moderno
e da modernidade como tal. Dumont
60
, em seu ensaio sobre o individualismo, data o
surgimento dessa “ideologia moderna” precisamente quando do momento das Reformas
luterana e calvinista. Martina indaga a partir de seu ponto de vista confessional se o
mundo moderno, construído, ao menos teoricamente, sobre os ideais de liberdade e de
igualdade, nasceu sob a influência e a inspiração da Igreja ou se a sociedade e a Igreja
56 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – vol. 2, p. 429.
57 Ibidem.
58 GORDON, Bruce. Conciliarism in Late Medieval Europe. In PETTEGREE, Andrew (ed.). The Reformation
World. New York: Routledge, 2002 pp. 46-47.
59 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – vol. 2, p. 283.
60 DUMONT, Louis. Essais sur l’individualisme. Paris: Points, 1991, pp. 71-81.
34
seguiram por caminhos diversos e opostos. O insuspeito (quanto a qualquer simpatia pela
Reforma) Joseph Lortz afirma que “a repercussão da Reforma não revelou todo o seu
significado até os nossos dias”
61
, o que evidencia a necessidade de ser estudada como um
fenômeno de longa duração, pois seus efeitos estenderam-se para bem mais além do que o
período relativamente curto em que se deram os fatos decisivos (1517-1555). Pecoraro
recorda que Condorcet, em sua obra Esboço de um quadro histórico dos progressos do
espírito humano, de 1795, exaltou a Revolução Francesa, “considerada o apogeu de um
processo de emancipação começado com a Reforma protestante e a invenção da imprensa”
62
.
Neste sentido, não se pode – e é o que se pretende sublinhar desde o primeiro
momento – excluir a Igreja de qualquer relacionamento com a sociedade em que vive. E isto é
imprescindível de se dizer, não se pode confundir a Reforma do século XVI e as tensões e
pressões de então com aquelas do século XIX, quando o laicismo, o positivismo, o
racionalismo e o imanentismo eram as ameaças à Igreja, ao passo que no século XVI os
agentes envolvidos no processo e é o que se verá no Capítulo II desta tese não desejavam
“o fim do jogo”, mas sim mudanças nas suas regras, para usar a terminologia de Bourdieu
63
.
Tais tensões se revelaram igualmente no período imediatamente após aquele estudado nesta
tese, pois no pontificado de Adriano VI os cardeais Madruzzo e Campeggi divergiam acerca
das causas da Reforma, com o primeiro atribuindo aos católicos em geral, e mais
especificamente à Cúria e à hierarquia da Igreja a responsabilidade pela revolta protestante, e
o segundo sustentando que nenhum abuso moral justificaria mudanças no dogma
64
.
Busquei entender a Reforma como inserida na esteira do desenvolvimento e dos
efeitos da crise religiosa do século XVI, que eram continuação daqueles já manifestados desde
o final do século XIV, cristalizados no fim da unidade religiosa e cultural europeia. Assim,
buscando entender as causas da revolução protestante”
65
, encontram-se as duas principais
teses:
1. A
TESE TRADICIONAL
, que aponta os abusos e desordens da Cúria e da hierarquia da Igreja,
comuns então, como o fator mobilizador dos primeiros protestantes. Esta tese, que
61 LORTZ, Joseph. Op. cit., vol. 2, p. 109.
62 PECORARO, Rossano. Filosofia da História. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 26.
63 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 2004, pp. 10 ss.
64 Cf. MARTINA, G.. Op. cit., vol. 1 p. 29.
65 Aqui uso a expressão de Giacomo Martina, por entendê-la bastante superior à tradicionalmente consagrada
pela historiografia “Reforma Protestante”, em razão do mais expressivo valor semântico de “Revolução”.
35
encontra entre seus defensores o historiador inglês Lorde J. Acton, que afirmava que “o
povo cristão queria com a Reforma melhorar o vel do clero: era uma coisa insuportável
para eles que os sacramentos fossem administrados por mãos sacrílegas”
66
, é contestada
por outros, como Imbart de la Tour, que apontava que em outras épocas também houve
graves abusos, sem que houvessem gerado uma revolta contra Roma
67
. Deve ser notado o
posicionamento de Georg Von Below, que perguntava porque a Reforma não se originou
na Itália, onde as condições morais não eram melhores que as da Alemanha, ainda mais
por Lutero não ser monge de um convento corrupto
68
. Esta indagação parece ser
respondida pela análise da documentação examinada nesta tese, que, de certa forma,
completa a indagação de Miegge, que questionava como uma Igreja em plena decadência
conseguiu produzir um movimento de tamanha vitalidade
69
.
2. A
TESE MARXISTA
: Para a maioria dos historiadores marxistas desde o século XIX, Lutero
não foi um teólogo ou um religioso, mas um agitador popular, filho de camponês que
compartilhava das aspirações de seu povo oprimido pela burguesia latifundiária, que
soube guiá-lo à revolta. Por esta perspectiva, a Reforma não é senão o disfarce religioso da
crise econômico-social. Martina recorda, no entanto, que a afixação das 95 teses ocorreu
dois anos antes do desembarque de Cortés no México, o que denota que a transformação
econômica da Europa ocorreu simultaneamente ou até mesmo posteriormente à
Reforma protestante. É de se salientar que aderem à Reforma membros das mais diversas
classes sociais: camponeses, artesãos, burgueses, nobres e príncipes, “substancialmente,
homens que tinham interesses econômicos opostos”
70
.
Pesch sustenta que existe, ainda, a tese da “revolta contra a Igreja”, que recebeu novo
impulso “dentro das tentativas de se entender a Reforma protestante como uma ‘revolução’”
71
.
Esse autor não tal concepção como nova, mas com raízes fundadas profundamente no
século XVIII, na imagem de Lutero traçada pelo Iluminismo, e no século XIX, aliando-se aos
valores nacionalistas “do estado germano-prussiano em vias de formação”
72
. É, igualmente, o
que defende James Stayer em sua obra Martin Luther: German Saviour
73
, ao mostrar como
66 ACTON, J.. Lectures on Modern History. Londres: 1930, s/e, p. 80.
67 DE LA TOUR, Imbart. Les origines de la Reforme. Paris: 1909, s/e, p. 14.
68 VON BELOW, Georg. Die Ursachen der Reformation. In Historische Zeitschrift, 116 (1916), pp. 377-384.
69 MIEGGE, G.. Lutero, Roma: Torre Pellice, 1946, vol. 1, p. 242.
70 MARTINA, G.. Op. cit. pp. 55-56.
71 PESCH, Otto Hermann. Op. cit., pp. 44.
72 Ibidem.
73 STAYER, James M. Martin Luther, German Saviour. Oxford: MacGilligan Books, 2000.
36
sua teologia foi usada politicamente pelas Igrejas e pelo Estado na Alemanha no início do
século XX.
Houve uma Reforma ou uma Revolução Protestante? Steven Ozment defende que a
Reforma foi o nascimento de uma revolução, sustentando este argumento com a afirmação de
que “se diz ocorrer revoluções quando existem mudanças largas, fundamentais e duradouras
em importantes aspectos do comportamento de um povo e em aspectos principais das
instituições de uma sociedade”
74
. Benedetto Croce, em sua obra História como História da
Liberdade, concorda com Meinecke, que definiu a Reforma como “a primeira grande
revolução moderna devida à Alemanha”, argumentando, porém que “a Reforma, na época que
é denominada a partir dela, foi muito mais um grande fermento que uma revolução espiritual,
que no final é sempre operada pela razão razão que é o próprio caráter do homem e o
princípio único de seu progresso e de suas revoluções”
75
.
O ferramental teórico da história cultural, por entender a cultura como vinculada aos
aspectos sócio-econômicos, foi particularmente útil à pesquisa que se desenvolveu, pois a
disputa que se dava em 1520 era pelos “corações e mentesnão apenas dos integrantes das
classes subalternas, mas também daqueles pertencentes às classes dominantes. Neste sentido,
retoma-se Gramsci, que ao tratar especificamente da reforma luterana, no Caderno do Cárcere
16, afirmou que “a reforma luterana e o calvinismo, onde se difundiram, suscitaram um
amplo movimento popular-nacional, e só em períodos sucessivos, uma cultura superior”
76
.
Quanto à questão da historiografia da Reforma, Martina comparou duas posições
antagônicas quanto à história da Igreja e é inegável que, mesmo que não se queira, de certo
modo acaba-se caindo no modelo estabelecido por Eusébio de Cesareia –, as de Hubert Jedin
e as de G. Alberigo; com aquele tentando sempre vincular a história da Igreja à história da
salvação, sendo, portanto, algo somente compreensível sob o prisma de uma história da
salvação, ao passo que este entende que o objeto de estudo da história da Igreja “não é o plano
da salvação, mas (...) a sucessão no tempo das suas manifestações visíveis; procurando nas
74 OZMENT, Steven. Protestants: the birth of a revolution. New York: Image Books, 1991, p. 12.
75 CROCE, Benedetto. História como história da liberdade. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 111.
76 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 4 – Temas de cultura, ação católica, americanismo e
fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 36.
37
fontes o conteúdo fenomenológico dessas manifestações, não o providencial”
77
. Em verdade,
o trabalho que se procurou desenvolver, mais do que não se ater a qualquer confessionalismo,
buscou também contornar as discussões teológicas referentes à história da Igreja, em razão da
postulação de Alberigo, de que “a história da Igreja não se apresenta em algum sentido
qualificável como disciplina teológica, uma vez que a teologia supõe tomar como ponto de
partida o dado revelado”
78
. De fato, a adequação da pesquisa à área de Ciências Sociais da
Religião pressupõe esse distanciamento.
Deve ser ressaltado que uma certa historiografia da Reforma é contemporânea dos
próprios eventos. em 1518, as principais faculdades de teologia (Lovaina, Paris e Colônia)
e os teólogos apontados por Roma vinculavam os Reformadores e suas propostas a heresias e
heresiarcas condenados no passado. B. Roussel e B. Vogler afirmam que “a ruptura
provocada pela Reforma possibilitou até o Iluminismo duas interpretações antagonistas:
protestantes e católicos se afrontam em torno do tema da verdadeira e da falsa Igreja”
79
. Os
martirológios, especialmente os de Foxe e de Jean Crespin, ambos do culo XVI, somente
serviram para aumentar o fosso entre os historiadores e cronistas. Roussel e Vogler também
destacam o papel de Ranke, que, “pela primeira vez interpreta Lutero como historiador, sem
ser guiado por preocupações de teologia ou de edificação”
80
.
De fato, em sua obra História do Papado entre os séculos XVI e XVII, Ranke procedeu
a uma reabilitação imparcial do papado, além de situar Lutero em seu contexto. Tal imagem
seria revista por Troeltsch, que viu um Lutero ao mesmo tempo revolucionário e conservador,
que “fortaleceu o desenvolvimento do poder dos príncipes e a apatia do povo, impedindo as
reformas sociais”
81
.
Roussel e Vogler
82
destacam que a tese marxista fixada por Engels em 1850, em A
guerra dos camponeses, apresenta a Reforma como uma expressão da primeira revolução
burguesa, com Thomas Müntzer aprofundando-lhe o significado durante a Guerra dos
77 Apud Martina, G.. Op. cit., p. 45.
78 Ibidem.
79 ROUSSEL, B. e VOGLER, B.. Reforma. In BURGUIÈRE, André. Dicionário das ciências históricas. Rio de
Janeiro: Imago, 1993, pp. 646-652.
80 ROUSSEL, B. e VOGLER, B.. Idem, p. 647.
81 ROUSSEL, B. e VOGLER, B.. Idem, p. 648.
82 ROUSSEL, B. e VOGLER, B.. Idem, pp. 648-649.
38
Camponeses, de 1524-25. Para alguns historiadores marxistas desde o século XIX, Lutero não
foi um teólogo ou um religioso, mas um agitador popular, filho de camponês que
compartilhava das aspirações de seu povo oprimido pela burguesia latifundiária, que soube
guiá-lo à revolta. Por esta perspectiva, a Reforma não é senão o disfarce religioso da crise
econômico-social. É de se salientar que aderem à Reforma membros das mais diversas classes
sociais: camponeses, artesãos, burgueses, nobres e príncipes, “substancialmente, homens que
tinham interesses econômicos opostos”
83
. Como salientam Danièle Hervieu-Léger e Jean-Paul
Willaime, em seu estudo sobre a Guerra dos Camponeses “analisando esse conflito
sociorreligioso do século XVI, ele [Engels] distingue um campo ‘católico ou reacionário’, um
campo luterano ‘burguês-reformador e um campo ‘revolucionário’, representado por Thomas
Munzer”
84
.
Esta tese foi, de acordo com Otto Pesch, reforçada nos anos anteriores a 1983, ano
jubilar de Lutero, concebendo
a reforma eclesial feita por Lutero como expressão ideológica de
transformações sociais e econômicas já em movimento ou, ao menos,
maduras, transformações que Lutero teria, de certo modo, favorecido, em parte
novamente bloqueado, sobretudo na ocasião da guerra dos camponeses.
85
Friederich Engels fez as seguintes considerações acerca da atuação de Lutero quanto à
Guerra dos Camponeses:
Lutero colocou uma poderosa ferramenta nas mãos do movimento plebeu
traduzindo a Bíblia. (...) Os camponeses fizeram um largo uso desse
instrumento contra os príncipes, a nobreza e o clero. Agora, Lutero voltava-a
contra os camponeses, extraindo da Bíblia um verdadeiro hino a favor da
ordem divinamente estabelecida.
86
O historiador alemão Hans-Ulrich Wehler destaca, em meio à vasta produção
historiográfica do final do século XX, sobretudo na França, Estados Unidos e Inglaterra, que
um duelo entre a história social e a história cultural, duelo que, em certa medida, contorna
a historiografia alemã, sobretudo a do ocidente, na qual especialmente nas décadas de 1950
e 1960 houve predominância da história política
87
. Integrar tais perspectivas historiográficas
que, a meu ver, não se excluem, mas se completam, é uma das proposições desta Tese. É,
83 MARTINA, G.. Op. cit. pp. 55-56.
84 HERVIEU-LEGER, Danièle e WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia e religião. Aparecida: Idéias & Letras,
2009, p. 37.
85 PESCH, Otto Hermann. Op. cit., pp. 45.
86 ENGELS, Frederick. The Peasant War in Germany. Moscou: International Publishers, 1926, p. 20.
87 WEHLER, Hans-Ulrich. Konflikte zu Beginn des 21. Jahrhunderts. München: Beck, 2003, p. 167.
39
portanto, em meio a uma vigorosa produção historiográfica que se foi buscar uma linha que
permitisse traçar um caminho original.
1.1 Dramatis Personæ
Para uma melhor compreensão acerca dos principais personagens mencionados ao
longo desta Tese, foi elaborada a lita de “Personagens Dramáricos” abaixo.
Martinho Lutero: Monge agostiniano em Wittenberg;
Leão X: Papa da Igreja Católica Apostólica Romana;
Carlos V: Imperador eleito, ainda não coroado, do Sacro Império Romano-Germânico;
Frederico, o Sábio: Duque e grande eleitor da Saxônia e, no momento, regente do Sacro
Império Romano-Germânico;
Johann Tetzel: Pregador em Leipzig e vendedor de indulgências na Alemanha;
Johann von Staupitz: Vigário-Geral dos Agostinianos na Saxônia e, inicialmente, protetor de
Lutero; tendo abandonado-o posteriormente;
Tomas Cajetan (de Vio): Cardeal da Igreja Católica; encarregado por Leão X de uma
entrevista com Lutero em 1518;
Philipp Melanchton: Teólogo partidário das ideias de Lutero, grande amigo deste e
continuador de sua obra;
George Spalatino: Teólogo partidário das ideias de Lutero e capelão do Duque Frederico da
Saxônia, sendo o elo entre este e Lutero;
Johann Eck: Teólogo defensor dos pontos de vista da Igreja Romana e inimigo de Lutero;
Agostinus Von Alveld: Teólogo e frade franciscano de Leipzig, adversário das posições de
Lutero;
Ulrich von Hutten: Cavaleiro, poeta e humanista nacionalista alemão, apoiador de Lutero;
Karl Von Miltitz: Núncio de Leão X, mediou algumas controvérsias de Lutero;
Andreas Karlstadt: Teólogo, mestre e amigo de Lutero, defensor de suas teses mas que,
desejoso de uma Reforma mais radical, posteriormente afastou-se de Lutero;
Girolamo Aleander: cardeal da Igreja, ex-professor da Universidade de Paris, influente junto a
Leão X e adversário de Lutero;
Cardeal Adriaan Florensz Boeyens, ou Cardeal Adriano: Arcebispo de Tortosa (Espanha),
futuro Papa Adriano VI, ex-Inquisidor e preceptor de Carlos V;
Júlio II e Alexandre VI: Antecessores de Leão X na Sé Romana.
O HOMEM NO TEMPO,
O TEMPO DO HOMEM
Lutherplatz – Selb (Baviera)
41
2 O HOMEM NO TEMPO, O TEMPO DO HOMEM
“Wenn das Geld im Kasten klingt, die Seele in den Himmel
springt.”
[“Quando o dinheiro soa na caixa, a alma salta para o
céu”.]
(atribuída a Johann Tetzel, monge dominicano)
Nas palavras de Kantzenbach, “o nome de Lutero é ligado a um dos pontos evolutivos
da história moderna mais grávidos de consequências. Se ele mesmo deixou de reconhecer-se
como ‘reformador’, toda a obra que teve origem na quietude de sua cela monacal é
indissoluvelmente ligada ao seu nome. A época da Reforma não é compreensível sem
Lutero”
88
.
Há que se tentar resistir à tentação de descrever eventos históricos a partir da biografia
de um dos protagonistas. Não se pode compreender a Reforma da Igreja a partir das vidas dos
três Papas que inauguraram o século XVI – Alexandre VI, Júlio II e Leão X como também
não se pode fazê-lo a partir da biografia de Martinho Lutero.
Da mesma forma, há que se resistir à tentação de tentar entender ou explicar a obra do
homem a partir de sua trajetória de vida. Vida e obra não guardam relação de dependência,
mas seguramente conhecer a vida do personagem auxilia na melhor compreensão de sua obra.
Esta é a razão pela qual nosso percurso se inicia com a biografia de Martinho Lutero.
Neste sentido, que se considerar as ponderações de Carlos Antonio Aguirre Rojas
de que “adentrar então nesta problemática do que tem sido e do que poderia ser hoje a análise
da biografia histórica leva a fazer frente às dificuldades e aos desafios que implica abordar um
campo de estudos que, no passado mais imediato e no passado próximo, foi abundantemente
trabalhado e reproblematizado por múltiplos autores”
89
. Não se trata, portanto, de uma nova
biografia de um personagem já bastante biografado.
88 KANTZENBACH, Friedrich W.. Martin Lutero, il riformatore borghese. Turim: San Paolo, 1984, p. 31.
89 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre: La biografía como género historiográfico: algunas reflexiones sobre sus
posibilidades actuales. In
SCHMIDT, Benito Bissio (org.). O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 10.
42
Desta forma, evitaria-se aquilo que Pierre Bourdieu chamou de “a ilusão biográfica”,
mesmo considerando que “a vida é uma história” e que “uma vida é o conjunto dos
acontecimentos de uma existência individual concebida como uma história e o relato dessa
história”
90
.
2.1 Um monge chamado Martinho: o percurso até Wittenberg, 1517
2.2.1 A infância e a juventude
Um problema das biografias de Lutero escritas no século XVI é a pouca atenção dada
a seus anos de infância e juventude, focando-se muito mais nos anos após 1517. Ainda que
não decisivos e determinantes para entender o processo de formação do homem e de suas
ideias, conhecer seus anos iniciais auxilia na compreensão da vida do Reformador,
contextualizando com maior propriedade o ambiente de sua formação.
Os biógrafos de Lutero assinalam seu nascimento como ocorrido em 10 de novembro
de 1483, baseando-se principalmente em afirmações de Melanchton, como assinala Brecht
91
.
O mesmo autor refere o nascimento de Martinho Lutero como em uma casa de classe média
92
,
localizada na então Langen Gasse, hoje Dr. Lutherstrasse, no Bairro das Pontes
(Brückenviertel), em Eisleben. Contudo, faz a ressalva necessária e importante de que
igualmente os anos de 1482 e 1484 são igualmente considerados possíveis para seu
nascimento, com maior plausibilidade para a primeira, “que removeria dificuldades
definitivas na cronologia da juventude de Lutero”
93
. Schwiebert demonstra uma certa
perplexidade por não haver exatidão acerca da data de nascimento de um personagem
histórico tão relevante como Lutero, registrando que o próprio Melanchton afirmou que
“mesmo sua mãe não podia precisar com exatidão a data e a hora”
94
. Embora sem citar fontes
ou razões para tal, este autor afirma que “modernos historiadores alemães tentam provar que
90 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. Usos &
abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 183.
91 BRECHT, Martin. Martin Luther – his road to Reformation 1483-1521. Minneapolis: Fortress Press, 1993, p.
1.
92 Ibidem. Ainda que seja anacrônico o termo “classe média”, preferi mantê-lo por fidelidade ao texto original,
no qual se “Luther was born in a middle-class house located on Langen Gassen, today Dr. Lutherstrasse...”
(grifo meu).
93 Ibidem.
94 SCHWIEBERT, Ernest G.. Luther and his times The Reformation from a new perspective. New York:
Concordia Publishing, 1950, p. 104.
43
Lutero nasceu em 7 de dezembro de 1482”
95
.
Seguindo o costume, foi batizado no dia seguinte na igreja paroquial de S. Pedro e S.
Paulo, na torre, única parte da igreja então completa, recebendo o nome do santo do dia, tendo
seu batizado sido realizado pelo pároco Bartholomaeus Rennebecher. Como recorda
Schwiebert, seus pais eram Hans e Margarethe Luder
96
, sendo Martinho seu segundo filho.
Seu pai era pertencente a uma pequena burguesia urbana, com origem no estrato superior do
campesinato, como assinala Marius
97
. Hans, por ser o irmão mais velho, não teve direito à
herança, em razão de a lei local determinar a herdade em favor do irmão mais novo. Isto o
levou a mudar-se do campo para a cidade, onde se casou com Margarethe Lindemann, filha de
uma das mais tradicionais e antigas famílias da região.
Dickens assinala que os Luder
98
“tinham sido por séculos homens livres e camponeses
e fazendeiros, (...) e tendo direitos hereditários sobre suas propriedades em miniaturas. Eles
mantiveram seus status legal e econômico recusando-se a dividir suas posses e através do
costume de deixar tudo para o filho mais novo”
99
.
Nas palavras de Marius
100
, citando Erik Erikson, um psiquiatra freudiano que escreveu
uma biografia do jovem Lutero, “Hans Luder, em todas as suas características mais básicas,
pertencia a um universo de pessoas de mentalidade tacanha, desconfiada, catastrofista, de
religiosidade primitiva”
101
. Essa visão meio apocalíptica de mundo não era incomum na
Alemanha de então entre camponeses e pequenos burgueses, e, indiscutivelmente, ela deve ter
sido um dos elementos constituintes da formação do jovem Martinho. Desta forma, ao tempo
em que lhe incutia valores tradicionais, Hans preparava Martinho para um futuro que fosse
melhor do que o seu presente estava sendo, o que, de certa forma, se refletiu na dedicação aos
95 Ibidem.
96 Ibidem.
97 MARIUS, Richard. Martin Luther the Christian between God and death. Harvard: Harvard university
Press, 2004, p. 19.
98 Em carta a Philipp Melanchton, datada de 22 de novembro de 1518, Lutero assinou-se “Das Brüderlein
Martinus Eleutherios”, uma latinização do grego eleutheros (
ελεύθερος
), “livre”, de onde originou-se
“Luther”. Em carta a Johannes Reuchlin, de 14 de dezembro de 1518, Lutero a inicia como Martin Luther,
Augustiner” (Cf. LUTHER, Martin. Briefe. Frankfurt: Insel Verlag, 1995, p. 21).
99 DICKENS, A. G.. Martin Luther and the Reformation. Londres: The London Universities Press, 1967, p. 1.
100 MARIUS, Richard. Martin Luther the Christian between God and death. Harvard: Harvard University
Press, 2004, p. 19.
101 ERIKSON, Erik H.. Young Man Luther: a Study in Psychoanalysis and History. New York: W. W. Norton,
1958, p. 77.
44
estudos do jovem Lutero.
Dickens corrobora essa formação de uma religiosidade extremada do jovem Martinho
Lutero ao destacar que este via as figuras de Jesus e de Deus Pai primeiramente como Juízes
da humanidade, sendo narrado o especial pavor que lhe causava uma imagem de Cristo
sentado sobre um arco-íris julgando o mundo
102
. Roland Bainton
103
sugere que a figura possa
ser semelhante à litografia apresentada na gravura 1, abaixo, que se retirou de seu livro.
Gravura 1 – Cristo sentado sobre o arco-íris julgando a humanidade (retirado de Bainton, Roland
H. Here I stand: a life of Martín Luther. London: Penguin UK, 2002, p. 23)
Lutero, segundo Dickens, declarava, em sua maturidade, que “Santa Ana era meu
ídolo e São Tomé meu apóstolo”, sendo que frequentemente suas preces tomavam a forma de
“Cara Maria, ora a teu Filho por mim e para sua ira”
104
.
Ainda que Erikson seja bastante criticado pelos estudiosos de Lutero,
indubitavelmente sua abordagem do jovem Martinho Lutero pelo viés psicologizante revela-
102 Deve-se recordar, a título de ilustração, que o estandarte de Joana d’Arc apresentava a mesma imagem de
Jesus sentado sobre um arco-íris julgando o mundo, não sendo, em nada, incomuns tais representações
pictóricas. Sobre este estandarte particularmente, pode ser consultado o sítio http://www.stjoan-center.com/j-cc/
(acessado em 11/02/2008).
103 BAINTON, Roland H.. Here I stand: a life of Martín Luther. London: Penguin UK, 2002, p. 23.
104 DICKENS, A. G.. Martin Luther and the Reformation. Londres: The London Universities Press, 1967, p. 3.
45
se bastante útil àqueles que desejam uma melhor compreensão sobre o homem no tempo.
A linguagem escatológica e algumas vezes obscena que Lutero empregava, mesmo em
tratados teológicos, mereceu desse autor explicações que remetiam à infância de Lutero e a
seus anos de formação. Em sentido oposto, Heiko Oberman pondera que a obscenidade era
algo corriqueiro àquela época, citando inclusive um tratado de Jean Gerson, Reitor da
Universidade de Paris, datado do século XIV
105
. A posição de Oberman é respaldada por
Bakhtin, em sua análise do contemporâneo de Lutero, François Rabelais
106
.
Joachim Rogge é outro autor a dedicar-se à infância e juventude de Lutero,
destacando, porém, as mudanças para outras cidades que ocorreram naquele período de anos,
uma vez que sua família foi de Eisleben para Mansfeld em 1484, permanecendo Martinho
Lutero lá até 1497, quando mudou-se, com a finalidade de estudar, primeiramente para
Magdeburg; posteriormente, para Eisenach, entre 1497 e 1501, e, a seguir, para Erfurt, onde
morou de 1501 a 1505
107
.
Brecht assume que não era incomum no final do século XV e no início do século XVI
que pessoas mudassem de cidade com a finalidade de estudar; não se constituindo razão de
qualquer surpresa a mudança de Lutero de Magdeburg para Eisenach no espaço de apenas um
ano
108
. Dickens ressalta a importância que o convívio com os Irmãos da Vida Comum,
iniciado em Magdeburg, teve para a formação espiritual e teológica de Lutero
109
, de modo
especial pela ligação dessa ordem de leigos, dedicados à educação, com a devotio moderna
110
,
que defendia a adoção simultânea do cristianismo e do humanismo, sendo, por isso, chamada
por alguns de “humanismo cristão”.
Faz-se necessária uma explicação mais detalhada sobre a devotio moderna. Esse
105 OBERMAN, Heiko A.. Die Reformation von Wittenberg nach Genf. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1986, pp. 93-101.
106 BAKHTINE, Mikhail. L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen-Age et sous la
Renaissance. Paris: Gallimard, 1970, p. 192.
107 ROGGE, Joachim. Martin Luther: Sein Leben, Seine Zeit, Seine Wirkungen. Berlin: Evangelischen
Verlagsanstalt, 1982, pp. 15-17.
108 BRECHT, Martin. Op. cit., p. 17.
109 DICKENS, A. G.. Op. cit., pp. 4-5.
110 Essa Ordem de irmãos leigos foi fundada no século XIV, na Holanda, pelo místico Geert Groot, tendo como
uma de suas características considerar a filosofia e a teologia exercícios de mera curiosidade, muito embora
encorajassem a leitura de livros, sobretudo os dedicados à mística. Dentre os mais renomados alunos de sua
escola em Deventer, encontram-se Tomás de Kempis e Nicolau de Cusa.
46
movimento reformista, originário dos Países-Baixos, teve forte base na espiritualidade
cartusiana, enfatizando, para cada cristão, “o ideal da vita communis da Igreja primitiva (bens
partilhados, vida de apostolado), piedade concreta e discipulado pessoal de Cristo na pobreza
e humildade”
111
. Em razão do incentivo à leitura, a devotio moderna promoveu uma cultura
literária, através da cópia de livros, sobretudo os de patrologia e do monaquismo. Também
incentivou o cuidado pastoral de jovens em escolas, a retomada dos diálogos sobre a Escritura
e a reforma da vida religiosa. Desta forma, não foi pequeno o impacto que os Irmãos da Vida
Comum e a devotio moderna deixaram em Lutero. Lucien Febvre registra a importância da
devotio moderna na Alemanha: “não quem, depois de ter cruzado as cidades renanas, não
saia de lá mais aberto, mais rico, marcado por um selo especial”
112
.
A estada em Eisenach foi bastante decisiva na formação de Lutero, mudando seu perfil
de rural para algo mais próximo a uma pequena burguesia urbana. Nas palavras de Brecht,
“em geral tudo estava dentro de parâmetros normais. Quaisquer possíveis efeitos
extraordinários de sua infância ou da herança juvenil ainda não se podiam discernir”
113
.
De Eisenach, Lutero mudou-se para Erfurt, onde matriculou-se na Universidade no
verão de 1501, agregando-se ao corpo de estudantes de uma das mais tradicionais
Universidades alemãs, naquele importante centro comercial da Turíngia, constando no livro
de matrículas como “Martinus ludher ex mansfelt”
114
.
Todos os estudantes de Erfurt deveriam cumprir estudos básicos em artes, após os
quais poderiam então encaminhar-se para uma das faculdades especializadas: teologia,
jurisprudência (direito) ou medicina. O estudo das artes possibilitou o surgimento dos
primeiros humanistas naquela Universidade, o que resultou em uma crise com os teólogos que
lecionavam lá. Esta crise era devida ao incentivo à retórica e à gica e argumentação, em
detrimento da dialética. Brecht afirma
115
que a formação conferida pelo estudo dessas “artes
liberais” influenciava tão profundamente os universitários de Erfurt que os acompanhava
durante o restante de seus estudos.
111 GANZER, Klaus e STEIMER, Bruno (eds.). Dictionary of the Reformation. New York: Herder & Herder,
2004, p. 93.
112 FEBVRE, Lucien. O Reno: História, Mitos e Realidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.
171.
113 BRECHT, Martin. Op. cit, p. 21.
114 Idem, p. 29.
115 Idem, pp. 27 ss.
47
Deve ser registrado que em Erfurt Lutero tomou contato pela primeira vez com uma
grande diversidade de estabelecimentos e instituições religiosas que, na cidade, eram em
número de quatro igrejas dotadas, vinte e uma igrejas paroquiais e onze mosteiros,
representando praticamente todas as ordens religiosas existentes então
116
. Em Erfurt, Lutero
encontrou irregularidades na conduta do clero, como as amantes dos padres e de outras
autoridades eclesiásticas, inclusive ligadas à Universidade, que eram referidas como Frau
Chanceler” ou Frau Reitor”
117
, além de travar contato pela primeira vez com os monges
cartuxos, que lhe causaram impressão tão negativa que contra eles escreveu muito
violentamente de modo especial após 1517.
A cidade, chamada de “Pequena Roma”, conquistou de seu senhor nominal, o
Arcebispo de Mainz, o direito de ter um governo semi-autônomo. Dickens ressalta que “a
cidade tinha todos os acessórios de uma metrópole alemã, das dispendiosas igrejas aos bem
geridos bordéis municipais”
118
.
O estudo das artes em Erfurt envolvia uma bastante sólida formação em filosofia, com
o contato travado com autores como Aristóteles, Petrus Hispanus, o neoplatônico Porfírio,
Eberhard de Betúnia e o matemático Euclides, entre outros. Indubitavelmente, o fato de os
trabalhos dos minimalistas Jodokus Trutfeter, de Eisenach e de Bartholomäeus Arnoldi, de
Usingen, estarem sendo bastante discutidos em Erfurt, refletiu-se na formação de Martinho
Lutero, que foi aluno do primeiro e cujas ideias veio a contestar posteriormente
119
. Estes
teólogos integravam o que se chamava de via moderna, a escola filosófica baseada nos
escritos de Guilherme de Occam, que marcaram profundamente a formação de Lutero em
Erfurt. O occamismo tinha distintas influências pelagianas, vendo o homem como um agente
livre, mas capaz de cooperar com Deus e de se fazer merecedor da salvação, tese da qual
Lutero discordou posteriormente.
Ainda que reputasse a carreira jurídica como “uma profissão mais preocupada com o
ganho sórdido do que com a justiça”
120
, no final da primavera de 1505 ele se inscreveu na
116 Idem, p. 26.
117 Idem, p. 27.
118 DICKENS, A. G.. Op. cit., p. 6.
119 BRECHT, Martin. Op. cit p. 35.
120 DICKENS, A. G.. Op. cit., p. 9
48
Faculdade de Direito da Universidade de Erfurt.
2.1.2 Vocação
Foi sua devoção a Santa Ana que, associada ao medo, em 2 de julho daquele mesmo
ano, o fez fazer votos e um juramento que mudariam sua vida. Em uma noite de forte
tempestade, próximo a Stotternheim, perto de Erfurt, quando um raio caiu junto ao cavalo no
qual estava, Lutero fez votos a Santa Ana, prometendo-lhe que, “se ela o salvasse, ele se faria
monge”.
Todos os seus biógrafos, mesmo os que mais se lhe opuseram, são unânimes em
aceitar esta versão para a conversão de Lutero. Faz-se importante ressaltar que não se trata de
uma conversão em sentido estrito, pois que Martinho Lutero sempre foi, como se viu, uma
pessoa vinculada à religião católica, mas sim de uma proposição de fazer votos religiosos.
Koestlin realça que “poucos dias depois, tranquilamente estabelecido em Erfurt, ele se
arrependeu de ter usado aquelas palavras, mas compreendera que fizera um voto e que, pela
força daquele voto, fora ouvido”
121
.
Dickens
122
ressalta que tais votos não eram incomuns desde a Idade Média, e que, em
1115, S. Norberto, fundador da Ordem Norbertina
123
, igualmente se convertera e fizera votos
quando em perigo de morte durante uma tempestade.
No dia 16 daquele mesmo mês, Lutero fez uma festa de despedida com seus amigos,
ingressando no dia seguinte no convento agostiniano de Erfurt, sendo levado aos seus portões
por seus amigos, muitos dos quais com lágrimas nos olhos
124
. O mesmo Koestlin informa que
a Ordem dos Monges Agostinianos era, àquela época, a mais importante na Alemanha
125
,
destacando-se, de modo especial, algumas de suas casas, por sua disciplina rígida e
observância de seus estatutos pelo que vieram a ser chamadas de Observantes –, diferindo
das demais ordens monásticas e conventuais na Alemanha, sendo corroborado pela
unanimidade dos biógrafos de Lutero.
121 KOESTLIN, Julius. Life of Luther. Halle-Wottenberg: s/e, 1881, p. 27.
122 DICKENS, A. G.. Op. cit., p. 9.
123 Premonstratesian Order, no original, em alusão ao nome da ordem: Ordem de Prémontré.
124 Ibidem.
125 KOESTLIN, J.. Op. cit., p. 28.
49
O Vigário Distrital na Província da Saxônia-Turíngia da Ordem Agostiniana
126
era
Johann von Staupitz, escritor e diretor espiritual dentro da “devoção moderna” e que viria a se
tornar um personagem fundamental na vida de Lutero. Àquele tempo, Staupitz desejava levar
todas as Casas da Ordem à observância, contando para isso com o apoio do líder do
movimento da observância, o hebraísta e classicista italiano Egídio Canísio de Viterbo, que,
pouco depois, assumiria como Superior-Geral de toda a Ordem
127
.
2.1.3 Agostiniano
A proposição de entrar para a Ordem Agostiniana não implicava, ipso facto, sua
admissão. O postulante, ao entrar para a Ordem, passava por um período no qual a sinceridade
de sua vocação era provada, e no qual ele poderia repensar seus votos. Passado esse tempo,
era admitido como noviço para um período probatório de não menos de um ano
128
. Deve ser
lembrado que sua entrada para uma ordem religiosa contrariou tremendamente seu pai, que o
queria abraçando uma profissão rentável.
A vida monástica e o sacerdócio, para o qual foi ordenado em 1507, mesmo ano em
que começou a estudar teologia em Erfurt, incutiram em Lutero ideias importantes, que
viriam a ser mais profundamente discutidas em sua obra, especialmente após 1517. Dentre
essas ideias encontramos a da dignidade especial do sacerdote e do sacerdócio e a da
superioridade da Igreja sobre o Estado. A primeira dessas ideias foi negada por ele em seus
escritos de 1520, ao defender o sacerdócio universal dos cristãos, e a questão das relações
entre Igreja e Estado foi abordada por ele na Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã,
também de 1520.
A vida monástica, porém, ao invés de afastá-lo da imagem de um Deus assustador,
sempre pronto a manifestar sua ira, pareceu cristalizar ainda mais tal imagem. Para descrever
sua experiência com Deus, Lutero usava uma expressão sem tradução exata para o português:
126 Segundo Febvre, Staupitz era o Vigário-Geral dos Agostinianos em toda a Alemanha, o que pode, talvez,
referir-se a um momento posterior. (Cf. Lucien Febvre, Matín Lutero: un destino, México: Fondo de Cultura
Económica, 1998, p. 23)
127 DICKENS, A. G.. Op. cit., pp. 10-11.
128 Ibidem.
50
Anfechtung
129
.
Essa relação tormentosa com o divino foi a responsável pelos incidentes que
ocorreram quando celebrou sua primeira missa, em 2 de maio de 1507, ocasião na qual quase
desmaiou. O padre jesuíta Grisar, importante autor contrário a todas as ideias de Lutero,
maximizou esse episódio, dizendo que Lutero teria fugido do altar, não fosse a intervenção
de seu acólito”
130
. Menciona, ainda, diversos outros episódios que usa para querer demonstrar
como Lutero seria próximo ao demônio, irreligioso e, portanto, inteiramente inapto para a
vida monástica
131
. Marius, em sua biografia de Lutero
132
, sustenta que esse transtorno estava
relacionado a toda uma concepção medieval sobre a transubstanciação e o papel do sacerdote
na sacramentalidade da missa, o que é também assumido por Bainton.
Foi Lutero um monge dedicado? É o próprio quem assim se define, como transcreveu
Lucien Febvre a partir dos Tischreden
133
:
Sim, em verdade fui um monge piedoso. E o estreitamente fiel à regra que
posso dizê-lo: se algum monge chegar ao céu pelo monacato, eu também
chegaria. que se o jogo durasse um pouco mais, teria morrido de vigílias,
orações, leituras e outros trabalhos. (...)
Durante vinte anos fui um monge piedoso. Disse uma missa diária. Esgotei-
me tanto em orações e em jejuns que se seguisse assim não resistiria muito
tempo mais. (...)
Se não tivesse sido liberado pelos consolos de Cristo, com a ajuda do
Evangelho, não teria vivido dois anos, a tal ponto estava crucificado e fugia
para longe da cólera divina
.
Como se vê, seus episódios de Anfechtungen o acompanharam por toda a sua vida
monástica, apesar de sua estrita observância das regras da Ordem Agostiniana.
Uma disputa no seio da Ordem Agostiniana na Saxônia, entre os “observantes” e os
129 Cf. BAINTON, Roland H.. Op. cit., p. 31: “It may be a trial sent by God to test man, or an assault by the
devil to destroy man. It is all the doubt, turmoil, pang, tremor, panic, despair, desolation, and desperation which
invade the spirit of man”. Também DICKENS (op. cit., p. 12) menciona os episódios de Anfechtungen de Lutero
como sendo frequentes em sua vida monástica. Bernhard LOHSE (LOHSE, Bernhard. Martin Luther: an
introduction to his life and work. Philadelphia: Fortress Press, 1986, pp. 23-25) traduz Anfechtung como
“spiritual temptation” (“tentação espiritual”). No dicionário Großwörterbuch Deutsch als Fremdsprache (Berlin:
Langenscheidt, 2003, p. 46), consta, no verbete anfechten: ficht an, focht an, hat angefochten. etw. a. die
Gültigkeit od. Richtigkeit e-r Sache nicht anerkennen, das Testament, e-n Vertrag a.>|| hierzu Anfechtung, die;
anfechtbar, adj.”. Pode ser traduzida, de modo aproximado, como “combate” ou “contra-ataque”
130 GRISAR, Hartmann. Luther. London: K. Paul, Trench, Trubner & co, 1913-1917, vol. 1, p. 47.
131 GRISAR, Hartmann. Idem., pp. 42, 49, 54 passim.
132 MARIUS, Richard. Martin Luther the Christian between God and death. Harvard: Harvard University
Press, 2004, p. 52-53.
133 FEBVRE, Lucien. Martín Lutero: un destino. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 22.
51
“conventuais”, fez com que Lutero fosse um dos dois monges de Erfurt escolhidos como
delegados para ir a Roma, em 1511
134
. Staupitz desejava e conseguiu isso do Superior-Geral
da Ordem, Egídio Canísio de Viterbo – que os claustros agostinianos da Saxônia, tanto
conventuais quanto observantes, fossem todos reduzidos à observância, com o quê não
concordaram os próprios observantes, que escolheram Lutero e um outro monge para
representá-los junto à Cúria Romana. Marius
135
sustenta que Lutero não foi o principal
delegado, mas sim um socius itinerarius, o companheiro de jornada que os agostinianos eram
obrigados a ter quando partiam em viagem.
Esta viagem, a mais longa feita por Lutero, foi altamente impactante para ele, tendo se
referido a ela muitas vezes em suas “conversas à mesa”, os Tischreden. Nela, Lutero pôde
contrastar a idealização de uma Roma proclamada como “capital da Cristandade” e uma
Roma real, irreligiosa, com as ruas tomadas por prostitutas muitas delas solicitadas por
clérigos, a ptica da pederastia por padres e tantos outros sinais de “decadência espiritual”
que chocaram o jovem monge. Sem dúvida, pode ser dito que esta viagem foi um ponto de
inflexão na vida de Martinho Lutero, ainda que “somente quando Lutero olhou em
retrospectiva, a partir da vida posterior, [foi] que ele usou suas memórias para criticar a
secularização da Igreja Romana. Naquele contexto, ele recordou e relatou exemplos
específicos de tal secularização a partir de sua experiência em Roma”
136
.
Quanto ao motivo específico de sua viagem a Roma, o apelo de seu convento foi
rejeitado mas, quando de seu regresso a Erfurt, Lutero apoiou um compromisso proposto por
Staupitz, embora a maioria dos monges daquela casa fosse contrária. Isso, seguramente,
valeu-lhe a simpatia e o apoio de Staupitz, que, em 1511, o enviou a ensinar na Universidade
de Wittenberg, da qual era Reitor, antes mesmo que Lutero obtivesse o título de baccalaureus
biblicus (Doutor em Teologia), o que somente conquistou em outubro de 1512. O Papa Júlio
II concedeu a Staupitz a permissão para que conduzisse e implementasse as reformas que
desejava.
134 MARIUS aponta (op. cit., p. 80) que a viagem se deu em janeiro de 1511, muito embora Lutero refira-se a
esta viagem como tendo sido realizada em 1510, atribuindo isso ao fato de que muitos religiosos consideravam o
novo ano como começando em 25 de março, festa da Anunciação.
135 Ibidem.
136 LOHSE, Bernhard. Martin Luther: an introduction to his life and work. Philadelphia: Fortress Press, 1986,
p. 28.
52
Importante salientar o papel de Staupitz na vida de Lutero, não apenas em sua vida
monástica, mas também influenciando sua teologia, sendo, nas palavras de Febvre, “o
primeiro a lhe pregar um Deus de amor”
137
. Nos Tischreden, Lutero fez o seguinte registro
sobre Staupitz: “se o Dr. Staupitz, ou antes, Deus, por intermédio do Dr. Staupitz, não me
tivesse ajudado a sair ileso das tentações, eu me teria afogado nelas e me encontraria no fundo
do inferno”
138
.
2.1.4 Professor e os primeiros escritos
Esta não foi a primeira vez que Lutero foi designado para ensinar em Wittenberg, pois
em 1508 ele fora enviado por seus superiores para o Convento Agostiniano daquela cidade,
onde ensinaria na Universidade, fundada em 1502 pelo Grande Eleitor, Frederico da Saxônia,
o Sábio. Desta feita, em 1511, ele daria aulas sobre a Bíblia, além de funcionar como pároco
naquela cidade.
As aulas ministradas por Lutero tiveram, pelo aprofundamento escriturístico que
demandaram, imensa importância para ele. Lohse refere as aulas dadas por Lutero em
Wittenberg como tendo os seguintes temas: “Salmos”, em 1513-1515; “Romanos”, em 1515-
1516 (para isso, preparou uma edição especial do texto latino com maior espaço entre as
linhas e maior margem, que serviu para que escrevesse seu próprio comentário); “Gálatas”,
em 1516-1517, e “Hebreus”, em 1517-1518. Deve ser destacado que especialmente os cursos
sobre os Salmos e sobre a Epístola aos Romanos foram marcantes para que Lutero começasse
a formular uma nova teologia. Lohse explica que, no início do século XVI, como herança da
teologia medieval, “o Livro dos Salmos era entendido primariamente como o livro das
orações de Cristo
139
e, neste sentido, Lutero focou especificamente na interpretação da
mensagem de Cristo.
Assim, as palavras humildade, orgulho, julgamento, confiança e o próprio evangelho
receberiam nova significação à luz da cruz de Cristo. Isto possibilitou a Lutero “concentrar-se
pesadamente nas relações pessoais do povo com Deus”
140
. Desta forma, começou aquilo que
137 FEBVRE, Lucien. Op. cit., p. 24.
138 LUTHER, Martin. The Table Talks of Martin Luther. Mineola: Dover, 2005, p. 18.
139 LOHSE, Bernhard. Op. cit., p. 29.
140 Ibidem.
53
Louis Dumont chama de “ideologia moderna”
141
e que Gabriella Cotta assinala como “das
mais significantes contribuições da Reforma para o nascimento do homem moderno”
142
.
O papel central do indivíduo em sua relação pessoal com Deus será um dos traços
distintivos da teologia de Lutero. O homem não era mais tomado como “ovelha de um
rebanho”, mas sim como indivíduo, com vontade própria e capaz de relacionar-se com Deus
sem a necessidade de obrigatória mediação eclesiástica ou clerical
143
. Se essa nova teologia só
passou a ser estabelecida e formulada de facto após 1517, sem qualquer dúvida os cursos
dados por Lutero como professor em Wittenberg lançaram suas sementes.
O contato com as leituras humanísticas e a necessidade de aprofundar-se na leitura e
no conhecimento do texto bíblico levaram Lutero a dar uma dimensão evangélica ao lema dos
humanistas: ad fontes!, “às fontes!”, o que lhe fez estabelecer a Escritura como autoridade
primária para a vida cristã. Sem dúvida alguma, isto é um reflexo de seu convívio com os
Irmãos da Vida Comum e da influência que a devotio moderna exerceu sobre Lutero.
Não existe uma distinção não muito clara entre a hermenêutica medieval e a
hermenêutica reformada inicial. Não é facilmente perceptível uma linha divisória entre aquela
praticada pelos teólogos medievais e a dos teólogos reformadores e reformados. Johann
Faber
144
, hermeneuta de linha agostiniana na transição do medievo para a modernidade,
afirmava que o sentido literal de textos do Antigo Testamento seria sempre profético ou
cristológico. Seria Cristo a falar, por exemplo, nos Salmos e sobre ele mesmo, posição
defendida por Lutero quando de sua docência em Wittenberg, ao ministrar suas Lições sobre
os Salmos. Daí emergiria a missão do estudioso e do leitor da Sagrada Escritura: importava
mais à Igreja que o pregador esclarecesse como e quando o Cristo falava de si ou de seu corpo
místico, a Igreja, do que uma exegese original, gramatical ou histórico-literária.
Lutero desenvolveu sua análise e visão bíblica dentro fiel à sua formação
141 DUMONT, Louis. Essais sur l’individualisme. Paris: Points, 1991, p 5.
142 COTTA, Gabriella. La nascità dell’individualismo politico. Roma: Il Mulino, 2002, p. 10.
143 A questão é demasiado complexa para ser aprofundada nesta tese. De modo particular, o conceito luterano
sobre oservo-arbítrio” seria suficiente para, por si só, merecer uma tese inteira.
144 Faber teria sido dominicano, mas não existe certeza sobre o fato, que, porém, é aceito como verdadeiro pela
tradição.
54
agostiniana
145
, impregnada de neoplatonismo que elaborou a noção de que a ação de Deus em
Israel, em Cristo e no mundo era feita através do Espírito; o mesmo Espírito que, quando da
leitura bíblica, permitia o estabelecimento de uma relação entre o leitor e a Escritura. Se a
ação de Deus em toda a história de Israel se fazia pelo Espírito, visando a Cristo e à
Revelação, Lutero lia o Novo Testamento como uma simples explicação do Antigo
Testamento, como um fim deste, como um ut.
2.1.5 “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus”.
O foco central dessa nova teologia era a passagem da Epístola aos Romanos: “o justo
viverá da fé” (Rm. 1:17, que remete a Habacuque 2:4)
146
. Desta forma, entendia Lutero que a
justificação do homem se dava pela fé, e não por obras meritórias, muito menos por compra
de indulgências
147
. Lohse aponta a divisão entre especialistas acerca de quando Lutero teria se
apercebido de que apresentava uma nova teologia, com um grupo apontando como tendo
ocorrido em 1514 e outro, em 1518
148
. Pelo desenrolar dos acontecimentos entre 1514 e 1517,
parece-me mais defensável a proposta de que Lutero tenha, em 1514, começado a refletir
sobre este ponto, uma vez que o curso sobre a Epístola aos Romanos foi dado entre 1515 e
1516. A fundamentação maior vem do fato de muitas das “95 Teses”, afixadas em 1517,
criticarem duramente a venda das indulgências. Essa “teologia da cruz”, como bem a define
Richard Kolb, era baseada na ênfase do “poder do Evangelho para recriar os pecadores à
imagem de Deus”
149
. Kolb entende que a teologia da cruz, descrita nas Teses de Wittenberg,
rejeita a “teologia da glória” e os teólogos que fazem sua apologia, por entender que tal
teologia “é uma tentativa de os homens terem controle sobre a revelação de Deus em Cristo e
na escritura através de explicações racionais sobre aquilo que Deus não explica”
150
.
145 Agostinho defendia a distinção entre o espírito e a letra, enfatizando mais a intenção do texto, sempre
cristológica, do que o sentido literal.
146 Todas as citações bíblicas em português são retiradas da Bíblia Sagrada e Hinos do Povo de Deus. Almeida
Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil e Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil,
1998.
147 A venda de indulgências era prática corrente na Igreja Católica Romana e aceita como válida desde a Alta
Idade Média. Consistia em o fiel dar à Igreja, por intermédio de um representante do clero, uma importância em
dinheiro ou em bens, cumprir algum tipo de penitência ou de ritual, adquirindo através disso um documento que
certificava que o fiel mereceria a redução do tempo que passaria no purgatório, podendo, ainda, adquirir tais
indulgências para um parente ou amigo morto.
148 LOHSE, Bernhard. Op. cit., pp. 29-30.
149 KOLB, Robert. Martin Luther: Confessor of the Faith. Oxford: Oxford, 2009, p. 55.
150 Idem, p. 56.
55
Um aprofundamento das ideias dessa “nova teologia” inaugurada por Lutero pode ser
obtido nos textos de Marc Lienhard
151
e de Harding Meyer e Jean-Yves Lacoste
152
. Lienhard
sustenta que “quando o batismo, a pregação e a ceia são conformes ao Evangelho, aí a
verdadeira Igreja se faz presente”, e que o critério para definir o que seria um cristão residiria
essencialmente na
153
. Contudo, passarei ao largo do cerne da discussão teológica, pois que
esta não é o foco da presente Tese.
Franco Buzzi salienta a importância que os estudos sobre o Salmo 51
154
tiveram sobre
a formulação dessa nova teologia fundada por Lutero, baseada na graça de Deus. Este salmo
penitencial, usualmente atribuído a Davi, inicia com o versículo “Compadece-te de mim, ó
Deus, segundo a tua benignidade”, e confessa em seu versículo 4
155
: “Pequei contra ti, contra
ti somente”. Buzzi entende que os estudos desenvolvidos por Lutero sobre este salmo, de
modo especial, levaram-no a formular sua teologia de justificação pela fé, segundo a qual o
homem somente pode ser justificado pela fé perante Deus se Deus o justificar, como se lê
156
:
As palavras ou os discursos com os quais Deus se dirige ao homem são, antes
de tudo, aqueles da sua lei, a qual acusa o homem de pecado.Quando o
homem aceita como justa a acusação que Deus lhe faz na lei e coloca-se diante
da lei (que lhe serve como espelho), reconhece-se pecador diante de Deus,
enquanto que Deus reconhece justo o homem que se acusa de pecado. Mas
este ‘dar razão a Deus nas suas palavras’ não é outra coisa senão aderir com
à Palavra de Deus, isto é ter fé ou verdadeiramente remeter-se totalmente com
fidúcia àquele Deus que nas palavras da sua revelação se dirige ao homem.
Aqui encontramos o núcleo central da doutrina luterana da justificação pela
fé. Mas é o icio da compreensão. De fato trata-se de dar-se claramente
conta de uma coisa: Jesus Cristo mesmo e seu Evangelho são a plenitude dos
discursos que Deus dirige ao homem. Portanto, somente quem dá razão a Deus
aderindo ao Evangelho de Cristo é considerado justo por Deus: é justificado
em razão de sua fé em Cristo.
Ainda quanto à questão sobre a justificação, Lutero, em seu “Comentário à Carta aos
Romanos”, de 1515-1516, afirma
157
:
151 LIENHARD, Marc. Luther Martin, 1483-1546. In LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dictionnaire critique de
théologie. Paris: PUF, 2007, pp. 816-821.
152 MEYER, Harding e LACOSTE, Jean-Yves. Lutheranisme. In LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dictionnaire
critique de théologie. Paris: PUF, 2007, pp. 822-826.
153 LIENHARD, Marc. Op. cit., p. 818.
154 BUZZI, Franco. Breve storia del pensiero protestante da Lutero a Pannenberg. Roma: Ancora, 2007, p. 14.
No texto, o autor, seguindo a numeração usada na Vulgata, o refere como Salmo 50.
155 Em Buzzi, este versículo é citado como o versículo 6, seguindo igualmente a divisão da Vulgata: Tibi, tibi
soli peccavi et malum coram te feci.
156 BUZZI, Franco. Op. cit., pp. 14-15.
157 Apud BUZZI, Franco. Breve storia del pensiero protestante da Lutero a Pannenberg. Roma: Ancora, 2007,
56
Deus é justificado nas suas palavras significa: ele mesmo torna-se justo e
verdadeiro nas suas palavras; ou, por outro lado, as suas palavras tornam-se
justas e verdadeiras. Isto ocorre quando se crê nelas acolhendo-as e tendo-as
como verdadeiras e justas. A esta justificação, porém, nenhuma outra
resistência pode opor-se, se não a soberba do coração humano com a sua
incredulidade. Esta, de fato, não justifica [as palavras de Deus]; ao contrário:
[a] desaprova e [a] julga. Não crê nelas porque não lhes tem verdadeiras. Mas
não lhes reputa verdadeiras porque considera verdadeiro o seu modo de
pensar.
Não se pode, porém, deixar de salientar que, durante seu tempo docente em
Wittenberg, Lutero manteve-se afastado de quaisquer controvérsias com Roma, estando
concentrado em sua docência, inteirando-se das disputas teológicas correntes então, com as
críticas e restrições que se faziam à escolástica. Deve ser lembrado que, durante a estada de
Lutero em Wittenberg, ocorria o V Concílio de Latrão (1512-1517), um Concílio que se
pretendia reformador, mas que, em verdade, foi dos mais políticos e diplomáticos que houve
na história da Igreja. Posteriormente, esse Concílio será mais detalhadamente examinado.
Essa “aversão à teologia escolástica”, como define Félix Pastor
158
, não era exclusiva
de Lutero (sobretudo do Lutero após 1520), mas comum aos demais “Pais da Reforma”, como
Melanchton e Calvino, sendo apontada pelo mesmo Pastor como a matriz de uma heterodoxa
linguagem trinitária, amparada no biblicismo dos Reformadores.
Não é demais salientar que os escritos de Lutero até 1517 são pietistas e, de certo
modo, refletindo uma ortodoxia do pensamento católico romano, à exceção do “Comentário
aos Romanos”, de 1514, no qual uma nova teologia, muito mais calcada na graça de Deus,
começa a se esboçar. Sobre o pietismo, é necessário que seja dito que, embora o movimento
tenha surgido formalmente no século XVII
159
, oriundo do próprio luteranismo, suas raízes
remontam ao medievo, tendo por inspiração a prática da piedade bíblica e uma concepção
ascética da vida cristã. O pietismo gerou movimentos com profundas vinculações entre o
teológico e político, como os puritanos na Inglaterra. Em dados momentos, o pietismo
associou-se a um espírito milenarista, messiânico. John Gray recorda que “a crença na
p. 15.
158 PASTOR, Félix Alexandre. Semântica do Mistério. In PALÁCIO, Carlos (org.). Cristianismo e História.
São Paulo: Loyola, 1982, p. 194..
159 Cf. a esse respeito MANZANARES, sar Vidal. Dicionário Histórico do Cristianismo. Aparecida:
Santuário, 2005, p. 349.
57
aproximação do fim dos tempos era comum entre as seitas dissidentes mais radicais”
160
. Na
própria Alemanha, a Guerra dos Camponeses (1524-1525) exemplifica bem o impacto do
pietismo quando associado ao milenarismo. A crença na iminência do fim dos tempos e de
que a satisfação das reivindicações estaria próxima levou camponeses e trabalhadores urbanos
alemães ao saque de mosteiros e palácios.
Em 1517, porém, houve uma inflexão em seu pensamento teológico: já em um escrito
de 4 de setembro de 1517 redigido entre 21 de agosto e aquela data , o “Debate sobre a
Teologia Escolástica” (Disputatio contra scholasticam theologiam), Lutero, na condição de
decano da Faculdade de Teologia de Wittenberg, apresentou teses refutando pontos da
doutrina católica tradicional a respeito do livre-arbítrio e contra diversos aspectos da teologia
escolástica, valorizando sobremaneira a graça de Deus. Muitas das teses aí apresentadas serão
aprofundadas por Lutero em uma obra de 1525, De Servo Arbitrio, “Sobre o Cativeiro da
Vontade”, que é reconhecida como um dos pilares do pensamento da Reforma.
A questão da justificação em Lutero será por ele desenvolvida em muitos de seus
escritos posteriores, constituindo-se em alicerce da sua teologia. Em seus principais tratados
de 1520, a justificação pela foi retomada com a ênfase no fato de que somente a é
necessária para a salvação, sendo os costumes e usos humanos vistos como opostos a essa
salvação unicamente baseada na fé na Escritura e, portanto, perigosos à salvação da alma. No
Capítulo III desta Tese, as principais críticas formuladas por Lutero aos usos e costumes
humanos defendidos pela Igreja Romana, assim como sua defesa da salvação pela graça e pela
serão explicadas um pouco mais detidamente, ainda que superficialmente, pois sua análise
em maior profundidade não constitui o cerne desta Tese.
Faz-se necessário sinalizar, todavia, que a teologia proposta por Lutero não retirava a
Lei do seu lugar central na teologia. O que se reforçava era a ideia de que a Lei servia, nas
palavras de Troeltsch, como um estímulo para o arrependimento e como uma pré-suposição
da e do Evangelho da graça”
161
. Sua crítica era formulada quanto a se fazer da Lei e de
leis e ritualismos – o meio para a salvação. Em seu entender, isso seria trocar o essencial pelo
acessório. Em seus escritos de 1520, sua condenação a tudo o que desviar da e da graça se
160 GRAY, John. Missa negra. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 41.
161 TROELTSCH, Ernst. The social teaching of the Christian Churches. London: Westminster John Knox Press,
1992, vol. 2, p. 468.
58
fará mais explícita e detalhada, como se verá no Capítulo III.
O “Debate sobre a Teologia Escolástica” presidido por Lutero, referido anteriormente,
que serviu para a obtenção do grau de bacharel em estudos bíblicos pelo mestre Francisco
Günther, não tratou, em nenhuma de suas 97 teses
162
, da questão das indulgências, muito
embora toda a construção do texto seja feita em torno da ideia da graça de Deus como único
meio eficaz para a salvação do homem. Esta formulação será retomada de forma muito mais
veemente nas “95 Teses”, originalmente chamadas de “Debate para o Esclarecimento do Valor
das Indulncias” (Disputatio pro declaratione virtutis indulgentiarum), afixadas em
Wittenberg em 31 de outubro de 1517, cuja colocação e leitura pública marca formalmente o
início da Reforma Protestante.
2.2 Um homem chamado Lutero: das “95 Teses” aos escritos de 1520
2.2.1 Véspera de Todos os Santos, 1517
As 95 Teses foram, de certo modo, uma ruptura com os ensinamentos tradicionais da
Igreja. Lutero não excluía qualquer forma das indulgências; limitando-as, porém, às penas
temporais impostas pela Igreja; insurgindo-se, todavia, contra a sensação de segurança, para
ele falsa, quanto à salvação que a aquisição de indulgências dava ao fiel. Curiosamente, ao
longo do documento, Lutero ora afirma crer no poder das indulncias (nas teses 25, 26, 34 e
38, por exemplo), ora descrê desse poder (teses 32, 39, 40 e 76, por exemplo); ora admite a
compra, mas não sua exigência (tese 47), ora condena o comércio das indulgências (teses 27,
28, 43, 45, 46, 48, 51, 53, 54 e 67, por exemplo), chegando mesmo a incentivar, como na Tese
72, a que se resista aos pregadores de indulgências.
Vejamos como o Reformador se expressava, em algumas de suas “95 Teses”, aqui
apresentadas na ordem em que foram expostas, quanto aos pontos abordados no parágrafo
anterior
163
:
162 Deve ser assinalada a formulação de Joachim Fischer, que sustenta que “é provável que as teses tenham sido
originalmente impressas em forma de cartaz para poderem ser afixadas em Wittenberg, nos lugares destinados a
esse fim. Não se conhece nenhum exemplar do original. nas reedições as teses estão numeradas; contam-se
entre 97 e 100 teses. Os editores modernos preferem contar 97 teses”. (In
Martinho Lutero – Obras Selecionadas
– vol. 1 – Os Primórdios – Escritos de 1517 a 1519. S. Leopoldo: Sinodal, 2004)
163 As citações são retiradas de Martinho Lutero Obras Selecionadas vol. 1, pp. 21-29, S. Leopoldo: Ed.
59
O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que
impôs por decisão própria ou dos cânones. (Tese 5)
O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves
(que ele não tem), mas por meio de intercessão. (Tese 26)
Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada
na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu]. (Tese 27)
Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do
papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é
reconciliada com Deus. (Tese 33)
Pois aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de
satisfação sacramental, determinadas por seres humanos. (Tese 34)
A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das
indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.
(Tese 40)
Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que
o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do
amor. (Tese 41)
Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao
necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências. (Tese 43)
Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não
constitui obrigação. (Tese 47)
Deve-se ensinar aos cristãos que quem um carente e o negligencia para
gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira
de Deus. (Tese 45)
Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem
conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar
dinheiro com indulgência. (Tese 46)
O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça
de Deus. (Tese 62)
Sinodal, 2004, tradução de Martin Norberto Dreher.
60
Por esta razão, os tesouros do Evangelho o as redes com que outrora se
pescavam homens possuidores de riquezas. (Tese 65)
Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca
a riqueza dos homens. (Tese 66)
As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças
realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.
(Tese 67)
Entretanto, na verdade, elas são as graças mais ínfimas em comparação com a
graça de Deus e a piedade na cruz. (Tese 68)
Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade
das palavras de um pregador de indulgências. (Tese 72)
A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem
absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso
fosse possível, é loucura. (Tese 75)
Esta última Tese merece um comentário especial, pois algumas fontes referem que o
legado papal para a venda de indulgências na Alemanha, Johann Tetzel, teria, em um sermão,
afirmado que as indulgências absolveriam “mesmo aquele que houvesse violado a própria
mãe de Deus”
164
.
Através da venda das indulgências, era possível, da parte de Lutero, como lembra
Buzzi, “ver emblematicamente – especificamente naquele comportamento prático – uma
imagem de Igreja que se concebia a si própria como mediadora da salvação em lugar de
Cristo”
165
. Em essência, nesse documento é plausível, portanto, ver-se um liame de
continuidade na crítica à instituição eclesiástica entre o pré-reformador Jan Hus e seus
“irmãos boêmios” e a Reforma inaugurada com Lutero.
164 O episódio é explicitamente mencionado em JOHNSTON, Pamela e SCRIBNER, Bob. The Reformation in
Germany and in Switzerland. New York: Cambridge University Press, 1999, p. 12, na reprodução do relato de
Francisco Myconius, morador de Gotha: “Então ele [Tetzel] disse que se alguém tivesse dormido com a querida
mãe de Cristo, o Papa teria poder para… perdoar assim que o dinheiro fosse posto no cofre das indulgências”.
Existe o seguinte registro, bastante similar ao anterior, de Friedrich Mecum, morador de Sta. Anabel,
posteriormente recolhido por Myconius: Ele [Tetzel] proclamava que se um homem tivesse tido sexo com sua
própria mãe e então pusesse o dinheiro na cesta de indulgências do Papa, este teria o poder, no céu e na terra de
perdoar o incesto, e, então, se o Papa perdoava, Deus o faria também”. (NAPHY, William G.. Documents on the
Continental Reformation. London: Macmillan, 1996, p. 12, remetendo a MYCONIUS, F. Historia
Reformationis. Leipzig: Weidmann, 1718, 5.362)
165 BUZZI, Franco. Op. cit., p. 16.
61
Essas Teses, para além de romperem com a doutrina católica tradicional, apontaram
igualmente para uma nova teologia, de modo especial no que se refere à disciplina dos
sacramentos. Lutero referiu-se em vários pontos das Teses à penitência, por ele entendida não
apenas como uma “penitência sacramental”, mas no sentido mais profundo de
arrependimento, a partir dos ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento. Esse aspecto,
particularmente, seria por ele retomado em seu escrito de 1520 “Sobre o Cativeiro Babilônico
da Igreja”.
As 95 Teses, porém, não se esgotam na questão das indulgências. Ainda que tenham
havido outros escritos de Martinho Lutero que foram muito mais veementes na condenação de
erros, pecados e desvios cometidos pelo clero, incluídos não apenas os sacerdotes, mas
também os bispos, os cardeais (especialmente os curiais) e o próprio Papa, as 95 Teses têm um
caráter simbólico bastante expressivo, que faz com que a data de sua afixação seja usada
como marco referencial para o início da Reforma Protestante.
Nelas, não se anunciava uma ruptura institucional com Roma, mas não é equivocado
afirmar que foram elas que moldaram os escritos imediatamente posteriores de Martinho
Lutero. Se este desejava promover um debate blico pela afixão de suas teses, como era
costume nas faculdades de teologia, direito e filosofia à época, o efeito causado foi muito
maior, tal como sua repercussão. Por tocar em um assunto candente, uma vez que a nova
coleta de dinheiro através da venda de indulgências na Saxônia e em outras partes da
Alemanha, para que o Cardeal Alberto de Brandenburgo conseguisse pagar por sua terceira
titulação episcopal
166
, ainda estava em curso, a afixação das 95 Teses atraiu para o debate não
apenas eclesiásticos mas também pessoas de todos os segmentos da sociedade alemã.
A partir delas, pode ser iniciado o grande debate sobre os limites do poder papal quer
na esfera secular mas também na esfera espiritual. Federico Fliedner informa que na noite do
mesmo 31 de outubro, Lutero enviou cópia das Teses ao eleitor Alberto de Mogúncia, com
166 O Cardeal Alberto de Brandenburgo já tinha duas titulações episcopais, os Arcebispados de Halberstadt e de
Magdeburgo. Acumular uma terceira era formalmente proibido pelas leis canônicas. Em 1514, seu irmão
conseguiu que o Papa Leão X lhe autorizasse acumular o Arcebispado de Mainz e a Primazia da Alemanha
mediante o pagamento de 10.000 ducados pessoalmente ao Papa e mais 21.000 ducados a título de tarifa de
pálio. Leão X intermediou a negociação desta dívida com a Casa Fugger, mediante a promulgação da venda de
indulgências pelos próximos oito anos, cuja renda reverteria metade para os banqueiros e para o Papa, para a
construção da Basílica de São Pedro.
62
uma carta sua, neutralizando, desta forma, “a rudeza e o atrevimento desse passo”
167
. O
mesmo autor relata que Lutero escreveu no mesmo sentido a alguns bispos. O bispo de
Brandenburgo e outros homens estimados por Lutero, como Frederico da Saxônia, deram
resposta semelhante, no sentido de que Lutero deveria ficar tranquilo e em silêncio, “a fim de
não perturbar a paz das consciências”
168
.
Fliedner é um dos autores que registra a velocidade com que as Teses começaram a
circular pela Alemanha e mesmo fora dela: “é quase incrível a rapidez com que, antes que se
houvessem transcorrido quinze dias, propagaram-se estas teses por quase toda a Alemanha, e
em menos de um mês foram conhecidas na maior parte da cristandade europeia”
169
. Uma
hipótese que se pode fazer acerca da rapidez da divulgação das Teses é a mesma que se lança
acerca dos demais escritos de Lutero analisados no corpo desta Tese, que é a de que suas
ideias ecoavam um sentimento que permeava a sociedade alemã e que, em verdade,
ultrapassava a questão das indulgências, embora esta fosse a fonte do ataque imediato que se
fazia sobre a autoridade do Papa.
2.2.2 A questão das indulgências
Visto que a questão das indulgências tornou-se o ponto principal do início da Reforma,
é importante que se uma explicação a seu respeito. A Bula Unigenitus Dei Filius, assinada
em 1343 pelo Papa Clemente VI, assegurava textualmente que
a paixão e morte de Cristo adquiriram um inesgotável tesouro de méritos
reservado nos céus para a Igreja, para o qual a Virgem Maria e os santos
continuavam a contribuir e que tinha especificamente garantido a Pedro e a
seus sucessores com o propósito de aliviar os fiéis de suas penalidades
temporais, através da aquisição de indulgências.
170
Para além disso, a Bula condenava igualmente que os fiéis leigos tivessem acesso à
Bíblia e a lessem, especialmente o Novo Testamento.
Estas duas proposições tiveram desdobramentos importantes em dois aspectos na
dinâmica da Cristandade. O primeiro foi a busca de relíquias (originais ou, na maioria,
forjadas) e seu comércio, como parte da “aquisição do tesouro dos ritos de Cristo”, para a
167 FLIEDNER, Federico. Martín Lutero – su vida y su obra. Barcelona: Clie, 2004, p. 68.
168 Ibidem.
169 Idem, p. 74.
170 BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cris. São Paulo: Aste, 2007, p. 184.
63
qual as Cruzadas também contribuíram grandemente. Quanto ao segundo aspecto, seu
resultado imediato foi a concentração de maior poder nas mãos do clero através do monopólio
do conhecimento da Bíblia.
A ideia do “tesouro de méritos” disponível aos fiéis cristalizou-se no imaginário
popular no medievo, sobrevivendo à questão da legitimidade dos papas avinhonenses (ainda
que tenha sido escrita três décadas antes do cisma do ocidente) e de seus decretos e bulas
171
.
Muitos papas viram esse desejo dos fiéis de adquirir parte desse “tesouro de méritos”
como uma oportunidade para arrecadar fundos suplementares para a Igreja, cujas finanças
estiveram bastante combalidas em várias ocasiões, inclusive ao final do pontificado do
próprio Clemente VI. De modo especial, durante os pontificados de Alexandre VI (1492-
1503), Júlio II (1503-1513) e Leão X (1513-1521), por razões que serão oportunamente
examinadas, as finanças romanas encontravam-se em situação bastante delicada.
As indulgências poderiam ser adquiridas de duas formas: através da realizão de
práticas penitenciais acompanhadas de orações, ou através da compra, mediante doação de
importância material ao “óbolo de São Pedro”. Desta forma, o fiel poderia adquirir partes
desse tesouro não somente para si, mas também para parentes ou amigos falecidos, reduzindo-
lhes o tempo no purgatório de acordo com a doação ou penitência.
Independentemente de quaisquer considerações teológicas que se possa tecer sobre a
validade ou nulidade de tais procedimentos, eles indubitavelmente foram bem aceitos pela
prática do catolicismo popular europeu. Embora algumas vozes se hajam levantado contra tais
práticas, dentre as quais as de Jan Hus e de John Wycliff, somente as críticas feitas por Lutero,
a partir de 1517, resultaram em uma efetiva e drástica redução da busca a essas práticas,
cessando por completo em dadas regiões da Europa.
Buscando-se uma definição mais precisa sobre o que eram as indulgências e acerca da
importância do debate lançado por Lutero, pode-se recorrer àquela de Pierre Bühler, no
verbete “Justificação”, na Encyclopédie du Protestantisme
172
:
171 A questão dos Papas e Antipapas será abordada mais adiante.
172 GISEL, Pierre e KAENNEL, Lucie (orgs.). Encyclopédie du protestantisme. Paris: PUF, 2006, pp. 708-709.
64
Na cena pública, é atacando a prática da venda de indulgências que Lutero
deslancha o debate com a tradição medieval. As indulgências são os atestados
oficiais de que alguém pôde adquirir a preço de dinheiro por si mesmo ou por
seus parentes defuntos e que garantiam a remissão de certas penas temporais
impostas no purgatório para a purificação da alma. O tráfico de indulgências,
lastreado no tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, parecia a Lutero uma
desconsideração da seriedade da graça e, portanto, da seriedade do pecado.
Esse tráfico cria uma ilusão de uma salvação que se pode parcialmente, ao
menos – adquirir por seus próprios meios, por suas próprias foas.
Complementando, ainda, tal definição, pode-se recorrer à de Gerhard Ludwig Müller,
no verbete “Indulgências”, do Dictionary of the Reformation, onde se
173
:
Este termo designa a ‘remissão de uma pena temporal por Deus para os
pecados, onde a culpa desses pecados foi perdoada’ (Paulo VI,
Indulgentiarum doctrina); foi somente na tradição latina que a Igreja lidou
com isso dessa maneira específica, já que as Igrejas orientais nunca
conheceram essa condução. No Ocidente, a controvérsia acerca das
indulgências causou a divisão da Igreja no século XVI.(...)
O magistério da Igreja nunca implementou uma completa teoria das
indulgências, mas alguns elementos doutrinais foram explicitados quando
dúvidas teológicas e pastorais foram levantadas sobre a prática das
indulgências (que, de fato, sempre foi questionável) por Jan Hus e John Wyclif
e por Martinho Lutero.(...)
A doutrina do ‘tesouro da Igreja’ como base para a doutrina das indulgências
foi primeiramente proposta pela bula jubilar Unigenitus Dei Filius, de 27 de
janeiro de 1343, de Clemente VI. Na bula Salvator Noster, de 3 de agosto de
1476, ampliada na encíclica Romano Pontifice provida, Sixto IV explicou
como as indulgências agiam em favor dos fiéis. Leão X respondeu no decreto
Cum postquam, endereçado ao Cardeal Thomas Cajetan, de 9 de novembro de
1518, e na bula Exsurge Domine, às críticas de Lutero de que as indulgências
eram uma fraude piedosa que iludiam o povo com uma falsa sensação de
segurança e o seduziam a abandonar as boas obras. O sumário de doutrina e
prática de Leão X foi confirmado pelo Concílio de Trento, na Sessão XXV, em
seu decreto sobre as indulgências.
Rita Scotti, em sua obra sobre a construção da Basílica de S. Pedro, relembra que a
ganância por acumular cada vez mais riquezas dataria dos tempos do papado de Avignon, no
grande cisma do Ocidente. Recorda ela que, a esse respeito, Santa Brígida afirmou: “Ó,
Roma, Roma, agora posso dizer de ti o que disse o profeta sobre Jerusalém! Os dez
mandamentos são condensados numa única máxima: ‘doai dinheiro!’”
174
. Os elevados custos
para a construção da Basílica de S. Pedro, iniciada em 1505, sob Júlio II, e concluída sob o
papado de Alexandre VII, em 1680, elevaram a necessidade de aumentar a arrecadação
eclesiástica. As campanhas militares lançadas por Júlio II também demandaram mais recursos
173 GANZER, Klaus e STEIMER, Bruno (eds.). Dictionary of the Reformation. New York: Herder & Herder,
2004, p. 161.
174 SCOTTI, Rita A.. Basílica de São Pedro: esplendor e escândalo na construção da catedral do Vaticano. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 41.
65
para a manutenção dos exércitos papais. Novamente a venda de indulgências surgia como a
opção mais rápida e eficaz para tal.
Martin Norberto Dreher acrescenta, na Introdução ao “Debate para o Esclarecimento
do Valor das Indulgências”
175
que
as indulgências tinham destacada importância sob o aspecto financeiro. A
Cúria e o Estado Papal dependiam em grande parte das rendas auferidas com a
venda de indulgências. Muitos projetos eram financiados com a publicação de
indulgências. No campo econômico, pode-se afirmar que as indulgências
tinham a mesma função que, mais tarde, teriam os empréstimos.
176
Sobre as indulgências e, de modo especial sobre a atuação de Johann Tetzel, James
Atkinson
177
apresenta um conjunto de observações bastante interessantes, reproduzindo
trechos de pregações do dominicano e, ainda, um episódio sobre Tetzel:
Os mortos gritam: compadecei-vos! Compadecei-vos! Estamos em um
horrível tormento do qual vós podeis livrar-nos pelo valor de um nada.
Quando o dinheiro soa na caixa, a alma salta para o céu.
Vós nos deixareis aqui entre as chamas? Atrasareis a glória que nos foi
prometida? Então, não aceitareis por um simples quarto de florim estas bulas
de indulgência por meio das quais podeis conduzir uma alma divina e imortal
à pátria do paraíso?
[Há evidência de] um outro estudante que, antecipando-se ao sermão que
Tetzel faria no dia de S. Miguel Arcanjo, roubou uma pena das asas de São
Miguel e substituiu-a por um pedaço de carvão e que presenciou como Tetzel
abria dramaticamente a caixa e, com certa presença de espírito, desviava seu
sermão do Arcanjo e sua pena para o tema dos restos calcinados do pobre São
Lourenço.
Outros exemplos da pregação de Tetzel são encontrados na obra de William Naphy
sobre os Documentos da Reforma no Continente
178
.
Uma discussão impõe-se acerca de se seria e o quanto seria uma imoralidade a venda
das indulgências. Entendo que a condenação liminar dessa prática reveste-se de uma visão
anacrônica, por ver com o olhar e os valores da contemporaneidade – sobretudo, pós-Reforma
175 DREHER, Martin Norberto. In Martinho Lutero – Obras Escolhidas, vol. 1. S. Leopoldo: Sinodal, 2004, pp.
21-22.
176 Neste sentido, v. p. 84 do Capítulo II.
177 ATKINSON, James. Lutero y el nacimiento del Protestantismo. Madrid: Alianza, 1993, pp 162-163, passim.
178 NAPHY, William G.. Documents on the Continental Reformation. London: Macmillan, 1996, pp. 11-12.
66
e pós-Iluminismo um fenômeno medieval e da modernidade inicial. A crítica principal feita
por Martinho Lutero era focada em dois aspectos centrais: quanto à inutilidade de tais
práticas, visto a salvação ser garantida por e por graça; e o segundo quanto à lassidão que
uma permuta de penas por dinheiro poderia induzir o fiel. Neste sentido, sim, a venda de
indulgências correspondia a um abuso moral, maior do que a concupiscência do Papa
Alexandre VI, por exemplo, que será examinada um pouco mais detalhadamente no Capítulo
II. Dentro, portanto, do conjunto da teologia medieval, a compra e venda de indulgências não
constituía uma aberração ou uma degeneração moral.
2.2.3 O Sermão Sobre a Indulgência e a Graça
Em meados de 1518, Lutero publicou um sermão no qual procurava resumir os pontos
centrais de suas “95 Teses”. Seu Sermão sobre a indulgência e a graça focava na questão
penitencial, entendendo o Reformador que a penitência e o arrependimento devem atingir o
cristão como um todo, e que este não deve fugir ao castigo, mas, ao contrário, assumi-lo como
cruz. Do ponto de vista teológico, este Sermão era permeado da ideia de que a real e efetiva
prática da penitência somente seria eficaz com o combate à teologia escolástica, que induzia a
uma certa frouxidão na fé e a uma falsa segurança quanto às indulgências.
Este Sermão, porém, já assinalava a percepção clara de Lutero de que ele se
encaminhava para uma situação de ruptura com Roma, como se no vigésimo (e último)
ponto do Sermão
179
:
Ainda que alguns, para os quais esta verdade grande prejuízo material,
agora me chamem de herege, não dou muita importância a semelhante
palavrório, pois quem está a fazê-lo são alguns cérebros tenebrosos que nunca
cheiraram a Bíblia, nunca leram os mestres cristãos, nunca entenderam os seus
próprios professores e estão quase a decompor-se em suas opiniões
esburacadas e esfarrapadas. Pois se os tivessem entendido, saberiam que não
devem difamar ninguém sem ouvi-lo e convencê-lo do seu erro. Que Deus
a eles e a nós um entendimento correto! Amém.
Em Roma, foram divulgadas falsificões deste sermão, apresentadas sob a forma de
teses, de modo a cristalizar a imagem de Lutero como herege, o que lhe valeu receber uma
citação para comparecer a Roma para justificar-se. Isto antecipava, da parte de Lutero, a
audiência que teria com o legado papal, Cardeal Thomas Cajetan, em Augsburgo, para que se
retratasse de suas 95 Teses.
179 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – vol. 1. S. Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 179.
67
2.2.4 A audiência com o Cardeal Cajetan (o Debate de Augsburgo)
A repercussão da afixação das 95 Teses foi imediata, e afetou diretamente a coleta de
dinheiro com a venda das indulgências. Portanto, havia duas frentes a ser combatidas pela
Igreja, a partir dos eventos de 31 de outubro de 1517: uma, teológica, com a condenação dos
pontos de Lutero contra as indulgências e sua venda. A outra, mais pragmática, que decorria
da legitimação da venda das indulgências, para, desta forma, intensificar seu comércio.
Esta audiência foi fruto de intensas mediações diplomáticas entre Frederico da
Saxônia, o Imperador e a Cúria Romana. Se os agostinianos prestigiaram Lutero concedendo-
lhe a presidência do seu debate acadêmico, em Heidelberg, em 1518, por outro lado os
dominicanos, em seu capítulo geral, presidido por seu mestre-geral, o Cardeal Thomas
Cajetan, naquele mesmo ano, receberam as denúncias contra Lutero ao mesmo tempo em que
conferiram a Johann Eck o título de doutor em teologia. Cajetan fez encaminhar a Roma as 95
Teses, com uma carta do Imperador Maximiliano I, na qual este pedia a excomunhão de
Lutero.
Ao receber a citação para comparecer a Roma, em 7 de agosto de 1518, Lutero
recorreu a amigos, que se dirigiram a Frederico da Saxônia, rogando-lhe que conseguisse que
Lutero fosse ouvido primeiramente na Alemanha. Em três escritos distintos, Leão X
determinou a Cajetan que aprisionasse Lutero incontinenti; a Frederico, que lhe entregasse “o
filho da perdição”; e ao superior dos agostinianos que “acorrentasse Lutero nos pés e
mãos”
180
. Em Augsburgo, onde se encontrava na Dieta Imperial, Frederico da Saxônia era
figura exponencial na sucessão do gravemente enfermo Maximiliano I, sendo apontado por
alguns autores como o favorito de parte da Cúria para a sucessão. De fato, na Dieta de
Augsburgo de 1518 faltaram apenas dois votos para a confirmão da eleição do neto de
Maximiliano, Carlos de Habsburgo: o do arcebispo de Trier e o do próprio Maximiliano
181
.
Desta forma, apoiado em seu prestígio, Frederico solicitou a Cajetan que este ouvisse
a Lutero em Augsburgo, ao invés de levá-lo a Roma. Cajetan solicitou a permissão à Sé
180 Cf. REHFELDT, Mário L. In LUTERO, Martinho. Martinho Lutero Obras Selecionadas, vol. 1, S.
Leopoldo: Sinodal, 2004, pp. 199-201.
181 Sobre a eleição para Imperador do Sacro Império, ver a parte final do Capítulo II.
68
Apostólica em agosto de 1518, e assim, o papa Leão X constituiu, em 11 de setembro, o
cardeal Thomas Cajetan como seu legado para debater com Lutero, em Augsburgo, em 1518.
Em verdade, tal debate deveria servir unicamente para que Lutero renegasse suas Teses sobre
as indulgências. Dele, exigia-se unicamente uma única palavra: revoco (“renego”). Nessa
audiência, o Reformador expôs suas dúvidas com relação à validade da Bula Unigenitus Dei
Filius, citando que, apesar de ter seus efeitos aprovados pela hierarquia da Igreja Romana,
esta “escondia” a Bula Unigenitus Dei Filius, não raro sendo tratada pelo apelido latino de
Extravagante, também porque ela contradizia algumas decisões conciliares, inclusive do
Concílio de Basileia (1431-1449).
Em defesa de seus pontos de vista, Lutero invocou os pareceres de Nicolau de
Tudesco, conhecido por Panormitanus, uma das maiores autoridades presentes naquele
concílio. Este, de um modo especial, em sua obra Tractatus de Concilio Basileensi defendia a
superioridade da autoridade conciliar sobre a pontifical, e neste sentido Lutero apontava que,
como alguns Concílios já se haviam manifestado da mesma forma contra a questão das
indulgências, estas seriam uma excrescência canônica que deveria ser revogada.
Ampliando sua defesa, Lutero reafirmou todos os pontos de suas Teses, invocou as
contradições existentes entre diversas bulas papais e resoluções conciliares, recorrendo aos
ensinamentos de Panormitanus e de outros tlogos, como Jean Gerson, que insistiam na
superioridade conciliar face à autoridade papal. Visto muitos concílios haverem estabelecido,
com força dogmática, disposições contrárias àquilo que fora instituído por papas em bulas e
decretos, Lutero demandava que a discussão sobre a validade das indulgências fosse objeto de
convocação de novoe específico – concílio, uma vez que o V Concílio de Latrão, encerrado
em 1517, nada dispusera sobre a matéria.
Para comparecer a esta audiência, Thomas Cajetan recebeu de Leão X o decreto Cum
Postquam, através do qual o Papa reafirmava a “doutrina da Igreja Romana acerca das
indulgências e de sua eficácia”, de modo que ninguém pudesse, pretextando ignorar tal
doutrina, escusar-se de cumprir os preceitos. Via-se no texto a legitimação do uso eclesiástico
de entender as indulgências, particularmente a posse de relíquias, como remédio eficaz para
penas temporais e espirituais tanto para os vivos como para os defuntos, como se lê:
...e te quisemos dizer que a Igreja Romana, a quem as demais devem seguir
como a mãe, ensina que o Pontífice Romano, sucessor de Pedro, o portador
69
das chaves e vigário de Cristo na terra, pelo poder das chaves que permite
abrir o reino dos céus tirando aos fiéis de Cristo os impedimentos (a culpa e a
pena devidas pelos pecados atuais, a culpa mediante o sacramento da
penitência, a pena temporal, devida segundo a divina justiça pelos pecados
atuais, mediante a indulgência eclesiástica), pode por motivos razoáveis
conceder indulgências aos mesmos fiéis de Cristo, unidos pela caridade como
membros a Cristo, quer se achem nesta vida, quer no purgatório, pela
abundância dos méritos de Cristo e dos Santos. E concedendo tanto para os
vivos como para os defuntos, por apostólica autoridade, a indulgência,
acostumou-se a dispensar o tesouro dos méritos de Jesus Cristo e dos Santos, e
a conferir a mesma indulgência a modo de absolvição, ou a transferir a modo
de sufrágio. E por isso todos, tanto vivos como defuntos, que verdadeiramente
alcançaram essas indulgências, são livres de tanta pena temporal, devida
segundo a justiça divina por seus pecados atuais, quanto foi a indulgência
concedida e adquirida, equivalentemente.
182
Finalizava o Decreto com a ameaça de excomunhão “latae sententiae” aos que não
observassem as disposições acerca das indulgências:
Et ita ab omnibus teneri et praedicari debere sub excommunicationis latae
sententiae poena ... auctoritate Apostolica earumdem tenore praesentium
decernimus
.
183
Sobre este Debate, em verdade uma audiência realizada em outubro de 1518, que
demandava a retratação de Lutero sobre suas 95 Teses, pode-se tomar a citação de James
Atkinson
184
:
A história sempre se lembrará da dramática apregoação das teses contra as
indulgências em 1517, e o ainda mais dramático confronto em Worms, diante
da Igreja e do Estado em 1521, mas o julgamento em Augsburgo foi
igualmente dramático e provavelmente mais momentoso do que os outros. Em
1517, virtualmente desconhecido fora de sua Ordem, Lutero estava no chão
seguro de sua universidade; em 1521, agora famoso, ele tinha o apoio certo
não somente dos eruditos, mas da sociedade –– possivelmente metade da
Alemanha. Em 1518, quando partiu para enfrentar Cajetan em Augsburgo, ele
era um monge solitário e miserável, que não sabia como a Igreja ou o Império
o tratariam, e nem mesmo o que eles fariam com ele durante o seu percurso
para lá. Se algum homem já partiu em fé sozinho, Lutero o fez. Amigos
influentes o advertiram que nunca lhe seria permitido voltar; Staupitz suplicou
para que ele escapasse enquanto podia. Ele respondeu, “Cristo governa em
Augsburgo, mesmo no meio dos Seus inimigos.
O excerto da obra de James Atkinson, que aborda o início da Reforma Protestante e o
papel decisivo de Martinho Lutero nesse evento é, por si só, bastante eloquente, mesmo
descontado o tom apologético, para que se veja como aquele momento era crucial para os
182 LUND, Eric. Documents from the History Of Lutheranism 1517 1555. Michigan: Augsburg, 2002, p. 25.
183 DENZINGER, Henry The Sources of Catholic Dogma, Enchiridion Symbolorum, Powers Lake: B. Herder
Book Co. 1957, p. 257.
184 ATKINSON, James. Lutero y el nacimiento del Protestantismo. Madrid: Alianza, 1993, p. 167.
70
rumos do movimento que se gestava. Ainda que Lutero não pudesse contar com o apoio
formal da Ordem Agostiniana ou do Grande Eleitor Frederico, mesmo assim dispunha de
apoios abertos ou velados, o que lhe permitiu poder agir com firmeza diante do enviado papal.
Ainda sobre o texto de Atkinson, citado acima, deve ser refutada a afirmação de que Lutero
combatia só, pois tinha, como visto, o apoio do Grande Eleitor Frederico da Saxônia e de
vários nobres alemães.
O próprio Lutero escreveria um relatório sobre o Debate de Augsburgo, a Acta
Augustana, na qual expôs o que foi debatido e sustentou seus pontos de vista. De certo modo,
a resistência de Lutero naquele momento em renegar seus escritos era a antecipação da
postura que teria, três anos depois, na Dieta de Worms, diante do Imperador, de nobres e
eleitores e da Cúria e dignitários eclesiásticos.
O principal destaque deste Debate é a articulação político-diplomática que o envolveu
e forçou sua realizão, sendo a primeira vez em que a política imperial afetou o destino de
Martinho Lutero.
2.2.5 O Debate de Leipzig
Relatam Mário L. Rehfeldt e Martin Norberto Dreher, em sua “Introdução” ao Debate
e Defesa do Fr. Martinho Lutero contra as Acusações do Dr. João Eck que “em outubro de
1518, em Augsburgo, Lutero conversou com Eck. O diálogo travado na ocasião deve ser
considerado amistoso e tratou, basicamente, de questões relacionadas ao debate que seria
travado entre Eck e Karlstadt”
185
na Universidade de Leipzig.
Este Debate surgiu em razão da defesa que Andreas Karlstadt, então decano da
Faculdade de Teologia de Witetnberg, fez dos ataques que Lutero sofrera por parte de Johann
Eck, principal teólogo da Universidade de Ingolstadt, que foi um dos primeiros a atacar, no
início de 1518, as 95 Teses de Lutero, através da obra Obeliscos, não publicada. Nesta obra,
185 Martinho Lutero Obras Selecionadas, vol. 1, S. Leopoldo: Sinodal, 2004, pp. 257-260 para a Introdução.
Esta citação na p. 257.
71
ainda segundo Rehfeldt e Dreher,
186
Eck “chamara Lutero de hussita fanático e de herege.
Lutero respondeu de forma igualmente violenta em seus Asteriscos
187
.
Sem o conhecimento de Lutero, e por ver um de seus professores atacados, Karlstadt
publicou em maio de 1518, 406 teses contra os Obeliscos de Eck. A polêmica cresceu de
intensidade e resolveram os contendores resolver suas controvérsias sobre a graça e o livre-
arbítrio em um debate público. Antes mesmo que a Universidade de Leipzig concordasse em
sediar o debate, em 29 de dezembro de 1518 Eck publicou 12 teses, das quais enviou cópia a
Wittenberg, que, ao invés de aludirem aos assuntos que debateria com Karlstadt, focavam no
combate e condenação às 95 Teses de Lutero.
O impasse gerado pela não abjurão de Lutero em sua audiência com Cajetan e os
desdobramentos dos antecedentes do Debate de Leipzig, levaram Leão X a nomear o nobre
saxão Karl Von Miltitz, cônego da Catedral de Mainz, seu núncio para que buscasse um
entendimento com Lutero. Entrevistaram-se em 4 e 5 de janeiro de 1519, em Altenburg, em
uma tentativa de solucionar a controvérsia gerada pelas 95 Teses e pelo “Sermão sobre a
Indulgência e a Graça”.
É necessário que se entenda que a missão de Miltitz, era eminentemente diplomática.
Apontado núncio papal em 1518 junto ao Grande Eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio, em
outubro daquele ano Miltitz foi o portador da Rosa de Ouro a Frederico. Esta distinção,
existente até hoje na Igreja Romana, era concedida a reis, príncipes e nobres que se
destacassem na defesa da fé, concedendo-lhes indulgências e privilégios eclesiásticos. Em
contrapartida, Miltitz, em nome de Leão X, requereu a Frederico que este fizesse Lutero
cessar seus ataques contra as indulgências na Igreja.
Frederico orientou Miltitz a que este recebesse Lutero em audiência, o que se deu nos
dias 4 e 5 de janeiro de 1519. Miltitz propôs a Lutero que este silenciaria quanto à questão das
indulgências e escreveria uma carta ao Papa, devendo também escrever e publicar um tratado
apoiando a autoridade papal. A ele era, ainda, requerido que se mantivesse em obsequioso
silêncio, sendo-lhe garantido o direito a deixar claro que não renegaria ou abjuraria qualquer
um de seus pontos de vista, e que seus principais opositores, Johann Eck e Alberto de Mainz
186 Ibidem.
187 Asterisci Lutheri adversus Obeliscos Eccii, título original da obra.
72
igualmente permaneceriam calados e seriam disciplinados. Tanto essas audiências quanto as
duas posteriores, em Liebenwerda, em outubro de 1519, e em Lichtenburg, um ano depois,
foram infrutíferas, muito embora, em 1520 Lutero dedicasse a Leão X uma carta publicada
junto com o tratado Sobre a Liberdade Cristã.
Em razão da virulência do ataque feito em fevereiro de 1519 por Eck, Lutero sentiu-se
desobrigado do compromisso de não escrever sobre temas controversos e polêmicos. Neste
Debate e Defesa do Fr. Martinho Lutero contra as Acusações do Dr. Johann Eck, publicado
em 16 de maio de 1519, Lutero, ao atacar Eck, elevou o tom de suas críticas à questão das
indulgências e, também, à Igreja Romana e ao papado. Na saudação ao leitor acerca das treze
teses que apresentará, Lutero afirmou, em determinado trecho: “eles que acusem o quanto
quiserem, consagrem suas adulações à Apostólica, consagrem ao banquinho e ao
tamborete; eles que consagrem também à caixa apostólica (visto que esta é o que mais tem a
ver com a questão das indulgências e da monarquia)”
188
.
Referiu-se, na mesma saudação, à condenação de Jan Hus, suplicando a Deus que
“junto com Eck, não volte a abrir a cloaca constantipolitana”
189
. Contudo, é na décima terceira
de suas teses que Lutero atacou dura e frontalmente o papado: “Demonstram que a Igreja
Romana é superior a todas as outras a partir dos mais frios decretos dos pontífices romanos
surgidos nos últimos 400 anos; contra esses, porém, estão as histórias comprovadas de 1.100
anos, o texto da Escritura Divina e o decreto do Concílio de Niceia, de todos o mais
sagrado”
190
.
Não se deve entender esta afirmação como se Lutero tivesse sustentado que o papado
somente surgiu no século XII, mas sim como sua interpretação de que a codificação dos
decretos papais desde Gregório IX (1227-1241) tenha servido de base para que os Papas
impusessem suas pretensões, especialmente na Alemanha, em razão do Sacro Império
Romano-Germânico.
À elevação do tom de lado a lado, deve ser acrescentado que Eck atribuiu a Lutero,
188 Martinho Lutero – Obras Selecionadas, vol. I, p. 262.
189 Ibidem. Referência à cidade de Constança, onde se realizou o Concílio (1414-1418) que condenou Jan Hus e
Jerônimo de Praga.
190 Idem, p. 265.
73
como se este houvesse afirmado na defesa das suas 95 Teses algo que, efetivamente, não
afirmou, acerca de não haver, nos tempos de Gregório Magno, o primado de Roma sobre a
Igreja da Grécia; muito embora isso correspondesse ao seu pensamento.
Relatam Rehfeldt e Dreher que, em 19 de fevereiro de 1519, Eck escreveu a Lutero
“dizendo que esperava debater com ele em Leipzig, que era ele o autor das heresias, e não
Karlstadt”
191
. Mesmo sem ter ainda, àquele momento, recebido do duque George da Saxônia a
permissão para participar do Debate, Lutero preparou-se durante meses, lendo com afinco não
apenas a Sagrada Escritura, mas também a Patrística e o Direito Canônico, áreas que não eram
de seu domínio específico. Suas pesquisas, de certo modo sistemáticas como as de um
pesquisador contemporâneo quanto à hermenêutica, resultaram na publicação de um
opúsculo, o Comentário de Lutero sobre a décima terceira tese a respeito do poder do papa.
Os pontos de vista defendidos por Lutero neste Comentário foram aprofundados
especialmente em dois de seus tratados de 1520: Sobre o cativeiro babilônico da Igreja e
Sobre a liberdade do cristão. Essencialmente, Lutero questionava a pessoalidade da doação
das chaves dos céus de Jesus a Pedro, entendendo que se referia à comunidade que Pedro
representava naquele momento.
Tal obra não diferia em muito da literatura medieval que condenava o primado do
papa, uma vez que a ideia de que o Anticristo dominava a Cúria Romana era igualmente
compartilhada por cátaros, valdenses e seguidores de Wycliff, embora apresentasse algumas
novidades em relação a estas. Como pontos novos, apresentou a afirmação de que o primado
papal, juridicamente, somente surgiu sob Constantino IV (669-683)
192
e que as igrejas
orientais e grega jamais tinham estado sob o primado romano. Existem, particularmente,
convergências interessantes entre alguns pontos sustentados por Lutero e teses apresentadas
por João Quidort, o “João de Paris”, em sua obra Sobre o poder régio e papal.
Robinson Cavalcanti cita a disputa entre Egídio Colonna e João de Paris acerca da
primazia papal (defendida pelo primeiro) ou conciliar (defendida pelo segundo), com este
argumentando de que a sociedade antecede à Igreja e ao papado
193
. Neste sentido, a
191 Idem, p. 258.
192 A esse respeito, é referencial a questão da “Doação de Constantino”, que será abordada posteriormente. Cf.
VALLA, Lorenzo. La donation de Constantin. Paris: Les Belles Lettres, 2004.
193 CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo & política. Viçosa: Ultimato, 2004, p. 108.
74
argumentação de João de Paris, em favor da autonomia que o poder secular (régio) deveria ter
face ao poder papal implica que um Papa não tem o direito de depor um rei que fosse maior
que o de um rei depor um Papa. Tal linha de pensamento era reforçada por todos os
defensores do conciliarismo, dentre os quais destacam-se Marsiglio de Pádua, Guilherme de
Occam e Nicolau de Cusa. Registre-se que houve, como mencionado, uma grande
influência do occamismo sobre o pensamento de Martinho Lutero.
A afirmação de Robinson Cavalcanti de que “não houve intenção política na ão dos
reformadores. Sua motivação era basicamente espiritual, e o seu propósito uma alteração
profunda na vida da Igreja e um retorno à pureza do cristianismo bíblico”
194
deve ser encarada
de forma bastante relativizada, a partir da compreensão de que toda ação, todo ato é um ato
político. Desafiar ou mesmo simplesmente questionar a autoridade papal era um ato
grávido de significados e repercussões políticas.
Teologicamente, Lutero inovou ao afirmar que “onde a palavra de Deus é pregada e
crida, lá está a Igreja; por isso ela é designada de reino da fé, pois seu reino não é visto, mas é
objeto da fé. Eles, no entanto, fazem dela um reino de coisas visíveis, ao dar-lhe um chefe
visível”
195
, e “não sei se a cristã pode suportar que se estabeleça na terra outra cabeça
visível, além de Cristo”
196
. Neste sentido, Lutero rompeu com a eclesiologia medieval e,
sobretudo, com a eclesiologia papal. Esses aspectos serão aprofundados por Lutero em Sobre
o cativeiro babilônico da Igreja e Sobre a liberdade do cristão, de 1520. Era a definição de
Igreja muito mais como comunidade espiritual do que como comunidade institucional.
Em 27 de junho de 1519, véspera da eleição do novo Imperador do Sacro Império,
Carlos V, iniciou-se o Debate em Leipzig entre Eck e Karlstadt. De 4 a 14 de julho debateram
Eck e Lutero. O papado foi o foco principal dos debates entre Eck e Lutero, e, enquanto este
buscava basear sua defesa da eclesiologia a partir dos padres gregos e orientais e do Concílio
Niceno-Constantinopolitano, Eck sustentava que Lutero repetia as teses de Wycliff e Hus,
condenadas em Constança (sobre elas, explicações mais detalhadas no Capítulo II). Tendo
respondido a Eck que suas opiniões, expressas nas Teses e em seus escritos, eram católicas e
conciliares, foi por este questionado sobre as razões de haver atacado o Papa e não Hus,
194 Idem, p. 117.
195 Martinho Lutero – Obras Selecionadas, vol. I, p.273.
196 Ibidem.
75
tendo, então, proferido a frase que foi usada por Eck para pedir em Roma a punição a Lutero:
“a meu ver, muitas das opiniões de Hus são cristãs e evangélicas, e não podem ser condenadas
abertamente”
197
. Eis a heresia da qual Lutero seria acusado: haver apoiado e defendido a
causa e as doutrinas já condenadas de Hus. É interessante notar que nem mesmo seu arcebispo
acusara Lutero de heresia, em 1518, quando fez denúncias contra ele em Roma por “difundir
novas doutrinas”, e não heresias
198
. Steven Ozment salienta a importância desse Debate, ao
afirmar que “em 1519, após Lutero haver queimado as pontes que o ligavam à velha Igreja no
debate de Leipzig com Johann Eck, não era mais possível furtar-se a tomar uma posição
quanto à questão Lutero”
199
.
Eck ainda demorou-se por mais algum tempo em Leipzig, antes de regressar a
Ingolstadt. Estava seguro de que vencera o Debate, infligindo uma derrota à “escola de
Wittenberg”. Posteriormente, seguiu a Roma, por orientação de seus confrades dominicanos,
para demandar uma punição a Lutero.
Por sua vez, Lutero, que saíra da audiência com Cajetan convencido de que os papas
podiam errar, como tinham errado, saíra do Debate de Leipzig persuadido de que a origem
da autoridade papal era temporal e humana, e não espiritual e divina, e que também os
Concílios podiam errar. James Kittelson afirma que Lutero não declarou que Roma e o Papa
estavam em erro mas sim que “em princípio tanto o Papa quanto os concílios poderiam
errar”
200
.
Em carta de 20 de julho de 1519, dirigida a George Spalatino, Lutero relatou os temas
sobre os quais Karlstadt e ele debateram com Eck, dando-lhe uma visão sumária sobre as
controvérsias acerca da questão da primazia do bispo de Roma e, ao final, relatando que,
quanto às indulgências, praticamente não houve divergências:
o debate sobre as indulgências foi completamente aplastrado porque Eck
concordou comigo em praticamente todos os aspectos, e sua defesa anterior
das indulgências pareceu até zombaria e escarnecimento. (...) E, supostamente,
ele teria dito que, se eu não questionasse o poder do Papa, ele teria
prontamente concordado comigo em quase todos os assuntos”.
201
197 ATKINSON, James. Lutero y el nacimiento del Protestantismo. Madrid: Alianza, 1993, p. 200.
198 Idem, p. 166.
199 OZMENT, Steven E.. Reformation in the cities. New York: Yale University Press, 2004, p. 75.
200 KITTELSON, James M.. Luther the Reformer: the story of the man and his career. Minneapolis: Fortress,
2003, p. 119.
201 LUND, Eric. Documents from the History Of Lutheranism 1517 1555. Michigan: Augsburg, 2002, p. 25.
76
Nesta mesma carta, Lutero informou a Spalatino que Eck “concedia uma coisa no salão de
debates mas ensinava ao povo o oposto na Igreja. Quando confrontado por Karlstadt com
razão sobre sua mutabilidade, o homem disse sem piscar um olho, que não era necessário
ensinar ao povo o que foi debatido”
202
. Não se sabe o quanto isso corresponde à verdade ou se
foi unicamente um “envenenamento do poço”, que comprometesse ainda mais o adversário de
Lutero. Este debate foi o responsável por um incontornável antagonismo entre Lutero e Eck.
Em seguida, escreveu um relatório sobre o Debate para ser lido pelos leigos, de modo
especial, para que estes se pusessem a par dos acontecimentos e buscando defender-se das
acusações de herege e boêmio
203
.
Neste documento, Debate e Defesa do Fr. Martinho Lutero contra as Acusações do Dr.
Johann Eck
204
, Lutero diz ter sido chamado por Eck de inimigo da Igreja porque este entende
por Igreja “somente as suas próprias opiniões”
205
, e registrou: “Eck muito tempo está
ulcerado pelo mais profundo ódio contra mim”
206
. Embora neste documento tenha contornado
algumas das teses de Hus sobre a monarquia papal, Lutero seguiu defendendo seus pontos de
vista, afirmando para si ser “suficiente que contra Cristo a Apostólica nada quer nem
consegue”
207
. A controvérsia foi mantida por Eck, que sustentava que a Igreja Romana era
superior a todas as outras desde os tempos do Papa Silvestre I
208
, ao passo que Lutero
entendia que deveriam ser considerados os decretos do Concílio de Niceia e a tradição
eclesiástica, mencionando Cipriano em sua defesa, uma vez que este bispo do século III
defendia o princípio da colegialidade episcopal contra o papalismo, tendo salientado em seu
tratado De unitate ecclesiæ, que o bispo de Roma não tem jurisdição sobre os demais bispos.
Neste sentido, os escritos posteriores de Lutero, nas passagens em que referia a Igreja
primitiva, esta pode ser entendida não somente como aquela dos tempos apostólicos, mas
também à dos tempos anteriores à primazia absoluta do bispo de Roma, quando o governo da
Igreja era partilhado entre os cinco principais bispos da Igreja: os de Roma, Jerusalém,
202 Ibidem.
203 Alusão aos hussitas, da Boêmia.
204 Disputatio et excusatio f. Martini Luther adversus criminationes d. Iohannis Ecci
205 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadasvol. 1. S. Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 261.
206 Idem, p. 262.
207 Idem, p. 263.
208 Ver o comentário sobre a doação de Constantino”, no cap. III, especialmente a nota a ela referente.
77
Alexandria, Constantinopla e Antioquia.
Este é o itinerário percorrido por Martinho Lutero até 1519, ano que precedeu a
redação e publicação dos documentos que são objeto desta Tese. Julguei imprescindível narrar
o itinerário pessoal, intelectual e teológico trilhado por Lutero, para tentar demonstrar que a
Reforma não data, efetivamente, de 31 de outubro de 1517, quando as ideias de Lutero acerca
de uma reforma profunda na Igreja não estavam suficientemente formadas e formuladas. É
meu entendimento que a Reforma, como tal, começou a esboçar-se nos escritos de 1519 e
consolidou-se nos de 1520. Nas palavras de Scott Hendrix, “o monge Martinho tornou-se
Lutero através da aclamação que ele experimentou como líder do movimento evangélico”
209
.
Assinala Walter Goetz que após o Debate de Leipzig, “a questão Lutero converteu-se
realmente em uma continuação da questão Reuchlin
210
e, como nesta, reuniram-se para
defender Lutero e atacar a parte contrária as mais diferentes tendências do humanismo
alemão”
211
. Assim, portanto, a causa de Lutero convertia-se de uma disputa entre frades a uma
questão nacional. Com isso concorda Teófanes Egido López, ao afirmar que “uma disputa
entre escolas transformou-se em esgarçamento da cristandade pelo cruzamento de interesses
políticos e territoriais”
212
. Sustenta, ainda, na continuação desse raciocínio, que “era natural
que o programa de controle do religioso se chocasse com outro poder, o de Roma”
213
.
Antes de chegarmos a estes, porém, é necessário que se compreenda como se
encontravam a Igreja e o Sacro Império, particularmente a Alemanha, no alvorecer do século
XVI, objeto do Capítulo II.
209 HENDRIX, Scott H.. Luther. Nashville: Abingdon, 2009, p. 21.
210 Referência a Johann Reuchlin, humanista, helenista e hebraísta alemão, cuja defesa da valorização do estudo
dos livros hebraicos mobilizou os humanistas da Alemanha a partir de 1514, culminando os debates com a
derrota dos pontos de vista de Reuchlin.
211 GOETZ, Walter (org.). Historia Universal vol. 5 La época de la revolución religiosa, la Reforma y la
Contrarreforma (1500-1660). Madrid: Espasa-Calpe, 1950, p. 76.
212 EGIDO LÓPEZ, Teófanes. Lutero y el luteranismo. In
CORTÉS PEÑA, Antonio Luís (coord.). Historia del
Cristianismo – III. El mundo moderno. Granada: Trotta, 2006, p. 93.
213 Ibidem.
A SANTA IGREJA E
O SACRO IMPÉRIO
Lucas Cranach, o Velho – Lutero com barrete de doutor (1521)
79
3 A SANTA IGREJA E O SACRO IMPÉRIO
“A Igreja tem um corpo e uma cabeça, Cristo e o Vigário
de Cristo, Pedro e o sucessor de Pedro; em seu poder
duas espadas, a espiritual e a espada temporal; esses dois
poderes estão nas mãos do Romano Pontífice”.
(Papa Bonifácio VIII)
Uma das formas de não se entender a Reforma como uma obra pessoal de Lutero é
compreender a situação da Igreja Católica Romana e a do Santo Império Romano-Germânico
entre o final do século XV e o início da Reforma. Isto pode fundamentar as razões pelas quais
pode-se dizer “Reformas Protestantes” com mais acerto, ao invés de “Reforma Protestante”.
De fato, a Reforma foi diferente na Alemanha do que o foi na Suíça; na Suíça, diferente do
que foi na França; aí, diferente da que ocorreu na Inglaterra e assim sucessivamente.
Às peculiares condições políticas, sociais, econômicas e religiosas na Alemanha deve
ser acrescentada a peculiar situação do papado entre 1492 e 1520, visto os três papas que
reinaram sobre a Igreja nesse período
214
serem considerados dentre os três mais corruptos da
história da Igreja.
Não se pode deixar de referir o momento de interregno pelo qual passava o Sacro
Império Romano-Germânico, após a morte de Maximiliano I e a eleição porém ainda não a
coroação de seu neto e sucessor, Carlos V. Este período, no qual a regência do Sacro
Império era feita por Frederico da Saxônia, fez com que as teias de interesses e relações
fossem tecidas de um modo a que, para alguns olhos, Lutero fosse visto como perigoso
sedicioso e, para outros, como um libertador do povo alemão. Os compromissos que
asseguraram a eleição de Carlos V refletiram-se diretamente nos desdobramentos dos eventos
relacionados à pregação reformadora de Martinho Lutero.
3.1 A crise da auctoritas e da potestas: o estado da Igreja no início do século XV
Embora seja importante, é impossível precisar o início da crise da Igreja Católica
Romana no período imediatamente antecedente à Reforma. Entendo que, uma vez que a
214 Não se considera aqui o Pontificado de Pio III, Francesco Todeschini-Piccolomini, de apenas 26 dias, em
1503, entre Alexandre VI e Júlio II.
80
Reforma operou sobre duas vertentes, a da autoridade e poder do Papa e a concepção de
unicidade da Igreja, parece mais correto precisar essa crise no Grande Cisma do Ocidente, que
resultou em um período de quarenta anos, de 1378 a 1418, com Papas e antipapas clamando
serem os legítimos vigários de Cristo e sucessores do Apóstolo Pedro. Efetivamente, esse
tempo fez com que fosse questionada a ideia de que a Igreja era “una, santa, católica e
apostólica”, como confessado no Credo, sobretudo no que se refere à sua unidade. Na
definição de Pierre Pierrard, “não resta dúvida de que o século XIV traz em si os germes do
mundo moderno, esse mundo que iria questionar tudo, a começar pela unidade do
Ocidente”
215
.
É meu entendimento que o Cisma do Ocidente significou abalo maior à ideia de
unidade da Igreja Romana do que o Cisma do Oriente, ocorrido em 1054, uma vez que este
opunha, entre outras questões, não apenas a do primado do Bispo de Roma sobre os demais,
mas também questões teológicas de matizes de sutileza bastante diferentes. O Grande Cisma
do Ocidente, ao contrário, opôs bispos “latinos”, irmãos na colegialidade do episcopado de
Roma. Nas palavras de Gonzalez, “o cisma teve um enorme impacto. Toda a Europa
Ocidental estava dividida entre dois Papas rivais”
216
.
3.1.1 O Grande Cisma do Ocidente
A morte de Gregório XI, em 27 de março de 1378, ensejou o início do conclave para a
eleição de seu sucessor onze dias depois. Ao final de dez dias, nenhum dos cardeais
conseguira obter a maioria de dois terços dos votos necessários à sua eleição canônica. Na
descrição de Ourliac
217
, os chefes dos bairros e comunidades fizeram os cardeais,
enclausurados no recinto do conclave, conhecer sua exigência: “Nomeai-nos um Papa
romano, ou ao menos italiano, se não vossa vida e a nossa estarão em perigo, pois é isso o que
o povo deseja. Evitai um irreparável escândalo”
218
. Essa coação levou à escolha do arcebispo
de Bari, Bartolomeo Prignano, chanceler do falecido Papa, bem conhecido de todos e tido
como “neutro” entre os grupos dos cardeais franceses e italianos, que se odiavam
215 PIERRARD, Pierre. História da Igreja. S. Paulo: Paulus, 1983, p. 139.
216 GONZALEZ, Justo L.. Church History. Nashville: Abingdon Press, 1996, p. 61.
217 OURLIAC, Paul. Le schisme et les conciles (1378-1449). In VAUCHEZ, A.. Histoire du Christianisme.
Tome VI. Temps d’Epreuves. Paris: Fleurus, 1995, pp. 89-114.
218 OURLIAC, Paul. Op. cit. p. 89, remetendo à detalhada exposição dos fatos feita por N. Valois em La France
et le Grand Schisme d’Occident, 4 vol., 1910.
81
reciprocamente.
Uma vez que Prignano não se encontrava no conclave (não era cardeal), e o povo não
tolerava mais essa demora, a multidão ameaçou invadir o recinto do conclave, o que levou os
cardeais que não fugiram a sugerir apresentar ao povo o cardeal romano Tibaldeschi, que se
recusou a aceitar qualquer nomeação. Com a debandada dos cardeais, somente doze restaram
para entronizar Prignano, que tomou o nome de Urbano VI.
Não mais de dois meses após sua eleição, e verificando que o novo Papa
desconsiderava qualquer pedido que lhe fosse apresentado, os cardeais eleitores iniciaram a se
indagar se seu voto fora efetivamente livre. Se muitos não o acreditavam mais, outros
iniciaram a duvidar. Isto levou os treze cardeais a reunir-se inicialmente em Anagni, e
posteriormente em Fondi, no reino da antiga protetora de Urbano VI, Joana de Nápoles, no
qual ele acumulara inimigos. Em 9 de agosto, declararam a eleição de Urbano VI
canonicamente nula, sendo o Papa declarado intruso e anátema.
Em 20 de setembro de 1378 foi eleito Papa, com a tácita concordância dos três
cardeais italianos, o cardeal Roberto de Genebra, parente ou aliado de todas as famílias
principescas mais importantes. Assumiu com o nome de Clemente VII, consumando o
Cisma
219
. Eram tempos de aparente vacância de poder por toda a Cristandade, com as mortes
de Eduardo III, da Inglaterra (1377); Carlos IV, Imperador do Sacro Império e Rei da Boêmia
(1378); Frederico IV, da Sicília (1377); Carlos V de Valois, da França (1380); de Henrique de
Transtamare, rei de Castela (1379) e de Joana de Nápoles (1382).
É importante lembrar que não foi o período do Grande Cisma do Ocidente que fez o
“cativeiro avinhonense da Igreja”, uma vez que desde os tempos de Clemente V, em 1229, os
Papas tinham se movido com sua corte para aquela cidade francesa, em razão da
instabilidade reinante na Itália e da proteção que o Rei da França lhes podia oferecer. Quando
decidiu restabelecer o papado e sua corte em Roma, em razão dos distúrbios na “capital da
Cristandade”, na esteira da revolução popular encabeçada por Cola di Rienzo, em 1347, e
atendendo aos pedidos de Catarina de Siena e Brígida, da Suécia
220
ambas posteriormente
declaradas santas o Papa Gregório XI foi advertido por Carlos V da França que este não
219 WALKER, W.. História da Igreja Cristã. S. Paulo: ASTE, 2006, 3ª ed., p. 441.
220 Idem, p. 440.
82
poderia assegurar sua integridade caso retornasse a Roma.
Eis um traço distintivo e característico do estado da Cristandade no final do século
XIV: as instabilidades e rivalidades nacionais e regionais e suas guerras trazidas para o
interior da Igreja. Esta situação somente se agravou ao longo das décadas e dos concílios que
tentaram resolver as delicadas questões, tendo chegado a uma quase solução com a realização
do Concílio de Constança, de 1414 a 1418. Como Pierrard define, “em 1378, a autoridade do
papado estava enfraquecida; os nacionalismos, a política e os interesses pessoais contribuíam
para radicalizar as posições e colocar em oposição não somente dois Papas, mas dois campos
inteiros”
221
.
Efetivamente, ao lado de Urbano VI ficaram o Imperador, a Inglaterra, Flandres,
Portugal e a Itália, com exceção de Nápoles; enquanto que ao lado de Clemente VII ficaram a
França e seus aliados, Savoia, a Escócia e, posteriormente, Castela, Aragão e Navarra
222
. A
radicalização das divergências levou a enfrentamentos nos campos de batalha, com a derrota
militar de Clemente VII, que, batido em Marino em 1379, recuou a Avinhão, onde estabeleceu
sua corte. Essa decisão aumentou a dependência da Igreja em relação ao “Cristianíssimo Rei”
da França, o qual tinha no Papa uma espécie de arquicapelão particular.
Schulze afirma que “seu sucessor [de Bonifácio VIII] fora constrangido a aceitar o
‘cativeiro da Babilônia’ em Avinhão e passara a viver à sombra da Coroa francesa. O papado
nunca se refez dessa perda de poder e de prestígio; as potências hostis à França recusaram-se
a deixar seguir para Avinhão os lucros da Igreja provenientes dos seus territórios e assumiram
os principais direitos de soberania do papado”
223
.
Por outro lado, para conquistar apoios, Urbano VI multiplicou gastos, de tal forma
que, quando morreu, em 1389, seu sucessor, Bonifácio IX decidiu organizar um ano jubilar,
em 1390, para arrecadar fundos. A Universidade de Paris, em janeiro de 1394, indicou que
uma possibilidade para a solução do Cisma: a cessão (demissão) de um dos dois reinantes, o
que parecia ser facilitado com a morte do Papa de Avinhão, em setembro daquele mesmo ano.
Contudo, os cardeais reunidos naquela cidade elegeram para suceder Clemente VII o espanhol
221 PIERRARD, P. Op. cit., p. 149.
222 Ibidem.
223 SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Presença, 1997, p. 52.
83
Pedro de Luna, assumindo este o nome de Bento XIII.
A duplicidade de autoridade significava, em verdade, autoridade nenhuma: não existia
detentor de auctoritas e de potestas na Igreja. Havia os que defendessem que o Papa romano
seria o detentor desses atributos, enquanto que muitos, sobretudo os ligados à Universidade de
Paris, defendiam que somente um Concílio poderia dirimir esse conflito.
3.1.2 O fim do longo cisma do Ocidente e do antipapado de Avinhão
Uma primeira grande tentativa de conciliação ocorreu entre 1403 e 1404, quando
emissários do antipapa Bento XIII encontram-se com o Papa Bonifácio IX, que faleceu em
seguida. Resistindo a renunciarem à eleição de um sucessor para Bonifácio IX, os cardeais
romanos elegeram, em 1404, Cosma Miglioratti, septuagenário sem energia que assumiu o
nome de Inocêncio VII
224
, e que, mesmo desejando convocar um concílio para r fim ao
Cisma, não o fez, em razão de haver morrido dois anos após sua eleição.
Seu sucessor, Gregório XII, foi eleito com a condição de que aceitaria sua demissão
pelo Sacro Colégio dos Cardeais assim que Bento XIII abdicasse ou morresse. Em 1407,
agendou-se um encontro entre Bento XIII e Gregório XII, em Savona, mas tal reunião não
chegou a ocorrer. Em 1409, oito cardeais romanos e sete avinhonenses reuniram-se em Pisa,
inaugurando um Concílio em 25 de março. Este, por influência da Universidade de Paris,
depôs a ambos os Papas em 5 de junho, elegendo o cardeal Pedro Filárigo novo Papa, que
assumiu o nome de Alexandre V, vindo a morrer dez meses após sua eleição. Foi sucedido por
João XXIII
225
, em 17 de maio de 1410, momento que fez a Igreja Católica Romana ter três
Papas reinando simultaneamente, visto os dois depostos não terem aceito sua destituição,
refugiando-se Bento XIII (apoiado por Portugal, pela Espanha e pela Escócia) em Barcelona
e Gregório XII, apoiado por inexpressivas cidades italianas, abrigado em Rimini.
João XXIII convocou um concílio em Roma em 1413, o qual resultou em nenhum
224 Idem, p. 150.
225 Faz-se necessário explicar que, face à decisão de demissão desse Papa tomada pelo Concílio de Constança
(1414-1418), seu nome foi excluído de alguns dos registros oficiais sobre os Papas, o que levou Angelo
Giuseppe Roncalli a, quando eleito Papa em 1958, adotar o mesmo nome de João XXIII, ignorando que houvera
um Papa com o mesmo nome que governara a Igreja. Esta explicação é oferecida por Fischer-Wollpert (Os
papas e o papado. Petrópolis: Vozes, 2006, pp. 164-165.).
84
efeito prático, culminando com a expulsão do Papa de Roma naquele mesmo ano pelas tropas
do Rei Ladislau, de Nápoles; indo refugiar-se em Bolonha, onde soube que o Rei Sigismundo
de Luxemburgo, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, chamando a si a
responsabilidade de “advogado e defensor da Santa Igreja”, que lhe foi dada pela Bula
Dourada de 1356, convocara um Concílio Geral, através de um Edictum Universale, a se
realizar em terras alemãs, na cidade de Constança, em 1414
226
. Estava dado o grande passo
para o fim do Cisma
227
. Nas palavras de Pierre Chaunu, “de 1378-1409 e de 1409-1414, a
Igreja passa do cisma ao caos”
228
.
Se, por um lado, resolvera-se momentaneamente a questão do Cisma, a fratura na
unidade da Igreja (ou, ao menos, no conceito de tal unidade) estava irreversivelmente feita.
3.1.3 Concílio ou Papa? Papa ou Príncipes? Quem detém auctoritas e potestas?
A convocação para o Concílio de Constança, ao estabelecer que, ao lado das
delegações eclesiásticas, figurariam também delegações nacionais, estabeleceu um novo
paradigma nas relações de poder entre a Igreja e os Estados nacionais na Cristandade. Deve
ser entendida a expressão “Estados nacionais” no seu contexto da Baixa Idade Média, quando
estes ainda se forjavam identitariamente. Importante ressaltar, como recorda Guiberneau, que
existem duas teorias sobre o surgimento das nações: uma que considera a nação como uma
divisão natural da raça humana, feita por Deus, e outra que considera que as nações e o
nacionalismo são fenômenos modernos, compatíveis com uma “era dos nacionalismos”
229
.
É minha opinião que as nações e o nacional são um fenômeno típico da Idade
Moderna, advindo do Medievo tardio, no qual começaram-se a desenhar-se os estados
nacionais. Tal fenômeno somente veio a consolidar-se na contemporaneidade, quando
vincularam-se de forma indissociável nação e território como uma entidade. Para todos os fins
desta Tese, a Nação será entendida como uma comunidade identificada culturalmente e, no
226 Idem, p. 151.
227 A eleição de um antipapa no Concílio de Basileia não teve respaldo em esferas eclesiásticas ou temporais
dignas de expressão. É importante lembrar que, após a morte de Bento XIII, deposto pelo Concílio de Constança,
foi ainda eleito o cardeal Gil Sánchez Muñoz, em 1423, que assumiu o nome de Clemente VIII, vindo a morrer
em 1429, sem ter obtido qualquer apoio significante.
228 CHAUNU, Pierre. O Tempo das Reformas. Lisboa: Edições 70, 1975, vol. 1, p. 195.
229 GUIBERNEAU, Montserrat. Nacionalismos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 57-58.
85
caso alemão, também territorialmente.
Estabelecer que a autoridade máxima dentro da Igreja era o Concílio, e não mais o
Papa, “detentor das chaves de S. Pedro”, seria pôr fim ao projeto hierocrático de construção
do poder dentro do romanismo. Seria, em última instância, transferir ao colegiado conciliar a
decisão final em todos os assuntos relevantes para a Igreja, e esse colegiado era formado por
membros eclesiásticos e civis, representando não apenas a igreja local, mas também a
autoridade secular daquela região.
A defesa do conciliarismo consta nos escritos de Guilherme de Occam, para quem “o
Concílio ecumênico estaria acima do Papa, possuindo legitimidade para tomar decisões
necessárias à reforma da Igreja, mesmo sem e até contra o Papa”
230
. Esses postulados foram
especialmente acolhidos pela Universidade de Paris, então principal centro teológico da
Europa. Por razões de interesse de manutenção e ampliação de sua esfera de poder, os
principais príncipes e soberanos apoiavam a supremacia da autoridade conciliar.
A autoridade (auctoritas) e o poder (potestas) concentrados nas mãos do Romano
Pontífice eram a fundamentação da estrutura de poder na Igreja Romana até então. Tais
disputas e discussões repercutirão ao longo do século XV, não apenas na Igreja e na Itália,
mas sim em toda a Europa. Nas palavras de Paolo Prodi, “no Quatrocentos, os pontífices não
se tornaram sobretudo príncipes temporais, senhores de um estado italiano que vai se
consolidando: esta metamorfose não ocorre sem que seja tocada a instituição papal na sua
complexidade e sem que desta sejam derivadas algumas consequências mais gerais no plano
do State-building no quadro europeu”
231
.
Hagen Schulze ressalta a imprecisão da terminologia para se definir, entre o Medievo e
a Modernidade nascente, a organização política e a soberania: “consoante as circunstâncias,
falava-se de ‘território senhorial’ (dominium) ou de ‘autoridade’ (regimen), de ‘reino’
(regnum) ou de principado (principatus), de ‘país’ e de ‘terra’ (terra, territorium) termos
que implicavam, simultaneamente, laços pessoais e domínios juridicamente associados”
232
. O
mesmo autor registra que quando Maquiavel, Guicciardini e Villani referiam-se ao stato,
230 FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. Op. cit., p. 209.
231 PRODI, Paolo. Il sovrano pontefice. Bologna: Il Mulino, 2006, p. 43.
232 SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Presença, 1997, p. 46.
86
“tinham em mente uma ideia de soberania que ainda não tinha sido concebida sob essa
forma”
233
.
Jerry Brotton sustenta a mesma linha argumentativa, ao dizer que “outro processo que
transformou a autoridade religiosa neste período foi o surgimento de novas formas de
autoridade política”
234
, mesmo reconhecendo a indissociabilidade entre “a religião e a prática
da autoridade política, do mundo das finanças internacionais e das conquistas da arte e do
conhecimento”
235
.
Faz-se necessário recordar que o Papa não era apenas o pastor supremo da
Cristandade, mas também o soberano temporal dos Estados Papais. Assim, as disputas em
torno da autoridade e do poder do Papa refletiam, por um lado, as pressões dos príncipes e
reis não italianos, desejosos de ampliar seus domínios, e dos próprios reis e príncipes
italianos, que não queriam a diminuição de sua área de poder e de influência.
Dois Papas (ou até mesmo ts, como em alguns momentos) significava o mesmo que
Papa nenhum. A auctoritas e a potestas, que em sua origem emanam diretamente de Deus,
deveriam ser unas e indivisíveis, tal como, putativamente, a Igreja deveria ser. Quando os
príncipes seculares chamam a si parte dessa autoridade e desse poder, parecem competir com
a autoridade do Vigário de Cristo. Este, enfraquecido, teve que aceitar a convocação feita pelo
Imperador e a ela submeter-se. De certo modo, parecia que o Imperador deveria defender a
Igreja contra a falta de autoridade do Papa. Vale dizer que o Imperador, o poder secular,
tentaria restabelecer o poder na área espiritual. Nas palavras de P. Ourliac, citado por Pierrard,
“mais do que uma assembleia de Igreja, o Concílio de Constança parecia um congresso de
nações”
236
.
Ainda citando Prodi, “duas vezes no Ocidente a aliança do poder político com o
hierocrático atingiu um ápice: no império de Carlos Magno, assim como em certos períodos
de máxima potência do Império Romano-Germânico”
237
. Este era um desses momentos, e
essa aliança ou embate se faria notar no Concílio de Constança, cujos desdobramentos se
233 Ibidem.
234 BROTTON, Jerry. O bazar do Renascimento. S. Paulo: Grua Livros, 2009, p. 93.
235 Idem, p. 92.
236 PIERRARD, P.. Op. cit., p. 155.
237 PRODI, P.. Op. cit., p. 23.
87
fizeram sentir no século seguinte.
No Concílio de Constança, os ingleses, alemães e franceses, adversários dos italianos e
de João XXIII, conseguiram impor o voto por nação, cabendo o quinto voto ao colégio de
cardeais. Temendo não ser confirmado no cargo, João XXIII fugiu para Schaffhause e,
posteriormente, para Friburgo
238
. O Concílio continuaria de qualquer modo, mesmo sem o
Papa. O chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson, declarou em 23 de março de 1415,
três dias após a fuga do Papa, que “a Igreja, ou o Concílio Geral, que a representa, é a regra
que Cristo, segundo a diretriz do Espírito Santo, nos deixou, de sorte qualquer homem, não
importa quem seja, de qualquer condição que seja, mesmo papal, é obrigado a ouvi-la e
obedecer-lhe
239
.
Seguindo o parecer de Gerson, o Concílio aprovou em 6 de abril o decreto
Sacrosancta, que preceituava que o concílio ecumênico reunido em Constança era a
representação da Igreja inteira e recebia seu poder diretamente de Cristo; o próprio Papa
devia-lhe obediência em matéria de fé, de unidade da Igreja e de reforma da cabeça e dos
membros”
240
. Essa mesma demanda, assinala Henri Petiot (Daniel Rops), era antiga: “Já no
limiar do século XIV, Guillaume de la Maire, de Angers, bradava: ‘a Igreja tem que ser
inteiramente reformada, tanto na cabeça como nos membros’”
241
. Esse autor ainda assinala os
protestos de outros eclesiásticos desse tempo por reformas na Igreja, como o bispo Guilherme
Durand, de Mende; São Bernardino de Sena, João de Capistrano, Tiago de la Marche,
Bernardino de Feltre e Santa Colette
242
.
Nas palavras do próprio decreto,
Este santo Concílio de Constança... declara, primeiro, que está legalmente
reunido no Espírito Santo, que constitui um concílio geral representando a
Igreja Católica e que, portanto, tem sua autoridade imediatamente de Cristo;
sendo que todos os homens, de qualquer ordem ou condição, incluindo o
próprio Papa, são obrigados a obedecer-lhe em matérias de fé, de abolição do
cisma e da reforma da Igreja de Deus em sua cabeça e em seus membros
Segundo, declara que qualquer pessoa, de qualquer grau ou condição que, com
contumácia, recusar obedecer suas ordens, decretos, estatutos ou instruções, já
238 FISCHER-WOLLPERT (op. cit. pp. 116 e 228) afirma que a fuga se deu para Schauffenberg e,
posteriormente, para Laufenburg.
239 PIERRARD, P.. Op. cit., p. 151.
240 Ibidem.
241 PETIOT, Henri [DANIEL-ROPS]. História da Igreja – vol. IV. S. Paulo: Quadrante, 1996, p. 129.
242 Ibidem.
88
feitos ou a serem feitos ainda por este santo Concílio ou por qualquer outro
concílio legalmente reunido... será sujeito à penitência conveniente e punido
apropriadamente, a não ser que volte ao espírito de retidão e, se houver
necessidade, que se recorra a outras sanções da lei...
243
Estas proposições seriam retomadas por Lutero em suas reivindicações por uma
reforma, afirmando que os concílios são a autoridade maior da Igreja, pois que representam a
inteireza de sua colegialidade.
Embora descrente da autonomia conciliar, face ao então recente V Concílio de Latrão
(1512-1517), Lutero, na “Carta à Nobreza Cristã”, afirmou textualmente, acerca da realização
desse Concílio e da atitude dos seguidores do Papa em relação à disciplina conciliar:
Mesmo que tenham sido obrigados a celebrar um concílio, anulam seu efeito
por antecipação, obrigando os príncipes a jurar previamente que os deixariam
como estão. Além disso, deram ao Papa pleno poder sobre toda ordenação do
concílio, de sorte que tanto faz se há muitos concílios ou concílio nenhum.
244
Esta posição já constava na mesma “Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã”, na qual
Lutero afirmava:
Além disso, esses concílios de nada servem, porque a sabedoria romana
inventou o ardil de os reis e príncipes serem obrigados a prestar primeiro um
juramento de deixá-los continuar a ser como são e manter o que possuem.
Assim, colocam uma trava para se defender contra toda reforma, manter
protegida e livre toda patifaria.
245
A demanda pela convocação por Leão X de um concílio era central nas reivindicações
do Reformador em muitos de seus documentos do ano de 1520, especialmente na carta
endereçada ao Pontífice datada de 6 de setembro daquele ano, na qual se lê: “A Cúria Romana
está perdida. (...) Odeia os concílios, tem medo de ser reformada, não pode mitigar o furor de
sua impiedade”
246
e
, mais adiante, “Erram os que te elevam acima de um concílio e da Igreja
universal”
247
.
Bruce Gordon salienta que muito da visão de Lutero sobre os concílios e seu papel
vem dessa visão medieval tardia, atribuindo a estes um poder que a Cúria Romana, à época,
preferia obliterar, atribuindo ao Pontífice poderes ditatoriais.
243 BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cris. São Paulo: Aste, 2007, p. 221.
244 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 281.
245 Ibidem.
246 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas – vol 2 –. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 429.
247 Ibidem.
89
Efetivamente, a postura de Lutero em relação à primazia dos Concílios e sobre a não
confiabilidade dos papas face à autoridade conciliar poderia, em muito, ser devida à decisão
de Martinho V que, eleito em Constança e após o encerramento do Concílio, “proibiu que se
apelasse ao Concílio contra o Papa, rejeitando com isso a superioridade do Concílio sobre o
Papa, votada em Constança”
248
. O Concílio de Basileia (1431-1449) promulgou, como dogma
de fé, que “o Concílio ecumênico está acima do Papa, não pode ser por ele transferido nem
adiado”
249
. Contudo, nenhum dos Papas ratificou este dogma de fé; muito ao contrário: no I
Concílio do Vaticano, em 1870, aprovou-se o dogma da infalibilidade papal e da
superioridade da autoridade do papa. Esse reforço da “monarquia absolutista papal” no século
XIX teve sua construção histórica bem mapeada por Valentín Fábrega Escatllar
250
.
O Concílio de Basileia, nota Joseph Wohlmuth, vem passando da condição de um
Concílio esquecido para a de “fenômeno histórico de alcance universal”
251
. Se é uma
decorrência do Concílio de Constança, é igualmente uma consequência dos desdobramentos
do fracassado Concílio de Siena, de 1424. Sua essência foi a oposição entre conciliarismo e
papalismo, vale dizer as duas concepções de exercício do poder na Igreja: ou poder colegiado
ou a monarquia absoluta.
O Concílio de Basileia, o mais longo da história da Igreja, não é possível ser
sumarizado em poucas linhas, em razão de haver gerado uma impressionante quantidade
documental. Ainda segundo Wohlmuth, as linhas principais deste Concílio foram “o conflito
constitucional, os projetos de reforma e os esforços ecumênicos”
252
, estes orientados para uma
solução para a questão dos boêmios e para uma reunificação com os gregos.
Em sua Sessão XXI (junho de 1434), os padres conciliares aprovaram a imposição de
pesadas penas para a simonia, assim como a ampliação do Sacro Colégio dos Cardeais
responsável pela eleição do papa para vinte e quatro membros, devendo o papa,
imediatamente após ter sido eleito, fazer uma professio comprometendo-se a cumprir e fazer
248 FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. Op. cit., pp. 117 e 229. O Concílio foi encerrado em 23 de abril de 1418 e
o decreto de Martinho V é datado de 10 de maio de 1418.
249 Idem, p. 210.
250 Cf. FÁBREGA ESCATLLAR, Valentín. La herejía vaticana. Madrid: Siglo XXI de España, 2005.
251 WOHLMUTH, Joseph. Os Concílios de Constança (1414-1418) e de Basileia (1431-1449). In
ALBERIGO,
Giuseppe (org.). História dos Concílios Ecumênicos. S. Paulo: Paulus, 1995, p. 237.
252 Idem, p. 238.
90
cumprir todas as decisões conciliares anteriores à sua eleição. A questão da união com os
gregos foi decisivamente comprometida por uma série de desencontros entre a legação
enviada pelo Papa Eugênio IV para encontrar-se com os gregos e as reuniões conciliares,
assim como fatalidades, como a morte de um dos legados, vitimado pela peste em junho de
1436.
Uma manobra realizada pela minoria, que roubou o selo conciliar e oficializou seu
voto como sendo falsamente o majoritário na votação que dizia respeito à escolha do local
para a realização de um concílio com os gregos
253
fez com que o Concílio começasse a ser
esvaziado, talvez também pela incapacidade dos padres conciliares de ver quão grave era a
crise que a partir daquele momento se instalava no Concílio. De fato, da XXV Sessão (maio
de 1435) ao final do Concílio, em Lausana, em abril de 1449, as decisões conciliares foram
esvaziadas de importância.
Mesmo assim, em sua Sessão XXXIII, foram aprovadas as tres veritates, a saber:
1 É verdade católica que o concílio universal, como representante da Igreja
universal, é superior a todos, inclusive ao Papa;
2- É verdade católica que o Papa, usando de autoridade própria, não pode
transferir nem dissolver um concílio reunido, sem o consentimento deste;
3 – É herege quem obstinadamente transgride essas duas verdades.
254
A crise entre o Papa e o Concílio for fator determinante para esse esvaziamento.
Registre-se que Eugênio IV dissolveu o Concílio de Basileia em 18 de setembro de 1437, e
quando a notícia chegou aos padres conciliares, onze dias depois, o Concílio aprovava a
acusação de “contumácia” contra o papa, declarando, em 12 de outubro daquele ano, a
nulidade da dissolução do Concílio. Com a abertura do Concílio pontifício, em 8 de janeiro de
1438, em Florença, havia dois Concílios ocorrendo simultaneamente, sendo o de Basileia
destituído de toda autoridade por ação do Papa.
A partir diniciaram-se as negociações junto aos principais monarcas europeus para
que aceitassem a transferência de lugar do Concílio. A destituição de Eugênio IV, levou a que
fosse eleito para sucedê-lo o príncipe Amadeu VIII de Saboia, que adotou o nome de Félix V,
em novembro de 1439, e levou a novas negociações tanto junto aos monarcas quanto junto ao
253 Idem, p. 248.
254 Idem, p. 252.
91
próprio Concílio ainda reunido em Basileia, uma vez que o príncipe não se encontrava
reunido com os padres conciliares quando de sua eleição. Obtido o reconhecimento à
canonicidade de sua eleição, Félix V conseguiu que o Concílio, em sua Sessão XL, em 26 de
fevereiro de 1440, chamasse todos à obediência, o que não ocorreu com os que se reuniam em
concílio com os gregos, em Florença, que se recusaram a aceitar a eleição de Félix V.
Deve ser registrado que, pouco antes da eleição de Félix V, morreu o Imperador
Alberto II, aumentando consideravelmente as tensões no campo político. Como exemplo do
quanto essas tensões políticas perduraram, com a morte de Eugênio IV, em fevereiro de 1447,
foi eleito um novo papa enquanto Félix V pontificava que adotou o nome de Nicolau V, o
qual exigiu prontamente do Concílio o reconhecimento de seus direitos pontificais. Desta
forma, por dois anos, até a demissão de Félix V, novamente a Igreja Romana teve dois papas
reclamando sobre si a legitimidade da ocupação da Sé Apostólica.
De sua autodissolução, em 25 de abril de 1449, emergiu um conceito que viria a ser
bastante utilizado por Lutero em seus escritos: “Jesus Cristo é o único cabeça da Igreja e
existe um único vicarius que a preside”
255
. Ao tempo em que isto pode ser entendido como
um apelo à unidade, da mesma forma pode ser entendido como uma declaração de que não
existe soberania absoluta do Pontífice Romano na condução da Igreja.
Em 1460, a Bula Exsecrabilis, de Pio II, que havia reconciliado o Imperador Frederico
III com o papado e, portanto, tirado o apoio da maior autoridade civil a uma demanda
conciliarista –, condenava como execráveis os apelos ao Papa para a convocação de um
Concílio nestes termos:
Surgiu em nosso tempo um abuso execrável – inaudito em épocas anteriores
a saber, que alguns homens, cheios do espírito de rebelião, presumam apelar
ao pontífice romano (...), para um futuro concílio (...). Desejando, portanto,
expulsar da Igreja de Deus este veneno pestilencial e tomar medidas para a
segurança das ovelhas confiadas a nossos cuidados, e afastando do rebanho de
nosso Salvador tudo aquilo que possa ofende-lo, (...) condenamos os apelos
dessas espécie e os denunciamos como errôneos e detestáveis.
256
Penso que a rejeição ao conciliarismo representa, igualmente, uma vitória para os
príncipes e demais soberanos, uma vez que, se transposta para o plano da esfera do poder
255 Idem p. 255.
256 BETTENSON, Henry. Op. cit., p. 222
92
secular, a principal base do conciliarismo, o poder colegiado, representaria, em igual medida,
a diminuição do poder desses mesmos soberanos. Não se confunda, porém, o espírito
conciliarista com um espírito de tolerância, pois, nas palavras de Meuthen, citado por
Wohlmuth, “o conciliarismo não é eo ipso tolerante”
257.
Se é verdade que, sem o decreto conciliar Haec Sancta, o Cisma do Ocidente não teria
sido superado, também não é menos verdade que os Papas não tiveram qualquer interesse em
fazer concessões quanto à questão da autoridade. Segundo Alberigo, citado por Wohlmuth, “o
eixo da argumentação de Constança é a afirmação de que o Concílio tem seu poder derivado
diretamente de Cristo (potestatem a Christo immediate habet)”
258
. Na visão de Alberigo, as
proposições do decreto Haec Sancta referiam-se a três eixos, que remetiam ao período de sua
redação, de 29 de março a 6 de abril de 1415:
a)à identidade que o Concílio confere a si mesmo como reunião legítima no
Espírito Santo;
b) à imediaticidade do poder conciliar, concedido por Cristo;
c) ao empenho de obediência de todos os fiéis, inclusive o Papa, em questões
de fé, de cisma e de reforma, ‘na cabeça e nos membros’.
259
Assim, havia duas tendências diametralmente opostas no raiar do século XV: o
conciliarismo versus o poder supremo do Papa. A primeira, condenada; a segunda,
institucionalizada.
Emerge bastante correta a observação de Lortz, de que “[a questão da reforma] não se
solucionou nem em Constança nem em Basileia, devido ao egoísmo dos cardeais e das forças
políticas. Ficou absolutamente sem resolver. Sim, é preciso perguntar-se outra vez se a
questão poderia sequer ter solução enquanto não fossem vencidas (naquilo que toca a Igreja e
a cúria) as tendências hierocráticas herdadas da alta Idade Média, tão agravadas pela
política”
260
. Esse mesmo autor segue sua análise sobre as consequências do Cisma: “entrava
no terreno do possível uma tal superação, isto é, uma reforma total que tivesse modificado a
estrutura histórico-temporal da Igreja?”, para concluir que “a resposta pode ser
257 WOHLMUTH, Jopseph, Constança e Basileia. In ALBERIGO, Giuseppe (org.). História dos Concílios
Ecumênicos. S. Paulo: Paulus, 1995, pp. 219-276, cit. p. 269.
258 Idem, p. 265.
259 Ibidem.
260 LORTZ, Joseph. Historia de la Iglesia en la perspectiva de la historia del pensamiento. Madrid:
Cristiandad, 1982, vol. 1, p. 621.
93
negativa”
261
.
3.2 Os reformadores antes da Reforma: Hus e Wycliff
Contudo, não era apenas com a crise de poder e autoridade que devia lidar a Igreja no
final do século XIV e no início do XV. O professor da Universidade de Oxford, John Wycliff
(1320-1384), à época do Cisma, não apenas havia negado a soberania papal como também
condenara as indulgências e tinha defendido a secularização dos bens clericais. Indo mais
além, Wycliff defendia a clareza da Escritura Sagrada, que dispensaria a mediação do
magistério eclesiástico. Essa claritas Scripturae é um dos pontos cruciais da hermenêutica
bíblica que Martinho Lutero desenvolverá a partir de sua docência em Wittenberg.
Como destaca Troeltsch, o movimento dos lolardos de Wycliff “difere dos
movimentos sectários italianos [dos séculos XIV e XV] neste aspecto: sua influência foi
permanente”
262
. Destacam-se alguns aspectos comuns às pregações de Wycliff e de Lutero,
dentre os quais a luta contra o absolutismo papal e o nacionalismo podem, que ser apontados
como recorrentes nos escritos de 1520. Os questionamentos feitos por Wycliff acerca do poder
secular do papa, contestando o poder temporal que a Igreja se arrogou após o Papa Silvestre I
serão retomados por Lutero quase um culo e meio depois. Contudo, a ideia central do
pensamento wycliffiano, que é a da Lei Divina, (nas palavras de Troeltsch, “uma interpretação
dos ensinamentos patrísticos, combinada com Lei Natural e legalismo escriturístico”
263
), pode
ter servido de base para a pregação de Lutero sobre a autoridade última e inquestionável da
Escritura sobre a vida pessoal e comunitária. Igualmente a concepção de John Wycliff da
Igreja como sendo não necessariamente uma comunidade institucional, mas sim uma
comunidade de fé é bastante salientada nos escritos de 1520, que serão examinados no
Capítulo III.
A pregação de Wycliff ecoou sobretudo junto ao baixo clero inglês, tendo a revolta de
1381, o movimento dos lolardos – os poorpriesters –, forte influência wycliffiana, cujo
261 Ibidem.
262 TROELTSCH, Ernst. The social teaching of the Christian Churches. London: Westminster John Knox Press,
1992, vol. 1 p. 358.
263 Idem, p. 359.
94
anticlericalismo e antipapismo eram simpáticas aos estratos mais pobres da população.
Também no continente as ponderações de Wycliff tiveram boa acolhida em alguns
círculos intelectuais, de modo especial na Boêmia, onde o reitor da Universidade de Praga,
Jan Hus, em 1402, começou pregações contra os abusos eclesiásticos e defendendo a
soberania da Escritura como norma de fé e de moral. Hus utilizou-se de sua posição de Reitor
da Universidade de Praga, para a difusão de suas ideias, pregando-as igualmente do púlpito da
capela de Belém. A reforma por ele pregada muito pouco diferia daquela proposta pelos
conciliaristas da baixa Idade Média.
Hus, refere Troeltsch, “era menos avançado em seus pontos de vista do que Wycliff,
mas seu trabalho produziu consequências mais radicais”
264
. As ideias de Wycliff
possivelmente chegaram-lhe através dos panfletos levados da Inglaterra por seus compatriotas
que estudaram, devendo ser recordado que o rei inglês Ricardo II era casado com uma
princesa da Boêmia, o que aumentou consideravelmente a circulação de ideias entre Inglaterra
e Boêmia. A Universidade de Praga era praticamente dividida entre professores boêmios e
alemães, com estes rejeitando as ideias wycliffianas, enquanto que os primeiros as aceitavam.
Esta oposição entre tchecos e alemães ocorria em todos os âmbitos da sociedade boêmia. No
papel de Reitor, Hus defendeu o direito de os professores e alunos debaterem livremente as
ideias e, com o apoio do rei da Boêmia, os boêmios ganharam a disputa, e os professores
alemães deixaram a Universidade de Praga indo fundar a Universidade de Leipzig.
Em 1409, no Concílio de Pisa, o Bispo de Praga, que apoiava os Papas pisanos
primeiro Alexandre V e, posteriormente, João XXIII – conseguiu um decreto papal banindo as
obras de Wycliff e determinando que as pregações fossem realizadas somente em catedrais,
sedes paroquiais e mosteiros, o que, na prática, silenciava Hus, visto a capela de Belém não se
enquadrar em nenhuma dessas categorias.
Por desobedecer tal proibição, Hus foi convocado a ir a Roma responder por esse ato
de desobediência e por outros que se seguiram. Tendo recusado-se a tal, foi excomungado em
1411, o que, em razão do apoio que ele tinha do rei da Boêmia e de parte do povo boêmio,
teve pouco efeito prático.
264 Idem, p. 362.
95
O conflito com o Papa pisano fez com que as ideias reformistas hussitas se tornassem
cada vez mais radicais e, embora ele não questionasse a legitimidade do Papa, questionava
sua autoridade quando agia em interesse próprio. Hus afirmou que um Papa indigno não
deve ser obedecido”
265
. Com isso, Hus formulou a tese de que a Bíblia é a autoridade maior
pela qual um Papa e todo e qualquer cristão seria julgado, de tal forma que um Papa que não
obedecesse à Bíblia não deveria ser obedecido.
A campanha militar que João XXIII moveu contra Nápoles envolveu o reino da
Boêmia e, por igualmente necessitar do apoio papal, o rei da Boêmia determinou a Hus que
silenciasse. Novamente excomungado por João XXIII, desta feita Jan Hus deixou Praga,
continuando, porém, a escrever.
De modo especial em sua obra De Ecclesia, Hus defendia a ideia de a Igreja ser uma
praedestinatorum universitas, o que é uma reafirmação da doutrina agostiniana. Ainda nessa
obra, o reformador defende que a pregação e o serviço entre os segmentos mais baixos da
população somente pode ser feito através da santidade dos ministros. Uma síntese de suas
ideias, que o fazem um elo entre Wycliff e Lutero, pode ser apresentada na seguinte
formulação:
A Igreja, a comunidade dos eleitos, na qual a única lei válida é a Lei de Deus –
o Papado sendo um mero desenvolvimento histórico, e agora verdadeiramente
em oposição à Lei Divina, e assim anticristão, e todas as autoridades
eclesiásticas dele dependentes, se aceitam tal lei todos sob a obrigação de
resistir a falsos mandantes; então a mais amarga crítica às condições,
especialmente entre o alto clero e o monaquismo, acerca dos males trazidos
pelo domínio mundano da Igreja; o dever dos governos de reformar esses
males, o direito do laicato de aplicar a Lei Divina, mesmo contra a hierarquia,
e evitar maus padres.
266
Para que se veja como as teses hussitas serviram parcialmente para molde das de
Lutero, transcrevem-se abaixo as principais delas, tal como apresentadas em sua condenação
no Concílio de Constança, segundo Denzinger
267
:
1. Uma e única é a santa igreja universal, que é a congregação dos
predestinados.
265 GONZALEZ, Justo L. The Story of Christianity vol. 1. New York: HarperCollins, 1984, p. 349.
266 TROELTSCH, Ernst. The social teaching of the Christian Churches. London: Westminster John Knox Press,
1992, vol. 1, p. 363.
267 DENZINGER, Henry. The Sources of Catholic Dogma, Enchiridion Symbolorum, Powers Lake: B. Herder
Book Co., 1957, pp. 212-215.
96
2. Pedro não é nem nunca foi a cabeça da Santa Igreja Católica.
3. Padres vivendo criminosamente de qualquer maneira, minam o poder do
sacerdócio e, como filhos infiéis, eles pensam infielmente sobre os sete
sacramentos da Igreja, as prerrogativas, os deveres, as censuras, costumes,
cerimônias e os sagrados negócios da Igreja, sua veneração de relíquias,
indulgências e ordens.
4. A dignidade papal originou-se de César e a perfeição e instituição do Papa
emanaram do poder de César.
5. Ninguém, sem revelação, poderia ter razoável certeza acerca de si próprio
que é a cabeça de uma igreja particular, nem o Romano Pontífice é a
cabeça da particular Igreja Romana.
6. Não é necessário crer que quem quer que seja o Romano Pontífice, seja o
cabeça de qualquer igreja particular, a menos que Deus o haja
predestinado.
7. Ninguém toma o lugar de Cristo ou de Pedro, a menos que o siga em
caráter, pois nenhuma outra sucessão é mais importante, e de nenhum
outro modo ele recebeu de Deus o poder procuratório, porque para tal
ofício de vigário são requeridos tanto a conformidade de caráter como a
autoridade daquele que o instituiu.
8. O Papa não é o verdadeiro e manifesto sucessor de Pedro, o primaz dentre
os apóstolos, se ele vive em uma maneira contrária a Pedro, e se ele é
avaro, então ele é o vigário de Judas Iscariotis. E com tal evidência os
cardeais não são os verdadeiros e manifestos sucessores do colégio dos
outros apóstolos de Cristo, a menos que eles vivam da mesma maneira que
os apóstolos, guardando os mandamentos e conselhos de Nosso Senhor
Jesus Cristo.
9. Obediência eclesiástica é uma obediência de acordo com a invenção dos
padres da Igreja, sem a expressa autoridade da Escritura.
10. Se o Papa é decaído e especialmente se ele é pecador, então, como Judas,
o Apóstolo, ele é do demônio, um ladrão e um filho da perdição, e ele não
é o cabeça da santa Igreja militante, desde que ele não é um membro dela.
11. A graça da predestinação é uma cadeia pela qual o corpo da Igreja e
qualquer de seus membros são ligados indissoluvelmente a Cristo, a
Cabeça.
12. O Papa ou prelado, decaído e pecador, não é pastor, mas verdadeiramente
um ladrão.
13. O Papa não deveria ser chamado “santíssimo”, mesmo em razão de seu
ofício, pois deste modo, o rei também deveria ser chamado “santíssimo”
de acordo com seu ministério, assim como torturadores e arautos deveriam
ser chamados santos, e mesmo o demônio deveria ser chamado santo,
que ele é um agente de Deus.
14. Se o Papa vive de uma maneira contrária a Cristo, mesmo que ele proceda
de uma eleição legítima e legal, de acordo com as leis humanas, mesmo
que ele proceda de um outro lugar que não através de Cristo, mesmo que
ele seja entronizado por uma eleição feita principalmente por Deus, não
será legítimo, pois Judas Iscariotis reta e legitimamente foi eleito por Deus
e Jesus Cristo para o episcopado e procedeu de um outro lugar para o
aprisco do rebanho.
15. A condenação dos quarenta e cinco artigos de John Wycliff feita pelos
doutores é irracional e viciosa e erradamente feita; a causa alegada por
eles foi pela razão de que “nenhum deles é católico mas cada um deles é
herético, errôneo ou escandaloso.
Das ideias de Hus e de Wycliff, ocupou-se o Concílio de Constança em sua primeira
97
parte. No início de 1415 evidenciaram-se as divisões entre os grupos presentes, com os
cardeais e teólogos italianos presentes propondo discussões sobre a chamada causa fidei, a
“causa da fé”, a discussão das ideias de Jan Hus e John Wycliff, enquanto que os alemães,
ingleses e franceses desejavam priorizar a causa unionis, a “causa da união”, com a demissão
do Papa e dos antipapas e a eleição de um novo Pontífice.
A discussão sobre as ideias de uma reforma radical proposta por John Wycliff, que
havia sido professor em Oxford e morrera em 1384, parecia atual aos padres conciliares, que
entendiam que a aspiração de uma “igreja dos pobres”, sem hierarquia, estava viva na
Boêmia, o que gerava naquela região um clima de sublevação e instabilidade.
Iniciadas as discussões ainda antes do Natal de 1414, somente em 6 de julho de 1415 é
que foi condenada a obra de Wycliff, não por coincidência na mesma Sessão, a XV, que
condenou igualmente Jerônimo de Praga e Jan Hus, declarando a este um “Wycliff redivivo”.
Se a condenação dos mestres reformadores boêmios resultou na ereção de duas fogueiras em
Constança, vale recordar que o Concílio determinou a exumação dos restos mortais de
Wycliff, reputados indignos de permanecer sepultos em campo santo cristão.
É digno de nota que Hus rejeitava a autoridade papal do mesmo modo que os
conciliaristas presentes em Constança, sendo uma contradição que estes o condenassem, visto
as teses conciliaristas serem posteriormente condenadas por Eugênio IV como “ímpias e
ultrajosas”.
Duas das mais eloquentes vozes contra Hus no Concílio foram as de Pierre d’Ailly,
Cardeal de Cambari, e de seu amigo Jean Gerson, Chanceler da Universidade de Paris.
Segundo eles, os Concílios tinham o poder de emitir juízo contra os teólogos, e afirmava Jean
Gerson que a pessoa errada que não revê seus erros deve ser exterminada”. Também
Teodorico de Niem e os ingleses se opunham a Hus, como relata Paul De Vooght
268
.
Convocado a Constança para defender-se, e tendo recebido do Imperador Sigismundo
um salvo-conduto, Jan Hus foi inquirido pelo próprio João XXIII, que lhe ordenou que
renegasse suas ideias “heréticas”, tendo recebido como resposta que “com prazer, renegaria
268 DE VOOGHT, Paul. Jean Hus et ses juges. In DE VOOGHT, Paul. Les Pouvoirs du Concile et l’Autorité du
Pape au Concile de Constance, Le Décret “Haec Sancta Synodus”, du 6 avril 1415.
98
suas ideias se alguém pudesse mostrar-lhe que ele era um herege”
269
. Após a audiência, Hus
foi tratado como prisioneiro, inicialmente em sua residência, posteriormente no palácio
episcopal e, seguidamente, em celas de mosteiros.
Os protestos de Sigismundo quanto à violação de seu salvo-conduto perduraram até
que este percebeu que a causa hussita não tinha apoio popular. Condenado pela assembleia
conciliar no dia 6 de julho, foi levado à fogueira no mesmo dia. A leitura dos textos
conciliares deixa perceber de forma bastante nítida que Hus foi condenado por simpatizar com
as ideias de Wycliff. Jerônimo de Praga, que abjurara e tentara se retratar, foi relaxado ao
braço secular e queimado em 27 de maio de 1416.
A conexão entre as ideias de Jan Hus e a pregação de Martinho Lutero é extremamente
importante, pois uma das acusações que se fará a Lutero será a de retomar as ideias de Hus e
Wycliff, previamente condenadas no Concílio de Constança. Interessantemente os
acusadores de Lutero o fizeram qualquer referência ao fato de o Concílio de Constança
haver defendido a primazia conciliar sobre a autoridade papal, ponto importante das
reivindicações de Lutero.
A conclusão do Concílio de Constança e a eleição de Martinho V como Papa não
resolveram as disputas sobre autoridade e poder. De modo especial, a Igreja da França, a mais
importante do mundo, em razão do poder do “Cristianíssimo Rei”, mesmo após as duas
concordatas assinadas (em 1418 e 1425), conflitava com a autoridade papal. Uma das
questões de fundo era o empobrecimento do país após a Guerra dos Cem Anos, com os parcos
recursos disputados entre os coletores papais e os oficiais do soberano, cujas necessidades
cresciam à mesma medida que seu poder.
Carlos VII, após consulta ao seu clero, proclamou em 7 de julho de 1438 uma
ordenação em vinte e três artigos, na qual regulava unilateralmente as relações da coroa
francesa com a Romana, a “Pragmática Sanção de Bourges”, que reafirmava a supremacia
conciliar sobre a autoridade papal, restabelecia a eleição dos bispos e abades pelos capítulos,
retirava da Santa seus direitos em matéria de colação eclesiástica, contestava os apelos a
Roma antes que se houvessem esgotado todas as instâncias intermediárias e limitava a prática
269 GONZALEZ, Justo L.. Op. cit., p. 350.
99
das excomunhões.
Se comparadas à nação alemã – uma comunidade cultural – e aos dois Estados
modernos França e Inglaterra , a Itália, mosaico de reinos, cidades e principados, e a
Espanha poderiam ser consideradas como aliadas da soberania pontifícia, em contraponto à
supremacia conciliar defendida por ingleses, alemães e franceses.
3.2.1 As questões das indulgências e das relíquias
Do ponto de vista dos cristãos comuns, à margem dos jogos de poder, uma questão era
tida por muito relevante, desde a promulgação da Bula Unigenitus Dei Filius, em 1343, pelo
Papa Clemente VI.
Esta Bula, pelas enormes controvérsias que suscitou, recebeu a alcunha de
Extravagante, sendo, por séculos, posta à margem do corpus iuris canonicus, o corpus dos
documentos legais da Igreja Católica Romana. Ainda que, em momento algum, afirmasse que
a “aquisição dos méritos de Cristo” pelos fiéis se daria de forma pecuniária, o que prevaleceu,
desde sua assinatura, foi o entendimento de que as relíquias deveriam ser compradas e,
mesmo, que penitências deveriam ser acompanhadas de pagamento pecuniário, para que as
indulgências fossem eficazes. Em verdade, o tom da Bula Unigenitus Dei Filius é bastante
pietista, consoante com o espírito do tempo de sua redação, impregnada de ideias dos
“espirituais” e de movimentos penitenciais.
Exatamente a questão das indulgências, como visto no Capítulo anterior, foi o ponto
principal das “95 Teses de Lutero, em 1517, assim como de alguns de seus escritos
posteriores. Deve ser ressaltado que, se houve tal prática, era porque havia ampla aceitação
dela pela população. Para o economista David Hoffer
270
, as indulgências representavam uma
importante força econômica para a igreja Católica Romana. Citando Ekelurd, ele afirma
271
:
“A Igreja controlava uma enorme riqueza. Suas fontes de rendimentos incluíam dízimos,
aluguéis de terras, doações, heranças, taxas cobradas por serviços judiciais, rendimentos da
270 HOFFER, David. Indulge, my son: Economic Look Into the Catholic Church’s Use of Indulgences, no sítio
http://economics.about.com/cs/moffattentries/a/catholic_church.htm , acessado em 16/09/2008.
271 EKELRUD, Robert Jr.. In Robert F. Hebert, et. al. The Sacred Trust: The Medieval Church as an Economic
Firm, New York: Oxford University Press, 1996, p. 31, in HOFFER, D., art. cit.
100
venda de indulgências, e rendimentos derivados da produção monástica e do comércio da
produção agrícola” (itálico de Hoffer).
Ekelurd salienta a peculiaridade de que todas as outras fontes de rendimentos, à
exceção das doações, heranças e indulgências, eram focadas nos aspectos pragmáticos da vida
e trabalho diários (terra, trabalho e capital, em uma perspectiva marxista), sendo as
indulgências o único item que prescrevia meios físicos para atingir objetivos espirituais.
Doações caritativas poderiam servir para que se atingisse tal fim, mas não com tal específica
necessidade, ao passo que as indulgências somente serviriam para isso. Continua Ekelrud
afirmando que o uso das indulgências na doutrina do purgatório permitia à Igreja estender seu
poder sobre os fiéis no mundo após a morte
272
.
3.3 Alexandre, Júlio e Leão: Vênus, Marte e Minerva
Sobre os pontificados dos sucessores de Martinho V – Eugênio IV (1431–1447);
Nicolau V (1447- 1455); Calisto III (1455-1458); Pio II (1458-1464); Paulo II (1464-1471);
Sisto IV (1471-1484) e Inocêncio VIII (1484-1492) pouco que se comentar que seja
relacionado ao escopo desta Tese, senão a manutenção e ampliação da doutrina das
indulgências e das disputas com os Reis da França na questão do galicanismo, a manutenção
dos privilégios e da influência do rei da França sobre a Igreja naquela nação, que resultaram
na assinatura de diversas concordatas.
Nicolau V envidou o máximo de esforços para reconstruir Roma e torná-la,
novamente, “a capital dos cristãos”
273
, entre outras razões face à queda da “Nova Roma”,
Constantinopla, para os turcos, em 1453. Buscou a reconstrução de monumentos e iniciou o
processo de tornar o Vaticano uma cidade pontifícia, separada do resto da cidade. Calisto III
empenhou os três anos de seu pontificado para retomar a luta contra os turcos, que já
chegavam ao Danúbio. Pio II condenou as teses conciliaristas e conseguiu de Luís XI, da
França, a revogação da “Pragmática Sanção” em 1462; contudo, o rei francês, gradualmente,
voltou a colocar em prática tudo aquilo que havia revogado
274
.
272 Apud EKELRUD, R., art. cit., pp. 70 e 153.
273 PIERRARD, P.. Op. cit., p. 166.
274 Ibidem.
101
Paulo II ignorou o pacto do conclave que o elegeu, que exigia a convocação iminente
de um concílio que implementasse reformas na Igreja, como relata Pierrard
275
. Somente o
assédio dos turcos, que ocuparam Negroponte, território veneziano, o fez mobilizar-se para
que a Itália cessasse suas lutas internas e se concentrasse em repelir os otomanos. Criou a
quindécima, imposto sobre os benefícios recebidos pelos religiosos.
Sisto IV (Francesco della Rovere) teve um pontificado marcado pelo nepotismo.
Envolveu-se nas lutas internas italianas, aliando-se aos Pazzi na luta contra os Colonna e os
Médici. Aumentou os mecanismos de fiscalização e arrecadação. Nas palavras de Pierrard, “a
venal distribuição de cargos tornou-se o mecanismo do governo pontifício” e “em toda parte,
mas principalmente na Europa central e setentrional, a cobrança do dízimo tornava odioso o
nome do Papa”
276
.
Inocêncio VIII criou vinte e quatro novos postos de secretários apostólicos, que lhe
renderam 62 mil ducados. “O que se viu foi a circulação de falsas bulas fabricadas por
funcionários da Cúria apressados em recuperar seu dinheiro, desconsiderando inclusive os
atos autênticos do pontificado”, como sinaliza Pierrard
277
.
Este ambiente de simonia e corrupção iria permitir a eleição do Cardeal Rodrigo
Bórgia na sucessão de Inocêncio VIII.
Desejo dar especial destaque aos pontificados dos três Papas que governaram a Igreja
no período mais relevante para esta Tese: Alexandre VI (1492-1503), Júlio II (1503-1513) e
Leão X (1513-1521)
278
. É necessário, porém, recordar que a quase totalidade dos autores
ocupados dos Papas que reinaram nesse período emprega um tom moralizante. Fischer-
Wollpert, por exemplo, em relação a Alexandre VI afirma que “seu pontificado foi uma
infelicidade para a Igreja”
279
.
A eleição do catalão Rodrigo Bórgia, vice-chanceler do seu tio, o Papa Calisto III, que
275 Ibidem.
276 Idem, p. 167.
277 Ibidem.
278 Não se fará referência ao pontificado de Pio III, que reinou por apenas 32 dias (26, se considerada a data de
sua coroação), de 16 de setembro a 18 de outubro de 1503. V. nota 215, neste mesmo Capítulo.
279 FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. Op. cit., p. 125.
102
o nomeou bispo e o criou cardeal com 25 anos de idade, foi marcada por rumores fortes,
embora incomprováveis, de simonia. Não comprovação de que, graças à influência e
fortuna acumuladas, Rodrigo Bórgia teria praticado a simonia no conclave que o elegeu, para
suplantar os dois outros candidatos, os cardeais Ascanio Sforza e Giuliano della Rovere. Este,
sobrinho do Papa Sisto IV, viria a ser eleito Papa em 1503, assumindo o nome de Júlio II.
Seu pontificado foi marcado, na visão da unanimidade dos autores, pela corrupção,
pela imoralidade e pela simonia, causas que levaram, formalmente, o cardeal della Rovere a,
em 1494, encabeçar um grupo de prelados que tentou, infrutiferamente, sua deposição. Criou
cardeais seu filho César, aos dezesseis anos, três sobrinhos, três sobrinhos-netos e o cunhado
de César. Giuliano della Rovere instou o Rei Carlos VIII, da França, a conquistar Nápoles,
tendo invadido Roma com as tropas reais. A tentativa de convocação do concílio com poderes
para destituição do Papa malogrou em razão da ação de Briçonnet, ministro do Rei Carlos
VIII e aliado de Alexandre VI.
Em 1498, uma ordem papal decretou a prisão do frade dominicano Girolamo
Savonarola, que foi enforcado em 23 de maio, tendo seu corpo queimado em seguida. Esse
importante pregador insistia em uma vida moral regenerada, chegando a dizer, acerca do Papa
Alexandre VI, “outrora, se os padres tinham filhos, chamavam-nos seus sobrinhos; agora, não
se tem mais sobrinhos, tem-se filhos, simplesmente filhos!... Igreja infame! Igreja
prostituída!”
280
. Pregações como esta e a sua defesa da soberania florentina frente à
autoridade romana levaram Florença a viver um período de “república teocrática”
281
e
causaram sua excomunhão em 1497. Já anteriormente Savonarola havia identificado a Roma
de Alexandre VI com as forças do anticristo: “Eu vi uma cruz negra sobre a Babilônia que é
Roma, na qual estava escrito Ira Domini [Ira do Senhor] (...) E vos digo, a Igreja de Deus
precisa ser renovada, e o será em breve”
282
.
Henri Petiot (Daniel-Rops) recorda alguns trechos do sermão de Savonarola, pregado
na Quaresma de 1497, em Santa Maria della Fiore, que causaram sua excomunhão
283
:
Aproxima-te, Igreja infame, e escuta o que o Senhor te diz: - Dei-te
belos vestuários e com eles cobriste ídolos e vasos preciosos, e com eles
280 PIERRARD, P.. Op. cit., p. 168.
281 DUFFY, Eamon. Santos e pecadores: História dos Papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 151.
282 Ibidem.
283 PETIOT, Henri [DANIEL-ROPS]. História da Igreja – vol. IV. S. Paulo: Quadrante, 1996, p. 219.
103
exaltaste o teu orgulho! Profanaste os meus sacramentos com a tua
simonia, e a luxúria fez de ti uma mulher pública, desfigurada! E nem
sequer te ruborizas com os teus pecados! Ah! Prostituta! Sentada sobre
o trono de Salomão, fazes sinal a todos os que passam. Os que têm
dinheiro entram na tua casa e servem-se dela a seu bel-prazer, mas os
que desejam o bem são lançados fora!
Esse autor recorda que a inflamada e incendiária pregação de Savonarola fez
congregar em torno de si, no Convento de São Marcos, do qual fora eleito prior, uma
quantidade significativa de apoiadores, inclusive com um aumento das vocações entre os
dominicanos, que chegaram a reunir mais de duzentos novos irmãos naquele convento
284
.
Suas imprecações contra o fausto, o luxo e a conduta dos Medicis eram toleradas por
Lorenzo, o Magnífico. Petiot relata que, na hora de seu enforcamento, Savonarola quis ter a
seu lado Jerônimo, o irmão de Lorenzo, e que teria aproveitado esse derradeiro momento para
intimá-lo a restituir a Florença suas antigas liberdades
285
.
Nas palavras de Eamon Duffy, nos tempos do pontificado de Alexandre VI “Roma era
um chiqueiro moral”
286
.
Sobre Alexandre VI, Maquiavel faz as seguintes observações em O Príncipe:
Surgiu
depois Alexandre VI que, de todos os pontífices que já existiram, foi o que mostrou o quanto um Papa
podia, com o dinheiro e as tropas, para adquirir maior poder” (p. 48).
E ainda:
Alexandre VI jamais fez outra coisa, jamais pensou em outra coisa senão
enganar os homens, sempre encontrando ocasião para assim poder agir. Nunca
existiu homem que tivesse maior eficácia em asseverar, que com maiores
juramentos afirmasse uma coisa e que, depois, menos a observasse; não
obstante, os enganos sempre lhe resultaram segundo o seu desejo, pois bem
conhecia este lado do mundo. (p. 72)
287
Após a morte de Alexandre VI, em 18 de agosto de 1503, o mesmo Maquiavel
descreveria sua alma escoltada até Deus por seus três “fiéis seguidoras”: a crueldade, a
simonia e a luxúria.
A imoralidade do Papa e de parte da Cúria será muitas vezes aludida por Lutero como
uma das razões pelas quais a Reforma deveria ser feita.
284 Idem, p. 221.
285 DUFFY, Eamon. Op. cit. p. 151.
286 Ibidem.
287 MACHIAVELLI, Niccolò. Œuvres Complètes. Paris: Pléiade, 1980.
104
Giuliano della Rovere foi eleito Papa em 1503, sucedendo a Pio III, de brevíssimo
pontificado. Esse franciscano é descrito como “o Papa de botas”, mais soldado que pontífice,
o uomo terribile que a unanimidade dos cardeais julgava que a Igreja necessitava.
Energicamente acabou com o banditismo nos seus domínios e, desejando ser o único senhor
da Itália, expulsou da península os franceses, de cujo Rei, Luís XII, tinha sido aliado, e
empreendeu campanhas militares não apenas para expulsar outros estrangeiros, como os
espanhóis, mas também para ampliar os Estados Papais. Júlio II deu continuidade ao
embelezamento de Roma, iniciado por Nicolau V, e acelerou a construção da Basílica de S.
Pedro, concluída por seu sucessor
288
.
Em 1517, quatro anos após a morte de Júlio II, Erasmo escreveu a obra satírica Julius
Exclusus, na qual denunciou o falecido Papa como tendo cometido todos os crimes
concebíveis, da bruxaria à sodomia. A obra narra o encontro de Júlio II com o Apóstolo Pedro,
nas portas do céu, com o Papa ainda envergando sua armadura e acompanhado pelos
fantasmas dos mortos nas guerras que ele havia começado. O apóstolo não o reconheceu
como sucessor, e Júlio II retrucou: “Tu hás de saber quem eu sou e o que eu fiz... Multipliquei
as rendas. Criei novos cargos e os vendi. Inventei um modo de traficar bispados sem simonia.
Rasguei tratados, mantive grandes exércitos a postos”
289
.
Roger Collins aponta Julius Exclusus como um dos livros estudados por Lutero entre
1518 e 1519, como parte das muitas leituras feitas por ele acerca da igreja do seu tempo
290
.
Huizinga sugere que a aversão pela guerra e todo o mal que esta lhe causara, além da
forma como a entrada triunfal de Júlio II em Bolonha havia ultrajado seus sentimentos pode
ter sido a razão principal para que Erasmo tenha escrito Julius exclusus
291
.
Um dos resultados do conflito entre Júlio II e Luís XII foi a convocação, por este, de
um Concílio em Pisa, entre 1511 e 1512, um Concílio não reconhecido pela Igreja, visto ser
abertamente uma conspiração francesa. A resposta imediata de Júlio II foi a convocação de
288 Sobre a construção da Basílica de S. Pedro, recomenda-se a obra de Rita A. Scotti, Basílica de São Pedro:
esplendor e escândalo na construção da catedral do Vaticano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
289 DUFFY, E.. Op. cit., p. 152.
290 Cf. COLLINS, Roger. Keepers of the Keys of Heaven. Philadelphia: Basic Books, 2009, p. 348
291 HUIZINGA, Johan. Erasmus and the Age of Reformation. New York: Dover, 2001, p. 84.
105
um Concílio Ecumênico, que se iniciou em 10 de maio de 1512, o V Concílio de Latrão. Nem
mesmo a morte do Papa, em 21 de fevereiro de 1513, interrompeu o Concílio, que foi
confirmado e mantido por seu sucessor, Leão X.
Algumas das principais decisões do V Concílio de Latrão foram:
1. Condenação do Concílio cismático de Pisa;
2. Decretos de reforma da formação do clero e sobre a pregação;
3. Condenação da “Pragmática Sanção de Bourges”, revogada pela
Concordata de Bolonha, de 1516, entre Leão X e Luís XII;
4. Condenação das teses de Pietro Pomponazzi.
Vê-se que foi um Concílio muito mais atento às questões diplomáticas do que às
questões de reforma da Cúria ou da estrutura da Igreja. A obra de Minnich
292
ocupa-se da
apresentação dos participantes do Concílio Lateranense e de seus decretos e resoluções.
Também Alberigo
293
relaciona os principais documentos desse Concílio. Se havia, por parte
da população, um desejo de reformas, como enfatizaram Lutero e outros Reformadores, o
Concílio passou ao largo dessas questões.
Não se poderia, contudo, esperar que uma Cúria hipertrofiada pela multiplicação de
cargos feita por Alexandre VI, Júlio II e também por Leão X, pudesse concordar com
qualquer programa de reformas em seu funcionamento. Duffy aponta que “a venda de ofícios
paralisou a reforma, pois criou uma classe gigantesca de funcionários cujo interesse era
impedir a simplificação da administração papal ou qualquer tentativa de remover os abusos
financeiros no interior da cúria”
294
.
Leopold Von Ranke diz que “sobre seus três filhos, Giuliano, Pietro e Giovanni,
Lorenzo de’ Médici dissera: o primeiro era bom; o segundo, um tolo; o terceiro, prudente.
Este terceiro foi o Papa Leão X”
295
. Pelo amor às artes de Giovanni di Lorenzo de’ Medici,
sua eleição como Papa, sob o nome de Leão X, mereceu dos romanos o comentário de que
“depois de Vênus e Marte, Minerva”, em uma alusão aos seus antecessores, comparando-os a
deuses da mitologia greco-romana. Ao lascivo Alexandre VI, sucedeu o guerreiro Júlio II,
sucedido pelo amante das artes Leão X.
292 MINNICH, Nelson H.. The Fifth Lateran Council. London: Ashgate, 1993.
293 ALBERIGO, Giuseppe (org.). História dos Concílios Ecumênicos. S. Paulo: Paulus, 1995.
294 DUFFY, E.. Op. cit., p. 150.
295 RANKE, Leopold Von. The History Of The Popes (Their Church And State In The Sixteenth And
Seventeenth Centuries). Whitefish: Kessinger Publishing, 2006, p. 29.
106
Tal amor às artes, traduzido por vezes em gastos excessivos, ao final de seu
pontificado, revelou-se uma das causas da bancarrota da Igreja Romana, aumentando a
dependência desta em relação aos banqueiros e fazendo com que necessitasse cada vez mais
dos rendimentos da venda de indulgências. Como se viu no Capítulo I, essa foi uma das
razões que levaram o Papa Leão X a ordenar ao dominicano Johan Tetzel a venda de
indulgências na Alemanha em 1518.
Em 1516, em meio ao V Concílio de Latrão, Leão X assinou a Concordata de
Bolonha, que revogou a “Pragmática Sanção de Bourges”, mantendo ao Rei da França,
porém, o direito de nomeações episcopais, abaciais e para os principais benefícios na França,
restabelecendo, porém, o pagamento das anatas
296
ao Papa e o direito do recurso a Roma, que
foram abolidas pela “Pragmática Sanção”
297
.
Contudo, as negociações para a assinatura de uma Concordata com a revogação da
“Pragmática Sanção” começaram já no início do pontificado de Leão X, como se pode
depreender da carta de Luís XII ao Papa, datada de 1° de julho de 1513:
O cristianíssimo Rei deseja viver e morrer bom e devoto filho da Igreja do
papa Leão X, ora governando a Igreja como vigário de Nosso Senhor e
Redentor Jesus Cristo e sucessor do glorioso apóstolo o Senhor S. Pedro, e
não deseja aderir nem consentir com maldosas seitas nem cismas de qualquer
maneira que sejam.
298
Continuava, ainda, esta carta culpando o Papa Júlio II pessoalmente pelas dissensões
entre Roma e a França:
Com relação aos tempos do dito finado papa Júlio, porque este se mostrou tão
grande inimigo deste cristianíssimo Rei e da nação galicana, e que usou de
uma tão grande ingratidão, crueldade, injustiça, não fazendo ofício de pastor,
mas sim de tirano e de inimigo (...).
299
Assegurava Luís XII a Leão X que “o faria sempre saber sempre muito bom, devoto e
obediente filho, delibera fazer-lhe todos os serviços que possa, como mais amplamente dirá o
296 Taxa especial paga à autoridade eclesiástica superior por todos aqueles que recebiam um benefício, sendo
proporcional ao rendimento anual do beneficiado.
297 DUFFY, E.. Op. cit., p. 153.
298 MINNICH, Nelson H.. The Fifth Lateran Council. London: Ashgate, 1993, p. 159.
299 Ibidem.
107
senhor de Marselha, seu embaixador”
300
. A resposta de Leão X se deu através da Constituição
Apostólica Æternæ Vitæ Claviger, de 9 de outubro de 1513, na qual o Rei Luís XII foi
declarado livre de todas as censuras eclesiásticas.
Este era o estado da Igreja e da Cristandade do final do século XIV ao início do
século XVI. Há que se considerar o outro grande ator, o Sacro Império Romano-Germânico.
3.4 Carlos V e o Sacro Império Romano-Germânico
O Sacro Império Romano-Germânico foi a união de territórios da Europa Central
durante a Idade Média e o início da Idade Moderna sob a autoridade do Sacro Imperador
Romano. Embora Carlos Magno seja considerado o primeiro Sacro Imperador Romano,
coroado em 25 de dezembro de 800, a linha contínua de imperadores começou apenas com
Oto, o Grande, em 962.
A partir do culo XV, foi conhecido oficialmente como o Sacro Império Romano
da Nação Germânica. A extensão territorial do Império variou durante sua história, mas o seu
ápice englobou os territórios dos atuais Estados da Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein,
Luxemburgo, República Tcheca, Eslováquia, Eslovênia, Bélgica, Holanda, Espanha e grande
parte da Polônia, França e Itália. Na maior parte da sua historia, o Império foi constituído por
centenas de pequenos reinos, principados, ducados, condados, cidades-livres imperiais e
outros domínios. Apesar de seu nome, na maior parte da sua existência o Sacro Império
Romano-Germânico não incluiu a cidade de Roma em seus domínios. No seu Essai sur
l'histoire generale et sur les mœurs et l'esprit des nations, de 1756, Voltaire descreveu o Sacro
Império Romano como uma “aglomeração” que não é “nem sagrada, nem Romana, e nem um
Império”.
Deve-se concordar com Francisco Carlos Teixeira da Silva quando este afirma que a
historiografia ocidental “buscou narrar uma história na qual a continuidade entre o antigo
império romano e a então nova configuração política da Europa ao tempo da Reforma
Protestante aparecia como uma notável continuidade”
301
. Sem dúvida, o Império Romano-
300 Idem, p. 161.
301 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A Permanência da Ideia de Império Universal na Época Moderna. In
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da, CABRAL, Ricardo Pereira e MUNHOZ, Sidnei J. (orgs.). Impérios na
História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 137.
108
Germânico, ao associar a Res Publica romana aos valores do cristianismo, pretendia-se
continuador da tradição romana, em uma Res Publica Christiana. Francisco Carlos Teixeira
da Silva prossegue em sua análise sobre a crise de autoridade do Sacro Império:
Era verdade, e todos reconheciam isso, que o império desde muito perdera seu
sentido de poder político coercitivo – a potestas ou Macht, mas conservara um
forte apelo universal em torno da autoridade, auctoritas ou Hoheit.
Exatamente esse caráter de dignidade universal sobre o Ocidente, o dominus
mundi, principalmente através da ideia de vicarius Christi, advocatus
ecclesiæ, exercia sobre os dirigentes europeus uma irrefreável atração pelo
título imperial.
302
Sobre o Império que Carlos V herdaria, Maltby assim o descreve: “as terras que
Carlos estava destinado a herdar compreendiam uma colcha de retalhos de principados que
nem eram geograficamente contíguos nem similares um ao outro em cultura ou tradições”
303
.
O mapa 1 apresenta o Sacro Império Romano-Germânico em 1512.
Mapa 1 – O Sacro Imrio Romano-Germânico em 1512
(Modificado a partir de MALTBY, William. The Reign of Charles V, p. vii)
Na afirmação de Francisco Carlos Teixeira da Silva,
esse ‘conjunto de Estados’ era, entretanto, bem mais do que uma soma: era a
reunião em uma área geográfica delimitada, contígua, de Estados de potência
e dimensões assemelhadas e, fundamentalmente, herdeiros comuns de uma
mesma Kultur, essa ‘civilização’ era o patrimônio comum cristão-romano
herdado pelos povos europeus, tanto latinos como germânicos (embora não
302 Idem, p. 138.
303 MALTBY, William. The Reign of Charles V. New York: Palgrave, 2005, p. 8.
109
pelos eslavos, presos a uma Kultur cismática, oriental e bizantina”).
304
Pode-se tomar a definição de René Guénon sobre a vinculação entre as figuras do Papa
e do Imperador no Sacro Império para melhor entender a relação entre o espiritual e o secular:
a distinção entre o papado e o Império procedia de alguma maneira de uma
divisão dos poderes que na antiga Roma haviam estado reunidos em uma
pessoa, posto que então o Imperator era ao mesmo tempo Pontifex Maximus;
por outro lado não temos por quê indagar sobre como poderia explicar-se
neste caso especial essa reunião do espiritual com o temporal (...) Seja como
for, o Papa e o imperador eram assim não precisamente ‘as duas metades de
Deus’, como escreveu Victor Hugo, mas muito mais exatamente as duas
metades desse Cristo-Jano
305
que algumas representações nos mostram
sustendo uma chave em uma mão e um cetro na outra, emblemas respectivos
dos poderes sacerdotal e real, unidos nele como princípio comum.
306
Essa é igualmente a visão de Dante, que em seu tratado De Monarchia, refere que
o homem tem tido uma necessidade de uma dupla direção, segundo sua dupla
finalidade, a saber, do Soberano Pontífice, que, segundo a Revelação conduz o
gênero humano à vida eterna, e do imperador, que, segundo os ensinamentos
filosóficos, o dirige à felicidade temporal.
307
A crise do Sacro Império ao tempo do interregno que antecedeu a eleição de Carlos V
faz ver que, sobretudo nas terras alemãs, o Imperador não detinha mais esse status de “metade
de Cristo”, mas, ainda assim, dispunha de um poder sem paralelo. Essa estreita relação entre o
Imperador e o Papa, no caso de Carlos V e Adriano VI, evidencia-se na carta do soberano ao
pontífice, citada na nota 355, no Capítulo III desta Tese.
Ana Paula Vosne Martins ressalta a importância do pensamento de Dante e de Erasmo
na formação de Carlos V, mas aponta que não certeza acerca de o quanto o monarca teria
seguido tais ideias
308
, e tal formação humanista teve, podemos afirmar com segurança,
repercussões na condução de seu governo e, mesmo, na forma de lidar com a “questão
304 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. cit., p. 139.
305 O Cristo-Jano é uma representação de Jesus detendo em suas mãos as chaves dourada (símbolo da
autoridade espiritual) e prateada (símbolo do poder temporal). Em várias representações medievais, também com
essas duas chaves é representado São Pedro, a simbolizar que o Papa detinha a dupla autoridade, espiritual e
temporal.
306 GUÉNON, René. Autoridad espiritual y poder temporal. Barcelona: Paidos, 2002, pp. 96-97.
307 ALIGHIERI, Dante. Opere. Milano: Mursia, 1978, p. 850.
308 MARTINS, Ana Paula Vosne. Milles Christianus
: Carlos V e o tema imperial. In DORÉ, Andréa, LIMA,
Luís Filipe Silvério e SILVA, Luiz Geraldo (orgs.). Facetas do Império na História. S. Paulo: Hucitec, 2008, pp.
212-223.
110
Lutero”.
3.4.1 Os principais atores no interregno entre Maximiliano I e Carlos V
Maximiliano I de Habsburgo assumiu de fato como Imperador do Sacro Império em
1493, mas somente em 1508 foi oficialmente declarado detentor do título. Conseguiu do Papa
Júlio II que não houvesse mais a exigência de o Imperador ser sagrado e coroado pelo Papa
para receber o tulo, bastando para tanto sua eleição. Em prática bastante comum, fez dos
matrimônios uma forma de contrair alianças políticas.
Maximiliano casou-se 1477 com Maria de Borgonha, filha de Carlos, o Temerário.
Após enviuvar, lutou contra os franceses para preservar a Borgonha. Casou-se uma segunda
vez em 1490 com Ana da Bretanha, tendo este casamento sido anulado um ano depois. Casou-
se uma terceira vez com Bianca Maria Sforza, filha do Duque de Milão, Giovanni Galeazzo
Sforza. Seu primogênito, Felipe de Habsburgo, o Belo, por ter se casado com Joana I de
Castela, tornou-se Rei da Espanha, vindo a morrer em 1506. O filho de Felipe, Carlos, iria
suceder tanto ao pai quanto ao avô em seus respectivos tronos.
A eleição de Maximiliano, sucedendo a seu pai, Frederico III, contou grandemente
com o aporte financeiro da Casa Fugger, banqueiros e comerciantes alemães, dos quais o
principal foi Jakob Fugger. É importante que se entenda que a sucessão no Sacro Império era
feita por eleição entre os reis, príncipes, nobres e regentes territórios do Sacro Império. Como
muitos acumulavam títulos e diferiam na importância e na riqueza de seus domínios, havia
assimetria entre os poderes de cada um dos eleitores, daí os principais dentre eles serem
chamados de Grandes Eleitores
309
.
No Sacro Império Romano-Germânico, os eleitores ou príncipes-eleitores
310
tinham a
função de eleger o Rei dos Romanos, em preparação para a sua ascensão como novo
Imperador do Sacro Império Romano Germânico, apesar de na prática, até ao século XII, eles
terem apenas formalizado aquilo que era na verdade uma sucessão dinástica.
309
Muitas das informações sobre a estrutura e a história do Sacro Império Romano-Germânico deste texto são
retiradas de GIORDANI, Mário C.. História do mundo feudal II/2. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 15-125, e
GIORDANI, Mário C.. História dos séculos XVI e XVII na Europa. Petrópolis: Vozes, 2003.
310 O termo em alemão é “Kurfürst”; plural: “Kurfürsten”.
111
René Guénon faz uma observação importante acerca das relações entre o Imperador e
a nobreza que lhe era vassala: A constituição política da Cristandade medieval era, como
temos dito, essencialmente feudal; tinha seu ponto culminante na ordem temporal em uma
função, que era a do imperador, devendo ser este com relação aos reis o que os reis, por sua
vez, eram com relação a seus vassalos”
311
.
Variando em número entre seis e dez desde o século XIII, os eleitores foram
escolhidos dentre os mais importantes donos das terras do império. Através da “Bula
Dourada”, emitida pela Dieta de Nuremberg, em 1356, o seu estatuto foi regulamentado pelo
imperador Carlos IV, que os reconheceu como governadores quase-independentes dentro dos
seus territórios. Cada um dos sete Príncipes-Eleitores recebeu também um ministério especial,
que lhes conferia determinadas obrigações.
A Bula Dourada estipulava que o cargo de príncipe-eleitor deveria ser detido pelas
seguintes personalidades: o Arcebispo de Mainz, Arquichanceler do Império para a Alemanha;
o Arcebispo de Trier, Arquichanceler do Império para a Gália; o Arcebispo de Colônia,
Arquichanceler do Império para Itália; o Rei da Boêmia, Arce-copeiro do Império; o Conde
Palatino do Reno (cujas terras eram conhecidas como o Palatinado), Arce-comissário do
Império; o Conde Palatino e Duque da Saxônia, Arce-marechal do Império e o Margrave de
Brandenburg, Arce-camareiro do Império.
O Duque da Saxônia e o Marquês de Brandenburgo tornaram-se mais tarde conhecidos
normalmente como “o Príncipe-Eleitor da Saxônia" e o “Príncipe-Eleitor de Brandenburgo”.
O Conde Palatino do Reno foi chamado de “Eleitor Palatino”. Os Condes Palatino da Saxônia
e do Reno também serviram de Vigários Imperiais, significando que ficaram encarregados
oficialmente das partes oriental e ocidental do Império, respectivamente, durante um
interregno.
A crise que se abateu sobre a Igreja Católica em decorrência do Grande Cisma do
311 GUÉNON, René. Op. cit., p. 95.
112
Ocidente e dos eventos posteriores ao Concílio de Constança também afetou o Sacro Império,
que se envolveu na questão do combate aos hussitas e nas várias campanhas militares e
religiosas ocorridas ao longo do século XV, inclusive o combate aos turcos. Maximiliano I
compareceu em 1495 ao Reichstag (o corpo legislativo do Sacro Império), acordando com os
duques os pontos da Reforma Imperial (Reichsreform, em alemão), que devolveria ao
Império, então em estado de quase fragmentação, sua estrutura original. Somente em 1512
todos os decretos e determinações foram integralmente cumpridos, quando o Império recebeu
o nome alemão de Heiliges Römisches Reich Deutscher Nation.
É interessante buscar entender o papel da língua no Sacro Império no início do século
XVI, de modo especial na Alemanha. Anderson recorda que o latim era a língua culta de
quem era bilíngue, e que “no século XVI, a proporção de bilíngues na população total da
Europa era bem reduzida, muito provavelmente igual à proporção no mundo de hoje e dos
séculos vindouros”
312
. Assim, o Império não era mais o Sacrum Romanum Imperium, mas sim
o Heiliges Römisches Reich para os seus súditos alemães, o que também significava desejo de
maior distanciamento de Roma.
Geary mostra o quanto essa questão territorial e linguística influenciou o nacionalismo
alemão, com as referências de Fichte, de que “apenas os alemães permaneciam na mesma
região de seus ancestrais e mantinham sua língua original”, assinalando que “havia sido
especificamente a língua que unira o povo alemão e o colocara em contato direto com a
criação de Deus, coisa que povos como o francês, que havia adotado uma ngua latina, não
podiam aspirar”
313
. Febvre relembra que, no século XVIII, “surgiu o mito glorioso de um
germanismo criador da Idade Média (feudalidade, cavalaria, arte gótica) e, ao mesmo tempo,
do mundo moderno (Lutero, a Reforma, a liberdade de consciência)”
314
.
Este foi o Império que Carlos V recebeu, ao ser eleito em 1519, na sucessão de seu
avô, vencendo a Francisco I, da França, e a Henrique VIII, da Inglaterra. Sua eleição somente
se deu, segundo Maltby, após Leão X haver retirado a objeção à sua candidatura,
312 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. S. Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 72.
313 GEARY, Patrick J.. O mito das nações. S. Paulo: Conrad, 2005, p. 38.
314 FEBVRE, Lucien. O Reno: História, Mitos e Realidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.
203.
113
considerando que a causa galicana ainda não estava totalmente derrotada, e que, assim,
Francisco I não deveria ser eleito; além de, no último momento, Frederico da Saxônia ter-se
recusado a figurar como o candidato anti-Habsburgo
315
. Ozment acrescenta que a razão
principal para que Leão X não apoiasse a candidatura de Carlos era o medo do ressurgimento
de um novo Império Hispano-Germânico ainda maior e mais poderoso do que aquele dos
tempos de Carlos Magno
316
.
Michel Senellart registra que Carlos V, para ser eleito, “teve de assinar uma
capitulação pela qual se comprometia praticamente a não tomar nenhuma decisão importante
em política externa e em matéria de justiça sem ter consultado os Eleitores e a Dieta”
317
. Este
compromisso iria refletir-se nos eventos imediatos na Alemanha nos desdobramentos da
pregação de Martinho Lutero.
O que se destaca no processo que culminou na eleição de Carlos V foi a densa
vinculação entre religião e política, com as facções que desejavam Carlos, Francisco,
Henrique ou mesmo Frederico estando vinculadas a interesses religiosos ou, ao menos,
eclesiásticos. Desta forma, não se constitui exagero afirmar que o reinado de Carlos V
começava marcado por tensões religiosas muito maiores e mais profundas do que o de seu
avô, Maximiliano. Essas tensões desaguaram na formação e definição de um mundo
radicalmente diferente sob qualquer aspecto que se observe: político, religioso, social, etc..
Foi dentro dessas intensas tensões religiosas e políticas que o jovem imperador moveu-se no
início de seu reinado.
Três elementos desse Império herdado por Carlos V merecem especial destaque: a
nobreza aspirando por mais autonomia, inclusive face à autoridade da Igreja; a aspiração a
reformas no interior da própria Igreja, e um sentimento nacionalista alemão bastante
inflamado. Esses três elementos serão catalisados por Martinho Lutero em seus tratados de
1520, especialmente a Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã. Este anseio por liberdade por
parte dos príncipes e nobres, captado por Lutero, deve ser entendido dentro da afirmativa de
Plekhanov, que recorda que “Simmel diz que liberdade é sempre liberdade em relação a
alguma coisa, deixa de ter sentido quando não se concebe a liberdade como algo oposto a uma
315 MALTBY, William. Op. cit., p. 20.
316 OZMENT, Steven. A mighty fortress: a new history of the German people. New York: Perennial, 2005, p. 72
317 SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 281.
114
sujeição”
318
, mas também como possível dentro da perspectiva marxista ortodoxa desse autor
que define que “a liberdade é a necessidade feita consciência”
319
. Neste sentido, Lutero teria
desempenhado o papel de arauto dessa consciência.
A questão da liberdade e da opressão, presente e central – em muitos dos escritos de
Lutero, merece ser um pouco mais densamente analisada. Kohachiro Takahashi, comentando
a obra de Maurice Dobb e as críticas de Paul Sweezy, entende que a servidão é o modo de
produção e de existência no mundo feudal
320
. Ora, era exatamente a transição de um modo
feudal para um modo protocapitalista de produção o que ocorria na Europa (e,
particularmente, na Alemanha) no início do século XVI
321
, como apontam vários autores,
entre os quais Rodney Hilton
322
; daí ser entendida como fundamental a discussão sobre
servidão e liberdade.
Vale, porém, registrar que havia, em Anselmo de Cantuária (c.1033-1109), uma
conceituação de que a liberdade é poder (Libertas est potestas), como aponta Jesús de
Garay
323
, estando, contudo, esta desvinculada de uma concepção ligada à produção, mas
entendida como um poder vinculado à guarda da verdade e à orientação das ações humanas.
Realça Duffy que “a hostilidade alemã ao papado era de uma ordem diferente de tudo
quanto a Itália conhecia”
324
. Spenlé registra que “a Alemanha é a terra clássica das guerras de
religião. Uma conexão estreita se estabeleceu entre o problema religioso e o problema
nacional e político”
325
. O recorte político-territorial peculiar, composto por pequenos
principados, ducados, condados e reinos, possibilitou que, após a Reforma, tensões locais
fossem estabelecidas em razão da filiação religiosa do senhor do território. Blockmans
318 PLEKHANOV, Guiorgui Valentinovitch. O papel do indivíduo na história. S. Paulo: Expressão Popular,
2008, p. 111.
319 Idem, p. 112.
320 TAKAHASHI, Kohachiro. Uma contribuição para o debate. In SWEEZY, Paul et al.. A transição do
capitalismo para o feudalismo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 85-122.
321 que se ter cuidado de não incorrer em anacronismos com relação a essas denominações, pois como
aponta Gustavo Benavides, “o termo Idade Média não foi usado na Alemanha até 1601 e, na França, até 1640”
(BENAVIDES, Gustavo. Modernity In TAYLOR, Mark C.. Critical terms for religious studies. Chicago: The
University of Chicago Press, 1998, p. 187.
322 HILTON, Rodney. Introdução. In SWEEZY, Paul et al.. A transição do capitalismo para o feudalismo. São
Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 9-36.
323 DE GARAY, Jesús. El nacimiento de la libertad. Sevilha: Thémata, 2007, p. 119.
324 DUFFY, E.. Op. cit., p. 155.
325 SPENLÉ, Jean-Édouard. La pensée allemande de Luther à Nietzsche. Paris: Librairie Armand Colin, 1967,
p. 7.
115
assinala que “o Império de Carlos era algo novo, e na maioria de suas partes componentes era
mais antiga a tradição de autonomia que a de unidade”
326
.
Ranke assinala que, mesmo antes do século XVI, já havia forte oposição ao papado na
Alemanha, como um aspecto do seu desenvolvimento intelectual, oferecendo contraste com a
situação na Itália:
Na Itália, os homens estudavam o trabalho dos antigos, para aprenderem deles
as ciências. Na Alemanha os homens fundavam escolas; os homens
buscavam solução para os mais elevados problemas que afetavam a alma
humana, se não por vias de um pensamento independente, pelo menos no
mesmo caminho dos antigos. Aqui, os melhores livros eram dedicados à
educação da juventude.
327
Febvre traça o seguinte panorama acerca da Alemanha no alvorecer do século XVI, a
“Alemanha de Lutero”
328
:
A Alemanha de 1517: terras férteis, poderosos recursos materiais, cidades
orgulhosas e opulentas; trabalho, iniciativa, riquezas; mas de maneira
nenhuma a unidade, quer moral, quer política. Uma anarquia. Milhares de
vontades, muitas vezes contraditórias.(...)
Em um canto dessa Alemanha vivia, em 1517, um homem obscuro,
desconhecido; monge que em uma biografia geral dos agostinianos não
mereceria uma referência de apenas cinco linhas. Esse homem, em poucos
meses, ia tornar-se um herói nacional. Vale a pena perguntar se um estudo da
carta política e moral da Alemanha daquele tempo podia fazer prever uma tal
aventura, as suas probabilidades de êxito e as suas possibilidades de duração.
Febvre ainda aponta, no caso alemão, a superioridade dos príncipes sobre o Imperador.
Eram, em suas palavras, “homens de um desígnio e de uma terra, o tinham nenhuma
política mundial a seguir, nenhuma política ‘cristã’ a conduzir”
329
. A ausência de um soberano
nacional na Alemanha, em meio a uma Europa que já então se encontrava organizada em
torno de soberanos nacionais, conduzia aquela nação a ser um “Estado principesco”, daí a
razão da superioridade dos príncipes sobre o Imperador, que, ainda citando Febvre, “não era
mais que um nome em um Império que não era mais que um marco”
330
.
326 BLOCKMANS, Wim Unidad dinástica, diversidad de cuestiones. In GARCÍA GARCÍA, Bernardo J. (org.).
El Imperio de Carlos V – Procesos de Agregación y Conflictos. Madrid: Fundación Carlos de Amberes, 2000, pp.
29-45; cit. p. 30.
327 RANKE, Leopold Von. Op. cit., p. 28.
328 FEBVRE, Lucien. Martin Lutero: un destino. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1998, pp.
95 ss.
329 FEBVRE, Lucien. Op. Cit., p. 97.
330 Idem, p. 96.
116
Petiot opina que havia contradições no mundo germânico: de um lado, suas terras
férteis, a operosidade de seu povo e a localização privilegiada de algumas de suas cidades,
localizadas nos principais entroncamentos comerciais da Europa, e de outro uma certa
anarquia administrativa, com “quatrocentos Estados”
331
. Salienta que a alta nobreza na
Alemanha havia conseguido libertar-se de praticamente toda autoridade central. Entendo que
o que se via na Alemanha era, em verdade, o embate entre forças medievais e as da
modernidade nascente.
Outro autor que traça importante reflexões sobre a continuidade entre as dimensões
secular e espiritual da baixa Idade Média e do início do século XVI é Antonio Luís Cortés
Peña, em seu artigo La crisis de la cristiandad occidental en los albores de la Modernidad,
assinalando que “todos os acontecimentos fundamentais da vida seguiam tendo presente, em
lugar muito destacado, a religião”
332
.
Walter Goetz traça esse interessante quadro acerca da Alemanha no início da Reforma:
Quem queira conhecer até que ponto a Alemanha de 1517 tinha consciência de
si mesma, de suas forças, de sua posição e de suas potencialidades e até que
ponto se desenvolviam nela tendências de progresso, se colocará um problema
muito difícil. (...) A Alemanha anterior à Reforma carecia de uma tão feliz
concretude em seu ser, mais do que qualquer dos grandes povos cultos
europeus.
333
Nesta linha, argumenta que o Imperador Maximiliano dava aos alemães a figura de um
chefe, ainda que tenha sido julgado por seus contemporâneos de maneiras muito diferentes.
Este Imperador, sustenta Goetz, encheu de sangue e de vida o Império, que sob seu pai estava
ameaçado de converter-se em mera figuração.
José Antonio Maravall sustenta que “na Dieta de Worms, em 1521, Carlos quer
resolver o problema constitucional da Alemanha dando à sua jurisdição imperial sobre os
príncipes alemães um caráter de soberania efetiva: que na Alemanha haja um só soberano e
331 PETIOT, Henri [DANIEL-ROPS]. História da Igreja – vol. IV. S. Paulo: Quadrante, 1996, p. 279. Deve ser
entendido “Estado” não no sentido que lhe dá a contemporaneidade, mas como “domínios”.
332 CORTÉS PEÑA, Antonio Luís. La crisis de la cristiandad occidental en los albores de la Modernidad. In
CORTÉS PEÑA, Antonio Luís (coord.). Historia del Cristianismo III. El mundo moderno. Granada: Trotta,
2006, p. 19.
333 GOETZ, Walter (org.). Historia Universal vol. 5 La época de la revolución religiosa, la Reforma y la
Contrarreforma (1500-1660). Madrid: Espasa-Calpe, 1950, p. 34.
117
não muitos senhores, tal é sua pretensão”
334
. Nesta mesma linha de argumentação, Schulze
afirma que “Carlos V tinha plena consciência de que esse imenso império não poderia ser
transformado em Estado soberano sem limitar o poder do papado e instaurou uma Igreja do
Império, à imagem da França e da Espanha”
335
.
Tal projeto fracassou por ser atacado tanto pela Reforma luterana como pelos
interesses imediatos dos príncipes do Império, que temiam o ressurgimento de um poder
imperial centralizado. Esses príncipes, e o desenrolar dos acontecimentos assim o confirma,
entendiam o governo do Império como um instrumento dos interesse dos Estados, cujas
legitimidade e ação eram asseguradas e prescritas pela Dieta. Simon Schama escreve que “o
que renasceu nas primeiras décadas do século XVI foi não a história germânica, mas
também a geografia germânica, pois o mapeamento de uma pátria acompanhou a redescoberta
de Hermann
336
, o pai nacional”.
Neste quadro, seria inevitável que se opusessem, a partir de 1517 e, sobretudo, após
1520, um monge alemão e um monarca, um Papa-Rei italiano. É o que se exporá no próximo
Capítulo, no qual serão analisados os principais escritos de Martinho Lutero de 1520, e como
eles foram lidos pela nobreza e pela população alemã e pela Igreja Católica Romana. Febvre
assinala que “contra o ritualismo árido, o monge Lutero lançou um grito prenhe de
ressonâncias”
337
.
334 MARAVALL, José Antonio. Carlos V y el pensamiento político del Renacimiento. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1999, p. 76.
335 SCHULZE, Hagen. Op. cit.., p. 57.
336 SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104. Hermann
(Arminius) foi o rebelde germânico que combateu as tropas romanas de Públio Quintiliano Varo na primeira
década da era cristã.
337 FEBVRE, Lucien. O Reno: História, Mitos e Realidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.
143.
A DURA PENA
DO MONGE
Edição da Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã (1520)
119
4 A DURA PENA DO MONGE
“Venci o diabo a golpes de tinteiro!”
(Martinho Lutero)
O ano de 1520 definiu os caminhos que a então incipiente Reforma tomaria,
consolidando um programa, traçando uma linha de ação a ser seguida quer no âmbito
eclesiástico, quer na esfera do poder secular. Dentre os vários escritos de Martinho Lutero
desse ano, ts assumem um caráter peculiar, pela densidade e força de seus conteúdos: a
Carta à Nobreza Cris da Nação Alemã sobre a Melhora do Estamento Cristão da
População, escrita em alemão, com a sua introdução datada de 23 de junho de 1520; o tratado
Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja um Prelúdio, de julho daquele ano, redigido em
latim, servindo como uma resposta às condenações que os teólogos Agostinus von Alveld e
Isidoro Isolani fizeram a seus escritos; e Sobre a Liberdade Cristã, publicado pela primeira
vez em outubro de 1520, em latim, sendo quase que um contraponto ao tratado sobre o
“cativeiro babilônico”, escrito meses antes.
Outros escritos de Lutero daquele ano ajudam a delinear os rumos que a Reforma
tomou, dentre os quais sua resposta à condenação de seus escritos feita por teólogos de
Lovaina e Colônia; a sua resposta Contra o Celebérrimo Romanista de Leipzig, seu
posicionamento acerca das críticas que Alveld formulara às suas doutrinas, indo em defesa da
Romana; o seu Sermão sobre a Excomunhão; a sua carta ao Papa Leão X, e por fim, seu
pequeno tratado Por que os Livros do Papa e de Seus Discípulos Foram Queimados pelo
Doutor Martinho Lutero, escrito após haver queimado publicamente a Bula Exsurge Domine,
que lhe dava período de sessenta dias para se retratar. Escrito importante, mas que foge ao
escopo desta Tese por seu caráter estritamente catequético, é a Breve Forma dos Dez
Mandamentos, Breve Forma do Credo e Breve Forma do Pai Nosso, que constituíram o
Catecismo Menor. Jean Delumeau afirma que
em 1521, Lutero completou esses escritos com um tratado Sobre os votos
monásticos, em que ele os rejeitou, como todas as ordens religiosas. Mas
nessa data estava consumada a ruptura com Roma, e Lutero havia
enunciado os três fundamentos da doutrina reformada: somente a Escritura,
sem os acréscimos da Igreja; somente a graça, isto é o dom gratuito de Deus,
que nos salva, apesar de nossas indignidades; somente a pela qual cremos
que Jesus, por sua morte, eliminou todos os nossos pecados.
338
338 DELUMEAU, Jean . De religiões e de homens. S. Paulo: Loyola, 2000, pp. 228-229.
120
O conjunto desses escritos evidencia que, se havia um caminho de conciliação
possível até então, este foi interrompido em 1520, anunciando uma então inevitável ruptura.
Para fins meramente esquemáticos, o conjunto de documentos foi dividido por mim em dois
conjuntos, assim denominados por mim: “Escritos Menores” e “Escritos Maiores”, este
último contendo os três grandes tratados, sua carta ao Papa Leão X e o seu escrito sobre as
razões de haver queimado a Bula Exsurge Domine.
4.1 Os “escritos menores”
4.1.1 As Quatorze Consolações para os que Sofrem e Estão Onerados
339
Quando de seu regresso da eleição de Carlos V, em junho de 1519, Frederico, o Sábio,
adoeceu gravemente, com muitos achando que ele viria a morrer. O seu capelão pessoal,
George Spalatino, pediu a Lutero que redigisse um escrito que servisse de consolação ao
Príncipe
340
. Em 22 de setembro de 1519, Lutero entregou a Spalatino a versão latina do texto,
pedindo-lhe que a traduzisse ao alemão e a entregasse a Frederico.
É interessante a forma como Lutero concebeu este escrito, construindo-o em uma
contraposição à devoção bávara dos “Quatorze Santos de Emergência”
341
. Além da devoção
aos santos, o Grande Eleitor também dispunha de uma coleção de relíquias, uma das maiores
da Europa, que totalizariam, conforme contabilizadas em 1519, 127.799 anos e 116 dias de
indulgência
342
, o que reforça e exemplifica a questão abordada no Capítulo anterior sobre a
ampla aceitação da doutrina das indulgências pela população alemã.
339 Tessaradecas consolatoria pro laborantibus et oneratis M. Lutheri Aug. Vuittenbergensis.
340 DREHER, Martin N.. In LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 11.
341 Esta devoção surgiu em 1445. A aparição de quatorze crianças, em volta do Menino Jesus, em um campo
isolado da Baviera, no sul da Alemanha, mudou para sempre a vida de um jovem pastor e de sua aldeia, onde
passaram a ocorrer supostamente estranhos fenômenos e milagres. Foi assim que surgiu, no final da Idade
Média, envolta em mitos e aparições, a devoção aos chamados Quatorze Santos Protetores. Todos eles, segundo
a lenda, teriam pedido a Deus, antes de morrer, que jamais se esquecesse de atender aos pedidos daqueles que os
invocassem nas adversidades. A especialidade atribuída a cada um deles é a seguinte: Santo Acácio contra as
dores de cabeça, Santa Bárbara para baixar a febre, São Brás nos males da garganta, Santa Catarina contra a
morte súbita, São Ciríaco em casos de depressão, São Cristóvão para evitar acidentes, São Dinis contra as
enxaquecas, Santo Erasmo nas cólicas intestinais, Santo Eustáquio em situações de desespero, São Gil contra o
medo, São Guido para os epiticos, São Jorge nas doenças da pele, Santa Margarida em favor dos rins e São
Pantaleão a serviço dos pulmões.
342 DREHER, Martin N.. Ibidem. Segundo Steven Ozment, essas relíquias totalizariam mais: 1.902.202 anos
(cf. OZMENT, Steven. A mighty fortress: a new history of the German people. New York: Perennial, 2005, p.
71). A coleção de Frederico incluía um pedaço da sarça ardente, ferrugem da fornalha de fogo, leite do seio de
Maria, e um pedaço do berço de Jesus, só para citar algumas.
121
Desta forma, Lutero encontrava-se na situação delicada de ter que escrever
consolações ao Príncipe do qual ele era súdito e que, ademais, era seu protetor, e que
acreditava na intercessão dos santos e na posse de relíquias como meios de obter proteção e
indulgências, meios que já haviam sido reiteradamente criticados e condenados por Lutero em
seus escritos desde 1517.
A estrutura do escrito é original, com Lutero valendo-se do retábulo existente na
capela da residência do príncipe em Torgau, que mostra os quatorze santos e a Sagrada
Família; algo, portanto, já familiar a Frederico. Desta forma, utilizando a figura das duas abas
do retábulo, que formam imagem e contraimagem, Lutero discorre sobre os sete males que
afligem o homem (tentação e cruz, pecado, medo, morte, inferno, perigo, injustiça) e dos sete
bens que consolam o ser humano, os quais gravitam em torno da presença e da graça de
Cristo, sobretudo o Cristo crucificado e ressuscitado. Lutero ordena tanto os males quanto os
bens em uma forma espacial: dentro, à frente, atrás, abaixo, à esquerda, à direita e acima.
É interessante o registro que Lutero faz no preâmbulo à edição alemã de 1525 (a
primeira edição impressa é de fevereiro de 1520), no qual diz “escrevi este livro no começo
de meu movimento ao Excelentíssimo Príncipe Frederico, duque da Saxônia” (grifo meu),
em um reconhecimento de que, efetivamente, o que iniciara em 1520 foi algo que já se podia,
com clareza, entender como um movimento de muito maior amplitude.
4.1.2 A Resposta de Lutero à Condenação Doutrinal feita por Alguns Mestres de Lovaina e
Colônia
343
A segunda edição, aumentada, dos escritos latinos de Lutero, impressa em fevereiro de
1519 por Frobenius, em Basileia, permitiu uma difusão mais ampla das ideias e posições
teológicas de Lutero. Sendo os teólogos o principal público leitor dessa coletânea, exemplares
chegaram rapidamente à Universidade de Lovaina, um dos principais centros teológicos da
época. A maioria dos professores daquela Universidade opôs-se aos ensinamentos de Lutero,
tendo, já em 1518, quando da primeira edição, de outubro daquele ano, decidido pela
proibição da venda da obra, por considerá-la “escandalosa e nociva à Igreja de Cristo”
344
.
343 Condemnatio doctrinalis librorum Martini Lutheri per quosdam Magistros Nostros Lovanienses et
Colonienses facta. Responsio Lutheriana ad eandem damnationem.
344 FISCHER, Joachim. In LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 67.
122
Em razão da segunda edição, decidiram elaborar uma condenação formal dos pontos
de vista de Lutero, fazendo uma relação de todos seus supostos erros, e remetendo-a aos seus
colegas da Universidade de Colônia, outro importante centro teológico, e que havia se
destacado na defesa das posições da Igreja contra o humanista Johann Reuchlin
345
.
Posteriormente, enviaram, por intermédio de um teólogo, um exemplar da própria segunda
edição da coletânea das obras de Lutero. Os teólogos de Colônia foram ainda mais incisivos
nas críticas aos escritos de Lutero, declarando que estes “continham vários erros em assuntos
de e de moral, e doutrinas divergentes dos santos mestres”
346
. Indo mais além, em 30 de
agosto de 1519 declararam que o livro “deveria ser suprimido, queimado publicamente e seu
autor compelido à revogação pública”
347
.
A importância dessa controvérsia sobre os escritos de Lutero é bastante relevante para
a melhor compreensão da delimitação de campos que então se delineava. As duas
Universidades articularam-se na condenação a Lutero com o dominicano e inquisidor Jakob
(algumas vezes escrito também Jokob) Hochstraten viajando de Colônia a Lovaina para
discutir uma condenação conjunta de ambas as Universidades aos documentos de Lutero. Por
sua vez, a Universidade de Lovaina indagava ao bispo de Liège que havia sido referido por
Erasmo de Roterdã como simpatizante de Lutero qual a sua posição, recebendo deste a
informação de que não conhecia os escritos do monge alemão e que os professores de
Lovaina deveriam pedir um parecer do Cardeal Adriano
348
, de Tortosa, que havia sido
professor em Lovaina e era inquisidor em Navarra, Aragão, Castela e Leon.
O Cardeal Adriano recebeu em 26 de novembro de 1519 o documento de Lovaina ao
qual respondeu em 4 de dezembro, apoiando a condenação doutrinal feita pelos teólogos de
Lovaina contra as “heresias grosseiras e palpáveis e as doutrinas pestilentas”
349
de Lutero,
cujos escritos, porém, não tinha lido até então, mas somente tendo deles tomado
conhecimento através da condenação. Em sua carta, o cardeal Adriano afirmou textualmente:
“Admiro-me muito que se permite que um homem que erra de forma tão manifesta quanto
pertinaz na fé, e que difunde suas heresias em toda parte, erre impunemente e ainda arraste
345 Tio de Philipp Melanchton, já citado no Capítulo I.
346 FISCHER, Joachim. Idem, pp. 68-69.
347 Idem, p. 69.
348 Adriaan Florensz Boeyens (1459-1523), posteriormente Papa Adriano VI (1522-1523), nascido em Utrecht,
e nomeado pelo Imperador Maximiliano tutor de Carlos V desde 1507 até a maioridade deste.
349 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 70.
123
outros impunemente para erros perniciosíssimos”
350
.
Sua resposta, juntamente com as condenações feitas pelas Universidades de Lovaina e
Colônia foi publicada em fevereiro de 1520, em latim, com o título Carta do reverendíssimo
senhor cardeal de Tortosa à Faculdade de Teologia de Lovaina. Condenação doutrinal da
mesma Faculdade, pela qual é condenada a doutrina de Martinho Lutero, doutor em Teologia
da Universidade de Wittenberg. Condenação da Faculdade de Teologia de Colônia contra a
doutrina do mesmo Martinho
351
. O conjunto desses três documentos foi bastante importante
quando da redação da Bula Exsurge Domine, de 15 de junho de 1520.
Lutero endereçou sua resposta ao seu amigo e colega Cristoph Blank – também escrito
Blanck –, que era deão em Todos os Santos, em Wittenberg. Nela, lamentava profundamente a
condenação, afirmando preferir “mais chorar do que escrever algo”
352
. Ignorava
completamente quem era o Cardeal Adriano, referindo-se apenas ao “cardeal de Tortosa,
quem quer que seja este homem”
353
. Isto, talvez, uma certa medida do distanciamento de
Lutero em relão ao que acontecia no governo do Sacro Império e com relação às
articulações eclesiásticas promovidas pelo Imperador
354
.
Em sua defesa, Lutero iniciou apresentando as condenações feitas anteriormente por
centros teológicos como a Universidade de Paris, e as posteriores retratações dos
condenadores, citando nominalmente os casos de Pico della Mirandola e Lorenzo Valla.
Centrou sua defesa no fato de que aqueles que o condenaram não o fizeram apoiados
na autoridade da Escritura, mas somente na autoridade da tradição e do Magistério. Evocou as
condenações de Jerônimo de Praga e de Jan Hus no Concílio de Constança abordadas no
350 Ibidem.
351 Epistola Reverendissimi Domini carinalis Dertusensis ad facultatem theologiæ Lovaniensem. Eiusdem
facultatis doctrinalis condemnatio, qua condemnatur doctrina Martini Lutheri, doctoris theologiæ universitatis
Wittenbergensis. Condemnatio facultatis theologie (sic!) Coloniensis adversus eiusdem Martini doctrinam.
352 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 78.
353 LUTERO, Martinho. Idem, p. 79.
354 Uma medida da relação entre Carlos V e Adriano VI pode ser vista na carta de 7 de março de 1521, do
Imperador ao Papa, na qual, após comentar que “não é coisa nova a alegria que tive com tua eleição”, diz “e me
parece que estando o papado em tua mão e o império na minha, é para fazermos juntos boas e grandes coisas”
(LANZ, Karl. Korrespondenz des Kaisers Karl V Erster Band 1513-1532. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1844, p.
59).
124
Capítulo anterior como um exemplo de como age a Igreja quando se confrontada com a
autoridade maior, que é a da Sagrada Escritura.
Desta forma, Lutero estabelecia dois pontos importantes: a primazia de autoridade da
Escritura sobre qualquer outra autoridade e a vinculação, ainda que indireta, de suas
formulações com as de Hus. Uma vez que, quando da condenação de Hus, suas obras foram
comparadas às de Wycliff, Lutero também se associava a John Wycliff, o que lhe seria
imputado como agravantes em suas heresias quando da edição das Bulas Exsurge Domine e
Decet Romanum Pontificem.
A construção argumentativa que Lutero fez em sua defesa foi no sentido de refutar
todas as condenões que lhe fizeram por estas não terem amparo escriturístico. Afirma serem
os professores de Lovaina e Colônia arrogantes e, com ironia, pergunta “quem é capaz de
imaginar para que serve a Escritura Divina, se é preciso crer no que dizem nossos mestres
sem a mesma?”
355
, afirmando em seguida que “sou levado mais a crer que o anticristo [já]
reina ou reinará em breve”
356
. Portanto, não havia, nem poderia haver qualquer autoridade que
fosse ou se quisesse fazer superior à da Escritura, e mesmo os teólogos que defendiam o
papado e a Igreja, se não estivessem fundamentados na Escritura, nenhuma autoridade
teriam ou, mais que isso, seriam manifestações do anticristo.
A tal ponto Lutero estava convencido que os que se opunham à sua doutrina eram
heréticos que chegou a comparar os professores de Lovaina e Colônia e, por extensão, o
próprio Cardeal Adriano aos turcos, propondo ironicamente que seus acusadores “redijam
um novo Alcorão”
357
. Reiterou suas condenações à doutrina das indulgências e afirmou que o
ataque a seus escritos não tinha consistência. Em um traço bem peculiar de sua retórica,
Lutero investiu contra os que lhe condenaram, insultando-os, chamando-os de grosseiros e
burros, e afirmando:
Desisti de julgar [as coisas] de Lutero ou de tratar [delas]. Não estais à altura
deste assunto nem no que diz respeito a Aristóteles nem às Sagradas Letras.
Assumi o que vos diz respeito e uma matéria adequada às vossas forças. No
caso de Reuchlin e Pedro de Ravena e outros, demonstrastes suficientemente
355 LUTERO, Martinho. Idem, p. 78.
356 Ibidem.
357 Ibidem.
125
que nada sabeis e tudo ousais com temeridade.
358
Como um desdobramento dessa disputa, o núncio papal Girolamo Aleander conseguiu
que os livros de Lutero fossem queimados em Lovaina, em 8 de outubro, com a participação
relutante dos professores da Faculdade de Teologia da Universidade; em Liège, em 15 de
outubro, e em Colônia, em 12 de novembro; nesta, com a recusa à participação dos membros
da Universidade. Entendo que a recusa dos professores de Colônia e a relutância dos
professores de Lovaina em participar da queima pública dos livros de Lutero indica um recuo
em sua posição inicial.
4.1.3 Sobre o Papado em Roma, contra o Celebérrimo Romanista de Leipzig
359
Após o Debate de Leipzig, como já visto no Capítulo I, Karl Von Miltitz mediou entre
Lutero e Johann Eck um mútuo silêncio, tentando pôr fim (ao menos publicamente) aos duros
desentendimentos havidos naquele debate. Quando esteve naquela cidade, Miltitz recebeu do
leitor público do sagrado cânone da Bíblia no convento franciscano de Leipzig, frei
Augustinus Von Alveld, a promessa de que redigiria um opúsculo defendendo a doutrina da
Igreja Católica e, por extensão, as posições de Eck no Debate. Efetivamente, o livro foi escrito
em abril e publicado em maio de 1520, com o título de Explicação, a partir do sagrado
cânone da Bíblia, sobre a Sé Apostólica, a saber se ela é de direito divino ou não
360
.
Este livrinho, que logo chegou às mãos de Lutero, foi rapidamente contestado por
Johann Bernhardi, professor em Wittenberg, que escreveu a Confutação do livrinho inepto e
ímpio do frei Agostinho Alveld, franciscano de Leipzig, em defesa do Dr. M. Lutero e também
por Johann Lonicer, que escreveu Contra o romanista frei Agostinho Alveld, lictor
361
público
e torturador do mesmo
362
. Joachim Fischer relata que havia preocupação por parte da
Universidade de Leipzig, especialmente de seu Reitor, Pedro Moselano, quanto aos possíveis
efeitos de uma resposta de Lutero, tendo pedido a este que, caso respondesse a Alveld, tivesse
358 Idem, p. 92.
359 Von dem Bapstum zu Rome widder den hochberumpten Romanisten zu Leiptzck.
360 Super apostolicam sede, an videlicet divino iure ne, ex sacro Bibliorum canone declaratio.
361 Executor judicial.
362 Contra romanistam fratrem Augustinum Alveden, franciscanum lipsicum, canonis biblici publicum lictorem
et tortorem eiusdem.
126
em consideração o renome da Universidade de Leipzig
363
.
Em 26 de junho de 1520, eram impressos em Wittenberg os exemplares da primeira
edição da resposta de Lutero, à qual se seguiram onze reedições. Somente no final de 1520,
Alveld respondeu a Lutero, em um escrito intitulado Um sermão em que frei Agostinho Von
Alveld, da Ordem de São Francisco, se queixa porque frei Martinho Lutero, da Ordem
Agostiniana, o caluniou e desonrou sob muitos nomes vergonhosos. Sobre esse sermão,
Lutero escreveu a Spalatino: “O burro do Alveld escreveu novamente [algo] contra mim, mas
desprezo isso e não quero lê-lo”
364
.
O tom ácido de Lutero foi reconhecido por ele mesmo, no prólogo, ao dizer que
esperava que todo cristão piedoso acolhesse suas palavras, “embora talvez sejam zombeteiras
ou mordazes”
365
, ainda que justificasse isso com a “necessidade de transformar seriedade em
escárnio”
366
. Apodou Alveld, embora sem jamais mencionar-lhe o nome, de “blasfemador”,
“arquiblasfemador”, “mandrião” etc., acrescentando que “essa pobre gente não procura mais
do que fazer o nome às minhas custas, penduram-se em mim assim como o barro se prende à
roda, preferem ter fama, ainda que com vexame, a ficar em casa”
367
. Em outros pontos,
deixou absolutamente evidente para os seus leitores de quem falava: “Entretanto, se um livro
é feito em Leipzig, no convento dos descalços, por um romanista, na elevada e santa
observância de São Francisco”
368
.
Essa linguagem dura, por vezes beirando a obscenidade e a escatologia, empregada
por Lutero, não era incomum à época, como recorda Bakhtin em sua obra sobre Rabelais
369
. O
próprio Lutero, em seu epistolário sobre polêmicas, como bem exemplifica Arnold
370
,
apodava seus oponentes de forma bastante dura e, muitas vezes, vulgar: em várias cartas
363 FISCHER, Joachim. In LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, pp.
198-199.
364 Idem, p. 199.
365 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 201.
366 Ibidem.
367 Idem, p. 202.
368 Idem, p. 205.
369 BAKHTINE, Mikhail. L’œuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen-Age et sous la
Renaissance. Paris: Gallimard, 1970.
370 ARNOLD, Matthieu. La correspondance de Luther Etude historique, littéraire et théologique. Mainz:
Verlag Philipp von Zabern, 1996, p. 467.
127
referiu-se a seu desafeto Johann Eck como Doktor Dreck (“Doutor Merda”)
371
; ao Cardeal
Alberto de Brandenburgo como hellischen Cardinal, expressão que remete tanto a hallisch
Cardinal (“Cardeal de Halle”) como a höllisch Cardinal (“Cardeal infernal”); a Karl von
Schwenckfeld como Stenckfeld (“campo de pestilência”) ou a Johannes Cochlaeus como
Rotzlöffel, (“colher de pus”). Efetivamente, enquadra-se na tradição do polemismo medieval,
dentro do espírito de desacreditar e desmoralizar o oponente.
Uma vez que o foco de sua resposta era o papado e a origem de sua instituição, Lutero
iniciou defendendo os cristãos separados de Roma (“moscovitas, russos-brancos, gregos,
boêmios”
372
), dizendo que não poderiam ser chamados de hereges e que talvez fossem ainda
“melhores cristãos do que nós não todos, porém, assim como nem todos nós somos bons
cristãos”
373
. Pontuou Lutero que, nem mesmo o Papa acreditava seriamente ser seu poder de
instituição divina, e afirmou que “todos os maus exemplos de patifaria espiritual e mundana
fluem de Roma, como de um mar de toda a maldade, para dentro do mundo inteiro”
374
.
Refutou a afirmação de Alveld no sentido de que a cristandade necessitaria ter uma cabeça
única, com o argumento do paralelo com a esfera secular, recordando que “também no
regimento secular não existe umsenhor, embora sejamos todos uma única raça humana”
375
e pontuando que “o fato de estar sob a unidade romana não cria cristãos, da mesma forma que
estar fora dessa unidade não precisa criar hereges e não-cristãos”
376
.
Com esse argumento, Lutero apontava para uma ruptura como algo possível, em
alguns momentos até como algo desejável, sobretudo ao defender a possibilidade de ser
cristão estando desvinculado de Roma, desde que fosse observada a primazia da autoridade da
Escritura. Em suas próprias palavras, “quem observa e cumpre as palavras de Cristo, por certo
é obediente e piedoso, e também será salvo, pois suas palavras são espírito e vida”
377
. Desta
forma, a salvação desvincular-se-ia de observâncias rituais ou sacramentais, e, por fim, de
pertença à Igreja Romana.
371 Muito certamente um trocadilho a partir de Dr. Eck
372 Referência à Igreja Ortodoxa Russa, sob o Metropolita de Moscou; à Igreja Ortodoxa Ucraniana, sob o
Metropolita de Kiev; à Igreja Ortodoxa Grega e aos “utraquistas” (hussitas mitigados, cujo nome deriva de sub
utraque species, “sob ambas as espécies”, em referência à comunhão com o pão e o vinho) e Irmãos Boêmios,
correntes hussitas ainda existentes nos tempos de Lutero.
373 LUTERO, Martinho. Idem, p. 203.
374 Ibidem.
375 Idem, p. 207.
376 Idem, p. 209.
377 Idem, p. 231.
128
De fato, Lutero defendeu neste tratado a constituição da Igreja como uma comunidade
espiritual e não institucional. Insistiu em diversas partes do texto no argumento de que na
“entrega das chaves” feita por Jesus a Pedro, este representaria toda a comunidade, não sendo
esta uma delegação pessoal de poder e autoridade. Entendia Lutero que as palavras de Jesus a
Pedro sobre as chaves
378
destinavam-se a toda a cristandade, e não ao Apóstolo ou a seus
sucessores. Lutero condenou a vinculação entre o poder das chaves e o poder de governo,
entendido o poder de governo como sendo superior àquele, visto apenas como um poder
espiritual, estendendo-se, no máximo, até a penitência.
Por fim, referiu-se à Romana usando as mesmas palavras do livro do Apocalipse:
“prostituta escarlate da Babilônia” (Ap 17:4)
379
. Tal veemência significaria um desejo de
romper com Roma, ainda que no próprio texto houvesse ele afirmado desejar que todos os
homens se submetessem ao papado, ainda que este fosse tirânico:
Portanto, minha opinião acerca do papado é a seguinte: como vemos que o
papa está sobre todos os nossos bispos com pleno poder, onde não chegou sem
determinação divina embora eu creia que não chegou por determinação
graciosa, e sim mais por determinação irada de Deus, que, para castigar o
mundo, permite que seres humanos se elevem a si mesmos e oprimam a
outros, não quero que alguém se oponha ao papa. Pelo contrário: quero que
todo o mundo tema a divina providência, honre esse poder e o suporte com
toda a paciência, do mesmo modo como se o turco estivesse sobre nós.
380
4.1.4 Um Sermão sobre a Excomunhão
381
Em 1518, Lutero pregou sobre o poder da excomunhão, em Wittenberg, e voltou a
ocupar-se deste assunto somente após o Debate de Leipzig, redigindo anotações no final de
1519, publicando-as no início de 1520. Parece ser difícil não depreender que houvesse muito
da situação pessoal de Lutero nessas anotações, muito embora o texto seja perpassado de
preocupação pastoral, uma vez que poderia haver, canonicamente, um interdito sobre o
território da Saxônia, por abrigá-lo, caso fosse declarado herege.
378 Mt. 16:18.
379 LUTERO, Martinho. Idem, pp. 236-237 (“Du, rote Hur von Babilonien!”, no original).
380 Idem, p. 235.
381 Eyn Sermon von dem Bann Doct. Martini Luther Augustiner czu Wittenbergk.
129
No Sermão, Lutero defendeu em várias passagens que a excomunhão não deveria ser
temida, por ser “salutar” e “inofensiva”, vendo-a como um instrumento eficaz para que a
pessoa que haja incorrido em erro possa retornar ao “bom caminho”, sendo uma punição
meramente material, e não espiritual. Mais: enfatizou que “a excomunhão injusta é mais
preciosa do que a excomunhão justa”
382
, ressaltando que o prelado que aplica a pena de
excomunhão deve ser muito cauteloso, pois se o fizer “com outra intenção”, “excomungará a
si próprio”
383
. Uma de suas frases, excomungar não é, como creem alguns, entregar uma
alma ao diabo e privá-la da intercessão e de todas as boas obras da cristandade”
384
, foi citada
na Bula Exsurge Domine, e condenada como herética. Ao final do Sermão, Lutero salientou
que
quer uma pessoa esteja excomungada justamente, quer o esteja injustamente,
ninguém deve fazê-la sair da igreja antes que o Evangelho seja lido ou a
prédica seja feita. Pois não se deve excomungar ninguém nem ser
excomungado do Evangelho ou da prédica. A palavra de Deus deve
permanecer livre para ser ouvida por todos
.
385
Uma vez mais, Lutero estabelecia a Escritura como autoridade suprema para reger a
vida dos crentes.
Essa primazia da autoridade da Escritura não é nova, sendo, em verdade, uma
restauração da teologia medieval, cujo papel Alister McGrath define nos seguintes termos:
“um consenso medieval sobre a prioridade teológica da Escritura”
386
. Santo Tomás de Aquino
chegava a afirmar que sacra doctrina e sacra Scriptura eram virtualmente sinônimos”
387
.
Aquilo contra o que Lutero se batia era a desvirtuação da Escritura e a maior atenção que era
dada a observar preceitos da tradição do que aqueles prescritos pela Escritura.
4.1.5 Uma conclusão sobre os “escritos menores”
A leitura desses quatro escritos de Lutero, arbitrariamente chamados por mim de
“Escritos Menores”, permite que se aponte que havia uma possibilidade de conciliação entre
382 LUTERO, Martinho. Idem, p. 251.
383 Idem, p. 243.
384 Idem, p. 242.
385 Idem, p. 252.
386 McGRATH, Alister E.. The intellectual origins of the European Reformation. Malden: Blackwell, 2004, p.
120.
387 Ibidem.
130
Lutero e Roma até mesmo posteriormente à realização do Debate de Leipzig. As questões que
se colocam são contrafactuais, não cabendo ao historiador formular uma resposta a uma
questão do tipo “e se...?”. E se Alveld não tivesse se manifestado, Lutero permaneceria
silencioso, como acordado com Von Miltitz?”. Não se sabe, jamais se saberá, simplesmente
porque não aconteceu dessa forma. Augustinus Von Alveld criticou duramente Lutero, e este
reagiu de forma dura. Estes foram os fatos, que não permitem especulações contrafactuais.
Contudo, os documentos nos permitem concluir algo sobre uma disposição de Lutero
ao longo de 1519 e de 1520. Já nas Quatorze Consolações Lutero mostrava-se disposto a
defender todos os seus pontos de vista sobre as relíquias e indulgências sem, contudo,
confrontar ou afrontar o duque Frederico, o Sábio. Aparentemente, foi um movimento político
hábil, pois o Grande Eleitor, que o protegia, ampliou o apoio que lhe dava. Este apoio
revelou-se fundamental para que Lutero pudesse sentir-se seguro o bastante para difundir suas
ideias e sustentar suas posições.
Sua resposta ao livro de Alveld, porém, aponta no sentido da ruptura entre Lutero e
Roma. Não se tratava mais de um ataque à simonia ou ao comércio de indulgências, mas sim
um ataque direto aos defensores do papado e ao próprio papado, visto e apontado por ele
como uma instituição meramente humana, sem apoio das Escrituras Sagradas.
Expor o papado como instituição humana, tal como ele se apresentava entre o final do
século XV e o início do século XVI, permitiu que uma eventual desvinculação de Roma não
fosse tomada como algo que comprometesse a salvação das almas. Mais do que minorar o
poder papal, a ênfase dos escritos de Lutero era no sentido de que a autoridade máxima é a da
Escritura Sagrada, vindo a salvação não de obras, ritos ou vinculação a um corpus
eclesiástico, mas sim pela fé, pela graça e pela Escritura, sem qualquer mediação humana,
elaborando os pilares da teologia evangélica: sola fides, sola Scriptura, sola gratia, solus
Christus, soli Deo gloria.
Sabia Lutero que seria excomungado? Pergunta para a qual não existe resposta exata
pela leitura de seus escritos de 1520 ou de sua correspondência daquele ano. Contudo, seus
escritos, à medida que o tempo passava, parecem traduzir sua certeza de ser excomungado;
131
vale dizer de que sua ruptura com Roma seria inevitável. A redação dos três principais
documentos de 1520, aos quais acrescentei a Carta ao Papa Leão X e seu tratado explicando
porque a Bula Exsurge Domine havia sido queimada, por mim chamados de “Escritos
Maiores”, explicitará isso.
Parte do espírito de Lutero pode ser sintetizada na frase constante de uma carta sua a
George Spalatino, de julho de 1520, na qual afirmou sobre sua situação naquele momento
com a Romana: “A me quidem, jacta mihi alea, contemptus est Romanus furor et favor.
Nolo eis reconciliari”
388
.
4.2 Os “escritos maiores”
389
4.2.1 Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja
390
Este tratado foi dirigido especialmente aos teólogos e eclesiásticos, e consiste em um
desdobramento e aprofundamento de seus sermões de 1519 sobre os sacramentos. a partir
do próprio título, traça uma linha de crítica bastante dura à Igreja, estabelecendo um paralelo
entre o cativeiro dos hebreus na Babilônia e um aprisionamento do povo cristão pela
hierarquia eclesiástica.
Elton salienta a importância que tem este tratado teológico, no qual o papado foi
atacado “por privar a cristandade da verdadeira religião”
391
e no qual Lutero estabeleceu as
bases de uma nova teologia, “considerando apenas ts sacramentos (batismo, penitência e
eucaristia) como instituídos na Escritura”
392
. O fato de ser chamado de um prelúdio deixava
bastante claro que havia outras questões que ainda seriam abordadas por Lutero, que faziam
parte desse “cativeiro” dos fiéis. Walter Goetz registra que a prisão babilônica da Igreja não
foi aquela em que o pontificado esteve em Avinhão; era o cativeiro em que os Papas mesmos
388 Apud FEBVRE, Lucien. Martin Luther: un destin. Paris: Quadrige/PUF, 1999, p. 102. “Certamente, quanto
a mim, a sorte foi lançada; desprezíveis são o ódio e o favor romanos. Não reconciliarei.”.
389 Por razões práticas, os escritos foram ordenados, nesta parte, não em ordem cronológica, mas em ordem
crescente de importância.
390 De captivitate Babylonica Ecclesiæ præludium Martini Lutheri.
391 ELTON, G. R.. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell, 1999 p. 123.
392 Ibidem.
132
haviam mantido a Igreja durante séculos”
393
.
Este documento, escrito em latim, datado de julho de 1520, tornou-se um marco no
referencial teológico da cristandade. Ele seria inicialmente uma resposta ao franciscano
Agustinus von Alveld, que em junho daquele ano publicou um tratado condenando a
comunhão dos leigos sob as duas espécies, pão e vinho, algo que fora, desde 1418, autorizado
aos hussitas. Em resposta, Lutero redigiu esse texto, que, partindo da refutação à negação da
comunhão sob as duas espécies aos leigos, expôs sua doutrina sobre os sete sacramentos, que
resultou na condenação e no não reconhecimento de base escriturística a quatro deles,
restando tão somente a Ceia do Senhor, o Batismo e a Penitência. Em vários pontos, Lutero
retomou alguns dos aspectos de outros de seus escritos desse mesmo ano, nos quais
denunciava que o Bispo de Roma se havia convertido em um tirano e que deveria ser
convocado um Concílio com a maior brevidade possível.
A linguagem empregada por Lutero evidencia que seu público primeiro de leitores
pretendidos é o de seus confrades teólogos. Sempre referia seus oponentes com uma
linguagem bastante dura e agressiva, nunca citando-os nominalmente, mas somente por algum
título de zombaria, ironia ou pejorativo. Devem ser destacadas expressões como “meus
mestres crátipos”; “certo frade italiano de Cremona” (referindo-se a Isidoro Isolani); “aquele
Leitor de todo o cânone”, numa referência ao próprio Alveld, e outras. Essa estratégia
redacional indica que seus leitores saberiam precisamente indicar de quem ele falava e, de
modo especial, as razões pelas quais falava daquele modo.
Lutero iniciou suas considerações a partir da análise do sexto capítulo do Evangelho
segundo João, para refutar o interdito da comunhão aos leigos sob duas espécies. Lutero
entendia que o capítulo 6 de João deveria ser “posto de lado como um todo, pois não fala com
nenhuma sílaba a respeito deste Sacramento”
394
. Seus argumentos fundamentavam-se em que
as palavras de Cristo naquela passagem específica (“[mas] meu pai vos o verdadeiro pão
do céu. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e vida ao mundo” v. 32b-33; e
“Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome” v. 35) referiam-se a um comer
espiritual, e não carnal. Em sua defesa, citou seu mestre espiritual, Agostinho, que, em seu
393 GOETZ, Walter (org.). Historia Universal vol. 5 La época de la revolución religiosa, la Reforma y la
Contrarreforma (1500-1660). Madrid: Espasa-Calpe, 1950, p. 79.
394 LUTERO, Martinho. Sobre o cativeiro babilônico da Igreja. S. Paulo: Martin Claret, 2006, p. 26.
133
Sermão 112, afirmava “Para que preparas a barriga e os dentes? Crê, e terás comido”.
É a própria narrativa evangélica da instituição da Ceia que, segundo o Reformador,
deve servir como único fundamento escriturístico para sua validação. Às narrativas dos
evangelistas sinóticos, Lutero agregou a narrativa feita por Paulo no capítulo 11 da I Carta aos
Coríntios. Afirma que os evangelistas concordam em que Jesus teria dado das duas espécies
aos seus apóstolos, “sendo certo que Paulo tenha dado as duas espécies”
395
, o que justificaria
que a comunhão fosse dada sob as espécies de pão e vinho a todos os leigos, não ficando
restrita unicamente aos clérigos, como era a prática corrente e defendida pelos teólogos e
eclesiásticos que lhe opunham, e por ele rotulados de “romanistas”.
De modo especial, sinalizou que a narrativa evangélica enfatizava sobre o cálice,
“bebei dele todos”, notando que o mesmo Jesus nada disse sobre o comer do pão. Pela
negativa à administração do sacramento sob as duas espécies, Lutero inferiu que a Igreja
queria privar os fiéis da plenitude sacramental, aprisionando-a através de “muralhas de
papel”.
Afirmou ele:
Se a Igreja pode tirar dos leigos a espécie do vinho, pode tirar-lhes a espécie
do pão e, portanto, tirar todo o Sacramento do Altar aos leigos e eliminar por
completo a instituição de Cristo. Mas pergunto: com que autoridade? Se,
porém, não pode tirar o pão ou ambas as escies, tamm não se pode tirar o
vinho”.
396
A discussão foi encaminhada para o cativeiro sacramental, postulando Lutero que “o
primeiro cativeiro desse sacramento se refere à sua substância ou integridade, que a tirania
romana nos tirou”.
397
Desta forma, entendeu ele que o Sacramento não era propriedade do clero, mas
deveria ser dado em plenitude aos fiéis, que, se das suas duas espécies não pudessem
comungar, não teriam culpa, devendo esta ser imputada aos clérigos que lhas negassem.
Contudo, e emerge um ponto inquebrável da teologia luterana, era indispensável que o fiel
mantivesse a sua e desejasse receber as duas espécies: “os leigos estão livres de culpa,
quando carecem de uma espécie ou de ambas, conquanto que entrementes conservem a fé e o
395 LUTERO, Martinho. Idem., p. 27.
396 Idem, p. 29.
397 Idem, p. 32.
134
desejo de receber o Sacramento íntegro”
398
.
Catherine Gallagher e Stephen Greenblatt lembram que “a teoria de Lutero segundo a
qual o corpo de Cristo estava presente ‘em, com e sob’ o pão da ceia, parecia, a muitos
adeptos da Reforma, embaralhar a distinção crucial entre espírito e matéria, reiterando
destarte a carnalidade da Igreja Católica Romana”
399
.
Lutero questionava a transubstanciação nesse Sacramento, tal como ensinava (e ainda
ensina) a doutrina da Igreja Católica. Retomava ele uma série de teólogos e filósofos, em seu
intento de demonstrar que o que o Sacramento traz é a consubstanciação, e que esta é
tributária da fé, bastando ao fiel crer na presença de Cristo sob as espécies de pão e vinho:
“Para que haja verdadeiro corpo e verdadeiro sangue não é necessário que se transubstanciem
o pão e o vinho, a fim de que tenhamos Cristo nos acidentes. Ao contrário, permanecendo
ambos o que são é que podemos dizer: este pão é o meu corpo, este vinho é o meu sangue
400
.
Gallagher e Greenblatt apontam ainda outros desdobramentos do pensamento de
Lutero acerca da Ceia entre os Reformadores posteriores a ele, citando Beza
401
, que afirmou
que “existem apenas duas possibilidades: transubstanciação ou tropo”, concluindo que
“segundo os Reformadores, uma conspiração de padres interesseiros tentou durante séculos
transformar o tropo em carne para confundir com uma ‘teologia materialista’ grosseira o que
Santo Agostinho chamou de ‘mundo visível’”
402
.
Quanto ao Batismo, o segundo Sacramento por ele abordado nesse tratado, entendia
ele que o mesmo se encontrava preservado na piedade popular, sendo, porém, obscurecido em
seu valor e em sua eficácia pela excessiva devoção ao sacramento da penitência. Defendia ele
que o sacramento não poderia ser imposto a ninguém, pois que sua imposição, assim como os
votos e excessos na prática da penitência, assim como o próprio excesso de confissões por
parte dos fiéis, tornava nula a eficácia da ação sacramental.
Afirmava ele que o Batismo, de per se, não justificava a ninguém, sendo a justificação
398 Idem, p. 33.
399 GALLAGHER, Catherine e GREENBLATT, Stephen. A prática do novo historicismo. Bauru: EDUSC,
2009, p. 169.
400 Idem, p. 39.
401 Beza ou Theodor de Bèze (1519-1605), colaborador e sucessor de Calvino.
402 GALLAGHER, Catherine e GREENBLATT, Stephen, op. cit., ibidem.
135
reservada unicamente para a fé. Vinculava Lutero o cumprimento do Sacramento à na
promessa salvífica contida nele. É sua compreensão que o batismo se inscreve em uma nova
ordem sacrificial, cuja eficia depende diretamente da fé do sacrificante, ao contrário do que
ocorria com os sacrifícios veterotesteramentários. Neste sentido é que perdiam valor os
batismos feitos por coação ou por votos feitos, pois que careciam da e violavam a liberdade
do cristão.
Com relação ao Sacramento da Penitência, Lutero reconhecia a base escriturística de
sua instituição, criticando, porém, duramente a Igreja Católica (entendida neste caso a Igreja
como o corpo hierárquico e não o conjunto dos fiéis). Sua crítica quanto à ministração deste
sacramento era referente ao comprometimento da fé do povo, com a contrição movida por
ameaças ou superstições fazendo com que o fiel negligenciasse o fato de que a fé do crente no
sacrifício de Cristo na Cruz já seria bastante e suficiente para salvá-lo.
Agregou ao seu ataque as listas de pecados estabelecidas pela hierarquia eclesiástica e
pelo clero, as quais chamou de “tirânicas”. Aproveitou para, através da satisfação dos pecados
pelo sacramento da Penitência, atacar pesadamente a venda das indulgências. Recorde-se que
na apresentação desse tratado Lutero investiu ainda mais duramente do que antes contra as
indulgências e suas vendas, afirmando que, se pudesse, gostaria que seus escritos passados
sobre o tema fossem revistos e substituídos por uma única frase: “As indulgências são
maldades dos aduladores romanos”
403
.
Por fim, não reconheceu base de instituição na Escritura para os outros quatro
sacramentos: Confirmação, Ordem, Matrimônio e Extrema-Unção. Sobre a Confirmação,
alegou que a base institucional foi a imposição das mãos, tal como feita por Jesus e pelos
Apóstolos, mas sobretudo por estes, requerendo, como condição prévia, três outros
sacramentos: “o pão, a ordem e a própria confirmação”
404
. Defendeu ele que, se o intuito era o
de sacramentalizar tudo o que foi feito pelos apóstolos, “por que não fizeram da pregação um
sacramento?”
405
.
Sobre o Matrimônio, alegou que, mais do que ter se tornado sacramento sem base
bíblica, tinha se convertido em um escárnio. Sustentou seu raciocínio com o fato de que o
403 LUTERO, Martinho. Sobre o cativeiro babilônico da Igreja. Op. cit., p. 20.
404 Idem, p. 87.
405 Ibidem.
136
matrimônio existia desde todo o sempre, ocorrendo mesmo entre os gentios, não sendo,
portanto, sinal distintivo da Igreja. Ponderou, ainda, que ocorre este problema devido a um
erro na tradução da Escritura, que ora verte a palavra grega como “sacramento” e ora como
“mistério”. Desta forma, a união de duas pessoas em uma carne (Efésios 5:32) não é
sacramento, mas mistério, tal como mistério era e é o próprio Cristo, traduzido por
“sacramento” na primeira carta a Timóteo (I Tim. 3:16).
Quanto à Ordem, seu pensamento pode ser resumido em uma única frase: “A Igreja de
Cristo desconhece este sacramento, que foi inventado pela Igreja do Papa”
406
. Criticou
igualmente a Extrema-Unção, rotulando sua criação de “delírio”, uma vez que a Escritura
recomendava a unção sempre que alguém se encontrasse enfermo, e não morrendo. Sua crítica
não era, portanto, ao ato de ungir, mas sim a sacramentalizar tal rito e considerá-lo extremo,
derradeiro.
Duas abordagens podem ser aplicadas a este texto de Lutero. Uma, a política, segundo
a qual manter o povo de Deus, a Igreja, cativo, era forma eficaz de reafirmar e aumentar o
poder papal. Desta forma, o “cativeiro babilônico da Igreja” somente serviria para reafirmar o
poder dos captores, no caso, o Papa e a Cúria.
Assim, este escrito seguiria a mesma linha de outros importantes escritos desse ano
decisivo para os caminhos da Reforma, especialmente a Carta à Nobreza Cristã da Nação
Alemã sobre a Melhora do Estamento Cristão, na qual fez duras e pesadas críticas à estrutura
da Igreja e ao seu governo, propondo, efetivamente, uma reformulação total na forma de
governar a Igreja.
Por outro lado, e essa seria uma leitura muito mais vinculada à teologia, podem suas
proposições ser entendidas como um retorno a um cristianismo fontal, baseado
essencialmente no texto evangélico, remetendo à prática dos apóstolos e dos primeiros
séculos do cristianismo. Neste sentido, a soberania da fé, da graça e da Escritura, três dos
pilares da evangélica, são erigidos como a base da conduta dos cristãos, sendo o único e
inequívoco caminho para a sua salvação. Esse desejo de volta às fontes, como visto no
Capítulo I, coadunava-se perfeitamente com a formação humanística de Lutero, recebida em
Erfurt.
406 LUTERO, Martinho. Sobre o cativeiro babilônico da Igreja. Op. cit, p. 74.
137
Com isso, propôs Lutero uma retomada de um caminho havia séculos abandonado e
apontou como ritos mágicos de criação humana e sem qualquer efeito salvífico os
sacramentos tais como praticados então. Se o fundamento da era o próprio Cristo e a
Escritura, todo sacramento precisaria ter base instituinte na Palavra contida no Novo
Testamento. Daí seu repúdio a tudo quanto lhe parecesse instituição meramente humana.
Na obra, Lutero, com o corolário de que a Igreja é uma comunidade espiritual, investiu
contra o axioma extra Ecclesia nulla salus, “fora da Igreja não há salvação”. Esta divisa
surgiu na Igreja Romana no século V, cunhada por Cipriano, e tem sido recorrentemente
utilizada, de modo especial em situações de cisma ou ameaça deste. no Debate de Leipzig,
em 1519, Lutero mostrou não crer nessa ideia de salvação pela pertença a uma Igreja
institucional, dizendo a Eck:
não é necessário para a salvação crer que a Igreja Romana seja a suprema.
Não me preocupo se isto foi dito por Wycliff ou Hus. Eu sei muito bem que
Basílio, o Grande... e uma hoste de outros bispos gregos foram salvos. (...) Se
sua recusa em aceitar o Papa os faz heréticos, então eu chamo meu oponente
de herege, por dizer que todos esses santos, famosos em toda a igreja
universal, estão condenados.
407
É importante que seja registrada a convergência entre os pontos defendidos por Lutero
neste tratado e alguns defendidos por John Wycliff, como registra Ernst Troeltsch: “Wycliff
não visualiza a Cristandade como uma Igreja institucional objetiva, mas como uma
congregação de eleitos”
408
. Também a inexistência de um sacerdócio estabelecido e,
sobretudo, a ausência da figura do papa como necessária à Igreja são pontos em comum das
doutrinas wycliffiana e luterana nesse momento.
4.2.2 Carta de Lutero a Leão X, Sumo Pontífice
409
Este documento é, cronologicamente, o penúltimo escrito por Lutero em 1520, tendo
sido redigido após 12 de outubro daquele ano, quando se deu um encontro entre ele e Karl
Von Miltitz, que o persuadiu a escrever uma carta ao Papa, que deveria acompanhar um
407 NAPHY, William G.. Documents on the Continental Reformation. London: Macmillan, 1996, p. 18.
408 TROELTSCH, Ernst. The social teaching of the Christian Churches. London: Westminster John Knox Press,
1992, vol. 1 p. 361.
409 Epistola Lutheriana ad Leonem Decimun summum pontificem.
138
tratado sobre a liberdade do cristão, ambos para ser entregues a Leão X. Por conselho de
Miltitz, Lutero datou a carta retroativamente a 6 de setembro de 1520, duas semanas antes da
afixação da Bula Exsurge Domine em Meissen, que foi afixada em 21 de setembro por Johann
Eck.
É bastante interessante o movimento político de Lutero, ao atender às ponderações de
Miltitz na audiência que tiveram em Lichtenberg, em 12 de outubro. Lutero havia lido a
Bula de advertência, e sabia, portanto, que o tempo para sua retratação já estava sendo
contado. O tom elevadamente respeitoso da carta faz supor que Lutero talvez ainda
acreditasse ser possível reverter a decisão de excomungá-lo, buscando uma última tentativa de
composição com Roma. Pode também ser entendido como uma resposta com o mesmo nível
de cortesia da Bula Exsurge Domine, na qual seus ensinamentos e posicionamentos são
duramente condenados, mas que oferece a ele, pessoalmente, palavras gentis. O tom
conciliatório proposto por Miltitz foi aceito por Lutero, que acedeu em redigir um documento
explicando mais detalhadamente suas ideias reformadoras, que foi o Sobre a Liberdade
Cristã, o qual foi enviado por Lutero a Roma junto com a carta. É digno de registro, também,
que esta foi a última vez em que Lutero dirigiu-se em tom respeitoso ou conciliador a Roma.
É razoável supor que o interesse imediato de Miltitz seria sobressair-se como
negociador, em suas funções de Núncio Papal, uma vez que, havendo a conciliação entre
Lutero e Roma, seu papel seria destacado.
Importante registrar que ao longo de toda a carta, Lutero tratou o Papa como um
inocente, uma ovelha entre lobos, atribuindo à Cúria toda a culpa pelos desmandos de Roma.
Significativamente, na abertura da carta, Lutero colocou como marco inicial de sua própria
caminhada o ano de 1517: “Vivendo entre os monstros desta época, com os quais pelo
terceiro ano me ocupo e luto”
410
.
Seguiu, em defesa de Leão X e criticando dois de seus predecessores,
afirmando:
como aqui e ali és considerado a única causa de minha luta, não posso jamais
deixar de me lembrar de ti. É certo que a injustificada fúria de teus ímpios
410 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 426.
139
aduladores me coagiu a apelar de tua sé a um futuro concílio, em nada
respeitando as vaníssimas disposições de teus predecessores Pio e Júlio
411
,
que, com estulta tirania, o proíbem.
412
Lutero prosseguiu negando ter atacado pessoalmente o Papa: “Eu, porém, estou
cônscio de haver dito tão somente coisas magníficas e ótimas a teu respeito onde quer que tive
que fazer menção de tua pessoa”
413
, embora admita ter investido duramente no campo
doutrinário: “investi acremente contra doutrinas ímpias e mordi os adversários de uma
maneira nada indolente”
414
.
Mais adiante, pediu desculpas ao Papa: “rogo que me consideres desculpado com esta
carta e te persuadas de que jamais pensei nada de mal a respeito de tua pessoa, de que sou
alguém que te deseja o melhor em eternidade”
415
. Contudo, ao afirmar na carta que “em todas
as outras coisas cederei a qualquer um, porém não posso nem quero abandonar a palavra de
Deus”
416
, de certo modo parecia antecipar o que diria um ano depois, em Worms, diante do
Imperador
417
.
Admitindo que repudiara o papado, Lutero construiu em sua defesa o argumento que
desvinculava a pessoa do Papa da estrutura central de poder da Igreja Católica, ao afirmar:
“eu realmente repeli tua Sé, que se chama de Cúria Romana. Ora, nem tu nem qualquer outra
pessoa pode negar que ela é mais corrupta do que qualquer Babilônia e Sodoma”
418
. Reiterava
que “tu mesmo não ignoras que muitos anos não parte de Roma e inunda o orbe outra
coisa senão devastação dos bens, corpos e almas”
419
, qualificando, ainda, a Igreja de
411 Referências a Pio II (1458-1464) e Júlio II (1503-1513). O primeiro rejeitou a autoridade conciliar sobre o
Papa, e o segundo não apenas confirmou tal rejeição como ainda proibiu que se recorresse a um Concílio contra
uma decisão papal.
412 LUTERO, Martinho. Ibidem.
413 Idem, p. 427.
414 Ibidem.
415 Ibidem.
416 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2, Op. cit., p. 428.
417 Diante da Dieta, em Worms, em 1521, intimado a renegar sua obra, Lutero respondeu: “Se eu não for
convencido pelo testemunho da Escritura e por claros argumentos da razão porque não creio no Papa nem nos
concílios, que já demonstraram amiúde estar errados, contradizendo-se a si mesmos e pelos textos da Sagrada
Escritura que citei, estou submetido à minha consciência e ligado à palavra de Deus. Por isso, não posso nem
quero retratar-me de nada, porque fazer algo contra a consciência não é seguro nem saudável. Deus me ajude.
Amém”. Curiosamente, criou-se a lenda de que Lutero teria dito: “Esta é a minha posição, não posso fazer
diferentemente. Que Deus me ajude, amém. Vários historiadores, incluindo Fernand Braudel, esposam esta
versão, ainda que Braudel tenha o cuidado de citar ambas.
418 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2, Op. cit., Ibidem.
419 Ibidem.
140
“licenciosíssimo antro de salteadores, no lupanar mais impudente de todos, no reino do
pecado, da morte e do inferno, de modo que nem o anticristo, se viesse, poderia cogitar algo a
acrescentar à maldade”
420
. Descrevendo o Papa como um refém da Cúria Romana, disse
lamentar que Leão X tivesse sido eleito pontífice naqueles tempos, “pois eras digno de
tempos melhores” e afirma que “nem o carro nem o cavalo obedecem às rédeas” e que
“Satanás, na verdade, reina mais do que tu nessa Babilônia”
421
.
Atribuiu a culpa da crise surgida entre Lutero e Roma a Johann Eck (“insigne
adversário de Cristo”) e ao Cardeal Tomás Cajetan de Vio, que não lhe permitiu calar. Porém,
demonstrando sagacidade política, elogiou Karl Von Miltitz e Frederico, o Sábio:
Seguiu-se Carlos Von Miltitz também ele um Núncio de Tua Beatitude ,
que, com muito e variado esforço, correndo e tornando a correr para e para
e nada omitindo que contribuísse para reparar o estado da questão (que
Caetano havia turbado com sua desconsideração e soberba), finalmente
conseguiu também com o auxílio do príncipe-eleitor Frederico falar
comigo pessoalmente uma e outra vez. Mais uma vez, não resisti a teu nome.
(...) Enquanto essas coisas estavam em andamento com boas perspectivas, eis
que teu outro e maior inimigo, Eck, atacou com o Debate de Leipzig. (...) pela
terceira vez, Carlos Von Miltitz se dirigiu aos pais da ordem, congregados em
capítulo, e pediu conselho para apaziguar a controvérsia.
422
Assim, Lutero não apenas realçava os papeis conciliadores de Von Miltitz e do
príncipe Frederico, mas também antagonizava Eck ao próprio Papa, o que pode ser entendido,
por extensão, como uma antagonização também dos partidários de Johann Eck. Assim, Lutero
atribuiu suas faltas a Eck, definido por ele nos seguintes termos: “ele é aquele inimigo teu,
meu Leão, ou melhor, de tua Cúria. Do exemplo deste único homem podemos aprender que
não inimigo mais pernicioso que o adulador”
423
. Isso posto, Lutero pede ao Papa que
“coíba os aduladores” e que “não dê ouvidos a essas sereias”, que faziam do Papa um
semideus
424
.
O tom conciliador de Lutero foi temperado com admoestações duras, como aquela que
fez sobre o papel vicário do Papa:
420 Ibidem.
421 Ibidem.
422 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2, Op. cit., pp. 430 e 431.
423 Idem, p. 431.
424 Mixtus deus, no texto original. Possivelmente uma referência de Lutero às decisões do V Concílio de Latrão,
no qual Cristoforo Marcello, arcebispo de Corfu, denominou o Papa “Deus na terra”.
141
pois um vigário é vigário quando o chefe está ausente. Se o pontífice governa
quando Cristo está ausente e não habita no coração dele, que outra coisa não é
senão vigário de Cristo? Ora, o que é essa Igreja senão uma multidão sem
Cristo? O que é tal vigário senão um anticristo e um ídolo? Quão mais
corretamente procedem os apóstolos ao denominar-se servos do Cristo
presente e não vigários do Cristo ausente!
425
.
Ao apresentar o tratado sobre a liberdade cristã, Lutero a ele se refere dizendo que “a
menos que eu me engane, é a suma da vida cristã exposta resumidamente, se se capta o
sentido”
426
, e conclui recomendando-se à “paternal beatitude” do Pontífice.
Quais os objetivos de Lutero com esta carta? Aparentemente, uma última tentativa de
conciliação com o Papa, de tal modo extrema que renega haver dito qualquer coisa negativa
sobre Leão X, o que, como se viu nos textos anteriores, não corresponde à verdade. Lutero
exime-se de qualquer culpa nas controvérsias nas quais se envolveu atribuindo-as todas aos
“aduladores” do Pontífice, dos quais somente nomeou Tomás Cajetan de Vio, Silvestre
Mazzolini e Johann Eck. Calou-se sobre os demais, como Isolani, Alveld e outros, talvez por
julgá-los de menor dimensão e importância. Desta forma, Lutero apresentou-se como um
defensor da Igreja e do Evangelho, apontando os que lhe combatiam como sendo os
verdadeiros inimigos do Papa, da Igreja e do Evangelho. Uma vez mais, a empreitada
diplomática de Von Miltitz junto a Lutero havia sido bem sucedida.
Se a um tempo Lutero assemelha-se ao cura d’almas, inclusive admoestando o próprio
Pontífice para que não deixasse de conduzir a Igreja ao caminho do Evangelho, por outro
lado, ele repetia os termos usados em “Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja”, sendo a
Babilônia referida por cinco vezes nesta carta. Em uma definição de campos, Lutero colocou
a Cúria Romana como o grande adversário de toda a cristandade, ao dizer: “não é verdade que
sob este vasto céu não nada mais corrupto, pestilento e odioso do que a Cúria Romana?
Com efeito, suplanta incomparavelmente a impiedade dos turcos, de modo que ela, que
antigamente era a porta do céu, em realidade agora é uma boca aberta do inferno”
427
. Desta
forma, o Papa era apresentado ora como refém da Cúria, ora como impotente contra o mal,
que igualava o que o próprio anticristo poderia fazer.
425 Idem, p. 433.
426 Ibidem.
427 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2, Op. cit., p. 429.
142
Parece bastante pouco provável que Lutero desconhecesse pelo menos alguns dos
aspectos da conduta de Leão X, que ele já havia condenado em vários de seus escritos
anteriores. Omiti-los ou atribuí-los somente à Cúria e aos “aduladores”, como fez nesta carta,
parece estratégia deliberada visando à conciliação, não se podendo atribuir tal omissão à
ingenuidade ou à ignorância. Assim, Lutero estabeleceu um paradoxo, segundo o qual a
era “pestilenta”, mas o Papa, não; a Cúria era “odiosa”, mas o Papa era “amoroso pai”; a
Cúria era má, e o Papa, seu “refém”, sendo usada duas vezes a imagem de Daniel na cova dos
leões para descrever Leão X. Esse tipo de referência à Babilônia, como imagem de perdição e
devassidão moral, era bastante usual desde a Idade Média, e, como visto, Girolamo
Savonarola já a havia empregado para referir-se ao pontificado de Alexandre VI.
Portanto, a reforma que Lutero propunha a Leão X seria contra a Cúria e contra o
“cativeiro” imposto ao próprio Papa. A Cúria, como visto no Capítulo II, estava hipertrofiada
e seus funcionários viviam da simonia, sendo, dentre todos os atores políticos envolvidos no
processo, o menos interessado em qualquer tipo de reforma. Neste sentido, seria sua carta
uma tentativa de demandar aquilo que ele sabia previamente que seria recusado? Qualquer
que seja a resposta a esta pergunta, a carta enviada a Leão X daria a Lutero a imagem de
alguém que ainda buscava a conciliação sem, ao mesmo tempo, abrir mão de suas convicções
e daquilo que desejava. Atender ao que Lutero demandava significaria, para Leão X, não a
conciliação mas sim a capitulação diante do monge alemão, o que não parecia ser da natureza
de Giovanni de’ Medici.
4.2.3 Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã
428
Este tratado, um dos mais importantes escritos por Martinho Lutero, acompanhou a
carta que endereçou ao Papa Leão X. As suas ideias principais vinham sendo desenvolvidas
por Lutero desde o começo de 1520, dispersas em seus vários escritos. Seu título é a antítese
de Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja, e é inteiramente construído dentro de um
paradoxo: “o cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito”, e “o cristão é um
servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”. No escrito, Lutero trabalhou sobre os conceitos
de “pessoa interior” e “pessoa exterior”, com a “pessoa interiorcorrespondendo ao homem
428 Mar. Lutheri tratactus de libertate christiana.
143
justificado pela em Cristo, sendo o ser livre por excelência. Tüchle destaca que este “é o
primeiro escrito sobre a liberdade no país de língua alemã”
429
.
O caminho para a libertação não passaria por quaisquer formas de culto ou de
exterioridades, mas sim unicamente por sua fé no Evangelho. Este, o caminho para a vida
cristã, para a justiça e para a liberdade. Uma vez mais, Lutero proclamava a autoridade do
texto da Escritura como aquela superior a todas as outras.
Outro aspecto abordado por Lutero foi o da incondicional relação entre Cristo e a alma
humana, sua noiva
430
, cuja aliança é a fé, a quem Deus atribui a justiça. Eis o corolário da
teologia luterana, que se fundamenta em que o justo viverá pela fé. Sendo este relacionamento
concreto, e não abstrato, Cristo à alma a plenitude, fazendo dos crentes reis e sacerdotes,
acima de tudo que na terra, em sentido espiritual, não sendo dominadores, mas “senhores
libérrimos”. Desta forma, à dignidade da realeza, somava-se a função sacerdotal de
comparecer ante Deus e interceder pelos demais homens. Assim, aboliam-se as diferenças
entre sacerdotes e leigos, eliminada a tirania eclesiástica e destruído o cativeiro, pois os
servidores eclesiásticos devem ser servos de todos os crentes.
Lutero iniciou este tratado com o paradoxo indicado acima sobre a total liberdade e a
absoluta servidão do cristão, justificando-o a partir da afirmação do Apóstolo Paulo: “embora
sendo livre, fiz-me escravo de todos” (I Co. 9:19). Assim, elaborou seu argumento indicando
que o amor é oficioso e submisso ao que é amado
431
e apresentando a “pessoa interior” como
espiritual, explicando as razões que a fazem justa, livre e verdadeiramente cristã
432
. Desta
forma, afirmou que nenhuma coisa externa poderia contribuir quer para a aquisição da justiça
ou da liberdade quer para sua perda, mesmo se envolvido em atividades sacerdotais:
Assim de nada adianta se o corpo se enfeita com vestes sacras, a exemplo dos
sacerdotes, ou permanece em recintos sagrados, ou se ocupa com recintos
sagrados, ou ora, jejua, se abstém de certos alimentos e faz toda obra que pode
ser feita por meio do corpo ou no corpo. É preciso algo bem diferente para
429 TÜCHLE, Herman, BOUMAN, C. A. e LE BRUN, Jacques. Nouvelle Histoire de l’Église – tome 3:
Réforme et Contre-Réforme. Paris: Seuil, 1968, p. 70.
430 A imagem dos noivos espirituais não é inédita, sendo bastante comum na Idade Média, possivelmente
derivada da imagem originada do judaismo e renovada no Novo Testamento.
431 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2, Op. cit., p. 437.
432 Ibidem.
144
[trazer] justiça e liberdade à alma
.
433
Concluiu esta proposição afirmando que aquilo “poderia ser feito por qualquer ímpio,
e por meio desses esforços não se produz outra coisa do que hipócritas
434
. Assim também
rejeitou todas as “especulações, meditações e qualquer coisa que possa ser produzida pelo
esforço da alma”
435
.
Enfatizando a primazia e a autoridade soberana da Escritura, Lutero afirmou: “uma
coisa é preciso para a vida, a justiça e a liberdade cristã, e somente esta: é o sacrossanto Verbo
de Deus, o Evangelho de Cristo”
436
. Após explicar a que se referia por “a Palavra de Deus”,
com uma série de passagens da Escritura, retomou o corolário da justificação exclusivamente
pela fé: “pois a palavra de Deus não pode ser recebida e cultivada por nenhuma obra humana,
senão somente pela fé. Por isso claro está que assim como a alma necessita tão somente da
Palavra para a vida e a justiça, do mesmo modo ela é justificada somente pela fé, por
nenhuma obra”
437
, salientando, ainda, que nem todas a obras juntas podem igualar-se à fé.
Após ter discorrido sobre as virtudes da fé, Lutero reafirmou o sacerdócio universal
dos cristãos, continuando o que já havia postulado em Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja.
Mais do que simplesmente reafirmar esse sacerdócio universal, Lutero atacou a corrupção de
costumes do clero, incluindo os prelados e o próprio Papa:
Foi feita injustiça a estes vocábulos: ‘sacerdote’, ‘clérigo’, espiritual’,
‘eclesiástico’, porquanto foram transferidos de todos os demais cristãos para
aqueles poucos que agora, por uso prejudicial, são chamados de eclesiásticos.
Pois a Escritura Sagrada não faz nenhuma diferença entre eles, a não ser que
chama de ministros, servos, administradores àqueles que agora se jactam de
papas, bispos e senhores.
438
Atacou com dureza o governo da Igreja, dizendo-o pior mesmo que o dos gentios, em
uma comparação indireta aos turcos:
agora, porém, esta administração virou tal pompa de poder e terrível tirania
que nenhum poder dos gentios nem do mundo lhe pode ser comparado. (...)
433 Idem, pp. 437-438.
434 Idem, p. 438.
435 Ibidem.
436 Ibidem.
437 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2, Op. cit., pp. 438-439.
438 Idem, pp.445-446.
145
Esta perversidade fez com que se perdesse totalmente o conhecimento da
graça, fé, liberdade cristã e de todo o Cristo, e seu lugar foi ocupado por obras
e leis humanas em um cativeiro intolerável. (...) somos feitos servos das
pessoas mais vis que na terra, que se aproveitam de nossa miséria para
[cometer] toda sorte de torpezas e ignomínias de sua vontade.
439
Uma vez que este tratado acompanhava a carta a Leão X, e que esta foi vista como
uma tentativa ao menos aparente de conciliação, as críticas aos eclesiásticos podem ser
entendidas como uma crítica apenas à Cúria Romana, que havia sido fustigada por ele na
carta ao Papa; porém também podem ser lidas como uma crítica ao próprio Papa, neste caso
demandando uma reforma a partir da “cabeça visível da Igreja”.
Lutero ressalvou, porém, que as boas obras seriam necessárias, não para que o homem
atingisse a salvação ou a justificação, mas para que dessem testemunho da fé do crente e “com
a intenção de levar o corpo à servidão e purifi-lo de todas as más concupiscências”
440
.
Sobre as obras, referiu como corretos os provérbios “as boas obras não fazem o homem bom,
mas o homem bom faz boas obras” e sua antítese: “as más obras não fazem o homem mau,
mas o homem mau faz más obras”. Neste sentido, afirmou que para o incrédulo suas más
obras não seriam causa de condenação, mas sim sua incredulidade, assim como suas boas
obras não teriam qualquer valor para sua justificação ou salvação. Disse, ainda: “quando,
pois, alguém se torna bom ou mau, isso não começa nas obras, mas na ou na
incredulidade”
441
. Para o crente, liberto de tudo pela fé, suas boas obras seriam feitas por
mera liberalidade sua, sem, por elas, almejar justificação e salvação, pois que, por meio da fé,
já fora salvo e justificado.
Investiu contra os “pregadores da penitência e da graça”, em uma direta alusão àqueles
que vendiam as indulgências ao dizer: “muitos pastores totalmente cegos confirmam com
afinco esta ignorância e opressão da liberdade, enquanto estimulam o povo a estas práticas e o
urgem, elogiando-as e inflando-as com suas indulgências, jamais, porém, ensinando a fé”
442
.
Propôs, ainda, que se resistisse e, mesmo, se escandalizasse àqueles que ensinavam doutrinas
vazias, sem, porém, causar escândalo aos cristãos:
Ainda que se tenha que resistir energicamente a esses mestres das tradições e
439 Idem, p. 446.
440 Idem, p. 448.
441 Idem, p. 449.
442 Idem, p. 456.
146
recriminar violentamente as leis dos pontífices com as quais investem contra o
povo de Deus, deve-se poupar a multidão apavorada, a qual aqueles tiranos
ímpios mantêm cativa através dessas leis, até que se libertem. Por isso, luta
duramente contra os lobos, mas a favor das ovelhas, e não simultaneamente
contra as ovelhas.
443
Neste tratado, portanto, como se depreende, Lutero investiu pesadamente contra as
tradições, cultos e ritualismos exteriores, vistos por ele não apenas como ineficazes para
salvação e justificação, mas como potencialmente perigosos, por poderem constituir-se em um
cativeiro para os cristãos, que eram livres por sua fé. Uma vez mais, Lutero defendeu a
primazia da sobre quaisquer outras virtudes, sendo ela a origem da justificação e salvação.
Não uma abstrata, mas sim uma concreta no Evangelho, sendo a Escritura a autoridade
maior – e, verdadeiramente, única, em matéria de fé – a reger a vida dos cristãos.
Desta vez, nem mesmo o Papa foi poupado de suas críticas à condução da
cristandade, embora deva ser destacado que suas menções sempre foram aos “pontífices” e
aos “papas”, sem jamais mencionar o então Papa Leão X de forma particular. Mostrou-se,
neste texto, exclusivamente preocupado com a salvação dos homens e, se vinculado ao
documento que o acompanhou, pode ter sido uma forma encontrada por Lutero de mostrar-se
sem qualquer espírito sedicioso, mas simplesmente como um cura d’almas, preocupado com a
salvação dos crentes, nada obstante suas críticas duras ao papado.
Steven Ozment salienta que este tratado serviu de inspiração direta a Martin Bucer e
Guillaume Farel, que aprofundaram muitas das ideias nele apresentadas, inclusive dando a
várias dessas passagens uma dimensão política bastante significativa
444
.
4.2.4 Carta à Nobreza Cristã da Nação Alemã acerca da Melhora do Estamento Cristão
445
Este documento é tido, na opinião de todos os estudiosos da Reforma, como o mais
importante dentre todos os escritos por Lutero em 1520 e, mesmo, um dos mais importantes
por ele escritos. Nele, Lutero convocou a nobreza alemã e o próprio Imperador Carlos V a
443 Idem, p. 458.
444 Cf. OZMENT, Steven E.. Reformation in the cities. New York: Yale University Press, 2004, pp. 65 e 73.
445 An den Christlichen Adel deutscher Nation von des Christlichen standes besserung.
147
tomar em suas mãos a regência da Igreja. O aspecto nacionalista do documento é o mais
notável de quantos se podem apontar.
A Carta foi escrita em alemão em junho de 1520, sendo a dedicatória feita ao cônego
Nicolas von Amsdorf datada de 23 de junho desse ano. Dentre os importantes documentos
redigidos pelo Reformador naquele ano, a Carta é o que apresenta mais acentuadamente um
duplo papel, sendo a um só tempo teológico-pastoral e político.
Investiu Martinho Lutero contra “as três muralhas erigidas pelos romanistas”, a saber:
a distinção entre estamento espiritual – o Papa e todo o clero – e estamento secular –
príncipes, senhores, artesãos e agricultores; a exclusividade na interpretação da Escritura, e a
terceira muralha sendo o absolutismo papal.
em sua dedicatória, Lutero afirmou que as propostas que ele fazia eram para “caso
Deus queira ajudar sua Igreja através dos leigos, uma vez que o clero, a quem isto caberia
com muito mais razão, se descuidou disso por completo”
446
, o que evidencia que ele, de certa
forma, já perdera, àquela altura, a confiança em que pudesse haver alguma reforma a partir do
seio eclesiástico.
Na Introdução, Lutero apontou que, em uma sociedade cristã, a distinção entre os
poderes temporal e espiritual deve se referir a ofícios, não acarretando uma diferença de
estatuto espiritual. Por um lado, isto implicava que deveriam cessar as usurpações do poder
espiritual, conforme preceitua o princípio gelasiano
447
de separação de poderes. A autoridade
temporal, segundo Lutero, tem um estatuto carismático
Por entender que somente através da intervenção dos nobres alemães e do próprio
Imperador Carlos V é que reformas se poderiam fazer na Igreja, Lutero iniciou o texto de sua
Carta ponderando que os papas oprimiram os Imperadores Frederico I e Frederico II “e
muitos outros imperadores alemães que o mundo temia”
448
, pois estes confiaram em seu poder
e não no poder de Deus, advertindo a Carlos V que era necessário ter certeza de que nessa
446 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, p. 279.
447 Referência ao Papa Gelásio I (492-496), um dos primeiros papas a estabelecer a separação de poderes: o
poder espiritual do papa e o secular do imperador.
448 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, p. 280.
148
questão não se lidavam com seres humanos, “mas com os príncipes do inferno”
449
.
A associação do Papa e do papado ao anticristo e às potências infernais,
respectivamente, não era nova na argumentação de Lutero, pois esteo fizera quando de sua
audiência com o Cardeal Cajetan, como lembra MacCulloch
450
; contudo, esta era a primeira
vez na qual isso era expresso clara e inequivocamente em um documento.
Visando a esvaziar o poder temporal do papado, Lutero defendeu que, quando
pressionados pelo poder secular, argumentaram os pontífices romanos que o poder secular não
tinha direito sobre eles. Quando interpelados com base na Escritura, os papas argumentavam
que somente a eles cabia a interpretação da Escritura Sagrada, e, por fim, quando instados a
convocar um concílio, negavam-se afirmando que somente o Papa tem a autoridade para
convocar concílios. Esta última argumentação, de fundo teológico-político, era a principal
reivindicação de Lutero desde 1517, sendo reiteradamente negada pelo Papa Leão X, como
visto anteriormente.
Ao defender o sacerdócio universal de todos os cristãos batizados, sem qualquer
privilégio aos clérigos ordenados, Lutero não apenas equiparou o estamento secular ao
espiritual, como o fez superior a este, uma vez que aos nobres e aos príncipes era confiada a
guarda e o provimento do bem-estar da população, aprofundando o que expusera no tratado
Sobre a Liberdade Cristã.
Lienhard salienta que, neste documento, Lutero explicitava que “a Igreja é a
comunhão dos crentes”
451
, significando assim um rompimento com a Igreja institucionalizada,
embora Léonard reconheça que “o sacerdócio universal não impede o ministério
especializado”
452
.
Porém, foi ao investir contra os privilégios materiais e terrenos dos eclesiásticos que
Lutero se dirigiu com mais ênfase ao Imperador e aos príncipes alemães, quase que os
instando a cancelar as anatas recolhidas pelos nobres em favor da Santa Sé, e questionando a
legitimidade de outras benesses concedidas ao estamento espiritual, dentre as quais a venda de
449 Idem, p. 281.
450 MacCULLOCH, Diarmaid. Reformation Europe’s House Divided 1490-1700. New York: Penguin Books,
2004, p. 128.
451 LIENHARD, Marc. Martim Lutero – Tempo, Vida e Mensagem. S. Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 46.
452 LÉONARD, Émile G. Histoire générale du protestantisme. Paris: PUF, 1998, vol. 1, p. 60.
149
prebendas e feudos pelos bispos e pelo Papa
453
.
O documento transita entre o temporal e o espiritual todo o tempo, propondo inclusive
que, na concertação para forjar a unidade dos alemães, se chegasse a um acordo com os
boêmios, com os quais havia tensões desde a condenação e a execução de Jan Hus.
É concluída a Carta com 26 propostas de Lutero ao Imperador e aos nobres,
abrangendo aspectos da vida civil e religiosa, que se poderiam chamar de um manual sobre a
condução da direção eclesiástica pelo estamento civil, tendo sido proposta a abolição de todo
poder secular do Papa e dos bispos, tarefa que Lutero entendeu que poderia ser confiada ao
Imperador e aos nobres alemães. Nas palavras de Léonard, “o poder temporal tem, por
função, o direito de intervir [nas matérias eclesiais] por solicitação do ministério
especializado”
454
.
Como Skinner afirma
455
, a teologia de Lutero teve uma profunda repercussão política,
sendo que na Carta, “o foco do ataque de Lutero não eram os abusos dos poderes da Igreja,
mas, antes, o direito de a Igreja reclamar algum direito na sociedade cristã”
456
. Isto, associado
à pregão do sacerdócio universal dos cristãos, provocou uma rejeição da lei canônica. Esta
serviria apenas para que os eclesiásticos permanecessem isentos de julgamento e punição pela
lei civil
457
.
As ideias de Lutero sobre esse tema seriam mais detalhadas no tratado Sobre a
autoridade civil, publicado em 1523, o qual se constitui em um dos mais importantes
documentos sobre o pensamento político do reformador alemão.
É importante salientar que Lutero, com esse escrito visava à salvação do indivíduo e à
melhora da sociedade, ainda que esta, “formada por pecadores, seria sempre pecadora e
perversa”
458
. A sociedade somente entraria no Reino de Deus que é distinto do Reino da
Graça e da redenção, na teologia luterana –, onde haveria o estabelecimento de uma economia
453 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, Op. cit., pp. 297 ss.
454 LEONARD, Emile G.. Op. cit., p. 61.
455 SKINNER, Quentin. The foundations of the modern political thought 2 vols.. New York: Cambridge
University Press, 2005, vol. 2, p. 12-19.
456 Idem, p. 13.
457 SKINNER, Quentin. Ibidem. V. também LUTERO, Martinho. LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas,
vol. 2, p. 283.
458 LEONARD, Emile G.. Op. cit., p. 69.
150
da criação e da lei, quando cada homem encontrasse sua vocação divina em seus deveres de
estado. Para tanto, o estamento secular deveria promover todas as condições para que isso
viesse a ocorrer.
Importante é a observação feita por Schulze
459
:
Também no centro da Europa, no Santo Império Romano-Germânico, se
revelou que a luta pelo poder do Estado era extensiva aos combates pela
Igreja. Contrariamente aos outros Estados da Europa Ocidental, tinham sido
aqui constituídas duas estruturas políticas que se encontravam em
concorrência. De um lado, havia o imperador e o Império, este último
representado pelos diferentes estados da Dieta; de outro, a multiplicidade dos
territórios e das cidades que haviam precedido o Império em diversos graus
– no caminho para a estatização.
Este autor aponta os diferentes estados, ducados e cidades-estado cuja unificação havia
sido tentada por Maximiliano I, e que Carlos V, que o sucedera, tentaria implementar como a
Monarchia universalis, englobando, além da Alemanha, a Boêmia, Milão, a Espanha e os
territórios ultramarinos recentemente descobertos. Schulze registra que “Carlos V tinha plena
consciência de que esse imenso império não poderia ser transformado em um Estado moderno
sem limitar o poder do papado”
460
. Desta forma, pode ser entendido que os postulados de
Lutero iriam ao encontro dos anseios não apenas dos nobres alemães, mas também do próprio
Imperador.
Quase todos os biógrafos de Lutero e os historiadores dedicados a estudar a Reforma
Protestante são convergentes na opinião de que os escritos de Lutero de 1520 são mais do
que os textos e sermões de 1517 a 1519 – os marcos referenciais da Reforma. Se outros textos
serviram para balizar teologicamente a Igreja que se desejava, a Carta à Nobreza Cristã vai
além disso: propõe as diretrizes para a condução da Igreja pela autoridade secular, que tinha a
obrigação de intervir nas ações da Igreja a pedido do sacerdócio ordenado.
A Carta ainda aponta no sentido de que as soluções para os problemas que o
estamento cristão da população alemã enfrentava encontravam-se dentro da própria
Alemanha, sendo o Papa e as demais autoridades católicas romanas referidas sempre como
usurpadoras de poderes e, ao fim, como inimigas da nação alemã. Desta forma, era o dever
dos príncipes alemães e do próprio Imperador defender o povo, mitigar-lhe os sofrimentos,
ainda que, para isso, devessem confrontar todos os “romanistas” e mesmo o Papa.
459 SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Presença, 1997, p. 57.
460 Ibidem.
151
Citando Benedetto Croce, “a Reforma, na época que é denominada a partir dela, foi
muito mais um grande fermento do que uma revolução espiritual”
461
. Desta forma, deve ser
entendida a Carta como uma semente que viria a germinar, florescer e frutificar nos anos
seguintes, mas cujos efeitos e frutos chegam à contemporaneidade, sendo ressignificados e
reinterpretados ao longo da história da nação alemã. Que seja, neste caso, entendida a Nação
como anterior à formação do Estado e como sua edificadora. Kantzenbach afirma que
este escrito provocou efeitos particularmente entre os cavaleiros: as pesquisas
recentes demonstram que os vários setores do período da Reforma, vale dizer
os burgueses nas cidades; os camponeses, mas também os cavaleiros (e
podemos juntar também os príncipes) eram profundamente influenciados pela
ideia de ‘Bund’, de aliança.
462
Portanto, a Carta afirma três princípios: 1) Sacerdócio universal de todos os cristãos;
2) Igualdade carismática de todas as funções no corpo cristão; 3) Hierarquia de ofícios.
Extrai-se ainda o corolário de que o sacerdócio universal confere a cada indivíduo a
autoridade para interpretar as Escrituras, o que implica desautorizar o magistério da Igreja e a
autoridade pontifícia em questões de fé. Ninguém se deve arrogar o comando da comunidade
nem deve abdicar da liberdade de julgar.
4.2.5 Porque os Livros do Papa e de Seus Discípulos Foram Queimados pelo Doutor
Marinho Lutero
463
Esgotadas as possibilidades de conciliação com Roma, Lutero decidiu romper com o
Papa, tendo, no início de dezembro de 1520, comunicado a Spalatino que queimaria os livros
de direito canônico tão logo os seus livros fossem queimados em Leipzig. Disso, Spalatino
deu ciência a Frederico, o Sábio, em 3 de dezembro. No dia 10 daquele mês, Melanchton
convocava “os amantes da verdade” a comparecer, às 9 horas daquele dia, junto à Capela de
Santa Cruz, próxima ao Portão do Elster, onde os “livros ateus do direito papal e da
escolástica seriam queimados, pois os inimigos estariam queimando as obras evangélicas de
Lutero”
464
.
461 CROCE, Benedetto. História como história da liberdade. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 111.
462 KANTZENBACH, Friedrich W.. Martin Lutero, il riformatore borghese. Turim: San Paolo, 1984, p. 61.
463 Warumb des Bapsts und seyner Jungernn bucher von Doct. Martino Luther vorbrant seynn. Laszauch
anczeygen wer do wil, warumb sie D. Luthers bucher vorprennet habenn.
464 DREHER, Martin N.. In LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, p. 461.
152
No ato, organizado por Johann Agricola
465
, foram queimados vários livros de direito
canônico e de teologia, tendo Lutero, entre outros livros e tratados, queimado a Bula Exsurge
Domine, dizendo “porque corrompeste a verdade de Deus, corrompa-te hoje o Senhor”
466
. Foi
um ato repleto de simbolismo. Mais importante do que queimar a Bula foi haver queimado os
livros de direito canônico, pois isso significava, na verdade, o questionamento e a condenação
de todo o ordenamento jurídico da Igreja Romana. Lutero, portanto, condenava o sistema
jurídico que o havia condenado.
Em carta datada do próprio 10 de dezembro, endereçada a Spalatino, assim Lutero se
manifestou: “No ano de 1520, em 10 de dezembro, às nove horas, em Wittenberg, no portão
ocidental, próximo à Santa Cruz todos os livros dos Papas foram queimados: o Decreto, os
Decretais, as Bulas Sixtina, Clementina, Extravagante e a última Bula de Leão X, também a
‘Summa Angelica’, o ‘Chrysopassus’ de Eck e outros escritos”
467
.
No dia seguinte, uma tea-feira, Lutero explicou o ato do dia anterior, e o fez por
escrito, em um documento dedicado “a todos os amantes da verdade cristã”. Iniciou o texto de
forma inequívoca: “Eu, Martinho Lutero, chamado de doutor da Sagrada Escritura,
agostiniano em Wittenberg, fo saber a todo o mundo que na segunda-feira depois de S.
Nicolau, no ano de 1520, por minha vontade, por meu conselho e com minha participação, os
livros do Papa de Roma e de alguns de seus discípulos foram queimados”
468
. Ao contrário de
assumir o gesto com alguma expressão de culpa ou, mesmo, manifestando algum remorso,
afirmou que é um velho costume queimar livros venenosos e maus
469
e completou
afirmando que o papa e os “desencaminhadores papais” haviam se mostrado “endurecidos e
empedernidos”, persistindo em “seu erro não cristão e na corrupção das almas”.
Em um primeiro momento, Lutero chegou a defender o Papa Leão X, afirmando não
acreditar que os que queimavam seus livros tivessem “tal ordem do Papa Leão X, no que
depende da pessoa deste, a menos que eu fique sabendo de outra coisa”
470
. Disse esperar que
465 Nascido Johann Schneider.
466 DREHER, Martin N.. Op. cit. p. 462. Há pequenas variações da frase que teria sido dita por Lutero, sem que
seu sentido original seja alterado. É registrada por Tüchle a seguinte frase: “Quoniam tu conturbasti sanctam
veritatem Dei, conturbet te hodie Dominus. In ignem istum!” (“Porque tu alteraste a verdade de Deus, que o
Senhor te consuma hoje, neste fogo!”) (TÜCHLE, Herman. Op. cit. p. 71)
467 LUTHER, Martin. Briefe. Frankfurt: Insel Verlag, 1995, p. 31.
468 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, p. 464.
469 Ibidem.
470 Idem, pp. 464-465.
153
os livros queimados, “se bem que de seus antecessores, não agradem a ele [Leão X]
mesmo”
471
. Parecia, tal como na carta que enviou ao Papa, querer defender o Papa do papado.
Ao referir-se aos seus livros queimados em Lovaina e Colônia, Lutero dizia ter informações
seguras de que os que o fizeram, alegando ter autorizão imperial para tanto, somente a
conseguiram mediante suborno de funcionários “com presentes no valor de muitos milhares
de florins”
472
.
Pedindo aos leitores que julgassem se houve justiça na queima de tais obras, que
continham “doutrinas envenenadas e hediondas”, Lutero enumerou trinta “artigos e erros
contidos nos livros do direito canônico e do papa, em virtude dos quais devem ser queimados
e evitados com razão”
473
. Os primeiro erros atacados são do Decreto De Majoritate et
obedientia, de Gregório IX, começando pelo que afirmava que “o Papa e os seus não têm
obrigação de se submeter aos mandamentos de Deus”
474
. Investiu, posteriormente, contra
aspectos do Decretum Gratiani, base do direito canônico
475
.
Quanto a alguns dos erros apontados, Lutero dedicou não mais do que umas poucas
palavras, enquanto que, sobre alguns, discorreu longamente. Os erros referidos focam,
essencialmente, na questão da autoridade do papa e na impossibilidade de que este seja
julgado por algum poder terreno ou que a sua autoridade não seja absoluta na condução dos
assuntos da Igreja. Por exemplo, acerca do argumento “Depois de Deus, a salvação de toda a
cristandade depende do papa”, Lutero respondeu “Assim todos os cristãos teriam que se
perder sempre que o papa é mau”
476
.
Lutero reservou suas mais longas e duras críticas ao erro apontado por ele sob o
471 Idem, p. 465.
472 Ibidem.
473 Ibidem.
474 Ibidem.
475 Graciano, também conhecido como Franciscus Gracianus ou Johannes Gratianus, foi um monge
camaldulense bolonhês, jurista e professor de teologia. Suas datas exatas de nascimento e morte são
desconhecidas, embora saiba-se que sua vida transcorreu entre os séculos XII e XIII. É considerado o pai do
direito canônico graças à sua obra Concordia discordantium canonum (Concordância das Discordâncias dos
Cânones), que permaneceu em vigência até 1917. O Decretum Gratiani ou Concordia discordantium canonum é
uma obra pertencente ao direito canônico que, como indica seu título, trata de conciliar a grande quantidade de
cânones existentes desde séculos anteriores, muitos dos quais opostos entre si. Forma a primeira parte da coleção
de seis textos jurídicos, conhecida como a recompilação Codex Juris Canonici. Essa obra de enormes proporções
representou um passo importante na consolidação e unificação do Direito da Igreja na Alta e na Baixa Idade
Média, além de aumentar a importância do canonista, que passou a ter uma atividade doutrinária própria, até
então restrita à política legislativa pontifícia.
476 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, Op. cit., p. 466.
154
número 10, afirmando “este artigo é o artigo principal”
477
. Tratava-se do artigo do Decretum
Gratiani que afirmava que “ninguém pode condenar o papa sobre a terra, e ninguém pode
julgar sua sentença; ele é que deve julgar todos os seres humanos sobre a terra”
478
. Lutero
afirmou que parecia ter o direito canônico sido inventado somente para que o papa pudesse
fazer e deixar de fazer livremente o que quisesse; afirmando que “se este artigo subsiste,
Cristo e sua palavra jazem por terra; se não subsiste, todo o direito canônico, juntamente com
o papa e sua Sé, jazem por terra”
479
. Lutero ainda argumentou que este é o artigo do qual
proveio toda desgraça para todo o mundo”
480
.
Advogava Lutero que o papa deveria estar sujeito a todos e poderia ser por todos
julgado. Seu posicionamento não tinha base em direito, mas sim em teologia moral e
escriturística, fundamentado unicamente em porções do Novo Testamento e nas advertências
tanto de Jesus quanto de Paulo de que “o maior deveria ser como o menor” (Lc. 22:25 ss.).
Seguidamente, Lutero investiu contra a afirmação de que o papa seria o detentor das
chaves do céu, de que seria o sucessor de Pedro e também contra a “doação de
Constantino”
481
, denunciada anteriormente por Lorenzo Valla
482
como sendo uma fraude.
Ao posicionar-se contra a Doação de Constantino, Lutero, em verdade, advogava que o papa
não devesse ter qualquer poder temporal, o que complementou com seu ataque ao erro
número 21, quando, em resposta ao artigo “Que ele se gloria de ser o herdeiro do Império
Romano”, afirmando que “todo o mundo sabe muito bem que ofício espiritual e o regimento
477 Idem, p. 467.
478 Decretum Gratiani, parte II, causa IX, questão III, capítulo XVII.
479 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, Op. cit., p. 467.
480 Ibidem.
481 A Doação de Constantino (Constitutum Donatio Constantini ou Constitutum Domini Constantini
Imperatoris, em latim) é um documento forjado, apresentado na Idade Média como um édito imperial romano.
Preparado provavelmente entre 750 e 850, este documento registra um ato pelo qual o Imperador Constantino I
teria doado ao Papa Silvestre I e seus sucessores a primazia sobre a Igreja do Oriente e o imperium (poder
imperial) sobre o Império Romano do Ocidente como gratidão por sua vitória sobre Maxêncio. O propósito desta
falsidade documental teria sido, muito provavelmente, a defesa dos interesses papais, possivelmente contra as
reivindicações do Império Bizantino ou do Rei franco Carlos Magno, que havia assumido a antiga dignidade
imperial no Ocidente e, com esta, o título de “Imperador dos Romanos”. A Doação foi utilizada pelo Papado
durante a Idade Média para ampliar o seu território na Península Itálica e fortalecer o poder secular do pontífice.
A essência do documento era a legitimação da posse dos Estados Papais. Apesar de geralmente aceito naquele
período histórico, o Imperador Otão III denunciou o documento como uma falsificação. O poeta Dante Alighieri
menciona-o na Divina Comédia como sendo a raiz da mundanidade papal. Em meados do século XV, a própria
Igreja se deu conta de que o documento não poderia ser legítimo. Ao analisar a sua linguagem em 1440, o
humanista italiano Lorenzo Valla provou que a Doação era falsa, demonstrando que, embora algumas fórmulas
da época imperial fossem empregadas no texto, parte do latim utilizado não poderia ter sido escrito no século IV.
Adicionalmente, a data mencionada na Doação é incoerente, pois se refere tanto ao IV consulado de Constantino
(315) quanto ao consulado de Galicano (317).
482 VALLA, Lorenzo. La donation de Constantin. Paris: Les Belles Lettres, 2004.
155
secular não toleram um ao outro, e S. Paulo ordena que um bispo deve cuidar da palavra de
Deus”
483
. Ao apontar esse artigo como um erro, Lutero reforçava muito do que havia
exposto na “Carta à Nobreza Cristã”, o que atenderia a alguns anseios de nobres alemães e,
também, do próprio Imperador Carlos V.
Lutero concluiu essa explicação afirmando não se espantar de que ninguém jamais
houvesse dito ao papa dessa “sua abominação”, pois está escrito que “ele mandará queimar
todos os que se opuserem a ele e que terá a adesão de todos os reis e príncipes”
484
. Afirmando
que “estes são um início da seriedade, pois até agora gracejei e brinquei com a causa do
papa”
485
, Lutero assinalava sua ruptura com Roma, enfatizando que todos os seus
ensinamentos haviam sido condenados em Roma, “pelos mensageiros do anticristo”
486
e
acrescentando: “o papa, porém, a todos quer cegar os olhos, não quer deixar ninguém julgar,
mas julgar, só ele, a todos, tão incerto e temeroso está de sua causa e de suas ações. E esta sua
trapaça nas trevas e seu medo da luz fazem com que eu não poderia crer no papa ainda que ele
fosse um puro anjo”
487
. Mesmo marcando sua posição de não querer ter emitido quaisquer
juízos, Lutero concluiu com uma citação de Sansão, para justificar o que fizera: “Fiz a eles
como fizeram a mim” (Jz. 15:11).
Sobre a importância do momento da queima dessa Bula, Michel Senellart a considera
como a data da “ruptura pública” entre Lutero e Roma
488
. Desta forma, este autor sustenta que
a Reforma teria se iniciado, na prática, a partir de uma interpolação entre teologia e política,
com a teologia dando os parâmetros para uma interpretação acerca da extensão da autoridade
secular.
Esse momento, por sua importância, foi registrado na gravura abaixo, de 1521, de
autoria anônima:
483 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, vol. 2, Op. cit., p. 469.
484 Idem, p. 472.
485 Ibidem.
486 Idem, p. 473.
487 Ibidem.
488 Cf. SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 285, nota 80.
156
Gravura 2 – Lutero queimando a Bula e “os livros do Papa e seus discípulos” (Anônimo, 1521)
Viviane Barrie-Curien coloca a questão acerca de qual teria sido a dimensão da
influência dos lolardos e do lolardismo no início do luteranismo
489
. Esta é uma questão
interessante, uma vez que alguns dos principais pontos defendidos por Wycliff são assumidos
por Lutero em seus escritos de 1520, como vistos anteriormente, dentre os quais dois
merecem destaque na visão de Franco Buzzi, “Wycliff sustentava que 1) A Igreja não tem
nenhum direito ao poder temporal, isto é terreno e mundano, (...) [e] 5) As prerrogativas
papais, legadas ao primado do sucessor de Pedro, são discutíveis”
490
.
Viu-se que Lutero, em seus escritos de 1520, questionou não apenas que a Igreja
pudesse ter autoridade terrena, mas sobretudo, qualificou a posição de Pedro, ao receber as
chaves, como a de mero representante da comunidade, que seria, ela sim, a autoridade legada.
Lutero, nesses escritos, não fez qualquer referência direta a Wycliff, mas somente a Hus.
Como as ideias de ambos foram condenadas no Concílio de Constança, pode-se supor que a
leitura de Wycliff feita por Lutero não tenha sido feita diretamente, mas sim através dos
escritos do pré-reformador boêmio. Desta forma, Lutero aprofundaria os pontos defendidos
por Wycliff e Hus, acrescentando a eles uma questão importante e, naquele momento
histórico, crucial: a questão nacional dos alemães, retomando um veso nacionalista que
também existia em Wycliff.
Faz-se importante o registro da afirmação de Teófanes Egido, de que “o Papado não
489 BARRIE-CURIEN, Viviane. Les Lollards. In VENARD, Marc. Histoire du Christianisme. Tome VII. De la
Réforme à la Réformation. Paris: Desclée, 1995, p. 444.
490 BUZZI, Franco. Breve storia del pensiero protestante da Lutero a Pannenberg. Roma: Ancora, 2007, p.8.
157
era, então, percebido como o será à medida que se impondo a chamada Contrarreforma,
isto é, como um símbolo de unidade e de referência de ortodoxia católica”
491
.
que se examinar como esses escritos repercutiram no seio da sociedade alemã
daquele momento.
4.3 As repercussões
Por sua abrangência, os escritos de Martinho Lutero acima analisados tiveram ampla
repercussão, tanto do ponto de vista geográfico, atravessando rapidamente as fronteiras da
Alemanha, assim como do ponto de vista social, abrangendo os diferentes estratos sociais e,
por óbvio, a Igreja e os eclesiásticos.
Não se pode aqui abraçar a afirmação de Tüchle, de que “o problema das gerações
contribuiu, ele também, para endurecer e acelerar o desenrolar das coisas. Os jovens eram por
Lutero, os velhos pela tradição”
492
. Se era verdade que muitos estudantes e religiosos jovens
apoiaram Lutero, dentre os quais muitos que ajudaram a empresa de consolidar a Reforma,
como Philipp Melanchton, Andreas Karlstadt, Thomas Müntzer, Martin Bucer e Ulrich von
Hutten, por exemplo, isso não pode ser tomado como uma verdade absoluta e universal. As
razões que levaram ao apoio ou oposição a Lutero passaram, efetivamente, por implicações
maiores. Hutten e Franz Von Sickingen
493
, por exemplo, “viam em Lutero o combatente da
liberdade espiritual e nacional que se precisava ter, lutando contra Roma e contra todos os
padres”
494
. Por outro lado, Johann von Staupitz em 1520 abandonou Lutero e a própria
ordem agostiniana, tornando-se, no ano seguinte, abade beneditino do mosteiro de S. Pedro,
em Salzburgo.
Simon Schama registra que Ulrich Von Hutten esperava que Maximiliano se tornasse o
novo Armínio e levasse a guerra a Roma. Sustenta, ainda, que Lutero pode ter sido o primeiro
a demandar que o herói germânico tivesse tirado seu nome latino e passasse a ser chamado
por seu nome alemão, Hermann
495
. O fato é que Von Hutten, aponta Schama, decepcionado
491 EGIDO, Teófanes. Lutero y el Luteranismo. In CORS PEÑA, Antonio Luís (coord.). Historia del
Cristianismo – III. El mundo moderno. Granada: Trotta, 2006, p. 93.
492 TÜCHLE, Herman. Op. Cit. , p. 67.
493 Cavaleiro alemão, em cujo castelo, em Nanstein, abrigou Lutero e alguns de seus seguidores, após a Dieta
de Worms (1521); líder dos pequenos nobres alemães.
494 TÜCHLE, Herman. Idem, p. 68.
495 SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104.
158
com Carlos V, chamou a si tornar-se o Armínio do campo reformado, tornando-se o “pai da
nação” e, convergindo com o Armínio original, também durante algum tempo obedeceu às
ordens de Roma, porém “no fim, foi levado, pelo sofrimento de seu povo, à revolta e à
autodescoberta étnica”
496
.
Um fator sem o qual seria impossível que esses escritos de Lutero tivessem a
repercussão que tiveram, foi a imprensa. Seria impensável a Reforma sem o invento de
Gutemberg
497
. Eric Voegelin refere especificamente:
A Reforma foi o primeiro grande movimento social a contar para a sua
propagação com um novo meio técnico: a palavra escrita. Aproveitando as
circunstâncias do extraordinário desenvolvimento da imprensa desde meados
do século XV e que aumentou o número de obras em circulação de algumas
dezenas de milhares de manuscritos para alguns milhões de livros e panfletos,
Lutero chegou a atingir um quase monopólio das casas editoras alemãs
ocupadas em imprimir os seus sermões, panfletos, as cartas e a tradução da
Bíblia.
498
O valor da imprensa como arma de propaganda para a Reforma (e também para o
catolicismo) foi muito bem abordada por Robert Scribner, em sua obra For the Sake of Simple
Folk: Popular Propaganda for the German Reformation
499
e por Mark U. Edwards, Jr., em
seu livro Printing, Propaganda and Martin Luther
500
. Ambos constituem-se em referenciais
obrigatórios para que se compreenda o efeito que a divulgação impressa dos panfletos e
livretos teve no seio da população, especialmente na população mais simples, como registra
Scribner.
É o mesmo Scribner quem aponta um curioso paradoxo da “guerra de imagens” que
vem do início da Reforma, que é a apresentação de Lutero caracterizado como um monge
501,
quando toda a propaganda da Reforma apresentava os monges como inimigos do Evangelho.
De certo modo, até o momento da excomunhão isso não estava incorreto; contudo tal
representação perdurou até quase o final da vida de Lutero. Uma vez que a propaganda
pictórica foge ao escopo desta pesquisa, apenas será indicada a importância dos trabalhos de
496 Ibidem.
497 A imprensa foi inventada no Sacro Império por volta de 1450. Por volta de 1500, havia prensas em cerca de
duzentas cidades em toda a Europa. Na Confederação Helvética e no Sacro Império havia 62 prensas, sendo
Colônia, Basileia, Nuremberg, Estrasburgo, Wittenberg e Augsburgo os principais centros impressores. (apud
Edwards, Jr., Mark U. Printing, Propaganda and Martin Luther. Minneapolis: Augsburg Books, 2004, p. 15)
498 VOEGELIN, Eric. Estudos de Ideias Políticas de Erasmo a Nietzsche. Ática: Lisboa, 1996, p. 6.
499 Oxford: Oxford University Press, 1994.
500 Minneapolis: Augsburg Books, 2004.
501 SCRIBNER, Robert W.. For the Sake of Simple Folk: Popular Propaganda for the German Reformation.
Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 37.
159
Lucas Cranach, o Velho, e de Lucas Cranach, o Moço, assim como de Hans Baldung Grier e
de Daniel Hopfer na representação de Lutero, merecendo uma especial menção a
representação feita por Hans Holbein, o Moço, no Hercules Germanicus, figurando, ainda em
1523, Lutero como um titã – ainda com o hábito monástico e a tonsura clerical – que vencera
todos os inimigos da fé e da Alemanha (v. gravura. 3, abaixo).
Gravura 3 Hercules Germanicus (1523), de Hans Holbein
502
Esta imagem de Hércules seria ainda, culos depois, utilizada por Friedrich Engels,
ao afirmar que “Lutero limpou as cavalariças de Augias não apenas da Igreja, mas também da
língua alemã; ele criou a moderna prosa alemã e compôs a letra e a melodia daquele triunfal
hino que se tornou a Marselhesa do século dezesseis”
503
.
Mark Edwards, Jr.
504
aponta dois importantes eventos nesse período, com relação à
difusão de ideias através da imprensa, que são a setuplicação do número de panfletos escritos
na Alemanha entre 1519 e 1521, e o fato de que estes saltaram de um em alemão para cada
três em latim para três em alemão para cada panfleto escrito em latim. Isso evidencia que
Lutero e seus seguidores (assim como seus opositores) queriam atingir um público cada vez
502
Apud C. Scott Dixon, Queen's University, Belfast 1997, Case-study 2: The Engraven Reformation,
disponível em http://www.qub.ac.uk/iccj/sdixon/REFORMAT/ENG2/WAR428.HTM#title acessado em
24/01/2009, às 14:35.
503 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. On religion. Mineola: Dover Publications, 2008, p. 154; excerto de
Dialética da Natureza.
504 EDWARDS, Jr., Mark U.. Printing, Propaganda and Martin Luther. Minneapolis: Augsburg Books, 2004, p.
23.
160
mais amplo, ao qual o alemão era mais acessível do que o latim. Neste sentido, observa-se
que Lutero empregou o alemão quando necessitou atingir um público maior, como, por
exemplo, na Carta à Nobreza Cristã ou em suas explicações sobre as razões por haver
queimado a Bula do Papa, tanto no documento analisado neste Capítulo como no sermão
Contra a execrável Bula do anticristo, redigido em 1521, após sua excomunhão. Mesmo seus
textos originais latinos foram rapidamente traduzidos ao alemão, a fim de que pudessem ser
lidos e debatidos por uma parcela muito maior da população.
Dados levantados pelo mesmo Mark Edwards, Jr., a partir do Tübingen Flugschriften
Projekt
505
, demonstram isto claramente, com a seguinte tabela abaixo, que aqui é reproduzida
parcialmente, considerando-se nela unicamente o ano de 1520:
Primeiras
Edições
Total (Latim
+ Alemão)
Primeiras
Edições
Latinas
Total em
Latim
Primeiras
Edições
Alemãs
Total em
Alemão
Percentual
Alemão do
Total de
Publicações
27 275 12 40 15 235
85,5%
Tabela 1 – Dados sobre as publicações de textos de Lutero em 1520
506
1520 foi o ano com a segunda maior quantidade de escritos de Lutero publicados em
terras alemãs, sendo somente inferior a 1523, que viu a publicação de 390 de seus textos,
considerado o intervalo entre 1516 e a morte do Reformador, em 1546. A expressiva maioria
de textos em alemão mostrava não apenas o empenho de Martinho Lutero, mas também de
seus publicadores, de dar a maior divulgação às ideias que deram origem à Reforma. Ainda
segundo Mark Edwards, Jr., “a Reforma aperfeiçoou o uso de pequenos livretos ou panfletos
como uma ferramenta de propaganda e agitação”
507
, sendo tais itens chamados pelos seus
contemporâneos de libellus ou Büchlein, muitos dos quais era volantes impressos, nome pelo
qual foram posteriormente conhecidos: Flugschriften (lit. “escritos volantes”).
C. Scott Dixon registra que Lutero definia a imprensa como “o mais elevado e mais
extremo ato de graça de Deus, onde quer que o assunto do Evangelho seja conduzido
adiante”
508.
Entende-se perfeitamente a admiração do Reformador por esse impressionante
505 Projeto desenvolvido na cidade de Tübingen, que registra e arquiva em microfilmes os panfletos, livros e
volantes originais produzidos na região da Alemanha na fase inicial da Reforma.
506 Apud EDWARDS, Jr., Mark U.. Op. cit., pp. 18-19 – Tabela 1.
507 EDWARDS, Jr., Mark U.. Idem, p. 15.
508 DIXON, C. Scott. Case-study 2: The Engraven Reformation, Queen's University, Belfast 1997, disponível
161
meio de divulgação e popularização de suas ideias e promoção de sua causa. Já em 1519 ele
teve seu primeiro sermão publicado e amplamente divulgado, como se abaixo, na gravura
4:
Gravura 4 – Primeiro sermão publicado de Lutero e divulgado amplamente,
Um sermão pregado em Leipzig, de Martin Warnke (1519)
509
A repercussão imediata desses escritos no seio da população foi captada por Girolamo
Aleander, quando foi à Alemanha, acompanhando Eck, para a afixação da Bula Exsurge
Domine, ao registrar: “nove décimos da Alemanha gritam: Viva Lutero! E, mesmo não o
seguindo, o resto lhe faz coro gritando: Morte a Roma!”
510
. Como se viu no final do Capítulo
anterior, havia razões entre a nobreza para querer desvincular-se de Roma, mas percebe-se
que também entre os demais estamentos da população havia, em maior ou menor grau, razões
para apoiar as ideias de Lutero. Se havia aqueles, como Hutten e von Sickingen, que
vislumbravam em Lutero um viabilizador de uma “causa nacional” alemã, havia igualmente
aqueles que buscavam uma restauração espiritual da cristandade, uma reforma da Igreja, e não
contra a Igreja, como Melanchton e Spalatino.
O mesmo Febvre atesta a impressionante repercussão imediata da Carta à Nobreza
Cristã: “nada tem de estranho que este pequeno livro, escrito em alemão para uso de todo um
em http://www.qub.ac.uk/iccj/sdixon/REFORMAT/ENGRAVEN.HTM#war428, acessado em 24/01/2009, às
14:40.
509 Imagem disponível em http://www.qub.ac.uk/iccj/sdixon/REFORMAT/ENG2/WAR423F.HTM#title,
acessado em 24/01/2009, às 14:58. Tradução do frontispício da obra: “Um sermão pregado no castelo de Leipzig
no dia de Pedro e Paulo [1519], dado pelo digno agostiniano doutor em Wittenberg Padre Martinho Lutero, com
uma defesa de muitos artigos que lhe foram atribuídos por seus adversários durante o Debate de Leipzig”.
510 FEBVRE, Lucien. Martin Luther: un destin. Paris: Quadrige/PUF, 1999, p. 104, remetendo a PASQUIER,
J., Jerôme Aleander, p. 154.
162
povo, tenha sido arrebatado das livrarias com uma rapidez inaudita: que em seis dias foram
vendidos quatro mil exemplares, cifra sem precedente”
511
. Considerando-se a populão
alemã à época, a população letrada e aqueles em condições de e dispostos a adquirir o
livro, vê-se que esta cifra é intransponível a valores contemporâneos.
O apoio de Von Sickingen e Hutten (que em 4 de junho de 1520 dirigiu a Lutero uma
carta que iniciava com Vivat Libertas! Viva a Liberdade!, e assegurou a ele a proteção do
cavaleiro) pôde dar a Lutero alguma segurança no sentido de que, ainda que viesse a ser
abandonado por Frederico, o Sábio, ele encontraria quem o abrigasse, de modo que não seria
entregue ao poder papal ou imperial sem que houvesse alguma resistência. É importante
ressaltar o apoio desse que se poderia chamar de grupo nacionalista” a Lutero e procurar
dimensionar até que ponto foram influenciados ou influenciadores dos escritos do
Reformador. Febvre é um dos que destacam a influência de Hutten sobre Lutero
512
,
destacando que sua obra Vadiscus seu Trias Romana, de abril de 1520, influenciou
diretamente Lutero na redação de sua Carta à Nobreza Cristã. Em 1519, Hutten “considerava
a possibilidade de receber a Lutero em confidência de seus projetos”
513
.
Estes parecem estar intimamente ligados a uma questão nacional ainda um pouco
difusa mas bastante objetiva no que se refere ao ódio a Roma. “Fora da Alemanha esses
vorazes, o papa florentino com seus dedos ganchudos de banqueiro, seus legados, seus
sequazes, seus núncios!”; “A Alemanha quer ser livre e senhora em sua terra!”
514
eram
exclamações ecoadas em toda a Alemanha entre 1518 e 1520 inspiradas também pelos
escritos duros de Ulrich von Hutten. Eis, portanto, uma conexão importante entre grupos
nacionalistas e a Carta à Nobreza e outros escritos que apontavam para a ruptura com Roma.
Isso, de certa forma, corrobora a afirmação de Louis Dumont, de que Lutero é
em mais de um modo, o protótipo do intelectual alemão. (...) mas também o
representante do povo alemão em relação à Igreja Católica, e, desta forma,
com a cena mundial, como testemunhado por sua popularidade, que
representou isso a uma grande gama de alemães que se reconheceram nele.
Esta função de representante ou mediador entre o povo alemão e a cultura
‘ocidental’ ou universal passou pelo escritor e pensador alemão.
515
511 Ibidem. Kantzenbach refere que o livro “foi publicado no início do verão e em 18 de agosto tinham sido
vendidos 4000 exemplares” (KANTZENBACH, Friedrich W.. Martin Lutero, il riformatore borghese. Turim:
San Paolo, 1984, p. 61), o que, de qualquer modo não diminui o impacto.
512 FEBVRE, Lucien. Idem, p. 99, mas especialmente a Parte II do Capítulo III (“Os Huttenistas”).
513 Idem, p. 89.
514 Ibidem.
515 DUMONT, Louis. German ideology. Chicago: Chicago University Press, 1996, pp. 45-46.
163
Havia, portanto, essa inegável identificão do povo alemão – ou, de grande parte dele
– com Martinho Lutero.
É mais seguro afirmar que se estabeleceu uma relação de recíproca influência entre
Lutero e outros segmentos intelectuais alemães do que assegurar que apenas Lutero foi
influenciado ou influenciador. Efetivamente, ele foi tomado por esses grupos nacionalistas
incluído o próprio Hutten, que até 1518 tinha ouvido muito pouco sobre o monge
agostiniano e dele zombava
516
– como um pessoa paradigmática daquilo que queriam atingir e
alguém dotado da capacidade necessária para tanto. Para isso prestava-se inteiramente o
monge que desfiava os poderes do Império e do papado, que ousava chamar o Papa de
anticristo e que convocava os nobres alemães a tomarem em suas mãos não apenas os
destinos da Alemanha, mas também os da Igreja.
Tratava-se, a meu ver, de uma disputa pela hegemonia sobre a Igreja, a Alemanha e os
seus súditos, e nesse sentido entendo necessária a introdução da perspectiva gramsciana, que
será mencionada de forma superficial, em virtude da sua elevada complexidade. Antonio
Gramsci valorizou a abordagem de ver a Reforma na Alemanha como um movimento muito
mais amplo, fruto de seu tempo, indagando se “não seria a Reforma uma crise do pensamento
filosófico e científico, ou seja, do comportamento em relação ao mundo, da concepção de
mundo?”
517
. A perspectiva gramsciana esvazia a Reforma de perspectivas teológicas, ao
afirmar que “este movimento, que se comunica ao povo, é mais uma crise do pensamento
filosófico e científico, naturalmente ritmada segundo a grande revolução germânica, do que
um processo de purificação e de elevação religiosa”
518
. Neste sentido, Gramsci despersonaliza
a Reforma Protestante, ao formular que “o portador da Reforma foi o povo alemão em seu
conjunto, como povo indiferenciado, não os intelectuais”
519
. Se o filósofo marxista italiano
diminuiu o papel de um homem específico Lutero e o de toda uma categoria os
intelectuais – na formulação e condução da Reforma, por outro lado, introduziu uma categoria
que aparece com pouca frequência nas análises sobre a Reforma, que é o povo alemão, quase
somente mencionado pela historiografia quando se aborda a Guerra dos Camponeses (1524-
1525).
516 FEBVRE, Lucien. Idem, p. 88.
517 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 5 O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 306-307.
518 Idem, p. 306.
519
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 4 Temas de cultura, ação católica, americanismo e
fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 41.
164
Abordar a Reforma por esse prisma liberto de preocupações teológicas e confessionais
é também o proposto por Delio Cantimori, em sua obra Los Historiadores y la Historia
520
, “ao
defender uma pesquisa mais argumentativa, que contemple a piedade e a sensibilidade
religiosa, rompendo com controvérsias teológicas e eclesiásticas que caracterizavam muitos
dos estudos”
521
.
Quanto à ação de Lutero especificamente, pode-se, ainda dentro do campo marxista, e
também considerando-a de forma bastante superficial, a citação de Marx:
Lutero, nós asseguramos, superou o cativeiro oriundo da devoção
substituindo-o pelo cativeiro oriundo da convicção. Ele fragmentou a na
autoridade porque restabeleceu a autoridade da fé. Ele converteu sacerdotes
em leigos porque ele converteu leigos em sacerdotes. Ele libertou o homem da
religiosidade exterior porque tornou a religiosidade o homem interior. Ele
libertou o corpo de cadeias porque ele tornou cativo o coração.
522
De fato, Lutero fez um nivelamento de todos os homens, a partir do fato de terem
todos sido batizados, sendo este o seu sinal de igualdade. Em suas próprias palavras:
Não deriva se leigos ou padres, príncipes ou bispos, ou como se diz,
mundanos ou eclesiásticos, no fundo não existe entre eles diferença alguma,
exceto aquela própria ao ofício ou às obras de cada um, mas não à condição;
de fato esses todos são de uma mesma ordem religiosa e verdadeiros padres,
verdadeiros bispos e papas, embora não com os mesmos ofícios.
523
Se houve, portanto, – e creio que houve – essa disputa pela hegemonia sobre os
“corações e mentes” dos alemães e da Igreja na Alemanha, neste primeiro momento parece
que Lutero foi o vencedor. A imensa repercussão de seus escritos e a adesão de parcelas
expressivas de integrantes de todos os segmentos da população alemã são, seguramente, um
indicador inequívoco disso.
Steven Ozment afirma que, com seus escritos, Lutero “recordou aos alemães dois
antigos e ainda continuados conflitos”
524
, o primeiro, contra o Imperador do Sacro Império
Romano, e o segundo, datado do século XV, que opôs os príncipes a cavaleiros, pequenos
520 Barcelona: Península, 1985.
521 MONTEIRO, Rodrigo Bentes. As Reformas Religiosas na Europa Moderna: notas para um debate
historiográfico. In Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37: p.130-150, Jan/Jun 2007, p. 133.
522 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. On religion. Mineola: Dover Publications, 2008, p. 51, excerto de
Contribuição à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel.
523 LUTERO, Martin. Scritti politici. Utet: Torino, 1959, p. 251.
524 OZMENT, Steven. A mighty fortress: a new history of the German people. New York: Perennial, 2005, p.
65.
165
senhores e camponeses, ambos tendo resultado em vitórias dos príncipes. De certo modo,
seria esperado que a memória desses eventos pudesse fazer os príncipes confiantes o bastante
de que, uma vez mais, sairiam vencedores.
Jean Touchard afirma que Lutero não tinha uma experiência pessoal nos problemas
políticos; ele os descobriu através do Evangelho e através de São Paulo, em uma perspectiva
puramente religiosa”
525
. Esse autor concorda em que muito da teologia agostiniana na
perspectiva política de Lutero, contrapondo as “duas cidades”: a “Cidade de Deus” e a
“Cidade dos Homens”. Marcos Costa, ao analisar o pensamento político de Santo Agostinho,
salienta que este vinculava a Cidade de Deus à Igreja, tomando os termos como sinônimos por
várias vezes
526
. Era dentro dessa perspectiva que Agostinho entendia as relações que deveriam
haver entre a Igreja e o Império, sendo aquela superior a este, devendo o Império intervir
somente nos assuntos da Igreja a pedido desta e sem impiedade
527
.
4.4 Os leitores do monge: modernidade, teologia e política
Os leitores alemães de Martinho Lutero, embora se definissem como pertencentes a
um grupo os alemães – identificado como força nacional por seus traços de língua, cultura e
costumes, mas a quem faltava a formação de um Estado nacional, também o liam a partir de
algo que é uma contribuição direta da Reforma ao pensamento político, social e filosófico: o
individualismo. Louis Dumont
528
, em seu ensaio sobre o individualismo, data o surgimento
dessa “ideologia moderna” precisamente quando do momento das Reformas luterana e
calvinista.
De modo especial, tais escritos de Lutero constituem-se em matriciais para o que se
poderia chamar de “individualismo político”. Neste campo, é necessário atentarmos para a
contribuição importante de Gabriella Cotta, em sua obra La nascita dell'individualismo
político: Lutero e la politica della modernità
529
. Nesta obra, Cotta entende que “o pessimismo
antropológico de Lutero está na origem da política moderna”. Neste ensaio, é identificado no
525 TOUCHARD, Jean. Histoire des idées politiques – Tome I. Paris: PUF, 2008, p. 268.
526 COSTA, Marcos Roberto Nunes. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho. S. Paulo:
Loyola e Recife: Editora da Universidade Católica de Pernambuco, 2009, pp. 144 ss.
527 Op. cit., pp. 162 ss.
528 DUMONT, Louis. Essais sur l’individualisme. Paris: Points, 1991, pp. 71-81.
529 Roma: Il Mulino, 2002.
166
pensamento de Lutero uma das passagens fundamentais daquela transformação filosófica
radical destinada a incidir no âmbito religioso, político, jurídico e ético que sinalizam a
inauguração da Idade Moderna. Se a visão política de Maquiavel é portadora de uma imagem
da natureza humana, sempre pronta à superação, ao engano e à traição ainda ambivalente,
em Lutero os pressupostos antropológicos se radicalizam na teorização de um pessimismo
ontológico denso de importantes consequências no campo político, social e ético. Neste
sentido, Quentin Skinner ecoa suas palavras ao afirmar que “Lutero era obcecado com a ideia
da completa indignidade do homem”
530
. Contudo, um importante contraponto no próprio
pensamento de Lutero, que é o seu absoluto otimismo teológico, segundo o qual Deus deseja
a salvação de todos, mediante a fé.
Destacando-se da tradição do pensamento clássico-cristão precedente, que sustentava a
sociabilidade natural dos indivíduos e a sua natural tendência à procura do próprio bem e do
bem comum, a antropologia luterana põe no centro da investigação sócio-política a maldade
intrínseca do homem e, deste modo, a inevitável conflitividade de sua vontade tema que
será desenvolvido por ele em sua obra De servo arbitrio; uma linha que levada a cabo por
Hobbes constituir-se-á em um dos principais destinos políticos da modernidade.
De qual modernidade se fala? “Se o termo modernidade é polimorfo, polissêmico,
exprime também uma exigência, um movimento”, como afirma Georges Balandier
531
,
referindo-se, nesta afirmativa, a uma característica da modernidade, que é a noção de
movimento. Não se pode imaginá-la unicamente como um elemento de profunda ruptura e
renovação; como uma fratura definitiva que marca abertamente o início de uma nova maneira
de olhar e se colocar no mundo. Os eventos essenciais de inauguração do moderno,
contemporâneos da Reforma – ou mesmo inaugurados por esta – foram bastante analisados no
campo historiográfico, filosófico, antropológico e sociológico, e as inovações nos âmbitos
econômico, político e social apontadas como marcadores de tempos de mudança nas relações
sociais, interpessoais e, em decorrência disso, na perspectiva dos homens diante da vida.
Todavia, a modernidade deve ser entendida em sua pluralidade, que implica variada
polifonia, em suas diferentes manifestações, levando-se em conta não apenas os eventos
históricos de relevância para o seu entendimento, mas também suas especificidades espaciais.
530 SKINNER, Quentin. The foundations of the modern political thought 2 vols.. New York: Cambridge
University Press, 2005, vol. 2, p. 3.
531 BALANDIER, Georges. Contorno. Poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.137.
167
A modernidade, seguida em sua trajetória, perpassa idas e vindas acompanhada de vivências
particulares, individuais e coletivas. Cada país ou região, com suas experiências próprias,
sentiu-a de formas diversas e, apesar de sua ubiquidade, revestiu-a com os trajes de sua
história, dotando-a com os significados do seu tempo e do lugar no qual ela se manifestou.
Desta forma, as peculiaridades da modernidade e do moderno poderiam ser entendidas como
um baile de máscaras, onde o tema central é partilhado, mas as máscaras são decoradas de
forma a diferenciar os indivíduos que as vestem, colocando-os parcialmente evidentes a seus
pares, em permanente jogo de velar e desvelar. A modernidade apresenta-se semelhante na
medida em que nos deixa à mostra traços gerais que camuflam, parcialmente, diferentes
modelos de modernidade que só se tornam evidentes com o cair das máscaras, ou seja,
quando são postos lado a lado os modos heterogêneos através dos quais cada país sentiu e
projetou seu próprio caminhar na modernidade.
A experiência da modernidade permitiu o surgimento da vida individual e a
amplificação da experiência humana, vinculadas a transformações objetivas nos campos
social, econômico e político, com suas implicações nos domínios do religioso.
A ideologia moderna é individualista e apresenta em sua configuração uma série de
conceitos vinculados. O individualismo esteve em constante embate com suas formas
contestatórias e teve de lidar com o anti-individualismo. Possuiu caráter mutável e capacidade
de incorporar elementos heterogêneos que, ao invés de diluí-lo, o intensificaram. Segundo
Louis Dumont, “o mundo ideológico contemporâneo é tecido da interação de culturas que
teve lugar desde, pelo menos, o final do século XVIII” e “é feito das ações e reações do
individualismo e de seu contrário”
532
. Tal ideologia ganhou formas variadas frente à própria
diferenciação entre as culturas nacionais da Europa:
Com efeito, a ideologia moderna reveste-se de formas notavelmente diferentes
nas diferentes línguas ou nações, mais exatamente nas diversas subculturas
que correspondem mais ou menos a essas línguas e a essas nações. Tomando
cada uma dessas ideologias mais ou menos nacionais como uma variante da
ideologia moderna, devia ser possível, e isso pela primeira vez, propor o
começo de uma comparação sistemática e, portanto, de uma verdadeira
intercompreensão entre essas variantes (...).
533
Deus falava a cada homem, individualmente; assim como a cada um assegurava a
possibilidade de salvão, mediante sua individual na Escritura Sagrada. Desta forma,
532 DUMONT, Louis. Essais sur l’individualisme. Paris: Points, 1991, p. 30.
533 Idem, p. 27.
168
aqueles que, até então, eram vistos como ovelhas de um rebanho maior, podiam, a partir
desses escritos, verem-se como indivíduos, chamados e vocacionados a participar da obra de
Deus, nos mais diferentes ofícios, mas todos absolutamente iguais em razão do mesmo
batismo por todos recebido.
A mesma Gabriella Cotta entende como um desdobramento da importância desse
individualismo que “o mecanismo de eliminação ou, pelo menos, de perda de sentido da
mediação caracteriza diversos momentos fundamentais do pensamento de Lutero”
534
. Ao
colocar Jesus Cristo como único mediador, Lutero eliminou a necessidade e a possibilidade de
qualquer forma de mediação pela Igreja institucional. Como visto no seu texto sobre o papado
de Roma, Lutero entendia a Igreja como “a união de todos os crentes em Cristo sobre a terra,
como oramos no Credo”
535
. E explica:
o critério da individuação é, portanto, o ressoar da palavra que repropõe o
movimento, procedente unicamente do alto em direção à terra: Deus e a
sua Palavra podem intervir na realidade humana, redimindo-a e, deste modo,
criar a Igreja: a intervenção humana ajuntará somente aquilo que a vontade de
Deus escolherá que possa realizar.
536
Será esse movimento que causará uma “progressiva e insanável fratura entre
transcendência e imanência”
537
no pensamento luterano.
Serão esses indivíduos que lerão Lutero e agirão como coletividade, como nação, a
partir do que compreenderam dos textos do Reformador. que se concordar com Gabriella
Cotta no fato de que os escritos de Lutero deixaram marcas, mais ou menos profundas, em
todas as controvérsias político-religiosas de seu tempo, “nas quais, por favores de
circunstâncias históricas, ele esteve em condições de exercer uma enorme influência”
538
.
Desta forma, por sua ação, ocorre a ruptura do equilíbrio secular, que havia muito era
instável e precário, em razão das várias tensões políticas existentes, muitas das quais
abordadas no final do Capítulo II. Ernst Troeltsch defendia que a religião protestante
assemelhava-se ao catolicismo medieval, em seu intento por restaurar a cultura religiosa
antiga, com a novidade de enfatizar a liberdade individual
539
. Não se tratava, portanto, de
534 COTTA, Gabriella. La nascità dell’individualismo politico. Roma: Il Mulino, 2002, p. 89.
535 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas vol. 2. S. Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 208.
536 COTTA, Gabriella. Op. cit., p. 92.
537 Idem, p. 117.
538 Ibidem.
539 TROELTSCH, Ernst. Protestantism and Progress a historical study of the relation of protestantism to the
modern world. Eugene: Wipf and Stock, 1999, esp. o cap. 1.
169
mero retorno ao passado (ainda que a expressão “Igreja primitiva” seja recorrente em muitos
escritos de Lutero), mas de conciliar a restauração da cultura religiosa com a nascente
liberdade individual através da jornada “às fontes”.
Entendo que não poderia, como proposto por Delio Cantimori
540
, a Idade Moderna ser
chamada de Idade Humanística”, uma vez que a Reforma representou, com seu triunfo, o
fracasso do ideal humanista. Aquilo que se poderia chamar de “quase-onipotência humana”,
típica do Humanismo que bebeu das águas erasmistas da defesa do livre-arbítrio, foi
contestado pela Reforma, inicialmente com o “servo-arbítrio” de Lutero, e posteriormente
com a doutrina calvinista da predestinação. O próprio Lutero, em seus Tischreden, faz troça
do humanismo de Erasmo, que ele julgava vazio:
Res sine verbis Lutherus,
Verba sine rebus Erasmus
541
Não se pode deixar de registrar este paradoxo da Reforma: ao tempo em que
fomentava ou fazia nascer o conceito de individualismo, opunha-se ao Humanismo, por
este ser centrado no homem e em seu livre-arbítrio.
Assim, não penso ser exagerado afirmar que Lutero oferecia uma nova perspectiva
política, ainda que não fosse esta a preocupação primeira de seus escritos, mesmo os de 1520.
Lutero não contestou essencialmente o que seria o pilar da altständische Gesellschaft, uma
sociedade baseada na antiga constituição de estamentos. Esta era, como aponta Tom Scott, “a
crença na divina legitimação da desigualdade social”
542
. Lutero, ao proclamar a igualdade
entre todos os homens pelo batismo, possibilitou, porém, que houvesse uma radicalização
dessa ideia posteriormente, resultando no movimento liderado por Karlstadt e Thomas
Müntzer, que lideraram os anabatistas, aos quais Lutero se opôs.
Nas palavras de David Whitford, “as reações políticas de Lutero devem ser lidas
contra o pano de fundo de seus compromissos teológicos. Ele sempre se compreendeu como
um pastor e entendeu ser sua responsabilidade principal cuidar de almas”
543
. Neste panorama,
540 CANTIMORI, Delio. Humanismo y religiones en el Renacimiento Barcelona: Península, 1984, esp. caps. 4,
6 e 7.
541 LUTHER, Martin. Tischreden. Frankfurt: Reclam, 1981, p. 27. (“Substância sem palavras, Lutero; Palavras
sem substância, Erasmo”)
542 SCOTT. Tom. Society and economy in Germany, 1300-1600. New York: Palgrave, 2002, p. 27.
543 WHITFORD, David M.. Luthers political encounters. In
McKIM, Donald K. (ed.). The Cambridge
Companion to Martin Luther. New York: Cambridge University Press, 2003, p. 180.
170
as colocações políticas de Lutero devem ser entendidas como parte de sua luta contra o
pecado e o caos. Onde o caos imperasse, os homens sofreriam; a humanidade estaria sendo
castigada por Deus em razão do seu pecado. Suas concepções políticas, especialmente a
doutrina das “duas espadas”, a secular e a espiritual, serão posteriormente desenvolvidas por
ele em escritos entre 1521 e 1530, especialmente, com destaque aos escritos e sermões feitos
entre 1524 e 1525, durante o Bauernkrieg, a Guerra dos Camponeses.
Senellart sustenta que a Reforma se iniciou, de fato, quando Lutero sustentou em
Augsburgo, em 1518, e em Leipzig, no ano seguinte, “a autoridade do julgamento individual
livremente aplicado ao estudo da Bíblia”
544
.
Após sua excomunhão, Lutero, de algum modo, reelaborou seus conceitos sobre os
limites da obediência ao poder secular, sendo sua própria atuação perante a Dieta de Worms
um exemplo disso, pois ele constatou o que podia acontecer quando as autoridades seculares
tentavam ingerir na esfera espiritual: “a salvação é ameaçada. Eles substituem a Palavra de
Deus por palavras humanas, e, desta forma ‘conduzem almas à morte eterna’”
545
.
Neste sentido, é importante entender-se as vinculações entre as dimensões religiosa e
política. Carl Schmitt afirma que um dos resultados do desenvolvimento da ciência política
nos séculos XVIII e XIX foi a construção de várias antíteses, dentre as quais a primeira por
ele elencada é a do “religioso como antítese do político”
546
. No entanto, entendo que esta
formulação antitética o se aplica à realidade do século XVI, quando o discurso e a ação
eram matizados pela articulação teológico-política. Assim, na conjuntura em que Lutero
viveu, pode-se afirmar que o religioso era o político e vice-versa.
A conceituação que Schmitt formula acerca da definição de “amigo” e “inimigo” é
fundamental para que se entendam os posicionamentos adotados naquele momento, quer no
campo religioso, quer no campo político – o que, ao fim e ao cabo, revelam-se ser um único e
mesmo campo – como reação aos escritos de Lutero. Segundo o jurista e filósofo alemão,
a distinção de amigo e inimigo denota o mais extremo grau de intensidade de
uma união ou separação, de uma associação ou dissociação. Ela pode existir
teórica ou praticamente, sem ter que ser simultaneamente traçada sobre todas
as distinções morais, estéticas, econômicas ou outras. (...) O inimigo político
544 SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 285, nota 80.
545 Idem, p. 183.
546 SCHMITT, Carl. The concept of the political. Chicago: Chicago University Press, 2007, p. 23.
171
não precisa ser moralmente mau ou esteticamente feio; não precisa mostrar-se
como um competidor econômico e pode até mesmo ser vantajoso estabelecer
transações comerciais com ele. Mas ele é, nada obstante, o outro, o estranho, e
é suficiente para sua natureza que ele seja, de um modo especialmente intenso,
existencialmente, alguma coisa de diferente, de modo que em casos extremos,
situações de conflito com ele são possíveis.
547
Este conceito é fulcral para a compreensão dos eventos. O “outro”, o “diferente’, era
aquele que deveria ser eliminado, não apenas vencido no campo das ideias, mas efetivamente
eliminado fisicamente. As propagandas da Reforma e a do Catolicismo empenhavam-se em
retratar, sobretudo no seu material iconográfico, o inimigo como um demônio, de formas
bestiais, associando de modo concreto a maldade à fealdade. É o que se na gravura 5, de
autor desconhecido, datada de 1530, retratando o papa como tendo sete cabeças, em uma
referência à besta descrita no livro do Apocalipse, e baseada na passagem da II Carta aos
Tessalonicenses (II Tes. 2:4), com o papa sendo sustentado pelas indulgências arrecadadas no
“Regnum Diabloli”, o “Reino do Diabo”.
Gravura 5 – O papa-besta de sete cabeças (1530)
548
Neste sentido, o “Papa-Asno”, de Lucas Cranach, o Velho, de 1520, presta-se
igualmente ao trabalho de desumanização do inimigo, como se vê na gravura 6:
547 Idem, pp. 26-27.
548 Disponível em http://www.qub.ac.uk/iccj/sdixon/REFORMAT/ENG4/GEI444.HTM#title, acessado em
25/01/2009, às 13:50.
172
Gravura 6 – O “Papa-Asno”, de Lucas Cranach, o Velho (1520)
549
A desumanização do inimigo reforçava a ideia da necessidade de que este fosse
eliminado, com quem qualquer conciliação seria impossível. Assim, os escritos de 1520 de
Lutero seguiram nesse sentido. Seus adversários foram convertidos em inimigos, e, como tais,
podiam, dentro de uma tradição que vinha do Medievo, ser desumanizados, ridicularizados,
em justificativa para sua eliminação. O inimigo era concreto, real, não uma abstração. Assim,
Schmitt pontua sobre a definição do inimigo:
os conceitos de amigo e inimigo devem ser entendidos em seus sentidos
concreto e existencial, não como metáforas ou símbolos. (...) A preocupação
aqui não é com abstrações nem com ideais normativos. (...) Um inimigo existe
somente quando, pelo menos potencialmente, uma coletividade combatente de
pessoas confronta uma coletividade similar. O inimigo público somente é o
inimigo público porque tudo o que tem uma relação com essa coletividade de
homens, particularmente com toda uma nação, torna-se público em virtude
dessa relação.
550
Uma sátira aos adversários de Lutero é bem exemplificada pela gravura anônima de
1520, a seguir, na qual os principais oponentes de Lutero são bestializados:
549 Em:http://www.metamute.org/en/pope_ass_medieval_harbinger_of_the_end_of_the_world, acessado em
25/01/2009, às 15:08.
550 SCHMITT, Carl. Idem, p. 27-28.
173
Gravuura 7 – Sátira aos adversários de Lutero (1520), anônima
551
Desta forma, o Papa, a Cúria e “os Romanistas” tornaram-se os inimigos da nação
alemã, e, portanto, de todos e de cada um dos alemães. Vê-se um conflito de identidades
colocado ante a comunidade, ou, na expressão de Lutero, ante a “Nação Alemã”: como cada
alemão definiria-se primeiro: como alemão ou como católico? Da forma como Lutero expôs a
questão dos vínculos com Roma, essa dupla possibilidade ser alemão e ser católico era
quase impensável, embora, na prática, não o tenha sido.
Efetivamente, muitos nobres, clérigos dentre os quais pode ser destacado o ex-
superior e protetor de Lutero, Johann von Staupitz
552
e pessoas do povo permaneceram fiéis
a Roma, identificando-se simultaneamente como alemães e católicos.
É necessário apresentar um postulado de Schmitt, quando este afirma que
a Igreja Católica tem praticado um toleri potest bastante liberal. Ela não
recebeu lições de seus adversários sobre a noção e os limites dessa tolerância.
(...) A irrupção de um animus rebelde na história da Igreja na época moderna é
que representou o perigo; são os pregadores protestantes dos tempos da
Reforma que operaram essa irrupção, com seu carisma para proclamar a
Palavra: uma Palavra finalmente secularizada e esvaziada de seus valores, mas
tornada, para Max Weber, nada menos que ‘a força revolucionária da
551 Retirada de LUTHER Martin. “Wir sollen Menschen und nicht Gott sein” (Luther zum Vergnügen).
Stuttgart: Reclam, 2008, p. 47.
552 V. infrasseção 2.1.3 – Agostiniano, no Cap. I desta Tese.
174
história’.
553
O questionamento que se pode fazer a essa colocação é com relação ao conceito de
“tolerância”, o qual, por anacronismo, não pode ser empregado aos eventos do período
abordado nesta Tese, por ser ele vinculado, filosoficamente, ao Século das Luzes. Ademais,
entendo que, ainda que fosse permitido o anacronismo, os atos praticados pela Igreja Católica,
em seu nome ou em seu favor desmentiriam essa alegada tolerância. Os dois lados não foram
tolerantes nem sequer estavam comprometidos com algo neste sentido. Como visto
anteriormente, dentro dos conceitos do próprio Schmitt, o outro era o diferente, aquele que
deveria ser eliminado por todos os meios.
Como define Italo Mereu,
essa forma de violência, justificada ideologicamente com ‘razões’ de Estado e
de religião, de ordem pública e social, caracterizou (e caracteriza) as
instituições penais da Europa continental e constituiu (e constitui) uma das
bases secretas de todo ordenamento penal e na prática pode resumir-se na
seguinte fórmula: consenso ou repressão.
554
Por outro lado, faz-se necessário concordar com a afirmação de Weber, acerca de ser a
proclamação da Palavra pelos Reformadores a força revolucionária da história. Não apenas
em termos teológicos, mas também em termos políticos, sociais, culturais e antropológicos. A
revolução protestante, iniciada pelo movimento de Lutero na Reforma, transformou as bases
do mundo de então e das relações nele existentes. Não se trata apenas do nascimento do
individualismo, como pontuado por Dumont e Cotta, mas sim do lançamento das sementes da
modernidade. Como poderia esse mundo em gestação ser mantido confinado dentro dos
parâmetros que eram rigidamente demarcados pela Igreja Romana?
Diogo Pires Aurélio, no verbete Tolerância/Intolerância, da Enciclopédia Einaudi,
registra o fato de que
vezes sem conta, essa busca de uma reconciliação das Igrejas e de um
reencontro da catolicidade perdida depois da Reforma será, em vão, retomada
ao longo dos séculos XVI e XVII, insistindo sempre no mesmo dispositivo de
reduzir o número de dogmas para aumentar o número de confissões
553 SCHMITT, Carl. Théologie Politique. Paris: Gallimard, 1988, P. 140.
554 MEREU, Italo. Historia de la intolerancia en Europa. Barcelona: Paidos, 2003, p. 21.
175
predispostas aceitá-los.
555
A vinculação entre religião e política pode também ser tomada de Voegelin, ao afirmar
que “falar de religiões políticas e interpretar os movimentos do nosso tempo não apenas como
políticos, mas também como religiosos, não é ainda hoje claro quando os fatos deveriam
constranger o observador atento a um tal discurso”
556
. Mesmo considerando seu discurso nas
circunstâncias históricas em que foi produzido (a Áustria de 1938), tal observação pode ser
perfeitamente aplicada ao tempo estudado nesta Tese. A formação agostiniana de Lutero, que
opunha a “Cidade de Deus” à “Cidade dos Homens”, seguramente influenciou sua percepção
de que as esferas secular e espiritual eram mais do que separadas: eram, muitas vezes,
antagônicas. Contudo, todo gesto religioso era impregnado de conteúdo político, e todas as
ações políticas encontravam na esfera religiosa sua justificativa e legitimação. Eis o ponto de
vista que defendo: a indissociabilidade entre religião e política na Reforma inicial, como
causa e consequência da ruptura entre Roma e Lutero e seus seguidores.
Dunning, vinculando os dois aspectos teológico e político da Reforma, salienta
que “no século dezesseis, a teoria política, como todas as outras fases da atividade intelectual,
foi dominada pela influência da grande revolta Protestante. Primariamente, a Reforma, como
fenômeno filosófico, tinha caráter teológico”
557
. Este autor segue afirmando que “enquanto a
teoria da Reforma abraçou somente elementos teológicos, eclesiásticos e morais, sua
aplicação prática envolveu questões de importância social e política mais longas”
558
.
Steven Ozment segue na mesma linha de raciocínio, ao afirmar que “a nova teologia
criticamente retomou não apenas os problemas que ameaçavam a alma, mas também aqueles
que afetavam a sociedade como um todo”
559
. É interessante a observação feita por Ozment, de
que os historiadores contemporâneos têm se dedicado tanto a “retratar o pensamento político
e social de Lutero como habilitando o triunfo de um estado territorial alemão absoluto que
555 AURÉLIO, Diogo Pires. Tolerância/Intolerância. In ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi.
volume 22: Política: Tolerância/Intolerância. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, p. 184.
556 VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002, p. 23.
557 DUNNING, William Archibald. A history of political theories from Luther to Montesquieu. New York:
Macmillan, 6
th
ed., 1953, p. 1.
558 Idem, p. 2.
559 OZMENT, Steven. A mighty fortress: a new history of the German people. New York: Perennial, 2005, p.
86.
176
uma sociedade cidadã luterana parece um oxímoro”
560
. Contudo, o mesmo autor ressalta que
“os reformadores religiosos não abraçaram somente o movimento nacional alemão, mas
também a meta de uma sociedade alemã mais justa e melhor para todos os alemães”
561
.
Entretanto, não me parece possível aceitar a redução feita por esse autor em sua outra
obra, Protestants: the birth of a revolution
562
, ao afirmar que “a Reforma Alemã desenvolveu-
se em um tempo de agudos conflitos entre dois antigos inimigos (...) de um lado os
emergentes estados territoriais (...); de outro lado, as pequenas cidades e vilas
autogovernadas”
563
. Entendo que os campos que se opunham e os interesses em disputa eram
mais complexos do que os apresentados por Ozment. Algumas dessas questões envolvendo
poderes locais eram pequenas demais para merecer a atenção de Roma ou do Sacro Império.
Discutia-se, a meu ver, a questão da auctoritas e da potestas, não apenas no nível eclesial,
mas também no secular. Eis o que permeava as argumentações de Lutero e dos partidários de
Roma: até que ponto se estendia a autoridade e o poder do Pontífice Romano. Citando
Leopold Von Ranke, para que se constate que, maior do que a divisão interna, havia a
construção de uma oposição concreta a Roma, “vários eventos concorreram para dar aquela
direção à mente do país [Alemanha] e para incitá-lo a uma vigorosa oposição à Sé de
Roma”
564
.
Fazendo um histórico desses eventos, Ranke enumera os gravames da nação alemã,
dentre os quais figurava, desde havia muito tempo, a questão das anatas. Em 1510, o
Imperador Maximiliano I manifestou seu desejo de fazer valer na Alemanha algum estatuto
similar à Pragmática Sanção, que se revelava tão útil à França, sendo esta uma das razões de
Maximiliano I haver apoiado o quase-Concílio de Pisa, em 1511
565
. Ressalte-se que o
desejado aparato de um Estado, armado e independente, claudicou desde o início, o que fez
com que essa oposição a Roma não tenha tido qualquer força prática. Contudo, as vozes que
desejavam a ruptura com a Santa Sé eram cada vez mais eloquentes e frequentes.
560 Ibidem. “sociedade cidadã” consta como “civic society” no original.
561 Ibidem.
562 New York: Image Books, 1991.
563 OZMENT, Steven. Protestants: the birth of a revolution. New York: Image Books, 1991, p. 19.
564 RANKE, Leopold Von. History Of The Reformation In Germany. Whitefish: Kessinger Publishing, 2007, p.
122.
565 Cf. Ibidem e ss.
177
Continuando, Ranke salienta que
os elementos antagonistas estavam na mais veemente fermentação, e tendendo
rapidamente a novas combinações. (...) [os Papas] Tinham seguramente
adquirido um poder tal como nunca antes tinha sido possuído pela Sé Romana.
Mas eles não o adquiriram por si: deviam-no aos franceses, espanhóis,
alemães e suíços.
566
É necessário que se registre de que forma os escritos de Lutero repercutiram junto à Sé
Romana. Entendo que a mais exemplar resposta romana foi a Bula Exsurge Domine. Este
documento é chamado por Ludwig von Pastor
567
de monitio evangelica, a advertência que
precede a excomunhão, e em seu início já dava o tom que seria empregado por Leão X, com a
interessante imagem do javali da floresta
568
que “procurava destruir a vinha do Senhor”:
Erguei-vos, Senhor, e julgai vossa própria causa. O javali da floresta procura
destruí-la e toda fera selvagem vem devastá-la. Erguei-vos, Pedro, e realizai o
serviço pastoral divinamente confiado a Vós, como dito. Prestai atenção à
causa da santa Igreja Romana, mãe de todas as igrejas e mestra da fé, que Vós
por ordem de Deus santificastes com vosso sangue. Bem que avisastes que
viriam falsos mestres contra a Igreja Romana, para introduzir seitas ruinosas,
atraindo sobre eles rápidas condenações. Suas línguas são de fogo, mal
incansável, cheias de mortal veneno.
569
Leão X seguiu afirmando que as doutrinas ensinadas por Lutero eram erros
condenados e que não tinham apoio escriturístico, sendo dos ensinamentos ainda dito que
“outros erros são ou heréticos, falsos, escandalosos, ou ofensivos ao ouvidos piedosos, assim
como sedutores das mentes simples, originando-se de falsos intérpretes da que em sua
orgulhosa curiosidade almejam a glória do mundo, e contrários ao ensinamento dos
Apóstolos, desejam ser mais sábios do que poderiam ser”.
Seguiu o Papa apelando aos sentimentos alemães de fidelidade à Igreja:
Esses erros, por inspiração humana, tinham sido revividos e recentemente
propagados entre os mais frívolos e ilustres da nação Germânica. Nós nos
566 RANKE, Leopold Von. The History Of The Popes (Their Church And State In The Sixteenth And
Seventeenth Centuries). Whitefish: Kessinger Publishing, 2006, p. 29.
567 VON PASTOR, Ludwig. History of the Popes: from the close of the Middle Ages: Drawn from the Secret
Archives of the Vatican and other original sources. London: Kegan Paul, Trench, Türbner & Co., Paternoster
House, 1900, vol. VII, p. 403.
568 Esta imagem, interessantemente, remete a uma das diversões favoritas do Papa Leão X, que era a caçada ao
javali, e mereceu de Lutero a resposta, em Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja, de que “o Papado é uma
violenta caçada do Bispo Romano”.
569 Reg. Vat.
1160, f. 251r-259v., para todas as demais citações seguintes referentes à Bula Exsurge Domine.
178
afligimos mais ainda que isso tenha acontecido ali porque nós e nossos
predecessores sempre colocamos essa nação no mais alto de nossa afeição.
Depois que o império foi transferido pela Igreja Romana dos Gregos para
esses germânicos, nossos predecessores e nós sempre escolhemos dentre eles
advogados e defensores da Igreja. Realmente, é certo que esses germânicos,
verdadeiros irmãos na católica, foram sempre encarniçados adversários das
heresias, como testemunham aquelas louváveis constituições dos imperadores
germânicos, em defesa da independência da Igreja, da liberdade, da expulsão e
extinção de todos os hereges da Alemanha. Aquelas constituições formalmente
emitidas e depois confirmadas por nossos predecessores, foram escritas sob as
maiores penalidades, até mesmo perda de terras e soberania dos que os
abrigassem ou não os expulsassem. Se elas fossem observadas hoje, nós e eles
estaríamos obviamente livres deste distúrbio.
Após enumerar quarenta e um erros nos ensinamentos de Lutero, foi feita a
condenação das obras do Reformador:
Listando-os, nós decretamos e declaramos que todos os fiéis de ambos os
sexos devem considerá-los como condenados, reprovados e rejeitados. Nós os
proibimos a todos em nome da santa obediência e sob as penas de uma
automática excomunhão.
Ainda mais, por causa dos precedentes erros e de muitos outros contidos nos
livros ou escritos e sermões de Martinho Lutero, nós do mesmo modo
condenamos, reprovamos e rejeitamos completamente os livros e todos os
escritos e sermões do citado Martinho, seja em Latim seja em qualquer outra
língua, que contenham os referidos erros ou qualquer um deles; e desejamos
que sejam considerados totalmente condenados, reprovados e rejeitados.
Proibimos a todos e a qualquer um dos fiéis de ambos os sexos, em nome da
santa obediência e sob as penas acima em que incorrerão automaticamente, de
ler, sustentar, pregar, louvar, imprimir, publicar ou defendê-los. Incorrerão
nessas penas se ousarem apoiá-las de qualquer maneira, pessoalmente ou
através de quem quer que seja, direta ou indiretamente, tácita ou
explicitamente, pública ou ocultamente, seja em suas casas ou em outros
lugares públicos ou privados. Na verdade, imediatamente após a publicação
desta carta, essas obras devem ser procuradas onde possam se encontrar,
cuidadosamente, pelos ordinários e outros (eclesiásticos e regulares), e sob
todas e cada uma das penas acima deverão ser queimadas pública e
solenemente na presença dos clérigos e do povo.
Quanto a Martinho Lutero, especificamente, o tom da Bula é paternal, conclamando-o
a renegar seus pontos de vista, parar com toda e qualquer pregação e ensino e retornar à
comunhão com a Igreja, acenando-lhe (e a seus seguidores e apoiadores) com misericórdia e
clemência pessoal, mas não doutrinária. Amparando-se na condenação dos escritos de Lutero
pelas Universidades de Lovaina e Colônia, o aceno do Pontífice não era pela reconciliação,
mas sim pela rendição. Não acenava com qualquer possibilidade de revisão ou revogação das
práticas denunciadas por Lutero como abusivas e antiescriturísticas, ou mesmo com a
179
convocação de um novo concílio (aqui há que se considerar que o V Concílio de Latrão havia
sido encerrado, como visto, apenas três anos antes).
O apelo aos sentimentos católicos dos alemães pode ser entendido como uma tentativa
do Papa de não deixar que toda aquela coletividade saísse de sua esfera de influência, o que
poderia significar que Leão X já estava ciente da profunda penetração das ideias de Lutero no
seio da sociedade alemã
570
, especialmente nos setores aos quais denominei anteriormente de
“grupos nacionalistas”. De certo modo, era por este grupo que os dois campos lutavam.
Toda essa controvérsia foi resumida a meu ver um pouco superficialmente por
David Whitford, ao apontar que Leão X, em um primeiro momento, rotulou as teses de Lutero
como “o rugido de um monge bêbado”; porém, “onde Leão viu um monge bêbado,
panfleteiros viram ouro. Eles reconheceram que as teses de Lutero haviam tocado em um
nervo exposto”
571
. Em verdade, a importância dada por Leão X à polêmica em torno de
Lutero foi maior do que seria à simples manifestação de um monge bêbado, como se revela na
análise do cuidado na redação da Bula Exsurge Domine e no empenho de mandá-la à
Alemanha por portadores de alto perfil em Roma.
Algumas indagações emergem da análise da redação e publicação desta Bula. No
mesmo dia de sua assinatura, 15 de junho de 1520, os livros de Lutero foram queimados na
Praça Navona, em Roma. Isso, pom, não se constitui em algo de extraordinário. O que
desperta a atenção é a celeridade com que se quis levá-la à Alemanha. Três dias após a
assinatura, Eck partiu para a Alemanha acompanhado de Girolamo Aleander, então secretário
do primo do Papa, Giulio de’ Medici, Vice-Chanceler da Cúria Romana, como informa
Schwiebert
572
. Ainda que pareça uma desforra pessoal de Eck contra Lutero, a designação de
um alto funcionário como Aleander significava igualmente a importância atribuída por Leão
X ao “problema Lutero”.
570 Whitford, entre outros autores, entende que “a volatilidade [no sentido de rápida difusão] e a popularidade
das 95 Teses faziam impossível ignorá-las” (op. cit., p. 182), como uma explicação para a mobilização do
Cardeal Cajetan para a audiência de 1518.
571 WHITFORD, David M.. Op. cit., p. 182.
572 SCHWIEBERT, Ernest G.. Luther and his times The Reformation from a new perspective. New York:
Concordia Publishing, 1950, p. 484. Equivocadamente, Schwiebert refere Giulio de’ Medici como irmão do Papa
Leão X. Na verdade, Giulio di Giuliano de’ Médici era primo do Papa Leão X, sendo, no pontificado deste, uma
das mais importantes pessoas de Roma. Foi eleito para o Papado em novembro de 1523, sucedendo a Adriano VI
e adotando o nome de Clemente VII.
180
Se a escolha dos portadores da Bula papal foi, na visão de muitos autores, um
reconhecimento pelo esforço de Eck na defesa da ortodoxia católica e da relevância dada ao
caso, é inegável, ainda segundo Schwiebert, que a escolha foi um desastre diplomático, visto
Eck ser “extremamente malquisto” pelo povo alemão, por estar sempre ligado ao Debate de
Leipzig. “Muitos alemães influentes, especialmente dentre a nobreza, os cavaleiros e os
burgueses das grandes cidades eram definitivamente antagonistas do rude e ambicioso
professor de Ingolstadt, que estava pronto a vender seus compatriotas alemães em seu próprio
proveito e glória”
573
. Portanto, se o desejo do Papa era a reconciliação ou que se evitasse a
ruptura, a escolha dos portadores da notícia não poderia ser pior para que se atingisse tal
intento
574
.
4.5 Seria inevitável a ruptura?
Ainda que a questão pareça anacrônica, com uma forte contrafactualidade presente, os
elementos analisados parecem apontar, com segurança inequívoca, no sentido de que, em
1520, não seria mais possível qualquer solução de compromisso entre Lutero e Roma, ou, se
se preferir, entre a Alemanha e Roma. De fato, não foi o monge agostiniano, doutor em
Sagrada Escritura e Professor em Wittenberg, quem rompeu com Roma, mas sim a Alemanha,
embora nem toda a Alemanha tenha rompido com Roma.
Os anseios nacionais e nacionalistas que fermentavam na Alemanha que não tinha
ainda o caráter de Estado nacional, é forçoso repetir –, naquele momento, formaram o caldo
de cultura ideal para que os escritos de Martinho Lutero fossem, a um tempo, intérpretes e
motivadores desses mesmos sentimentos e anseios.
Não se pode, a meu ver, atribuir um ânimo de separação quer a Lutero, quer a seu
antagonista direto, o Papa Leão X. Sobretudo a este interessava a manutenção do status quo.
Ainda que Lutero tenha mencionado em seus escritos do segundo semestre de 1520 algum
573 Ibidem.
574 Os despachos posteriores de Aleander e o registro de cronistas atestam que ele foi fortemente hostilizado no
ano seguinte, quando se fez presente na Dieta de Worms (cf. VON PASTOR, Ludwig. History of the Popes: from
the close of the Middle Ages: Drawn from the Secret Archives of the Vatican and other original sources. London:
Kegan Paul, Trench, Türbner & Co., Paternoster House, 1900, vol. VII, p. 404).
181
desejo de romper com Roma, ou, ao menos, de afastar-se da influência do Romano Pontífice,
sua condenação parece ser claramente orientada à forma como se conduziam os negócios da
Igreja naquele ponto, e não necessariamente que o papado, de per se, fosse intrinsecamente
mau. Em verdade, Lutero atacou o que foi feito do papado e da doutrina em suma, o que se
fez da Igreja –, a seu ver corrompidos por usos e abusos humanos, que se desviavam da Bíblia
e, portanto, ameaçavam a salvação das almas. Em escrito de quase duas décadas depois, Sobre
os Concílios e a Igreja, de 1539, Lutero ainda demandava a convocação de um Concílio “da
Igreja inteira para a reforma da própria Igreja”, o que parece indicativo de que havia nele, ao
menos naquele momento, o desejo de manutenção da unidade. O Concílio de Trento,
convocado poucos anos depois, aprofundou a divisão.
Lutero não era um homem com ação manifestamente política àquele momento. Seus
escritos de maior dimensão política foram escritos após sua excomunhão, no ano seguinte,
intensificando-se entre 1523 e 1525. Contudo, as dimensões religiosa e política são
indissociáveis no século XVI, de modo que suas críticas ao papado, quer fossem sobre o
campo espiritual, quer fossem sobre o campo secular, tinham uma enorme implicação política.
Não se tratava de discutir se a venda de indulgências era moral ou não, mas sim se o papa
podia fazer isso. Não se tratava de convocar os alemães a governar a Igreja, mas sim de
afirmar que o papa não podia mais governar como fazia. Enfim, novamente aflorava a questão
da auctoritas e da potestas.
Tratava-se de definir os limites do poder e da autoridade do papa. Observa-se, nos
escritos de Martinho Lutero de 1520, que se reduzia a margem do poder e da autoridade
papais. Da questão o Papa pode isto? passou-se à questão o Papa pode?. A legitimidade do
poder papal, para Lutero, não passava pela legitimidade da eleição, mas sim pela santidade do
exercício do ofício, entendida a santidade como o não se desviar do ordenado pela Bíblia.
Sendo a Bíblia a autoridade maior em matéria de fé e de salvação do ser humano, também ela
deve reger todas as ações humanas, devendo todas as autoridades estar a ela submetidas.
Acerca da questão tantas vezes levantada por historiadores sobre Lutero considerar o
poder secular superior ao religioso, parece que a resposta pode ser traduzida por Lutero não
considerar o poder religioso como um poder em si, mas sim como serviço que deveria,
182
obrigatoriamente, ser posto a serviço da salvação dos homens. Neste sentido, seria anacrônico
que se conferisse poder no sentido de potestas ao líder religioso. Este, pode-se dizer,
exerceria o “poder do não-poder”.
Esta proposição de reconfiguração de poder em nada interessava à Sé Romana. Como
recordam Paolo Prodi e Leopold von Ranke, em obras já citadas ao longo desta Tese, no início
do século XVI o papado tinha atingido o máximo do seu poder terreno. Poder este
conquistado em razão da autoridade espiritual da qual se revestia a figura do papa. Mesmo
Inocêncio III e Inocêncio IV, considerados os papas mais poderosos da História da Igreja, não
tiveram sob sua autoridade tamanha quantidade de terras e soberanos que estiveram sob a
autoridade de Alexandre VI, Júlio II e Leão X.
Se, como foi dito acima, a legitimidade da autoridade pontifical para Lutero advinha
da santidade do exercício do ofício pelo papa, o se pode reduzir a Reforma a uma questão
de viés meramente moralista. Se assim o fosse, certamente ela não teria sido iniciada por um
monge alemão de uma ordem religiosa astica, vivendo em um mosteiro observante. Delio
Cantimori e outros mostram que as condições morais da Igreja na Itália eram muito mais
baixas do que as existentes na Alemanha, de tal sorte que formaria um ambiente mais propício
para que se lançassem as sementes da Reforma. Mesmo os religiosos italianos que
condenaram o papado por suas imoralidades, como Girolamo Savonarola, não tiveram base de
apoio para que, a partir deles, se lançasse a Reforma – nem mesmo uma reforma conseguiram.
A questão era política. Havia, na sociedade alemã, desde o século XV ao menos, o
desejo de conseguir maior autonomia e liberdade face à Romana. Isso explica a imensa
popularidade granjeada por Lutero em tão pouco tempo. Mesmo os que lhe eram indiferentes,
e não gritavam “viva Lutero”, como registrou o Cardeal Girolamo Aleander, gritavam “morte
a Roma”. A adesão a Lutero, em 1520 ocorreu em todos os segmentos da sociedade alemã,
quer nas cidades, quer nos campos, entre nobres, burgueses e camponeses, clérigos e leigos.
Pode ter sido por convicção ou por razões meramente pragmáticas e ticas, simplesmente
porque Lutero simbolizava e encarnava a contestação a toda aquela situação opressiva.
Desta forma, não vejo a Reforma como uma obra pessoal de Lutero, mas sim como
183
resultado de uma articulação e mobilização de todos os estamentos da sociedade alemã,
galvanizada em torno dos ideais de um Estado nacional, de maior liberdade e de uma
sociedade mais justa, os quais viriam se houvesse a ruptura com Roma. Talvez Lutero não
quisesse romper com a Sé Romana, mas seguramente muitos alemães queriam.
Isso, porém, não pode reduzir Lutero ao papel de mero peão manipulado pelos nobres
alemães: ele soube exercer sua liderança e estava, como sujeito histórico, consciente de seu
papel. Veja-se, por exemplo a alusão que ele fez na edição de 1525 da Tessaradeca, ao referir-
se ao “meu movimento”.
Até quando a conciliação teria sido possível? Não existe resposta para esta questão, a
meu ver. Embora Lutero tenha acatado o compromisso de silêncio firmado com Karl Von
Miltitz, as teias de antagonismos estavam tecidas, e seria muito pouco provável,
verdadeiramente impossível, que os adversários de Lutero não se movessem de acordo com
seus interesses pessoais, como fez Johann Eck, não silenciando e indo a Roma demandar a
excomunhão de Lutero. O Papa Leão X não poderia consentir com qualquer das demandas de
Lutero acerca da redução do poder papal. Os nobres alemães e o clero não cogitaram
reconciliar-se com Roma nem mesmo quando o Papa Adriano VI escreveu, em instruções ao
seu núncio Chieregato, enviado à Dieta de Nuremberg, em 1522, que
nós sabemos que durante considerável tempo, muitas coisas abomináveis
encontraram lugar próximo à Santa Sé, abusos em coisas espirituais,
exorbitante manutenção de prerrogativas, tudo voltado para o mal. A doença
espalhou-se da cabeça para os membros, do papa aos prelados, de forma que
todos nos perdemos; nada há que tenha sido feito corretamente; não, nada”.
575
As engrenagens tinham sido postas em movimento e não havia retrocesso possível,
fizesse Roma o que fizesse.
Uma interessante leitura possível sobre a ação de Lutero no ano de 1520 é a feita por
Kantzenbach, ao afirmar que “Lutero punha grandes esperanças no ‘sangue jovem’, como ele
chamava o Imperador. Esperava que este tivesse encontrado o apoio da nobreza para a
575 RANKE, Leopold Von. The History Of The Popes (Their Church And State In The Sixteenth And
Seventeenth Centuries). Whitefish: Kessinger Publishing, 2006, p. 32.
184
reforma do Império”
576
. Não é sabido o quanto Lutero supunha que a reforma desejada e
pretendida poderia ser realizada a partir do Império; ou seja, o quanto a reforma da esfera
religiosa poderia ser feita a partir da esfera secular. Pode-se especular que Lutero entenderia
como possível que a influência de Frederico da Saxônia sobre Carlos V, então com 20 anos de
idade, pudesse ser suficiente para mover o Imperador na direção desejada pelo Reformador,
mas isso não tem como ser comprovado.
Tal intervenção, se viesse a ocorrer, não seria inusitada, pois houve várias intervenções
dos Imperadores do Sacro Império nas ações da Igreja, inclusive, como visto no Capítulo II,
para por fim a um cisma. Faz-se necessário registrar que Carlos V, que defendera o papado
contra Lutero, determinou a invasão e o saque de Roma em 1527, como uma retaliação ao
Papa Clemente VII, que havia apoiado a França na guerra pela Itália (“para preservar a
liberdade de Milão e da Itália”
577
), tendo sido o primeiro soberano moderno a determinar
ataque e sítio à Romana. Poderia ser um apelo aos sentimentos do germânico Carlos de
Habsburgo, que sempre manteve canais de comunicação abertos com a Alemanha, como
registra Braudel: “o diálogo de Carlos V com a Alemanha atravessa todo o seu reinado”
578
.
Por outro lado, pode-se supor que Lutero, imbuído da convicção de que os problemas
que afetavam a Alemanha e a Igreja advinham da ação até então vitoriosa do diabo, esperava
persuadir o Imperador “pela Escritura e pela razão” (de certo modo como se defenderia em
Worms em 1521) de que sua ação poderia reconduzir o Império e a Igreja ao reto caminho.
É sabido que era um constituinte da cultura do Medievo tardio a noção da existência
de uma fraternidade cristã e da pertença a ela. Lutero aprofundou essa questão nos seus
principais escritos de 1520, e usou a Bíblia para reforçar a questão da igualdade entre os que
haviam sido batizados, a partir da primeira epístola de Pedro: “vós, porém, sois raça eleita,
sacerdócio real, nação santa” (I Pd 2:9). Estava feita a convocação aos alemães, a todos sem
distinção, para assumir o papel ao qual tinham sido chamados por Deus.
576 KANTZENBACH, Friedrich W.. Martin Lutero, il riformatore borghese. Turim: San Paolo, 1984, p. 60.
577 MALTBY, William. The Reign of Charles V. New York: Palgrave, 2005, pp. 36 ss. Sobre isso, ver tamm
BRAUDEL, Fernand. Carlos V y Felipe II. Madrid: Alianza, 2000, p. 47.
578 BRAUDEL, Fernand. Carlos V y Felipe II. Madrid: Alianza, 2000, p. 56.
185
Como registra Kolb, data dessa época a construção e a cristalização da imagem de um
Lutero épico, profético, liderando os alemães, “herói do Povo e da Nação contra os Baalitas
de Roma”
579
. Essa imagem foi imortalizada em moedas, medalhas e em material pictórico,
mesmo décadas depois de 1520. Ao Hercules Germanicus visto, poderia ser acrescido o
Martinho Lutero como Jerônimo, de Wolfgang Stuber, de 1587, que se abaixo na gravura
8:
Gravura 8 – Martinho Lutero como Jerônimo, de Wolfgang Stuber (c. 1587)
580
Porém, o espírito de 1520 foi bastante bem traduzido no Lutherus Triumphans, de
1568, que alude a Lutero e a Leão X como se fossem, respectivamente, Moisés e o Faraó,
como se vê na gravura 9, abaixo:
Gravura 9 Lutherus Triumphans, 1568
581
579 KOLB, Robert. Martin Luther as Prophet, Teacher, Hero. Cambridge: Baker Publishing Group, 2000, p. 75.
580 Disponível em http://www.bildindex.de/bilder/gmp2783b.jpg, acessado em 30/01/2009, às 02:21.
581 Disponível em http://www.payer.de/religionskritik/karikaturen17.htm, acessado em 30/01/2009, às 02:40.
186
O que se depreende de ambas as representações acima é a caracterização de Lutero
como líder, indubitavelmente, mas como um líder religioso e não político, ainda que seus
triunfos religiosos tenham sido, igualmente, políticos.
Houve um momento, entre 1517 e 1520, como indagado acima, em que a ruptura
poderia ter sido evitada? Talvez sim, se os protagonistas fossem outros, o que, liminarmente,
invalida a questão. Com os atores existentes, seria possível? Se, após o Debate de Leipzig,
Eck não buscasse em Roma a bênção papal ao custo de demandar a punição a Lutero, o que
garantiria que Lutero não prosseguiria na escalada de reivindicações por mais liberdade, mais
autonomia e, o que, para ele era central, mais santidade?
Conjeturar sobre a contrafactualidade não é função do historiador, pois nos leva à
insolúvel questão sobre o “nariz de Cleópatra”
582
. No livro E se...?, Geoffrey Parker escreveu
um instigante artigo intitulado Martinho Lutero queima na fogueira em 1521, oferecendo
possibilidades alternativas para a Reforma, a Europa e o mundo, como um todo, caso o
Reformador houvesse sido queimado na fogueira em Worms, em 1521. O autor pergunta e ao
mesmo tempo responde: “o que teria acontecido então se Carlos V tivesse tentado queimar
todos esses críticos da Igreja Romana? Mais uma vez, em 1521, provavelmente era tarde
demais para uma perseguição eficaz. Por um lado, as ideias de Lutero haviam se popularizado
a tal ponto que era impossível reprimir”
583
. Como dito no início deste parágrafo, esse
exercício especulativo não é função do historiador. Como definido por Jenkins, “o pedacinho
de mundo que é o objeto (pretendido) da investigação da história é o passado”
584
, vale dizer, é
o fato, ou, como estabelecido classicamente por Ranke, contar os fatos exatamente como se
deram.
Essa profunda e rápida penetração dos ensinamentos de Lutero pode ser explicada por
eles não se limitarem à esfera religiosa, mas terem uma dimensão que penetrou no âmago do
582 A questão parte da especulação formulada por Blaise Pascal: “E se Cleópatra tivesse um nariz feio, que não
atraísse Júlio César e Marco Antonio? A face inteira da terra poderia ter sido alterada”. O tema é explorado no
artigo Não por um nariz, de Josiah Ober, constante no livro E se...? (COWLEY, Robert. Rio de Janeiro:
Campus, 2003).
583 PARKER, Geoffrey. Martinho Lutero queima na fogueira em 1521. In
COWLEY, Robert. E se...?. Rio de
Janeiro: Campus, 2003, p. 116.
584 JENKINS, Keith. A história repensada. S. Paulo: Contexto, 2007, p.23.
187
político, do econômico e do social, ou, resumindo, na dimensão cultural. Faz-se importante o
registro de Antoine Prost que a história social e a história cultural são indissociáveis
585
.
Portanto, a dimensão dos escritos de Martinho Lutero de 1520 somente pode ser
compreendida dentro de uma perspectiva integradora, e não redutora. As imbricações das teias
social, econômica, política e religiosa se entreteciam nesses escritos, de modo que talvez não
importasse mais a dimensão na qual seu autor escrevia, mas sim os efeitos que produzia,
agindo sobre a cultura (aqui percebida dentro da perspectiva gramsciana, que integra na
cultura as dimensões política, econômica e social do homem) de toda uma Nação.
Isto talvez porque as causas para a Reforma não foram, como visto, de uma única
natureza, religiosa, mas sim uma conjunção de fatores. Jean Delumeau, ao explicar as causas
da Reforma, cita as duas principais: a tradicional, focada nos abusos eclesiásticos, e a
marxista, que entendia a Reforma como motivada pela evolução econômica
586
, para concluir
que “é necessário então totalizar as duas grandes explicações dadas para o fenômeno
complexo que foi a Reforma, mas ao mesmo tempo apercebermo-nos de suas
insuficiências”
587
. Sinaliza, portanto, que é necessário que se tenha presente a relação entre
teologia e mentalidade coletiva
588
. E essa mentalidade coletiva parecia dizer “basta!”. Isso,
Lutero captou, entendeu, traduziu e ecoou. Portanto, não havia como reconciliar-se com
Roma a menos que Roma fizesse aquilo que jamais faria naquele momento: reformar-se.
585 PROST, Antoine. Social e cultural indissociavelmente. In RIOUX, Jean-Pierre e SIRINELLI, Jean-François
(dir.). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 123.
586 DELUMEAU, Jean. Un chemin d’Histoire: Chretienté et Chrsitianisme. Paris: Fayard, 1981, pp. 13 ss.
587 Idem, p. 16.
588 A meu ver, não como o historiador que se dedica à História Moderna prescindir desse conceito tão caro
aos medievalistas, que é o da história das mentalidades.
CONCLUSÃO
Lucas Cranach – Lutero (1546)
189
5 CONCLUSÃO
“Esse Reno que, do Lutero sentado diante de sua cerveja,
em Wittenberg, havia feito o Lutero de Worms, que abalou o
mundo inteiro”.
(Lucien Febvre, in FEBVRE, Lucien. O Reno: História,
Mitos e Realidades, p. 236)
Os escritos de Martinho Lutero de 1520 prepararam não apenas os eventos imediatos
da História alemã, como o comparecimento de Lutero diante da Dieta de Worms, em 1521, ou
a radicalização da pregação de Reformadores, como Andreas Karlstadt e Thomas Müntzer,
desaguando na Guerra dos Camponeses de 1524-1525. Definiram acontecimentos como as
duas Dietas de Spira e a Dieta de Augsburgo, de 1530, na qual se formulou a Confessio
Augustana, a Confissão de Augsburgo; e, por fim, balizaram a guerra e a paz religiosa no
século XVI.
Penso não ser exagerado afirmar que esses escritos, sobretudo os três principais
tratados, constituem o “programa da Reforma”, na expressão feliz encontrada pelos
organizadores da coleção das Obras Selecionadas de Martinho Lutero, ao determinar o
subtítulo para o segundo volume. Assumir isso não diminui os escritos anteriores ou
posteriores, mas entendo que possibilita que se entendam os escritos anteriores (incluindo
suas lições bíblicas, quando professor em Wittenberg) como preparatórios para o
amadurecimento de seu pensamento teológico, e os posteriores como decorrentes das
importantes reflexões expostas nos escritos de 1520. Como salienta Walter Goetz
estas obras [os escritos de 1520] contêm o programa da reforma que havia
nascido com todo o assunto de Lutero. Esta reforma não tem com a antiga
nada em comum, senão o nome. Não se trata de uma renovação da Igreja,
como pensaram-na os distintos intentos de reforma na Idade Média. Trata-se
de uma nova ordem da Igreja e do mundo, do espiritual e do terreno, como
consequência da nova fé pregada por Lutero.
589
Entender a teia na qual esses escritos se enredam possibilita compreender a Reforma
não como uma obra pessoal de um único homem, mas sim como resultante de uma rede de
interesses e pressões, na qual Lutero aparecia como expoente. Lutero revelou-se, em suas
movimentações, um hábil articulador político e social. A repercussão de suas palavras em
todos os segmentos da sociedade alemã pode ser devida à quase devoção que ele tinha pela
pregação. Não apenas a pregação do Evangelho, mas igualmente a pregação de seus
ensinamentos. Assim, de todos os seus textos emerge um traço destinado à sua pregação
589 GOETZ, Walter (org.). Historia Universal vol. 5 La época de la revolución religiosa, la Reforma y la
Contrarreforma (1500-1660). Madrid: Espasa-Calpe, 1950, p. 79.
190
pública, em alta voz, como recorda Kantzenbach
590
.
Essa preocupação catequética de Lutero materializou-se na formulação do primeiro
Catecismo cristão, o Catecismo Menor, escrito também em 1520 e sistematizado em 1529.
Essa originalidade é reconhecida até mesmo por Joseph Ratzinger, que afirma que “o gênero
literário ‘catecismo’ é um filho da Reforma”
591
. Isso fez com que os seus ensinamentos
pudessem ser multiplicados de forma bastante rápida, penetrando em todos os estratos sociais
da Alemanha que, em 1520, quando a Reforma enfrentava e vencia sua primeira
importante afirmação, ainda estavam se reordenando. Como recorda o mesmo Kantzenbach,
“já em 1520 a mensagem da Reforma tinha influenciado todos os grupos sociais e políticos
então existentes”
592
.
Se houve tal penetração e influência é porque os escritos de Lutero iam ao encontro
das aspirações daqueles que formavam a Nação Alemã. Estas pareciam apontar para o
inequívoco desejo de ruptura com Roma, aspirações das quais Lutero foi a um tempo
inspirador e intérprete. Caem, portanto, as alegações de que a Reforma foi obra exclusiva e
pessoal de Lutero, ainda que não se possa pensar na Reforma sem a ação pessoal deste.
Isoladamente, nenhum dos atores sociais, políticos, econômicos e religiosos teve a dimensão
de Lutero. Como lembra Delumeau:
Muitos fatores encorajaram, no século dezesseis, o nascimento e o sucesso do
movimento religioso da Reforma: o descrédito crescente do papado, uma
visão pessimista do homem, própria daquela época pecador, impenitente, o
homem é ameaçado pelas penas eternas , e, enfim, a própria personalidade
de Lutero, cuja palavra calorosa e eloquência souberam convencer e assegurar
numerosos fiéis.
593
Tarr e Randell afirmam que “o balanço das evidências sugere que a heresia não era tão
disseminada no tempo em que Lutero fez seu protesto. Entretanto, existe abundância de outra
evidência de que o anticlericalismo era mais prevalente”
594
. Esse anticlericalismo era
direcionado primeiramente aos párocos do que aos hierarcas da Igreja, segundo esses mesmos
autores
595
, em razão do contato direto dos párocos com o povo, atingindo também os bispos e
o próprio Papa.
590 KANTZENBACH, Friedrich W.. Martin Lutero, il riformatore borghese. Turim: San Paolo, 1984, p. 30.
591 RATZINGER, Joseph. Dogma e anúncio. S. Paulo: Loyola, 2007, p. 62.
592 KANTZENBACH, Friedrich W.. Idem, p. 64.
593 DELUMEAU, Jean. Une histoire du monde aux temps modernes. Paris: Larousse, 2005, p. 69.
594 TARR, Russell e RANDELL, Keith. Luther and the German Reformation 1517-55. Londres: Hodder
Education, 2008, p. 53.
595 Op. cit., pp. 54-56.
191
De fato, àquela mesma época, o holandês Desiderio Erasmo, o inglês Thomas More e
o francês Lefèvre d’Etaples, assim como muitos outros humanistas leigos, tentaram reformar
a Igreja, embora de forma bastante menos contundente que Lutero. Pode-se indagar se a
Reforma não floresceu com estes por causas pessoais ou porque lhes faltou o substrato social,
o caldo de cultura que permitisse que suas ideias atingissem o corpo social e produzissem o
efeito impulsionador de uma reforma efetiva. Como registra Sonia Patuzzi,
com a eclosão das 95 teses de Lutero contra as indulgências, passava-se das
esperanças de renovação filosófica e moral à disputa teológica. A negação do
primado romano, do valor sacramental do sacerdócio e do monaquismo
sustentada por Lutero dissolvia as esperanças de uma reforma moral e
intelectual do clero pelas letras ou pela via dos concílios. De Antuérpia, em
carta dirigida ao cardeal Wosley, o próprio Erasmo acreditava perceber nos
países do norte um surdo rumor de tormenta: ‘Nesta parte do mundo, como
que uma grande revolução ameaça, a menos que o favor do céu, a piedade ou a
sabedoria dos nossos príncipes não provenham em favor dos homens’.
596
Um dos desdobramentos da Reforma foi a radicalização do ideal pregado por Lutero.
John Gray observa que “no início do século XVI, a Reforma que alijou a Igreja católica em
certas partes da Europa gerava seitas mais radicais que qualquer coisa imaginada por Lutero,
cuja teologia pregava a obediência ao moderno estado que surgia”
597
. Como salientam
Hervieu-Léger e Willaime, “no mundo do século XVI, as imbricações entre o religioso e o
político eram de tal modo fortes que as revoluções sociais e políticas deviam essencialmente
se expressar sob a forma de ‘heresias teológicas’”
598
.
Jean Delumeau registra, a esse respeito, a impressão de Hubert Jedin sobre a situação
religiosa na Alemanha no início do século XVI:
“Não resta nenhuma dúvida de que se reforma a Igreja na Alemanha mais do
que em qualquer outro lugar. Se os acontecimentos tomarem um outro rumo, a
razão não é devida a que o ministério pastoral foi mais negligente, o clero
mais maldoso, o povo mais ignorante e menos piedoso que em outros países.
Pelo contrário: é que os leigos, a burguesia das cidades e a classe ascendente
dos intelectuais apresentam a seus padres exigências maiores, que eles sentem
mais vivamente entre eles a distância entre o ideal e a realidade e sobretudo
que eles estavam decididos a corrigir radicalmente todos os abusos, fossem
imaginados ou reais”
599
.
596 PATUZZI, Sonia. Humanistas, Príncipes e Refornadores no Renascimento. In CAVALCANTI, Berenice et
al. (orgs.). Modernas Tradições: Percursos da Cultura Ocidental Séculos XV-XVII. Rio de Janeiro: Access, 2002,
p. 146.
597 GRAY, John. Missa negra. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 27.
598 HERVIEU-LEGER, Danièle e WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia e religião. Aparecida: Idéias & Letras,
2009, p. 37.
599 DELUMEAU, Jean. Le Catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1971, p. 66.
192
Qual o sentido da Reforma para o povo, para o “homem simples”? Como os “homens
médios” leram Lutero? Sonia Patuzzi destaca que “para a maioria dos fiéis, a ânsia de uma
reforma religiosa correspondia a novas e concretas exigências sociais e morais: uma maior
assistência espiritual na vida cotidiana, a liberação de impostos percebidos como anacrônicos
ou ilegítimos, uma participação mais ativa na vida da Igreja”
600
, a qual foi traduzida por
Febvre como “a Bíblia em língua vulgar e a justificação pela fé”
601
. Para quem desejasse isso,
os escritos de Lutero, sobretudo os de 1520, correspondiam a uma resposta divina aos seus
anseios. Agnes Heller afirma que “a sociedade humana tem a propriedade essencial de que o
caráter público das ações influi nas próprias ações. O comportamento global dos homens
transforma-se quando eles estão colocados diante do público, diante de seus olhos e de seu
julgamento”
602
. Desta forma, pode-se entender a pública adesão à pregação de Lutero também
como um efeito de massa, como uma necessidade de assumir uma postura que era desejada e,
naquele momento, legitimada pela autoridade emanada da Escritura.
A declaração luterana de que todos os cristãos eram sacerdotes tornava ipso facto
destituídos de fundamentação de direito divino os impostos devidos ao clero, assim como
foram declaradas blasfemas as interpretações eclesiásticas das Escrituras. Estava o povo, o
homem simples, livre do que se poderia chamar de “tirania do clero”. Jean-Pierre Massaut
entende que a proclamação de Lutero acerca do “sacerdócio universal dos fiéis” foi
fundamental para uma ressignificação da religião e, sobretudo, da religiosidade, sendo um
traço distintivo da teologia da Reforma
603
.
Assim, pois, a ruptura formalizada em 1521, com a excomunhão de Lutero, deve ser
vista dentro de um contexto nacional alemão, que fez com que as peculiaridades daquela
Nação – Nação que existia de facto, mas sem formar um Estado – fossem decisivas para que a
Reforma fosse posta em marcha. O conciliarismo característico do medievo tardio influenciou
Lutero de forma categórica, do que dão testemunho seus inúmeros apelos para a convocação
de um novo concílio. Os Estados alemães requereram, na Dieta de Nuremberg, em 1522, a
600 PATUZZI, Sonia. Humanistas, Príncipes e Refornadores no Renascimento. In CAVALCANTI, Berenice et
al. (orgs.). Modernas Tradições: Percursos da Cultura Ocidental Séculos XV-XVII. Rio de Janeiro: Access, 2002,
p. 151.
601 FEBVRE, Lucien. Le origini della Riforma in Francia e il problema delle cause della Riforma. Roma:
Einaudi, 1982, p. 47.
602 HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. S. Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 119.
603 Cf. MASSAUT, Jean-Pierre. Erasmo e Lutero: Liberdade ou servidão do ser humano. In
CORBIN, Alain.
História do Cristianismo. S. Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 276 ss.
193
convocação de um concílio, a se realizar em terras alemãs, para resolver todas as questões
religiosas pendentes, o que foi negado pelo Papa Adriano VI.
Faz-se necessário o registro de Marc Venard, ao comentar os preparativos para o
Concílio de Trento (1545-1563), sobre o encontro em Ratisbona, em 1541, entre teólogos
luteranos e católicos (Bucer e Melanchton pelo lado luterano; Contarini e Gropper, pelo lado
católico), que
teriam chegado, então, bastante próximos da reconciliação, o que tornaria, se
não inútil, pelo menos notavelmente diferente o projeto do concílio. Na
realidade, Lutero de um lado e Roma do outro não tardaram em desautorizar
seus porta-vozes. Cada lado já tinha tomado sua própria decisão pela
divisão
.
604
Tal decisão, aparentemente, fora tomada em 1520.
Faz-se oportuno citar José Antonio Maravall, sobre as consequências da Reforma na e
para a Alemanha:
É certo que a Reforma, se se atém a uma religiosidade de tipo medieval, como
sustenta Troeltsch, acentuou, nada obstante, o processo de nacionalização na
Alemanha, superando neste aspecto o mundo da Idade Média. Se Lutero
começa pensando em uma Igreja universal invisível, a pressão das
circunstâncias históricas o reduz a limites alemães, e seu pacto com o poder
dos príncipes na ocasião da guerra dos camponeses, ao converter-lhe em
adulator principium, faz dele, mais marcadamente ainda, um fator que opera a
favor da nacionalidade, politicamente afirmada em um poder estatal
605
.
O mesmo Maravall reconhece que Carlos V falhou em tentar encarnar a consciência
alemã, como um modo de restabelecer a unidade religiosa à Alemanha, talvez por
desconhecer os meandros das coisas desse país. Desta forma, Carlos V contrapôs a essa
modernidade nacionalista um modelo calcado em uma concepção medieval de Império. Esse
autor reconhece que da ação de Carlos V resultou que
Carlos conseguiu que o importante em Lutero, o decisivo em sua atitude para
o momento, foram não suas novidades dogmáticas, (...) nem mesmo suas
reformas disciplinares, que o próprio Lutero teve que emendar em um sentido
cada vez mais autoritário, mas sim o que havia nele de espírito alemão,
nacional
.
606
604 VENARD, Marc. O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In ALBERIGO, Giuseppe (org.). História dos
Concílios Ecumênicos. S. Paulo: Paulus, 1995, p. 331.
605 MARAVALL, José Antonio. Carlos V y el pensamiento político del Renacimiento. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1999, p. 98.
606 Ibidem.
194
A plenitude da vinculação feita por Lutero entre teologia e a dimensão sócio-político-
econômica parece emergir somente em 1539, quase duas décadas após a redação dos
documentos ora analisados, quando foi redigido Sobre os Concílios e a Igreja, que contém 27
pontos, diretrizes para o funcionamento da Igreja e, ao mesmo tempo, ordenações para a vida
social, econômica e política. Permito-me compartilhar a opinião de Hagen Schulze, de que a
Reforma não constituiu “apenas transformações seculares que afetaram a fé, a Igreja e a
sociedade; elas foram também elementos decisivos na formação dos Estados europeus”
607
.
Lutero não foi alguém preocupado primariamente com as questões seculares. Sua
visão de mundo era a da luta do bem contra o mal, de Deus contra o diabo. O caos era o sinal
da vitória do diabo, que somente conseguia triunfar porque os homens haviam se afastado da
Escritura Sagrada e deixado de viver buscando a santidade, obtida através da justificação pela
fé, concedida por graça de Deus. Ao demandar reformas na Igreja, visando à santificação do
homem, ele entendia estar fazendo a obra de Deus, sendo o seu ensinamento, como definiu
posteriormente, o próprio ensinamento de Cristo, de modo que quem lhe resistisse era a Cristo
que resistia. Nas palavras de Steven Ozment,
os protestantes promoveram uma certeza de salvação e preocupação secular
desconhecidas tanto do homem bíblico quanto do medieval. A Reforma foi
muito mais do que um retorno à religião bíblica, e se teria que usar óculos
confessionais excepcionalmente grossos para achar ‘Cristandade Paulina’
como uma caracterização satisfatória dela. Tampouco foi uma manutenção da
religião medieval; somente o leitor mais seletivo irá concluir que a Reforma
foi mais medieval do que moderna
608
.
Contudo, o impulso original da Reforma inicial não foi no sentido de construir
teocracias ou de formular um corpo de leis religiosas. A Reforma não iniciou por regular e
santificar a sociedade tanto quanto fazer “as instituições sacras pertencerem à sociedade e
tornar sociais as doutrinas religiosas”
609
. Julgo importante fazer esse registro em face de um
expressivo número de acadêmicos pensar a Reforma a partir da definição weberiana do
Protestantismo como uma pesada e sinceramente forçada regulamentação de toda a vida
610
.
Há que se entender que o Protestantismo ao qual Weber se refere é essencialmente o de matriz
calvinista, bastante diverso daquele do luteranismo, particularmente o do início da Reforma.
607 SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Presença, 1997, p. 56.
608 OZMENT, Steven E.. Reformation in the cities. New York: Yale University Press, 2004, p. 119.
609 Ibidem.
610 Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. S. Paulo: Companhia das Letras, 2004,
pp. 98-128.
195
Há que se concordar com Jimmy Cabral no sentido de que a sola Scriptura da doutrina
luterana – e matricial da Reforma – é uma confissão sacramental, na qual “se revela a alma de
toda a teologia cristã”
611
. Na hermenêutica inaugurada pela Reforma, os sentidos literal e o
espiritual se confundem, com o segundo se sobrepondo ao primeiro, revelando o sentido
místico do texto. A Escritura era a detentora da maior autoridade e a reveladora de toda a
verdade. Esta era a verdade pela qual, desde o início, Lutero batia-se. Pode-se, quanto a isso,
ecoar Michel de Certeau e dizer que “uma verdade surge menos como aquilo que um grupo
defende e mais como aquilo pelo que ele se defende”
612
.
Ainda citando Jimmy Cabral,
a nova consciência histórica da modernidade vai demonstrar a perecividade e
historicidade das coisas humanas. A Bíblia, como produto desse espírito
humano, é, agora [século XVI], entendida e lida como história dos homens no
tempo, passível, no entanto, de ser inquirida pela razão de um homem
emancipado das tradições.
613
Quanto à claritas Scripturæ, é oportuno citar Wayne A. Meeks, que, se lhe opondo,
afirma que tal doutrina
tinha os seus perigos, como viram rapidamente os Reformadores. Tanto Lutero
quanto Calvino estavam bastante impacientes com aqueles profetas
desregrados que pululavam em torno deles afirmando encontrar por meio do
espírito todo tipo de novidade nas Escrituras e produzindo todo tipo de
desordem pelas suas pregações.
614
Este autor salienta que a perspecuitas da Escritura não a fazia tão autoevidente assim
pois se não os Reformadores – Lutero especialmente – não teriam escrito tantos comentários à
Sagrada Escritura.
De qualquer modo, foi apoiado na claritas Scripturæ e na autoridade soberana
residente na Escritura que Lutero escreveu seus tratados de 1520, tratados que cristalizaram a
ruptura com Roma e que começaram a delinear um novo painel no cenário religioso, social,
611 CABRAL, Jimmy Sudário. Bíblia e teologia política. Rio de Janeiro: Mauad, 2009, p. 101.
612 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 68.
613 CABRAL, Jimmy Sudário. Op. cit., p. 105.
614 MEEKS, Wayne A.. Cristo é a questão. S. Paulo: Paulus, 2007, p. 88.
196
político e teológico não apenas na Europa, mas no mundo. Aproprio-me das palavras de Carlo
Ginzburg, para expressar a montagem deste painel:
Poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios de um
tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-se numa trama densa e
homogênea. A coerência do desenho é verificável percorrendo o tapete com os
olhos em várias direções. (...) O tapete é o paradigma que chamamos a cada
vez, conforme os contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou
semiótico.
615
De 1520, pode-se dizer, segundo o ponto do qual se olhe o painel, que a intenção
maior de Lutero seria reformar a Igreja para salvá-la de si mesma. Nas palavras de Jesse
Hurlbut, o emblemático gesto de queimar a Bula papal constituiu a renúncia de Lutero à
igreja católica romana”
616
; uma Igreja à qual Lutero referiu-se com as seguintes palavras:
“Sempre que eu ouvia o nome da Igreja, eu tremia e pensava em ceder”
617
. Isso, antes de
1520.
615 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. S. Paulo: Cia. Das Letras, 1989, p. 170.
616 HURLBUT, Jesse Lyman. História da Igreja Cristã. S. Paulo: Vida, 2007, p. 181.
617 MICHELET, Jules. Martin Luther. In Revue Des Deux Mondes, Paris, T. 5, 1832.
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Bula Exsurge Domine (1520)
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As fontes supramencionadas encontram-se depositadas no Archivio Segreto Vaticano, na
Cidade do Vaticano.
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