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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIRA (UVA)
CURSO DE MESTRADO EM
PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE
Crueldade, barbárie e trauma:
um estudo sobre a guerra
Ana Augusta Brito Jaques
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Ana Augusta Brito Jaques
Crueldade, barbárie e trauma:
um estudo sobre a guerra
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida (RJ), como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Estudos Psicanaticos.
Linha de Pesquisa: Subjetividade nas Práticas das Ciências
da Saúde.
Orientadora: Professora Dra. Betty Bernardo Fuks.
Rio de Janeiro
2009.
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Ficha catalográfica preparada para o Serviço de Biblioteca da Universidade Veiga de
Almeida (UVA)
JAQUES, Ana Augusta Brito.
A colônia negra psicanálise tal tal. UVA: Rio de Janeiro, 2009, ____ p.
Dissertação (Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade). Universidade Veiga de Almeida
(UVA). Departamento de Psicologia. Pós-graduação em Psicologia. Área de Concentração em
Estudos Psicanalíticos. Linha de Pesquisa: Investigações Clínicas em Psicanálise. Orientadora:
Betty Bernardo Fuks.
1. Psicanálise 2. Crueldade 3. Pulsão de Morte 4. Barbárie 5. Trauma 6. Haiti. I. Título.
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Ana Augusta Brito Jaques
Crueldade, barbárie e trauma:
um estudo sobre a guerra
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicanálise,
Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ), como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: Estudos Psicanalíticos.
Linha de Pesquisa: Subjetividade nas práticas das Ciências da
Saúde.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Professora Dra. Betty Bernardo Fuks Universidade Veiga de Almeida (UVA)
_______________________________________________________________________
Professora Dra. Maria Anita Carneiro Ribeiro Universidade Veiga de Almeida (UVA)
_______________________________________________________________________
Professor Dr. Marco Antônio Coutinho Jorge Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ)
Data de aprovação: ____/____/______
5
Para Fábio, Lucas e Enzo, meus amores,
por constituírem o que de mais caro há na minha vida.
6
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Sarita Schafel, pelo apoio no início desse percurso.
À Professora Doutora Maria Anita Carneiro Ribeiro por todos os incentivos e pelo
olhar carinhoso que dirige a mim, meu respeito e admiração incondicionais.
Ao Professor Doutor Marco Antônio Coutinho Jorge, pela generosidade e atenção em
participar da minha defesa de mestrado.
Às Professoras Doutoras suplentes da banca de avaliação, Vera Polo e Marilink
Kuppferberg, pela atenção dispensada ao meu trabalho.
Ás Professoras Doutoras Vera Polo, Glória Sadala e nia Borges, pela confiança
transmitida e pela escuta atenciosa.
A todos os professores deste curso, pelos ensinamentos preciosos que eu pude obter.
Aos amigos queridos Patrícia, Simone, Laércio, Adriana e Luiz, pelas horas que
convivemos juntos e pelo laço que estabelecemos.
Aos queridos “ZéMartins, Giana Marques, Adeliz Siqueira e Vinícius, pela ajuda na
composição das peças desta dissertação.
À Elaine, secretária do mestrado, por ser “lindinha” sempre.
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AGRADECIMENTO ESPECIAL
À Betty Fuks, para além” de orientadora, por ter acreditado na minha questão e pelos
ensinamentos transmitidos. A fartura de seu conhecimento é motivo de admiração. A
generosidade é uma palavra que te adjetiva. Obrigada por ter me permitido segurar na sua
o ao longo do percurso. Obrigada por ter me ajudado a realizar um sonho de vinte anos.
Sem você, eu não teria conseguido. Meu respeito e lealdade eternos.
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RESUMO:
Sob o impacto dos relatos de militares do Exército Brasileiro que comem a Missão
das Nações Unidas para a Estabilização da Paz no Haiti (MINUSTAH), e de minha própria
experiência no Timor Leste, acometeu-nos um sentimento de perplexidade quanto à barbárie
praticada nas guerras contemporâneas. Na literatura psicanalítica, em geral, a abordagem da
crueldade esbarra no obscurantismo que a qualifica. O termo aparece pela primeira vez na
obra inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos (1900), a partir da qual Freud passa
a demonstrar que a crueldade é uma prerrogativa constitucional do sujeito. Encontramos na
guerra o terreno mais fértil para a expressão máxima da crueldade, cujas ações humanas
atestam quão cruel pode ser o homem, na medida em mata, humilha, toma o outro como
objeto de gozo, ou seja, goza do sofrimento alheio. Nesse contexto, Freud denuncia a
impossibilidade de erradicação das pulsões de crueldade, de poder e soberania todas
derivações da irredutível pulsão de morte. No estado de guerra, a quebra dos imperativos de
lei resulta na banalização da violência dirigida ao outro e da morte, o que afeta diretamente o
limite das ações que sustentam ou destroem o laço entre os povos. Nesse cerio tão adverso,
a experiência traumática inunda o aparelho psíquico, num excesso pulsional inassimilável e
deixa o sujeito submergido no trauma, na neurose, sem condições de simbolização, refém da
repetição compulsiva do acontecimento danoso. Diante da angústia devastadora do psiquismo,
a análise dos sujeitos neurotizados pela guerra é uma necessidade urgente. Nesse sentido, a
psicanálise oferece uma escuta diferenciada por ser balizada pela ética do sujeito do
inconsciente.
PALAVRAS-CHAVE: Pulsão de morte. Pulsão de vida. Crueldade. Neurose de guerra.
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ABSTRACT:
Due to the impact of narratives of soldiers who take part in the United Nations
Stabilization Mission in Haiti (MINUSTAH), and because of my own experience in East
Timor, I had a feeling of perplexity in relation to the barbarities of contemporary wars. In the
psychoanalytic literature, in general, the approach to cruelty borders the obscurity that
qualifies it. Cruelty was defined for the first time in the book The Interpretation of Dreams
(1900), in which Freud demonstrates that cruelty is a condition of the constitution of the
subject. The ultimate expression of cruelty lies in war, in which the human actions prove how
cruel man can be since man kills, humiliates and makes the other an object of pleasure, or has
pleasure with the suffering of the other. In this context, Freud denounces the impossibility to
eradicate the cruelty, power and sovereignty impulses which are all a derivation of the
irreducible death impulse. In a state of war, the breaking of law results in the trivialization of
death and violence towards the other, and this affects the limits of actions that strengthen or
destroy bonds among peoples. In such a scenery, the traumatic experience invades the psyche
letting the subject drawn into trauma, neurosis, with no conditions of symbolization; the
subject, then, becomes a hostage of the compulsive repetition of a negative happening.
Because of the devastating anguish of the psyche, it urges to analyse the subjects the war
neurotized. This way, psychoanalysis provides a different opportynity to hear them due to the
presence of the ethics of the subject of the unconciousness.
KEYWORDS: Death drive. Sexual drive. Cruelty. War neurosis.
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RÉSUMÉ:
L‟impact des récits de militaires de l‟Armée de Terre Brésilienne intégrant la Mission
des Nations Unies pour la Stabilisation de la Paix en Haïti (MINUSTAH) et mon expérience
personnelle au Timor-Leste m‟ont soule un sentiment de perplexité face à la barbarie
présente dans les guerres de nos jours. En général, dans la littérature psychanalytique,
l‟approche de la cruauté trouve sa barrière dans l‟obscurantisme qui la qualifie. Ce therme a
été emplo pour la prémière fois lors de l‟apparution de l‟oeuvre inaugurale de la
psychanalyse, L’interprétation des rêves (1900), dans laquelle Freud a démontré que la
cruauté est une prérogative constitutionnelle de l‟individu. La guerre constitue un terrain
fertile pour l‟expression maximale de la cruauté, dont les actions humaines font preuve de
l‟intensité de la cruauté de l‟homme, dans la mesure où il tue, où il est capable d‟humilier
l‟autre, où il fait de l‟autre son objet de juissance, c‟est-à-dire, il jouit de la souffrance de
l‟autrui. Dans ce contexte, Freud dénonce l‟impossibilid‟éradication de pulsion de cruauté,
de pouvoir et de souveraineté celles-ci sont toutes des dérivations de l‟irréductible pulsion
de mort. Dans un temps de guerre, la chutte des impératifs de loi aboutit à la banalisation de la
violence auprès de l‟autre et de la mort, cela trouble directement la limite des actions qui
soutiennent ou truisent les liens entre les peuples. Dans cette ambience adverse,
l‟expérience traumatique prend sa place dans l‟appareil psychique par un excès pulsionnel
inassimilable qui rend le sujet plongé dans le trauma, dans la nevrose, sans aucune condition
de simbolisation, ôtage de la répétition compulsive de l‟événement dommageable. Face à
l‟angoisse dévastatrice du psychisme, l‟analyse des sujets rendus neurotiques par la guerre est
un besoin d‟urgence. Dans ce sens, la psychanalyse offre une autre écoute, vu qu‟elle est
centrée par l‟éthique du sujet de l‟inconscient.
MOTS-CLÉS: Pulsion de décès. Pulsion de vie. Cruauté. Névrose de guerre.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 14
CAPÍTULO I ............................................................................................................. 20
1.1 A colônia negra ...................................................................................................................... 20
1.1 Vida e morte no porão ........................................................................................................... 21
1.2 A razão da ilha ....................................................................................................................... 22
1.3 A vida na colônia ................................................................................................................... 23
1.4 O tiro que saiu pela culatra .................................................................................................. 24
1.5 A ascensão de Toussaint L’ouverture .................................................................................. 24
1.6 A abolição dos escravos ......................................................................................................... 26
1.7 O Brasil no Haiti .................................................................................................................... 29
CAPÍTULO II O silêncio ensurdecedor da pulsão de morte.............................. 30
2.1 Civilização e barbárie ............................................................................................................ 30
2.2 O conceito de pulsão ............................................................................................................... 40
2.3 Contribuições de Lacan à teoria das pulsões ....................................................................... 61
2.4 O conceito de trauma ............................................................................................................. 66
2.5 Rastreamento da formulação freudiana da crueldade ....................................................... 74
2.6 Da crueldade desde sempre .................................................................................................. 89
CAPÍTULO III .......................................................................................................... 98
3.1 Neuroses de guerra ................................................................................................................ 98
3.2 Considerações sobre o atendimento clínico aos neuróticos de guerra ............................ 109
CAPÍTULO IV ........................................................................................................ 121
4.1 À título de conclusão ........................................................................................................... 121
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 125
PRODUTO ............................................................................................................... 129
12
"Como você e eu, os responsáveis por Auschwitz tinham narinas, uma boca, uma voz,
uma razão humana; eles podiam se casar, ter filhos; como as Pirâmides ou a Acrópole,
Auschwitz é o feito, é o signo do homem"
(George Battaille).
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LISTA DE ABREVIATURAS
EB Exército Brasileiro
CEP Centro de Estudos de Pessoal
FMP Força Militar de Paz
MINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
OEA Organização dos Estados Americanos
ONU Organização das Nações Unidas
14
INTRODUÇÃO
Pensar na crueldade humana nos remete, forçosamente, ao fato de que ela protagoniza
a história da humanidade. Desde sempre o homem desenvolveu um sem número de guerras e
conflitos com o propósito de atingir suas metas. A crueldade se apresenta como um conceito
de difícil entendimento nos seus matizes mais profundos, notadamente quanto ao requinte que
a adjetiva. Trata-se de um conceito ligado à face destrutiva da pulsão de morte. Nesse sentido
o outra disciplina que esteja mais bem qualificada para o estudo da crueldade, senão a
psicanálise.
O interesse pelo tema desta dissertação nasceu do trabalho que desenvolvo no Exército
Brasileiro doze anos, dez dos quais ligados ao envio de tropas para missões das Nações
Unidas. Como psiloga e oficial de carreira do Exército, coordenei e realizei atividades de
seleção psicológica dos militares voluntários para as missões de paz no Timor-Leste e no
Haiti. Esse trabalho é gerenciado por um projeto denominado Força Militar de Paz, composto
por vinte profissionais de psicologia. A primeira etapa de trabalho é composta pela seleção
psicológica dos militares, mediante a realização de testes psicológicos, dimicas de grupo e
entrevistas individuais. Após a seleção psicológica, os militares escolhidos o preparados
psicologicamente para um período de seis meses no Teatro de Operações. A preparação
psicológica vale-se de informações sobre a cultura local, hábitos do povo, filmes, além de
reuniões grupais em que as idealizações dos militares são colhidas e discutidas em grupo. Foi
precisamente nessa etapa de preparação psicológica que começaram a surgir indagações sobre
a forma como o trabalho de psicologia estava sendo desenvolvido, porque, como psicanalista,
eu sabia que não há “receitas de bolopara quem vai para a guerra. As atitudes dos sujeitos
diante do inesperado podem ser tão imprevisíveis quanto às da própria guerra. Então, como
prepará-los para o inesperado? A possibilidade de matar e morrer são variáveis possíveis de
acontecer na batalha, de modo que me pareceu iluria qualquer tentativa de preparação para
lidar com a morte do outro ou de si mesmo naqueles moldes existenciais e cognitivo-
comportamentais. Existe algo que escapa e que não é dito, que é silenciado ou mesclado nos
ideais camuflados de patriotismo.
Existem também outros motivos de ordem econômica e pessoal no voluntariado para
as missões da ONU. A começar pelo pagamento feito em lar que aumenta a possibilidade
de aquisição de bens materiais permanentes após o retorno para o Brasil. A medalha no peito
15
fator diferenciador dentre os demais que o a possuem E a pontuação na carreira fator
acelerador de promoções por merecimento são também motivos pelos quais se voluntaria
grande parte do contingente. Não que a nobreza do patriotismo esteja ausente; ela parece ser
secundarizada por necessidades pessoais. Vale ressaltar que a guerra é num país o afeto ao
Brasil. Ou seja, uma guerra que não nos pertence.
Em geral o trabalho do psilogo inclui, além das fases de seleção e preparação
psicológica, as fases de acompanhamento no local da missão e a desmobilização psicológica
dos militares quando do egresso da tropa. Nessa última fase, todos são ouvidos em grupos
dentro dos rculos hierárquicos e individualmente. Trata-se de um momento extremamente
rico e sensível, sendo notória a possibilidade de alívio da angústia que o falar oferece. Alguns
militares mais comprometidos emocionalmente são encaminhados para psicoterapia
individual.
Em 2003, tive a oportunidade de ir ao Timor-Leste, a fim de observar os militares em
ação, além de escutá-los um a um, totalizando noventa atendimentos individuais. A partir
dessas entrevistas brotaram mudanças no trabalho desenvolvido pelo projeto Força Militar de
Paz. A principal constatação foi a necessidade de uma escuta diferenciada em todas as fases
do processo, antes, durante e após o final da missão. No Timor-Leste, país violentamente
atacado pela Indonésia, cujo conflito dizimou mais de 250 mil timorenses, de-se observar o
clima de tensão e a possibilidade de rebelião cotidiana. Esses fatores geravam muito estresse
na tropa e dificultavam o relacionamento intragrupal. No Timor há muita fome e miséria, cujo
sofrimento se verifica nos corpos magros, nos dentes cor de abóbora derivada do costume
de mascar uma planta nativa que anestesia o estômago e elimina a sensação de fome. O olhar
do povo timorense revela desesperança, tristeza, desamparo e medo da violência. Tais fatores
culturais também afetavam a tropa no começo da missão; depois a tropa se acostumava com
aquela situação. O Timor-Leste, ainda hoje, é palco de instabilidade potica e econômica,
onde existe a possibilidade de insurgência violenta, como a recente tentativa de matar o
presidente do país em 2008.
No ano de 2004, o Brasil foi novamente convidado a participar de uma missão, a
estabilização da paz no Haiti, MINUSTAH. O projeto Força Militar de Paz foi chamado para
realizar o trabalho de seleção, preparo psicológico, acompanhamento e desmobilização, dessa
vez para um efetivo de 1.200 militares. O primeiro efetivo de militares seguiu para o Haiti “à
toque de caixa”, sem nenhuma abordagem psicológica. O Haiti estava vivendo o caos da
barbárie, com a crueldade a olhos vistos. Foi nesse clima de guerra que os primeiros
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brasileiros chegaram no Haiti, imbuídos de toda sorte de motivos, sem nunca terem
guerreado. Deparar com o horror haitiano desencadeou neuroses de guerra e alguns militares
foram repatriados para o Brasil. Ao que parece, a idealização dos motivos, e os próprios
objetivos pessoais, não foram suficientes para manter alguns homens no combate, devido a
razões psicológicas. Ou seja, operacionalmente eles estavam muitíssimo bem preparados, não
ocorrendo o mesmo com o sustentáculo psíquico.
Um militar quer atuar no combate”, disseram-me muitos deles. Todavia, trata-se de
um ideal muitas vezes ilusório, que resulta em problemas futuros, além das sequelas da guerra
por si mesma. Verificamos que muitos militares não voltam bem. Então, o que fazer com
esses homens, os quais irão retornar para seus lares e para a rotina dos quartéis? Como
resposta, oferecemos a psicanálise.
A escolha do tema da crueldade como objeto de estudo está ligado à análise de
algumas cenas oriundas da guerra no Haiti, imagens essas em nosso poder, como, por
exemplo, as imagens de um assassinato cometido por integrantes de uma gangue rival,
filmadas pelo celular de um militar brasileiro. Podemos descrever a cena da seguinte forma:
no chão, um haitiano ferido, ao que parece desfalecido; numa marcha frenética, agitada, um
grupo de também haitianos cantam, pulam, portando facões, paus e fuzis nas mãos; em
seguida eles começam a chutar o haitiano machucado e quase morto, além de aplicar-lhe
pauladas na cabeça e no corpo como um todo; de repente um tiro o atinge e nos leva a crer
que o vida presente; para nossa surpresa, o homem se mexe, levanta a mão, como que
um último apelo à vida; ato contínuo, seus rivais perfuram-lhe o abdômen com uma baioneta,
dirigem-lhe mais um tiro na cabeça, enquanto outro inicia a retirada de suas vísceras para
deixar-lhe oco. Tudo isso feito em meio a pulos, cantigas e uma evidente euforia. Igualmente
são impactantes as fotografias que retratam o horror dos corpos mortos e abandonados em
meio às ruas tidas, todos escalpelados e sem vísceras, para onde se achegam porcos e
cachorros para da carne humana abandonada e já sem sorte alimentar-se. No início de
2004, um grupo de patrulha do primeiro contingente brasileiro contou-nos que encontrou um
homem no lixo, nu, pele e osso, escalpelado. Relataram que pensaram que aquele era um
corpo morto. Todavia, ainda vivo, foi socorrido pela patrulha e levado para a base hospitalar
argentina, onde foi tratado e salvo da morte. No Haiti, há muitos conflitos entre gangues rivais
e é surpreendente o exercício da crueldade que em geral se aplica ao inimigo. Para essas
gangues não bastam ferir o corpo do inimigo ou matá-lo; é preciso escalpelá-lo ainda vivo,
para depois decepar-lhe a cabeça, sendo esses atos expressão da crueldade sanguinária. Os
17
militares egressos relatam que as ruas da capital Porto Príncipe têm o cheiro da morte.
Analogamente violento é o ato dos pais que oferecem as crianças para a prática do sexo, em
troca de um lar ou de comida e água. Foi preciso ouvir e rever tais cenas, dentre inúmeras
outras, para delas se distanciar, como única possibilidade para delas falar. Impressiona-nos o
desencadeamento sem freio do ato bárbaro, a euforia da matança, indicando-nos o real da
pulsão de morte soberana e irredutível.
A possibilidade de realizar esta pesquisa de mestrado encontrou melhores condições
na modalidade bibliográfica, dada a natureza do assunto. Após a delimitação temática foi feito
um levantamento bibliográfico preliminar e iniciadas as leituras e discussões em torno do
assunto, possibilitando uma melhor formulação do problema a ser pesquisado. A pesquisa
teórica se ancora nos escritos freudianos e na literatura mais recente sobre o assunto, o que
permitirá a continuação do estudo num posterior doutorado.
Para efetuar o estudo da crueldade a partir do Haiti, optamos por contextualizar o
leitor quanto à história do país, resumidamente disposta na segunda parte desta dissertação.
No capítulo A colônia negra, procuramos mostrar que a história do Haiti é marcada pela
exploração por parte dos invasores espanhóis que dizimaram mais de um milhão de haitianos,
além de escravizá-los, estuprar suas mulheres e apoderarem-se de suas riquezas naturais. O
estrangeiro trouxe a violência sob diversos aspectos para o povo haitiano. A repetição da
violência caracteriza a história do Haiti, inclusive nos dias atuais.
No terceiro capítulo, intitulado O silêncio ensurdecedor da pulsão de morte,
desenvolvemos quatro sub-temas. O primeiro ocupa-se do entendimento dos termos
civilização e barbárie, dada a sua ligação com o exercício de crueldade. O segundo aborda o
conceito de pulsão, considerado peça chave na compreensão da crueldade. Também nessa
sessão apresentamos breves comentários sobre as contribuições de Lacan à teoria das pulsões
de Freud. O terceiro sub-tema é reservado à análise da crueldade. Iniciamos pelo rastreamento
da formulação freudiana da crueldade, enquanto categoria constitutiva do humano.
Surpreendeu-nos o fato de que Freud usava o termo crueldade, assim como a expressão
pulsão de crueldade desde 1900, na obra inaugural da psicanálise, ocasião onde estabelece
uma ligação entre sexualidade e crueldade a partir da interpretação de sonhos. Em seguida
abordamos a leitura do termo crueldade por Jacques Derrida. O filósofo franco-argelino toma
como eixo referencial de sua pesquisa a correspondência entre Einstein e Freud e mostra de
que modo Freud pensava a crueldade e suas gradações. Para Derrida a crueldade é um
conceito confuso e obscuro ligado a uma das faces da pulsão de morte. O quarto sub-tema
18
trata do conceito de trauma na psicanálise, considerado imprescindível para os atendimentos
psicanalíticos que constituem o produto desta pesquisa.
O capítulo quatro é intitulado Neuroses de guerra. O texto discorre sobre as neuroses
de guerra e inclui um subitem que tratada do atendimento clínico dos egressos das zonas de
combate, uma vez que, na origem deste estudo, estão os militares que lutam na guerra, muitos
dos quais desencadeiam neuroses e surtos psiticos. Destacamos o pensamento de Freud
sobre as neuroses de guerra, analisadas à semelhança das neuroses traumáticas dos tempos de
paz, ambas causadas por um excesso inassimilável para o sujeito. Percorremos a trilha de seus
escritos sobre o assunto e, nesse contexto, apresentamos o valor do trauma na eclosão da
neurose e como a compulsão à repetição observada nos sonhos permitiu ao criador da
psicanálise avançar passos na compreensão da neurose de guerra. A pesquisa aponta o
esgarçamento no simlico que provoca o trauma de guerra e quão atormentada é a reinserção
do sujeito após o retorno da missão, uma vez submergido na experiência traumática.
Fundamentalmente, os textos que comem essa sessão referenciam a importância da ética do
tratamento psicanalítico dispensado ao militar neurotizado pelo horror do combate.
Atualmente o Exército Brasileiro oferece atendimento psicoterápico em algumas
Organizações Militares de Saúde (OMS), de modo que o resultado desta pesquisa constitui
uma ferramenta bibliográfica importante para os profissionais que fazem clínica psicanalítica.
Relatamos alguns fragmentos clínicos com o objetivo de ressaltar a relevância do estudo.
Igualmente nos valemos de uma passagem do filme No vale das sombras, dirigido por Paul
Haggis, que reproduz na ficção fatos comumente observados na vida na caserna.
O produto do trabalho pesquisado oferece um estudo teórico assentado na psicanálise,
de modo que o projeto Força Militar de Paz do Exército Brasileiro possa dele dispor como
fonte bibliográfica. Pretendemos resgatar a antiga idéia de criação de um núcleo de
atendimento psicanalítico permanente em cada contingente designado para o Haiti, ou para
qualquer outro país para onde o Brasil vier a enviar tropas. Tão importante quanto os centros
psicanalíticos no front são os atendimentos cnicos aqui no Brasil, de modo que a pesquisa
serve de fonte de consulta para os profissionais que atendem os militares neurotizados pela
guerra. Trata-se de necessidades urgentes. Fundamentalmente o estudo aponta que no
tratamento dos traumas de guerra existem alguns aspectos que somente a psicanálise é capaz
de atuar.
Diante de questão de tamanha envergadura, o estudo da crueldade tem pertinência e
aplicação, tendo em vista tratar-se de um assunto presente, cuja literatura ainda se faz,
19
reforçado pela crueldade do terrorismo, assim como pela crueldade dos tempos de brancas
nuvens, afiançado pela prerrogativa freudiana de que não como abolir os pendores
agressivos, destrutivos e cruéis no homem. Esperamos que a pesquisa aqui desenvolvida seja
apenas o começo de um percurso a continuar num programa de doutorado.
20
CAPÍTULO I
1. A colônia negra
O Haiti nasceu de uma insurreição de escravos na Ilha de São Domingos, então
colônia francesa, iniciada no ano de 1791. As causas dessa revolução estão ligadas à
Revolução Francesa de 1789, cujo ideal encontrou voz junto aos escravos rebelados e
refugiados nos quilombolas
1
da Ilha.
A colônia de São Domingos foi cedida à Fraa, no ano de 1795, e tornou-se a mais
rica do mundo, incluindo-se nessas considerações o Brasil. A riqueza da ilha era devido à
produção açucareira, principalmente. Toda a infraestrutura necessária à produtividade daquela
região era sustentada pelo trabalho de meio milo de escravos oriundos da África, trazidos
para aquelas bandas nos navios negreiros.
Este texto inicial objetiva situar o leitor quanto à história de um país, cujo povo nativo
foi escravizado e dizimado pelos invasores espanhóis, país esse que conheceu a máxima
prosperidade e fartura sustentadas pela escravidão e barbárie desde os seus primórdios, e que,
hoje, constitui-se num dos países mais pobres do mundo, com elevadíssimos índices de
mortalidade e violência, caracterizando um clima de mal-estar constante. A violência é um
fenômeno cotidianamente repetido no Haiti, atestado pela iminente possibilidade de novas
rebeliões. Essa situação está presente na história do povo haitiano desde a chegada dos
espanhóis. As atrocidades sem-fim, o requinte praticado nos assassinatos conferem algumas
peculiaridades também repetidas no cometimento de atos cruéis, como, por exemplo, o
escalpelamento do inimigo, a decapitação e a exposição intimidatória, a retirada das vísceras
do cadáver e o abandono da carne outrora viva deixada ao bel-prazer de porcos e cachorros
tão famintos quanto os homens que por ali vivem. Tais peculiaridades conferem primitivismo
àqueles que os cometem, mas não menos do que o primitivismo característico do humano,
posto que o primitivismo habita o homem. Também a crueldade praticada no Haiti não
qualifica o haitiano como mais bárbaro ou mais cruel que qualquer outro povo. Afinal, a
história da humanidade está repleta de atrocidades praticadas contra humanos, o que nos a
possibilidade de entendimento que o é o haitiano especificamente que é violento; é o
homem seja qual for a sua origem. Assim sendo, a possibilidade de um ato cruel não é
1
Termo atribuído aos assentamentos criados pelos escravos fugitivos.
21
exclusiva do haitiano ou daqueles que cometeram o sem número de atos violentos contra a
humanidade; essa possibilidade é real no homem.
O Haiti é um país que ocupa o terço ocidental da ilha Hispaniola e faz fronteira
terrestre com a República Dominicana, a leste. A capital do país é Port au Prince. A
denominação Hispaniola atribuída à ilha deriva da chegada de Cristóvão Colombo, em
1492. Era a época das grandes navegações, do comércio marítimo das Índias Ocidentais e do
escravagismo. indícios de que os primeiros humanos no Haiti chegaram à ilha entre 1.000
e 7.000 anos A.C. (JAMES, 2007).
Os espanhóis eram o povo mais desenvolvido daqueles tempos e anexaram a ilha
denominando-a de Hispaniola. Como ocorreu em outros lugares, os espanhóis tomaram essas
terras, assim como aos índios nativos de pele vermelha que habitavam sob sua proteção.
Após a chegada de Colombo, já no final do século XVI, praticamente toda a população nativa
havia sido escravizada ou dizimada pelos conquistadores espanhóis. O estrangeiro introduziu
o cristianismo, o trabalho forçado nas minas de ouro executado pelo próprio povo nativo, o
assassinato, o estupro, além de doenças e fome.
Posteriormente, a ilha Hispaniola passou a ser chamada de ilha de São Domingos e
dividida no que hoje se conhece por Haiti e República Dominicana. A parte ocidental da ilha
(Haiti) foi cedida à França pela Espanha, em 1697. Antes disso, em 1629, após Colombo ter
fundado o assentamento espanhol na colônia, chegaram por Tortuga
2
franceses, ingleses e
holandeses. Conta a história que se tratavam de fugitivos da justiça, escravos desertores,
devedores, aventureiros e criminosos de toda sorte.
A ilha de São Domingos, agora sob regência francesa, se tornou a mais próspera do
mundo, graças ao cultivo e exportação do cacau, do café e, principalmente, do açúcar. A
produção e manutenção dessas preciosidades da época eram sustentadas pelo trabalho
escravo.
1.1 Vida e morte no porão
2
Pequena ilha situada ao norte, a 9 Km do Haiti.
22
Os negros da África chegavam à ilha transportados em navios negreiros. Cada um
deles ocupava de um metro a um metro e meio de comprimento e de meio metro a um metro
de altura, de forma que os negros o podiam nem se deitar, nem ficar de ou ficar sentado
na postura ereta. As revoltas ocorridas nas embarcações nos portos depõem contra o
romantismo histórico e cinematográfico, dado o que de fato os escravos iriam enfrentar na
longa viagem. Por isso, os escravos eram acorrentados uns aos outros e atrelados a longas
barras de ferro. A proximidade de tantos corpos nus, machucados, infectados, de pele
supurada, o ar fétido, a disenteria e restos fecais tornavam o porão de um navio negreiro algo
inimaginável.
1.2 A razão da ilha
Prosperidade era a razão da ilha de São Domingos. Nenhuma parte da supercie do
globo produziu, em proporção com as suas dimensões, tanta riqueza quanto a colônia
francesa. Em 1767 foram exportadas 70 mil toneladas de açúcar, 500 toneladas de anil, mil
toneladas de algodão, além de algumas toneladas de couro, melado, cacau e rum. Os produtos
de São Domingos eram marcados por peculiar qualidade, inexistente em outras paragens.
A colônia francesa era a mais próspera do mundo e concentrava meio milhão de
escravos, constituindo o contingente negro uma superioridade populacional dez vezes maior
que a população branca.
A cultura do açúcar demandava trabalho árduo e por horas a fio. Os escravos eram
tratados de forma subumana e alojados como animais. Nos locais onde dormiam não havia
janelas, o chão era de terra batida e dormiam indiscriminadamente pais e filhos.
Nessa época, Luiz XIV o mesmo rei que em 1670 autorizou o tráfico negreiro da
África para a colônia resgata o digo Negro na tentativa de humanizar o tratamento
dispensado ao escravo. A colônia, entretanto, apesar de sua subordinão à metrópole
francesa, não fazia cumprir o determinado no Código. Este documento foi criado por Carlos
V, em 1517, com o propósito inicial de autorizar a exportação de 15 mil escravos para São
Domingos sob o gerenciamento de Las Casas, um padre dominicano que pleiteava a abolição
de escravos nativos e a importação de negros africanos para a consecução do trabalho na
23
colônia. Dessa forma, um padre e um rei iniciaram no mundo o comércio americano de negros
e a escravidão.
1.3 A vida na colônia
A vida de escravo é como o real a céu aberto apregoado pela psicanálise, dada a
barbárie do seu cotidiano. Pela menor falta o escravo era torturado, açoitado muitas vezes até
a morte. Algumas vezes o açoite era interrompido e madeira quente era esfregada nas nádegas
do escravo, ou colocava-se sal, pimenta e outras especiarias sob as feridas abertas. As
mutilações eram cenas frequentes: membros, orelhas e até órgãos genitais. Alguns escravos
eram queimados vivos. Havia a prática de encher o escravo de pólvora e explodi-lo.
Igualmente eram enterrados até o pescoço e lambuzados com o melado da cana que eles
mesmos produziam para que as moscas, formigas e vespas os devorassem. Os senhores
faziam-nos beber e comer os próprios excrementos ou obrigavam-nos a lamber a saliva dos
outros escravos.
Viver era uma situação difícil para negros escravos em sua maioria e muitos se
matavam, envenenando-se. As crueldades praticadas contra os escravos eram justificadas pelo
que se supunha saber daquela raça: “diz um relato de 1789 que os escravos eram injustos,
cruéis, bárbaros, semi-humanos, traiçoeiros, pérfidos, ladrões, beberrões, arrogantes, sujos,
sem-vergonha e covardes.” (Ibid., p. 31). Com base nessa premissa, as crueldades praticadas
pelos brancos eram legitimadas. Ao que parece, jamais houve qualquer consideração com
relação às circunstâncias geradoras da suposta agressividade do negro escravizado.
No contexto de horror e barbárie foram surgindo insurretos. Homens e mulheres
negros fugiam para as montanhas e formavam assentamentos denominados quilombolas. Nas
cerimônias de vodu
3
os negros entoavam uma canção que dizia: “juramos destruir os brancos
e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nesta promessa.” (Id.)
3
O voduísmo ainda é praticado no Haiti de hoje, normalmente pela madrugada. Durante o dia, a religião oficial
do país é o catolicismo.
24
1.4 O tiro que saiu pela culatra
As riquezas da ilha de São Domingos associadas à escravidão e às desigualdades
reinantes levaram a colônia à insurreição.
A prosperidade afetou a massa de trabalhadores escravos. Em 1789, São Domingos
era a colônia mais rica do mundo. Muitos escravos tinham recebido pequenas porções de terra
para cultivo e, com isso, passaram a ter economias e também alguma propriedade.
No contexto de insatisfação existente na ilha e devido à revolução que ocorria na
metpole francesa, a burguesia brinica percebeu que toda a riqueza da ilha de São
Domingos era sustentada pelo trabalho escravo. Sem escravos, a rica colônia viria a sucumbir.
Os britânicos passaram, então, a defender as ideias de abolição da escravatura na medida em
que isso seria extremamente proveitoso para os ingleses. As vantagens do livre comércio
passaram a ser as palavras de ordem defendidas por escritores e autoridades britânicas da
época. Por conseguinte, conseguiram convencer que o trabalho escravo era o mais caro do
mundo.
É óbvio que havia um interesse subjacente à bondade britânica, ou seja, não era
exatamente a abolição dos escravos que estava em jogo, mas a soberania ecomica da ilha de
São Domingos, a qual estava na dependência do trabalho escravo. Todavia, a escravidão na
ilha parecia eterna, assim como os lucros derivados. Entretanto, a prosperidade econômica
o era garantia de estabilidade social e, de fato, a estabilidade não existia dadas as diferenças
sociais reinantes na colônia.
A população branca da ilha temia uma revolta da população escrava. E a esperada
revolução ocorreu no ano de 1791, influenciada pelo ideal da Revolução Francesa
4
.
1.5 A ascensão Toussaint L’ouverture
Toussaint L‟ouverture pertenceu a uma pequena casta de escravos privilegiados. Seu
pai foi comprado por um colonista dotado de alguma dose de sensibilidade, o qual lhe doou
4
O ideal da Revolução Francesa apregoava a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
25
uma pequena horta para cultivo, juntamente com cinco escravos. O pai de Toussaint tornou-se
católico e casou-se com uma linda mulher. Dessa união nasceu Toussaint, o filho mais velho
de oito irmãos.
O futuro der da revolução da ilha de São Domingos foi apadrinhado por um velho
negro que morava perto da casa-grande, denominado Pierre Baptiste. Através de seu padrinho,
foi introduzido no francês e no latim, além de ensinamentos religiosos, aprendeu desenho e
adquiriu conhecimento sobre plantas medicinais e literatura. Posteriormente tornou-se
cocheiro de seu senhor e depois foi designado responsável pela administração de todos os
bens da fazenda, cargo este normalmente ocupado por um branco.
Toussaint nasceu em meio à escravidão, mas viveu em meio a circunstâncias
favoráveis a uma boa vida familiar, amigos e um senhor gentil. Sua participação na
insurreição deu-se quando tinha 45 anos. Do caos existente em São Domingos e que
perduraria pelos anos seguintes, ele deitaria as fundações de um Estado negro existente até os
dias de hoje. Desde o momento em que se juntou à revolução ele foi o seu der. Sua relativa
cultura, o seu sucesso em meio ao caos da ilha, sua retidão de caráter e sua personalidade
contida deram-lhe um enorme prestígio entre os negros da época. O caos, as agressões
sofridas, as insatisfações da massa de escravos demandavam um lugar a ser ocupado.
Toussaint ocupou esse lugar. Ele lutava não apenas pela liberdade dos escravos, mas por
direitos políticos. Seu ideal era o de liberdade para todos, a ser assegurado pela própria força.
No ano de 1792, ele torna-se general-brigadeiro e inicia os treinamentos do exército,
conseguindo unificar milhares de negros ignorantes e treiná-los compondo um exército capaz
de enfrentar as tropas inimigas. O seu exército possuía cerca de cinco mil homens, dentre os
quais os soldados na sua maioria, africanos nascidos fora da colônia. Os oficiais em
comando eram antigos escravos, como ele o fora. Tratava-se, portanto, de um exército
identificado com um ideal de revolão, sendo esta a sua maior força.
Toussaint aprendera sobre a necessidade de estar ele mesmo no campo de batalha e
isso repercutia em benefício da causa em luta. Ele dividia as recompensas e os perigos, mas
mantinha-se como uma pessoa reservada e rigorosa, com hábitos semelhantes aos aristocratas
de berço.
Ele reconheceu que sua causa não sobreviveria somente com um exército forte e
convenceu milhares de pessoas a retornarem ao cultivo das terras devastadas. Brancos, negros
e mulatos retornaram para o cultivo da terra.
26
1.6 A abolição dos escravos
O fim da escravidão na ilha de São Domingos ocorreu no ano de 1794. O Haiti nasceu
de uma rebelião de escravos quando ainda eram escravagistas o Brasil, Cuba e os Estados
Unidos. A partir de então, a história do Haiti é marcada por uma multiplicidade de fatos de
natureza política.
Em 1801, Toussaint tornou-se governador-geral e posteriormente foi deposto e morto
pelos franceses em 1803, na França, para onde fora levado preso, em Fort Joux, no dia 27 de
abril. Assume o comando do país Jean-Jacques Dessalines.
Dessalines organizou o exército e derrotou os franceses ainda em 1803. No ano
seguinte, ele declarou o Haiti independente e proclamou-se Imperador Jacques I. O Haiti foi o
primeiro país das Américas a tornar-se independente, movimento iniciado por Toussaint.
A hisria do Haiti revela que a quase totalidade de seus governantes foi deposta e
morta devido à instabilidade potica, econômica e social que assola aquele país, desde a
época da chegada dos espanhóis. Dessalines foi deposto e morto e, a partir daí, o país entra
num período de muita instabilidade. O controle do Haiti passa a ser dividido em duas porções:
a parte ocidental é comandada por Henri Christophe, e a parte oriental atual República
Dominicana é controlada pela Espanha, tendo como chefe Jean-Pierre Boyer, que reunificou
o país conquistando toda a ilha. Em 1884, uma nova revolta derruba Boyer e a República
Dominicana proclama-se independente.
Da segunda metade do século XIX ao começo do século XX sucederam-se 20
governantes sucessivamente no poder. Dezesseis dentre vinte governantes do Haiti foram
depostos ou assassinados.
Entre os anos de 1915 a 1934, tropas dos Estados Unidos ocuparam o Haiti sob o
pretexto de proteger supostos interesses. Em 1946, ocorrem eleições e Dusmarsais Estimé é
eleito presidente. Em 1957, François Duvalier, dico conhecido como Papa Doc
5
, é eleito
presidente. É iniciado, então, o período mais sombrio na história do Haiti. O regime de
5
Designação atribuída a François Duvalier por conta do tratamento bondoso que dispensava a seus pacientes e à
população carente do Haiti.
27
governo implementado instaurou terror, violência e perseguão aos opositores de Duvalier,
cujas ações eram executadas por sua guarda pessoal os tontons macoutes
6
. Ainda em 1964,
Duvalier, presidente vitalício do Haiti, perseguiu a igreja católica e explorou o vodu.
interrogações sobre as razões da mudança de comportamento de Duvalier, dado o
carisma que tinha junto ao povo haitiano, antes de se tornar presidente. Quando assumiu o
poder tornou-se um ditador vingativo e instável. Qualquer opositor em potencial era
eliminado. Dessa forma editores de jornais, donos de emissoras de rádio foram presos, os
representantes da igreja católica expulsos, fato que gerou conflitos com o Vaticano. François
Duvalier criou uma taxa obrigatória para o povo, objetivando a construção da Duvalierville.
Não houve consecução da cidade planejada e o dinheiro recolhido foi confiscado por ele
mesmo. Papa Doc foi assassinado em 1971. Nesta época, o Haiti havia se tornado a nação
mais pobre das Américas, com índices extremos de mortalidade, analfabetismo e
insalubridade. Após a morte de François Duvalier, assumiu o governo o Baby Doc Jean-
Claude Duvalier, ele deu continuidade ao governo ditatorial iniciado por seu pai. Com
Duvalier filho no poder, o país afundou economicamente, aumentando o caos de pobreza
existente. O regime ditatorial foi perdendo força e, em 1986, Baby Doc buscou exílio na
França, após o golpe comandando por militares no Haiti.
Baby Doc deixou em seu lugar o general Henri Namphy. Depois de convocadas
eleições, Leslie Manigat assumiu a presidência, em pleito marcado pela abstenção. Manigat
assumiu o poder em fevereiro de 1988 e foi deposto por Namphy no mês de junho do mesmo
ano. Com Namphy de volta ao poder um novo golpe de estado ocorreu três meses depois,
assumindo o governo o chefe da guarda presidencial, o general Prosper Avril.
A constituição haitiana foi criada em 1987, tomando por modelo as constituições dos
Estados Unidos e da França. Apesar de sua promulgação, a conturbada potica haitiana
sempre foi uma constante e houve períodos onde as leis constitucionais foram suspensas total
ou parcialmente.
Em 1990, novas eleições foram realizadas e Jean-Bertrand Aristides as venceu. O
governo de Aristides foi marcado pela impopularidade e pela corrupção. Em setembro de
1991, Aristides é deposto por um golpe militar liderado pelo general Raul Cedras, busca
exílio potico nos Estados Unidos. Retorna a ditadura militar no país. A Organização dos
Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (ONU) e os Estados Unidos
6
“bichos-papões”.
28
impõem sanções econômicas ao Haiti como forma de coerção aos militares que tomaram o
poder, objetivando o retorno de Aristides.
Em 1993, Cedras e Aristides assinam um pacto em New York visando o retorno do
governo constitucional e a reforma das forças armadas. Em outubro, as tropas americanas são
impedidas de desembarcar no Haiti por grupos de paramilitares haitianos. Nesse período, o
número de refugiados haitianos que tentavam entrar nos Estados Unidos era bastante elevado
e isso fez com que o governo americano insistisse no retorno de Aristides para o Haiti.
Em 1994, a ONU decretou bloqueio total ao Haiti e uma junta militar empossou Émile
Jonaissaint um civil para o exercício presidencial até as eleições marcadas para fevereiro
de 1995. Este ato foi considerado ilegal pelos Estados Unidos. Em julho de 1994, ocorre uma
intervenção militar por parte dos Estados Unidos com o apoio da ONU. Em agosto do mesmo
ano, Jonaissaint decreta estado de sítio. Em setembro, uma força militar americana invade o
Haiti para reempossar Aristides, que reassume o governo no mês de outubro de 1994.
Recomeça, todavia, o ciclo de violência, corrupção e miséria no Haiti. No final de 2003,
Aristides é pressionado a promover eleições. Em 2004, rios protestos ocorrem na capital
haitiana, morrendo muita gente por causa disso. Em fevereiro, pressionado, Aristides foge
para a África do Sul e o Haiti sofre intervenção internacional pelas Nações Unidas.
Percebe-se que entre os anos de 1994 a 2000, o Haiti viveu mergulhado em crises. Em
2001, Aristides venceu eleição marcada pela suspeita de fraude com menos de 10% de
eleitores presentes. A oposição recusou-se a aceitar o resultado apurado, agravando a crise
existente. A partir daí, a violência espalhou-se pelo país, dada a potica de Aristides. Forças
rebeldes ocupam as principais cidades do Haiti, havendo pouca resistência aos focos rebeldes.
A violência aplaca o Haiti e os Estados Unidos e a França responsabilizam Aristides pela
situação do país. É nesse momento em que ele renuncia e segue em exílio para a África, muito
embora diga que fora sequestrado por fuzileiros americanos
Em 2004, conflitos armados eclodem em Gonaives e gradualmente opositores foram
assumindo o controle do norte do país. Muita gente morreu e matou devido à situação potica
vigente. O setor norte do Haiti passa a ser dominado por insurgentes e a diplomacia dos
óros internacionais não consegue por fim às tensões existentes.
Com a saída de Aristides, assume o comando do Haiti Bonifácio Alexandre, ele
requisita imediatamente auxílio da ONU para o restabelecimento das leis constitucionais e a
segurança interna do país. A ONU envia uma Força Multinacional Interina, liderada pelos
29
Estados Unidos. Posteriormente o Conselho de Segurança decide estabelecer a Missão das
Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), ainda presente naquele país,
composta por um efetivo militar de 6.700 homens e mulheres, oriundos da Argentina, Benin,
Bolívia, Brasil, Canadá, Chade, Chile, Croácia, Fraa, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru,
Portugal, Turquia e Uruguai.
1.7 O Brasil no Haiti
A MINUSTAH foi criada pela resolução 1542 do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, em 30 de abril de 2004, com o objetivo de restaurar a ordem no Haiti, dada a situação
de insurgência no país e a deposão de Aristides. Com a criação da MINUSTAH, o comando
é atribuído ao Brasil, que designa como chefe da força um general brasileiro, substituído
semestralmente. A MINUSTAH tem a finalidade de estabilizar o país, pacificar e desarmar
grupos rebeldes, promover eleições livres e contribuir para o desenvolvimento institucional e
econômico do Haiti.
O efetivo brasileiro que come a MINUSTAH é de mil e duzentos militares, entre
homens e mulheres. A tropa permanece no Haiti por períodos de seis meses, ocasião em que é
substitda por outro grupamento de igual efetivo.
Os brasileiros chegam à capital do Haiti em meio à grande instabilidade e guerra entre
gangues rivais, com focos de violência espalhados por rias localidades. O objetivo de
pacificação e desarmamento é posto em ação mediante operações militares de alto risco, além
de implantar ações cívico-sociais com operações de recolhimento das toneladas de lixo
espalhados pelas ruas das cidades, com a reconstrução de escolas e de instalações destruídas,
criação de saneamento básico, dentre outras. Aos poucos, áreas consideradas vermelhas no
índice de periculosidade vão sendo pacificadas. Passados quatro anos de missão no Haiti, o
Brasil ainda realiza missões de contenção da violência, típicas de um país instável.
30
CAPÍTULO II O SILÊNCIO ENSURDECEDOR DA PULSÃO DE
MORTE
2.1 Civilização e barbárie
Civilização e barbárie, que significam estes termos para a psicanálise? Trata-se de
termos que andam em par e que qualificam um ao outro. Falar de civilização implica falar de
seu oposto, a barbárie, ainda que não presentificada pela destruição observada nos atos
considerados bárbaros. A análise dos conceitos de civilização e barbárie constitui uma via de
o dupla, na medida em que os derivados dessa relação pertencem à ordem do imprevisível
na modernidade, assombrada pelo terror.
Sabe-se que os gregos na antiguidade definiam bárbaro aquele que não falava grego.
Observa-se que esta designação segregava e marcava uma diferença entre os sujeitos os
que falam grego e aqueles que não. Francis Wolf (apud NOVAES, 2004, p. 10), em seu artigo
Quem é Bárbaro?, mostra que em geral estamos acostumados a pensar assim: “nas guerras
santas de todas as espécies, o bem somos nós, civilizados contra o mal, os outros, bárbaros”,
posição diferente de hoje: na atualidade da globalização, onde os civilizados estão do lado do
bem e os bárbaros, do lado do mal. Essa noção implica a noção do eu, civilizado, e do outro,
rbaro.
O que significa cultura na obra de Freud?
Beth Fuks (2003), quando da escrita do livro Freud e a cultura, recorda que o conceito
de Kultur está presente na obra de Freud desde o Projeto para uma psicologia científica,
escrito em 1895, quando Freud trata da emergência do humano. Nesse texto Freud escreve
que o desamparo original faz nascer o primeiro laço com o outro da cultura. O outro reduz a
anstia da morte personificada pela fome, sede, frio tudo isso pertencente à ordem do
insuportável. Fuks (2003, p. 11) diz que “para além da expressividade de uma demanda
corporal, o grito é um apelo de sentido à angústia e à impotência do desamparo original que o
pequeno homem experimenta em sua entrada no mundo.O desamparo é uma condição que
existe à revelia do sujeito e a sobrevivência do pequeno infans está na dependência do outro,
caso contrário somente a morte lhe resta. O apelo ao outro pelo pequeno infans, assim como o
apelo ao outro na horda primitiva concretizada na formação de um grupo - são reveladores
de que é pelo laço social, pela introdução na linguagem que o homem se torna um ser cultural,
um ser que sobreviveu ao desamparo e à ameaça advinda do outro. A noção do outro está,
31
portanto, implícita naquilo que Freud define por Kultur. “Freud designa como cultura humana
a interioridade de uma situação individual manifesta nos impulsos que vêm desde dentro do
sujeito e a exterioridade de um digo universal, subjacente aos processos de subjetivão e
aos regulamentos das ações do sujeito com o outro” (Ibid., p. 10).
A noção de civilização em Freud se com a família primitiva, sendo esta entendida
pelo criador da psicanálise como a condição para o surgimento da cultura.
Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um
momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um
hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar
por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente.
Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto
de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a
mea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no
interesse deles, a permanecer com o macho mais forte (FREUD, 1927, p. 119).
É digno de nota ressaltar o caminho que percorre a família primitiva até a vida
comunal, sob a forma de grupos de iros, os quais descobrem que a sobrevivência estava na
dependência da união sendo esta a única maneira de sobrepujar o pai totêmico. O
assassinato do pai totêmico, desencadeado pela união do grupo de irmãos, gerou o imperativo
de conservação de um novo estado de coisas. Qual era o novo estado de coisas? Era a vida em
comunidade fundamentada no trabalho e no amor, regida pelos tabus derivados do assassinato
do pai. Não matarás é um desses tabus. Estava constituído, dessa forma, o primeiro estado de
direito ou de lei, que a comunidade deverá observar. O amor e o trabalho constituem,
portanto, os fundamentos da vida em comunidade. Textualmente, Freud escreve que amor e
necessidade se tornaram os pais da civilização humana.” (Ibid., p. 121).
Na primavera de 1927, Freud ao escrever O futuro de uma ilusão, o pai da psicanálise
ingressa nas questões que permearam sua obra até o final de seus dias a cultura. É no início
do primeiro capítulo desse texto que consta a famosa frase freudiana “desprezo ter que
distinguir entre cultura e civilização” (Ibid., p.16). A frase escrita revela a opção de Freud em
excluir-se dos debates poticos e filoficos de sua época referentes à oposição entre os
termos civilização e cultura.
32
No texto O futuro de uma ilusão (1927, p. 16) Freud define a civilização como tudo
aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal”, ratificando no Mal-
estar na civilização (1930, p. 109) a sua definição de cultura: “a palavra civilização descreve
a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos
antepassados e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza
e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.” A análise de ambos os textos citados serve de
bússola para o entendimento dos passos freudianos rumo ao seu prisma conceitual o mal-
estar. É digno de nota o fato de que Freud passou a usar sistematicamente a palavra Kultur a
partir do momento em que se deparou com as forças mais enigmáticas da natureza humana
as pulsões de morte e introduziu na teoria psicanalítica a categoria que designa os
desconfortos inerentes a toda e qualquer cultura e civilização o mal-estar.(FUKS, op. cit.,
p. 10).
Em 1930, Freud havia postulado sua teoria das pulsões, mediante dois textos
fundamentais, dentre outros, desde o Projeto para uma psicologia científica, de 1895, a saber,
As pulsões e seus destinos e, Além do princípio do prazer. Entendemos que esse foi o bastidor
teórico que ocupava a mente do Mestre de Viena, proporcionando o escopo fundamental do
texto lido no Mal-estar na civilização. Freud, com o pensamento à frente de seu tempo,
aponta para o desconforto provocado pela cultura, desconforto esse resultante do próprio
criador da cultura a criatura humana, sobretudo do mal-estar decorrente do relacionamento
entre os irmãos dentro dos imperativos da lei.
O mal-estar na civilização tem como eixo temático central o antagonismo entre as
restrições impostas ao homem pela civilização e as exigências pulsionais. Estar obra é
considerada uma das mais densas escritas por Freud. Os assuntos discorridos no Mal-estar
germinavam na mente de Freud em épocas precedentes, tendo em vista algumas de suas
considerações endereçadas à Fliess, como na Carta 64 (p. 351), de 31 de maio de 1897, em
que consta como anexo o Rascunho N, onde Freud escreve sobre a renúncia do tabu do
incesto imposta pela cultura.
A santidade é algo que se baseia no fato de que os seres humanos, em benefício
da comunidade maior, sacrificam uma parte de sua liberdade sexual e de sua
liberdade de se entregarem às perversões. O horror ao incesto (como coisa ímpia)
baseia-se no fato de que, em conseqüência da comunidade da vida sexual (mesmo na
infância), os membros de uma família se mantêm permanentemente unidos e se
33
tornam incapazes de contatos com estranhos. Assim, o incesto é anti-social a
civilização consiste nessa renúncia progressiva.
Destacamos que desde 1905, nos Três ensaios sobre a sexualidade (p. 212), Freud fala
do movimento contrário que existe entre a civilização e o desenvolvimento normal da
sexualidade humana.
Sem dúvida, o caminho mais curto para o filho seria escolher como objetos
sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância, com uma libido, digamos,
amortecida. Com o adiamento da maturação sexual, entretanto, ganhou-se tempo
para erigir, junto a outros entraves à sexualidade, a barreira do incesto, para que
assim se integrem os preceitos morais que excluem expressamente da escolha
objetal, na qualidade de parentes consanguíneos, as pessoas amadas da infância. O
respeito a essa barreira é, acima de tudo, uma exigência cultural da sociedade; esta
tem de se defender da devastação, pela falia, dos interesses que lhe são
necessários para o estabelecimento de unidades sociais superiores, e por isso, em
todos os homens, mas em especial nos adolescentes, lança mão de todos os recursos
para afrouxar-lhe os laços com a família, os únicos que eram decisivos na infância.
Destacamos o uso pela civilização de todas as possibilidades laadas como entraves
ao desenvolvimento da sexualidade humana em nome de uma unidade social livre da
devastação, livre da tirania totêmica, livre do incesto, todavia à custa de renúncias pulsionais.
É importante salientar, igualmente, que Freud não define a civilização como sinônimo de
aperfeiçoamento, mas como um processo capaz de ocasionar mudanças nas disposições
pulsionais do homem.
Do ponto de vista da psicanálise são três as fontes de mal-estar. A renúncia pulsional
está ligada ao que anuncia Freud no Mal-estar na civilização acerca dessas fontes de
sofrimento humano, a saber, o sofrimento causado pela natureza entendida como mundo
exterior; o sofrimento causado decorrente do próprio corpo que perece e morre; e o
sofrimento causado pelos relacionamentos humanos considerados por Freud como a
principal fonte de desconforto humano. “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de
nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode
dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode
34
voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente de
nossos relacionamentos com os outros homens.” (FREUD, 1930, p. 95).
As fontes de sofrimento humano são abordadas com maior especificidade no capítulo
terceiro do Mal-estar na civilização, onde Freud as descreve como inesgotáveis, sendo a fonte
social a pior delas. Freud indaga por que é tão difícil para o homem ser feliz”. A esta
pergunta Freud responde que, fundamentalmente, a infelicidade humana é o resultado, do
relacionamento com o outro. Sobre as outras duas fontes de sofrimento, escreve que “nunca
dominaremos completamente a natureza”, e que o corpo constitui ele mesmo uma estrutura
passageira” dessa mesma natureza.
Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é diferente.
Não a admitimos de modo algum; o podemos perceber porque os regulamentos
estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício
para cada um de nós. [...] Surge em nós a suspeita de que também aqui é possível
jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável dessa vez, uma
parcela de nossa própria constituição psíquica (Ibid., p. 105).
Diante das fontes de sofrimento as reivindicações de felicidade são influenciadas pelo
que é dado como possibilidade pela cultura. Fundamentalmente, Freud está discorrendo sobre
a insuficiência dos métodos criados pelo homem para regular as relações com o outro,
devendo esse outro ser entendido como a família, o Estado e a sociedade, revelando quão
atuais são as concepções freudianas. Diz Freud que “o próprio princípio do prazer, sob a
influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade” (Ibid.,
p. 96).
A reflexão nos mostra que é possível a realização dessa tarefa através de
caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas
diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens. Uma
satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como método mais
tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da
cautela, acarretando o próprio castigo. (Idem)
Segundo o pai da psicanálise, a transmissão cultural é assegurada através dos séculos
pelas tradições e explica as razões para a imposão de restrições à pulsão posto que
35
devastadora na medida em que o gozo irrestrito daria cabo da própria humanidade. A tarefa
imposta pelo processo civilizatório é o cerceamento do gozo, valendo-se, por exemplo, de
todos educacionais para isso. No texto Por que a guerra? (1933, p. 256-7) Freud escreve
sobre a necessidade de dar atenção à educação sob dois aspectos. O primeiro deles refere-se à
educação enquanto possibilidade de método indireto de combate à guerra. O segundo aspecto
é uma contraposição ao primeiro, na medida em que é sob a mão do Estado, da Igreja e da
classe dominante que repousam os rumos da educação. Ou seja, a tarefa de educar é tomada
pela cultura como um dos freios à satisfação irrestrita das pulsões. Ainda no Mal-estar na
civilização (1930, p. 98), escreve:
[...] tentamos controlar nossa vida pulsional. Os elementos controladores são os
agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a
meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa
proteção contra o sofrimento no sentido de que a o-satisfação não é tão
penosamente sentida (...). Contra isso, existe uma inegável diminuição nas
potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da satisfação de
uma pulsão selvagem não domada pelo eu é incomparavelmente mais intenso do que
o derivado da satisfação de uma pulsão que já foi domada. A irresistibilidade das
pulsões perversas e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui
uma explicação econômica.
No entanto, Freud também esclarece que a subordinação da vida pulsional à ditadura
da razão é um ideal utópico. Isso significa que estamos diante de uma questão econômica a
qual norteia a relação entre vida civilizada e demandas pulsionais, ratificando a iia
freudiana sobre a irredutibilidade das pulsões, na medida em que ela (a pulsão) não se
submete à condição de não satisfação.
A parcela inconquistável de que fala Freud a pulsão – é irredutível a qualquer
tentativa de cerceamento ou de dominação por parte da cultura. Nesse sentido, os homens se
unem para vencer as duas outras fontes de sofrimento: a força da natureza e a perecividade do
corpo. Uma união que resulta em força, mas também em mal-estar, uma vez que a união
implica o laço com o outro. E o laço com o outro implica em renúncia pulsional. Trata-se de
uma aporia, na medida em que Freud (1930, p. 105) afirma que “o que chamamos de
civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e seríamos muito mais felizes se
a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas.”
36
Percebemos que as origens do sofrimento humano jazem na sua própria criação a
civilização. Esta foi inventada para manter o homem nos moldes estabelecidos pela cultura,
todavia fadada ao fracasso, dado o que de irredutível no homem. Freud escreve no Mal-
estar na civilização (1930, p. 106) que todas as coisas que buscamos a fim de nos
protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma
civilização.” O que Freud (1930, p. 115)está dizendo é que o relacionamento mútuo entre os
homens constitui-se na principal fonte de sofrimento humano e que para regular esses
relacionamento o homem cria leis. [...] o elemento civilização entra em cena com a primeira
tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os
relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que
o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios
interesses e impulsos pulsionais.Esta citação nos remete novamente ao mito freudiano do
pai totêmico, onde a tirania do pai todo-poderoso fez os mais fracos se unirem como meta de
sobrevincia frente à arbitrariedade do outro. O assassinato do pai trouxe a necessidade
inadiável da criação de leis reguladoras e impeditivas, inclusive, do ato que eles próprios
haviam cometido. No Mal-estar na civilização (1930, p. 115) Freud diz que a vida humana
em comum se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer
indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados.” A essência da
lei está na interdição imposta à comunidade e tem por objetivo restringir a satisfação
pulsional. Estamos diante de restrições às possibilidades de satisfação pulsional por um lado
e, do outro, diante daquele que tem que renunciar ao gozo. Este sacrifício assegura o estatuto
legal da civilização. É nesse sentido que Freud afirma que “a civilização é construída sobre
uma renúncia pulsional.(Ibid., p. 118). Freud acrescenta quanto ao cerceamento do gozo do
homem que “não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada,
pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.” (Idem.). A resultante do gozo
cerceado, enquanto tarefa imposta pelo processo civilizatório é a hostilidade para com a
cultura a semente da barbárie. Imediatamente nos perguntamos que consequências mais
resultarão da hostilidade humana para com aquilo do qual deriva a sua sobrevivência: a
civilização?
Autores contemporâneos, como Maria Rita Kehl, psicanalista, recorre à Filosofia para
tratar do que vem a significar os termos civilização e barbárie na modernidade. É o que faz
esta autora em Civilização partida, que come a coletânea de textos do livro Civilização e
Barbárie, organizado por Adauto Novaes.
37
O termo civilização surgiu com o advento da modernidade, para designar as
sociedades européias em relação aos povos do recém-descoberto “Novo Mundo”.
Penso que podemos fazer coincidir, grosso modo, “modernidade” e “civilização”;
não porque as sociedades pré-modernas ou antimodernas sejam bárbaras, mas
simplesmente porque o conceito de civilização foi criado para marcar uma diferença
em relação a elas. Ora, se o civilizado é aquele que constrói sua identidade em
oposição ao Outro seu semelhante na diferença [...] o bárbaro - podemos dizer
que ele nasce marcado pela diferença. (NOVAES, 2004, p.102).
Kehl afirma que a modernidade produziu a intolerância e a tolerância diante da
constatação desse outro. Segundo ela, a atitude de intolerância está marcada pela
absolutização de certezas, estando a base de tais pensamentos assentada em um “significante
absoluto, capaz de ocupar o lugar deixado vazio por Deus.” (Ibid., p. 102). A razão, a ciência,
o capitalismo são os que ocupam este lugar, revelando um modo de pensar centrado na razão
e na soberania do eu.
A vertente oposta da intolerância a tolerância come a segunda possibilidade de
ação derivada da modernidade, abrindo caminho para a dúvida, para a incerteza e para o ônus
decorrente da deparação com o outro, afirma Kehl. A autora escreve que “tolerar o estranho é
tolerar também a incerteza que ele traz.” (Idem). Tolerar o estranho é tolerar a diferença
tarefa mais fácil de verbalizar do que de efetivamente ser.
A partir dessas considerações, Maria Rita Kehl recorre aos filósofos Montaigne e
Descartes, tomando-os como interlocutores para suas questões relativas ao tratamento da
certeza e da dúvida e suas relações com a civilização e com a barbárie.
Kehl usa os Ensaios de Montaigne, de 1571, para deles tecer considerações sobre o
que é ser civilizado e o que é ser bárbaro na modernidade. Ela extrai do ensaio Da
Experiência (livro III, XXIII), que “a palavra pertence metade àquele que fala, e metade
àquele que escuta.(MONTAIGNE apud KEHL, 2004, p. 102). Assim como o significante
tem o seu valor dado a posteriori , o sentido da palavra está na dependência do outro que
escuta. Daí a verdade o ser absoluta, prévia, se tomada nesta acepção do termo ou seja, a
verdade não pertence a um homem só, posto a relação de dependência com o outro. Freud,
posteriormente, ratifica as concepções de Montaigne na medida em que, como escreve Kehl,
o sujeito se sustenta e se completa, sabe o que diz, no diálogo com o outro” (Ibid., p.
114).
38
Entendemos o propósito de Maria Rita Kehl ao considerar os postulados de
Montaigne, notadamente no que se refere à verdade como algo ligado ao conceito de
alteridade definidor de civilização e que serve para identificar como bárbaras todas as
ações humanas baseadas no pensamento absoluto. Diz a psicanalista que “convicções
absolutas” são o prelúdio das barbáries atuais, das outroras cometidas e, acrescentamos, das
que estão por vir.
René Descartes é o segundo interlocutor filosófico tomado por Kehl. Ele é conhecido
como o filósofo do cogito ergo sum, da vida metódica levada às últimas consequências. O
filósofo do cogito assegura a existência de um eu pensante como verdade única da existência.
É sobre essa base que Descartes defende a idéia de que a única verdade lógica é a da
existência do eu um eu que pensa e, por isso, existe; mas, principalmente, um eu que
duvida. Com o surgimento da psicanálise esta concepção foi subvertida por Freud e resgatada
por Lacan. Freud revela o fracasso do sujeito cartesiano ao mostar para o mundo a existência
do inconsciente. A partir disso, cai a soberania da razão, na medida em que a psicanálise
dissocia o eu da razão ao afirmar que o destino do homem é decidido pelo princípio do prazer.
A subversão do sujeito cartesiano por Lacan é dada na medida em que ele afirma que o sujeito
é onde não pensa e pensa onde não é. O eu que pensa não coincide com o sujeito do desejo
inconsciente.
O que isso tudo tem de relação com o que está sendo tratado, com a civilização e com
a barbárie? A psicanálise surge como possibilidade de abertura para esse outro inconsciente
que habita o suposto sujeito da razão, sendo este um dos fundamentos da tolerância e da
intolerância, conforme as palavras de Kehl: “uma das bases da intolerância é o mecanismo
defensivo de projetar sobre o outro meu semelhante na diferença tudo aquilo que eu
rejeito em mim mesmo.(Ibid., p. 114) A autora estabelece uma ligação entre a vida e a
abertura para a alteridade, alcançadas no diálogo como possibilidade de suporte frente ao
desconhecido e ameaçador que caracteriza o estrangeiro. Suportado isso, -se a vida
civilizada, afirma Kehl. Contrário disso, estão abertas as fronteiras para a barbárie mais cruel
ou para aquela sorrateiramente camuflada no cotidiano das palavras, tendo em vista a
imensidão de possibilidades para os comportamentos bárbaros, desde os mais imperceptíveis
ou os dotados de um abrandamento social, até a crueldade observada na guerra.
Isso nos faz lembrar o que diz Marylink Kupferberg, psicanalista, na sua tese de
doutourado, defendida no ano de 2004, intitulada Filhos da guerra: um estudo psicanalítico
sobre o trauma e a transmissão, na qual a autora analisa a barbárie à luz da psicalise e de
39
considerações oferecidas pelo historiador Eric Hobsbauwm, mediante análise do ensaio
Barbárie: manual do usuário, publicado na New Left Rewiew, em 1994. Kupferberg
corrobora com o seu interlocutor quando ele afirma que a barbárie é decorrente do “colapso
dos sistemas de regra e comportamento moral” pelos quais a sociedade controla seus
membros e grupos. Em outras palavras, a barbárie é decorrente da absolutização do
pensamento e da ruptura da lei. Kupferberg responsabiliza o desmantelamento do
sustentáculo civizatório, que é a lei ─ a qual deixou factíveis as defesas outrora existentes e de
que lançou o a civilização diante da hostilidade humana apontada por Freud para dizer
que o homem se acostuma com o desumano, fato particularmente observado no
comportamento de militares que vivenciam cenários de guerra por períodos prolongados
7
. Isto
significa que o homem é capaz de banalizar a barbárie e conviver com o intolerável. Numa
palavra, relativiza-a. Isso abre espaço para que a barbárie seja aceita em algumas
circunstâncias até desejada, na verdade, em nome de um ideal, como é o caso daqueles
identificados com os motivos a guerrear. Sobre o exposto, Kupferberg escreve:
A ferida aberta na humanidade está longe de cicatrizar, deixando perceber o
incremento de práticas perversas, práticas entendidas como aquelas que se dedicam
a gozar da destruição, expoliação, exploração, humilhação, ou crueldade sobre o
corpo de um outro ser vivo, e que nos habituamos a assistir, alguns com indignação
e muitos, como mencionados por diversos autores, com indiferença, passando
gradativamente a fazer parte integrante do imaginário social sem mais provocar
escândalo nem reconhecimento dos seus inúmeros efeitos traumáticos
(KUPFERBERG, 2004, p. 58).
Em 1937, Freud anuncia que a ciência e a tecnologia não trariam a felicidade
prometida ao homem e, pelo contrário, constata que são fontes geradoras de mal-estar, uma
vez que são feitos humanos, ou seja, são derivados do laço social. Tendo em vista a definição
do conceito freudiano de civilização como um processo é salutar a citação de Fuks (p. 26) no
texto A cor da carne, publicado em 2006: “se as transformações culturais implicam mudanças
na expressão do mal-estar na civilização, à psicanálise cabe refletir sobre esses novos arranjos
em que se apresentam os conflitos, à luz dos conceitos metapsicológicos, inerentes à própria
7
Essa afirmação é corroborada pelo relato de militares egressos da guerra, os quais usam frequentemente o
significante “acostumar-se”, em relação à morte do inimigo. Ouvimos grupos de militares que retornaram do
Timor-Leste e do Haiti, durante nove anos, países estes em conflito armado na época e ainda na atualidade.
40
concepção do inconsciente.” Ou seja, à psicanálise cabe a tarefa de dar uma resposta à
banalização terrificante das ações humanas cruéis, sobretudo porque o criador da psicanálise
jamais menosprezou a importância da ética da psicanálise frente à maldade humana, papel
esse garantido pelos conceitos de inconsciente e pulsão.
2.2 O conceito de pulsão
Sabe-se que o termo pulsão, Trieb, usado para designar o ato de impulsionar já se
achava presente nas concepções acerca das doenças mentais desenvolvidas por psiquiatras
alemães do século XIX. Autores como Karl Wilhelm Ideler (1795-1860) e Heinrich Wilhelm
Neumann (1814-1884) defendiam a existência de impulsos protagonistas das questões
sexuais, revelando que a angústia era derivada da insatisfação pulsional. Entretanto, Freud
recorre ao termo pulsão, pela primeira vez, em Três ensaios sobre a sexualidade (1905)
quando passa a designá-la a carga energética presente na base da atividade motora do
organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem.
O conceito de pulsão está ligado ao de libido e ao de narcisismo e comem os pilares
centrais da teoria da sexualidade em Freud. A idéia de uma libido psíquica está presente desde
o Projeto para uma psicologia científica (1895), onde seu criador a define como uma forma
de energia situada na origem da atividade humana. Ele estabelece uma diferença entre os
impulsos originados internamente considerados irrefreáveis pelo sujeito -, e aqueles
derivados do meio externo, aos quais a esquiva ou fuga se apresenta como uma possibilidade.
A libido é o termo empregado por Freud para designar a energia própria da pulsão sexual,
remetida em sua origem à sexualidade infantil, donde brotam as causas da neurose. A
introdução do conceito de libido permitiu a Freud enveredar na construção da teoria da
sexualidade concepções enunciadas com profundidade em 1905 nos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, disposto adiante neste texto. “A iniciativa de Freud consistiu, em
primeiro lugar, em retirar a libido desse jardim das delícias, a um tempo, genital, normativo e
literário, no qual o haviam enterrado os sexólogos, para dela fazer um componente essencial
da sexualidade como fonte do conflito psíquico, para integrá-la na definição da pulsão”.
(ROUDINESCO, 1998, p. 472).
41
Percebemos que a adoção do termo libido deu-se em meio a um cenário acadêmico
interessadíssimo na descrição e classificação das manifestações sexuais do ser humano. Assim
sendo, Freud inicia seus passos identificando a libido como o que virá a designar como pulsão
sexual (Eros), em contraste à pulsão de morte (Tanatos). Roudinesco nos indica ainda que
[...] ao retirar a „libido sexualis‟ do jardim dos sexólogos, Freud fez dela o principal
determinante da psique humana.” (Id.)
Em 1894, Freud adjetiva a libido de „psíquica‟, época em que vigora a teoria da
sedução por parte de um adulto como causa da histeria. Essa é uma das influências derivadas
de Charcot, o qual concebia a existência de uma região corporal, denominada de zona
histerógena, a qual era investida pela libido e cuja excitação acompanhada de prazer sexual
representava o motivo do ataque histérico. O abandono da teoria da sedução, materializado
pela afirmação das reminisncias sofridas pelos histéricos, agregado às descobertas
funcionais do sonho e da fantasia, remete Freud às primeiras experiências sexuais, ou seja, as
da infância. Nesse percurso, parece-nos que a pesquisa freudiana, em seus avanços e
subversões, somada aos dados que lhe forneciam suas histéricas, indicaram-lhe a estrada rumo
à elucidação da sexualidade humana, aspectos coroados e compilados em 1905, nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade. A partir de então, a libido passa a ser entendida
enquanto energia, ou seja, como “a manifestação dinâmica, na vida psíquica, da pulsão
sexual” (Ibid, p. 473). Freud redefine a libido não mais como sexualis, mas como desejo
sexual que objetiva satisfação através de objetos, muito além da mera atividade sotica.
Podemos observar os primórdios de futuras definições como, por exemplo, dos elementos
pulsionais que serão fartamente desenvolvidos em 1914, no texto As pulsões e suas
vicissitudes, que também será abordado neste capítulo.
Em 1898, com a publicação de A sexualidade na etiologia das neuroses, concluído em
fevereiro, Freud torna explícita a idéia da sexualidade infantil, impactando a sociedade
vienense da época. Era objetivo do criador da psicanálise refutar a idéia de uma predisposição
neuropática específica como etiologia neurótica. O texto traz críticas dirigidas a negligência
da atitude dica com relação à sexualidade humana, notadamente quanto às convenções
sociais, circunstâncias que serão retomadas em textos posteriores, a saber, Moral sexual
civilizada (1908) e O mal-estar na cultura (1930). As palavras iniciais do texto dizem que
[...] as causas mais importantes da doença neurótica são encontradas em fatores emergentes
da vida sexual” (1898, p. 236). Nessa época já aportava a existência da sexualidade infantil
42
como parte determinantemente ativa no sujeito. Esse dado é muito importante na elaboração
daquilo que Freud considerou como sua mitologia: as pulsões.
A etiologia das psiconeuroses reside também no campo da sexualidade. Por um
singular percurso tortuoso de que falarei mais adiante, é possível chegar a um
conhecimento dessa etiologia e compreender por que o paciente era incapaz de nos
dizer qualquer coisa a esse respeito. Pois os acontecimentos e influências que estão
na raiz de toda psiconeurose pertencem, não ao momento atual, mas a uma época da
vida há muito passada, que é, por assim dizer, pré-histórica a época da primeira
infância; e eis que o paciente também nada sabe deles. Ele os esqueceu embora
apenas em determinado sentido (Ibid., p. 240).
A importância do presente escrito para o estudo da pulsão reside na ênfase que Freud
atribui à sexualidade, cuja energia é a libido. A leitura desses escritos freudianos iniciais nos
permitem observar o prenúncio de elaborações futuras. Numa dessas passagens, a pena do
mestre grafa que [...] a angústia é sempre a libido que foi desviada de seu emprego [...]” e
que “[...] tudo o que impede a ocorrência de satisfação é nocivo.” (Ibid., p. 247)
Nesse texto de 1898, Freud ratifica certezas quanto à verdadeira etiologia da neurose,
escrevendo que:
Erramos ao ignorar inteiramente a vida sexual das crianças; segundo minha
experiência, as crianças são capazes de todas as atividades sexuais psíquicas, e
também de muitas atividades somáticas. Assim como a totalidade do aparelho sexual
humano não está compreendida nos órgãos genitais externos e nas duas glândulas
reprodutoras, também a vida sexual humana não começa apenas na puberdade, como
poderia aparecer a um exame superficial. Contudo, é verdade que a organização e a
evolução da espécie humana se esforçam por evitar uma ampla atividade sexual
durante a infância. Aparentemente, no homem, as forças pulsionais sexuais
destinam-se a ser armazenadas, de modo que, com sua liberação na puberdade,
possam servir a grandes fins culturais (p.250).
Nessa passagem Freud conclui que as experiências sexuais infantis produzem um
efeito em grau muito reduzido”, sendo o seu efeito retardado mais importante, na medida em
que “esse efeito retardado se origina [...] nos traços psíquicos deixados pelas experiências
43
sexuais infantis(Idem). Isso aponta para o período de latência indicado por Freud nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), onde ambos os aparelhos somático e psíquico
sofrem considerável desenvolvimento. A citação também revela o que Freud desenvolve em
textos posteriores, como, por exemplo, em Moral sexual civilizada (1908) e no O mal-estar
na cultura (1930), nos quais são abordados os entraves culturais que sofre a pulsão, todos
com finalidade restritiva, retardadora e até impeditiva da sexualidade.
O texto de 1898 nos possibilita antever quão longe iria o judeu de Freiberg. nesse
início de sua obra ele prega, ou, poderíamos dizer “pragueja” que as manifestações neuróticas
provêm do efeito retardado de traços inconscientes originados na infância, acessíveis à
psicoterapia. Sobre tal psicoterapia, escreve que ela deve seguir caminhos diferentes do
todo sugestivo, e diz: “baseando-me no todo catártico, introduzido por Josef Breuer,
elaborei quase completamente, nos últimos anos, um processo terapêutico que proponho
descrever como „psicanalítico‟” (Ibid., p. 251). Dessa maneira, nasceu a “peste”.
Após a publicação de A sexualidade na etiologia das neuroses (1898) e dada a
experiência que a cnica proporcionava a Freud, ele conclui não haver uma estrada linear para
o surgimento das manifestações sexuais. Ou seja, a sexualidade está para além do sonho e da
fantasia disfarces que necessitam de deciframento por parte do analista. Assim sendo, passa
a escrever sobre a sexualidade infantil no tocante as origens, aberrações e perversões desta.
Segundo Roudinesco (1998), esse foi o propósito dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905).
O conceito de pulsão aparece na obra freudiana em 1905, após o longo período de
correspondência com Fliess, o qual se estendeu por dezessete anos, entre 1887 e 1904. A
temática da correspondência era a bissexualidade, lembra Coutinho Jorge (op. cit., p. 25),
ressaltando que “não é à toa que, em 1905, exatamente um ano após a ruptura entre os dois
[...], Freud introduz o conceito de pulsão.” O desvencilhar da noção de bissexualidade
biológica e a introdução da bissexualidade psicológica é o elemento que faltava para a
introdução do conceito de pulsão. “Toda, absolutamente toda a teoria da sexualidade de Freud
vai girar em torno desse conceito assinala Coutinho Jorge (Idem). A pulsão é o conceito
criado por Freud para abordar a sexualidade humana.
O texto de 1905 consta como uma das mais importantes e originais contribuições de
Freud acerca da sexualidade humana, particularmente por ser a obra que introduz a palavra
pulsão (Trieb). O texto foi alvo de debates acalorados e de críticas medonhas pela sociedade
vienense e acadêmica da época, tal foi o seu impacto. O seu autor fez retificações nas
44
sucessivas edições do texto mais que em qualquer outro escrito. Muitas das idéias defendidas
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ocupavam a mente de criador entre os anos
de 1896-98. A sexualidade infantil até 1897 era compreendida como um fator latente e que
poderia eclodir [desastrosamente] mediante a intervenção de um adulto. Após o abandono da
teoria da sedução, Freud proclama a descoberta do Complexo de Édipo constitutivo do núcleo
neurótico. A sexualidade infantil adquire a justa cidadania nos primórdios da existência
humana, livre de concepções alusivas a fatores externos desencadeantes da mesma. Nas
discussões em torno do Édipo, Freud ratifica a existência de desejos sexuais nas crianças.
Nesse contexto, surge “Dora”, que presenteia o pai da psicanálise com sua fala neurótica,
permitindo Freud prosseguir em suas elaborações principais sobre a teoria da sexualidade.
Ainda nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, p. 157), Freud apresenta
uma definição das pulsões a qual, apesar dos acréscimos e retificações nas edições posteriores
do texto, permanece sem nenhuma modificação: “[...] por pulsão, antes de mais nada, não
podemos designar outra coisa senão a representão psíquica de uma fonte endossomática de
estimulações que fluem continuamente, em contraste com a estimulação produzida por
excitações esporádicas e externas. A pulsão, portanto, é um dos conceitos da demarcação
entre o psíquico e o somático.”
O texto de 1905 trata fundamentalmente da pulsão sexual, conceito distinto de Instinkt,
na medida em que se singulariza enquanto categoria não redutível ao puro ato sexual. Freud
inicia o texto escrevendo que é a libido que constitui a energia da pulsão e refere-se à quão
imprecisa e vulgar é a opinião popular sobre a sexualidade humana. A moral sexual de sua
época supunha a ausência de sexualidade na infância, ocorrendo o seu despertar somente por
ocasião da puberdade. Também era senso comum que as manifestações sexuais teriam como
objetivo a união sexual com o sexo oposto, constituindo o caminho normal a ser percorrido.
Fora desse percurso a sexualidade seria concebida como aberrante. Nesse cenário engessado
pela moral reinante, a teoria freudiana da sexualidade sacode a sociedade vienense leiga e
douta, na medida em que é revelado o elemento diferenciador do humano: a pulsão. “A teoria
popular sobre a pulsão sexual tem seu mais belo equivalente na fábula poética da divisão do
ser humano em duas metades que aspiram a unir-se de novo no amor. Por isso causa grande
surpresa tomar conhecimento de que homens cujo objeto sexual não é a mulher, mas o
homem, e as mulheres para quem não o homem, e sim a mulher, representa o objeto sexual”
(Ibid., p. 128). Essa passagem revela o diabólico da pulsão, na medida em que somente por
ela e através dela que passa a existir a força do desejo enquanto qualquer possibilidade de
45
realização. Com isso, Freud passa escreve sobre os desvios da sexualidade tida como normal.
Tais desvios são designados como perversos e constitutivos do humano. Esse talvez tenha
sido o maior abalo provocado pelos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), juntamente com
a afirmação da predisposição bissexual originária do homem (Ibid., p.133).
A psicanálise considera antes, que a independência da escolha objetal em relação
ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e
femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas
pré-históricas, é a base originária da qual, mediante a restrição num sentido ou no
outro, desenvolve-se tanto o tipo normal como o invertido. No sentido psicanalítico,
portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um
problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa
atribuir a uma atração de base química. A conduta sexual definitiva se decide
depois da puberdade e resulta de uma série de fatores inabarcáveis, de natureza em
parte constitutiva e em parte acidental (Ibid., p. 136-7).
O “inabarcável” da citação refere-se ao que de incontrolável na pulsão, fato que
surge como uma revolução na psicanálise e fora dela. Freud passa a afirmar que a
investigação psicanalítica apresenta-se como uma possibilidade de “conhecimento da pulsão
sexual” (Ibid., p.153), asseverando expressamente que é a energia da pulsão sexual que
sustenta o sintoma, sendo essa energia a única fonte energética constante da neurose e a mais
importante de todas, de tal sorte que a vida sexual [...] se expressa de maneira exclusiva, ou
predominante, ou apenas parcial, nesses sintomas.” Em seguida, acrescenta que os sintomas
são a atividade sexual dos doentes.” Nesse momento dos Três ensaios sobre a sexualidade
Freud introduz o conceito de pulsão parcial. Numa nota acrescentada em 1920, esclarece que
os sintomas neuróticos baseiam-se, de um lado, nas exigências das pulsões libidinosas e, de
outro, nos protestos do eu em reação a elas.” (Idem) O conceito de pulsão parcial está ligado
ao de zona erógena, estando a caracterização conceitual freudiana circunscrita pelo período
que vai da infância até a puberdade. Para Freud, nessa fase a pulsão sexual não existe como
tal, senão sob a forma de um conjunto de pulsões parciais, cuja soma constitui a base da
sexualidade infantil e tem seu funcionamento apoiado em zonas erógenas. “Além de uma
pulsão que não é sexual em si mesma e tem sua fonte em impulsos motores, podemos
distinguir nas pulsões parciais a contribuição de um órgão receptor de estímulos (pele,
46
mucosa, órgão sensorial). Tal órgão deve ser designado de „zona erógena‟: o órgão cuja
excitação confere à pulsão um caráter sexual” (Ibid., p. 157).
A natureza da pulsão em si mesma não tem qualificativos, devendo ser apenas
considerada como exigência a ser satisfeita. A fonte dessa exincia reside no processo
excitatório de um órgão e seu alvo consiste na supressão do estímulo. Freud escreve que os
óros do corpo são capazes de fornecerem excitação sexual, constituindo-se tal óro uma
zona erógena da pulsão parcial que se origina nele.
Na parte II dos Três ensaios sobre a sexualidade, intitulada A sexualidade infantil,
Freud afirma que “a pulsão não está dirigida para outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é
auto-erótica” (Ibid., p. 169). Num primeiro momento, a zona erógena vigora como ponto de
origem da pulsão parcial. Num segundo momento, escreve Roudinesco (op. cit., p. 629) que
[...] essa pulsão parcial [...] separa-se de seu objeto de apoio para se tornar autônoma.” Ou
seja, torna-se auto-erótica, constituindo-se, então, na base do narcisismo primário, resultante
da convergência das pulsões parciais para o eu inteiro, e o mais apenas para uma zona
corporal específica” (FREUD, 1905, p. 169).
A atividade sexual apóia-se numa das funções que servem à preservação da vida
e só depois torna-se independente delas. Quem já viu uma criança saciada recuar do
peito e cair no sono, com as faces coradas e sorriso beatífico, há de dizer a si mesmo
que essa imagem persiste como norma de expressão da satisfação sexual em épocas
posteriores da vida. A necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da
necessidade de absorção de alimento uma separação que se torna inevitável [...]
(Ibid., p. 170).
Freud escreve então que as manifestações sexuais infantis nascem apoiando-se em
funções somáticas vitais, gerando o entendimento que a pulsão sexual apóia-se na pulsão de
autoconservação; não conhecem objeto sexual apesar dessa característica não qualificá-las
como anobjetais -, pois são auto eróticas; e o súditas de uma zona erógena, isto é, têm o
alvo sexual sob a regência de uma zona erógena. Na verdade, Freud concebe qualquer parte
do corpo como capaz de constituir-se numa zona erógena, apesar de existirem algumas
predestinadas.
Cinco anos após a publicação dos Três ensaios sobre a sexualidade, em 1910, no texto
A concepção psicanalítica da perturbação da visão, Freud apresenta a noção de pulsão do eu
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em oposição à pulsão sexual e ligada às fuões de autoconservação do eu. Estava constituído
o seu primeiro dualismo pulsional. No mesmo ano, no texto Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua infância, Freud apresenta uma descrição do que designou por zonas
erógenas, concebendo que, se a libido é energia dinâmica, ela pode deslocar-se quanto ao
objeto e quanto ao objetivo, assim como podem ser diversas as suas fontes excitatórias,
correspondendo a cada fonte uma atividade erótica. Dessa descrição originou-se a teoria dos
estádios oral, anal, fálico e genital. De fato, se é preciso retornar à infância para compreender
a gênese da sexualidade adulta, é porque a libido se organiza de maneira diferenciada com
respeito a cada zona, conforme as etapas da vida. A cada idade, a cada estádio corresponde
uma modalidade de relação de objeto.” (ROUDINESCO, 1998, p. 473)
Uma vez que a libido é a manifestação da pulsão sexual e dada a variabilidade das
zonas erógenas, a pulsão é concebida como parcial, disposta da seguinte forma: uma ligada a
zona oral (pulsão oral), outra à zona anal (pulsão anal) e as demais, definidas por seu alvo.
Lembremos que as concepções de 1905 preconizam que a satisfação libidinal (objetal) recai
no próprio corpo, o que leva Freud a concebê-la como parcial e auto-erótica.
Em 1914 é publicado Sobre o narcisismo: uma introdução, constituindo-se num dos
mais importantes escritos freudianos devido à importância do conceito de narcisismo na teoria
da sexualidade. A relevância desse texto no estudo da pulsão reside na distinção traçada por
Freud entre a libido do eu e a libido do objeto e, consequentemente, na antítese entre as
pulsões do eu e as pulsões sexuais. Obviamente a pesquisa freudiana sobre o narcisismo não
se encerra nessa distinção libidinal. O texto é de extrema densidade teórica, verificada, por
exemplo, na introdução dos conceitos de narcisismo primário e secundário, além da
apresentação da noção de ideal do eu. Limitar-nos-emos, todavia, em abordar o que preconiza
Freud sobre libido do eu e libido do objeto.
Freud (1914, p. 89) observa que o narcisismo é uma evidência presente em larga
extensão no ser humano, estando para além de quaisquer patologias, de modo que [...] uma
localização da libido que merecesse ser descrita como narcisismo [...]” reivindica terreno no
desenvolvimento sexual humano. Essa passagem é indicativa da importância do conceito de
narcisismo, dada a vinculação com o conceito de libido, já estabelecida teoricamente como
energia pulsional.
A partir de dificuldades no tratamento psicanalítico com neuróticos, Freud observa que
o narcisismo se acopla libidinalmente à pulsão de autopreservação, característica essa que ele
estende “a toda criatura viva” (Ibid., p. 90), o que leva o criador da psicanálise a supor a
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existência do narcisismo primário. Da tentativa de incluir as parafrenias (demência precoce e
esquizofrenia) na hipótese da teoria da libido, percebe que os pacientes parafrênicos mantêm-
se afastados do mundo externo. Percebe, então, que o mesmo ocorre na histeria e neurose
obsessiva, havendo uma substituição da libido desviada para a fantasia. A respeito do
parafrênico, escreve: “ele parece realmente ter retirado sua libido de pessoas e coisas do
mundo externo, sem substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o
processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a
conduzir a libido de volta a objetos.” (Idem).
Para Freud (Ibid., p. 91), a libido que é retirada do mundo externo (libido objetal) é
canalizada para o eu, caracterizando o estado narcísico. Contudo, ele defende a idéia de que o
narcisismo derivado da libido objetal que retorna para o eu do sujeito é secundário a um
narcisismo original, primário “[...] que é obscurecido por diversas influências diferentes.”
“Assim, formamos a idéia de que há uma catexia libidinal original do eu, parte da qual é
posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada
com as catexias objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os
pseudópodes que produz.” (Ibid., p. 92).
Para a psicanálise, tudo deriva dessa libido primária, constituindo-se as catexias
objetais emanações dessa mesma libido. Entre os dois tipos de libido do eu e do objeto
Freud indica uma antítese assentada em bases econômicas, uma vez que quanto mais uma é
empregada, mais a outra se esvazia.” (Idem). Ele conclui que durante o estado narcísico
ambas as libidos existem em conjunto, e que a libido do objeto é distinta da libido do eu.
Sobre a distinção entre narcisismo e auto-erotismo, responde não haver um eu
constituído no início da vida. O eu tem de ser desenvolvido(Ibid., p. 93) assevera Freud,
agregando que as pulsões auto-eróticas estão presentes nos primórdios da libido, sendo
necessária uma nova ação psíquica” (Idem), de modo a impulsionar o narcisismo. Quando o
eu começa a catexizar objetos, a libido narcísica transforma-se em libido objetal. O
narcisismo perdura até esse momento de passagem de investimento da libido.
A partir da análise das neuroses de transferência, Freud estabelece uma diferenciação
entre libido do eu e libido do objeto. Essa diferenciação está ligada à distinção entre as
pulsões sexuais e pulsões do eu. “Existem vários pontos a favor da hipótese de ter havido
desde o início uma separação entres as pulsões sexuais e as outras, as pulsões do eu [...].”
(Ibid., p. 94).
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Freud se refere a uma “energia psíquica indiferente” que através da catexização do
objeto se torna libido. Diz também que todo indivíduo possui duas finalidades: uma de
atender as próprias necessidades, e a outra “como um elo numa corrente.” (Idem). Nesse
sentido, a sexualidade é uma finalidade a ser exercida em atendimento ao que ele considera
inalienável: a pulsão. Ele é o veículo mortal de uma substância (possivelmente) imortal
como o herdeiro de uma propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um
patrimônio que lhe sobrevive.” (Ibid., p. 95).
Assim sendo, o imortal no ser humano é a pulsão. Diante disso, a separação entre as
pulsões sexuais e as pulsões do eu é reveladora da dúplice função do sujeito dadas as
finalidades do eu e às ligadas aos objetos. Percebemos a subjacência do aparato biológico
nessas concepções, juntamente com o fator psicológico. Num primeiro momento, Freud se
refere às substâncias químicas responsáveis pelo desencadear sexual para, em seguida, dizer
que se trata, na verdade, de forças psíquicas especiais a pulsão e não, químicas.
O texto que se segue ao do narcisismo é As pulsões e seus destinos (tradução do título
nossa), publicado em 1915, no qual Freud define a pulsão como um conceito situado na
fronteira entre o mental e o psíquico [...], o representante psíquico dos estímulos que se
originam de dentro do organismo e alcançam à mente” (p. 141-2). Esse texto representa o
relato mais claro do pensamento freudiano sobre as pulsões. O mestre vienense inicia o texto
dando o alerta de que se trata de um conceito obscuro e enigmático. Em seguida, adverte que
a pulsão não é um simples impulso aplicado à mente como supõe a fisiologia, pois a pulsão
corresponde a um estímulo originado de dentro do próprio organismo, e não do meio externo.
Do mesmo modo, refere que a pulsão diferencia-se de um impacto único que normalmente
caracteriza um estímulo advindo do mundo externo.
As linhas iniciais de As pulsões e seus destinos (1915, p. 138-9) indicam o que irá se
perdurar mesmo após a morte de Freud: que a pulsão é movimento de força constante.
A pulsão, por um lado, jamais atua como uma força que imprime um impacto
momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Além disso, visto que ela
não incide a partir de fora, mas de dentro do organismo, não como fugir dela. O
melhor termo para caracterizar uma pulsão seria necessidade. O que elimina uma
necessidade é a satisfação.
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Freud atesta a existência de necessidades pulsionais ao afirmar que, diante de
estímulos internos, a ação muscular o logra êxito, persistindo a estimulação até atingir
satisfação. Por conseguinte, postula como características primordiais das pulsões a “sua
origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu aparecimento como força
constante” (Idem), donde se deduz a inviabilidade de fuga da pulsão. No texto, escreve que a
finalidade do aparelho psíquico é a manutenção do princípio de constância, tendo em vista os
estímulos que perturbam o equilíbrio de tensões. “O sistema nervoso é um aparelho que tem
por função livrar-se dos estímulos que lhe chegam, ou reduzi-los ao nível mais baixo possível;
ou que, caso isso fosse viável, se manteria numa condição inteiramente não estimulada.”
(Ibid., p. 140).
Diz Freud que as pulsões impelidas ao sistema nervoso requerem complexas e
interligadas ações a fim de proporcionar satisfação à fonte endógena de estimulação. Conclui,
portanto [...] que as pulsões, e o os estímulos externos constituem as verdadeiras forças
motrizes por detrás dos progressos que conduziriam o sistema nervoso, com sua capacidade
ilimitada, a seu alto nível de desenvolvimento atual.(Idem). Observamos o autor anunciar o
princípio de constância como coadjuvante do funcionamento pulsional, na medida em que
toda atividade psíquica está atrelada a sentimentos integrantes da série prazer-desprazer. Ele
esclarece que os sentimentos desagradáveis estão ligados a um aumento e os sentimentos
agradáveis a uma diminuição do estímulo.” (Idem).
A respeito do princípio de constância, em nota de rodapé desse texto de 1915, é
importada uma transcrição do texto Além do princípio do prazer (1920, nota 1, p. 141), o qual
será abordado adiante, que diz o seguinte: “o aparelho mental esforça-se por manter a
quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou pelo menos mantê-la
constante”. Essa é a enunciação do entendimento de Freud sobre princípio de constância. Na
mesma nota de rodapé apresenta o princípio do prazer, derivado do mesmo texto de 1920, da
seguinte forma: “o curso seguido pelos fatos mentais é automaticamente regulado pelo
princípio do prazer. [Esse curso] assume uma direção tal, que seu resultado final coincide com
[...] a fuga de desprazer ou uma produção de prazer.” (Idem).
Vimos que desde 1895, no Projeto para uma psicologia científica, Freud reconhece
uma tendência na vida psíquica no sentido de evitar o desprazer e buscar o prazer,
identificando essa tendência como um movimento primário rumo ao nirvana. Se
acompanharmos, num primeiro momento, os passos do mestre em sua empreitada trica do
edifício pulsional, observamos a distinção entre o princípio de constância e o princípio do
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prazer. Em 1920 (nota 1, p. 56), ele ratifica essa diferenciação e escreve que “[...] o princípio
do prazer é uma modificação do princípio do Nirvana. O princípio de Nirvana deve ser
atribuído à pulsão de morte, sustenta ele, e sua transformação em princípio do prazer se deve
à influência da pulsão de vida ou libido. Em (1915, p. 142), encontramos a subsequente
definição de pulsão: “[...] uma pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na
fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se
originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exincia feita à
mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.”
Nesse momento introduz os quatro elementos pulsionais: pressão, finalidade, objeto e
fonte. O elemento pressão, Drang, representa a essência da pulsão e diz respeito à quantidade
de força motora. Essa força é constante. “Toda pulsão é uma parcela de atividade” (Idem)
escreve Freud, apontando para a força constante que caracteriza a pulsão. Com relação à
finalidade, Ziel, o objetivo da pulsão é sempre a satisfação. Esse objetivo é alcançado quando
é eliminada a estimulação na fonte da pulsão. Podem ocorrer satisfações parciais, escreve
Freud, porque “uma pulsão possui várias finalidades mais próximas ou intermediárias, que
são combinadas ou intercambiadas umas com as outras.” (Ibid., p. 143). O que viabiliza a
satisfação pulsional é o objeto da pulsão, adjetivado por Freud como o que de mais variado
na pulsão. O legado do objeto é tornar possível a satisfão. Nesse intento, qualquer coisa
pode ser tomada como Objekt. Sobre a fonte, Quelle, Freud entende um processo somático
que se no corpo, donde o estímulo proveniente é representado na vida mental como uma
pulsão. Ele escreve que embora as pulsões sejam inteiramente determinadas por sua origem
numa fonte somática, na vida mental nós as conhecemos apenas por suas finalidades.” (Idem).
Freud se questiona se as pulsões variam quanto à qualidade e, a esse respeito, responde
que qualitativamente elas são semelhantes, variando somente no aspecto quantitativo. Isso
significa dizer que o efeito que uma pulsão causa é determinado economicamente.
Sobre os tipos de pules, propõe duas categorias pulsionais primordiais as pulsões
do eu, também denominadas de autopreservativas, e as pulsões sexuais. Essa hitese é
decorrente dos estudos em torno da histeria e da neurose obsessiva, os quais revelam, em sua
etiologia, a existência de um conflito entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais, assunto já
referenciado no corpo deste texto, por ocasião da análise do texto de 1914. É muito
interessante observar a frase freudiana sobre o dualismo pulsional proposto quando escreve
que é uma hitese “[...] a ser conservada enquanto se mostrar útil.” (Ibid., p. 144). O
rastreamento dos passos do mestre nos mostrará que um novo dualismo pulsional será
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postulado. Nesse momento ele acredita que a análise do material psicológico fornece os
subsídios necessários para essa diferenciação e classificação das pulsões. [...] a contribuição
da biologia não vai de encontro à distinção entre as pulsões sexuais e as do eu. A biologia
ensina que a sexualidade o deve ser colocada em de igualdade com outras funções do
indivíduo, pois suas finalidades ultrapassam o indivíduo e têm como seu conteúdo a produção
de novos indivíduos isto é, a preservação da espécie.(Ibid., p. 145). Em seguida, escreve:
de um ponto de vista, o indivíduo é a coisa principal, sendo a sexualidade uma das suas
atividades e a satisfação sexual uma de suas necessidades; ao passo que, de outro ponto de
vista, o indivíduo é um apêndice temporário e passageiro do idioplasma quase imortal, que é
confiado a ele pelo processo de geração.” (Idem).
Entendemos que Freud está se referindo ao fato de que a função sexual difere da
função biológica em virtude da pulsão. Ele se vale da neurose como uma possibilidade de
estudo e caracterização das pulsões sexuais. Sobre elas, assinala que:
São numerosas, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam em
princípio independentemente umas das outras e só alcançam síntese mais ou menos
completa numa etapa posterior. A finalidade pela qual lutam é a consecução do
prazer do órgão; somente quando a síntese é alcançada é que elas entram a serviço
da função reprodutora, tornando-se identificáveis, de modo geral, como pules
sexuais. Logo que surgem, estão ligadas às pules de autoconservação, das quais
gradativamente se separam; também na sua escolha objetal, seguem os caminhos
indicados pelas pulsões do eu. Parte delas permanece associada às pulsões pela vida
inteira, fornecendo-lhes componentes libidinais que, no funcionamento normal,
escapam à observação com facilidade, só sendo revelados de maneira clara no
início da doença. Distinguem-se por possuírem em ampla medida a capacidade de
agir vicariamente umas pelas outras, e por serem capazes de mudar prontamente de
objetos. [...] são capazes de funções que se acham muito distantes de suas ações
intencionais originais (Ibid., p. 146-7).
A longa citação é densa de concepções em torno do entendimento de pulsão sexual.
Nela, Freud ratifica que o corpo todo é fonte pulsional e que o objetivo final da pulsão é a
satisfação. Indica também, os sinais de ligação das pulsões sexuais às pulsões do eu, das quais
se separam gradativamente, apesar de parte dessas pulsões permanecer para sempre
vinculada às pulsões de autoconservação. Fundamentalmente, Freud nos diz sobre a
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capacidade sublimatória da pulsão, sendo esse um destino possível e facilmente observado na
arte.
Além da capacidade de sublimação, as pules podem ter outros destinos: reversão a
seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, recalque e, juntamente com a sublimação,
compõem os quatro destinos pulsionais atribuídos por Freud. O texto de 1915 aborda dois
desses destinos pulsionais proclamados, sendo reservadas publicações à parte para o recalque
e para a sublimação, este, nunca publicado. “Tendo em mente a existência de forças motoras
que impedem que uma pulsão seja levada até o fim de forma não modificada, também
podemos considerar essas vicissitudes como modalidades de defesa contra as pulsões.” (Ibid.,
p. 147).
Segundo o autor, a reversão de uma pulsão a seu oposto comporta dois processos: a
transformação da atividade em passividade e, segundo, reversão a seu oposto. Vale-se, então,
dos pares de opostos sadismo-masoquismo e escopofilia-exibicionismo para tratar da
mudança que envolve atividade e passividade. Inicia suas concepções escrevendo que a
reversão de uma pulsão a seu oposto afeta somente as finalidades pulsionais, ou seja, as
modalidades de satisfação que envolve a pulsão. Dessa forma, [...] a finalidade ativa
(torturar, olhar) é substituída pela finalidade passiva (ser torturado, ser olhado).” (Ibid., p.
150).
Diferentemente da reversão, o retorno de uma pulsão em direção ao pprio eu do
sujeito mantém-se inalterado em sua finalidade, havendo, entretanto, uma mudança de objeto.
Lembremos que o objeto é o que de mais variável na pulsão. Assim sendo, o masoquismo
é o resultado da pulsão sádica que retorna ao próprio eu do sujeito. No caso do sadismo-
masoquismo há uma substituição do objeto a quem é infligido dor para o eu do sujeito, que
passa a sofrer a dor. Com o retorno em direção ao eu efetua-se também a mudaa de uma
finalidade pulsional ativa para uma passiva, diz Freud. Isso significa que o desejo de torturar
muda para o desejo de ser torturado.
No caso do par escopofilia-exibicionismo ocorre processo similar: o olhar (ativo) para
um objeto, seguido da desistência desse objeto e eleição de parte do próprio corpo. A
introdução de um novo personagem possibilita o ser olhado pelo eleito, para quem deve se
exibir. Freud escreve que “o olhar precede o ser olhado.” Futuramente irá postular que o
masoquismo é primário. No caso da escopofilia, inicialmente essa pulsão é auto erótica
porque o objeto eleito é parte do próprio corpo do sujeito. a maturação psíquica é que
possibilitará a troca dessa parte do próprio corpo por outro objeto.
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No tocante a ambas as pulsões que acabamos de tomar como exemplo, deve-se
observar que sua transformação por uma reversão da atividade para a passividade e
por um retorno em direção ao sujeito nunca implica, de fato, toda a quota pulsional.
A direção ativa anterior da pulsão persiste em certa medida, lado a lado com sua
direção passiva ulterior, mesmo quando o processo de sua transformação tenha sido
muito extenso (Ibid., p. 151).
Observamos Freud abordar questões relativas à relação entre auto erotismo e
narcisismo através de considerações ligadas aos pares sadismo-masoquismo e escopofilia-
exibicionismo: “[...] em ambos os casos, isto é, na escopofilia passiva e no masoquismo o
sujeito narcisista é, através da identificação, substituído por outro eu.” (Ibid., p. 153). Com
isso, Freud retrata que os destinos pulsionais estão em estreita ligação com a organização
narcisista do eu e levam consigo essa herança original. Outrossim, nesta obra e em textos
futuros, Freud alude ao fenômeno da ambivalência característica da pulsão, no sentido de que
atividade e passividade caminham juntas.
Com relação à mudança de conteúdo de uma pulsão - segundo aspecto da reversão de
uma pulsão a seu oposto analisa o par amor-ódio, conferindo-lhe o emblema de melhor
exemplo do que vem a ser ambivalência.
É impossível duvidar de que exista a mais íntima das relações entre esses dois
sentimentos opostos e a vida sexual, mas naturalmente relutamos em pensar no
amor como sendo uma espécie de pulsão componente específica da sexualidade
[...]. Preferiríamos considerar o amor como sendo a expressão de toda a corrente
sexual de sentimento, mas essa idéia não elucida nossas dificuldades e não
podemos ver que significado poderia ser atribuído a um conteúdo oposto dessa
corrente (Ibid., p. 154).
Em seguida, admite que o amor comporta três opostos: amar-odiar, amar-ser amado e,
considerando o par amar-odiar, o oposto desinteresse ou indiferença. Essas são as três
antíteses que circundam o amor e o ódio. Acerca do par amar-ser amado, diz tratar-se de uma
passagem da atividade para a passividade. Nessa situação subjaz a questão de amar-se a si
próprio, condição essa ramificada narcisicamente. A pena de Freud escreve que [...]
conforme o objeto ou o sujeito seja substituído por um estranho, o que resulta é a finalidade
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ativa de amar ou a passiva de ser amado, ficando a segunda perto do narcisismo.” (Ibid., p.
155).
Ainda no texto de 1915, Freud faz referência as três antíteses fundamentais que regem
o funcionamento mental do homem. Sobre a oposição sujeito-objeto, mantém sua idéia inicial
de que o sujeito “é inerme contra as pulsões.” (Idem). Mantém igualmente suas concepções
sobre a segunda antítese por ele considerada o prazer-desprazer. Com relação à atividade-
passividade diz que o eu é passivo no tocante aos estímulos externos, mas ativo através de
suas pulsões.” (Idem). O autor salienta que as três antíteses possuem ligações fundamentais
entre si. Nesse sentido é abordada a questão do eu, que é catexizado inicialmente com pulsões
que se satisfazem no próprio corpo; ou seja, são pules auto-eróticas, e a essa condição
nomeia-se por narcisismo. As pulsões auto-eróticas são o caminho para o desenvolvimento do
eu da realidade para o eu do prazer. As pulsões sexuais exigem um objeto e as pules do eu,
que jamais são capazes de satisfação auto-erótica” (Ibid., p. 156), perturbam o estado
narcísico primordial. “[...] O estado narcisista primordial não seria capaz de seguir o
desenvolvimento, se não fosse pelo fato de que todo indivíduo passa por um período durante o
qual é inerme, necessitando de cuidados, e durante o qual suas necessidades prementes são
satisfeitas por um agente externo. [...]” (Ibid., nota 2, p. 156).
A argumentação freudiana aponta a existência de um eu da realidade original, o qual,
sob a inflncia do princípio do prazer, é substitdo por um eu do prazer. Assim sendo,
percebemos que são as pulsões auto-eróticas que conduzem o eu da realidade original para o
eu do prazer. Durante o estado auto-erótico, o sujeito do eu coincide com o que é prazeroso, e
o meio externo, com o que é indiferente. O eu auto-erótico não necessita do mundo externo,
mas, devido à autopreservação, acaba por experimentar objetos do exterior, os quais são
tomados como desagradáveis. Na medida em que os objetos importados do exterior passam a
serem sentidos como agradáveis, ocorre uma introjeção dos mesmos, assim como a expulsão
daquilo que em si mesmo é vivido como desprazeroso. Dessa forma, o eu da realidade passa a
fazer uma distinção entre o prazer e o desprazer, ascendendo à condição de priorização e
busca do prazer. Daqui deriva os sentimentos hostis quanto ao que é experimentado como
desprazer.
Freud diz que é durante o narcisismo primário que o odiar entra em cena,
preconizando que o odiado coincide com o mundo externo, com o que causa desprazer.
Assim, a antítese amordio reproduz a relão prazer-desprazer, ilustrando o tipo de relação
entre o eu e o objeto.
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Se o objeto se torna uma fonte de sensações agradáveis, estabelece-se uma ânsia
motora que procura trazer o objeto para mais perto do eu e incorporá-lo ao eu.
Falamos da „atração‟ exercida pelo objeto proporcionador de prazer, e dizemos que
„amamos esse objeto. Inversamente, se o objeto for uma fonte de sensações
desagradáveis, há uma ânsia que se esforça por aumentar a distância entre o objeto
e o eu, e a repetir em relação ao objeto a tentativa original de fuga do mundo
externo com sua emissão de estímulos. Sentimos a „repulsão‟ do objeto, e o
odiamos; esse ódio pode depois intensificar-se ao ponto de uma inclinação
agressiva contra o objeto uma intenção destrutiva (Ibid., p. 158).
Freud diz que o desprazer é o que é decisivo no ódio e que o eu abomina e persegue,
com intenção de destruir, tudo o que constitui fonte de desprazer. Escreve ele que “os
verdadeiros protótipos da relação do ódio se originam o da vida sexual, mas da luta do eu
para preservar-se e manter-se” (Ibid., p. 160). O ódio, portanto, é mais antigo que o amor. Ele
é a expressão da reação do eu narcísico frente aos objetos externos, numa relação íntima com
as pulsões autopreservativas as quais se configuram em sua fonte. Daí a antítese
estabelecida com as pulsões sexuais, e repetida no par amor/ódio.
Sobre a antítese amar-ser amado, Freud remete o leitor à análise da escopofilia e do
sadismo, onde as questões da atividade e passividade estão envolvidas. O autor finaliza o
texto dizendo que os destinos das pulsões estão ligados às polaridades que dominam a vida
mental: a atividade-passividade ligada à biologia; a polariade eu-mundo externo ligado ao
real; e a polaridade prazer-desprazer regido por fatores econômicos.
Em 1920, no início do capítulo quinto de Além do princípio do prazer, Freud (Ibid., p.
51) classifica as pulsões como “o elemento mais importante e mais obscuro da pesquisa
psicológica”, enquadrando-as como processos livremente móveis.” Igualmente, nos lembra
que o inconsciente é regido por processo psíquico primário, enquanto os processos psíquicos
secundários regem o sistema consciente. Assim, as pulsões são determinadas por instâncias
primárias e têm como ponto de impacto o sistema inconsciente. Em seguida, escreve que a
compulsão à repetição é de ordem pulsional e, “[...] quando atuam em oposição ao princípio
do prazer, dão a aparência de uma força demoníaca em ação” (Ibid., p. 52). Ele escreve que as
crianças repetem compulsivamente experiências desagradáveis como uma tentativa de
dominar retrospectivamente, e de forma ativa, aquilo que experimentaram passivamente.
“Cada nova repetição parece fortalecer a supremacia que buscam” acrescenta Freud (Idem).
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O encanto da repetição está no dado novo que produz. “Nada disso contradiz o princípio do
prazer: a repetição, a reexperiência de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de
prazer” (Ibid., p. 53), escreve o autor. Exceção a essa regra é verificada num sujeito em
análise, onde a repetição de acontecimentos traumáticos ou da infância, por exemplo, nem
sempre é sentido prazerosamente.
Freud (Idem) pergunta se por que a pulsão adjetiva a compulsão à repetição. Ele
responde que [...] uma pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado
anterior de coisas [...]”, ou seja, a pulsão tem como característica a conservação do estado de
coisas, ao qual objetiva restauração e retorno incansavelmente.
Suponhamos, então, que todas as pulsões orgânicas são conservadoras, que são
adquiridas historicamente, e que tendem à restauração de um estado anterior de
coisas. Disso decorre que os fenômenos do desenvolvimento orgânico devem ser
atribuídos a influências perturbadoras e desviadoras externas. A entidade viva
elementar, desde o seu início, não teria desejo de mudar; se as condições
permanecessem as mesmas, não faria mais do que constantemente repetir o mesmo
curso da vida. [...] Toda modificação, assim imposta ao curso da vida do
organismo, é aceita pelas pulsões orgânicas conservadoras e armazenadas para
ulterior repetição. Essas pulsões, portanto, estão fadadas a dar uma aparência
enganadora de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, quando, de fato,
estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos
quanto novos. [...] Estaria em contradição à natureza conservadora das pulsões que
o objetivo da vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido.
Pelo contrário, ele deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a
entidade viva, numa ou noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça por retornar
através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz
(Ibid., p. 55-6).
A citação destacada revela o pensamento freudiano sobre a pulsão, na medida em que
as coisas inanimadas existiram antes das vivas.” (Idem). Isso significa que “o objetivo de
toda vida é a morte.(Idem). Nesse contexto, as pules componentes encontram função em
garantir que o organismo vivo morra do seu próprio modo, estando subjacente nessa
concepção a idéia de desejo quanto às escolhas do sujeito na trilha para a morte. É nesse
sentido que Freud afirma o duplo guardião da vida, uma vez, também, lacaio da morte.
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Por sua vez, as pulsões sexuais, entendidas como pulsões de vida, proporcionam “um
alongamento da estrada para a morte.” (Ibid., p. 58). Diz Freud que tais pulsões são
conservadoras por resistirem ao meio externo e por preservarem a vida do sujeito.
Textualmente escreve: “[...] são as verdadeiras pulsões de vida. Operam contra o propósito
das outras pulsões, que conduzem, em razão de sua função, à morte.” (Idem).
No capítulo sexto de Além do princípio do prazer, onde surge pela primeira vez o uso
da expressão “pulsão de morte”, é feita a distinção entre pulsões do eu que buscam restaurar
um estado anterior -, e as pulsões sexuais que objetivam o prolongamento da vida. As
inquietações de Freud revelam serem incompletas tais conclusões, partindo o criador da
psicanálise para novos avanços teóricos. Então, ele afirma que somente as pulsões do eu são
conservadoras, ao passo que as pulsões sexuais, doravante designadas de pulsões de vida, têm
objetivos perpétuos em renovação da vida.
Freud apresenta uma visão dualística acerca das pulsões, concebendo-as como
processos de ação concomitante no indivíduo, operando em dirões contrárias uma
construtiva e outra destrutiva. Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje
ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se
dando, não entre as pules do eu e pules sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsão de
morte.” (Ibid., p. 73).
Em seguida, refere que a tendência geral da vida mental é a redução da tensão interna
provocada pelo movimento pulsional, tenncia que encontra assento no princípio do prazer.
As especulações de Freud em torno das pulsões de vida e pulsão de morte são melhores
esclarecidas na última nota de rodapé do capítulo sexto do texto de 1920, onde ele ratifica a
existência de uma libido narcísica, enfatizando que a libido é a manifestação da pulsão. “[...] a
pulsão sexual foi por nós transformada em Eros, que procura reunir e manter juntas as partes
da substância viva. Aquelas que são normalmente chamadas de pulsões sexuais são por nós
encaradas como a parte de Eros voltada para os objetos.” (Ibid., nota 1, p. 82).
Ele escreve que Eros opera desde o princípio da vida, em oposição à morte. Trata-se
de opostos em luta permanente, desde o início. Na mesma nota de rodapé Freud reconhece as
transformações teóricas em torno das pulsões do eu, e afirma que “parte das pulsões do eu
também é de caráter libidinal e tomou o próprio eu do sujeito como seu objeto.” (Idem).
Dessa forma, as pulsões narcísicas e autoconservadoras são entendidas como pulsões sexuais,
cuja manifestação é a libido. A oposição entre pulsão do eu e pulsão sexual é transportada
59
para a oposição pulsão do eu e pulsão do objeto, para, em seguida, assumir a oposição final
verificada na antítese pulsão de vida-pulsão de morte.
Partindo para 1923, o catulo quarto de O eu e o isso, intitulado As duas classes de
pulsões, observamos Freud tratar, dentre outros aspectos, a significação que as pulsões m
para o Isso, considerado como uma parte diferenciada do eu. Suas considerações importam
pronunciamentos contidos em Além do princípio do prazer, onde Eros engloba a pulsão
sexual e também a pulsão de autopreservação, em contraste com a outra classe pulsional, [...]
cuja tarefa é conduzir a vida orgânica de volta ao estado inanimado.” (1923, p. 55). Ou seja: a
pulsão de morte.
É muito interessante a perspicácia freudiana quanto em notar que ambas as pulsões de
vida e de morte são conservadoras. O ato do nascimento introduz necessariamente o indivíduo
no movimento de sobrevivência, recusa ao qual morreria. A vida implica esforços opostos e
enigmáticos, dada a dupla direção provocada pelas pulsões. “[...] Eros visa a complicar a vida
e, ao mesmo tempo, naturalmente, a preservá-la. Agindo dessa maneira, ambas as pulsões
seriam conservadoras no sentido mais estrito da palavra, visto que ambas estariam se
esforçando para restabelecer um estado de coisas que foi perturbado pelo surgimento da
vida.” (Ibid., p. 55-6).
Freud ressalta, então, a questão da fusão das pulsões de modo regular, sendo essa
concepção imprescindível para o entendimento da teoria pulsional, o que implica, igualmente,
no processo de desfusão. É porque as pules se fusionam e se desfusionam que se justificam
as nuances do sadismo e do masoquismo, bem como do amor e do ódio. Para o autor, o
componente sádico da pulsão sexual é um exemplo de fusão, e o sadismo da perversão ilustra
o que se entende por desfusão pulsional. No caso do amor e do ódio, a ambivalência que
caracteriza essa antítese é revestida pela fusão e desfusão. Laplanche e Pontalis (1967, p. 266)
apresentam as seguintes considerações sobre os termos: “a fusão das pules é uma verdadeira
mistura em que cada um dos dois componentes pode entrar em proporções variáveis; a
desfusão designa um processo cujo limite redundaria num funcionamento separado das duas
espécies de pulsões, em que cada uma procuraria atingir o seu próprio alvo de forma
independente.”
Em 1926, no verbete Psicanálise, Freud afirma uma vez mais que a obscuridade é a
característica principal das pulsões. Essa dificuldade favorecia as críticas dos leitores
precipitados de seus escritos, principalmente após a sua última teoria pulsional materializada
no texto de 1920, obra onde promulga a pulsão de morte. Esse contexto impressionou o pai da
60
psicanálise notadamente com o não entendimento de sua teoria das pulsões por parte de seus
opositores, particularmente no tocante à atuação silenciosa da pulsão de morte nos atos
destrutivos e agressivos daquela época. Então, no Mal-estar na civilização (1930, p. 105) se
refere às pulsões como “uma parcela de natureza inconquistável”, sendo decorrente dela todo
o mal estar humano.
Em 1933, no capítulo dois do Esboço de psicanálise, intitulado A teoria das pulsões,
Freud reafirma a função e importância do Isso, enquanto sede das pulsões e, nesse sentido,
confere-lhe o papel de responsável pelo propósito da vida do indivíduo. Entendemos tal
propósito como a busca da satisfação pulsional. O que não significa que as finalidades
pulsionais traduzem-se na manutenção da vida; essa tarefa pertence ao eu, o qual tem dentre
suas missões o prolongamento da vida do indivíduo, a partir de métodos não tão perigosos
tarefa essa ameaçada permanentemente pela insistente pulsão de morte. “As forças que
presumimos existir por trás das tensões causadas pelas necessidades do Isso são chamadas de
pulsões. Representam exigências somáticas que são feitas à mente. Embora sejam a suprema
causa de toda atividade, elas são de natureza conservadora.” (FREUD, 1933, p. 173).
Destacamos a pulsão ser uma categoria inerente a qualquer ato humano e a supremacia
que confere o caráter de irredutibilidade da mesma. Percebemos a evolução do pensamento
freudiano ao logo dos difíceis caminhos rumo ao entendimento do que vem a ser as pulsões.
A conclusão é que o Isso é o grande reservatório da libido e o objetivo pulsional não se
desatrela de sua natureza conservadora. É verificada a ratificação das duas classes de pulsões
fundamentais: as de vida e a de morte, cabendo as primeiras a incumbência de unir e à
segunda, a tarefa de desfazer conexões; em suma, destruir. “No caso da pulo destrutiva,
podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa
razão, chamamo-la de pulsão de morte” (Ibid., p. 173-4), escreve Freud. Em seguida,
acrescenta: as pulsões tendem a retornar a um estado anterior”, lembrando que esse
postulado não se aplica a Eros. Ele reitera que as duas classes de pulsões andam em par, ora
agindo uma contra a outra, ora combinando-se mutuamente. Assim, o ato de comer significa,
ao mesmo tempo, a destruição do objeto e a sua incorporação.
Sobre a pulsão de morte, diz que ela opera silenciosamente” (Ibid., p. 175). Quando
desviada para fora, Freud a designa por pulsão de destruição. Quando fixada no interior do eu,
opera agressivamente contra o próprio sujeito.
61
Uma porção de autodestrutividade permanece interna, quaisquer que sejam as
circunstâncias, até que, por fim, consegue matar o indivíduo, talvez não antes de sua
libido ter sido usada ou fixada de uma maneira desvantajosa. Assim, é possível
suspeitar que, de uma maneira geral, o indivíduo morre de seus conflitos internos,
mas que a espécie morre de sua luta mal sucedida contra o mundo externo se este
mudar a ponto de as adaptações adquiridas pela espécie não serem suficientes para
lidar com as dificuldades surgidas. (Idem).
Ainda em 1933(p. 119), na Conferência XXXII, intitulada Angústia e vida pulsional,
ratifica a frase escrita em 1926, a saber, “a teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa
mitologia.” Observamos ele ressaltar a magnitude de imprecisão que qualifica a pulsão e
sobre a forma silenciosa de atuação. A partir daí, o mestre de Viena traça uma espécie de
levantamento histórico do percurso por ele trilhado, sancionando suas considerações:
Uma pulsão, por conseguinte, distingue-se de um estímulo pelo fato de surgir de
fontes de estimulação situadas dentro do corpo, de atuar como força constante, e de
a pessoa não poder evitá-la pela fuga, como é possível fazer com um estímulo
externo. Em uma pulsão podemos distinguir sua origem, seu objeto, e sua
finalidade. Sua origem é um estado de excitação do corpo, cuja finalidade é a
remoção dessa excitação; no caminho que vai desde sua origem até sua finalidade, a
pulsão torna-se atuante psiquicamente. Imaginamo-la como uma determinada
quantidade de energia que faz pressão em determinada direção. É dessa pressão que
deriva seu nome Trieb (Ibid., p. 120-1).
2.3 Contribuições de Lacan à teoria das pulsões
Lacan, em 1964, no Seminário, livro 11, intitulado Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise, considerou a pulsão um conceito fundamental. Faz-se necessário tecer
algumas considerações de Lacan sobre os objetos da pulsão, o que faremos sucintamente a
seguir. O analista parisiense considera o conceito de pulsão enigmático, viveiro de
obscurantismo, o qual requer profundas e repetidas análises. No Seminário 11 (1964, p. 154),
ele escreve que “a pulsão não é um impulso”. Prossegue afirmando que o Drang elemento
62
da pulsão definido em Freud não é a pulsão, e opta pela atribuição do termo “ficção” ao de
“mito” empregado por Freud. Trata-se, dessa forma, de uma ficção fundamental.
Lacan considera os elementos da pulsão como aparecendo disjuntos. Drang é
excitação (Reiz) interna. Drang é a força da pulsão. De alguma forma Drang representa a
pressão de uma necessidade, como fome ou sede, por exemplo. Isso significa dizer que a
pulsão é Konstante Kraft; isto é, a pulsão não é força momentânea. O autor escreve que o
impulso [...] vai ser identificado a uma pura e simples tenncia à descarga” (Ibid., p. 155).
Em seguida o psicanalista francês recorda a apropriação do termo Reiz feita por Freud: “[...] o
Reiz de que se trata, concernente à pulsão, é diferente de qualquer estimulação proveniente do
mundo exterior, é um Reiz interno” (Ibid., p. 156). Esse é o sentido de que a pulsão é uma
força constante, afirma Coutinho Jorge (2003, p. 26). Assim escreve Lacan (Ibid., p. 156): “a
característica da pulsão é de ser uma Konstante Kraft, uma força constante.” À condição de
força constante da pulsão Lacan atribui a expressão “tensão estacionária”, verificada na
citação a seguir: “[...] a constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma
função biológica, a qual tem sempre um ritmo. A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se
posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, o tem primavera nem outono, que
ela não tem subida nem descida. É uma força constante.” (Ibid., p. 157). Aquilo que
permanece constante na pulsão é denominado por Freud de libido, qualificada por ele como a
energia da pulsão, que jamais decresce.
O alvo (Ziel) da pulsão diz respeito à satisfação por ela atingida. Ou seja, a satisfação
da pulsão consiste em atingir o Ziel. “o uso da função da pulsão o tem para nós outro valor
senão o de pôr em questão o que é da satisfação” escreve Lacan (Ibid., p. 158), apontando
que a pulsão pertence à categoria do impossível de ser satisfeito, porque existe uma satisfação
inatingível na pulsão. Lacan lembra que a sublimação traz essa regra, uma vez que ela é
inibida quanto a seu alvo. “Ela não o atinge escreve ele.
[...] os pacientes, o se satisfazem, como se diz, com o que são. E, no entanto,
sabemos que tudo o que eles são, tudo o que eles vivem, mesmo seus sintomas,
dependem da satisfação. Eles satisfazem algo que vai sem dúvida ao encontro
daquilo com o que eles poderiam satisfazer-se, ou talvez melhor, eles dão satisfação
a alguma coisa. Eles não se contentam com o seu estado, mas estando nesse estado
tão pouco contentador, eles se contentam assim mesmo. Toda a questão é justamente
saber o que é esse se que está contentado. [...] diremos que isso ao que eles se
satisfazem pelas vias do desprazer é, assim mesmo [...] a lei do prazer. Digamos que,
63
por essa espécie de satisfação, eles se fazem sofrer demais. Até certo ponto é sofrer
demais que é a única justificativa de nossa intervenção (Ibid., p. 158).
Nesse contexto, os seus sintomas têm ligação direta com a satisfação pulsional e,
absolutamente não se pode dizer que o alvo não foi atingido. Textualmente, o autor escreve
que “o que temos diante de nós, em análise, é um sistema onde tudo se arranja, e que atinge
seu tipo próprio de satisfação.(Idem) Lacan adverte que a satisfação é enigmática e que a
análise mais profunda permite observar que nela existe algo que pertence à categoria do
impossível. “O impossível não é forçosamente o contrário do possível”, escreve (Ibid., p.
159), concluindo que o oposto do possível é seguramente o real.” (Idem). Em Freud, tudo
aquilo que funciona como obstáculo ao princípio do prazer remete à categoria do real
lacaniano. “O real se distingue [...] por sua separação do campo do princípio do prazer, por
sua dessexualização, pelo fato de que sua economia, em seguida, admite algo novo, que é
justamente o impossível.” (Idem).
O princípio do prazer se caracteriza mesmo por isso que o impossível esali tão
presente que ele jamais é reconhecido como tal. A idéia de que a função do princípio
do prazer é de se satisfazer pela alucinação está para ilustrar isso [...]. A pulsão
apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente por aí que ela
se satisfaz. Pois se se distingue, no começo da dialética da pulsão, o Not e o
Bedürfnis, a necessidade e a exigência pulsional é justamente porque nenhum
objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão. (Idem).
Isso quer dizer que nenhum objeto de nenhuma necessidade pode satisfazer a pulsão.
Ao apreender o objeto, imediatamente é verificado que não é exatamente do objeto
apreendido que advém a satisfação, porque ela pertence a outro registro o real. Ele
exemplifica que não é o alimento que a satisfação pulsional, mas o prazer da boca. Então,
traz à luz a afirmação freudiana de que o objeto da pulsão é o que de mais variado e que,
na verdade, ele é destituído de importância enquanto Objekt. Essa condição permite que
qualquer objeto possa ser objeto pulsional. Nesse sentido, Lacan diz que o objeto da pulsão é
um objeto que não existe e denomina-o de petit a o objeto pequeno a, ou simplesmente
objeto a. Trata-se do objeto causa de desejo, objeto perdido para sempre, pertencente ao
domínio do real, portanto, inatingível. “A pulsão o contorna” escreve Lacan (Ibid., p. 160).
Coutinho Jorge (2003) recorda que a pulsão possui um circuito, conforme reza o ensino
64
lacaniano, e que o movimento desse circuito somente contorna o objeto a, posto que perdido,
um lugar vazio, eternamente faltoso.
Sobre a fonte da pulsão, Quelle, Lacan escreve que ela possui uma estrutura de borda e
são processos que se dão no corpo. Se são processos que se dão no corpo, então, ao nível
erógeno, outros órgãos do corpo constituem o que se entende como zona erógena, apesar de
sua qualificação enquanto fonte pulsional ser reconhecida somente por sua estrutura de borda.
Por exemplo, os órgãos internos esôfago, estomago, etc., também fazem parte da função oral,
apesar de se falar da boca, dos dentes e da língua, basicamente. “O mesmo para com a
pulsão anal. Não basta dizer que uma certa função viva é integrada a uma função de troca com
o mundo o excremento. outras funções excremenciais e há outros elementos a
participarem delas além da margem do ânus que, no entanto, é especificamente o que,
igualmente para nós, se define como a fonte e a partida de uma certa pulsão” (LACAN, 1964,
p. 160). Coutinho Jorge (2003, p. 27) esclarece que “o que está em jogo na fonte é essa
estrutura de borda orificial”, daí a importância dos orifícios do corpo na sexualidade humana.
Lacan aproxima o conceito de inconsciente ao de pulsão. A esse respeito, Coutinho
Jorge (2003, p. 28) escreve que a estrutura de hiância que está no cerne da pulsão se
conforma com a estrutura de falta que constitui o núcleo do inconsciente”. A região comum
ao inconsciente e a pulsão é por Lacan denominada de real. O real se manifesta no
inconsciente pela falta de um significante no campo do Outro e, sob a égide da pulsão,
constitui o objeto a. “O inconsciente é um conceito e a pulsão outro, mas ambos têm uma
região de intersecção que diz respeito a este núcleo de real.” (Idem).
No Seminário 11, Lacan afirma que toda pulsão é pulsão de morte. O que isso
significa? Comecemos pelo entendimento de das Ding. Para Freud, a Coisa, como é traduzida
a expressão alemã, é o objeto que daria satisfação à pulsão. É algo cuja existência é suposta e
desejada pelo psiquismo. Para ilustrar melhor a importância da noção de das Ding,
transcrevemos aqui as palavras de Marco Antônio Coutinho Jorge (2003, p. 26):
Em todas as elaborações de Freud sobre a pulsão, o que fica mais evidente é o
fato de que a pulsão é imperiosa, ela jamais renuncia a obter a satisfação que almeja,
é imperiosa, é de uma exigência radical. É a isso que Freud chama de força
constante. Uma força constante numa certa dirão, direção rumo à satisfação.
Satisfação que, no entanto, é impossível de ser obtida, diz Freud. Há um impossível
65
de ser satisfeito porque o objeto que daria a satisfação à pulsão, o que Freud
chama de das Ding, a Coisa, não existe.
A apropriação lacaniana é profícua ao marcar que não se trata de uma coisa, mas a
coisa, a qual não existe, e que, ao mesmo tempo, constitui o vetor da pulsão. É justamente
porque das Ding não existe que a pulsão é força constante, no sentido de obtenção
intermivel de algo que não existe. Nesse movimento, a pulsão se satisfaz apenas
parcialmente com os objetos que lhe são apresentados. “O que a pulsão quer é das Ding, mas
o que ela recebe é o objeto a escreve Coutinho Jorge (Ibid., p. 32). O movimento incansável
da pulsão é no sentido da obtenção da satisfação plena que é impossível de ser obtida, posto
que a Coisa não existe. Isso que no humano insiste num movimento irredutível é a pulsão de
morte. “Tudo o que fazemos são tentativas de dar, para essa pulsão, uma certa satisfação, mas
o podemos lhe proporcionar o que ela nos pede.” (Idem.).
Para Freud, o que a pulsão pede, em última análise, é a morte, no sentido da
eliminação absoluta de todas as tensões. Gozo é o nome atribuído por Lacan à morte
introduzida por Freud. O que Lacan considera empuxo-ao-gozo é a tendência rumo ao
Nirvana postulada pelo criador da psicanálise, onde inexistiriam tensões; ou seja, a morte.
Para Lacan (1964, p. 101), a pulsão é uma montagem que “se apresenta como não
tendo nem nem cabeça”, uma vez que se trata de uma combinação de elementos marcados
pela descontinuidade. Ela é uma montagem pela qual “a sexualidade participa da vida
psíquica” (Ibid., p. 167), na medida em que toda satisfação pulsional é sempre parcial.
Segundo o autor, existe um circuito pulsional pelo qual a pulsão, no vaivém que a caracteriza,
efetua o seu trajeto. Nesse circuito uma superfície que é definida como borda, considerada
por Lacan como zona erógena da pulsão. O movimento pulsional é proporcionado pela força
constante da pulsão que parte e retorna à borda, considerada fonte da pulsão, num eterno
movimento de retorno em circuito. Nesse movimento a pulsão apenas contorna o objeto a,
objeto causa de desejo e para sempre perdido, alocado no registro do real. Como já dissemos,
ele serve para mostrar que não há objeto capaz de satisfazer a pulsão, porque o objeto possível
está restrito ao real, perdido no terreno do impossível. Percebemos Lacan enfatizar o
movimento da pulsão indicado por Freud, inscrevendo-a no inconsciente enquanto
manifestação da falta. Para o autor parisiense, a pulsão é da ordem do real, marcada pela
descontinuidade e ausência de lógica racional. Antônio Quinet (2009) psicanalista, de maneira
66
bastante apropriada ilustra os elementos descontínuos da pulsão em sua montagem, da
seguinte forma:
Freud elaborou o conceito de pulsão, para tratar justamente da “força” do
“impulso” sexual. A pulsão sexual a Trieb freudiana, infelizmente designada como
“instinto” na tradução brasileira se distingue do instinto sexual próprio do animal,
pois ela é determinada pelo inconsciente. O “representante da pulsão é uma
“energia” que Freud designa de “libido”, que é da ordem do prazer, do desejo e do
gozo. Essa pulsão está além, ou a despeito, como você diz, de qualquer
classificação. Ao contrário, é ela que vai qualificar esta ou aquela atividade erótica:
a pulsão oral, anal, escópica, etc., constituem a sexualidade, independentemente do
sexo do parceiro. No sexo, o que interessa à pulsão sexual é a satisfação da zona
erógena (a boca, o ânus, os genitais, mamilos, etc.). O parceiro do sexo é um objeto
que, na cama”, o sujeito recorta do corpo do outro. E isso independe do gênero dos
parceiros sexuais. A pulsão é sempre parcial. E o coito genital não é absolutamente
uma exigência da sexualidade, nem uma suposta maturidade” da pulsão; e muito
menos uma norma. A psicanálise se opõe à pedagogia do desejo, pois esta é uma
falácia. Não se pode educar a pulsão sexual. Não se pode desv-la para acomodá-la
aos ideais da sociedade. A pulsão segue os caminhos traçados pelo inconsciente, que
é individual e singular.
Marie lène Brousse (1995, p. 128), no livro Para ler o seminário 11, escreve que a
pulsão “é uma montagem precisamente porque não é determinada por uma força momentânea,
um objeto inato, um alvo na sua finalidade, ou consumo”. Podemos perceber quão paradoxal é
a satisfação pulsional justamente porque se trata de uma montagem de elementos
descontínuos, noção essa introduzida pelo ensino lacaniano.
2.4 O conceito de trauma
Depois do estudo apresentado nos capítulos anteriores é hora de retornar à questão que
moveu o empreendimento desta pesquisa: o atendimento dos militares brasileiros que
retornam do Haiti. Imediatamente após a chegada ao Brasil, todos os militares ingressam na
desmobilização psicológica conduzida pelo projeto Força Militar de Paz (FMP), desenvolvido
67
pelo Centro de Estudos de Pessoal, quartel situado na cidade do Rio de Janeiro, de onde
partem as equipes de psicólogos para o estado brasileiro que acolhe a tropa egressa da missão
de paz no Haiti (MINUSTAH). Além de uma bateria de exames sicos e laboratoriais, os
militares são submetidos a uma pesquisa de avaliação do estresse s-ação, além de um
questionário de avaliação do clima interno do grupo, instrumentos esses de base não-
psicanalítica. Após essa etapa, todos os militares são ouvidos em dois momentos distintos: em
grupos, dentro do mesmo rculo hierárquico e individualmente. Constatamos que, em sua
maioria, trata-se de sujeitos traumatizados que apresentam sintomas variados. Isto nos obriga
a rastrear o conceito de trauma na teoria psicanalítica.
O conceito de trauma em psicanálise esteve presente em todas as etapas do percurso
freudiano e está marcado pelo abandono de determinados postulados, assim como retificações
teóricas. Desde o início da clínica psicanalítica até à eclosão da Primeira Guerra Mundial, a
questão do trauma ocupou a mente de seu criador, sofrendo algumas reformulações teóricas
importantes, passo a passo com as modificações e acréscimos teóricos de Freud.
Consideramos que o trauma é absolutamente importante para o desenvolvimento desta
dissertação por tratar-se de um conceito com o qual podemos iluminar nosso entendimento
sobre as neuroses traumáticas.
O interesse de Freud pelo tema do trauma nasceu quando estudava em Paris com Jean-
Martin Charcot, o famoso médico neurologista da Salpetriere. Charcot tomava o trauma como
um choque que despertava emoções no indivíduo. Estes efeitos podiam alcançar um grau de
intensidade maior caso aquele que foi afetado pelo choque estivesse, de algum modo,
fragilizado por doenças ou outros fatores da vida. É digno de nota que esse neurologista
ligava os sintomas da histeria ao desencadear de uma determinada situação traumática.
Segundo Roudinesco e Plon (1998, p. 340), Freud retomou de Charcot a idéia da origem
traumática da histeria e forjou um novo conceito da doença e destacou o caráter sexual do
trauma. Sabemos que o próprio Charcot, ao se referir à etiologia da histeria costumava dizer,
sob a forma de um chiste: “Nesses casos, é sempre a coisa genital, sempre!”
Na verdade, Freud propôs dois modelos tricos para pensar o trauma, os quais,
contrariamente ao pensamento dos maus leitores de sua obra, não são concepções
excludentes. Num primeiro momento, entre os anos de 1888 a 1894, quando ainda ligado a
Josef Breuer, considerava como traumática toda a sedução sexual sofrida pela criança por
parte de um adulto. Como se disse, o fator etiológico da histeria é o trauma sexual sofrido na
infância, o qual submerge pelo recalcamento de tal experiência dando lugar à neurose. O
68
duelo entre o desejo e os mecanismos de defesa perante a experiência traumática constitui a
base explicativa do sintoma apresentado, entendido como aquilo que advém enquanto
satisfação substitutiva. Nesse sentido, o sintoma neurótico está a serviço da pulsão como uma
possibilidade de satisfação.
Na metapsicologia, Freud supõe a exisncia de um escudo protetor destinado a
proteger o aparelho psíquico contra o excesso de estímulos advindos do outro. Trata-se de
uma concepção econômica e o trauma é entendido nesse momento como um acontecimento
da ordem do excesso capaz de arrombar a barreira protetora do aparelho psíquico. Esse
modelo revela o trauma como o resultado de um acontecimento cuja carga de afeto é
inassimilável para o sujeito, dada a sua condição psíquica nesse momento e dada a carga
excessiva de afeto, capaz de marcar o sujeito.
A psicanálise postula que a experiência traumática perpassa todo sujeito, posto que o
sujeito para a psicanálise é sujeito pulsional. Essa assertiva está relacionada com a
prematuridade estrutural característica da condição humana após o seu nascimento e ao
descompasso entre o caráter urgente das pulsões e a capacidade de simbolização das
representações do sujeito, tendo em vista que nesse jogo de forças o sistema de representações
o oferece garantia de estabilidade emocional dado o que advém do outro, da cultura. A
marca do trauma pode ser despertada como uma lembrança, produzindo um sintoma. Isso
ocorre, pensa Freud, porque as representações que se tornaram patológicas não tiveram a
possibilidade de ab-reação. O trauma é aqui considerado como a marca resultante do excesso
de um afluxo de excitações que o aparelho psíquico não tem condições ou não consegue
dominar, em virtude do fracasso do escudo protetor.
Freud nos aponta dois momentos do trauma, onde o segundo momento deduz o
primeiro, na medida em que a cena que é apresentada pelo sintoma remete à cena original
através dos vínculos associativos.
A idéia de temporalidade introduzida com o conceito de a posteriori, Nachträglich,
diz respeito a uma concepção de causalidade diversa da ação linear do passado sobre o
presente. Embora a tenha introduzido neste momento precoce da elaboração da teoria
psicanalítica, esta noção de temporalidade será conservada ao longo de toda a obra freudiana e
ainda é fundamental para a psicanálise. A noção de trauma como um evento a posteriori
mudou a noção de causalidade do trauma. Conforme postulado na Carta 52, escrita em Viena,
em 6 de dezembro de 1896, Freud (1950[1892-1899], p. 324) anuncia a exisncia de um
perverso sedutor na etiologia da neurose. “Cada vez mais me parece que o ponto essencial da
69
histeria é que ela resulta de perversão por parte do sedutor e mais e mais me parece que a
hereditariedade é a sedução pelo pai.
A leitura atenta da obra de Freud revela que em seguida ele muda essa concepção, uma
vez que não podia universalizar todos os pais inclusive o seu e a si mesmo como
perversos.
Em 1897, Freud é surpreendido por suas histéricas, frente à verdade e a mentira da fala
de suas pacientes. Freud irá concluir que não se tratam de mentiras e passa a considerar a
realidade como psíquica, de modo que ele escreve a seu correspondente Fliess, sobre a não
existência de realidade enquanto tal no inconsciente: “não acredito mais na minha neurótica”
confessa Freud a Fliess (Ibid., p. 357). Esta frase metaforiza a ponte que separa as duas
etapas das elaborações freudianas acerca da etiologia da neurose. A construção dessa ponte
revela o rito de passagem para outro momento de construção teórica e é ladeada por motivos
ligados à dificuldade na auto-análise do próprio Freud, na debandada de seus pacientes e na
falta de êxitos terapêuticos
8
: [...] a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai,
o excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido. [...] Depois, a descoberta
comprovada de que, no inconsciente não há indicações da realidade, de modo que não se
consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada pelo afeto.” (Ibid., p. 358).
A carta de 21 de setembro de 1897 abriu caminho para a incorporação da fantasia na
teoria psicanalítica e, por conseguinte, para a reformulação da teoria do trauma. A clínica de
Freud levou-o a se confrontar com o paradoxo de que nem todos os pais haviam cometido o
crime da sedução e que as histéricas de que tratava falavam a verdade quando se diziam
timas da sedução. Freud percebe que essas duas verdades são contraditórias e coexistentes
no inconsciente. Roudinesco (1998, p. 697) diz que “Freud substituiu a teoria da sedução pela
fantasia, o que pressupôs a elaboração de uma doutrina da realidade psíquica baseada no
inconsciente.Pertence, portanto, a Freud a resolução do enigma das causas sexuais enquanto
causas fantasísticas, mesmo quando o trauma é real. Isso quer dizer que o real da fantasia
difere do real da realidade concreta. A realidade psíquica se apresenta como o “núcleo
irredutível do psiquismo, registro dos desejos inconscientes dos quais a fantasia é a expressão
máxima e mais verdadeira” (ROUDINESCO, op. cit., p. 224). Por sua vez, a fantasia é a
parcela da atividade psíquica que se mantém independente do princípio da realidade e se
8
Cf. Carta 69, de 21/09/1897.
70
submete exclusivamente ao princípio do prazer, constituindo-se num lugar de passagem de
um registro da atividade psíquica ao outro.
A partir do momento em que Freud passa a tratar a realidade humana como psíquica,
para além do real da realidade palpável, ele transpõe para esta realidade agora considerada
as concepções atribuídas ao trauma: um choque violento, uma efração e as conseqüências
sobre o conjunto da organização psíquica.
A Carta 69, escrita em 1897, é tomada como o marco da dúvida freudiana sobre a
etiologia da neurose assentada na teoria da sedução. É fato que, mesmo após a escrita dessa
carta, Freud permaneceu ainda algum tempo ligado à concepção traumática da neurose. As
incertezas de Freud cessam quando da publicação dos Três ensaios sobre a sexualidade, onde
ele introduz finalmente a teoria das pulsões conceito que tamm sofrerá retificações ao
longo de sua obra.
O sentido etiológico do trauma é conduzido em favor do conceito de fantasia. Entre os
anos de 1897 a 1905, a noção do trauma assentada na sedução por parte de um adulto é
abandonada por Freud abrindo espaço para a noção da fantasia, a partir da qual Freud
estabelece uma articulação com o complexo edípico, considerado núcleo da neurose. No
Rascunho L, documento anexo à Carta 61, de 2 de maio de 1897, Freud (1950[1892-1899], p.
341) define a fantasia como uma “fachada psíquica” criada para dificultar as lembranças das
cenas primevas (traumáticas). Na mesma carta, escreve: [...] formei uma iia incoerente a
respeito da estrutura da histeria. Tudo remonta à reprodução das cenas, a algumas das quais só
se pode chegar diretamente, enquanto a outras, por meio de fantasias erigidas à frente
delas. As fantasias derivam de coisas ouvidas, mas só compreendidas posteriormente, e todo o
seu material, naturalmente, é verídico.” (Idem).
A partir dos Três ensaios sobre a sexualidade as fantasias são entendidas como
capazes de atuação como se fosse uma experiência real, modificando a concepção traumática
da neurose. Dada a sexualidade infantil, perverso-polimorfa apresentada no texto de 1905,
bem como às consequentes fantasias inconscientes incestuosas, o desejo sexual recalcado pelo
pai adquire status etiológico na formação da neurose, anteriormente atribuído à sedução do
adulto. O trauma sexual passa a ser a fantasia arquitetada pelo desejo incestuoso. Observamos
Freud cambiar o real do trauma pela fantasia esta enquanto “ficção sustentada pelo desejo
do sujeito”.
71
Não se tratava mais de pesquisar o acontecimento que está na origem da doença,
mas de promover renúncias pulsionais (gozo incestuoso), retirando os investimentos
libidinais, os desejos, dos pontos de fixação nas figuras primitivas, com um ganho
de mobilidade e circulação libidinal, submetida à lei simbólica (alteridade). Um
longo e complexo percurso foi trilhado desde a primeira teoria das neuroses, até o
momento em que a teoria do trauma é ampliada para abarcar os fenômenos
psíquicos que giram em torno da compulsão à repetição (KUPFERBERG, 2004, p.
66).
Observamos que o ponto de vista traumático acompanha Freud em seu percurso
teórico, todavia agora integrado à constituição e história infantil. Permanece como
denominador comum o fator econômico dada a incapacidade de o aparelho psíquico lidar com
o excesso de excitações que o acomete, segundo o princípio de constância. Nas Conferências
Introdutórias, encontramos um estudo capital sobre o trauma, particularmente no capítulo
XVIII. Ao estudar o caso dos soldados que retornavam da Primeira Guerra Mundial, Freud
redefine o trauma:
Realmente, o termo „traumático não tem outro sentido senão o sentido
econômico. Aplicamo-lo a uma experiência que, em curto peodo de tempo, aporta
à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou
elaborado de maneira normal, e isto pode resultar em perturbações permanentes
da forma em que essa energia opera. [...] Assim, a neurose poderia equivaler a uma
doença traumática, e pareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma
experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso. (1916-17, p. 325).
Freud constata que a intensidade do trauma não pode ser absorvida. Trata-se de uma
lembrança que o indivíduo não sabe que lembra e manifesta em atos obsessivos.
Freud, então, é obrigado a ampliar a teoria do trauma tendo em vista o fenômeno que
batia à sua porta: a compulsão à repetição. A característica essencial do trauma passa a ser a
o assimilação de forma plena do evento pelo sujeito no momento em que este ocorre, mas
na compulsão repetida. Em 1920, com a publicação de Além do princípio do prazer, Freud
afirma que a compulsão à repetição nasce de situações intensas, traumáticas, como as
vivenciadas na guerra e também as experimentadas nos tempos de paz, como, por exemplo, os
acidentes graves. É a partir desse texto que a concepção econômica do trauma como efração é
72
retomada, levando Freud a supor que o afluxo excessivo de tensão mantenha à revelia o
princípio do prazer, impelindo o aparelho psíquico para algo além do princípio do prazer. Este
é um campo enigmático com o qual se depara o criador da psicanálise, o qual se esclarece
paulatinamente com o entendimento do fenômeno da compulsão à repetição e da entrada em
cena da pulsão de morte. A repetição dos sonhos traumáticos, sob a forma de pesadelos,
parece ser a maneira pela qual o sujeito é recolocado na situação traumática como uma
tentativa repetida de desencadear a angústia que outrora fracassou no advento traumático.
Os sonhos em que os sujeitos às voltas com uma neurose traumática revivem a
situação do acidente „têm por objetivo o domínio retroativo da excitação‟, recriam
uma situação em que a angústia, que foi insuficiente na realidade, acha-se agora
bastante presente. [...] Esses sonhos constituem uma exceção à lei do sonho como
realização de desejo: obedecem à compulsão à repetição, que, por sua vez, está a
serviço do desejo inconsciente de permitir que o recalcado retorne. (ROUDINESCO,
op. cit., p. 487).
Para Freud, portanto, existe um modo de funcionamento do aparelho psíquico que é
independente do princípio do prazer, compondo essa a tese defendida no texto de 1920. O
autor reconhece que existe algo na vida psíquica que está situado acima do princípio do prazer
e que esse “algo” está presentificado na compulsão à repetição.
Metapsicologicamente, Freud desenvolveu um segundo modelo do trauma psíquico
concebendo-o enquanto o resultado da “ausência de preparação para a ansiedade”, conforme
assinala Kupferberg (op. cit., p. 71). Da análise que essa autora faz sobre esse assunto, ela
escreve que se trata do estado afetivo que o sujeito apresenta, ao se assustar diante de um
grave perigo que o toma de surpresa, para a qual o estava preparado, o que o impossibilita
de qualquer proteção contra o desencadeamento da angústia automática.” (Idem). Esta citação
faz referência ao momento do trauma, ao tempo de sua ocorrência.
Em Além do princípio do prazer, Freud uma virada na teoria pulsional, fato que
proporciona melhor entendimento do conceito de trauma. É nesse contexto que surge a
expressão “neurose traumática”. O termo neurose traumática, segundo Roudinesco (op. cit.),
foi introduzido por Hermann Oppenheim, que o classificou como uma afecção orgânica
derivada de um trauma real. De acordo com este, a neurose traumática desencadeia sintomas
psíquicos como depressão, delírios, angústia, hipocondria, dentre outros. Freud, a partir da
73
doutrina funcionalista de Charcot, transporta a idéia de “afecção orgânica” de Oppenheim
para o plano psíquico, abrindo as fronteiras para uma nova concepção da neurose,
“inicialmente fundamentada na teoria da sedução e, mais tarde, na do conflito defensivo.
(Ibid., p. 537). Ao postular a neurose como um conflito puramente psíquico, Freud faz
declinar a hipótese de simulação na neurose, na medida em que, como escreve o criador da
psicanálise, todos os neuróticos simulam sem saber, e essa é sua doença.
Catástrofes que geram neuroses são sempre traumáticas, diz Freud, o qual caracteriza a
neurose traumática pela repetição de algo, principalmente sob a forma de pesadelos que nada
mais são que reedição da cena traumática. O sonho traz à cena a angústia não despertada na
cena original, objetivando dominar retrospectivamente o estímulo, desenvolvendo a angústia
cuja ausência se constitui a causa da neurose traumática. A repetão de um evento traumático
está intrinsecamente ligado à incompreensão do evento. Lacan, em Tiquê e automaton
(1985/1964), sugere que o estudo do pesadelo traumático, é o que levará Freud a concluir que
a repetição traumática é da ordem de algo situado para além do princípio do prazer. Ainda no
texto Além do princípio do prazer, Freud considera a neurose traumática “como consequência
de uma grande ruptura que foi causada no escudo protetor contra os estímulos (1920, p. 47). O
autor distingue a concepção psicanatica da neurose traumática daquilo que preconiza a teoria
do choque. Reza o ensino freudiano que o dano traumático está ligado à ameaça causada pelo
choque, e o pelo choque enquanto “violência mecânica”. Diz Freud que a importância
etiológica repousa no susto causado pelo dano traumático infligido ao sujeito. “[...] aquilo que
nós procurávamos compreender são os efeitos produzidos sobre o órgão da mente pela ruptura
do escudo contra estímulos e pelos problemas que se seguem em sua esteira. E atribuímos
ainda importância ao elemento de susto. Ele é causado pela falta de qualquer preparação para
a angústia.” (Idem).
A falha na angústia como sinal abre as fronteiras para a invasão do acontecimento
traumático. Freud diz ainda que a preparação para a angústia e a hipercatexia dos sistemas
receptivos constitui a última linha de defesa do escudo contra os estímulos.” Kupferberg (op.
cit., p. 72) nos faz recordar que Freud postula a experiência traumática como localizada “na
relação que se estabelece entre um acontecimento recente que atualiza um acontecimento
traumáticoatribuindo o sentido outrora não obtido. A temporalidade do evento traumático é
complexa, o que leva Freud a afirmar que nisto reside a dimensão repetitiva do trauma.
Na segunda concepção tópica do aparelho psíquico Freud introduz o Isso império
das pulsões. A compulsão à repetão está ligada à pulsão de morte e advém como uma
74
tentativa de transformar a experiência traumática numa experiência dotada de sentido. Cada
repetição carrega consigo a angústia que não foi despertada no momento traumático,
compondo um gozo mortífero. Ressalta Kupferberg (Ibid., p. 69) que a perplexidade e o
horror chegam entes, sem que o sujeito tenha capacidade para simbolização, desencadeando a
anstia automática, devastadora do aparelho psíquico.
2.5 Rastreamento da formulação freudiana da crueldade
9
Sob o impacto da Primeira Guerra Mundial, Freud, acometido por um forte sentimento
de perplexidade e desilusão diante da desrazão que aflorava no coração da civilização
européia, indagava-se atônito: por que todas as conquistas intelectuais e científicas da cultura
moderna o foram suficientes para diminuir a violência e a destruição entre os homens? Com
um tom de profunda descrença no poder de liderança das nações mais avançadas técnica e
cientificamente, e profundamente decepcionado com intelectuais e cientistas que, então,
demonstravam uma clara afinidade para com o infernal, Freud transe para o papel, sob o
título “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (1915), suas primeiras elaborações sobre
a violência e a categoria do mal na ordem dos fenômenos coletivos. Observa-se na leitura do
texto que em nenhum momento Freud tenta explicar a guerra a partir da psicanálise, mas, ao
revés, seu objetivo é tomar a violência e a crueldade como realidades do psiquismo, e disso
retirar conseqüências teóricas. A fúria e obstinação com que então se expressava o desejo de
destruição do outro forneciam a medida de que a guerra, a crueldade e a desumanização dos
laços sociais não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro. Muito ao
contrário, são acontecimentos inexoráveis que incorporam um elemento radicalmente social e
histórico.
Cético, Freud encaminha toda a discussão no sentido de demonstrar a impossibilidade
de erradicar o Mal, mesmo porque os impulsos considerados negativos são de natureza
9
Este capítulo, excepcionalmente foi escrito junto com a orientadora Betty Bernardo Fuks como resultado
parcial desta pesquisa. Psicanalista, doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), Betty é professora do Mestrado
em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Autora de Freud e a judeidade, a vocação do exílio (Zahar, 2000) e Freud e
a Cultura (2ª. Edição, Zahar, 2007), e-mail: betty[email protected]m.br, telefone (21) 9919 - 0646. Foi publicado
em forma de artigo em Psicanálise & Barroco em revista, n.13, v.1, julho de 2009. Cf.:
www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista.
75
primitiva. Por exemplo: não existe sujeito sem uma boa dose de agressividade; o que é
diferente das manifestações que ocorrem no registro da agressividade não erotizada, tais como
o assassinato e o extermínio. Em outras palavras, a cultura exige irremediavelmente muito
trabalho para promover o convívio entre os homens, mas a confiança no progresso da
inteligência e da razão está sujeita a retrocessos pela própria estrutura do sujeito e do
movimento das civilizações. A guerra é a expressão privilegiada da destruição do outro que
“leva nossos filhos a aprenderem na escola que a história do mundo é uma história de
assassinatos dos povos.” (FREUD, 1915, p. 331).
Na literatura psicanalítica, em geral, a abordagem da crueldade (Grausamkeit) esbarra
no obscurantismo que a qualifica. Em sua maioria, os autores fazem uso desta categoria a
partir da segunda tópica e da leitura freudiana dos fenômenos da cultura. Entretanto, a palavra
crueldade já se encontra presente na obra inaugural da psicanálise, A Interpretação dos
Sonhos (1900), sobretudo na parte em que Freud desenvolve idéias sobre o mecanismo de
condensação. Com vistas a demonstrar que este mecanismo psíquico cria compromissos e
meios-termos entre diversas séries de representações e pensamentos, o autor analisa o sonho
de uma paciente cujo tema gira em torno da crueldade praticada por crianças com animais. Eis
o conteúdo do sonho que denominou de Sonho do besouro-de-maio. [A paciente] se lembrou
de que tinha dois besouros-de-maio numa caixa e precisava libertá-los, caso contrário,
ficariam sufocados. Abriu a caixa e os besouros estavam em estado de esgotamento. Um deles
voou pela janela aberta, mas o outro foi esmagado pelo caixilho da janela enquanto ela a
fechava a pedido de alguém”, escreve Freud (Ibid, p. 281).
Dois restos diurnos precipitaram o sonho: na noite anterior o marido da paciente
viajara e a filha que dormia na cama ao lado dela chamara a atenção para uma mariposa caída
em seu copo de água. A paciente relatou que não havia salvado o inseto e que ficara
extremamente penalizada com o fato. Uma estória de meninos que haviam atirado um gato na
água fervente e as descrições das convulsões do animal foi o segundo resto diurno. A partir
destas lembranças, a paciente recorda o quanto sua filha havia sido cruel com os animais
quando pequena.
Apanhava borboletas e pedia arsênico à mãe para matá-las. Numa outra ocasião,
uma mariposa com um alfinete atravessado no corpo continuara a voar pelo quarto
durante muito tempo; de outra feita, algumas lagartas que a menina estava
guardando para que se transformassem em crisálidas morreram de fome. Numa
76
idade ainda mais tenra, essa mesma menina tinha o hábito de arrancar as asas de
besouros e borboletas. Mas hoje, ficava horrorizada diante de todas essas ões
cruéis tornara-se muito bondosa. (FREUD, 1900, p. 281).
No mesmo ano em que a menina começou a colecionar borboletas, a cidade foi
invadida por uma praga de besouros-de-maio, conforme indica Freud: “As crianças ficavam
muito furiosas com os insetos e os esmagavam sem piedade. Naquela ocaso a paciente vira
um homem que arrancava as asas do besouro de maio e, em seguida, comia-lhes os corpos.
Ela própria nascera em maio e se casara em maio. Três dias após o casamento, escrevera aos
pais dizendo o quanto se sentia feliz. Mas isso estava longe de ser verdade.” (Ibid., p. 281-2).
Freud prossegue a análise das associações livres da paciente. Na noite anterior ao
sonho, a paciente havia lido para seus filhos algumas cartas do passado, dentre as quais
constavam duas de ex-cortejadores. Mas ao mesmo tempo, censurava-se porque sua filha
tinha nas mãos um livro considerado pernicioso. O arsênico que a menina tinha pedido fez a
paciente se recordar das pílulas de arsênico que restauraram o vigor juvenil do Duque de
Mora em O Nababo, de Daudet” (Ibid., p. 282).
Um sonho é um rébus. É preciso tratá-lo como um texto sagrado, isto é, transformar a
imagem em letra. A expressão “Libertá-los”, enunciada no sonho, fez com que a paciente
pudesse recordar um trecho da Flauta Mágica, de Mozart, em que se ouve a seguinte
sentença: “não temas que a amar jamais te forçarei; mas é cedo demais para que eu te liberte”.
(Ibid., p. 282). Por sua vez, os besouros-de-maiosão associados a uma passagem do poeta
Kleist, em Kätchen Von Heilbronn, que diz “estás apaixonada por mim como um besouro”
(Ibid.). E, em meio a tudo isso, vem uma associação referenciada a Tannhauser, que diz o
seguinte: “Porque foste inspirada por tal prazer maligno”, acrescenta Freud (Ibid.).
Finalmente, Freud, ao perceber que para a paciente a ausência do marido era
conflitante, - “[...] ela havia deparado, entre seus pensamentos inconscientes, com uma queixa
sobre o marido estar “ficando senil(Ibid., p. 283) - enuncia o desejo recalcado.
A idéia desejante oculta pelo presente sonho talvez seja mais simples de
conjecturar se eu mencionar que, alguns dias antes de ter o sonho, ela ficara
horrorizada, em meio a seus afazeres cotidianos, com uma frase no modo
imperativo que lhe veio à cabeça e que visava ao marido: “vá se enforcar!”. Ocorre
77
que, algumas horas antes, ela lera em algum lugar que, quando um homem é
enforcado, ele tem uma forte ereção. (Ibid., p. 283).
O desejo de uma “ereção a qualquer preço” (Ibid., p. 283) diz Freud, era o desejo
emergido do recalcamento, configurado no “vá se enforcar!” (Ibid.). Por outro lado, o pedido
de arsênico feito pela filha estabeleceu uma ligação com as pílulas de arsênico do personagem
Dr. Jenkins, em O Nababo, de Daudet e revelou o desejo sexual oculto no relato onírico. A
paciente sabia que um forte afrodisíaco, chamado cantáridas” (Ibid.), era obtido com
besouros esmagados os mesmos besouros que aparecem no sonho.
Embora não teorizada, a idéia da crueldade a serviço da sexualidade aparece,
claramente, na análise deste sonho que, junto ao Sonho da Monografia Botânica (1900) e de
Um sonho adorável (1900) indica a multiplicidade de ligações que surgem a partir do relato
de um sonho.
Ainda no livro sobre os sonhos, na parte dedicada aos sonhos sobre a morte de pessoas
queridas, encontramos outras reflexões sobre o tema da crueldade: “As obscuras informações
que nos são trazidas pela mitologia e pelas lendas das eras primitivas da sociedade humana
fornecem-nos uma imagem desagradável do poder despótico do pai e da crueldade com que
ele o usava. Cronos devorou seus filhos, tal como o javali devora as crias da javalina,
enquanto Zeus castrou seu pai, fazendo-se rei em seu lugar” (FREUD, 1900, p. 253)
10
.
Freud, como se verá mais adiante retomará o assunto da violência entre as gerações
quando da criação do mito do assassinato do pai, disposto em Totem e tabu (1913), na
narrativa que estabelece a primeira formulação de uma historiografia psicanatica capaz de
explicar a produção e a transmissão do laço social entre as gerações.
Passemos aos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), obra com a qual Freud
introduz o conceito de pulsão. Se na Interpretação dos sonhos (1900) a articulação entre
crueldade e sexualidade aparece de forma implícita, sem maiores teorizações, no texto de
1905 ele insere a crueldade na base da metapsicologia das pulsões sexuais.
Na neurose obsessiva, o que mais se destaca é a significação dos impulsos que
criam novos alvos sexuais e parecem independentes das zonas erógenas. Não
10
Em 1901, no texto A psicopatologia da vida cotidiana, Freud corrige essa citação e afirma que foi Cronos
quem cometeu a castração contra seu pai, Urano, e não Zeus, como consta no texto de 1900.
78
obstante, na escopofilia e no exibicionismo o olho corresponde a uma zona
erógena; no caso da dor e da crueldade como componentes da pulsão sexual, é a
pele que assume esse mesmo papel a pele, que em determinadas partes do corpo
diferenciou-se nos órgãos sensoriais e se transmudou em mucosa, sendo assim a
zona erógena por excelência (FREUD, 1905, p. 158).
Todo o encaminhamento de Freud é no sentido de afirmar a hipótese de que a
crueldade come a pulsão sexual. Chama atenção do leitor, o número de vezes em que
aparecem referências ao prazer na dor, à crueldade (Ibid., p. 148) experimentada na
perversão: “Quem sente prazer em provocar dor no outro na relação sexual é também capaz
de gozar, como prazer, de qualquer dor que possa extrair das relações sexuais(Ibid., p. 149).
Mas, longe de encerrar o quadro da perversão numa simples aberração da conjunção sexual
aos critérios sociais estabelecidos e incluí-la na esfera da degenerescência patológica, o
mestre de Viena dedica-se a pensar de que forma, algo que é da ordem do inato nas
perversões se estende a todos os homens; embora a disposição possa variar de intensidade e
ser aumentado pelas influências da vida real (Ibid., p. 156). “Que a crueldade e a pulsão
sexual estão intimamente correlacionadas é-nos ensinado, acima de qualquer vida, pela
história da civilização humana, mas no esclarecimento dessa correlação não se foi além de
acentuar o fator agressivo da libido” (Ibid., p. 149).
Com a escrita de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud propõe
uma concepção sadomasoquista da perversão sexual: o sádico é sempre e ao mesmo tempo
masoquista. Tanto o lado ativo (sadismo) ou passivo (masoquismo) podem, em si mesmos,
caracterizar a atividade sexual que prevalece. Segundo os mais diversos autores, o termo
sadomasoquismo, passa a “caracterizar um aspecto fundamental da vida pulsional, baseado na
simetria e na reciprocidade de um sofrimento passivamente vivido e um sofrimento
ativamente infligido.” (ROUDINESCO, 1998, p. 681) A crueldade do sadismo se qualifica
como ação de subjugação e maus tratos perpretados pelo sujeito contra outro tomado como
objeto. Do mesmo modo, caracteriza a natureza do masoquismo de sexual em sua ligação com
a dor sica praticada pelo outro, ocorrendo gozo no padecimento dessa dor. Entretanto,
embora infligir dor ao outro seja da ordem do sadismo, paradoxalmente, o gozo do sujeito é
em si mesmo masoquista, pois se identifica com o objeto que está sofrendo. No decorrer do
texto verifica-se que Freud emprega os termos sadismo, masoquismo e crueldade como
inerentes ao próprio movimento pulsional.
79
Sob este prisma Freud compartilha da idéia de alguns autores, como Abraham (1916),
por exemplo, para quem a agressividade mesclada à pulsão sexual é um resto de desejos
primitivos de dominação que atende à satisfação de outra grande necessidade
ontogenicamente mais antiga” (FREUD, 1905, p. 149). O diálogo com Abraham permitirá ao
mestre de Viena lançar outras luzes sobre diferentes fases de desenvolvimento psicosexual
(oral, sádico-anal, fálico, genital). Com relação à fase sádico-anal, Freud destaca a separação
entre sujeito e objeto a partir da idéia de Abraham sobre a “boca primitiva”, donde provêm o
anus (Ibid., p. 186). Nada impede que as pulsões os impulsos que vem de dentro do sujeito e
que, quando realizados provocam prazer ou gozo atuem de forma permanente, sem levar em
conta as demandas da cultura. “O mais nobre e o mais vil, por toda parte da sexualidade,
aparecem na mais íntima dependência mútua” (Ibid., p. 152). Von Himmel durch die Welt zur
Hölle
11
, implica dizer que o gozo é capaz de levar o homem “do céu ao inferno” (Cf. FREUD,
1905, p. 152).
Um papel muito destacado entre os formadores de sintomas das psiconeuroses é
desempenhado pelas pules parciais, que na maioria das vezes aparecem como
pares de opostos e das quais já tomamos como portadores de novos alvos sexuais
a pulsão de ver e do exibicionismo, e a pulsão de crueldade em suas formas ativa e
passiva. A contribuição desta última é indispensável à compreensão da natureza
sofrida dos sintomas e domina quase invariavelmente uma parte da conduta social
do doente. É também por intermédio dessa ligação da libido com a crueldade que
se a transformação do amor em ódio, da moções afetuosas em moções hostis,
que é característica de um grande número de casos de neurose e até, ao que parece,
da paranóia em geral (FREUD, 1905, p. 156).
Mas atenção: Freud jamais abandona a idéia da crueldade como parte da natureza”
humana e do fato de que algumas de suas expressões são absolutamente normais e universais.
“Com independência ainda maior das outras atividades sexuais vinculadas às zonas erógenas
desenvolve-se na criança o componente de crueldade da pulsão sexual. A crueldade é
perfeitamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a pulsão de dominação deter-se
ante a dor do outro a capacidade de compadecer-se tem um desenvolvimento
relativamente tardio” (Ibid., p. 180).
11
“Do céu ao inferno através do mundo”, de Goethe, em Fausto, Prólogo no Teatro, (apud FREUD, 1905,
P.152).
80
Ainda sobre os atos de sevícia, facilmente observáveis nas crianças, pode-se ler:
As crianças que se distinguem por uma crueldade peculiar para com os animais e
os companheiros despertam, em geral justificadamente, a suspeita de uma
atividade sexual intensa e precoce advinda das zonas erógenas, e mesmo no
amadurecimento precoce e simultâneo de todas as pulsões sexuais, a atividade
sexual erógena parece ser primária. A ausência da barreira da compaixão traz
consigo o risco de que esse vínculo estabelecido na infância entre as pulsões cruéis
e as erógenas torne-se indissolúvel na vida (FREUD, 1905, p. 180-1).
É digno de nota que, neste momento, no qual Freud está lançando as fundações de sua
primeira teoria pulsional, encontramos ali, lado a lado referências à pulsão sexual e à
invocação da pulsão de dominação. Uma pulsão que se dirige „cegamente‟ para o exterior e
indiferente ao sofrimento alheio -, dominando o que ele chamou de organização pré-genital da
vida sexual infantil. Ou seja, a crueldade, além de ser um componente da pulsão sexual, tem
um papel relevante ao donio do outro. “O impulso cruel provem da pulsão de dominação e
surge na vida sexual numa época em que os genitais ainda o assumiram seu papel posterior”
(Ibid., p. 180). Isto determina o caráter infantil da sexualidade, sempre marcado pelo
componente de crueldade da pulsão sexual.
Resta saber, de que modo sexualidade e crueldade se conectam. Encontramos a
resposta na seguinte nota de rodapé que transcrevemos diretamente de Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (1905).
Podemos supor que os impulsos de crueldade brotem de fontes que de fato
independem da sexualidade, mas que unam-se a ela precocemente por uma
anastomose [conexão cruzada] próxima de seus pontos de origem. A observação
ensina, entretanto, que o desenvolvimento sexual e o desenvolvimento das pulsões
escopofílica e de crueldade estão sujeitos a influências recíprocas que restringem a
suposta indepenncia das duas classes de pules (FREUD, 1905, p. 180, nota 2).
Resumindo, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) estabelece uma estreita
ligação entre crueldade e pulsão sexual mapeando, com bastante nitidez, possibilidades de
manifestações cruéis por qualquer sujeito. Todavia, conforme a nota de rodapé transcrita
acima, a sexualidade não é o único universo conceitual em que Freud irá circunscrever a
81
crueldade. Podemos adiantar que se trata de uma categoria antitética: apresenta duas faces
igualmente importantes. Neste sentido, convém lembrar aqui as contribuições de J. Derrida ao
estudo da crueldade na obra de Freud. A crueldade apenas se expressa num contínuo:
existem somente diferenças de crueldade, diferenças de modalidade de qualidade, de
intensidade, de atividade ou reatividade da mesma crueldade (DERRIDA, 2001, p. 75).
Lembrando Nietzsche, para quem a crueldade não tem termo, o filósofo franco-argelino
afirma que em Freud a crueldade é sem fim “mas não sem termo oponível, isto é, sem fim,
mas não sem contrário(Ibid.), na medida em que regida pela luta interminável entre Eros e
Tanatos. Portanto, não se pode submeter o pensamento freudiano sobre a crueldade a qualquer
leitura simplificada e moralista; sob pena de se perder sua importância clínica e a dimensão
que toma na crítica psicanalítica da cultura.
O tema da crueldade reaparecerá em 1913, quando da escrita de Totem e tabu, texto
em que Freud constrói a cena psicanalítica que estrutura o coletivo. Ao assinar o mito do
assassinato do pai, cria um caminho que o conduzirá à elaboração do segundo dualismo
pulsional, onde a categoria da crueldade aparecerá, também, ligada à destrutividade entre os
grupos humanos. O mito contém, em si mesmo, a imagem de um pai cruel e tirano que é
deposto do lugar de poder que ocupava, pelos próprios filhos que o matam. É através deste ato
de violência coletiva, que Freud baseia sua teoria sobre a origem da cultura e do sujeito. A
insistência de Freud em considerar que o direito e a lei foram originários de transformações da
crueldade e da violência, condensa, de forma precisa, o duplo sentido desses termos em sua
obra. Além de designar a força que sustenta os processos simlicos e as relações entre os
homens, indica, também, a presença bruta do elemento mais arcaico desta força nas operações
destrutivas e outras assemelhadas que, sistematicamente, inunda de sangue e dor a civilização.
Mais tarde, na Conferência XXXII (1932), Angústia e Vida Pulsional, já sob a ótica da
Segunda Tópica, Freud resgata o tema da crueldade em sua relação com o mito do assassinato
do pai. “Suspeitamos que, durante o período primevo da família humana, a castração
costumava ser usada, realmente, por um pai ciumento e cruel, nos meninos em crescimento, e
que a circuncisão, que tão frequentemente desempenha um papel nos ritos de puberdade entre
os povos primitivos, é um vestígio claramente identificável desse fato”, escreve o autor (Ibid.,
p. 109).
Na segunda parte de Totem e tabu (1913) o autor destaca a permissividade com que se
incita a crueldade em algumas tribos quando se trata de atingir inimigos. Livres de inibições,
os selvagens cometem atos extremamente cruéis para com seu opositor. Entretanto, observa
82
Freud, o homem primitivo se responsabilizava pelo assassinato do inimigo, realizando o luto
através de um conjunto de práticas cerimoniais e tabus que o fazia expiar a culpa pelo
homicídio (Ibid.). Nas sociedades primitivas, a presença sagrada da morte entre os primitivos
garante o lugar da alteridade, diminuindo a capacidade humana de destruição.
as sociedades modernas, ao promover a dessacralização da morte, descartam mais
facilmente a vida acentuando progressivamente a capacidade de destruição humana. Com isso
voltamos ao texto Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), onde Freud,
desiludido, desconstrói a iia de uma “superioridade” da civilização mais avançada sobre as
mais primitivas. Então, a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu, e trouxe
desilusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer outra guerra de
outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa; é, pelo
menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha
precedido” (Ibid., p. 315).
A crueldade outorgada pelas nações em guerra atinge a todos, civis e militares
rompendo-se assim os laços sociais. Freud se conta de um grande paradoxo: o sujeito
moderno e o selvagem das cavernas podem ser igualmente bárbaros, cruéis e malignos. Toda
guerra subverte valores éticos e morais, de modo que os atos praticados em defesa da pátria,
ainda que o externio do outro, são afiaados pelo Estado. Verifica-se o afrouxamento das
condutas morais, inadmissíveis em tempos de paz. Sobre a baixa moralidade dos Estados em
guerra e a respeito da brutalidade dos indivíduos, escreve: Quando a comunidade não levanta
mais objeções, verifica-se também um fim à supressão das paixões más, e os homens
perpetram atos de crueldade, fraude, traição e barbárie tão incompatíveis com seu nível de
civilização que qualquer um julgaria impossíveis” (Ibid., p. 316).
Nota-se que Freud no texto em questão já está adiantando o que conceituará em seus
escritos que pertencem à segunda pica: a crueldade está, também, circunscrita à pulsão de
destruição, um dos nomes da pulsão de morte.
Pouco tempo depois da escrita desse artigo de 1915, Freud, na Conferência IX (1916),
intitulada A Censura dos Sonhos, retomando as idéias desenvolvidas na Traumdeutug (1900),
estabelece uma relação entre o conteúdo orico e a crueldade praticada na guerra. Depois de
reafirmar a tese de que o sonho possui um sentido e cumpre uma finalidade - a realização de
um desejo recorre ao filósofo Platão para assinalar aos ouvintes a irredutibilidade da
crueldade.
83
Ou não sabem que todas as transgressões e excessos com que sonhamos durante
a noite são diariamente cometidos, na vida real, pelas pessoas em sua vida
desperta? O que faz aqui a psicanálise senão confirmar a velha sentença de Platão,
de que os bons são aqueles que se contentam em sonhar com aquilo que os outros,
os maus, realmente fazem? (...) E agora, abstraiam-se dos indivíduos e considerem
a grande guerra que ainda devasta a Europa. (...) Pensem na avassaladora
brutalidade, na crueldade e nas mentiras que conseguem se alastrar pelo mundo
civilizado. (...) Os senhores se arriscariam, nessas circunstâncias, a quebrar lanças
em defesa da inexistência do mal na constituição mental da humanidade? (FREUD,
1916, p. 176).
Em Introdução à A Psicanálise e as Neuroses de Guerra (1919), Freud recupera o
conceito de trauma como efração, o que vai determinar, junto com outros elementos extraídos
da própria clínica, a teorização da pulsão de morte. O termo crueldade reaparece em relação à
crítica ao tratamento psiquiátrico dado aos soldados que voltavam do front. No apêndice,
intitulado “Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra” incluído, no
mesmo texto, em 1920, Freud, mais uma vez, ressalta destaca o aspecto sádico do tratamento
dispensado aos combatentes: “Para essa finalidade empregou-se, com êxito, o doloroso
tratamento elétrico (Ibid., p. 268). A experiência coletiva da guerra produzira um grande
número de neuroses graves e a crueldade do tratamento elétrico fazia aumentar a fuga do
sujeito para a doença. O choque elétrico não se destinava à recuperação do paciente, senão,
apenas, ao seu regresso ao campo de combate. Sob tais condições o militar se deparava com
os impactos cruéis provocados pelo horror da guerra, onde as ameaças à vida são reais e
constantes, e também à dor do choque elétrico, caso adoecesse. “A intensidade da corrente
elétrica, bem como a severidade do resto do tratamento, foi aumentada a um ponto
insuportável, com o objetivo de privar os neuróticos de guerra da vantagem que obtinham
com sua doença”, escreve Freud (Ibid., p. 269).
A crueldade deste método de tratamento dos médicos alemães parece residir na
indiferença ao sofrimento do sujeito. A estes “propósitos estranhos”, Freud contrapõe a escuta
dos conflitos mentais inconscientes que perturbavam a vida emocional do sujeito.
Em 1921, no texto Psicologia das massas e a análise do eu, o estudo sobre a
crueldade caminha em direção da problemática do “narcisismo das pequenas diferenças”, o
fenômeno grupal de amor entre si e ódio ao outro. Em sua análise sobre as massas artificiais,
84
Freud efetua uma crítica à Igreja, ao modo como ela se serve do fenômeno religioso, bastante
contundente: [...] na verdade, toda religião é, dessa mesma maneira, uma religião de amor
para todos aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os que
o lhes pertencem, são naturais a todas as religiões” (Ibid., p. 125).
A noção do narcisismo das pequenas diferenças” facilita compreender melhor os
paradoxos da crueldade humana. Em termos normais, o narcisismo das pequenas diferenças”
está na base da constituição do “nós” e do “outro”, na fronteira que tem por função resguardar
o narcisismo da unidade. Trata-se de um fenômeno que ocorre na tensão que existe entre
povos vizinhos, entre indivíduos de estados diferentes de um mesmo país, ou até mesmo um
estado. Entretanto, levando este fenômeno ao paroxismo, desemboca-se na segregação e no
racismo, tal como os definem a psicanálise: a repulsa do sujeito ao que lhe é mais íntimo é
tomado pelo eu/massa como objeto externo, a quem se endereça o ódio com atos cruéis: o
estrangeiro.
Em 1927, no texto O Futuro de uma Ilusão, Freud reafirma a presença de impulsos
hostis no sujeito contra os quais a civilização tem que se defender. É preciso, escreve o autor,
“levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tenncias destrutivas
(Ibid., p. 17). O texto traz uma análise da religião como uma ilusão. A crueldade aparece
como uma categoria destrutiva que surge como uma possibilidade para todos.
[...] a civilização quem sabe quantos milhares de anos atrás? começou a
separar o homem de sua condição animal primordial. Para nossa surpresa,
descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago
da hostilidade para com a civilização. Os desejos pulsionais que sob elas padecem,
nascem de novo com cada criança; [...] Entre esses desejos pulsionais encontram-
se os do canibalismo, do incesto e da ânsia de matar (FREUD, 1927, p.21).
Na terceira parte do texto de 1927, são tecidas considerações sobre a possibilidade de
uma civilização livre de proibições com vistas a demonstrar que a satisfação irrestrita de todos
os desejos humanos significaria a reencarnação da horda. Nesse contexto, assinala que [...]
uma única pessoa se poderia tornar irrestritamente feliz através de uma tal remoção das
restrições da civilização, e essa pessoa seria um tirano, um ditador... [...] E mesmo ele teria
todos os motivos para desejar que os outros observassem pelo menos um mandamento
cultural: „não matarás‟” (Ibid., p. 26). A preocupação de Freud em relação à reencarnação do
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cadáver insepulto do pai da horda, na figura de um ditador tirânico e cruel, neste texto e em
Psicologia das massas e análise do eu (1921) demonstra sua insistência, como critico da
cultura que testemunhou, de refletir profundamente sobre a potica de seu tempo. Sabemos
que o pano de fundo da escrita destes textos era o da ascensão do Terceiro Reich, que
terminou desembocando na invenção de uma máquina de fabricar cadáveres: os campos de
externio.
Embora a cultura livre o homem do estado de natureza, “muito mais difícil de
suportar” (Ibid.), uma das três fontes do intermivel mal-estar na civilização é, justamente, a
crueldade da natureza: “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente [...]” (Ibid.). Freud
acrescenta que o homem a teme como teme ao pai” (Ibid., p. 29). A busca de um pai protetor
tem vinculações com a crueldade da natureza e desamparo original a que o homem está
sempre exposto. Assim sendo, encontramos a seguinte referência no texto freudiano: “O
desamparo do homem, pom, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses.
Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens
com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compen-los
pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs” (Ibid.).
Em 1929 Freud escreve Mal-estar na civilização (1930), apoiado nas seguintes teses:
a do princípio do ódio originário, e a da existência de uma satisfação que escapa à primazia do
princípio do prazer, desenvolvidas em Pulsões e seus destinos (1915) e Além do principio do
prazer (1920), respectivamente. Ambas imprimem o tom deste escrito que gira em torno dos
destinos da pulsão de morte na cultura.
[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no
máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre
cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. [...] essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se
coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido
alcançado por medidas mais brandas (FREUD, 1930, p. 133).
Uma cruel agressividade variável de intensidade, pode, dependendo da ocasião, ser
estabelecida em qualquer tempo no espaço social propriamente dito. A liberação pura e
simples do ódio pelo Estado gera, inevitavelmente, o estado de “barbárie” (REY-FLAUD,
2002, p. 36): os impulsos cruéis, de tempos em tempos, se apresentam no homem como uma
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besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho”
(FREUD, 1930, p. 133). O autor, entretanto, confessa suas próprias dificuldades em admitir a
existência de uma agressividade não erótica a serviço da pulsão de morte. “Sei que no
sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações da pulsão destrutiva
(dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não posso mais
entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da
destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação
da vida”, escreve Freud (Ibid., p. 142).
Desde Totem e tabu (1913), a futura constelação do supereu foi esboçada sob a
denominação de “moção maligna”. Em Mal-estar na civilização (1930), a questão do
parricídio é retomada e Freud insiste que a agressão dirigida ao pai da horda, figura temível,
cujo retorno produz horror e convoca o gozo, instala a potência demoníaca do supereu. Esta
instância deixa o saldo da culpa subjetiva que ao fracassar, em “uma satisfação pulsional
agressiva, se potencializa, o que poderia se traduzir assim: toda contenção da consumão da
agressão de vingança contra o pai hostil aumenta a culpa” (GEREZ, 2003, p. 187). Com um
trabalho paciente Lacan vai demonstrar, a partir dos textos freudianos, e da interpretação que
deles faz, que o supereu acaba por se identificar ao que chamo figura feroz, as figuras que
podemos ligar aos traumatismos primitivos” (LACAN, 1954, p. 123). A crueldade encontra
respaldo nessa figura impiedosa aparente no trauma, na melancolia em sua passividade
desencadeada por uma situação que ultrapassa o sujeito e o confronta com sua
impossibilidade de reagir face ao acontecimento (HASSOUN, J. 2002, p. 19).
Com efeito, na Conferência XXXI (1933), A dissecção da personalidade psíquica,
Freud destacará, literalmente, o rigor e crueldade do supereu na melancolia, tendo em vista a
independência que ele mantém em relação à instância egóica. “Há, porém, um quadro clínico
que se impõe à nossa observação e que mostra nitidamente a severidade dessa instância e até
mesmo sua crueldade, bem como suas cambiantes relações com o eu. Estou-me referindo à
situação da melancolia, [...]. O aspecto mais evidente dessa doença [...] é o modo como o
supereu trata o eu” (Ibid., p. 79).
Toda a hipótese freudiana sobre a destrutividade alcança em O mal-estar na
civilização (1930) o estatuto de motor da terceira fonte de sofrimento humano a facticidade
das relações entre os homens: a “[...] inata inclinação humana para a „ruindade‟, a
agressividade e a destrutividade, e também a crueldade(Ibid., p. 142), diz Freud, é o maior
impedimento à vida civilizada. Como bem observam alguns leitores de O mal-estar na
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civilização, a visão apocalíptica de Freud é desconcertante, principalmente quando nos
deparamos com os efeitos da Segunda Guerra Mundial e do incremento dos
fundamentalismos atuais.
Entretanto, é preciso ler este texto à luz de Por que a guerra? (1933) para extrair um
panorama mais amplo e menos pessimista da teoria freudiana da cultura. Em resposta à
solicitação de Einstein de que expusesse o problema da paz mundial sob o enfoque de suas
mais recentes descobertas, usa, mais uma vez, a palavra crueldade para refletir sobre a lógica
das pulsões destruidoras, indissociáveis da pulsão de morte. “[...] Quando os seres humanos
são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar uns
nobres, outros vis, alguns fracamente declarados, outros jamais mencionados. [...] Entre eles
está certamente o desejo de agressão e de destruição: as incontáveis crueldades que
encontramos na história e em nossa vida atestam a sua existência e a sua força.” (Ibid., p.
253).
Freud não descarta o fato de que a satisfação dos impulsos destrutivos é facilitada por
sua mistura com motivos de natureza erótica e idealista. Mas reconhece que estes servem
apenas de escusa para os desejos destrutivos, e, às vezes - por exemplo, no caso das
crueldades da Inquisição é como se os motivos idealistas tivessem somado a um primeiro
plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço constante”
(Ibid.).
Num giro maior do que lhe fora pedido, Freud introduz uma discussão sobre pacifismo
endereçando ao físico a seguinte questão: "Por que nos revoltamos tanto contra a guerra, o
senhor e eu, e tantos outros, por que não a aceitamos como uma entre outras tantas
necessidades penosas da vida?” (Ibid., p. 256). Com seu estilo de escrita inconfundível,
responde à pergunta de modo inteiramente inusitado. Longe de considerar, como era de se
esperar, que a recusa à barbárie é conseqüência imediata da lógica da razão, afirma que, para
alguns homens, o horror à guerra, a expulsão das sementes de barbárie de dentro de si mesmo,
resulta, provavelmente, de um determinismo quase orgânico.
De que forma isto teria ocorrido? Expondo sua última posição sobre a guerra, Freud
considera que ao longo do processo civilizatório, determinados gozos incomensuráveis que o
homem um dia experimentou foram sendo reprimidos, a ponto de determinar "fundamentos
orgânicos nas modificações de cânones estéticos e éticos" (Ibid., p. 257) da humanidade. Ou
seja, do ponto de vista da psicanálise, no curso da História, as repressões sobre as satisfações
agressivas mais primitivas adquiriram uma característica transmissível. Isto é o que determina
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que o gozo obtido pelo bárbaro seja indiferente ou mesmo insuportável para alguns homens.
Ainda que poucos, alguns homens tornaram-se pacifistas de modo absolutamente singular.
Indignar-se contra a guerra, significa simplesmente, afirma Freud, que "para nós pacifistas,
trata-se de uma intolerância constitucional, de uma idiossincrasia" (Ibid., p. 258).
Talvez o uso da expressão "intolerância constitucional" tenha sido apenas um recurso
da retórica freudiana para falar sobre uma estratégia de combate que pode emergir no
campo da ética do outro. Nesse campo, foi categórico: o antídoto contra o traço compulsivo e
indestrutível de assimilar, humilhar, destruir e infligir dores ao outro que a humanidade
carrega, é manter a chama do desejo de construir a vida permanentemente acesa (Ibid., p.
259). Se houver um lugar específico para a psicanálise na cultura, se o de convocar a
responsabilidade do sujeito pelo Outro.
No plano do coletivo, ainda que o analista seja impedido de exercer a clínica sob
transferência (como ocorre no desenrolar da análise do sujeito), por razões éticas não pode
deixar de escutar e denunciar a impunidade requerida pelos movimentos a favor da guerra, da
segregação, do racismo etc. Esta posição que impede a psicanálise de ficar neutra na luta entre
o obscurantismo da barbárie e a cultura, liga-se à sua responsabilidade cívica, de modo
inexorável. Uma responsabilidade “sem álibi”, diz Derrida (2001, p. 17), pois a psicanálise
o pode deixar de cumprir seu papel subversivo e questionador dos abusos dogmáticos
(Ibid.). Espera-se de um analista que, em nenhuma circunstância, por ele distinguir as forças
mais enigmáticas da natureza humana, justifique condutas que venham a colocar em risco o
laço social entre os homens.
Se a guerra é uma realidade ininterrupta na História da Humanidade o analista deve se
comprometer com toda e qualquer iniciativa blica de minorar a crueldade da destruição.
Até mesmo porque, que espécie de futuro nos aguardará "se não aprendermos a distrair as
nossas pulsões do ato de destruir a nossa própria espécie, se continuarmos a odiar um ao outro
por pequenas disputas e matar um ao outro por um ganho mesquinho?" (JONES, 1982, p.
398). Estas sábias palavras de Freud ao grande amigo escritor Romainn Rollan, elucidam
claramente que para a psicanálise o combate à guerra pode ser feito indiretamente: trata-se
de fazer jogar a força antagonista de Eros, o amor e o amor à vida, contra o ódio e a
crueldade.
89
2.6 Da crueldade desde sempre
Quais as análises que demandam o conceito de crueldade no mundo atual? Por que a
crueldade não foi estancada apesar do sem número de atrocidades e barbárie na história da
humanidade? O que poderia significar a crueldade algo estranho e familiar o sofrer por
sofrer, o fazer sofrer, o jogo do gozo do sofrimento?
Jacques Derrida, durante os Estados gerais da psicanálise, realizado em Paris, em
julho de 2000, fez uma conferência com o seguinte título: Estados-da-alma da psicanálise: o
impossível para além da soberana crueldade. Inicia sua fala apontando que tanto para Freud
como para Nietzsche a crueldade não tem termo, é sem fim. “Pode-se estancar a crueldade
sanguinária [...], mas segundo Nietzsche ou Freud, uma crueldade psíquica restará para
sempre inventando novos recursos. Uma crueldade psíquica será, então, certamente, uma
crueldade da psique, um estado da alma, portanto do ser vivente, mas uma crueldade não
sanguinária” (Derrida, 2001, p.7).
Derrida se interroga se não é somente o campo da psicanálise que poderá fornecer
respostas ao que de enigmático na crueldade. A causa da crueldade, responde o filósofo
franco-argelino, cabe à psicanálise interrogar desde que ela se mantenha como um
pensamento sem álibi”, isto é, para além dos modelos fisicistas, positivistas e soberanos que
resistem a ela por cumprir um papel subversivo e questionador dos abusos dogmáticos.
O filósofo na condição de “chegante”, de quem está de fora do campo da psicanálise,
elabora uma crítica a uma psicanálise enclausurada nos modelos da diferença sexual, a partir
de uma oposição binária pura e simples entre masculino e feminino. Vindo de fora, como
outro, o filósofo convoca os psicanalistas a participar de um debate do qual o excluídos
devido à resistência interna das instituições psicanalíticas a pensar a crueldade no plano da
política do Estado e da sociedade civil.
Em razão de sua própria excepcionalidade, as relações da psicanálise com o
espaço blico da sociedade civil e do Estado sempre foram criticadas. A
transformação profunda dessas duas dimensões do espaço público cria um novo
dado. Ela pede análises inéditas, novos axiomas e invenções estratégicas. Se posso
confiar a vocês o sentimento de um observador estrangeiro, parece-me que resta
tudo por fazer e que não há, nem have jamais, o mínimo consenso à vista de
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qualquer desses assuntos, nem entre os psicanalistas do mundo inteiro, nem entre
seus interlocutores sociais, políticos, jurídicos (Ibid., p. 48).
Qual a responsabilidade da psicanálise em relação à crueldade? A resposta começa a
tomar corpo ao longo do texto em que Derrida comenta a correspondência entre Einstein e
Freud para refletir sobre a crueldade inestancável, a pulsão de morte soberana. A partir do
texto Por que a guerra? (1933/1932), o filósofo retoma o uso freudiano da palavra crueldade
para mostrar de que modo o pai da psicanálise, “servindo-se por diversas vezes da palavra
crueldade, pulsão de agressão, de ódio e de pulsão de morte, denuncia uma ilusão: aquela da
erradicação, justamente, das pulsões de crueldade e das pulsões de poder e soberania”
(Derrida, op. cit., p. 74). É sobretudo que o conceito de crueldade, conceito confuso e
enigmático, viveiro de obscurantismo, na psicanálise e fora dela, pede análises indispensáveis
para as quais deveríamos nos voltar”, diz Derrida. (Ibid., p. 19).
A troca da correspondência entre o físico e o psicanalista aconteceu entre 1931 e 1932
quando o ComiPermanente para a Literatura e as Artes da Sociedade das Nações Unidas
pediu a Freud e a Einstein para publicar a corresponncia entre ambos sobre a paz e a guerra.
Einstein pergunta a Freud se “existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça
de guerra” e alude à criação de uma autoridade legislativa como combate à crueldade.
Einstein percebe que o exercício da autoridade por tal instituição teria que lidar com duas
variantes que caminham lado a lado: “força” e “direito”. Para o sico, a segurança
internacional implica a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida,
à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania” (Ibid., p. 242).
Em sua análise da carta de Einstein a Freud, Derrida mostra que direito e poder são
termos que derivam um do outro, que “vão em par” afirma Derrida (op. cit., p. 32) e sua
genealogia remete à pequena horda humana, ao assassinato do inimigo que satisfaz uma
inclinação pulsional. É o que consta nas linhas iniciais das palavras de Freud a Einstein:
No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular
que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A
força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso dos instrumentos: o
vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior
habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram
introduzidas, a superioridade intelectual começou a substituir a força muscular
91
bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo uma ou outra facção tinha
de ser compelida a abandonar suas pretensões ou objeções, por causa do dano que
lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força. Conseguia-se esse
objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre
o adversário, ou seja, se o matasse. Isso tinha duas vantagens: o vencido não podia
restabelecer sua oposição, e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu
exemplo. Ademais, matar um inimigo satisfazia uma inclinação pulsional (FREUD,
1933, p. 246).
Derrida (op. cit., p. 73) corrobora o pensamento de Freud ao escrever que: a
passagem da violência ao direito é a comunhão, a união que faz a força. [...] O direito provém
do poder ou da violência da comunidade que, monopolizando a força, se protege da violência
individual. Força contra força, economia diferida da força, eis o direito.
Verificamos Derrida ratificar as idéias de Freud observadas na correspondência
endereçada a Einstein, onde o Mestre de Viena afirma não poder haver um verdadeiro Direito
Internacional porque os países sob a égide das Nações Unidas, quando em separado, não
renunciam à soberania de seu próprio poder.
Além disso, Derrida (p. 34) chama atenção para o fato de que Einstein, muito lúcido,
ressalta que os Estados-nações no poder têm a “mão sobre a escola, a imprensa e a Igreja e
que se a população responde a essa minoria de homens no poder, a ponto de lhes sacrificar
suas vidas” é porque, como bem faz notar Freud, “no homem vive uma necessidade de odiar e
aniquilar”. Essa foi a resposta de Freud ao segundo questionamento dirigido a ele por
Einstein, indagando como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que
se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos?
(FREUD, 1989, p. 243). E se a pulsão de morte, em sua face cruel é irredutível ao que Freud
designou de princípio da realidade e do prazer, nem mesmo a potica poderá erradi-la.
O psicanalista e o filósofo apontam que a impossibilidade de renúncia de uma parcela
da soberania do Estado é um dos motivos principais para a eclosão dos conflitos armados. A
pulsão de morte, em sua face destrutiva, é o inconquistável numa guerra. Esta assertiva está
relacionada ao que há de irredutível na pulsão. Isso significa que, dado o seu caráter
indomável, a pulsão de morte não se submete ao destino que lhe impõe a cultura, no sentido
de ser vencida ou domesticada. Esta é uma guerra que não se vence. Trata-se de uma partida
intermivel por definição.
92
Freud jamais defendeu a idéia de que as pulsões poderiam ser domesticadas. Ele
aposta na possibilidade de drenagem dessa parcela de natureza inconquistável” (FREUD,
1933, p. 105) as pulsões. À cultura cabe essa drenagem mediante medidas educacionais,
uma vez que “tudo o que privilegia o crescimento da cultura trabalha simultaneamente contra
a guerra.” (Ibid., p. 256). A psicanálise veio, dentre outras finalidades, para alertar a
humanidade quanto à existência de uma parcela da constituição psíquica do homem que urge
satisfação a qualquer custo, muitas vezes à revelia dos ditames da civilização.
As exigências pulsionais e as restrições impostas pela cultura constituem o eixo
temático principal do Mal-estar na civilização, escrito no verão de 1929. Dentre outras
considerações, Freud alerta que uma satisfação irrestrita de todas as necessidades método
tentador significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando o seu próprio castigo.
(FREUD, 1930, p. 96). Cabe à cultura erigir barreiras capazes de drenar a força avassaladora
das pulsões. Ocorre que, como afirma a genialidade freudiana, que se arcar com o ônus da
restrição imposta à pulsão. A resultante dessa equação é a hostilidade contra a qual a cultura
tem que lutar.
[...] é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre
uma renúncia pulsional. [...] Essa “frustração culturaldomina o grande campo dos
relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como sabemos, é a causa da
hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. [...] Não é fácil entender
como pode ser possível privar de satisfação uma pulsão. Não se faz isso
impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo
de que sérios distúrbios decorrerão disso (FREUD, 1930, p. 118).
Fundamentalmente, Freud nos diz que não se deve ficar cego ao caráter destruidor da
pulsão de morte, posto que irredutível. Dito de outra forma, não deve haver ilusão quanto ao
que de cruel no homem. Todavia, Freud ressalta que o ser humano também precisa de
ilusões, certamente as ilusões necessárias para a crença numa civilização sem guerras, sem
conflitos. Em 1915 (p. 317), no texto Reflexões para os tempos de guerra e morte, Freud diz
que “acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis.
Freud (1933, p. 78) afirma que “não leva a nada querer abolir os pendores agressivos
no homem”. Derrida (op. cit., p. 74) escreve que “é preciso cultivar (porque é preciso que um
é preciso se anuncie...) uma via indireta, sempre indireta, de combater a pulsão de
93
crueldade.” Segundo os autores considerados, a guerra é o cenário máximo de possibilidades
de expressão da crueldade sanguinária. Fora dela, existem somente modos e intensidades
diferentes do exercício da mesma crueldade.
Quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de
motivos para se deixarem levar uns nobres, outros vis, alguns francamente
declarados, outros jamais mencionados. Não há porque enumerá-los todos. Entre
eles está certamente o desejo de agressão e destruição: as incontáveis crueldades que
encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a
sua força. A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua
mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista (FREUD, 1933, p. 254).
Assim sendo, que o diabo te carregue” ou o assassinato mais cruel são derivações da
mesma raiz. Lembremos que a combinação das pulsões possibilita as ações humanas naquilo
que tende a preservar e a unir, e também naquilo que objetiva destruir e matar. “Nenhuma
dessas duas pulsões é menos essencial do que a outra”, escreve Freud em seu diálogo com
Einstein (Ibid., p. 253). Por conseguinte, nenhuma pulsão opera isoladamente, assegura o pai
da psicanálise; uma pulsão está sempre acompanhada por determinada quantidade do outro
par pulsional. Em Por que a guerra?, Freud diz que “muito raramente uma ação é obra de
uma única pulsão.” (Idem).
Diante do exposto, pretendemos abordar as possibilidades e impossibilidades
implicadas na questão proposta, dados os conceitos de pulsão de morte, crueldade e
civilização, conforme preconizado por Freud.
Falar de crueldade é falar de algo que não vai bem, de algo que sofre, que faz sofrer e
é também falar daqueles que fazem do mais cruel sofrimento o seu negócio (DERRIDA,
2001). À sinalização da crueldade e de suas sequelas se anunciam indagações que, conforme
diz o filósofo franco-argelino, somente a psicanálise pode responder.
No texto Reflexões para os tempos de guerra e morte, escrito em meio à Primeira
Guerra Mundial, Freud (1915, p. 312) destaca a confusão dos tempos de batalha e diz que a
guerra é o evento que mais confundiu mentes inteligentes. “As guerras jamais podem cessar
enquanto as nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da
vida individual for tão diversamente apreciado entre elas e enquanto as animosidades que as
dividem representarem forças motrizes tão poderosas na mente.”
94
Freud põe em relevância o quanto a guerra destruiu e degradou o que de mais elevado
para a humanidade, ações essas fomentadas pelo incremento científico, notadamente o
bélico. Nesta obra de 1915, ele tece considerações sobre os sujeitos que não estão diretamente
envolvidos nas batalhas e, particularmente, quanto à desilusão provocada pela guerra e à
mudança de atitude diante da morte.
A guerra trouxe desilusão diz Freud. Se houve desilusão é porque havia uma ilusão
prévia. Por que aconteceu a guerra e de que ilusão se trata? O homem tem que fazer renúncias
pulsionais elevadas frente à moral civilizada de seu tempo. Freud fala que o Estado estabelece
um modo de viver marcado pela inclusão e exclusão dos sujeitos. Esse modo de viver é
norteado por regras ditadas pelo Estado, o qual acaba por violar as próprias leis que
estabelece. A fruição da civilização é perturbada por divergências derivadas da relação entre a
população e o Estado, o que torna inevitável o conflito.
Freud escreve que eram presumíveis guerras provocadas pelas diferenças entre as
nações, mas que a comunidade científica esperava (ilusionava) que as nações encontrassem
outra possibilidade de resolão que não a guerra. Havia uma confiança na unidade dos povos
civilizados, observada nos fenômenos migratórios, além da suposição de que as pessoas não
envolvidas na guerra seriam poupadas e que o desenvolvimento das relações éticas não seria
afetado.
Entretanto, a guerra trouxe o desprezo pelo que preconiza o Direito Internacional, a
ignorância das prerrogativas dos feridos, a o distinção entre o setor civil e o militar, o
desrespeito à propriedade privada, a destruição do patrimônio histórico da humanidade, o
corte do laço social entre os povos. A guerra revelou a imprevisibilidade do outro da cultura.
Freud diz que o homem se sentiu desamparado num mundo com essa roupagem e que tal
desapontamento é consequência da destruição das ilusões. A barbárie da guerra surpreende o
homem e é nesse sentido que a guerra provoca desilusão.
Com relação à mudança de atitude para com a morte, a guerra varreu o tratamento
convencional da morte, na medida em que ela deixou de ser um acontecimento natural. A
morte é um acontecimento natural, inevitável, apesar de o homem comportar-se colocando-a
de lado. No inconsciente não inscrição da morte. Essa é a razão pela qual o inconsciente
o crê na própria morte comportando-se como se fosse imortal. (FREUD, 1915, p. 335).
95
Nosso inconsciente é tão inacessível à ideia de nossa própria morte, tão inclinado
ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é, ambivalente) para com
aqueles que amamos, como era o homem primevo. Contudo nos distanciamos desse
estado primevo em nossa atitude convencional e cultural para com a morte!
É fácil ver como a guerra se choca com essa dicotomia. Ela nos despoja dos
acréscimos ulteriores da civilização e põe a nu o homem primevo que existe em cada
um de nós. Compele-nos mais uma vez a sermos heróis que não podem crer em sua
própria morte; estigmatiza os estranhos como inimigos, cuja própria morte deve ser
provocada ou desejada; diz-nos que desprezemos a morte daqueles que amamos. A
guerra, porém, não pode ser abolida; enquanto as condições de existência entre as
nações continuarem tão diferentes e sua repulsa mútua tão violenta, sempre haverá
guerras (Ibid., p. 312).
Freud e Derrida concebem a guerra como a expressão máxima da crueldade humana.
A pulsão de poder (e de crueldade) é um termo cunhado por Derrida (op. cit., p. 33) e remete,
a saber, à pulsão de morte denunciada por Freud aquela que anda em par, que não cede à lei
e que insiste em se atualizar e se realizar. Derrida diz que a pulsão de poder caracteriza os que
legislam nas instituições governamentais. Tais classes governamentais resistem a restrições de
seus direitos soberanos. Pergunta-se ainda Derrida sobre o que fazer de uma irredutível
pulsão de morte e de uma invencível pulsão de poder numa potica e num direito como os
percebidos no mundo atual(Idem). Se a pulsão de morte é mais arcaica que os princípios e
nenhuma atividade humana é capaz de erradicá-la, a psicanálise fala da drenagem das águas
pulsionais como uma forma de transigir, com a ressalva de que não se deve ficar cego ao
caráter irrevovel da pulsão (FREUD, 1930). É importante lembrar que a pulsão de morte
está na origem da crueldade podendo assumir diferentes formas de destruição. Então, que
novas formas de crueldade o psicanalista é convocado a analisar?
Vimos Freud afirmar que a modernidade não traria satisfação plena ao homem e que
tampouco a vida civilizada seria sinônimo de felicidade. O sentimento pleno de felicidade é
ameaçado a partir de três direções: o sofrimento derivado da finitude e perecividade do corpo,
o sofrimento decorrente da força da natureza e o sofrimento resultante do laço social
(FREUD, 1930). A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível,
constitui um problema da economia da libido do indivíduo”, escreve Freud (Ibid., p. 103). No
início do capítulo terceiro do Mal-estar na civilização (1930, p. 105), Freud afirma que o que
chamamos de civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos
muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas.”
96
Paradoxalmente, ao que parece, quanto mais desenvolvimento por parte da civilização, à luz
da psicanálise, e por mais promessas de felicidade, mais restrições são impostas ao homem.
Observamos que as nações mais civilizadas do mundo são as responsáveis pelas crueldades e
injustiças praticadas contra a humanidade. Isso ratifica a afirmação freudiana (1933, p. 254)
de que de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens.” A agressividade
humana se manifesta diretamente no cometimento dos atos cruéis, e também indiretamente. É
o caso da violência praticada na guerra, onde quem não está no combate propriamente dito
o faz objeção aos atos praticados ou outorgados pelo Estado (tudo em nome do
patriotismo). Essa é uma forma da população praticar a violência pela abstenção, entretanto
sem objeções quanto ao que é praticado barbaramente pelo Estado.
Freud considera a crueldade irredutível e todo contrário somente faria parte dela, no
sentido que salienta Derrida (op. cit., p. 74-75): “existem somente diferenças de crueldade,
diferenças de modalidade, de qualidade, de intensidade... da mesma crueldade.”
Ainda no Mal-estar da civilização, Freud propõe usar a força de Eros contra Tanatos
no combate da crueldade. Derrida diz que esse combate opera segundo liames emocionais,
referindo-se ao tipo de ligação com o objeto. Freud toma de empréstimo a citação bíblica
amarás o teu próximo como a ti mesmo “coisa mais fácil de dizer do que fazer”, diz
Derrida (2001, p. 76). A citação destacada pelo filósofo nos remete ao texto de 1930, onde
Freud assinala que a união nasce do desamparo frente ao vazio como causa. O amor funda a
família e permite que novas famílias surjam. A citação em referência delega a tarefa de amar
o outro da mesma forma que se ama a si mesmo. O “como a ti mesmoé o diferencial, na
medida em que amar o outro “como a ti mesmoimplica amar o que é igual, assim como, não
amar o que é diferente de mim, lembrando que o oposto pulsional do amor é o ódio. Daí
deriva a saída pulsional do aniquilamento do diferente. Trata-se, sobretudo de uma aporia,
uma vez que o amor une, cria e também destrói, elimina.
Freud alerta para a desigualdade irrevogável e inata dos homens e que essa condição
os divide em classes: a massa que depende do guia. Eis aqui a alusão que a psicanálise faz à
metáfora do senhor e do escravo. Em sua estratégia de combate às pulsões destruidoras, Freud
supõe como possibilidade a educação dos homens privilegiados pelo poder, de modo que
possam dirigir eticamente as massas dependentes. Todavia, a submissão da vida pulsional à
ditadura da razão, como já dito, é uma ilusão (Ibid., p. 77).
A carta de Freud a Einstein traz em suas entrelinhas o que Derrida considera como
possibilidade de “progresso por deslocamento indireto e restrição das forças pulsionais”
97
(Idem), paralelamente à concepção da crueldade como algo indestrutível, que produz a
destruição e, nas palavras de Freud, o extermínio do inimigo, do diferente.
Derrida analisa a proposta freudiana de estratagema indireto como um salto de
qualidade na ética o que afeta o jurídico e o político. Não se trata de avaliar o bem e o mal,
diz Derrida. “O psicanalista, enquanto tal, não tem de avaliar ou desavaliar, desacreditar a
crueldade ou a soberania sob o ponto de vista ético [...] porque ele sabe que não há vida sem a
concorrência das duas forças pulsionais antagônicas” (Ibid., p. 78). De acordo com Derrida, o
saber psicanalítico não tem como condená-las. Esse saber deve ser trilhado na neutralidade do
indecisível, uma vez que a possibilidade do surgimento de transformações éticas, poticas, de
direito, onde o saber psicanatico será levado em conta pelos outros saberes e onde,
reciprocamente, a psicanálise considera as mudanças performativas da história da
humanidade. Estamos diante de um campo aberto e com muito por fazer.
No momento em que Freud diz o haver sentido na separação das pulsões destrutivas
e, convém lembrar que, sem a pulsão de morte, a vida cessaria, ele justifica que é pelo direito
à vida que o ideal utópico ético e político se justifica. Todo homem guarda “o direito sobre
sua própria vida”, finaliza Freud a Einstein (FREUD, 1933, p. 256).
98
CAPÍTULO III
3.1 Neuroses de guerra
Em psicanálise, a noção de neurose de guerra está ligada ao conceito trauma quando
derivado da violência cruel e quase sempre assassina do outro. Todo o trauma é uma
violência, sexual ou não. Isso implica uma reflexão sobre o conceito para além da idéia do
trauma originalmente constitutivo do sujeito.
Freud escreve sobre neurose de guerra em vários textos de sua obra, alguns dos quais
serão elucidados ao longo deste capítulo, tendo em vista a importância do tema para esta
dissertação. Comecemos pelas primeiras observações que encontramos nas Obras Completas.
Na Conferência XVIII, dos anos 1916 e 1917, intitulada Fixação em traumas o
inconsciente, Freud (1917, p. 324) faz uma analogia entre a neurose e a neurose de guerra ou
traumática, referindo-se que em ambos os casos há um ponto de fixação traumático. Mas, uma
analogia implica também uma diferenciação: “As neuroses traumáticas não são, em sua
essência, a mesma coisa que as neuroses espontâneas que estamos acostumados a investigar e
tratar pela análise; até agora, não conseguimos harmonizá-las com nossos pontos de vista, e
espero, em alguma época poder explicar-lhes a razão desta limitação.
Com efeito, Freud estabelece uma diferenciação entre a neurose traumática e a neurose
sendo que a expressão em alguma época” será melhor elucidada, como veremos mais
adiante, por ocasião da publicação de Além do princípio do prazer, em 1920. Ainda na mesma
confencia, Freud reitera que apesar do que diferem quanto à qualidade do trauma
estruturante, na neurose, e não estruturante, nas neuroses de guerra - algo de interseção
entre elas. Mas não abre mão de observar que nem toda fixação conduz necessariamente a
uma neurose, mas que “toda neurose inclui uma fixação” (Ibid., p. 326). “As neuroses
traumáticas dão uma indicação precisa de que em sua raiz se situa uma fixação no momento
do acidente traumático. Esses pacientes repetem com regularidade a situação traumática, em
seus sonhos; [...] É como se esses pacientes não tivessem findado com a situação traumática,
como se estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não executada.” (Ibid., p. 325).
Na atribuição que Freud lhe confere, percebemos permanecer o valor econômico
inerente ao trauma, postulado como algo resultante do excesso impossível de ser elaborado
pela via da normalidade, resultando perturbações que se repetem notadamente nos sonhos.
99
Freud escreve que a neurose poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em
virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente
intenso.” (Ibid.)
Na Conferência XXIV, sobre O estado neurótico comum (1917, p. 445), escreve:
Nas neuroses traumáticas, e particularmente naquelas causadas pelos horrores da
guerra, inequivocamente deparamo-nos, assim, com um motivo egoísta, por parte do
eu, à procura de proteção e vantagem um motivo que não pode, talvez, produzir
por si mesmo a doença, mas que condescende com ela e a mantém, uma vez que ela
tenha surgido. Esse motivo procura preservar o eu dos perigos cuja ameaça foi a
causa precipitante da doença, e não permitirá que ocorra a recuperação enquanto a
repetição desses perigos ainda pareça possível, ou enquanto o tenha recebido a
compensação pelo perigo que foi suportado.
Observamos nessa passagem que Freud marca o valor do momento traumático,
ressaltando a importância do fator susto e da consequente fuga para doença expressão que
continuará a ser trabalhada por Freud, conforme os textos pesquisados e aqui apresentados na
sequência deste texto. Nesta mesma conferência Freud comenta que a fuga para a doença traz
um “ganho secundário”, exemplificando-o com o caso do operário que sofre uma mutilação
num acidente de trabalho, sendo aposentado por invalidez. A partir daí, o operário inválido
passa a explorar a própria mutilação pedindo esmolas. Essa exploração é considerada por
Freud como ganho secundário derivado na doença. Lembramos o que está escrito na Carta
76, de 18 de novembro de 1897, na qual Freud se refere aos motivos em ação que levam à
aceitação da doença e afirma que a doença se instaura “quando a libido aberrante, tendo-se
aliado a esses motivos, encontra, por assim dizer, um desdobramento real.(MASSON, 1986,
p. 284). Nesse sentido, a neurose traz vantagens ao eu, o qual aceita-as, para depois verificar o
necio que fez, por que, como diz Freud (1917, p. 447), “ele pagou caro demais por um
alívio do conflito, e os sofrimentos ligados aos sintomas são, talvez, um substituto equivalente
dos tormentos do conflito.”
Com a eclosão da I Guerra Mundial, as implicações dela decorrentes praticamente
interromperam parcialmente a cnica de Freud. Essa foi uma época de pausa imposta pelas
circunstâncias ameaçadoras da guerra. Durante esse período Freud inicia a produção de
importantes textos para a psicanálise, como Além do princípio do prazer (1920) e Psicologia
100
de grupo e a análise do eu (1921). Além da pausa imposta à cnica, Freud precisou enfrentar
uma rajada de preconceitos contra suas idéias sobre o tratamento que propunha às neuroses
traumáticas. Na Conferência XXVIII (1917, p. 538), intitulada Terapia analítica, escreve:
Nada pode ser feito contra os preconceitos. Isso os senhores podem constatar
novamente, hoje em dia, nos preconceitos que cada grupo de nações em guerra
desenvolveu contra o outro. A coisa mais sensata a fazer é esperar e deixar tais
preconceitos aos efeitos da erosão do tempo. Um dia, as mesmas pessoas começam a
pensar acerca das mesmas coisas de uma maneira diferente de antes; e a razão por
que o pensavam dessa maneira, anteriormente, continua sendo profundo mistério.
Freud viu ser constatado o seu pensamento quando, em setembro de 1918, em
Budapeste, realizou-se o V Congresso Psicanalítico Internacional, o qual incluiu em sua
programação um simpósio com o tema A psicanálise das neuroses de guerra, cujos autores,
Ferenczi, Abraham e Simmel, todos psicanalistas, trabalhavam com o assunto. Nesse
congresso estiveram presentes representantes oficiais do exército austaco, dada a elevada
incidência dos neuróticos de guerra e devido às notícias que circulavam sobre o método
freudiano de tratamento das neuroses.
Em 1919, a Internationale Psychoanalytische Bibliotek publica o texto Introdução a a
psicanálise e as neuroses de guerra, texto em que aborda as neuroses de guerra e as
dificuldades de estudo das mesmas e lamenta a não criação dos prometidos centros
psicanalíticos pelos militares das nações centro-européias que compareceram ao congresso de
1918. Textualmente, Freud (1919, p. 259) diz que “antes que essas propostas pudessem ser
postas em ação, a guerra chegou ao fim, as organizações estatais ruíram e o interesse pelas
neuroses de guerra deu lugar a outras preocupações.” A não consecução dos centros
psicanalíticos não impediu que dicos do front procurassem se inteirar sobre o
conhecimento e propostas freudianas aos neuróticos de guerra.
Os médicos que até então haviam evitado qualquer aproximação das teorias
psicanalíticas, foram levados a um contato mais estreito com elas quando, no
decorrer de suas obrigações como médicos do exército, foram obrigados a lidar com
as neuroses de guerra. [...] Alguns dos fatores que a psicanálise havia reconhecido e
descrito muito, ao trabalhar com as neuroses em tempos de paz a origem
psicogênica dos sintomas, a importância das pulsões inconscientes, o papel
101
desempenhado, ao lidar com os conflitos mentais, pelo ganho primário de estar
doente („a fuga para a doença‟) observou-se estarem igualmente presentes nas
neuroses de guerra (Ibid., p. 259-60).
Observa-se, em seguida, que Freud (p. 260) reitera que a neurose nasce “de um
conflito entre o eu e as pules sexuais que este repudia”. Ainda nessa época, enfrentava os
preconceitos a que nos referimos no início deste texto, pelos quais seus opositores bradavam
que a teoria psicanalítica não se aplicava às neuroses de guerra. “Os oponentes da psicanálise,
cuja aversão à sexualidade é evidentemente mais forte do que a sua lógica, apressaram-se a
proclamar que a investigação das neuroses de guerra desmentiu finalmente essa parte da teoria
psicanalítica”, escreve Freud (Idem). Diante disso, assinala que: “se a investigação
psicanalítica das neuroses de guerra (e uma investigação muito superficial) não demonstrou
que a teoria sexual das neuroses é correta, isto é algo muito diferente de mostrar que aquela
teoria é incorreta.” (Idem).
No texto de 1919, Freud define as neuroses de guerra como neuroses traumáticas “que
se distinguem das neuroses comuns por características particulares” (Ibid., p. 261). Segundo
ele, as neuroses de guerra são neuroses traumáticas desencadeadas por um acontecimento
traumático ou provocadas por um conflito no eu. A base desse conflito é formada pela
situação de risco experimentada no campo de batalha.
O conflito é entre o velho eu pacífico do soldado e o seu novo eu bélico, e torna-
se agudo tão logo o eu pacífico compreende que perigo corre ele de perder a vida
devido à temeridade do seu recém-formado e parasítico duplo. Seria igualmente
verdadeiro dizer que o antigo eu está-se protegendo de um perigo mortal ao fugir
para uma neurose traumática, ou dizer que está defendendo-se do novo eu, o qual
como uma ameaça à sua vida (FREUD, 1919, p. 261).
Nessa situação, o eu pacífico foge para a doença se defendendo do eu bélico, do qual
derivam ameaças à vida do eu pacífico. Compreendemos o campo de batalha como o solo que
nutre as neuroses de guerra, posto que elas são o resultado dos efeitos de um perigo mortal.
Diz Freud (Idem) que as neuroses de guerra o apenas neuroses traumáticas, que, como
sabemos, ocorrem em tempos de paz também”. Assim sendo, nos tempos de paz ou de guerra,
o eu defende-se da ameaça provocada pelo inimigo externo a violência, ou da ameaça
102
interna a libido, a qual impele ao eu, como um ultimato, a urgência de satisfação pulsional.
Parece-nos que para o eu, sitiado por tais circunstâncias, resta senão buscar abrigo na neurose,
esta sempre traumática em sua etiologia.
Vimos que, tanto nas neuroses de guerra quanto nas neuroses traumáticas o que se
encontra em jogo é o conflito experimentado pelo eu. Nesse sentido, o conceito de libido
narcísica sentido ao valor do excesso inassimilável para o sujeito, seja ele decorrente da
brutalidade bélica, seja ele advindo da frustração do amor, por exemplo, esta última
considerada mansa se comparada ao teatro de guerra, todavia tão devastadora quanto as mais
cruéis pelejas.
Nas neuroses traumáticas e de guerra, o eu humano defende-se de um perigo que
o ameaça de fora ou que está incorporado a uma forma assumida pelo próprio eu.
Nas neuroses de transferência, em época de paz, o inimigo do qual o eu se defende é,
na verdade, a libido cujas exigências lhe parecem ameaçadoras. Em ambos os casos,
o eu tem medo de ser prejudicado no segundo caso, pela libido, e no primeiro, pela
violência externa (Ibid., p. 263).
Após o seu pronunciamento sobre as neuroses de guerra em 1919, Freud foi
convocado pelo Ministério da Guerra austaco para emitir considerações sobre o assunto.
Mediante a elaboração de um documento, datado de 23 de fevereiro de 1920, envia o parecer
ao órgão solicitante onde aborda questões sobre o tratamento de neuróticos de guerra. No
Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra, escrito em 1920 (p. 266)
como apêndice, Freud afirma que as causas das neuroses de guerra são psíquicas, apesar do
acidente traumático.
Apesar de que as neuroses de guerra se manifestaram, em sua maior parte, como
perturbações motoras tremores e paralisias -, e embora fosse plausível supor que
um impacto tão grande como aquele produzido pela concussão devida à explosão de
uma granada nas proximidades, ou o de ser soterrado por um deslizamento no
terreno, levaria a enormes efeitos mecânicos, foram feitas, contudo, observações que
não deixaram dúvidas quanto à natureza psíquica das causas denominadas neuroses
de guerra. Como se podia discutir esse fato quando os mesmos sintomas apareciam
também por trás da frente de batalha, longe dos horrores da guerra, ou
imediatamente após o regresso de uma licença? (FREUD, 1955/1920, p. 266)
103
Como vimos nas neuroses de guerra quanto nas neuroses comuns o sofrimento é
psíquico. O sintoma neurótico derivado do trauma permanece para além do campo de batalha,
de modo que “os médicos foram levados, portanto, a considerar os neuróticos de guerra numa
perspectiva semelhante àquela em que se consideram os pacientes nervosos dos tempos de
paz”, afirma Freud (Idem). A nica da questão está vinculada àquilo que perturba o
psiquismo do sujeito, na guerra ou na paz.
Afirmamos também que os pacientes neuróticos sofriam de conflitos mentais e
que os desejos e inclinações que se expressavam nos sintomas eram desconhecidos
dos próprios pacientes isto é, eram inconscientes. Foi fácil, portanto, inferir que a
causa imediata de todas as neuroses de guerra era uma inclinação inconsciente, no
soldado, para afastar-se das exigências, perigosas ou ultrajantes para os seus
sentimentos, feitos sobre ele pelo serviço ativo. Medo de perder a própria vida,
oposição à ordem de matar outras pessoas, rebeldia contra a supressão implacável da
própria personalidade pelos superiores eram as mais importantes fontes afetivas
das quais se nutria a tendência para escapar da guerra (Ibid., p. 267).
Diante do insuportável, observamos o sujeito refugiar-se na doença, pois “os impulsos
emocionais [...] operavam nele sem se tornarem conscientes” (Idem). Sobre tais impulsos, a
pena de Freud (Idem) agrega o seguinte: “permaneciam inconscientes porque outros motivos,
tais como ambição, auto-estima, patriotismo, o hábito de obediência e o exemplo dos demais,
começavam com mais força, até que, em alguma ocasião apropriada, eram subjugados pelos
outros motivos, que operam inconscientemente.”
Freud (Ibid., p. 268) relata que os exércitos programaram um tratamento „conveniente‟
para os militares que se valiam da neurose como escapatória do dever na guerra. “Tal como
fugira da guerra para a doença, adotavam-se agora meios de compeli-lo a fugir outra vez, da
doença para a saúde, isto é, aptidão para o serviço ativo. Para essa finalidade, empregou-se,
com êxito, o doloroso tratamento elétrico.”
Contrário a tal procedimento médico, assinala a crueldade do todo e sua ineficácia
terapêutica, afirmando que “nem isso se ajusta ao argumento subjacente de que a doença de
um neurótico de guerra tinha de tornar-se dolorosa” (Idem). “Esse procedimento terapêutico,
contudo, ostenta desde o início um estigma. Não se destinava à recuperação do paciente, ou
104
pelo menos, não em primeira instância; destinava-se, acima de tudo, a restaurar a sua aptidão
para o serviço. Nisso a medicina servia a propósitos estranhos à sua essência.” (Idem).
Ao neurótico restava o horror e ameaça de morte no campo de batalha, ou a dor da
corrente elétrica descarregada no corpo já calejado pela dor da guerra. Diante desse colapso
terapêutico, Freud oferece o tratamento psicanatico que, como se sabe, já havia sido
praticado com êxito por Simmel, psicanalista e comandante de um hospital de neuróticos de
guerra em Posen
12
, em 1918. Além disso, o criador da psicanálise lamenta a o consecução
dos prometidos centros de atendimento psicanalítico durante a guerra, fato que impossibilitou
o contato mais aproximado junto aos militares na fase em que se desenvolviam os combates.
Em 1920, em Além do princípio do prazer, reformula definitivamente a teoria do
dualismo pulsional. Entra em cena a compulsão à repetição característica da pulsão de morte.
Freud observa aquele mecanismo nos sonhos dos neuróticos de guerra, o que lhe permite
avançar mais um passo em torno do conceito de neurose de guerra. O autor o acredita que a
anstia possa produzir neurose traumática porque “nela existe algo que protege o sujeito
contra o susto e, assim, contra a neurose” (FREUD, 1920, p. 24). No quarto capítulo desse
mesmo texto, descreve como traumáticas as quotas de afeto excessivas capazes de romper o
escudo protetor do sujeito. Freud utiliza o modelo da vesícula viva para explicar o que vem a
significar tal escudo, onde o sujeito seria morto se não dispusesse de tal aparato defensivo do
aparelho psíquico, sendo esta a sua finalidade. Freud (Ibid., p. 43) afirma que: “o escudo
protetor é suprido com seu próprio estoque de energia e deve, acima de tudo esforçar-se por
preservar os modos especiais de transformação de energia que nele operam, contra os efeitos
ameaçadores das enormes energias em ação no mundo externo, efeitos que tendem para o
nivelamento deles e, assim, para a destruição.
Freud atribui a importância etiológica da neurose traumática ao susto, àquilo que
ameaça a vida. Primeiro isso significa dizer que a psicanálise se preocupa com os efeitos
produzidos pelo excesso traumático, muito mais que os danos físicos diretos provocados pelo
acidente traumático. Segundo, há algo de inassimilável na experiência traumática. A ameaça à
vida representa ameaça ao inconsciente, o qual não crê na própria morte. Diz Freud (Ibid., p.
45) que “um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio
em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimentos
12
A provincia de Posen fez parte do Império Alemão de 1871 a 1918. Sua população era constituída de
poloneses, alemães e judeus. Atualmente, Posen é uma província do Reino da Prússia.
105
todas as medidas defensivas possíveis.” Parece-nos que a falha na tarefa defensiva do escudo
protetor permite que o aparelho psíquico seja inundado com grande carga de afeto traumático,
colocando o princípio do prazer fora de ação temporariamente. Tais apontamentos nos
remetem ao trauma sofrido pela criança mediante os cuidados maternos, tendo em vista que,
naquele momento, o bebê não dispõe de aparelho psíquico suficientemente estruturado para
suportar a carga de afeto inerente a erotização do seu corpo pela mãe. Isso nos leva a concluir
que todo sujeito é marcado pelo trauma enquanto excesso impossível de lidar.
Freud percebe que a experiência traumática impõe-se continuamente ao sujeito,
notadamente na elaboração orica, que repetidamente traz a cena traumática. Ele lembra
constantemente o teor realizador de desejos nos sonhos” afirmação essa que parece um
contraponto à finalidade do sonhar e ao princípio do prazer. Para o criador da psicanálise, a
repetição da experiência traumática no sonha traz consigo uma produção de prazer de outro
tipo” (Ibid., p. 28), porque remetida a algo para além do princípio do prazer tendências essas
mais primitivas, mais elementares no sujeito. A compulsão à repetição está presente na
neurose traumática e se manifesta, por exemplo, no sonho, onde o sujeito tem a possibilidade
de desencadear a angústia não despertada por ocasião do trauma sofrido. Freud escreve que o
desencadeamento da angústia defende o aparelho psíquico da inundação traumática. Segundo
ele, “no caso de bom número de traumas, a diferença entre sistemas que estão despreparados e
sistemas que se acham bem preparados através da hipercatexia, pode constituir fator decisivo
na determinação do resultado. (Ibid., p. 48).
Ainda sobre os sonhos desencadeados na neurose traumática, Freud diz que tais
sonhos se destinam a tarefa de “dominar retrospectivamente” o estímulo externo,
desencadeando a angústia outrora não acionada. Segundo ele, os sonhos das neuroses
traumáticas surgem em obediência à compulsão à repetição”, o que aponta para um além do
princípio do prazer, lembrando que a repetição é uma tentativa de restaurar um estado anterior
de coisas, portanto, ligada à pulsão de morte (Idem). Sobre o fenômeno de repetão da cena
traumática no sonho, Lacan traz novas contribuições à compreensão deste fenômeno em sua
releitura de um sonho apresentado por Freud na Traumdeutung:
Um pai velou dias e noites ao lado da cama de sua criança doente. Depois da
criança ter morrido, ele se deita em um quarto vizinho para descansar, deixando, no
entanto, a porta aberta, de forma a poder olhar, de seu quarto, o quarto no qual o
corpo da criança se encontra, estendido e rodeado de grandes velas. Um senhor
106
idoso foi chamado para velar também e encontra-se sentado ao lado do corpo,
murmurando preces. Depois de algumas horas de sono, o pai sonha que a criança se
encontra ao lado de sua cama, o segura pelo braço e sussura de modo repreensivo:
“Pai, você não vê que estou queimando? (FREUD, 1900, 543).
Lacan, no capítulo quinto de O seminário, livro 11, intitulado Tiquê e Automaton,
escreve que o sonho narrado pelo criador da psicanálise contém o cerne da noção freudiana da
repetição traumática. Freud diz que os sonhos traumáticos despertam o sonhador para um
novo pavor. A análise do analista francês mostra que o despertar traumático possui
vinculações com o real. Freud postula o sonho como o guardião do sono, e não o seu
perturbador, e que há algo de não evidente no sonho traumático, algo incapaz de explicar o
seu sentido. Ainda no Seminário 11 (1985/1964, p. 59), Lacan indaga O que é que
desperta?”, o que é que retira o sujeito do processo orico? Não será, no sonho, uma outra
realidade?” agrega Lacan. Caruth (2000, p. 120) afirma que “o acordar é em si mesmo o
lugar do trauma”. É nesse acordar paradoxal que Lacan aponta para o real que sentido ao
despertar, na medida em que no sonho traumático um confronto com algo irrepresentável,
uma vez que Freud descreve o trauma como a resposta à ameaça de morte. Assim sendo, o
acordar representa um paradoxo a respeito da necessidade e da impossibilidade de confrontar
a morte. Os sonhos traumáticos não contradizem a teoria freudiana da realização de desejo no
sonho. Afinal, o sonho, enquanto postergação de uma realidade traumática revela o intervalo
inassimilável entre a morte e o desejo de superá-la o que somente é possibilitado na ficção
ou no sonho.
Após a publicação de Além do princípio do prazer, a concepção de pulsão de morte
espresente em todos os textos de Freud, principalmente na abordagem teórica da guerra e
das neuroses traumáticas. Em Psicanálise e telepatia (1941/1921, p. 217) publicado somente
vinte anos após sua escrita, Freud diz da perda de valor pela qual tudo foi afetado desde a I
Guerra Mundial, referindo-se às “atrações perdidas pela vida na terra.” Em Dois verbetes de
enciclopédia (1923), Freud escreve que a psicanálise resistiu à guerra na medida em que os
congressos psicanalíticos o foram interrompidos, tendo sido realizados oito deles. No
mesmo ano, no texto Observações sobre a teoria e prática da interpretação de sonhos, Freud
(1923, p. 143) aborda a questão do tratamento psicoterápico desenvolvido pelos médicos no
campo de batalha e diz que os que padecem de neuroses de guerra abandonam seus sintomas
porque a terapia adotada pelos dicos militares conseguiu tornar o estar doente ainda mais
inconfortável do que servir no campo de batalha.” Esta passagem faz alusão ao tratamento
107
com a utilização de choque elétrico aplicado pelos dicos aos militares que apresentavam
sintomas neuróticos na guerra. Para fugir do tratamento violento esses militares paravam de
evidenciar os sintomas neuróticos. Uma vez percebidos “curados” eram enviados novamente
para o front. Desde o Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra
(1920) Freud já havia se posicionado contra tal tratamento cruel, enfatizando que esse não era
o tratamento do qual necessitava o soldado na guerra.
Em certa medida, a guerra despertou o interesse pela psicanálise, devido à
sintomatologia neurótica apresentada pelos neuróticos e dada a ineficácia do tratamento
elétrico no combate à neurose. Esse é um dos pontos por Freud abordado no texto Um estudo
autobiográfico (1925), no qual afirma que o fracasso do tratamento elétrico, a incidência dos
casos e questões em torno da psicogênese das perturbações neuróticas, esses foram alguns dos
fatores que chamaram a atenção dos médicos militares para a psicanálise. Rapidamente se
tornaram populares expreses como “ganho proveniente da doença”, “fuga para a doença” e,
ademais, Ferenczi e Simmel, ambos psicanalistas, estiveram na guerra, o que certamente
aumentou o interesse pelo que preconizava a psicanálise. O “ganho secundário com a doença”
era encarado pelos exércitos como uma simulação. Então, em 1926, no texto, A questão da
análise leiga, Freud desenvolve questões relativas à responsabilidade ou irresponsabilidade
para com a sintomatologia neurótica desencadeada, e diz que nenhum dos dois atributos deve
ser aplicado ao neurótico, o qual simula sem saber, sendo essa a sua doença. Afinal, indaga
Freud (1926, p. 252), “os neuróticos que burlavam o serviço militar eram simuladores ou
o?”. Eis que ele responde: “[...] eram e não eram. Se eram tratados como simuladores e sua
doença era tornada altamente inmoda, eles se recuperavam; se depois de serem
ostensivamente restabelecidos eram enviados de volta às forças armadas, imediatamente se
refugiavam na doença.” Nesse mesmo texto, Freud agrega que [...] o mesmo se aplica aos
neuróticos na vida civil. Eles se queixam da doença, mas a exploram com todas as suas
forças.” (Idem).
Inibição, sintoma e angústia (1926) outras contribuições o trazidas às neuroses de
guerra. Sabe-se que Freud postula a angústia como um sinal frente a um perigo. Diante da
ameaça, o eu faz algo para evitar a situação geradora de angústia. Vigora o princípio do prazer
e os sintomas assumem o propósito de manter à distância a angústia. Nesse sentido, os
sintomas servem de alerta para a iminência de um perigo cuja presença é despertada pela
anstia. Ao abordar a relação entre a formação de sintomas e a angústia, Freud (1926, p.
153) considera pouco provável que uma neurose se instale unicamente por causa de uma
108
ameaça real, e sugere uma análise mais profunda, principalmente porque no inconsciente não
inscrição da morte e “nada que se assemelhe à morte jamais pode ter sido experimentada.”
Portanto, diz Freud (Idem), “o medo da morte deve ser considerado como análogo ao medo da
castração, e que a situação à qual o eu está reagindo é de ser abandonado pelo supereu
protetor [...], de modo que ele o dise mais de qualquer salvaguarda contra os perigos que
o cercam.Provavelmente o horror ao desamparo confere o toque que qualifica a situação
como traumática e responsável pelo desencadear da neurose.
Em 1933, na Conferência XXIX, intitulada Revisão da teoria dos sonhos, Freud (p. 41)
fala novamente das dificuldades que a teoria do trauma trouxe contra a teoria da realização de
desejos no sonho. As pessoas vitimadas pela experiência traumática são reconduzidas, no
sonho, à situação traumática. Freud, mais uma vez pergunta-se que impulso decorrente de
desejos poderia satisfazer-se retornando, dessa maneira, a essa experiência traumática
desagradável?” Ele responde que a teoria do sonho revela “os esforços da elaboração onírica
dirigidos a negar o desprazer, por meio da deformação, e a transformar a decepção em
concessão.” (Idem). Entretanto, no caso das neuroses traumáticas, Freud revela que uma
peculiaridade diferente, uma vez que a angústia é experimentada no sonho. Freud (Ibid., p.
42) escreve, então, que o sonho é uma tentativa de realização de um desejo”. Na Conferência
XXXII, denominada Angústia e vida pulsional, Freud retoma o assunto e diz que esse é um
dos enigmas com os quais se depara a psicalise. Nessa conferência, Freud estabelece uma
ligação entre anstia e formão de sintomas, a fim de compreender o afeto da neurose. Para
o criador da psicanálise, a angústia é primária em relação ao sintoma e definida como um
estado afetivo desencadeado frente a uma ameaça. Portanto, a angústia é constitutiva da
neurose. Textualmente Freud (1933, p. 106) escreve que [...] a geração da angústia é o que
surgiu primeiro”. O sintoma é secundário e é qualificado como inibição, na medida em que
por meio dele, o paciente se poupa dos ataques de angústia” (Idem). Entendemos o sintoma
como o recurso tentado para manter longe a angústia. Prosseguindo na Conferência XXXII
(1933, p. 117-8), Freud diz que quando “os esforços do princípio do prazer malogram”, -se
o momento traumático e “[...] o que é temido, o que é objeto de angústia, é invariavelmente a
emergência de um momento traumático, que não pode ser arrostado com as regras normais do
princípio do prazer.”
Podemos observar que perdura o valor econômico na concepção do trauma em Freud,
uma vez a importância conferida à soma de excitação que qualifica o evento traumático, capaz
de paralisar o princípio do prazer. Na Conferência XXXII (1933, p. 119), Freud conclui que a
109
anstia é o sinal diante de um perigo, podendo ter sua origem em dois momentos: como
conseqüência direta do momento traumático e [...] como sinal que ameaça com uma repetição
de tal momento.” Isso explica porque no sonho de repetição da cena traumática a finalidade
de preservação do sono não é cumprida, já que a anstia retira o sujeito da cena onírica ao
acordá-lo, poupando-o repetidamente.
Analisando Esboço de psicanálise (1940), percebemos Freud manter suas concepções
sobre o trauma e a neurose, ocasião em que sustenta que nenhum indivíduo está isento do
trauma que lhe constitui enquanto sujeito. Sobre as neuroses traumáticas, escreve que elas
constituem uma exceção por que são devidas a traumas não constitutivos, como é o caso dos
acidentes graves e da violência. “As neuroses são, como sabemos, distúrbios do eu e não é de
admirar que o eu, enquanto débil, imaturo e incapaz de resistência fracasse em lidar com
tarefas que, posteriormente, seria capaz de enfrentar com a máxima facilidade” (FREUD,
1940[1938], p. 213).
As exigências pulsionais internas e externas figuram como as peças-chave na teoria do
trauma. Cabe a pergunta se é esperada maturidade psíquica do homem diante do horror de
uma guerra? Em nossa experiência no atendimento dos soldados que retornam neurotizados
pela experiência da guerra e dos combates percebemos com Freud que o trauma de guerra
provoca um esgarçamento no simlico. Inundados por um excesso pulsional inassimilável
ficam em geral submergidos na experiência traumática. Nesse sentido, a análise surge como
uma via de minimização dos efeitos nocivos do trauma, como veremos a seguir.
3.2 Considerações sobre o atendimento clínico aos neuróticos de guerra
Após o estudo do trauma é preciso tecer considerações sobre o tratamento a ser
dispensado aos militares que retornam das missões em zonas de conflito. Vimos que a
abordagem freudiana das neuroses de guerra é semelhante às neuroses traumáticas dos tempos
de paz, de modo que ele trata ambas as neuroses pelo mesmo prisma. Nesse sentido, pudemos
observar que para o criador da psicanálise o acontecimento traumático pertence à ordem do
excesso insuportável, que marca o sujeito à semelhança de um acontecimento histórico.
110
Elisabeth Roudinesco (1998), em base a leitura do texto freudiano, descreve o quadro
sintomático da neurose de guerra composto de alterações físicas, depressão, hipocondria,
anstia, derio. Decorrente dos contatos que travamos com militares que estiveram no front,
acrescentamos os seguintes sinais: irritação, impaciência, alterações de humor, alterações
fisiológicas como, por exemplo, modificações sérias na pressão arterial, distúrbios no sono,
mutismo, retraimento social, agitação motora, tremores, cefaléias. Além disso, muitos
militares iniciam bitos anteriormente inexistentes, como o tabagismo e o alcoolismo. Vimos
que, durante a fase de desmobilização psicológica do Projeto Força Militar de Paz, descrito na
introdução desta dissertação de mestrado, o contingente de mil e duzentos homens é ouvido
pelos profissionais de psicologia, em grupos de círculo hierárquico igual, e também
individualmente. Nesses contatos iniciais verificamos que muitos militares apresentam
sintomas neuróticos únicos ou combinados, alguns gravemente acentuados. Conforme
assinalado, é oferecido atendimento psicoterápico para aqueles que desejarem. Então, como
fazer psicalise numa instituição militar? Ora, como Freud ensinou. Comecemos por
algumas considerações teóricas.
No texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912, p. 150) o
autor estabelece a regra fundamental do tratamento analítico, a partir da qual o analista pede
que o analisando “comunique tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção”. Ao analista
recomenda que volte o seu próprio inconsciente na direção do inconsciente do paciente.
nessa época Freud utiliza o termo reconstrução em relação às associações livre do analisando.
No texto Sobre o início do tratamento (1913, p. 164), compara a análise a um jogo de
xadrez, onde “somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação
sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a
abertura desafia qualquer descrição desse tipo”. Passa, então, a estabelecer recomendações
técnicas que balizem o fazer do analista. Sugere, dessa forma, que seja feito um “exame
preliminar” (Ibid., p. 165), para verificar a necessidade de tratamento analítico. Este
experimento preliminar, contudo, é, ele próprio o início de uma psicanálise e deve conformar-
se às regras desta” (Idem). Isto se confirma na fase de desmobilização do Projeto Força
Militar de Paz. Os militares que desejam são submetidos às entrevistas preliminares, a partir
das quais se desencadeia, normalmente, um processo de análise. Costumam endereçar ao
analista um pedido de respostas objetivas relativas ao tempo de tratamento e cura para sua
dor. Nessas situações tão comuns no universo militar oferecemos a resposta freudiana da
fábula de Esopo: Caminha!” [na análise]. A técnica freudiana adverte que “ninguém espera
111
que um homem levante uma pesada mesa com dois dedos, como se fosse uma leve banqueta,
ou construa uma grande casa no tempo que levaria para levantar uma cabana de madeira
(Ibid., p. 170).
Ainda no texto de 1913, Freud alerta que a neurose é semelhante a uma “donzela vinda
de longe”, parafraseando Schiller, autor do poema Das Mädchen aus der Fremde. Igualmente
são surpreendidos muitos militares, os quais, dada a sua formação para o combate mortífero,
sequer imaginam que também têm fragilidades. Na formação militar é feito o juramento
perante a bandeira da terra pátria, de dar a própria vida em sua defesa, e também pela missão.
Identificados com tais elementos eles partem para toda sorte de trabalhos operacionais
quando, muitos, são surpreendidos pelo impacto do trauma e pelo desencadeamento da
neurose: “ninguém sabia donde ela viera, de maneira que esperavam que um dia
desapareceria” escreve Freud (Ibid., p. 171). Assim sendo, há um tempo para saber dessa
neurose, ainda que seja possível somente uma aproximação desse saber, pela análise. Na
verdade, Freud assinala que se trata de uma atemporalidade uma vez que é assim que
funcionam os processos inconscientes. Diante de tais circunstâncias, elevadas resistências
surgem ao tratamento psicanalítico e é comum o recurso ao fármaco enquanto solução
gica. E sob essa condição manm-se muitos sujeitos.
Recordar, repetir e elaborar é o texto que traz a primeira referência de Freud à
expressão compulsão à repetição”.
Antes de mais nada, o paciente começará seu tratamento por uma repetição desse
tipo. Quando anunciamos a regra fundamental da psicanálise a um paciente com
uma vida cheia de acontecimentos e uma longa história de doença, e então lhe
pedimos para dizer-nos o que lhe vem à mente, esperamos que ele despeje um
dilúvio de informações; mas, com freqüência, a primeira coisa que acontece é ele
nada ter a dizer. Fica silencioso e declara que nada lhe ocorre. [...] Enquanto o
paciente se acha em tratamento, não pode fugir a esta compulsão à repetição.
(FREUD, 1914, p. 197).
O autor reitera a importância da associação livre na análise, assim como a arte da
interpretação enquanto recurso terapêutico na diminuição das resistências que se interpõem ao
processo analítico. O texto de 1914 é um dos escritos no qual Freud busca o entendimento da
ligação da compulsão à repetição com a transferência e com a resistência. Assim escreve:
112
[...] a transferência é, ela própria apenas um fragmento da repetição e que a
repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas
também para todos os outros aspectos da situação atual. Devemos estar preparados
para descobrir, portanto, que o paciente submete-se à compulsão à repetição, que
agora substitui o impulso a recordar, não apenas em sua atitude pessoal para com o
médico, mas também em cada diferente atividade e relacionamento que podem
ocupar sua vida na ocasião [...] (Ibid., p. 197).
Freud considera haver uma similaridade entre os processos de resistência e repetição.
Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out), repetição” (Ibid., p.
198). Afirma que a repetição substitui o recordar, que não é esperado na análise. Segundo ele,
quando a transferência torna-se hostil na análise, o recordar é substituído pela atuação.
Daí por diante, as resistências determinam a sequência do material que deve ser
repetido. [...] O paciente repete ao ins de recordar e repete sob as condições da
resistência. [...] Ao chamar atenção para a compulsão à repetição, não obtivemos um
fato novo [...]. Esclarecemos a nós mesmos que o estado de enfermidade do paciente
não pode cessar com o início de sua análise, e que devemos tratar sua doença não
como um acontecimento do passado, mas como uma força atual. (Idem).
Nesse sentido, o papel do analista deve atender à tarefa de remontar o analisando ao
passado, pela associação livre, de modo que ele possa reconstruir sua história, como assinala
Lacan, adiante nesse texto. O palco ideal para os atores desse processo não pode ser outro
senão aquele, conforme escreve Freud, onde “não se pode vencer um inimigo ausente ou fora
de alcance” (Ibi., p. 199).
Assim disposto, a ferramenta capaz de levar o analisando a recordar é o manejo da
transferência. “É que se deve buscar o segredo da análise”, escreve Lacan (1958/1998), no
texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Freud (1914, p. 201) assinala que
a partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados [...] até o despertar
de lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido
superada”. O esperado é que o processo de elaboração seja efetuado pelo sujeito em análise. O
trabalho de elaboração é próprio do inconsciente e se dá no tratamento analítico.
113
Em suas considerações sobre os escritos técnicos de Freud, dispostas O Seminário,
Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953, p. 9) inicia suas palavras escrevendo que “o
pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras
gastas. Nele, cada noção possui vida própria. É o que se chama precisamente dialética”.
Segundo autor, os escritos técnicos representam uma etapa no pensamento freudiano marcada
pela simplicidade e foco dirigido ao método. “A simplicidade e a franqueza do tom, por sis,
são uma espécie de lição.” (Ibid., p. 18).
Encontramos nesses escritos passagens extremamente importantes para
apreendermos o progresso que teve, no curso desses anos, a elaboração da prática.
Neles, vemos aparecer gradualmente nões fundamentais para compreender o
modo de ação da terapêutica analítica, a não de resistência e a função da
transferência, o modo de ação e de intervenção na transferência e mesmo, acerto
ponto, o papel essencial da neurose de transferência (Ibid., p. 16).
Para o psicanalista francês, Freud nunca deixou de falar da técnica, pois em cada um
de seus artigos existe algo sobre ela. Segundo Lacan, as indicações técnicas da psicanálise
estão por toda parte da obra de Freud. A restituição do passado do sujeito na análise
permaneceu como uma das preocupações do pai da psicanálise em todos os seus escritos. As
considerações lacanianas inserem a psicanálise numa relação inter-humana, onde a relão do
analista e do analisando é marcada pela intervenção de um elemento terceiro. Assim, diz: “se
a palavra é tomada como ela deve ser, como ponto central de perspectiva, é numa relação a
três, e não numa relação a dois, que se deve formular, na sua completude, a experiência
anatica (Ibid., p. 20). Essa noção é muito importante para a prática clínica, uma vez que no
processo anatico a reconstituição da história do sujeito é um elemento essencial, constitutivo
e estrutural desse processo. Dito de outra forma, trata-se da apreensão de um caso singular, do
tratamento do sujeito em sua perspectiva, ou seja, em sua singularidade. “Quer dizer
essencialmente que, para ele, o interesse, a essência, o fundamento, a dimensão própria da
análise, é a reintegração, pelo sujeito, da sua história até os seus últimos limites sensíveis, isto
é, até uma dimensão que ultrapassa de muito os limites individuais” – escreve Lacan a
respeito do pensamento freudiano relativo aos textos técnicos. Essa dimensão histórica
resgatada pelo sujeito na análise não é tão simples quanto parece, pois “a história não é o
passado” (Ibid., p. 21) afirma Lacan, acrescentando que “o caminho da restituição da
114
história do sujeito toma a forma de uma procura da restituição do passado. Essa restituição
deve ser considerada como o ponto de mira visado pelas vias da técnica.” (Idem).
Qual a importância dessa reconstituição histórica para o sujeito? Ora, o reviver
histórico pela linguagem traz a possibilidade de uma nova reconstrução, o que é muito
importante na análise. Quando o sujeito fala, diz de si e de tudo, ou seja, do conjunto de seu
sistema. Nesse contexto, Lacan assevera que o acento deve recair sobre a reconstrução e não
sobre a face da revivescência. O revivido, disse-nos Freud em vários momentos de sua obra,
o é o essencial. A análise é, portanto, um processo de reescrita da própria história.
Em 1958, no texto A direção do tratamento, disposto nos Escritos, Lacan (p. 592)
resgata a importância da regra fundamental da psicanálise, porque, segundo o autor, nisso
consiste a direção do tratamento. “Essas diretrizes, numa comunicação inicial, revestem-se da
forma de instruções, as quais, por menos que o analista as comente, podendo considerar que,
até nas inflexões de seu enunciado, veicularão a doutrina com as quais o analista se constitui
[...]”. Acrescenta, ainda, que “esse tempo consiste em fazer o paciente esquecer que se trata
apenas de palavras, mas que isso o justifica que o próprio analista o esqueça.” (Idem).
A análise lacaniana da direção do tratamento ressalta que a trilha analítica não é
trafegada em mão unívoca, senão dupla, naquilo que se refere, principalmente, à quota de
investimento empregada pelas partes desse processo. Assim sendo, também ao analista é
requerido investimento ligado ao registro do simbólico, do imaginário e do real. Isso significa,
como escreve Lacan (p. 593), que ele “paga com palavras”, tendo em vista o efeito de
interpretação; “paga com sua pessoa”, uma vez que ele a cede como sustentáculo dos
fenômenos transferenciais; e, finalmente, “paga com seu juízo mais íntimo porque é parte
integrante do jogo analítico.
Fundamentalmente, Lacan assegura que o segredo da análise reside no manejo da
transferência e, nesse contexto, escreve: “[...] o analista é menos livre em sua estratégia do
que em sua tática” (Ibid., p. 595); o que vem a significar estar alerta na transferência e um
pouco mais de liberdade na interpretação.
Inúmeras reações impetuosas podem acometer um soldado em combate, como a
observada num militar o qual, durante uma missão de paz, lançou mão de seu fuzil e dispôs-se
a atirar contra cinco outros camaradas devido à demora numa fila de espera para usar
computadores instalados para a comunicação com a família. Apresentando um misto de
115
impaciência e agressividade incontroláveis o referido militar teve de ser contido por aqueles
que tentou dar cabo, desencadeando, após o episódio, choro compulsivo e depressão.
Nas neuroses de guerra parece que um deslocamento da energia outrora dirigida
para os objetos para o eu do sujeito. De uma maneira geral, o quadro é marcado por forte
instabilidade emocional, sobretudo ira. Os pesadelos se presentificam na mesma intensidade,
fato que acentua a suscetibilidade emocional do neurótico de guerra. Silvia Castro (2009, p.
118), integrante da Pocia Militar do Rio de Janeiro, em tese intitulada Focalizando o trauma
sob as lentes da clínica da Polícia Militar, afirma: “a reprodução da situação traumática
engendrada pelos sonhos de repetição levava não a um estado subjetivo de angústia e
depressão, mas também era responsável pela manifestação de sinais físicos que pareciam
indicar que o sujeito revivia, através dos pesadelos, de fato, a experiência do trauma e trazia
consigo marcas visíveis e indeléveis dele.”
Vimos no capítulo sobre as neuroses de guerra que Simmel e Ferenczi, psicanalistas e
discípulos de Freud, serviram como militares durante a I Guerra Mundial. Dessa experiência
brotaram as considerações usadas por Freud no texto de 1919, Introdução a psicanálise e as
neuroses de guerra. Nesse artigo o mais importante de se destacar é a distinção que Freud faz
entre as neuroses de transferências e as neuroses traumáticas de guerra. Nas primeiras trata-se
de uma frustração amorosa; as segundas expressam claramente o perigo da morte. A partir
desta diferenciação, Simmel dedicou-se a aprofundar os estudos sobre os egressos da guerra e
as conseqüências do trauma sobre o militar. Castro (2009, p. 113-4) observa que este analista:
[...] Tentou estabelecer as conseqüências do trauma para um eu militar, partindo
do princípio de que este sofreu uma alteração significativa em sua constituição
subjetiva por ter sido submetido ao processo de formação militar, que implica numa
rigorosa lavagem cerebral voltada para a produção de um indivíduo obediente e
disposto a ser inteiramente regido pelo Outro. Sendo assim, encontram-se distintos
os efeitos da guerra sobre um eu civil, que mantém sua capacidade de decisão ilesa;
em contraposição a um eu militar, que tem seu supereu e ideal do eu deslocado para
o chefe, que assume esses papéis.
É preciso lembrar que o indivíduo que vai para a guerra é previamente formado por
rígidos processos que o tornam militar. Sabemos sobre o processo de identificação disposto
por Freud em Psicologia das massas e a análise do eu (1921), texto a partir do qual
116
depreendemos ser a transformação de um civil num militar o resultado desse processo. “Em
uma guerra, a realidade é totalmente diferente daquela em que se vivia antes dela acontecer.
Nessas circunstâncias, o sujeito perde a segurança proporcionada pela civilização.”
(CASTRO, 2009, p. 114).
O filme No vale das sombras, dirigido por Paul Haggis (2007), retrata situações
possíveis de acontecer a um militar, na guerra e fora dela. A estória é protagonizada por
Tommy Lee Jones, o qual interpreta o personagem Hank Deerenfield, um ex-combatente da
guerra no Vietnã. Hank é pai de Mike, que luta no Iraque e, ao retornar para os Estados
Unidos não procura sua família. O desenrolar da trama é iniciado com a procura de
informações sobre Mike. Cedo no filme, o pai é informado que seu filho fora encontrado
morto, esquartejado e jogado num terreno baldio. -se início a um processo de investigação
pela polícia e ercito, juntamente com o pai, este nos bastidores da investigação. A partir
desse momento Hank depara-se com aspectos da personalidade de seu filho Mike,
inimagináveis para ele, mediante conclusões obtidas em vídeos enviados a ele pelo próprio
filho, quando ainda vivo e em combate no Iraque. Na ficção [e fora dela] é comum a ordem de
o cessar um comboio numa zona de conflito devido à ameaça de emboscadas, bombardeios,
etc. No filme, Mike dirige uma viatura em comboio quando avista uma criança e passa por
cima dela, atropelando-a fatalmente. Em seguida, ele para a viatura, desce e fotografa a
criança morta, mudo e com semblante frio. Instante seguinte envia a foto tirada com seu
celular para seu pai.
Ainda no filme de Haggis, é revelado o codinome “doutor atribuído a Mike. A
explicação para essa designação é que Mike, ao capturar um ferido de guerra se aproximava e
dizia ser médico e que iria ajudá-lo. Os atos seguintes eram repetidos enfiar dos dedos no
ferimento do inimigo, junto da indagação i?”. Diante dos gritos agonizantes do inimigo
detido, Mike sorria para a mera que testemunhava o ato cruel. Em determinada parte do
filme, Hank verbaliza para a detetive que investiga a morte de seu filho: “voo esteve na
guerra; você o sabe como é! Quando a gente volta, se o tem briga, lutamos entre si”. Foi
sob tais circunstâncias que se deu o assassinato de Mike, morto por três camaradas de seu
esquadrão no front. Após uma bebedeira, discutiram e um deles apunhalou-o com uma faca,
matando-o. o bastasse o assassinato, um deles resolveu a fatiá-lo, verbalizando que tinha
experiência como açougueiro. Após o despedaçamento do corpo morto, desistiram de enterrá-
lo porque estavam famintos. Então foram comer frango e pagaram com o cartão de crédito
daquele que haviam matado. Nesse mesmo filme, um soldado egresso do Iraque assassina a
117
esposa numa banheira e outro se enforca no vestiário. Recentemente, no Brasil, a esposa de
um militar combatente decidiu se separar do marido por conta de comportamentos violentos
em casa, com ela e com a filha. Numa outra situação, determinado militar estava decidido a
tirar a vida de seu superior por causa da forma como se sentia tratado por ele no front. Esse
militar foi contido pelos demais e afastado do grupamento. Foi-nos informado uma internação
psiquiátrica de um militar que, após o retorno de uma intensa missão no exterior, delirava, aos
berros, que todas as pessoas que ele havia matado na missão estavam vindo atrás dele, que
apareciam para ele e que ele seria morto por aqueles que matou.
Quando a barbárie impera, encontra-se livre de quaisquer amarras normativas as
pulsões destruidoras e a crueldade. Para alguns sujeitos, essa é uma condição em que falham
suas defesas protetoras, advindo o trauma. “Esse novo panorama pode levar o soldado a
adoecer justamente por causa da perda da capacidade de mediação do conflito entre as pulsões
e a realidade externa, isto é, entre o mundo interior e o exterior”, escreve Castro (op. cit., p.
114). Diversos militares sofrem de angústia e depressão após terem matado um inimigo na
missão. É como se “uma ficha tivesse caído” frente ao cometimento do assassinato praticado
por ele mesmo, condição essa que se torna insustentável para muitos deles. Isso significa que
a fiança do Estado de que a morte pode ser praticada na guerra não é garantia de sustentação
psíquica para o sujeito. Parece que, depois da guerra, o sujeito fica à merde si mesmo,
como temos notícias dos que combateram no Viet, por exemplo, os quais ficaram à própria
sorte quando aquele desastre acabou, muitos deles, inclusive, se suicidando.
Toda força armada apresenta o paradoxo de duas exigências pulsionais feitas ao
militar: ser camarada com os irmãos de farda e, em igual medida, ser capaz de cumprir seus
deveres, dentre os quais o de matar um inimigo, se preciso for. Tais exigências favorecem a
cisão do eu, corroborada pelo horror da destruição. Na opinião de Castro (op. cit., p. 115)
este é um fator decisivo para que se constitua neurose de guerra”.
Toda força militar procura selecionar para as missões internacionais os militares
considerados padrão de excelência militar, notadamente aqueles que ocuparão funções de
chefia e liderança. Numa dessas missões, determinado militar, considerado como exemplo a
ser seguido principalmente nos quesitos disciplina, hierarquia e cumprimento do dever,
desencadeou uma trombose, paralisando todo o lado esquerdo de seu corpo. Esse militar teve
que ser repatriado para o Brasil porque sua condição passou a inabilitar sua permanência no
front. Após a realização de exames médicos em solo pátrio, os resultados de seus exames
apresentaram-se sem alterações clínicas. Os resultados normais de seus procedimentos
118
laboratoriais indicam, supomos, uma doença de natureza psíquica, provavelmente histeria.
Imaginamos que a trombose desencadeada é conseqüência da experiência de algo insuportável
vivido pelo sujeito naquele cenário de extrema instabilidade, agravado pelo estresse e
afastamento da família. As o incidente, esse militar desencadeou quadro depressivo,
retraiu-se do convívio dos pares e solicitou mudança de unidade por não suportar o olhar dos
outros em direção a ele.
Recentemente recebemos o encaminhamento de um soldado que estava
acochambrando”
13
no quartel. A fala gaga mesclada a choro contido revelou que não se
tratava disso. Relatou que o pai, seu único amigo, havia morrido no começo de suas
atividades no quartel. Disse que estava em casa com ele e que o pai começou a passar mal, a
ficar roxo e referiu não ter conseguido fazer nada de imediato. Nos instantes seguintes pediu
ajuda a uma vizinha a qual chamou a ambulância. Um enfarto fulminante foi a causa morte do
pai. Na semana seguinte a esse episódio, ele foi para a atividade de acampamento no quartel,
estágio esse onde o militar é submetido a provas de resistência que visam prepará-lo para o
combate. No acampamento ele verbalizou que foi bem e que ria das situações difíceis. Chorou
muito ao lembrar que não havia sido o seu pai a entregar-lhe a boina na formatura de
recebimento da mesma. Passado os dias, ele havia acentuado consideravelmente sua gagueira
e pensava frequentemente em se matar. Num serviço, chegou a engatilhar o seu fuzil e pôs o
armamento na boca, mas não conseguiu atirar. Ele reclama que seus chefes o acusam de
acochambrar” e que, nesses momentos ele se lembra que seu único amigo o pai não está
mais ali para lhe defender e escutá-lo, orientá-lo. Ao que parece, a acusação de
acochambrar” remete a acusação primeira que ele dirige a si mesmo por “não ter feito nada”
diante da morte de seu pai, fato donde deve estar derivando a sentença condenaria de sua
própria morte. Apostamos que a análise possibilitará alívio para a angústia mortífera e
permitinovos arranjos e nova saída que não o aniquilamento de si mesmo.
A deparação com a morte deixa sempre um resto de terror que não é assimilada. O que
o risco da morte causa no sujeito? Trauma, certamente. O traumatizado de guerra está mais
próximo dos mortos do que dos vivos. Com identidade e imagem despedaçadas, o sujeito
sente-se ameaçado, arremessado de volta ao desamparo, donde advém a angústia, frente a
qual uma análise se apresenta como uma possibilidade de alívio desse sentimento mortífero
pelo recurso da fala. O tempo de desmobilização psicológica de militares egressos de uma
13
Expressão é comumente usada em todos os quartéis para designar um militar que “enrola” no serviço, que
finge para não fazer nada.
119
zona de combate é um tempo singular para o sujeito. Não se sabe exatamente as possíveis
repercussões no psiquismo dos que viveram o horror e a ameaça de morte de perto. Como se
diz no Exército “olharam de perto e de frente os olhos do inimigo”. Além disso, não há como
determinar com objetividade as derivações patológicas do extermínio do outro, ainda que para
salvar a própria vida. Nesse sentido, uma alise não intenciona a profilaxia, posto que essa
o é sua tarefa. Não há como afiançar que jamais haverá novo sofrimento, pois experiências
futuras podem acender questões não trabalhadas na análise. É interessante, inclusive, dizer
que muitos militares retornam nos contingentes subseqüentes ao seu com extrema vibração.
Assim sendo, o analista se configura enquanto capaz de amparar a fala do analisando balizado
pelo amor de transferência. “Ter quem o escute poderá ajudá-lo a compreender melhor o que
ocorreu, e por qual razão esta vivência teve efeito tão disruptivo”, assinala Castro (op. cit., p.
122).
Numa tarde de domingo recebi uma ligação telenica de uma esposa de um militar
que há pouco havia chegado ao Brasil, clamando por ajuda, pois ela estava assustada frente às
reações de seu marido. Este gritava por qualquer motivo, não conseguia reduzir o tom de sua
voz em nenhuma circunstância e falava sempre “de olhos arregalados” - disse-me a esposa, a
qual estava tendo picos de pressão arterial e medo. No consultório, a chegada do indivíduo em
questão denotava quão mobilizado ainda permanecia como se estivesse à espera de algo que o
pudesse surpreender. Comoção que deixa o sujeito subsumido na certeza do retorno do
acontecimento traumático, produzindo efeitos devastadores nos intercâmbios familiares. Sua
história não tem sentido; ninguém acredita nele, os laços familiares se afetaram de tal
maneira que não pode confiar em ninguém. Passadas algumas sessões, onde pode abordar os
momentos vividos nos tiroteios, relatou que o conseguia ser escutado nos locais de combate
por causa do ensurdecedor barulho bélico. Então, ele gritava para ser ouvido, porque
precisava ser ouvido quanto ao medo que estava sentindo.
Vimos que os militares brasileiros que se voluntariam para a missão no Haiti
(MINUSTAH) são movidos por toda sorte de motivos, uns nobres, outros puramente
financeiros. Desta escolha eles partem do Brasil pacífico para o Haiti destruído pela guerra,
onde ainda na atualidade são temidas novas insurgências. Os ideais dos soldados brasileiros
são solapados pelo choque cultural haitiano, o qual somado à deparação da destruição do
patrimônio cultural daquele país, à barbárie dos corpos mortos, ocos e lançados aos porcos
nas ruas imundas das cidades, reveladora da inexistência de leis, impacta o soldado da paz
termo que o designa perante as Nações Unidas. A partir daí, com o transcorrer das tarefas
120
militares o choque traumático é acentuado pela constatação dos rituais de assassinato
praticados pela cultura local. Revelamos na primeira parte desta dissertação que uma
euforia no ato da matança de um inimigo, regada por danças, gritos, movimentos corporais
exacerbados, risos e poses para fotos. o comuns os relatos de repúdio a tais atos,
considerados pelos militares brasileiros como primitivos. Todavia, constatamos que o mesmo
militar que lança a sentença condenatória dos assassinatos praticados entre gangues rivais no
Haiti, cumpre fielmente a ordem de eliminar qualquer pessoa que encontre armado nas ruas.
Quando a ficha cai” vem junto uma depressão normalmente grave por se concluir igual ao
opositor. O semelhante na diferença, defendido por Kehl (2004) e por nós apontados no
Capítulo II (2.2 Civilização e Barbárie) deste escrito, que trata dos termos civilização e
barrie. Igualmente apontamos no capítulo um que a história da humanidade é composta por
episódios intermináveis de atrocidades as quais qualificam o homem como um ser violento e
cruel, conforme a marcha de suas pulsões. Nesse sentido, o conflito no Haiti acrescenta mais
uma página nessa história.
No combate, a neurotização do sujeito pode advir de várias maneiras, desde a explosão
de uma granada ou a morte de alguém, por exemplo, até acontecimentos cotidianos tolos,
considerados “a gota que faltava” para a eclosão do surto neurótico. O trabalho analítico
consistirá, em princípio, conseguir armar uma trama que permita ao sujeito encontrar um novo
sentido e reinscrever-se de outro modo no social. Na cnica, o trauma confronta o sujeito com
o real, com o que não tem sutura, com o irrecuperável. O analista terá como desafio promover
a restauração da capacidade interpretativa do psiquismo. O exercício da linguagem na análise
permite ao sujeito inscrever marcas traumáticas na cadeia significante e com isso, minimizar
os efeitos nocivos do trauma. A propósito do tema desenvolvido neste capítulo e para
finalizar, comentarei brevemente uma idéia de Castro (op. cit., 111) sobre a posição do
analista frente ao desamparo do sujeito traumatizado: A análise promove a restauração da
capacidade interpretativa do psiquismo através do rearranjo da fantasia. O fato de o aparelho
psíquico ser um aparelho de escrita garante a aposta que todo analista deve fazer, a cada caso
e a cada vez, de que aquele que se sente desamparado e indefeso frente aos efeitos do trauma
pode encontrar uma saída para o sofrimento”. O poder da fala permite, fundamentalmente,
que o sujeito resgate sua imagem narcísica e suas referências subjetivas. Localizar, teorizar,
discernir sobre o lugar do analista na clínica: eis o grande desafio da psicanálise frente aos
atuais rumos da civilização, cada vez mais regida pelas guerras, terrorismos e pelo exercício
da crueldade.
121
CAPÍTULO IV
4.1 À título de conclusão
A presente pesquisa de mestrado teve origem no questionamento das possíveis causas
da crueldade, munida de todo o aparato moderno e tecnológico, que encontramos estar sendo
praticada no Haiti. Igualmente, nos perguntamos se as guerras de outrora não deixaram
cicatrizes o suficiente para extinguir a barbárie do convívio humano. A resposta para tais
indagações tomou corpo na leitura dos escritos freudianos, onde, num primeiro momento,
ficou evidentemente claro que modernidade não é sinônimo de felicidade e de que a barbárie
anda ao lado da civilização. Nesse sentido, inclusive, a violência é incrementada pela
modernidade do setor bélico. Em seguida, constatamos que a memória da destruição não
cumpre a função de banir as inclinações agressivas do homem, por serem essas moções
inestancáveis. Nesse contexto, o conceito de pulsão esclarece os pontos obscuros que
justificam a repetição continuada da violência entre os homens. Trata-se de forças poderosas e
inesgotáveis, às quais não se sujeitam aos ditames civilizatórios e urgem satisfação. As
pulsões são, no máximo, passíveis de drenagem, tarefa essa endereçada à cultura. Assim
sendo, a primeira constatação decorrente do estudo realizado é que o homem é violento,
independentemente de sua origem, sendo essa uma prerrogativa constitucional do sujeito.
A história da humanidade é reveladora da agressividade do sujeito e da violência entre
os homens, observada nas inúmeras atrocidades que se tem conhecimento ao longo da
história. O rompimento das regras culturais e a quebra da lei inauguram as ações agressivas
contra a civilização, mediante a destruição do patrimônio cultural, na geração da dor e do
sofrimento, na transmissão do medo, no corte do laço social entre os povos. A destruição gera
feridas culturais importantes, além de traumas causadores de angústia que se agravam em
nossa modernidade assombrada, cada vez mais, pelo terror.
A análise mais aproximada do processo civilizatório imposto pelos invasores
espanhóis aos nativos da então Ilha de São Domingos mostra suas bases fundadas na violência
assassina. Tidos como o povo mais civilizado daqueles tempos, os espanhóis se apropriaram
das terras descobertas, tomaram riquezas, introduziram o trabalho forçado, escravizaram
negros, estupraram mulheres, mudaram costumes religiosos e dizimaram todos os que se
rebelaram. A psicanálise revela que medidas como essas não passariam impunemente. A
cantiga entoada nos quilombolas pelos negros nativos e africanos fugitivos denuncia um
122
legado que ainda hoje subsiste no Haiti. Senão, recordemos: “juramos destruir os brancos e
tudo o que possuem; que morramos se falharmos nesta promessa” (JAMES, 2007, p. 31). Ou
seja, usar do mesmo instrumento de violência contra o opositor para destruí-lo, assim como o
seu patrimônio. Da invasão espanhola até os dias atuais, a pulsão de morte, em sua face
destrutiva, compulsivamente se repete no Haiti, à semelhança de um refrão secularizado pela
indignação negra escravizada. Ou seja, continua sendo uma violência compulsivamente
reeditada.
A guerra, dentre outros aspectos, nasce da diferença entre os povos e da necessidade
de poder das nações envolvidas, cuja semente é etiologicamente remetida ao cerceamento
daquilo que Freud chama por pulsão. Vimos que a pulsão é força e movimento constante
rumo ao inalcançável. Assim sendo, as pulsões de poder e soberania são o motor da guerra, as
quais preparam o terreno fértil para o exercício da crueldade capaz de eliminar o outro, uma
nação, um povo, como foi o caso do Haiti nos seus primórdios, e igualmente a barbárie
cometida contra os judeus, na Alemanha Nazista, além das bombas atômicas lançadas em
Hiroshima e Nagasaki.
Qual a responsabilidade da psicanálise em relação à crueldade? Por que as práticas
cruéis não foram estancadas ao longo do progresso intelectual das civilizações? E quanto às
guerras, é possível bani-las do futuro porvir?
Inicialmente recordamos a impossibilidade de erradicação das pulsões de crueldade,
de poder e soberania denunciadas por Freud. Erradicar a parcela inconquistável da natureza
humana, o desejo de matar, aniquilar, humilhar, possuir o outro como objeto de gozo, é
igualmente impossível. A parcialidade de satisfação pulsional deixa um resto de hostilidade,
significando que o gozo cerceado é inflacionado na hostilidade dirigida à cultura. Nesse
contexto, a repulsão ao que é estranho é intensificada, dando vazão ao ódio dirigido ao outro,
pulsionado pelo desejo de aniquilação daquilo que causa desprazer. Como vimos, a violência,
a destruição e a crueldade são realidades do psiquismo humano e compõem manifestações de
uma categoria que trabalha em silêncio, rumo ao inanimado.
No estado de guerra o homem experimenta a morte de perto, mas isso não serve de
freio para a violência, porque a pulsão é irredutível. Nesse contexto, o mandamento Não
Matarás” é desmoronado pela banalização da morte que os combates provocam e afeta
diretamente as proibições que garantem o direito à vida, bem como os limites mínimos da
vida comunal. Ficamos desse modo, à mercê daquilo que é dado como imprevisível no
homem, acarretando dificuldades para a existência de um mundo sem guerras. Ao que parece
123
esse é um problema derivado da imprevisibilidade do Outro, decorrente da diferença. O que
esperar do Outro que é diferente de mim? Imaginamos que as nações esperam belicamente
armadas. O resultado de todas essas equações resume-se no fato de que o sujeito o acredita
na sua própria morte e estigmatiza o diferente como inimigo a ser aniquilado. Nesse sentido,
haverá sempre guerra entre os homens, posto que a diferença não se elimina. E enquanto
houver guerra, a crueldade encontrará terreno propício para sua expressão.
As práticas perversas, fora-da-lei, abrem feridas culturais e revelam a crueldade do
gozo do sofrimento alheio, do gozo na destruição, do gozo na usurpação o outro. Nos campos
de batalha estranhamente verificamos o homem “se habituar” com o cometimento dos atos
cruéis praticados em nome do Estado. Alguns são traumatizados por tais situações; outros,
o; enquanto outros adotam a atitude de contemplação indiferente da desgraça do inimigo,
sem compadecimento de sua dor, pelo fato de ser um opositor, a despeito de ser um ser
humano igualmente. Percebemos que por trás de todos esses comportamentos estão os
fenômenos de identificação dos quais aborda Freud, fenômenos esses que constituem a
verdadeira fortaleza de um exército.
É imprescindível que todos os militares que participam dos combates, direta ou
indiretamente, tenham uma escuta diferenciada, em moldes psicanaticos. Se no momento
traumático a perplexidade e o horror chegam antes, sem que haja condição de simbolização,
diante da angústia devastadora do aparelho psíquico, somente a psicanálise é capaz de
oferecer um tratamento que valorize a ética do sujeito do inconsciente.
Finalmente, perguntamos qual o fazer do analista diante de uma modernidade com
uma roupagem cada vez mais cruel, disfarçadamente cruel, onde ora a violência é cometida
diretamente, e ora é praticada pela abstenção, indiretamente, como é o caso do aval concedido
aos exércitos em guerra, tudo em nome do patriotismo, em nome da paz, a qual,
paradoxalmente é buscada por meio da violência. Cabe a nós, psicanalistas, refletir sobre as
práticas humanas na contemporaneidade, sobre os processos inconscientes que subjazem as
ações humanas e, fundamentalmente, sobre os novos arranjos da pulsão de morte, em suas
faces destrutiva, agressiva e cruel, à luz do ensino freudiano e da leitura de Derrida sobre as
gradações da crueldade.
Por fim, é preciso dizer que é responsabilidade dos analistas darem uma resposta à
banalização continuada da violência, no sentido de honrar a aposta pacifista de Sigmund
Freud, o qual em todos os momentos de sua obra ratificou a ética, o direito inalienável à vida
frente às manifestações da irredutível pulsão de morte. A obra de Freud nos delega uma
124
importante tarefa: a análise e a transmissão do conhecimento psicanalítico como uma
possibilidade de drenar, civilizar o indomável no homem. Lembremos que na Conferência
XXXI Freud escreve a mais importante formulação relativa à eficácia da psicanálise no intuito
de delimitar os esforços terapêuticos de sua disciplina: “Onde Isso estava, eu advirá (Wo Es
war so, Ich werden). É um trabalho da cultura não diferente da drenagem do Zuider Zee
(1933[1932], p.102). Esse é um terreno fértil para a psicanálise e, portanto, precisa ser tomado
como um compromisso ético por todos os psicanalistas que, como Freud, se autorizam a
pensar a esfera social a partir da experiência clínica.
125
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129
PRODUTO
Pretendemos resgatar uma antiga sugestão de criação de um centro de atendimento
psicanalítico no front, sendo essa uma necessidade urgente. A idéia foi proposta por volta do
ano de 2000. Entre os anos de 2001 e 2003 o Exército Brasileiro enviou três psicólogos ao
Timor Leste, época em que o Brasil estava a serviço das Nações Unidas na missão de paz
naquele país. Naquela ocasião fui contemplada com a viagem até o Timor Leste com a
finalidade de observar a tropa em atividade, realizar entrevistas com os militares e obter dados
para o Projeto Força Militar de Paz. Essas viagens representaram a semente de duas iias que
foram em seguida implementadas: a primeira diz respeito à inclusão do quadro feminino no
corpo de tropas de missões de paz, sendo a partir daí uma realidade até hoje, onde diversas
especialidades são compostas por mulheres, como dentistas, psiquiatras, médicas, tradutoras,
advogadas, dentre outras. O segundo aspecto é relativo à criação de uma vaga permanente
para um profissional de psicologia full time no local das operações militares. Dessas duas
conquistas permanece sem interrupção a presença feminina no Haiti. Quanto à presença
constante de um psicólogo, observamos que ela tem ocorrido com alternâncias, de modo que
alguns contingentes o dispõem de tal profissional em seus quadros de tropa. Atualmente, o
Exército Brasileiro mantém de forma ininterrupta o envio de um psicólogo ao Haiti por um
período de dez dias, o que o é suficiente por rias razões, a começar pelo efetivo de mil e
duzentos militares brasileiros em atividade na MINUSTAH.
Nesse contexto, visamos resgatar a idéia do centro de atendimento psicanalítico
durante toda a missão no Haiti e respaldá-la no estudo desenvolvido nesta pesquisa. Assim
sendo, será enviado um documento ao Comando de Operações Terrestres (COTer), em
Brasília, Distrito Federal, e ao Centro de Estudos de Pessoal (CEP), no Rio de Janeiro,
contendo justificativas inerentes à permanência de um psicólogo que possa atuar
psicanaliticamente na missão no Haiti.
Igualmente, no segundo semestre do corrente ano, duas atividades importantes serão
postas em prática, a saber: (1) criação de um grupo de estudo sobre as consequências da
guerra no sujeito, onde será possível estudar e discutir aspectos como crueldade, pulsão de
morte, trauma, neurose, psicose, tudo balizado pelo ensino psicanatico; (2) na metade do
segundo semestre deste ano será realizada a II Jornada de Psicologia Clínica da Policlínica
Militar da Praia Vermelha, intitulada “Conferências sobre as Neuroses de Guerra”. Esse
130
evento já está em fase de organização, sob nossa gerência. Essencialmente, pretendemos levar
a psicanálise, pela segunda vez, para ser ouvida e discutida dentro de uma instituição militar.
A aplicabilidade desta pesquisa não se restringe somente ao Projeto FMP, nem à
prática clínica efetiva. O Exército Brasileiro possui escolas de formação de oficiais e praças as
quais podem dispor desse material dissertativo como fonte de consulta, justificado pelo fato
de que são dessas escolas de formação que partem os militares para a guerra, integrando os
diversos setores que comem uma força de combate. Serão remetidas cópias da dissertação
para a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), Escola de Administração do Exército
(EsAEx), Escola de Saúde do Exército (EsSEx), Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais
(EsAO), Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME) e Escola de Sargentos das Armas
(ESA).
Além das escolas citadas, o Exército Brasileiro possui Organizações Militares
responsáveis pela condução de cursos operacionais, atividades essas de risco e intensa pressão
psicológica. Esses cursos formam a elite combatente da Força Terrestre. Todavia, nos
referidos cursos existe risco de morte para o militar, assim como o perigo no exercício
profissional pós-curso, donde podem advir neuroses traumáticas. Da mesma forma, será
enviada pia da pesquisa e uma apostila com os pontos centrais da teoria freudiana sobre as
neuroses de guerra, para as unidades que gerenciam os seguintes cursos: Curso de Ação de
Comandos, Curso de Forças Especiais, Curso Precursor Pára-quedista, Curso Guerra na
Selva, Curso Básico Pára-quedista, Curso Mestre de Salto, Curso de Salto Livre.
Finalmente, intencionamos a publicação de artigos sobre a crueldade a partir do estudo
realizado, a exemplo do trabalho publicado na revista eletrônica Psicanálise & Barroco
(ISSN: 1679-9887), número treze, lançada no mês de julho do corrente ano (Cf.
<www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista>).
QUADRO RESUMO DOS PRODUTOS
PRODUTO
AÇÃO NECESSÁRIA
Fonte de consulta para o Projeto Força Militar de Paz (FMP)
Remessa de cópia ao CEP, Organização Militar responsável pelo mesmo.
Centro de atendimento psicanalítico no Haiti
Remessa de um documento ao EME e ao CEP contendo embasamento
teórico que justifique o pleito, juntamente com uma cópia da dissertação.
Fonte de consulta para psicólogos clínicos e psiquiatras do
Exército Brasileiro
Remessa de pia da dissertação para todas as Organizações Militares que
contém nos seus quadros os profissionais citados.
Grupo de estudo sobre neuroses traumáticas
Encontra-se em fase de organização e se dará na Policlínica Militar da Praia
Vermelha.
II Jornada de Psicologia Clínica da PMPV
(“Conferências sobre Neuroses de Guerra”)
Em fase de planejamento e organização, a ser realizada na segunda metade
de 2009.
Propagação do ensino psicanalítico junto às escolas de
formação do Exército Brasileiro
Remessa de pia da dissertação para a AMAN, EsAEx, EsSEx, ESAO,
ECEME e ESA, além da possibilidade de palestras sobre o assunto.
Divulgação da pesquisa nas Organizações Militares
responsáveis pelos cursos operacionais do Exército Brasileiro
Remessa de apostila com os pontos centrais da teoria freudiana sobre as
neuroses de guerra, bem como a realização de palestras na Brigada Pára-
quedista e no Centro de Instrução de Guerra na Selva.
Publicação de artigos
Um primeiro artigo intitulado Rastreamento da formulação freudiana da
crueldade aceito para publicação em Psicanálise & Barroco em revista
(número 13, julho de 2009), periódico eletnico, reconhecido pela
Capes/Qualis e bases de dados internacionais. Pretende-se a publicação de
outros artigos sobre a pesquisa feita no mestrado.
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