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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CONHECIMENTO E LIBERDADE EM 1 CORÍNTIOS
EVANDRO ARAÚJO BESERRA NETO
GOIÂNIA
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CONHECIMENTO E LIBERDADE EM 1 CORÍNTIOS
EVANDRO ARAÚJO BESERRA NETO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciências da
Religião como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Ivoni Richter Reimer
GOIÂNIA
2010
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Agradeço a Deus pelo eterno investimento.
À minha esposa e amiga, pela paciência.
Aos meus pais, sem os quais eu não teria chegado até aqui.
À Igreja Memorial Batista de Brasília, pelo apoio.
À minha orientadora, pela prontidão e cuidado.
RESUMO
BESERRA NETO, Evandro Araújo. Conhecimento e Liberdade em 1 Coríntios.
Dissertação (Programa de Pós-Graduação Strito Sensu em Ciências da Religião)
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2010.
Esta dissertação trata do conhecimento e da liberdade dos cristãos em 1 Coríntios, a
partir de suas relações com o comer e beber sacrificados aos ídolos. As ‘políticas’ da
Igreja e da cidade de Corinto se configuram ao redor da mesa, nos banquetes rituais
e transparecem as estruturas de poder do Império Romano, portanto, reconfigurar os
seus assentos é reconfigurar mundos’. O comer e o beber sacrificados conferem
nomia às ‘coisas’ e às pessoas de Corinto, eles sustentam o homem e mundo dos
homens’ na colônia romana e no Império. A Ceia do Senhor, celebrada pela
comunidade cristã, propõe uma releitura desses rituais e dos espaços que eles
significam outorgando cidadania aos marginalizados.
Palavras-chave: conhecimento, liberdade, Ceia do Senhor, cidadania, 1 Coríntios.
ABSTRACT
BESERRA NETO, Evandro Araújo. Knowledge and Freedom in 1 Corinthians.
Dissertation (Programa de Pós-Graduação Strito Sensu em Ciências da Religião)
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2010.
This dissertation deals with the knowledge and freedom of Christians in 1
Corinthians, as far as their relationship with eating and drinking sacrificed to idols are
concerned. The policies of the Church and the city of Corinth are configured around
the table in banquet rituals, and reveal the power structures of the Roman Empire.
Therefore, reconfiguring their seats is to reconfigure 'worlds'. The eating and drinking
sacrificed give autonomy to 'things' and people of Corinth, they support the man and
'man's world' in the Roman colony and empire. The Lord's Supper, celebrated by the
Christian community, proposes a rereading of these rituals and their meaning,
granting citizenship to the marginalized.
Keywords: knowledge, freedom, Lord’s Supper, citizenship, 1 Corinthians.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................8
2 CENÁRIOS E APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS ..............................................14
2.1 NO MUNDO DOS DEUSES...............................................................................17
2.2 NO MUNDO DOS HOMENS................................................................................18
2.3 NA IGREJA DE CORINTO...................................................................................19
3 UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO COMER E DO BEBER
SACRIFICADOS........................................................................................................23
3.1 O PATRONATO NA CORINTO ROMANA...........................................................23
3.2 ALGUNS PERSONAGENS DE 1 CORÍNTIOS....................................................25
3.3 O ‘ENDEREÇO’ DA IGREJA EM CORINTO........................................................28
3.4 A ELITE E A RALÉ EM 1CO 1,16-29...................................................................29
3.5 JUDEUS E GENTIOS, ESCRAVOS E LIVRES, HOMENS E MULHERES EM
1CO 7,17-24...............................................................................................................32
3.6 SÁBIOS E ILETRADOS EM 1CO 8,1-13.............................................................36
3.7 RICOS E POBRES EM 1CO 11,17-22 ...............................................................43
3.8 SÍNTESE E PERSPECTIVAS..............................................................................46
4 UMA LEITURA FENOMENOLÓGICA DO COMER E BEBER
SACRIFICADOS...................................................................................................48
4.1 EXTERIORIZAÇÃO EM 1CO 8 e 10.....................................................................50
4.2 OBJETIVAÇÃO EM 1CO 10 e 11........................................................................52
4.3 INTERIORIZAÇÃO EM 1CO 8.............................................................................54
4.4 INTERIORIZAÇÃO E IDENTIDADE....................................................................56
4.5 ESTRUTURAS DO FÊNOMENO RELIGIOSO....................................................59
4.5.1 O Sagrado e as Hierofanias.............................................................................59
4.5.2 Mitos e Símbolos.............................................................................................62
4.5.3 A Desconstrução e a (Re)Construção de Mitos..............................................63
4.6 IMPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS DO FENÔMENO RELIGIOSO EM
CORINTO..............................................................................................................66
5 UMA LEITURA POLÍTICA E APOCALÍPTICA DA CEIA DO
SENHOR...............................................................................................................70
6 CONCLUSÃO.......................................................................................................82
REFERÊNCIAS...................................................................................................87
1 INTRODUÇÃO
A presente dissertação trata do Conhecimento e da Liberdade dos cristãos
em 1 Coríntios. Aproximar-nos-emos do tema através de um assunto específico da
Carta: o comer e o beber sacrificados aos ídolos, porque esse ato ritual diz respeito
não apenas ao contexto religioso de Corinto, mas também ao ambiente sócio-político
do Império Romano. Buscaremos observar se e como as „políticas‟ da Igreja e da
cidade de Corinto se configuram ao redor da mesa, nos banquetes rituais e
transparecem ali também as estruturas de poder do Império Romano. Tentaremos
demonstrar que, nesse contexto, reconfigurar assentos‟, talvez, signifique
reconfigurar „mundos‟. Os conceitos de “conhecimento e liberdade”, utilizados em 1
Coríntios serão, nesta pesquisa, as lentes culturais, através das quais se tornarão
acessíveis os significados do alimento oferecido no mundo dos deuses, no mundo
dos homens e na Igreja de Corinto.
No mundo dos deuses‟, ao que tudo indica, a comida oferecida às divindades
nas festas populares e nos rituais de culto era um veículo de apropriação e criação
de sentido para uma existência desgraçada por um sistema social injusto. Se esta
proposição se demonstrar verdadeira, será preciso indagar em que sentido e como a
mística desse ato ritual funcionava como „válvula de escape‟ de uma realidade
opressora.
No mundo dos homens, o comer e o beber sacrificados, a princípio, parecem
ser uma das poucas ocasiões de congraçamento entre as massas (boa comida,
algumas risadas, algumas brigas, sexo fácil etc). Investigaremos em que medida,
nesse mundo‟, o comer e o beber sacrificados funcionavam como o “pão e o circo”,
que, nesse caso, como um circo divino. Perguntaremos pelo significado e pela
expressão de seu poder e, em que medida ele poderia ter sido utilizado também
como política estrutural do Império Romano.
Na Igreja de Corinto, os arquétipos do comer e do beber oferecidos aos
deuses aparecem refletidos na Ceia do Senhor e nas estruturas hierárquicas da
ekklesia. Parece que se pretendia repetir, nas celebrações da Ágape, o modelo dos
cultos e associações populares de outras expressões religiosas da cidade, nas quais
9
haviam assentos e comida diferenciados para ricos e pobres, bios e iletrados,
judeus e gentios, homens e mulheres etc.
A Corinto dos meados do século I d.C. é uma cidade rica, interessante e
cosmopolita, porque a sua própria localização geográfica a faz assim. Carrega suas
heranças gregas e agrega ainda, em 46 a.C., quando é reconstruída como província
senatorial da Acaia, as influências romanas. Sua população é completamente
miscigenada, tem gente de todo o mundo nela. Esta população está atenta às artes,
à filosofia, aos esportes, ao Direito e ao lucro. Para conseguir seus objetivos, os
coríntios negociavam o favor divino com um dos deuses de seu panteão ou, com
César, que o culto ao imperador, valendo-se da máquina pública, embrenha-se
rapidamente na colônia. É, também, desse cenário que trataremos no capítulo 2,
buscando configurar melhor o contexto histórico-social e cultural de 1 Coríntios.
Nesse contexto, que o comer e o beber sacrificados apareciam como base de
sustentação do Império. Eles contribuíam para o fortalecimento do Estado, na
medida em que legitimavam o poder do imperador e as relações hierárquicas do
Governo na vontade dos deuses. A pesquisa, também, aponta que as estruturas
hierárquicas de Roma eram patronais. O patronato representava uma rede de
relações entre o imperador, os funcionários públicos romanos, os notáveis locais e
as pessoas comuns. Essa política era baseada na troca de interesses e naquilo que
hoje conhecemos como tráfico de influência. Na base do patronato estava o
patriarcado, fortalecendo essas relações de poder desde a microestrutura familiar
até as macroestruturas do Império.
Com fins didáticos podemos imaginar essa estrutura na arquitetura de uma
mesa redonda. Sobre o seu tampo (redondo), repousa o Império Romano;
sustentando esse tampo (o Império) estaria uma barra cilíndrica de ferro (o
patronato), fincada em uma base circular plana (o patriarcado), que equilibra a mesa.
O alimento oferecido aos deuses, nesse contexto, funcionaria como um espelho, por
meio do qual seria possível enxergar um reflexo do mundo dos deuses. Nossa
hipótese é que, quando esse alimento sacrificado era tomado nos cultos e
associações de Corinto, ele refletia as estruturas hierárquicas do Império Romano,
refletia essa mesa‟. O comer e o beber sacrificados aos deuses poderiam, então,
estar legitimando as relações de poder do mundo dos homens‟ com base no mundo
10
dos deuses. A ilustração da mesa, além disso, ainda nos é útil para entender a
estrutura das associações civis e religiosas do Império. Nesse caso, sobre o tampo
(redondo) da mesa estariam os patronos da entidade (a elite); equilibrando esse
tampo estaria uma barra cilíndrica (os líderes), fincada a uma base circular plana (os
membros comuns das associações). Esta estrutura da „mesa‟ deverá ser investigada
e elaborada com base na análise de textos de 1 Coríntios, a partir do capítulo 3.
Nesse contexto e panorama, a questão era que a Igreja de Corinto parecia
estar repetindo o modelo de dominação romano na Ceia do Senhor, e isto fica claro
na reprimenda de Paulo a seus integrantes, em 1Co 11,17-22. Por isso, ela não
conseguia se diferenciar das outras tantas associações religiosas da cidade, que
também comiam e bebiam em culto às suas divindades. A Igreja de Corinto parecia
não se apresentar alternativa à sociedade de Corinto, porque repetia na Ceia as
relações de poder do Império.
Quais seriam os grupos sociais representados na Igreja de Corinto? Esta é
uma das questões sobre as quais nos debruçaremos neste trabalho. Por ora, é
possível adiantar que informações encontradas em escavações arqueológicas, em
textos paulinos diversos e na própria carta aos coríntios nos permitirão afirmar que a
Igreja de Corinto era constituída por uma minoria de bios, nobres e poderosos e
uma maioria de ignorantes, marginalizados e excluídos. Trata-se da temática fortes
e fracos em nível sócio-histórico, uma pequena elite e a ralé. Havia ainda, entre
eles, judeus e gentios, escravos e livres, homens e mulheres. A partir do item 3.4
desta dissertação, tentaremos demonstrar as relações entre esses grupos,
destacando a questão do conhecimento e da liberdade.
Veremos que, a cada instante, esses grupos se enfrentam e confrontam na
Carta. Contudo, Paulo tenta demonstrar que na Igreja essas divisões não fazem
mais sentido. Ele defende que diferenças étnicas, culturais, econômicas e de gênero
foram anuladas na Cruz. A política da Igreja é invertida. Sua mensagem é
subversiva. Os fortes não devem sujeitar os fracos, o conhecimento de Cristo não
liberta para que as pessoas se tornem reféns de seus caprichos, de lugares,
ocasiões ou pessoas. O conhecimento por si mesmo torna arrogantes e destrói (1Co
8,1), o importante é ser conhecido por Deus (1Co 8,3)! Pensamos que, nesse
sentido, Paulo propunha que a questão central era entender-se acolhido, aceito,
11
salvo e amado pelo Senhor, que não faz acepção de pessoas; nossa identidade não
é mais com grupos sociais, mas com o Corpo de Cristo, com a Igreja do Senhor.
Retomando a imagem didática acima esboçada, a Ceia, enquanto alimento
oferecido, também deveria funcionar como um espelho, mas um no qual as
estruturas do Império Romano aparecessem invertidas. A arquitetura da „mesa‟
deveria ser refletida, no Reino de Deus, de „cabeça para baixo‟. Para Paulo, não
eram os fracos que deviam suportar os fortes, mas exatamente o contrário (1Co 8,9;
10,32).
O que subjaz ao comer e ao beber sacrificado aos deuses nos templos e nas
festas populares de Corinto? Quer dizer, por que eles são capazes de criar e
sustentar estruturas de poder tão eficientes? Em busca dessas respostas, faremos
uma leitura fenomenológica do comer e do beber sacrificados, no capítulo 4. Ali,
buscaremos pelos significados simbólicos que esse gesto ritual transmitia às
pessoas cristãs e não-cristãs em Corinto. Nesse processo para a construção de
sentidos, nos utilizaremos de referencial teórico que compreende três níveis: a
exteriorização, a objetivação e a interiorização, que serão analisados com base no
texto paulino
Na exteriorização, o homem efunde sobre a sociedade o que vê, sente e
pensa sobre as coisas. Na objetivação, o produto da exteriorização apresenta-se
como realidade às pessoas. A interiorização é a reapropriação das estruturas do
mundo objetivo em estruturas do mundo subjetivo. Quando o processo de
socialização é bastante bem sucedido, o indivíduo não só enxerga a realidade
segundo as lentes do que aprendeu sobre o mundo, como igualmente relaciona
seus conhecimentos de forma a atribuir significados às instituições e as coisas que
criou. É assim que, pensamos, os significados do alimento oferecido aos deuses, no
universo sacralizado de Corinto, conferiam nomia às estruturas do Império,
legitimando o poder do Estado e as relações sociais de Corinto na vontade dos
deuses.
Para que os cristãos vislumbrassem uma outra possibilidade de ser era
necessária a demitificação do universo sagrado de Corinto. Paulo trabalha, portanto,
na demitologização do panteão greco-romano e de seu alimento „santificado‟, ao
mesmo tempo em que investe na mitologização do Crucificado e da Ceia do Senhor
12
(1Co 10,1-14; 11). Utilizando, mais uma vez, a linguagem metafórica poderíamos
dizer que Paulo mexe no espelho. Ele trabalha com a supressão, justaposição e a
(re)criação de mitos. Todavia, a mudança nômica nunca foi coisa simples. Não basta
conhecer os significados que os novos gestos e símbolos rituais querem transmitir
para que ela aconteça. É necessário que eles sejam aderidos em fé. É necessário
olhar para o espelho e crer naquilo que ele está refletindo. Por seguiremos no
capítulo 4.
Analisando política e apocalipticamente a Ceia do Senhor, a partir dos
elementos, gestos e contexto da Carta, queremos descobrir, no capítulo 5, se os
elementos da Ceia são propositadamente invertidos por Paulo, em 1Co 10. A
menção do cálice é anterior à menção do pão, o que pode estar aludindo à idéia de
que a comunhão no sangue de Cristo iguala as pessoas cristãs e que a participação
no pão as enxerta no Corpo. Na „memória‟ das ordenanças estaria a denotação
política e apocalíptica da mensagem do Crucificado. Se no batismo, todas as
pessoas foram mortas e ressuscitadas com Cristo para uma nova vida, em um „novo
mundo‟, logo, na Igreja, não fariam mais sentido as estruturas de domínio e as
relações de poder partidaristas e dominadoras do Império Romano. De acordo com
o apóstolo Paulo, vive-se ainda neste mundo, em Corinto, mas, os cristãos
experimentam uma realidade escatológica, a cidadania do Reino de Deus, o que
constitui a dimensão do „já, mas ainda não‟. Essa cidadania, como a Ceia deveria
lembrar a todo instante, liberta, confere voz e direitos às pessoas excluídas, uma vez
que considera os indivíduos não mais a partir de critérios de gênero, etnicidade,
cultura ou propriedade, mas pela sua simples condição de ser! Pensamos e
queremos defender que também as discussões de gênero e de classe giram em
torno da Ceia (do comer e do beber sacrificados) [1Co 11,2-16 e 17-22] no contexto
da Carta, porque têm nela, naturalmente, seu centro gravitacional. No „mundo dos
homens‟, ao redor da mesa estavam colocadas as estruturas sócio-políticas do
Império. A Ceia, nas palavras e perspectiva de Paulo, contesta, subverte, rompe
com essas relações.
O comer e o beber sacrificados em 1 Coríntios tinham função cosmogônica e
nomizante, circunscrevendo um kósmos, em nível cultural, e uma jurisdição, que
nesse caso era divina. Conhecimento e Liberdade, além de chaves hermenêuticas
indispensáveis para o acesso e compreensão de seus significados, eram os veículos
13
de libertação das estruturas de domínio e poder que os alimentos oferecidos
legitimavam no mundo dos deuses, no mundo dos homens e na Igreja de Corinto.
Por tudo isso, reescavar‟ Corinto é um desafio. As implicações do
pensamento de Paulo podem levar a caminhos inusitados para seu tempo. Espaços
„novos‟ demais, grandes demais, „abertos‟ demais. Verdadeiros universos podem ser
conhecidos e criados a partir da revelação do conhecimento do Crucificado (1Co
1,23).
Nesse caminhar entre os extremos da interpretação paulina, na Igreja de
Corinto, esperamos, de alguma maneira, trazer a lume o caminho percorrido pelos
cristãos coríntios em busca de sua identidade e dessa forma contribuir para que os
cristãos brasileiros também “deixem para trás as coisas de meninos” e caminhem
rumo a maturidade “pensando, sentido e falando” como homens e mulheres tocados
pelo Cristo ressurreto (1Co 13,11).
Além disso, é possível que possamos dar alguma contribuição aos cientistas
da religião, mormente aos estudiosos da Literatura Sagrada das Religiões, no que
atine a exegese paulina em torno do comer e beber sacrificado aos ídolos.
14
2 CENÁRIOS E APROXIMÕES CONCEITUAIS
A „Corinto romana‟ a que nos referimos no presente trabalho é fruto da obra
de Júlio César que a reconstrói em 44 a.C., e em 27 a.C., a torna sede p-consular
e capital da província senatorial da Acaia. (BRAKEMEIER, 2008, p. 13).
A „Corinto grega‟ foi totalmente destruída em 146 a.C. pelo romano L.
Mummius Achaicus. Corinto liderava a Liga das Cidades-estados gregas da Acaia,
que desafiou a expansão romana durante algum tempo. Quando a resistência
perdeu suas forças a cidade foi massacrada e “seus cidadãos foram mortos ou
vendidos como escravos”. (PRIOR, 1993, p. 12).
Um século mais tarde, quando a cidade foi reerguida como colônia romana,
reconquistou rapidamente muito da sua grandeza anterior. Sua topografia, numa
estreita faixa de terra entre o Golfo de Corinto e o Golfo Sarônico, ligando o Mar
Adriático ao Mar Egeu, era a sua garantia de prosperidade comercial. Os
comerciantes e os navegantes com rotas entre o leste e oeste do Mediterrâneo
preferiam enviar as suas mercadorias através do istmo a arriscar-se à longa viagem
rodeando os cabos rochosos e invadidos por tempestades ao sul do Peloponeso.
Além do que, Corinto era o único elo terrestre entre o sul da Grécia e o restante do
país e com os países do norte. (MORRIS, 1986, p. 11).
Barclay (1983, p. 13) assim se refere à posição geográfica da cidade:
Una mirada al mapa de Grecia nos mostrará que Corinto fue hecha para ser
grande. El sur de Grecia era prácticamente una isla. En el Oeste el golfo de
Salónica penetra profundamente en la tierra, y en el Este el golfo de Corinto.
Todo lo que une a las dos partes de Grecia es un pequeño istmo de sólo
seis kilómetros de ancho. En esa estrecha faja de tierra está Corinto. Tal
ubicación hacía inevitable que ciudad fuera uno de los centros comerciales
más grande del mundo antiguo. Todo el comercio del Norte y del Sur de
Grecia debía pasar por ella; no había ningún otro camino. Todo el comercio
desde Atenas y desde el norte de Grecia a Esparta y el Peloponeso tenía
cuello de tierra que unía a los dos. Pero sucedía que no sólo el comercio del
Norte y del Sur de Grecia pasaba por Corinto, sino que gran parte del
comercio de Este a Oeste del Mediterráneo debía pasar por ella. […] Este
viaje de seis kilómetros a través del istmo, donde ahora corre el canal de
Corinto, ahorraba un viaje de más de trescientos kilómetros al redor del
Cabo Malea, el más peligroso del Mediterráneo. Es cil imaginar el enorme
centro comercial que debe haber sido Corinto. Todo el tráfico de Grecia
pasaba por ella; la mayor parte del comercio entre el Este u el Oeste del
Mediterráneo elegía pasar por ella.
Uma colônia romana era uma „pequena Roma‟ plantada em terras habitadas
por outros povos, para ser um centro de vida romana e manter a paz. Ao longo das
grandes estradas romanas rodovias militares que partiam de Roma, chegando às
15
diversas fronteiras do Império , essas colônias de cidadãos romanos eram
implantadas como pontos estratégicos e desempenhavam um importante papel na
organização do império. (BRUCE apud PRIOR 1993, p. 12).
Corinto era um reflexo das estruturas organizacionais do Império, baseadas
no patronato e na religião romana. De um lado estavam o Império e seus cidadãos,
de outro, homens livres, escravos, mulheres e crianças. Durante os anos 50 nas
cidades mediterrâneas orientais como Filipos, Tessalônica e Corinto, o “evangelho
de César” já se disseminara e se estabelecera fortemente. (HORSLEY, 2004, p. 11).
Estudos recentes de historiadores clássicos e arqueólogos descobriram que
homenagens e festivais para o imperador eram não disseminadas, mas
onipresentes na vida pública, particularmente nas cidades da Grécia e da Ásia
Menor, justo a área da missão de Paulo. Alega-se ainda não que a religião e a
política imperiais são inseparáveis, mas que o culto imperial, em suas múltiplas
manifestações nas cidades gregas, era a própria fórmula de construção de relações
de poder imperiais. (HORSLEY, 2004, p. 12).
Todavia, o contexto religioso de Corinto ainda abrigava um panteão. Um dos
monumentos mais notáveis da cidade era o templo de Afrodite, que mantinha
expressivo número de prostitutas cultuais à disposição daqueles que desejassem
venerar a fertilidade:
Dominando a cidade estava o “Acrocorinto”, uma montanha de mais de 560
metros de altura, sobre a qual se encontrava o grande templo de Afrodite, a
deusa grega do amor. As mil sacerdotizas do templo, que eram prostitutas
sagradas, desciam à cidade ao cair da tarde para oferecer os seus serviços
pelas ruas. O culto era dedicado à glorificação do sexo.” (PRIOR, 1993, p.
11).
Dentro da cidade havia o templo de Apolo. Apolo era o deus da música, do
canto e da poesia; tamm simbolizava o ideal da beleza masculina. “Estátuas e
frisos de Apolo nu, em diversas posturas que exibiam sua virilidade, inflamavam
seus adoradores masculinos a prestarem devoção através de demonstrações físicas
com os belos rapazes a serviço da divindade.” (PRIOR, 1993, p. 12). Portanto,
Corinto era também um centro de práticas homossexuais (Rm 1,26ss).
Um traço característico marcante dos cultos e religiões de mistério em Corinto
era que todos eles compreendiam refeições comunitárias e/ou distribuições públicas
de alimentos sacrificados. O culto ao Imperador, a Afrodite e a Apolo não fugiam à
regra. Malherbe (1983, p. 79) afirma que “todos os habitantes da cidade,
independetemente de seu status social, poderiam comer da carne oferecida durante
16
os festivais e das comidas sacrificadas nas várias associações populares e clubes
da cidade
1
”, além do que, praticamente toda carne vendida nos mercados de Corinto
provinha de animais ritualmente mortos. Desta maneira, era quase impossível, aos
coríntios, manterem-se incólumes a esse alimento.
O ambiente cultural de Corinto é extremamente rico e interessante em virtude
das contribuições das diversas etnias ali representadas. “Era uma cidade em que
gregos, latinos, sírios, asiáticos, egípcios e judeus, compravam e vendiam,
trabalhavam e folgavam, brigavam e se divertiam juntos, na cidade e nos seus
portos, como em nenhuma outra parte da Grécia.” (EDWARDS apud MORRIS, 1986,
p. 12). Como Colônia romana, Corinto também recebeu a sua cota de veteranos do
exército romano, que ganharam terras para ali se fixarem como colonizadores. “Essa
poderosa minoria garantiu um sabor romano à nova cidade”. (PRIOR, 1993, p. 12).
As pessoas de Corinto estão atentas às últimas novidades do pensamento
humano. As conotações associadas à expressão “corintianizar” (korinthiazein) são
as mais diversas, podendo revelar tanto pretensões filosóficas e literárias quanto a
promiscuidade de seu povo. “La misma palabra korinthiazesthai, vivir como um
coríntio, había llegado a ser parte del idioma griego, y significaba vivir ebrio y em La
corrupción moral.” (BARCLAY 1983, p. 14). Em outras palavras:
O ideal dos coríntios era o atrevido desenvolvimento do indivíduo. O
negociante que conseguia lucro por todo e qualquer meio, o amante de
prazeres que se entrega a toda luxúria e o atleta em busca da perfeição do
corpo, são verdadeiros tipos coríntios. Todos eles, entretanto, negociando o
favor dos deuses para alcançar seus objetivos. (DOBSCHUTZ apud
MORRIS, 1986, p. 12)
A cidade também era palco dos Jogos Ístmicos, evento esportivo que era
superado em importância pelos Jogos Olímpicos. Fato que, inclusive, vai merecer
menção do apóstolo em 1Co 9,25.
Pollock (apud PRIOR, 1993, p. 13) assim descreve a Corinto na qual Paulo
aportou em 49 d.C. egresso de Atenas:
Corinto era a maior cidade que Paulo visitara, uma metrópole comercial
nova e impetuosa... Comprimia quase um quarto de milhão de pessoas
numa área relativamente pequena, sendo uma grande parte delas
constituída de escravos ocupados com movimento incessante de
mercadorias. Escravos ou livres, os coríntios eram gente sem raízes,
arrancadas de seus países e culturas, oriundas de todas as raças e
províncias do império.
1
“all inhabitants of cities, regardless of their social status, could eat meat during the public festivals
and the cultic meals of the many popular associations and clubs […]”
17
Paulo permanece em Corinto por cerca de 1 ano e meio, como aponta o
relato de At 18,1-18. Mais tarde ele faz duas visitas à cidade, uma mencionada em
2Co 12,14; 13,1 e a outra, em At 20,2-3. As cartas do apóstolo endereçadas à Igreja
de Corinto, os mensageiros que elas mencionam terem sido enviados a ele pela
Igreja (1Co 1,11; 5,1; 11,18) e os questionamentos por escrito que lhe haviam sido
submetidos por integrantes da comunidade (1Co 7,1) atestam um estreito
relacionamento entre Paulo e a comunidade.
Este é o cenário sócio-cultural de Corinto em 55 d.C., quando Paulo escreve
sua Carta. É preciso, entretanto, aproximá-lo, de forma mais direta, ao objeto de
nosso trabalho: o comer e o beber sacrificados aos ídolos. Adiante, observaremos
suas imbricações no mundo dos deuses, no mundo dos homens e na Igreja de
Corinto.
2.1 NO „MUNDO DOS DEUSES‟
Em Corinto, tomar da comida e da bebida para alimentar-se envolvia muito
mais do que instintos. A mera sobrevivência, a preservação da espécie, ou a
satisfação de uma necessidade fisiológica não eram motivações suficientes para a
prática desse ato, entre pagãos ou entre cristãos.
O alimento assumia dimensões outras, tanto ou mais vitais quanto as
primeiras citadas, já que por elas valia a pena viver ou morrer. O alimento significava
o mundo emprestando sentido ao existir, porque o alimentar-se, em Corinto, estava
inserido em um contexto maior, em um mundo maior, o mundo dos deuses.
Como hemos visto, cuando se ofrecía un sacrificio, parte de la carne era
entregada al feligrés y con ella éste celebraba una fiesta. Se sostenía que el
mismo dios era uno de los invitados a tal fiesta. Lo que es más, muchas
veces se sostenía que después que la carne había sido sacrificada, el dios
mismo estaba en ella y que durante el banquete penetraba en los cuerpos y
espíritus de aquellos que la comían. Así como se forjaba un lazo
indestructibe entre dos hombres si comían el pan y la sal perteneciente al
outro, una comida después del sacrificio conformaba una verdadera
comunión entre el dios y su adorador. La persona que sacrificaba, en un
sentido real estaba compartiendo con el altar; tenia una comunión mística
con el dios. (BARCLAY, 1973, p. 103).
Dessa forma, o tomar parte dessa ou daquela comida era unir-se a esse ou
àquele deus. O alimentar-se poderia significar o favor ou o ciúme e,
consequentemente, a ira da divindade. Não se comia simplesmente, era necessário
18
saber onde e o quê comer. Vocês não podem beber do cálice do Senhor e do cálice
dos demônios; não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
Porventura provocaremos o ciúme do Senhor? Somos mais fortes do que ele? (1Co
10,21.22 NVI
2
).
O alimento sacrificado desempenhava uma função duplamente vital em
Corinto, porque sustentava o homem e o mundo do homem‟, que o universo dos
coríntios era um universo sagrado, um mundo de homens e mulheres em completa
fusão com o mundo dos deuses.
2.2 NO MUNDO DOS HOMENS
“Tomar refeições em templos, ou em algum lugar associado a um ídolo, em
Corinto, era, também, parte integrante da etiqueta formal da sociedade.” (MOFFATT
apud MORRIS, 1986, p.99).
Em Corinto haviam dois tipos de ritos sacrificiais: os públicos e os privados.
Os sacrifícios públicos eram aqueles realizados nos templos dos deuses pagãos,
como parte do culto a determinada divindade. Nesses ritos, uma porção da carne
era oferecida ao ídolo, outra porção era dada ao sacerdote e às autoridades da
cidade e uma terceira parte era devolvida ao fiel. Os sacrifícios privados eram
aqueles que os fiéis realizavam, geralmente, em casa, com a porção da carne
oferecida nos templos que lhes fora devolvida.
O sacrifício aos deuses era uma parte integrante da vida antiga. Havia dois
tipos: particular e público. No sacrifício particular, o animal era dividido em
três partes. Uma parte simbólica era queimada sobre o altar [...]; os
sacerdotes recebiam a porção a que tinham direito [...]; o próprio adorador
recebia o restante da carne, com a qual oferecia um banquete. [...] No
sacrifício público [...] depois que a porção simbólica era queimada e os
sacerdotes recebiam a sua parte o restante da carne era entregue aos
magistrados e a outras autoridades. (BARCLAY apud PRIOR, 1993, p. 149).
Segundo Morris (1986), o tipo de ocasião quando o povo tinha maior
probabilidade de reunir-se era o tipo de ocasião em que ele se apropriava do
sacrifício. Não se importar com essas reuniões era eliminar-se da maior parte das
relações sociais, além do que:
2
Todas as passagens bíblicas transcritas neste trabalho, exceto aquelas em citação direta de
autores, foram retiradas da Bíblia de Estudo NVI Nova Versão Internacional.
19
[...] a maior parte do alimento vendido nos armazéns primeiro tinha sido
oferecida em sacrifício. [...] Os sacerdotes costumeiramente vendiam o que
não podiam utilizar. Muitas vezes era muito difícil saber com certeza se a
comida de determinado armazém fizera parte de um sacrifício ou não.
(MORRIS, 1986, p. 99).
Ora, se até mesmo as carnes vendidas nos açougues e mercados públicos de
Corinto eram provenientes de algum ritual cúltico pagão, as possibilidades dos
cristãos não tomarem desse alimento oferecido eram bastante reduzidas, sem
contar as oportunidades de reunirem-se, tranquilamente, na casa de parentes e
amigos não crentes, para tomar de uma refeição.
Também vale mencionar que uma das raras ocasiões em que os pobres
podiam comer carne acontecia nas festas pagãs.
Sabemos por fontes contemporâneas que os pobres (os fracos) não tinham
condições de comer carne na vida diária. Eles dependiam das distribuições
públicas de carne, promovidas em ocasiões festivas e associadas a
celebrações religiosas pagãs. (HOEFELMANN 1990, p. 30).
Abster-se, completamente, do alimento sacrificado, além de quase
impossível, significava, para o cristão, expor-se ao ridículo e ao isolamento social,
além da perda, para os cristãos pobres, de um dos poucos benefícios que lhe eram
estendidos em uma sociedade desigual como a de Corinto. O alimento delimitava,
diretamente, os limites de mundo do cristão e, por conseguinte, a sua liberdade.
2.3 NA IGREJA DE CORINTO
Na Igreja de Corinto o problema do comer e do beber sacrificados aos ídolos
gira em torno do conhecimento (1Co 8,1-4) e constitui-se em uma disputa entre
fortes e fracos (1Co 8,9-11). Os fortes, aparentemente, são a minoria de pessoas
influentes que compõe a Igreja e os fracos a maioria de marginalizados.
Os fortes diziam que o ídolo não significava nada no mundo (1Co 8,4) e que a
comida sacrificada era aceitável. Os fracos, ainda habituados aos ídolos, tomavam
do alimento como se fosse um sacrifício idólatra e, por isso, eram contaminados
(1Co 8,7). Mas esta é apenas uma primeira análise do problema. Existem outros
interesses e influências a motivar essas posturas nos cristãos de Corinto.
Entre os que tomavam do alimento sacrificado, sob a escusa de consciência,
estavam, além dos fortes, os que desejavam tornar a ruptura com a sociedade pagã
tão indefinida quanto possível, fazendo uso da liberdade para a libertinagem, ávidos
20
por satisfazer seus desejos pelos templos e ruas da cidade. Entre os que
condenavam o alimento oferecido, por motivo de consciência, estavam, além dos
fracos, judeus-cristãos e os rigoristas que tentavam firmar e afirmar sua identidade
enquanto grupo religioso distinto dos demais, por meio das práticas ascéticas
impostas na Lei mosaica. Haviam ainda „fracos‟ fortes e „fortes‟ fracos, como
veremos no capítulo 3.
Para Kümmel (1982, p. 349), o elemento judeu-cristão estava representado
em Corinto e os textos de At 18,4 e 1Co 7,18 reforçam sua afirmação: “Todos os
sábados ele [Paulo] debatia na sinagoga, e convencia judeus e gregos.” (At 18,4);
“Foi alguém chamado sendo já circunciso? Não desfaça a sua circuncisão. Foi
alguém chamado sendo incircunciso? Não se circuncide.” (1Co 7,18).
Os rigoristas da comunidade de Corinto provavelmente eram gentios
convertidos ao judaísmo:
[...] os cristãos de Corinto eram, em sua maioria, pagãos devotos que se
ligavam à sinagoga insatisfeitos com a vida e a moralidade pagãs. Ao
mesmo tempo em que se sentiam atraídos pelo monoteísmo, repugnavam o
nacionalismo estreito dos judeus e, por isso, é possível que alguns tenham
dado calorosas boas vindas ao cristianismo. (MORRIS, 1986, p. 14).
Nessa linha, Prior (1993, p.150) observa que os rigoristas e os judeus-cristãos
da Igreja de Corinto argumentavam que o alimento sacrificado era manchado pela
idolatria, que os pagãos não davam o dízimo sobre ele e que provavelmente o
animal oferecido não teria sido morto de maneira adequada, por isso não era um
alimento aceitável.
Contudo, o radicalismo para qualquer um dos lados desse pêndulo
condenaria o cristianismo, em Corinto, à irrelevância, fosse pela parcimônia crítica
dos cristãos com os cultos pagãos e religiões de mistério, fosse cedendo ao
legalismo judaico. Estava em jogo a identidade desse novo movimento, o
cristianismo.
Uma outra possibilidade de leitura do problema em torno dos alimentos
sacrificados aos ídolos, na Igreja de Corinto, é aquela que enxerga no conflito entre
fortes e fracos um conflito entre os grupos sociais da cidade de Corinto. Os fortes
seriam uma minoria rica e influente da cidade e, os fracos, a maioria desfavorecida.
A idéia é que na Igreja de Corinto estariam representadas as classes sociais da
cidade de Corinto, sendo, assim, os conflitos da comunidade cristã poderiam ser o
espelho das estruturas sociais nela representadas. Os problemas da Igreja de
21
Corinto poderiam ser também problemas sociais e as divisões na Igreja de Corinto
refletiriam divisões da sociedade de Corinto.
Theissen (apud MALHERBE, 1983, p. 71), refletindo sobre a possibilidade dos
conflitos sociais estarem refletidos na Igreja de Corinto, afirma: “a igreja em Corinto
era caracterizada por uma estratificação social interna, responsável por muitas das
tensões em sua vida comunitária
3
.”
Os contornos que os alimentos sacrificados desenhavam na Igreja de Corinto,
no mundo dos deuses e no mundo dos homens, exigiam que o assunto fosse
encaminhado a alguém com autoridade para sobre eles conhecer e decidir e esta é
uma das indagações a que Paulo responde em sua carta.
Adiante, buscaremos evidenciar, a partir da análise do comer e do beber
sacrificados, que a intolerância, o ascetismo e o liberalismo religioso na comunidade
cristã de Corinto de meados de 55 d.C., são conseqüências da assimilação do
conhecimento e da liberdade cristã impressa no evangelho paulino e reflexos do
contexto sócio-cultural do Império Romano.
Os extremos na prática e na hermenêutica da comunidade de Corinto devem-
se aos desvios e distorções da mensagem do Crucificado, que liberta não para que
os cristãos se tornem escravos de tabus culturais, ou de si mesmos, muito menos
para que se tornem reféns de ocasiões, mas para possibilitar um olhar para dentro,
para cima e para os lados. As relações de poder entre os grupos da Igreja refletem,
a nível microestrutural, as macroestruturas sociais do Império Romano.
O comer e o beber sacrificados aos ídolos, em 1 Coríntios, de alguma forma,
criavam e sustentavam as estruturas de mundo que significavam a existência
humana. Eles falavam sobre as fronteiras de um kósmos (cultural) e dos limites de
nele ser. Questionar esse ato ritual (seus mitos e seus símbolos) era questionar a
vontade dos deuses. O problema do alimento oferecido, gira em torno do
conhecimento e da liberdade de ser em um universo sacralizado.
Durkheim (1996), ao trabalhar a questão dos mitos, ritos e símbolos religiosos
nos fornece parte do arcabouço conceitual necessário para investigar os significados
mais profundos dos ritos sacrificiais. Também ao dividir o mundo entre o sagrado e o
3
[…] the church in Corinth was characterized by an inner social stratification that was responsible for
much of tension in its communal life.”
22
profano, contribui em grande medida para que compreendamos as restrições e os
acessos do cristão de Corinto ao transitar entre as ocasiões e espaços da cidade.
Parte da discussão de Durkheim (1996) favoreceu o desenvolvimento do
conceito de Berger (1985) sobre a secularização, cujos germes nós pretendemos
encontrar no recorte textual deste trabalho. Também nos valeremos da dialética
social proposta por este autor na tentativa de acessar a exteriorização, a objetivação
e a interiorização da epísteme paulina pela comunidade cristã de Corinto.
Não deixaremos de lado a obra de Otto (2007) para nos lembrar a todo
instante de que o objeto de nosso estudo toca, todavia, um misterium tremendum,
majestas, e de que dele, portanto, nunca daremos conta, absolutamente.
E por fim, traremos à discussão as idéias de Eliade (2008), a fim de
percebermos que, apesar da lembrança de Otto (2007) quanto à amplíssima
extensão daquilo que atine à nossa pesquisa, o sagrado se manifesta no e através
do mundo natural, tomando emprestado termos da linguagem humana para ser
descrito e isto justamente pela incapacidade de se pintar de outra maneira o
„completamente outro‟ que se experimentou. O sagrado se manifesta no mundo
natural e este é o paradoxo da hierofania do alimento sacrificado aos ídolos.
23
3 UMA LEITURA SOCIOLÓGICA DO COMER E DO BEBER SACRIFICADOS
Pelo que podemos reconstruir da realidade da Corinto de 49 d.C., é possível
que os problemas de sua Igreja, em torno do comer e do beber sacrificados, sejam,
em boa parte, reflexos dos problemas de sua sociedade. Que grupos sociais
estariam, pois, então, representados naquela comunidade cristã? Quais as fontes
que podem atestar essa presença? Onde podemos ver o conflito entre classes
refletido no comer e beber sacrificados? São algumas das questões que
analisaremos neste capítulo na tentativa de comprovar esta relação sócio-
eclesiástica.
3.1 O PATRONATO NA CORINTO ROMANA
Para Horsley (2004) as relações sócio-hierarquicas do Império Romano estão
classicamente refletidas na sociedade de Corinto e, por sua vez, em sua
comunidade cristã. Por isso, diz que “é bem provável que o patronato venha a ser o
fundamento da compreensão dos vínculos relacionais da Igreja e de alguns dos
problemas que Paulo discutiu em 1 Coríntios”. (HORSLEY, 2004, p.129).
O patronato representa uma rede de relações entre o imperador, os
funcionários públicos romanos, os notáveis locais e as pessoas comuns. O patronato
caracteriza as estruturas de poder vigentes no Império Romano.
Esperava-se que o patrono oferecesse proteção e prestasse favores que
podiam não estar acessíveis por outros meios. Em troca, eles podiam
esperar poder, honra, apoio, e talvez mais benefícios. Assim, o imperador
estabelecia nas províncias seus funcionários leais, que lhe davam apoio e
serviam aos seus interesses. Os notáveis locais usavam a riqueza para
cuidar do povo comum, que votava neles para cargos de honra e privilégios
especiais. (HORSLEY, 2004, p. 129).
Essa troca de interesses que marca a vida política do Império acabava
repetida nas diversas associações organizadas na cidade de Corinto. Roma via com
suspeita essas associações civis, porque tinham potencial para estabelecer laços
24
entre seus membros mais fortes que os laços com o Império. O fundamento sobre o
qual eram construídas as relações no patronato romano era patriarcal. O patriarcado
“não define apenas as relações em nível do macrossistema, mas também e
principalmente a partir do microsistema, que se reflete nas relações da casa”.
(RICHTER REIMER, 2006, p.74). Para despistar os olhares de Roma, as pessoas
criavam associações com fins religiosos. Por isso, para Horsley (2004, p.15-16):
A missão e as comunidades de Paulo não teriam parecido tão
distintivamente religiosas a seus contemporâneos no Império Romano. O
termo que ele usa para o movimento como um todo, assim como para
comunidades particulares, ekklesia, era primordialmente político, o termo
para designar a „assembléia de cidadãos na polis (cidade-Estado).
Esse patriarcado é a macroestrutura, dentro da qual se organiza a vida, a
convivência e a resistência a partir de microestruturas como a casa, a comunidade,
a associação profissional. (RICHTER REIMER, 2006, p. 74).
Assumindo, prematuramente, a proposição de Horsley (2004) e de Richter
Reimer (2006) sobre o reflexo das estruturas modelares do Império na comunidade
cristã de Corinto, conquanto voltemos a discutir o assunto logo abaixo, o que, neste
momento, se torna particularmente interessante ao nosso objeto é que uma prática
comum nas reuniões das “assembléias” era a celebração de banquetes rituais. “É de
se presumir que sacrifícios e refeições constituíssem parte importante de suas
atividades.” (HORSLEY, 2004, p. 123).
Em homenagem ao deus padroeiro celebravam-se rituais de culto e
banquetes nas reuniões da assembléia. Horsley (2004, p. 124), a partir da análise de
uma sociedade de sepultamento de Corinto, afirma:
A estrutura de uma hierarquia patronal que tinha as divindades padroeiras
no topo, homens ricos e poderosos como patronos e líderes no meio e
membros comuns na base é revelada com mais nitidez numa inscrição de
Lanúvio, frequentemente citada, em que se registravam os estatutos de
uma sociedade de sepultamento. Com a aprovação do senado romano, a
sociedade foi fundada em nome das divindades Diana e Antínoo. Os
membros reuniam-se no templo de Antínoo em que foi encontrada a
inscrição em que se registravam os estatutos da sociedade. Em louvor às
divindades padroeiras, celebravam-se seus natalícios com um culto seguido
de banquete.
25
As estruturas das associações, tal qual as do Império Romano, eram
hierárquicas. “Havia as divindades, os patronos ou líderes e os membros [...] Essas
divindades podem ser comparadas a uma espécie de patrono divino. (HORSLEY,
2004, p. 123).
Na Igreja de Corinto, esse modelo estaria representado da seguinte forma:
divindade Deus Pai e Deus Filho; patronos a elite social (donos das casas que
abrigavam as reuniões); líderes Paulo, mas também, para alguns, Apolo e Pedro
(1Co 1,12) e membros os demais cristãos.
Se os apontamentos de Hosley (2004) estiverem corretos, a ekklesia de
Corinto repetia em sua organização as estruturas hierárquicas do patronato
Romano. Isso implica supor que os embates entre os grupos da Igreja podem refletir
os conflitos sociais de Corinto.
No que tange a comida oferecida aos deuses, as afirmações de Horsley
(2004) nos mostram um outro espaço em que elas estariam disponíveis aos
coríntios, as sociedades e as associações (civis e religiosas), além de fornecer uma
tipologia interessante para análise:
A distribuição dos lugares contava a mesma história. O lugar de honra ou a
terceira posição na mesa do meio, às vezes próximo do anfitrião, era
reservado ao principal convidado. Os clientes comuns teriam
compreensivelmente de ocupar lugares menos honrados, o mesmo
ocorrendo com os libertos. Os escravos e os pobres tinham simplesmente
de jantar sobre um tapete ou encostados na parede. (HORSLEY, 2004, p.
127).
3.2 ALGUNS PERSONAGENS DE 1 CORÍNTIOS
Caminhando, então, com outros autores, para a identificação dos grupos
representados na ekklesia de Corinto, Morris (1986, p.14) nos dá uma primeira
idéia dos estamentos sociais representados na Igreja.
Gaio é mencionado em Rm 16.23 (carta quase certamente escrita de
Corinto) como meu hospedeiro e de toda a igreja”. O mesmo versículo se
refere a Erasto como “tesoureiro da cidade”. Se Cloe era conversa coríntia,
ela foi uma mulher rica, dona de escravos e com interesses em Corinto e
em Éfeso. As referencias de Paulo a alguns envolvidos em litígios e
26
freqüentadores de banquetes particulares apontam para libertos, e homens
de recursos. Mas, a despeito destes exemplos, o maior volume dos crentes
era proveniente das camadas sociais inferiores, como 1 Co 1.26 salienta.
Murphy (2000, p. 284) seguindo a posição de Theissen (1982, p. 92-94),
também identifica Cloé como uma mulher rica, dona de escravos: Uma rica
comerciante de Éfeso, Cloé, enviou alguns de seus empregados a Corinto [...]
Hoefelmann (1990, p. 28), analisando os personagens mencionados em 1
Coríntios a partir de fontes externas, pinta o seguinte quadro de seus membros:
Aquila e Priscila (At 18.2-3; 18.26; Rm 16.3-5; 1 Co 16.19): Possuem um
pequeno negócio de artesania; abrigam uma comunidade em sua casa,
viajam entre Roma, Corinto e Éfeso; ajudam o apóstolo.
Crispo (At 18.8; 1 Co 1.14): Chefe da sinagoga, cargo confiado geralmente
a homens ricos, que além de chefe da liturgia era tamm responsável
pela manutenção do edifício da sinagoga; sua conversão ao cristianismo
impressiona a outros.
Erasto (Rm 16.23): Administrador de finanças da cidade; mais tarde, se
pudermos confiar numa inscrição arqueológica, foi eleito edil da cidade, ou
seja, funcionário público encarregado da inspeção e conservação de
edifícios públicos. Pode ter sido um dos “poderosos”da comunidade, já que
o cargo exigia plena cidadania romana.
Estéfanas (1 Co 1.16; 16.15-17): Preside uma casa; realiza serviços para a
comunidade e para Paulo; viaja a Éfeso, onde está Paulo.
Febe (Rm 16.1-2): Realiza serviços para a comunidade e para Paulo; viaja
para Roma.
Gaio (Rm 16.23; 1 Co 1.14): Sua casa está à disposição de Paulo e de toda
a comunidade. Nela Paulo escreve sua carta aos Romanos.
Sóstenes (At 18.17; 1 Co 1.1): Também um antigo dirigente da sinagoga e
posteriormente convertido ao cristianismo (?) Realiza viagens com Paulo.
Tércio (Rm 16.22): Escreve a Carta aos Romanos ditada por Paulo. Pode
ter sido um escrevente empregado da administração provincial do Estado.
Tício Justo (At 18.7): Oferece sua casa para a missão paulina e
provavelmente também para hospedar Paulo.
Para ele, a maior parte dos coríntios mencionados nominalmente nas cartas
desfruta provavelmente de uma posição social elevada. O que parece não condizer
com a sua representatividade na Igreja, que esta era em sua grande maioria
constituída pelas classes sociais inferiores. (HOEFELMANN, 1990, p. 28).
Também para Malherbe (1983, p. 72) “a estratificação social da Igreja se
torna clara, quando examinamos o que é dito sobre seus membros em relação às
suas posições ou ocupações, suas famílias, os serviços que eles prestavam para a
igreja e às suas viagens
4
.”
4
“the social stratification of the church becomes clear when one examines what is said about its
individual members with respect to their position or occupations, their households, the services they
provided for the church, and their travels.”
27
Faremos nossas, neste trabalho, essas primeiras conclusões sobre o status
econômico dos personagens supracitados de 1 Coríntios. É preciso sopesar,
entretanto, que as condições para viajar não estavam restritas aos ricos e, por si só,
não caracterizam, necessariamente, o status econômico dos coríntios. Mas é bem
provável, tendo em vista as outras evidências, que as razões daqueles viajantes
mencionados na Carta aos coríntios fossem comerciais. (MALHERBE, 1983, p. 75).
Nesse sentido, Theissen (apud MALHERBE, 1983, p. 75) conclui:
[…] a maioria das pessoas nomeadas [em Corinto] são comparativamente
de alto status social. Eles, naturalmente, poderiam exercer influência na
congregação e estariam aptos, pela sua facilidade de locomoção a manter
contato com Paulo. Os mais ativos e importantes membros da igreja,
provavelmente, pertenciam à categoria dos sábios, poderosos e de nobre
nascimento
5
.
Um contra ponto ao nosso posicionamento é aquele assumido por Ivoni
Richter Reimer (2003, p. 1079-1092), que contesta os critérios comumente utilizados
na aferição do status econômico dos homens e mulheres mencionados em textos
neotestamentários. Ela propõe que lancemos um novo olhar, por exemplo, sobre Rm
16,1-16, texto onde 29 cooperadores de Paulo são mencionados nominalmente,
entre eles mulheres como Febe e Priscila, junto com Áquila, as quais, certamente,
estavam ligadas a Igreja de Corinto. Fundamentando-se na história e memória da
obra missionária impressa neste texto paulino, depois de analisar e qualificar os
ministérios eclesiais exercidos por cada indivíduo, ela destaca que “a maioria desses
agentes ministeriais era gente empobrecida, escrava ou liberta, que, tendo
vivenciado a graça da aceitação incondicional como pessoas portadoras de
dignidade humana intrínseca e doada por Deus, passa a exercer seu ministério a
partir do compromisso e da gratuidade do amor”. (RICHTER REIMER, 2003, p.1089
grifo nosso).
5
[...] most of people named [in Corinth] are of comparatively high social status. They would naturally
exert influence in the congregation and would be enabled by their mobility to keep up communication
with Paul. The most active and important members of the congregation most probably belonged to the
categories of the wise, the powerful, and the nobly born.
28
3.3 O ENDEREÇO DA IGREJA EM CORINTO
Outro indício da composição social da comunidade de Corinto é o local de
suas reuniões que, para H.C. Kee (1987, p. 74), seria um “pequeno armazém na rua
principal que desce para o porto, vindo do centro da cidade [...]”
Lazier (1991, p. 61) também aponta como local provável para as reuniões dos
cristãos de Corinto uma pequena loja, no centro da cidade, onde foi encontrada uma
inscrição colocada acima da porta na Rua do Lequeu, além de mencionar o
testemunho de Atos nesse sentido.
Podemos reconstruir parcialmente, com ajuda de descobertas e pesquisas
arqueológicas de escavações feitas, que os espaços de reunião das comunidades
judaico-cristãs no tempo de Paulo eram pequenos e consistiam geralmente em
aproveitamento de espaços dostico-comerciais. Assim, temos notícias de que, em
Roma e em outras cidades importantes do Império, pessoas cristãs que exerciam
profissões manufatureiras e comerciais tinham sua „casa‟ no mesmo local de
trabalho; este consistia de pequenas construções, muitas vezes alugadas, que
perfaziam um espaço dio em torno de 30 metros quadrados. Esses espaços,
além de servirem como lugar de venda dos produtos manufaturados, eram
igualmente a casa e simultaneamente serviam de local para as reuniões, os cultos
das igrejas que se reuniam nas casas (katá tu óiku eklesiai) (LAMPE, 1987, p. 10-52;
RICHTER REIMER, 1995, p. 199-208). Uma das conseqüências que podemos
extrair dessas informações é que as igrejas constituíam grupos de mulheres,
crianças e homens bastante pequenos.
Do que vimos até aqui, podemos concluir que a Igreja de Corinto era, em sua
grande maioria, constituída por pessoas pobres, mas que também havia um
pequeno grupo de ricos entre a sua membresia. Os interlocutores de Paulo em 1
Coríntios, provavelmente, fazem parte desse seleto grupo, haja vista a „facilidade‟
que a disponibilidade de recursos propiciava à comunicação.
29
3.4 A ELITE E A RALÉ EM 1CO 1,16-29
Conhecendo um pouco mais a realidade dos grupos representados na
comunidade cristã de Corinto, Hoefelmann (1990, p. 26) propõe que os conflitos da
Igreja sejam observados a partir das estruturas sociais da cidade.
Analisando 1Co 1,26-29, ele apresenta o seguinte quadro:
“Vede a vossa vocação, irmãos:
Não há (entre vós)
Muitos sábios segundo a
carne,
nem muitos poderosos
nem muito de nobre
nascimento;
mas as coisas loucas do
mundo escolheu Deus
e as coisas fracas do
mundo escolheu Deus
e as coisas ignóbeis
do mundo,
e as coisas que têm sido
desprezadas escolheu Deus,
as coisas que não são
para envergonhar os
sábios
para envergonhar as
coisas fortes
para reduzir a nada as
que são;
para que toda carne não se vanglorie diante de Deus”
Sendo assim, para Hoefelmann (1990, p.27), os sábios são as pessoas que
pertencem aos rculos mais cultos e instruídos da população. Os poderosos
designam pessoas que, com base em seus recursos financeiros, possuem status
social elevado e influência política. Os nobres de nascimento não representam
necessariamente pessoas de status econômico, uma vez que o termo se refere
especificamente à ascendência distinta e à alta reputação.
A cada uma dessas categorias correspondem segmentos marginalizados da
população. Aos sábios segundo a carne correspondem as coisas loucas do mundo;
aos poderosos correspondem as coisas fracas do mundo; e aos de nobre
nascimento corresponde uma tríplice caracterização: as coisas ignóbeis do mundo,
as que têm sido desprezadas e as que não são.
Enquanto antes se referia aos membros da classe alta na forma do
masculino, chama a atenção que Paulo se refere aos marginalizados na
forma do neutro. É provável que esse recurso estilístico tenha sido usado
para assim expressar o desprezo de que eram objeto. A eles se nega as
categorias da personalidade. Ao qualificá-los como “os que não são”, o
apóstolo escolhe uma das expressões mais desprezíveis em grego, que
ser era tudo. (HOEFELMANN, 1990, p. 27). (Grifo nosso).
30
Para Hoefelmann (1990, p. 28), se tomarmos por base as informações sobre
os cargos mencionados no livro de Atos e nas cartas de Paulo, a posse de casas e
escravos, serviços prestados à comunidade e viagens como critério de verificação
de status, chegaremos à conclusão de que a maior parte dos coríntios mencionados
nominalmente nas cartas desfruta de uma posição social elevada, ou seja, estão
entre os poucos sábios, poderosos e de nobre nascimento da comunidade. Esses
seriam os interlocutores de Paulo (p.31 e 32) na carta.
Também assumindo a perspectiva de que os conflitos sociais de Corinto se
externam na composição da Igreja, Lazier (1991, p. 60-61) dedica-se a uma leitura
semiótica de 1Co 1,16-29 em busca dos indícios da estratificação social.
A ... Não há entre vós muitos sábios segundo a carne,
B nem muitos poderosos,
C nem muitos de família prestigiosa.
A1 Mas o que é loucura no mundo,
A Deus escolheu para confundir os sábios;
B1 o que é fraqueza no mundo,
B Deus o escolheu para confundir o que é forte;
C1 e o que no mundo é vil e desprezado, o que não é,
C Deus o escolheu para reduzir a nada o que é ...
E conclui, dizendo que através da leitura semiótica deste texto observamos
que Paulo relaciona dois grupos distintos: sábios, poderosos e nobres e, do outro
lado, loucos, fracos e desprezíveis (LAZIER, 1991, p. 61). Ele julga isso suficiente
para afirmar que restam claras as contradições, onde a minoria rica de Corinto era
dominante sobre a maioria, formada por escravos, libertos, proletários etc.
Richard (1995, p. 93), porém, vai um pouco mais longe e insinua que, talvez,
seja isso mesmo o que Paulo propõe em 1Co 1,26 ao convidar:
Irmãos, pensem no que eram quando foram chamados [...] Nesse pequeno
trecho o que nos chama a atenção é a repetição da expressão grega ou
polloi literalmente, não muitos ou poucos‟. , portanto, de acordo com
1,27-28, na Igreja uma minoria contraposta a uma maioria nos vs 27 e 28.
(Richard 1995, p. 93).
Para Richard (1995, p. 93), portanto, as categorias usadas pelo apóstolo
também se correspondem perfeitamente no seguinte esquema:
Minoria
Sábios segundo a carne
poderosos
nobres
o que é
Maioria
31
o estulto no mundo
o fraco no mundo
o vil e desprezível no mundo
o que não é
A primeira categoria é cultural (sábio-estulto), a segunda é política (poderoso-
fraco), a terceira é social (nobre-plebeu). A última categoria (que resume as
anteriores) é o que hoje chamaríamos de excluídos-incluídos, os que não contam,
contrapostos aos que são levados em conta.
Ao tomar o texto de 1Co 4,8-13 em conexão com o de 1Co 1,26-28, Richard
(1995) afirma que o apóstolo se identifica com a maioria desfavorecida da
comunidade e propõe que os termos utilizados devem ser tomados em toda sua
realidade econômica, social, política e religiosa, para concluir:
[...] em geral poderíamos dizer que todos os problemas internos da
comunidade de Corinto são devidos à conduta dessa minoria rica presente
na comunidade e ao seu intento de abrandar a pastoral e a teologia de
Paulo que encarna a opção de Deus pela maioria pobre da própria
comunidade. Esta minoria são os oponentes internos de Paulo. O apóstolo
vai enfrentar um a um todos os problemas suscitados por estes oponentes.
(RICHARD, 1995, p. 95). (Grifo nosso).
Antes dele, Lazier (1991) também caminhou nessa direção ao afirmar que por
ter exercido sua profissão de artesão em Corinto (At 18,3) Paulo freqüentou espaços
como lojas, mercados e portos, nos quais a classe baixa podia ser encontrada com
certeza. Isso, na sua opinião, fez com que o apóstolo tivesse se identificado com os
grupos marginalizados da cidade, tornando-se “a voz dos explorados e
marginalizados, defendendo seus direitos dentro da comunidade cristã”. (LAZIER,
1991, p. 62).
Para Hoelfelmann (1990, p. 32), a identificação de Paulo com os
empobrecidos é descrita de forma admirável em 1Co 9,19-22 já que:
[...] mesmo sendo livre, um cidadão romano com plenos direitos, ele se fez
escravo para alcançar o maior número deles. Fez-se fraco com os fracos
para integrá-los à causa do evangelho. Identificou-se com a realidade de
judeus e gentios a fim de ganhá-los para o evangelho. Significativamente
ele não diz que se fez forte com os fortes, pois não quer identificar-se com
sua realidade injusta e causadora de tantos males. [...] em outras palavras,
ele fez sua opção e quer ser contado entre a ralé descrita em 1 Co. 26-29.
(Grifo nosso).
Contudo, essas últimas afirmações de que todos os problemas internos da
comunidade de Corinto podem ser atribuídos à minoria de ricos, sábios e poderosos
32
serão questionadas no decorrer deste capítulo. Problemas como o das querelas
judiciais entre irmãos e o da Ceia do Senhor, mencionados respectivamente em 1Co
6,1-11 e 11,17-24, certamente podem ser atribuídos à responsabilidade dos ricos,
que eles fazem supor a disponibilidade de recursos financeiros. Por outro lado, o
problema da imoralidade na Igreja, 1Co 5 e 6, parece atingir a ricos e pobres, porque
é um problema da cidade de Corinto que, como pouco dissemos, mantinha, nos
templos de Afrodite e Apolo, prostitutas e prostitutos sagrados à disposição daqueles
que quisessem cultuar o prazer e a beleza. O que dizer, também, da disputa em
torno da licitude dos alimentos oferecidos aos deuses (1Co 8 e 10)? Seria este um
problema a atingir apenas os abastados?
Na Igreja e na cidade de Corinto, dois grupos estão sim contrapostos. De um
lado encontra-se a elite, composta por uma minoria de nobres, sábios e poderosos
e, de outro lado, a ralé, aparentemente, a maioria composta de escravos, estultos e
marginalizados. Para a nossa questão em torno do comer e do beber sacrificados
aos ídolos, se demonstrará muito relevante essa percepção. Contudo, não devemos
nos apressar em julgamentos precipitados e generalizantes. É possível que os
grupos não sejam tão homogêneos e que os seus papéis não estejam tão definidos
quanto parecem.
3.5 JUDEUS E GENTIOS, ESCRAVOS E LIVRES, HOMENS E MULHERES EM
1CO 7,17-24
A estratificação social em Corinto ainda pode ser observada, segundo Lazier
(1991, p. 61), em textos como o de 1Co 7,17-24 que contrapõe judeus e gentios,
escravos e livres aos quais Paulo insta que permaneçam na condição em que foram
chamados.
A Cada um viva como o Senhor designou e na condição em que Deus
chamou. Isto determino em todas as Igrejas.
B1 Alguém foi chamado circuncidado? Não desfaça a circuncisão.
Alguém foi chamado na incircuncisão? Não se circuncide. A circuncisão
nada é, e a incircuncisão nada é, mas sim a observância dos mandamentos
de Deus.
A Cada um permaneça na posição em que foi chamado.
33
B2 Escravo, quando chamado? Não te preocupes. Pelo contrário, ainda
que tivesses força para tornar-te livre, é melhor que aproveites (a condição).
A Pois o escravo, quando chamado no Senhor, liberto do Senhor é. Da
mesma forma, o liberto, quando chamado, escravo do Senhor é. Alguém
vos resgatou; não vos torneis escravos dos homens.
A Irmãos, cada um permaneça na posição em que foi chamado.
O conflito está precisamente na tensão entre livres e escravos, que os
escravos representavam um grande número dentro da comunidade cristã. (LAZIER,
1991, p. 62). Nesse sentido, Hoefelmann (1990, p. 25) havia cogitado que um
terço da população de Corinto era de homens livres e libertos, enquanto os demais
eram escravos.
Por meio desses recortes é possível ver, mais uma vez, os conflitos da
comunidade cristã a partir das tensões sociais de Corinto, que a Igreja, como a
cidade, também era constituída em sua grande maioria por escravos. Sendo certo
que ela não podia permanecer inerte, repetindo ou assentido que o modelo de
exploração vigente na urbe continuasse se perpetrando dentro de si mesma.
Intrigante, no entanto, é o conselho de Paulo àqueles cristãos diante da
realidade social discriminadora entre escravos e livres: Pelo contrário, ainda que
tivesses força para tornar-te livre, é melhor que aproveites (a condição). (1Co 7,21).
A condição de escravo?
O vs 24 também suscita algum questionamento. Irmãos, cada um permaneça
na posição em que foi chamado. (1Co 7,24). Estaria Paulo advogando a
manutenção do status quo social do Império?
Para Elisabeth Schüssler Fiorenza (apud HORSLEY, 2004), a passagem,
complexa, ainda traz à discussão uma categoria implícita. Já que quando aqui, em
1Co 7,17-24, Paulo fala do chamado do cristão a judeus e gentios, escravos e livres,
ele, certamente, tem em mente a „fórmula batismal‟ de Gl 3,28. E, portanto, no
contexto maior da discussão, além de contrapostas categorias sócio-culturais,
estariam contrapostas também categorias de gênero. Até mesmo, porque essas
questões exsurgem, no texto, da tratativa de assuntos relacionados aos sexos.
A introdução a 1 Coríntios 7 afirma claramente que Paulo responde ali a
questões acerca das quais recebera cartas de cristãos. Embora todos os
34
problemas levantados pareçam se referir de alguma maneira ao casamento
e à relação entre os sexos, Paulo também menciona, em 7, 17-24, a
questão de praticar ou não a circuncisão e a questão da relação entre
escravo e livre. Como ele fala igualmente nessa parte do chamado cristão
por Deus, Paulo estava sem vida considerando a fórmula batismal ao
elaborar o fundamento teológico geral de seus conselhos no capítulo 7. Sua
referência ao assunto da circuncisão indica, em particular, que ele tinha em
mente os três pares judeu/gentio, escravo/livre e macho/fêmea -, dado
que falar de circuncisão é algo que não se enquadra bem ao tom geral do
capítulo como um todo, ou seja, não é a situação social em que a pessoa se
acha como cristã que determina a posição que se ocupa nessa qualidade,
mas antes o viver segundo a vontade de Deus. Os exegetas lêem
erroneamente o conselho de Paulo aos cristãos judeus ou gentios quando
alegam que Paulo pretende dizer aqui que eles devem permanecer no
estado social e no papel religioso que tinham ao ouvir o chamado à
conversão. Paulo não aconselha o ex-judeu ou ex-gentio a permanecer em
seu estado judaico ou pagão anterior, insistindo em vez disso, que o sinal
religioso/biológico de iniciação na religião judaica já não tem relevância para
os cristãos. (FIORENZA, apud HORSLEY, 2004, p. 217).
De acordo com essa linha de argumentação, uma nova possibilidade de
ser‟ na comunidade cristã. Ela foi inaugurada no chamado indiscriminado de Deus à
conversão. Não houve predileção étnica, financeira, intelectual ou biológica. As
questões sociais, culturais e de gênero, na ekklesia, não são discriminativas. Nesse
sentido, Fiorenza, citando Betz (apud HORSLEY, 2004, p. 222), afirma: “Como
resultado, a eleutheria (liberdade) é o conceito teológico central que resume a
situação cristã tanto diante de Deus como neste mundo.”
Quanto à situação dos escravos depois da conversão ao cristianismo,
Fiorenza (apud HORSLEY, 2004, p. 227) defende que o conselho de Paulo incita a
procura da liberdade. Alega, para tanto, que “Alguém pagou alto preço pelo resgate
de vocês. Portanto, não se tornem escravos humanos” (1Co 7,23) proíbe uma
interpretação em sentido contrário, mas não vê impossibilidade para o ser cristão
como escravo, caso inatingível a liberdade.
Analisando a perícope supracitada, Brakemeier (2008, p. 97) também chama
atenção à interpretação controvertida de 1Co 7,21b. “Que deve ser aproveitado
(mallon chrêsai)? O estado de escravo ou a possibilidade de se tornar livre?” E,
apesar de percorrer caminhos diferentes para a formulação de sua hipótese,
também conclui que o apóstolo, em 1Co 7, tem em mente as categorias de Gl 3,28:
A pesquisa recente inclina-se majoritariamente a esta última versão. Para
tanto faz valer argumentos de gramática e de contexto. O imperativo do
aoristo usado por Paulo remete a uma oportunidade de mudança, não de
permanência. Além disso, se a indissolubilidade do matrimônio não deve ser
35
encarada como lei inexorável à revelia de situações específicas, algo
análogo valerá também com relação à condição de escravo. [...] a lógica é a
mesma de Gl 3.28, onde o apóstolo diz não haver em Cristo nem judeu nem
grego, nem escravo, nem escravo nem liberto, nem homem nem mulher.
(BRAKEMEIER, 2008, p. 97-98).
Para Brakemeier (2008, p. 98), Paulo reafirma a igualdade entre os seres
humanos independentemente de condições culturais, sociais ou de gênero, o que
tem fortes implicações sociológicas já que este é um pressuposto indispensável
para a superação das desigualdades sociais. O autor conclui:
Resumindo, constatamos: vocação cristã respeita particularidades culturais,
embora não mais possa atribuir-lhes potencial salvífico. Essa é a
condição para o verdadeiro ecumenismo intercultural, gestos de comunhão
além das fronteiras étnicas. (BRAKEMEIER, 2008, p. 97).
Percebemos, então, que a preocupação central de Paulo em 1Co 7,17-24 é a
de ver interrompido o modelo de dominação romano na Igreja. Paulo tem em mente
um problema da ekklesia a realidade discriminatória e sectarista dos grupos
sociais, mas nota que suas raízes estão fincadas na realidade cultural da cidade.
Portanto, precisa primeiro trabalhar na desconstrução de suas categorias, para
depois construir a nova possibilidade de ser, no Cristo. Paulo não ignora o meio e
nem a ordem na qual a comunidade está inserida, por isso, para ele, a
transformação dessa macroestrutura social seria possível, naquele momento, na
microestrutura, representada pela Igreja.
[...] a transformação da mente (Rm 12.1s) inerente à em Jesus Cristo
afeta inevitavelmente as macroestruturas sociais, do que dão testemunho
os escândalos provocados pela novel comunidade cristã, bem como as
perseguições de que se tornou alvo. (BRAKEMEIER, 2008, p. 98).
É esta a percepção cristológico-eclesial na comunidade não escravos ou
livres, pois “[...] o escravo, quando chamado no Senhor, liberto do Senhor é. Da
mesma forma, o liberto, quando chamado, escravo do Senhor é” (1Co 7,22). A partir
disso, eles perceberiam, na mensagem do Crucificado, a possibilidade de
transformação de sua realidade. O fundamento para tal é que todos, escravos e
livres, judeus e gentios, homens e mulheres, da mesma forma, foram eleitos e
chamados no Senhor e estão na mesma situação diante dele. A liberdade cristã está
na igualdade que a comunidade deve oferecer a seus membros. Esta é uma questão
36
que será retomada nos itens 5 e 6 deste trabalho, quanto tratarmos dos paralelos
entre o comer e beber sacrificados e a cidadania.
3.6 SÁBIOS E ILETRADOS EM 1CO 8,1-13
Até aqui as perícopes analisadas tiveram o objetivo de evidenciar as
estruturas sociais subjacentes ao texto de 1 Coríntios. Agora que elas vieram à
superfície, podemos, com alguma segurança, conhecer seus principais atores e vê-
los interagir em torno de nosso objeto o comer e o beber sacrificados.
dois grupos envolvidos nas discussões da Carta: a elite e a ralé.
Contudo, como vimos no item acima, esses grupos não são tão homogêneos; entre
a elite estão os ricos, os sábios e os nobres e, entre a ralé estão os pobres, os
iletrados e os que nada são. Nos dois grupos ainda judeus e gentios, homens e
mulheres, escravos e livres.
A cada instante, a Carta se volta às questões que tocam a um desses
subgrupos. Foi assim em 1Co 7,17-24 e é assim, também, em 8,1-13 entre fortes e
fracos. Em cada um desses embates todo o grupo está representado, mas a análise
dos verbetes utilizados nos permite identificar mais precisamente quais deles estão
na linha de frente, em cada recorte.
No capítulo 8 de 1 Coríntios, a palavra grega gnosis conhecimento e suas
variantes aparecem 11 vezes, nos seus 13 versículos. nos 4 primeiros versículos
são 8 ocorrências da expressão. A palavra grega asthenes fracoaparece 5 vezes
do versículo 7-12. Em 3, das 5 ocorrências, a palavra está diretamente associada a
outra palavra significativa syneidesin consciência, referindo-se a irmãos de
“consciência fraca”.
Durante seu discurso, Paulo „divide‟ a comunidade entre os que m e os que
não m conhecimento, gnosis. O conhecimento está ligado à licitude/ilicitude do
“comer das coisas sacrificadas aos ídolos” (1Co 8,4). Um grupo sustenta a
insignificância dos ídolos e, portanto a amoralidade de tomar do alimento que lhes
fora oferecido; esses são os fortes. Aos ainda habituados aos deuses pagãos, Paulo
37
chama “fracos”, asthenes. É relevante que a palavra consciência, syneidesin,
esteja relacionada a palavra fracos, asthenes, o que parece indicar para seguinte
compreensão: são fracos por causa de sua consciência suscetível aos ídolos.
A exegese do texto nos permite duas afirmações: primeiro, em 1Co 8,1-13, o
problema em torno do comer e do beber sacrificados é de conhecimento, segundo,
mais do que dizer que os fortes representam a elite e os fracos a ralé, pelo menos
em linhas gerais, fortes e fracos são, aqui, os sábios e os iletrados mencionados em
1Co 1,26-27.
Entrementes, o problema a respeito da carne sacrificada aos ídolos também
confronta heranças culturais. Entre fortes e fracos, sábios e iletrados estão judeus e
gentios. Trata-se de judeus-cristãos que ainda estão fortemente ligados à lei
dietética de Moisés. Gentios ainda habituados aos ídolos e aos seus ritos sacrificiais
e, rigoristas gentios conversos ao judaísmo e posteriormente prosélitos ao
cristianismo. Vale a pena uma releitura do item 2.3 deste trabalho.
Temos, portanto, alguns elementos centrais a considerar na análise:
Constatamos, então, que a questão do ta eidolothuta possuía dois aspectos:
1) Participar ou não da festa em homenagem a ídolos? 2) Comer ou não a
carne de origem duvidosa comprada nos açougues? A situação
inevitavelmente se agravava em virtude das estritas leis dietéticas dos
judeus e dos numerosos rigoristas pertencentes à igreja de Corinto.
(PRIOR, 1985, p. 150).
Sábios e iletrados tomam a frente neste confronto em torno da carne
oferecida aos ídolos, mas note-se que qualquer tentativa de restrição dos “fortes” à
elite ou, aos gentios e dos “fracos” à ralé ou, aos judeus é simplista e não contempla
o problema como um todo. Por isso, Theissen (apud MALHERBE 1983, p. 78)
“rejeita as tentativas de identificar os fracos como sendo os judeus ou, os gentios.
Ele afirma que o próprio Paulo enxergou o problema como algo mais amplo e que os
fatores sócio-econômicos nos permitem entender melhor a situação
6
.
6
“rejects attempts to identify the weak Christians as either Jews or Gentiles. He claims that Paul
himself saw the problem as a general one and that socioeconomic factors enable us to understand the
situation”.
38
que se conciliar, pois, múltiplos interesses nesse recorte. Propomos o
seguinte esquema para o estudo de 1Co 8:
“A”
8,1a.4-6 - o conhecimento
8,7 - os fracos
8,8 - conclusão lógica sobre a comida sacrificada
________
“B”
8,2.9-11 - contrasta a conclusão lógica do conhecimento à sua conseqüência natural, a liberdade.
________
“C”
8,3.12 - conhecer x ser conhecido
________
“D”
8,13 - conseqüência de ser conhecido
8,1b - conseqüência de conhecer
Paulo inicia suas considerações sobre o assunto utilizando palavras dos
próprios coríntios: Com respeito aos alimentos sacrificados aos ídolos, sabemos
que todos temos conhecimento.” (1Co 8,1a - grifo nosso). Inicialmente parece que
ele adere a esses argumentos. Contudo, a que conhecimento o apóstolo se refere
em 1Co 8,1?
Novamente utilizando aquilo que parecem citações dos próprios coríntios,
Paulo esclarece: Portanto, em relação ao alimento sacrificado aos ídolos, sabemos
que o ídolo não significa nada no mundo e que existe um Deus”. (1Co 8,4 - grifo
nosso) . E, nessa linha, continua sua exposição até 8,6.
Bruce (2009, p. 1892-93), comentando a introdução de Paulo à problemática
de 1Co 8, assim observa: v.1. todos temos conhecimento‟, possivelmente uma
afirmação da própria carta deles [...] v. 4. „sabemos‟, parece introduzir mais citações
das perguntas dos coríntios. [...] Paulo aceita as afirmações deles: „o ídolo não
significa nada‟ e „só existe um Deus‟, mas reserva o seu tratamento das implicações
subjacentes da idolatria para 10, 14-22.”
Por isso, meus amados irmãos, fujam da idolatria. Estou falando a pessoas
sensatas; julguem vocês mesmos o que estou dizendo. o é verdade que
o cálice da bênção que abençoamos é uma participação no sangue de
Cristo, e que o pão que partimos é uma participação no corpo de Cristo?
Como somente um pão, nós, que somos muitos, somos um corpo,
pois todos participamos de um único pão. Considerem o povo de Israel: os
que comem dos sacrifícios não participam do altar? Portanto, que estou
querendo dizer? Será que o sacrifício oferecido a um ídolo é alguma coisa?
Não! Quero dizer que o que os pagãos sacrificam é oferecido aos demônios
e não a Deus, e o quero que vocês tenham comunhão com demônios.
Vocês não podem beber do cálice do Senhor e do lice dos demônios.
39
Porventura provocaremos o ciúme do Senhor? Somos mais fortes do que
ele? (1Co 10,14-22).
No verso 8, depois de um breve parêntesis (v.7) para tratar do problema dos
fracos, Paulo retoma sua exposição sobre o conhecimento cristão e conclui a lógica
de seu raciocínio: “A comida, porém, não nos torna aceitáveis diante de Deus; não
seremos piores se comermos, nem melhores se comermos.” (1Co 8,8).
O alimento é moralmente neutro (1Co 8,8) e, assim, os cristãos podem
consumir o que quer que encontrem no mercado de carnes (1Co 10,25) e o quer que
se lhes ofereça nas casas dos não-crentes (1Co 10,27). Isso, porém, é verdade
somente em teoria, e a natureza da comunidade cristã exige que se leve em conta
outro fator antes dessa teoria poder ser legitimamente transferida para a prática
(1Co 8,9-11). (MURPHY O‟CONNOR, 1994, p. 216).
A partir de então, nos vs. 9-11, o apóstolo retoma o argumento do v.2: “Quem
pensa conhecer alguma coisa, ainda não conhece como deveria”, para contrastar
com aquilo que seria a conseqüência natural do conhecimento exposto em A: a
liberdade. “Contudo tenham cuidado para que o exercício da liberdade de vocês não
se torne uma pedra de tropeço para os fracos.” (1Co 8,9 ). E assim continua até
8,11.
A essa altura, dois pontos merecem destaque: o conhecimento do Deus único
e de seu Filho Jesus, de quem vem todas as coisas (1Co 8,6), não estava
solidamente assentado nos fracos (1Co 8,7) e não era suficiente para que os fortes
percebessem sua responsabilidade para com a comunidade (1Co 8, 9-11).
O homem „fraco‟ nesta discussão é o irmão hipersensível a tais assuntos;
ele é um cristão superlegalista e rigorista, cuja tendência é evitar tudo o que
seja duvidoso, para não prejudicar seu relacionamento com Deus. Paulo
expressa claramente o desejo de que essa pessoa „fraca‟ cresça, tornando-
se „forte‟. Mas, nem por isso, tenta persuadi-la a assumir tal posição. A
carga recai sobre o homem „forte‟, liberto de convenções humanas e
preconceitos: „você deve limitar sua própria liberdade voluntariamente.‟
Assim, o forte é que deve reajustar-se para ajudar o fraco, e não o contrário.
(PRIOR, 1985, p. 157).
Hoefelmann (1990, p. 30) lembra que era compreensível que os fracos
(pobres) sentissem maior dificuldade em tomar do alimento oferecido, que eram
eles os grandes beneficiados com as distribuições públicas de carne dos templos.
40
Os ricos, ao contrário, podiam adquirir carne por outros meios e, portanto, não a
associavam, automaticamente, aos sacrifícios idolatras.
Para a compreensão dessas relações e condições, Brakemeier (2008, p. 107)
esclarece:
No mundo gentílico, o abate de animais costumava acontecer em forma de
ritual religioso. Quer oferecida numa refeição cultual no templo pagão, quer
vendida nos mercados, a carne havia sido consagrada a divindades,
consideradas ídolos tanto pela comunidade judaica quanto cristã. Comer tal
carne poderia significar infração do primeiro mandamento. É verdade que se
vendia também carne não-imolada, mas a procedência nem sempre era
garantida, de modo que permanecia a dúvida, particularmente em caso de
convites por parte de parente e amigos para celebrações nos lares em que
carne fazia parte do cardápio. O problema era mais grave para os pobres.
Sem recursos para a compra, tinham chances do consumo de carne
somente nas distribuições gratuitas que aconteciam por ocasião de festas
religiosas. E essa carne era seguramente contaminada pelo sacrifício aos
deuses e às deusas. Então, recomendar-se-ia à comunidade cristã integral
abstenção?
Nesse sentido:
Theissen destaca que a dieta de quase todas as classes baixas, da onde a
maioria dos coríntios era advinda, incluía muito pouca carne. O problema de
comer da carne vendida no mercado (I Cor. 10:25ss.) era para eles,
puramente, teórico, porque eles não tinham dinheiro para comprá-
la. Portanto, esse não era o problema real. Para Paulo a questão estava no
consumo de carne nas refeições cultuais em contextos oficiais. Todos as
pessoas, independentemente do seu status social, podiam comer carne
durante as festas populares e, tamm, nos rituais de culto das muitas
associações e clubesda cidade. [Theissen questiona se os membros das
camadas sociais mais baixas, sempre participavam dessas refeições que
continham carne]. Como resultado, após sua conversão ao cristianismo, as
classes mais baixas tinham dificuldade em se desvencilhar dos significados
que o alimento oferecido comunicava (8:7). Judeus convertidos, agora livres
das restrições do Judaísmo, também encontravam dificuldades para lidar
com as distribuições públicas de carne
7
. (MALHERBE, 1983, p. 79).
7
“Theissen points out that the diet of the majority of the lower classes, from which most of the
Corinthians came, included very little meat. The problem of eating meat sold in the market (I Cor.
10:25ff.) was to them purely theoretical, for they did not have the money to buy it. However, that is not
the real problem, for Paul concerns himself mostly with the eating of meat at cultic meals within official
settings. All inhabitants of cities, regardless of their social status, could eat meat during the public
festivals and the cultic meat of many popular associations an clubs. But Theissen questions whether
members from the lower social strata always attended those meals that contained meat. The upshot is
that, following their conversion to Christianity, the lower classes found it difficult to worship and thus
hurting their consciences (8:7). Converted Jews, liberated from the restrictions of Judaism, also found
it difficult to deal with the public distribution of meat (8:10).
41
“Pois, se alguém que tem a consciência fraca vir você que tem este
conhecimento comer num templo de ídolos, o será induzido a comer do que foi
sacrificado a ídolos?” (1Co 8,10).
Como vimos, embora os necessitados fossem a grande maioria desse grupo
(fracos), entre eles estavam também judeus-cristãos e rigoristas, não
necessariamente pobres.
Paulo está de acordo com o argumento dos fortes, mas condena sua prática,
porque ela ignora as necessidades do outro. Por outro lado, ceder aos fracos é
condenar o cristianismo ao ostracismo, que as reuniões em torno da mesa
matizavam o contexto cultural de Corinto.
A controvérsia (em torno da carne oferecida) envolvia hábitos cotidianos do
povo, e ceder aos rigoristas, por menos que fosse, poderia ser fatal. Isso
reitera sua determinação (do apóstolo) de não permitir que os legalistas
vencessem essa disputa absolutamente crucial. [...] Além de (os cristãos) se
exporem ao ridículo, toda e qualquer evangelização eficaz seria
praticamente aniquilada. (PRIOR, 1985, p. 150).
Bruce (2009, p. 1892), refletindo acerca do assunto, destaca:
[...] sem dúvida, grande parte da carne disponível nos mercados tinha sido
inicialmente oferecida em rituais pagãos e, posteriormente, descartada
pelos sacerdotes como sobra das suas necessidades. Mas isso não era
tudo; reuniões sociais normais eram muitas vezes feitas em templos,
gerando situações em que os cristãos quase inevitavelmente estariam
presentes e participariam.
Paulo então retoma, em 8,12, o argumento do v.3: “mas quem ama a Deus,
este é conhecido por Deus”, para dizer que os fundamentos do conhecimento cristão
não estão em nós mesmos, mas em Deus. Foi ele quem de antemão nos conheceu
(Rm 8, 29) e por si mesmo, isto é, por sua graça, nos salvou. Ser conhecido por
Deus é ser tocado por seu amor salvífico. Nessa esteira, podemos concluir que ser
conhecido por Deus é irremediavelmente amá-lo e amar o objeto do seu amor, a
humanidade. Por isso, Paulo pode afirmar: “quando você peca contra seus irmãos
dessa maneira, ferindo a consciência fraca deles, peca contra Cristo.” (1Co 8,12).
O v. 13 encerra o capítulo não segundo a lógica do conhecimento humano
apontada cristalinamente em 1Co 8,8, mas segundo a lógica do Amor, que é a lógica
42
daqueles que o “conhecidos por Deus”. Afinal, “o conhecimento traz orgulho, mas
o amor edifica” (1Co 8,1b):
No início está a ação de Deus, o seu amor, que acolhe, justifica, salva. Por
isso mesmo conhecimento autêntico consiste em perceber o quanto o ser
humano é devedor da graça divina, fomentando assim não a soberba, mas
sim a gratidão. Conhecimento cristão não salva, antes percebe que fomos
salvos por Deus, que nos amou primeiro. Assim como a fé, ele consiste em
pura resposta. Consequentemente, não pode expressar-se senão como
amor a Deus e ao próximo. Sob tais condições, o conhecimento cristão
não pode ensoberbecer. Coloca-se a serviço da criação de comunidade.
(BRAKEMEIER, 2008, p. 109).
O argumento do apóstolo libera ricos e pobres à carne sacrificada, o que era
importante mesmo em termos nutricionais, mas condena a parcialidade do
conhecimento dos fortes e a ignorância dos fracos.
A liberdade cristã parte do conhecimento de Deus e de seu Filho (1Co 8,6).
Entrementes, esse conhecimento não liberta para que os cristãos se tornem
escravos de si mesmos, ou de tabus sócio-culturais, muito menos para que se
tornem reféns de coisas (alimentos), lugares e ocasiões, mas para possibilitar um
olhar para cima, para dentro e para os lados.
A ênfase da liberdade cristã, na ótica paulina, está no outro, ainda que
equivocadamente embasado e precipitado em seus julgamentos. Paradoxalmente,
os cristãos estão completamente livres para que se sujeitem, integralmente, ao seu
Deus e ao próximo.
A pessoa cristã deveria se sentir livre para usufruir toda a extensão da sua
liberdade, indo, permanecendo ou saindo dos mais diversos e variados espaços da
cidade romana: mercados públicos, festas populares, templos pagãos, casa de
amigos etc. Também deveria se sentir livre para apreciar e conhecer as múltiplas
nuanças da vida, desde o que atine a satisfação das necessidades prementes do
seu corpo, como comer e beber, até as implicações que elas poderiam significar nas
mais variadas expressões de culto.
Segundo Prior (1985, p. 158), quanto menos frágil a consciência cristã, mais
amplo o campo do testemunho cristão. Quanto mais sensível a consciência, maior a
tentação de se recolher no gueto cristão ou, pelo menos, na sua mentalidade.
43
Conhecer a si mesmo e ao ser humano em suas inúmeras possibilidades de
ser, sem temer o fato de estar ou o, com isso, sob a jurisdição, ou melhor, sob a
circunscrição territorial do seu Deus, contaminando-se, ou sendo contaminado pelos
ídolos pagãos, são alguns dos privilégios que o conhecimento de Deus e de seu
Filho proporciona (1Co 8,6).
Contudo:
A liberdade, quando acentuada, pode torna-se uma pedra de tropeço para o
cristão fraco, causando o seu enfraquecimento na fé, e não o seu
desenvolvimento, podendo também levá-lo a agir de forma totalmente
contrária ao que a sua consciência lhe permite, no estágio em que se
encontra (v. 10). De fato, o cristão é assim induzido a uma ação que não é
baseada na fé, e, para Paulo, tal ato é pecaminoso. (PRIOR, 1985, p. 158).
Voltamos, portanto, à afirmação de 1Co 8,1b: “O conhecimento traz orgulho,
mas o amor edifica. O amor auto-limita a liberdade proveniente do conhecimento.
Na comunidade cristã não se entende liberdade como atributo da individualidade,
mas da comunidade! Nas palavras de Brakemeier (2008, p. 109): “Paulo não nega
que a pergunta do consumo da carne deva ser resolvida pelo conhecimento. Mas ele
introduz o amor como uma segunda categoria, não menos importante que a
primeira.” É o que veremos a seguir, nos itens 3.7 e 4, na ágape.
3.7 RICOS E POBRES EM 1CO 11,17-22
Em 1Co 11,17-22 encontramos mais uma expressão da contradição social de
Corinto experimentada pela Igreja e relacionada diretamente ao comer e ao beber
sacrificados. A minoria abastada demonstra que o conhecimento que tem não os
leva a discernir o sentido de corpo de Cristo, uma vez que tomam a Ceia do Senhor
sem se importar com os flagelados. Assim, enquanto uns se embriagavam, outros
ficavam com fome.
Propomos a seguinte visualização, de uma possível estrutura da perícope em
questão:
A [...] quando vocês se reúnem como Igreja, há divisões
44
B conhecer quais dentre vocês são aprovados/reprovados
A quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor/Corpo
B enquanto um fica com fome, outro se embriaga
A [...] desprezam a Igreja de Deus
B (o que tem) humilha o que nada tem
Em linhas gerais estão contrapostas, nessa passagem, as idéias de reunião e
de divisão. Enquanto “A” aponta sempre para o ideal de koinonia, “B” realça sempre
uma situação fática encontrada na comunidade. O ideal de “reunião” é relacionado
em “A” com Igreja, com Corpo e com o seu Senhor”. Em “B”, estão nitidamente
contrapostos os grupos da Igreja.
Eis o esquema de “A”:
Reunião
Reunião
Reunião
Igreja
Corpo
Igreja de Deus
Em “B”:
Aprovados
Famintos
Os que nada têm
Reprovados
Embriagados
Os que têm
As estruturas dos versículos apontam para a construção de paralelismos, os
quais também parecem revelar em A” um escalonamento de idéias, didaticamente
elaborado: reunião como Igreja, reunião como Corpo, reunião como Igreja de Deus.
As idéias parecem apresentadas em ordem crescente de significados. Em “B”, o
quadro quer apontar, sem rodeios, para os integrantes de cada grupo.
A querela deste recorte está diretamente relacionada à posse de recursos
materiais. Isto nos permite afirmar, com segurança, que, mais uma vez, os
representantes da elite o o alvo da reprimenda apostólica. O problema ora
enfrentado é decorrente daquele analisado em 1Co 8. Seus principais atores, porém,
são agora os ricos e os pobres. O contraste entre aqueles que mal tinham o que
comer e os que tinham em abundância é muito vivo no texto.
Em Corinto, a ágape e a benção sobre pão e vinho se haviam
transformado em atos distintos. Tudo faz crer que o sacramento era
celebrado no final das reuniões. Assim a crítica de Paulo faz sentido. Ele
desaprova com veemência a antecipação da própria refeição por parte de
quem chegava primeiro, saciava-se e até se embriagava (v 21). Não se
esperava a chegada dos demais para dar início ao que deveria ser uma
„refeição de amor‟ e de partilha (ágape). Eram as pessoas em melhores
condições econômicas que assim procediam. Enquanto isso, os pobres,
45
escravos e empregados tinham dificuldades para se livrar dos
compromissos com seu amo. Chegavam, por via de regra, mais tarde às
reuniões. Embora participassem do sacramento, já não havia o que comer e
beber, devendo eles passar fome. A ágape, respectivamente o que dela
sobrou, já havia acontecido. (BRAKEMEIER, 2008, p. 147, grifo nosso).
Essa é também a conclusão de Richard (1995, p. 95), quando analisa a
situação em 1Co 11,17-22. Possivelmente os que têm esta conduta são os da
maioria de sábios, poderosos e nobres.” Sendo assim, as divisões na comunidade
tinham raízes não somente teológicas, mas também sociais. A celebração da ceia
dava flagrância às desigualdades sociais existentes entre os membros.
(BRAKEMEIER, 2008, p.147, 148).
O desenho que a estrutura do patronato romano identificou em Corinto, com
patronos (elite), líderes (Paulo, Apólo, Pedro) e membros comuns (ralé) ganha
colorido na Ceia do Senhor. A tipologia que Horsley (2004) apresenta sobre a
divisão dos lugares no salão do banquete das associações da cidade (veja o item
3.1 deste trabalho), parece corresponder ao relato de Paulo sobre a Ceia.
A eucaristia é celebrada na comunidade normalmente no meio de uma ceia
ou ágape. Na comunidade cristã de Corinto sucedia que cada um comia
primeiro sua própria ceia sem compartilhar com os outros. Pior ainda,
enquanto um passava fome outro se embriagava. [...] Paulo se dirige
diretamente a eles no texto: „Não tendes casas para comer e beber? Ou
desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada m?
(RICHARD, 1995, p. 95).
As celebrações da Ceia do Senhor não eram meras reuniões, mas símbolo e
meio de apropriação de uma experiência religiosa, considerada Corpo de Cristo. Por
isso, é interessante notar como as expressões das contradições da Igreja de Corinto
vêm à tona justamente na celebração daquilo que deveria sacramentar sua unidade.
O comer e o beber sacrificados aos ídolos como acontecia nos diversos cultos
da cidade, onde o povo procurava satisfação emocional, prosperidade, felicidade,
proteção de um Deus, ou mesmo destaque e reconhecimento em venerar os deuses
pagãos e participar dos grandes banquetes famosos na época, é transposto para a
Igreja de Corinto e, particularmente, para a Ceia. Isto, segundo Lazier (1991, p. 63)
acabava por “representar a negação da igualdade encontrada na comunidade cristã
e a reprodução da estratificação social da cidade de Corinto”.
46
Os esquemas apresentados sobre a Ceia do Senhor demonstram uma
identidade de grupo social (elite e ralé) fortemente arraigada nos membros da
comunidade cristã em Corinto. Essa identidade opõe-se e sobrepõe-se, até mesmo,
àquilo que deveria celebrar a unidade da Igreja. A identidade de grupo social é mais
forte do que a identidade de Corpo, de Igreja de Deus. O conhecimento dos fortes e
a ignorância dos fracos celebravam a individualidade. A Ceia não se diferenciava
dos banquetes cultuais oferecidos nos templos e associações da cidade.
3.8 SÍNTESE E PERSPECTIVAS
A partir do que foi até aqui apresentado, concluímos que a disputa em torno
da licitude da comida oferecida aos deuses também revela, em Corinto, uma disputa
entre grupos sociais, tanto na Igreja como na cidade. A cada instante, ricos e
pobres, sábios e iletrados, nobres e plebeus (1Co 1,16-29) e entre eles judeus e
gentios, homens e mulheres, escravos e livres (1Co 7,17-24) estão em confronto.
Apesar de, à primeira vista, parecerem grupos distintos e conflitos isolados,
percebemos que estes são apenas subgrupos que compõe a elite e a ralé de
Corinto e também a sua Igreja.
Os cristãos de Corinto formam uma comunidade socialmente estratificada no
que, certamente, são apenas um reflexo da realidade contraditória da própria
cidade. (HOEFELMANN, 1990, p. 31).
É inegável que:
A tendência cosmopolita da cidade em criar grupos influenciou a
comunidade cristã de Corinto, sobretudo a minoria dominante que disputava
prestígio. Paulo, respondendo aos grupos, faz um paralelo entre a
sabedoria da palavra (humana) e a crucificação de Cristo (1 Cor 1, 17-25). A
mensagem da cruz cria uma nova situação, onde não é a condição social
que conta, sobretudo a condição sustentada por um sistema econômico
injusto e classista. Para Paulo, Deus escolheu aqueles que não são
(loucos, fracos e desprezados) para confundir „os que são‟ (sábios,
poderosos e nobres), e reduzi-los a nada (1 Cor 1, 27-28). O Evangelho não
é ideologia de uma classe, é a mensagem de vida (crescimento) que
procede de Deus (1Cor 3,5-9). (LAZIER, 1991, p. 63).
47
Na raiz das divisões da Igreja estava, como vimos, um problema de
conhecimento (1Co 8). Para Paulo, esse problema não tem a ver com a ilicitude da
comida oferecida aos ídolos, afinal ele está de acordo com o argumento dos “fortes”
(1Co 8,8), mas com o testemunho da e para a comunidade. O conhecimento cristão
não tem nem razão, nem fim em si mesmo. Sua rao está em Deus (1Co 8,3) e seu
fim, no “mundo”, isto é, na sociedade, no outro (1Co 8,12-13). Conhecimento que
nos torna reféns de nós mesmos é vaidade. Conhecimento que faz restrições a
espaços, ocasiões, pessoas e coisas, não é conhecimento, mas legalismo. O amor
aperfeiçoa o conhecimento e auto-limita a liberdade (1Co 8,3).
O problema da Igreja de Corinto em torno dos alimentos oferecidos não foi
resolvido. Ele foi identificado, bem como apontadas foram algumas de suas causas.
Precisamos analisar os significados subjacentes aos elementos e aos gestos rituais
do comer e beber sacrificados para entender como eles conferem nomia ao mundo
dos coríntios. Isso faz parte da tarefa que será realizada nos próximos capítulos.
48
4 UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DO COMER E DO BEBER
SACRIFICADOS
É provável que a relação das pessoas de Corinto com os deuses, por meio da
comida e da bebida sacrificadas, deixe transparecer o seu desejo de ter um mundo
onde existir. Para a fenomenologia da religião, isso caracteriza a busca de nomia, ou
seja, de significados para a sua existência, já que:
Existe um mundo de camundongos, um mundo de cães, um mundo de
cavalos, e assim por diante. [...] Não há um mundo do homem no sentido
acima. [...] É um mundo aberto. Ou seja, um mundo que deve ser modelado
pela própria atividade do homem. [...] Biologicamente privado de um mundo
do homem, o homem constrói um mundo humano. Esse mundo,
naturalmente, é a cultura. Seu escopo fundamental é fornecer à vida
humana as estruturas firmes que lhe faltam biologicamente. (BERGER,
1985, p.18 e 19).
Contudo, esse processo de construção cultural de mundo não é o natural
assim. Entendemos cultura, na linha de Kroeber (apud LARAIA, 1932, p. 48,49),
como uma força determinante do comportamento, que o comportamento humano
muito tem a ver com um processo de aprendizagem, socialização ou endoculturação
da produção de gerações anteriores. Nós, porém não desconsideramos,
peremptoriamente, a possibilidade de condicionamentos externos atuando sobre o
processo.
A cultura não é a única força atuando sobre as pessoas. Um mundo
completamente „construído‟ e „aprendido‟ pelo ser humano, como veremos, é
incompleto. O mundo do homem é um mundo culturalmente construído, porém não
prescinde do sagrado que se manifesta. Essas revelações atuantes, essas
manifestações do sagrado em perceptível auto-revelação a linguagem da religião
chama de „sinais‟. (OTTO, 2007, p. 180).
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como algo absolutamente diferente do profano. (ELIADE, 2008, p. 17). Uma
vez que o “sagrado” se manifesta ao ser humano, ele interfere no processo cultural
de construção de nomia. Toda sociedade humana é um empreendimento de
construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento.
(BERGER, 1985, p. 15).
49
Ora, se o momento religioso é então central em qualquer expressão cultural,
como afirma também Angela Ales Bello (1998, p. 147), observar suas implicações se
perpetrarem em uma sociedade, como no nosso caso, a de Corinto, será
fundamental para que possamos compreendê-la e analisar como a comida e a
bebida oferecida aos deuses na Primeira Carta de Paulo aos Coríntios parecem
sustentar o homem e esse “mundo do homem”.
Acontece que com o passar dos tempos camadas e camadas de cultura
foram sendo sobrepostas sobre esse possível centro sagrado de significados, num
processo de sedimentação cultural contínuo. Esse ciclo interminável de depósitos
levou, como veremos no decorrer deste capítulo, à formação do que Bello (1998, p.
150) chama de correntes de consciência, Jung (2005, p. 395) de arquétipos e
Gadamer (2002, p. 72-81) de efeito histórico, o que, de uma maneira ou de outra,
acaba por nos imprimir um distanciamento, cada vez mais considerável, do kosmos
daquela Corinto e de Paulo em seu texto.
Os arquétipos são herança do inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo é
o
nível mais profundo da psique que contém as experiências herdadas das
espécies humanas e pré-humanas [...] Os arquétipos são tendências
herdadas contidas no inconsciente coletivo, que levam o indivíduo a
comportar-se de forma semelhante aos ancestrais que passaram por
situações similares. (SCHULTZ, 2005, p.395).
Mensurar a extensão e a sinuosidade do caminho que se pretende percorrer
nessa busca de significados para o existir faz parte do desafio da compreensão,
afinal “compreender é um processo histórico-efeitual, e se pode demonstrar que é na
linguagem própria a toda compreensão que o acontecimento hermenêutico traça o
seu caminho”. (GADAMER, 2002, p. 81)
Esse fenômeno se dá, segundo Berger (1985, p.15), porque “a sociedade é
um fenômeno dialético [...] que no entanto retroage continuamente sobre o seu
produtor. [...] A sociedade existia antes que o indivíduo nascesse, e continuará a
existir após a sua morte.
Assim, para chegar até as sensibilidades de um outro tempo, é preciso que
elas tenham deixado um rastro, que chegue até o presente como um registro escrito,
50
falado, imagético ou material, a fim de que o historiador, no nosso caso, o cientista
da religião, possa acessá-los. (BOIA apud PESAVENTO, 2005, p. 46).
A sociedade de Corinto, como qualquer outra, em qualquer tempo, é produto
de uma constante dialética com o ser humano. É provável que esse processo tenha
deixado seus sinais. Entender como o processo dialético funciona, em todos os seus
momentos, e identificar os rastros que deixaram na história será fundamental para
apreendermos, o ximo possível, da cultura daquela Corinto e em que medida no
comer e no beber sacrificados transparece a busca por nomia.
A seguir trataremos das três fases constituintes do processo de construção
cultural de mundo de Berger (1985). Na primeira o ser humano cria, na segunda
materializa e, na terceira, absorve cultura. O processo dialogal para a construção do
nomos cultural proposto por Berger (1985) compreende três momentos distintos: a
exteriorização, a objetivação e a interiorização.
4.1 EXTERIORIZAÇÃO EM 1CO 8 e 10
A exteriorização é a contínua efusão do ser humano sobre o mundo, quer na
atividade física quer na atividade mental dos homens (BERGER, 1985, p. 16).
Trata-se de um processo criador de cultura. É por meio deste processo que a
pessoa exprime, expõe o que vê, sente e pensa e termina por deixar transparecer o
seu mundo. A exteriorização é a infusão de sentido à realidade.
O discurso de Paulo, notadamente, em 1Co 8,1-6, quanto ao conhecimento
dos cristãos a respeito dos significados dos alimentos oferecidos aos deuses, tem
este caráter primário. É um discurso de efusão de pensamento, de ideologia, de
credo, de cultura. É um discurso doutrinário onde é exposto um mundo. Mais que
isso, é um discurso cosmogônico, que ele, de fato, cria um novo kosmos. Curioso
é que, de longe, esse novo universo se parece muito com o antigo, como veremos
abaixo.
Com respeito aos alimentos sacrificados aos ídolos, sabemos que todos
temos conhecimento. O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica.
51
Quem pensa conhecer alguma coisa, ainda não conhece como deveria.
Mas quem ama a Deus, este é conhecido por Deus. Portanto, em relação
ao alimento sacrificado aos ídolos, sabemos que o ídolo não significa nada
no mundo e que existe um Deus. Pois, mesmo que haja os chamados
deuses, quer no céu, quer na terra (como de fato muitos “deuses” e
muitos “senhores”), para nós, porém, um único Deus, o Pai, de quem
vêm todas as coisas e para quem vivemos; e um Senhor, Jesus Cristo,
por meio de quem vivemos. (1Co 8,1-6).
Por partes, então, vejamos. O discurso de Paulo levanta, questiona, supera
premissas, respectivamente, em:
A Com respeito aos alimentos sacrificados aos ídolos, sabemos que todos temos
conhecimento,
B O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica.
C Quem pensa conhecer alguma coisa, ainda não conhece como deveria. Mas quem ama a
Deus, este é conhecido por Deus.
Este discurso cria precedentes, inova, subverte, justifica, doutrina, na melhor
acepção do termo:
Portanto, em relação ao alimento sacrificado aos ídolos, sabemos que o
ídolo não significa nada no mundo e que existe um Deus. Pois, mesmo
que haja os chamados deuses, quer no céu, quer na terra (como de fato
muitos “deuses” e muitos “senhores”), para nós, porém, um único Deus,
o Pai, de quemm todas as coisas e para quem vivemos; e um só Senhor,
Jesus Cristo, por meio de quem vivemos. (1Co 8,4).
Trata-se de um discurso normativo onde são colocados os limites de um “ser
no mundo”, onde é padronizado um comportamento, elegida uma fôrma e uma
forma.
Comam de tudo o que se vende no mercado, sem fazer perguntas por
causa da consciência, pois do Senhor é a terra e tudo o que nela existe. Se
algum descrente o convidar para uma refeição e você quiser ir, coma de
tudo o que lhe for apresentado, sem nada perguntar por causa da
consciência. Mas se alguém lhe disser: “Isto foi oferecido em sacrifício”, não
coma, tanto por causa da pessoa que o comentou, como da consciência,
isto é, da consciência do outro e o da sua própria. Pois, por que minha
liberdade deve ser julgada pela consciência dos outros? (1Co 10,25-30).
A exteriorização no comer e beber sacrificados de 1 Coríntios está ligada ao
discurso efusivo de Paulo sobre a natureza e a existência dos ídolos. Os ídolos
existem? Quem são eles? Qual o seu poder? Como agir? São as questões das
quais a exteriorização se ocupa quando trata do comer e beber sacrificados em
Coríntios. Mas, vale lembrar, para que se evitem conclusões precipitadas, que este é
52
apenas o primeiro momento de um processo dialético que não prescinde dos
demais, porque por eles é complementado.
4.2 OBJETIVAÇÃO EM 1CO 10 e 11
A objetivação é a conquista, por parte dos produtores dessa atividade (física e
mental), de uma realidade que se defronta com os seus produtores originais como
facticidade exterior e distinta deles (BERGER, 1985, p. 16).
A objetivação é a materialização do que se efundiu. É fruto, produto da obra
do ser humano sobre o meio. Uma forma de ver o mundo, uma escola
hermenêutica‟. É o que é construído e “vale tanto para produtos materiais como não-
materiais”. (BERGER, 1985, p. 22). No caso em questão de 1Co, é tudo isso
transliterado em um estado que é atribuído ao alimento, o ser sacrificado. Observe-
se o que Paulo diz em 1Co 10,16-22 sobre o alimento tomado na Ceia do Senhor e
nos rituais de culto pagãos:
Não é verdade que o cálice da benção que abençoamos é uma participação
no sangue de Cristo, e que o pão que partimos é uma participação no corpo
de Cristo? Como há somente um pão, nós, que somos muitos, somos um só
corpo, pois todos participamos de um único pão. Considerem o povo de
Israel: os que comem dos sacrifícios não participam do altar? Portanto, que
estou querendo dizer? Será que o sacrifício oferecido a um ídolo é alguma
coisa? Ou o ídolo é alguma coisa? Não! Quero dizer que o que os pagãos
sacrificam é oferecido aos demônios e não a Deus, e não quero que vocês
tenham comunhão com os demônios. Vocês não podem beber do cálice do
Senhor e do cálice de demônios; não podem participar da mesa do Senhor
e da mesa dos demônios. Porventura provocaremos o ciúme do Senhor?
Somos mais fortes do que ele? (Grifo nosso).
O alimento ganha uma outra dimensão. A carne sacrificada aos ídolos não
é apenas carne‟, além de ser dessa ou daquela espécie de réptil ou de mamífero,
de estar cozida, assada, ou frita ela é agora oferecida. Ela guarda uma outra
característica que a torna, ou não, aceitável às pessoas. Ela, além de alimentar o
corpo, alimenta a alma. Ela é uma forma de acessar ou de se manter no mundo dos
deuses. A objetivação faz ver na carne imolada aos deuses, além dos seus
componentes nutricionais, um veículo de acesso, de comunhão com o sagrado. Da
mesma forma que acontece, por exemplo, na Ceia do Senhor, onde o cálice é uma
participação no sangue de Cristo e o pão é o corpo de Cristo. Tomar deles é assentir
53
na adoração ao Senhor. A respeito disso citamos o importante teólogo Rudolf
Bultmann:
O sacramento se fundamenta no pressuposto de que sob condições
especiais poderes sobrenaturais podem estar ligados a objetos naturais e
mundanos e as palavras proferidas como seus portadores e transmissores.
Cumpridas as condições (sendo, p.ex., a fórmula prescrita pronunciada
corretamente e estando, assim, a matéria “consagrada”, isto é, carregada
com o poder sobrenatural) e sendo tudo executado segundo o rito prescrito,
os poderes sobrenaturais se tornam eficazes e o próprio ato, que sem essas
condições seria puramente natural e mundano, como um banho ou uma
refeição, torna-se uma prática sobrenatural que realiza um milagre. Ao
passo que no estágio primitivo da história das religiões quase não se
distingue entre magia e ato sacramental, a diferença se amplia
paulatinamente no decorrer da história, dependendo das condições que
devem ser cumpridas por aqueles, para os quais se pretende que o
sacramento se torne eficaz se é pressuposto apenas determinado estado
físico ou também uma disposição íntima e dependendo dos poderes
sobrenaturais que se quer ativar se são poderes que somente servem
para intensificar a vida física ou outros que incrementam a vida espiritual; no
último caso, naturalmente, o paradoxo do sacramento é intensificado: como
podem poderes espirituais estar ligados a elementos materiais como seus
portadores? Por fim, o sacramento pode reduzir-se a um símbolo e, em vez
do efeito milagroso obtém-se um efeito psicológico. (BULTMANN, 2004, p.
186).
Essa transformação dos produtos do ser humano em um mundo que não
deriva do homem como ainda passa a confrontar-se com ele como facticidade que
lhe é exterior, está presente no conceito de objetivação. Em outras palavras, o
mundo humanamente produzido atinge o caráter de realidade objetiva. (BERGER,
1985, p. 22).
O teste final para se verificar se o processo de objetivação foi bem sucedido é
perceber sua capacidade de impor-se à relutância dos indivíduos. Acima de tudo, a
objetivação se manifesta pelo seu caráter coercitivo.
Em 1 Coríntios isto fica claro em 11,27-34:
Portanto, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor
indignamente será culpado de pecar contra o corpo e o sangue do Senhor.
Examine-se cada um a si mesmo e então coma do pão e beba do cálice.
Pois quem come e bebe sem discernir o corpo do Senhor, come e bebe
para sua própria condenação. Por isso entre vocês muitos fracos e
doentes, e vários já dormiram. Mas, se nós tivéssemos o cuidado de
examinar a nós mesmos, o receberíamos juízo. Quando, porém, somos
julgados pelo Senhor estamos sendo disciplinados para que não sejamos
condenados com o mundo. Portanto, meus irmãos, quando vocês se
reunirem para comer, esperem uns pelos outros. Se alguém estiver com
fome, coma em casa, para que, quando vocês se reunirem, isso não resulte
em condenação. Quanto ao mais, quando eu for lhes darei instruções. (Grifo
nosso).
54
Assim, a coercividade fundamental da objetivação está não nos mecanismos
de controle social, mas sim no seu poder de constituir e impor uma realidade.
(BERGER, 1985, p.25).
A objetivação está representada, em 1 Coríntios, pela qualidade que é
atribuída ao alimento, o „ser sacrificado‟. Uma „qualidade‟ que exptrapola, em muito,
o estado físico da matéria, porque se relaciona com o sagrado. A cultura objetivada
se apresenta e se impõe aos indivíduos como uma força que vem de fora deles
mesmos, quando na verdade está dentro deles. A objetivação pode traduzir-se em
regras, cuja inobservância implica em sanções, tanto no mundo dos deuses, quanto
no mundo dos humanos.
4.3 INTERIORIZAÇÃO EM 1CO 8
A interiorização é a reapropriação dessa mesma realidade por parte dos
homens, transformando-as novamente de estruturas do mundo objetivo em
estruturas da consciência subjetiva. (BERGER, 195, p. 16).
A interiorização é a absorção de uma realidade pelo ser humano. É a
assimilação de uma cultura. É a apropriação de ideologias, credos, papéis sociais,
estruturas, formas, materiais, identidades. E as identidades quase sempre não são
„puras‟.
As identidades são múltiplas e vão desde o eu, pessoal, construtor da
personalidade, aos múltiplos recortes do social, fazendo com que um
mesmo indivíduo acumule, em sim diferentes perfis identitários. Estes o
são, a rigor, excludentes por si mesmos, nem forçosamente atingem uma
composição harmônica e sem conflitos nessa espécie de rede poli-
identitária que cerca o indivíduo. (PESAVENTO, 2005, p. 90).
Sobre interiorização e identidade nos ocuparemos mais adiante. Por ora, é
interessante notar, que supondo sempre um grau de socialização bem sucedido, a
introspecção se torna um todo viável para a descoberta de significados
institucionais. (BERGER, 1985, p. 31). A interiorização significa o „jeito de ser‟, os
comportamentos sociais, o estado das coisas no mundo. Os princípios
55
interiorizados se auto-referenciam para manutenção do nomos cultural. É o que se
vê em ação na afirmação dos „laços fraternais‟ entre os cristãos de Corinto.
Contudo, nem todos têm esse conhecimento. Alguns, ainda habituados com
os ídolos, comem esse alimento como se fosse um sacrifício idólatra; e
como a consciência deles é fraca fica contaminada. [...] Contudo, tenham
cuidado para que o exercício da liberdade de vocês não se torne uma pedra
de tropeço para os fracos. Pois, se alguém que tem a consciência fraca vir
você que tem este conhecimento comer num templo de ídolos não será
induzido a comer do que foi sacrificado a ídolos? Assim, esse irmão fraco,
por quem Cristo morreu é destruído por causa do conhecimento que você
tem. Quando você peca contra seus irmãos dessa maneira, ferindo a
consciência fraca deles, peca contra Cristo. Portanto, se aquilo que eu
como leva meu irmão a pecar, nunca mais comerei carne, para não fazer
meu irmão tropeçar. (1Co 8,7.9-13).
Ora, a interiorização está aqui representada primeiramente pela postura, pela
assimilação de uma condição e de um padrão de comportamento. Os fracos
verdadeiramente acreditam que a carne sacrificada guarda propriedades mágicas,
capazes de contaminar seu corpo através da ingestão descompromissada, ou
irrefletida desse alimento. Os fortes, por outro lado, crêem que o alimento oferecido
não pode produzir malefícios à sua saúde física e espiritual. Em segundo lugar,
pessoas que a princípio não tem nada em comum acreditam estarem ligadas, de tal
forma, pela morte e ressurreição de Cristo, que são responsáveis umas pelas outras.
A interiorização é a reabsorção na consciência do mundo objetivado de tal
maneira que as estruturas deste mundo vêm a determinar as estruturas subjetivas
da própria consciência”. (BERGER, 1985, p. 28). Por isso, o mesmo raciocínio
quanto à postura e à assimilação de normas e padrões de comportamento, acima
descrito, também pode ser levado para a análise das crenças que significam a Ceia
do Senhor nas perícopes a que nos referimos quando estudamos a objetivação. A
idéia de participação no sangue e no corpo de Cristo (1Co 10,16) só é atribuída aos
alimentos rituais depois da interiorização de um nomos cultural.
Percebemos, portanto, que essa interiorização possibilita que o homem
produza valores e verifique que se sente culpado quando os transgride. (BERGER,
1985, p. 23).
É importante ressaltar que a análise feita até aqui, não trabalhou com a
hipótese de algo que esteja fora do ser humano ou do mundo cultural que ele
construiu. Porém, nós não descartamos que os empréstimos culturais de outros
sistemas, o que a antropologia chama de difusão” (LARAIA, 2004, p. 105), e que
56
pacificamente tem sido apontado como grande responsável pelo desenvolvimento
humano, podem ter se dado, também, do mundo dos deuses. Trataremos
especificamente deste assunto a partir do item 4.5.
4.4 INTERIORIZAÇÃO E IDENTIDADE
A interiorização é o conhecer e crer na razão apresentada de ser das coisas,
porém, não estaticamente. A cada momento desse processo há novas e contínuas
exteriorizações, manifestas pela interação entre o ser humano e a cultura e
objetivações, em andamento.
Nos capítulos 8, 10 e 11 de 1 Coríntios, a interiorização é caracterizada pela
postura dos cristãos e dos pagãos ante aos alimentos sacrificados aos ídolos. Tomar
parte desta ou daquela comida é tomar parte na adoração deste ou daquele deus. O
acesso e o manuseio do alimento não são mais um gesto natural, corriqueiro, mas é
algo em que fez transparecer uma forma de pensar, um modo de ver, sentir e de ser
no mundo (Dasein). Isto, para Heidegger (2006, p. 212-3), se em virtude de um
posicionamento prévio do indivíduo ante ao objeto:
Sentido é a perspectiva na qual se estrutura o projeto pela posição prévia,
visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna
compreensível como algo. Como compreender e interpretação constituem
existencialmente o ser do sempre, o sentido deve ser concebido como
aparelhamento existencial-formal da abertura pertencente ao compreender.
Sentido é um existencial da presença e não uma propriedade colocada
sobre o ente, que se acha por “detrás” dele ou que paira não se sabe onde,
numa espécie de “reino intermediário”. (Grifo nosso).
Comer ou não comer, beber ou o beber é atrair para si o favor ou a ira dos
deuses. É, também, uma questão de identidade pessoal e de grupo já que a
sociedade, no caso de Corinto, “não contém um conjunto disponível de
instituições e papéis, mas um repertório de identidades dotadas do mesmo status de
realidade objetiva” (BERGER, 1985, p. 27).
Nesse sentido, Pesavento (2005, p. 90) nos ajuda, indicando algumas
características do que seja identidade e a sua construção:
57
A identidade, enquanto representação social é uma construção simbólica de
sentido, que organiza um sistema compreensivo a parir da idéia de
pertencimento. A identidade é uma construção imaginária que produz a
coesão social, permitindo a identificação da parte com o todo, do indivíduo
frente a uma coletividade, e estabelece diferença. A identidade é relacional,
pois ela se constitui a partir da identificação de uma alteridade. Frente ao eu
ou ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.
Comer ou não comer envolve uma negociação do indivíduo consigo mesmo e
com o grupo a que pertence, porque é, também, uma questão de identidade. O
sentido (HEIDEGGER, 2006, p. 213) não é construído apenas individualmente,
mas a partir de relacionamentos com pessoas, grupos e estruturas sociais.
A questão da identidade e do “sentido” o também marcantes na Ceia do
Senhor. O alcance e os significados de seus elementos são „reais‟ na
comunidade, como veremos no capítulo seguinte deste trabalho. Mas mesmo as
imagens gestuais do rito eucarístico antecipam sua razão de ser. Tomar do cálice
é uma participação no sangue de Cristo e comer do pão é uma participação no
corpo de Cristo, como o indica a palavra de 1Co 10,16-17:
Não é verdade que o cálice da benção que abençoamos é uma participação
no sangue de Cristo, e que o pão que partimos é uma participação no corpo
de Cristo? Como somente um pão, nós que somos muitos, somos um
corpo, pois todos participamos de um único pão.
Tomar deste alimento cultual, no imaginário religioso daquela época, era unir-
se a Deus e ao outro. Era identificar-se a si mesmo e ao grupo. O alimento é tomado
de per si, mas considerado coletivamente. Está em questão o ser-eu e o ser-no-
Corpo. Aliás, essa é a natureza do mito:
[...] para a mentalidade primitiva os mitos são, concomitantemente, uma
expressão da solidariedade do grupo social consigo mesmo, com o tempo e
com os grupos de seres que o rodeiam, e um meio de conservar e reviver o
sentimento desta solidariedade. (LÉVY-BRUHL, apud CROATTO 2001, p.
187).
Ocorre que quando o processo de interiorização é bastante bem sucedido,
como acontece com alguns grupos da sociedade de Corinto, o indivíduo não apenas
desempenha o papel social que lhe foi atribuído (identidade), mas se enxerga como
tal (sentido) e (re)conhece toda a sua biografia (passado, presente e futuro) a partir
dele, ou, nas palavras de Heidegger (2006, p. 213): “a presença „tem‟ sentido na
medida em que a abertura do ser-no-mundo pode ser preenchida por um ente que
nela se pode descobrir.
58
É nessa condição que os grupos (ricos e pobres, sábios e iletrados, fortes e
fracos) representados na Igreja de Corinto se encontram: incapazes, até aquele
momento, de se libertarem do que aprenderam e tomaram para si, a respeito de si
mesmos (identidade) e dos alimentos sacrificados aos deuses (sentido). -se
repetido, com isso, na Igreja de Corinto o papel que a elite e a ralé desempenham
na sociedade.
Os processos que interiorizam o mundo socialmente objetivado são os
mesmos processos que interiorizam as identidades socialmente conferidas.
O indivíduo é socializado para ser uma determinada pessoa e habitar um
determinado mundo. A identidade subjetiva e a realidade subjetiva são
produzidas na mesma dialética (aqui, no sentido etimológico literal) entre o
indivíduo e aqueles outros significativos que estão encarregados de sua
socialização. [...] tanto a identidade como o mundo permanecem reais para
ele enquanto ele continua a conversação. (BERGER, 1985, p. 29)
A identidade de grupo social (ricos e pobres, elite e ralé), na Igreja, era mais
forte do que a identidade de Corpo de Cristo . O ser-social é mais forte do que o ser-
no-Corpo. Esta é uma das raízes do problema enfrentado pela comunidade de
Corinto. Os valores e papéis interiorizados da cultura estão tão profundamente
arraigados nos cristãos coríntios que o ideal de igualdade e liberdade proposto na
mensagem do apóstolo para a Igreja é sufocado. É por isso que Paulo escreve a
Primeira Carta aos Coríntios: para recordar o „sentido‟ e a identidade de Corpo de
Cristo.
Resumindo, é através da exteriorização que a sociedade é um produto
humano. É através da obejtivação que a sociedade se torna uma realidade sui
generis. É através da interiorização que o homem é um produto da sociedade.
(BERGER, 1985, p 16). É nisso que consiste o „processo dialético‟ em um diálogo de
construção de significados (nomia) para a existência humana.
Por meio do processo dialético proposto por Berger (1985) nos foi possível
perceber a simultaneidade e distinguir os momentos desse diálogo cultural, além de
esclarecer uma das causas dos problemas da Igreja na Primeira Carta aos Corintos:
a identidade sócio-cultural sobreposta à identidade de Corpo de Cristo. Resta-nos
então, mais uma vez, ir adiante e observar, mais de perto, como e quais os meios
que o fenômeno religioso escolhe para interagir com a sociedade.
59
4.5 ESTRUTURAS DO FENÔMENO RELIGIOSO
Nesse momento, é imperativa a busca de pontos de contato, concepções,
conceitos comuns, se não a todas, à maioria, das expressões cultural-religiosas,
para que continuemos a perscrutar o que subjaz ao alimento sacrificado, e para que
consigamos tirar conclusões ainda mais aproximadas do contexto da fala de Paulo
aos cristãos de Corinto.
Apresentaremos os conceitos de sagrado e profano, mitos e hierofanias, ritos
e símbolos aplicados ao comer e beber sacrificado em Corinto para tentar
compreender, mais adiante, não a natureza do ethos por detrás dessa prática
ritual, mas também suas dimensões e desvios, significados e reconstruções para
Paulo.
4.5.1 O Sagrado e as Hierofanias
O sagrado se manifesta sempre como uma realidade inteiramente diferente
das realidades naturais” (ELIADE, 1992, p.16), mas ao mesmo tempo não, porque
se manifesta no e através do mundo natural, além de tomar emprestado termos da
linguagem humana para ser descrito.
Por coisas sagradas, convém não entender simplesmente esses
seres pessoais que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo,
uma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço de madeira, uma casa,
em uma palavra, uma coisa qualquer pode ser sagrada. Um rito pode
ter esse caráter; inclusive, não existe rito que não o tenha em algum
grau. (DURKHEIM, 2003, p. 20).
Esta caracterização do sagrado se dá pela incapacidade de se „pintar‟ de
outra maneira o completamente diferente que se experimentou. O sagrado se
manifesta no mundo natural e este é o paradoxo da hierofania.
A linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a
experiência natural do homem mediante termos tirados dessa
experiência natural. [...] A pedra sagrada, a árvore sagrada não são
adoradas como pedra ou árvore, mas justamente, porque são
hierofanias, porque revelam algo que não é nem pedra, nem
árvore, mas o sagrado, o ganz andere. (ELIADE, 2008, p.14, 15)
60
Em Corinto, o alimento oferecido aos deuses também não é estranho às
pessoas. O vinho e os cereais são fruto do campo. A carne vem de mamíferos e
répteis conhecidos, conquanto a partir das hierofanias elas o conservem
apenas o gosto e a textura habituais. As razões para sua ingestão não se baseiam
apenas na necessidade e nos instintos, aliás a negação deles pode ser da vontade
dos deuses, podem ser um sacrifício em si. Talvez isso explique o sucesso das
práticas ascéticas entre alguns membros da comunidade cristã.
As manifestações do sagrado irrompem roturas na realidade do crente. A
homogeneidade do espaço passa a apresentar fissuras a partir das hierofanias.
Universos paralelos se tocam e passam a existir simultaneamente a partir daquilo
que foi revelado. Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço
apresenta roturas, quebras; porções de espaço qualitativamente diferentes das
outras. (ELIADE, 2008, p.25).
Coisas do cotidiano (alimentação, vestuário, sexo etc) podem se tornar
sagradas, ou melhor, sacralizadas. O mundo dos deuses alcança o mundo dos
seres humanos através dessas palavras, posturas e objetos. Com freqüência, as
hierofanias constroem mesmo espaços dentro do espaço, como os templos e os
altares. Os templos de Corinto o um bom exemplo dessas fissuras, como se pôde
ver no capítulo 2 deste trabalho.
Há, portanto, espaços sagrados, e por conseqüência „fortes‟, significativos, e
outros espaços não sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem
consistência, em suma, amorfos. (ELIADE, 2008, p. 25). O termo hierofania, contudo
exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que
algo sagrado se nos revela” (ELIADE, 2008, p. 17), ele não define o que é sagrado
ou não, tal valoração cabe à experiência.
É a experiência com o sagrado que cria um ponto de referência, um local para
onde se deve olhar na tentativa de situar suas próprias ações dentro de um contexto
maior, de uma realidade absoluta, cheia de sentido e de significado. A hierofania
revela um ponto fixo absoluto, um centro, a partir e em torno do qual o mundo passa
a ter novo sentido. (ELIADE, 2008, p.26).
61
Nos cultos pagãos de Corinto, a hierofania representada pelo sacrifício de
animais pode exemplificar este centro, este ponto fixo. Era a partir do sangue do
animal imolado que se abria o canal de comunicação com os deuses e a partir da
ingestão dessa carne que se tinha comunhão com as divindades, como vimos
anteriormente (2.1 e 4.2). Em 1Co 10 e 11, a hierofania na Ceia também remete ao
ideal a ser perseguido pela comunidade cristã.
Os referenciais apresentados nos autorizam afirmar que a sociedade de
Corinto é uma sociedade sacralizada. As motivações das mais simples e banais
ações são religiosas. A arquitetura, a pintura, a justiça estão ligadas à vontade dos
deuses. Até mesmo o sexo e a alimentação tangenciam o mundo extraterreno.
O templo de Afrodite era célebre pelos cultos que realizavam as prostitutas
sagradas”. (LAZIER, 1991, p. 63).
É controvertida a natureza das cerimônias realizadas no templo de Afrodite,
a deusa do amor, no tempo de Paulo, mas se tem notícias de que no
período p-romano ele era servido por mil sacerdotizas, ou seja, prostitutas
sagradas. (HOEFELMANN, 1990, p. 24).
O templo de Apolo era com certeza um dos mais antigos e veneráveis da
Grécia e está entre as majestosas construções redescobertas em escavações
realizadas no final do século passado. (HOEFELMANN, 1990, p. 24).
Em Corinto o Fórum do governador ficava no centro da Ágora, tendo em
volta de si os vários deuses representados pelos templos ou estátuas. Era
comum que uma sentença não fosse proferida após o pôr-do-sol, pois era
ilegal fazer julgamentos à noite ou em recinto fechado, para que o deus
Júpiter assistisse aos debates e iluminasse o julgamento. (LAZIER, 1990, p.
64).
É curioso perceber que apesar de inteiramente outro, cheio de sentido e de
significados, este mundo (dos deuses) se pareça tanto com o nosso mundo, no
caso, com o mundo de Corinto. Também é irônico que os deuses precisem tanto
desse „nosso mundo‟ instável e de suas coisas imperfeitas para se revelarem
(eternos e perfeitos).
Nessa medida, o universo dos deuses é esse nosso universo. O mundo de
Corinto é um mundo de homens em completa fusão com o mundo dos deuses e, por
isso, as coisas não comunicam apenas aquilo que se vê. Elas são símbolos,
modelos, representações de outras. São mundos dentro do mundo, fissuras, roturas,
paralelos e fazem parte da linguagem própria que o sagrado e as hierofanias
62
utilizam para se comunicar. Todavia, esses novos significados atribuídos às coisas
já há muito conhecidas, só se fazem compreender nos mitos.
4.5.2 Mitos e Símbolos
O „mundo dos deuses‟, o mundo de Corinto, não é produto da fantasia, da
imaginação humana, como popularmente se caracterizam os espaços mitológicos,
pois, como nos lembra Croatto (2001, p. 191), os mitos versam sobre a origem das
coisas e das instituições, e por isso são absolutamente verdadeiros para quem crê.
O mito é um veículo de transmissão de mensagens. Para Bultmann (apud
CROATTO, 2004, p. 193), o mito é:
[...] uma representação do transcendente (Unweltliches) ou divino, como
algo imanente e humano, a representação do além, como algo temporal
(Diesseitiges). O mito o oferece uma imagem objetiva do universo;
expressa mais a maneira como o ser humano compreende-se no seu
mundo.
Para Jung (apud CROATTO, 2001, p.195):
[...] os mitos, os símbolos, as figuras mitológicas de povos e culturas
independentes entre si devem ter explicação em um inconsciente coletivo.
O inconsciente coletivo tem uma linguagem figurada, a linguagem dos
símbolos, peã na qual se expressam os arquétipos da alma. Os símbolos
afloram, sobretudo nos sonhos, nos contos de fada (nas crianças), no delírio
e na alucinação (nos psicóticos), na arte e na poesia (em colaboração com
o consciente) e nos mitos, no ser humano religioso adulto.
O mito é o relato de um acontecimento originário, no qual os Deuses agem e
cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa. Ao relatar um
acontecimento, o mito situa-se em um lugar e em um tempo e, consequentemente,
apresenta-se como uma história. (CROATTO, 2001, p. 211).
Em linhas gerais, o mito é uma narrativa carregada de símbolos lingüísticos
que lhe conferem sentido. Diz algo significativo sobre as origens de algo (RICHTER
REIMER, 2009). Como toda produção literária, também a narrativa mítica está
historicamente posicionada e terá vida enquanto seus significados puderem ser
comunicados.
63
Contudo, esse “acontecimento originário no qual os Deuses agem ao qual
também Croatto (2001, p. 209) se refere, só é verdadeiro para os que crêem; os que
não crêem constroem outros significados para a sua realidade, que até podem ser
míticos, mas que excluem a atuação dos deuses. A crença é, portanto, ao nosso ver,
anterior e intrínseca ao mito. É ela a grande construtora e desconstrutora dos mitos.
O mito terá vida enquanto houver nele. O fato de conhecer ou não os significados
que os seus símbolos querem transmitir é fundamental, mas posterior. Os
significados podem ser comunicados, mas não aderidos pelo grupo ou pelo
indiduo. A existência dos mitos está ligada a adesão racional de seus significados,
na crença.
Esta, hoje, é a nossa suposição sobre por onde Paulo caminhou na tentativa
de desconstrução dos mitos que sustentam o panteão de Corinto. Entendemos que
ele se apropriou de mbolos existentes, resignificando alguns e criando outros
capazes de transmitir sua mensagem, o que fará sentido não apenas aos que
conhecerem, mas, também, optarem por crer nos significados que lhes serão
apresentados.
4.5.3 A Desconstrução e a (Re)Construção de Mitos
Para que os cristãos vislumbrassem outra possibilidade de ser, no mundo de
Corinto, o alimento sacrificado aos ídolos precisava ser desmitificado.
Um interdito apostólico, como o promulgado em Jerusalém (At 15.29), seria
de pouca ou nenhuma valia. Não seria suficiente dizer que sim, os cristãos podiam
tomar dos alimentos sacrificados, nem que deles deveriam se abster, se as
motivações e as crenças sobre eles permanecessem as mesmas. Como vimos, a
questão do alimento santificado‟ antes de combatida precisava ser compreendida
em suas bases.
[...] Paulo é a única personalidade autorizada na igreja apostólica ou
subapostólica que não resolve a controvérsia da „carne oferecida aos ídolos‟
por meio de um interdito absoluto. Isso reitera sua determinação de não
permitir que os legalistas vencessem essa disputa absolutamente crucial. A
controvérsia envolvia hábitos cotidianos do povo, e ceder aos rigoristas, por
64
menos que fosse, poderia ter sido fatal. (BRUCE, apud PRIOR, 1993, p.
150).
Era preciso enfrentar a questão a partir do que lhe conferia sentido, do que
lhe sacralizava. Por isso, Paulo inicia a tratativa do assunto como uma questão de
conhecimento (1Co 8,1). Era preciso desconstruir os significados simbólicos do
comer e do beber sacrificados aos ídolos para que se construíssem os significados
da Ceia, ou melhor, a partir e sobre os significados que os alimentos oferecidos aos
ídolos comunicavam às pessoas de Corinto era preciso construir os significados da
Ceia do Senhor.
A compreensão de que não existem vários mundos, vários universos
paralelos na cidade, conquanto existissem muitos templos e muitos que se
apresentassem como deuses, deveria ser superada, pois, para Paulo, existe um
Deus: “Portanto, em relação ao alimento sacrificado aos ídolos, sabemos que o ídolo
não significa nada no mundo e que só existe um Deus.” (1Co 8,4).
O que entendemos que o apóstolo quis dizer é que existirão quantos mundos
nós crermos que existam. Os mitos são objetivações da realidade que fazem
sentido enquanto cridas. “Em outras palavras, o mundo cultural é não só produzido
coletivamente como também permanece real em virtude do reconhecimento coletivo.
(BERGER, 1985, p. 24).
Nesse sentido o discurso de Paulo é subversivo, questionador e criador. Para
outros, pelas mesmas razões, ele é unilateral, político e demagogo. Ele desnuda,
dessacraliza o mundo dos outros deuses de Corinto, ao passo que sacraliza o
universo do seu Senhor. Se os deuses pagãos não existem, não existe o seu
mundo. Se o Deus cristão é o único, o mundo e tudo o que nele habita é seu. O
mundo dos deuses passa a ser então o mundo do nosso Deus e o nosso mundo,
por via de conseqüência, temos acesso amplo e irrestrito a toda sua extensão.
A linguagem dos deuses, seus ritos, símbolos e mitos continuará existindo
enquanto os seres humanos continuarem a usá-los e compreende-los como
realidade objetiva. Da mesma forma que “a língua inglesa se originou de
acontecimentos históricos específicos, desenvolveu-se através de sua história
graças à atividade humana, e existe unicamente até onde e enquanto seres
humanos continuarem a usá-la e compreendê-la”. (BERGER, 1985, p. 25)
65
Aliás, se é verdade que o homem depende de seus deuses, a dependência é
recíproca. Também os deuses têm necessidade do homem: sem as oferendas e
sacrifícios, eles morreriam. (DURKHEIM, 2003, p. 21).
Ao demitificar o panteão de Corinto, Paulo termina por desestabilizar as
estruturas da própria cidade para os cristãos, que nele (em seu panteão)
transparecia, em boa medida, a estrutura geográfica e política da urbe, enquanto
istmo e sua herança política de cidade-estado. O “isolamento” característico das
ilhas e a independência característica das cidades-estado, de certa maneira,
contribuíram para que se forjasse a idéia da jurisdição dos deuses. Inexistindo
muitos deuses, inexiste sua jurisdição, seu nomos, seus mundos.
A questão do comer e do beber sacrificados em 1 Coríntios é de fundamental
importância. A preocupação de Paulo com os fracos é legítima. Por isso ocupa
tantos capítulos de seu manuscrito. O apóstolo entendia que a transição de mundos
não era coisa simples. Mudar de religião era mudar de kosmos. A transição
implicava uma nova criação (cosmogonia) onde a novidade podia ainda não fazer
sentido e conduzir ao caos.
É por esse motivo que a separação radical do mundo social ou anomia,
constitui tão séria ameaça ao indivíduo. O indivíduo não perde, nesses
casos, apenas os laços que satisfazem emocionalmente. Perde a sua
orientação na experiência. Em casos extremos chega a perder o sendo da
realidade e da identidade. Torna-se anômico no sentido de se tornar sem
mundo. Assim como se constrói e sustenta um nomos do indivíduo na
conversação com interlocutores importantes para ele, assim o indivíduo é
mergulhado na anomia quando essa conversação é radicalmente
interrompida. (BERGER, 1985, p. 34).
O comer e beber são, dentro daquilo que Mauss e Durkheim (apud
PESAVENTO, 2005, p. 39) elaboraram, ao estudarem os chamados povos primitivos
atuais, uma representação de realidade.
As representações são expressas por normas, instituições, discursos,
imagens e ritos, tais representações formam como que uma realidade
paralela à existência dos indivíduos, mas fazem os homens viverem por
elas. As representações construídas sobre o mundo não se colocam no
lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade
e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas
sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do
real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das
representações que constroem da realidade. (PESAVENTO, 2005, p. 39).
66
Os programas institucionais são dotados de um status ontológico a tal ponto
que negá-los equivale a negar o próprio ser o ser da ordem universal das coisas e,
consequentemente, o que se é nessa ordem. (BERGER. 1985, p. 37).
Paulo impõe mais uma fissura ao universo mítico, bastante roturado, de
Corinto a fissura do Crucificado, que libera o caminhar dos cristãos por todos os
ambientes, sem temer o fato de estar ou não sob a circunscrição territorial do seu
Deus, afinal este Deus único é o criador de todas as coisas. (1Co 8,6).
Não há sentido, portanto, em não freqüentar este ou aquele espaço e, se nele
estiver, comer ou não comer de algum alimento. “A comida [...] não nos torna
aceitáveis diante de Deus; não seremos piores se não comermos, nem melhores.”
(1Co 8,8).
Casas de amigos e eventos sociais, para os cristãos de Corinto, não eram
mais espaços de deuses, eram espaços de gente, e tomar do alimento que ali se
oferecia não deveria significar união com as divindades, para aqueles que não estão
debaixo do seu „poder‟. As festas pagãs e seus templos também não eram mais
espaços proibidos, por si só, que não eram obras do Olimpo. “Comam de tudo o
que se vende no mercado [...] Se algum descrente o convidar para uma refeição e
você quiser ir, coma de tudo o que lhe for apresentado” (1Co 10,25.27).
Os mitos pagãos governavam as estruturas arquétipas da sociedade coríntia.
Era preciso desconstruir aquilo que lhe conferia sentido para que a fé cristã pudesse
florescer. A mudança nômica compreende a criação, reapropriação e destruição de
antigas crenças, o que só é possível como ato de fé.
4.6 IMPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS DO FENÔMENO RELIGIOSO EM CORINTO
Os alimentos oferecidos aos deuses na Primeira Carta de Paulo aos Coríntios
têm uma dupla função: eles sustentam o homem e esse mundo do homem. Eles
fornecem os nutrientes orgânicos necessários ao funcionamento saudável do seu
corpo e os significados de sua existência.
67
Essa condição da comida sacrificada, entretanto, não lhe é inerente. O
alimento não tem essa propriedade intrínseca. Não se trata, portanto, do uso dos
substantivos “comida e bebida” sacrificadas. Não é uma propriedade desta ou
daquela espécie de bebida, cereal ou carne ser ou não ser sacrificada. Trata-se
antes, de uma postura de quem deles toma.
Está em questão o que sobre eles se pensa, não o que com eles foi feito.
Para Paulo o alimento outrora sacrificado aos ídolos, poderia ser livremente ingerido
pelos cristãos de Corinto nos mercados públicos, nos eventos sociais, na casa de
amigos e nas festas templárias pagãs, a princípio, sem qualquer censura ou
restrição (1Co 8,10; 10,25.27). Afinal, em última análise, o problema não está na
“comida ou na bebida sacrificada”, mas no “comer e beber sacrificado”. Não são dois
substantivos (comida e bebida) adjetivados (sacrificados), mas dois verbos (comer e
beber) „adverbiados‟.
A comida oferecida é a objetivação de uma realidade subjetiva. E nessa
medida é real para quem dela toma. O alimento oferecido é produto cultural. A
cultura, como vimos, tem um papel decisivo na determinação do comportamento das
pessoas, mas não podemos afastar a possibilidade de condicionamentos externos
atuando sobre o agir humano.
O processo dialético proposto por Berger (1985) nos ajudou a compreender
os momentos envolvidos na construção do nomos cultural na Primeira Carta de
Paulo aos Coríntios.
A sociedade efunde sobre os integrantes da Igreja o seu mundo, o mundo dos
deuses, um espaço sagrado, onde comer e beber alimentos oferecidos significa
tomar parte no culto a determinada divindade, um mundo ao qual, inclusive, os
cristãos coríntios já estavam habituados, pois nele costumavam habitar. Por meio
desse mesmo canal, Paulo propõe um novo olhar sobre a realidade. Faz a Igreja
refletir sobre a cultura e negocia os limites de sua aceitação. Eles rejeitam
premissas, contrapõem normas, dialogam com a sociedade. E é nessa perspectiva
que os seus conflitos podem, mais uma vez, ser observados a partir das estruturas
sociais da cidade de Corinto.
68
A exteriorização, a objetivação e a interiorização são simultâneas e
interdependentes. As pessoas e os grupos envolvidos interagem continuamente. Em
1 Coríntios, a sociedade é refletida na Igreja e a Igreja reflete sobre as estruturas
sociais. A análise sociológica do comer e beber sacrificados nos deu uma
amostragem dos grupos sociais atuantes na Igreja.
Percebemos dois grandes processos dialogais na carta: o da sociedade e o
da Igreja. Um sociológico e outro fenomenológico. As identidades são construídas
nesse meio. Elas são construídas em grupo e em referência a algo ou alguém
(pessoas, instituições, deuses). Quando o processo de interiorização é bem
sucedido, acontece o que Berger (1985, p. 38) descreve abaixo:
Sempre que o nomos socialmente estabelecido atinge a qualidade de ser
aceito como expressão da evidência, ocorre uma fusão do seu sentido com
os que são considerados os sentidos fundamentais inerentes ao universo.
Nomos e cosmos aparecem como co-extensivos. Nas sociedades arcaicas,
o nomos aparece como um reflexo microcósmico, o mundo dos homens
como expressão de significados inerentes ao universo como tal. [...] se nos
é permitido, inerentes ao universo dos deuses. [...] Em todo caso, quando o
nomos aparece como expressão óbvia da “natureza das coisas”, entendido
cosmologicamente ou antropologicamente , dá-se-lhe uma estabilidade que
deriva de fontes mais poderosas do que os esforços históricos dos seres
humanos. É neste ponto que a religião entra significativamente em nossa
discussão.
Para que a mensagem de Paulo encontrasse espaço entre seus ouvintes, de
dentro e de fora da Igreja, era preciso que ela fizesse sentido para eles. Os mitos e
símbolos que o sagrado utilizou para comunicar sua presença aos Coríntios
precisavam ser conhecidos e desconstruídos para que a mensagem do evangelho
paulino pudesse ser edificada sobre eles, ou no seu lugar. , ao mesmo tempo,
descontruções, justaposições e construções simbólicas. Para Paulo, o alimento
sagrado existe, mas os vários deuses não.
Para nós, porém, há um único Deus, o Pai, de quem vêm todas as coisas e
para quem vivemos; e um Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem
vieram a existir todas as coisas e por meio de quem vivemos. Contudo nem
todos tem esse conhecimento. (1Co 8,6-7a).
Construções e descontruções de espaços e identidades são, no entanto,
perigosas, que “quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não
rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma
realidade absoluta, que se opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente.”
(ELIADE, 2008, p. 26). Seu desmoronamento pode fazer com que o ser humano não
69
mais se localize e se entenda no mundo. O desabamento de suas construções
significa a anomia e o caos.
Embora o sagrado seja apreendido como distinto do homem, refere-se ao
homem, relacionando-se com ele de um modo em que não fazem os outros
fenômenos o-humanos (especificamente, os fenômenos de natureza não
sagrada). O cosmo postulado pela religião transcende, e ao mesmo tempo
inclui, o homem. (BERGER, 1985, p. 39).
Apesar de, neste capítulo, partirmos de um caminho diferente, mais uma vez
concluímos que a liberdade da pessoa cristã tem seus limites na comunidade. O
quinto capítulo deste trabalho se ocupará em demonstrar, que essa liberdade
adquirida pela adesão na fé no único Deus não torna livre para si mesmo, não libera
o caminhar entre espaços antes proibidos para satisfação de caprichos pessoais.
uma outra dimensão no conhecimento paulino, qual seja, a de ser livre para.
70
5 UMA LEITURA POLÍTICA E APOCALÍPTICA DA CEIA DO SENHOR
Em 1Co 10,14-11,1 continua em pauta a questão sobre a licitude da comida
oferecida aos deuses. No entanto, que se diferenciar entre os espaços e as
ocasiões em que o alimento sacrificado era oferecido, por isso, é preciso trazer à
baila a perspectiva dos conflitos sociais da Igreja, exarados em 1Co 11,17-22, e do
fenômeno religioso em Corinto (capítulos 3 e 4 deste trabalho). O comer e o beber
sacrificados aos ídolos confrontam-se, neste recorte, diretamente, com a Ceia do
Senhor.
Até este momento, a argumentação de Paulo girou em torno do conhecimento
e da liberdade que dele advém. O apóstolo apesar de reafirmar a insignificância dos
deuses (1Co 8,4) lembra que o conhecimento, por si mesmo, torna arrogante e
destrói (1Co 8,2.11). A liberdade cristã não tem centro em si mesma, mas no outro.
A liberdade está na comunidade. Ela deve ser experimentada a partir daquilo que
celebra a unidade da Igreja. Por isso a discussão em torno dos alimentos
sacrificados aos deuses é, agora, trazida em apenso à Ceia do Senhor.
O modelo social proposto na Ceia é muito diferente do proposto pelo Império
Romano. No Império Romano, o Estado não se volta à gerência do Bem Público.
Seus objetivos estão ligados a não intervenção público-privado. Os interesses da
coletividade dão lugar aos interesses de particulares. O Direito é privilégio de bem
poucos. A cidadania é prerrogativa dos patrícios. Apenas a estes é franqueada a
participação na vida política de Roma.
Em Roma, a política é manifestamente voltada a objetivos privados, aos
interesses das famílias que precisavam resguardar seu monopólio sobre as
riquezas saqueadas ou a exploração da terra. A palavra „pátria‟ denuncia
esta origem familiar, vem do pater famílias, e os nobres romanos eram os
patrícios. O poder concentrado no estado romano seria assim um protetor
dos patrícios, impondo os interesses destes aos demais, seja pelos tributos
(impostos) seja convocando-os para as guerras, como instrumentos de
saque. Outra parte da atividade política, a relação entre o protetor e seus
protegidos, é efetuada mediante o direito romano, que garante a não
interferência do estado na propriedade privada, nos interesses dos patrícios,
e a não ingerência do público, coletivo, no particular. (DIETRICH, 1999, p.
22).
As relações de poder do Império são tão acentuadas que, para Horsley (2004,
p. 13),
71
[...] o mais importante para compreender as origens cristãs é que o sistema
romano imperial de patronato constituiu uma das condições mais relevantes
e determinantes da missão de Paulo. [...] sob a fase inicial do império,
pirâmides de relações de poder socioeconômicas patronais cedo
permearam a sociedade grega provincial em Corinto, Éfeso, Macedônia e
outros lugares, do mesmo modo que vieram a estruturar as relações
político-econômicas em Roma nos séculos precedentes.
Ao analisar as estruturas do patriarcado romano a partir da obra de Cícero,
Ivoni Richter Reimer (2006, p. 76, 77) conclui que quando Cícero define o Estado
como patriarca ele “não quer afirmar o reinado, mas a sua estrutura patriarcal de
dominação”. Nisso transparece o fato de que Cícero quer elaborar uma teoria de
Estado a serviço da elite romana, a partir da experiência do pai proprietário e do
senhor; para os cidadãos livres, o soberano deve agir como rei ou pai; para as
demais pessoas, como um senhor de escravos e escravas.
Em linhas gerais, este é o contexto político de Corinto em 49 d.C., quando
Paulo aporta na urbe. Cidadania na província senatorial da Acaia é privilégio de bem
poucos. Sua população é, na grande maioria, constituída por escravos, como vimos
no capítulo 3 desta dissertação. O desejo de liberdade e isonomia em um Estado de
dominação é um sonho que parece muito remoto.
A cidade de Corinto era um reflexo claro do modelo romano de Império: As
relações entre Roma e Corinto exemplificam as formas mais extremas da prática
imperial romana e da sociedade imperial que essa prática produziu.” (HORSLEY,
2004, p. 238).
O patronato caracteriza as relações sociais de Corinto. Essa estrutura, de
tua exploração e dependência, é caricaturalmente repetida no âmbito das
associações civis e religiosas da cidade (veja capítulo 3 deste trabalho). A Igreja,
como vimos, era, frequentemente, confundida pelos coríntios com essas sociedades.
Mas nela está proposto um novo modelo, de ruptura com o patronato romano, o
modelo doReino de Deus‟.
O Evangelho de Cristo, segundo Paulo, anunciou a maldição e a destruição
não do judaísmo e da Lei, mas dos „regentes‟ desta época. Dado que o
contexto histórico da missão de Paulo era o Império Romano, não é difícil
extrair as implicações [...] o Evangelho de Paulo se opõe primordialmente à
ordem imperial romana, „este mundo, que é passageiro‟. (HORSLEY, 2004,
p. 14).
72
Paulo na ekklesia a oportunidade de implementação de um modelo de
justiça social, como decorrência da mensagem do Crucificado. Ele propõe a ruptura,
na Igreja, com os modelos de dominação não apenas político, mas étnico, religioso,
econômico e de gênero.
[...] as igrejas longe de representar clausuras religiosas que nada têm a ver
com as questões de cidadania, são, em verdade, setores privilegiados, no
seio de cujas comunidades o exercício de cidadania ou alienação pode ser
testado de maneira muito singular. (WEGNER, 1999, p. 103).
Paulo estava estabelecendo ekklesiai energicamente entre as nações, que
eram alternativas às „assembléias‟ oficiais de cidades como Tessalônica, Filipos, e
Corinto. Como exprime a fórmula batismal assumida por Paulo nas comunidades, as
principais divisões sociais “deste mundo que é passageiro” (1Co 7,29.31) foram
superadas, como experiência de que é possível viver de maneira alternativa às
estruturas dominadoras: “Aí não judeu nem grego, escravo ou livre, homem
nem mulher; porque sois todos um só em Jesus Cristo” (Gl 3,28).
Alguns conceitos, entretanto, precisavam ser retomados para que todos
chegassem a tal entendimento. A cidadania do Reino não se descobre ou discerne
de „cabeça velha‟. É preciso renovar a mente (Rm 12,2) [...]” (WEGNER, 1999, p.
111). Esse é o tom de 1Co 10. Os exemplos da história de Israel (1Co 10,1-13)
demonstram que com Deus não se brinca (1Co 10,22). O batismo e a Ceia do
Senhor não garantem a salvação, tal qual o “batismo de Moisés” (1Co 10,2) e a ceia
do maná (1Co 10,3-4) não o fizeram
8
.
Os sacramentos não são nenhum escudo mágico contra a desgraça.
Entretanto, são extremamente importantes para definir o status cristão e as
liberdades das pessoas crentes (BRAKEMEIER, 2008, p. 132), cuja prática não é
tão natural e simples:
O exercício da cidadania evangélica não é difícil em razão de uma série
de hábitos e costumes adquiridos e dos quais as pessoas têm dificuldades
naturais de se desprender, mas também em face de uma determinada
maneira de pensar e de certos juízos de valor profundamente arraigados
nas mentes e nos raciocínios de cada um, formando uma série de
preconceitos e idéias preconcebidas com as quais defendemos nossas
próprias opiniões e rotulamos precipitadamente a maneira de pensar de
outros. (WEGNER, 1999, p. 111).
8
Cabe aqui referência à análise de Brakemeier (2008) sobre o simbolismo e a correlação dos
elementos da Ceia cristã na tradição judaica mencionada por Paulo.
73
O exercício da cidadania que Paulo propunha se defronta com e em cada um
dos seus ouvintes com uma série de idéias e concepções assimiladas, como fruto
daquele processo que Berger (1985) chama de interiorização, a sociologia de
socialização e a antropologia de endoculturação.
A assembléia cristã de Corinto só se apresentaria como alternativa às demais
associações da cidade quando os significados da Ceia fossem socializados e
objetivados em sua práxis. Este é o tom do recorte do capítulo 11 de 1 Coríntios
(veja itens 4.2, 4.3 e 4.4). Na interiorização da mensagem paulina estava o nomos
do Reino de Deus. A realidade do Reino confere “sentido” à existência daqueles
que a tomam para si e a experimentam como “presença”.
9
Até que isso acontecesse,
a Igreja continuaria facilmente percebida pelos coríntios como uma das tantas
associações da cidade.
As refeições festivais eram traço comum da vida de associações voluntárias
de todos os tipos, e a Ceia dos cristãos ainda era interpretada dessa
maneira [...] A existência de uma sala de refeições tamm era “traço
distintivo e generalizado dos centros de culto” na antiguidade. (MEEKS,
1992, p. 234).
O ritual da Ceia, particularmente, assemelhava-se ao das
sociedades/corporações de sepultamento em que a refeição celebrava a memória
do morto. Como tal, era traço típico o fato da refeição, tomada pela família, pelos
amigos, ou pelos companheiros membros de associação de sepultamento a que
pertencia o falecido, servir como meio de comemoração.” (MEEKS, 1992, p. 235).
Os significados da Ceia igualmente aos das corporações de sepultamento estão
relacionados na tradição paulina e pré-paulina como uma comemoração cúltica de
Jesus. De modo mais destacado, ela [a Ceia] é reapresentação de sua morte, como
enfatiza o comentário acrescentado por Paulo em 1Co 11,26. Este conceito também
pode ter sido bastante familiar no ambiente dos grupos cristãos primitivos, pois,
como Bo Reicke (apud MEEKS, 1992, p. 235) destaca, a conexão do conceito
anamnésis [memorial] com a morte é bem típico para os homens na antiguidade.
É razoável dizer que os significados da Ceia estejam, intimamente,
relacionados aos do Batismo, quando tomamos por base o fato de que os dois
rituais partem do mesmo evento, qual seja, a crucificação:
9
O conceito de nomia é retirado da obra de Eliade (2008) e trabalhado no capítulo 4. Os conceitos de
“sentido” e “presença” são de Gadamer (2002) e também referidos no capítulo 4 deste trabalho.
74
Para entendermos a função específica do memorial de Jesus talvez seja
mais interessante observarmos que ele repete, sob imagens diferentes, um
dos motivos centrais do batismo. Isto significa que o sacramento repetido na
Ceia reapresenta este conteúdo central do rito de iniciação. Ambos os
rituais imprimem nas mentes dos crentes o relato fundamental da morte do
Senhor. (MEEKS, 1992, p. 235).
O que se deseja então, tanto por meio do Batismo quanto da Ceia, é trazer à
memória dos cristãos as implicações do sacrifício vicário de Jesus até que ele
venha. O Batismo e a Ceia trabalham com o imaginário dos crentes, o que, para
Lucian Boaia (apud PESAVENTO, 2005, p. 46) pressupõe imagens sensíveis e
resgatáveis”, e que implica que
[...] o imaginário funciona como um “fio terra” que remete às coisas, prosaicas
ou não, do cotidiano das pessoas, mas comporta tamm utopias e
elaborações mentais que figuram ou pensam sobre coisas que
concretamente não existem. (PESAVENTO, 2005, p. 46).
Os significados da Ceia deveriam ser contrapostos à realidade dos contrastes
expressos nos banquetes e refeições cultuais dos templos e das associações de
Corinto. A Ceia, no contexto do Império, deveria destacar as deformidades de um
sistema social. Os modelos e o status que os lugares à mesa encarnavam no âmbito
das associações civis e religiosas não deveriam ser repetidos na Igreja. Portanto,
Meeks (1992, p. 234) esclarece que o relato da Ceia em 1 Coríntios, mais do que o
processo social ordinário do ritual, tem a intenção de destacar as implicações sociais
que Paulo defende. E é precisamente por esse motivo que ricos e pobres aparecem
como interlocutores em 1Co 11.
As divisões no grupo (11,18) são primordialmente entre ricos e pobres. Os
membros mais ricos da igreja dão acolhida às reuniões e assembléias e,
provavelmente, fornecem alimento para todos. Bem de acordo com as
expectativas em muitas associações antigas e com a prática muitas vezes
adotada em banquetes quando os dependentes de um patrono eram
convidados, os hospedeiros ofereciam quantidade maior e qualidade melhor
de alimento e de bebida aos que eram iguais a ele em status social, do que
aos participantes de status inferior. (MEEKS, 1992, p. 236)
O quadro que pinta o cenário ao redor da mesa, durante a Ceia, reflete a
paisagem maior das relações sociais na cidade de Corinto e no Império Romano.
Todavia, o ato memorial de tomar do sangue e do Corpo quer fazer lembrar que, na
Igreja, havia uma outra alternativa de coexistência entre os grupos. O batismo na
morte e ressurreição de Jesus anulou diferenças sócio-culturais igualando a todos
sob a mesma Cruz; não mais judeu e gentio, escravo e livre, homem e mulher,
pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram (Gl 3,28-29).
75
No mesmo tom utilizado na Carta aos Gálatas, Paulo escreve à comunidade
em Corinto, lembrando que os efeitos do batismo devem estar refletidos nas
celebrações do Corpo, i.e., na Ceia: Pois em um corpo nós fomos batizados em
um único Espírito; quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos
nós foi dado beber em um único Espírito. O corpo não é feito de um membro,
mas de muitos. [...] Assim, muitos membros, mas um corpo. (1Co 12,13-
14.20).
O texto defende não a abolição de divisões religioso-culturais e de
dominação e exploração engendradas pela escravidão institucional, mas também a
das divisões de dominação fundadas em divisões sexuais. De acordo com a
compreensão de Paulo nessas passagens, nas comunidades cristãs os modelos
culturais de dominação não fazem sentido; todas as pessoas foram, da mesma
forma, redimidas. Todos são iguais. Todos tomaram do mesmo cálice. Por isso, na
Ceia, todas as pessoas participam de um mesmo Corpo e partilham da mesma
expectativa de redenção. A Igreja adianta a realidade escatológica do Reino de
Deus.
O mistério mais fundamental da Igreja é ser a antítese de um mundo que se
caracteriza, acima de tudo, por divisões. Em uma estrutura de blocos hostis
(Gl 3,28), os indivíduos separam-se uns dos outros por barreiras de medo e
suspeita (1 Cor 5,10-11; 6,9-10). O papel da Igreja é libertar os cativos,
revelando as oportunidades de liberdade na dependência dos outros.
(MURPHY O‟CONNOR, 2000, p. 294).
Paulo usa o simbolismo do ritual da Ceia não para estimular a coerência
interna, a unidade e a igualdade do grupo cristão, mas também para proteger suas
fronteiras em face de outros tipos de associação cúltica. (MEEKS, 1992, p. 238).
Os elementos rituais da Ceia m funções sociais específicas. A partir da
adesão em (veja item 3.5.3) dos significados comunicados pelo cálice e pelo pão,
abre-se a possibilidade de um novo mundo, de um novo lugar onde existir. Esse
lugar é a Igreja. Nela, todas as pessoas, independentemente de condições étnicas,
sociais, culturais, ou de gênero, foram redimidas pelo mesmo sangue e unidos no
mesmo Corpo. O vinho iguala, e o pão une ao Corpo.
Brakemeier (2008, p. 132) destaca que Paulo, ao que tudo indica,
propositadamente, inverte a ordem tradicional dos elementos da Ceia. “Não é
verdade que o cálice da benção que abençoamos é uma participação no sangue de
76
Cristo, e que o pão que partimos é uma participação no corpo de Cristo?” (1Co
10,16).
Na tradição judaica, toda refeição em que se servia vinho era finalizada com a
ão do cálice. Mesmo na primeira cristandade é muito provável que jamais tenha
havido celebração da Santa Ceia na qual a distribuição do pão seguisse à oferta do
cálice. O capítulo IX do livro da Didaquê, onde, aliás, a palavra “eucaristia” ocorre
pela primeira vez, não é prova em contrário. Fala da benção dos alimentos antes de
sua distribuição, sendo que no capítulo X,3 é pressuposta igualmente a sequência
tradicional de “comida” e “bebida”.
Outro forte argumento que, pensamos, apóia a tese de Brakemeier (2008)
sobre a inversão propositada dos elementos da Ceia em 1Co 10, é que na própria
Carta, quando no capítulo 11 Paulo torna a discorrer sobre a Ceia, ele retoma a
tradição original e primeiro se refere ao o (1 Co 11,23b) para em seguida falar do
vinho (1Co 11,25). E destaca: pois recebi do Senhor o que tamm lhes entreguei”,
frase que o aparece na tratativa do assunto em 1Co 10. Isso nos leva a afirmar
que, em 1Co 10, didaticamente o apóstolo se refere primeiro ao lice e depois ao
pão, apontando para a correção da compreensão que temos adotado neste capítulo:
igualados, pelo sangue, dá-se a união no Corpo.
A unidade simbolizada pela Ceia do Senhor, aqui sugerida, pode ser vista
como recordação ou reapresentação da transcendência liminar de oposições
societárias que foi declarada no batismo [...e a Ceia funciona como uma] fórmula de
reunificação batismal (MEEKS, 1992, p. 238). Por isso, quando:
Cefas e Barnae os outros judeu-cristão em Antioquia foram persuadidos
a parar de participar das refeições comunitárias com cristãos incircuncisos,
não era simplesmente unidade puramente espiritual na refeição ritual que se
achava em jogo, mas também a unidade social. (MEEKS, 1992, p. 239).
O limite dessa liberdade adquirida na coletividade não tem seus parâmetros
definidos em si mesma. Foi no cálice que se experimentou o fim dos modelos de
dominação. É o sangue que enxerta no Corpo. É no Corpo que se é livre, porque é
nele que nos tornamos „iguais‟, indicando uma „unidade na pluralidade‟:
A Igreja difere de todos os outros agrupamentos, na medida em que sua
unidade não é funcional, mas orgânica. Seus membros não estão
meramente unidos por um propósito comum, mas compartilham uma
existência comum. Um cristão autônomo é o impossível quanto um braço
77
ou uma perna independentes. Braços e pernas existem como partes.
(MURPHY- O‟Conner, 2000, p.293).
Ser Igreja é ser „um‟, através daquele que a formou, com aqueles que dela
fazem parte. É, literalmente, compartilhar „vida‟ que a Ceia propõe. Nesse sentido,
Brakemeier (2008, p. 133) conclui:
Koinonia, pois é a „chave hermenêutica‟ da ceia. Cálice e pão conferem
participação em sangue e corpo de Cristo, isto é, em sua morte e em sua
pessoa. [...] A comunhão com Cristo, pois, estabelece a comunhão dos
comungantes entre si e os transforma em comunidade, igreja. A
participação no corpo sacramental implica a participação no corpo eclesial.
(BRAKEMEIER, 2008, p. 133).
Na Igreja o „mundo‟ não é mais o mesmo. Os papéis sociais foram
ressignificados. As relações de poder têm outro parâmetro. Trata-se de um „novo‟
lugar e de uma „nova‟ criação. A inserção no Corpo implica em uma cosmogonia.
Implica na objetivação de uma nova realidade. As estruturas nômicas que os
significados da Ceia comunicam aos crentes transformam-se em estruturas da
realidade objetiva que se apresentam e confrontam às estruturas do Império
Romano.
Tomar do alimento oferecido aos deuses nos rituais de culto pagãos implica,
para os cristãos, em isquemia aguda. Os limites de seu caminhar estão na sua
comunidade. Olvidar isso, como fizeram alguns em Israel (1Co 10,1-13) é
interromper o fluxo de sangue que os iguala e enxerta no Corpo.
É por isso que para Brakemeier (2008, p. 133, 134):
[a Eucaristia] exclui a participação em refeições cultuais nos templos
pagãos. É impossível ter, a um tempo, comunhão com Cristo e
com outras divindades. [...] É incompatível participar na Santa Ceia e
em refeições rituais nos templos pagãos [...] Pois mesmo como
nulidades, essas divindades, enquanto adoradas, exercem poder. [...]
Ainda que ídolos não sejam deuses, cativam pessoas e produzem
fervor religioso. Estão dotados de poder sedutor. [...] para desarmá-
los não basta o atestado de sua nulidade. Importa negar aos „ídolos‟
a correspondente “latria, a adoração.
O conteúdo ideológico da idolatria pode ainda exercer fascínio em alguns
membros da Igreja. Apesar de os ídolos o serem nada (1Co 8,4), nem todos tem
esse entendimento (1Co 8,7). É preciso deixar de participar dos rituais que lhe
conferem existência.
78
Paulo não proíbe o comer carnes imoladas às divindades pagãs. O que es
em pauta não é a comida, e, sim, a participação nos cultos pagãos, que conflita com
a celebração da Santa Ceia e representa uma forma de idolatria. (BRAKEMEIER,
2008, p. 135).
Dessa forma, a formulação de Brakemeier (2008) é complementar ao que
sustentamos no capítulo anterior. O ser sacrificado não é uma característica
intrínseca ao alimento. Não se trata de comida sacrificada, mas de comer e beber
sacrificados”. É a postura e a presença nos cultos pagãos que são questionadas.
Paulo volta a citar a divisa provavelmente em curso entre os fortes de Corinto,
dizendo: Tudo me é permitido! (1Co 6,12; 10,23). A expressão é traiçoeira, pois é
simultaneamente correta e falsa. Porque em 1Co 10,23 “já não se trata de „minha‟
liberdade tão somente, e, sim, da liberdade de todos, razão pela qual falta o
pronome me‟: „Tudo (me) é lícito [...] liberdade que não constrói comunhão, antes
corrói, já não merece ser chamada assim. (BRAKEMEIER, 2008, p. 136).
Logicamente, aqui o pecado não é a idolatria enquanto ão cultual, mas
fazer cair os que crêem que de fato eso prestando culto aos ídolos. Paulo,
intelectualmente, está de acordo com a ortodoxia dos fortes, o que questiona
é sua práxis; prefere fazer sua a práxis dos fracos (que parte de um princípio
com o qual Paulo não es de acordo: estão habituados aos ídolos desde
tempos antigos”: 8,7). Mas o importante é salvar “o irmão por quem Cristo
morreu”. (SERNA, 1995, p. 110).
Assim, quanto à carne comprada nos açougues e mercados públicos, ou
aquelas oferecidas na casa de amigos e em festas populares, o raciocínio segue a
mesma linha: Carne comprada nos açougues do mercado pode ser consumida
tranquilamente (v. 25), contudo a responsabilidade para com o Corpo vem antes da
satisfação de desejos pessoais. (BRAKEMEIER, 2008, p. 136).
Em 1Co 11 a discussão sobre a Ceia é retomada, curiosamente, depois de
uma discussão sobre os papéis de gênero na Igreja. Paulo faz uma afirmação
categórica sobre a condição de homens e mulheres em Cristo. “No Senhor, todavia,
a mulher não é independente, nem o homem independente da mulher. Pois, assim
como a mulher proveio do homem, também o homem nasce da mulher. Mas tudo
provém de Deus.” (1Co 11,11-12). Na sequência do texto, Paulo se coloca entre
ricos e pobres na Ágape, (1Co 11,17-22), como vimos no item 3.7.
79
A atitude deliberada do apóstolo de inserir no contexto da Ceia do Senhor a
questão dos conflitos sociais e das relações de gênero, por si só, demonstra a
proximidade que o apóstolo percebe entre os temas. O contraste entre o que deveria
ser a celebração e o sacramento‟ da liberdade, unidade e da igualdade no Corpo de
Cristo vem à tona com muito brilho quando se demonstra a realidade dos conflitos
na Igreja.
Na condição de associação alternativa que atribuía a iniciados escravos ou
mulheres iguais status e papéis, o movimento missionário cristão era um movimento
conflituoso que estava em relações de tensão com as instituições da escravidão e
da família patriarcal. (HORSLEY, 2004, p. 226; RICHTER REIMER, 2006).
Horsley (2004), a partir do contexto das associações no Império Romano,
propõe uma interpretação, não apenas política, mas também apocalíptica da Ceia.
Para ele, a conotação política da mensagem do “Crucificado”, passa pela
apocalíptica judaica, pois celebra o “começo do fim”:
Longe de „desnacionalizar‟ a cruz, Paulo, por assim dizer, internacionalizou-
a. Ele insiste que os colonos romanos de Corinto, que estão a milhares de
quilômetros dos problemas da Judéia, devem modelar sua vida numa
constante lembrança de uma crucificação particular ocorrida na Judéia
porque, por meio dessa crucificação, Deus revelou o fim iminente dos
Poderes e começou a levar a “aparência deste mundo” ao fim (1Cor
7,31).[...] Dado o profundo desgosto que o assunto da crucificação causava,
como documenta Hengel, na classe alta romana, a insistência de Paulo em
falar sobre a cruz de Jesus, sua insistência em que esse evento deu início à
dissolução da ordem romana e em que os abastados e prestigiosos
coríntios da congregação cristã têm agora de se relacionar com os pobre de
uma nova maneira por causa dessa crucificação dificilmente podem ser
descritas como “minimizar os aspectos políticos” da cruz! (HORSLEY, 2004,
p. 177, 182).
A crucificação de Jesus inaugura um novo tempo, o “começo do fim”. A
mensagem do Crucificado, assumida a interpretação de Horsley (2004) da
mensagem paulina em Corinto, desestrutura o nomos social do Império. A mais
importante é a pessoa que serve. A cidadania do Reino de Deus‟ não é privilégio
dos mais importantes. Até mesmo porque “Paulo escreve que „as autoridades
[archontes] desta época‟ crucificaram o Senhor da Glória”. (HORSLEY, 2004, p.
174). Todos m o direito de serem ouvidos e os „fortes‟ devem sujeitar-se aos
„fracos‟.
O mistério mais fundamental da Igreja é ser a antítese de um mundo que se
caracteriza, acima de tudo, por divisões. Em uma outra estrutura de blocos
80
hostis (Gl 3,28), os indivíduos separam-se uns dos outros por barreiras de
medo e suspeita (1Cor 5,10-11; 6,9-10). O papel da Igreja é libertar os
cativos, revelando as oportunidades de liberdade na dependência dos
outros. (MURPHY- O‟CONNER, 2000, p. 293).
Isto, porém, não acontece através do estabelecimento de uma norma de
conduta. O apóstolo não impõe restrições de comportamento ou limita espaços para
o caminhar da Igreja. Ele instrui e dialoga com a comunidade. Em 1 Coríntios, Paulo
expõe sua idéia sobre os problemas da Igreja, mas se nega a resolvê-los ele
mesmo, porque aqueles para os quais tudo é imposto permanecem imaturos para
sempre”. (MURPHY- O‟CONNER, 2000, p. 291). Essa realidade é afirmada também
por Wegner (1999, p. 110):
Paulo não costuma dar receitas prontas para as comunidades. Ao contrário,
pressupõe nelas uma maturidade para discernir entre o certo e o errado, o
conveniente e o inconveniente. Confia que em cada cristão tem, iluminado
pelo espírito divino, o discernimento suficiente par emitir juízos próprios e
amadurecidos sobre o que fazer e não fazer (Rm 12,1-2; 14,21-23;1Co
11,28-29; 2Co 13,5; Gl 6,4; Fl 1,9-10; Ef 5,10; 1Ts 5,21-22).
A cidadania é o privilégio concedido ao indivíduo de participar na construção
do novo‟. É voz, capacidade de se fazer ouvir e de fazer parte do todo. É ao
mesmo tempo um direito personalíssimo e um múnus público. É uma faculdade do
indiduo para o grupo, para exercício na e em prol da coletividade. É direito coletivo.
Essas discussões sobre os grupos e os seus papéis sociais são condição de
possibilidade para o enfrentamento da questão do alimento sacrificado e da Ceia.
Afinal, eram os grupos sociais que estavam representados na Igreja. Eram eles que
se enfrentavam em torno desses temas. A Ceia como ato político-religioso
poderia acontecer depois que seus novos significados tivessem sido interiorizados
pelo Corpo.
À medida que os cristãos compreendiam a si mesmos como uma nova
família, exprimindo essa autocompreensão, em termos institucionais, na
Igreja doméstica, as esferas público-religiosa e privado-patriarcal não se
diferenciavam. Na realidade, era o ethos religioso de igualdade que fora
transferido para o ethos patriarcal da unidade doméstica e entra em conflito
com ela. Logo, o movimento missionário cristão oferecia uma visão e uma
práxis alternativas às da sociedade e da religião dominantes. (HORSLEY,
2004, p. 231).
Ao tornar iguais e unir os cristãos em torno do pão e do vinho, a Ceia liberta.
Liberta para o exercício da cidadania. Os excluídos, “os que nada o” (1Cor 1,28)
ganham voz, ganham o direito de falar e de serem ouvidos na comunidade. A
associação cristã se diferencia e se torna, de fato, alternativa, à sociedade. Na
81
compreensão dos significados simbólicos da Ceia está o veículo de transformação, a
essência da mensagem do Crucificado. Em perspectiva escatológica poderíamos
dizer que todas as pessoas crentes estão na mesma condição diante de seu Senhor,
para, livres, exercerem a cidadania do Reino de Deus, já no presente éon.
82
6 CONCLUSÃO
A Corinto que conhecemos nesta dissertação é uma colônia romana. O
núcleo que legitima a dominação de Roma é o mesmo do macro (Estado) ao
microsistema (família) o patriarcado, e ele estrutura a hierarquia patronal do
Império Romano.
O patronato é um sistema classista de governo, marcado por aquilo que hoje
conhecemos como tráfico de influência e permeia as relações de poder em toda
extensão do governo romano. De um lado tem-se o Estado e uma minoria de seus
mandatários e funcionários, de outro, a grande maioria de pessoas escravas, livres,
mulheres e crianças.
O mundo de Corinto é um universo sagrado. O mundo dos deuses „estabiliza‟
o mundo dos homens. Foram os deuses que „coroaram‟ a César. O imperador é um
deles e reporta-se diretamente a eles. Por isso a religião romana tem um papel
fundamental na manutenção da ordem. Ela confere sentido ao mundo romano. A
carne oferecida aos deuses e distribuída ao povo representa, àqueles que esperam
o favor das divindades, a „generosidade‟ daqueles que os oprimem e uma forma de
apropriação de significado para uma existência desgraçada.
Os problemas de Corinto não m, portanto, origem apenas nos conflitos
sociais entre os grupos nela representados; eles m origem também no mundo dos
deuses. A construção mica, apesar de produto cultural, não descarta a influência
do sagrado, porque ele se revela aos homens. O sagrado está no centro do
processo nômico. O alimento oferecido aos deuses sustenta o homem e o mundo do
homem em Corinto.
O comer e o beber sacrificados aos ídolos estão na base de sustentação do
Império. Eles fortaleciam o Estado, e diretamente também as colônias romanas, na
medida em que legitimavam o poder do imperador, e as relações hierárquicas do
Governo na vontade dos deuses. O imperador era o patrono em nome de quem
eram celebrados os banquetes rituais. Seus mandatários e funcionários
representavam o seu poder, e o povo usufruía de sua bondade. Participar dessas
83
celebrações era aderir ao modelo religioso-cultural de dominação que elas
sustentavam.
Roma via com desconfiança as diversas associações de Corinto. Elas eram
constituídas sobre os pilares ideológicos do Império. Elas tinham, portanto, potencial
para desenvolver laços entre seus integrantes tão ou mais fortes que os laços para
com o Estado.
A Igreja facilmente se confundia com uma das muitas associações religiosas
de Corinto. Ela era fortemente marcada por divisões e conflitos sociais, além do que
a Ceia que celebrava era algo que tanto para romanos quanto para coríntios poderia
não se diferenciar de um banquete ritual qualquer. Aplicando a estrutura patronal à
Igreja teríamos a divindade padroeira caracterizada por Deus-Pai e Deus-Filho, os
patronos humanos (a minoria influente), os líderes (Paulo, Pedro, Apolo) e os
membros comuns (todo restante).
O propósito de Paulo, ao escrever sobre os alimentos sacrificados aos ídolos,
é apontar as estruturas sociais que eles legitimam e os significados que eles
transmitem em seu contexto histórico-cultural. Foi por essa razão que trabalhamos,
no capítulo 3, na identificação dos grupos representados na Igreja e, no capítulo 4,
nos significados que o alimento oferecido transmite às pessoas que o tomam.
Percebemos, na análise sociológica, que comunidade cristã é um reflexo da cidade,
onde dois grupos estão representados a elite e a ralé. Esses grupos não são
homogêneos. Entre a elite estão os nobres, os sábios e os poderosos (1Co 1,16-29);
entre a ralé estão os que “nada são”, os estultos e os fracos. ainda judeus e
gentios, escravos e livres, homens e mulheres entre e na elite e na ralé. Esses
subgrupos se revezam nos embates da carta. Ao tratar do problema da Igreja, Paulo
termina por abordar um problema da cidade, apesar de não ser esta a sua
preocupação precípua.
O problema em torno do alimento sacrificado aos ídolos, para o apóstolo, gira
em torno do conhecimento. Contudo, o se trata apenas de conhecer, mas de “ser
conhecido” por Deus (1Co 8,3). O conhecimento, por si mesmo, torna “arrogante”
(fusioi) e destrói. Paulo não condena o alimento sacrificado aos ídolos. O alimento é
moralmente neutro (1Co 8,8). O que é condenável é a postura arrogante dos fortes e
a suscetibilidade dos fracos. Os templos e associações pagãs de Corinto não
84
representam, para os cristãos, mundos‟ dentro do mundo do seu Deus. Eles não
deixarão a circunscrição territorial de seu Senhor se neles estiverem nem se
tomarem do que lhes for oferecido. Afinal, eles crêem em um Deus único que fez
todas as cosias, para quem são todas as coisas e no qual existem (1Co 8,4-6).
Entretato, nem todos m esse conhecimento (1Co 8,7), alguns, talvez, por estarem
presos ao que aprenderam sobre a Lei de Moisés, outros, por estarem habituados
aos muitos deuses e aos muitos senhores (patronos) aos quais costumavam adorar
(1Co 8,5). Eles comiam do alimento oferecido como se ele fosse um sacrifício
idólatra e, por causa de sua “consciência fraca”, eram contaminados (1Co 8,7). Mas
não havia poder nesses deuses e nesses senhores que não fosse dado pelos
homens: O pecado estava justamente na latria que os homens conferiam ao produto
de suas mãos! Os fortes pecavam quando faziam cair seus irmãos fracos por quem
Cristo morreu (1Co 8,12); os fracos pecavam pela ignorância.
O conhecimento que liberta, mais que conhecer, entende-se conhecido por
Deus (1Co 8,3). Para Paulo, isso significa ser acolhido, justificado, reconciliado,
amado, salvo... (Rm 5,6). Ser amado e conhecido por Deus é, de alguma forma,
repetir esse amor pelos desvalidos. A Igreja é lugar de liberdade, porque não se
precipita em julgamentos étnicos, sociais e de gênero (1Co 7,17-24).
Paulo enfrenta a elite, em 1Co 11,17-22, porque a Ceia não celebra a
individualidade de grupos, mas a liberdade que o ser conhecido por Deus
proporciona. A identidade social não pode sobrepor-se à identidade de Corpo, de
Igreja de Deus. Caso contrário não mais livres, nem iguais. Quando o ser-eu é
mais forte do que o ser-Corpo, a Igreja vive uma crise identitária, na qual as
personalidades individuais que a compõe, sobrepõem-se à memória daquele que as
une.
Assim, nossa leitura fenomenológica do comer e beber sacrificados foi a
procura dos significados simbólicos que esse gesto ritual transmitia aos cristãos e
pagãos em Corinto. A sociedade romana, enquanto produto cultural, é construção
humana. O sagrado se revela ao ser humano, logo, intervém diretamente na cultura.
O processo para a construção nômica é dialogal e compreende três momentos,
segundo a teoria de Berger (1985), a exteriorização, a objetivação e a interiorização.
85
Na exteriorização, o homem efunde sobre a sociedade o que vê, sente e
pensa sobre as coisas. Na objetivação, o produto da exteriorização apresenta-se
como realidade às pessoas. A interiorização é a reapropriação das estruturas do
mundo objetivo em estruturas do mundo subjetivo. Quando o processo de
socialização é bastante bem sucedido, o indivíduo não só enxerga a realidade
segundo as lentes do que aprendeu sobre o mundo, como relaciona seus
conhecimentos de forma a atribuir significados às instituições que criou. É assim
que, segundo concluímos, os significados do alimento oferecido aos deuses, no
universo sacralizado de Corinto, conferem nomia às estruturas do Império,
legitimando o poder do Estado e as relações sociais do império na vontade dos
deuses.
Para que os cristãos vislumbrassem uma outra possibilidade de ser era
necessária a demitificação do universo sagrado de Corinto. Era preciso uma espécie
de unificação do sagrado. Paulo trabalha na demitologização do panteão greco-
romano e de seu alimento „santificado‟, ao mesmo tempo em que investe na
mitologização do Crucificado e da Ceia do Senhor (1Co 10,1-14; 11). Ele trabalha
com a supressão, justaposição e criação de mitos. Mas a mudança nômica não é
coisa simples. Não basta conhecer os significados que os novos gestos e símbolos
rituais querem transmitir para que ela aconteça. É necessário que eles sejam
aderidos em fé. Assumir uma identidade implica encontrar um capital simbólico de
valoração positiva, deve atrair a adesão, ir ao encontro das necessidades mais
intrínsecas do ser humano de adaptar-se e ser reconhecido socialmente. A
identidade responde, também, a uma necessidade de acreditar em algo positivo e a
que o indiduo possa se considerar como pertencente.
No capítulo 5, apresentamos o comer e o beber sacrificados em paralelo à
Ceia do Senhor. A Ceia representava a superação do modelo sócio-político do
Império. Ao inverter propositadamente a ordem do cálice e do pão em 1Co 10,16,
Paulo remete àquilo que eles deveriam significar à Igreja. O mesmo sangue foi
derramado por todos, sem distinções entre raças, sexos e status social. Esse
sangue nos iguala e a todos enxerta no Corpo (Rm 11,17). Os excluídos ganham
„voz‟. Ganham o direito de serem ouvidos. Recebem cidadania, não no Império, mas
no Reino de Deus. Eles podem começar a exercê-la em Corinto, na comunidade.
A liberdade cristã está na Igreja, porque seu sentido e razão de ser são construídos
86
no grupo, coletivamente, em relação a‟, e não em relação a si mesmo. A ekklesia,
dessa forma, se apresenta alternativa às demais associações da cidade. Mais uma
vez, apesar de não ter este objetivo primevo, Paulo trata dos problemas da cidade
de Corinto, a partir da microestrutura representada na Igreja.
Por todo o exposto, concluímos que o comer e o beber sacrificados em 1
Coríntios m função cosmogônica e nomizante e, portanto, circunscrevem a
jurisdição de um kósmos (cultural), de uma lei, que nesse caso é divina. O comer e o
beber sacrificados também representam o contraste dos grupos sociais de Corinto e
identificam as estruturas de poder do Império Romano. Conhecimento e liberdade se
relacionam ao alimento ritual, enquanto estes não apenas nomeiam e delimitam,
mas criam os limites do ser no mundo notadamente do homo religiosus, atuando
sobre suas relações com a divindade, consigo mesmo/a, com o/a outro/a e com
aquilo lhe cerca.
87
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