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Leila Maria Prates Teixeira
COMUNIDADE DE TOMÉ NUNES:
MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ALTO SERTÃO BAIANO
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação
em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia
UNEB/Campus V.
Orientadora: Profª Drª Maria de Fátima
Novaes Pires.
Santo Antonio de Jesus - Bahia
Março de 2010
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Termo de Aprovação
Leila Maria Prates Teixeira
COMUNIDADE DE TOMÉ NUNES:
MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ALTO SERTÃO BAIANO
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação
em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia
UNEB/Campus V.
Aprovado em: ____ / ____ / ________.
Banca Examinadora:
_______________________________________________________________.
Profª Drª Maria de Fátima Novaes Pires (orientadora)
Universidade Federal da Bahia - UFBA
_______________________________________________________________.
Profª Drª Marise de Santana
Universidade do Sudoeste da Bahia - UESB
_______________________________________________________________.
Profª Drª Carmélia Aparecida Silva Miranda
Universidade do Estado da Bahia UNEB
Santo Antônio de Jesus Bahia
Março de 2010.
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Este trabalho é dedicado ao meu
vozinho materno Edivar Silveira,
uma das pessoas mais bonitas e
generosas que conheci e que tive o
privilégio de conviver.
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AGRADECIMENTOS
Existem situações na vida em que é fundamental poder contar com o apoio e a
ajuda de algumas pessoas. Para a realização deste trabalho, pude contar com
várias. Por isso tentarei expressar em poucas palavras o meu sincero
agradecimento.
Inicialmente gostaria de agradecer aos moradores de Tomé Nunes, mulheres e
homens que dividiram comigo suas memórias, e histórias. Acolheram-me em suas
casas e me trataram tão bem ao longo desses anos. Devo salientar que esta
pesquisa só se realizou porque pude contar com a confiança desses.
À dona Joanita, o agradecimento é mais que especial. Obrigada pela disposição e
boa vontade de sempre. És um exemplo de mulher forte e guerreira.
Agradeço de forma sincera e profunda a minha orientadora Maria de Fátima N.
Pires, que acreditou no meu trabalho ainda na graduação e que durante todo o
percurso de escrita desta dissertação foi paciente quanto a minha inexperiência
acadêmica e não deixou que eu me desanimasse.
A todos os entrevistados, que disponibilizaram valiosos minutos de seu tempo e que
assim colaboraram tanto para que este trabalho enriquecesse.
Ao amigo Diacisio Ribeiro, que me apresentou a comunidade de Tomé Nunes e o
trabalho que a CPT realiza na nossa região. Nossas conversas nas viagens entre
Caetité/Brumado, no período da graduação, me instigaram ainda mais aos estudos
da nossa cultura popular.
À Francina Nogueira, uma amiga tão valiosa que conquistei através das visitas à
Tomé Nunes. Obrigada pelas viagens, informações e conhecimentos divididos
comigo e pela disponibilidade de sempre. E, a Irmã Helena, tão alegre e gentil e sua
companhia sempre tão agradável.
5
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local UNEB - Campus V, em especial à Ane, secretária acadêmica,
sempre tão solícita, gentil e paciente.
Aos colegas do Mestrado, em especial a Cassi, Igor e Jacó. Novos amigos que se
tornaram tão importantes nestes dois últimos anos em que trocamos conhecimentos,
dividimos angústias e que deixaram em mim, a certeza de que a amizade perdurará.
Ao professor e amigo Nivaldo Dutra, que me apresentou a historiografia baiana e
que me encantou com sua forma de historicizar a cultura negra no Alto Sertão
baiano e Médio São Francisco.
Às professoras Carmélia Miranda e Marise de Santana que durante a qualificação do
meu trabalho me indicaram possibilidades e sugestões prestimosas para o
crescimento desta pesquisa.
My teacher Marcus Mussi, que ao longo destes dois anos arrumou um tempinho e
me ajudou com as traduções dos textos para a língua inglesa.
Agradeço carinhosamente a minha amiga Karla Dias, que comigo dividiu o
nervosismo do tirocínio. E seguindo nosso slogan da Graduação: “A História
continua...” foi e ainda é minha grande companheira de congressos nessa nossa
eterna fase de estudantes/pesquisadoras.
De maneira sincera, agradeço ao meu grande e amado amigo Emerson Tadeu
Assunção. Obrigada pela amizade, companheirismo e pelas leituras atentas e
indispensáveis sugestões para o texto.
À minha irmã Êmille, pela compreensão quando eu monopolizava o computador de
casa com meus trabalhos e claro, com a ajuda essencial nas transcrições de alguns
depoimentos.
6
Ao meu irmão Ênio, que talvez não saiba, mas foi um grande exemplo para que eu
me adentrasse no mundo da História. E a Mirela, minha sobrinha e afilhada amada,
que sempre muito curiosa queria saber sobre tudo o que eu estava lendo ou
escrevendo.
A minha vozinha materna, dona Solita, sempre tão presente em minha vida.
Obrigada pelo exemplo de força e luta. E a minha Titia Dilza, que com sua presença
alegra nossas vidas e que me faz esconder meus livros para que não os amassem
as folhas, devido a sua mania de folheá-los sem parar.
De forma muito carinhosa agradeço a Ricardo Mussi, um dos grandes
incentivadores desta minha vida de estudante/pesquisadora. Obrigada pelo seu
companheirismo e apoio constantes ao longo desses anos. Neste trabalho, sua
ajuda vai desde a leitura atenciosa à revisão do texto; Sem contar as inúmeras
vezes que me acompanhou nas visitas a comunidade e/ou aos arquivos da região,
sem contar que muitas dessas viagens foram verdadeiras aventuras. Ou seja,
grande parte deste trabalho aqui tem a sua participação. Sou eternamente grata.
Aos meus pais, Alírio e Lia, que mesmo que eu escreva inúmeras palavras aqui,
estas não serão suficientes para demonstrar o tamanho da minha gratidão e
reconhecimento de que sem vocês o caminho até aqui teria sido muito difícil. Vocês
que sempre abriram mão dos seus sonhos por causa dos meus e os dos meus
irmãos. Obrigada pela confiança e pela presença constante de apoio e
perseverança. Essa vitória é para vocês.
Agradeço ao bom Deus, pelo dom da vida.
7
RESUMO
Tomé Nunes, comunidade negra, localizada à margem do Rio São Francisco no
município de Malhada/BA, foi reconhecida em 2004, pela Fundação Cultural
Palmares, como comunidade quilombola. Este processo resultou do envio (por parte
de seus moradores) de uma solicitação à Fundação para que esta procedesse ao
reconhecimento. O presente estudo trata de aspectos históricos, sociais e culturais
da comunidade, apoiando-se, sobretudo, na oralidade como fonte. O objetivo da
pesquisa é conhecer o surgimento dessa comunidade e os efeitos da condição
quilombola para os seus moradores, mulheres e homens que enfrentam uma árdua
luta pela sobrevivência ao longo do tempo. Os depoimentos de moradores se unem
à fontes impressas e manuscritas. Busca-se articulá-las e contrastá-la numa
perspectiva teórico-metodológica da História Social. No que concerne às questões
culturais e à lógica do autorreconhecimento como comunidade quilombola,
consideram-se as suas influências externas (agentes da Pastoral, políticos locais)
para a análise de depoimentos dos moradores dessa antiga comunidade do Médio
São Francisco. Dedica-se ainda a analisar o papel desempenhado pelas mulheres
da comunidade, sempre muito ativas nas lidas e lutas cotidianas. É possível
observar o prestígio feminino através de marcante participação nas questões
políticas, fazendo-se continuamente presentes nas reuniões da Associação de
Moradores, criada para reivindicar dos poderes públicos melhorias para a
comunidade. No tocante às questões culturais, as mulheres apresentam um papel
fundamental por manterem acesas práticas de seus antepassados. São vínculos
culturais de matriz africana que se expressam cotidianamente e que se mostram
valiosos na luta pela garantia de direitos. Observa-se que todo o processo de luta
pelos direitos na comunidade, vem possibilitando a formação de uma consciência
crítica. Levando esses negros a criarem e recriarem, dentro da própria luta,
organizações que contribuem no enfrentamento de dificuldades, pois muitos
acreditam que a luta ganha novas dimensões diante dos novos desafios do
cotidiano.
Palavras chave: Identidade quilombola, luta política, mulher negra, cultura
8
ABSTRACT
Tomé Nunes, black community, located to the edge of the River San Francisco in the
city of Malhada/BA, were recognized in 2004, for the Cultural Foundation Palmares,
as quilombola community. This process resulted of the sending (by part of its
inhabitants) of a request to the Foundation so that this proceeded to the recognition.
The present study deals with historical, social and cultural aspects of the community,
supporting itself, over all, in the orality as source. The objective of the research is to
know the sprouting of this community and the effect of the condition quilombola for its
inhabitants, women and men who face an arduous fight for the survival throughout
the time. The depositions of inhabitants are joint to the sources written by hand and
printed. It‟s searched to articulate and contrast them in a perspective theoretician-
methodological of the social history. About the cultural questions and the logic of the
auto-recognition as community quilombola, it‟s considered your external influences
(agents of the Pastoral, local politicians) for the analysis of depositions of the
inhabitants of this old community of the Medium San Francisco. It is still dedicated to
analyze the role played for the women of the community, always very active in the
daily works and fights. It is possible to observe feminine prestige through
conspicuous participation in the politic questions, being continuously present in the
meetings of the Association of Inhabitants, created to demand from the politic power
public improvements for the community. About the cultural questions, the women
present a basic task for keeping lighted practices of their ancestor. They are cultural
bonds of African matrix that are expressed daily and that are shown valuable in the
fight for the guarantee of rights. It's observed that the whole process of fighting for
rights in the community, has allowed the formation of a critical consciousness. Taking
these blacks people to create and recreate, within their own fight, organizations
that contribute to facing the difficulties, because many people believe the fight gains
new dimensions in face of new everyday challenges.
Keywords: identity, quilombola, political fight, black woman, culture
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Mulheres trabalhando na oficina de farinha................................................32
Figura 2: Ruínas de oficinas de farinha......................................................................33
Figura 3: Ruínas de oficinas de farinha......................................................................34
Figura 4: Altar do „Terreiro”........................................................................................55
Figura 5: dona Maria Dias da Conceição do Rosário, sendo homenageada na
Romaria da Terra e das Águas - Bom Jesus da Lapa/BA.........................................62
Figura 6: Cisterna já pronta, aguardando somente a água da chuva........................65
Figura 7: Reiseiros de Tomé Nunes se apresentando na comunidade negra rural de
Parateca. Festa de comemoração ao dia da consciência negra...............................81
Figura 8: Reiseiros de Tomé Nunes se apresentando na comunidade de Parateca.
Festa de comemoração ao dia da consciência negra................................................82
Figura 9: capela Católica da comunidade.................................................................87
Figura 10: “terreiro”, onde são feitas as orações pelas mulheres..............................87
Figura 11: Comunidade de Tomé Nunes participando do desfile de 2 de julho, em
Caeti......................................................................................................................104
Figura 12: Comunidade de Tomé Nunes participando do desfile de 2 de julho, em
Caetité......................................................................................................................104
10
Figura 13: presépio da Igreja de Malhada e os reiseros de Tomé Nunes cantando ao
seu redor..................................................................................................................105
Figura 14: Reiseros de Tomé Nunes cantando Reis, pedindo a autorização para
entrar na casa escolhida..........................................................................................107
Figura 15: Mulheres de diversas comunidades, discutindo sobre a liderança feminina
em suas comunidades..............................................................................................110
Figura 16: Oficina de “dança afro” se apresentando para os demais participantes da
festa..........................................................................................................................110
11
LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Mapa da Bahia localização das cidades de Malhada e Carinhanha, e da
comunidade de Tomé Nunes.....................................................................................23
Mapa 2: Mapa da região do Médio São Francisco, com destaque para a comunidade
de Tomé Nunes......................................................................................................... 31
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13
1. O ALTO SERTÃO, O SÃO FRANCISCO, TOMÉ NUNES:
EXPERIÊNCIAS HISTÓRICAS..................................................................................19
1.1- Memórias locais: Tomé Nunes e suas origens...................................................24
1.2- Tomé Nunes: economia local..............................................................................32
1.3- Traçando caminhos para o reconhecimento.......................................................34
1.4- Identidade quilombola.........................................................................................49
2. AS MULHERES DE TOMÉ NUNES: LUTAS E SOBREVIVÊNCIA........................59
2.1- Negras guerreiras: as mulheres de Tomé Nunes e suas conquistas para a
comunidade................................................................................................................63
2.2- Mulher e Cultura: herança partilhada..................................................................72
2.2.1- A “folia” de Reis e o povo de Tomé Nunes: história e devoção.......................75
2.3- Mulheres e as enchentes do Velho Chico...........................................................88
3. IDENTIDADE ÉTNICA NEGRA E AS RELAÇÕES EXTERNAS NA COMUNIDADE
DE TOMÉ NUNES......................................................................................................93
3.1- A migração dos jovens de Tomé Nunes para distintas cidades
brasileiras.................................................................................................................100
3.2 Os diversos olhares sobre a comunidade.......................................................103
3.2.1- Tomé Nunes e as demais comunidades quilombolas da região...................108
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................112
FONTES
Orais.........................................................................................................................114
Impressas.................................................................................................................116
REFERÊNCIAS........................................................................................................117
13
INTRODUÇÃO
A reconstituição da memória, a valorização e a preservação da identidade das
populações tradicionais é algo fundamental no processo de construção da história
de um povo. No caso das comunidades negras, esta busca tornou-se mais intensa
nos últimos anos, evidenciando o crescente interesse pela autoafirmação e pelo
reconhecimento das suas origens enquanto comunidades remanescentes de
quilombos.
No município de Malhada/BA, localiza-se à margem direita do Rio São
Francisco a Comunidade de Tomé Nunes, designada comunidade remanescente de
quilombo. Desde o século XVIII, as famílias, que hoje formam essa comunidade,
descendem de escravos que vieram da região de Parateca, fugindo de desavenças
com fazendeiros. Esta região é fortemente marcada, mais de cem anos
aproximadamente, por conflitos pela posse da terra entre populações tradicionais e
fazendeiros, supostos proprietários.
Este estudo objetiva interpretar a forma como o processo de autoatribuição de
identidade ocorreu na Comunidade de Tomé Nunes a partir do ano de 1992 quando,
após cheia no Rio São Francisco, a comunidade recebeu visitas de “agentes
externos” (CPT e políticos locais) que começaram a sinalizar a possibilidade de
identificá-la como quilombola. Este processo foi desencadeado em agosto de 2004 e
estendeu-se até dezembro do mesmo ano, após emissão de certidão de
autorreconhecimento enquanto comunidade quilombola, concedida pelo Ministério
da Cultura, através da Fundação Cultural Palmares
1
. Objetiva-se também conhecer
o surgimento dessa comunidade e os efeitos da condição quilombola para os seus
moradores, mulheres e homens que enfrentam uma árdua luta pela sobrevivência ao
longo do tempo.
1
A Fundação Cultural Palmares é uma entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída
pela Lei Federal 7.668, de 22.08.88, tendo o seu Estatuto aprovado pelo Decreto 418, de
10.01.92, cuja missão corporifica os preceitos constitucionais de reforços à cidadania, à identidade, à
ação e à memória dos segmentos étnicos dos grupos formadores da sociedade brasileira, somando-
se, ainda, o direito de acesso a cultura e a indispensável ação do Estado na preservação das
manifestações afro-brasileiras. Sua finalidade está definida no artigo 1º, da Lei que a instituiu, que diz:
"promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra
na formação da sociedade brasileira". Disponível em: http://www.palmares.gov.br/, acessando no dia
10 de julho de 2009.
14
O interesse por essa temática surgiu ainda no período da Graduação em
História na Universidade do Estado da Bahia Campus VI, na cidade de Caetité. As
disciplinas que tratavam sobre os excluídos da história sempre foram as que
chamavam mais a atenção, e, portanto, por este caminho conduzi os meus estudos.
Através de um amigo e colega de Graduação, membro da CPT da Diocese de
Caetité/BA, estabeleci os primeiros contatos com os moradores da Comunidade de
Tomé Nunes. Com uma maior aproximação foi crescendo o interesse de estudar
esta comunidade, muito motivada em identificar a sua luta diária, e os efeitos da
autoafirmação quilombola. Então, surgiram inúmeros questionamentos sobre o dia a
dia desse povo, sua cultura, sua aceitação quilombola. Foram, inicialmente, estes
questionamentos que impulsionaram a presente pesquisa.
Para tanto, voltei-me aos estudos da história regional e local que permitem,
através dos seus recursos metodológicos, adentrar no cotidiano do ambiente
comunitário e familiar de pequenas comunidades. Segundo Erivaldo Fagundes
Neves (2002, p. 45), a história regional e local:
[...] consiste numa proposta de estudo de atividades de determinado
grupo social historicamente constituído, conectado numa base
territorial com vínculos de afinidades, como manifestações culturais,
organização comunitária, práticas econômicas, identificando suas
interações internas e articulações exteriores e mantendo-se a
perspectiva da totalidade histórica.
Ao privilegiar a história local, Fagundes (2002, p. 87), parafraseando José
Honório Rodrigues, adverte sobre os cuidados a serem tomados para não
fragmentar a história, mas admite que tal abordagem é de grande importância para a
elaboração de sínteses históricas.
Cabe salientar que a ampliação de cursos de Pós-Graduação em História por
todo o país provocou o contato com documentos ainda inéditos à pesquisa, a
exemplo de atas municipais, papéis eclesiásticos e de câmaras municipais, arquivos
pessoais, inventários. Registros importantes da história que podem se perder devido
ao descaso das prefeituras municipais e à insuficiência de políticas públicas
estaduais ou nacionais com o patrimônio público.
Do ponto de vista da abordagem historiográfica, o presente estudo articula-se
à História Social, de viés culturalista, uma vez que busca alcançar representações
15
do autorreconhecimento quilombola de uma comunidade que expressa essa
condição coletivamente.
De acordo com Muniz Sodré (2005, p. 8) cultura é um termo livre e dessa
forma “passa a demarcar fronteiras, a estabelecer categorias de pensamento, a
justificar as mais diversas ações e atitudes”. Sodré complementa que esta forma
instável de significar a cultura muitas vezes torna-se um instrumento de poder nos
regimes políticos modernos.
Visto que a cultura de acordo com Sodré (2005) passa a demarcar fronteiras,
é necessária a abordagem da questão de fronteiras étnicas. Segundo o antropólogo
Fredrik Barth (1997), fronteira étnica é como uma forma social organizada, baseada
na atribuição de categorias que qualifica as pessoas em função de sua origem
suposta, que se valida na interação social, pelo contato e confronto. “[...] Fica claro
que as fronteiras persistem apesar do fluxo de pessoas que a atravessam. Em
outras palavras, as distinções de categorias étnicas não dependem de uma ausência
de mobilidade, contato e informação” (BARTH, 1997, p. 188).
A questão de fronteira étnica, assim como na noção de identidade social
coletiva, reside numa dimensão processual, sendo nela atribuídas às categorias de
„nós‟ e de „eles‟.
Assim, elaborar e desenvolver vínculos simbólicos de herança africana (como
vínculos de origem) mostra-se importantes para o processo de reconhecimento
quilombola. Nada mais legítimo, mas que deve ser analisado pela lente crítica dos
métodos da história e considerado pela sensibilidade do historiador. Este trabalho
tem como mérito buscar as raízes históricas da região, com a possibilidade de
problematizar a vida cotidiana do lugar muito arraigada a certa prevalência feminina,
não se deixando levar pelas lentes do movimento social, da Igreja, apenas
examinando-o à luz do senso comum e sim, utilizando uma análise historiográfica.
Para alcançar os objetivos, recorreu-se a depoimentos de moradores locais
como principal fonte para as experiências sociais dos membros da comunidade
negra de Tomé Nunes. Yara Khoury, (2005, p. 128) chama a atenção para um
aspecto relevante presente na oralidade:
[...] que o ato de narrar se faz no tempo e com o tempo, e que
preserva o narrador contra o tempo, nosso interesse é trabalhar a
narrativa oral no movimento da história; como uma prática social, ela
tem sua própria historicidade; o narrador constrói sua identidade,
16
fazendo uso dos elementos de sua cultura e historicidade e
recorrendo a um passado significado e resignificado no presente.
Tamm, compete considerar o papel do historiador que deve analisar
minuciosamente todas as informações ditas e até as que foram negligenciadas pelo
depoente. Para isso, Marina Maluf (1995, p. 45) nos diz:
É importante observar que os registros memorialísticos devem ser
lidos e analisados como fachos de luz sobre realidades que se
pretende conhecer mais profundamente, como pistas e como modos
de despistar. Cabe ao historiador tentar ir além do que foi lembrado,
ir além do que foi escolhido e retirar das sombras o que não foi
recordado, o que não foi escolhido. As narrativas de vida, produtos
da memória, são biografias que necessariamente aceitaram
correções. É como um „reimaginar o já imaginado‟.
Maluf alerta sobre os caminhos que devem ser trilhados pelo historiador na
utilização da História Oral, já que “a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem
tudo fica registrado.” (POLLAK, 1992, p. 4).
Ao longo da pesquisa são feitas discussões relacionando a história oral e a
memória. Visto que, para uma análise correta da fonte oral, o entendimento da
memória faz-se necessário. Utilizando-se do conceito de Maurice Halbwachs (1990,
p. 32) que diz que [...] a memória é resultado do movimento do sujeito no ato da
memorização, como também é ação dos diversos grupos sociais em suas histórias,
o passado e presente” e enriquecendo com demais estudiosos sobre o tema como
Le Goff e Marina Maluf (1995) a analise dos depoimentos ficaram ainda mais
enriquecidas, dispondo de um caráter mais crítico e questionador.
Vale ressaltar o valor que a narrativas tiveram para esta pesquisa, visto que
através delas foi feita toda a análise para melhor conhecer e entender a comunidade
de Tomé Nunes e seus moradores. Por isso, para o desenvolvimento desta pesquisa
foram gravadas muitas conversas com pessoas que tiveram ou ainda tem alguma
relação com a comunidade de Tomé Nunes e que, de alguma forma, fizeram e/ou
fazem parte da história desta comunidade.
Faz-se necessário aqui dizer que todas as transcrições das entrevistas foram
feitas conforme as falas dos depoentes.
Além das entrevistas, foram pesquisadas fontes impressas, como os livros de
José Evangelista de Souza, Geraldo Rocha, Manoel Novaes e os relatos de viagem
17
de Teodoro Sampaio. Cabe dizer, que essa pesquisa é original e inédita, haja vista
que ainda não existem estudos sobre a comunidade de Tomé Nunes e que seguindo
um trabalho de historiador, o discurso panfletário foi deixado de lado.
Ao longo do texto, busca-se manter interlocução com a bibliografia sobre o
tema. Alguns desses trabalhos contribuíram efetivamente para alargar a análise de
muitas informações obtidas com a pesquisa.
Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro buscou-se analisar a
influência da “intervenção externa” no processo histórico da comunidade,
procurando identificar como a própria comunidade reage à condição de
“remanescente de quilombo”. Antes, porém, é apresentada brevemente a estrutura
fundiária no Alto Sertão baiano e Médio São Francisco, regiões onde se localiza a
comunidade de Tomé Nunes. Abordam-se ainda as lutas enfrentadas pelos
moradores da comunidade, antes mesmo da demarcação de suas terras.
O segundo capítulo, trata da participação das mulheres na comunidade.
Dirige-se para a análise de suas lutas políticas, para o trabalho do dia a dia e para a
compreensão do papel que desempenham na transmissão de práticas culturais
vinculadas à matriz africana, componente essencial nas lutas travadas pelos
moradores do lugar.
As mulheres da comunidade apresentam-se sempre muito ativas nas lidas e
lutas cotidianas. É possível observar o prestígio feminino atras de marcante
participação nas questões políticas, fazendo-se continuamente presentes nas
reuniões da Associação de Moradores, criada para reivindicar dos poderes públicos
melhorias para a comunidade.
O papel das mulheres está relacionado às questões religiosas,
assemelhando-se ao que foi afirmado por Michele Perrot (1988, p. 83): “entre as
religiões e as mulheres, as relações têm sido, sempre e em toda parte, ambivalentes
e paradoxais. Isso porque as religiões são, ao mesmo tempo, poder sobre as
mulheres e poder das mulheres”. Em Tomé Nunes esta relação fica evidenciada no
Terreiro, bem como na organização do Terno de Reis, cuja religiosidade está
presente principalmente nestas mulheres e isto está sendo analisado nos e 2º
capítulos deste estudo.
No terceiro capítulo, examina-se a relação da comunidade com o entorno
regional. Atenta-se para os diversos "olhares" trocados entre moradores locais com
18
moradores de cidades e comunidades próximas, ou seja, como se veem e vice
versa. Trata ainda das relações internas entre membros da comunidade; destacando
o deslocamento ou permanência de lideranças locais após o reconhecimento da
comunidade como quilombola. É considerada a formação de lideranças locais, bem
como as bases que sustentam hierarquias internas na comunidade. Analisam-se os
projetos acionados com o reconhecimento quilombola e o efeito na vida cotidiana da
comunidade. Sendo assim, discutirá novos significados agregados à noção de
"comunidade quilombola".
Assim, este estudo dedica-se à compreensão dos eventos que contribuíram
para o processo de autorreconhecimento da comunidade de Tomé Nunes como
remanescente de quilombo, considerando os seus efeitos na vida dos moradores
locais.
Agora, cabe um especial convite à leitura.
19
1. O ALTO SERTÃO, O SÃO FRANCISCO, TOMÉ NUNES: EXPERIÊNCIAS
HISTÓRICAS
Na região conhecida como Médio São Francisco
2
localiza-se a comunidade
negra rural de Tomé Nunes. Ribeirinha ao Rio São Francisco, encontra-se à sua
margem direita e pertence ao município de Malhada/BA.
O processo de povoamento e ocupação econômica do Médio São Francisco,
onde se instalaram em tempos pretéritos os pioneiros da comunidade de Tomé
Nunes, iniciou-se com o domínio de duas grandes famílias, os senhores da Torre e
da Ponte, representados, respectivamente, pelas famílias Garcia D`Ávila e Antônio
Guedes de Brito. Segundo Manoel Novaes (1989, p. 17-18):
[...] dois notáveis e audaciosos portugueses principais responsáveis
pelo desbravamento do São Francisco: [...] em 1549, o Governador
Tomé de Souza desembarcou em Salvador, trazendo Garcia D´Ávila
em sua comitiva, e logo o agraciou com uma concessão de terras
situadas entre os rios Jacuípe e Itapicuru, ao norte de Salvador. [...]
Garcia D´Ávila, em 1573, havia estabelecido 10 currais de criação
de gado, trazido da Ilha de Cabo Verde. [...] Garcia D´Ávila fundou a
Casa da Torre, sempre lembrada pelas ruínas do seu famoso
castelo, construído a beira mar [...] os descendentes de Garcia
D´Ávila prosseguiram e consolidaram sua colossal obra civilizadora
de uma região inóspita da Colônia [...] Em 1663, Antônio Guedes de
Brito, fundador da Casa da Ponte, obteve, ao longo da margem
direita do São Francisco, uma concessão de terras de 160 léguas,
que ia de Morro do Chapéu até as cabeceiras do Rio das Velhas, em
Minas Gerais.
Contudo, desde meados do século XVII, os imensos latifúndios do sertão
baiano não se restringiram à presença dominante destes morgados
3
. Outras
2
A região do Médio São Francisco compreende os territórios de Pirapora (MG) até Remanso (BA),
incluindo as sub-bacias dos afluentes Pilão Arcado a oeste, e do Jacaré a leste e, além dessas, as
sub-bacias dos rios Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente, Grande, Verde Grande e Paramirim,
situando-se nos estados de Minas Gerais e Bahia. Disponível em:
<http://www.codevasf.gov.br/osvales/vale-do-sao-francisco/recus/medio-sao-francisco>. Acesso em:
10/07/2008.
3
Morgado era uma instituição jurídica de origem feudal, indivisível e inalienável, transferia-se
hereditariamente ao primogênito, - e na falta deste, de livre nomeação do titular incorporando, em
cada sucessão, uma parcela dos bens imóveis livres do titular, ampliando sempre o patrimônio
fundiário alodial perpétuo. (CASTILHO, Mariana. Da passividade à resistência: vivências territoriais
à margem do São Francisco. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de Brasília,
Brasília DF, 1999.)
20
sesmarias de grandes dimensões foram concedidas e se estabeleceram ao longo
desses sertões.
Obtidas as grandes sesmarias, Garcia D´Ávila, Guedes de Brito e
seus sucessores espalharam em fins do século XVI e por todo o
século XVII os seus currais pelas margens do São Francisco e nas
dos seus afluentes, de prolongando-se pelos sertões nordestinos
de Pernambuco, Ceará, Goiás, Rio Grande do Norte, Paraíba e
Maranhão. [...] Após os grandes latifundiários que presidiram às
instalações dos currais, famílias de importância na Colônia se foram
estabelecendo nas margens do São Francisco, adquirindo terras dos
herdeiros de Garcia D´Ávila e de Guedes de Brito, sucedendo-os no
pastoreio e criando centros de atividades nas grandes povoações
(ROCHA, 1983, p. 15-26).
Destes famosos morgados aquele que mais interessa a este trabalho é o
morgado da Ponte, que teve por expoente máximo Antônio Guedes de Brito. No fim
do século XVIII os latifúndios dos Guedes de Brito abrangiam toda a Chapada
Diamantina e a Serra Geral da Bahia e avançavam pela margem direita do São
Francisco, atravessando toda a região onde hoje se encontram os remanescentes
de quilombos e comunidades negras como Rio das Rãs, Pau Arco, Parateca,
Tomé Nunes, até alcançar o sul de Minas Gerais. A maior parte dessas terras foi
doada ao rico sesmeiro como indenização por gastos feitos nas guerras contra
holandeses na Bahia e em Pernambuco, no final do século XVII.
É sabido que o desenvolvimento e povoamento de todo sertão baiano,
estiveram relacionados diretamente à agropecuária e à mineração, conforme se
verifica em estudos dedicados ao Médio São Francisco e ao Alto Sertão da Bahia
4
.
Os currais que foram espalhados pelos Garcia D`Ávila e os Guedes de Brito por todo
o século XVI e XVII foram importantes para o abastecimento dos trabalhadores do
litoral e das minas. Conforme Rocha (1983, p. 15):
[...] Era o gado originário do vale do grande rio que abastecia de
carne a população lavradora do litoral, acionava as engenhocas ou
transportava cana nos pesados carros coloniais para as
proximidades das moendas. Por ocasião da descoberta do ouro e do
desenvolvimento da mineração no século XVIII já o vale do São
Francisco se achava repleto de gado, com rias vilas florescentes e
aldeamentos protetores instalados para seduzir os silvícolas.
4
PIRES, 2003 e 2005; NEVES, 1999 e 2003; dentre outros.
21
Nesta perspectiva, conforme explicita o autor, tanto os engenhos de cana de
açúcar do litoral quanto às minas da Chapada Diamantina foram importantes para o
desenvolvimento do Vale do São Francisco. Graças a esses currais, abriram-se
rotas de passagem pelo sertão baiano que desempenharam considerável papel para
o comércio da região, como se verifica no livro da historiadora Maria de Fátima N.
Pires (2003, p. 39), que aponta:
Durante os séculos XVIII e XIX havia três principais rotas do
comércio do sertão baiano, que se articulavam com estradas locais.
A primeira via rio São Francisco onde se realizava um comércio
ativo de carne seca e sal extraído da terra. Por esta via, chegava-se
a Januária - MG, região produtora de aguardente e rapadura, a São
Francisco das Chagas, atual Barra, produtora de sal (extraído da
terra) e a Carinhanha. Por ali se realizava o abastecimento de
aguardente e rapadura para os chamados “currais da Bahia” e estes
últimos abasteciam a região mineradora com gado e carne seca.
ainda hoje indícios destes currais. Entre as diversas comunidades que
margeiam o Rio São Francisco notam-se vestígios de antigas fazendas que
pertenceram aos Guedes de Brito. O município de Malhada/BA, do qual faz parte
Tomé Nunes, originou-se de uma das fazendas pertencentes aos antigos
latifundiários, como indica Erivaldo Neves (2003, p. 387, grifos nossos) em sua
pesquisa a livros de tabelionato do Arquivo Municipal de Rio de Contas/BA:
Malhada, fazenda [...] arrendada por Isabel Maria Guedes de Brito ao
Dr. João Calmon. A casa da Ponte vendeu essa unidade pecuarista,
em 1808, através do procurador Joaquim Pereira de Castro por 500
mil réis [...] para João Vieira de Lima, limitando com Cachoeira, no
Riacho da Cruz; Riacho, em Tomé Nunes; serra da Malhada; e
rio o Francisco. JoPorfírio de Magalhães, que a herdara dos
pais, vendeu duas glebas, em 1872 [...] para o tenente coronel João
Antero Ladeia Lima. Em Malhada desenvolveu-se o povoado original
da cidade de mesmo nome.
Segundo as fontes analisadas pelo pesquisador, existem registros de Tomé
Nunes desde 1808, portanto, há mais de cem anos. Situação confirmada pelos
relatos dos atuais moradores da localidade
5
. Deve-se levar em conta que em 1808,
os negros não tinham acesso legal à terra, e esta situação ficou ainda mais crítica
após a promulgação da Lei de Terras em 1850 que, sabemos, foi promulgada
5
Relatos de moradores de Tomé Nunes, colhidos nesta pesquisa entre os meses de abril de 2006 a
maio de 2009.
22
também com a finalidade de dificultar o acesso à terra da classe pobre camponesa
brasileira, conforme é enfatizado pelo historiador Adelmir Fiabani (2007, p. 3):
A Lei de Terras de 1850, que proibiu a entrega gratuita de terra,
pretendia impedir que a ampliação da classe de camponeses
proprietários desviasse o homem livre pobre da necessidade de
vender sua força de trabalho a vil preço nos latifúndios.
Spix e Martius (1916, p. 8) em visita ao sertão baiano entre os anos de 1817 e 1820,
fizeram relatos da administração de fazendas de criação:
[...] os proprietários destas grandes fazendas raramente moram no
sertão. Gastam suas rendas em districtos mais populosos, muitas
vezes com luxo incrível, deixando a fiscalisação a um mulato, e nem
sempre pode o viajante contar com a hospitalidade deste.
Sendo assim, não é impossível supor que a prática de passar a administração
da fazenda a algum “mulato” explique muitas das apropriações e/ou doação de
terras feita para negros que por ali trabalhavam. Outra prática muito comum no
sertão baiano consiste no trabalho para autossustento dos negros. Licurgo Santos
Filho (1956, p. 121) afirma que: “[...] quase todos os senhores de escravos
permitiram que os negros trabalhassem por conta própria, em certas horas ou em
certo dia da semana”. Nos „Livros de Razão‟ do rico fazendeiro Antônio Pinheiro
Pinto, Santos Filho (1956) pôde acompanhar os registros de valores pertencentes a
escravos de sua fazenda. Santos Filho (1956) tamm diz em seu livro que
provavelmente os valores em poder de fazendeiros também eram usados para a
compra da alforria ou para a compra de outro bem: “[...] Pinheiro Pinto tamm
permitiu que negros seus plantassem e criassem, possibilitando-lhes amealhar
haveres que serviram para gastos diversos e para a compra da alforria(SANTOS
FILHO, 1956, p. 121).
Portanto, a comunidade de Tomé Nunes, tal como seus moradores a
identificam, parece ter suas raízes históricas nessas práticas, comuns nos sertões
da Bahia. Cabe agora dizer que Tomé Nunes será tratada ao longo deste trabalho
como comunidade, tal como os seus moradores a identificam conforme se verificou
em conversas e entrevistas feitas com estes: “[...] Aí teve um moço aqui de Malhada
sempre ele teve um conhecimento aqui na comunidade” (Sr Raimundo Nonato Nery
de Brito, entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes); “[...]
23
Francisca, que hoje é a prefeita [...] ela fez muitas visitas aqui na comunidade”
(Dona Joanita Dias de Brito, entrevista realizada no dia 25 de maio de 2009, em
Tomé Nunes); “[...] Quando foi iniciada aqui a comunidade, é como eu já ouvi
falando, que aqui tinha uma pessoa que chamava Tomé” (Dona Gessina Santos
Lima, entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Mapa 3: Mapa da Bahia localização das cidades de Malhada e Carinhanha, e da
comunidade de Tomé Nunes; Fonte: http://www.mapas-brasil.com/bahia.htm; acessado em
junho de 2009.
24
1.1 Memórias: Tomé Nunes e suas origens locais.
As narrativas sobre a origem deste povoado resultam da transmissão
geracional de memórias entre os moradores locais. A memória permite a relação do
corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das
representações. De acordo com Marina Maluf (1995, p. 44):
[...] a memória é a experiência vivida, carregada pelos grupos vivos,
aberta ao movimento dialético da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas sucessivas alterações. Dado seu caráter afetivo
e mágico, é capaz de repentinas revitalizações depois de guardar
longos períodos de amortecimento. É sensível a toda sorte de
recordações particulares ou simbólicas, é vulnerável as
manipulações, censuras e projeções.
Considerando estes aspectos, ressalto que dos depoimentos coletados,
aqueles concedidos pelo “Seu” João revelaram-se bastante significativos para este
trabalho. Trata-se de um senhor de 94 anos, morador mais velho da comunidade
que apesar da idade avançada, ainda permanece lúcido. O Sr. João Pereira dos
Santos, que também é chamado pelos seus netos e outras crianças da comunidade
como “Ióió”, passa horas contando, para quem quiser ouvir, episódios relativos à
história da comunidade e da sua gente.
De acordo com a memória de “Seu” João, a comunidade se originou de uma
fazenda de um único dono que se chamava Tomé Nunes, e foi em sua homenagem
que a localidade recebeu a denominação que se estende até hoje:
Tomé Nunes era o dono desse lugar aqui, pruque essa família de
gente não morava aqui não, morava pra baixo de onde hoje é
Guanambi [...]. Ali era no terreiro dele, veio uma enchente [...]. Com
aquilo ele ficou enjoado e resorveu vender e agora meu asoube,
veio pra comprar e comprou (Entrevista realizada no dia 18 de abril
de 2008, em Tomé Nunes).
Este relato, referente à formação da comunidade quilombola de Tomé Nunes,
vem sendo transmitido de pai para filho há anos. Trata-se certamente de uma
memória geracional presentificada. O “Seu” João diz ter ouvido de seu avô, mas
essas histórias compõem as narrativas também de seus pais.
25
Como o histórias transmitidas por gerações, os mais jovens da comunidade
também as reproduzem. É o que se no depoimento de dona Gessina - conhecida
na comunidade pelo nome de Sônia - de 30 anos de idade, neta do “Seu” João, que
nos diz ter ouvido falar da origem de Tomé Nunes pela sua mãe e tamm pelo seu
avô:
Quando foi iniciada aqui a comunidade é como eu já ouvi falando que
aqui tinha uma pessoa que chamava Tomé e o sobrenome era
Nunes [...]. Então, esse Tomé era dessa época, dessa família, dessa
raça daquele tempo. Então chegou o ponto que quando alguém
chegou aqui e procurou porque esse nome e aí eles falaram que foi
porque a primeira pessoa que apareceu na comunidade. Aqui era
tudo fechado, era um capão, e o primeiro que apareceu era esse
homem que chamava Tomé, por isso, Graças a Deus, é um nominho
abençoado (Dona Gessina Santos Lima, conhecida como dona
Sônia, foi presidenta da Associação de Moradores, seu mandato
findou em maio de 2008. Entrevista realizada no dia 16 de maio de
2008, em Tomé Nunes).
Dona Benedita Pinto de Jesus, outra antiga moradora da comunidade que foi
entrevistada pelo Padre José Evangelista de Souza
6
, apresenta relevantes
informações referente à formação da comunidade. Segundo “ouviu contar”, a
primeira família de Tomé Nunes estava fugindo de conflitos com fazendeiros na
região onde habitavam, nas proximidades do que hoje é reconhecida como
Quilombos da Parateca e Pau D`Arco
7
, vizinhos à Tomé Nunes. Afirma em sua
entrevista que a compra destas terras teria sido mais atribulada do que nos relatou
“Seu” João:
[...] Os pretos para não matar, nem morrer, foram obrigados a mudar
do lugar. Foi o Major Olegário que criou esse caso com a gente.
viemos conhecer os ramos novos desse povo, os velhos não. Vieram
6
Esta entrevista esdocumentada no livro: Mucambo do Rio das Rãs: Um Modelo de Resistência
Negra. Distrito Federal: Documentário, Arte e Movimento, 1994. (Mimeografado) de autorias do Padre
Evangelista de Souza e João Carlos Deschamps de Almeida.
7
No Médio São Francisco, no município de Malhada, estão localizadas as comunidades quilombolas
de Parateca e Pau D'Arco. Dados de 2006 apontam a existência de 500 famílias com uma população
total de 1.784 habitantes que compartilha um território comum localizado na margem direita do Rio
São Francisco. Tradicionalmente, a maior parte dos quilombolas distribuía-se ao longo das lagoas e
dos braços de rio organizada em pequenos grupos familiares. Nas últimas duas gerações, contudo,
as disputas com fazendeiros forçaram a migração de parcela significativa dos moradores. Aqueles
que permaneceram na região concentraram-se na vila da Parateca, no povoado do Pau d'Arco e na
pequena localidade de Jenipapo.
Disponível em: http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/ba/ba_parateca.html. Acessado: 20
de setembro de 2009.
26
então cinco irmãos: três homens, duas mulheres. Quando vieram ver
o terreno do Tomé Nunes: João, Clara e Reginaldo; pai, filha e genro.
O João morreu afogado, na volta. Sofreu um passamento, dentro do
barco, caiu n´água. Quando ouvimos a pancada, ele tinha
afundado. ficou o chapéu. Os cinco irmãos: Joaquim, José
Mendes, Paulo Mendes, Isabel Dias e Teodora Dias da Conceição.
Teve notícias de que esse homem estava vendendo este lugar;
vieram e compraram (Relato de Dona Benedita ao Padre
Evangelista. A transcrição está feita como no livro: Mucambo do Rio
das Rãs: Um Modelo de Resistência Negra. 1994).
Em ambas narrativas, tanto na de “Seu” João como na de dona Benedita, a
compra da terra pelos pretos” é referida. Essas falas além de serem sugestivas das
tensões motivadas por questões de terra” na região, expressam formas de
resistência criadas pelos negros ao longo dos anos. Desse modo, a afirmação da
compra das terras de Tomé Nunes, representa, possivelmente, uma maneira
encontrada para evitar mais infortúnios nos dias atuais. Casos assim podem ser
relacionados ao que Alessandro Portelli (2002, p. 108) aponta como tentativa de
“controle social” através da narrativa:
É exatamente porque as experiências são incontáveis, mas devem
ser contadas, que os narradores o apoiados pelas estruturas
mediadoras da linguagem, da narrativa, do ambiente social, da
religião e da política. As narrativas resultantes não a dor que elas
descrevem, mas as palavras e ideologias pelas quais o
representadas não podem, como devem ser entendidas
criticamente.
Desta forma, cabe ao historiador analisar esses depoimentos criticamente e
minuciosamente, visto que, conforme nos alertou Michael Pollak (1992, p. 4) “a
memória é seletiva”. Portanto, o entrevistado tende a dizer o que lhe convém ou
mesmo o que ele quis guardar daquele determinado acontecimento.
Pode-se dizer que as memórias em torno das origens da comunidade de
Tomé Nunes estejam hoje ligadas ao que Maurice Halbwachs (1990) chama de
“memória coletiva” ou social, principalmente se considerarmos que as memórias
individuais (de eventos comuns) remetem necessariamente a um grupo, a uma
lembrança que resulta de interesses em jogo nos tempos históricos. Em outras
palavras, os sujeitos não se apoiam somente em suas lembranças, mas também na
de outros, partilham assim de uma seletividade comum. Halbwachs (1990, p. 25) diz
que assim a nossa confiança na exatidão da evocação “será maior, como se uma
27
mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma pessoa, mas por
várias.” A memória coletiva metamorfoseia-se em construção social do passado
através dos relatos de indivíduos e de sua participação grupal, ou seja, conformados
a uma „comunidade afetiva‟, tendo assim pontos de vista comuns entre seus
membros:
Não basta que eu tenha assistido ou participado de uma cena onde
outros homens eram espectadores ou atores para que, mais tarde,
quando eles a evocarem diante de mim, quando reconstituírem peça
por peça a sua imagem em meu espírito, subitamente esta
construção artificial se anime e tome a aparência de coisa viva, e a
imagem se transforme em lembrança. Frequentemente, é verdade,
tais imagens que nos são impostas pelo nosso meio, modificam a
impressão que possamos ter guardado de um fato antigo, de uma
pessoa outrora conhecida. Pode ser que essas imagens reproduzam
mal o passado, e que o elemento ou a parcela de lembrança que se
achava primeiramente em nosso espírito, seja sua expressão mais
exata: para algumas lembranças reais junta-se assim uma massa
compacta de lembranças fictícias” (HALBWACHS, 1990, p. 28).
Muitas vezes o depoente diz coisas que o foram vivenciadas por ele, mas
por ter ouvido diversas vezes e por tantas vezes já-la repassado que age como se
tivesse participado ativamente de determinado acontecimento. Michael Pollak (1992,
p. 2) nos diz que:
No decorrer de uma entrevista muito longa, em que a ordem
cronológica não está sendo necessariamente obedecida, em que os
entrevistados voltam várias vezes aos mesmos acontecimentos,
nessas voltas a determinados períodos da vida, ou a certos fatos,
algo de invariante. É como se, numa história de vida individual mas
isso acontece igualmente em memórias construídas coletivamente
houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidificação
da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de
mudanças. Em certo sentido, determinado mero de elementos
torna-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da
pessoa.
Esta compreensão é reforçada por Marina Maluf (1995, p. 36) que afirma:
O recurso a contribuições exteriores ou à memória coletiva é
essencial para a reconstrução pessoal de imagens de outros tempos.
Para que a memória individual se realize ela sempre se socorre da
memória alheia, que funciona como um repositório de pontos de
contato.
28
Adentrar no território da memória nos remete metodologicamente para as
indicações de Sidney Challoub (2003, p. 17, grifos nossos) sobre a necessidade de
ummétodo interpretativo” para as nossas fontes:
[...] detalhes aparentemente marginais e irrelevantes são formas
essenciais de acesso a uma determinada realidade; são tais detalhes
que podem dar a chave para redes de significados sociais e
psicológicos mais profundos, inacessíveis por outros métodos.
Tamm é possível considerar que a recriação de um acontecimento passado
pode representar uma experiência purificadora ou, até mesmo, bastante
traumatizante, visto que diversas vezes alguns acontecimentos remetem o indivíduo
ou grupo a situações difíceis ou a sentimentos desagradáveis e, assim, ao invés de
abrir aquela ferida o depoente prefere omitir ou pouco aprofundar sobre
determinados eventos, o que possibilita a constituição de duas ou mais versões
sobre o mesmo episódio.
[...] recriar o que passou, é uma experiência purificadora e
libertadora, pois através da „mágica da memória‟, [...] repassar o
vivido em outra época serve como purgação na mesma medida em
que expressar dores significa alivio (MALUF, 1995, p. 32).
Cabe salientar que o trabalho de rememoração é um ato de intervenção na
desordem das imagens guardadas. Dessa forma, é tamm uma tentativa de
organizar um tempo sentido e vivido do passado, que finalmente é reencontrado
através de uma vontade de lembrar.
A narrativa sobre a formação da comunidade transmitida, seja pelo “Seu”
João, seja por dona Benedita, foi realizada de maneira não linear, ou seja, não
parece que se apoia em pontos fixos de tempo e espaço. As suas narrativas foram
compostas por fragmentos de memória, marcadamente presente em seus relatos:
ora inicia-se pela compra, ora pelo conflito que marcou a migração para Tomé
Nunes. Nota-se que o ato de comunicar o lembrado, sem organização prévia ou
temporal das ideias, evoca a espontaneidade dos depoimentos sustentada pelos
revezes da rememoração.
Tanto o depoimento de dona Benedita quanto o de “Seu” João sobre a origem
da comunidade, reforçam a ideia apresentada pelo antropólogo José Jorge de
Carvalho (1997, p. 2) sobre os quilombos contemporâneos:
29
[...] uma boa parte descende diretamente de quilombos históricos,
enquanto a maioria delas foi formada a partir da relocação e
reorganização de quilombos desfeitos pelas forças de pressão da
sociedade escravista, ou mesmo em consequência das condições
geográficas e naturais especialmente adversas de sobrevivência
física de seus membros fundadores.
Os depoentes falam sobre a vinda dos negros de outras regiões, que
procuravam um ambiente mais propício à sua sobrevivência ou que fugiam de
conflitos, como se nota na fala de dona Benedita que nos diz: Os pretos para não
matar, nem morrer, foram obrigados a mudar do lugar”.
Portanto, Tomé Nunes enquadra-se no que chamamos de quilombo
contemporâneo, que segundo Glória Moura (1999, p. 100) pode ser definido como:
[...] comunidades negras rurais habitadas por descendentes de
escravos que mantém laços de parentesco e vivem, em sua maioria,
de culturas de subsistência, em terras doadas, compradas ou
ocupadas secularmente pelo grupo.
Retomando a origem da comunidade através de conflitos pela terra, Maria de
Fátima N. Pires (2005, p. 228) em seu estudo sobre o Alto Sertão baiano entre os
anos de 1860 e 1920 destacou os conflitos existentes nesta região entre escravos
libertos e alforriados:
As dificuldades de acesso às terras e aguadas motivaram disputas
acirradas na região, conflitos insolúveis e muito violentos. [...] Pode-
se dizer com segurança que a árdua luta pela sobrevivência,
evidenciada em diversos processos criminais, exigia acordos entre
vários segmentos, desde a entrega de terras para o plantio e a
criação, aos acertos internos que delimitavam as fronteiras entre os
terrenos de agregados.
Esses estudos, que remetem ao século XIX, mostram que a disputa por terras
e por condições de sobrevivência nas terras do sertão, principalmente para os mais
pobres, é tanto antiga como resulta de lutas bastante árduas. Aqui pode-se notar
que a articulação dessas referências nos permite dar plausibilidade aos discursos de
“Seu” João ou dona Benedita que falam da migração por conflito de terra como fator
de origem do povoado de Tomé Nunes. Não resta dúvida que os conflitos de terra
naquela região do São Francisco sempre foram bastante intensos. Outras
30
referências sobre o “conflito de terra” na região serão abordadas mais adiante, ainda
neste capítulo.
Como se , buscar localizar a formação de Tomé Nunes não é
empreendimento dos mais ceis. Mas foi possível encontrar uma referência mais
segura na “descrição” do engenheiro Theodoro Sampaio (1955), em seu livro
intitulado “O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina”
8
. Ele diz ter passado nos
arredores de uma fazenda denominada Tomé Nunes no ano de 1879, e pela
localização por ele apresentada é possível dizer que se trata dessa comunidade.
Com maior riqueza de detalhes quanto ao posicionamento geográfico desta, ele
afirma: “As horas passávamos pela fazenda de Tomé Nunes, no desaguadouro
da lagoa do Mocambo que fica a sueste
9
para os lados da serra da Malhada, serra
que a custo se divisava ao longe por uma aberta da catinga” (SAMPAIO, 1955, p.
159).
8
Este livro é o diário da viagem realizada pela Chapada Diamantina e o Rio São Francisco nos anos
de 1879 e 1880 por uma comissão de engenheiros contratada pelo governo na época para estudar os
melhoramentos dos portos do Brasil e a navegação interior.
9
Sueste, no dicionário é o mesmo que sudoeste.
31
Mapa 4: Mapa da região do Médio São Francisco, com destaque para a comunidade
de Tomé Nunes. Desenho feito em 1879, pelo engenheiro Theodoro Sampaio. Fonte:
SAMPAIO (1959, p. 88)
32
1.2 Tomé Nunes: economia local
No ano de 2009, segundo dona Joanita Dias de Brito, 45 anos de idade,
moradora e agente comunitária de saúde, responsável pelo acompanhamento da
comunidade, Tomé Nunes apresentava-se constituída por 85 famílias que vivem “da
roça”, plantações para subsistência e também para o pequeno comércio nas feiras
da região
10
. Dona Gessina Santos Lima, ex-presidenta da Associação de Moradores,
com mandato findo em maio de 2008, apontou os produtos agrícolas mais
comumente cultivados pela comunidade:
O pessoal planta mais é feijão, milho, maniva
11
, só que a maniva que
o pessoal planta é mais do outro lado do rio, como tem uma ilha lá,
feijão, milho, feijão catador, feijão de arranca... milho, mas o que o
pessoal mais planta é mais milho e o feijão catador. O de arranca é
na vazante, porque o rio enche e agora fica aquela terra molhada
que a gente vai cultivar ela pra poder plantar (entrevista realizada no
dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Figura 1 - Mulheres trabalhando na oficina de farinha. Fonte: Foto de Leila Maria Prates
Teixeira. abril de 2008.
10
A feira mais visitada pelos moradores é a do povoado do Julião, distrito também pertencente ao
município de Malhada/BA que fica à margem da BR 030.
11
Maniva é uma espécie de mandioca própria para o fabrico da farinha.
33
O plantio de maniva na região de Tomé Nunes é muito comum, e é uma
prática vinda dos antepassados, como foi possível constatar em visita à região
quando se observam inúmeras oficinas de farinha desativadas. O historiador
Eurípedes Funes (2005) ao tratar dos mocambos do Amazonas também cita a
maniva como um dos produtos mais plantados pelos mocambeiros. Afirma ainda que
a farinha de mandioca representava alimento básico dos mocambeiros. Funes
(2005, p. 481) relata o depoimento de uma neta de mocambeira que ouvia de sua
avó como os negros faziam quando fugiam do cativeiro:
[...] não levavam feixe de maniva não. Aquelas caboclas, mulatas
grande quando tavam iniciando pra fugi, iam na roça tiravam a
semente de maniva, tabaco, semente de tudo quanto é planta [...]
chegavam iam plantá, que quando os outros chegavam, tinha
pra sustento.
Esse depoimento citado por Funes (2005, p. 481) remete-nos novamente à
questão da formação da comunidade, quando os seus moradores dizem que ela
teve origem em outras comunidades negras que trouxeram consigo práticas de
antepassados, prováveis cativos. A lavoura de subsistência, e o fabrico da farinha de
mandioca revelam essas heranças.
Figura 2: Ruínas de oficinas de farinha. Comunidade de Tomé Nunes. Fonte: Foto de Leila
Maria Prates Teixeira - abril de 2008.
34
Figura 3: Ruínas de oficinas de farinha. Comunidade de Tomé Nunes. Fonte: Foto de Leila
Maria Prates Teixeira - abril de 2008.
1.3 Traçando caminhos para o reconhecimento
Ano de 1988 retomada da democracia, lutas políticas dos diversos grupos de
oposição, a promulgação de uma Constituição da República. Enfim, após mais de
duas cadas de exceção e de violação de direitos humanos pelo regime militar, a
sociedade brasileira despertar sujeitos ansiosos pela cristalização democrática e
pela obtenção de dignidade pública e pessoal, valores alijados não por vinte anos,
mas por cinco séculos para muitos daqueles que aqui viveram.
12
Eis o contexto da elaboração do Art. 68 do Ato das Disposições Transitórias
Constitucionais, que confere aos remanescentes das comunidades de quilombos o
reconhecimento da propriedade definitiva sobre as terras que ocupam, com o dever
estatal da emissão dos respectivos títulos.
12
Sobre a inclusão de direitos na Constituição da República de 1988, ver: FIOCCA, Demian (Org.) e
GRAU, Eros Roberto. (Org.) Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
168p
35
Tomé Nunes foi reconhecida como comunidade quilombola pela Fundação
Cultural Palmares. Este fato ocorreu após tramite legal concluído em dezembro de
2004, e segundo relato de alguns moradores locais
13
esse processo não foi
demorado. Dona Joanita Dias de Brito, agente de saúde e atual presidenta da
Associação de Moradores da comunidade, assim o referiu:
Lavramo uma ata falando no qual como era a comunidade, o quê que
tinha na comunidade, a cultura, né? E mandemos pra Fundação
Palmares. Ele documentou e mandou e aí veio a Certidão, o
endereço a gente mandou pra vir pelo sindicato dos trabalhadores
rurais. (Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé
Nunes. Grifos nossos.)
A pessoa que dona Joanita implicitamente cita em sua fala é o Sr. Mário
Ferreira das Neves (ou Mário de Rege, como popularmente é conhecido pelos
moradores de Tomé Nunes). Este foi candidato a vereador da cidade de Malhada,
amigo da comunidade e responsável por apresentar a ideia e orientar sobre os
primeiros procedimentos da comunidade junto à Fundação Palmares para o
reconhecimento do título de “comunidade quilombola”.
Em seu depoimento dona Joanita salienta que “eles já sabiam que eram
remanescentes de quilombos”, porque já ouviam dizerpor dona Francisca Ribeiro,
membro do movimento popular
14
da Igreja Católica (hoje prefeita da cidade de
Carinhanha)
15
. Dona Joanita disse ainda que eles (comunidade) não duvidavam do
que dona Francisca dizia, “porque confiavam muito nela”, mas que não saberiam
como recorrer a esse direito, e somente quando o referido vereador resolveu ajudá-
los é que então “foram à luta”:
[...] Antes nós sabia que era remanescente de quilombos, porque
sempre Francisca, que hoje é a prefeita, ela fez muitas visitas aqui
na comunidade e aí ela falava que nós aqui era remanescente de
quilombo, porque tinha o nome de mucambo próximo, então onde
13
Estes moradores são: Joanita Dias de Brito, Raimundo Nonato Nery, Gessina Santos Lima, dentre
outros. Depoimentos prestados entre os meses de abril e maio, do ano de 2008.
14
Movimento Popular é uma designação dada por seus próprios militantes, diferente do conceito de
movimento social criado pela sociologia, o movimento popular é fruto das contradições sociais e
econômicas do sistema capitalista, podendo o movimento popular ser um agrupamento de
comunidades carentes que ocupam uma área urbana, como também ele não pode ser um movimento
de classes abastadas que estão defendendo uma pauta propositiva como os movimentos ambientais
e GLS.
15
Carinhanha, cidade baiana que faz fronteira com Malhada, se localiza a margem esquerda do Rio
São Francisco e que é muito frequentada pelos moradores de Tomé Nunes.
36
tinha uma localidade próxima que chamava de mucambo então essa
comunidade era remanescente de quilombo e pelas histórias dos
antepassados. Só que a gente não sabia como requerer esse
documento (...)
Dona Joanita e o Sr. Raimundo Nonato
16
, relatam que se passaram “uns dois
meses” para que a certidão de reconhecimento chegasse até a comunidade. Dessa
maneira, percebe-se que para o recebimento da certidão de comunidade
quilombola” o foi necessária muita burocracia (documentos comprobatórios) ou
mesmo um profundo estudo memorialístico, porque de acordo com a Instrução
Normativa nº. 16 de 24 de março de 2004, art. 3º
17
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, os
grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida.
Essa nova conceituação de remanescentes de quilombos, embora insira o
viés racial, o relaciona com etnia, e ainda resolve um problema capital que o termo
remanescente implica, o da comprovação histórica. Portanto, a comunidade negra
que se declarar remanescente de quilombo receberia a certidão da Fundação
Palmares. No entanto, no momento da demarcação das terras, em definitivo -
realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
18
- a
conservação da memória pelas comunidades, preservada por estudos
memorialísticos, é de fundamental importância para que elas se mantenham no
cadastro nacional de imóveis rurais, que auxiliam na administração das terras
públicas da União.
Esta memória o seria forjada, como algo “de fora”, mas, vivamente
presentificada nas formas coletivas de cultivar a terra, nas rezas, nas festas e
danças praticadas pelos moradores dessas comunidades. Práticas estas que, ao
longo do tempo, vão incorporando outras representações e significados que
constituem modos de vida próprios.
16
O Sr. Raimundo Nonato Nery de Brito, era um dos membros da diretoria da Associação de
moradores na gestão em que foi solicitado o reconhecimento. Hoje ele ainda participa ativamente das
questões políticas da comunidade.
17
Aprovada pela Resolução/CD nº 6/2004 D.O.U nº 78, de 26.04.2004, seção 1, p-64.
18
Autarquia federal criada pelo Decreto n. 1.110, de 9 de julho de 1970 e implantado em todo o
território nacional por meio de 30 Superintendências Regionais.
37
A partir do decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003, a comunidade negra
que se autodeclarar remanescente de quilombo tem o direito legal sobre a terra
habitada. A utilização do termo remanescente é certamente uma tentativa de tornar
essas comunidades negras nomeáveis, adjetivando-as para que se fizessem visíveis
e aceitáveis. Tal fórmula funciona como solução classificatória por meio da qual se
admite a presencialidade do estado de negro/escravo nos atuais quilombolas.
Prontamente, o historiador José Mauricio Arruti afirma: (2006, p. 70) o „quilombo‟ é
sem dúvida o elemento mais importante na alquimia semântica formada pela adição
do termo „remanescente‟”.
De acordo com a socióloga Thaís Marinho (2008, p. 16): “[...] inspirados pelo
conceito de quilombos à época da escravidão, muitos agentes, pessoas vindas de
fora esperam encontrar comunidades atualizadas dos antigos quilombos [...]”.
Seguindo esta ideia, muitos imaginam que encontrarão comunidades que ainda
praticam relações arcaicas de produção e reprodução social, misticismos,
geralmente relacionados à cultura africana, associando tais comunidades a um
mbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e
militância negra.
A autora explicita que em muitos casos, essas pressões, serviram para que
uma definição conjunta de identidade fosse adotada, em que a aparente
conservação da cultura de origem facilitaria para que a legitimidade daquela
comunidade fosse reconhecida e que seus traços culturais exaltariam a etnicidade
adequando o passado ao presente. Isso quer dizer, que quanto mais sinais
diacríticos os remanescentes possuírem relacionados ao passado de quilombo, mais
legitimidade para acessar os benefícios garantidos pelo artigo 68 eles terão”
(MARINHO, 2008, p. 16).
Durante muito tempo pensou-se que o isolamento gerava culturas mais puras
e com traços distintivos mais marcados. A antropóloga Manuela Cunha (1986, p. 99)
discorda afirmando que: “a cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em
situações de extremo contato não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire
uma nova função, torna-se uma cultura de contraste”
Fredrik Barth (1997) em suas discussões sobre grupos étnicos e suas
fronteiras afirma que o grupo fala de si quando está relacionado com outros
38
grupos, quando toma consciência de si e quando reconhece a sua diferença em
relação ao outros grupos:
As distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação
social e aceitação, mas são, muito ao contrário, frequentemente as
próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas
sociais englobantes. A interação em um sistema social não leva a
seu desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças
culturais podem permanecer apesar do contato intertnico e da
interdependência dos grupos (BARTH, 1997, p. 188).
Nas situações de fronteiras a identidade é mais operante, visto que os traços
característicos e diferentes de cada grupo são reafirmados e, portanto, marcados.
Percebe-se assim que a cultura não é pressuposto destes grupos étnicos e sim um
produto. Segundo Fredrik Barth (1997, p. 189) grupos étnicos são categorias de
atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e, assim, tem a
característica de organizar a interação entre as pessoas.” Assim, compartilhar uma
cultura é uma consequência da etnicidade e não sua explicação.
O grupo pode por em cena os traços culturais quando for de seu interesse,
por exemplo, os índios não andam sempre pintados, mas quando vão lutar por seus
direitos, pintam os rostos (CRUZ, 2004). Isso é sempre uma forma mais concreta de
mostrar a todos sua identidade. Desta forma, a etnicidade, como qualquer outra
forma de reivindicação cultural, é uma forma respeitável de protestos políticos.
Provavelmente, o conhecimento dos benefícios que o artigo 68 poderia trazer
para os moradores de Tomé Nunes fez com que os mesmos modificassem a ideia
de se reconhecerem como negros e de buscarem a certidão. Isso fica evidenciado
no depoimento de dona Joanita que diz: “Nós sabia que era remanescente [...]
que a gente não sabia como requerer esse documento.” Certamente quando dona
Francisca lhes informou sobre as comunidades remanescentes de quilombos ela
não tinha total conhecimento sobre os beneficios
19
e como o termo „remanescente
de quilombo‟ está fortemenente ligado ao termo „ser escravo‟ não levantou nos
moradores um interesse maior para que esse reconhecimento quilombola naquele
momento acontecesse.
19
Isto é possível visto que a data dos primeiros contatos de dona Francisca Ribeiro com a
comunidade são do inicio da década de 90. Um período ainda de consolidação da lei e que
praticamente não existiam políticas públicas para incluo do negro na sociedade brasileira.
39
José Mauricio Arruti (2006, p. 38) discute a importância da memória para as
questões que envolvem comunidades tradicionais, e como esta memória pode se
relacionar com o documento escrito. Nessa medida, não interessaria somente o “fato
pelo fato”, mas como os fatos vividos pelos antepassados marcaram a população
local. Ele explica:
Na prática das “histórias de vida” ou dos relatos de domínio coletivo,
não está em jogo apenas o que “de fato aconteceu no passado”, nem
apenas a construção de uma personagem biográfica, mas também,
com a mesma importância, as formas pelas quais o presente
relaciona-se com o passado, as interpretações conflitantes que
ajudam a multiplicar os pontos de vista sobre aqueles eventos do
passado até então presos à dimensão documental.
As lembranças das localizações das casas, das oficinas de farinha, dos
pastos, dos pilões, enfim, das áreas designadas para trabalho, culturas agrícolas e
práticas folclóricas, desenvolvidas pelos antigos, predominantes até os dias de hoje
ou que apresentem vestígios materiais, poderão servir de fortes aliados para que a
população possa reivindicar uma demarcação correta de suas terras. O objetivo
dessa iniciativa é o de reduzir as injustiças sociais e também as disputas pelas
terras nas regiões entre quilombolas e fazendeiros, sendo estes últimos pretensos
proprietários.
Caso estes fazendeiros consigam comprovar através de um tulo válido
incidente no território quilombola, então o governo estadual ou federal deve
realizar a desapropriação, que segundo o Boletim Terra de Quilombo
20
é:
[...] bem diferente de uma simples compra de terra porque o
proprietário o pode escolher se quer ou não vender. Na
desapropriação, o proprietário recebe um pagamento pela terra e por
suas benfeitorias, mas não tem o direito de decidir se quer ou não
vender sua terra. O governo é quem toma a decisão.
Essa situação nos faz retomar aqui a questão da formação do vale do São
Francisco, ainda no século XVIII, quando o Morgado da Casa da Ponte começava a
dar os primeiros sinais da crise, que resultaria na sua completa liquidação nas
primeiras décadas do século XIX.
20
Boletim Terra de Quilombo 02, novembro de 2007. Organização Comissão Pró-Índio de São
Paulo. Dispovel em: http://www.cpisp.org.br/pdf/boletim02_terras.pdf. Último acesso em maio de
2009.
40
Estes sinais foram demonstrados, por um lado, pela cobiça e a competição de
outros grandes sesmeiros e latifundiários, sempre dispostos a grilar e abocanhar
tudo o que lhes fosse possível em terras de patrimônio alheio; e, por outro, pela
resistência cada vez mais tenaz de sitiantes, foreiros, posseiros, arrendatários,
agregados, inconformados de pagarem dívidas exorbitantes, diante da
eventualidade de desocuparem as terras, ou mesmo de terem que se submeter
incondicionalmente ao poder de mando e usurpação do grande morgadio (SILVA,
1998, p. 375-376).
A crise secular do Morgado da Casa da Ponte aumentou na entrada do
século XIX com os diversos fatores de involução econômica do vale do São
Francisco. A historiadora Ellen Woortmann (1995, p. 228-229) completa ao afirmar
que:
[...] Se a sesmaria e o morgadio impediram que se constituísse um
campesinato parcelar que detivesse a propriedade jurídica da terra,
não impediram a constituição de uma camada de posseiros, cuja
lógica de produção-reprodução se pautava num código
consuetudinário. A inexistência de propriedade formal, e a não
ocupação efetiva pelos sesmeiros, vieram configurar um padrão de
ocupação e de transmissão da terra baseada em princípios de
parentesco (...). Mas, por outro lado, principalmente a partir da
implantação do conceito de propriedade mercantil instituída pela Lei
de Terras, a ausência de titulação legal que se configurasse um
processo de expropriação e de limitação do acesso à terra,
condicionando-a, crescentemente, ao pagamento de uma renda
fundiária.
Desde então, passou-se a declarar-se a ilegalidade da posse tradicional.
O princípio de que é dono da terra quem a trabalha, inerente a uma
ordem moral camponesa tradicional, é substituído pelo critério
burocrático, espelho de uma ordem burguesa mercantil. O acesso à
terra passa a depender do acesso ao cartório (...). No Nordeste, em
geral, o avanço sobre as „soltas‟ para registrá-las em cartório e
transformá-las em propriedade privada resultou em barreira ao
acesso à terra por parte do pequeno lavrador (WOORTMANN, 1995,
p. 230).
É no contexto político, configurado em fins do século passado até princípios
do atual que se pode estabelecer a origem da maioria das comunidades
camponesas dos municípios de Malhada e Carinhanha, ao longo do Rio São
Francisco, no Oeste baiano. Do rio Carinhanha à Serra do Ramalho, e desta ao São
41
Francisco, comunidades rurais ocupam terras de antigas sesmarias, transformadas
em fazendas, ou mesmo aquelas que configuram posses em terras devolutas, às
margens esquerda e direita do mesmo rio.
Inúmeras fazendas são provavelmente ainda sucessoras de arrendatários dos
Guedes de Brito. E pode-se comprovar isso quando se caminha pela região do São
Francisco e notam-se as inúmeras cercas que dividem as propriedades, motivadoras
de conflitos entre quilombolas e fazendeiros.
Os conflitos de terra no Médio São Francisco foram estudados pelo
historiador Nivaldo Dutra (2007, p. 21) que explica a necessidade dos laudos como
mecanismo de controle da grilagem de fazendeiros:
A década de 1980 marcou profundamente a região do Vale do São
Francisco: trabalhadores rurais envolveram-se em vários conflitos
contra ricos fazendeiros que queriam se apossar das terras
habitadas por antigos moradores para a implantação de projetos
agropecuários em terras povoadas ancestralmente. Essas
localidades se transformaram em alvos de disputas entre antigos
moradores e ricos fazendeiros. No processo de legalização dessas
áreas, estudos, laudos e outros documentos foram sendo elaborados
e usados como argumentos em torno das questões em disputa.
Ainda sobre os mesmos acontecimentos, a geógrafa Mariana Castilho (1999,
p. 61) apresenta um estudo dedicado ao conflito entre fazendeiros e pequenos
proprietários nas comunidades de Pau D´Arco e Parateca, vizinhas à comunidade de
Tomé Nunes:
Paralelamente ao conflito com a família Moura, em fins dos anos 80
teve início o conflito com a família Bastos, proprietária da fazenda
Capim de Raiz, na ilha da Boca da Barra, localizada defronte à
entrada da comunidade Barra da Parateca. Este conflito foi pautado
na questão desta ser formada pelo rio o Francisco e por isso terra
pública e não propriedade privada como afirmavam os fazendeiros.
Nota-se nesta descrição que os conflitos começaram no final da década de
80, certamente após a aprovação da Lei 7.688 de 22 de agosto de 1988, que
regulamenta o procedimento para identificação das terras ocupadas por
remanescentes. Tudo leva a crer que tal lei deva ter causado certo receio entre
fazendeiros da região, muito preocupados com a manutenção e/ou perda da
propriedade rural.
42
De modo geral, os conflitos entre camponeses negros do Médio São
Francisco e grandes proprietários de terra, muito embora com diferentes atores e em
diferentes localidades, sempre giraram em torno da posse da terra. Todos foram
violentos, mesmo quando a violência física não fosse explicitada. No jornal Tribuna
da Bahia (1990, p. 4), divulgou-se alguns fatos da violência ocorrida na comunidade
do Rio das Rãs:
Mais de 300 famílias de posseiros que vivem há mais de 100 anos na
fazenda Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa, estão ameaçadas de
expulsão pelo fazendeiro Carlos Bonfim. Uma estrada que dá acesso
à área ocupada pelos posseiros foi interditada arbitrariamente e o
líder sindical Mário dos Santos, lavrador da região e defensor da
permanência das famílias na terra, teve de fugir do local diante das
ameaças de morte.
A história dos conflitos no sertão baiano possui longa tradição. De acordo
com o historiador René Silva (1998, p. 161-162):
Ela se enraíza não apenas na subordinação e exploração intensiva
da mão de obra disponível na região, mas também na apropriação
sem limites de terras, operada pelo latifundiário pecuarista, a partir
da segunda metade do culo XVII, na desapropriação e ampla
marginalização econômica das camadas subordinadas e, ainda, na
disciplinarização, opressão e controle político e racial
instrumentalizador dos modos de inserção social propiciados à
população não-branca nas formas de produção característica da
unidade produtiva básica da região.
Entretanto, no que tange a comunidade de Tomé Nunes e outras mais, é
preciso considerar a profunda mudança ocorrida na agricultura, em decorrência das
políticas públicas iniciadas na década de 60 (crédito facilitado, isenções e incentivos
fiscais, estímulo à industrialização), e que foi parte integrante da fase ascendente do
ciclo econômico nacional na década de 70, que se convencionou chamar de “milagre
econômico”. Assim, a agricultura brasileira não apenas respondeu às demandas da
economia como foi profundamente alterada em sua base produtiva. O maciço
crescimento do uso de tecnologia mecânica, de defensivos e adubos, assistência
técnica, o forte êxodo rural etc., permitiram dizer que o “Brasil mudou, e o campo
também”. Uma das consequências foi o aumento do valor das terras, que passaram
a ser vistas, tanto por fazendeiros como por empresas capitalistas, como alvo de
grandes projetos, e que transformaram pequenos proprietários em um estorvo para
43
objetivos mais capitalistas para a economia brasileira. A antropóloga Margarida
Moura (1988, p. 134) diz:
A fazenda para sobreviver, precisa agir consoante a este novo jogo
de interesses, e para que isso ocorra será preciso: a) invadir tios,
fortalecendo-se lado a lado à empresa capitalista adventícia; b)
facilitar à própria empresa capitalista adventícia apossamentos
rápidos de terras devolutas; c) valer-se de sua penetração nas
esferas de poder municipal e estadual, que lidam mais diretamente
com as questões de terras, no sentido de desacelerar a
regularização fundiária de ocupantes.
Assim, os conflitos fundiários recrudesceram diante da crescente valorização
da terra e dos incentivos governamentais. Esta situação aguçou o interesse de
empresários por terras, antes ocupadas por gerações de roceiros que ali haviam
produzido e reproduzido suas vidas, seus costumes e suas tradições.
Mas, é preciso, que estejamos atentos para usos mais simbólicos da terra.
Certamente para as populações negras a posse da terra vai muito além de questões
meramente capitalistas. A historiadora e antropóloga Ilka Boaventura Leite (2002, p.
179) afirma que para essas comunidades: “[...] a terra não é tida como uma
mercadoria ou objeto de consumo, mas sim um bem a ser desfrutado”.
Em geral, as comunidades negras rurais brasileiras dependem da terra para
sobreviver. Mesmo que algumas comunidades tenham outras fontes de renda, a
terra é o principal meio para a sobrevivência dos camponeses. Sem a terra, essas
comunidades tendem a desaparecer provocando a migração de seus membros para
os centros urbanos. O historiador Adelmir Fiabani (2008, p. 28) em sua tese de
doutoramento analisa como se deu a relação das comunidades negras com a terra.
Segundo ele o campesinato pobre no Brasil idealiza a terra como meio de
sobrevivência: “A terra é um lugar para plantar e dela extrair os alimentos para o
núcleo familiar, ou seja, a terra não tem o significado de capital, bem imóvel, que
pode ser vendido, trocado ou penhorado”.
Por outro lado, a terra é o local onde a comunidade construiu e constrói a sua
história. Nessa medida, ela tem um sentido de resistência e de afirmação cultural.
Mesmo mudando algumas vezes de local, a comunidade negra construiu sua
história e perpetuou sua cultura em determinado território. Este território, esta terra é
o ponto de convergência da história da comunidade. É naquele local onde tudo
começou. Lutando contra muitas adversidades, as comunidades negras resistiram
44
parcialmente aos apelos do mercado imobiliário de terras e chegaram, ao século
XXI, como verdadeiros arquivos vivos que guardam elementos da cultura negra no
Brasil.
Para Adelmir Fiabani (2009, p. 16-17), essa luta das comunidades negras
tornou-se hoje uma questão de honra, porque se essa luta não acontecer, o
campesinato brasileiro como meio de vida tradicional, tende a desaparecer:
[...] destituídos da terra, os camponeses são conduzidos para as
periferias das cidades, vivendo em condões miseráveis. Portanto,
“a posse e o uso da terra pedem uma solução inadiável e compatível
com a dignidade humana”. Não se aceita “que a terra se tenha
transformado em objeto de especulação, fonte de opressão e de
miséria”
De acordo com os seus moradores, Tomé Nunes ainda não sofreu ameaça
de fazendeiro” após o reconhecimento da comunidade. No entanto, no depoimento
de dona Joanita Dias de Brito, uma das moradoras de maior expressão política local,
ao ser questionada sobre a existência de algum conflito com fazendeiros vizinhos,
esta nos disse que: Não. Aqui a gente ainda não sabe porque ainda não mexeu,
mas eu credito (acredito) provavelmente deve ter porque essa fazenda aqui onde
pertence Pedrinho. Então, essa fazenda é nossa” (Entrevista realizada no dia 16 de
maio de 2008, em ToNunes). Quando dona Joanita afirma que em Tomé Nunes
ainda o houve conflitos com fazendeiros porque não mexeu”, ela certamente
refere-se à demarcação da terra pelo INCRA, tão aguardada pela comunidade.
Com intuito de confirmar a sua fala, a referida senhora faz um breve
levantamento dos vestígios físicos que podem comprovar o seu nascimento e de
outros moradores nas terras que hoje os fazendeiros alegam serem proprietários.
Tem as morada na qual essa fazenda onde hoje que é Pedrinho
Moraes que é gerente, eu nasci nesta fazenda. Meu pai morava lá.
Não sei dizer direito onde porque no dia que eles souberam que nós
fomos reconhecidos, num dia pro outro eles enfiaram muita cerca,
eles desmancharam os carrero. Tem Morão de roda, oficina. Eu, meu
irmão mais velho, nascemo lá... nesta epoca eles colocaram gado lá,
é... chegou assim botou o gado de uma vez não deu tempo tirar
nada, teve que sair de uma hora pra outra, mulher que tava de
neném... e teve de sair porque os gado entrava dentro de casa.
Teve uma vaca que correu atrás de um primo meu, irmão de
Evangelista. (Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em
Tomé Nunes).
45
No transcorrer da entrevista com dona Joanita, o Sr. Raimundo Nonato, seu
esposo, esteve presente e completou a sua fala relatando um episódio que
acarretou no falecimento de um dos seus primos:
Ele tava os três e tinha uma vaca que pegava... eles foram pegar
água e quando viram a vaca, correram. Os dois mais velhos subiram
no pau e ele pelejou pra subir e não conseguiu... a vaca evinha e
ele caiu na água e morreu afogado. Chamava Braulino. (Sr
Raimundo Nonato Nery de Brito, era um dos membros da diretoria da
Associação de moradores na gestão em que foi pedido o
reconhecimento. Hoje ela ainda participa ativamente das questões
políticas da comunidade).
Essas terras que dona Joanita e “Seu” Raimundo dizem pertencer aos
quilombolas, e de onde foram expulsos, o terras que ficam próximas à Tomé
Nunes, onde atualmente moram. Isto é, o fazendas cercadas após a expulsão
destes.
Essa terra provavelmente grilada por fazendeiros é lembrada por outra
moradora, dona Clarinda Farias, 73 anos de idade, que também nos contou sobre
esse episódio. Quando um fazendeiro, que ela não quis nomear, chegou colocando
gado nas terras (que tamm pertencem à comunidade de Tomé Nunes, porque
segundo os seus antepassados, estes moravam lá, mas foram expulsos) do Tomé
Nunes”. Ela nos conta saudosa que a vida ali era “boa demais”:
Mas pareceu um senhor fazendeiro, disse que tudo era dele, nós
tinha engenho de cana, fazia muita rapadura, fazia batida, fazia mele
(melaço da cana), fazia tijolo, fazia tudo. Tinha uma roçona de
mandioca e fazia farinha. Aqui era aquela animação! Um bucado ali
no engenho, outro bucado ali na oficina. mistura beiju de tapioca
com mele de rapadura, era roçona de laranja, banana. Aí ele chegou
e botou uns gadão, uns trenzão e um cado de boi, um cado de
jegue, um cado de burro (...) Ah isso foi em 63 ou em 64, aí a gente
teve que sair todo mundo, todo mundo larguemo tudo.
Dona Maria Dias da Conceição do Rosário, 72 anos, também nos relata sobre
este fato marcante em sua vida, narrando:
a gente ficou trabalhando, depois eles panharam, tinha muita
fartura nesse terreno, que oh esse terreno fornecia Malhada, fornecia
Carinhanha, Iuiu, tudo, fornecia de tudo. De mandioca, banana,
mamão, feijão, milho tinha de fartura, arroz, tinha de fartura. eles
ponharam um homem que chamava César, arrumou esse homem
46
por Guanambi, não sei pra onde foi e mandou ele vir. Aí ele chegava
nas casas: “vai desocupar hoje ou não vai?”Aí eles arrumaram um
cado de gado, cada uns zebuzão. Cada uma roça soltava umas 300
cabeças de gado. Teve muita gente que quase endoida. Nós mesmo
mudamos, largamos tudo pra lá... Não tinha direito de pegar nem as
telhas porque tinha feito no terreno, até hoje tá lá... Também eles não
fizeram nada não, não plantou, deixou abandonado... As lagoa do
mesmo jeito fechou tudo de mato, disse que não era pra pesca mais.
Esse modo de viver de antes, que permitia uma vida tranquila e cheia de
fartura, fica evidente nas narrativas tanto de dona Clarinda, assim como de dona
Maria, e assemelha-se ao que Eurípedes Funes (2009) discorre em seu artigo sobre
“natureza, cultura e memória” nos mocambos da região do baixo Amazonas.
Segundo Funes, no tempo do mocambo”, retratado pelos mocambeiros e os seus
filhos, evidenciava-se a vida tranquila e abundante que levavam antes da chegada
das práticas capitalistas. Para ratificar essa situação Funes (2009, p. 152) apresenta
o depoimento de uma negra nascida na região de seu estudo:
O que eu lamento, fico sentida é de ver nossa mesa tomada pelos
outros, e nós ficamos olhando, com fome, sem podê comê.[...] Que
no tempo dos meus avós, que eu me criei, isso aqui tudo era liberto,
nós não tinha preocupação: ah! Não tem comida? Pega um peixe,
pega uma tartaruga e nós vamos co[...]. Hoje em dia, nós temos
saudade. Se nós pega uma tartaruga, nós temo que comê
escondido, senão vamos preso, vamos surrado, aqui dentro de nossa
terra.
Este depoimento trazido por Funes demonstra a indignação dos moradores
para com as práticas de vida de hoje em dia e assemelha-se muito com o que nos
foi relatado pelas moradoras de Tomé Nunes que sentem saudade do tempo em que
a comunidade “era aquela animação!. A esperança desse povo também se ampara
no artigo 68 das Disposições Constitucionais e esse direito se funda, sobretudo, na
ancestralidade dessa comunidade, na trajetória de suas lutas.
Estas terras que dona Joanita, “Seu” Raimundo, dona Clarinda e dona Maria
lembram em seus depoimentos, são terras que eles já habitaram, e segundo eles,
estas terras são próximas de onde residem hoje. Dona Joanita depõe sobre esse
episódio e gesticula apontando a direção onde se localizam as terras que serão
reivindicadas pelos negros de Tomé Nunes, quando da demarcação da área
pertencente a eles:
47
[...] porque essa fazenda aqui onde pertence Pedrinho Moraes e Luiz
Augusto. Então essa fazenda aí na qual, nos pertence, aqui o vizinho
nosso aqui, tem Zú, essa fazenda de nos pertence, então a gente
não sabe se vai ter conflito. (Entrevista realizada no dia 16 de maio
de 2008, em Tomé Nunes).
Importa salientar que estes acontecimentos datam da cada de 60, quando
incide uma maior valorização de terras no Brasil
21
, e que se reflete uma pressão
maior sobre os moradores de Tomé Nunes.
Deste modo, mesmo que não haja no presente uma ameaça real, a
comunidade de Tomé Nunes parece estar atenta à necessária vigilância. Situação
perceptível na entrevista com dona Joanita
22
, quando nos diz que toda a
comunidade do lugar, homens e mulheres, estão preparados para garantir a
manutenção dos seus direitos, mesmo que para isso seja necessário tomar atitudes
que possam gerar algumas “consequências negativas futuramente”. Ela ainda
ressalta que a comunidade já foi avisada destes riscos pelos membros da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) da Diocese de Caetité, que trabalharam junto à
comunidade:
[...] sempre o pessoal que vinha aqui, Simplício, Diacísio, Wilson,
esse pessoal aqui que já tem experiência do Rio das Rãs e Parateca,
eles falaram com nós assim pra nós ter muito cuidado pra quando
o INCRA viesse porque a terra onde os animais pastava pertence a
nós e que quando o INCRA vier, porque primeiro eles vem pra ver o
quadro. Tem que ter muito cuidado nesta hora pra não deixar pra trás
e a gente não sabe se vai ter conflito ou não porque ainda não
mexeu, ? Eu acredito que eles não vão ficar muito alegres não,
né? Porque, mas essa terra nos pertence, essa terra é terra dos
antepassados, essa terra minha vó, meu avô morou então é terra
que vem dos antepassados pra depois eles chegar na carreira?!
(Dona Joanita Dias de Brito, entrevista realizada no dia 16 de maio
de 2008, em Tomé Nunes. Grifos nossos).
Assim sendo, a reconstituição da memória, a valorização, a preservação da
identidade das populações tradicionais e os vestígios materiais corroboram para a
confirmação da posse pelos moradores. Indubitavelmente, o trabalho de
reconstituição de processos históricos de populações tradicionais é essencial para
21
Sobre conflitos de terras a partir da década de 60, consultar: MARTINS (1991); SANTOS (1994);
FERNANDES (1996); dentre outros
22
Foram vários encontros com dona Joanita no período de abril de 2006 a maio de 2009.
48
assegurar prerrogativas na vida presente. Mas, também não resta vida que esse
trabalho é bastante difícil e ainda pouco alcançado pela nossa historiografia
23
.
Valdélio Silva (1999) afirma em seu estudo sobre a comunidade do Rio das
Rãs que a memória preservada por aqueles quilombolas estava contribuindo para
suprir a falta da documentação escrita. Apoia-se ainda no caso do quilombo do
Calunga, em Goiás, onde as práticas antepassadas resistiram ao tempo:
O método de combinar a pesquisa documental com o depoimento
dos quilombolas tem sido adotada em estudos recentes como um
recurso válido para as investigações sobre os antigos quilombos que,
de alguma forma, estabeleceram laços com os quilombos
contemporâneos, como no caso do Calunga, em Goiás (1999, p. 6)
J. Le Goff (2003, p. 469, grifos nossos) relaciona memória à identidade:
[...] a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia.
No caso das comunidades negras, esta busca da construção de uma
identidade coletiva tornou-se mais intensa nos últimos anos, evidenciando o
crescente interesse pela autoafirmação e pela reconstituição das origens enquanto
comunidades remanescentes de quilombos. Sobre este aspecto Hebe Mattos (2006,
p. 106) diz que:
A aprovação do artigo sobre os direitos territoriais das comunidades
dos quilombos culminou, assim, em todo um processo de revisão
histórica e mobilização política, que conjugava a afirmação de uma
identidade negra no Brasil à difusão de uma memória da luta dos
escravos contra a escravidão.
De acordo com Alistair Thomson (2005, p. 69), muitos historiadores hoje
reconhecem que a memória fornece enormes elementos para a composição da
identidade, entendendo esta como mais uma consequência das lembranças. Dentro
deste contexto, as experncias vivenciadas, os valores, a forma de pensar própria
das populações tradicionais devem ser valorizadas, a fim de que as raízes
23
Exemplo de autores que estudaram comunidades tradicionais: DUTRA (2003); CARVALHO (1996);
CASTILHO (1999); SILVA (1999); dentre outros.
49
identitárias dessas comunidades não se percam. Assim, é possível afirmar que a
cultura, as formas de vida, os costumes, transmitidos com o passar do tempo destas
comunidades têm sido importante para a formação da identidade. É preciso atentar-
se para que a ação do tempo não destrua traços originais que asseguram a
identidade de um grupo. Sobretudo se essa “memória identitária” é condição de
sobrevivência de uma comunidade, como se percebe em Tomé Nunes.
Le Goff (2003, p. 470) nos alerta para o fato de que a memória coletiva pode
ser utilizada como um objeto de poder, visto que essas memórias sociais permitem
compreender essa luta pela dominação da recordação e da tradição.
1.4 Identidade Quilombola
Ao buscar suscitar o debate acerca de identidade é essencial que em primeiro
lugar se esclareça o próprio conceito de identidade. Porém, torna-se difícil resumir
um conceito tão amplo, sobretudo no contexto atual, em que as transformações
ocorrem de maneira tão intensa e novos paradigmas articulam o campo das ciências
sociais. Está em curso um processo acelerado de mudança das estruturas da
sociedade moderna que, como bem observa Stuart Hall (1997, p. 9), fragmenta “as
paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que,
no passado, tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”.
Stuart Hall localiza o conceito de identidade do sujeito a partir de três eixos:
sujeito do Iluminismo, baseado numa concepção da pessoa humana como um
indivíduo cujo "centro" consistia num núcleo interior, que emerge no nascimento e se
desenvolve, embora permaneça o mesmo por toda a vida do indivíduo; sujeito
sociológico, a identidade é formada na "interação" entre o eu e a sociedade e, por
último o sujeito pós-moderno definido como não possuidor de uma identidade fixa,
permanente.
A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito
assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
50
que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente (HALL, 1997, p.
11, grifos nossos).
Uma comunidade, mesmo tradicional, está sujeita a mudanças constantes,
rápidas e permanentes. Mas, é preciso considerar que as mudanças são fortemente
influenciadas por elementos externos. Cecília Azevedo (2003) busca caracterizar a
formação da identidade de um determinado grupo através dos elementos comuns
que os unem, transmitidos culturalmente por condições históricas determinadas.
Sendo assim, é possível acompanhar e analisar as interferências que ocorrem
dentro de um grupo específico e ir além, isto é, perceber as consequências e, até
mesmo, as intenções que movem este processo acelerado de mudança de
identidade.
O caráter coletivo das representações mentais decorre do fato de
que elas são os resultados de estímulos transmitidos pelo ambiente
cultural, ou seja, de condições históricas e sociais determinadas
(AZEVEDO, 2003, p. 43).
Diante deste contexto, as experiências vivenciadas, os valores, a forma de
pensar próprios das populações tradicionais devem ser valorizadas, a fim de que as
raízes identitárias destas comunidades não se percam. Assim, pode-se afirmar que
a cultura, as formas de vida, os costumes, transmitidos ao longo da história destas
comunidades têm fundamental importância para a formação de uma base identitária:
[...] a ideia de identidade que defendo pressupõe interdependência
entre condições objetivas de vida e experiências subjetivas, o
compartilhamento de convenções e valores, de modo de pensarem
de sentir e de agir mais ou menos formalizado, que distinguem e
produzem a integração de uma comunidade (AZEVEDO, 2003, p.
43).
Mesmo que um grupo tenha que passar por diversas configurações em
diferentes momentos da história, deve haver sempre o cuidado de não deixar que se
percam os traços originais de sua identidade.
Os moradores de Tomé Nunes mantêm muitas práticas culturais antigas que
foram aprendidas com seus antepassados e que hoje eles dizem ser uma herança
quilombola. Uma herança quilombola assumida após saberem o valor da expressão
quilombola transmitida por agentes externos.
51
Perguntada sobre a recepção da comunidade quando esta ouviu os membros
de pastorais dizer em que “eles eram quilombolas”, dona Joanita Dias de Brito,
conta:
[...] a gente não duvidava dela, a gente não deu muita importância
até porque a gente não conhecia a utilidade, qual a finalidade, só que
foi passando o tempo vinha mais pessoas e falava do
requerimento que a gente tinha que requerer, que depois do
requerimento podia ter beneficios solicitando a demarcação da terra.
(Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Os moradores de Tomé Nunes somente buscaram o reconhecimento da
condição quilombola algum tempo depois das visitas de dona Francisca Ribeiro, que
datam do início da cada de 90. Esse “reconhecimento” da condição quilombola é,
como se sabe, um processo que exige dos membros de uma comunidade a
superação de preconceitos atávicos, que vêm acompanhados de outro aspecto: o
receio de assumir uma condição ilegal de posse da terra. Provavelmente estes
aspectos explicam a busca do reconhecimento somente em 2000, quando tamm
se consolidou a iniciativa das Pastorais em defesa de comunidades negras
tradicionais. “[...] até porque com o passar do tempo então a gente soube a
finalidade dos remanescentes dos quilombos, quais os direitos e pra gente buscar o
direito, o primeiro passo era o reconhecimento” (Dona Joanita Dias de Brito, agente
comunitária de saúde e atual presidenta da Associação de moradores. Entrevista
realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Nesta mesma entrevista, o Sr. Raimundo completa o depoimento de dona
Joanita da seguinte maneira:
E também os primeiros passos foi saber de negro é num lugar alí
chamado Carinhanha, então tem muita gente daqui que foram
estudar lá, sem ser eu tem gente mais velha do que eu. Tem ela aí...
Quando chegava pra gente andar na rua era agarrado na saia da
mãe, seguro na barra do palitó do pai, por causa dos meninos que
queria bater na gente. Então chamava a gente de neguinho da África,
que a gente veio da África, que a gente era africano e coisa e tal,
mas aquilo alí pra gente, a gente usava assim como eles tava
desfazendo da gente, a gente nem queria saber que diacho era
África, não conhecia nada. E depois com um tempo a gente ficou
sabendo que era uma honra que eles tava chamando a gente.
Então naquele tempo ninguém queria ser negro.
52
Estes depoimentos confirmam que após a implantação e desenvolvimento de
políticas voltadas para ações afirmativas”, promovidas por instituições
governamentais e pelo movimento popular, houve uma sensível valorização da
condição negra nessas comunidades. Situação relevante para a nossa sociedade,
que ainda discrimina e segrega populações negras, apesar de avanços perceptíveis
provocados pelas chamadas “ações afirmativas”. Diante disso, políticas públicas são
essenciais:
As ações afirmativas constituem-se em políticas de combate ao
racismo e à discriminação racial mediante a promoção ativa da
igualdade de oportunidades para todos, criando meios para que as
pessoas pertencentes a grupos socialmente discriminados possam
competir em mesmas condições na sociedade (MUNANGA E
GOMES, 2006, p. 186).
Nota-se que as ações afirmativas” surtiram efeito sobre os moradores de
Tomé Nunes. hoje uma autoestima maior e uma valorização da condição negra
da comunidade. Não se deve perder de vista que essa valorização liga-se também
legitimamente - à luta pela sobrevivência numa região de conflitos intensos pela
terra. Portanto, a valorização estratégica da condição “quilombola” também se
explica por uma luta pela permanência num território que lhes pertence
tradicionalmente e da qual dependem para viver.
A comunidade de Tomé Nunes vem recebendo nos últimos anos a
assistência da Comissão Pastoal da Terra (CPT) da Diocese de Caetité. Segundo
Francina Nogueira, membro da pastoral que trabalhou diretamente na comunidade,
a Pastoral teria como objetivos:
[...] o incentivo para titulação da terra, demarcação da terra e assim
ó, é, fazer a união deles com os orgãos de quilombolas nacional,
regional. A gente pensou muito em fazendo essa, esse
intercâmbio deles pra não deixar que eles ficassem isolados
(Entrevista realizada no dia 23 de novembro de 2008, na cidade de
Iuiú/BA).
Dona Francina Nogueira tamm ressalta em sua entrevista que esse
trabalho não foi pensado de maneira isolada, ou seja, com exclusividade para a
comunidade de Tomé Nunes. A ação da Pastoral estendeu-se também para as
comunidades de Parateca e Pau D´Arco (comunidades pioneiras nesse trabalho da
53
CPT). De acordo com os membros da Pastoral, buscou-se implementar essa ligação
da comunidade com os orgãos de quilombolas nacionais e regionais em outras
comunidades da região, mas apenas os moradores de Tomé Nunes apresentaram
maior receptividade, aspecto que será desenvolvido mais devidamente no
capítulo deste trabalho. A intenção de auxiliar a preservação e o desenvolvimento
dessas localidades através do trabalho da Pastoral é expressa neste relato:
O pessoal da comunidade agradece e fala assim que a CPT, que a
comunidade teve outra vida com a chegada da CPT, inclusive a
cultura deles, eles estavam deixando de lado, achavam que não
tinha mais valor e com a chegada da CPT, eles começaram a
retomar a cultura. Eles tem 2 anos pra cá, eles tem um trabalho
completamente diferente, eles mesmo valoriza o reisado, o grupo de
dança, o terreiro. Eles escondiam o terreiro, eles não falavam!
(Francina Nogueira, membro da CPT. Entrevista realizada no dia 23
de novembro de 2008, na cidade de Iuiú/BA).
Outra informação presente neste relato é a demonstração que a comunidade
não tinha elaborado uma noção de quilombola. Situação evidenciada na entrevista a
dona Maria Dias da Conceição do Rosário de 72 anos de idade, filha do Sr. João
Pereira dos Santos, que nos diz “só soube que ela era quilombolacom a chegada
da CPT.
Pelo menos eu não sabia! Eu vim saber que a gente era quilombola
foi depois que Francina passou a vim aqui com Diacisio, uma reunião
que teve na Igreja ele falou assim: “Sabe que ocês é quilombola?” e
eu falei que nem sabia o que era isso! “Pois é”. ele pediu pra
gente contar a história daqui. (Entrevista realizada no dia 16 de maio
de 2008, em Tomé Nunes).
Dona Francina Nogueira também confirma que muitos moradores da
comunidade não sabiam o que era ser “quilombola”. Certamente a autorreferência
quilombola é uma representação constituída com a chegada da Pastoral. “Quando
nós chegamos lá eles já eram reconhecidos, tinha a carta de reconhecimento,
que foi por meio de deputados, reuniu, eles nem sabia porque essa carta, o que
significava [...] através da CPT que eles passaram a valorizar aquela carta” (Francina
Nogueira, entrevista realizada no dia 23 de novembro de 2008, na cidade de
Iuiú/BA).
54
Algumas das manifestações religiosas e culturais praticadas por membros da
comunidade não vinham a público, como nos foi dito pelo pessoal da CPT. É o caso
do Terreiro casa onde são feitas orações com representações religiosas que se
misturam imagens de santos católicos com imagens de entidades do Candomblé.
Sobre essa religiosidade, Funes (2005, p. 476) chama a atenção para a
presença do catolicismo nas comunidades negras, originárias dos mocambos na
região do baixo Amazonas:
[...] Sendo o catolicismo, pelo menos aparentemente, a única religião
permitida e praticada. Aparentemente, porque as benzeduras, a
prática do curandeirismo, o xamanismo, a puçanga (feitiço, a
encomendação leiga das almas também fazem parte de um universo
cultural caracterizado pelo sincretismo religioso, marca forte de
identidade dessas comunidades, assim como dos mocambeiros.
O catolicismo tem presença marcante no Brasil, mas, é sabido o quanto da
cultura ancestral africana, adaptada aos ritmos e condições de vida de negros no
Brasil, gerou uma profusão de cultos muito rica e diversificada, que hoje sem dúvida
pode-se dizer que as religiões afro-brasileiras têm algo de africanas e de brasileiras
sendo, porém diferentes das matrizes que a geraram. De acordo com o antropólogo
rgio Ferretti (2007, p. 4)
O sincretismo nas religiões afro-brasileiras não representa assim um
disfarce de entidades africanas em santos católicos, mas uma
„reinvenção de significados‟ e uma „circularidade de culturas‟. Trata-
se de uma estratégia de transculturação refletindo a sabedoria que
os fundadores trouxeram da África e, eles e seus descendentes,
ampliaram no Brasil.
Assim, o sincretismo torna-se um elemento essencial de todas as formas de
religião, que está muito presente na religiosidade popular. Este tema merece, sem
dúvida, uma atenção mais dedicada, mas foge aos limites deste trabalho explorá-lo
mais detidamente.
É percebido hoje na comunidade uma fala mais aberta em relação às
manifestações de matriz africana. Comenta-se que os próprios moradores
reconhecem o trabalho da CPT como importante para a modificação de uma postura
mais reservada e mesmo acanhada (envergonhada) quanto algumas das tradições
religiosas da comunidade, a exemplo do Terreiro.
55
Figura 4: Altar do „Terreiro”. Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira - Outubro de 2008.
Algumas mulheres disseram em seus depoimentos que membros da
comunidade não aceitavam “estas rezas”, que viviam ameaçando contar ao padre
da cidade de Malhada”; um padre que vez ou outra ia rezar missa na capelinha de
Tomé Nunes. O Terreiro deixou de ser perseguido quando a CPT organizou um
encontro com o professor Nivaldo Dutra, da UNEB/Caetité
24
, que proferiu palestra
sobre os negros de África, suas tradições e a escravidão brasileira. Ao final de sua
fala, foram exibidos alguns vídeos-documentários sobre o tema. No depoimento de
dona Francina Nogueira, membro da CPT, ela relata sobre essa situação:
Um bêbado um dia me acompanhou e falava: “eu tenho uma segredo
pra te contar, eu tenho um segredo pra te contar”. Eu ia em um lugar
e ele ia atrás: “eu tenho um segredo pra te contar”(...) eu mandei
ele falar e aí ele disse assim: Ah é porque o padre reclamando
porque tia Maria tem um Centro aqui e o padre não gosta do Centro
e eu com raiva do padre”. Aí eu perguntava o pessoal e eles
diziam que não, não, o padre não falou nada. eu perguntei a e
de Fadinha, uma mulher que é mais a favor do padre, ela falou:
mas o padre tem razão, porque ele falou, ele tá certo”. Aí nós
começamos a falar desse assunto nas reuniões. Que isso é cultura!
convidei o professor Nivaldo, foi aí que eles retomaram. Dona
Maria hoje fala pra gente, conta as coisas que acontece no Centro.
24
Universidade do Estado da Bahia UNEB. O campus de Caetité fica próximo à localidade cerca de
140 km.
56
Não sei se você se lembra, naquele dia que a gente tava lá ela falou
que foi Nivaldo que ajudou o povo a reconhecer (Entrevista realizada
no dia 23 de novembro de 2008, na cidade de Iuiú/BA).
Os moradores de Tomé Nunes passaram a perceber a importância que as
práticas culturais tiveram e têm para que o reconhecimento “quilombola” aconteça. É
possível comprovar tal questão na fala de dona Gessina Santos Lima, ex presidenta
da Associação de Moradores, quando diz que o maior interesse do “pessoal da
Pastoral” estava nas práticas culturais para que a comunidade fosse reconhecida
como quilombola, como se vê neste trecho da entrevista:
Eu lembro assim, nessa época chegou o padre lá de Carinhanha, era
o padre Vanderley, ele faleceu. Ele chegou falando aqui na
comunidade tinha esse negócio pra reconhecer, porque a assinatura
era tudo igual, a assinatura. Chegou o ponto de todos saí nas casas
perguntando o nome, o sobrenome e foi que eles descobriu que
nós era uma raça e foi através da cultura que s era quilombola
por isso. (...) Vários tipos de cultura como o reisado, o boi girá, dança
de roda, muitas coisas, muitas culturas, ahoje ainda tem aquele
negocio do pilão e tudo isso foi que o povo usava naquele tempo e a
gente continuou sustentando, faz de conta que eles plantaram,
cresceu e veio os frutos, que no caso tamo sendo nós e eles a
raiz, esse povo antigo que muitos morreram (Entrevista realizada
no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
A prática da casa de oração, não era reconhecida por alguns membros da
comunidade como uma herança cultural, houve a necessidade de que pessoas de
fora da comunidade mostrassem para eles esse caminho. Muniz Sodré (2005, p. 12)
aborda a cultura em suas interfaces:
A delimitação da estrutura cultural, ou seja, a demonstração da
irredutibilidade ou da especificidade dessa prática vai implicar
estabelecer as condições de admissão de um fenômeno como
elemento de cultura. Em outras palavras, trata-se de determinar o
que pode ser considerado fato cultural e, ao mesmo tempo, de situar
os fatos admissiveis em suas posições contraditorias dentro e fora do
campo demarcado pela estrutura.
Outra manifestação que permitiria uma abordagem de uma identidade
cultural” quilombola para a comunidade são as festas. O Seu” João Pereira dos
Santos, em uma de suas entrevistas, disse-nos que as festas em Tomé Nunes eram
bastante frequentes: “[...] Muita festa? Tinha... igual, quase igual hoje. Chegou no
57
tempo daquela festa não deixa de não ter” (Entrevista realizada no dia 17 de outubro
de 2008, em Tomé Nunes).
As práticas culturais têm sido uma aliada no processo de reconhecimento e
posse da terra por essas comunidades negras. Dutra (2007, p. 38) destaca este
aspecto em seus estudos sobre as comunidades negras do “Rio das Rãs” e da
“Brasileira”:
Os festejos religiosos e as rodas de samba que acontecem depois
das novenas são marcos culturais da comunidade e podem ser vistos
como formas de resistência que colaboraram para o processo de
identidade dos moradores das comunidades da Brasileira e do Rio
das Rãs.
Hoje, os membros da comunidade costumeiramente recebem convites para
realizar apresentações nas festas regionais, como na sede dos municípios de
Malhada e cidades circunvizinhas. É sabido também que este interesse “externo”
pelas manifestações culturais de Tomé Nunes passou a se fortalecer após o
reconhecimento oficial do povoado como “quilombola”, gerando um estímulo às
manifestações culturais tradicionais da comunidade. Assim, até algumas danças,
quase esquecidas, voltaram a ser dançadas por alguns moradores, como é o caso
da dança do “boi girá”, como podemos confirmar no depoimento a seguir.
O boi girá é uma dança. Essa dança aí, aliás, que a gente deixou não
brinca mais, mas teve uma reunião aqui debaixo desse pau e as
mulher dançou, e gravaram e fizeram um DVD (dona Maria Dias
da Conceição do Rosário. Entrevista realizada no dia 16 de maio de
2008, em Tomé Nunes).
No que concerne às práticas culturais da comunidade de Tomé Nunes,
evidencia-se uma forte presença da participação das mulheres, relativamente
superior a dos homens nos encontros festivos, que também contribuem para que as
festas aconteçam. Dona Maria nos diz que seu filho José Carlos é quem “bate a
caixa”: “Zé Carlos é da caixa, bate a caixa, cumpadre Geraldo bate o tambor, o
bumba, João alí de Raimundo que mora perto de Sônia, bate o rec, é pra cantar é só
eu e Joanita”. (dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista realizada no
dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes.)
58
Importa notar o quanto o papel desempenhado por mulheres e homens é
significativo para a presentificação de vínculos culturais de matriz africana na
comunidade de Tomé Nunes; vínculos estes fundamentais para a melhoria da
autoestima dos moradores locais e imprescindíveis para assegurar-lhes a posse da
terra. Assim, passemos ao capítulo seguinte, dedicado às mulheres da comunidade,
que se afirmam cotidianamente como sujeitos admiráveis na história de Tomé
Nunes.
59
2. AS MULHERES DE TOMÉ NUNES: LUTAS E SOBREVIVÊNCIA
A reconstrução dos papéis sociais femininos, como mediações que
possibilitem a sua integração na globalidade do processo histórico de
seu tempo, parece um modo promissor de lutar contra o plano dos
mitos, normas e estereótipos. O seu modo peculiar de inserção no
processo social pode ser captado por meio da reconstrução global
das relações sociais como um todo (DIAS, 1995, p. 13).
Esta breve citação de Maria Odila Dias explicita a importância do
conhecimento sobre os papéis femininos na História. Pensar em Tomé Nunes é
pensar também na história de suas mulheres. Mulheres negras e pobres que estão
em busca de direitos e de uma vida digna para si e para suas famílias.
Como se verá ao longo deste capítulo, o estudo da participação feminina na
comunidade de Tomé Nunes é relevante para a compreensão da assimilação de
uma “identidade quilombola” nesta localidade. As mulheres são fundamentais à
manutenção de tradições culturais; situação expressa no cotidiano de suas vidas e
de suas lutas. Para tanto, cabe inicialmente recorrer a algumas abordagens
alcançadas pela historiografia no tratamento dos papéis femininos. Sem dúvida, é
preciso fugir ao estereótipo, criticado por Michelle Perrot (1989, p. 10), no qual as
mulheres, em outros tempos, eram lembradas pelo discurso e não pela prática.
Em sua compreensão, cabe ultrapassar os limites de pensar na mulher como a
mulher” como um ser universal, esquecendo-se da individualidade de cada uma:
[...] A cidade do século XIX é um espaço sexuado. Nela as mulheres
se inserem como ornamentos [...] principalmente no caso das
mulheres burguesas cujo lazer ostentatório tem como função mostrar
a fortuna do marido. [...] Quanto às mulheres pobres, só se fala delas
quando seus murmúrios inquietam no caso do pão caro, quando
provocam algazarras contra comerciantes ou contra proprietários,
quando ameaçam subverter com sua violência um cortejo de
grevistas.
Em Tomé Nunes mulheres repletas de histórias de vida e de lutas para
contar. Histórias que são fontes fundamentais ao presente estudo. Mulheres que se
mostram cientes da importância de vínculos culturais de matriz africana, necessários
para a autoestima dos moradores locais e imprescindíveis para a garantia da posse
da terra pela comunidade. Situação observada, dentre outras mais, no depoimento
60
de dona Joanita Dias de Brito, que fala dos primeiros momentos em que os
moradores locais “ouviram” sobre a questão do reconhecimento quilombola:
[...] com o passar do tempo, vinha mais pessoas e falava do
requerimento que a gente tinha que requerer que depois do
requerimento podia ter benefícios solicitando a demarcação da terra.
Aí, a partir daí a gente, teve Mauro que veio e deu mais uma força,
que foi através dele que adquiriu este documento, ele é que foi o
ponto chave. Ele chegou, orientou e disse que a gente poderia ea
gente adquiriu, até porque com o passar do tempo a gente soube a
finalidade dos remanescentes dos quilombos, quais os direitos e pra
gente buscar o direito, o primeiro passo era o reconhecimento (dona
Joanita Dias de Brito, atual presidenta da Associação de Moradores.
Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Na comunidade de Tomé Nunes nada é decidido sem a participação das
mulheres. Segundo os moradores, elas sempre tiveram um papel muito admirável na
comunidade. Situação comprovável na atual gestão da Associação de Moradores,
ocupada em sua grande parte por mulheres, tendo inclusive uma presidenta na
gestão 2009/2010. Segundo Renato Silveira (2000, p. 88) essa é uma característica
das mulheres de África, visto que em alguns reinos fons e nagô-iorubá, as mulheres
administravam o palácio real e ainda fiscalizavam o funcionamento do Estado. Ou
seja, desempenhavam um papel ativo e muito importante. Mesmo considerando a
tradição africana, é necessário localizar desdobramentos regionais que explicariam a
participação feminina em Tomé Nunes. É o que se busca encaminhar neste capítulo.
A partir da última década do século XX percebe-se com maior frequência,
através de pesquisas de historiadores da escravidão
25
, o significativo papel das
mulheres negras na história. Nota-se essa situação nas muitas comunidades
quilombolas em que as mulheres têm voz ativa. Na comunidade de Parateca,
também ribeirinha ao Rio São Francisco, pertencente ao município de Malhada, a
presidenta da Associação na gestão 2008/2009 foi uma mulher jovem e muito
determinada. Nas comunidades de Pau D‟Arco, Rio das Rãs, Barra da Parateca,
dentre outras, o papel feminino é muito presente e importante no encaminhamento
das lutas políticas.
25
Ver: DIAS, 1995; BERNARDO, 2003; SILVEIRA, 2000; FIGUEREDO 1997; REIS, 1999.
61
A historiadora Carmélia Miranda (2007) em seus estudos sobre a comunidade
quilombola de Tijuaçu
26
analisa os papéis que as negras da localidade m
desempenhando para uma melhor condição de vida de suas famílias. “Com
serenidade esse grupo feminino mantêm o equilíbrio de sua casa, da sua família e
das vivências do cotidiano. Elas têm consciência de suas dificuldades diárias, mas
não se desesperam jamais, seguem em frente, pois todo dia é um recomeço”
(MIRANDA, 2007, p. 44). Portanto, essas mulheres negras reconhecem o quão difícil
é essa luta diária por condições mais dignas de sobrevivência, mas elas não
desanimam e mantêm-se firmes em seus ideais.
Em Tomé Nunes as mulheres também enfrentam dificuldades do ser mulher
em uma sociedade marcada pela prevalência masculina. No entanto, no interior da
comunidade, vemos que estão bastante envolvidas na labuta diária com a terra, no
cuidado dos filhos e companheiros, nos afazeres da casa, em suas rezas, reisados e
festas. Essas ocupações todas significam a luta por condições de uma vida melhor
para as suas famílias e para a comunidade. Evidencia-se, através de visitas e
entrevistas, que se unem aos homens para alcançar estes objetivos. Com isto,
ganham muita confiança e respeito na comunidade, situação comprovada pela
ampla participação dessas mulheres na diretoria da Associação de Moradores. Até
mesmo as pessoas de fora que frequentam a comunidade, como no caso dos
membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Diocesse de Caetité, percebem
e enfatizam o papel que as mulheres têm naquela comunidade, conforme relato a
seguir:
Eu vejo que, pra começar, dona Maria é considerada a líder da
comunidade, a matriarca, é uma liderança forte, mesmo quietinha lá,
ela é uma liderança. Joanita, Joanita é der na comunidade. Então
as mulheres lá, é uma comunidade onde as mulheres têm liderança e
os homens acatam o que elas dizem. A participação nas reuniões
das mulheres é grande, É tanto que são mais mulheres na
Associação e elas são respeitadas (Francina Nogueira, membro da
CPT da diocese de Caetité. Entrevista realizada no dia 23 de
novembro de 2008.).
A imagem a seguir retrata uma homenagem feita à dona Maria Dias da
Conceição do Rosário, a mesma senhora citada por Francina no depoimento acima.
26
Comunidade pertencente ao município de Senhor do Bonfim, que localiza-se ao Norte do Estado
da Bahia.
62
Esta homenagem foi realizada durante a Romaria da Terra e das Águas
27
, encontro
realizado pelas CPT‟s (Comissão Pastoral da Terra) baianas e que acontece
anualmente na cidade de Bom Jesus da Lapa/BA. Neste dia, dona Maria foi à
escolhida para representar todos os quilombolas. Portanto, a imagem reforça o que
foi dito pelo membro da CPT em que dona “Maria de Tomé Nunes” é reconhecida na
comunidade e na região como uma matriarca.
Figura 5: dona Maria Dias da Conceição do Rosário, sendo homenageada na Romaria da
Terra e das Águas - Bom Jesus da Lapa/BA Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira -
julho 2008.
27
As romarias da terra e das águas, mais de 20, que acontecem Brasil afora, são manifestações
religiosas que contagiam milhares de pessoas. A maioria delas é promovida pela Comissão Pastoral
da Terra. Elas se caracterizam por ser um espaço privilegiado em que fé e vida se mesclam
profundamente e onde o clamor do povo do campo se faz ouvir. Com as romarias, a CPT entrou no
universo do povo. [...] As romarias da terra e das águas não se resumem à celebração em si,
normalmente elas são precedidas de um processo de preparação das comunidades camponesas que
participam. Para isso, sempre é elaborado material que inclui a história do lugar onde vai ocorrer a
Romaria, e celebrações são realizadas para ajudar a preparar o espírito para a melhor participação.
Para refletir sobre o significado e o conteúdo das romarias, a CPT realizou dois seminários. O
primeiro em julho de 1986 e, o segundo, em agosto de 2002. Disponível em
http://www.cptnac.com.br/, acessado no dia 09 de setembro de 2009.
63
2.1 Negras Guerreiras: as mulheres de Tomé Nunes e suas conquistas para a
comunidade
As mulheres de Tomé Nunes se assemelham muito com as negras forras e
livres citadas por Maria Odila Dias (1995, p. 15), quando relata a importância que
essas mulheres tiveram para o desenvolvimento da cidade de São Paulo,
principalmente quando se trata do progresso do comércio paulista:
A urbanização de São Paulo não envolveu, de imediato, a ascensão
social de uma burguesia europeizada, nem a formação de uma
classe de assalariados livres. Entretanto, a multiplicação de mulheres
pobres, escravas e forras, sobrevivendo do artesanato caseiro e do
pequeno comércio ambulante, faz parte da consolidação da
economia escravista de exportação e do processo, concomitante, de
concentração das propriedades e da renda.
As mesmas similaridades podem ser localizadas em Luciano Figueiredo
(1997, p. 184) que analisou as negras de tabuleiro das Minas Gerais do século XVII
e que provavelmente foram as pioneiras das quitandeiras do século XIX e grandes
impulsionadoras da economia mineira.
A história das mulheres em Minas Gerais mistura em doses
equilibradas de extrema originalidade. De uma lado, ao investigar
essa história, descortina-se um universo de significativa participação
das mulheres nas práticas sociais e na economia, ao contrário do
que sempre pareceu constituir submissão e passividade, outrora
marcas da presença feminina na história do Brasil.
Em Tomé Nunes, as mulheres tiveram e têm relevância em diversas
ocasiões, seja em atividades comuns do dia a dia, seja em momentos de
movimentação política ou festividades. Essa situação é evidenciada em suas
próprias falas. Quando questionada sobre a participação das mulheres na plantação,
dona Geraldina: Eu cuido junto. Ai de nós se não juntar, né, minha fia? (Dona
Geraldina Souza da Silva, 60 anos. Reside na comunidade desde 1972, após casar-
se com um filho da comunidade de Tomé Nunes. Entrevista realizada no dia 17 de
outubro de 2008, em Tomé Nunes). Outros relatos revelam as situações em que a
comunidade lutava e ainda luta por melhorias, como se lê na fala de dona Maria
64
Dias da Conceição do Rosário, quando um grupo de mulheres foi ao encontro do
prefeito da cidade de Malhada/BA para pressioná-lo para a implantação de poços
artesianos no povoado:
Agora essa água aí, nós pegava água aqui no rio. ele ponhou o
poço aí porque juntou aqui um bucado de mulher, não foi nenhum
home, mulher! O home que foi, foi o motorista. Chegou
greguelou ele assim: “Vai panhar água ou não vai? Fala aí se você
não vai ponhar água lá pra nós, abrir um poço?” Ele: “Vô, vô mandar,
abrir amanhã.” (dona Maria, 72 anos de idade. Entrevista realizada
no dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes).
Nas conversas e entrevistas realizadas com as moradoras de Tomé Nunes, é
possível notar que estão cientes da força representada pela voz da mulher quando
usada coletivamente, isto é, sabem como essa voz feminina transmuta-se em
mecanismo de luta para reivindicações sociais, conforme é relatado por Maria
Divina: Aí, batia na casa de uma: Ah, será? Colé (qual é)? Se prender nós, tem que
prender tudo. Todas mãe de família. Quem é doido? Umas dando de mamar, outras
de buchão! Quanto maior o bucho melhor!” (Maria Divina Dias, uma das filhas de
dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista realizada no dia 17 de outubro
de 2008). Mesmo neste relato que parece apoiar-se na posição mais fragilizada da
mulher (mães de família e/ou grávidas) é possível depreender um uso criativo e
estratégico desses atributos. Nota-se, nessa mulher pobre, negra, sem recursos,
muita iniciativa para resolver problemas do dia a dia, problemas que tanto as
afligem, como é o caso da água. E, certamente, também o esperam que os
homens decidam a vida por elas.
Em 2009, os moradores de Tomé Nunes já contam com o projeto da ASA
Brasil
28
, intitulado: Programa de Formação e Mobilização Social para
Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC)
29
,
28
Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) é um fórum de organizações da sociedade civil, que
vem lutando pelo desenvolvimento social, econômico, político e cultural do semi-árido brasileiro,
desde 1999.
29
Iniciado em julho de 2003, o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com
o Semi-Árido: um Milhão de Cisternas Rurais - P1MC vem desencadeando um movimento de
articulação e de convivência sustentável com o ecossistema do Semi-Árido, através do fortalecimento
da sociedade civil, da mobilização, envolvimento e capacitação das famílias, com uma proposta de
educação processual. O objetivo do P1MC é beneficiar cerca de 5 milhões de pessoas em toda
região semi-árida, com água potável para beber e cozinha, através das cisternas de placas. Cada
cisterna tem capacidade de armazenar 16 mil litros de água. Essa água é captada das chuvas,
através de calhas instaladas nos telhados. A cisterna é construída por pedreiros das próprias
65
conquistado recentemente pela Associação de Moradores. Segundo dona Joanita
Dias de Brito, essa água será muito boa para todos:
Bom demais essa aguinha do lado de casa, porque o rio é longe e
também a gente tem a água do poço, que a água do poço nossa aqui
é boa, mas mesmo assim, é mais do que bom porque não pode
nunca comparar essa água potável com a água que vem do poço,
apesar que é uma água boa, mas não tem tratamento, o tratamento
que tem é só o cloro que eu distribuo, mas essa outra é bem melhor,
né? a gente contando que tenha um bom ano de chuva pra
poder encher (Entrevista realizada no dia 25 de maio de 2009, em
Tomé Nunes).
Figura 6: Cisterna já pronta, aguardando somente a água da chuva. Fonte: Foto de Leila
Maria Prates Teixeira - Tomé Nunes, maio 2009.
Como se sabe, a água é recurso imprescindível para a vida humana e um
elemento essencial para a economia, produção de alimentos e o desenvolvimento
local. Seus usos são os mais variados, desde o consumo direto ao atendimento de
necessidades básicas pessoais, domésticas, de limpeza e sanitárias da população.
Ainda é um recurso indispensável para atividades agropecuárias, industriais, dentre
outras. A falta de água potável gera doenças, fome e até mesmo a morte.
localidades, formados e capacitados pelo P1MC e, pelas próprias famílias, que executam os serviços
gerais de escavação, aquisição e fornecimento da areia e da água. Os pedreiros são remunerados e
a contribuição das famílias nos trabalhos de construção se caracteriza com a contrapartida no
processo. Disponível em http://www.asabrasil.org.br/. Acessado em 10 de junho de 2009.
66
Tomé Nunes é um lugar muito seco, faz parte do semi-árido brasileiro e
possui uma temperatura muito elevada. Portanto, o acesso a água potável é
essencial para seus moradores, visto que se adoecerem, a locomoção para a sede
do município é sempre muito difícil, como relata dona Geraldina Souza da Silva ao
falar da vida alguns anos atrás na comunidade: “Eu sei que eu tenho sofrido um
bucado e agora hoje eu jove, bem, tô nova. Mas sufri, viu? Sufri. Menino
doente, não tinha esse negócio de carro parando na porta. Até médico era difícil.
Eu passando noite fazendo remédio pra menino.” (Entrevista realizada no dia 17 de
outubro de 2008, em Tomé Nunes.)
Sem o acesso equitativo a uma quantidade mínima de água potável, os
outros direitos estabelecidos tornam-se inalcançáveis, como por exemplo, o direito a
um nível de vida adequado para a saúde e bem estar, assim como os direitos civis e
políticos
30
.
Dona Maria Divina relembra como era desconfortável para as mulheres de
Tomé Nunes a vida que levavam antes da implantação dos poços artesianos:
A gente rapava mandioca, pegava essa mandioca na ilha, depois
ponhava no barco, botava na oficina, sentava rapava essa mandioca,
quando acabava de rapar essa mandioca tinha que ir no rio de novo
pra mode banhar. Quando é de manhã cedo precisa ir no rio de novo
pra mode carregar água pra cuar tapioca, pra fazer café, pra botar
feijão no fogo. Pegar água do mesmo jeito. Eu falei ó ta abrindo poço
não sei onde, não sei mais onde, será que não vai abrir pra
gente? Será que nós somos mais miseráveis do mundo? Joanita
vamos ficar esperta veia [velha] (Maria Divina Dias. Entrevista
realizada dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes).
30
O direito a água não foi explicitamente reconhecido na Carta Internacional de Direitos Humanos. A
Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos não fazem qualquer menção a esse
direito, porém isso não significa que ele não exista. O direito a água esta previsto de forma implícita
em vários dos direitos protegidos por esses instrumentos, tais como o direito a vida, o de desfrutar de
um vel de vida adequado à saúde e ao bem estar humano, o da proteção contra doenças e do
acesso a uma alimentação adequada. O próprio Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
das Nações Unidas declarou que o direito a água existe como direito independente, por inferência
dos artigos 11 e 12 do Pacto (COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS.
UN, 2002). A Declaração de Direitos Humanos de 1948 prevê no artigo 25, “toda a pessoa tem direito
a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar”. Ora, para
atingir-se tal meta é indispensável à disponibilidade de uma quantia mínima de água potável, tanto
para suprir as necessidades sicas, como para evitar a desidratação e as doenças de veiculação
hídrica. Nesses aspectos, a água se relaciona ao próprio direito à vida, previsto no artigo da
declaração.
67
Este modo de agir demonstra que as mulheres não esperam pela atitude dos
homens, elas chegam a acentuar que os homens não se “preocupam” com as
dificuldades da água. Talvez seja essa uma forma de tornar mais evidente o
empenho das mulheres da comunidade, que enfrentaram praticamente sozinhas o
prefeito de Malhada. Mas essa “omissão” dos homens da comunidade precisa ser
vista com mais atenção. Antes, vejamos como se explicita essa situação na
entrevista de dona Maria Divina ao comentar sobre a reação dos homens da
comunidade quando as mulheres de Tomé Nunes foram informar-lhes que iriam à
prefeitura reivindicar a implantação de poços artesianos na comunidade: “Porque
começavam assim: moço, ó moço, quá moço, mexer com prefeito? deputado!
Quá! Mulher que se vira pra cozinhar feijão!” (Maria Divina Dias. Entrevista realizada
no dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes).
Situação semelhante pode-se acompanhar na entrevista de Makota
Zimewanga
31
concedida à Revista Muito (2009, p. 10) ao enfocar a força da mulher
negra perante as dificuldades cotidianas e a busca por melhorias para sua família:
[...] Ação social eu aprendi a fazer com a minha mãe: ela era parteira,
se metia em clubes de es, organizava as mulheres, fazia grupos
para pedir água, pedir luz, isso na década de 50, 60. Ela era
semianalfabeta. O que eu quero dizer é que as mulheres negras
sempre foram ativistas. Eu não me considero feminista: eu me
considero mulher, guerreira, mas não me considero feminista, porque
não é uma coisa nossa, é uma coisa que veio de lá. Mas o que eu
vejo é que a mulher negra sempre teve um papel, a referência que
tenho é o que vivenciei. Minha mãe nunca esperou meu pai tomar
decisão. Tomava iniciativas.
32
As mesmas razões da mulher guerreira que busca a sobrevivência de sua
família, podem ser localizadas nos conflitos agrários entre fazendeiros e mulheres
camponesas conhecidas como “quebradeiras de coco babaçu”, no Maranhão.
Maristela de Paula Andrade (2007, p. 2) relata este evento e analisa o porquê
dessas mulheres se destacarem até mais que os homens nesses conflitos:
31
Valdina Pinto é Makota do terreiro Tanuri Junssara, com sede no bairro do Engenho Velho da
Federação Salvador/BA. Educadora aposentada da rede pública municipal. É uma referência para
as comunidades do bairro e da cidade, sendo reconhecida como mestra nos ambientes intelectuais
nacionais e internacionais pela articulação entre a prática e a teoria da sabedoria bantu. Makota
Valdina é ainda membro do conselho diretor do Fórum Cultural Mundial. Dispovel em:
http://www.cultura.salvador.ba.gov.br/mestres-perfis.php. Acessado em 10 de maio de 2009.
32
Entrevista publicada na revista Muito no dia 08 de março de 2009. Revista Semanal do Grupo A
Tarde. Salvador-BA.
68
[...] os fazendeiros haviam passado a cercar os cocais, a prender o
coco como diziam as informantes. Tratava-se, portanto de lutar para
libertá-lo, de modo a se libertarem a si mesmas e as suas famílias,
sobretudo as mulheres. Nesse momento, por volta dos 80, foram
lançadas a uma posição de primeiro plano nos enfrentamentos com
vaqueiros, pistoleiros e fazendeiros. Foram principalmente elas que,
no tempo do coco preso, no exercício da atividade de extração,
necessitaram adentrar as cercas de arame farpado, acompanhados
de suas crianças, apesar das proibições dos fazendeiros, das
ameaças dos vaqueiros, das agressões físicas e das humilhações.
Ou a faziam ou a família não se alimentava.
Por conseguinte, essa atuação guerreira das mulheres, focada pela
pesquisadora, deixa bem evidente que elas são aguerridas nas lutas pela
sobrevivência de suas famílias. Mas não devemos supor apressadamente que os
homens tamm não buscam essa sobrevivência. Nota-se que elas entendem que o
trabalho em conjunto é muito mais proveitoso e próspero, por isso “arregaçam as
mangas” e vão à luta. A atuação de mulheres que fazem de tudo para manter a
integridade de suas famílias é frequente nas pesquisas realizadas com famílias
escravas. Isabel Reis (1999, p. 33) analisa e questiona como essas mães
arriscavam sua vida e de seus filhos para manter a família, num momento em que a
resistência à escravidão era condição de vida naquele momento:
Como estas escravas conseguiram fugir levando crianças? Tinham
esperanças de viver tranquilamente e criar seus filhos como se
fossem pessoas livres? Não teria sido mais fácil fugirem sozinhas a
se fazerem acompanhar de criaturinhas tão dependentes dos seus
cuidados? Estas mulheres preferiram correr riscos a abandonar seus
filhos à própria sorte. Foram mulheres que, inconformadas com a sua
condição servil, tiveram não um comportamento rebelde como
muitas vezes extremamente audacioso.
Estas mulheres, submetidas à escravidão, lutaram com audácia pela
preservação de suas famílias e relações afetivas. Vemos na recente historiografia,
histórias de homens e mulheres que não se acomodaram e resistiram firmemente às
imposições do cativeiro.
33
O Historiador Nivaldo Dutra (2007, p. 71), em seu estudo sobre as
comunidades do Rio das Rãs e Brasileira ao tratar sobre a participação das
mulheres na luta pela terra, afirma que as mulheres destas comunidades tinham
33
Ver: REIS (1999 e 2007); SLENES (1987, 1988 e 1999); SAMARA (1988/1989); dentre outros.
69
uma participação muito tímida nas questões políticas, situação que se alterou ao
longo do tempo:
[...] na medida em que tomam consciência da importância de sua
participação, as mulheres começam a se envolver nas discussões e
passam a construir seus espaços dentro das organizações que são
criadas, como é o caso da Cooperativa Agropastoril do Quilombo Rio
das Rãs, onde essas mulheres se fazem presentes, participando da
direção ou até mesmo organizando-se em grupos específicos de
mulheres para desenvolverem projetos comunitários, como horta,
trabalhos artesanais, corte e costura, que as ajudam a colaborar com
o orçamento familiar.
O que nos é apresentado pelo historiador reforça o que foi dito
anteriormente sobre essas mulheres negras que demonstram não pretender disputar
lugar com os homens, seus maridos, filhos e irmão, mas lutar junto, unindo forças
para uma vida mais digna para as suas famílias. As comunidades de Rio das Rãs e
da Brasileira ainda se caracterizam predominantemente pela prevalência masculina
em algumas questões políticas, conforme assinala Nivaldo Dutra (2007, p. 71, grifos
nossos):
Essa maior participação das mulheres pode ser considerada como
uma das experiências significativas dentro do processo da luta pela
terra em Rio das Rãs. Elas foram se envolvendo, participando das
discussões, colaborando com a resistência. Exemplo disso foi a
participação delas à frente da coleta da produção na área do lameiro,
no período em que os homens estavam proibidos pelo
fazendeiro de retirar da área os produtos.
Esse episódio contribui para esclarecer melhor certa “omissão dos homens”
da comunidade na luta pela água, conforme assinalamos anteriormente. É
importante salientar o quanto os moradores dessas comunidades foram acossados,
ao longo de suas vidas, pela truculência de fazendeiros locais. Situação que
expunha ainda mais os homens, mesmo que atingindo a todos. Estudos mais
dedicados ajudariam a informar melhor as séries de nuances sociais que tornam
“mais visados” os homens dessas comunidades. Mas é preciso esclarecer, mais
uma vez, que as mulheres tamm se envolveram nos conflitos pela terra. Em Tomé
Nunes, as mulheres recentemente viveram conflitos com fazendeiros. Estes conflitos
não se assemelham ao das mulheres quebradeiras de coco do Maranhão, em
termos dos graus de violência, mas foi um momento muito relevante na memória da
70
comunidade. Dona Maria Dias da Conceição do Rosário nos conta como isso
aconteceu:
Ó, da vez que foi pra abrir a portera aqui desses Moraes aqui. Foi
Guilherme que andou aqui, deu uma reunião, e eles tava numa
ixigência esquisita quem tivesse criação [...] Uma fazenda muito
grande. se tivesse criação do povo aqui lá, eles botava pra fora,
outra hora pagava, cinco real cada cabeça. Ou pagava ou então eles
panhava a criação. Parece que tava até roubando. Menina, mais
esse povo tava um horror! o Guilherme veio aqui e fez a reunião
até na Igreja. “Vamo abrir esse cochete”. Menina, apareceu não
sei quantas muié pra abrir esse cochete! [...] O cochete é que nem
assim uma portera. E eles botou cadeado, botou cadeado. A estrada
que ia pra pra baixo pontar os outros, não podia passar porque
eles trancava (Entrevista realizada no dia 17 de outubro de 2008, em
Tomé Nunes.Grifos nossos).
Dona Maria acrescentou que esse episódio não aconteceu muito tempo, e
que representou muito sacrifício para “um povo” que morava em terras do outro lado
da fazenda dos “Moraes”, bem como para os moradores de Tomé Nunes. Isto
porque para fazer visitas uns aos outros precisavam margear o Rio São Francisco, o
que era “muito arriscado”. Para os moradores “do lado de lá” da fazenda ainda
aumentava a distância do povoado do Julião
34
, localidade que abastece
comercialmente essas comunidades.
[...] tem, tem gente do lado de lá, dos Moares aí, no Lameirão. Que a
gente chama Lameirão. Tem gente daqui. A mulher de Carlos, os
pais dela mora lá. Mas o home não podia passar pra cá, o home não
podia ir no Julião fazer umas compra. podia pro lado do rio, só
puro! Porque eles fecham tudo, trancavam tudo. Muié de Deus! A
uma muié veia que chama Clarinha que mora em cima disse que
ia. Aí Guilherme disse, “Se os home não quiser ir, eu vou com as
mulher!” Foi que apareceu uns home, se precisar nós fica lá...
Chegando lá, abriu a portera pra mode o povo de passar pra cá, ir
no Julião pelo menos comprar o açúcar. Ah queta com esse povo!
[...] Isso foi, com uma base de dois ano a três ano. Eu não sei se
tem esse tanto! Daí eles concertou, eles não botou mais. o
Guilherme falou com eles lá, eles mandou recado pra Carlos que
Carlos fosse fechar o cadeado, fechar o cancela. Eu falei,
Carlos você não vai só, junta um bucado de mulher, de home aqui.
Fecha essa portera lá e espera ele com um porrete. Se eles entrar
as mulher ajuda. Você não fica só não; Aí eu acho que ele ficou com
medo, soube da conversa, acabou isso! Deixou aberto pra todo
34
Julião é um povoado pertencente à cidade de Malhada/BA. Localiza-se à margem da BR 030,
distante de Tomé Nunes 5 km, aproximadamente.
71
mundo passar. Pronto (Entrevista realizada no dia 17 de outubro de
2008, em Tomé Nunes).
Segundo dona Maria estes caminhos, que estavam sendo proibidos ao
trânsito dos negros que ali moram, sempre foram percorridos pelos antepassados:
“De toda vida moço! De toda vida o povo véi (velho) morava aí, nesse lameirão aí.
Depois que Pedro Moraes morreu, o véi (velho) morreu, né? Ficou as rabutaia aí que
não sei que diga que ficou tomando conta de tudo aí” (Entrevista realizada no dia 17
de outubro de 2008, em Tomé Nunes).
Esse episódio, relatado pela moradora, é mais um exemplo da força das
mulheres na comunidade, que buscam resolver pendências sozinhas quando não
encontram outra saída ou quando os homens lhes negam ajuda, conforme vimos
no relato anterior.
Muitos estudos vêm sendo realizados apontando o grau de resistência de
mulheres negras. Resistência esta que vem desde a diáspora africana. Os
historiadores, Marcelo Paixão e Flávio Gomes (2008), discutem o alcance da luta
das mulheres escravas e de como elas causavam problemas para seus senhores ao
não cooperarem no trabalho, mesmo que isso lhes causassem castigos intensos e
mesmo que as levassem à estratégias de resistência trágicas, como o suicídio, o
infanticídio, dentre outras formas mais extremadas. Eles também enfatizam o quanto
essas bravas mulheres ainda estimulavam seus homens para possíveis insurreições,
com a intenção de resguardar e proteger as suas famílias:
[...] No século XVI, durante um embarque de escravos realizado por
portugueses na África, um piloto de navegação anônimo comentou
sobre a necessidade de se colocarem homens e mulheres separados
nos porões dos navios negreiros. Segundo ele, as mulheres, quando
viajavam junto aos homens, frequentemente os instigavam a se
revoltar contra a tripulação (PAIXÃO & GOMES, 2008, p. 951).
Outro aspecto relativo às mulheres é a matrifocalidade. Certamente, a gestão
doméstica e familiar assumida pelas mulheres lhe confere um espaço de relativo
poder, principalmente sobre seus filhos. Sobre a questão da matrifocalidade e de
como mulheres e homens vivenciam isso, Parry Scott (1990, p. 39) diz:
Esse termo identifica uma complexa teia de relações montadas a
partir do grupo doméstico, onde, mesmo na presença do homem na
72
casa, é favorecido o lado feminino do grupo. Isso se traduz em:
relações mãe-filho mais solidárias que relações pai e filho, escolha
de residência, identificação de parentes conhecidos, trocas de
favores e bens, visitas etc., todos mais fortes pelo lado feminino; e
também na provável existência de manifestações culturais e
religiosas que destacam o papel feminino.
No relato em que dona Maria Dias da Conceição do Rosário nos fala da briga
com fazendeiros por causa do cochete da portera”, ela apresentou essa relação de
matrifocalidade analisada por Scott (1990). Informou que avisou ao seu filho Zé
Carlos, quando este foi chamado para ir na “fazenda dos Moraes”, que as mulheres
estavam ali, prontas para ajudá-lo: “Eu falei, Carlos você o vai só, junta um
bucado de mulher, de home aqui. Fecha essa portera lá e espera ele lá com um
porrete. Se eles entrar as mulher ajuda. Você não fica só, não” (Entrevista realizada
no dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes). Este fato nos revela que mesmo
com a presença masculina, as mulheres são necessárias para garantir uma maior
intimidação.
Maria Odila Dias (1995, p. 158), ao discutir sobre as mulheres negras em São
Paulo, no século XIX, analisa a vida de suas antepassadas ainda em África:
As mulheres africanas, mesmo casadas e contando com a linhagem
e terras do marido, que deviam trabalhar, estavam acostumadas a ter
de sustentar-se a si próprias, e aos filhos, com seu próprio dote,
mantendo-se, mesmo casadas, economicamente independentes.
A mesma autora tamm analisa que, estas semelhanças, nem sempre foram
questão de enraizamento cultural, visto que a escravidão acabava gerando esta
ruptura com o meio social de seus antepassados. Sendo assim, as escravas
acabavam se adaptando às condições de vida no Brasil para sobreviver.
2.2 Mulher e cultura: herança partilhada
Muitos estudiosos de mulheres negras afirmam que elas sempre foram as
grandes responsáveis pela manutenção das práticas culturais entre seus
descendentes. Paixão e Gomes (2008, p. 951) falam sobre este aspecto:
73
A função das mulheres no interior das senzalas podia representar a
reconstrução e a recriação permanente de aspectos culturais
originais e, portanto, a edificação de sólidas comunidades. Uma das
características fundamentais das culturas escravas em toda a
América foi, sem dúvida, a manutenção da família nos seus variados
sentidos. Sendo a espinha dorsal na constituição do parentesco, a
mulher tinha o papel-chave na transmissão oral das crenças e dos
valores de uma comunidade negra em gestação.
Em ToNunes, dona Maria Dias da Conceição do Rosário, de 72 anos de
idade, pode ser considerada a matriarca da comunidade. Respeitada por todos, ela
é a principal responsável pelas práticas culturais terem ultrapassado as barreiras do
tempo na localidade. Com lembranças vivas, suas conversas duram horas, contando
histórias de vida de seus antepassados e do que já presenciou. A memória do vivido
por ela parece nítida, assim como parece lembrar com detalhes do que viveu e
também do que herdou. Diz que gosta de lembrar, que faz bem para ela. Bem
sabemos da função terapêutica da memória, conforme atesta Teresinha Bernardo
(2003, p. 33):
[...] a tradição oral explicaria o fato de a memória das mulheres
negras ser cristalina, detalhista, tanto dos fatos passados, quanto
dos mais recentes; e mesmo as situações vividas pelo “outro” são
narradas como se tivessem a participação do narrador. Em outras
palavras, a herança africana da oralidade instigaria o
desenvolvimento da memória que, por sua vez, desenvolve-se de
forma a produzir novas aptidões, que serão exploradas pela cultura.
Certamente, a manutenção de tradições dos mais velhos colabora para que a
memória seja valorizada na comunidade. É notória a importância conferida às
práticas dos antepassados, principalmente porque os vínculos de matriz africana são
elementares para a autoestima dos moradores locais e - não se pode esquecer
representam hoje mais um valoroso elemento na luta pela conquista da terra. Dona
Gessina Santos Lima, ex-presidenta da Associação, diz que “o povo usava naquele
tempo e a gente continuou sustentando, faz de conta que eles plantaram, cresceu e
veio os fruto, que no caso tamo sendo nós.” (Entrevista realizada no dia 16 de
maio de 2008, em Tomé Nunes).
Hoje, os moradores locais admitem que a manutenção das práticas dos mais
velhos foi importante para que acontecesse o reconhecimento da comunidade como
quilombola. Segundo dona Gessina Santos Lima, e muitos outros moradores, os
74
vários tipos de cultura tamm ajudaram para a “descoberta” da identidade
quilombola.
Dentre as manifestações culturais citadas nos depoimentos de moradores,
está a comemoração da festa dos Santos Reis. Em suas entrevistas dizem que dona
Maria Dias da Conceição do Rosário foi a pioneira na folia do Reis”.
35
É o que se
verifica no depoimento a seguir:
Ó no meu tempo eu era menina, nós saía pra brincar assim isso aqui
era tudo limpo, tudo, tudo, tudo, tudo. nós ia cantar roda, nós ia
pular boi girá, s ia, nós inventava Reis, não tinha tempo marcado,
não tinha dia marcado da semana, qualquer dia pra nós era dia,
queria ficar assim nas casa batendo caixa, agora ó a caixa: um prato
que nós batia, tum, tum, nesse prato. nós era na base de 8 ou 9,
nós começava brincar e falava: „bora cantar Reis?‟ „bora!‟ nós
saía com esse prato tan, tan, tan, cantando tudo errado, toada de
Reis nós num tinha, nem nada e s na roda mesmo nós fingia que
era Reis (Dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista
realizada no dia 18 de abril de 2008, em Tomé Nunes).
Dona Maria conta tamm que sua mãe e seu pai não gostavam que ela
ficasse “de porta em porta cantando “Reis”, mas que depois sua família acabou
aceitando, visto que nada mais “podia fazer” para mudar a situação.
Finada Antônia, ela morava bem ali assim nesse pezão de Juazeiro,
que era pequenininho, ficava de junto da casa dela. Aí finada Antônia
chamou nós e falou: “Oia ocês tem boa vontade eu vou ajudar ocês.
Cantar Reis num é assim não, eu vou ensinar” Eu tinha 7 anos!
(Dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista realizada no
dia 18 de abril de 2008, em Tomé Nunes).
A mesma dona Maria tamm confirma que, com o passar dos anos, até a
sua mãe passou a cantar Reis com ela e a lhe ensinar as novas “toadas
36
, e que
hoje em dia todo o 1º de Janeiro eles iniciam a jornada festiva de “porta em porta”.
35
Folia é como é chamado pela própria moradora, quando esta se refere à Festa de Santo Reis.
36
Conforme do dicionário da Língua Portuguesa Michaelis, toada e uma cantiga que reflete as
peculiaridades regionais de nosso país: ora melodia simples, ora chorosa e triste.
75
2.2.1 A “folia” de Reis e o povo de Tomé Nunes: história e devoção
A comunidade comemora os Santos Reis no início de todo ano, como manda
a tradição. Começa no dia primeiro de Janeiro e anos que se estende pelo mês
inteiro. O primeiro local que recebe os reiseiros é a capela do povoado, “já é
tradição!”, conforme nos fala dona Joanita. Nos outros dias o terno de Reis visita as
casas dos moradores. Segundo dona Maria Dias da Conceição do Rosário, ela
canta a toada” quando chega em uma casa e se o dono da casa atender eles
terminam cantando samba, xula: Uma das toadas cantadas por eles é: „São José.
Nossa Senhora, São José, Nossa Senhora, quando fora em Belém, quando fora em
Belém‟. responde: Abre a porta (...) na chegada do Rei Messias, na chegada do
Rei Messias‟. (Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Dona Maria tamm lembra que sua mãe ensinou-lhe algumas toadas,
quando ela estava iniciando a “folia” do Reis:
[...] minha e deu pra ir mais eu, e quando chegava perto de
uma casa, que nós saía de tarde, quando chegava assim perto,
minha e dizia: “Ói (olha), passa pra traz, eu vou te ensinar. Na
hora que chegar naquela casa, você canta assim: Deus te salve casa
Santa. Se tiver um altar ou um Aratório (oratório), você fala assim:
Deus te salve casa Santa, onde Deus fez a morada, onde mora o
cálice bento e a hóstia consagrada”. Tá bom minha e, e eu
aprendi minha filha. “Quando você chegar naquela outra casa, você
não bota esse verso que você botou o, é na chegada, vo
bota assim: Deus lhe dá uma boa noite, alegre muitos cantando, é
véspera de festa entrada do novo ano” Pode deixar mãe, sei tudo,
tudo, tudo. E fui continuando até aprendi cantar Reis (Entrevista
realizada no dia 18 de abril de 2008, em Tomé Nunes,).
A festa de Reis em Tomé Nunes é um período esperado por todos os
moradores da comunidade e, segundo dona Maria, essa jornada festiva faz parte de
uma promessa feita por ela há muitos anos atrás:
Em 57 eu doeci (adoeci). Doeci com uma febre, mas foi febre viu, foi
febre pra assar um ovo se botasse de junto de mim assava, e me
levaram pra Carinhanha pra eu fazer exame. Fiquei 30 dias de febre
sem passar um minuto. 30 dias! quando chegou lá na Carinhanha
eu fui fazer exame o dico falou assim: “Ó pra Deus não tem nada
dífícil, mas pra essa aqui eu acho que não tem jeito não. Eu acho
bom você levar ela pra Lapa”. [...] Aí, João chegou, que era meu
marido: “Maria cuma é que ota?” mal, fui fazer um exame... e
com febre, chegava me dá aquele cansaço assim, aquela coisa ruim,
76
aquele febrão, dor de cabeça que eu não arribava a cabeça nem um
segundo do travesseiro... ele disse que é pra eu ir pra Lapa, João.
“Eu vou procurar o dinheiro, pra mim poder te levar” bom, aí ele
voltou veio pra qui e eu fiquei mais ela (uma tia). eu arribei
minha cabeça e pedi: ô meu Senhor, se o Senhor me ajudar a sarar
dessa febre, não precisar eu sair, eu vou cantar Reis durante a
minha vida e no ano que eu não puder cantar Reis, que eu adoecer,
ou qualquer coisa que tiver que eu não poder cantar... eu peço uma
pessoa pra cantar pra mim, pelo amor de Deus! Mas eu falei aquilo
com aquela fé viva assim ó que parece que eu ia sarar mesmo. Aí eu
disse assim: Ô tia Virginia, que era minha tia, irmã de minha mãe. Ô
tia Virginia me dá um chá? “Chá de que?” E falei de folha de laranja,
ela disse: “Tá ocê tomou tanto remédio e não sarou, ocê acha que
com esse chá você vai sarar?” E eu disse eu vou sarar com esse chá
me dá. Aí ela me deu o chá. Vocês credita (acredita)? Eu nunca
esqueci disso, sarei de um jeito que minha roupa molhou assim no
corpo? [...] Ocês credita que parece que Jesus chegou lá e derramou
o remédio assim ó dentro do chá e eu tomei e sarei? Aí quando foi no
outro dia eu manheci sem febre, dor de cabeça nem vê, eu botei a
mão assim na minha cabeça, não duía nem nada, eu pertava assim
não duía, minhas unha, minha mão, apertava assim, não duia. Eu
disse: Graças a Deus tô curada, em nome de Jesus (dona Maria Dias
da Conceição do Rosário. Entrevista realizada dia 18 de abril de
2008, em Tomé Nunes).
Essa relação das comemorações da festa de Reis com promessas feitas por
moradores já foi analisada por outros pesquisadores da cultura popular como a
historiadora Fabiane Andrade (2009) que ao estudar o terno de Reis “Humildes em
Alegria”, da cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo baiano, analisa a
relação da existência desse a um sonho que dona Bernarda (a mulher idealizadora
do terno) teve, no qual o próprio Deus pediu para que ela organizasse um terno de
Reis. Andrade (2009) analisa ao mesmo tempo, que a relação de dona Bernarda era
com Deus e não com os Reis Magos, visto que quando ela diz sobre seu sonho ela
somente narra que foi Deus quem a pediu para iniciar o terno de Reis e não faz
menção aos Reis Magos e assim, assemelha-se com a promessa feita por dona
Maria de Tomé Nunes, visto que a festa de Reis foi somente a forma para pagar a
promessa, mas na verdade, ela pediu diretamente à Deus e não aos Reis Magos.
Mais uma demonstração de sacralidade que se nota nos reiseiros de Tomé
Nunes está na abertura da jornada festiva que se inicia sempre no dia 01 de janeiro
na Igreja Católica da comunidade para somente depois dar continuidade à festa com
o desfile do terno de casa em casa. O historiador baiano Manuel Querino (1946),
quando analisa as festas de Reis na Bahia, chama a atenção para as diversas
77
formas de festejar. Ora havia ternos que misturavam elementos do folclore popular,
ora outros mantinham a sacralidade em proeminência.
A de dona Maria nos é tão evidente que ela fez questão de ressaltar em
seu depoimento que até hoje essa promessa, feita por ela tantos anos, ainda é
válida pelo fato de quase não adoecer. Ela diz que pode até ficar indisposta nos dias
próximos ao início da festa, mas quando “chega o dia 01 de janeiro” o que ela estiver
sentido “desaparece”, porque ela tem uma “obrigação a cumprir”. A provável
“disposição repentina” vem exatamente para que ela dance o Reis e cumpra a
promessa que um dia salvou a sua vida.
[...] Quando eu sinto uma febre é de qualquer coisa, qualquer
ferimento que em mim. Ó eu sentindo febre. Chega dia de
janeiro, eu posso sentindo o que eu tiver sentindo. No dia de
janeiro eu bem, sãnzinha (sã), parece até uma história! Tem hora
que eu fico até com vergonha dos meninos! Fico com vergonha, 30,
31, outra hora 29 eu to lá: ai, ai, ai, ui, ui, um passa e diz: “Maria, ocê
miorou? (você melhorou)” Tô boa não. Quando diz hoje é de
janeiro, parece que Jesus passa assim em mim ó, limpa tudo,
manheço (amanheço) boa. “Mãe como ocê passou?” Tô boa menino!
Graças a Deus, tô boa, pode pegar a caixa aí e experimentar pra ver
como é que ta (dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista
realizada dia 18 de abril de 2008, em Tomé Nunes).
Estes depoimentos de dona Maria demonstram para nós a importância dessa
senhora para a comunidade de Tomé Nunes, visto que uma das festas mais
populares da comunidade se faz devido a uma promessa feita pela referida senhora.
Assim, nos remetemos mais uma vez ao trabalho da historiadora Fabiane
Andrade (2009, p. 30) que ao analisar o terno de Reis Humildes em Alegria” de
Santo Antônio de Jesus percebe as inúmeras diferenças que existem entre os ternos
de Reis e as festas populares no Brasil:
[...] pensar nas festividades do catolicismo popular na Bahia nos
remete a uma diversidade de elementos que nela se congregavam.
No tocante às festas de Reis não é diferente, em cada localidade a
festa se desenvolveu de maneira distinta, adquirindo elementos
próprios da cultura do lugar e denominações diversas.
Situação próxima a Tomé Nunes, haja vista que uma promessa tornou-se tão
respeitável para toda uma comunidade. Outra característica do terno de Reis de
Tome Nunes é o fato dos moradores chamarem a festa de “folia”. Carlos Brandão
78
(1977) ressalta em seu trabalho que Folias são mais intensas nas comunidades
rurais e de baixo poder aquisitivo, assemelhando-se com a comunidade de Tomé
Nunes.
As dificuldades de definição das festividades em homenagem aos Santos
Reis são muitas, uma vez que tais celebrações adquirem características especificas
do lugar em que se desenvolvem, e são ressignificadas a partir das necessidades e
especificidades locais. Em To Nunes até os instrumentos musicais,
principalmente no início, foram improvisados, conforme atesta dona Maria:
[...] eu não tinha caixa, pedia a caixa dos outros (o terno de Reis de
Tomé Nunes é conhecido como Reis de caixa). eu pedia
emprestado. Meu marido ia no Mucambo pedir, aí trazia a caixa e
eu ficava com aquela agonia na cabeça... precurava (procurava) um,
precurava outro. Cuma (como) é gente que arruma a caixa? Como é
que faz uma caixa? Ah! Faz uma caixa é assim: você vai na mata,
tira uma torinha assim de umburana e manda ruer tudo assim por
dentro e faz o tamborzinho e faz caixa”. Eu disse: ah então bom
(dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista realizada dia
18 de abril de 2008, em Tomé Nunes).
No terno de Reis Chegada do Rei Messias”, como é conhecido o terno de
Reis da comunidade de Tomé Nunes, inúmeras cantigas/melodias e certamente
muitas foram alteradas, mas é típico das festividades populares, principalmente
quando se trata da tradição oral, que essas mudanças aconteçam. Burke (1989)
analisa as melodias populares na Europa moderna e ressalta essas comuns
mudanças na tradição oral. Ora pode-se mudar a letra e manter-se a mesma
melodia, ora muda-se a melodia e a letra das cantigas se mantém. Burke (1989, p.
149) nos alerta para o caso de não existir uma melodia verdadeira, visto que todas
elas retratavam uma versão tradicional que foi mudando de acordo com a oralidade
do lugar. Portanto, nota-se que as festividades populares têm como característica
eminente a possibilidade de serem reestruturadas a partir das necessidades do lugar
e do tempo em que são vivenciadas.
Destarte, nas diversas maneiras de celebrar o dia de Reis se expressa a
relação estabelecida entre a tradição de rememorar a visita dos Magos ao Messias,
com costumes e tradições locais. Pois, as festividades aos Santos Reis, assim como
muitas festividades populares, são ressignificações a partir dos hábitos e tradições
dos lugares em que se desenvolvem.
79
A pesquisa em torno da festa de Reis de Tomé Nunes conduziu à percepção
de que as festividades do catolicismo popular apresentam um forte grau de
hibridização. Peter Burke (2003) em seu livro intitulado Hibridismo Cultural, afirma
que muitos autores trabalharam com o conceito de conversão defendendo que
algumas culturas, ou pelo menos alguns indivíduos, abandonaram suas religiões
tradicionais e passaram a desenvolver práticas típicas de outras religiões. O autor
destaca, no entanto, que não seria possível, ou provável, que esses indivíduos
abandonassem todas as suas crenças e conhecimentos sobre religiosidade ao se
adequarem a outras formas de cultos e crenças. Para Burke, no contato entre
culturas com religiões diversas o resultado não foi tanto conversão quanto uma
forma de hibridização” (2003, p. 47), afinal, as práticas religiosas passaram a ser
alteradas sem que perdessem completamente suas características tradicionais.
Segundo o mesmo autor, no Brasil isso se evidencia com os cultos afro-brasileiros,
que conseguem congregar elementos cristãos com crenças tradicionais do
continente africano, gerando a chamada religião afro-brasileira que, segundo Burke,
seria um exemplo de hibridismo.
No Reis de Tomé Nunes, nota-se alguns elementos da religiosidade afro-
brasileira e que são utilizados nas apresentações/peregrinações dos reiseiros como
os instrumentos musicais utilizados, o batuque e o samba que é tocado em toda a
casa que é permitida a entrada dos reiseiros.
John Thornton em seu livro a África e os africanos na formação do mundo
atlântico”, dedica um de seus capítulos às transformações da cultura africana no
mundo atlântico e nele explicita algumas características da musicalidade negra na
cultura afro-americana. Ele afirma: a música africana, como atualmente, era muito
ritmada e criava ritmos complexos que necessitavam de uma grande variedade de
instrumentos de percussão tambores de diversos tamanhos, sinos, gongos e
matracas” (2004, p. 302), o autor ainda reforça que esses elementos musicais, tipo
percussão, podem ser encontrados em todas as regiões da África, chamando a
nossa atenção sempre para a questão de que cultura alguma conseguiu manter-se
intacta, e certamente isso não ocorreu com a africana, ainda mais na situação de
cativos em que eles viviam aqui nas Américas, privados de poder cultuar muitos de
seus costumes, ora pelo arbítrio dos senhores e senhoras, ora por falta de materiais.
80
As transformações desenvolvidas no catolicismo desde o período colonial até
os dias atuais devem-se, em grande parte, ao fato de as pessoas menos abastadas
tomarem para si festividades e rituais, reproduzindo-os a partir de suas
necessidades e possibilidades, o que passou a gerar diversas formas de celebração
que não mais se identificavam ao proposto pelo catolicismo tradicional. Os
catolicismos populares não se limitam a repetir os preceitos católicos, ao contrário,
esses preceitos ganharam novos significados e foram associados a elementos e
simbologias de outras religiões. Este fato facilitou durante o período escravista a
associação feita pelo negro entre o catolicismo e suas festividades, inserindo
características pagãs e africanas.
A historiadora Marta Abreu (1999) ao analisar a festa do Divino na cidade do
Rio de Janeiro, nos diz que o catolicismo desenvolvido no Brasil não deve ser
tomado como uma religião pura, mas percebido na sua inter-relação com as demais
tradições religiosas mantidas e desenvolvidas no território nacional.
[...] o clero secular [...] seu trabalho de evangelização sempre foi
pouco expressivo, devido aos limitados recursos que a Coroa
enviava, à sua deficiente formação religiosa e à grande dependência
em relação aos leigos. As ordens religiosas, por sua vez, mas
preparadas para disseminarem um catolicismo dentro da ortodoxia
religiosa, não conseguiam atingir todos os fiéis. Desta forma, os
leigos tornaram-se os maiores agentes do catolicismo barroco,
repleto de sobrevivências pagãs, com seu politeísmo disfarçado,
superstições e feitiços, que atraíam muitos negros, facilitando sua
adesão a paralela transformação (ABREU, 1999, p. 33:34).
Nas festividades desenvolvidas em Tomé Nunes diversas características
que o tornaram uma manifestação múltipla em significados por se desenvolver a
partir do imbricamento de elementos típicos do catolicismo popular e da sua relação
com a religiosidade afro-brasileira, entrecruzando com as práticas católicas,
elementos, ritualísticas, musicalidade e danças ligadas ao modo de ser, de festejar e
cultuar afro-brasileiros.
Os integrantes do terno de Reis de Tomé Nunes sempre recebem convites
para se apresentar nas festas regionais, como na sede do município de Malhada e
nas cidades circunvizinhas. É sabido também, que este interesse “externo” pelas
manifestações culturais de Tomé Nunes passou a se fortalecer após o
reconhecimento oficial do povoado como quilombola.
81
A dança do baú, os velho fazia aquela roda e dançava o baú, mas o
povo deixou, não canta não. Veio uma menina aqui de Malhada e
„escrafunjou‟ tudo isso aí e teve de renovar tudo e hoje em dia
até as criança já dança. A música é assim: „papai e mamãe não quer
que eu danço o baú mais tú, eu danço, danço, danço muié, eu danço
o baú mais tu‟. Aí bate a palma e aquele que vai lá, pendura no
pescoço. Mas deixou de cantar porque muitas mulher ficava
enciumada porque o marido tava (dona Maria Dias da Conceição do
Rosário. Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé
Nunes).
Neste depoimento, dona Maria afirma que algumas tradições estavam se
perdendo, e com a chegada do reconhecimento, foram “renovadas” a pedido de
pessoas externas à comunidade. Dona Maria tamm nos diz, no mesmo
depoimento, que amesmo o apoio da prefeitura de Malhada foi conquistado para
que a folia de Reis não se perdesse e, assim, pudesse ser assistido por todos da
região. Este apoio da prefeitura foi materializado através da doação de uniformes
para que pudesse haver uma identificação da comunidade quando os moradores
estivessem fazendo as apresentações, conforme se verifica na fotografia seguinte.
Cabe lembrar que a relação da comunidade com o entorno regional, isto é os
diversos "olhares" trocados entre moradores locais com moradores de cidades e
comunidades próximas, ou seja, como se veem e vice versa, será desenvolvido mais
detidamente no próximo capítulo.
Figura 7: reiseiros de Tomé Nunes se apresentando na comunidade negra rural de
Parateca. Festa de comemoração ao dia da consciência negra. Fonte: Foto CPT/Bom Jesus
da Lapa - novembro de 2007.
82
Nas conversas com dona Maria sobre o terno de Reis, nota-se a sua
preocupação para que a festa não se acabe, por isso esta prática cultural vem sendo
passada para os mais novos que demonstrarem interesse em aprender. A mesma
senhora ainda afirma que as pessoas que lhe acompanham na atualidade são
praticamente novatas e novatos, tendo aprendido a “folia” com ela, visto que
praticamente todos os de sua geração, que cantavam com ela antigamente, já
faleceram: “[...] quem canta é eu e Joanita. Os mais velho morreu tudo! Que
me ajudava era um tio meu e minha mãe.” (Entrevista realizada no dia 18 de abril de
2008, em Tomé Nunes).
Na fotografia abaixo, pode-se notar a presença de jovens e velhos, na “folia”
do Reis:
Figura 8: Reiseiros de Tomé Nunes se apresentando na comunidade de Parateca. Festa de
comemoração ao dia da consciência negra. Fonte: Foto da CPT/Bom Jesus da Lapa,
novembro de 2007
Funes (2005, p. 467) analisa a importância dos mais velhos nas transmissões
da memória, grande responsável pela manutenção das tradições. Afirma que essa
transmissão possibilita conhecer a vida cotidiana de antepassados:
[...] História que está presente na memória dos mais velhos, bons
narradores da saga de seus antepassados, que permitem resgatar
83
um passado nem sempre revelado nos documentos escritos. Uma
memória que é referencial ao mesmo tempo de ancestralidade e de
identidade.
Funes ainda acrescenta que a comunidade do Pacoval, no baixo Amazonas,
revela suas origens através de seu cotidiano, visto que se observam práticas
costumeiras, presentes na memória dos mais velhos. Segundo ele: “a história dos
avós é história vivida”.
Vanessa Cavalcanti (2007) em seu artigo sobre memórias femininas vai além
da questão da prática do uso da memória pelos mais velhos. No seu estudo foram
selecionadas as memórias femininas como objeto, e, no decorrer deste, ela justifica
essa escolha, seguindo a trilha indicada por James Fentress (1994), que considera
as mulheres pessoas com “voz própria”:
[...] Fentress [...] acrescenta que ao contar histórias/memórias, as
mulheres enfatizam muito os aspectos da vida doméstica e familiar,
pois cabe a elas a “responsabilidade de encapsular (purificar,
moralizar) os registros da experiência passada para as crianças,
como parte do processo de sociabilização” (CAVALCANTI, 2007, p.
63-64).
Michelle Perrot (1989, p. 15) analisa a memória das mulheres como uma
prática que se tornou comum devido às restrições que elas viveram nos séculos
passados, visto que o pessoal e o íntimo eram banidos como indecentes, então
escrever em diários, pequenos objetos guardados, era uma forma de poder reviver
instantes de uma vida em que elas eram as testemunhas principais.
[...] Às mulheres cabe conservar os rastros das infâncias por ela
governadas. Às mulheres cabe a transmissão das histórias de
família, feita frequentemente de mãe para filha, ao folhear álbuns de
fotografias, aos quais, juntas, acrescentam um nome, uma data,
destinados a fixar identidades já em via de se apagarem.
Em Tomé Nunes, as frases mais comuns entre os moradores quando estes
vão responder questões sobre tempos pretéritos é: “[...] Porque minha bisavó falava
com nós, nós era menino e ela falava”; [...] Dindinha Isabel Criola que contava”
(dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista realizada no dia 18 de abril
de 2008, em Tomé Nunes.); “[...] Minha mãe que contava essa história dos mais véi
(velhos)” (dona Gessina Santos Lima. Entrevista realizada no dia 16 de maio de
84
2008, em Tomé Nunes); “[...] Minha mãe contava como o povo veio parar aqui” (Sr
João Pereira dos Santos, 94 anos de idade. Entrevista realizada no dia 18 de abril
de 2008, em Tomé Nunes).
Perrot (1989, p. 15) ainda acrescenta que: “A memória da mulher é verbo. Ela
está ligada à oralidade das sociedades tradicionais que lhes confiava à missão de
narradoras da comunidade aldeã”.
Perguntada se havia alguma música que falava de negros em suas cantigas
de Reis, dona Maria disse que há um samba: “Samba negro, branco não vem cá, se
ele vim, ele cai no „hangar‟, samba de negro ninguém pode apreciar, só tem cachaça
e pra branco embriagar”. (Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé
Nunes).
O texto acima é um samba de roda, vigente entre os habitantes de Tomé
Nunes. Cantado hoje em dia em um clima de festa e brincadeira. Mas, sua letra traz
viva a memória de como provavelmente conviviam negros e brancos nesta região
fortemente marcada pela formação de comunidades de negros fugidos.
Possivelmente o branco era visto como uma pessoa fraca que não aguentava o
ritmo em que os negros dançavam e cantavam.
Carvalho (1997, p. 1) tamm analisa na comunidade do Rio das Rãs alguns
sambas de roda que retratam períodos da escravidão. Segundo ele, essas cantigas:
[...] traz viva a memória dos perigos e das amarguras dos primeiros
tempos de formação das comunidades de negros foragidos das
fazendas de escravos da região. [...] Infelizmente, essa memória oral
não só registra as estratégias de sobrevivência, mas também os
lamentos por aqueles que não chegaram a viver a liberdade hoje
celebrada.
Tomé Nunes também festeja alguns santos católicos. Dona Maria,
responsável pelo Terreiro e reconhecida benzedeira, nos diz: “Nossa Senhora
Aparecida, Senhor do Bonfim, reza dia de São João, toda vida, cheguemo, achemo
isso aqui” (dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista realizada no dia 17
de outubro de 2008, em ToNunes). É possível observar uma religiosidade muito
forte entre seus moradores, que se denominam católicos. Algumas mulheres, assim
como dona Maria, praticam a benzedura. Com rezas para todos os males, fazem
suas orações misturando imagens de santos católicos com imagens de santos do
Candomblé.
85
Segundo Rafael Sanzio Anjos (2006, p. 89), as negras benzedeiras:
Curam usando ervas e orações das mais diversas, é muito antiga e
se liga, no caso das comunidades quilombolas, a dois fenômenos. O
primeiro é a transmissão oral dos conhecimentos, saberes
particulares transmitidos de geração a geração. O segundo é a força
da matriarcalidade. São as mulheres curadoras, as cultivadoras
ancestrais das ervas e das rezas que restituem a saúde. Uma
resistência fundada na religiosidade e na em divindades das mais
diversas.
Nota-se que, em ToNunes, essas mulheres utilizam o espaço religioso do
Terreiro pelas crenças vinculadas à tradição africana. Mas, essas práticas não eram
bem aceitas por alguns moradores da comunidade, como já tratamos no primeiro
capítulo deste trabalho.
Em uma das entrevistas com o “Seu” João, ele relatou que a sua família
sempre foi muito religiosa e evidenciou a participação das mulheres e também dos
homens nessa religiosidade. Dona Maria, sua filha, perguntou-lhe - durante uma das
entrevistas - sobre essa religiosidade: “Isabel Criola era muito religiosa, agora o
Joaquim eu não sei se era religioso, mas dindinha Isabel Criola era. Ele era
religioso? O Joaquim Criolo
37
era religioso, meu pai?” no que Seu” João responde:
“Ah, era! Não deixa de não ser, né? Ela queria, era o jeito acompanhar”. (Entrevista
realizada dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes. Os entrevistados são o Sr
João Pereira dos Santos e dona Maria Dias da Conceição do Rosário, sua filha).
Esta narrativa do “Seu” João sobre seu avô acompanhar a religião porque a
irmã dele assim desejava retoma ao que foi apresentado sobre o papel das
mulheres e a religiosidade ainda na introdução deste trabalho que Michele Perrot
afirma (1988, p. 83): “[...] religiões são, ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e
poder das mulheres”. E esta crença e respeito dos homens para com as mulheres
religiosas são ricamente apresentados no cotidiano da comunidade de Tomé Nunes
A diversidade religiosa se insere no processo de resistência da comunidade,
na continuidade de suas tradições, ainda que a religião católica seja predominante
entre os seus moradores.
Outro aspecto importante são as tradicionais práticas de cura dessa
população. Em nossa atual conjuntura, práticas tradicionais de populações
37
Isabel e Joaquim Criolo eram irmãos, tia e avô do “SeuJoão. De acordo com o “Seu” João, eles
foram os primeiros negros que chegaram e compraram as terras de Tomé Nunes.
86
afrodescendentes passaram a ser melhor consideradas, mas muito pouco se
conhece sobre elas.
Em uma das entrevistas com dona Joanita Dias de Brito e “Seu” Raimundo
Nonato, foi perguntado se havia alguém na comunidade que havia sido ou era
contrário ao reconhecimento quilombola: ”[...] Aqui tem uma mulher que
falando que não quer se misturar com negócio (reconhecimento/identidade
quilombola)” (“Seu” Raimundo Nonato Nery de Brito. Entrevista realizada no dia 16
de maio de 2008, em Tomé Nunes). Mas, logo dona Joanita procurou justificar essa
atitude utilizando a mudança de religião como causadora dessa recusa:
Mas essa aí foi agora, não foi na epoca não. Ela ainda não tinha
casado, morava com os pais e também não tinha mudado de religião,
ela era católica, agora que ela falou [...] agora próximo com esse
acampamento que o pessoal acampou, provavelmente ela achou que
ia sair primeiro que aqui, que as terras iam sair primeiro que
aqui. O acampamento do MST na Boa Vista e foi aí que ela falou que
não quer saber, que ela não é quilombola e que ela não quer nem
saber (Entrevista realizada dia 16 de maio de 2008, em To
Nunes).
No depoimento, dona Joanita alega que foi a mudança de religião
(catolicismo para protestantismo) que levou essa moradora a mudar de opinião
quanto à sua identidade quilombola. Percebemos assim que os moradores de Tomé
Nunes relacionam a religião católica à identidade quilombola, certamente devido ao
trabalho da Pastoral da Terra (CPT).
87
Figura 5: capela Católica da comunidade. Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira - maio
de 2009
Figura 10: “terreiro”, onde são feitas as orações pelas mulheres. Fonte: Foto de Leila Maria
Prates Teixeira, outubro de 2008.
88
2.3 Mulheres e as enchentes do Velho Chico
Devido à sua localização, à margem direita do Rio São Francisco, Tomé
Nunes é inundada esporadicamente por ocasião das cheias deste rio.
Segundo os mais velhos da comunidade, as cheias do grande rio é um
problema antigo, tanto que, segundo eles, o primeiro morador do lugar, o senhor
Tomé Nunes, deixou essas terras, desestimulado por essa situação:
[...] Tomé não sei de que Nunes. Ele morava aqui, ele era um
homem que tinha um cado de ano e morava ali no ToNunes
de fora pelo lado de baixo da estrada. Ali era no terreiro dele, veio
uma enchente, mas naquele tempo quase não usava canoa, era
muito difícil de uma canoa, via muito era barca, tocada de vara. O
vapor tinha um, conhecia um, de nome é Venceslau. Então
com aquilo ele ficou enjoado e resolveu vender aqui (“seu” João
Pereira dos Santos, 94 anos de idade. Entrevista realizada no dia 16
de abril de 2006, em Tomé Nunes).
Dona Maria Dias da Conceição do Rosário relata que as mulheres de Tomé
Nunes sofreram muito com essas enchentes. Ela lembra com muita aflição de
uma delas, que ocorreu em 1979:
Um falava assim: moço, o rio encheu deu mais de palmo essa
noite!” Ah moço, mais da manhã em diante vai vazar...” e vai,
vai... moço tem lugar que tem água que precisa pegar a canoa.
“Quá moço, Deus vai ajudar que vai melhorar, o que é? você tá
perdendo a fé de Deus!?” E vem e nisso nessa conversa que
quando o povo menos esperou: Meu Deus do Céu! Vamos tirar a
criação! Hoje em dia não tem mais criação aqui não, cabô. Quebrou
a banca em dois lugar e essa água despejou tudo pra e encheu
essa baixa aí tudo, foi rapidim. O barranco cabou também que aqui
quase não tem barranco mais não. Quebrou pra e aí agora, Ô
moço mais eu passei uma aflição, nesse tempo eu ainda tava com os
fi tudo dentro de casa! Tudo menino! Mas eu passei uma aflição dum
jeito! (Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé
Nunes).
Dona Maria acrescenta dizendo que o “povo de Tomé Nunes”, inclusive seu
marido, não “levava muita fé” que a água poderia invadir as casas, por isso tantas
vezes eles precisavam sair de suas casas rapidamente:
89
[...] ainda tinha, ainda tinha meu marido. Mas ele era uma pessoa
que tudo pra ele tava bom, não apertava com nada, nada, nada,
ficava bem na boa. “Moça não procupa com isso não bota os menino
em riba da mesa aí, moça“moço a água ta entrando, moço!“deixa
entrar moça!” Ele era assim, não ligava não. eu danei, eu mais
Geralda ali de Migué, aquele que tem aquela oficininha ali, e minha
irmã deu pra gritar. E gritemo, gritemo, gritemo que mais danão
de. Quando colocava o menino de cima da mesa a mesa ia
dirriando (afundando), com a água assim... botava em riba da cama
quando é cum tempo o menino gritava, “mãe a cama ta caindo, mãe”
Valha minha Nossa Senhora! Panhemo menino e botamo dentro do
forno, dentro do forno da oficina. s saimo assim rasgando
essa água aqui assim, porque essa água quando desce aqui assim.
Meu Deus do céu! É uma correnteza esquisita! nós coloquemo
menino assim em cima do forno. “Não, não bom não, que o forno
ta caindo!“valha minha Nossa Senhora! foi que Deus abençoou
que a lanchona de atravessar carro. Agora você imagina bem o tanto
que tava apertado! Que a lanchona de atravessar carro entrou ali
ó, naquela portera; Aí na hora que nós vimos que a lanchona evinha,
o moço que já evinha na lancha gritou: “não afoba não, que nós já vai
acudir ocês” Foi na cheia de 79! (Entrevista realizada no dia 17 de
outubro de 2008, em Tomé Nunes).
Dona Clarinda Farias relembra da cheia de 1979: “eu mesma fui duma (de
uma delas) que corri de cheia com um monte de fi (filho) nas costa”. (Entrevista
realizada no dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes).
A senhora Francisca Ribeiro relatou que passou a frequentar a comunidade
de Tomé Nunes no ano de 1992, período de uma das grandes cheias do Rio São
Francisco, e enfatiza a questão do sofrimento das pessoas que viviam em casas de
taipa: “[...] me encantei quando cheguei lá, porque eles moravam naquela casa que
nem parede tinha, a enchente vinha e levava todo o barro que colocava”
38
Alguns povoados vizinhos à Tomé Nunes, também sofrem com as enchentes
do São Francisco, como é o caso de Pau D´Arco e Parateca. A geógrafa Mariana
Castilho (1999, p. 27) trata dessa questão, em seu estudo sobre as referidas
comunidades:
Um dos grandes problemas dos moradores das comunidades, que
faz parte da vida destes, é as cíclicas cheias do rio São Francisco.
[...] Em vista da variação das cheias os moradores podem ser
obrigados a mudar-se para o sequeiro. A mudança ocorre quando as
cheias são grandes, encobrindo as casas.
38
A senhora Francisca Alves Ribeiro é a atual prefeita da cidade de Carinhanha/BA. Ela era militante
do movimento popular da Igreja Católica, no período em que visitava constantemente a comunidade
de Tomé Nunes. Entrevista realizada no dia 31 de outubro de 2008, em Carinhanha/BA
90
Quando se fala no assunto das enchentes, as mulheres de Tomé Nunes
demonstram pela entonação de suas vozes a grande aflição que elas significam.
Maria do Santo, moradora do lugar, é uma delas: “Plantei meu milho, mas vivo num
dilema. Quando o sol não queima tudo, o rio vem e engole toda a plantação”.
(Entrevista realizada no dia 16 de abril de 2006, em Tomé Nunes).
Como já foi dito, Tomé Nunes localiza-se em uma região extremamente seca,
de clima tropical com duas estações distintas: uma estação seca (abril-outubro),
mais longa, seguida de curta estação chuvosa (novembro-março), sujeita a
eventuais períodos de grandes chuvas, com inundações que ocasionam a perda das
colheitas, e de moradias. também situações em que Tomé Nunes fica
extremamente seco, sem chuvas, mas o nível do Rio São Francisco sobe devido às
chuvas que ocorrem na região Sudeste do Brasil, como a que aconteceu no ano de
2007 e que dona Maria descreve: “Choveu em Minas Gerais e o rio subiu de altura.
A água ficou nesse de Juazeiro, aí. Esse grandão aí. [...] Todo mundo ficava
bobo como é que podia ser aquela cheia!” (Dona Maria Dias da Conceição do
Rosário. Entrevista realizada no dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes).
Essas cheias do Rio São Francisco também são bem quistas pelos
moradores que usufruem das lagoas que são formadas quando o rio começa a voltar
ao seu volume normal de água.
nós fomos pra um lugar que [...] ficava mais fora da beira do rio,
nós ficava trabalhando lá, na seca ia pra beira da lagoa, num tempo
desse assim nós tava acampado na beira da lagoa. Mas tinha muito
peixe, naquele tempo nas águas a gente vinha embora pra casa
cuidar de roça (dona Maria Dias da Conceição do Rosário, entrevista
realizada no dia 18 de abril de 2008, em Tomé Nunes).
Nivaldo Dutra (2007, p. 32) em sua dissertação de mestrado, tamm faz
alusão às cheias do Rio São Francisco e sua importância para o sustento das
comunidades ribeirinhas:
Estas cheias são extremamente relevantes para os moradores, pois
fertilizam as terras ribeirinhas e possibilitam o cultivo de mandioca,
milho, melancia, feijão, manga e hortaliças. As lagoas se constituem
em áreas importantes, pois possibilitam em determinados períodos
do ano a pesca de uma variedade bastante grande de peixes,
marcando uma das atividades de sobrevivência dessas populações
ribeirinhas.
91
Segundo os moradores de Tomé Nunes, as expulsões dos negros, na década
de 60, em terras próximas à comunidade foram causadas pelo uso dessas lagoas
formadas durante as cheias do grande rio:
[...] acho que ele [o fazendeiro ela não nomeou nesta entrevista,
mas acredita-se que seja da família Moraes, citado por ela em
outro momento] viu que nós tava tirando muito lucro, sei lá... deu
pra cobrar o peixe... a gente ficou trabalhando, depois eles
panharam, tinha muita fartura nesse terreno, que ó esse terreno
fornecia Malhada, fornecia Carinhanha, Iuiu, tudo, fornecia de tudo.
De mandioca, banana, mamão, feijão, milho tinha de fartura, arroz,
tinha de fartura. eles ponharam um homem que chamava César,
arrumou esse homem lá por Guanambi, não sei pra onde foi e
mandou ele vir. ele chegava nas casas: “vai desocupar hoje ou
não vai? (Dona Maria Dias da Conceição do Rosário. Entrevista
realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
A senhora Francisca Ribeiro, prefeita de Carinhanha, confirmou em seu
depoimento que essas lagoas são uma das grandes causadoras dos conflitos entre
fazendeiros e negros na região do São Francisco. Ainda afirma dizer que aquelas
terras pertencem à União e que as cercas surgiram nos últimos anos:
[...] um jornalista americano esteve aqui andou de canoa e fotografou
33 lagoas da União, e assim cês (vocês) não conhece o que tem
aqui! tem lagoa de 6 km e daqui de Tomé Nunes, Pau D´Arco, Rio
das s, essa região todinha que é banhada pelas enchentes
extraordinárias. Enche que é o útero do Rio São Francisco que é
onde os peixes vai fazer na época da ovulação da Piracema e que
hoje tá tudo de baixo de cerca de fazendeiro! [...] eu ia de canoa e eu
voltava beirando o rio pra mim conhecer porque como eles me diziam
que eles produziam tudo ali e não tinha cerca e hoje cheio de
cerca eu precisava ver. Eu vinha do Tumé Nunes de até chegar
no ponto da balsa e aí passando por baixo de cerca onde os próprios
trabalhadores produzia a batata, a mandioca, a farinha e aquilo era
aberto nos anos atrás. Hoje eles têm que segurar o arame pra poder
passar pra sua produção
(Entrevista realizada no dia 31 de outubro
de 2008, na cidade de Carinhanha/BA).
A senhora Francisca tem um discurso favorável aos moradores de Tomé
Nunes. Em toda sua entrevista, fala sobre a necessidade de demarcar corretamente
as terras para que a comunidade não tenha prejuízo. Talvez sua visão relacione-se
com a sua militância junto à comunidade e outras comunidades da região:
92
[...] Eu sou do movimento popular, eu comecei nos trabalhos
eclesiásticos da Igreja Católica, animadora da comunidade,
preparando para a crisma, batismo, essa história toda e me envolvi,
eu morava na zona rural (no município de Carinhanha) e eu me
envolvi também na política partidária. Aí eu fui expulsa daquela
comunidade não podia ficar, pois tava vendo a hora de morrer. Aí eu
vim pra cá. Como eu era envolvida no movimento, eu sempre
procurei aqueles lugares aonde as pessoas não tinham informação
nenhuma, pra gente resgatar a cidadania e a dignidade (Entrevista
realizada no dia 31 de outubro de 2008, na cidade de
Carinhanha/BA).
Assim pelo que foi exposto neste item, percebe-se através dos depoimentos
dos moradores locais e tamm da prefeita da cidade de Carinhanha/BA, os lados
negativo e positivo que ocorrem na vida destas pessoas quando as águas do Rio
São Francisco sobem de nível. Se por um lado eles passam por uma aflição, visto
que em algumas dessas enchentes necessitam sair às pressas de suas casas,
deixando bens materiais. Por outro lado, essas enchentes podem lhes proporcionar
uma colheita abundante e duradoura.
Cabe agora examinar a relação da comunidade com o entorno regional.
Tratar sobre os olhares” das demais comunidades sobre a comunidade de Tomé
Nunes, como se veem e vice versa. Juntamente com isso, analisaremos a formação
das lideranças locais e a importância delas para o reconhecimento da condição
quilombola. Passemos ao terceiro e último capítulo.
93
3. IDENTIDADE ÉTNICA NEGRA E AS RELAÇÕES EXTERNAS NA
COMUNIDADE DE TOMÉ NUNES
A abolição pôs um ponto final no período escravocrata brasileiro e marcou,
simultaneamente, o início de um longo processo de mudança nos olhares dirigidos
aos negros e as relações inter-raciais, tanto na dimensão do senso comum quanto
nas produções científicas e artísticas. O crescente reconhecimento da presença do
preconceito étnico (e da subsequente discriminação) na cultura brasileira não
significou o seu desaparecimento, mas fez com que se tornasse cada vez mais sutil.
E a manifestação sutil do preconceito não o fez menos insidioso. Ao contrário,
conferiu-lhe certa invisibilidade (e imunidade) que lhe permite adentrar às
instituições, apesar das leis construídas para barrá-lo.
Essa manifestação de um preconceito „maquiado‟ na sociedade brasileira
também serviu para que a questão do negro e, em especial, dos remanescentes de
quilombos, em todo território nacional, ficasse invisível, uma invisibilidade simbólica
e social. O antropólogo Adolfo Oliveira Jr. (1999), mostra a invisibilidade como
estratégia do Estado e da sociedade brasileira no sentido de obstruir a diversidade
étnica de populações negras, processo herdado do regime escravista:
A noção de „invisibilidade‟ tem sido trabalhada contemporaneamente
por antropólogos voltados para o estudo de comunidades rurais
negras como estratégia - mais ou menos consciente, a depender do
caso - do Estado e, de maneira geral, da sociedade brasileira no
sentido de obliterar a diversidade étnica de populações negras [...].
Historicamente, a sociedade colonial brasileira teria escamoteado
diferenças entre práticas culturais de brancos e negros, como forma
de retirar das mesmas sua virtualidade política, seu potencial como
marca de alteridade (OLIVEIRA JR, 1999, p. 1).
Contudo, José Jorge de Carvalho (1997, p. 3) afirma que a invisibilidade foi
uma estratégia dos negros para sobreviver:
[...] enquanto os índios, ainda que injustiçados, alcançam uma
visibilidade no imaginário social, relativamente alta em termos de sua
pequena presença demográfica atual, as comunidades negras,
igualmente submetidas a injustiças, tiveram que se tornar invisíveis,
simbólica e socialmente, para sobreviver.
94
Neste caso, a sobrevivência pela invisibilidade exigiu das comunidades
negras, em muitos casos, uma ausência quase total de trocas com a sociedade
abrangente.
Nesta última perspectiva, a exigência de invisibilidade está sendo
abandonada. Nas últimas décadas, as comunidades rurais negras, para
sobreviverem, necessitam se inserir no sistema de mercado. Algumas comunidades
negras não querem sair do isolamento como querem reconhecimento de seus
valores culturais. Surgindo aí o conceito de remanescentes de quilombos.
Para a historiadora e antropóloga Eliane O´dwyer (1993, p. 35): a identidade
étnica remanescente de quilombo”, tanto na Amazônia como em outras realidades
regionais, emerge num contexto de luta em que os negros resistem às medidas
administrativas e ações econômicas através de uma mobilização política pelo
reconhecimento do direito às suas terras. Por sua vez, o antropólogo Alfredo
Wagner Almeida (1997, p. 3-4) refere que: “categoria quilombo, ressemantizada
tanto política, quanto juridicamente, tem-se, pois, um novo capítulo da afirmação
étnica e de mobilização política de segmentos camponeses, que se referem
particularmente às chamadas „comunidades negras rurais‟ e/ou „terras de preto‟”.
Portanto, nos processos e reivindicações, o dado étnico conjuga-se e, por vezes, se
sobrepõe, à condição camponesa, constituindo-se, juntamente com os critérios
relativos à consciência ecogica e aos vínculos locais profundos, numa das
características elementares „dos novos movimentos sociais‟.
Essas considerações levam-se a pensar sobre o papel de uma “identidade
negra” nas estratégias de resistência dos moradores de Tomé Nunes. No que diz
respeito à identidade, o antropólogo Fredrik Barth (1997), insiste na noção de limites,
de fronteiras étnicas, e considera proeminente a autoatribuição étnica e a atribuição
pelos outros. Esta orientação privilegia os aspectos diacrônicos e dimicos da
etnicidade inserindo-os nos processo de mudança.
Para Fredrik Barth (1997) grupo étnico é um tipo organizacional. O ponto
essencial a que se refere é a autoatribuição e atribuição por outros. Uma atribuição
categorial é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua
identidade básica e mais geral, supostamente determinada por sua origem e sua
formação. Na medida em que os atores utilizam as identidades étnicas para
categorizarem a eles próprios e aos outros, com fins de interação, formam grupos
95
étnicos no sentido de uma “organização”. Ainda que as categorias étnicas
pressupunham diferenças culturais, não pode supor uma simples relação de
paridade entre as unidades étnicas e as similitudes e diferenças culturais.
O grupo étnico possui identidade própria. Toda identidade se revela em duas
dimensões: a pessoal (ou individual) e a social (ou coletiva), que interagem e cada
uma reflete a outra. Possui um conteúdo reflexivo ou comunicativo, no sentido de
que supõe relações sociais e um código de categorias destinado a orientar o
desenvolvimento de tais relações. Este código tende a se expressar como um
sistema de oposições ou contrastes. O contraste define a identidade étnica. É a
afirmação do “nós” diante dos “outros”.
Estas práticas recolocam em pauta não apenas a garantia de livre acesso aos
recursos naturais sicos, mas, sobretudo o reconhecimento formal de suas
identidades coletivas, de seus territórios efetivamente ocupados, das normas
consuetudinárias e atos cotidianos que disciplinam o uso comum da terra e o manejo
dos demais recursos. Sob esse aspecto, os quilombos não o mais abordados pela
questão racial, mas consistem num instrumento através do qual se organiza a
expressão político-representativa necessária à constituição, ao reconhecimento e à
fixação de diferenças intrínsecas a uma etnia. Desse modo, o conceito de etnia não
é mais definido pelos critérios naturais de nascimento, tribo, religião, mas é
construído a partir dos conflitos sociais.
Para o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1976), a problemática da
identidade e da identificação étnica toca uma esfera crucial de qualquer sistema de
relações sociais: a da relação entre indivíduos e o grupo; constituindo-se na ponte
entre o indivíduo e a sociedade. Nos termos de uma teoria das relações interétnicas,
fenômeno como as flutuações da identidade étnica e o exercício da identificação
(étnica) devem ser interpretados como o esforço, muitas vezes dramático, do
indivíduo e/ou do grupo para lograrem sua sobrevivência social. A manipulação de
uma série de símbolos sociais cria uma consciência coletiva, tornando a identidade
uma ideologia e uma forma de representação coletiva.
Com base nas definições de Barth (1997) e Cardoso de Oliveira (1976) pode-
se afirmar que a comunidade rural negra de Tomé Nunes tem uma capacidade
organizacional de interação entre os indivíduos, possui origem comum, bem como
96
valores culturais próprios. Sobre o que foi dito acima, alguns depoimentos são
reveladores, dessa questão:
Eu lembro assim, nessa época chegou o padre lá de Carinhanha, era
o padre Vanderley, ele faleceu. Ele chegou falando aqui na
comunidade tinha esse negocio pra reconhecer, porque a assinatura
era tudo igual, a assinatura. Chegou o ponto de todos saí nas casas
perguntando o nome, o sobrenome e foi que eles descobriu que
nós era uma raça e foi através da cultura que s era quilombola
por isso (dona Gessina Santos Lima, 30 anos. Entrevista realizada
no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
No depoimento acima, dona Gessina diz que justamente por eles serem de
uma única família e pelas práticas culturais desse povo, eles compreenderam que
poderiam ser reconhecidos como quilombolas, mas o depoimento também ressalta a
presença do externo - como já foi analisado nos capítulos anteriores o papel da CPT
na assimilação desta identidade quilombola pela comunidade - visto que foi
necessário o padre Vanderley informá-los que isso poderia ser característica de
antigos quilombos.
O “Seu” João fala sobre a chegada de seus antepassados, formadores da
Comunidade. De acordo com ele, seus antepassados também são antepassados de
todos os que residem atualmente em Tomé Nunes.
[...] meu avô soube, veio pra comprar e comprou (as terras do Tomé
Nunes). Meu avô tinha eram 4 netos, chamava é [...]. A metade
desse povo, José de Brito, que era irmão dele achou outro lugar por
cima da Malhada, um lugar de nome Pau Preto, mudou pra lá. A véia
Isabel, Isabel Crioula, a irmã de meu avô, mudou pra Carinhanha,
meu avô espalhou os filhos e netos aqui neste meio. que este
povo acabou tudo, mas deixou uma geração grande. A senhora
acredita que tem gente pra valer espalhado tudo, mas espalhando
tudo pra Belo Horizonte, São Paulo, outros mudou pra Lapa, mas
tem muita gente (Sr João Pereira dos Santos, 94 anos. Entrevista
realizada no dia 18 de abril de 2008, em Tomé Nunes).
Dona Maria Dias da Conceição do Rosário, filha do “Seu” João reforça seu
depoimento:
A família era toda de crioulo. Isabel Crioulo, Joaquim Crioulo,
Joaquim Imbuzada de Iuiú, tudo era dessa falia. Joaquim
Imbuzada era neto da veia Izabel Crioula. Todo mundo chamava ela
dindinha, dindinha Isabel e era tudo neto dela. Essa família é grande
97
demais menina! É grande demais! (dona Maria Dias da Conceição do
Rosário. Entrevista realizada dia 18 de abril de 2008, em Tomé
Nunes).
“Seu” João e dona Maria, respectivamente, confirmam os relatos de dona
Gessina Santos Lima, ressaltando que mesmo tendo já falecido muita gente daquela
primeira família que povoou Tomé Nunes, estes deixaram uma geração muito
grande de jovens que se espalharam pelas terras locais e para outras cidades do
Brasil. Sobre essa migração de muitos filhos e filhas de Tomé Nunes trataremos
mais adiante, neste capítulo. Dona Maria ainda chama toda a família de “Crioulo”, ou
seja, negros e descendentes de negros.
[...] Aqui era lugar onde os escravos anda, [..] minha bisavó falava
com nós, nós era menino e ela falava, eu acho que ela foi dos
escravos também, ela falava que não ficava aqui porque achou
apoio de João Duque, ela lavava roupa de João Duque, o coronel de
Carinhanha, naquele tempo não tinha prefeito não, era coronel, aí ela
lavava roupa de João Duque. ela falava que achou apoio de João
Duque, então que ela vinha aqui fim de semana e o resto ela
ficava a semana todinha lavando roupa deles (dona Maria Dias da
Conceição do Rosário. Entrevista realizada no dia 18 de abril de
2008, em Tomé Nunes).
Neste depoimento dona Maria faz uma alusão ao tempo da escravidão, sobre
o que ela ouviu contar de sua bisavó que lhe dizia que Tomé Nunes era um lugar de
escravos. Neste momento, procurei mais sobre o que ela entendia por escravidão,
mas a referida senhora me disse que o se lembrava de mais nada. Mas no seu
depoimento uma certa controvérsia, visto que ela cita o Coronel João Duque
como a pessoa que „ajudou‟ sua bisavó, mas este referido Coronel assumiu a
liderança política desta região por volta de 1919
39
, portanto muitos anos após a Lei
Áurea. Certamente essa lembrança de dona Maria advém do que Michael Pollak
(1992, p. 3) chama de transferências, projeções. Visto que, as lembranças da bisavó
de dona Maria se misturaram com suas próprias lembranças, num típico fato de
transferência por herança.
Não podemos nos esquecer tamm do depoimento de “Seu” Raimundo
Nonato, mencionado no capítulo deste trabalho, que nos permite entrever
39
Maiores informações:
http://vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=86&cod_not=943, consultado em 02
de janeiro de 2010.
98
construções sociais e simbólicas da expressão negro”: “[...] e depois com um
tempo a gente ficou sabendo que já era uma honra que eles tava chamando a gente
(chamando os negros de Tomé Nunes que estudavam em Carinhanha de negros da
África). Então naquele tempo ninguém queria ser negro”. (Sr Raimundo Nonato.
Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Sendo Tomé Nunes uma comunidade de origem étnica negra, o que no
mundo e no Brasil significou escravismo e submissão aos brancos, o aspecto étnico
de pertencimento a um segmento da população a quem foi imposta a submissão tem
influenciado as formas de reação ou acomodação dos membros das comunidades
atuais.
O trabalho realizado pela CPT na comunidade teve inúmeros significados
para seus moradores. Inclusive, a boa receptividade do povo de Tomé Nunes com
os membros da CPT são sempre lembrados pelos mesmos: “Sempre fomos bem
recebidos. Toda família tem conflitos, a gente sabe, mas você chegando lá (em
Tomé Nunes) você não percebe”. (Francina Nogueira. Entrevista realizada no dia 23
de novembro de 2008, na cidade de Iuiú/BA). Esta receptividade tamm nos é
relatada pela freira Irmã Helena, que frequentemente visitava a comunidade
juntamente com Francina:
O que é muito forte é o acolhimento. Logo eles aprendem o seu
nome. Você vai a primeira vez eles querem saber de você, da sua
pessoa. Eles acolhem muito a gente, né? tudo o que eles m.
Faz questão de dar coisas da roça, eles sempre fazem questão.
Então é um povo bem diferente (Entrevista realizada no dia 23 de
novembro de 2008, em Iuiú).
Tanto para Francina quanto para a Irmã Helena este bom acolhimento foi
responsável para que os objetivos da CPT se concretizassem dentro da
comunidade: “O objetivo foi alcançado, o pessoal de está inserido na Central
Regional das Comunidades de Quilombos - CRQ
40
, não conseguimos a
40
Sobre a CRQ, o historiador Nivaldo Dutra em sua dissertação (2007:159) sobre as Comunidades
de Rio dass e da Brasileira, apresenta o depoimento do Sr Hamilton Gonzaga, morador da
comunidade negra de Araçá/Cariacá, onde é relatado o objetivo deste orgão: “É a CRQ Central
Regional das Comunidades Remanescente de Quilombos do Oeste da Bahia, o papel da CRQ é
articular essas comunidades buscando desde o autorreconhecimento até ser feito o processo
antropológico, para então ser demarcado o território. Então esse é o papel da CRQ, entre outros,
buscar também que as culturas das comunidades mantenha vivas toda a tradição, porque a partir do
momento que a comunidade resgata, ela valoriza seus legados culturais o processo de
autorreconhecimento se torna mais fácil
99
demarcação, mas isso aí não depende da gente, é do INCRA” (Francina Nogueira.
Entrevista realizada dia 23 de novembro de 2008, na cidade de Iuiú/BA).
Francina nos afirma que uma demonstração do interesse, que tamm
facilitou o trabalho da CPT, foi a ampla participação dos moradores nas reuniões
marcadas para discussão de assuntos relacionados à comunidade, “marca uma
reunião, todo mundo aparece” (Francina Nogueira. Entrevista realizada no dia 23 de
novembro de 2008, na cidade de Iuiú/BA). Ela ainda acrescenta que em outras
comunidades já acompanhadas pela CPT isto não acontecia, mas ela também
ressalta o fato da comunidade ser relativamente pequena (85 famílias,
aproximadamente) facilitando dessa forma a comunicação entre os moradores.
Nas diversas conversas com os moradores de Tomé Nunes foi possível notar
o quanto estes estão unidos pelas causas da comunidade. E um exemplo disso é a
luta pelos seus direitos.
A comunidade dispõe de um prédio escolar onde é oferecida a educação
básica até o 5º ano do Ensino Fundamental I, os demais moradores que estudam do
ano em diante, se locomovem para a sede do município ou para o povoado do
Julião. Um orgulho para os moradores da comunidade são os professores que
lecionam na escola local. Todos estes são filhos da comunidade, exceto a
professora do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil - PETI
41
. Segundo
dona Joanita Dias de Brito, presidenta da Associação de moradores, eles tentaram
reverter essa situação, mas não conseguiram:
[...] tem a professora do PETI que não é daqui, porque na época
ninguém aqui não soube, não se inscreveu e aí a gente fez de tudo
pra ver se não vinha, se tinha uma maneira de colocar alguém da
comunidade, mas eles falaram que não, que tinha que fazer a
seleção. Que quando fosse ter seleção de novo aí eles poderiam
mudar. (entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé
Nunes).
Quando perguntado sobre como os alunos se deslocavam de Tomé Nunes
até a sede ou a localidade do Julião, “Seu” Raimundo Nonato nos diz que a
41
O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) compõe o Sistema Único de Assistência
Social (SUAS) com duas ações articuladas o Serviço Sócioeducativo ofertado para as crianças e
adolescentes afastadas do trabalho precoce e a Transferência de Renda para suas famílias. Além de
prever ações sócioassistenciais com foco na família, potencializando sua função protetiva e os
nculos familiares e comunitários. Disponível em: http://www.mds.gov.br/programas/rede-
suas/protecao-social-especial/programa-de-erradicacao-do-trabalho-infantil-peti. Último acesso dia 05
de dezembro de 2009.
100
prefeitura o ônibus, mas o motorista deste veículo é filho e reside em Tomé
Nunes.
Este discurso, aparentemente fechado, dos moradores de Tomé Nunes em
relação a vinda de pessoas externas à comunidade, cai por terra quando eles
justificam suas atitudes: a comunidade é pobre e seus filhos precisam trabalhar,
então por que não este emprego para as pessoas daqui, se eles tem capacidade
para fazer? É muito justo que se o emprego saiu pra cá, o povo daqui tenha
preferência” (dona Joanita Dias de Brito. Entrevista realizada no dia 16 de maio de
2008, em Tomé Nunes).
Dona Joanita e “Seu” Raimundo questionam a vinda da professora de outra
localidade para Tomé Nunes, porque assim um “filho” da comunidade acaba
perdendo a oportunidade de um bom emprego. Mas, hoje existe um elevado
número de educadores que defendem a escola no campo com professores que
pertençam a identidade local. De acordo com a historiadora Ema Maria Silveira
(2009, p. 2):
Uma das características de uma escola, situada em área de
remanescentes de quilombo, diz respeito ao tratamento dos
conteúdos, que nem sempre são aqueles que os livros didáticos
difundem. As relações ali travadas, o lugar histórico, a localização
peculiar, as formas de sobrevivência do grupo, a oralidade, a
corporeidade, são os principais componentes pedagógicos. Nestas
comunidades, a docência tem um olhar mais atento às diversidades
étnico-raciais, pois a diferença se constitui no patrimônio local.
A autora retrata a importância da união do cotidiano daquela comunidade ao
currículo escolar. Levando até aos alunos uma educação inserida na realidade em
que vivem. Ou seja, uma escola que o prioriza a visão hegemônica e unilateral de
mundo e sim a multiplicidade da formação cultural brasileira.
3.1 A migração dos jovens de Tomé Nunes para distintas cidades brasileiras
Em Tomé Nunes, a migração é um fator comum. Em alguns relatos já
trabalhados neste estudo, percebe-se que as cidades de Belo Horizonte/MG,
Salvador/BA, Carinhanha/BA são sempre citadas pelos depoentes. Nas últimas
101
décadas, muitos jovens de Tomé Nunes deixaram suas famílias em busca de uma
vida melhor.
Segundo Maria Divina, muitos jovens vão para fora de Tomé Nunes por falta
de opção: [...] meu menino mesmo foi embora. Ficava aqui trabalhava um dia,
ficava dois sem serviço, sem ganhar um tostão aí ele foi embora”. (Entrevista
realizada no dia 17 de outubro de 2008, em Tomé Nunes). Dona Maria acrescenta:
“Hoje em dia tem esse povo novo aí, os mais veio (velhos) morreu quase tudo e
outros foram embora. Tá tudo em Belo Horizonte” (Entrevista realizada no dia 17 de
outubro de 2008, em Tomé Nunes)
42
.
Francina Nogueira, membro da CPT, acrescenta que o interesse pelos
estudos acoplados à falta de oportunidade e trabalho na comunidade leva os jovens
a deixarem suas famílias e arriscarem uma vida em uma cidade praticamente
desconhecida:
O pessoal de (Tomé Nunes) gosta de estudar. Tem muita gente
que mora em Belo Horizonte que vai para estudar. Uns conseguem,
outros não conseguem, dependendo da dificuldade, mas a maioria
que sai, sai com o objetivo de estudar. [...] De Tomé Nunes tem
padres, freiras, professores e muitos outros que se formaram
(Francina Nogueira, membro da CPT Caetité. Entrevista realizada no
dia 23 de novembro de 2008, na cidade de Iuiú/BA).
Este depoimento concedido por Francina reforça a sua opinião quanto a
busca de melhores condições de vida pelos moradores da comunidade. Segundo
ela, quase todos os moradores de Tomé Nunes são alfabetizados, restando apenas
uma pessoa que ainda não sabe assinar seu próprio nome.
A geógrafa Ely Estrela (2003, p. 54), em seu livro “Sampauleiros: cotidiano e
representações que trata sobre as migrações de nordestinos para o sudeste
brasileiro, analisa os fatores que motivaram para essas migrações nas décadas
iniciais do século XX:
[...] as entrevistas evidenciam a percepção de um despontar de
transformações que vão mexendo nos padrões socioeconômicos,
culturais e comportamentais, atingindo mais ou menos diretamente
toda a sociedade e provocando tensões e desajustamentos. Cabe
ressaltar que nem sempre essas tensões estão relacionadas a
42
A entrevista feita com Maria Divina e dona Maria dos Santos aconteceram simultaneamente, no dia
17 de outubro de 2008, na casa de dona Maria em Tomé Nunes.
102
assuntos concernentes a relações de trabalho ou ligadas diretamente
à sobrevivência [...] relacionam-se a assuntos outros, como questões
políticas, padrões comportamentais, conflitos familiares,
desorganização do grupo doméstico por morte ou abandono de um
dos cônjuges [...].
Desta forma, a autora afirma que não é somente o fator trabalho que levava
os migrantes a buscar uma nova vida em regiões distantes. No caso de Tomé
Nunes, os moradores afirmam que o trabalho é o principal fator para a saída da
comunidade, mas não o único: “[...] vai o primeiro lá, aí chama um e o outro vai, o
outro vai. aquela família tudo vai. Eu mesmo tenho uma família grande em Belo
Horizonte” (dona Geraldina Souza da Silva. Entrevista realizada no dia 17 de
outubro de 2008, em Tomé Nunes).
Noutro encontro com dona Maria, fomos informados sobre as primeiras
migrações dos jovens de Tomé Nunes: “A maioria do povo tá todinho dentro de Belo
Horizonte. As primeira a gente não lembra mais isso ta veio (velho), tem muito
tempo. Não tinha lugar pra trabaiá (trabalhar), só plantava na ilha, plantava no alto a
chuva pouco, os fazendeiro não pagava (...). Acho que foi depois de 71” (entrevista
realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes).
Portanto, esses depoimentos demonstram que a falta de terra e de condições
para continuarem sobrevivendo na comunidade de Tomé Nunes levaram muitos
moradores a deixarem as suas casas em busca de emprego em outras cidades.
Segundo dona Maria, em Belo Horizonte/MG é para onde vão à maioria dos
jovens de Tomé Nunes, mas ela também cita outras cidades, a exemplo de
Brasília/DF; Salvador/BA, e cidades do entorno regional como Carinhanha e
Guanambi.
Maria de Fátima N. Pires (2005, p. 332), em sua tese de doutoramento
analisa as migrações ocorridas anos antes e após a abolição no Alto Sertão da
Bahia e chama a atenção que nem sempre as regiões distantes eras as procuradas
pelos migrantes: “[...] é necessário assinalar que as migrações nem sempre
resultaram em grandes deslocamentos. A adoção de lugares mais próximos aos de
origem foi buscada por muitas pessoas do sertão”. Em Tomé Nunes, seus
moradores afirmam que a procura por cidades mais próximas é para não ficar muito
tempo longe da família.
103
O historiador Nivaldo Dutra (2007, p. 140) em seu estudo sobre a região do
Médio São Francisco analisa as muitas famílias de comunidades próximas ao Rio
das Rãs que tiveram que migrar para outras cidades em busca de melhores
condições de vida:
Era uma nova diáspora acontecendo, desagregando as famílias,
separando os parentes, fragilizando a resistência e permanência no
território. A ida para outras cidades se constituía, na verdade, como
uma das formas alternativas de sobrevivência: migrar para continuar
sobrevivendo.
Neste estudo, Dutra (2007) analisa como essas experiências de migração
influenciaram para que muitas comunidades fossem à luta pelo direito à terra e por
melhores condições de vida, a exemplo da comunidade de Lagoa das Piranhas,
comunidade próxima ao Rio das Rãs, estudada pelo referido autor.
Em Tomé Nunes, seus moradores também sonham com o dia em que suas
terras serão demarcadas e que seus filhos não precisarão mais sair de para
trabalhar em outra cidade ou região.
3.2 Os diversos olhares sobre a comunidade
Os moradores de Tomé Nunes tornaram-se mais populares nas regiões do
Médio São Francisco e Alto Sertão baiano após o reconhecimento da comunidade
pela Fundação Palmares como remanescente de quilombo e também por suas
práticas culturais, como o reisado, a “dança afro”
43
, a dança do baú e outros.
A dança de Reis da comunidade é mais conhecida, devido à filmagem
realizada pela equipe da TVE Bahia e pela sua exibição por diversas vezes em sua
programação
44
. Além disso, os membros da comunidade recebem frequentemente
convites para apresentação em festas regionais, como na sede do município de
Malhada e cidades circunvizinhas. É sabido também que este interesse “externo”
43
A “dança afro”, aqui referida, são coreografias organizadas por jovens meninas da comunidade que
se inspiram no que veem na grande dia, e que influenciam, mas diretamente, as novas gerações.
44
Festas e Folias de Reis Bahia Singular e Plural. Realização TVE Bahia. Projeto e coordenação
Pablo Marconi, Pesquisa, roteiro e edição Josias Pires. Produção Josias Pires e Ednilson Motta.
104
pelas manifestações culturais de Tomé Nunes passou a fortalecer-se após o
reconhecimento oficial do povoado como quilombola.
Figura 61: Comunidade de Tomé Nunes participando do desfile de 02 de julho, em Caetité.
Fonte: Foto do site: www.caetite.ba.gov.br, julho de 2009.
Figura 7: Comunidade de Tomé Nunes participando do desfile de 02 de julho, em Caetité.
Fonte: Foto do site: www.caetfest.com.br. julho de 2009.
105
As imagens acima demonstram o quão conhecido e popular são o Reisado e
a “dança afro” da comunidade de Tomé Nunes. O desfile de 02 de julho na cidade
de Caetité é uma data cívica comemorada com muita pompa todos os anos. Os
moradores daquela cidade parecem se orgulhar da participação de seus
antepassados, mesmo que indiretamente, nas lutas da Independência da Bahia.
Importante ressaltar tamm que estes sites que fotografaram o desfile são sites
bastante acessados em Caetité e cidades circunvizinhas (a primeira foto foi retirada
do site oficial da prefeitura de Caetité), dando assim uma maior visibilidade à
Comunidade de Tomé Nunes e seus moradores.
Conforme abordagem feita anteriormente, todo dia de janeiro inicia-se a
jornada festiva do Santo Reis na comunidade de Tomé Nunes, fazendo-se cumprir
assim uma promessa feita por dona Maria Dias da Conceição do Rosário, de 72
anos de idade, a Deus. Em 2010 a jornada festiva foi alterada para realizar um
antigo desejo da referida senhora. Diferentemente do que acontecem todos os anos,
a Capela da Comunidade não foi à primeira “morada” a receber o reisado de Caixa
Chegada do Rei Messias”. A Igreja Católica Matriz do município de Malhada/BA foi
escolhida por dona Maria para dar início aos festejos no ano de 2010.
A fotografia a seguir, exibe os reiseiros de Tomé Nunes, ao redor do presépio
montado dentro da Igreja Católica Matriz de Malhada, entoando as cantigas
“agradecendo e adorando ao Deus Menino que acabara de nascer”:
Figura 13: presépio da Igreja de Malhada e os reiseros de Tomé Nunes cantando ao seu
redor. Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira, janeiro de 2010.
106
De acordo com dona Maria, sempre foi um desejo seu cantar o Reis na sede
do município, mas que sempre teve muito medo: medo de malandrage
(malandragem), de não conseguir nenhum agrado, do povo não receber o Reis,
sabe minha fia (filha)”? (Entrevista realizada no dia 01 de janeiro de 2010, na cidade
de Malhada).
O receio de dona Maria de não ser bem recebida pelos moradores da
comunidade, remete-nos ao que foi discutido no início deste capítulo, sobre a
invisibilidade do negro durante tantos anos na nossa sociedade. Segundo José
Jorge de Carvalho (1997, p. 1) esta invisibilidade foi mais uma forma de resistência
para não ser atingido pelo preconceito: o silêncio e a capacidade de se tornar
invisível era a possibilidade mesma de manter-se vivo e livre”
Dona Joanita Dias de Brito, presidenta da Associação dos moradores de
Tomé Nunes, principal parceira de dona Maria nas cantigas do Reis, ao saber desse
desejo de dona Maria, foi dias antes à sede do município para conseguir com os
órgãos responsáveis uma ajuda financeira para o transporte dos reiseiros da
comunidade até Malhada.
Esta atitude de dona Joanita de tentar satisfazer o desejo dona Maria,
principal responsável pelo Reis na comunidade, demonstra a liderança daquela
senhora perante os moradores e de que forma o reconhecimento como quilombola
os ajudam a ganhar uma maior expressão dentro da sede do município.
É preciso salientar que nem sempre as reivindicações são conquistadas, mas
segundo dona Joanita, e essa compreensão é compartilhada pelos demais
moradores da comunidade, a carta de reconhecimento quilombola, unindo-se ao
conhecimento dos direitos que vêm proporcionando alguns benefícios e uma melhor
qualidade vida aos moradores de Tomé Nunes.
107
Figura 14: Reiseros de Tomé Nunes cantando Reis, pedindo a autorização para entrar na
casa escolhida. Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira, Malhada/BA - janeiro de 2010.
Na fotografia acima percebemos que os elementos temidos por dona Maria
que pudessem acontecer quando fossem cantar o Reis na cidade de Malhada -
“medo de malandrage (malandragem), de não conseguir nenhum agrado, do povo
não receber o Reis, sabe minha fia (filha)”? não estavam presentes durante o
percurso realizado pelo Terno. A foto nos mostra a aceitação por parte dos donos
das casas escolhidas e a presença de outras pessoas que não o da comunidade,
participando pacificamente da festa.
A análise da foto remete às exposições de Peter Burke (2004, p. 236-238):
No caso de imagens, como no caso de textos, o historiador necessita
ler nas entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas
significativos incluindo ausências significativas usando-os como
pistas para informações que os produtores de imagens não sabiam
que eles sabiam, ou para suposições que eles não estavam
conscientes de possuir
A fotografia é uma fonte de saber que deve ser analisada a fim de se obter
uma nova perspectiva da realidade. De acordo com Burke (2004), a fotografia não
serve apenas para evidenciar verdades previamente estabelecidas; ao contrário, ela
deve ser utilizada com o objetivo de levantar novos questionamentos e possibilitar
108
novas análises. Sendo uma fonte imagética, ela precisa ser analisada criticamente
para propiciar interpretações, plausíveis, pois apesar de trazer em si um momento
guardado através do congelamento” da imagem, as fotografias despertam
sensações e percepções que possibilitam o repensar do instante fotografado.
3.2.1 Tomé Nunes e as demais comunidades quilombolas da região
As comunidades negras que margeiam o Rio São Francisco demonstram, em
primeiro contato, uma ligação muito forte entre elas. Talvez seja devido à
similaridade nos interesses, na resistência, nas práticas culturais e outros fatores
ligados a identidade negra quilombola.
Nivaldo Dutra (2007, p. 142) dedica em sua dissertação um capítulo inteiro
para tratar da relação de solidariedade entre a comunidade de Rio das Rãs e as
demais comunidades da região:
Muitas dessas comunidades negras rurais não tinham conhecimento
da possibilidade de terem os seus territórios reconhecidos como
áreas pertencentes a antigos quilombos. O contato com a
experiência dos moradores do Rio das Rãs abriu essas portas para
que a luta pelo reconhecimento também fosse travada nessa
dimensão; na experiência, crescem em consciência de seus direitos.
Em Tomé Nunes, a comunidade do Rio das Rãs tamm é visto como um
exemplo de luta em busca de melhorias, visto que ela foi a primeira comunidade
quilombola a ter suas terras tituladas no Brasil. Dutra (2007, p. 143) também
acrescenta o fato de que muitas vezes somente o reconhecimento não basta para a
comunidade:
O reconhecimento dos territórios quilombolas na região do Médio
São Francisco e do Alto Sertão Baiano não levou as populações
envolvidas a solucionar todos os seus problemas. Estes continuam
na maioria dos territórios, pois ainda existe a falta de infraestrutura,
de melhores condições de produção e comercialização dos produtos
bem como problemas ligados a questões da saúde, da educação e
do abastecimento de água potável.
109
Diante desta realidade é que as comunidades ainda se organizam na busca
de políticas públicas que possam resolver alguns impasses sociais para sua
população. Dona Joanita afirmou esta necessidade da luta em diversas conversas
que tivemos ao longo destes anos, como esta:
[...] com o passar do tempo então, a gente soube a finalidade dos
remanescentes dos quilombos, quais os direitos e pra gente buscar o
direito, o primeiro passo era o reconhecimento. Então hoje a gente ta
buscando essa melhoria para a nossa comunidade, porque é direito
nosso e a gente deve lutar por isso. (dona Joanita Dias de Brito.
Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2008, em Tomé Nunes)
Mas os negros de Tomé Nunes aguardam ansiosamente a demarcação das
terras, processo que deverá ser realizado pelo INCRA, visto que somente a certidão
de remanescente não é suficiente para a regularização das terras.
As comunidades negras da região se organizaram em diversas associações
para facilitar a interação desses negros com o Governo Federal e Regional, como o
Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados (CETA), Acampados e
Quilombolas, que acompanham os trabalhos e a organização nessas áreas e a
Central Regional das Comunidades de Quilombo (CRQ).
Uma prática organizada pelos negros quilombolas do Médio São Francisco,
além das lutas diárias, é a festa celebrada anualmente por todas as comunidades. O
dia da Conscncia Negra, 20 de novembro, é comemorado com muita alegria e
orgulho por todos esses negros da região.
Todo ano uma comunidade fica com a responsabilidade de organizar o
evento. Neste evento momentos de descontração e os momentos em que eles
trocam experiências de vida e compartilham o que vem acontecendo com eles em
relação ao reconhecimento e/ou titulação das terras.
Durante a festa, cada comunidade apresenta suas principais práticas
culturais. espaço para oficinas, das mais variadas, como de “dança afro”, cabelo,
artesanato, discussão sobre política, dentre outras e que são prestigiadas por todos
aqueles que estão ali para comemorar a luta e a liberdade dos negros durante toda
sua existência.
110
Figura 15: Mulheres de diversas comunidades, discutindo sobre a liderança feminina em
suas comunidades. Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira, Comunidade do Bebedouro-
Bom Jesus da Lapa/BA- novembro de 2009
Figura 168: Oficina de “dança afro” se apresentando para os demais participantes da festa.
Fonte: Foto de Leila Maria Prates Teixeira, Comunidade do Rio das Rãs-Bom Jesus da
Lapa/BA-novembro de 2008.
111
As fotografias acima apresentam dois distintos momentos da festa da
Consciência Negra organizada pelas comunidades da região do Médio São
Francisco baiano.
A primeira fotografia retrata o momento em que mulheres de diversas
comunidades se reuniram e contaram sobre as lideranças femininas em suas
localidades, suas angústias, suas conquistas. Logo após este fato, acontecido na
última festa realizada até então (novembro de 2009), as mulheres foram para a
assembleia geral e dividiram com os demais participantes o que foi discutido por
elas.
A segunda fotografia nos mostra a oficina de “dança afro”, se apresentando
para todos os demais participantes da festa. Em clima de alegria e orgulho negros
das suas raízes e a herança deixada pelos seus antepassados.
Desta forma, momentos assim demonstram a união e solidariedade destas
comunidades entre si. Segundo eles, é necessária esta união porque a luta é
parecida e quando um consegue, abre precedentes para os demais. Exemplo disso
é a comunidade do Rio das Rãs e as demais que vêm seguindo seu exemplo.
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, buscamos compreender a formação histórica da Comunidade
de Tomé Nunes e identificar os jogos de forças que proporcionaram o processo de
autoatribuição de identidade remanescente quilombola. Abrangendo também as
formas de vida da população, organização sócio-econômica e representação política
antes e após a sua legitimidade como comunidade quilombola, além de perceber
como a comunidade mantém viva e manifesta a sua memória e ancestralidade e as
mudanças ocorridas na comunidade após o recebimento da certidão de comunidade
quilombola: a relação entre os moradores, a mobilização da população, o surgimento
de novos líderes e novas hierarquias.
Percebemos que a presença dos membros de Pastoral foi importante para
que a comunidade se inserisse na noção de identidade remanescente, abrindo
caminhos para que eles se introduzissem nos órgãos legais para que a busca pela
titulação acontecesse corretamente e, também ajudando-os a conhecer melhor a
história negra na região e no Brasil
As suas práticas culturais vêm ganhando cada vez mais espaço dentro e fora
da comunidade. Os jovens m participando mais ativamente e já se preocupam
com o futuro dessas práticas ancestrais para que estas não desapareçam do seu
cotidiano.
O papel das mulheres vem ganhando cada vez mais destaque na
comunidade, se tornando verdadeiras lideranças. A partir das entrevistas é possível
observar uma cumplicidade entre moradores, de maneira geral. Os homens locais
ouvem e não tem receios de aceitar as opiniões femininas. Na verdade, as mulheres
de Tomé Nunes são muito ativas, presentes em reuniões sobre a luta quilombola,
tanto locais como regionais. Este fator vem suscitando significativos benefícios
sociais para o grupo citado, sendo inclusive relatados com orgulho pelos habitantes
e membros pastorais ligados à comunidade. É possível também observar este
prestígio feminino pela sua marcante participação nas questões políticas, e na
regularidade no grupo que preside a Associação de Moradores.
Observamos que todo o processo de luta pelos direitos na comunidade, vem
possibilitando a formação de uma consciência crítica que tem levado esses
trabalhadores a criarem e recriarem, dentro da própria luta, organizações que
113
contribuem no enfrentamento de dificuldades, pois muitos acreditam que a luta
ganha novas dimensões diante dos novos desafios do cotidiano.
Buscar as raízes históricas da região, problematizando com o cotidiano desta
população, entender e analisar todas essas mudanças políticas, econômicas e
sociais ocorridas na comunidade após o recebimento da certidão quilombola
mantendo o olhar historiográfico, sem deixar-se levar pelos discursos planfetários
dos movimentos sociais foi desafiador. Visto que este discurso está comumente
enraizado nessas regiões extremamente carentes e sedentas por políticas públicas
favoráveis a eles.
Mesmo escrevendo as considerações finais, este trabalho não pretende
encerrar as questões dos remanescentes de quilombos e muito menos a história de
luta dos moradores da comunidade de Tomé Nunes. Muitos aspectos sobre os
moradores dessa comunidade e suas sobrevivências não foram estudados. Desse
modo, ainda muito a ser analisado e entendido sobre a formação da comunidade
de Tomé Nunes. A exemplo da vinda destes negros de outras regiões
historicamente marcada por quilombos, das especificidades das demais danças
culturais da comunidade e diversos outros elementos que ajudariam a melhor
analisar a formação identitária deste povo.
Deste modo, abalizam-se as interpretações acerca da comunidade de Tomé
Nunes, no Alto Sertão baiano e Médio São Francisco e espera-se que este estudo
suscite o desejo de novas pesquisas sobre as comunidades negras na região aqui
em destaque ou em outras regiões, e que a análise aqui realizada possa enriquecer
os demais trabalhos que hão de surgir.
114
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BRITO, Raimundo Nonato Nery de. Raimundo Nonato Nery de Brito: depoimento
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Entrevista concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes:
memória e construção identitária no Alto Sertão baiano.
DIAS, Maria Divina. Maria Divina Dias: depoimento [2008]. Entrevistadora: Leila
Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista concedida a Dissertação de
Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e construção identitária no Alto
Sertão baiano.
FARIAS, Clarinda. Clarinda Farias: depoimento [2006, 2008]. Entrevistadora: Leila
Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista concedida a Dissertação de
Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e construção identitária no Alto
Sertão baiano.
LIMA, Gessina Santos. Gessina Lima Santos (dona Sônia): depoimento [2008].
Entrevistadora: Leila Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista
concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e
construção identitária no Alto Sertão baiano.
NOGUEIRA, Francina. Francina Nogueira: depoimento [2006, 2008].
Entrevistadora: Leila Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista
concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e
construção identitária no Alto Sertão baiano.
RIBEIRO, Francisca Alves. Francisca Alves Ribeiro: depoimento [2008].
Entrevistadora: Leila Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista
concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e
construção identitária no Alto Sertão baiano.
ROSÁRIO, Maria Dias da Conceição do. Maria Dias da Conceição do Rosário:
depoimento [2006, 2008, 2009, 2010]. Entrevistadora: Leila Maria Prates Teixeira.
Arquivo MP3 sonoro. Entrevista concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade
de Tomé Nunes: memória e construção identitária no Alto Sertão baiano.
SANTOS, João Pereira dos. João Pereira dos Santos: depoimento [2006, 2008].
Entrevistadora: Leila Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista
concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e
construção identitária no Alto Sertão baiano
SANTO, Maria do. Maria do Santo: depoimento [2006, 2008]. Entrevistadora: Leila
Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista concedida a Dissertação de
115
Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e construção identitária no Alto
Sertão baiano
SILVA, Geraldina Souza da. Geraldina Souza da Silva: depoimento [2008].
Entrevistadora: Leila Maria Prates Teixeira. Arquivo MP3 sonoro. Entrevista
concedida a Dissertação de Mestrado. Comunidade de Tomé Nunes: memória e
construção identitária no Alto Sertão baiano.
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