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UNIVERSIDADE DE SOROCABA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO
Antonio Almeida da Silva
CIÊNCIA E POESIA EM DIÁLOGO: UMA CONTRIBUIÇÃO À
EDUCÃO AMBIENTAL
SOROCABA
2009
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Antonio Almeida da Silva
CIÊNCIA E POESIA EM DIÁLOGO: UMA CONTRIBUIÇÃO Á
EDUCÃO AMBIENTAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Sorocaba, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientador: Profº. Doutor Marcos A. S. Reigota.
SOROCABA
2009
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Antonio Almeida da Silva
CIÊNCIA E POESIA EM DIÁLOGO: UMA CONTRIBUIÇÃO Á
EDUCÃO AMBIENTAL
Dissertação aprovada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre no Programa
de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Sorocaba.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA:
Ass.:_________________________________
Pres.; Prof. Dr., Marcos A. S. Reigota,
UNISO/Sorocaba
Ass.:_________________________________
Exam.; Profª. Drª., Ana Godoy, UNICAMP,
Campinas
Ass.:_________________________________
Exam.; Profª. Drª., Eliete J. Nogueira,
UNISO/Sorocaba
Aos meus pais, Francisco e Elena
que marcaram pela grandeza do ínfimo
e prezaram pela minha educação.
Aos amigos e familiares, em especial,
ao Rogers, por coisificar e desenhar minha trajetória.
AGRADECIMENTOS
A escrita deste texto percorreu margens silenciosas, linhas infelizmente digitalizadas
gostaria que fossem escritas a lápis, pois um lápis atravessa a paisagem da memória: corta,
recorta, assinala, sublinha, rasura. Durante o processo de leitura e escrita, acabei deixando
propositalmente por último de agradecer àqueles e àquelas que puderam fazer diferença no
presente texto. Dois motivos me levaram a escrever somente agora esse texto: o primeiro é
que na minha terra não se agradece a alguém antes da ajuda. Contudo, não foi uma única
contribuição, muito menos num momento. Segundo é que poderia esquecer de mencionar
alguma das pessoas que no último momento puderam contribuir para a melhoria e conclusão
deste trabalho.
Nessa trajetória de conflitos, dúvidas, insegurança e muita leitura, várias pessoas
estiveram diretamente ou indiretamente presentes nessa dissertação. Como não sou bom de
memória, acredito que deixarei de mencionar muitos desses colegas, amigos, para estes peço
humildemente minhas desculpas. Agradeço àquelas pessoas que, mesmo no silêncio e na
inércia, contribuíram para dar pertencimento a este trabalho.
Acredito que o agradecimento é a parte mais importante do meu trabalho, simplesmente
porque tenho somente agora a ciência de que dei conta do recado. Confesso que não foi nada
fácil trabalhar e, ao mesmo tempo, estudar. Agradeço aos muitos passarinhos que puderam
dar primavera às minhas palavras.
Trabalho nobre aliás mas sem explicação/Tal como costurar sem agulha e sem pano./ Na
verdade na verdade/ Os passarinhos que botavam primavera nas palavras. (BARROS,
2006, p. 21)
A cada dia agradeço a minha família, em particular minha mãe, por acreditar e apostar na
minha formação, pelas horas mal dormidas de preocupação, esperando eu chegar da
faculdade. Ao meu pai, pelo incentivo e por priorizar o nosso estudo, acima de tudo. Aos
meus irmãos, por serem parceiros nessa trajetória.
Porém, aqui em Sorocaba, conheci outras pessoas que, de certa forma, deram continuidade
a minha história, pessoas que me apoiaram, me subsidiaram nas horas em que mais precisei.
O amigo, “primo”, parceiro Rogers Grossi, por suportar minha chatice e teimosia. Crítico
assíduo desse trabalho, lendo e relendo insistentemente, me deu motivação e entusiasmo,
sobretudo quando estava pensando em “chutar o balde”, ou seja, desistir do mestrado
Aos colegas coordenadores da Oficina Pedagógica de Votorantim (Regiane, Adriana, Eli,
Lúcia, Márcia, Fátima, Cleonice, Eduardo, Celso, Eliã, Sara, Patrícia, entre outros), pela
motivação e entusiasmo. “Abra seu corpo louco!”, “Vamos tiguerar!”, fuço credo”,
expressões que circulam durante cada intervalo de estudo. Agradeço em particular a Lúcia
Arantes, Professora Coordenadora de Inglês, por contribuir para a construção do abstract, e
ao Professor Coordenador de Português Eli G. Castanho, pelos poemas e a intertextualidade
entre as poesias de Manoel de Barros e Drummond Andrade e a cultura caipira, além da
correção ortográfica.
Aos professores que passaram por minha formação, na infância, adolescência: a
professora e vizinha Maria Ivone, pelo apoio irrestrito ao meu estudo, pelos livros doados e
emprestados. A professora doutora Andréia A. Marin pela orientação na graduação, por
permitir a iniciativa nos estudos de Educação Ambiental, e por ter acreditado no meu
trabalho, “esse menino vai chegar longe”, “ele tem potencial”, palavras proferidas ainda como
professora do Curso de Ciências com habilitação em Matemática, na UEMS.
Aos participantes da Banca de qualificação:
- a professora doutora Ana Godoy, pelas boas dicas e coordenadas durante os seminários
e durante a qualificação. Por ajudar a contrair uma visão fontana. Pela indicação do Gabriel
para uma revisão textual.
- ao professor doutor Fernando Cassadei, pela crítica construtiva à pesquisa, pelo humor e
admiração pelo meu trabalho. Que infelizmente não pode contribuir ainda mais para a
poetização de meu trabalho e de outros mais, realizados na Universidade de Sorocaba. O
professor Fernando é um daqueles seres que tem qualidades para pássaros e comunhão com
as árvores.
Aos Professores do curso Mestrado em Educação da Uniso, ofereço meus préstimos, por
entender a educação além das minhas representações, em especial ao professor doutor Pedro
Goergen, pelas dicas filosóficas e a professora doutora Eliete J. Nogueira pela participação na
defesa.
Minhas considerações ao professor e filósofo Newton Aquiles von Zuben pela orientação
e entrevista fornecida às vésperas da qualificação. Ao poeta Manoel de Barros, bem como a
seus familiares, por ter concedido a entrevista. Ao Pedro Spíndola, grande amigo do poeta,
por disponibilizar jornais, documentos, livros e histórias sobre ele.
Sou grato ao orientador, o professor doutor Marcos Reigota, pela preocupação, carinho e
principalmente pela (des)construção de minhas representações. Por atingir o reino das
imagens e poder compreender o mundo sem conceitos. Durante os Seminários Sobre o
Cotidiano Escolar, pude narrar minhas trajetórias e, o mais importante, “reconhecer-se[me], a
si[mim] mesmo, como sujeito da história”. Por forma que enxergava as coisas por igual,
como os pássaros enxergam. As coisas todas inominadas. Pela confiança e otimismo. Nessa
jornada, mais do que professor, orientador, Marcos foi um grande amigo.
Por fim a todos aqueles atores e coadjuvantes que passaram por essa paisagem que eu vos
apresento. Muito obrigado!
Remexo com um pedacinho de arame nas
minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro:
entre conchas, osso de arara, pedaços de pote,
sabugos, asas de caçarolas, etc. (BARROS, 2007, p. 47)
CONVITE
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia? (PAES, 1994, p. 3)
Os saberes e práticas só fazem sentido quando compartilhados e
Os saberes e práticas só fazem sentido quando compartilhados e
usados em prol da solidariedade,
usados em prol da solidariedade,
da justiça, da cultura da paz
da justiça, da cultura da paz
(Carta das Responsabilidades Humanas. p. 11)
(Carta das Responsabilidades Humanas. p. 11)
Carro de boi: trajetórias desenhadas pelo professor de Geografia Rogers Grossi.
RESUMO
Os avanços da Física, Química, Astronomia e Genética, bem como de outras áreas das
ciências, modificaram a maneira de ver o homem e a mulher, assim como o mundo. O
conhecimento das técnicas e das ciências, por alguns países, começa a ser encarado de forma
hegemônica em relação a outros. Por isso, é importante questionar: que tipo de ciência está
sendo produzida para nossa sociedade? Qual seria o sentido dessas ciências? Em quais
espaços seria possível aproximá-las de outros saberes? Que possibilidades a Educação
Ambiental pode ter na construção de diálogos entre os diferentes saberes? Com isso,
tentamos promover conflitos nas diferentes ideias, concepções, representações simplistas,
ingênuas e até mesmo oportunistas no que diz respeito à construção do conhecimento e das
ciências.
O presente trabalho propõe estabelecer diálogos entre as ciências e a arte. Para esse
diálogo, recorro aos poemas de Manoel de Barros e aos textos de Newton Aquiles von Zuben.
As primeiras nos direcionam a uma ciência mais próxima do ser, utilizando-se das
inutilidades, das coisas insignificantes, dos andarilhos. Tudo que a sociedade ignora e
despreza serve para poesia. O segundo, sobretudo pela obra Bioética e Tecnociências,
remete a intensas reflexões de cunho filosófico, assaz argumentativo sobre a técnica e a
operatividade da ciência. As tecnociências nos trazem uma equívoca melhora nas condições
de vida, no momento em que aumentam a qualidade e expectativa de vida e, ao mesmo
tempo, é permitido o surgimento de novas catástrofes, como o surgimento de novas bactérias
e explosões nucleares. Neste trabalho, a educação ambiental é vista como espaço para que se
construam diálogos entre a poesia e as ciências, de modo a direcionar o homem e mulher à
edificação de uma ciência não só pela técnica, mas pela ética e estética, na razão dialógica, na
alteridade, com vistas à construção de outras formas de saberes e práticas.
Palavras-chave: Educação Ambiental — BioéticaLiteratura — Cotidiano Escolar
ABSTRACT
Physics, Chemistry and Genetics advances, like in the others areas, has been changed the
world’s view of man and woman. The knowledge of the techniques and sciences starts to
consider hegemonic, by some countries. Then, what kind of science has been produced to our
society? What is the meaning of these sciences? Could we approach them at others
knowledge, where? What are the possibilities of the Environment Education construction
dialogues with others knowledge? We intent to promote conflicts between different ideas,
conceptions, simple representations, naive and until opportunist about the construction of the
knowledge and sciences. The present work proposes to establish dialogue between sciences
and art. To this dialogue, we report to Manoel Barros poems and to Newton Aquiles von
Zuben text. The first one directs us to a science near human being, using inutilities:
insignificant things, walkers and everything that the society ignores and despises, it serves to
poetry. The second one, meanly with the book “Bioethics and Tecnosciences” proposes to us
philosophic reflections about the techniques and the science’s work. Tecnosciences bring us a
wrong ideia of the better life conditions, although the quality and life expectancy grows, in
the same time, they allow the appearing of the new catastrophes, as new bacteria and nuclear
explosions. In this work, the Environment Education is seen as a space where we can
construct dialogues between poetry and sciences, it intends to direct the man and the woman
to the construction of a science that does not use just the technique, but also the ethic and the
aesthetics. This other science must be construct by in a dialogic reason and by alteraty, it
affords the built of others ways of knowledge and practices.
Keywords: Environment Education — Bioethics — Literature — Scholar Quotidian.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS..............................................................................................................5
RESUMO..................................................................................................................................10
ABSTRACT..............................................................................................................................11
1– INTRODUÇÃO..................................................................................................................15
2– As trajetórias relatadas.
2.1 As leituras...........................................................................................................................18
2.2 A Universidade..................................................................................................................20
2.3 As Infâncias ......................................................................................................................21
2.4 (Des) construção da minha prática pedagógica..................................................................29
2.5 Da prática pedagógica ao conhecimento sobre o cotidiano escolar ..................................33
2.6 Trajetórias relatadas: a Educação Ambiental.................................................................... 36
2.7 A poesia na Educação Ambiental.......................................................................................39
2.8 A Educação Ambiental e a construção de diálogos...........................................................44
3 – Diálogos entre os saberes: conversas que trago para roda de tereré.
3.1 O filósofo e o poeta: a Ciência e a Poesia..........................................................................47
3.2 A Bioética...........................................................................................................................54
3.3 A Ética................................................................................................................................59
3.4 Diálogos entre a epistemologia e a hermenêutica. ............................................................62
3.5 Diálogo com a Poesia de Manoel de Barros. ....................................................................65
3.5.1 Um breve apanhado biobibliográfico..............................................................................65
3.5.2 O poeta e a poesia: Diálogo com a poesia de Manoel de Barros ...................................67
4 – Diálogos com o Homem Máquina e Bernardo.
4.1 Bernardo e o Homem Máquina responsabilidade frente ao futuro do humano..................82
4.2.1 Era do digital e o Homo cyber: bem-vindo à sociedade tecnológica. .............................83
4.2.2 A presença da técnica. .....................................................................................................84
4.2.3 A presença da técnica: a biotecnologia. ..........................................................................89
4.3. A ciência e o fazer humano...............................................................................................93
4.4.1 A sociedade da tecnologia: do Homem máquina ao Cyber human................................95
4.4.2 Cyber human: do humano ao ciborgue..........................................................................100
4.5 Diálogos com Bernardo e o Homem Máquina. ..............................................................102
5 – Educação Ambiental e os novos paradigmas
5.1 Paradigma cientifico moderno........................................................................................125
5.2 Células-tronco ................................................................................................................129
5.3 A manifestação do Cyborg. ............................................................................................132
5.4 Ética e Direitos Humanos: avanços e conquistas............................................................133
5.5 A Carta das Responsabilidades Humanas ......................................................................135
5.6 Um novo diálogo para uma “nova aliança”. ...................................................................137
5.7 A importância da Educação Ambiental, ciência e poesia para a construção de
diálogos..................................................................................................................................138
6 – Considerações finais.
6.1 Parte I – Dos diálogos à práxis: (des)caminhos da prática pedagógica............................142
6.2 Parte II – Poesia e Ciências numa entrevista: (des)encontros entre o poeta e
o filósofo................................................................................................................................145
6.2.1. Conversas numa roda de tereré..................................................................................146
7. REFERÊNCIAS ...............................................................................................................153
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc, etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidades para clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade de uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.
(BARROS, 2001, p. 51)
*desenho de Manoel de Barros
1– INTRODUÇÃO
Nas primeiras décadas do século XX, o campo das artes foi marcado por uma intensa crítica ao
modelo de cultura ocidental e à frágil condição humana em um mundo cada vez mais mecanizado e
complexo. Esse jeito de abordar a realidade provocou na sociedade a possibilidade da construção de
olhares e reflexões atentas às questões anti-humanas e antiéticas.
Tal leitura, apresentada por escritores, pintores e poetas, trouxe às ciências, sobretudo às menos
impositivas e reducionistas, outras possibilidades de construção de diálogos com a arte, entre o
conhecimento científico e a responsabilidade humana na construção de um mundo mais justo, ético
e solidário. É o que vem dizer os princípios da Carta das Responsabilidades Humanas
15
.
Os avanços da Física, da Química, da Astronomia e da Genética, bem como os de outras áreas
das ciências, modificaram a maneira de ver o ser humano, assim como o meio ambiente. O
desenvolvimento da técnica e das ciências e o domínio dessas por alguns países passaram a ter uma
relação estreita com o domínio político de uns países sobre os outros. É cabível a pergunta: que tipo
de ciência está sendo produzida para nossa sociedade, e qual seria o sentido dessas ciências? Em
quais espaços seria possível aproximá-las de outros saberes?
Os questionamentos acima são algumas das provocações possíveis postas a você, leitor ou
leitora, sem o compromisso de dar respostas, mas com o comprometimento de levar à reflexão
sobre a construção de práticas e saberes, inclusive, sobre a educação.
A educação em geral e a educação ambiental em particular, nesses tempos pós-
modernos, não tem a pretensão de dar respostas prontas, acabadas e definidas, mas
sim instigar questionamentos sobre as nossas relações com a alteridade, com a
natureza, com a sociedade em que vivemos, com o nosso presente e com o nosso
eventual porvir. (REIGOTA, 2002 p. 140)
Tais reflexões engrenam e movimentam esta dissertação. Com isso, tentamos promover
conflitos nas diferentes ideias, concepções e representações simplistas, ingênuas, até mesmo
oportunistas no que se refere à construção do conhecimento e das ciências. São algumas das
possíveis inquietações com vistas a construir alternativas pedagógicas e ecológicas acredito que
tais questões possam tirar da inércia aqueles e aquelas que pretendem provocar ruptura nas
representações e ações, seja no âmbito pedagógico, seja em outro espaço. A arte e as ciências
possuem características próprias, tanto no que se refere à metodologia, quanto à estética; porém,
15
Carta das Responsabilidades Humanas: a aliança para um mundo responsável, plural e solidário. São
Paulo: Instituto Agora em defesa do Leitor e da democracia, 2002. Disponível em<http://www.carta-
responsabilidades-humanas.net/IMG/pdf/CRH_Portuguese_Brasil_aout08.pdf> 20 de Agosto de 2009.
14
ambas se encarregam de mostrar ao mundo concepções e direções que contribuam para a construção
do conhecimento. Nesse contexto, penso que a educação ambiental pode estabelecer diálogos entre
as diferentes formas de vivenciar as ciências, tirando-as de uma posição de produtores de uma
verdade inquestionável.
A busca por novos paradigmas para humanizar e subjetivar as ciências voltadas às inspirações
ético-estéticas, conforme observa Felix Guattari (1997, p. 18), pode apontar algumas respostas.
Nessa perspectiva, buscamos apoio na poesia de Manoel de Barros, que nos traz a possibilidade de
questionar as tecnociências e a sua situação de conhecimento considerado “superior” por
desconsiderar, encobrir ou até mesmo negar saberes construídos e presentes no conhecimento
popular, repletos de história, cultura, subjetividade e poesia.
A escolha da poesia de Manoel de Barros para esse objetivo se deu por considerarmos que ela
contempla a possibilidade de se olhar o homem, a mulher e os outros seres vivos que estão ao nosso
redor atribuindo-lhes o mesmo grau de importância, valorizando os diferentes, os seres
marginalizados, jogados ao chão. Sua poesia valoriza seres e coisas que as tecnociências, muitas
vezes, desconsideram. Dessa forma, procuramos enfatizar o espaço e importância da subjetividade,
questionando a objetividade que caracteriza a ciência moderna. Chamamos atenção para a
simplicidade das coisas e do viver, onde o maior valor e a nossa atenção se voltam para o que é
considerado inútil, desprezível pela tecnociências e que escapa da operatividade, normatização e
controle da técnica. Podemos observar essa premissa, de forma clara, no primeiro trecho de
Matéria de Poesia.
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia.
[ ...]
Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima
serve para poesia (BARROS, 2007, p. 11-15).
A construção do conhecimento tem suas bases científicas, mas também é determinada por uma
ampla construção histórica, política e cultural. Separar essas dimensões de conhecimento implicaria
um grande erro. Não podemos perder a dimensão dessa construção dos saberes, ou seja, perder a
dimensão humana presente na construção de uma sociedade. O conhecimento faz parte de um
15
processo muito mais histórico, cultural e subjetivo do que científico, e é nessa direção que nos
construímos como sujeitos. que, nos últimos tempos, corremos um sério risco de invertermos
essa paisagem.
O encontro entre diferentes saberes e linguagens induz a indagar sobre o tipo de conhecimento
construído, consumido e acumulado pela sociedade. Nesse sentido, a poesia representa uma
importante contribuição à construção de outros saberes, outros diálogos, outras reflexões.
Antes, porém, de aprofundar essas ideias, é pertinente construir um relato de minha trajetória
como sujeito desse processo, como educador, pesquisador e ecologista. Apresento, nas linhas
próximas, um breve relato das vivências que, de certa forma, induziram, influenciaram e
alimentaram a construção deste trabalho.
* Retirantes: trajetórias desenhadas pelo professor de Geografia Rogers Grossi.
16
2 – Trajetórias relatadas
2.1 As trajetórias relatadas: As leituras
Meu auto-retrato falado
Instituído o Mato Grosso do Sul
coincidência ou não, fui gerado
com uma mistura bem brasileira
o pernambucano e a paulista.
Criei-me em meio a fazendas
ruas largas, gente simples e pés no chão.
Pau, pedra, papel e porcaria
tudo era brincadeira na minha infância
em que a felicidade
era o verdadeiro e intrínseco sinônimo da simplicidade
16
.
Como ainda não me apropriei da forma de narrativa autobiográfica, escrever sobre a minha
infância e meu passado é algo caríssimo e muito complicado. Não me é confortável narrar qualquer
fase de minha vida, principalmente numa dissertação. Cada palavra, cada frase escrita não é um
desabafo. Na verdade, tento relatar a construção de uma parte da minha trajetória, a qual acredito
ser, apesar de sua singularidade, muito parecida com a de muitos brasileiros de origem humilde.
Procurarei mergulhar na subjetividade, na tentativa de resgatar memórias da infância e
adolescência, para a construção e explicitação do eu-pesquisador. Para isso, precisei esfregar as
letras nas pedras para que obtenham pertencimento ao chão.
Os pássaros, os andarilhos e a criança em mim, são meus colaboradores desta memórias
inventadas e doadores de suas fontes. (BARROS, 2008, s/p)
A Arte, em sua materialização literária, poética, era algo que sempre me causava certo fascínio.
No entanto, o contato com a poesia ocorreu somente nas aulas de literatura, durante o ensino médio,
antigo colegial. Tive a oportunidade de ler e reler alguns dos clássicos nacionais, como Senhora,
16
Poema de minha autoria, criado por meio da releitura do poema Auto-Retrato Falado, O Livro das
Ignorãças, do poeta Manoel de Barros.
17
Guarani e Iracema de José de Alencar; O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; Helena, Dom
Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; além de outros autores
tidos como modernos e contemporâneos à época, tais como o livro Meu de Laranja Lima, de
José Mauro de Vasconcelos, e Feliz Ano Velho, de Rubens Paiva. Esse último, confesso, marcou
profundamente a minha adolescência, pela ousadia e irreverência do autor. Para muitos amigos, o
ato de ler era algo típico dos então rotulados como “nerds”, mas eu não me considerava como tal,
tinha inclinação para a leitura, e ela ocupava e ocupa um espaço muito importante na construção da
minha personalidade e na minha formação.
A poesia era vista por alguns como balela”, ultrapassada, algo chato, artificial... Era
visualizada por mim com certo charme, beleza na arte de compor frases. Cada vez que tinha contato
com clássicos como Camões, Castro Alves, Álvares de Azevedo e Drumonnd, entre outros, acabava
penetrando e absorvendo um “estilo poético de ser” dentro de mim. Porém, quando entrei na
faculdade, para cursar Ciências, a poesia ficou totalmente de lado, e os números, as numerações, as
fórmulas e as formulações começaram a se incorporar em meu cotidiano, e não sobrou tempo para a
poesia. Então, esse universo poético foi trocado pelo estudo da física, da química, da biologia e da
matemática.
Infelizmente, não tive contato com os poemas de Manoel de Barros durante a fase do colégio. A
primeira vez que ouvi o nome do poeta, pelo menos que me lembre, foi na Universidade, na única
disciplina de leitura e redação do curso de Ciências com habilitação em Matemática. Entretanto,
não tinha mais tempo nem inspiração para dedicar-me às leituras de poesia. Acredito que esse
desinteresse talvez se deva aos motivos descritos acima, pois num curso de ciências exatas, pelo
menos no que cursei, as possibilidades eram muito poucas ou nulas de incluir a poesia ou a
literatura na construção de um pensamento científico.
O estranho é que tive uma longa trajetória de leitura, mas até então nunca tinha lido, ou o que é
pior, nem ouvido falar do poeta Manoel de Barros, considerado, desde aquela época, o maior poeta
matogrossense. Ao longo dos meus estudos, comecei a compreender que a escola nos apresenta
somente o conhecimento hegemônico, ou seja, aquele conhecimento que é consagrado e
determinado por uma elite social, ignorando todo o conhecimento que está à margem, distante do
poderio cultural e econômico.
18
2.2 As trajetórias relatadas: A universidade
Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a
criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. (BARROS, 2008 s/p)
Entrar na universidade, e o que é melhor, concluir o curso é uma grande conquista. Ainda mais
quando se trata da área de exatas, em que se forma, todo ano, menos do que a metade da turma. Se
hoje a oportunidade de cursar uma universidade é para poucos, naquela época, tal possibilidade era
ainda mais remota. Ainda mais em uma universidade pública.
Em julho de 1998, ingressei no curso de Ciências com habilitação em Matemática, na
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, na cidade de Nova Andradina, onde residia.
Após dois anos, pedi transferência para o curso de Ciências com habilitação em Biologia, na
cidade de Ivinhema, a cinquenta quilômetros de Nova Andradina. Um curso na área das biológicas
sempre esteve em meus planos: em primeiro lugar, era o curso de Agronomia ou Medicina
Veterinária e, em seguida, o curso de Biologia. Naquele tempo, não tive muita escolha. Aqueles
cursos eram oferecidos em cidades muito distantes de minha cidade natal, além de serem muito
onerosos: não havia nenhuma possibilidade de meus pais custearem meus estudos.
Quando estudava no colegial, o curso de Biologia, no Estado do Mato Grosso do Sul, era
oferecido somente pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, no campus de Campo Grande
e de Dourados, ambos muito longe de minha casa, portanto, cursar biologia parecia impossível.
Após terem se passado seis meses desde que terminei o colegial, abriu-se o referido curso de
Ciências com habilitação em Matemática, na minha cidade, e, na cidade de Ivinhema, o curso de
Ciências com habilitação em Biologia. Os dois cursos tinham uma grade comum nos dois primeiros
anos, e se diversificavam nos dois últimos: o de Nova Andradina voltava-se à área de Matemática,
pois a cidade tinha um baixo número de professores formados na área de exatas; o outro era
direcionado para as biológicas, pois a cidade ficava próxima ao rio Ivinhema. Além disso, a cidade
tinha um zoológico, logo, era um espaço propício para abrigar o curso da UEMS.
Então, usei a seguinte estratégia: estudar os dois primeiros anos na cidade onde morava, pois
economizava em tempo e dinheiro; depois disso, no começo do terceiro ano, faria uma
transferência para o curso de Biologia, na cidade vizinha. Foi exatamente isso o que me aconteceu.
Em agosto de 2002, estava formado em Ciências com habilitação em Biologia.
A Universidade proporcionou uma nova expectativa de vida. no primeiro ano do curso,
comecei a lecionar a disciplina de Ciências na Escola Estadual Austrílio Capilé de Castro, a mesma
da qual, menos de um ano antes, era aluno. Isso era muita responsabilidade, mas venci o desafio.
19
Depois dessa escola, vieram outras estaduais, municipais e particulares —, onde ministrei aulas
de Ciências, Química, Física, Matemática e Biologia.
2.3 Memórias e trajetórias: As Infâncias
Eu tenho um ermo dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho
saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância.
Faço outro tipo de peraltagem (BARROS, 2006, s/p)
“Meu Mato Grosso do Sul”
Milhões de Estrelas
(letra de Almir Sater)
Nesse Mato Grosso
Desde os tempos de menino
Quando eu comecei a percorrer
Os seus caminhos
E desse chão eu fiz o meu lugar
Nos meus sonhos quis plantar
E a colheita há de vir
Como as cachoeiras
Dos seus rios cristalinos
Toda essa pureza deve ser
Um bem divino
E pode a nossa sede saciar
Nosso campo abençoar
Gerações fazer florir
Sou feliz aqui
Terra de gigantes
Onde bravos índios viviam antes
20
Onde além de ouro e diamantes
Tem milhões de estrelas
No horizonte
Agora peço licença ao leitor para falar da construção de minha identidade e de meus vínculos
com o Mato Grosso do Sul, estado no qual nasci e fui criado.
O Estado do Mato Grosso do Sul foi instituído oficialmente em de janeiro de 1979,
confluindo com o mês e o ano de meu nascimento. Sou natural de Batayporã, que fica na região sul,
perto do rio Paraná.
Eu nasci lá no fim do mundo
Bem magrinho
Cristão e bom menino
Gostando das árvores e televisão. (REIGOTA, 2001, p. 56)
Meus pais abandonaram a vida do campo de Batayporã por motivos familiares, e foram morar
na área urbana dessa mesma cidade. Quando eu tinha um ano, minha família mudou-se para Nova
Andradina, uma cidade vizinha.
Essa mudança para a cidade simbolizava uma nova expectativa de vida, em busca de mais
conforto e emprego. Mas não foi bem assim. Durante um longo tempo, essas expectativas estavam
distantes de serem efetivadas. As dificuldades foram muitas, lembro-me de tempos em que meu pai
estava desempregado e tinha de trabalhar por dia, submetendo-se a serviços exaustivos e de baixa
renda, tudo para não faltar comida em casa; às vezes, todos da família saíam juntos para trabalhar.
Em época de colheita de algodão, que coincidia com as férias escolares, íamos trabalhar como
“bóias-frias”. Esse período foi um tanto contraditório: marcado pelas brincadeiras e traquinagens da
infância, ricas de significâncias, juntamente com um período de grande dificuldade financeira.
Lembro-me das dificuldades e percalços que pareciam não ter fim.
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
mato e a fome tomavam conta das casas, dos
seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore. (BARROS, 1997, p. 101)
21
Tenho poucas recordações de infância. A grande parte das lembranças apresenta-se em forma de
fragmentos. Lembro-me que ia para a escola a pé, de chinelo havaianas, muitas vezes invertendo o
par direito com o esquerdo. Carregava os cadernos em sacos plásticos de arroz. Lembro-me da
professora da segunda série, uma japonesa um tanto exigente, reclamar da falta de cuidado com os
cadernos, pois sempre apresentavam “orelhas”. Ela também reclamava dos meus erros ortográficos,
assim como da dificuldade com a escrita.
Quando criança, o que o me faltou foi ousadia e liberdade. Andava pelas ruas, muitas vezes
descalço, à procura de qualquer coisa que pudesse virar brinquedo. Não tinha algo específico em
mente, poderia ser um brinquedo velho, aparelhos elétricos danificados, livros que poderiam estar
jogados nas calçadas ou nas latas de lixo das casas ou terrenos baldios. Quando encontrava, era
motivo de grande alegria. Aí, era correr e contar para os amigos sobre o achado, logo o local era
vasculhado por dezenas de crianças. Algumas pessoas nos viam como garotos à toa, outras como
andarilhos, até mesmo crianças de rua. Mas, na verdade, aquilo que estava no lixo era nosso lazer,
com os objetos e achados construíamos nossos brinquedos. Éramos, na verdade, crianças livres e
criativas, reconstrutores do inútil, das coisas jogadas ao chão.
Terreno de 10x20, sujo de mato — os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia. (BARROS, 2007, p. 11)
As traquinagens e atividades improvisadas estavam presentes em minhas brincadeiras. Meu
interesse era pelas mágicas e pequenas experiências científicas, além das brincadeiras de rua,
esconde-esconde, queimada, bang-bang, brincadeiras com terra e utensílios achados no chão, como
pregos, galhos de madeira, garrafas plásticas e objetos jogados no lixo das casas. Como não
possuíamos muitos brinquedos, o jeito era inventar estas máquinas de brincar, máquinas de fazer
amanhecer, máquinas de como se divertir, pois meus pais não tinham condições financeiras para
comprar brinquedos (máquinas das tecnociências) para quatro filhos.
No quintal a gente gostava de brincar com palavras
22
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta. (BARROS, 2003, s/p)
Brincar com palavras era algo muito prazeroso. Eu adorava, e disputava com os colegas e as
colegas mais novos o cargo de professor. Com uma pequena tábua, ou até mesmo nas paredes,
brincávamos de ensinar e aprender. A gente brincava com palavras descomparadas.
Tipo assim:
O céu tem três letras
O sol têm três letras
O inseto é maior
O que parecia um despropósito
Para nós não era despropósito. (BARROS, 2003, s/p)
Eras
Antes a gente falava: faz de conta que
este sapo é pedra.
E o sapo eras.
Faz de conta que o menino é um tatu.
E o menino eras um tatu.
A gente agora parou de fazer comunhão de
pessoas com bicho, de entes com coisas.
A gente hoje faz imagens.
Tipo assim:
Encostado na Porta da Tarde estava um
caramujo.
Estavas um caramujo – disse o menino.
Porque a Tarde é oca e não pode ter porta.
A porta eras.
(BARROS, 2001a, s/p.)
Meu pai é de origem pernambucana, vindo do sertão nordestino quando garoto juntamente com
meus avôs, mais três irmãos e três irmãs, uma delas criança de colo, em busca de melhores
23
condições de vida. A seca no Nordeste e a falta de perspectiva de melhoria impulsionaram a
construção de um sonho de vida rumo ao interior de São Paulo e, mais tarde, ao Mato Grosso do
Sul.
Meu pai conta que a viagem do Nordeste até o interior do Estado de São Paulo não diferencia
muito dos filmes e livros que retratam as histórias dos retirantes nordestinos. A viagem durou em
torno de onze dias, nos bancos feitos de galhos de árvores, na carroceria de um pau-de-arara.
Meu pai, um homem simples e de pouco estudo, que cursou apenas até a primeira série do
ensino fundamental, tinha uma escrita nada caligráfica, porém, era bom na matemática básica e,
talvez por isso, nos fizesse decorar a tabuada.
Ele sempre valorizou a escola, apesar de, quando jovem, não ter tido a oportunidade de
frequentá-la. Sabia de sua importância, e uma das coisas que mais admiro nele é o valor que dava ao
nosso estudo. Para meu pai, a escola sempre foi prioridade. Ele nunca nos permitiu abandoná-la
para trabalhar, sempre acreditou que ela pudesse melhorar nossa condição social e econômica.
Recentemente, voltou a estudar; mesmo com limitações, conclui o ensino médio.
Minha mãe era filha de alagoanos, natural de Mariápolis, interior de São Paulo. Como meu pai,
também não teve acesso à escola. De família humilde e rural, mal teve acesso às primeiras séries do
ensino fundamental. Ela carrega consigo dois grandes sonhos: o primeiro é o de aprender a ler e a
escrever, principalmente para ler a Bíblia e escrever cartas; o segundo é o de morar em um sítio, ou
melhor, em uma chácara. Minha mãe, sem exagero de minha parte, é uma pessoa com a qual me
identifico tanto pela teimosia quanto pela simpatia, pela maneira de cativar as pessoas.
Apesar de estar longe do campo, minha casa sempre esteve repleta de características da zona
rural. No quintal um fogão à lenha, juntamente com um amontoado de madeiras e galhos, que
não vence de ser queimado, por causa da quantidade. existe um pomar de diversos tipos de
frutas, das mais diversas espécies. Entre elas, jabuticabeiras, mangueiras, limoeiros,
mexeriqueiras, abacateiros e acerolas. Ainda existe uma pequena casa, que antes era alugada, e
agora serve de depósito de “trecos”, coisas velhas e sem muita utilidade. Ali, se guarda tudo o que
pode um dia ser útil: pneu velho, aro de bicicleta, aparelhos elétricos que não funcionam mais, latas
de tinta vazias, panos velhos e outras tranqueiras.
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. (BARROS, 2001, p. 11)
Minha casa não era muito grande, mas estava sempre cheia de pessoas. Minha mãe costumava
receber visitas, tanto parentes como amigos. Eram, em geral, pessoas simples, que demonstravam
24
uma grande estima por minha mãe. Foi assim que eu fui criado, rodeado de pessoas. Tive uma
infância muito boa e, apesar das dificuldades, tenho saudades.
Carrego em minha memória lembranças das tardes de final de semana, na beira do riacho,
tomando banho, brincando, observando a riqueza da vegetação ao redor. Lembro-me das esperadas
férias para ir ao sitio de meu avô, para quem a simplicidade e o amor às criações faziam parte das
relações familiares, da riqueza do conhecimento popular que se transmite por lendas, mitos e
causos.
Durante as conversas, contavam vários “causos”, histórias inventadas ou fatos verídicos. A
veracidade das histórias não importava, o que era mais importante eram as tramas das histórias,
essas muitas vezes eram de amedrontar, dessas que a gente “morre de medo”. Além dos causos, as
lendas eram as minhas preferidas: as do saci, da mula-sem-cabeça, caipora e o lobisomem eram as
mais empolgantes. As pessoas que contavam tinham vivenciado o acontecido ou simplesmente
referiam-se a um conhecido, parente, ou somente à expressão do tipo “ouvi falar...”, para dar tom de
verdade às histórias.
As noites de junho e julho eram as mais animadas. Nessa época, havia as maiores quermesses e
festas da região, sempre acompanhadas por uma boa fogueira, regada de quentão, batata assada,
pinhão, bolos e muita pipoca. As festas eram quase sempre acompanhadas por boa música de viola
ou pelo som da sanfona.
Recordo da boa conversa quando surgia uma roda de tereré
17
. Uma boa conversa poderia ser
qualquer conversa, até mesmo conversa fiada, conversa nenhuma. O importante é o pertencimento,
a socialização no grupo. Então, interessavam mais as pessoas que estavam na roda do que
propriamente a conversa. Crianças, jovens e adultos se reuniam para se descontrair e pôr os
assuntos em dia.
Passávamos horas nas rodas de tereré. Para resistir ao intenso calor do Mato Grosso do Sul,
somente com um tereré bem gelado e uma boa sombra. Quando chego ao Mato Grosso do Sul, uma
das primeiras coisas que faço, após ver minha família, é tomar um tereré com uma roda de amigos
ou parentes. Fomos formados no mato as palavras e eu. O que de terra a palavra se
acrescentasse, a gente acrescentava na terra. (BARROS, 2008, s/p)
Essa narrativa não es isenta de certa nostalgia. Em alguns momentos, essas lembranças
apresentam um exagero. Talvez tudo isso, um dia, possa ser anestesiado. Espero que não, pois faz
parte do que sou agora, são partes inerentes à construção de minha individualidade.
17
Tereré: bebida típica gelada feita a base de erva mate.
25
Tenho um lastro de infância, tudo o que a gente é mais tarde vem da infância. (BARROS, 2002,
s/p)
Lembranças e saudades do “Meu Mato Grosso do Sul”, frase essa pronunciada antes pelos
cantores de “moda de viola sul-matogrossense”, presente até mesmo em adesivos nos carros. Às
vezes me ocupo a pensar que existe uma barreira que distancia Sorocaba (SP) de Nova Andradina
(MS). Não se trata de uma barreira somente geográfica, são quase 900 km entre as duas, mas
particularmente de uma barreira cultural e afetiva.
Nunca morei longe do meu país.
Entretanto padeço de lonjuras.
Desde criança minha mãe portava essa doença.
Ela que me transmitiu
[...]
A distância seria uma coisa vazia que a gente
Portava no olho
E que meu pai chamava exílio. (BARROS, 2000, p. 49)
Laços de amizade e família estão presentes em minha memória. Lembranças de uma vida
humilde, carregada de simplicidade, à qual, antes, não dava muita importância, e que hoje é uma
das coisas que eu mais valorizo. Lembrar da infância é recordar da casa simples de madeira, de um
fogão à lenha, da velha bicicleta Barra Forte, de sair escondido da mãe para ir ao rio, de fabricar
brinquedos, das peraltagens, ah, nisso eu era bom.
Nosso banho não podia ser muito tarde, que o banheiro ficava fora de casa, separado do lugar
de “cagar”. O chuveiro era feito por um balde de lata, que se enchia de água, a qual escorria pelo
gargalo cheio de furos. O lugar do “cago”, o mictório, chamado por nós de “mitório”, ficava no
exterior da casa também. Era uma pequena casinha de madeira, seu piso era coberto de tábuas, com
um buraco no centro, em forma de triângulo, onde era feito o cago”. Momentos difíceis eram
quando chovia, pois quando surgia a necessidade, tinha de atravessar a chuva sem frescura para
chegar ao mictório.
26
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu
tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. (BARROS, 2006, s/p)
Não como me esquecer das brincadeiras improvisadas. Usava-se de tudo para inventá-las:
galhos de árvores jogados na rua transformavam-se em cabanas, onde ficávamos o dia todo e às
vezes a noite; com latas velhas de leite em pó e barbantes, disputávamos corrida de chinelos de latas
no meio da rua, época em que as ruas não eram tão movimentadas, mal passavam carros; as latas
de óleo e balaústres eram instrumentos utilizados para brincar de bete, uma brincadeira infantil
parecida com o beisebol; tocos de madeira viravam carrinhos, espadas, flechas, enfim, o que a
imaginação mandasse. Quando chovia, não ficávamos dentro de casa, exceto se estivéssemos de
castigo. Nos meses de janeiro e fevereiro, chovia muito, adorávamos tomar banho de chuva e, como
na maioria das ruas não havia asfalto, formavam-se crateras onde, sem nenhum exagero, caberia um
carro todo dentro. Isso era uma verdadeira piscina de água suja utilizada por meus amigos e por
mim. Quando a e ficava sabendo que íamos, isso rendia boas surras, além de eu ter de lavar
toda minha roupa. O que eu gostava mesmo era de disputar corrida de barquinho na enxurrada,
podia ser barquinho de madeira, plástico, isopor, até mesmo papel, às vezes tínhamos de seguir
quilômetros para resgatá-los.
Quem se aproxima das origens se renova. (BARROS, 2006, s/p)
Essas e outras aventuras marcaram profundamente minha representação sobre o Mato Grosso do
Sul. Trago comigo, ainda hoje, lembranças daquele tempo. Por isso a gente pensava sempre que o
dia de hoje era ontem. A gente se acostumou de enxergar antigamentes. (BARROS, 2006, p. 13)
Talvez o leitor possa estar indagando o porquê da minha vinda para o Estado de São Paulo.
Posso dizer que foram vários os motivos. Um deles eram as representações que eu e meus colegas
professores tínhamos da docência no Estado de São Paulo. O outro era o interesse pelo mestrado.
Sempre quis morar em uma cidade de grande porte, e passar em um concurso público para professor
no Estado de São Paulo foi a minha oportunidade. A vinda para as terras paulistas significava deixar
algo que eu mais valorizava. E deixar a família não foi fácil, mas aos poucos fui me convencendo
de que era a condição para continuar meus estudos e dar continuidade a minha história.
Como professor efetivo na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, primeiramente na
cidade de Votorantim e, anos depois, em Sorocaba, tive muitas decepções em relação à carreira
profissional (valorização salarial), em relação ao sistema de ensino e, em particular, à progressão
continuada, para ficar somente nesses exemplos. Contudo, tive a oportunidade de continuar meus
estudos, fazer novas amizades, aprender outros costumes, vivenciar paixões.
27
Com as dificuldades apresentadas acima, relacionadas à profissão de professor, procuro
construir ações individuais para melhorar minha carreira profissional e ações pedagógicas na
tentativa de melhorar o ensino público. Essa luta é uma constância.
Tornar-me professor da rede estadual de São Paulo possibilitou-me algumas oportunidades: a de
exercer o cargo de Coordenador Pedagógico e, recentemente, Coordenador de Biologia da Oficina
Pedagógica, além da possibilidade de continuar meus estudos, pois hoje tenho a oportunidade de
cursar o Mestrado, algo que sempre objetivei. A primeira tentativa de ingresso ao mestrado foi na
Unicamp, no entanto, minha jornada de aulas não permitia que pudesse ir a Campinas estudar. O
sonho do mestrado quase foi abandonado. Voltei a me animar quando conheci o programa de
Educação da Universidade de Sorocaba.
2.4 (Des)construção da minha prática pedagógica.
Qual é a possibilidade de ensinar uma ciência compromissada com a vida e de integrar o ensino
de Ciências a outros saberes?
Só as dúvidas santificam
O chão tem altares e lagartos. (BARROS, 2007, p. 31)
Ao observar minha prática pedagógica, confesso que, nos últimos anos, me considerava muito
distante de encontrar essas respostas. Buscava atingir os objetivos quantitativos, como se o que eu
ensinasse fosse ajudar ou não o aluno a ser aprovado num concurso, numa faculdade... Como
manda o mercado.
Em geral, o ensino de Ciências oferecido tanto na escola pública como na particular enfatiza o
método empírico e racional, com metodologia mecanicista, fragmentada e totalmente disciplinar. O
mundo é visto como uma máquina, e a natureza, parte dessa máquina, é regida pelas leis da física; o
homem é visto como o controlador, exercendo domínio sobre a natureza. Portanto, a ciência é
entendida como uma técnica, capaz de ditar instruções para a exploração dessa engrenagem, a
natureza.
As aulas de Ciências, tal como as vivenciei como aluno, no tempo do colégio, como professor e
agora como coordenador e formador de professores de Biologia, em geral, baseiam-se no ensino de
28
fórmulas, regras e umas séries de nomes e esquemas que são decorados. Algo tão mecânico e
objetivo que, aos poucos, cada professor embutiu mentalmente o cronograma de conteúdos
destinados para cada série. Isso é tão automático que qualquer intenção de rompimento é motivo de
discórdia e conflito no grupo docente.
Em geral, a prática do ensino de Ciências está engessada num currículo pronto, com o plano do
ano para as diferentes séries, independentemente do alunado presente na sala de aula. Isso é ainda
mais marcado quando a escola disponibiliza um livro didático ou uma apostila em que o conteúdo
está distribuído por série.
É quase unanimidade o conteúdo que é ensinado às quintas séries do ensino fundamental: o
Universo, o solo, o ar, a água e noções de ecologia. Nas sextas séries, ensina-se a classificação dos
seres vivos, nem sempre considerando a ordem evolutiva. Nas sétimas, o conteúdo direciona-se ao
corpo humano e aos estudos dos sistemas, órgãos e doenças a eles relacionados. Na oitava série, é a
vez das noções básicas de química e física; essa última série é que disponibiliza um conteúdo
extremamente mecânico e repetitivo
18
.
Essa é a ordem presente na maioria dos currículos observados na prática de ensino de Ciências.
A possibilidade de mudanças é muito limitada, a ordem de alguns conteúdos poderia ser invertida
sem interferir na estrutura maior. Essa mudança não diz respeito à diversificação do conteúdo, mas
apenas à ordem em que ele é apresentado. No entanto, cabe ressaltar que, no currículo oficial do
Estado de São Paulo, uma mudança nessa linearidade dos conteúdos começa a ser notada.
Nas aulas de Ciências, uma necessidade, talvez minha, talvez imposta nos cursos de
formação de professores, de contextualizar o que era ensinado. Esforçava-me ao máximo para
praticar isso. Confesso que não era fácil, pois, enquanto alguns conteúdos nascem
contextualizados, como a poluição, a gravidez e a alimentação, outros limitam as possibilidades,
como o ensino do ciclo da fotossíntese e do modelo atômico.
Pelas conversas que mantinha no cotidiano escolar, como professor, a interdisciplinaridade era
um termo novo, quando iniciei no magistério. A maioria dos colegas que trabalhavam comigo, da
mesma área ou de outras, desconhecia o termo. Além dos que não o conheciam, outros o conheciam
ligeiramente, e os que diziam conhecê-lo tinham muita dificuldade de o pôr em prática.
Interdisciplinaridade... Tal palavra, para muitos colegas da área, era causa de estranheza. Alguns
diziam que “o governo não tem mais o que inventar”.
18
Algumas das bibliográficas utilizadas no plano de aula do professor de Ciência. Demétrio Gowdak e
Eduardo Martins pela editora FTD 2004 (Coleção Novo Pensar); Carlos Barros e Wilson Paulino pela
editora Ática 2004.
29
A cópia do conteúdo ensinado, tanto do quadro negro como do livro didático, era e ainda parece
ser uma das metodologias mais utilizadas para o ensino de Ciências. Consegui presenciar e
vivenciar um ensino conteudista e copista desde o tempo em que era aluno do ensino fundamental.
Em algumas aulas de Ciências, a necessidade de fazer uso ao extremo da memorização, como,
por exemplo, quando é ensinada a nomenclatura na botânica, dividindo os vegetais em algas,
briófitas, pteridófitas, gimnospermas e angiospermas. Divide-se o vegetal em particularidades, sem
relacionar a importância de tal grupo à sobrevivência de outros organismos e às relações sociais e
políticas envolvidas.
Com o intuito de forçar a memorização, o ensino de Ciências faz uso de macetes. A “sigla”
“REFICOFAGE”, por exemplo, era e talvez ainda seja muito usada por professores para que os
alunos memorizem a classificação biológica dos seres vivos (Reino, Filo, Classe, Ordem, Família,
Gênero e Espécie). Às vezes, o apelo a gravar nomes, termos e significados usados nas aulas de
Ciências convida ao uso das músicas, tudo para uma memorização rápida, sem nenhum sentido,
que, com o passar dos anos, cai em esquecimento. Vemos, por exemplo, modificações feitas em
músicas conhecidas, parodiadas em versões biológicas, utilizadas em muitos cursinhos pré-
vestibular e aulas de Ciências. A paródia da música “Saudades da Amélia”, feita pelo Professor
Marcelo Alex Leal, professor de Biologia da rede de ensino Objetivo, é representante desse tipo de
metodologia. Essa música é utilizada para memorizar as principais enzimas produzidas pelo nosso
organismo.
SAUDADES DA AMÉLIA (Mário Lago e A. Alves). Versão biológica: Prof. Marcelo:
Nunca vi fazer tanta insulina
Nem fazer tanta enzima rapaz
O pâncreas sintetiza a tripsina
Lipase, amilase
E outras enzimas mais
Você, na boca possui ptialina
Prá digerir o amido do pão
O estômago fabrica a pepsina
Que vai digerir carne, leite e feijão
30
[...]
Enzima é que é proteína de verdade
Reação aumenta de velocidade.
A crítica a essas metodologias na forma como são utilizadas. Se for com o intuito da
memorização por memorização (a memorização é um fator importante na aprendizagem, contudo
não podemos restringir a prática do ensino nessa metodologia), tal prática rotula o sentido do ensino
de Ciências no discurso da “decoreba”, ou seja, decorar dados no sentido de memorizá-los, sem ao
menos entendê-los, desfavorecendo uma aprendizagem autônoma e significativa.
Ao longo dos anos, surgiram em mim questionamentos sobre minha prática como professor de
Ciências. Não que antes não os fizesse. Todo final de tarde, eu me questionava sobre a possibilidade
de o conhecimento ensinado intervir de alguma forma no processo formativo de meu aluno, e como
poderia melhorar o que e como se ensina a cada aula. Porém, esses questionamentos não bastaram
para me convencer, minha prática teria que buscar novos rumos.
Nos diferentes cursos de formação de professores, tentava (des)construir o ensino convencional,
e colocava em xeque minhas representações do ensino de Ciências.
Possibilidades foram reveladas durante as aulas de Mestrado, com a disciplina Teorias do
Conhecimento e Educação Escolar”, do Professor Doutor Pedro Goergen e, principalmente, com a
disciplina do Professor Doutor Marcos Reigota, Seminários sobre o Cotidiano Escolar”. Tais
disciplinas permitiram uma espécie de lapidação do que eu entendia sobre Ciências e sobre a minha
atuação pedagógica.
O curso de Mestrado em Educação nunca foi minha primeira opção. Estava mais interessado em
cursar algo na área de Zoologia ou Ecologia; porém, quando descobri que o programa da
Universidade de Sorocaba apresentava como membro docente o professor Marcos Reigota, me
motivei a cursar o Mestrado.
A disciplina e a orientação com o professor Marcos Reigota permitiram repensar a proposta de
pesquisa que norteou este trabalho, assim como a minha prática pedagógica. Tinha a ingenuidade de
achar que sabia tudo ou quase tudo sobre educação ambiental, por ter lido muito sobre essa
temática. Na verdade, eu não sabia nada ou quase nada sobre o que realmente seria a educação
ambiental.
31
Apresentei como proposta de dissertação o tema: “Percepção ambiental dos alunos do ensino
fundamental em relação degradação dos ambientes antrópicos e naturais e aplicação de atividades
lúdicas, na tentativa de promover a conscientização ambiental”. Tratava-se de um estudo
comparativo, repetitivo, que nada trazia de inovador, algo que já virou rotina em alguns trabalhos de
educação ambiental.
Por meio da orientação do professor Marcos Reigota e suas indicações, deparei-me com novas
leituras, que levaram a outra direção. Foi aí que comecei a me aproximar de uma outra visão do que
seria a educação ambiental, do que viria a ser um educador ambiental, diferentemente do que se
na mídia e nos discursos de senso comum, em que a educação ambiental está apenas atenta ao
“verde”, ao conservacionismo e à ecologia, deixando de lado as questões sociais, políticas e
culturais.
2.5 Da prática pedagógica ao conhecimento sobre o cotidiano escolar
A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias
(Alberto Caeiro, Poemas inconjuntos)
(In : Pessoa, 1998)
Preferi iniciar este texto abordando, em primeiro lugar, o conceito de cotidiano escolar. Por
meio desse aprofundamento teórico, minha prática pedagógica passou a ter um outro sentido.
Conforme Alves (2003), o estudo sobre o cotidiano escolar vai além do estudo epistemológico da
educação, ultrapassando o conceito de educação de classes ou de um modelo de reprodução do
Estado. Segue a autora: “Para essa tendência, introduzir a dimensão cotidiana nos estudos de
currículo era necessário para a compreensão da escola e das relações que mantinha com a realidade
social mais ampla.” (ALVES, 2003, p. 64)
De acordo com Alves (2003), nós, educadores, na medida em que vamos adentrando os
diferentes espaços escolares, podemos questionar diversas práticas e posturas presentes nos vários
discursos que legitimam uma educação escolar. A crítica, enquanto pesquisa, volta-se para a nossa
própria representação e postura na diversidade de conflitos presentes na escola.
32
A disciplina Seminários sobre o Cotidiano Escolar” permitiu o acesso a leituras que
influenciaram e estão influenciando minha maneira de enxergar o mundo, minha realidade, até
mesmo minha identidade. Tais reflexões, abordadas pelos colegas mestrandos em seminários,
transpõem minha prática pedagógica, indicando uma outra possibilidade de construir pesquisa e de
ensinar.
Os seminários, leituras e estudos apresentados pela aluna Elaine Aparecida Machado M. de
Oliveira nos remeteram à noção de comunidade na escola rural, por meio do estudo das obras de
Gianni Vattimo e Antonio Candido. Gianni Vattimo traz o conceito do belo: a experiência de viver
em comunidade, do sentir bem, do amor ao próximo. Antonio Candido traz a figura do caipira,
regatando na literatura a construção dessa cultura e do modus vivendi do homem e da mulher do
interior de São Paulo.
Elaine apresentou o pensamento de Martim Buber, utilizando-se dos livros Sobre Comunidade
e Eu e Tu, que permitem aguçar nosso olhar para a comunidade, que pode ser representada pelas
ideias de viver em conjunto, de compartilhamento, de pertencimento, na relação inter-humana em
busca de diálogo e alteridade.
A pesquisa e construção da dissertação de Elisangela Aparecida Vieira leva a questionar as
representações que temos sobre o nordeste brasileiro e sobre o nordestino, bem como as
representações dos alunos sobre o nordeste. A dissertação dela faz uma releitura crítica da obra
“Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, que nos fornece dados históricos e sociais, referentes
à formação de uma identidade brasileira.
As reflexões apresentadas pelo colega Eder Rodrigues Proença provocam para diferentes
representações sobre a construção de uma identidade sexual. Em seus seminários, foi apresentada
uma parte da trajetória do pensamento de Michel Foucault, no livro História da sexualidade,
dividido em três volumes. Tal obra, além da história da sexualidade, remete a diferentes
representações sobre o corpo e o sexo como mecanismos de poder e controle. A construção do
estudo de Eder busca levar essas reflexões para o cotidiano escolar, apontando possibilidades na
construção de um sujeito que possa assumir com liberdade sua sexualidade e cidadania, que lhe são
garantidas por direito.
Para a construção da minha dissertação, percorri uma longa e árdua trajetória até estabelecer
algo que pudesse contribuir com o fazer de uma ciência e de uma educação ambiental voltada ao
diálogo entre saberes. Tive de me desprender das amarras presentes em minhas representações de
33
professor, de educador ambiental, de pesquisador e de cidadão, se é que posso separar minha
identidade em quatro papéis sociais, sendo eu sujeito único.
Foi por meio da leitura de As Três Ecologias, de Felix Guatarri, de A nova aliança, de Ilya
Prigogine e Isabelle Stengers, e principalmente do livro Bioética e Tecnociências de Newton
Aquiles von Zuben e das poesias de Manoel de Barros que encontrei uma possibilidade de
estabelecer diálogos voltados aos diferentes saberes e contribuir para a construção de uma ciência
mais estética e humanística.
Tais leituras acabaram se incorporando ao meu discurso e à minha prática pedagógica.
Constantemente, evidencio as reflexões trazidas pelo poeta Manoel de Barros e pelo professor
Newton Aquiles von Zuben sobre a direção que daremos ao conhecimento técnico e científico e a
prática pedagógica no ensino da Ciência.
Essa é a contribuição que minha dissertação pode fazer a toda forma de educação, seja ela
ambiental ou não. A citação de Nilda Alves resume com muito estilo o que escrevo: “Somos esse
acúmulo de ações e acontecimentos culturais cotidianos, insignificantes, mas formadores
necessários.” (ALVES, 2003, p. 62)
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu
olho. (Barros, 2001, p. 27)
2.6 Trajetórias relatadas: a Educação Ambiental
Sábio não é o homem que inventou a primeira
bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira lagartixa.
(BARROS, 2007, p. 39)
Quero iniciar esta seção com algumas indagações que, na verdade, são convite a todas as
pessoas que se permitem tatear, degustar, escutar, visualizar, isto é, experienciar outras
34
metodologias em sua prática pedagógica de educação e, particularmente, em educação ambiental,
para que se possa romper com o pronto, o perfeito e o acabado. Convido você, leitor, a mergulhar
em outras águas.
Nesse mesmo movimento, está a fala de Paulo Freire: “Somos seres inacabados e, como tal,
podemos aprender o tempo todo e em todos os lugares.” (FREIRE apud BARCELOS, 2008, p. 31)
Acredito que a Educação Ambiental possa atuar de forma significativa nesse processo de
aprendizagem, nos diversos meios sociais e, particularmente, em sala de aula.
Que possibilidades a Educação Ambiental pode ter na construção de diálogos entre os diferentes
saberes? Para essa questão, ou melhor, para o meu posicionamento em relação à provocação
apresentada acima, preferi abordar como me deparei, pela primeira vez, com os estudos e leituras
sobre educação ambiental.
O curso de Ciências com habilitação em Matemática na Universidade Estadual do Mato Grosso
do Sul foi o espaço em que pude ter contato com as leituras sobre educação ambiental. Por meio de
um projeto de iniciação científica sob orientação da professora Andréia Aparecida Marin, busquei
pesquisar a relação entre o depósito de lixo e a sensibilização da comunidade que vive no entorno
de um “buracão”. Trata-se de uma grande área de erosão, onde a prefeitura, o comércio e a
população despejavam entulhos, alimentos e animais mortos, além de outros produtos e materiais.
Esse projeto de iniciação científica permitiu a construção da identidade do que seria um
educador ambiental, porém, ainda estava preso a uma prática restrita apenas à Ecologia, tendo como
alicerce as atividades de preservação e sensibilização. Não que isso não fosse importante, mas a
educação ambiental não deve ser reduzida apenas a isso. Com o aprofundamento epistemológico,
minhas concepções e representações entraram em xeque, e dediquei-me a aprofundar-me em
educação ambiental de um ponto de vista teórico e filosófico. Nesse movimento, a Educação
Ambiental ganhou uma conceituação política, histórica, filosófica e ecológica.
Para Marcos Reigota (1999 e 2002), a educação ambiental deve ser entendida como educação
política, no sentido em que reivindica e prepara os cidadãos para exigir justiça social, cidadania
nacional e planetária. Tal educação não está vinculada somente à transmissão de conhecimentos
sobre Ecologia e Biologia, amplia-se para a participação dos cidadãos na busca de uma sociedade
justa, participativa e equitativa.
O trabalho iniciado e consolidado no Brasil pelo professor Marcos Reigota é fruto de embates
teóricos, trazendo em seus grupos de pesquisa, em suas palestras, debates e livros, ideias e ideais de
35
autores como Paulo Freire, Gianni Vattimo, Felix Guattari, Ilya Prigogine, Isabelle Stengers,
Michel Foucault, Newton Aquiles von Zuben, Paulo Berthet e Jean-Marie de Ketele, entre outros.
As intervenções feitas pela professora Andréia A. Marin e o professor Marcos Reigota
contribuíram em muito para minha formação de educador ambiental, colocando em conflito minhas
próprias representações. Esse processo de formação não considero concluso, como Paulo Freire
disse, somos seres inacabados”, e Manoel de Barros completa, dizendo que a maior riqueza do
homem é a sua incompletude. Nesse processo incompleto, pretendo convidar o leitor para um
diálogo entre a poesia e as ciências. Na tentativa de como escreve Barcelos (2008) passar de
uma teoria a uma atitude — Não quero, com este texto, prescrever um único caminho para construir
saberes e diálogos. Procuro mais os descaminhos, lugares antes não trilhados, pois as possibilidades
em se dialogar com os saberes são extensas. Busco na poesia de Manoel de Barros um dos
descaminhos. Muito menos espero aferir valores, pois “não se ensinam valores. que vivê-los e,
de preferência, em comunidade” (BARCELOS, 2008, p. 32).
A educação ambiental torna-se um espaço para rupturas com as visões dogmáticas e
cristalizadas de uma prática instrumentalista, mecânica, que tem como subsídio uma única
metodologia. O professor Valdo Barcelos, no livro Educação Ambiental: Sobre princípios,
metodologias e atitudes, nos indaga e ao mesmo tempo nos convida a poetizar as ações em
educação ambiental. “Será que a ação pedagógica e metodológica em educação ambiental não
ficaria mais prazerosa com um pouco de poetização do mundo?” (BARCELOS, 2008, p. 39)
É nisso que lanço todas as linhas desse carretel de reflexões, ou melhor, novelo de linhas
19.
Que
a poesia possa levar, não somente à estética no estudo e produção do conhecimento, como a
reflexões éticas e ecológicas. O poema Despalavra de Manoel de Barros, alinhava nessa direção:
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da/ despalavra /.../ Daqui vem que os poetas
devem aumentar o mundo/ com as suas metáforas./ Que os poetas podem ser pré-coisas,/
pré-vermes, / podem ser pré-musgos./ Daqui vem que os poetas podem compreender/ o
mundo sem conceitos./ Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, / por eflúvios,
por afeto. (BARROS, 2000, p. 23)
19
Quero dizer com essa expressão que as reflexões se apresentam em formato de um novelo de linhas, onde os
pensamentos, os sentimentos, as ideias e as reflexões não têm um único ponto de partida, o que há, na verdade, é um
intercruzamento de linhas, ou melhor, de ideias.
36
A educação ambiental, agindo como possibilidade de diálogo de saberes entre a ciência e a
poesia, é nada mais que o novelo, onde as “linhas” se apresentam em um emaranhado de reflexões e
experiências. Para que essa linha deslize até que possa desprender-se de si mesma, traduzindo os
saberes científicos, históricos, sociais, ecológicos e artísticos, permitindo sair da individualidade, da
inércia, para um alinhamento, ou seja, uma humanização do conhecimento. E é na escola, acredito
eu, que a educação ambiental pode ser a iniciadora desse descarrilamento de ideias e atitudes.
A escola é um local privilegiado para a realização da educação ambiental, desde
que seoportunidade à criatividade. Embora a ecologia, como ciência, tenha uma
importante contribuição a dar à educação ambiental, ela não está mais autorizada
que a história, o português, a química, a geografia, a física, etc. (REIGOTA, 1994,
p. 25)
A prática de educação ambiental, particularmente a prática pedagógica, deve intervir na
construção de saberes para que a sociedade não seja escrava de um conhecimento construído. De
acordo com Reigota (1999), quando pensamos em uma perspectiva ecologista de Educação
Ambiental, devemos levar os educandos e educandas ao sentimento de integração à sociedade, e
não colocá-los a serviço dela. A educação, ambiental ou não, é um dos espaços, ou melhor, o
veículo para que essa discussão ocorra de forma aberta, política, dialógica, na alteridade e
compromisso com o ser humano.
2.7 A poesia na Educação Ambiental
Durante boa parte de minha prática pedagógica, nunca pensei que pudesse usufruir das duas
formas de linguagem a poética e a científica. Em tese, num ensino mecânico e sistematizador,
onde é construída a aula de Ciências, não havia espaço para o diálogo com outros saberes. Não
reconhecia a possibilidade de dialogar ciência e poesia em minha didática de ensino.
Encontrei na poesia de Manoel de Barros uma outra ciência, uma forma de falar de natureza e
das coisas que nos rodeiam de uma maneira muito simples e, paradoxalmente, muito complexa. A
simplicidade de sua poesia está na primazia e na ascensão por aquilo que é considerado
extremamente simples, pelos seres desgarrados de pertencimento, abandonados, esquecidos. O
poema é antes de tudo um inutensílio. (BARROS,1998, p. 23) Somente as coisas menores têm
grandiosidade. Sua poesia fala das lembranças de infância, traquinagens, aprendizagem.
Nesse cenário infantil, a linguagem e a paisagem compõem sua poesia. A complexidade está na
arte de criar, esculpir e trabalhar com as palavras, com as frases desprendendo-se das regras
37
gramaticais, do movimento semântico e linguístico estabelecido. Além disso, o uso de metáforas
estilo e complexidade à poesia.
"A poesia de Manoel de Barros é rigorosamente o que é. É poesia em estado de água pura, de
nascentes sem fórmulas. Poesia que abre seu lugar próprio em seu próprio território que é a
paisagem da linguagem verbal." (HOUAISS apud BARROS, 1998, s/p)
Foi nesta poesia que busquei inspiração para estabelecer um diálogo para a construção de
paradigmas, ou seja, outras formas de pensar e ensinar as ciências, que transcendessem o saber
apenas cientifico e se aproximassem aos saberes populares, históricos e subjetivos.
Nas diversas leituras da poesia de Manoel de Barros, busquei entender a lógica de sua poesia, e
a própria poesia trouxe respostas:
Poesia não é para compreender mas para incorporar
Entender é parede: procure ser árvore. (BARROS, 1998, p. 37)
Então, comecei a incorporar que a poesia trazida pelo poeta estava além do entendimento, seria
necessário utilizar outros sentidos, além da razão. Seria necessário aproximar-se do chão para
escutar o movimento andâmico dos seres rastejantes, seria necessário transfazer as normas da
escrita e da gramática.
O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática se apóia em
contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de árvores, de rãs. (BARROS,
2007, p. 39)
Numa formação voltada às ciências, buscamos quase sempre a razão e o sentido em tudo que
nos rodeia, buscamos enquadrar, medir, contar, controlar, nomear, denominar e dominar,
esquecendo que construir Ciências vai além da objetividade e da lógica. Contudo, a poesia não é
para ser medida, calculada, muito menos compreendida. É somente incorporada.
De como não ler um poema
tempos me perguntaram umas menininhas, numa dessas pesquisas, quantos diminutivos eu
empregara no meu livro A Rua dos Cataventos. Espantadíssimo, disse-lhes que não sabia. Nem
tentaria saber, porque poderiam escapar-me alguns na contagem. Que estas estatísticas, aliás,
poderiam ser feitas eficientemente com o auxílio de robôs. Não sei se as menininhas sabiam
ao certo o que era um robô. Mas a professora delas, que mandara fazer as perguntas, devia ser
um deles.
38
E mal sabia eu, então, que estava dando um testemunho sobre o estruturalismo o qual
depois vim a conhecer pelos seus produtos em jornais e revistas. Mas continuo achando que um
poema (um verdadeiro poema, quero dizer), sendo algo dramaticamente emocional, não
deveria ser entregue à consideração de robôs, que, como todos sabem, são inumanos.
Um robô, quando muito, poderá fazer uma meticulosa autópsia caso fosse possível autopsiar
uma coisa tão viva como é a poesia.
Em todo caso, os estruturalistas não deixam de ter o seu quê de humano...
Nas suas pacientes, afanosas, exaustivas furungações, são exatamente como certas crianças
que acabam estripando um boneco para ver onde está a musiquinha. (QUINTANA, 1997, p.
20)
Necessitei recorrer à humildade e desprender-me das amarras da lógica e da sistematização do
conhecimento. Ao estudar a poesia de Manoel de Barros, aprendi que é possível construir Ciências
fazendo poesia, é isso que o poeta faz.
Aprendi que falar sobre Ciências é também falar dos pássaros, falar sem cerimônias dos
andarilhos e seus achados, é ver em Bernardo ethos presente na poesia manoelina que se
constrói com a figura do humano, que se aproxima da natureza, num ideal de pertencimento. O
mesmo ocorre com outros “songos” criados pelo poeta: “o fazedor de amanhecer”, o inventor da
“inutilidade”. Podemos inferir que o maior aprendizado é saber que fazer Ciências não pede apenas
o estudo de leis e conhecimentos acumulados, mais do que isso. É preciso valorizar o que existe
na natureza e na humanidade.
Um passarinho pediu a meu irmão para ser a sua árvore./ Meu irmão aceitou de ser a árvore
daquele passarinho./ No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de
lua mais do que na escola. (BARROS, 2000, p. 63)
Esse é o caminho, se é que realmente existe um caminho. Talvez somente exista uma direção,
que é por onde as águas vão, mesmo que às vezes contra a correnteza, porém, não tenho certeza.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário. (BARROS, 2001, p. 67)
Talvez o leitor esperasse um texto mais uniforme, mais organizado no que se refere aos
capítulos. Não se iluda. Procurei escrever por desvios. Escrever por desvios não é fácil, mas não
teria o mesmo prazer. Por isso, busquei ousar, desviar das normas, das formas, e produzir diálogos
39
nas ciências, utilizando as poesias de Manoel de Barros para intervir, transgredir e até mesmo
transformar a prática pedagógica, subsidiada pela Educação Ambiental.
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros. (BARROS, 1997, p. 87)
Ao construir esse percurso, me sinto emancipado, igual a alguém acrescentado de criança
(BARROS, 2006, s/p), alguém que aprendeu a construir Ciências com as palavras, aprendeu a
esfregar sua linguagem ao chão para que ganhem propriedade de lesma. De uma consistência lisa,
escorregadia e viscosa. Quando rasteja, deixa um rasto líquido, transparente e de um brilho típico,
embelezando o chão.
Neste estudo, não procuro realizar nenhum tipo de análise linguística ou literária sobre a poesia
de Manoel de Barros, o que proponho é trazer uma parte de sua poesia na tentativa de poetizar as
novas tecnologias para construir saberes e práticas que contribuam para superar a distância entre as
Ciências e as questões sociais, políticas e humanas.
Pensando na formação de professores, especificamente de Ciências (Física, Química e
Biologia), acredito que o maior desafio é o rompimento da visão tradicional, fragmentadora,
simplista e reducionista presente em muitos professores, muitas vezes resultante da pouca
familiaridade com a pesquisa. Pois bem, é preciso rever que tipo de Ciências se está ensinando, é
preciso investir na formação de professores pesquisadores. Somente com o contato com outros
referenciais teóricos o professor poderá construir outros paradigmas que reposicionem e direcionem
sua prática de ensino.
No livro “Para uma pedagogia do conflito”, Boaventura de Souza Santos traça o panorama de
outra revolução científica:
Quero significar que a natureza da revolução científica que atravessamos é
estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução pela
ciência, o paradigma científico (paradigma de um conhecimento prudente), tem de
ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente). (SANTOS
1997, p. 37)
O filósofo Kiekkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se
conhecer.
40
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que sabia que não sabia nada. Não
tinha as certezas científicas. Mas aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as
folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. (BARROS, 2006, s/p)
Essa transição de paradigmas perpassa o desafio da própria prática docente, configurando-se
como um desafio político, social. Todos nós temos a co-responsabilidade de indicar alternativas que
permitam a construção de conhecimentos que vão contra a comercialização e a competição. Que
possibilite intervir nos estigmas, representações ingênuas e de senso comum no referente ao papel
da educação. Uma outra possibilidade é buscar estabelecer diálogos entre as diferentes áreas de
conhecimento na perspectiva de vivenciar valores, saberes e práticas, condizentes com as aspirações
coletivas.
Não se trata de reinventar a roda”, muito menos de reinventar as Ciências, mas de uma
humanização do que é culturalmente produzido por ela. Para isso, vejo a necessidade de transformar
a educação, ou melhor, a prática pedagógica.
“O objetivo último de uma educação transformadora é transformar a educação, convertendo-a
no processo de aquisição daquilo que se aprende, mas não se ensina, o senso comum.” (SANTOS,
1996, p. 18) A escola deve se abrir para as diferentes vivências, deve resgatar os costumes, as
crenças, as histórias pertencentes à comunidade ou grupo em que a escola se insere. O que falam, ou
o que pensam, quais são os sonhos, as expectativas desses alunos.
Uma educação transformadora não é um mero rótulo, discurso político ou adjetivo sem o
compromisso da palavra. Ela é integradora, formativa, emancipatória (condizente com os direitos e
deveres, exercimento da plena cidadania).
A citação a seguir apresenta a ideia de Paulo Freire sobre as tecnologias na prática pedagógica.
“Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de
outro.” (FREIRE, 1996, p. 97) O fazer pedagógico é que norteará o uso das tecnologias, no que diz
ao uso desta na sala de aula. Tal uso deve ter clara a relevância de sua prática. “Divinizar ou
diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado.”
(FREIRE, 1996, p. 37)
O ensino de Ciências, bem como de qualquer outra disciplina, deve ou deveria ser uma prática
de educação ambiental. Ele está ou estaria voltado à superação dos atuais modelos de
relacionamento da sociedade consigo mesma e com a natureza. Para isso, a prática de ensino de
Ciências necessita romper com as tradicionais metodologias de cunho técnico e mecanicista, que
41
esgotam a possibilidade de construir saberes culturais, históricos e subjetivos. O aprofundamento
teórico e filosófico não pode ser deixado de lado, pois não se faz educação ambiental com um
discurso reproduzido e carregado apenas de senso comum.
A educação encontra, nos dias atuais, uma de suas tarefas mais desafiadoras a de
redirecionar o humano para sua liberdade criadora e a superação de uma percepção
de mundo puramente racional. Além disso, precisa ter claro o viés crítico para dar
ao ser humano a oportunidade de se emancipar da homogeneização globalizante, de
um imaginário bombardeado a todo instante, através dos meios de comunicação de
massa, por valores advindos da indústria cultural. (MARIN, 2006, p. 277)
Precisamos, agora, direcionar nossas ações para a formação de um cidadão responsável, que
construa seu senso crítico e que atue nas decisões locais e globais. A educação deveria estar à frente
na construção das identidades, das subjetividades e da cidadania. Sem esse norte, se a sociedade,
em sua representação política, econômica, ecológica e pedagógica não pode intervir na construção
de conhecimento e na valorização das culturas, não há como dar mais visibilidade a outros saberes e
culturas. Temos, com essa premissa, a impossibilidade de intervir na exacerbada valorização de um
conhecimento científico e tecnológico. Toda construção humanística seria abandonada pela alusão à
ideia de progresso, como sinônimo de avanço tecnológico.
“Janette contribuía 78% para o progresso e o desentendimento entre os homens.” (BARROS,
2007, p.47)
A tecnologia é fruto de uma construção social, de um diálogo intenso entre a humanidade e a
natureza, não é fruto do acaso. É na prática educativa que podemos interferir e reconduzir o ensino
das ciências, antes construído tendo em vista o ideal de progresso, segundo o qual tudo que é novo é
melhor do que o anterior. Discursos que fogem do senso comum e ganham validade universal, tais
como considerar a civilização ocidental mais evoluída do que nossos ancestrais.
É dever da educação valorizar nosso patrimônio comum, ou seja, nossa produção de saberes,
culturas, costumes que herdamos de nossos antepassados, da influência de povos primitivos”,
assim chamados pejorativamente por essa sociedade “tecnológica”.
42
2.8 A Educação Ambiental e a construção de diálogos.
Todo ato de educar deve concentrar seu suporte na ética, mesmo num cenário de incertezas e
contradições, a educação é a melhor, se não a única forma de proporcionar uma ação cidadã, justa e
autônoma.
Para Zancanaro, a tarefa da educação é dar uma formação global de conhecimento que auxilie a
gestão da vida, a ética de responsabilidade, sendo um bom instrumento na valorização de toda e
qualquer forma de vida. A responsabilidade com o futuro será estabelecida nesse presente. De todo
“poder”, seja ele de qualquer tipo, originar-se-á a “obrigação” com o futuro. É na escola onde a
ações éticas, políticas e ecológicas ganham sua dimensão social e pedagógica no apontamento das
ações afirmadas neste presente para o futuro. Agora não quero saber mais nada, quero
aperfeiçoar o que não sei. (BARROS, 2008, s/p)
Nesse modelo educacional em crise, a escola terá de construir sua base epistemológica pautando
suas ões pelo sentido mais amplo da ética, isto é, pelo respeito, pela prudência, pela renúncia e,
principalmente, pela responsabilidade. Toda essa ansiedade, presente na moderna experiência
tecnológica, tem como resultado a construção de conhecimentos distorcidos e desarraigados do ser.
A produção tecnológica acaba por ignorar a singularidade, a tradição filosófica e o mundo.
“Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmo, professores e professoras, a nossa
responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente. Sublinhar esta responsabilidade
igualmente àquelas e aqueles que se acham em formação para exercê-las.” (FREIRE, 1996, p. 16)
Lourenço Zancanaro busca nos estudos de Hans Jonas
20
construir reflexões referentes à
imprevisibilidade do poder das conquistas tecnológicas, o temor pelo futuro incerto, o medo de que
isto provoque consequências indesejáveis e irreversíveis e o medo da morte. Esses fatores agem
como um freio, impondo limites à ação humana. Com pedaços de mim eu monto um ser atônito
(BARROS, 2001, p. 37)
O conhecimento científico tem como “poder” reduzir, ignorar e inviabilizar toda a existência à
sua instrumentalidade. A gente só chega ao fim quando o fim chega! (BARROS, 2003, p.33)
20
Hans Jonas, filósofo alemão que vivenciou, nos anos de 1920 e 1930, grandes fatos históricos: a crise da
humanidade européia, o advento do nazismo e o holocausto, e a idealização de uma sociedade tecnológica. Com uma
forte influência do pensamento de Heidegger e da fenomenologia de Husserl, constrói suas ideias e reflexões.
43
UM SONGO
Aquele homem falava com as árvores e com as
águas
ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegeta-se
na pedra.
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis
lingüísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Ate pedra criava rabo!
A natureza era inocente.
P.S:
Escrever em Absurdez faz causa para poesia
Eu falo e escrevo Absurdez.
Me sinto emancipado
(BARROS, 2006, s/p). Bonecos de Manoel de Barros
44
Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
(BARROS, 2003)
3 – DIÁLOGOS ENTRE SABERES:
Conversas que trago para roda de tereré
Uma roda de tereré geralmente não tem uma prosa definida, os assuntos simplesmente
acontecem, ou melhor, desacontecem. Nessas rodas, a subjetividade é o que mais importa. Nelas,
estão presentes as conversas do cotidiano, as histórias, os causos, vivências, enfim, maior
preocupação com o diálogo dos envolvidos, não com as normas e regras da academia. Não é fácil
escrever no formato de roda de tereré, pois o academicismo está muito presente em minha
apropriação da escrita. Acredito que este trabalho não dará conta de se aproximar à estética de uma
roda de tereré. Contudo, esse desafio estará presente nos próximos estudos.
3.1 O Filósofo e o Poeta: a Ciência e a Poesia.
Procuro iniciar este capítulo apresentando dois grandes referenciais teóricos que, em todo corpo
dessa dissertação, estiveram presentes, mesmo que implicitamente. São eles: o filósofo e professor
Newton Aquiles von Zuben e o poeta Manoel de Barros. Apresento também alguns temas muito
relevante para próximas discussões.
No livro Bioética e tecnociências, Newton Aquiles von Zuben apresenta uma grande
possibilidade de construir diálogos face aos problemas pós-modernos, como a intensa presença da
máquina e dos avanços científicos apresentados por áreas de ciências como genética, robótica e
nanotecnologia — nas mais cotidianas relações humanas.
Newton Aquiles von Zuben é doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain, na
Bélgica. É um grande conhecedor do pensamento de Martin Buber, trazendo em seus textos a
filosofia da alteridade, do compromisso pelo outro, pela ontologia da diferença, articulando
linguagem e caráter prático.
45
Suas pesquisas estão direcionadas ao campo da ética, política, educação, epistemologia, teorias
da educação, fenomenologia, hermenêutica, formação de professores, bioética, tecnociências e
cultura, dentre outras temáticas (texto adaptado do Curriculum lattes, consultado em 21/10/2006).
Em 2006, publicou Bioética e tecnociências: a saga de Prometeu e a esperança paradoxal (nove
capítulos de reflexão que vão além da filosofia). O livro é fruto de estudos, reflexões, resultados de
artigos publicados, seminários, palestras, entre outras apresentações, sendo um assunto
extremamente relevante para as discussões e debates a respeito da Bioética. O autor nos remete a
intensas reflexões sobre a técnica e o lado operativo das ciências.
Segundo Zuben (2006), as tecnociências, cada vez mais atuantes em nossas relações, nos trazem
uma fáustica ideia de melhora das condições de vida. Por outro lado, ainda que se aumente a
expectativa de vida, a cura de doenças por meio das técnicas e fármacos, ao mesmo tempo se
permite o surgimento de novas catástrofes, como o surgimento de novas bactérias e explosões
nucleares.
No pensamento que acompanhou esse avanço tecnológico, a mulher e o homem são
enquadrados ao conceito de máquina. Isso implica submetê-los às mesmas condições de
rentabilidade, operacionalidade e produtividade impostas à máquina. São encarados como peças, ou
seja, seres passíveis de reposição e substituição. Esse grande dilema coloca o ser humano em
isolamento em relação a essas ciências, sendo necessária outra reflexão, tendo em vista as incertezas
e o fascínio pelos avanços trazidos pelas tecnociências.
O autor constantemente usa o título “tecnociências”, pois a técnica seria o emprego de
instrumentos ou recursos que são utilizados para resolver problemas práticos. Ela seria encarada
como um conjunto de conhecimentos e habilidades acionáveis e eficazes que foram desenvolvidos
no decorrer da história. A esse respeito, interessa citar a formulação de Felix Guattari:
Aristóteles considera que a techne tem como missão criar o que a natureza não
pode realizar. Da ordem do “saber” e não do “fazer”, ela interpõe, entre a natureza
e a humanidade, uma espécie de mediação criativa cujo estatuto de “interseção” é
fonte de perpétua ambigüidade. (GUATTARI, 1992, p. 45)
A técnica não subsidia o humano, mas o faz diferente dos animais, como um ser que se
apropria da técnica, sendo parte desta.
Enquanto os animais sobrevivem adaptando-se ao meio ambiente, o homem
sobrevive adaptando o meio ambiente a si mesmo. Essa habilidade o faz diferente
dos outros animais. A técnica é esse modo de proceder, próprio do homem, ou de
construir um ambiente artificial para poder viver. Pode-se até afirmar que o
artificial passa a ser natural para o homem. (ZUBEN, 2006, p. 48)
46
A ideia de uma ciência adquirida ou construída por um conjunto de conhecimentos socialmente
adquiridos ou produzidos não é inteiramente verdadeira, pois ninguém inventou a ciência. Ela nasce
toda vez que é possível dialogar com a natureza. Não se constrói nada, muito menos se inventa, sem
que as ciências tenham dialogado com o que existe na natureza. A ciência é fruto de um intenso
diálogo com o que existe na natureza, e origem a um outro artefato, não melhor ou pior,
apenas diferente do anterior.
Gilberto Hottois introduziu o termo “tecnociências” para designar
a intrínseca ligação, o entrelaçamento, entre a técnica e ciências, cujas
características são, primeiramente, a indissolubilidade desses dois pólos, o teórico
e o técnico-operatório e, em segundo lugar, o primado da técnica sobre a teoria.
(HOTTOIS, 1999 apud ZUBEN, 2006, p. 49)
Apesar das diferenças, ciências e tecnologia estão, de certa forma, agregadas. “A ciência tornou-
se meio de que a técnica se serve.” (ZUBEN, 2006, p. 170) Mesmo que seja possível, teoricamente,
separar a técnica da ciência, na prática, a técnica e as ciências estão interligadas. É a essa relação
que se refere o conceito de Tecnociências. Contudo, a tecnociência é sustentada e condicionada pela
construção científica, e não a ciência pela produção técnica.
Sendo assim, tenho convicção de que a questão da enunciação subjetiva colocar-
se-á mais e mais à medida que se desenvolverem as máquinas produtoras de
signos, de imagens, de sintaxe, de inteligência artificial... (GUATTARI, 1997, p.
23)
A técnica é a ciência, o oficio e a arte de construir. Em outras palavras, a habilidade
desvinculada do sentimento. No trecho de um poema retirado de O Livro Sobre o Nada, Manoel
de Barros impõe certo limite à técnica e às ciências.
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
Mas não pode medir seus encantos. (BARROS, 2001, p. 53)
Em Bioética e Tecnociências, Newton Aquiles Von Zuben nos apresenta uma narrativa
simbólica, “o mito de Prometeu”, talvez com o objetivo de indagar o próprio surgimento da ciência.
O autor faz alusão à mitologia grega, na qual Prometeu (aquele que “pensa antes”), neto de Urano e
Gaia, audaciosamente rouba o fogo do céu, traindo os deuses e suscitando a fúria de Zeus. Prometeu
47
entrega aos humanos o fogo, que representa proteção e poder. Com o fogo, surgiu a cultura,
permitindo aos humanos compensar as insuficiências da natureza. Zeus, vendo o progresso e o
sucesso do homem, com o uso do brilho do fogo, lançou sua ira aos humanos. A reação de ira pelos
deuses se deu por meio de Pandora, jovem atraente, dotada de talentos para atrair a raça humana,
enviada ao mundo dos humanos. A ela, Zeus deu uma caixa que deveria manter fechada. Mas,
movida por curiosidade, a caixa foi aberta por Pandora, espalhando todos os males pela terra.
A saga de Prometeu está presente no primeiro capítulo do livro, em que o autor resgata, pela
mitologia, a ambivalência presente nas tecnociências, em que o conhecimento científico e toda
cultura humana nascem de uma transgressão de uma ordem divina ou de um dogma.
Separando-o do mundo dos deuses, podemos perceber o mesmo no mito adâmico. Em outras
palavras, todo ato de criação transgride uma norma.
Tais mitos podem ser interpretados de uma outra forma, nesse sentido, tanto o mito de
Prometeu como o mito adâmico talvez traduzam uma visão coalhada que não nos deixa ver que o
homem é realmente fascinante.
“Os mitos de Adão no paraíso e de Prometeu não podem nos intimidar em nossa capacidade de
enfrentar e criar o novo.” (ZUBEN, 2006. p. 180) Esses mitos nos indicam cautela ou,
intencionalmente, vedam nossos olhos, escondendo que o homem é algo extraordinariamente
fascinante, aproximando-se dos deuses. O ato de criar perde seu poder divino.
Com os estudos de Bacon, Galileu e Descartes, que revelaram o lado operativo e instrumental
da ciência, e com o passar do tempo, a ciência que se baseava na teoria, constituída principalmente
pela linguagem e pelas ideias na perspectiva, de Platão, e pela teoria, na perspectiva de Aristóteles,
passou a apresentar algumas mutações. O estudo da técnica na ciência representa poder e controle
sobre a natureza, a matematização e a experimentação são instrumentos da espécie humana para a
dominação e manipulação dos fenômenos. O conhecimento assume o caráter de poder.
Para Bacon, trata-se de dominar a natureza pela arte. Técnica e matemática estão
no umbral da nova ciência, e juntas operam para suprimir a influência do saber
“logo-teórico”, especulativo e simbólico. O núcleo denso da nova ciência é
tecnomatemático, operativo. (ZUBEN, 2006, p. 46)
Deve-se, de fato, reconhecer que a linguagem tem desenvolvido um papel importante na forma
de vida humana. No entanto, é razoável reconhecer que, por outro lado, hoje, a linguagem, o logos,
48
não esgota o passado, nem o presente, tampouco o futuro da espécie humana. Toda a construção
cultural humana, até o momento, esteve vinculada à ordem simbólica.
Simbólico, segundo o dicionário Aurélio, vem do grego symbolikós, “refere a, ou que tem
caráter de símbolo”. Alegórico, metafórico. O simbólico representa a ideia que vem por trás de uma
determinada técnica, por exemplo, quando um artista pinta um quadro, antes mesmo de separar as
tintas e os pincéis para a construção da obra de arte, ele traz a ideia do que será essa obra.
Diferentemente de uma reprodução de uma obra, que não passa de uma aplicação do uso da técnica,
ou seja, o ato de misturar cores e reproduzir. O simbólico carrega o sentimento, a história, as
diferentes reflexões e representações do mundo, podendo estar presente na própria técnica da
pintura, das artes plásticas, na linguagem e na poesia. Ele traz a ideia, a essência das diferentes
concepções que um objeto representa.
Deus deu a forma. Os artistas desformaram.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades. (BARROS, 2001, p. 75)
O símbolo traz a ideia abstrata. Mesmo que destrua um determinado objeto, ele continuará a
existir. Transcende o objeto, a ideia do simbólico está no conceito dos seres e das coisas,
construídos num momento histórico e cultural.
Despalavra
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
humanas
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidade
de pássaros.
[....]
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com as suas metáforas.
49
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
Podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto. (BARROS, 2000, p. 23)
Manoel de Barros, no trecho acima do poema Despalavra, publicado no livro Ensaios
Fotográficos, não faz referência à realidade imediata, o que importa é a dinâmica da significação.
Não tenho conexões com a realidade. (BARROS, 2003, p. 19) A poesia manoelina tem a arte de
fotografar a paisagem em forma de palavras, um jeito bem singular de infantilizar as palavras
(desorganizar as articulações sintáticas, promovendo uma ruptura na forma). Assim como o
Bernardo faz com as formigas:Para infantilizar formigas é pingar um pouquinho de água no
coração delas (BARROS, 2001, p. 29). Assim, torná-las apropriadas para o esterco, para a gosma
do caracol. Essas metáforas são símbolos que fazem bem para a poesia, dando pertencimento ao
chão. “O símbolo não rompe a paisagem, não destrói florestas, não manipula o ser vivo; ele
sentido, organiza, indica fins.” (HOTTOIS, 1995 apud ZUBEN, 2006)
Existem diferentes formas do simbólico se manifestar. Na arte, encontra veículo nas pinturas,
esculturas, música e poesia, têm a possibilidade do encontro entre a técnica e o simbólico, ambos se
fundem, dando origem à criação. Um feito somente é considerado arte quando está aglutinada a
ideia da técnica e do simbólico.
... Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo. (BARROS, 2001, p. 51)
50
A poesia de Manoel de Barros vai além do simbólico, sendo carregada de imagens analógicas,
rompendo barreiras e estruturas formais. Volta-se ao seres e as coisas, onde o valor está no inútil,
desprezível, diferentemente da operatividade e da técnica. Podemos observar esta ideia de forma
clara no primeiro trecho de Matéria de Poesia:
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia
[ ...]
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima. (BARROS, 2007, p. 12)
A Matemática, a Física, a Química e a Biologia mostraram-se muito pouco capazes de traduzir e
expressar as formas simbólicas, dada o completitude do simbólico. Para alcançá-lo, é preciso valer-
se de outros saberes, não somente das ciências.
O simbólico é a capacidade de olhar o mundo e ler de outras formas, diferentemente do olhar
que mede, calcula e altera. É um olhar estético sobre o exercício da invenção, é sentir, experimentar
a beleza das coisas ao nosso redor. Sobre essa forma de olhar, acredito que a arte possa interferir no
processo, a arte como linguagem, a arte como imagem, a arte na condição poética. O próprio poeta
Manoel de Barros nos apresenta, em um trecho de sua poesia, essa capacidade da arte de interferir
em nosso sentir, olhar, experienciar. Por meus textos sou mudado mais do que por meu
existir. (BARROS, 2002, p. 81) O filósofo também faz coro, em outras palavras, ao
pensamento do poeta: O sujeito não existe como tal senão na medida em que a linguagem o
vem instituir.” (ZUBEN, 2006, p. 70)
A bioética propõe a interação entre a técnica e o símbolo, buscando conciliar as aspirações de
ordem técnica e simbólica. Essa interação talvez conta de responder algumas indagações perante
o presente e futuro que esperam da nova humanidade, gerada pelo avanço das tecnociências.
51
3.2 A Bioética
Quando terminava o colegial, a Bioética foi um dos assuntos abordados na disciplina de
Biologia que mais me achou atenção, principalmente porque, naquele mesmo ano, foi divulgada a
primeira clonagem de um mamífero, pelo cientista Ian Wilnut, utilizando células adultas. Este fato
contribuiu para uma ampla discussão sobre a clonagem e a ética. A bioética, por ser uma área
recente, despertava e ainda desperta muita atenção entre a juventude. Newton Aquiles von Zuben
considera a bioética como o horizonte de possibilidades para o debate sobre as questões cruciais
levantadas pelas tecnociências. “A bioética é não um campo de compreensão, mas também um
novo método de abordagem de uma nova problemática.” (ZUBEN, 2006, p. 182)
Existem algumas divergências em relação à data de sua criação. Segundo Zuben (2006), a
Bioética teve seu surgimento em 1970, porém, na década de 1960 havia várias denúncias, por
parte da mídia, do emprego duvidoso da ciência e dos inúmeros casos em que era patente o mau
emprego da técnica, principalmente na área da medicina. Umas das primeiras aplicações foi em
1972, pelo oncologista Van Rensselaer Potter, no livro Bioética - uma ponte para o futuro. Desde
então, “a Bioética vem se consolidando como um dos mais expressivos fenômenos culturais nas
últimas décadas do século 20 e início do atual” (ZUBEN, 2006, p. 17); embora não pertença ao
domínio da Filosofia, foi incorporada ao seu discurso, porém, transcendendo os limites disciplinares
do conhecimento tradicional.
O cenário de emergência está caracterizado pelo mal-estar no campo das ciências
biomédicas desde a constatação das atrozes atividades de pesquisas com fins
supostamente terapêuticos, realizados por médicos norte-americanos em população
pobre e negra do sul dos Estados Unidos, em flagrante desrespeito à dignidade da
pessoa humana (ZUBEN, 2006, p. 18).
Nesse cenário, a bioética ganhou espaço, recebendo, durante esses anos, aprofundamento ético e
epistemológico. Cabe a ela apresentar alguns questionamentos sobre as contribuições e impactos
dos avanços científicos e tecnológicos nas relações humanas e no meio ambiente, além de
humanizar esses recursos. Esse é o grande desafio para se viver eticamente no século XXI.
Recentemente, com o processo de sequenciamento e decodificação do genoma e do
proteoma humano, a humanidade passa o limiar de um período de intensa excitação
na sua história científica. (ZUBEN, 2006, p. 18)
Nos anos de 1950, foi aberto um horizonte de possibilidades para a biologia molecular, por
meio da descrição da dupla hélice da molécula de DNA. Cientistas se mostraram fascinados com a
52
descoberta do “santo graal” da biologia e, ao mesmo tempo, espantados com esse poder, ainda mais
após a utilização da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, em 1945.
“O progresso da ciência nos assusta, a partir do momento em que a “ciência pura” transformou-
se numa grande arma destruidora (como exemplo, a criação da bomba atômica)” (MIRANDA,
2000, p. 41). A explosão das duas bombas atômicas, apesar de serem acontecimentos muito
dramáticos da história da humanidade, não foram, nem serão os últimos casos de aplicação das
tecnociências.
Reigota (2007), em Fragmentos do discurso da morte atômica
21,
, deixa claro o poder
destrutivo da bomba atômica lançada em Hiroshima e Nagasaki, que não se manifestou somente no
imaginário e nas crenças dos militares e cientistas. Foram feitos testes no deserto de Alamogordo,
no Novo México, em 16 de junho de 1945. Tais testes puderam dar uma ideia muito clara do poder
destrutivo das bombas.
Envoltos em mistérios e aventuras, os cientistas eu se aglutinaram em torno do
projeto americano de construção da bomba atômica, tiveram sua atividades
altamente recompensadas e legitimadas. Muitos dos cientistas, envolvidos de uma
forma ou de outra com a elaboração e construção da bomba atômica, foram
contemplados com o Prêmio Nobel de física e de química, outros renegaram a
bomba atômica e se tornaram fervorosos pacifistas (REIGOTA, 2007, p. 3-4).
Idéias luminosas a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm............................................................. (BARROS, 2004, p. 47).
Esses acontecimentos, segundo Zuben (2006), traduzem a ousadia e a imprudência que
caracterizam o mau uso das tecnociências, e indicam as balizas de uma reflexão ética para os dias
atuais sobre o emprego da técnica.
Esses e outros acontecimentos históricos, tais como a Declaração dos Direitos do Homem em
1948, o Código de Nuremberg, e o Relatório de Belmont, instituído em 1978, contribuíram para
que, mais tarde, surgisse o que chamamos de bioética.
21
Texto cedido pelo autor, extraído da pesquisa “Hirsoshima e Nagasaki: seu legado ético, ecológico e
pedagógico”, realizada em 2000, na Josai International Univesity, com o apoio da Fundação Japão e
Universidade de Sorocaba. In: CREINER, Christine [et al] Org. Leituras da Morte. São Paulo, Annablume,
2007.. p.129-142.
53
A bioética vem sendo um grande campo de reflexão que ultrapassa o campo acadêmico, estando
presente nas mais cotidianas relações humanas. Porém, o grande problema é que os avanços
científicos e tecnológicos são de tamanha rapidez que a intervenção ética perde seu alcance. Alguns
motivos poderiam ser citados e parcialmente responsabilizados pela ineficiência na atuação da
Bioética, tais como a falta de uma atuação pedagógica, a burocracia, a ingenuidade e até mesmo a
hipocrisia.
De acordo com Zuben (2006), a biotecnologia traz inovações auspiciosas, provocando,
concomitantemente, problemas igualmente insólitos e desencadeando complexos riscos à natureza.
O que se conquistou de conhecimento nos últimos anos sobre o genoma humano é bem superior
àquilo que foi obtido nos últimos séculos. As descobertas relacionadas a esse saber não
ampliaram o domínio sobre sua própria condição genética como também instrumentalizaram a
espécie, definindo o caminho da evolução, não deixando ao acaso. Um audacioso passo para a
biotecnologia foi tornar comum o conceito do ser humano como uma máquina, daí vem a ideia de
que é possível fabricar peças para repor as danificadas. Isso também pode ser entendido como um
passo importante no processo de desumanização.
Considerar o homem uma máquina foi o primeiro passo para um processo ir
signifiadosmais audacioso, ora possível, de fabricar partes móveis dessa máquina
para reposição. Do ponto de vista ético, a primeira razão para justificar tal prática é
lançá-la no âmbito de objetos terapêuticos. (ZUBEN, 2006, p. 19)
A maioria das sociedades contemporâneas condena as práticas de clonagem. Por outro lado, tais
práticas ganham mais força e aceite por uma grande parte da população, quando se encadeiam aos
objetivos terapêuticos, porém, a aresta que divide uma clonagem terapêutica e a clonagem
reprodutiva é muito tênue.
Do mesmo modo ocorre uma degradação da idéia de valor manifesta ao se julgar
uma pessoa por meio de critérios sub-humanos ou infra-humanos melhor
apropriados quando aplicados à realidade meramente material, por exemplo,
produtividade, eficácia, rentabilidade. (ZUBEN, 2006, p. 24)
Essa ideia do ser humano como “máquina” leva a submetê-lo aos mesmos critérios que se usam
para o emprego da máquina. Aplicações como rentabilidade, produtividade e eficácia estão
presentes nos diferentes discursos deliberados por essa nova era da biotecnologia.
A técnica pode ser algo bom, mas o problema está em sua adaptação funcional, no contra-senso
e na eficácia de um determinado emprego de uma descoberta no uso de algo além do objetivado. A
54
técnica é uma produção humana, e não deve ter um fim em si. Tudo depende da direção, do uso, de
sua aplicabilidade. Nesse sentido, a bioética atua interferindo nas decisões do uso prático das
tecnociências.
Não basta a ciência, por exemplo, apresentar uma técnica ou uma invenção fascinante para a
cura de uma determinada doença. Isso pouco resolveria se o emprego de tal descoberta estivesse
somente nas mãos de um pequeno grupo de pessoas. Chega-se à conclusão de que o problema não
está na técnica em si, mas em sua operatividade. Não quero saber como as coisas se comportam./
Quero inventar comportamento para as coisas. (BARROS, 2000, p. 65)
É extremamente relevante apontar como vai ser utilizada, o publico acariciado, sua intenção e,
principalmente, quais os benefícios que a implementação ou o uso dessa tecnologia traria. Essas
preocupações não podem ser abandonadas.
A bioética se consolida nesses últimos anos como a instância adequada e
competente para articulação entre os saberes diversos e novos que surgem a cada
momento no âmbito das tecnociências e do viver humano. (ZUBEN, 2006. p. 25)
Segundo Zancanaro (1998), a ideia de que o desenvolvimento tecnológico se apodera do ser
humano é ambivalente. Na verdade, o homem e a mulher estão dependentes e frágeis em face do
excesso de poder e da onipotência da técnica. “Com efeito, a ilusão segundo a qual todos os homens
nascem iguais e permanecem iguais em dignidade e direito seria abandonada, pois, os direitos reais
das pessoas não seriam senão aqueles que seus genes lhe deram.” (ZUBEN, 2006, p. 151)
O poeta, atônito com o abandono da sensibilidade, com o esquecimento da beleza e com o
desprezo do silêncio, pergunta-nos:
Quando o mundo abandonar o meu olho.
Quando o meu olho furado de belezas for
esquecido pelo mundo.
Que hei de fazer?
Quando o silêncio que grita de meu olho não
for mais escutado.
Que hei de fazer?
55
Que hei de manhã fazer se de repente a voltar?
Que hei de fazer?
— Dormir, talvez chorar. (BARROS, 2007, p. 75)
A humanidade corre um grande perigo (tal como a fabricação de organismos híbridos
resultantes da técnica da transgenia —, a mecanização do humano, o condicionamento natural pelas
máquinas, a perda da diversidade genética e o aumento da desigualdade social, para ficar somente
nesses exemplos) devido ao desenvolvimento tecnológico dos últimos séculos.
A bioética deveria se consolidar pelo ato de promover a ética a todos os seres, particularmente
àqueles que estão à margem, desfavorecidos socialmente. E será o fruto de nossa ação que poderá
direcionar para este fim.
3.3 A Ética
Nos últimos anos, a palavra “ética” está presente nos mais diversos discursos, estando associada
a empresas, ao meio ambiente, ao prefixo “bio-”, à educação, às esferas jurídica e política, e à
responsabilidade com o futuro, entre outros discursos. É necessário um direcionamento de sua
prática para que ela não seja apenas mais um clichê”. “Não é possível pensar os seres humanos
longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres
e homens, é uma transgressão.” (FREIRE, 1996, p. 37). A ética estabelecida na prática de liberdade
é uma atitude imprescindível para nossa sobrevivência.
Ricoeur (apud Zuben, 2006) refere-se a um trio básico da ética: eu, tu, ele, que indica minha
liberdade, tua liberdade e a regra. Minha liberdade nasce da liberdade do outro, numa absoluta
reciprocidade.
Toda a ética nasce desta duplicação da tarefa de que falávamos: fazer acontecer à
liberdade do outro como semelhante à minha. Outro é meu semelhante! Semelhante
na alteridade, outro na semelhança. (RICOEUR, 1993 apud ZUBEN, 2006, p. 153)
O agir ético deve estar presente nos rumos e decisões da ciência. A ciência também pode ser
ética, tudo depende de nossa decisão.
56
A educação em geral e a educação ambiental em particular devem estar atentas aos diversos
discursos e ações das tecnociências, tendo como responsabilidade a garantia dos direitos humanos,
arduamente conquistados. A ética é, sem dúvida, um elemento essencial na aplicação dessa
responsabilidade. É importante problematizar que não cabe à educação ensinar ética, pois “ninguém
ensina ética, assim como ninguém nasce ético” (ZANCANARO, 2007. p. 9). Apesar de a educação
não ensinar a ser ético, ela pode contribuir para que a ética exerça papel de importância na prática
pedagógica e nas diferentes relações humanas e tecnocientificas. É no dialogo entre o conhecimento
científico e humanístico que podemos reafirmar valores e atitudes condizentes com a ética, em seu
mais alto grau de comprometimento.
O diálogo nos meios da educação pode nos indicar uma possibilidade de pensar sobre a ética nas
ciências, talvez a única. O diálogo, o discurso, o debate enfim, a palavra em todas as suas
dimensões será, sem dúvida, o meio adequado para a construção e para o encaminhamento do juízo
ético visando à decisão.” (ZUBEN, 2006, p. 153)
O importante nesse momento é permitir espaços para construção de diálogos.
Por que o diálogo? Primeiro porque ele rejeita toda a tirania de uma palavra
pretensiosa e dogmática, que deseja impor-se ao outro. Em seguida, porque temos a
consciência de que nossa sociedade não é mais simples e homogênea; ao contrário,
ela é pluralista e extremamente complexa. (ZUBEN, 2006, p. 182)
Com essa premissa, o estabelecimento do diálogo é o maior desafio para ultrapassar a barreira
do eu-isso”, caracterizado por Martin Buber como a instrumentalização ou uso do outro, para o
“outro”, que é diferente, abandonando o individualismo. Isso implica poder ver o outro como igual,
porém diferente de mim, mas igual no que se refere aos direitos. Tal condição somente se dará
através do diálogo; cabe à educação o compromisso com sua construção.
Nesses últimos séculos, é cada vez mais comum relacionar os avanços das tecnociências com a
ideia de progresso. De que progresso nós estamos falando, se milhares de pessoas não possuem as
mínimas condições de saneamento básico? Se a população que mais precisa da tecnologia mal
conhece uma ultra-sonografia. O que garante ou como garantir que uma invenção de interesse
público seja efetivamente consagrada ao público?” (ZUBEN, 2006, p. 114) Entendo que essa
garantia viria como uma tomada de decisão individual, coletiva e planetária em prol da
democratização das tecnociências.
Quando apresento a ideia de democratizar as tecnociências, faço alusão ao agir humano com
base na alteridade, no compromisso com o outro. Se houvesse essa responsabilidade com o outro,
57
homem/mulher ou natureza, o temor presente nessa virada cibernética seria um falso problema. Em
vez disso, até o momento, o homem e a mulher apresentam um comportamento um tanto
individualista, onde o que importa é se satisfazer. O mundo fora padece, e nós,
consequentemente, nos esquecemos. Esquecemos que podemos interferir, que podemos reconstruir,
que podemos dizer não às guerras, à miséria, à prostituição infantil, à tirania, à hipocrisia, à
corrupção, à fome, à morte... Esquecemos que podemos mudar. Cada parcela da sociedade tem sua
responsabilidade, em especial no tocante à educação, no âmbito formal ou não; tem como princípio
a construção de um mundo melhor, hoje, agora e urgente. Essa é a escolha do presente. Nesse
discorrer, temos a bioética como o desafio de abrir espaços para novos padrões de racionalidade,
uma nova compreensão, a que chamamos de diálogo.
A tarefa da Bioética é relativizar os diferentes pontos de vistas, rejeitando qualquer pretensão
hegemônica. Respeito às diferenças, à abertura para o diálogo, a ver o outro como seu semelhante.
No poema abaixo, retirado do Livro Sobre o Nada, Manoel de Barros indaga a possibilidade de ver
o mundo de uma outra forma, diferente do olhar das tecnociências.
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo. (BARROS, 2001, p. 75)
Muitos apostam na certeza de uma melhora de vida presente no avanço das ciências, na certeza
do reparo, de uma cura ou até mesmo do aniquilamento do maior mal para a humanidade, a morte.
A ambivalência entre, de um lado, a melhora das condições, superando as doenças, aumentando a
expectativa de vida, atrasando a morte, e de outro lado, o axioma do medo diante as incertezas, do
não controle da técnica, que gera um misto de atração e repulsa.
Os avanços oferecidos pela Biotecnologia distanciam o ser humano da morte. Para o poeta
Manoel de Barros, a morte é algo inevitável,
(Morrer é uma coisa indestrutível). (BARROS, 2007, p. 65)
O livro Bioética e Tecnociências, de Newton Aquiles von Zuben, nos leva a refletir sobre as
direções a serem tomadas frente a constante presença das tecnociências.
58
As biotecnologias são um misto de atração e repulsa. Dinâmica constringente da
técnica que provoca sentimentos contraditórios: uma atração por um super poder ao
alcance dos humanos, conjugada com o temor fantasmagórico pelas suas
consequências. (ZUBEN, 2006, p. 210)
No livro O Guardador de Águas, o poeta Manoel de Barros aponta ou desaponta alguns
caminhos:
Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas. (BARROS, 2006, p. 58)
O estudo e leitura do livro Bioética e Tecnociências, de Newton Aquiles von Zuben, permitiu a
construção de um referencial teórico e metodológico nas questões éticas e bioéticas que afligem a
humanidade. Tal leitura colocou em xeque a minha visão simplista e reducionista sobre a presença
das tecnociências nas relações humanas. Com embasamento filosófico e epistemológico, “Bioética
e Tecnociências” torna possível estabelecer diálogos com a poesia de Manoel de Barros. Uma
poética que provoca, (des)constrói e, ao mesmo tempo, induz a reflexões sobre a importância que
damos à ciência e seus feitos. Essa quebra de paradigma é de tal relevância que, doravante, minhas
reflexões apresentam um outro percurso, apresentado neste texto.
3.4 Diálogos entre a epistemologia e a hermenêutica
Pensando em uma educação mais globalizada e menos especializada, onde as ciências sociais e
a educação tecnocientífica possam juntas contribuir para a melhoria da sociedade, Vattimo, em “A
educação contemporânea entre a epistemologia e a hermenêutica”, afirma que a construção de um
saber global depende exclusivamente da aproximação das ciências humanas e que a educação
humanística não perdeu seu valor no discurso técnico cientifico.
O texto de Gianni Vattimo (1992) expõe uma preocupação com o desuso, a perda de
importância, da necessidade de uma educação humanista evidente na representação positivista. A
técnica e ciência não omitem, nem devem omitir as ideias presentes nas ciências sociais. Confesso
que esse argumento veio de encontro com minhas representações, pois ainda visualizava o conceito
59
das tecnociências distante das questões humanísticas. O presente texto remete a significativas
indagações e reflexões sobre essas representações.
Para Vattimo, a ideia de progresso pode ser interpretada de forma epistêmica, sendo esse
representado pelo avanço baseado numa produção tecnocientífica. Não podemos omitir totalmente
essa afirmação, visto que é impossível negar a importância da ciência e da técnica em nossas
sociedades atuais. Todavia, esse mérito de “progresso” não é somente dado às ciências. Toda essa
construção não seria possível sem a participação das ciências humanísticas.
Uma educação humanística, nas concepções de Vattimo, pode ser identificada em nossa
sociedade ocidental como uma produção cultural, histórica, literária, religiosa e filosófica, também
chamada de educação social e ciências do espírito. E a educação cientificista, segundo o mesmo
autor, seria aquela identificada pela técnica, produto e fruto da ciência. Educação centrada nos
paradigmas cartesianos, na racionalidade, na busca do perfeito por meio das leis da natureza. Essa
educação centraliza ações e saberes, que restringe a subjetividade, que fragmenta, corrompe e
desconsidera saberes acumulados e produzidos pelas comunidades, grupos étnicos e,
particularmente, grupos que vivem à margem, ou seja, não favorecidos por essa educação.
Anos de estudos
E pesquisas:
Era no amanhecer
Que as formigas escolhiam seu vestidos. (BARROS, 2007, p. 63)
Apesar de nos acostumarmos em separar a educação humanística da cientificista, tal distinção
somente é válida no campo teórico; na prática, não muita ou nenhuma possibilidade de entender
tais conceitos isoladamente.
Não se trata de uma substituição da educação científica pela humanística. Gianni Vattimo nos
direciona a um salto muito maior, que é a transição da epistemologia para a hermenêutica na
educação atual. Com este argumento, a educação pode formar os cidadãos livres, abertos à
pluralidade de paradigmas e de horizontes culturais.
60
Nessa sociedade pós-moderna, dominada pela fácil informação, a capacidade hermenêutica vem
sendo indispensável, muito mais que competência técnica e científica, haja vista que a ciência não
responde a todas as indagações e necessidades do ser humano.
Por fim, a formação técnico-científica apenas contribuiria para a legitimação do ser como
máquina, sujeito às mesmas condições de rentabilidade, produtividade, passíveis de substituição, e
não de um cidadão ativo, crítico, solidário e emancipado. A capacidade de viver em pluralidade,
mesmo dentro de uma sociedade de consumo, e de saber discernir com liberdade o que realmente é
importante é decisiva para a construção dessa sociedade.
O ensino de ciências humanas, segundo Vattimo, deve fugir do padrão disciplinar, necessitando
de um pouco mais de liberdade em seu estudo histórico e literário. Essas áreas de estudo podem
estar presentes em qualquer vel de ensino, independentemente do assunto abordado. As ciências
duras, como a Física, a Química, Matemática e a Biologia, ganham muito quando dialogam com as
ciências humanas. Tais reflexões vão além da esfera educacional.
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
[...]
Todas estas informações têm soberba desimportância
científica — como andar de costas. (BARROS, 2007, p. 41)
Apresento esse cenário, ou melhor, essa paisagem, em que busco diálogos com as tecnociências
por meio das poesias de Manoel de Barros e do pensamento filosófico de Newton A. von Zuben, no
intuito de construir saberes, vivências e práticas condizentes com autonomia, ética, justiça,
alteridade e responsabilidade.
Não pretendo que a poesia seja um antídoto
para a tecnocracia atual. Mas sim um alívio.
Como quem se livra de vez em quando de um sapato
Apertado e passeia descalço sobre a relva, ficando
61
Assim mais próximo da natureza, mas por dentro da
vida.
Porque as máquinas um dia viram sucata.
A poesia, nunca.
(QUITANA, 1997, p. 58)
3.5 Diálogo com a Poesia de Manoel de Barros.
3.5.1 Um breve apanhado biobibliográfico
Manoel Wenceslau Leite de Barros (Manoel de Barros), nasceu em Cuiabá, em 1916, no beco
da Marinha, na beira do rio Cuiabá. Quando tinha um ano de idade, foi morar em Corum (MS),
onde viveu muito tempo. Atualmente, fica ali a fazenda em que passa boa parte do tempo, quando
não está na atual residência urbana, em Campo Grande (MS).
O poeta cresceu entre as coisas e os bichos do Pantanal (MS). Sem dúvida, a convivência com o
Pantanal teve uma influencia marcante em seus poemas, não apenas como um local exótico,
exuberante, mas como algo que simboliza o próprio texto poético. Sua poesia não está presa ao solo
pantaneiro, aliás ela não está presa em lugar nenhum, ela não possui rótulo nem geografia, como
também não os tem o poeta, que não gosta do comparativo “poeta pantaneiro”, ou “poeta
regionalista”, que trazem certo determinismo a sua vasta obra. Talvez um dos adjetivos que ele
aceitaria é o “poeta dos trastes e insignificantes”, o “poeta do primitivo e da inutilidade”
22
. Na
infância, vivia entre os bichos e plantas do Pantanal, minha alma é de um pantaneiro; de certa
forma, essa vivência contribui para a construção de uma poesia singular que atravessa as águas das
planícies pantaneiras, para desembocar em outras águas.
Penso com humildade que fui
convidado para o banquete destas águas.
Porque sou bugre.
22
O breve apanhado bibliográfico foi construído através das leituras de Nery Nice Biancalana Neiner (2006) e Fabrício
Capri (2001).
62
Porque sou do de brejo. (BARROS apud COUTO, 2006)
Nesse convite ao banquete das águas, o poeta se declara iniciado por essas águas pantaneiras.
“O pantaneiro pertence ao Pantanal, e não o Pantanal ao pantaneiro; esta sensação de pertencimento
possibilita a convivência pacífica, apropriada, possibilita o conhecimento dos ciclos que fazem e
refazem a vida.” (ZANON, 2006, p. 71)
Em O livro das Ignorãças, o poeta descreve poeticamente seu trajeto por meio de sua memória
poética. Como uma espécie de fotografia, onde as imagens são as vivências no Pantanal, Manoel de
Barros faz seu Auto-retrato falado:
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
estar entre pedras e lagartos.
[...]
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
Gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
Faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore. (BARROS, 1997, p. 103)
63
Em outro fragmento de poema do livro Memórias Inventadas, A Segunda Infância:
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.
[...]
É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua
vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e
comunhão com ela. Era menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o
menino e as árvores (BARROS, 2006, s/p).
Ainda criança, foi estudar em um colégio interno em Campo Grande (MS) e depois no Rio de
Janeiro. Quando jovem, foi comunista. Após uma grande decepção com o partido, exilou-se
voluntariamente. Esse ato fez com que conhecesse outros lugares, como Bolívia, Peru e Nova York,
que tiveram uma influência muito grande na construção de sua poética
23
.
O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. Nada mesmo.
Tudo que use o abandono por dentro e por fora. (BARROS, 2001, p. 7)
3.5.2 O poeta e a poesia: Diálogo com a poesia de Manoel de Barros
Difícil de entender, me dizem, é sua poesia; o senhor concorda?
— Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é
o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do
espírito.
23
Trajetórias e vivências do poeta foram construídas através de uma intensa leitura em livros, revistas,
jornais, artigos e nas conversas com amigos do próprio poeta. Dentre as leituras cito: SAVIO, Lígia. A
poética de Manoel de Barros: Uma Sabedoria da Terra. Revista Literatura y lingüística. Numero 015.
Universidade Católica Cardenal Raúl Silva Henrique. Santiago, Chile, 2004 e SPÍNDOLA, Pedro (org).
Celebração das Coisas* Bonecos e poesias de Manoel de Barros. Ed. Independente. Campo Grande-MS,
2006.
64
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender, mas para incorporar
Entender é parede; procure ser uma árvore. (BARROS, 1998, p. 37)
Uma característica presente na poesia de Manoel de Barros é a presença de verbos que indicam
um movimento ao chão, verbos como grudar, encostar, pisar, esfregar, lamber, escorrer e pingar
fazem parte de seu vocabulário. Não há biografia que explique sua poesia, muito menos o poeta.
Não sou biografável. Ou, talvez seja. Em três linhas. Nasci na beira do rio Cuiabá. Passei a
vida fazendo coisas inúteis. Aguardo um recolhimento de conchas. (E que seja sem dor, em
algum banco da praça, espantando da cara as moscas mais brilhantes) (BARROS, 1988, p. 4)
Manoel de Barros busca uma poesia livre distanciada das regras e normas da gramática,
aproximada das coisas que não têm valor de troca, tais como caramujos, pregos enferrujados,
trapos, lagartixas, latas e formigas; essas são eleitas em primazia na poesia. Segundo Neto (1997), o
poeta busca em sua poesia a negação para o que a sociedade acha ser importante. “Amar os trastes é
também amar as pessoas que se encontram numa condição social idêntica.” (NETO, 1997, p. 38)
Seres e coisas abandonadas pela sociedade capitalista (crianças, mendigos, andarilhos, pessoas
humildes) exprimem dignidade em sua poesia.
Trago, com a poesia de Manoel de Barros, uma outra proposta, uma outra possibilidade, de
olhar o homem ou a mulher e os seres que estão ao seu redor com o mesmo grau de importância,
valorizando os diferentes, os seres marginalizados, jogados ao chão, valorizando seres e coisas que
as ciências, muitas vezes, ocultam ou até mesmo negam. Dessa forma, procuro dar espaço à
subjetividade, passando a ocupar o espaço do racional; à simplicidade invadindo a complexidade,
onde o valor está no considerado inútil, no desprezível, diferentemente da operatividade e da
técnica. Essa premissa podemos observar, de forma clara, no primeiro trecho de Matéria de
Poesia, de Manoel de Barros.
Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima,
65
serve para poesia
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre diabo é colosso
Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
a lagartixa da esteira
e a laminação de sabiás
é importante para poesia
O que é bom para o lixo é bom para poesia
[...]
As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora
66
Aliás é também objeto de poesia
Saber qual é o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens de poesia. (BARROS, 2007, p. 15)
A poesia de Manoel de Barros nos direciona a uma ciência mais próxima do ser, utilizando-se
das inutilidades, das coisas insignificantes, compondo poesia, despendida da formalidade e da
métrica, dos padrões impostos pela escrita. Tudo que a sociedade ignora e despreza serve para
poesia.
Quem anda no trilho é trem de ferro
Sou água que corre entre pedras:
— liberdade caça seu jeito. (BARROS, 2007, p. 32)
A liberdade é o início da criação, não o seu fim. Fora de uma ordem, de um modelo a ser
seguido, seres e coisas dão alma às palavras. O ser humano, em sua poesia aparece descentrado,
coisificado, apropriado para pedra, para o chão, perdendo o caráter de dominador e controlador da
natureza.
O poeta diz que sua poesia é feita a partir das coisas jogadas fora, das inutilidades.
Gosta de desestruturar a ordem. Não se preocupa em explicar, mas desexplicar.
Para ele, é preciso reinventar o mundo. É o poeta de coisa nenhuma. É o poeta das
rãs, dos grilos, das árvores, dos passarinhos, das lesmas, das brincadeiras de
menino jamais esquecidas, do cisco de de parede, dos pedaços de paus e latas
que bóiam nos rios depois das enchentes, "que é quando o rio fica mais gordo". O
poeta dos entulhos, do monturo, das teias de aranhas esquecidas de serem varridas;
o poeta de tudo que é jogado fora, de tudo que é esquecido, o poeta despropositado,
um desequilibrista da palavra. É o poeta de Deus, o poeta do nada. (SAVIO, 2004,
s/p)
Manoel de Barros busca o primitivo, ou seja, as origens para construir um saber poético que, muitas
vezes, causa estranheza ou até mesmo repúdio, que sua poesia incomoda a forma, a regra e a
67
métrica. Sua linguagem é infantil, pois busca na infância a ignorãça primitiva, que vem da origem,
ao mesmo tempo complexa e inovadora. Desfazer o normal, de ser uma norma. (BARROS,
2006, s/p)
Ao ler os poemas de Manoel de Barros, vem à memória a imagem de uma lesma que, ao se
“alimentar de chão”, constrói, no dorso de seu corpo, sua própria moradia, uma estrutura
singularmente bela. Por mais que as ciências físicas e matemáticas calculem a desenvoltura de sua
concha, não conseguem medir seu encanto. As origens, o chão e as coisas mais simples e banais,
todas estas informações têm uma soberba desimportância científica como andar de costas.
(BARROS, 2006, p. 41)
Nesse movimento andâmico, que se aproxima aos trastes, sua poesia desfigura toda construção
hegemônica, todo saber voltado a uma elite econômica, social, intelectual e burguesa. Novamente
afirmo que a poesia de Manoel de Barros causa estranheza, e até mesmo incomoda a sociedade
capitalista, consumista, que define o que e como consumir, que define o que e como produzir.
Barros não importância para essas coisas; para o poeta, o importante é que as palavras ganhem
sentido de pedra, que ao escorregar ao chão e à lama, ganha representatividade poética.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios. (BARROS, 2003, p. 19)
Seus poemas atingem os deslimites da palavra, construída com simplicidade, ousadia e
originalidade.
No Livro Sobre o Nada, o poeta assume sua modéstia:
Não é por me gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente para fulgor.
68
Trabalho arduamente para fazer o que é necessário.
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam. (BARROS, 2001, p. 41)
Nas raras entrevistas cedidas pelo poeta, ele diz que o nascimento de cada palavra está mais
para o lápis do que para o computador, sua inspiração vem do imaginário, dos mistérios irracionais,
da arte de infantilizar formigas e do lugar de ser inútil.
Sou escravo do lápis com borracha. Depois tem outra: sempre imagino que na ponta do lápis
tem um nascimento. Sei que isso é bobagem da minha parte. Mas as bobagens também criam
raízes. (BARROS apud SPÍNDOLA, 2006, p. 65)
Os títulos de seus livros inicialmente dão uma dimensão do estilo de poesia, ou melhor, o título
é a própria poesia, que nos convida para o universo manoelino de ser. Entre alguns títulos temos:
Poemas concebidos sem pecado, Face imóvel, Poesias, Compêndio para o uso dos pássaros,
Gramática expositiva do chão, Matéria de poesia, Arranjos para Assobio, Livro de pré-coisas,
Guardador de Águas, Poesia quase toda, Concerto a céu aberto para solos de ave, Livro das
Ignorãças, O Livro sobre o nada, Retrato do artista quando coisa, Poemas rupestres, Tratado
geral das grandezas do ínfimo, Ensaios fotográficos, Poeminhas pescados numa fala de João,
Cantigas por um passarinho à toa, Exercício de ser criança, O fazedor de amanhecer, e a
trilogia: Memórias Inventadas: a primeira, a segunda e a terceira infância.
O fazedor de amanhecer é o título que recebeu um de seus livros, e é um dos adjetivos que
pode ser empregado ao poeta. Ele é um fazedor de palavras, um colecionador de inutensílios. Sua
poesia é construída com trastes, trapos, cascos, restos, lixos, entulhos, palavras esquecidas,
ignoradas e desprezadas pela gramática, tudo que é inútil para a tecnologia serve para poesia, até
mesmo o “cago”. Poesia é voar fora da asa. (BARROS, 1997, p. 21) É uma poesia presa à terra,
69
não no sentido regionalista, pois o poeta tem sua vivência no Pantanal, mas não se limita a ele. A
terra da qual falo é o chão mesmo, chão orgânico, repleto de matéria podre em decomposição. Sua
escrita está presa ao lodo, à lama, às coisas e seres que rastejam; sua poesia rasteja, forma rizomas,
está presa ao esterco. “Cabe ao poeta, então, escrever o que sobra das águas que escorrem: húmus,
barros, dejetos. Escrever o que sobra das águas e vai apodrecer nas margens: o resto. Disso sabe
bem o guardador: que a água escreve, que o húmus faz poesia, que o resto é literatura.” (BRANCO
apud BARROS, 2006, s/p)
Manoel de Barros constrói um jeito singular de compor frases, sua poesia não fica somente no
regionalismo. Não um único adjetivo ou até mesmo um rótulo para classificar sua poesia e seu
estilo. Seu gênero é inclassificável, aliás, rótulos são dispensados. O poeta se assume como
“songo”, primitivo, traste, ser inútil. me preocupo com as coisas inúteis. (BARROS, 1998, p. 9)
Esse não pertencimento nos indica uma singularidade presente na vida e obra do poeta.
Sua poesia, apesar de ter seus pés nas imensas planícies alagadas da região pantaneira e no vasto
cerrado sulmatogrossense, não se permite fixar raiz. Ela cria rizoma, e ainda se ao luxo de
explorar outras paisagens, ou melhor, outras linguagens.
Ao adquirir uma linguagem, o homem adquire uma visão do mundo, uma certa
concepção da realidade, experiências que variam de acordo com as linguagens,
culturas e tradições. O real é simbolizado de determinada maneira, isso quer dizer
que ele tem um sentido. Tornar-se homem é poder viver num mundo de linguagem,
de uma linguagem. (ZUBEN, 2006, p. 44)
Chegamos à essência de sua poesia. A intenção é explorar a linguagem, não o ambiente, pois a
linguagem não tem forma nem lugar, ela perpassa o mundo. A linguagem explorada não é
linguagem poética clássica, regida por gramática e regras ortográficas, por formas culturais ou
sistemas de valores. Não é a linguagem intelectualista que está presente, mas sim a linguagem cheia
de imagens e metáforas que permite perceber o nivelamento entre homens, mulheres, animais,
vegetais e coisas. Isso pode ser observado em vários de seus poemas:
Saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer em suas condições humanas,
antes de se adquirir do chão a modo de um sapo. (BARROS, 2001, p. 84)
Bernardo é quase árvore. (BARROS, 1997, p. 97)
O menino caiu no rio, tibum, ficou
70
Todo molhado de peixe... (BARROS, 2001, s/p)
Vi uma borboleta
sentada nos braços da manhã. (BARROS, 2001, s/p)
Pintei sem lápis a manhã de pernas abertas para o sol. (BARROS, 2006, s/p)
O humano deixa de ser superior, aproximando-se e metamorfoseando aos seres. Os elementos
da natureza ganham propriedades humanas, como se houvesse uma simbiose entre os seres, como se
firmassem um compromisso com a poesia. A busca pelo estado coisal é percebida a cada instante
em sua poesia. É como se os seres necessitassem aproximar-se das árvores, percorrendo suas raízes
até chegar ao chão.
Um dia tentei desenhar as formas da Manhã sem lápis. pensou? Por primeiro havia que
humanizar a Manhã.
Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente eu tentara coisificar as pessoas e humanizar
as coisas (BARROS, 2006, s/p).
A humanização das coisas e a coisificação do humano (segundo o poeta, as árvores, os objetos,
os inutensílios, resumindo, as “coisas” assumem características humanas, e o humano,
características das coisas) estão presente na metáfora manoelina. Nessa simbiose poética, o humano
se iguala à natureza, e a natureza assume atitude recíproca. Em Bioética e Tecnociências, Newton
Aquiles von Zuben busca, nas leituras de Aristóteles, o entendimento de que o homem e a mulher
são seres da linguagem; eles se relacionam com a realidade simbolicamente. “Que o homem, o ser
falante, animal do simbólico não rompe as paisagem, nem destrói as florestas, ele sentido às
coisas, organiza, indica fins. A linguagem é, desse modo, a maneira de o homem habitar seu
mundo.” (ZUBEN, 2006, p. 68)
Zuben (2006) apresenta um ser humano em processo de perfeição diante do olhar dos avanços
tecnológicos, diferentemente dos que são encontrados na poesia de Manoel de Barros, em que o ser
humano é pensado como um ser incompleto. Ando muito completo de vazios. (BARROS, 1997,
p.55)
71
Na poesia de Manoel de Barros, a natureza é uma só, seja ela humana, animal ou vegetal. Não
existe relação de poder entre esses, o que existe é intimidade, alteridade e pertencimento entre a
natureza e o humano(a).
Andar à toa é coisa de ave.
Meu avô andava à toa. (BARROS, 2000, p. 51)
Em um dos depoimentos feitos pelo amigo e leitor das poesias de Manoel de Barros, José
Mindlin, bibliófilo e membro da Academia Brasileira de Letras, escreve:
Quando li suas poesias pela primeira vez, perguntei a mim mesmo se o que eu
estava lendo era uma revelação ou uma revolução. Não tinha dúvida de que estava
diante de um poeta, mas que poeta? Como é possível publicar uma porção de livros
de poesia (até os títulos são poéticos) sem escrever um soneto sequer? O
desrespeito às formas consagradas pode ser chocante, mas creio que é justamente o
que encanta o leitor que não se preocupa com essas formas, e sente a beleza do
desencontro das idéias e das palavras. Mesmo assim, haverá leitores que podem se
perguntar de que espécie é a poesia de Manoel de Barros, ou qual é a métrica de
seus versos. Ora, essa poesia, embora cheia de lirismo, não é lírica. E embora
arrojada, não é épica. Mas é poesia. Quanto à métrica, não adianta procurar
alexandrinos se Manoel se chamasse Alexandre. Mas felizmente não se chama, e é
ai que encontra o mapa da mina: seus versos são, pura e simplesmente, manoelinos.
Únicos e incomparáveis. (MINDLIN apud SPÍNDULA, 2006, p. 29)
No livro Exercícios de ser Criança, o poeta Manoel de Barros adentra no mundo da infância ao
carregar água na peneira. Sua poesia nos apresenta alguns predicativos do menino poeta, que inverte
as frases, utiliza-se de metáforas, usa de exageros, faz peraltagens com a palavra, e busca
constantemente o inatingível.
O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
72
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
o menino fazia prodígos.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
73
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos. (BARROS, 1999, s/p)
O mesmo perfil de menino-poeta encontramos num texto de Carlos Drummond de Andrade, A
incapacidade de ver verdadeiro. O constituir poético, em ambos os poemas, vemos que esse
aprender é de infância.
Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-
da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana
seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de
buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não ficou sem
sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou
falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar
um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o
exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: Não nada a fazer, Dona Coló. Este menino é
mesmo um caso de poesia. (ANDRADE, 2002, p.37)
Manoel de Barros é um transgressor. Transgride a gramática, a retórica, a forma. Transgride o
modismo, o consumismo, o capitalismo. Radicaliza o que chamamos de poesia. Nossa maçã é que
come Eva. (BARROS, 2000, p. 38) Transgride o belo, o importante, o moderno e o renomado, por
meio da linguagem poética.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
Sarjeta.
74
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, enverga-lá pro chão, corrompê-las
Até que padeça de mim e me sujem de branco. (BARROS, 1998, p. 19)
O livro Poemas Rupestres é assim intitulado em analogia às primeiras manifestações artísticas
feitas pelo homem/mulher da pré-história em paredes ou tetos de cavernas, utilizando-se de sangue,
gordura de animais ou substâncias extraídas das plantas. Essas manifestações eram utilizadas para a
comunicação da tribo entre si e com outras comunidades. Nesse livro, podemos identificar uma
identidade e proximidade do(a) humano(a) com a natureza. O ser humano se recondiciona ao
natural, onde enxergamos como iguais. Isso se vê na primeira parte do primeiro poema: Canção do
ser.
Por viver muitos anos dentro do mato
moda de ave
O menino pegou um olhar de pássaro
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergavam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
Podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.
Podia dar ao canto formato de sol.
E, se quisesse caber em uma abelha, era
só abrir a palavra abelha e entrar dentro
75
dela.
Como se fosse infância da língua. (BARROS, 2006, p. 11)
Em Memórias Inventadas A Segunda Infância, o poeta Manoel de Barros nos provoca a
outras importâncias, diferentemente das tecnociências:
Sobre importâncias
Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja/ que pingo de sol no couro de um lagarto é /para
nós mais importante do que o sol inteiro/ no corpo do mar. Falou mais: que a importância/ de
uma coisa não se mede com fita métrica nem/ com balanças nem barômetros etc. Que a/
importância de uma coisa há que ser medida/ pelo encantamento que a coisa produza em nós. /
Assim um passarinho nas mãos de uma criança/ é mais importante para ela do que a
Cordilheira/ dos Andes. Que um osso é mais importante para/ o cachorro do que uma pedra de
diamante. E/ um dente de macaco da era terciária é mais/ importante para arqueólogos do que
a/ Torre Eifel. (Veja que só um dente de macaco!)/ Que uma boneca de trapos que abre e fecha/
os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais/ importante para ela do que o Empire State/
Building. Que o cu de uma formiga é mais/ importante para o poeta do que uma Usina
Nuclear./ Sem precisar medir o ânus da formiga. Que/ o canto das águas e das rãs nas pedras é
mais/ importante para os músicos do que os ruídos/ dos motores da Fórmula 1. um
desagero em mim/ de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do/ olho ou da
razão. Se é defeito da alma ou do/ corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por/ tais
julgamentos, vão encontrar que eu gosto/ mais de conversar sobre restos de comida com/ as
moscas do que com homens doutos. (BARROS, 2003, s/p)
A poesia de Manoel de Barros nos direciona para uma nova redefinição dos saberes, para um
novo sentido do valor, do apego às coisas. Para muitos, a importância está nos bens materiais e
recursos tecnológicos. O moderno e o sofisticado ocupam o lugar do antigo e do ultrapassado,
menosprezando tudo e todos que estão fora desse formato. Para Manoel de Barros, o desimportante,
o primitivo, os inutensílios, o nada são a essência e a matéria sólida para sua poesia. A poesia citada
acima nos aponta e direciona para novos valores que, muitas vezes, a ciência despreza ou
simplesmente ignora. Sou capaz de entender as abelhas do que alemão. Eu domino os instintos
primitivos. (BARROS, 2000, p. 17)
76
Apresentar o poeta Manoel de Barros não para o discurso acadêmico, mas na prática de
ensino e na educação ambiental, para o diálogo entre os saberes foi, sem dúvida, um grande desafio,
de certa forma uma ousadia, ainda mais para quem tem uma formação em Ciências Físicas e
Biológicas, como a minha. A leitura e o estudo de seus poemas possibilitaram uma releitura das
coisas ao meu redor e, a partir desse movimento, comecei a dar maior importância às pessoas e às
coisas; valorizar ainda mais a simplicidade. Isso nãome conduziu a construir uma reflexão sobre
a atual ciência que produzimos, como também sobre a minha prática pedagógica.
77
Vista do Crepúsculo, no final do século.
Eduardo Galeano
24
Está envenenada a terra que
nos enterra ou desterra.
já não há ar, só desar.
Já não há chuva, só chuva ácida.
Já não há parques, só parkings.
Já não há sociedades, só sociedades anônimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas, só públicos.
Não há realidades, só publicidades.
Não há visões, só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se:
“Parece de plástico”.
*Bonecos de Manoel de Barros
24
In: REIGOTA, M. e ESMÉRITO, M. (Orgs). Um olhar sobre a Educação Ambiental. Porto Alegre: Secretária de
Estado da Educação/RS, 2002.
78
“Conhecimento prudente para uma vida decente."
(SANTOS, 2004, p. 60)
4 – Diálogos com o Homem Máquina e Bernardo.
4.1 Bernardo e o Homem Máquina: a responsabilidade pelo futuro do humano
O crescente avanço da tecnologia trouxe a ideia do “mito do progresso” e a ampliação crescente
do controle e poder sobre a natureza. O ser humano incorporou a técnica de tal maneira que, das
mais simples tarefas às mais complexas, recorremos à máquina e seus apêndices mecânicos. O
homem e a mulher tornam-se sucessivamente incapacitados, limitados e dependentes dos aparelhos
mecânicos. Neste capítulo, apresento a ideia do “Homem Máquina”, presente no livro Bioética e
Tecnociências, de Newton Aquiles von Zuben. Tal concepção de ser humano se enquadra na
mesma condição de máquina ou peça desse artífice, sendo regido pelos mesmos critérios de
adaptação, produtividade e rentabilidade.
Em contrapartida, também apresento a figura de Bernardo, persona(gem) da poesia de Manoel
de Barros. Bernardo é homem simples, despojado de grandeza; a simplicidade invade seu olhar.
Bernardo conversa com os entes da natureza, vivendo entre as árvores, às vezes se confundido com
elas.
O diálogo entre Bernardo e o homem-máquina pode nos direcionar para a construção de uma
identidade de um novo ser humano que, por meio do emprego da técnica, da genética e da robótica,
utilize o conhecimento de forma mais democrática, igualitária e ecológica. O desenvolvimento das
tecnociências e os avanços da biomedicina fazem surgir, de modo irreversível, uma representação
do que seria esse homem, essa mulher. Tais mudanças não representariam a maneira de pensar
como também os diversos fatores e caracteres físicos e biológicos. A simbiose entre o protoplasma
e o cibernético redefine o homem, a mulher e a natureza. A ideia de máquina introduzida pelo
constante avanço das tecnociências limita toda relação histórica e cultural produzida pela
humanidade, e a condiciona ao tempo, ao trabalho, à produção. Por mais que o homem e a mulher
se esforcem, por mais que relutem, serão um dia substituídos pela própria técnica; então, homem e
mulher, dominadores da técnica, passarão a dominados e, por conseguinte, condicionados ao
mesmo modelo imposto à máquina.
79
4.2.1 Era do digital e o Homo cyber: bem-vindo à sociedade tecnológica
Para muitos, a história começa a partir do aparecimento dos primeiros grupos humanos, mais
precisamente na África. “Foi no período geológico chamado de Mioceno, entre 7 e 5 milhões de
anos atrás, que começou a separação da linhagem entre os chimpanzés e os ancestrais dos
humanos.” (REIGOTA, 2002, p. 15)
cerca de 10 mil anos, no Plistoceno, é que surge a espécie humana com as
características anatômicas que conhecemos hoje. Nesse período ocorre a
domesticação das plantas e animais, facilitando assim o acesso ao alimento e
contribuindo para o crescimento populacional surgem o sedentarismo e os
primeiros agrupamentos sociais. (PILBEAM, 1998 apud REIGOTA, 2002, p. 15)
Não podemos negar que a natureza jamais seria a mesma sem o surgimento do humano. De
certa forma, a humanidade veio interferir significativamente na construção do processo histórico,
alterando as mais simples noções ecológicas, evolutivas e geográficas. Com o provimento do ser
humano, passa-se a construir outra narrativa, que vivenciamos cotidianamente. “Nessa evolução, o
ser humano passa por vários estágios. No exercitar da mente, torna-se criativo e habilidoso na
construção do mundo que o cerca.” (KURAMOTO, 2000, p. 3)
A partir da presença das tecnociências, a natureza perde seu requinte aos olhos do humano,
deixando de ser sacralizada, intocada. Toda a natureza está rapidamente sendo alterada de diversas
formas, tais como as intervenções geológicas, físicas, químicas e biológicas. A intervenção
antropocêntrica e suas técnicas, artifícios e invenções, que resultaram do raciocínio e da capacidade
de construir ferramentas, alteraram em um curto espaço de tempo aquilo que chamamos de
natureza.
Dentro de uma visão antropológica, o homem, através do conhecimento, utilizando
sua capacidade de raciocínio, começa a transformar a natureza que se encontra a
sua volta, construindo armas para caçar, pescar, e melhorando assim sua
alimentação garantindo-lhe mais conforto dentro do que é possível, em razão da
escassez de recursos. (KURAMOTO, 2000, p. 3)
A intervenção antrópica é a principal responsável pela alteração das principais relações
ecológicas e dos problemas ambientais, tais como erosão, desertificação, poluição e extinção de
espécies, para ficar somente nesses exemplos. Porém, é de grande relevância afirmar que somente
nos últimos anos a humanidade desencadeou um desenvolvimento científico e tecnológico que
intensificou ainda mais esses problemas ecológicos.
80
Toda ação humana tinha como perspectiva civilizar a natureza. Com isso, se converteu boa parte
da vegetação original em cultura, especificamente agrícola. O homem e a mulher usufruíram e ainda
usufruem de alguns animais para companhia, para proteção, na realização de esforço físico, na
locomoção, auxiliando na caça etc. Animais antes selvagens, agora domesticados. Quando não
satisfeitos com a utilização dos animais, homens e mulheres usufruíam de outros homens e outras
mulheres para diversos fins. Isso fica explícito na colonização da América pelos europeus, por
quem os índios eram vistos como selvagens, necessitando ser aculturados. Esses são apenas alguns
exemplos da ocupação humana na Terra, pois, para muitos, o ser “selvagem” era tido como
impróprio, anti-humano e indigno do humano. Tudo que era selvagem deveria ser domesticado,
civilizado. O processo de desumanização do ser humano parte exatamente da visão da inadequação
do ser humano para o mundo novo da tecnologia.
Eu não caminho para o fim,
eu caminho para as origens.
(BARROS, s/p apud PERISSÉ, 2007, p. 69)
4.2.2 A presença da técnica: as tecnologias
Nos últimos séculos, é fato notável que a sociedade passou a vivenciar uma era que não tem
comparação na História. Não quero classificá-la como a era da tecnologia, uma vez que os artefatos
tecnológicos estão presentes desde o surgimento da humanidade, principalmente com a
instrumentalização das práticas rotineiras do trabalho. No entanto, trata-se também de uma outra era
da tecnologia, a qual possui um outro formato e outra dimensão, justamente em razão do
aparecimento de novas técnicas, nunca antes imaginadas. A biotecnologia, a nanotecnologia, a
robótica e as engenharias químicas, físicas e genéticas são fruto de intensa pesquisa e muito
investimento em ciências que se unem para produzir o que chamamos de tecnologia.
A presença de um ou outro artefato tecnológico é constante nas mais diversas formas do fazer
humano. Isso acarretou, sem dúvida, inúmeros benefícios, tais como: a alta velocidade da
comunicação, as novas formas de interação e o avanço da medicina. Por outro lado, implementou e
acelerou o desemprego e o aumento da desigualdade social, sem falar das mudanças do agir
humano, do controle, da subordinação. Esse paradoxo responsabiliza e induz o homem e a mulher a
repensarem seus valores e atitudes para a construção de uma ciência mais ética, socialmente
humana e ecológica. Nesse sentido é que a educação deve atuar, questionando valores e atitudes
81
afirmados pela presença da tecnologia. Ela não denuncia como tem um potencial de intervir nas
decisões, no que diz respeito à inserção dos grupos desfavorecidos e minoritários.
Precisamos realmente de uma ética de atitude frente às tecnociências, principalmente no tocante
às pesquisas que envolvem o genoma humano, em que se busca o exagero, o excesso,
ultrapassando, às vezes, os limites impostos pela natureza. Nesse contexto da demasia, os homens e
as mulheres da “pós-modernidade” buscam alcançar ao máximo os limites da estética e da
perfeição, a partir da adoção de padrões de beleza vendidos”, e estabelecem normas de conduta
quanto à saúde que vão desde idas frequentes às academias de ginástica e consumo desenfreado do
que produz a indústria cosmética e farmacêutica. A biotecnologia vem possibilitando ampliar esses
limites e atingir o que, antes, era inatingível.
O século biotecnológico traria algumas ou até mesmo, a maioria dessas mudanças e
muitas outras para nossa vida, afetando profundamente nossa consciência coletiva
e individual, o futuro da nossa civilização e a própria biosfera. Os benefícios e os
riscos do que alguns chamam de “a última fronteira tecnológica” são excitantes de
se ver e assustadores de se contemplar. (RIFKIN, 1999, p. 3)
No livro Gramática expositiva do chão, Manoel de Barros apresenta o poema A máquina (que
não está citado na íntegra).
A Máquina mói carne
excogita
atrai braços para a lavoura
não faz atrás de casa
usa artefatos de couro
cria pessoas à sua imagem e semelhança
e aceita encomendas de fora
A Máquina
funciona como fole de vai-e-vem
incrementa a produção do vômito espacial
e da farinha de mandioca
influi na Bolsa
82
faz encostamento de espáduas
e menstrua nos pardais. (BARROS, 1990, p. 45)
As máquinas, como um produto das tecnociências dantes pertencente às indústrias e ao
comércio, agora estão inseridas nas casas. Incorporamos a necessidade do uso da geladeira, da
televisão, do ar condicionado e do microondas. Pouco nos interessa como as microondas
funcionam, o importante é que o microondas funcione. Isso é uma das formas de exemplificar o
lado operativo das tecnociências.
É importante ressaltar que a tecnologia apresenta sua estrutura solidificada nas Ciências. Essa é
apenas um apêndice, ou melhor, uma produção, e não a única, nem o mais importante produto das
Ciências. Não devemos esquecer de que, quando falamos em Ciências, temos de incluir outras
formas de conhecimento, além das Ciências exatas. Áreas como a História, a Sociologia, a
Antropologia e a Filosofia, entre outras, devem ter seu espaço confirmado nessa construção
contemporânea dos saberes.
Ao considerar a presença da tecnologia no uso para o tratamento e para curar doenças, melhorar
a comunicação e a alimentação, o que presenciamos é a distância de seu acesso para os grupos
minoritários. Temos a ressonância magnética de última geração, temos computadores avançados,
que processam informações em um milionésimo de segundo, produzimos alimentos em larga escala
e, ao mesmo tempo, é assinalado um grande paradoxo: muitos sofrem desesperadamente à espera de
um simples atendimento médico, muitos morrem de desnutrição, e milhares de pessoas nunca terão
acesso aos recursos da informática. Grande parte da população está excluída dessa tecnologia de
ponta, de última geração.
Haja vista que os avanços tecnológicos são avanços para um grupo seleto, sabemos também que
leva certo tempo para que a tecnologia chegue para todos. Num primeiro momento, seria para
alguns, e num segundo momento, haveria uma ampliação dos grupos beneficiados. Porém, para
grande parcela excluída e marginalizada, o segundo momento parece nunca chegar. Toda essa
tecnologia e agenciamento de informações deveriam favorecer o lado mais fraco, os destituídos, os
oprimidos e os marginalizados pelo capital tecnológico, mas as tecnociências têm provocado um
indecente processo de exclusão de uma parte considerável da humanidade para a qual tais inovações
tecnocientíficas não são acessíveis por seu alto custo financeiro” (ZUBEN, 2006, p. 41).
No poema Genocíndio, o poeta douradense Emmanuel Marinho denuncia a condição de
pobreza, de espoliação a que vêm sido submetidas às crianças, indígenas ou não. O poeta toca
profundamente o centro da ferida das tecnociências: o paradoxo entre construir robôs, aviões e
clones e a fome e miséria de milhares de crianças.
83
Genocíndio I
Tem pão velho?
Não, criança
Tem o pão que o diabo amassou
Tem sangue de índios nas ruas
E quando é noite
A lua geme aflita
Por seus filhos mortos
Tem pão velho?
Não, criança
Temos comida farta em nossas mesas
Abençoada de toalhas de linho, talheres
Temos mulheres servis, geladeiras
Automóveis, fogão
Mas não temos pão
Tem pão?
Pão não!
Tem pão velho?
Não, criança
Temos asfalto, água encanada
Supermercados, edifícios
Temos pátria, pinga, prisões
Armas e ofícios
Mas não temos pão
Tem pão velho?
Não, criança
Temos tudo mas não temos nada
84
que se pareça com pão
Tem pão velho?
Não, criança
Temos mísseis, satélites
Computadores, radares
Temos canhões, navios e usinas nucleares
Mas não temos pão
Tem pão velho?
Não, criança
Tem o pão que o diabo amassou
Tem sangue de índio nas ruas
E quando é noite
A lua geme aflita
Por seus filhos mortos
Tem pão?
Pão não!
Tem pão velho?
Tem sua fome travestida de trapos
Nas calçadas
Que tragam seus pezinhos
De anjo faminto e frágil
Pedindo pão velho pela vida
Temos luzes em óperas avenidas
Temos índias suicidas
Mas não temos pão. (MARINHO, 1998)
85
4.2.3 A presença da técnica: a biotecnologia
Usualmente, consideramos a técnica como um construto novo; porém, mesmo antes do
surgimento da primeira civilização humana, os hominídeos utilizavam ferramentas. Foi essa
habilidade que o distinguiu dos outros animais. A ciência e a biotecnologia já estiveram presentes
de forma empírica mais de 4.400 anos atrás em povos como os incas e os egípcios, que se
utilizavam de microorganismos para a produção de alimentos e bebidas, além de outras técnicas
manuais, rudimentares, instrumentais.
À medida que o homem aprimorava suas técnicas para tornar mais prático e
produtivo seu trabalho, sua relação com o meio tornava-se desarmônica, tendendo
a transformar a natureza em mercadoria. Este aprimoramento técnico também
contribuiu gradativamente para o nosso isolamento em relação ao meio. (SILVA
[et al], 2006, p. 86)
Porém, nada se compara com os resultados e avanços da biotecnologia presentes em nossos
dias. Sem dúvida, vivemos no século da biotecnologia. É ela que definirá nossos próximos passos e,
sem exagero, a expressão “a nossa evolução”.
“O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em
contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem
remediados, no limite, ameaçam a implantação da vida em sua superfície.” (GUATTARI, 1997, p.
7)
Pode-se dizer, conforme Davies (2001), Zuben (2006) e Rifkin (1999), que a biotecnologia e a
engenharia genética tiveram sua validação a partir da descoberta da estrutura de DNA pelos então
desconhecidos cientistas Watson e Crick, aproximadamente cinquenta anos atrás. A estrutura
tridimensional do ácido desoxirribonucléico é uma complexa estrutura de formato helicoidal onde
estão inseridas as informações genéticas de cada indivíduo. Essa descoberta revolucionou a biologia
molecular, a própria genética mendeliana. Com essa descoberta, foi apresentado às ciências o mapa
do genoma humano. “Decodificar o genoma humano é uma tremenda realização da história da
humanidade, um feito que tem sido comparado favoravelmente com toda grande realização
tecnológica, da invenção da roda ao pouso na Lua.” (DAVIES, 2001, p. 19-20)
No artigo “As implicações éticas da Manipulação genética em seres humanos segundo o
Princípio da Responsabilidade de Hans Jonas”, presente no livro Bioética estudos e reflexões
apresenta uma gana de possibilidades presente na viragem genética.
A genética iniciada por Mendel (1986), tomou um grande impulso em 1953 com
Watson e Crick e tem chegado, nos últimos anos, a um ponto de viragem em que as
86
possibilidades técnicas e as informações acumuladas apontam em direção a uma
gama enorme de ações concretas de aplicabilidade prática. (NUNES, 2000, p. 127)
De acordo com Rifkin (1999), a descoberta do DNA trouxe um campo de possibilidades jamais
imaginadas, apresentando um novo agenciamento de informações, que permitiram a produção dos
transgênicos, Organismos Geneticamente Modificados (OGM); dos estudos de clonagens à
produção de clones e à produção de tecidos e órgãos para reposição. Muitas pesquisas e
experimentos estão abrindo um iceberg de possibilidades no que diz respeito à clonagem
terapêutica.” (RIFKIN, 1999, p. 33) Por meio dos estudos e pesquisas da biotecnologia e da
engenharia genética, especificamente no que diz respeito aos transgênicos e ao melhoramento
genético, essas duas técnicas vêm alterando e determinando a diversidade e a variabilidade genética
das espécies num curto espaço de tempo.
“A criação artificial e a propagação dos animais clonados, quiméricos e transgênicos poderiam
significar o fim do selvagem e a substituição por um mundo bioindustrial.” (RIFKIN, 1999, p. 3)
Esse melhoramento e alteração genética modificaram o cenário da alimentação em um curto
espaço de tempo. Lembro, algum tempo pouco tempo, uns quinze anos atrás da presença
de uma grande diversidade de alimentos disponíveis nos mercados e feiras, onde antes eram
observada uma ampla variedade de grãos, frutas e legumes. Atualmente, encontramos frutas e
legumes padronizados, porém, sem diversidade.
O que é produzido e cultivado não possui mais a função final que era a de nutrir e saciar a fome.
Hoje, o objetivo final é o mercado, a venda do produto. Para isso, a humanidade passou a selecionar
características que vão além da atratividade do produto, como a necessidade de durabilidade, o fácil
armazenamento e o crescimento rápido, entre outros aspectos que interferissem em sua venda. A
rapidez de emprego da técnica de melhoramento implicou a extinção de variedades tradicionais e
uma grande perda na história, na cultura e na alimentação de uma civilização.
O paradoxo está igualmente expresso no fato de que o homem controla a natureza
por meio de uma técnica que ele não controla mais. Tal situação é um fator de
medo” e de preocupação porque sabemos quem detém poder, ao menos em teoria,
para realizar suas pretensões. Por outro lado, seria difícil viver sem seus benefícios,
principalmente na área biotecnológica, que contribui para aumentar a produção de
alimentos através de modificações genéticas e da própria medicina. De qualquer
forma, os avanços em todos os setores causam impactos, modificando o agir,
obrigando a ética a repensar essa situação totalmente nova. (ZANCANARO, 1998,
p. 38)
Esses exemplos servem apenas para demonstrar que não existe desconhecimento da causalidade
no emprego das tecnociências. Todo emprego tem, por sinal, sua função especifica, que é o poder
87
do ser humano sobre a natureza. Na verdade, todo esse poder também resulta no poder do homem
sobre o próprio homem.
No que diz respeito à alteração genética e ao melhoramento de grãos e outros alimentos,
muitos pontos a serem questionados, que envolvem muitos interesses particulares e coletivos.
Segundo Guimarães (2006), é preciso considerar que, no mesmo momento histórico, as diferentes
representações culturais de natureza estão presentes nos atuais discursos das sociedades, e, muitas
vezes, contestam-se mutuamente.
Podemos ver, por exemplo, uma variedade de significações em torno da questão
dos produtos transgênicos. diferentes modos de significá-los e, tais maneiras,
dizem respeito aos diversos interesses em jogo nessa disputa. Tomando como
modelo as discussões em torno da soja transgênica no Brasil, podemos dizer que
alguns agricultores defendem a liberação do seu plantio, pois avistam nela maiores
possibilidades de ganhos econômicos; por outro lado, muitos ambientalistas
consideram pouco seguro para a saúde humana e para o meio ambiente a liberação
total do plantio dessa variante de soja. E mais, alguns outros sujeitos atrelados a
outros movimentos sociais militam pelo plantio da soja convencional, defendendo
o não favorecimento comercial de apenas uma grande empresa detentora dos
direitos de fabricação e de comercialização das sementes transgênicas – no caso da
soja atrelando a venda das sementes à aquisição do agrotóxico, pois elas se
tornaram resistentes à sua aplicação. (GUIMARÃES, 2006, p. 7)
Sabemos dos diferentes posicionamentos que a sociedade pode estabelecer no que se refere à
presença da biotecnologia, o que nos indica um maior cuidado para que esse poder não seja
utilizado contra o humano, mas a favor dele.
“Mas, ainda aí, é preciso evitar qualquer ilusão progressista ou qualquer visão sistematicamente
pessimista. A produção maquínica de subjetividade pode trabalhar tanto para o melhor como para o
pior.” (GUATTARI, 1992, p. 15)
Juntamente com os avanços da biotecnologia, a ciência operatória trouxe outras promessas, com
as áreas das chamadas tecnociências, tais como a informática, a eletrônica e a robótica. Não faz
muito tempo que a grande maioria dos aparatos tecnológicos analogicamente utilizados foi e estão
sendo substituídos por produtos de uso digital. Aparelhos de uso mecânico e o manual não
servem mais, eles gastam tempo, esforço e incomodam. A velocidade, a agilidade das informações
processadas agora depende de atributos que vão além do humano. Então, computadores ocupam o
destaque nas atividades humanas.
Nesse mundo das tecnociências, as informações são midiáticas e percorrem por meio dos
programas, “softwares”, em um sistema, “hardware”, podendo estar acessíveis por meio de
“downloads”. As imagens são apresentadas em “pixels”, podendo ser convertidas por meio de
“morphing", tudo isso em uma velocidade absurdamente impressionante. Nesse mundo, não
88
flores, se há, ou são de plástico, ou existem milhares, decodificadas em uma intensidade de
“pixels”.
Não é de se estranhar o constante apelo aos diversos meios de propaganda e mídias, trazendo a
“otimização” da vida tecnológica, associando a ela estilos de vida e padrões de felicidade,
liberdade, proteção, inteligência e sustentabilidade. Não satisfeitos com esse marketing, associam a
vida tecnológica à tranquilidade da natureza, vendendo uma “natureza engarrafada”.
A máquina trabalha com secos e molhados
é ninfômana
agarra seus homens
vai a chás de caridade
ajuda os mais fracos a passarem fome
e dá às crianças o direito alienável ao
sofrimento na forma e de acordo com
a lei e as possibilidades de cada uma.
A máquina engravida pelo vento
fornece implementos agrícolas
condecora
é guiada por pessoas de honorabilidade consagrada,
que não defeca na roupa! (BARROS, 2007, p. 46)
O poema critica o ideal de uma sociedade fundada nos princípios da tecnologia, em que a lógica
é a do consumo, trazendo certo “beneficio para sociedade”. “Podemos “ler” claramente a
exploração infantil e o sofrimento imposto às crianças, sério problema socioambiental. A pobreza
geralmente aparece associada a desastres ambientais. É hora de inserir o homem/a mulher no
ambiente, como elemento e não como dono, visto que sofre as consequências dos desequilíbrios
ambientais, provocado-os ou não.” (ZANON, 2006, p. 69)
Esse paradoxo é constantemente apresentado, entre obter um produto tecnológico e construir
uma vida na simplicidade. Em muitos casos há uma suplementação da identidade, da subjetividade,
daquilo que chamamos de felicidade pelo hiperconsumismo. Antes de um determinado produto
chegar às prateleiras, idealizamos a necessidade de obtê-lo, substituindo outros produtos,
considerados ultrapassados e obsoletos. Essa é a lógica do mercado, essa é a lógica da sociedade
tecnológica, onde as coisas são obsoletas, tudo é feito para durar pouco, tudo é feito para ser
substituído. Nessa sociedade, ser moderno é consumir, é possuir.
89
“Tudo o que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo... Tudo o que é
sólido, roupas, máquinas, homens, casas, cidades, etc. Tudo isso é feito para ser desfeito amanhã.”
(BERMAN, 1986, p.13)
Valorizar o indivíduo e respeitar suas singularidades e particularidades deveria ser mais
importante do que qualquer invenção cientifica. A responsabilidade é nossa, é de agora, não é no
futuro que trataremos de firmar compromisso, a garantia da nossa continuidade depende das
escolhas que realizamos hoje.
4.3. A Ciência e o fazer humano
Não adianta responsabilizar as ciências pelos males e danos causados à humanidade pelo uso da
técnica ou produto das ciências. Como não podemos responsabilizar Albert Einstein, Otto Hahn,
Fritz Strassmann e Lise Meitner pelos estudos sobre fissão nuclear, uma das mais importantes
descobertas científicas, que também possibilitou a implementação do Projeto Manhattan, que
financiou uma das maiores catástrofes mundiais. Não podemos paralisar a ciência, pois ela pode
tanto humanizar, como desumanizar o ser humano. A decisão é sempre política.
A maioria dos inventores da tecnologia não sabia, no fundo, das consequências de seus feitos.
Os criadores da internet não imaginaram o impacto e a amplitude de seu invento. Hoje, ela financia
debates, formação, divulgação e entretenimentos, assim como a prostituição, a criminalidade, a
pirataria e a discriminação.
Nenhuma técnica ou máquina agirá por si só. O que sua aplicabilidade é o fazer humano,
nenhum membro do corpo age por si próprio. “As pernas não caminham por si”. Porém,
“eticamente somos livres para buscar a realização e não a destruição.” (ZANCANARO, 2007. p.
11)
Todo conhecimento ou toda técnica não é maléfica ou benéfica por si só. Tudo depende da
intenção, da aplicabilidade dessa tecnologia; nesse caso, os fins são extremamente relevantes, tal
técnica ou conhecimento deve ser apenas o meio para o estabelecimento da cidadania planetária.
Não podemos ser extremistas, radicalizando o discurso unilateral sobre a Ciência e seus feitos.
Não estamos vivenciando a Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, ou se que
estamos? “Será que realmente devemos dar tanta importância às críticas, à técnica e ao mundo da
técnica?” (ZANCANARO, 1998, p. 15)
— Ser ou não ser, eis a questão. (BARROS, 1997, p. 27)
90
Por outro lado, quando pensamos nas tecnociências, havemos de pensar em cautela, juízo e
prudência face à imprevisibilidade que nos cerca. O ser humano, antes controlador e dominador da
natureza, paradoxalmente não controla mais nada, hoje opera mais como um ser subordinado e
submetido às regras da técnica.
Essa representação de que o desenvolvimento tecnológico otimiza o poder do ser humano é
ambivalente. Na verdade, o homem e a mulher estão dependentes e frágeis com o excesso de poder
e da onipotência da técnica. O ser humano encontra-se cada vez mais desamparado na modernidade
tecnológica, a cada semana as pessoas apostam em uma novidade tecnológica que mude sua vida e,
ao fim das expectativas, a histeria torna-se depressão.
A humanidade corre um grande perigo com o desenvolvimento tecnológico dos últimos séculos.
A prudência, a renúncia e a responsabilidade são elementos essenciais para reverter o uso
imprudente da tecnologia. De fato, não estamos vivenciando a Revolta da Vacina, mas estamos
presenciando algo muito mais complexo: a modificação do humano, porém, sem movimentos
organizados de revolta. Presenciamos silenciosamente, e muitas vezes aplaudimos, a produção da
natureza animal (incluindo também a do ser humano) ou vegetal em tubos de ensaios, em placas de
Petri. Acreditamos que dispositivos de silício sejam mais eficientes do que o arcabouço orgânico,
autorizamos uma natureza mecânica e a mecanização do ser humano.
Nesse processo de desumanização do humano, o homem e a mulher perdem o “status” de
controle e poder, e passam a ser subjugados pela máquina. Isso, de certa forma, gera certo “fator de
medo” e preocupação, pois o ser humano detém poder somente na teoria; na prática, está
condicionado ao uso da ciência como uma necessidade de sobrevivência.
Uma das características da modernidade foi ter desencadeado, por meio da ciência,
processos tecnológicos, sem precedentes na história da humanidade, criando uma
situação paradoxal. Se, por um lado, ela beneficiou-se dos resultados, melhorando
as condições materiais e existenciais pela incorporação dos seus bens ao cotidiano,
por outro, tornou-se fonte real de problemas, resultantes da sua utilização.
Nominamos os ecológicos, os ligados às possibilidades de clonagem, ao
retardamento do envelhecimento e à liberdade de pesquisa. Diante desta realidade
não sabemos quais as conseqüências longínquas, ou os perigos, que poderão advir à
humanidade no futuro. (ZANCANARO, 1998, p. 38)
Não podemos omitir, nem ao mesmo abater os efeitos catastróficos do mau uso da técnica nos
últimos anos. Tal presença levou e continua levando à extinção de um grande número de espécies,
tornando a sobrevivência humana algo muito intricado para o presente e para a próxima geração.
Por outro lado, seria difícil viver sem seus benefícios, principalmente na área
biotecnológica, que contribui para aumentar a produção de alimentos através de
modificações genéticas e da própria medicina. De qualquer forma, os avanços em
91
todos os setores causam impactos, modificando o agir, obrigando a ética a repensar
essa situação totalmente nova. O estágio atual das pesquisas, no âmbito da natureza
do homem e das coisas, obriga os juízos éticos a repensarem esta nova
compreensão da natureza dos homens e das coisas. (ZANCANARO, 1998, p. 38)
4.4.1 A sociedade da tecnologia: do Homem máquina ao Cyber human
Poderia definir o rótulo de “sociedade tecnológica”: a mesma sociedade que não para de
produzir artefatos que dizem facilitar a vida do ser humano, a sociedade que fabrica e não para de
fabricar peças e máquinas, onde o interesse maior é a venda e o consumo.
Guimarães (1995, apud Silva [et al], 2006) argumenta e denuncia a relação desarmônica
presente nas ações humanas, nas manifestações de domínio sobre a natureza, em que uma sociedade
caracterizada pela valorização do consumo desenfreado, pela competição exacerbada e o
individualismo egoísta, ainda não contente, vende a crença na viabilidade desse projeto.
O homem e mulher que vivenciam essa sociedade perdem a autonomia, sendo mais uma peça
desse modelo de sociedade. O Cyber-human ou Homem-máquina
25
é o modelo de ser humano que
não mais controla essa sociedade. Ele agora é subjugado e, ao mesmo tempo, potencializado pela
presença da máquina. Em contrapartida, é um ser totalmente incapacitado sem a presença de tal
ferramenta. Diferentemente das tecnociências o poeta apresenta o humano: Só empós de virar traste
que o homem é poesia... (BARROS, 2007, p.26)
Nesse processo de mecanização do humano, não idade, muito menos identidade. Crianças,
jovens e adultos, homens e mulheres estão constantemente vivenciando e incorporando o ideal de
máquina. “Dentro dessa sociedade alienada e individualista estão os jovens, imersos no mundo
globalizado em que não deveriam mais existir fronteiras.” (SILVA [et al], 2006, p. 87)
Nesse mundo tecnológico, garotos e garotas se comportam ou se manifestam, com algumas
exceções, num ato de êxtase frente às novidades e possibilidades trazidas pelas tecnociências.
Jovens vivem plugados no mundo, consumindo ou desejando consumir o mais novo aparato
tecnológico que chegou ao mercado.
“Os jovens que perambulam nos boulevards, com um walkman colocado no ouvido, estão
ligados a ritornelos que foram produzidos longe, muito longe de suas terras natais.” (GUATTARI,
1992, p. 169) Hoje, porém, a juventude substituiu o velho walkman pelos MP3s e celulares mais
modernos.
25
Homem-máquina: “Fala-se já com desenvoltura em “fabricação” de homens ou partes orgânicas, artefatos biológicos”
(ZUBEN, 2006, p. 19); Cyber human, termo por mim criado após a leitura de “A cyborg Manifesto”, de Haraway
(1994).
92
Acredito que o bom senso no uso da tecnologia é umas das possibilidades do conviver no
“mundo das tecnociências”, pois tanto o uso excessivo, a dependência da máquina, quanto a recusa,
a negação de qualquer tecnologia é um ato extremista. “Existe uma atitude antimodernista que
consiste em rejeitar maciçamente as inovações tecnológicas, em particular as que estão ligadas à
revolução informática.” (GUATTARI, 1992, p. 15)
A presença das tecnologias vem sendo aceita sem nenhuma restrição por uma boa parte da
sociedade, principalmente a juventude.
Na minha rua estão cortando árvores
Botando trilhos
Construindo casas.
Minha rua acordou mudada.
Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.
Só minha filha goza o espetáculo
e se diverte com os andaimes
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas fôrmas. (ANDRADE, 2000, p. 28)
Esse público conhece mais do que qualquer outro os melhores e mais modernos artefatos
tecnológicos, aderindo ao mundo virtual e cibernético sem nenhum espanto, ao contrário, estão
espontaneamente fascinados. Aparentemente, não tem ocorrido uma oposição, ou até mesmo uma
reflexão coletiva, seja no âmbito político, social ou pedagógico, a esse movimento de
maquinização. Entretanto, “esses jovens sentem-se profundamente desconectados, vivem momentos
de extrema insegurança, com dificuldade de viver o presente e planejar o futuro, o que gera um
constante sentimento de medo” (NOVAES, 2006 apud SILVA [et al], 2006, p. 87).
A insegurança vivenciada pelos jovens talvez seja reflexo de uma sociedade excludente, que não
garante a inserção tecnológica de forma igualitária, onde as oportunidades oferecidas são para um
grupo seleto de jovens. Diante dessa denúncia feita por Novaes, os jovens são vítimas desse mundo
tecnocientífico. Neste caos, muitos desses jovens conseguem interferir e refletir sobre a realidade na
afirmação de sua singularidade e identidades.
93
A Juventude, embora esmagada nas relações econômicas dominantes que lhe
conferem um lugar cada vez mais precário, e mentalmente manipulada pela
produção de subjetividade coletiva da mídia, nem por isso deixa de desenvolver
suas próprias distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizada.
(GUATTARI, 1997, p. 14)
Nesse mundo globalizado, estamos vivenciando uma construção social que se quer única, onde
a produção de um conhecimento não está mais condicionado ao local, não há mais fronteiras para os
saberes, comportamentos e produtos. Hoje, podemos estar no Brasil tomando um licor preparado de
uma fruta da marula, de uma árvore típica da savana africana, e assistir à queda na aterrissagem do
último movimento que tirou de Diego Hypólito a chance de ganhar uma medalha nos Jogos
Olímpicos, em Pequim.
“Em poucos minutos qualquer telespectador “viaja” ao redor do mundo, indo dos conflitos na
África a Los Angeles.” (REIGOTA, 2002, p. 25) Nessa era, acontecimentos e informações são
assistidos ou ouvidos por milhares de pessoas em diferentes locais do planeta, ganham uma
assombrosa velocidade de propagação e provocam indignações no público, que são esquecidas com
a mesma intensidade.
Momentos e processos fundamentais da história contemporânea passam a ter sua
duração e continuidade determinadas pelo tempo que esteve em evidência nos
meios de comunicação. O seu início, meio e fim ficam condicionados ao tempo
virtual, definido pelo espaço e pela atenção que lhe foi concedido. (REIGOTA,
2002, p. 26)
Barcelos escreve no livro Educação Ambiental: sobre princípios, metodologias e atitudes
sobre a necessidade de escutar os diferentes saberes, diferentemente de ouvi-los; escutar” vem
do latim auscultare: atentar para aquilo que vem de dentro, ou seja, precisamos parar para refletir,
para suspender a velocidade, para perceber a minúcia. Para experienciar, é preciso estar em estado
de árvore; isto, a poesia o faz.
Podemos dizer, sem nenhum eufemismo, que o ser humano constrói e, ao mesmo tempo,
destrói com uma velocidade muito superior àquela em que construiu. O mesmo artefato que é
utilizado para salvar vidas pode dizimar populações inteiras, citamos como exemplo o emprego de
aviões e helicópteros para transportar pacientes enfermos de locais distantes, sem boas condições
hospitalares ou até mesmo em campos de guerra, onde esses artefatos são utilizados para salvar
muitas vidas. Por outro lado, aviões e helicópteros foram e são utilizados como uma arma destrutiva
em períodos de guerra e conflitos. Outro exemplo podemos extrair do uso de um bisturi; quanto
mais afiado, melhor será o corte desse instrumento. Seu uso poderá salvar muitas vidas, como
94
também mutilar outras mais. Porém, existem máquinas construídas especificamente para a guerra,
mas quem determina seu uso é sempre uma vontade humana.
Esses exemplos deixam claro que o problema não é a técnica em si, mas sua aplicabilidade.
Assim, a tecnologia pode ser ou boa, tudo depende do propósito de seu uso. A tecnociência é o
saber com o qual o ser humano se sustenta e, ao mesmo tempo, introduz todas as esperanças e
expectativas no que se refere ao seu futuro. Meu fado é o de não saber quase tudo./ Sobre o nada
eu tenho profundidades. (BARROS, 2003, p.19)
É nos produtos das tecnociências, tais como a produção de um novo fármaco, uma nova terapia
ou um artefato, que o ser humano aposta suas promessas de uma vida melhor, com mais saúde, com
mais tempo para a família, de cura das doenças e de todos os males advindos da “caixa de Pandora”,
advindos da ideia prometeica, que desafia os limites impostos pela natureza.
A engenharia genética, uma das áreas de maior desenvolvimento no campo científico, teve seu
surgimento em 1972, no emprego das técnicas do DNA recombinante; atualmente, tem como
objetivo a manipulação genética de diversos organismos.
“Falar de engenharia genética é caracterizar um conjunto de processos que permitem a
manipulação do genoma de microorganismos vivos, com consequente alteração das capacidades de
cada espécie.” (CANDEIAS, 1991)
Novas ciências serão produzidas além dessas que conhecemos. Agora mesmo, em algum lugar,
um grupo de cientistas experimenta, testa, descobre um novo fármaco, um novo produto, uma nova
técnica, que em breve estará nas prateleiras, vitrines, ou na primeira página de um site da internet.
Quando fazemos alusão ao conhecimento e ao progresso humano, vistos pelos olhos da
tecnologia, da cibernética e da engenharia genética, por mais que se aperfeiçoem alguns direitos
humanos básicos como moradia, transporte e produção de artefatos, por maiores ou mais exatos que
eles sejam, essa “otimização” é fáustica, pois juntamente com o desenvolvimento tecnológico,
ocorre a caotização dos recursos naturais e uma gritante desigualdade social. Não tem altura o
silêncio das pedras. (BARROS, 1997, p. 17) Não se pode negar que produzir conhecimento e o
transpor em tecnologias requer investimentos vultosos, coisa que somente os altos grupos
econômicos têm condições de fazer.
Sim, porque não basta produzirmos conhecimento cientifico e transformá-lo em
tecnologias e artefatos técnicos. que estarmos, também, atentos para refletir e
decidir sobre quais tipos de conhecimento e de ciência queremos priorizar. Não
podemos esquecer que nem toda possibilidade cientifica e tecnológica deve ou
precisa ser viabilizada. (BARCELOS, 2008, p. 64)
95
A ciência moderna se apoderou dos diferentes espaços sociais, formais ou informais, sendo
legitimada e emancipada nessa presente sociedade, contudo, indiferentemente do rótulo a ser dado,
essa sociedade vem se diferenciando pela técnica em um curto período. Cada vez mais, esquecemos
de valorizar outras formas de saberes, que não necessitam pôr em teste ou experimentar sua
eficácia. O que é chamado de subjetivo não é relevante, o que não é cientifico não tem muita
importância. O poema abaixo confirma a ideia apresentada:
As árvores quase todas foram preparadas
para o exílio das cigarras.
Salustiano, um índio guató, me ensinou isso.
E me ensinou mais: Que as cigarras do exílio
são os únicos seres que sabem de cor quanto a
noite está coberta de abandono.
Acho que a gente deveria dar mais espaço para
esse tipo de saber.
O saber que tem força de fontes. (BARROS, 2007, p. 63)
Tenho certo medo dessa uniformização de saberes e culturas, em razão do esquecimento pela
indiferença e até mesmo pela negação da rica herança cultural de nossos povos ancestrais, no
tocante à sua medicina, à maneira de relacionar-se com a terra, à vivência, à preservação e ao
respeito à natureza, aos costumes e à alimentação advindos dos diferentes grupos étnicos-culturais
africanos, do dialeto, música, dança e do comportamento evidenciados pela cultura caipira e
sertaneja.
4.4.2 Cyber human: do humano ao ciborgue
A espécie humana surgiu na Terra provavelmente dois milhões de anos, quando um dos
primeiros ancestrais simianos começou a caminhar de forma bípede. Séculos se passaram,
civilizações foram edificadas, arruinadas e até mesmo substituídas, e a relação entre homem e
natureza, com algumas exceções, apresentaram gradativamente um arrefecimento na consonância
nesse elo.
Podemos considerar que foi no século XVII, com o estabelecimento do pensamento moderno e
o paradigma cartesiano-newtoniano, em busca de conhecimento e racionalidade, o homem e a
mulher se distanciaram gradativamente da natureza. E nos últimos anos, presenciamos uma natureza
96
representada por máquinas e artefatos que imitam as ações humanas, ou até mesmo aperfeiçoam
essas ações. Esses produtos, dotados de “softwares” e providos de “chips” ocupam cada dia mais o
espaço da natureza. Artefatos dotados de chips” de silício estão inseridos nos mais sofisticados
“brinquedos da modernidade”, desde um simples controle a um computador, dos automóveis aos
aviões. Fazem as funções desde as mais simples e delicadas às mais complexas e rudes, ocupam
locais e lugares inacessíveis ao humano. E, cada vez mais, a AI (inteligência artificial) apresenta
uma evolução que, daqui em diante, poderá subjugar a orgânica.
Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo. (BARROS, 1997, p. 27)
Sabemos que o mecânico está suprindo o orgânico na tentativa de aperfeiçoar sua homeóstase
humana. Para Ashby (apud Moioli, 2008) homeóstase é a habilidade de adaptar-se a uma mudança
contínua em ambientes imprevisíveis, porém, até pouco tempo, já que estamos diante de um período
de virada cibernética, onde o mecânico utilizará pequenas partes orgânicas para realizar suas
funções vitais. Da mesma forma que, hoje, o humano utiliza-se de próteses para enxergar,
locomover, alimentar e para ampliar sua inteligência e viver mais, a máquina fará o mesmo,
utilizando partes orgânicas.
A grande virada deste século será a substituição gradativa dos átomos de carbono pelos átomos
de silício. Isso já vem ocorrendo, um exemplo bem claro disso é a demasiada procura por próteses e
transplantes em que se usa direta ou indiretamente o silício. Essa transformação vem ocorrendo
de forma silenciosa, cautelosa, para que não haja espanto, para que seja vista como um bem. Peças
de silício ganham “design” e praticidade, podem estar no seu computador, máquina fotográfica,
canetas, em uma roupa, em um calçado, e até inseridas no corpo humano, com diversas funções,
como armazenamento de dados e gerenciamento de informações, inclusive controlar e fiscalizar.
Novas denominações começam a ser dadas a esse novo homem e nova mulher dotados de
“chips”, próteses, artefatos mecânicos: Homem máquina, Homo faber, Cyber-Human. Seja qual for
a denominação que daremos a esse sujeito da história, de uma história que está sendo construída,
nesse presente momento e de um futuro que de se construir, o que importa mesmo é o que será
do humano, como ele se comportará com seus semelhantes e com a natureza.
No que o homem se torne coisal corrompem-se nele os veios comuns do entendimento
(BARROS, 2006 p. 62).
97
Nessa narrativa, mais do que um participante, o homem e a mulher são a própria história. Eles
são responsáveis por suas escolhas; se houve escolhas, houve uma ação que resultará positiva ou
negativamente na história humana. O que presenciamos hoje não se pode negar, desculpar, nem
fingir, pois são iniciativas humanas: fanatismo, autoritarismo, fascismo, destruição ecológica,
aniquilamento de povos e cultura, desprezo às minorias. Tudo isso faz parte de escolhas que,
provavelmente, não eram as únicas a serem feitas.
“As coisas não são ruins, nem mesmo a ciência ou a técnica, mas o valor que atribuímos a elas,
fruto de nossas escolhas é que pode dar sentido distorcido. Isto quer dizer que a condição de
moralidade de uma ação está na liberdade de escolha.” (ZANCANARO, 2007. p. 9) Contudo, essa
liberdade de escolha é questionável, pois depende das circunstâncias sociais, políticas e
econômicas. As escolhas continuam sendo feitas. Sim, são escolhas. Mas não daquelas que as
pessoas escolhem com liberdade ou com prazer, no fundo são imposições. “A minha independência
tem algemas.” (BARROS, 1997, p. 55) Por isso, temos constantemente de reafirmar movimentos de
resistência contra as imposições resultantes da inserção tecnocientífica.
Essasescolhas” vão desde a aprovação ou não de uma lei para produção e comercialização de
um alimento transgênico ou a construção de uma nova usina nuclear; essas decisões não são de
crédito apenas do senado ou de um grupo de governantes, que por algum motivo nos representam,
essas decisões são minhas, suas, de cada sujeito dessa história e somos, sim, responsáveis, não pelo
futuro, mas pelo presente, pelo agora.
4.5 Diálogos com Bernardo e o Homem Máquina
O crescente avanço da tecnologia trouxe a ideia do “mito do progresso” e a ampliação crescente
do controle e poder sobre a natureza, facilitando o trabalho, a produção, a locomoção, enfim,
interferindo nos diversos afazeres humanos. Por outro lado, a velocidade e a imprevisibilidade da
inserção da técnica apontou para resultados drásticos, principalmente no que se refere às
consequências ambientais. “O homem-máquina” desencadeou e financiou um progresso puramente
material, automatizando os afazeres, do mais simples ao mais complexo. A dimensão e a dinâmica
desse acontecimento se devem às ciências, que se ocupou de aumentar o poderio humano, na
construção de artefatos, máquinas e técnicas que permitissem produzir mais, em menos tempo e
com um custo menor.
Eu não sou da informática: eu sou da invencionática. (BARROS, 2003, s/p)
98
O ser humano incorporou a técnica de tal maneira que, desde as mais simples tarefas às mais
complexas, recorre à máquina e seus apêndices mecânicos, ficando incapacitado, limitado e
dependente de aparelhos, peças, máquinas e recursos da técnica.
Máquinas automáticas, aparentemente simples, antes presentes nas indústrias, estão presentes
em nossos lares. Aos poucos, vão sendo naturalizadas, como se sempre fizessem parte de nossas
vidas, como se sempre existissem. Antes da década de 1990, ninguém se imaginava na frente do
computador tendo acesso à rede mundial de computadores, se comunicando através de e-mails,
blogs, Orkut ou com um celular à mão que tira fotos, acessa a internet, rádio e troca informações
por meio debluetooth”. Essa nova revolução alterou todo modo de viver e, querendo ou não, vai
determinar algumas direções que modificaram as mais simples relações humanas, interferindo no
presente e no futuro.
A maravilha da tecnologia
Sou um pequeno objeto
posso caber dentro de um simples bolso
Sou também um magnífico projeto
Posso ser levado a qualquer lugar.
O meu tamanho nem se compara com
Minhas inúmeras utilidades
Navego na internet,
Mando mensagens instantâneas,
Tiro até umas fotos,
Ofereço o horário exato
Minha memória cabe dentro de um minúsculo chip
E minha principal utilidade é...
Obviamente, fazer ligações
Simples? Claro, mas...
Enfim, se eu ficar me descrevendo,
Ficarei até amanhã escrevendo
Se você não conseguiu me identificar,
acho melhor se atualizar...
pois eu sou um simples,
99
telefone celular
26
.
Nesse texto, trago a ideia do “Homem Máquina”, presente no livro Bioética e Tecnociências,
de Newton Aquiles von Zuben, que representa o ser humano enquadrado na mesma condição de
máquina ou peça desse artífice, sendo regido pelos mesmos critérios de adaptação, produtividade e
rentabilidade. Numa proposta diferente ao Homem Máquina, está a figura de Bernardo, presente na
poesia de Manoel de Barros, principalmente no poema O Guardador de Águas. Bernardo, como o
próprio poema intitula, é o guardador de águas, zelando por ela como se fosse um pastor de
ovelhas, numa analogia à obra O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, um dos
heterônimos de Fernando Pessoa.
Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rãs o exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto — e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
[...]
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde —
Como a foz de um rio — Bernardo se inventa…
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem. (BARROS, 2006, p. 10)
26
Texto do aluno Eric Yassuo Kataoka, da 6 ª série, da EMEF Professor José Marcello (Salto de
Pirapora), com o objetivo de descrever um objeto.
100
Bernardo não somente guarda as águas, mas também as grandezas do ínfimo: caramujos,
formigas, lagartos, flores e coisas inúteis encontradas no chão, como pregos, ciscos, retalhos e
gravetos.
Vejamos o início do poema de O guardador de águas.
I
[...]De pulo em pulo um ente abeira as pedras.
Tem um cago de ave no chapéu.
Seria um idiota de estrada?
Urubus se ajoelham pra ele.
Luar tem gula de seus trapos. (BARROS, 2006, p. 9)
Bernardo, ao se aproximar das inutilidades, faz poesia, sendo respeitado por seres da natureza,
tais como pássaros, flores e até mesmo o luar. É muitas vezes considerado como um idiota por
muitos que não o conhecem, que não conseguem enxergar o que não está explicito, por aqueles que
buscam apenas a lógica e a razão. Bernardo possui apropriação para latas, conseguindo enxergar o
invisível e dizer o indizível.
Desde criança ele fora prometido para lata
Mas era merecido de águas de pedras de árvores
de pássaros.
Por isso quase alcançou ser mago.
Nos apetrechos de Bernardo, que é o nome dele,
achei um canivete de papel.
Servia para não funcionar: na direção que um
canivete de papel não funciona. (BARROS, 2007, p. 45)
Bernardo é bicho da terra, extraindo dela sua identidade, sendo que até os caranguejos querem
ele para chão. A sabedoria de Bernardo não está no dicionário, afinal Bernardo é homem
percorrido de existências.
Para a sociedade capitalista, Bernardo é um andarilho, um “songo”, enfim, um “Zé ninguém”.
Para o poeta Manoel de Barros, Bernardo é seu “muso” inspirador, glorificado por seu jeito de ser e
agir. Bernardo é o próprio guardador de águas, ele tem o dom de encurtar as águas, ele zela por elas,
101
conversa com a natureza, ele é a própria natureza. O sujeito Bernardo é a representação do
homem/mulher simbólico, com certo grau de comprometimento, digo melhor, de pertencimento
entre o ser e a natureza. Eles não afundavam estradas, mas inventavam caminhos. Essa a pré-
ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. (BARROS, 2008, s/p)
No Tratado geral das grandezas do ínfimo, são apresentados os feitos do andarilho Bernardo.
Ele só fazia coisas desimportantes, Pois Pois, seus feitos são para poesia, não para ciências.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir as vozes do chão
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos cantos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, os
escutamentos de Bernardo.
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para
poeta. (BARROS, 2003, p. 47)
Hottois (1985) complementa: o sentido seria o simbólico: “O ser simbólico deixa o mundo tal
como é; não altera as coisas; o simbólico não rompe a paisagem, não destrói florestas, não manipula
o ser vivo...” (HOTTOIS, 1985 apud ZUBEN, 2006, p. 73)
Bernardo, ente simbólico, utiliza a natureza diferentemente do emprego que dela fazem as
tecnociências. Bernardo, assim como as tecnociências, também ingenha artefatos, contudo,
máquinas de inutilidades, máquinas de fazer pegar no sono, de platinado de mandioca, máquinas
de fazedor do amanhecer.
O mau emprego das tecnociências interfere na paisagem, represando e assoreando os rios,
devastando os campos e a vegetação... Bernardo apenas imita, contempla e se relaciona com a
natureza como parte de si.
Esse Bernardo eu conheço de léguas.
Ele é o único ser humano
que alcançou de ser árvore.
Por isso deve ser tombado
102
A Patrimônio da Humanidade. (BARROS, 2003, s/p)
Numa reportagem do Jornal Gazeta Mercantil, de 4 de junho de 2000, o poeta Manoel de Barros
comenta sobre o misto de personagem e pessoa que é o Bernardo. Ele diz que Bernardo é um
caseiro de sua fazenda, cujo silêncio é tão alto que só os pássaros ouvem.
O grande luxo de Bernardo é ser ninguém. Por fora é um galalau, por dentro não arredou de
ser criança, é ser que não conhece ter, tanto que a inveja não se acopla nele.
Então, percebemos que Bernardo não é somente um funcionário da fazenda, mas um ser
reconhecido pelos caramujos, árvores e pássaros. Estabelece uma identidade que es longe das
importâncias do capitalismo e da submissão imposta pela máquina.
Ele só andava por lugares pobres
E era ainda mais pobre
Do que os lugares pobres por onde andava.
Falou de começo: Quem abandonava a natureza entra a verme.
Aves nutriam por ele deslumbramento de criança.
Ele sabia o sotaque das lesmas
E tinha um modo de árvore pregado no olhar.
[...]
E só pelo olfato esse homem descobria as cores do amanhecer. (BARROS, 2003, p. 49)
A relação de pertencimento de Bernardo à natureza nos lembra em muito o trabalho do artista
plástico Frans Krajcberg, que ao transformar galhos, madeiras e outros fragmentos da paisagem,
resultantes da intervenção antrópica, em uma arte de significâncias, constrói um cenário de
intervenção e crítica ao modelo consumista e capitalista da atual sociedade ocidental. Tanto
Bernardo quanto Frans Krajceberg nos direcionam a diálogos que apontam para outro olhar à
natureza.
Na dissertação de mestrado A Educação Ambiental Através da Arte: Contribuição de Frans
Krajcberg. Lima analisa as contribuições do artista Frans Krajcberg para a Educação Ambiental.
O fogo é a morte, o abismo. O fogo continua em mim desde sempre. A minha
mensagem é trágica: mostro crime. A outra face de uma tecnologia sem controle é
o abismo. Trago os documentos, os reúno e acrescento: quero dar à minha revolta o
103
rosto mais dramático e mais violento. Se eu pudesse pôr cinzas por toda a parte,
estaria mais perto daquilo que sinto. Que haja na minha obra reminiscências da
guerra, no inconsciente, certamente. Com todo este racismo, este anti-semitismo,
não podia fazer outra arte. (KRAJCBERG apud LIMA, 2007, p. 12)
Newton Aquiles von Zuben (2006), de cuja obra tratamos, descreve, de forma argumentativa
e bem fundamentada, a presença das tecnociências nas relações humanas e o conjunto de
possibilidades trazidas pelo sequenciamento do DNA, pela decodificação do genoma, pela
cibernética e pelas novas engenharias. O livro nos apresenta o conceito de uma pós-humanidade e
de homem-máquina. “Fala-se com desenvoltura em “fabricação” de homens ou partes orgânicas,
artefatos biológicos.” (ZUBEN, 2006, p. 19)
A presença de partes inorgânicas, artefatos tecnológicos inseridos na estrutura orgânica,
tornou-se cotidiana. Apesar dos benefícios, nos deixou mais limitados, comprometendo até mesmo
a própria existência. Não tenho competências pra morrer. (BARROS, 1997, p. 45)
“A presença da tecnociência e o seu crescente domínio sobre o homem contemporâneo estão na
origem de uma nova maneira de ser, ainda não totalmente entendida e menos ainda assimilada pelo
ser humano.” (ZUBEN, 2006, p. 128)
Esse é o Homem-máquina. Apresento.
Ele encurta as distâncias pelo uso da Web
constrói protótipos, peças e artefatos.
nasceu e cresceu com tecnologia e tem ela na palma da mão
Tem um computador com internet onde navega ou surfa.
Fala através de fios ou até mesmo sem.
Domina ferramenta de texto, áudio e fotolog.
a imagem é vista não mais pelo olho!
são lentes, câmeras e vídeos
que se espalham pelo wireless
É americano, chinês, inglês ou brasileiro.
Está em todo lugar, em toda parte e ao mesmo tempo
Sem sair do lugar —
Sofwares, wikipedia, blog, orkut — ele inventa…
Outros o copiam e o imitam.
104
É meca, mega, cyber, faber ou trans humam.
(Versão minha, construída por meio da leitura do poema de Manoel de Barros, O Guardador de
Águas).
A tecnociência traz o conceito de máquina, que é produto e fruto da tecnologia, conjuntos de
recursos e equipamentos produzidos pela ciência para facilitar a vida do ser humano. A expressão
“homem-máquina” refere-se ao ser condicionado ao artefato da máquina, formado e organizado por
peças, que podem ser substituídas uma a uma, até chegar ao todo.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas. (BARROS, 2007, p. 79)
“Por ação da tecnologia, a máquina, algumas décadas, deixou de ser entendida como
instrumento com finalidades definidas e expressas pela intenção e pela vontade de quem as utiliza e
incorporou a si mesma, e vem aprimorando cada vez mais a potencialidade de tomar decisões.”
(ZUBEN, 2006, p. 123)
Alguns exemplos de tecnologias expandem os limites humanos facilmente observados nas mais
recentes pesquisas tecnocientíficas, tais como: a cibernética – uma perspectiva de pesquisa surgida a
partir da Segunda Guerra Mundial –, a ciência que se encarrega de produzir máquinas com circuitos
eletrônicos que tem a capacidade de resolver problemas de lógica, teoremas, cálculos geométricos e
algoritmos. Programas que imitam o cérebro humano, muitas vezes ultrapassando a capacidade
humana de resolver cálculos, computadores que superam o ser humano em um jogo de xadrez, bem
como máquinas que são capazes de explorar áreas e espaços remotos além do limite humano. Na
poesia de Manoel de Barros, as máquinas funcionam quando estão paradas.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e
musgo, elas podem um dia milagrar de flores (BARROS, 2001, p.57).
105
A inutilidade das máquinas é o que fascina o olhar do poeta. São as máquinas encalhadas,
enferrujadas, grudadas no chão, destituídas de funcionamento, que podem ser utilidade na poesia.
Todavia, as tecnociências inventam, movimentam e complementam a máquina.
A máquina depende sempre de elementos exteriores para poder existir como tal.
Implica uma complementaridade não apenas com o homem que a fabrica, a faz
funcionar ou a destrói, mas ela própria está em uma relação de alteridade com
outras máquinas, atuais ou virtuais, enunciação não humana”, diagrama proto-
subjetivo. (GUATTARI, 1992, p. 50)
Existe uma relação não só de dependência entre a máquina e o humano, mas de
complementaridade. Ainda é possível enxergar as diferenças e diferenciar o que é orgânico do que é
maquinário, mas não podemos negar que, a cada dia, essas relações são confundidas e fundidas num
mesmo plasma.
“A alteridade homem/máquina está então inextricavelmente ligada a uma alteridade
máquina/máquina que ocorre em relações de complementaridade ou relações agônicas (entre
máquinas de guerra) ou ainda em relações de peças ou dispositivos.” (GUATTARI, 1992, p. 54)
Não podemos negar a intensa metamorfose que se deu nos últimos anos, impulsionada pela
máquina, antes criada, agora passando a criar; antes programada, agora está a programar. A técnica,
aparentemente aliada ao ser humano, começa a exercer certo domínio e poder sobre a humanidade,
ela agora “dita as regras”, controla, agiliza e impõe modelos de ação e de manifestação ao humano.
O poder da dependência excessiva da técnica pode se manifestar pelo uso de um controle remoto,
de um telefone, de um celular, de um computador, para ficar somente nesses exemplos. Poder de
consumo, no qual, para a satisfação de uma aparente necessidade, faz-se o uso da compra de um
artefato tecnológico, que pode nem ser retirado da embalagem.
Se, na antiguidade, a técnica estava adequada à necessidade próxima, na
modernidade a ciência transformou-se em compulsão, num empreendimento que
caminha célere, rumo à dominação da natureza e do próprio homem. O “homem-
faber” assume o lugar central na significação dos fins objetivos do homem. A
técnica ocupa o núcleo do projeto humano, constituindo-se na autoridade e na
afirmação de que todo o sucesso dependerá dela e do máximo controle das coisas.
(ZANCANARO, 1998, p. 57)
Elementos antes considerados supérfluos transformam-se em ferramentas imprescindíveis. É a
máquina ocupando cada vez mais o espaço do homem e da mulher modernos. É cada vez mais
rotineira a comparação entre o ser humano e a máquina; constantemente ouvimos de amigos(as),
professores(as) e alunos(as) essas expressões: “A memória daquele(a) estudante parece de
computador”, “ele ou ela é uma máquina de eficiência”. Tais expressões ocupam frequentemente
106
espaço nas conversas do cotidiano. A natureza ganha características de máquina, e essa ganha
qualidades da natureza.
A ideia de máquina está permeando os diferentes discursos, adentrando no campo educacional.
O ensino cartesiano e newtoniano presente na prática pedagógica de muitos professores e, em
particular, no ensino de Ciências, tem apresentado um conhecimento fragmentado e reduzido à
dimensão de um todo dividido em partes a serem analisadas e estudadas.
Com as tecnologias computadorizadas, o homem está se entregando cada vez mais
a capacidade das máquinas de modificar seu pensamento. Identidades são vividas a
partir de máquinas. O humano se reafirma, pois atrás de mouses, teclados, luvas, na
ponta de fios, cabos, há sempre um homem com a sua energia natural que se funde
á energia das máquinas. O sangue tem o mesmo valor que a corrente elétrica.
(DOMINGUES, 1997, p. 27)
As pesquisas na área de biomedicina, engenharia biológica e genética apontam para um novo
redimensionamento do cérebro humano juntamente com o avanço das pesquisas em neurologia,
robótica e inteligência artificial. Tais estudos direcionam a uma tecnologia que rompe as barreiras
de tempo e espaço, como as recentes descobertas da noção de telepresença (transporto eletrônico de
imagens captadas em diferentes lugares e experimentadas num espaço virtual, podendo ou não
interagir entre si; o cérebro mesmo dentro da caixa craniana se conecta com o mundo por meio de
interconexões, isso possibilitará ligar definitivamente o cérebro ao computador).
“Os que trabalham em Neurociências também não estão sonhando pequeno, por minúscula que
seja a contribuição de cada um. Na pauta, quer-se não menos que entender como o cérebro
funciona, construir máquinas inteligentes e criar interfaces entre o cérebro humano e a máquina.”
(SILVEIRA, 2004, p. 46)
Áreas como as neurociências se esforçam para aperfeiçoar o cérebro humano. Um dos últimos
experimentos trouxe polêmica e criou expectativas na área da biotecnia, robótica e neurociências.
De acordo com Silveira (2004), a Neurociência abre um grande campo de pesquisa e inovações
diante de nossos olhos, saindo da ficção para os laboratórios e indústrias, tornando-se
costumeiramente presente nos lares.
Foi divulgada nos principais jornais do mundo, inclusive no Brasil, a notícia de que uma
macaca, utilizando-se da atividade cerebral, fez um robô humanóide caminhar sobre uma esteira
mecânica. O mais instigante é que a macaca estava na Carolina do Norte, e o robô, no Japão. Em
uma entrevista concedida ao jornal The New York Times, o neurocientista brasileiro da
Universidade Duke, cujo laboratório projetou e executou a experiência, Miguel A. L. Nicolelis, diz
que esta foi a primeira vez em que sinais cerebrais foram utilizados para fazer um robô andar. Tais
experimentos são os primeiros passos rumo a uma interface cérebro-computador. Quando houver
107
mais resultados positivos nas avaliações em animais, a perspectiva futura é de realizar testes em
humanos, com o intuito de permitir que pessoas paralisadas caminhem ao comandar dispositivos
com seus pensamentos. Um progresso importante para as tecnociências que abre um amplo
horizonte para a interface entre cérebro e máquina. "Eles deverão ser capazes de movimentar os
braços com os seus pensamentos", afirma Nicolelis. "Isto é a ficção científica tornando-se
realidade"
27
.
A matéria apresentada acima permite uma maior propriedade em explorar e apresentar o
conceito de homem máquina. Como afirma Nicolelis, já não estamos falando de ficção, mas de uma
realidade, onde máquinas são produzidas com o propósito de estender, ampliar uma possibilidade
humana, como uma espécie de ferramenta adicional, porém, não é apenas uma simples ferramenta
mecânica, ela é dotada de certo nível de autonomia no seu funcionamento.
Silveira (2004) faz coro a esse posicionamento ao afirmar que essa é a direção que tomam as
pesquisas, na possibilidade eminente de conectar o homem à máquina, o cérebro ao corpo
cibernético, amenizando a distância entre o cérebro e o mundo. Esses exemplos não se restringem
ao cérebro, todo o arcabouço esquelético e muscular já está sendo modificado pelo avanço da
biomedicina e a biomecânica no sentido de prolongar a vida útil do corpo, pois o orgânico
envelhece, perde a elasticidade, definha, e o mecânico, representado pelas próteses, dispositivos
eletrônicos e outras extensões tecnológicas, ganha formato e qualidade orgânica, e opera de modo
analógico aos órgãos substituídos, com uma possibilidade menor de desgaste com facilidade de
reposição.
No livro O Fazedor de amanhecer, o poeta apresenta máquinas para usamentos dos poetas:
Sou leso em tratagens com a máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas
prestáveis.
Em toda minha vida é engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
27
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/cbn/capital_150108.shtml>. Consultado em 4 de
maio de 2009.
108
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
Automobilísticas pelo Platinado de Mandioca. (BARROS, 2001, s/p)
O poeta infantiliza a palavra máquina, metaforicamente constrói outras utilidades, como
manivela para pegar no sono, fazer amanhecer e platinar mandioca. Nesse sentido, a máquina tem
serventia.
Nas intervenções e nas leituras de Reigota (2002 e 2007), podemos perceber que a ideia de
medo da tecnologia, em particular das máquinas, teve sua ascendência durante o período da
primeira à segunda guerra mundial, quando aumentou a insegurança ante o poder oferecido por ela
e a característica ameaçadora da presença da máquina. Pensadores, artistas, filósofos e escritores, ao
presenciarem, estudarem e refletirem sobre as atrocidades e barbáries acontecidas durante esse
século, manifestaram-se de diferentes formas nos mais diversos meios de divulgação e
comunicação. Toda produção histórica, filosófica, cultural e artística contribuiu para a construção
de outro conceito em relação à presença e à ação da técnica.
A inserção da técnica pode ser vista de diferentes formas no cinema: isso foi retratado no filme
Metrópolis (1927), realizado por Fritz Lang, ainda quando o cinema era mudo; podem ainda ser
mencionados os filmes: Frankenstein (1931), dirigido por James Whale; O Dia em que a Terra
Parou (1951), do diretor Robert Wise; O Planeta Proibido (1956), com a direção de Fred McLeod
Wilcox; Os Replicantes (1982), dirigido por Ridley Scott; O Exterminador do Futuro (1984), com a
direção de James Cameron; Gattaca (1997), por Andrew Niccol; Homem Bicentenário (1999),
dirigido e produzido por Chris Columbus; a trilogia Matrix (1999), dirigida pelos irmãos Andy e
Larry Wachowski; o filme dirigido por Steven Spielberg, Inteligência Artificial (2001); Eu, robô
(2004) de Alex Proyas. Ficamos com esses exemplos que ilustram uma visão muitas vezes
extremista ou até reducionista da presença da máquina nas relações humanas. Muitos desses filmes
influenciaram minhas representações sobre a relação entre máquina e ser humano. O filme
Frankenstein, o filme Inteligência Artificial e o filme Eu, robô foram, entre vários dos filmes
assistidos, os que mais me impressionaram, sobretudo por abordarem a possibilidade de fabricação
do homem-máquina.
Na ficção, a ideia de máquinas, robôs e andróides ocupando os espaços (ou) humanos está a
cada dia mais presente nas telas do cinema, nos seriados e nos documentários. Os diretores abordam
histórias que sensibilizam, fascinam, intimidam, amedrontam e até mesmo causam abominação das
pessoas; dependendo da faceta apresentada, as máquinas assumem papel de heroínas ou vilãs.
109
Essa “era de ciborgues” não é fruto da ficção de filmes e comerciais de TV. Pessoas
constantemente recorrem aos benefícios da biomecânica, como próteses de titânio, pernas
mecânicas, marcapassos, aparelhos auriculares e lentes de contato. Esses artefatos são produzidos
em larga escala para superar uma deficiência ou até mesmo a estética natural.
“O saber é um fabricar; é um transformar até mesmo a natureza humana.” (ZUBEN, 2006, p.
169)
Não seria nenhum exagero dizer que o ser humano, gradativamente, incorpora características de
uma máquina, ou que a máquina, por sua vez, incorpora características humanas. Essa interface
entre a máquina e o orgânico criou esse novo híbrido, uma simbiose entre mecânico e fisiológico.
Segundo Rifkin (1999), “os pesquisadores no novo campo prevêem que, por volta de 2020, 95%
das partes do corpo humano serão substituíveis por órgãos desenvolvidos em laboratório.”
(RIFKIN, 1999, p. 27)
O orgânico e os sistemas artificiais estão cada vez mais numa estreita simbiose com o
tecnológico, artificial e natural interfaceado ao físico, ao real e ao virtual, ao digital.
“Esta simbiose do homem com a máquina modifica a arte em suas bases estéticas. A máquina,
criação humana, está dando ao homem poderes ultra-humanos.” (TEILLARD DE CHARDIN apud
DOMINGUES, 1997)
As tecnociências concentram seus esforços em buscar a completude do ser humano,
ultrapassando os limites naturais. O poeta Manoel de Barros nos remete a outra reflexão sobre esse
homem e mulher a que aspiramos.
A maior riqueza do homem é a sua incompletude (BARROS, 2002, p. 79).
Manoel de Barros, em sua poesia, traz Bernardo, um misto de personagem e pessoa, como um
contraponto à técnica, à eficácia, ao moderno e ao sofisticado presente na tecnociência. Ele não faz
oposição à máquina. Bernardo não é para ser imitado, ignorado, rotulado e compreendido, é apenas
um ser que vive dos inutensílios, vive para o chão. Bernardo cria uma identidade que aparentemente
se confunde com os seres da natureza.
Bernardo mal conhece a “máquina”. Ele é ser árvore, vive entres os bichos, afinal, Bernardo é
inclinado a quelônio (BARROS, 1998, p. 21).
Bernardo é ser da terra, assim como as árvores têm suas raízes presas a terra, Bernardo se
metamorfoseia em pedra, bichos, vegetais e coisa, assumindo a igualdade com os elementos da
natureza.
110
No livro O guardador de águas, no XII poema, se lê:
Ele tem pertinências para
árvore.
O pé vai se alargando, via de calangos, até ser
raizame.
Esse ente fala com águas. (BARROS, 1998, p. 24)
O personagem Bernardo se apresenta como um ser que está tão ligado à natureza e às coisas
simples, que não se permite o luxo das principais ferramentas, aparelhos e dispositivos apresentados
pelas tecnociências. Manoel de Barros, ao trazer Bernardo e sua maneira de conviver com os entes
da natureza, nos permite indagar, questionar e nos posicionar de forma diferente em relação ao ideal
de ser humano.
Nos poemas, existe uma inversão do humano com os elementos naturais, já que, para Manoel de
Barros, seu ente Bernardo é a natureza com características humanas.
Bernardo
Bernardo já estava uma árvore quando eu o conheci.
Passarinhos já construíam casas na palha do seu chapéu.
Brisas carregavam borboletas para o seu paletó.
E os cachorros usavam fazer de poste as suas pernas.
Quando estávamos todos acostumados com aquele bernardo-árvore
Ele bateu asas e avoou.
Virou passarinho.
Foi para o meio do cerrado ser um arãquã.
Sempre ele dizia que o seu maior sonho era ser um arãquã pra compor o amanhecer
(BARROS, 2001, p. 16).
O personagem Bernardo constrói seu ethos na perspectiva naturalística, pois procura estabelecer
outra relação com a natureza, não de domínio, mas de aproximação e contemplação. No poema
Uma didática da Invenção, de O livro das ignorãças, o poeta utiliza-se do diálogo em sua
plenitude com os seres e coisas. Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor
animal de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto. (BARROS, 1997, p. 17)
111
O homem-máquina e Bernardo são duas concepções divergentes de ser humano, esse não mais
se identifica como Bernardo, aproxima-se mais da ideia de máquina, porém, não se reconhece como
tal. Ao construir diálogos entre Bernardo e o homem-máquina, aos poucos fui percebendo que se
tratava de minha auto-afirmação, carregada de representações, no que diz respeito a minha
identidade e comportamento.
Apresento explicitamente características do que seria um homem-máquina, sobre duas rodas,
em cima de uma motocicleta, ou em frente ao notebook. Não é possível descartar essa ideia de
homem-máquina, pois não me vejo longe da “máquina” (produto, fruto da tecnologia). Ela exerce
uma relação direta na plasticidade e operatividade nas diversas funções executadas no meu dia-a-
dia, porém, imponho limites a tudo isso, pois momentos em que quero me distanciar e resgatar o
tempo de infância, quando a “máquina” era o menos importante.
Nesse momento, me assumo como caipira, matuto, como um Bernardo. Usando meu chapéu
caranda debaixo de uma árvore, tomando tererê e ouvindo moda sertaneja.
O diálogo entre Bernardo e o homem-máquina poderá nos direcionar para a construção de uma
identidade desse novo ser humano, que pelo emprego da técnica, da genética, e da robótica, produza
ciências mais democrática, igualitária e ecológica.
A ideia apresentada por Manoel de Barros, com o personagem Bernardo, nos incomoda,
principalmente no que diz respeito à maneira como esse ser se relaciona com a natureza. Sua
admiração, contemplação e simbiose com o natural, com a vida simples e selvagem, não causa
estranheza e espanto, como também nos fascina, encanta e cativa. Aquele homem falava com as
árvores e com as águas ao jeito que namorasse. Bernardo tem inclinações para as árvores, assim
diz o poeta Manoel de Barros: árvores me começam. (Barros, 2001, p. 32)
Bernardo inventa máquinas de inutilidades, tais como: travador de amanhecer, uma folha de
assobiar, um alicate cremoso, canivete de papel. Vive sem a necessidade de toda tecnologia e
conforto trazidos pelas tecnociências, ele encontra, inventa e reinventa nas coisas mais simples e
banais. Bernardo é o andarilho que fala com pedra, fala com nada, fala com árvores. As plantas
querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho faz poleiro na sua cabeça. (BARROS,
2001, p. 31)
Bernardo é assim: alguém sem riqueza, sem dicionários, sem gramática, sem pertencimentos,
mas livre para entender a natureza, para respeitá-la, para a ela pertencer. Essa relação de
pertencimento às árvores, caramujos, água e chão, a esse ente uma individualidade, uma
identidade, uma sabedoria única, sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. (BARROS, 2001,
p. 69)
112
O Poeta Manoel de Barros constrói personagens sem esplendor, são pessoas simples, que vivem
distante da informática, dos avanços tecnológicos. São pessoas sem pertencimentos, abandonadas,
que podemos encontrar em vários de seus poemas, são eles: o índio guató Salustiano e os
andarilhos: Passo-Triste e Pote Cru, Andaleço, Bola-Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego Preto e
particularmente Bernardo.
Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha
— tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego
Preto etc.
Todos bêbados ou bocós.
E todos condizentes com andrajos. (BARROS, 2000, p. 61)
Na poesia, essas entidades ganham “status” por suas qualidades, por seu modo de agir, pelo
simples fato de existir. Manoel de Barros, no Livro Sobre o Nada, escreve sobre a fisiologia desses
trastes, bocós, ou simplesmente andarilhos:
Penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a fisiologia dos andarilhos. Avaliar
até onde o isolamento tem o poder de influir sobre os seus gestos, sobre a abertura de sua voz,
etc. Estudar talvez a relação desse homem com as suas árvores, com as chuvas, com suas
pedras. Saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer em suas condições
humanas, antes de se adquirir do chão a modo de um sapo. Antes de se unir às vergônteas com
as parasitas. Antes de revestir uma pedra à maneira do limo. Antes mesmo de ser apropriado
por relentos como os lagartos. Saber com exatidão quando que um modelo de pássaro se
ajustará à sua voz. Saber o momento em que esse homem poderá sofrer de prenúncios. Saber
enfim qual o momento em que esse homem começa a adivinhar. (BARROS, 2001, p. 84)
Esses andarilhos que Manoel de Barros tanto estima são homens, mulheres e crianças:
filósofo(a)s, bêbado(a)s, mendigo(a)s, bocós, maltrapilhos, enfim, homens e mulheres pobres,
coitados, analfabetos, resto de uma sociedade que os ignora, finge não enxergar, que não os
considera. Fruto de uma mediocridade do capitalismo. Os avanços tecnológicos, as engenharias, a
informática etc., não os favorecem. Em geral, desconhecem ou fingem desconhecer esses senhores,
senhoras e crianças que vivem de esmolas, vivem dos restos encontrados ao lixo.
No poema O Andarilho, encontrado no Livro Sobre o Nada, Manoel de Barros apresenta um
outro andarilho.
113
Eu já disse quem sou Ele.
Meu nome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam. (BARROS, 2001, p. 85)
O ser humano apresentado por Manoel de Barros vive das coisas mais imprestáveis,
insignificantes e ínfimas, que podem ser encontradas no chão, na lama ou até mesmo no lixo. Isso
pode ser lido no poema Teologia do Traste, onde astuciosamente o poeta nos provoca para outras
importâncias – as dos trastes.
As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvos da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
114
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são luz do espírito – a gente sabe.
Idéias luminosas — a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm.............................................................
........................................................................................ Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem. (BARROS, 2004, p. 47)
Poderíamos fazer um contraponto ao que o poeta escreve com a música “Metáfora”, de Gilberto
Gil:
METÁFORA
Uma lata existe para conter algo,
mas quando o poeta diz lata
pode estar querendo dizer o incontível.
Uma meta existe para ser um alvo,
mas quando o poeta diz meta
pode estar querendo dizer o inatingível.
115
Por isso não se meta a exigir do poeta
que determine o conteúdo em sua lata.
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
pois ao poeta cabe fazer
com que na lata venha caber
o incabível.
Deixa a meta do poeta, não discuta,
deixe a sua meta fora da disputa,
meta dentro e fora, lata absoluta,
deixa-a simplesmente metáfora.
(Gilberto Gil/ Um Banda Um)
A música Metáfora pode dialogar com o poema Teologia do Traste. Gilberto Gil descreve um
possível significado do uso da palavra lata pelo poeta. A lata é mais uma metáfora que o poeta
Manoel de Barros nos apresenta para descrever as coisas simples que não tem descrição científica,
que não apresentam nenhuma significância para a tecnologia. O apego às coisas e pessoas pobres,
suficientes, concretas, simples, jogadas e desprezadas ganha a metáfora de uma lata.
Andava por lá um homem que fora desde
criança comprometido para lata.
Andava entre rã e borboletas
Me impressionou a preferência das andorinhas
por ele.
Era um sujeito esmolambado à feição de ser
apenas um trapo.
Percebi que o homem sofria por dentro de uma
enorme germinação de inércia.
Uma inércia que até contaminava o seu andar
e os seus trajos. (BARROS, 2007, p. 37)
O paradigma apresentado pela ciência sistemática não procura construir seus saberes voltados
para o traste, o que mais interessa é a ruptura dos limites impostos pela natureza, a busca de
116
construir artefatos e saberes que permitam viver mais e melhor, com ou sem a natureza. A natureza
não é mais orgânica, é híbrida. Plantas e animais são quimeras geradas pela transgenia.
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam. (BARROS, 2001, p. 53)
Com avanço das ciências “duras” Física, Química, Biologia, Medicina —, a natureza perde a
dimensão do sagrado e puro. Ela pode ser alterada, modificada, sem nenhuma restrição. Nessa
condição, tudo que existe na natureza deve ter uma funcionalidade, caso não tenha ou não seja
conhecida, torna-se inviável sua sobrevivência. É comum escutarmos de amigos, professores e
alunos perguntarem para que servem determinadas espécies como os sapos, pernilongos, moscas,
baratas etc.
Achava que a partir de ser inseto o homem poderia
entender melhor a metafísica. (BARROS, 2001, p. 101)
Mal sabem que esses e outros insetos, então denominados “pragas”, estão no planeta desde o
período terciário, da era Cenozóica, sendo a base da cadeia alimentar. Muitos insetos, como os
pernilongos, atuam como polinizadores. Se eles hoje invadem as residências, causando transtorno, é
porque, antes, invadimos, desmatamos e queimamos vales, florestas, cerrados, ambientes de
moradia e abrigo dessas espécies. A extinção dessas espécies, ou de qualquer outra, implica,
posteriormente, a nossa. Essa ecologia de insetos e a descrição de sua importância na natureza não é
nenhum demonstrativo de sua funcionalidade ou uma tentativa de justificar ou absorver os insetos
ditos “pragas”.
117
Borboletas
Borboletas me convidam a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta —
Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de uma
borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul. (BARROS, 2000 p. 59)
O cantor e compositor Luis Melodia musicou o primeiro poema do livro Retrato do Artista
Quando Coisa. A inspiração para a musicalidade é insana, ilógica, delirante, assim como na poesia
manoelina, onde palavras arejam. Assim como minhocas arejam a terra, poetas a linguagem.
(BARROS, 1997, p. 59)
Borboletas
Já trocam as árvores por mim
Insetos me desempenham
Já posso amar as moscas
Como a mim mesmo
Os silêncios me praticam
De tarde
Um dom de latas velhas
Se atraca em meu olho
Mas eu tenho o predomínio
Por lírios
Plantas desejam a minha boca
118
Pra crescer por cima
Sou livre
Para o desfrute das aves
Dou meiguice aos urubus
sapos desejam ser-me
Manoel de Barros e Luis Melodia apresentam pertencimento aos seres que são desprezados,
ignorados e até mesmo odiados, por aqueles que não compreendem e não conseguem amar as
moscas como a si mesmo, que não enxergam o cheiro do sol, por aqueles que não veem o mundo
como uma borboleta. E poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de uma
borboleta. Ali até o meu fascínio era azul.
Levantei essa provocação para um discurso ainda maior, no sentido de repensar nossos
conceitos, valores e práticas. Para muitos, a existência de uma determinada espécie deve estar
atrelada a sua utilidade, de preferência, que beneficie diretamente a espécie humana, uma visão bem
próxima ao pensamento cartesiano, instrumentalista e racional presente na Ciência Moderna desde o
século XVII.
Assim, o paradigma mecanicista subjacente à Ciência Moderna, influenciado pelo
antropocentrismo, utilitarismo e instrumentalismo, pressupõe a natureza como um
sistema mecânico capaz de ser controlado, manipulado e transformado, visando
servir exclusivamente aos desígnios do ser humano. (CUNHA, 2005, p. 13)
É pelo que dizem essas vozes que a educação ambiental poderá cada vez mais ocupar espaços
sociais, políticos e pedagógicos, podendo, assim, apresentar referenciais teóricos, metodologias e
práticas direcionadas à valorização dos seres e saberes.
119
Cérebro Eletrônico
(Marisa Monte)
O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Faz quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar
Se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar
Quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões
De carne e osso
Eu falo e ouço.
Eu penso e posso
Eu posso decidir
Se vivo ou morro por que
Porque sou vivo
Vivo pra cachorro e sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
No meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo
Sou muito vivo e sei
Que a morte é nosso impulso primitivo e sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
*Bonecos de Manoel de Barros
120
5 – A Educação Ambiental e os novos paradigmas.
“Onde há perigo cresce também aquilo que salva.”
(HÖLDERLIN apud ZUBEN, 2006, p. 31)
5.1 Paradigma científico moderno
Valores, mitos, técnicas e crenças que reforçam e aperfeiçoam o ideal de progresso, baseado no
avanço das tecnociências e da biotecnologia, e compõem o que chamo de paradigma científico
moderno.
De acordo com Kuhn (2006), o conceito de paradigma se relaciona à atividade de pesquisa e ao
conceito de “ciência normal”. “Tendo, pois, a pesquisa, que caracteriza a ciência normal, como base
de realizações científicas passadas, paradigma nada mais é do que essas realizações partilhadas e
consolidadas entre uma comunidade. [...] Esses paradigmas são legitimados pelos manuais
científicos e apreendê-los constitui tarefa de todo iniciante numa ciência normal.” (CASTANHO,
2008, p. 31)
O livro As três ecologias, de Guattari (1997), revela um período marcado por intensas
transformações técnico-científicas e, em contrapartida, um mundo que se deteriora lentamente.
Debruçar-se sobre a subjetividade seria a melhor alternativa para a construção de novas práticas
sociais, novas práticas de relação com o outro, para uma ressingularização individual e coletiva. “O
que quer que seja, parece-me urgente desfazer-se de todas as referências e metáforas científicas para
forjar novos paradigmas que serão, de preferência, de inspiração ético-estética.” (GUATTARI,
1997, p.18).
A crença cega na tecnologia leva o humano a apostar na inserção da máquina em espaços antes
humanizados ou orgânicos. A rapidez, a qualidade, a padronização e a produção em série legitimam
o discurso da tecnologia e da industrialização como sinônimos de desenvolvimento social,
econômico e ecológico.
Um ou outro aparato tecnológico todo urbanóide possui, até mesmo quem mora na área rural.
Porém, vejo que há limites para o uso e aquisição desses aparatos, temos de ser resistentes ao apelo
gritante da indústria tecnológica. É na Educação Ambiental que poderemos criar condições de
resistência. Reigota (1999) aponta essa possibilidade como “criação de espaços de resistência s-
modernos”.
“A educação em geral e a educação ambiental em particular, baseada nos paradigmas da
globalidade (pensamento global e ação local e pensamento local e ação global), no diálogo de
121
culturas, saberes e gerações, são condições fundamentais da pós-modernidade de resistência.”
REIGOTA, 1999, p. 66)
Assim, os principais desafios à práxis ecologista está relacionado ao modelo de industrialização
adotado nos países do norte, como também nos países latinos, em particular o Brasil,
principalmente durante o período do “milagre econômico”, em que percebemos um expansivo
aumento dos problemas ecológicos devido à urbanização acelerada, levando a um ascendente
consumo das fontes energéticas, implicando a construção de barragens, hidrelétricas e usinas
nucleares. Não se pode deixar de mencionar a devastação do cerrado e das matas, método utilizado
para criar terrenos adequados à implementação da monocultura e da criação de gado nos extensos
latifúndios.
Mosca dependurada na beira de um ralo —
Acho mais importante do que uma jóia pendente.
Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos
que os egípcios faziam
acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.
O homem que deixou a vida por sentir um esgoto —
Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.
Aliás, o cú de uma formiga é também muito mais
importante do que uma Usina Nuclear.
As coisas que não têm dimensões são muito importantes. (BARROS, 2001, p. 55)
Nas últimas décadas, o mundo tem sido assolado por vexatórias crises que lastrearam as práticas
sócio-culturais e político-econômicas. Essas práticas vêm ocasionando a poluição e a degradação
dos recursos naturais. Vivemos em um mundo de incertezas, diversos acontecimentos no Brasil e no
mundo, tais como tempestades, furacões, queimadas, descongelamento das calotas polares, são
divulgados pelos meios de comunicação em massa. Mostram uma natureza que perdeu sua
estabilidade devido à ação antrópica. Diante destes acontecimentos, cada vez mais observo que o
constante crescimento dos ideais conservacionistas e naturalistas, nos últimos anos, pouco
122
contribuiu para uma significativa melhora dessa problemática. Acredito que a educação construída
na base do diálogo entre os saberes e práticas possa afirmar metas, possibilidades e ações para
reverter o esfacelamento da natureza.
Os avanços das macro e micro ciências abrem novos campos e novas direções para o
desenvolvimento da espécie humana, aproximando a criatura-homem do seu criador-Deus, no que
diz respeito à possibilidade de modificar, melhorar o ser humano e intervir na natureza. Porém, sua
soberania e altruísmo fizeram com que o homem se distanciasse das questões sociais.
É evidente que uma responsabilidade e uma gestão mais coletiva se impõem para
orientar as ciências e as técnicas em direção as finalidades mais humanas. Não
podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos aparelhos de Estado
para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios, rígidos no
essencial pelos princípios da economia de lucro. Certamente seria absurdo querer
voltar atrás para tentar reconstruir as antigas maneiras de viver. Jamais o
tratamento humano ou o habitat voltarão a ser o que eram poucas décadas,
depois das revoluções informáticas, robóticas, depois do desenvolvimento do gênio
genético e depois da mundialização do conjunto dos mercadores. (GUATTARI,
1997, p. 24)
A natureza não é mais a mesma, com esse esfacelamento do patrimônio natural, histórico,
cultural e social (pois o meio ambiente não é uma concepção apenas naturalista, de acordo com a
qual a natureza estaria separada das relações sociais e culturais) pela presença da técnica. Desde já,
precisamos de uma tecnologia “do bem”, que possa reparar, evitar, interromper os danos trazidos
pelo mito do progresso. Precisamos de uma educação mais holística, mais ecológica, que permita a
construção de um cidadão que saia da apatia, da inércia, para posicionar-se, comprometer-se e agir
nas várias questões ambientais.
Achava que os passarinhos
são pessoas mais importantes
do que aviões.
Porque os passarinhos
vêm dos inícios do mundo.
E os aviões são acessórios. (BARROS, 2003, s/p)
Com a dominação exercida pelo poderio tecnocientífico, poucas são as culturas que são
escutadas, consideradas, respeitadas, valorizadas ou atendidas nas mais simples reivindicações de
sobrevivência, não apenas física e biológica, mas histórica e culturalmente construída.
123
Não somente as espécies desaparecem, mas também as palavras, as frases, os
gestos de solidariedade humana. Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma
camada de silêncio as lutas de emancipação das mulheres e dos novos proletários
que constituem os desempregados, os “marginalizados”, os imigrados.
(GUATTARI, 1997, p. 27)
Com a sistematização dos saberes, tivemos a fragmentação de ideias, culturas e, por fim, um
reducionismo ontológico nas questões ambientais. O perigo da ideia trazida pela fragmentação é de
incorporar a concepção que separa o homem em peças de um sistema, reduzindo-o a números e
siglas, que o objetivariam.
No que o homem se torne coisal corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
(BARROS, 2006, p. 62)
O poder da técnica e da operatividade está no poder de paralisar a capacidade de reflexão. O
homem e a mulher percebem certas mudanças na dimensão social, econômica, política e até mesmo
ética, porém, não são capazes de se posicionarem a tais mudanças, ficando na passividade, na
inércia, ou melhor, no comodismo. O intrigante é que mesmo com o advento e avanço das
tecnociências, o ser humano continua o mesmo, estruturando a velha sociedade humana. Torna-se
necessária a construção de uma outra mulher e um outro homem que possam lidar com os abusos e
com as ações desumanas do poder técnico-cientifico.
Em contrapartida, as tecnociências carregam o domínio do possível, da plasticidade, apontando
o ser humano como ser passível de uma manipulação, no qual não limites. “Deve fazer tudo o
que é possível ser feito.” (ELLUEL, 1977 apud ZUBEN, 2006, p. 177)
Para as tecnociências, proibir pesquisas na área da biotecnologia e engenharia genética e
robótica é limitar o ser humano de uma vida mais saudável, mais confortável. É negar o direito da
liberdade, da escolha entre querer ou não usufruir desse avanço, dessa nova possibilidade.
5.2 Células-tronco
Pesquisadores, pesquisadoras e cientistas apostam nas pesquisas com as células-tronco, vistas
como promissoras para encontrar a cura de diversas doenças. Essas pesquisas devem prosseguir,
pois isso economizaria em muito os bilhões de reais investidos em saúde. As células-tronco têm um
importante papel a ser desempenhado, à medida que apresentam o potencial de originar qualquer
tipo de células. Por outro lado, as pesquisas com células-tronco causam conflitos éticos que nascem
da ciência, por usarem células embrionárias que, seriam consideradas potencialmente vivas. Logo,
124
argumentam opositores, o embriãotem seu DNA completo, e representa, portanto, “uma vida em
potencial”.
Vem aí a dificuldade maior em responder à grande dúvida da humanidade, que é: quando inicia
e quando termina a vida. A Biologia, a Filosofia e a Religião se envolvem com essa dúvida, enfim,
a questão é mais complexa do que parece. Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo, mas
sobre as pequenas eu sei menos. (BARROS, 2003, s/p) Diante de tantas provocações, vejo que está
na hora de começar a pensar e estabelecer consensos antes que as decisões sejam tomadas.
Em maio de 2008, duas leis importantíssimas foram aprovadas no que diz respeito às
experiências científicas. O senado aprovou por unanimidade o projeto de Lei Federal 93/08, Lei
Arouca, que regulamenta o uso de animais em experiências científicas e, no mesmo mês, foi votada,
no Supremo Tribunal Federal (STF), o artigo da lei (11.105/05) Lei de Biossegurança, que deu o
parecer positivo à utilização de células-tronco nas pesquisas voltadas à terapia gênica. O mais
intrigante é que boa parte da população não foi consultada, e muitos não ficaram sabendo de tal
aprovação. Diante disso, desconsiderou-se a relevância da nossa participação nas decisões das
tecnociências e o direito de opinar e decidir.
Em uma busca na internet, no sítio acadêmico Scielo e outras revistas de divulgação científica,
podemos encontrar trabalhos que apontam viabilidades, como também complicações no que diz
respeito ao uso das células-tronco.
Escassos trabalhos de investigação têm abordado a utilização das células-tronco no
tratamento de doenças em humanos, justificando a persistência de grandes
incertezas a respeito das reais potencialidades das células-tronco tanto
embrionárias como somáticas para o tratamento de doenças específicas. (ZAGO &
COVAS, 2004, p. 7)
A pressa nesse momento será a principal inimiga da ciência. Medidas de cautela e a prudência
devem ocupar o cenário das pesquisas. Pouco se sabe sobre o ser humano no que diz respeito à
terapia gênica.
Apesar do enorme potencial dessas células, não podemos superestimar sua eficácia. “Embora as
células-tronco embrionárias possuam considerável potencial terapêutico, vários obstáculos precisam
ser superados antes de qualquer aplicação clínica.” (ZAGO & COVAS, 2004, p. 7)
Estamos começando a escrever apenas o primeiro capítulo de uma história que definirá o
caminho da humanidade, sem nenhum exagero da palavra. Não poderemos definir as próximas
páginas dessa história se nos basearmos apenas em uma concepção, seja ela teocrática ou
tecnocrática.
125
Arent (1993, apud ZUBEN, 2006, p. 179) diz: “Não basta armazenar informações ou ter
conhecimentos científicos a respeito da natureza ou da dinâmica interna das tecnociências; é
fundamental compreendê-las”.
Ainda sabemos muito pouco sobre essas células, sabemos que elas têm um enorme potencial de
cura, contudo não sabemos como elas podem reagir, pois somos diversos geneticamente. Antes de
qualquer aplicabilidade no humano, seria melhor investir nas pesquisas in vitro e no embasamento
teórico.
A reconfiguração apresentada pelos agenciamentos genéticos e a transição do orgânico para a
máquina pela neurociência terão impactos políticos, econômicos e ecológicos.
A mulher e o homem contemporâneos, por mais ínfima que seja a sua presença no
universo, por mais que a sua capacidade reprodutiva natural se encontre ameaçada
pela clonagem genética e que a sua inteligência e capacidade de raciocínio sejam
ironizados pela tecnologia,m diante de si os desafios da transmutação da noção
de vida e a responsabilidade coletiva de sua preservação, não pelos aspectos
morais, mas sim pelo principio básico de sobrevivência biológica. (REIGOTA,
2002, p. 29)
O emprego das tecnociências, nas diversas áreas da medicina, modifica o ser humano como ser
orgânico para um ser cibernético, são múltiplas possibilidades, desde a implantação de próteses até
a implantação de microeletrodos no cérebro humano, interferindo na nossa maneira de ver e sentir o
mundo. As interferências são diversas e as possibilidades são infinitas na nova era da técnica.
“Algumas mães teriam a chance de conhecer seus filhos em tubos de ensaios e gerá-los em
úteros artificiais fora do corpo humano para evitar os transtornos da gravidez e para assegurar um
ambiente seguro e transparente através do qual se poderia monitorar o desenvolvimento do bebê.”
(RIFKIN, 1999, p. 3) Isso permitiria uma possível correção de algum defeito genético ou até
mesmo o ajustamento de uma característica de acordo com os interesses dos genitores, modelando
de acordo com as exigências do mercado ou da sociedade atual.
O amor
Fazer pessoas no frasco não é fácil
Mas se eu estudar ciências eu faço.
Sendo que não é melhor do que fazer
Pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
126
(No jirau é coisa primitiva, eu sei,
mas é bastante proveitosa)
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso pra nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro. (BARROS, 2001, s/p)
Manoel de Barros, em sua obra Retrato do Artista Quando Coisa, o homem como um ser
incompleto.
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado. (BARROS, 2007, p. 79)
Manoel de Barros dialoga com as palavras, fazendo delas poesia neste trecho de O livro Sobre
o Nada:
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando desejo contar nada, faço poesia.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário (p. 69).
5.3 A manifestação do Cyborg
O termo cyborg é utilizado pela bióloga americana Donna Haraway, em um artigo então
chamado “Cyborg Manifesto” (1991). Nesse artigo, a autora reposiciona o humano a um cyborg,
denominação dos chamados organismos cybernéticos. Esses são máquinas com dispositivos
protéticos que, em muitos casos, apresentam estruturas semelhantes às humanas. Muitas vezes, é
uma estrutura mecânica que não só lembra um membro ou um órgão como executa suas funções,
imitando o movimento, a fala, até mesmo a inteligência. Os produtos tecnológicos e artísticos,
segundo Haraway (1991), são componentes de uma virada cybernética que pode ser datada a partir
dos anos 1950. Haraway considera o ser humano como uma espécie de transição da descendência
animal a um organismo cybernético.
127
Para Haraway, cyborg seria um organismo cibernético híbrido, um pouco máquina,
um pouco criatura (humana), quase relaciona não apenas com a realidade social,
mas também com a ficção. (Haraway se refere aqui a uma ficção que é resultado
das lutas dos movimentos feministas das duas últimas décadas, o que chama
"experiência feminina". Não abandono por completo este sentido, mas a ele agrego
o sentido literário.) No final do século XX, nosso tempo, um tempo mítico, somos
todos quimeras, seres híbridos teorizados e fabricados ao mesmo tempo como
máquinas e organismo, em suma somos cyborgs. (CABRAL, 1998, p. 85)
A ideia da implementação do cyborg não seria possível sem os avanços da robótica, em
particular das neurociências. Essa área das ciências invadiu todos os campos, das ciências
sistemáticas às ciências humanas. Esse saber está permitindo fazer upgrades do cérebro humano
para máquina, aperfeiçoando o funcionamento do cérebro eletrônico positrônico termo criado
por Isaac Asimov, escritor do clássico Eu-Robô.
A ideia de um robô como algo mecânico mas com características humanas, é fruto da ficção,
porém, convivemos com eles, como a máquina de lavar, o caixa automático do banco, o
semáforo... Mas nada se compara aos robôs produzidos pelo Japão e Coréia, robôs andróides que
realizam os afazeres humanos. Estamos tomando consciência de que é muito difícil “dominar o
domínio!” (ZUBEN, 2006, p. 224)
Com a perspectiva de um futuro incerto, paramos. Essa atitude defensiva tem o intuito de
construir questionamentos heurísticos sobre as bioengenharias e as tecnociências. Agimos, pois não
mais tempo para ficar somente parado, assistindo assim, o desmontamento da natureza humana
pelas tecnociências. Inertes, vendo “chips” de silício, espalhados por todo canto.
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel? (ANDRADE, 2002, p. 28)
Toda técnica construída deve ser favorável à sociedade, não o contrário. Não queremos ser
condicionados pela máquina, muito menos pela informática da dominação. Não queremos a
subordinação da humanidade natural à humanidade geneticamente alterada. Precisamos romper esse
ideal moderno de sociedade preso à prometeica ideia de sucesso.
Todo o conhecimento deve se ater responsavelmente à construção de saberes que edifiquem as
relações humanas, para que o ser humano não seja um meio, mas um fim, e nunca desvalorizar,
humilhar o outro, seja ela ou ele diferente ou semelhante a você. O outro tem que ser visto como um
complemento, no qual a minha realização não se faz sem a presença da realização e afirmação de
128
outrem como cidadão. Toda essa relação fica muito clara quando nos aproximamos dos estudos e
ensinamentos de Martin Buber, no diálogo entre eu-tu e eu-isso.
5.4 Ética e Direitos Humanos: avanços e conquistas
Ao apresentar o assunto proposto, não procurarei realizar uma análise histórica sobre a origem
da ética, tampouco o surgimento do que podemos chamar “Direitos Humanos”. Procuro abordar
algumas considerações que poderão fomentar e aguçar a importância da ação e da nossa
intervenção, usando como fundamento a ética, na tentativa de construir direitos, valores e atitudes
que permitirão garantir a integridade daquilo que chamamos de “humano”.
Antes de adentrar no conceito de direitos humanos, torna-se relevante entender de que humano
estamos falando. Ser fruto de uma evolução cósmica, surgida com o “Big Bang”, descendente do
animal, evoluído gradativamente dos símios para novas espécies de hominídeos até chegar ao
“sapiens”, ou podemos entender o homem/mulher como um ser cultural, mais do que natural.
Num fragmento de poema extraído de O livro das Ignorãças, Manoel de Barros descreve
metaforicamente a origem do mundo, dos seres e do ser humano.
O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que
primeiro em água e luz. Depois árvore. Depois
lagartixas. Apareceu um homem na beira do rio.
Apareceu uma ave na beira do rio. Apareceu a
concha. E o mar estava na concha. A pedra foi
descoberta por um índio. O índio fez fósforo da
pedra e inventou o fogo pra gente fazer a bóia.
[...](Rogaciano era índio guató e me contou essa
Cosmologia). (BARROS, 1997, p. 95)
“Concordamos com esta linha de pensamento. Entendemos que o ser humano é, ao mesmo
tempo, um Ser biológico e um Ser cultural, produto de toda a formação construída no decorrer de
sua trajetória de vida.” (KURAMATO, 2000, p. 6)
Nesse sentido, o biológico e o cultural completam o ideal de homem e mulher, pois sem
construção cultural, não teríamos evoluído na linguagem, na arte e na técnica, seríamos apenas
símios, sem a estrutura biológica que nos permitiu andar sobre duas patas, falar, pensar, adquirir
129
consciência, sem o cérebro, que permitiu conectar, comandar e organizar os sentidos, bem como o
intercâmbio entre corpo, mente e cultura.
O processo de aculturação humana não se construiu individualmente, foi construído com o
outro, numa relação de reciprocidade, numa estrutura de comunidade. Nessa construção,
poderíamos entender como a ética se estabelece afirmando um pacto do “eu-outro”.
Esses movimentos são a construção e a evolução dos valores humanos, os quais
não podem ser encontrados nos códigos genéticos, não são identificáveis nos
DNAs, pois são produtos de uma cultura, frutos de uma longa experiência e
tradição humana. Dentro desse processo evolutivo, não tivemos desde inserido
num código genético de valores, porém, potencialmente deixou-nos a capacidade
de adquiri-los. Por isso, a ciência nunca isolará um valor ético no laboratório.
(KURAMATO, 2000, p. 11)
Num pacto de compromisso, promovido por uma reivindicação social, em processos árduos,
movidos por conflitos, revoltas em busca do ideal de justiça, gradativamente foram afirmados
deveres e responsabilidades para com o ser humano. No decorrer da história, foram estabelecidos
legados como liberdade, igualdade, fraternidade, autonomia e, mais tarde, responsabilidade. Para
isso, a humanidade teve de instituir leis, regimentos, tratados, acordos, códigos e declarações, e
criar instituições que pudessem garantir os compromissos mencionados acima.
No sentido de valorizar o que há de mais respeitável no humano, instituíram a “Organização das
Nações Unidas (ONU)”, em 1945, o “Código de Nuremberg” (1947), a “Declaração dos Direitos do
Homem” (1948), o “Relatório de Belmont” (1974) e a “Carta das Responsabilidades Humanas”
(2002), para ficar somente nesses exemplos.
Dentre essas confirmações sociais e políticas, conquistadas em árduo e longo processo histórico,
preferi aprofundar a Carta das Responsabilidades Humanas, pois construo esse texto dialogando
com os seus princípios.
5.5 A Carta das Responsabilidades Humanas
O invasivo agir antrópico ameaçando a diversidade das culturas, da fauna e da flora e as
diversas perturbações ao ecossistema, pondo em risco o futuro do planeta, levaram à iniciativa, no
plano individual e coletivo, de milhares de pessoas, em mais 115 países, que constituíram redes em
um mundo cada vez mais complexo e interdependente com intento de enfrentar os amplos desafios
desse século e assegurar que todos os seres humanos tenham uma vida digna, harmônica e de
equilíbrio com a natureza. A Declaração dos Direitos Humanos, a Carta das Nações Unidas e agora
a Carta das Responsabilidades, como um terceiro pilar que sustenta, garante e promove a defesa dos
130
direitos e das responsabilidades e a diversidade cultural, linguística, política, geográfica e ecológica.
Diferentemente do proposto pela Declaração dos Direitos Humanos, a Carta das Responsabilidades
Humanas versa sobre as responsabilidades em face dos desafios e ações humanas, na tentativa de
reafirmar um novo pacto do homem e da mulher para as questões sociais, políticas e ecológicas.
Se todos os seres humanos podem, igualmente, reivindicar seus direitos humanos,
suas responsabilidades são proporcionais às possibilidades de que dispõem. Quanto
mais alguém dispõe de liberdade, acesso à informação, saber, riqueza e poder, mais
terá a capacidade de exercer responsabilidades e a obrigação de responder por seus
atos. (CARTA DAS RESPONSABILIDADES HUMANAS, p. 9)
A noção de responsabilidade não está somente atribuída às ações que faremos ou que estamos
fazendo, mas também aos danos causados de forma coletiva no passado, na tentativa de tentar
repará-los, dentro do possível.
A “Carta das Responsabilidades Humanas” se apresenta como um importante documento que
permite direcionar ações frente aos desafios desse século, além de um texto de grande relevância
para a educação ambiental e a educação em geral, exatamente porque permite a construção de
diálogos entre todas as formas de saberes e práticas que compartilham das mesmas preocupações
em relação à produção tecnocientífica. Uma educação construída no projeto da responsabilidade é o
que projetamos.
Desta responsabilidade fundamental decorre a necessidade de criar e preservar um
lugar para os outros povos e as outras formas de vida. Esse lugar e essa
responsabilidade são compartilhados de formas variadas de um contexto para o
outro porém, em todos os lugares, a preservação do lugar do outro e das outras
formas de vida constituem uma parte integrante da vida em si. (CARTA DAS
RESPONSABILIDADES HUMANAS, p. 7)
Nesse movimento, em que o respeito ao outro e a outras formas de vida que devemos vivenciar
passa a relevar na prática de educação e educação ambiental em particular. A “Carta das
Responsabilidades” traz à educação ambiental subsídios para edificação de uma educação em que
se aspire à liberdade, dignidade, ética, solidariedade, justiça e paz. É de nosso exercício prático,
como educadores, permitir a instituição dessas aspirações. Somos, sim, responsáveis, como
professores, educadores, cidadãos, agentes políticos esses sujeitos, na minha perspectiva, se
compõem em um só indivíduo —, pela interferência numa prática que se consolide nessa paisagem.
Os 10 princípios apresentados pela Carta das Responsabilidades” se sintetizam em um dever
ético em relação à nossa ação na natureza, às possibilidades trazidas pela tecnologia, pela falsa ideia
de progresso. A penúltima responsabilidade foi a que mais me chamou a atenção, pela capacidade
131
de responder a uma das principais provocações que apresento no início desta dissertação. O que
delimita os saberes? Qual é o objetivo de todo o conhecimento produzido e acumulado?
* Os saberes e as práticas fazem sentido quando compartilhados e usados em prol da
solidariedade, da justiça e da cultura da paz.
Cabe à educação construir sua prática coerente aos princípios apresentados acima, dessa forma,
projetará outra ciência, que não mais está presa ao pragmatismo conteudista, mas aspira à formação
íntegral do indivíduo.
Caminhoso em meu pântano,
Dou num taquaral de pássaros
Um homem que estudava formigas e tendia para
Pedras me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO
CONHECIDO: Só me preocupo com as coisas
Inúteis. (BARROS, 1998, p. 9)
Não podemos perder a dimensão interdisciplinar da bioética, que é uma ferramenta
importantíssima, não na prática pedagógica, mas nas práticas em geral. Leo Pessini (1996), no
livro Problemas atuais da Bioética, nos adverte: a bioética trata da vida da natureza, da flora, da
fauna e da vida humana, à luz dos valores humanos aceitos em uma sociedade pluralista, secular e
conflitiva. A bioética é a ponte para o futuro da humanidade.
5.6 Um novo diálogo para uma “nova aliança”
Em “A nova aliança”, Prigogine e Stengers (1997) nos indicam uma possibilidade de aliança
entre as ciências e a natureza, entre a intenção de modelar o mundo e compreendê-lo, em que a
astrofísica, a cosmologia e a biologia molecular, entre outras ciências, devem buscar modelos mais
humanos, aproximando e interrelacionando com as ciências humanas, com a filosofia e a arte.
Uma das perspectivas mais prometedoras abertas por essa metamorfose é o fim da
ruptura cultural que faz da ciência um corpo estranho e lhe as aparências duma
fatalidade a assumir ou duma ameaça a combater. Queremos mostrar que as
ciências matemáticas da natureza, no momento em descobrem os problemas da
132
complexidade e do devenir, se tornam igualmente capazes de compreender algo do
significado de certas questões expressas pelos mitos, religiões e filosofias; capazes
também de melhor avaliar a natureza dos problemas próprios das ciências cujo
objeto é o homem e as sociedades humanas. (PRIGOGINE & STENGERS, 1997,
p. 25)
É necessário um outro diálogo entre as ciências, na busca de um novo conceito, de uma
ressignificação que permita incluir na prática pedagógica e na atividade científica em geral o
conceito de ética e cultura, na busca de valores sociais e ambientais. A educação ambiental deve
deixar suas algemas de uma visão de meio ambiente naturalista e antropocêntrica para uma visão
global e integradora.
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com a faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas
têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num
fagote, tem salvação
[...]
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios. (BARROS, 1997, p. 9)
5.7 A importância da Educação Ambiental, ciência e poesia para a construção de diálogos
A mulher e o homem contemporâneos, por mais ínfima que seja a sua presença no
universo, por mais que a sua capacidade reprodutiva natural se encontre ameaçada
pela clonagem genética e que a sua inteligência e capacidade de raciocínio sejam
ironizadas pela tecnologia, têm diante de si os desafios da transmutação da noção
de vida e a responsabilidade coletiva de sua preservação, não pelos aspectos
morais, mas sim pelo principio básico de sobrevivência biológica. (REIGOTA,
2002. p. 29)
A educação ambiental é vista, neste trabalho, como espaço para que se construam diálogos onde
a poesia e as ciências possam direcionar o homem e a mulher na edificação de uma ciência não
pela técnica, mas pela ética e estética, na razão dialógica, na alteridade, favorecendo a construção
de novas formas de saberes e práticas.
A pesquisadora e professora doutora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Angela
M. Zanon, em seus estudos e orientações, tem contribuído em muito para a construção de uma
educação ambiental alternativa, no sentido em que busca abordar a temática ambiental a partir de
133
elementos que deveriam naturalmente fazer parte do cotidiano dos estudantes e da escola. Em dois
de seus textos “O lugar da literatura na educação: educação que deve ser ambiental” e “A
utilização de obras literárias no ensino e no exercício da educação ambiental” a autora traz a
literatura como um instrumento para aprendizagem dos conteúdos, com a possibilidade de ensinar,
por meio das diferentes leituras, diálogos e vivências, aproximando-se dos diferentes saberes e
culturas. A utilização da literatura pode também conduzir à interdisciplinaridade e à formulação
de projetos educacionais que são essenciais para a inserção da educação ambiental formal.”
(ZANON, 2006, p. 61) Um poema, um conto, uma prosa ou qualquer gênero literário permite ao
aluno, digo, ao indivíduo se projetar diante das diferentes situações cotidianas, estabelecendo
direções, argumentações, no sentido de dar um melhor desfecho da história. A literatura pode
apontar estética, ética e respeito às nossas ações. “Utilizando obras literárias variadas vamos refletir
com os educandos sobre os princípios da educação ambiental, suas possibilidades no ensino
formal.” (ZANON, 2006, p. 1)
Nesse mesmo movimento, a pesquisadora, professora doutora na Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa, Cecília Galvão constrói suas pesquisas, orientações e reflexões. De acordo
com Galvão (2006), a literatura tem débito com a ciência, no que diz respeito à construção de sua
narrativa, bem como os textos científicos ficam muito mais apreciáveis quando são escritos de
forma literária. A possibilidade de dialogar com essas diferentes linguagens e metodologias poderá
criar melhores situações de aprendizagem.
A ciências dos séculos XIX e XX tenta eliminar o que é individual e o singular
para reter leis gerais e identidades simples e fechadas. O romance da mesma época
mostra-nos seres singulares nos seus contextos e no seu tempo. Cada ser tem uma
multiplicidade de papéis e de identidades, uma multiplicidade de personalidades
nele próprio,... (GALVÃO, 2006, p. 35)
Galvão (2006) apresenta, entre muitas outras possibilidades, o poema de António Gedeão,
Lágrima de preta. Tal poema apresenta várias possibilidades de diálogo entre a literatura e a
ciência, além da perspectiva social.
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
134
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir ácidos,
As bases e os sais,
As drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio. (GEDEÃO apud GALVÃO, 2006, p. 45)
Galvão (2006) insufla que, com e poema e tantos outros, podemos abordar o conteúdo de Física,
Química, Biologia, História, para ficar somente nesses exemplos, de forma mais acessível e
simples, contudo, sem corromper e desvirtuar a própria ciência.
Sem desconsiderar a importância dos conhecimentos científicos, a educação
ambiental questiona a pertinência deles, sejam transmitidos ou construídos. Os
conhecimentos científicos presentes no currículo oficial das disciplinas sãolidos
ainda nos dias de hoje? Ensina-se a Biologia, a Física e a Química baseada na
instabilidade, no caos, na flutuação, ou continua ensinando-se a ciência
determinista-newtoniana? (REIGOTA, 2002, p. 81)
Acredito que a educação, em particular a ambiental, como espaço de diálogo entre as ciências e
os diferentes saberes, tem um grande potencial, tendo em vista sua trajetória construída e a
relevância da discussão de temas como esses. Apontando possibilidades para a construção de uma
ciência mais ética e humana, lutando contra o totalitarismo, a desigualdade e o poder hegemônico.
135
Em contrapartida, o modelo tecnológico, mecânico, vem ocupando, a cada dia, novos espaços e
rompendo barreiras impostas pela cultura, política e religião, saindo do descrédito. Entretanto, não é
um modelo homogêneo, ainda nos são reveladas diversas culturas ou pessoas que sobrevivem
apesar da tecnologia, ou seja, não se colocam à mercê desse modelo. Cabe à educação estabelecer
diálogos entre essas duas formas de vivenciar a ciência, na condição de humanização dos saberes.
136
A gente se negava corromper-se aos bons
costumes.
A gente examinava a racha dura das lagartixas
Só para brincar de ciência.
A gente grosava a peça dos morcegos com o
lado cego das facas
Só para vê-los chiar com mais entusiasmo.
[...]
Não era mister de ser versado em Kant pra se
saber que os passarinhos da mesma plunagem
voam juntos.
Nem era preciso ser versado em Darwin pra se
Saber que os carrapichos não pregam no vento.
Que, apois:
Sábio não é o homem que inventou a primeira
bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira
Lagartixa. (BARROS, 2007, p. 39)
*Bonecos de Manoel de Barros.
137
6 – Considerações Finais
6.1 Parte I: dos diálogos à práxis: (des)caminhos da prática pedagógica
O que eu pediria à escola se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como
primeira visão direta das coisas, e depois como veículo de informação prática e teórica,
preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica
basicamente com a sensibilidade poética. (DRUMMOND apud AVERBUCK, 1988, p. 67)
Antes de abordar as trajetórias de (des)construções na prática docente, como professor de
ciências, deixarei clara a concepção de práxis que adoto. A práxis extrapola o puro teórico- prático
tendo dimensões políticas, éticas e ecológicas na tentativa de promover transformações sociais nas
pessoas e nas estruturas. Em suma, para poder transpor da teoria para uma ação pedagógica, política
e social efetivas, é preciso sair do discurso teórico e construir atitudes.
No desenrolar destas linhas, foram enunciadas ideias, diálogos e reflexões que tiveram
importância na construção de diálogos em minha práxis pedagógica. Para isso, acho pertinente e
relevante descrever algumas das interferências ocorridas durante esses últimos anos de estudo, na
construção desse diálogo. Pois, pois ... mudanças ocorrem lentamente, como o próprio poeta diz:
Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir.
Não é por fazimentos cerebrais que se
chega ao milagre estético senão que por instinto lingüístico.
Sabedoria pode ser que seja ser mais
estudado em gente do que em livros.
Quem se encosta em ser concha é que pode
saber das origens do som. (BARROS, 2007, p. 81)
Entendo assim como o poeta, que não sou mais a pesquisa, e sim o seu resultado dela. A
mudança ocorre na prática pedagógica, mas não somente nela, acredito que é algo maior, uma
mudança interna, no sentido de pensar sobre o fazer pedagógico: o que se ensina, para quem se
ensina, quais interesses são envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, o qual ocorre
independentemente de uma sala de aula, no cotidiano; todavia, é na sala de aula que podemos
desenvolver esse processo de forma intensa, na construção de um sujeito que vivencie esses
diálogos.
138
Diálogos construídos fizeram um “fórceps”
28
/
nas minhas representações no tocante à prática de
educação em geral, bem como à prática de educação ambiental; principalmente, no momento em
que atuo como formador de professores de Biologia, Ciências e coordenadores pedagógicos. Nesse
movimento, procuro (des)construir rótulos, pre(con)ceitos presentes numa prática voltada ao
conteúdo, à memorização, ao pragmatismo, na tentativa de apresentar outras possibilidades em se
tratando do ensino de ciências. Portanto, o diálogo com as diferentes literaturas, em particular a
poesia de Manoel de Barros, indica uma outra maneira de ver os ensinamentos.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. [...]
Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no
cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens. (BARROS, 2006, s/p)
Precisamos interferir no processo de ensino-aprendizagem, principalmente na prática de ensino
das Ciências, proporcionando diálogos entre os saberes, como temos feito com as questões da
bioética e das tecnociências com a poesia, buscando um novo paradigma e uma possibilidade
pedagógica mais ética e estética. É ao que Reigota (2002) nos desafia:
Diante desse cenário, creio que devemos pensar nas possibilidades e dificuldades
da presença da educação ambiental na escola, e gostaria de fazer a pergunta: Quais
são, professor (a), as possibilidades que você tem para desenvolver essa
perspectiva na sua sala de aula de todos os dias? (REIGOTA, 2002, p. 83)
Trazer estética para o ensino das ciências, utilizando-se do diálogo entre a poesia e as Ciências
nos permite um exercício dialógico entre o belo e o saber instituído, por meio da arte da palavra.
Este processo é desafiador, pois procura romper com as representações, estigmas e (pre)conceitos.
Assim, buscamos percorrer uma longa trajetória estética nas Ciências. O próprio conceito de
estética é revelador dos descaminhos que aqui traçamos: “... estética vem do grego aisthesis e
significa “faculdade de sentir”, “compreensão pelos sentidos”, portanto, inclui as emoções e as
sensações que sentimos diante de tudo o que atrai a nossa atenção, seja bonito ou feito” (COUTO,
2006, p. 122).
Logo, direcionemo-nos para outros sentidos e significados, condizentes com os sonhos e
expectativas de cada aluno, de cada indivíduo, sobre o processo de ensino-aprendizagem das
Ciências, pensando no que diz Barcelos (2008) a respeito da possibilidade de a poesia deixar a
prática pedagógica e metodológica em educação ambiental mais prazerosa. Entendo que, sim, o
28
As mudanças nas representações não ocorreram espontaneamente, são parte de um processo de
aprofundamento em diferentes referenciais teóricos, por isso utilizo a analogia do termo fórceps, um
instrumento utilizado para extrair, sem espontaneidade, tecidos ou um feto.
139
diálogo entre os diferentes saberes estabelece, fortalece e contribui para uma práxis voltada ao
compromisso com a integridade do humano.
Guattari (1997) nos desafia a
novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com
o outro, com o estrangeiro, com o estranho [...] E, no entanto, é exatamente na
articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do
meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado,... (GUATTARI, 1997, p. 55)
Precisamos, assim como diz Reigota (2002), de uma escola ecologizada, onde a cultura popular
tem fundamental importância, assim como as culturas erudita e científica.
Nessa escola, Pixinguinha e Bach convivem como velhos amigos, o conhecimento
dos indígenas é tão importante quanto os dos físicos da Nasa, a literatura de cordel
e os textos de Machado de Assis (bem como Manoel de Barros) fazem parte das
leituras cotidianas, a dança dos jovens e as artes marciais se complementam, os
problemas do dia-a-dia são temas para análise, discussão e busca de alternativas de
soluções e intervenções cidadãs. (REIGOTA, 2002, p. 80)
Acho que a gente deveria dar mais espaço para
esse tipo de saber
O saber que tem força de fontes. (BARROS, 2007, p. 63)
Sensibilizar a prática pedagógica de ciências com a poesia, segundo Zanon (2006), é também
um exercício da educação ambiental. “Esta atividade tem como objetivos mostrar ao professor as
inúmeras possibilidades de materiais e práticas, além do exercício interdisciplinar da educação
ambiental, sem alterar ou fugir dos conteúdos programáticos de sua disciplina” (ZANON, 2006, p.
1). Este é o desafio a ser lançado, ou melhor, o convite a ser feito. Na tentativa de aproximar
diferentes saberes e práticas à construção de uma pedagógica política, ética, ecológica e estética.
140
Poesia e Ciências numa entrevista: (des)encontros entre o poeta e o filósofo.
Conversas numa roda de tereré.
Se o papo é bom vai até tereré, até tereré
Essa erva boa de toma
[…]
De mão em mão meu irmão.
Essa erva boa de toma. (Marinho, 1998)
Tereré: trajetórias desenhadas pelo professor de Geografia Rogers Grossi.
141
6.2 Parte II: Poesia e Ciências numa entrevista: (des)encontros entre o poeta e o filósofo
Apresento, nestas páginas, as entrevistas concedidas pelo poeta Manoel de Barros e pelo
filósofo Newton Aquiles von Zuben, condensadas num texto único, com o objetivo de estabelecer
diálogos e (des)encontros entre os saberes. Tentei aproximar o poeta e o filósofo, de forma que
esses autores possam dialogar em conversa informal, como se faz em uma roda de tereré. Nessa
conversa, percebemos que existem momentos de encontro e desencontro entre as ideias desses
autores.
6.2.1 Conversas numa roda de tereré
Era uma manhã sul-matogrossense, daquelas em que o “sol está de rachar”, “de estralar
mamona”, “de fritar o ovo na calçada” tudo isso pra dizer que estava muito quente –, à beira do
Rio Miranda, em pleno Pantanal. Passava por aquelas bandas o filósofo Newton Aquiles von
Zuben, um doutor em ciência que estava em busca do desconhecido, pois, pois. E não é que no
meio do caminho tinha uma pedra? Ao desviar da pedra ele avistou um homem na sua terceira
infância, esfregado ao chão para escutar a terra com a boca – era o poeta Manoel de Barros.
O dia todo ele vinha na pedra do rio escutar a terra com a boca e ficava impregnado de
árvores. (BARROS, 2007, p. 37)
Sentado sobre uma pedra estava o homem desenvolvido a moscas. O poeta disse soberano:
Estou a jeito de uma lata, de um cabelo, de um cadarço. / Não tenho mais nenhuma idéia
sobre o mundo. / Acho um tanto obtuso ter idéias. / Prefiro fazer vadiagem com letras. (BARROS,
2007, p. 51)
O poeta, ao ver o filósofo, foi logo perguntando:
— O que procuras?
Procuro um caminho frente ao constante desenvolvimento das Tecnociências. Acredito que
“o caminho é feito ao se caminhar.” (ZUBEN, 2006, p. 104)
O poeta foi logo respondendo:
— Não há caminhos, o que existe são os descaminhos.
Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas. (BARROS, 2006, p. 58)
142
Eu, muito do curioso, quis saber um pouco mais sobre filosofia e poesia. Aproximei-me da
conversa, oferecendo o meu tereré para refrescar a garganta, num dia de tanto calor. Então, a roda
estava formada: o filósofo, o poeta e o pesquisador.
Quis saber quem era esse filósofo que conversava com o poeta. Perguntei sobre sua trajetória.
O filósofo, calmamente, me respondeu:
Minha formação filosófica, em grande parte, devo a um grande mestre, também conhecido
por seu orientador Marcos Reigota, na Universidade de Louvian, e ao matemático e filósofo Jean
Ladrière. (pausa para tomar o tereré) Dizia-nos que a reflexão filosófica se revela como a
capacidade de colocar devidamente as questões. Pois bem, tenho tentado esse caminho desde a
década de 80, orientando minhas indagações para essa direção: a ação humana. Estudei e estudo
Hannah Arendt, e duas décadas dedico-me às questões éticas, em especial, a bioética. Que
sentido tem, no cenário do existir humano, as aventuras da racionalidade em ação, tanto nas
interações humanas como na atividade científica?
Conhecia o poeta, assim como o filósofo, somente por meio dos livros. Então, quis saber do
poeta sobre as trajetórias que influenciaram definitivamente a construção da poesia jogada aos
trapos, aos restos, ao chão e a infância. Então, lhe perguntei:
Quais os descaminhos que desapontam na criação de sua poesia? (após ajeitar a bomba de
tereré, poeticamente responde:)
Foi minha infância até nove anos. Eu era de chão e de águas. A solidão do lugar me
iluminou (ou me turvou?) para a poesia.
Acho que é defeito de nascença isso. (BARROS, 2006, s/p)
E minha mãe disse mais: esse menino vai passar a vida enfiando água no espeto! Foi quase.
(BARROS, 2008, s/p)
Meu pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses
vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos
havidos na biblioteca do colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da
razão pura. Assim como o Aquiles também especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos
homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas
simples da terra. Foi que encontrei Einstein (ele mesmo o Alberto Einstein). Que me ensinou
esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma
brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de
novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as
borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa
143
engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias
asas. E vi que o homem não têm soberania nem pra ser um bentevi. (BARROS, 2008, s/p)
Depois de escutar o poeta, acho que mereço um tereré!
Com a oportunidade de aprofundar o diálogo entre os saberes, comecei a indagar a respeito da
presença do humano. Acabei desvelando que o filósofo e o poeta nos (des)apontam diferentes
sabedorias.
Lembrei-me do livro Bioética e Tecnociências, e lancei as mesmas perguntas do livro. Quem
será essa nova humanidade que está por surgir? Como será esse novo ser? Que perspectiva você
em relação a essa nova humanidade frente ao desenvolvimento da tecnociências?
O filósofo, depois de tomar tereré, me disse:
Fala-se demasiado nesse momento civilizatório. O que é esse amanhã do homo sapiens?
Tem sentido em se falar em criar esse novo homem? Quem seria esse? Homúnculo ou o que? Essa
preocupação revela a ambivalência de nossa herança prometeica.
Quando perguntei o sobre o que é o ser humano contemporâneo para o poeta e como ele
imagina o futuro próximo de nossa espécie, ele poeticamente respondeu:
Imagino que voltaremos a escrever nossa voz nas pedras.
Lembrei-me da presença marcante de Bernardo em suas poesias, sendo esse uma possível
construção do humano diferente das tecnociências.
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe. (BARROS, 1997, p. 97)
Entusiasmei-me, coloquei mais água no tereré e passei ao poeta, juntamente com os
questionamentos: Bernardo é uma espécie de espelho? Você ainda tem um contato direto com ele?
Existem outros Bernardos em sua vida?
Bernardo era meu alter-ego. Infelizmente ele já morreu. Ele era abençoado de pássaros. Ele
era beato de árvores e de águas.
Como Bernardo se comportaria em relação à tecnologia e ao avanço das ciências, cada vez mais
presente em nosso cotidiano?
Se ele perdesse a ignorância não valeria mais nada para a poesia. Com ele eu aprendi a
conversar com as rãs e os caracóis da terra. Aliás, eu tenho essa ignorância de nascimento.
Bernardo tem aversão à máquina e à tecnologia. Isso se por que ele desconhece seus
benefícios?
144
Ele era surdo e mudo em tecnologia. Sempre foi, incluindo em ventos.
Depois da fala do poeta, acabei por lembrar de um poema no Livro sobre o nada, em que nos
apresenta a posição do poeta a respeito da máquina.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e
musgo, elas podem um dia milagrar de flores. (BARROS, 1996, p. 57)
Quando o poema arejou minhas ideias, quis saber a opinião do filósofo sobre o assunto. Ele,
após ajeitar a bomba e dar uma chupada no tereré, me disse:
Criação da racionalidade intempestiva?!! O Golem do pós-homem? Os indivíduos parecem
assombrados, assediados e inebriados pelas máquinas de todo tipo! Cansaram-se da natureza, e se
voltam para esse outro radicalmente outro.
Por ação da tecnologia, a máquina, algumas décadas, deixou de ser entendida
como instrumento com finalidades definidas e expressas pela intenção e pela
vontade de quem as utiliza e incorporou a si mesma, e vem aprimorando cada vez
mais a potencialidade de tomar decisões. (ZUBEN, 2006, p. 123)
Pela resposta, o filósofo secou a erva! Então fui devaneando com a fala do filósofo e recordando
de um outro poema do livro, Cantigas por um passarinho à toa, onde Manoel de Barros diz:
Achava que os passarinhos
são pessoas mais importantes
que aviões.
Porque os passarinhos vem do início do mundo.
E os aviões são acessórios. (BARROS, 2003, s/p)
Sendo um pouco repetitivo, desejei saber como o filósofo se comporta face à presença e
dependência da máquina e de seus artefatos nas diversas atividades cotidianas. Você se um
“homem máquina” ou alguém que se distância de toda essa técnica?
É o que acabei de dizer. O sistema das tecnociências já declarou alforria de seu mestre
criador e tenta a todo custo dar um golpe de mestre de astúcia que é artribuir-se esse domínio sobre
145
o poder de escolha do humano. Talvez o processo de decisão seja diferente, e o é, que o empregado
pela racionalidade humana.
Mas os efeitos creio que são semelhantes. A filosofia, penso eu, sente-se impelida a acompanhar
sem dogmatismos ou “hegemonias falantes” (os metadiscursos também se foram!) esse trajeto
esquisito da evolução do sistema da tecnociência.
Há sempre homens à beira de esgoto em minha poesia.
O tereré ia circulando e o assunto da prosa não acabava, falávamos do avanço da tecnologia e da
Ciência, de seus benefícios e dos impactos. Então, disse o poeta:
Toda minha vida eu tentei estudar ignorâncias para poder conversar com águas e seus
respectivos sapos.
Não tenho vocação para máquinas. Para mim, máquina, qualquer máquina, deveria ter a
utilidade do prego quando farfalha.
— Isso me faz lembrar um outro poema seu:
A ciência pode classificar e nomear os órgão de um sábia
Mas não pode medir seus encantos. (BARROS, 2001, p.53)
Ansioso pelo tereré, filósofo interrompe a conversa, e diz:
Parece-me preocupante a demasiada confiança depositada nesse poder operatório das
tecnociências a ponto de colocar “em aporia” o poder simbólico e simbolizante do homem. esse
saber, essa dimensão simbolizante saberá eventualmente encontrar-se com os encantos do sabiá! Ou
com as astúcias dos animais com os quais alguns homens sabem se relacionar!
A gnose científica tem como “poder” reduzir toda existência humana aos artefatos e à
instrumentalidade, inviabilizando o projeto de existência humana. Qual seria o “caminho”, ou
melhor, quais as possibilidades de reverter esse niilismo?
O filósofo “mata a sede” de tereré, e responde:
Se pensarmos em termos de niilismo, creio que podemos cair na cilada de entrar na batalha
contra o sistema. Nunca venceremos, Bãio, é por que se caminha creio eu! As forças são
desniveladas! Conviver acompanhando os movimentos do golem talvez seja mais interessante.
146
“O saber é um fabricar; é um transformaraté mesmo a natureza humana.” (ZUBEN, 2006, p.
169)
O poeta complementa:
Começaremos a ouvir de novo o silêncio que está dentro das pedras.
A fonte de saber está na natureza e não na tecnologia.
se passaram horas de conversa, e a erva do tereré já estava perdendo o sabor. Rapidamente,
troquei a erva e acrescentei limão e hortelã para temperar mais a conversa. Então, provoquei o
filósofo outra questão:
Em maio de 2008 o Supremo Tribunal Federal aprovou o artigo da Lei de Biossegurança
que prevê uso de células-tronco de embriões humanos para pesquisa e terapia. Essa
constitucionalização é mais um avanço ou um retrocesso, do seu ponto de vista?
É o início de um caminho que está sendo percorrido de modo diverso. A direção me parece
plausível. O absoluto está sendo preterido. A urgência da tomada de proposição (da filosofia) exige
isso. Se não tivermos respostas prontas, impostas e dogmáticas, a nós cabe achar a saída do
labirinto!
Novamente, indaguei:
Você a educação como uma possibilidade de construir espaços de diálogo entre as
ciências e os diferentes saberes?
— Creio que essa questão caberia melhor a você deslindar! Não acha?
Não estou mais acreditando em tudo isso! A educação! Isso não é relevante como num passado
recente e, sobretudo no remotíssimo, quando tudo começou! Com Tales, Anaximandro Pitágoras,
Protágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles! Nostalgia da Grécia! Agora estou revendo as sacadas de
Abelardo, aquele da Heloísa e do método filosófico do "sim e não", precursor do debate escolástico
e grande lógico medieval!
E ao poeta perguntei:
Como você a possível contribuição da poesia das inutilidades, dos trapos e dos inutensílios
para que possamos discutir, através da educação, a sociedade tecnológica?
Penso que todos s deveríamos ouvir os caracóis da terra a fim de aprender com eles os
inícios do mundo.
O poeta, olhando para águas silenciosas do Miranda, na pausa do tereré, continua a descascar
palavras:
147
Os rios começam a dormir pela orla, vagalumes driblam a treva. Meu olho ganhou dejetos,
vou nascendo de meu vazio, narro nascimentos. Sei muitas coisas das coisas. Há muitas
importâncias sem ciência. Sei que os rios influem na plumagem das aves. (BARROS apud JABOR,
1992)
O sol estava se escondendo, e a prosa, apesar de apropriada para limo, foi interrompida pelo
escurecer do dia. O poeta e o filósofo agradeceram o tereré (agradecer o tereré é sinal de fim de
prosa).
O poeta pegou seus achados no chão: 1 rolo de barbante 8 armações de guarda-chuva 1 boi de
pau 1 lavadeira renga de zinco (escultura inacabada)1 rosto de boneca metade carbonizado
onde se achava pregado um caracol com a sua semente viva. (BARROS, 2007, p. 9) Juntou-os
dentro de um grande saco, bateu asas, e voou. Foi para o meio do cerrado ser um arãquã.
Nessa prosa, nem eu, nem o filósofo sabíamos que o melhor caminho ao se caminhar era pelo
desvio.
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros. (BARROS, 1997, p. 87)
148
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