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UFPI – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
CCHL – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MARCONIS FERNANDES LIMA
CIDADE DA BOA ESPERANÇA:
Merias da construção da usina hidrelétrica em Guadalupe-Pia
TERESINA - PI
2007
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UFPI – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
CCHL – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MARCONIS FERNANDES LIMA
CIDADE DA BOA ESPERANÇA:
Merias da construção da usina hidrelétrica em Guadalupe-Pia
Dissertação apresentada ao Curso de s-Graduação
em História, do Centro de Ciências Humanas e
Letras, da Universidade Federal do Piauí, para
obtenção do grau de Mestre em História do Brasil.
Orientador: Professor Dr. Solimar Oliveira Lima.
TERESINA - PI
2007
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MARCONIS FERNANDES LIMA
CIDADE DA BOA ESPERANÇA:
Merias da construção da usina hidrelétrica em Guadalupe-Pia
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História, do Centro de Ciências
Humanas e Letras, da Universidade Federal do
Piauí, para obtenção do grau de Mestre em
Hisria do Brasil.
Orientador: Professor Dr. Solimar Oliveira Lima.
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof. Dr.Solimar Oliveira Lima (Orientador)
Universidade Federal do Piauí
_________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento
Universidade Federal do Piauí
_________________________________________________________
Gisafran Nazareno Mota Jucá
Universidade Estadual do Ceará
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A você Taianni!
A minha razão de viver!
Ao nosso amor e a nossa Felicidade Sempre!
Eu Te Amo!
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por sua presença iluminada e confortante, por todos os seus significados
de força, beleza e compreensão, por todas as graças concedidas eu te agradeço do fundo do
meu coração, muito obrigado!
A Minha Taianni, Esposa, Namorada, Mulher, Companheira, Amiga, que eu tanto
admiro e à sua maravilhosa presea ao meu lado em todos os momentos da minha vida, eu te
agradeço por tudo que sempre fez por mim e por nós dois. E sempre, sempre, ao grande
significado que tem o nosso amor em nossas vidas. A você linda Taianni, por tudo, muito
obrigado!
Aos meus pais, Horácio e lia, que me geraram e me acompanharam em toda a
caminhada da minha vida, pelo exemplo de toda uma vida e pela força que eles sempre me
transmitem para eu superar as minhas limitações pessoais. Que eu possa, com esse apoio,
continuar ultrapassando os obstáculos da vida. A vocês, papai e mamãe, muito obrigado por
tudo que fizeram por mim e por nossa família!
Ao meu irmão Marcos, meu companheiro fiel e eterno amigo, por sua
personalidade e gênio fortes, sempre presentes no nosso dia-a-dia. Sem você, eu também não
seria o que sou hoje, e a você eu ofereço o meu muito obrigado!
À minha irmã Morgana, pela sua amizade e pelo seu carinho e cuidados, e também
ao Darkson, pela amizade e pela sua forte e inspiradora personalidade. A vocês, Morgana e
Darkson, ao lado do meu querido sobrinho João Vitor, formando essa linda família, e
enchendo nossos olhos de alegria e admiração, o meu muito obrigado!
À família da minha amada Taianni, especialmente a dona Diluísa, incansável
lutadora, e aos demais, o senhor Santana, Thaisi, Wilson, Tannais e a Mariane, a todos vocês
pelos momentos de alegria recíproca e aos seus exemplos de vidas, o meu Muito Obrigado!
Ao tio Dodó, a tia Joana, a Ana Paula, e em especial ao Paulo Henrique pela
amizade e auxílio em muitos momentos durante este trabalho, muito obrigado!
A todos os meus amigos, pelo grande valor que suas amizades representam em
minha vida, e que possamos cada vez mais fortalecer nosso companheirismo.
A todos os meus conterrâneos guadalupenses, os quais assim como eu, conhecem e
tanto amam Guadalupe, e a todos que guardam com carinho as lembranças dessa terra,
especialmente aos moradores por nós entrevistados, João Alencar, Jociler, Ana Luíza e filhas,
Maria Amélia, Maria do Carmo, e Mundiquinha. A todos, o meu caloroso muito obrigado!
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Ao Professor Solimar Oliveira Lima, pelas orientações e contribuição nessa
caminhada. Muito obrigado!
Aos professores do Curso de História da UFPI, especialmente aos professores
Fonseca Neto, João Kennedy e Socorro Rangel, pelo apoio e pelo exemplo de vida que cada
um transmite aos seus alunos.
Ao Orlando Nascimento, por ter me ajudado na revisão final do trabalho. Apesar
do pouco tempo de conhecimento, que possamos cultivar uma boa amizade juntos. Obrigado!
A todos os meus alunos, do Piauí e do Maranhão, pela compreensão da
necessidade de eu ter que trilhar esse caminho. Que eu possa um dia recompensá-los mais
ainda do que eu me dispus, a todos eles eu também dedico os meus singelos
agradecimentos.
A todos meus colegas de trabalho do Piauí e do Maranhão pelo apoio dado nesse
meu momento de definição profissional, eu sinceramente agradeço.
Por fim, aproveito esse espaço de agradecimentos, para oferecer a todos nós uma
música que traz uma letra que sugere uma auto-avaliação de nossas vidas, numa oportunidade
para meditarmos a melhora de nossas ações, e que assim possamos engrandecer as nossas
escolhas, e ao mesmo tempo revigorarmos a confiança em nós mesmos. Reflitamos então:
O Pescador de Ilusões
(O Rappa)
Se meus joelhos não doessem mais;
Diante de um bom motivo que me traga fé, que me traga fé;
Se por alguns segundos eu observar, e só observar,
A isca e o anzol, A isca e o anzol, A isca e o anzol, A isca e o anzol;
Ainda assim estarei pronto pra comemorar;
Se eu me tornar menos faminto e curioso, curioso;
O mar escuro trará o medo lado a lado com os corais mais coloridos;
Valeu a pena ê ê, valeu a pena ê ê, sou pescador de ilusões, sou pescador de ilusões; [repete]
Se eu ousar catar na superfície de qualquer manhã,
As palavras de um livro sem final, sem final, sem final, sem final, final;
Valeu a pena ê ê, valeu a pena ê ê, sou pescador de ilusões, sou pescador de ilusões;
Valeu a pena ê ê, valeu a pena ê ê, sou pescador de ilusões, sou pescador de ilusões.
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A RUA
toda rua tem seu curso
tem seu leito de água clara
por onde passa a memória
lembrando histórias de um tempo
que não acaba
de uma rua de uma rua
eu lembro agora
que o tempo ninguém mais
ninguém mais canta
muito embora de cirandas
(oi de cirandas)
e de meninos correndo
atrás de bandas
atrás de bandas que passavam
como o rio parnaíba
rio manso
passava no fim da rua
e molhava seu lajedos
onde a noite refletia
o brilho manso
o tempo claro da lua
ê são joão ê pacatuba
ê rua do barrocão
ê parnaíba passando
separando a minha rua
das outras, do maranhão
de longe pensando nela
meu coração de menino
bate forte como um sino
que anuncia procissão
[...]
(TORQUATO NETO, grifo nosso)
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RESUMO
O presente estudo tem por objetivo analisar os impactos sociais, ecomicos e culturais
provocados pela Usina Hidrelétrica de Boa Esperança na cidade de Guadalupe, estado do
Piauí, na década de 1960, à luz das intensas contendas poticas, econômicas e sociais que
ocorriam no Brasil nesse período. Como objetivos específicos, procuramos apresentar um
panorama histórico desse momento da sociedade e da potica econômica brasileira; analisar o
processo de modernização nacional e de seus extensos reflexos, com destaque para o
surgimento e atuação da SUDENE; verificar detalhadamente os impactos sociais decorrentes
da construção da usina na referida cidade. Para tanto, nos respaldamos em fontes
bibliográficas e documentais, que ajudaram a esclarecer muitos pontos importantes de todo
esse processo de mudanças transcorrido ao longo da década de 1960 no estado do Piauí, por
conta dessa obra. Utilizando técnicas da História Oral, buscamos também o contraponto
decisivo, através de entrevistas temáticas (sobre a construção da usina e a transferência da
cidade) com seis moradores de Guadalupe, os quais se envolveram diretamente nesse
processo de mudanças. Corroborando as informações das entrevistas, encontramos também
alguns textos escritos pelos próprios moradores, além de documentos oficiais encontrados
com os mesmos, como algumas Atas da Prefeitura e da mara da época da cidade velha.
Esta pesquisa propiciou a constatação da relação direta entre Guadalupe e a obra da usina,
relacionando ainda de forma geral as discussões municipais, estaduais e nacionais. As
narrativas dos moradores nos permitiram a reconstrução de partes valiosas, pom esquecidas,
da memória de Guadalupe. Servem, sobretudo, a uma reflexão sobre a importância de se
trabalhar com as fontes orais, especificamente valorizando a história da cidade de uma forma
mais abrangente, dando voz aos personagens não contemplados nos registros históricos desse
complexo processo de transformação desencadeado pela construção da Usina de Boa
Esperança, democratizando o espaço do debate acerca da obra para opiniões diversas,
principalmente, aquelas que à época não tiveram a oportunidade de expor suas insatisfações,
trazendo à baila o debate comparativo entre o novo e o velho, o passado e o presente, em
encontros e desencontros que nos fazem perceber o quanto é necessária a aceitação da
diversidade como um pressuposto para a composição dos registros historiográficos.
Palavras-Chaves: Usina hidrelétrica. Integração econômica. Choques e adaptações sociais.
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ABSTRACT
The present study has for objective to analyze the social, economical and cultural impacts
caused by the Boa Esperança Power Station in Guadalupe,a city of the state of Piauí, in the
decade of 1960, accordig to the itense politicals , economical and social quarrels that
happened at Brazil in that period. As specific objectives, we want to present an historical view
of that moment in the society and i the Brazilian economical politics; to analyze process of
national modernization and their extensives reflexes, mainly appearance of the SUDENE; to
verify the current social impacts in full detail caused by the building of the hydroelectric in
the city mentioned. For this, we explored in bibliographical and documental sources who
helped to explain many important points of all this process of changes occurred in the decade
of 1960 i the state of Piauí. The use of techniques of Oral History there was a decisive
counterpoint, through thematic interviews (about the building of power station and transfer of
the city) with six residents from Guadalupe, who were involved directly in that process of
changes. Corroborating the information of the interviews, we also found some texts written by
the own residents, besides official documents found with the same ones, some Minutes of
City Hall and the Camera of the old city. This research propitiated a direct verification of
relationship between Guadalupe and the work of power station, making a relationship among
in municipal, state and national discussions. Narratives of residents allowed us a
reconstruction of valuable parts, however forgotten, from memory of Guadalupe. They serve,
as a reflection about the importance of working with oral sources, valuing the history of the
city including , giving voice to the characters no meditated in the historical registrations that
compound this complex transformation process caused by the construction Boa Esperança
Power Station , democratizing space of discussion about the construction to the several
opinions, mainly, those who hadn’t an opportunity to show their dissatisfactions in that time,
bringing comparative discussions board between new and old, past and the present,
encounters and disagreement that make us to perceive how necessary is the acceptance of
the diversity as a presupposition for the composition of the historiographicals registrations.
Key-Words: Hydroelectric power station. Economical integration. Shocks and social
adaptations.
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LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1: Visita de autoridades à obra de Boa Esperaa.................................................................57
Fotografia 2 : Trecho da Linha de Transmissão de 230 KV, no percurso Boa Esperança
a Teresina-PI, antes do lançamento de cabos..................................................................... 119
Fotografia 3: Trecho da Linha de Transmissão de 230 KV, percurso Teresina-São Luís. 119
Fotografia 4: Trecho do rio Parnaíba antes da obra da Barragem da Boa Esperança .......... 126
Fotografia 5: Balsas de buriti usadas para transporte......................................................... 131
Fotografia 6: Balsas de buriti descarregando mercadorias no cais da Avenida Maranhão em
Teresina............................................................................................................................ 131
Fotografia 7: Vista geral do canteiro de obras da Usina de Boa Esperança ........................ 136
Fotografia 8: Visita dos Ministros Costa Cavalcanti, das Minas e Energia e lio Beltrão. Do
Planejamento, às obras de Boa Esperança, sendo recebidos pelos Diretores da COHEBE . 141
Fotografia 9: Cerimônia do Desvio II Vista do canal de acesso aos túneis inferiores no
momento da explosão da ensecadeira................................................................................ 142
Fotografia 10: Canal de adução. Início da concretagem da estrutura da Tomada de Água,
[antes da realização do Desvio II] ..................................................................................... 143
Fotografia 11: Canal de adução. Terminada a concretagem da Tomada de Água, e com a
água passando pelo canal de acesso, depois da realização do Desvio II ............................. 143
Fotografia 12: Reunião com um grupo de moradores do povoado Riacho dos Macacos..... 153
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Fotografia 13: Reunião com um grupo de moradores da zona rural ................................... 155
Fotografia 14: Tratores a serviço da COHEBE derrubando a mata fechada no local onde se
construiria a cidade de Guadalupe..................................................................................... 175
Fotografia15: Casas construídas pela COHEBE................................................................ 177
Fotografia 16: Vista aérea da cidade de Guadalupe – PI.................................................... 199
Fotografia 17: Vista do arruamento na cidade de Nova Iorque – MA ................................ 200
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Vista parcial da velha Guadalupe....................................................................... 98
Figura 2: Mapa das Linhas de Transmissão da COHEBE.................................................. 120
Figura 3: Planta Geral da Usina de Boa Esperança............................................................ 135
Figura 4: Mapa Geológico do Vale do Médio Parnaíba ..................................................... 189
Figura 5: Planta da Cidade de Guadalupe – Planejamento Urbano..................................... 196
Figura 6: Planta da Cidade de Nova Iorque – Planejamento Urbano.................................. 196
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LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Distribuição Setorial das Aplicações da Sudene – 1965.......................................56
Gráfico 2: Distribuição do Consumo de Eletricidade no Brasil 2000 .............................. ..63
Gráfico 3: Empregos Gerados por Consumo Energético em Setores Industriais Selecionados
(emprego/GWh)................................................................................................................ ..63
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Contratos e Convênios Assinados Comprometendo Recursos para Aplicação no
Nordeste – 1965...................................................................................................................56
Tabela 2: Operações de Transferência das Populações Urbanas e Rurais........................... 191
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
CEMAR - Centrais Elétricas do Maranhão S. A.
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CEPISA - Centrais Elétricas do Piauí - S. A.
CERNE - Companhia de Eletrificação Rural do Nordeste
CHESF - Companhia Hidro Elétrica do São Francisco
COHEBE - Companhia Hidro Elétrica de Boa Esperança
DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
ELETROBRÁS - Centrais Elétricas do Brasil S. A.
ELETRONORTE - Centrais Elétricas do Norte do Brasil S. A.
EUA - Estados Unidos da América
FAO - Food and Agriculture Organization
GTDN - Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
JK - Juscelino Kubitscheck de Oliveira (Presidente do Brasil no período 1956-1961)
MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens
USAID - United States Agency for Development
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................16
1 - A MARCHA PARA O NORDESTE: A modernização nacional e o Piauí.......................35
1.1 - Intervencionismo estatal e modernização do capitalismo nacional................................35
1.2 - A SUDENE no nordeste do Nordeste” .......................................................................40
1.3 - Energia para quem tem fome de instrias...................................................................50
1.4 - Aintegrão econômica nacional e a obra da redenção doPiauí...............................................65
2 - GUADALUPE E A USINA DE BOA ESPERANÇA.....................................................85
2.1 - A Guadalupe Velha revelada pela saudade dos seus filhos ...........................................85
2.2 - A construção da usina nos cotidianos de Guadalupe e do Piauí ................................. 113
2.3 - Choques e adaptações sociais na transferência para “O Cativeiro Educado”.............. 149
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 219
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 225
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INTRODUÇÃO
Das lembranças mais presentes que guardamos, certamente são bem vivas aquelas
passadas por nossos pais. Deles, emanam palavras e gestos expressos lado a lado num
exercício recíproco de atenção e de identificação. Esses momentos em que paramos, olhamo-
nos mutuamente e em que juntos seguimos viagem pelas histórias contadas, representam
oportunidades mais que especiais para recuperarmos esses verdadeiros tesouros memoriais.
Dessa forma, relembramos as histórias de vida de nossos pais e ao mesmo tempo,
reforçamos o laço cultural que possuímos com o nosso lugar de pesquisa que é a cidade de
Guadalupe, encontrando em nossa própria memória inúmeros relatos das histórias desse lugar,
contados por aqueles mais vividos e que nos são próximos.
Configura-se aí então, a nossa própria formação de vida, confundindo um pouco
história e historiador, personagem e autor, contudo sem prejuízo literal, e muito mais com a
contribuição sincera desses vários personagens reais que fizeram e fazem essas histórias de
vida.
Uma das primeiras histórias que podemos lembrar dos nossos pais é a de um
homem que nasceu em Guadalupe Velha e cresceu sempre ligado a sua terra natal, a sua
pequena cidade do interior em que ele começou a perceber o mundo, pontuando assim a
essência da vida desse personagem sempre firme de suas raízes culturais e históricas.
Vamos ao encontro dessas lembranças, e logo de início vislumbramos o elemento
chave da história de vida desse personagem, a identificação com a vida interiorana e agrícola,
compondo-se na figura de vaqueiro a sua maior referência a seguir.
Numa de suas várias narrativas, recuperamos o relato de uma viagem noturna
urgente que ele teve de fazer da sua localidade natal, o Brejo dos Cágados, para a sede da
Guadalupe Velha, na cada de 1960, haja vista que sua a paterna encontrava-se doente e
seu tio pedira-lhe que fizesse tal viagem o mais rápido possível para conseguir assistência
médica.
Sua reação foi a de um jovem corajoso, disse que faria a viagem e chegaria à
cidade a tempo, mas para isso precisaria do melhor cavalo da fazenda. Tal concessão foi
prontamente aceita pelo seu tio, pois ninguém mais queria fazer a viagem com medo de uma
suposta “ser” que, durante a noite, ao emitir um grito assustador, tomava a alma das pessoas.
Suas palavras se sucedem detalhadamente e falam do trajeto de mais de cinqüenta
quilômetros percorridos pelo nosso personagem guadalupense, por uma estrada de chão
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cortando a chapada durante toda a noite gelada, e que segundo o mesmo fez tal jornada sem
medo algum.
Esta reação corajosa do jovem pode ser entendida pelo seu espírito aventureiro e
pela sua satisfação em estar cavalgando um dos melhores cavalos daquela região. Além do
mais, percebe-se ainda o seu estímulo em ter ido visitar a cidade de Guadalupe e as pessoas
que lá habitavam, as quais também compunham as suas memórias.
Ele então descreve a sua longa e solitária marcha noturna repleta de lendas,
chegando então antes do alvorecer àquela cidade que tinha como marco de entrada o
Cemitério, em frente ao qual ele parou e acendeu uma fogueira para aquecer-se.
Depois de estar em frente a esta fogueira por alguns minutos, de repente, fora ele
arrebatado por um grito aterrador emitido atrás de si, restando-lhe algumas forças para saltar
ao longe e de faca em punho mirar na então imagem surpreendente que era a de uma raposa
procurando também revitalizar-se na fogueira acesa.
As o susto, ele esperou o dia amanhecer, passando, a partir daí, a contemplar o
nascer do sol que trazia a sua claridade providencial e que desvendava as imagens daquele
pequenino lugar, com suas simples casas, ruas, a igrejinha, o mercado, num desenho
rusticamente colonial, que parecia sempre voltado para o espetáculo maior do escorrer das
águas do rio Parnaíba.
Juntamente a esse cenário piauiense e brasileiro, tão comum e ao mesmo tempo
tão único para nosso personagem, revelava-se ainda aos seus olhos e para além deles, os
movimentos matinais de todo aquele povo naquela sua cidadezinha. Este foi um simples e
marcante retrato do despertar da vida na Guadalupe Velha.
A história desse homem real interage com as histórias dos outros tantos
personagens também reais que aqui apresentamos, os quais vivenciaram neste lugar o nascer,
o crescer e o morrer da velha cidade de Guadalupe.
Esse prelúdio, na verdade, nos traz a reflexão de que a história que iremos
discorrer aqui nesse texto é na verdade uma história de várias histórias, todas unidas pelo
mesmo lugar e pelas mesmas vidas, e quase sempre confundíveis.
Portanto, será este um espaço para encontrarmos-nos com as histórias dessas
pessoas naquele lugar onde suas vidas originaram, para, a partir daí, podermos também
ponderar o encontro deles próprios com o anúncio da grande obra da Usina de Boa Esperança,
esta uma nova realidade que se confrontou com a sua humilde existência.
Abrimos aqui um breve parêntese para apresentarmos rapidamente a nossa
trajetória de pesquisador, especialmente tratando dos contatos com este tema tão amplo e tão
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fascinante, que é a evolução da cidade de Guadalupe e o seu encontro transformador com a
obra da Usina de Boa Esperança.
De início, registramos a nossa própria origem nesta cidade aqui estudada. Em
Guadalupe nascemos e vivemos até os cinco anos de vida, quando no ano de 1983 nossa
família se transferiu para Teresina. De lá para frequentemente visitamos a cidade nos
períodos de férias, mantendo sempre o contato com nossa cidade natal.
Guadalupe surge então em nossas lembranças infanto-juvenis como um lugar
bonito, bucólico, e principalmente como o refúgio daqueles tempos de férias quando íamos
para reencontrar os familiares que lá ainda moravam.
Assim, justificadamente temos um laço natural com a cidade de Guadalupe, o que
para nós, por um lado esclarece mais ainda o interesse na história da nossa terra natal, mas por
outro, se coloca o estudo dos temas relacionados a esta cidade como uma necessidade de
entendermos melhor todo o processo de transformação a que foi submetida a cidade e os seus
moradores por conta dessa que certamente foi a mais importante obra de infra-estrutura do
Piauí, a Usina de Boa Esperança.
Sobre esses nossos laços familiares com o objeto de pesquisa, esclarecemos a
nossa inteão em mantermos o possível de discernimento entre as questões nativistas e as
questões mais gerais envolvidas em todo este processo, o que evidentemente não nos salva de
eventuais auto-identificações, as quais podem ser entendidas e até aproveitadas ao longo do
trabalho.
Diante desta rápida apresentação pessoal, adiantamo-nos até o ano de 1999,
quando ainda no decurso de nossa graduação em História na UFPI, depois de imaginarmos
rios temas para estudo no trabalho de conclusão do curso, finalmente pensamos na
construção da Usina de Boa Esperança e na transferência dos moradores da cidade de
Guadalupe, vencendo definitivamente algumas dificuldades pessoais quanto à realização do
estudo deste tema.
Realizamos os estudos iniciais até a apresentação de uma monografia de conclusão
de curso no ano de 2001, e fomos percebendo algumas questões básicas que acreditamos
comuns em muitos começos de trabalhos de pesquisa cientifica como este.
Percebemos primeiramente então a dificuldade de trilharmos o percurso de uma
pesquisa demasiadamente extensa, com fontes as mais variadas e muitas ainda por descobrir.
Mas, ao passo que sentíamos o peso do trabalho, e íamos conhecendo as fontes, sentíamos
também a força e a importância que esse amplo tema tinha em relação à história do estado do
Piauí.
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Por fim, fomos aos poucos constatando a nossa forte ligação pessoal com a
pesquisa, e ainda também, uma ligação do tema com as vidas de muitas e muitas pessoas.
Seguimos assim o nosso rumo, e então ingressamos no curso de Mestrado em
História na Universidade Federal do Piauí, levando conosco essa pesquisa sobre a construção
da Usina de Boa Esperança, a qual ora apresentamos.
Feitas as devidas apresentações, delimitamos então o objeto de estudo desta
pesquisa a partir do tema geral da construção da Usina de Boa Esperança na cidade de
Guadalupe, estado do Piauí, na década de 1960, à luz das intensas contendas poticas,
econômicas e sociais que ocorriam no Brasil nesse período.
Nesse sentido então, verificamos de uma forma geral, os aspectos da potica de
desenvolvimento econômico coordenada pelo Estado brasileiro na época, concentrando-se
especialmente a partir daí, na repercussão desse debate dentro da sociedade piauiense,
focalizada tal repercussão nos jornais de Teresina com diversas matérias de propagandas do
desenvolvimento futuro e junto com estas as polêmicas em torno da obra da Usina de Boa
Esperança.
Desse modo, nos direcionamos de forma mais especial, a essência do nosso
trabalho que é a análise dos impactos sociais, ecomicos e culturais provocados pela Usina
de Boa Esperança na cidade de Guadalupe, relacionando-se neste ponto os posicionamentos
dos moradores atingidos, tendo sido baseado nas falas deles a parte mais considerável de
nosso texto que apresenta a narração desses momentos decisivos da transposição das pessoas
do seu lugar de ocupação inicial para um novo local.
Para contextualizarmos o período em que ocorreu esse grande acontecimento em
Guadalupe, passamos a analisar de uma forma geral, as condições internas de
desenvolvimento do capitalismo nacional, tendo como uma das medidas principais por parte
dos governos brasileiros, a construção de uma base produtiva forte que gerasse as condições
para o avanço da indústria nacional, buscando consequentemente com isso, gerar a
diversificação dos setores fabris e a expansão dos mercados consumidores, tudo dentro de
uma perspectiva de sustentabilidade planejada.
Para tanto, neste começo, tornou-se fundamental a caracterização da potica
intervencionista estatal adotada por alguns governos nesse período, marcada por certas
intenções nacionalistas que aparecem, volta e meia, em alguns governos do período, em
especial nas décadas de 1950 e 1960, com o objetivo de possibilitar o desenvolvimento
nacional.
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Sendo assim, pontuamos os aspectos das propostas institucionais de alguns dos
governos da época, os quais incentivaram estudos que pudessem apontar as diretrizes de
atuação prioritárias e as metas a serem alcançadas.
Então, no percurso da pesquisa em questão, realizamos uma análise geral desse
momento histórico da sociedade e da política econômica brasileira de caráter eminentemente
intervencionista, a qual predominou em instantes consideráveis, marcados por firmes escolhas
e decisões dentro do comando do Estado brasileiro, vindo este processo desde a década de
1930 e chegando intensamente com suas medidas e seus resultados até a década de 1960.
Por si , a década de 1960 é historicamente muito rica em importantes
acontecimentos, sejam eles poticos, sociais e culturais. Nesse turbilhão de transformações,
verificamos também um conjunto de mudanças processadas na economia: a industrialização, a
modernização urbana, a diversificação profissional, etc., que por mais que tenham sido
esboçadas e iniciadas em décadas anteriores, revelam-se no século XX de maneira expressiva
durante os anos sessenta.
No entanto, para logo chegarmos nesse período, relembramos um ponto que
muitos autores discutem em suas obras como marco para esta centelha produtiva no Brasil,
que é a década de 1930, desde quando então passa a ter a indústria como centro motor da
divisão do trabalho (OLIVEIRA, 1993, p. 100).
Ao analisarmos essa conjuntura miramos nas transformações mais relevantes desse
período e assim podemos caracterizar que a partir de então houve um longo processo de
crescimento quase sem interrupções, até o final dos anos sessenta (Id. Ibidem, p.100), numa
dinâmica determinante para a expansão capitalista nacional.
Nesse contexto, o intervencionismo estatal, que representava uma orientação
político-econômica planejada, foi defendido e implementado por vários governos, os quais em
muitos momentos incorporaram esses planos à prática potica nacionalista, que propunha a
necessidade da construção de um Brasil cada vez mais industrializado e independente do
ponto de vista potico-econômico.
Mesmo que de forma incipiente, esta postura nacionalista de alguns governos
brasileiros teve na década de 1930 o seu início, apresentando-se então através de medidas
localizadas, e em alguns casos de forma mais fortalecida por meio de planos institucionais
mais elaborados.
Desde já esclarecemos que esses governos não poderiam tomar essas decisões sem
uma base de sustentação social, e esse apoio veio da classe rica urbana interessada em
expandir seus investimentos, porém sempre desconfiada com as práticas populistas de
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manipulação dos pobres, práticas como a de transmitir à opinião blica a propaganda de um
governo sempre preocupado com o bem-estar social, e atuante no sentido de transformar o
país numa nação desenvolvida.
Portanto, destacam-se nesse período das décadas de 1930 a 1960, dentre outros, os
governos de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubitschek, e de João Goulart, os quais
implementam medidas de modernização econômica nacional, ressalvadas é claro suas inter-
diferenças poticas, as mais variadas.
No caso de nosso alvo principal, o desenrolar desse processo e seu auge na década
de 1960, acentua-se a partir dos governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) e de João
Goulart (1961-1964) que, mesmo com suas polêmicas poticas acesas na sociedade brasileira,
indicaram uma atuação institucional elaborada com vistas a uma relativa desconcentração
produtiva, sem jamais nos esquecermos do impulso de Getúlio Vargas, o qual veio semear as
medidas frutificadas nesses outros dois governos.
As esses governos civis, veio o golpe da Ditadura Militar iniciado em 01 abril
de 1964. Durante os governos militares percebemos que algumas dessas orientações
institucionais de modernização industrial ainda prosseguem, mas também, com seu “modus
operandi” próprio.
No bojo dessa proposta geral intervencionista, analisamos a canalização de
volumes consideráveis de investimentos estatais para o Nordeste com o objetivo de fomentar
a industrialização nessa região.
Neste sentido, insere-se ainda na análise do processo de modernização nacional e
de seus extensos reflexos, o estudo do surgimento e da atuação da SUDENE, o qual se fez
necessário por representar esse órgão federal o esforço institucional mais elaborado de
atenção à região nordestina, que, com sua “estrutura sócio-econômica regional atrasada”, se
pôs como um entrave para a consolidação do capitalismo nacional.
Essa transformação político-econômica permeou o processo de formação histórica
da economia brasileira por um bom tempo, processo que Celso Furtado analisa e apresenta a
seguinte caracterização:
O processo de industrialização começou no Brasil concomitantemente em
quase todas as regiões. Foi no Nordeste que se instalaram após a reforma
tarifária de 1844, as primeiras manufaturas xteis modernas e ainda 1910 o
número de operários dessa região se assemelhava ao de São Paulo. [...]
Entretanto, superada a primeira etapa de ensaios, o processo industrialização
tendeu naturalmente a concentrar-se numa região. [...] Se se considera não o
número de operios, mas a força motriz instalada (motores secundários), a
23
participação do Nordeste diminui, entre 1940 e 1950, de 15,9 para 12,9 por
cento. [...] Com efeito, a participação de o Paulo no produto industrial
passou de 39,6 para 45,3 por cento, entre 1948 e-1955. Durante o mesmo
período a participação do Nordeste (incluindo a Bahia) desceu de 16,3 para
9,6 por cento. A conseqüência tem sido urna disparidade crescente nos
níveis de renda per capita. (1986, p. 238).
O que se daí em diante é uma situação marcada pela diminuição e falta de
investimentos no Nordeste que coincide com a consolidação produtiva do Centro-Sul,
reduzindo-se com isso muitas das possibilidades de industrialização da região nordestina.
Todo esse horizonte se agrava com os suspiros convalescentes do setor agro-exportador de
açúcar e algodão
Partindo dessa caracterização geral da evolução da potica ecomica brasileira
nesse período, percebemos então o surgimento de planejamentos econômicos voltados
prioritariamente para os pesados investimentos estatais, planejamentos esses que se voltavam
desde o seu começo para o projeto sudenista de desenvolvimento regional nordestino.
Verificamos aí que neste período as ações do Estado brasileiro passam sofrer
fortes reflexos do Plano de Metas elaborado pelo governo Juscelino Kubitscheck, numa época
toda marcada pelo intenso debate do intervencionismo estatal, pontuado ainda pelo
nacionalismo.
Esse processo de industrialização cunhado à luz desse nacionalismo estendia sua
prioridade aos estados do Nordeste, cujas áreas sempre estiveram fortemente marcadas pelas
calamidades naturais e sociais, reflexos diretos do seu quadro de atrofiamento econômico.
Além destas questões político-econômicas, o problema da integração nacional-
regional foi potencializado pelo aumento dos conflitos sociais, que também na região
Nordeste como sabemos, são principalmente marcados pelos conflitos agrários intimamente
associados às práticas poticas da elite nordestina.
Imerso em todo esse complexo contexto, especialmente a partir de meados da
década 1950 até a década de 1960 em diante, o governo federal coma a agir coordenando
agências de desenvolvimento compostas de pesquisadores e técnicos variados, que passaram a
produzir estudos e a aplicar projetos direcionados ao desenvolvimento consistente da região.
Toda essa manobra abria novas e amplas possibilidades de modernização e
expansão do capitalismo nacional, gerando condições de inserção dos capitais privados do
Centro-Sul numa região aberta a novos negócios, um novo e promissor mercado a espera de
ser conquistado. Representa, portanto, nesse cenário, a necessidade de escoar a produção
24
crescente dos pólos produtivos do Centro-Sul, configurando assim esse rearranjo nacional-
regional, um mecanismo de expansão e consolidação do mercado nacional.
É então a partir desse diagnóstico planificador com propósitos extra-regionais, que
se elaboraram planejamentos e, executou-se uma série de ações estruturantes, as quais, sem
dúvidas, não resolveram completamente o quadro sócio-econômico regional negativo que se
apresentava, pom marcou o início de um processo de consideráveis transformações
estruturais no Nordeste.
Pontuamos aqui que a SUDENE exerceu um papel de destaque em todo esse
processo de investimento regional. Aproveitamos o ensejo inclusive para antecedermos um
pouco mais ao início de tudo, esclarecendo que a própria instituição SUDENE ao ser criada
no ano de 1959, contava originalmente com os subsídios de estudos realizados
anteriormente durante a década de 1950 por Celso Furtado e outros estudiosos da antiga
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), a qual analisou como se deu à
evolução econômica do Brasil e de suas regiões, com atenção especial aos problemas do
Nordeste.
A partir dessas pesquisas surgiu inicialmente em 1957 o GTDN (Grupo de
Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste), o qual serviu posteriormente com seus
trabalhos, de base para a criação e a plataforma de atuação da SUDENE. (SANDRONI, 1994,
p. 47 e 340)
Foram então estudados os limites do mercado, contradições regionais e as
probabilidades em casos de investimentos oficiais naquela rego, levando-se em
consideração o novo enquadramento regional da distribuição das riquezas.
Dentro de toda essa conjuntura de desenvolvimento e modernização da economia
nacional, o Setor Elétrico foi considerado um dos setores prioritários de infra-estrutura,
compondo especialmente no Plano de Metas do governo Juscelino Kubitscheck o binômio
central energia-transporte. Esse governo estabelece com o citado plano, importantes balizas
de poticas institucionais que se estendem para além do mandato dele próprio, exercendo as
suas linhas gerais muita influência durante toda a década de 1960, (LESSA, 1983, p. 34).
Porém, aqui neste ponto, se faz necessário voltarmos um pouco numa rápida
retrospectiva, para podermos analisar mais de perto o processo de constituição deste setor
básico, que é o Setor Elétrico.
Nesse rumo, verificamos que o início da geração de energia no Brasil é marcado
pelo predonio do setor produtivo privado, que se antecipa à ação do poder executivo central
e investe no atendimento de suas demandas empresariais, como é o caso da construção em
25
1889 da primeira usina hidrelétrica da América do Sul, feita em Juiz de Fora - MG por um
industrial do ramo têxtil. Inclusive no Nordeste esse pioneirismo do setor privado se fez
presente, pois a primeira hidrelétrica nordestina, construída em 1913 no estado de Alagoas, às
margens do rio São Francisco, foi idealizada pelo empresário Delmiro Gouveia para fazer
funcionar sua fábrica de tecidos.
Não é à toa que a eletricidade vem junto com a industrialização, pois ao atender a
demanda geral por esse serviço motiva-se toda uma cadeia de condições básicas para o
avanço do processo de desenvolvimento produtivo estrutural, sendo importante frisar que
desde o início a produção das usinas é voltada prioritariamente para o setor industrial.
Contudo, passada essa fase inicial de vanguarda do setor privado no surgimento
localizado das primeiras usinas hidrelétricas brasileiras, ocorre no Brasil à disseminação de
empresas estrangeiras de energia que praticamente monopolizam os grandes mercados
nacionais, escapando aí somente as pequenas usinas geradoras nos centros periféricos e nas
pequenas cidades.
Um pouco mais tarde, a partir de 1930, e fortemente em meados do século XX, é
que o Estado passa a assumir o papel central de produtor de energia, construindo para isso
rias hidrelétricas, num intenso processo de estruturação produtiva que pudesse modernizar
o mercado e potencializar o consumo em geral, visando na ponta final dessa iniciativa o
desenvolvimento nacional de conjunto.
Enfatizamos assim, que a iniciativa do Estado brasileiro na construção e no
funcionamento de uma poderosa rede de geração e distribuição de energia elétrica, assenta as
reais condições para uma efetiva expansão e consolidação da industrialização brasileira,
assumindo o Estado na época um papel de vanguarda na modernização do capitalismo
nacional.
Desse modo, na tentativa planejada de consolidar o capitalismo nacional através de
uma industrialização consistente, optava-se pelo modelo hidráulico de geração de energia,
solucionando o problema dos limites produtivos do modelo termelétrico, com altíssimos
custos operacionais, e garantindo também o atendimento do consumo doméstico crescente.
Essa trajetória marcante do Estado intervencionista no Brasil vai suplantando
gradativamente os segmentos privados predominantemente estrangeiros que haviam
dominado esse ramo de produção elétrica, sobretudo nos grandes centros urbanos desde o
final do século XIX e início do século XX.
Na ponta final desse longo processo de transformação produtiva, inicia-se também
partir daí, a substituição das pequenas usinas termelétricas espalhadas por médias e pequenas
26
cidades em todo o Brasil, através de uma gigantesca rede de linhas de transmissões de
energia, que passaram a interligar as grandes usinas as concessionárias blicas estaduais,
operação essa bem maior que só foi consolidada na década de 1970.
Este marco de superação de toda aquela incipiente estrutura produtiva anterior se
faz na medida em que se redirecionam os planejamentos dessa intervenção estatal para a
construção de uma grande infra-estrutura hidrelétrica que pudesse não atingir os grandes
centros nacionais, ou regionais como se preocupava especialmente a partir daí a SUDENE no
Nordeste, mas que essa energia pudesse também concretizar a interligação dos mercados
locais e regionais ao mercado nacional.
Portanto, começa-se a consolidação desse modelo de infra-estrutura produtiva
exatamente a partir da década de 1950 de onde datam a construção dos importantes sistemas
de produção de energia de FURNAS no Centro-Sul e da CHESF no Nordeste.
Depois disso, incorporam-se investimentos substanciais na década de 1960 com a
ampliação desses dois sistemas, se firmando definitivamente nos anos de 1970 com um
conjunto de usinas hidrelétricas, de potenciais variados, as quais passaram a garantir as
condições do avanço produtivo almejado.
Instituições como a SUDENE e a CHESF foram com certeza peças-chave nesse
processo de desenvolvimento econômico brasileiro, incentivando-se assim a criação de
inúmeras instrias e empresas no Nordeste, o que representou neste cenário um componente
importante do motor empreendedor da modernização nacional, enfatizando novamente que a
geração da energia é o centro desse processo de diversificação produtiva.
Para o melhor entendimento desse fato temos que rememorarmos que tal opção
pela aceleração da produção de energia demandava altos custos governamentais, pom
representava àquela época uma prioridade máxima do governo em garantir uma oferta
constante e segura desse produto, condição essa primária para o fortalecimento da economia
industrial brasileira em franca expansão.
Portanto, verificamos o início desse femeno de estruturação produtiva ainda no
final do século XIX com a instalação de dezenas de usinas no Centro-Sul, estendendo-se e
ampliando-se esse mesmo processo as regiões prioritárias do Nordeste a partir da década de
1940, sobretudo com a criação da CHESF e a construção da Usina de Paulo Afonso.
Ao pensarmos assim sobre o assunto da fomentação da industrialização no
Nordeste, e por extensão no Piauí, baseando-se nos estudos e na prioridade com que são
levados os próprios projetos empreendedores, percebemos que essa industrialização é
27
possível com a construção de toda essa base produtiva, compreendendo a geração de energia
elétrica um dos seus elementos constituintes centrais.
Pelo que começamos a apresentar aqui, podemos então afirmar de forma razoável,
que representam as construções de usinas hidrelétricas o ponto nevlgico das transformações
econômicas desse período, reforçando a importância da análise científica do tema específico
desta pesquisa que é a construção da Usina de Boa Esperança no estado do Piauí, obra que foi
planejada e executada ao longo desses vários governos, civis e militares, aqui citados.
(COHEBE, 1968a, Parte II- 1, Parte IV-1-16 e Parte V-1).
Para efeito, realizamos esta análise contextual respaldada em fontes bibliográficas,
algumas delas as quais comam a ser citadas no texto. Desse modo, procedemos então ao
levantamento dessas fontes e a análise com vistas à feição de uma caracterização geral desse
período e desses governos, direcionando nosso olhar para os temas gerais da potica e da
economia nacional do período em questão, a década de 1960.
Além das fontes bibliográficas, buscamos e encontramos algumas fontes
documentais junto a CHESF, empresa que em 1973 incorporou a COHEBE, esta que fora
criada no inicio da década de 1960 pelo governo federal, exatamente para coordenar a
construção da Usina de Boa Esperança.
A partir do contato com essas fontes documentais da COHEBE/ CHESF, pudemos
esclarecer muitos detalhes importantes de todo esse processo de mudanças transcorrido ao
longo de toda a década de 1960 no estado do Piauí por conta da construção da usina
hidrelétrica, mais especialmente ainda vistas essas mudanças na cidade de Guadalupe.
Assim, neste ponto dos investimentos na produção de energia elétrica,
especialmente os investimentos na região Nordeste, começamos a entrar diretamente na
temática central de nosso trabalho, haja vista que o projeto da usina hidrelétrica no Piauí
mantém forte correspondência com as poticas de planejamento econômico e investimentos
diretos nessa região, remontando mesmo ao começo da atuação da política sudenista no Piauí.
(O COOPERATIVISTA, 30/04/1965, p. 1).
Nessa análise, foi de fundamental importância a captura de informações junto ao
Arquivo blico do Piauí. Destacamos, sobretudo, as vastas informações conseguidas nos
jornais teresinenses da época estudada, especialmente matérias dos jornais “O
Cooperativista”, O Dia” e “Estado do Piauí”, os quais emitem incansavelmente e com
riquezas de detalhes tudo sobre o projeto de construção da usina hidrelétrica no Piauí.
Juntamente, identificamos nestas matérias jornalísticas, muitas polêmicas, e uma
reiterada propaganda oficial da obra, encontrando-se também interconexões entre as
28
discussões locais, regionais, nacionais, e até mundiais.
Identificamos então, a partir das análises conjuntas dessas fontes todas,
bibliografia geral, documentos e jornais, que o projeto da Usina de Boa Esperança no Piauí foi
uma das prioridades dos governos dessa década.
De início, encontramos registros de que a mencionada obra no Piauí fora
inicialmente conduzida pelo governo do presidente Juscelino Kubitscheck, quando foram
feitos os primeiros estudos e levantamento de dados, além da previsão de construção ainda no
final da década de 1950, começo de 1960, sendo que este projeto já fazia parte do primeiro
plano diretor da SUDENE também datado de 1960. (Ibidem, p. 1).
A idéia da obra então brota definitivamente no começo da década de 1960, se
alcançando aí o governo do presidente João Goulart, o qual define inclusive o início oficial do
projeto com a criação, em 1963, da Companhia Hidro-Elétrica de Boa Esperança, a COHEBE.
(CENTRO DA MEMÓRIA DA ELTRICIDADE NO BRASIL, 1988, p. 235).
Esta instituição, formada majoritariamente com capitais públicos, passara a partir
de então, a centralizar o andamento das obras da usina, atuando durante todo o processo de
construção, e após o seu término na operação inicial da usina, até que ser finalmente
incorporada pela CHESF, esta, a qual administra a usina até hoje. (O COOPERATIVISTA,
28/02/1965, p. 1).
As esse rápido começo, ainda no governo do presidente João Goulart, a maior
parte do direcionamento das obras da Usina de Boa Esperança, que vai do período de abril de
1964 até o ano de sua inauguração em 1970, passou às mãos dos governos militares,
respectivamente o período dos governos dos presidentes Humberto de Alencar Castelo
Branco, Artur da Costa e Silva, e finalmente Emílio Garrastazu Médici. Foi então durante
esses governos que se processou a efetiva construção dessa obra no Piauí.
Podemos aqui começar a refletir sobre o prolongamento desse projeto durante
tanto tempo, mais de sete anos de efetiva construção, e nesse período passando por quatro
governos. Isso sem considerarmos todos os estudos e planejamentos preliminares que
justificaram a viabilidade da obra, feitos desde 1955 até 1963, ano de criação da COHEBE e
de início da obra.
Portanto, comamos assim a delinear por um lado a grandeza da execução técnica
da obra da Usina de Boa Esperança, e por outro lado vamos verificando certa postergação na
sua condução política.
Continuando a partir deste ponto, com a análise das fontes jornalísticas,
percebemos que no Piauí da época, os jornais de Teresina se configuram como ambientes
29
privilegiados deste debate da construção da Usina de Boa Esperança e de todos os outros
temas a ela conexos, como por exemplo, os temas gerais do desenvolvimento do estado, as
disputas poticas locais, dentre outros, todos quase sempre passando pela questão do papel do
Piauí dentro desse contexto regional e nacional de modernização produtiva.
Assim se fazem presentes vários setores da sociedade piauiense, especialmente as
elites potica e intelectual do Piauí, que se destacam principalmente nos núcleos urbanos
maiores, como é o caso da capital Teresina. Neste caso, estes personagens exercem o papel de
massificar através de seus textos jornalísticos as notícias da redenção econômica do estado a
ser alcançada a partir dessa obra da usina hidrelétrica, trazendo assim consigo um verdadeiro
prenúncio de “boas esperaas” a estas paragens pouco desenvolvidas. (O DIA, 05/09/1963,
p. 2).
Entretanto, não menos freqüentes são as presenças de grupos menos otimistas com
as promessas surgidas com o projeto da usina no Piauí, como é o caso de alguns deres
políticos e comerciais da região norte do estado, especificamente os de Parnaíba, que ao
verificar a previsão de chegada tardia da energia de Boa Esperança naquela cidade, passam a
criticar a obra e a defender outras saídas para o seu problema local de falta de energia. (ODIA,
30/06/ 1969, p. 4).
Além destes, alguns líderes da região do Vale do rio Longá defendem o projeto de
uma outra hidrelétrica neste rio, para, segundo eles, terem garantida a sua própria redenção
econômica que não viria mais para aquela região com a prometida e sonhada energia da Usina
de Boa Esperança. (Ibidem, p.4).
Assim, priorizamos além do enfoque potico-econômico geral, a análise das
posições diversas ecoadas no seio da população piauiense, a qual em geral é informada a
respeito dessas transformações por meio destes órgãos de imprensa local, que fazem circular
as informações construídas por aqueles que defendiam o projeto, a maioria ligados ao
governo, à imprensa e ao comércio, verificando tamm a opinião de opositores, que mesmo
em menor quantidade, se fazem presentes.
Nesse debate, buscamos ainda, como contraponto decisivo, o ponto de vista dos
moradores de Guadalupe, população essa que se viu envolvida diretamente nesse processo de
mudanças desde o início com a chegada dos primeiros técnicos, tendo sido despertada a partir
dali uma intensa repercussão na cidade. Assim consideramos como fundamental as opiniões
desses moradores em relação à obra, e principalmente em relação à transferência da cidade
velha para uma nova estrutura urbana.
Definitivamente a partir daqui, passamos a confirmar a cidade de Guadalupe como
30
o foco central na nossa análise das conseqüências da construção da hidrelétrica no Piauí na
década de 1960.
Primeiramente, justificamos a importância central de Guadalupe pelo fato dela ter
sido escolhida por questões técnicas para sediar a mencionada usina, partindo-se então a partir
daí para a instalação definitiva dessa usina na margem piauiense do rio Parnaíba, a 80 km da
cidade de Floriano-PI, e com isso passando a funcionar a referida cidade como ponto de
suporte logístico direto do mencionado empreendimento. (CHESF, 1998, p. 45).
Além desse motivo, a transfencia dos moradores da cidade velha para a nova
cidade, toda constrda pela COHEBE com novos e modernos aspectos urbanísticos,
representou um fato marcante, e certamente traumático sob a ótica da maioria dos
guadalupenses.
Como um todo o processo de construção da usina na cidade de Guadalupe causou
inúmeros impactos sociais na medida em que todo esse conjunto de ações institucionais
rompera muitas formas de sociabilidades do núcleo urbano originário, requerendo assim uma
superação da perda das suas reminiscências históricas, e um outro esforço no sentido de
reconstruir seu modo de vida em outro local, com muitas características a partir dali surgidas.
Nesse caso, tanto ao processo de transferência das pessoas, como ao de construção
do novo pólo urbano, são conferidas atenções por parte dos responsáveis pela obra, o que não
impede de causar impactos que representaram mais ainda do que a transferência de local com
a correspondente alteração das estruturas físicas, causando, para além disso, interfencia
também nas relações sociais, a partir de então polarizadas pela obra e pela futura operação da
hidrelétrica.
Encontramo-nos com as fontes documentais municipais da época, especificamente
encontradas essas fontes na Prefeitura Municipal de Guadalupe (Livro de Registro de
Decretos-Leis Municipais, 1955-1971); Na Câmara Municipal (Livro de Atas de Audiências,
1950-1972); e ainda no Cartório Municipal (Livro de Registro de Imóveis, 1964 e 1968).
Todas essas fontes documentais do município de Guadalupe foram levantadas em
rias viagens realizadas até o município, procedendo-se a partir da identificação destas a
análise crítica e o seu devido aproveitamento nesta pesquisa.
Fomos então verificando que estas fontes documentais municipais nos revelavam
o debate da obra dentro da elite potica guadalupense, através de opiniões expressas como
reflexos em certa medida, das polêmicas gerais propagadas dentro de todo o conjunto dessa
comunidade.
Percebemos assim na análise dessas fontes municipais um reflexo predominante
31
das posições hegemônicas estaduais e nacionais, sendo assim conseguimos realizar uma
rápida análise da coneo dessa discussão bem local com as discussões encontradas nos
jornais de Teresina, estas últimas nas quais encontrarmos também algumas informações
específicas às mudanças estruturais realizadas na cidade de Guadalupe, relacionando assim
esses dois espaços locais de debate, o municipal e o estadual.
Destacamos ainda neste ponto da análise do universo local guadalupense, o
trabalho com as fontes orais conseguidas por meio de entrevistas temáticas especificamente
referentes à construção da usina e a transferência da cidade.
Neste início, pontuamos a importância do trabalho com a história oral pela
ampliação dos horizontes de pesquisa, fazendo com que os próprios personagens participem
da construção dos registros históricos e, com isso, criando-se inclusive, oportunidades para os
historiadores profissionais se adaptarem a essas novas perspectivas teórico-metodológicas.
Vejamos a seguir o comentário de Nascimento (2005) sobre a discussão da
importância e as lições do trabalho com a história oral:
Acredita-se na História Oral porque ela pesquisa a memória de indivíduos
como desafio a essa memória concentrada em mãos restritas de
historiadores profissionais. Por outro lado, deve-se considerar que o recurso
da história contribui de forma inestimável para a preservação da memória.
Essa, por sua vez, é um processo que acontece agora, quando o texto es
sendo pensado e construído, por uma razão muito simples: todos dele
participam. (NASCIMENTO, 2005, p. 9).
Alargando um pouco análise sobre a história oral, trazemos a tona a discussão da
importância social da participação das fontes orais em pesquisas científicas como a nossa,
repercutindo o uso dessas fontes como uma oportunidade de darmos voz as pessoas, muitas
delas não consideradas em outros processos de registro histórico, proporcionando assim o
nosso texto um espaço para o exercício dessa participação diversa.
Os avanços da história oral provam que, mais que um modismo, ela é uma
variante do conhecimento e, assim, não mero resultado de uma onda
passageira. A história oral responde a necessidade de preenchimento de
espaços capazes de dar sentido a uma cultura explicativa dos atos sociais
vistos pelas pessoas que herdam os dilemas e as benesses da vida no
presente. Sua versão do processo, porém, deve ser um legado de domínio
público. A necessidade da história oral se fundamenta no direito de
participação social, e nesse sentido está ligada ao direito de cidadania. (BOM
MEIHY, 2002, p. 20).
Basicamente, realizamos essas entrevistas junto a seis moradores da cidade, dos
32
quais temos entre eles dois prefeitos da época da construção da obra e da transferência da
cidade. Temos também uma tabeliã pública, uma professora, uma dona-de-casa, e uma
empregada doméstica, sendo que todos viveram efetivamente na cidade de Guadalupe durante
esse período de transformão geral.
Esclarecemos ainda que escolhemos apenas seis entrevistados por um critério de
amostragem com vistas a praticidade de nosso trabalho de pesquisa dentro do tempo que
dispúnhamos, sendo que os mesmos foram escolhidos segundo os critérios de idade,
especialmente também a vivência desse período histórico, além do critério de
diversificação social e funcional que eles representam para efeitos de interpretação sob óticas
de vida diferenciadas dentro da nossa análise crítica e da reconstrução narrativa do tema de
estudo. Por fim, deixamos claro que além de nossos entrevistados outros moradores com
opiniões importantes a serem consideradas em pesquisas futuras.
Assim, a partir de algumas viagens que fizemos até a cidade, encontrando-se
com esses nossos entrevistados, passamos a colher uma imensa variedade de informações que
nos abriram surpreendentemente os horizontes de nossa pesquisa, e por fim foram sendo
apresentadas partes dessas falas em nosso texto narrativo.
É claro que não pudemos citar todos, nem muito menos tudo de todos, mas
certamente buscamos aqui apresentar o que consideramos o que de mais interessante
descobrimos nesse nosso fortuito encontro com as fontes orais.
São as entrevistas desses moradores que nos fazem viajar no tempo e lembrarmos
até mesmo um pouco de nossa infância, numa referência direta a nossa vida nesta cidade e,
sobretudo, lembramos das histórias contadas pelos nossos próprios pais a respeito desta
mesma cidade. Todos estes relatos de vidas se inserem num conjunto de informações
apreendidas que reforçam esta ligação que temos com a cidade de Guadalupe.
Sendo assim, esses encontros com as fontes orais repercutiram em nosso estudo
como peças centrais na interpretação das mudaas naquela cidade, pois estas mesmas fontes
orais evidenciam detalhes das discussões e das transformações no cotidiano da época por
conta da obra, informações repassadas com a riqueza das falas de quem vivenciou bem de
perto todo esse processo de proporções múltiplas.
Ao trabalharmos com estas fontes orais vamos sentindo uma grande importância
das falas narrativas no andamento do nosso texto. Ao mesmo tempo, passamos a trilhar um
caminho de encontro entre história, história oral e memória, sendo que, nesse sentido,
podemos nos valer de algumas passagens da obra de Bom Meihy (2002) para situarmos os
limites entre essas áreas teórico-metodológicas.
33
Logo a seguir destacamos uma dessas considerações gerais acerca desses
encontros e desencontros temáticos, começando pela discussão acerca da memória:
Toda narrativa tem um conteúdo de passado. Contudo, é preciso distinguir a
memória individual da que é conhecida como grupal. A memória pessoal é
biológica e cultural, enquanto a grupal é essencialmente cultural e
transcendente. O passado contido na memória é dinâmico como a própria
memória individual ou grupal. Enquanto a narrativa da memória não se
consubstancia em um documento escrito, ela é mutável e sofre variações
que vão da ênfase e da entonação a silêncios e disfarces. (BOM MEIHY
2002, p. 52).
A medida em que começamos a tocar nessas questões próprias da história oral e da
memória, vamos identificando as diferenciações entre os diversos tipos de fontes e de
métodos de pesquisa.
Continuando a discussão analisando um pouco mais as relações entre o passado e
o presente, e aí, encontramos a ligação direta da memória com a história, e vive-versa,
ressalvadas também as devidas diferenças entre as áreas. Sobre isso vejamos a seguir um
trecho esclarecedor:
Memória, imaginação e representação são bases que sustentam qualquer
narrativa sobre o passado e o presente. Nesse sentido, a história mantém um
vínculo importante com a questão da memória, e vise-versa. A transposição
das narrativas da memória para a história, a sociologia, a antropologia ou
qualquer disciplina acadêmica, no entanto, se na capacidade de diálogo
entre a memória, a mediação da história oral e a história ou suas correlatas
irmãs. A história como disciplina tem sido particularmente desafiada pelas
provocações do uso da memória grupal, que inclusive, em alguns casos, tem
sido erroneamente confundida com ela. (Id. Ibidem. p. 53).
É nesse espaço, que damos voz a algumas autoridades municipais com suas
parcelas de decisões poticas nestes eventos, e também a alguns moradores comuns de
Guadalupe, os quais se viram envolvidos nessa odisséia com poucas opções de
argumentações, seja em relação ao despejo da cidade velha com todos os seus significados de
perda e sacrifício, seja ainda na própria mudança para o novo assentamento urbano com as
dificuldades de adaptações, num processo verdadeiramente delicado de reconstrução de
memórias e vivências, e de prosseguimento de suas “novas vidas”.
Portanto, o contato com as fontes orais trouxe para esta pesquisa um
contrabalanceamento indispensável a uma percepção conclusiva menos tecnocrata, e
principalmente mais próximo às sensibilidades interpretativas desses personagens.
34
Corroborando as informações das entrevistas, encontramos também alguns textos
escritos pelos próprios moradores, além de documentos oficiais encontrados com os mesmos,
como algumas Atas da Prefeitura e da Câmara da época da cidade velha, além de outras
fontes, como um discurso do senhor João Alencar, prefeito da época da
construção/transferência, uma compilação de dados históricos, feita pelos moradores por
ocasião da primeira Festa da Saudade realizada em 1975, e ainda duas compilações de textos
e de imagens sobre a construção da usina, trabalhos organizados pelo guadalupense senhor
Carlos Morais.
Com esses motes diversos, especialmente iniciados pelo nosso contato com as
fontes orais e, principalmente, por causa dos sentimentos específicos vividos pelos moradores
desta cidade, fomos encaixando as interpretações da pesquisa, prioritariamente na inter-
relação entre as informações das entrevistas e às informações dos documentos, dos jornais e
da bibliografia geral, priorizando a partir desse momento no texto as narrativas desses seis
moradores da cidade, com idades e profissões diferentes, os quais viveram bem de perto todo
esse processo de fortes resultados sociais, econômicos, poticos e culturais para Guadalupe e
para o Piauí.
Em mais uma passagem sobre a importância da memória para a história,
encontramos um trecho da obra de Jacques Le Goff, no qual se menciona uma função da
memória que é a recuperação do passado a ser utilizado no presente e no futuro, refletindo-se
ainda no texto uma tarefa de libertação proporcionada pelas memórias coletivas.
A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Deve-se trabalhar de
forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão
dos homens. (LE GOFF, 2003, p. 471)
Ao prosseguirmos, no texto, fomos somando, e, às vezes confrontando todas essas
fontes escritas às informações apresentadas nas entrevistas feitas com alguns moradores
remanescentes da velha cidade, percebendo num olhar geral, um tom sempre saudoso, rico de
detalhes, e mesmo carismático com que todas essas fontes orais transpiram a história de vida
daquele lugar, dos seus habitantes que lá viveram e que de lá vieram com suas memórias.
Este trabalho divide-se em dois capítulos, sendo que no primeiro, intitulado A
MARCHA PARA O NORDESTE: A modernização nacional e o Piauí partimos de uma
contextualização geral da cada de 1960, enfocando especialmente os traços das políticas
econômicas dessa época, com um espaço especial para as medidas de integração nacional,
35
especialmente com a criação da SUDENE e seu direcionamento institucional à região
Nordeste.
A partir dessa contextualização, analisamos as condições gerais de realização e as
mudanças ocorridas por conta dos investimentos estatais nos setores de infra-estrutura
produtiva, destacando-se aí o Setor Elétrico, a sua formação e a sua evolão ao longo deste
mesmo período. Neste ponto do primeiro capítulo, começamos a tocar no investimento
governamental realizado no Piauí por conta da obra da Usina de Boa Esperança e, assim,
vamos prosseguindo com a discussão geral acerca do processo de inserção da economia
regional no capitalismo nacional em meados do século XX, refletindo os traços gerais dessas
transformações na sociedade piauiense.
No segundo capítulo, intitulado GUADALUPE E A USINA DE BOA
ESPERANÇA, tratamos especialmente da repercussão da construção dessa obra em
Guadalupe cidade-sede abalada com as demandas da obra, verificando-se então a relação
direta entre Guadalupe e a obra da usina, relacionando ainda de forma geral as discussões
municipais e estaduais.
Assim, neste segundo capítulo apresentamos uma descrição do surgimento inicial,
da chegada dos primeiros moradores, da fundação como vila e depois como cidade, chegando
até a transferência para a nova cidade.
Eis o roteiro geral da nossa narrativa, fechando assim com este segundo capítulo,
que trata especialmente de Guadalupe e de suas histórias. Com esse trabalho, acreditamos ter
reconstrdo uma parte rica da memória da cidade, memórias até então esquecidas, mas aqui
para sempre lembradas.
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CAPÍTULO – 1
A MARCHA PARA O NORDESTE: A modernização nacional e o Piauí
1.1 - Intervencionismo estatal e modernização do capitalismo nacional
Referir-se à expressão “marcha” traz para nós algumas lembranças históricas
sempre marcadas de grandes deslocamentos expansionistas, de dominação, de migração, etc.
Especificamente no caso do Brasil, alguns desses grandes deslocamentos existiram desde seu
princípio nacional formador, como é o caso do processo de interiorização da colônia, o
chamado desbravamento dos “sertões de dentro”.
Avançando bem rapidamente em nossas lembranças, e aproximando de nossa
temática contextual que é o desenvolvimento industrial brasileiro em meados do século XX,
encontramos na migração dos nordestinos ao Centro-Sul em busca de uma vida melhor, um
exemplo de uma grande marcha humana. Entretanto esta em especial, insere-se na conjuntura
nacional de concentração produtiva de riquezas, que produz e alimenta-se continuamente de
desequilíbrios regionais.
A partir desse contexto produtivo brasileiro, intensificado a partir das décadas de
1950 e de 1960, começamos a visualizar outra marcha que surge de certa forma, em
contrapartida a migração de nordestinos, uma marcha não de pessoas e não no sentido
Nordeste-Centro-Sul. Mas uma marcha institucional e em sentido inverso, partindo do
Centro para cá, essa que nós chamamos de “Marcha para o Nordeste”.
De logo esclarecemos que essa iniciativa de olhar esta região, mesmo sendo na
contramão desse eixo preferencial ao Centro-Sul, é muito mais complementar do que oposta a
grande migração de nordestinos, pois consideramos que a disponibilização de mão-de-obra
nos grandes centros sempre foi uma prioridade, mesmo pesando seus altos custos sociais. Por
isso, continuou ocorrendo essa migração, porém, buscando-se a partir daí amenizar algumas
das suas conseqüências negativas.
É aqui, ao questionarmos o quê e para quê marchou que começamos o nosso
debate, e então, enfatizamos que não nos referimos a deslocamentos massivos de pessoas ao
Nordeste, nesse caso seria até um sonho pensar na volta dos nordestinos a sua terra.
37
Não, isso não ocorreu, estes brasileiros continuaram nas décadas de 1950, 1960,
1970 e até nos dias atuais, sendo recrutados naquela região mais industrializada, sendo esta
então, uma característica essencial do processo de desenvolvimento produtivo brasileiro.
No caso, trata-se sim de dedicar a esta região do Brasil uma atenção institucional
até então inédita, e por meio desta intervenção planejada, penetrar em mercados estagnados
por culturas econômicas atrasadas.
Dessa forma, ao invés de pessoas, deslocaram-se capitais relativamente vultosos,
os quais objetivavam uma diversificação vital que pudesse ligar definitivamente estes sertões
ao mercado nacional, expandindo e consolidando este mercado interna e externamente.
Enfatiza-se nesse caso, a iniciativa dos governos Getúlio Vargas, Juscelino
Kubitscheck e João Goulart, pois cada um com suas características próprias e suas orientações
pioneiras, tinham como objetivo geral promover gradualmente a independência econômica do
Brasil em relação as grandes potências.
De certo modo se torna para nós hoje um pouco compreensível o fato desses
governos brasileiros, terem optado pela linha político-institucional do intervencionismo, pois
viveu o mundo capitalista poderosas crises, que senão em seu todo questionaram a sua
sobrevivência, mas em repetidos momentos dificultaram a sua engrenagem produtiva mundial
dentro das regras liberais dos países dominantes.
Em geral, esses três governos utilizavam-se das práticas as mais diversas para
fomentar e direcionar o desenvolvimento econômico brasileiro através da construção de um
grande parque industrial que pudesse gerar condições para o país crescer de forma
consistente, integrada e autônoma.
Com esse objetivo geral a intervenção do Estado concentra-se em alguns temas
considerados decisivos como emancipação econômica, industrialização, ocupação do
território, reintegração das relações cidade-campo, ruptura da dependência semicolonial,
etc. (IANNI, 1988, p. 74).
Assim, conquistar-se-ia gradualmente uma maior independência em relação as
grandes potências, numa redefinição potico-econômica sem a intenção, pelo menos
diretamente, de causar rompimentos, constituindo com isso um capitalismo inspirado nas
idéias de nacionalismo.
Tais idéias, inclusive, extrapolam os limites da ação do Estado, difundindo-se
entre os mais variados elementos da sociedade brasileira, principalmente em setores
consideráveis das elites potica, econômica, militar e intelectual.
38
É com esse sentido de reposicionamento político produtivo, e com uma
participação diferenciada de parcelas das classes média e alta, que
o nacionalismo econômico revelou-se como uma manifestação da idéia de
desenvolvimento, industrialização e independência, em face dos interesses
econômicos dos países dominantes. A idéia de economia nacional implicava
na nacionalização das decisões sobre política econômica. A emancipação
econômica de que falavam governantes, empresários, técnicos, líderes
políticos e militares não era outra coisa senão a manifestação da consciência
de que era possível e necessário criar novas condições (políticas tanto quanto
econômicas) para formar-se uma economia organizada nos moldes de um
capitalismo de tipo nacional. Nesse sentido, para essas classes e grupos
sociais, era possível conquistar nova posição para o Brasil, nas relações
internacionais. (IANNI, 1991, p. 80).
Nesse sentido, tais governos tiveram o papel empreendedor e idealista de operar
grandes investimentos capazes de fazer avançar e inserir o Brasil de forma autônoma na
Divisão Internacional do Trabalho, o que por si fez destes os responsáveis, direta ou
indiretamente, por várias mudanças transcorridas nessa época.
Podemos dizer assim, que o início dessa trajetória se deu com a presença de
Getúlio Vargas no poder, o qual começou a aplicar um projeto não tão aprimorado, e que
apesar de ter enfrentado forte oposição interna e externa em determinados momentos, deve ser
visto como o governo que canaliza esforços na intenção de fazer o país assumir tais propostas
industrializantes.
Então a partir de 1930 até os anos de 1940, chegando também na primeira metade
da década de 1950, inicia-se um projeto de inversão de capitais blicos em setores
prioritários para a modernização ecomica nacional, sendo esta decisão decisiva no
polêmico debate político-econômico da instria versus a agropecuária.
Chegando esta discussão a segunda metade da década de 1950, vemos como o
presidente Juscelino Kubitschek assume alguns desses itens, tratando desde o início de
diferenciar-se do governo de Getúlio Vargas, e assim optando por uma posição de maior
depenncia financeira externa.
Destaca-se então o presidente Juscelino Kubitscheck em sua condução política
com a iniciativa de formalizar um relevante programa institucional de investimentos na
dinamização da economia interna, esforço qualitativo de planejamento que ficou conhecido
como o Plano de Metas.
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Em fins de 1956, dando resposta ao quadro de tensões antes descrito, o
governo formulou um ambicioso conjunto de objetivos setoriais, conhecido
por Plano de Metas, que constitui a mais sólida decisão consciente em prol
da industrialização na história econômica do país. Estes objetivos iriam
servir durante os próximos cinco anos de norteio à política econômica e, em
certos aspectos, ao longo de sua execução suas postulações iniciais foram
superadas e seu caráter de política de desenvolvimento industrial
confirmado. (LESSA, 1983, p. 27).
No esteio de toda essa potica ecomica do governo Juscelino Kubitscheck, veio
o inovador projeto da SUDENE, e junto com ela todo um conjunto de medidas especialmente
direcionadas a chamada região-problema que era a região Nordeste. Esta por sua vez, seria
colocada numa posição crucial para o seu desenvolvimento, e em maior análise, como um
ponto estratégico da expansão produtiva nacional em curso.
É justamente esse o momento histórico pertinente ao nosso trabalho, entre o
governo de Juscelino Kubitschek que vai de meados da década de 1950 até o ano de 1960,
passando rapidamente pelo polêmico presidente Jânio Quadros que ainda governou o Brasil
do começo de 1961 até agosto do mesmo ano, quando o mesmo renunciou.
Neste momento histórico da vida potica do Brasil, temos uma crise institucional
de resistências quanto à posse do vice-presidente João Goulart no cargo de presidente, já que
o titular eleito havia renunciado. Depois de muita pressão, finalmente João Goulart assume a
presidência e inicia o seu governo em setembro de 1961, tendo que neste primeiro momento
que dividir seu poder executivo com o parlamento.
Mesmo resolvida esta disputa inicial em torno da sua posse, e posteriormente a
disputa plebiscitária pela efetivação total do poder executivo do presidente, o governo do
presidente João Goulart prossegue imerso numa complicada crise institucional, a qual fora
alimentada, sobretudo pelas resistências conservadoras a uma série de medidas propostas pelo
governo, as “Reformas de Base”. Segue-se então esta crise até abril de 1964, quando ocorre o
golpe militar.
É nesse cenário conturbado que encontramos fatores de destaque dessas
transformações gerais por que passam o Brasil, e com referência a alguns desses importantes
acontecimentos, podemos afirmar que são os anos 60 uma fase típica da política econômica
brasileira. É este um momento histórico em que surgem preocupações a longo prazo e não
somente a simples integração vertical da indústria. (Id. Ibidem, p. 12).
Tentando entender especificamente o governo de João Goulart, podemos dizer que
ele junta um pouco das propostas de seus dois principais predecessores, Getúlio Vargas e
Juscelino Kubitschek, os quais começaram a aplicar um projeto de industrialização nacional.
40
Porém, ao mesmo tempo em que João Goulart continua esse projeto ele também
detona pontos de cisão social, reflexo das contraditórias demandas de classes, sendo tão tensa
e contraditória a sua tentativa de conciliar diferentes posicionamentos políticos nesse
momento extremamente conturbado da história brasileira.
Um dos pontos mais delicados dessa discussão é a questão fundiária, esta que
rende não argumentos em enfrentamento, mas também chega a tomar ares de luta social
aberta, desencadeando-se a partir de qualquer novo gesto político de ambos os setores, sejam
de direita ou de esquerda, cada qual com suas correntes variáveis.
As esses três governos civis, chegamos aos governos militares de Castelo
Branco, Costa e Silva e Garrastazu Médici, os quais a partir do golpe em 1964, rompem com
as regras poticas democráticas, e com isso afastam-se também de toda essa orientação de
relativa independência potico-econômica externa ensaiada por governos anteriores a eles.
Entretanto, os governos militares assumem em certa forma, medidas intervencionistas de
incentivo à industrialização através do investimento em obras de infra-estrutura, destacando
nesses e nos outros citados os investimentos na construção de hidrelétricas.
Passando um pouco mais adiante por essa contextualização geral, percebemos que
a economia brasileira prosseguia num estágio de adequação às transformações do capitalismo
mundial desde a crise de 1929, e desde o final da Segunda Guerra Mundial. No entanto, o
Brasil guinava-se a um caminho de certa independência produtiva dentro desse quadro
internacional, e assim comava a esboçar um papel mais altivo na dinâmica capitalista.
Foi justamente com esta intenção que se deu continuidade a proposta política
brasileira de Substituição de Importações, motivada, sobretudo pelas duas guerras mundiais,
trazendo ainda no embalo desses acontecimentos mundiais, o aprofundamento das poticas
intervencionistas estatais que destinavam pesados investimentos as obras de infra-estrutura
básica.
Observamos, então, que as mudanças setoriais e estruturais processadas nesse
momento de consolidação da industrialização brasileira relacionam-se diretamente tanto a
fatores internos quanto externos, especialmente no período final da década de 1950, passando
pela década de 1960 inteira, e estendendo até meados da década de 1970.
Podemos dizer ainda, que essas transformações poticas e econômicas nacionais
são reflexos dos acontecimentos da conjuntura mundial, numa certa relação dialética de causa
e efeito recíproca. E que, apesar das tensões e atritos gerados, interna e externamente, pelos
governos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, cada um com suas
peculiaridades próprias, todos eles objetivavam uma intensa e rápida modernização do
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capitalismo nacional, reforçando quase sempre e de forma geral as suas conexões com o
mercado internacional.
Ésobre esse compostoconjuntural Ianni defende que
a história da industrialização no Brasil é ao mesmo tempo a história das relões
com os pses que desempenham papéis dominantes. Os progressos da produção
fabril colocam em confronto e em encadeamento a história nacional e a história
universal. A hisria brasileira, mais uma vez, funde-se e ilumina-se na hisria do
capitalismo. Em boa parte, aquela é função desta. Neste sentido é que se pode
reconstruir as etapas da formação do setor industrial, como cleo dinâmico do
desenvolvimento nacional. As fases de evolução desse setor não se constroem
senão como modos específicos de relacionamentos entre a economia brasileira e os
sistemas econômicos externos, com os quais o Brasil se acha ligado em cada fase.
(1988, p. 30).
Estas conexões foram revistas e mantidas durante os governos militares, pom
sob regras mais estritas de dependência externa, assegurando a partir daí o fluxo intenso de
capitais estrangeiros que financiaram boa parte do crescimento surpreendente do Brasil
durante essa época do chamado “Milagre Econômico”.
Portanto, percebemos que todas essas transformões ocorridas no Brasil por conta da
diversificação de seu mercado interno, incluindo-se inclusive a iniciativa pioneira de integrar a região
Nordeste, sãocompreendidas num contexto mais amplode mudanças provocadas por desdobramentos
internos e externos, relacionando-se assim a ebulição potica da sociedade brasileira, e também
associando-se esse fato a considerável importância comercial do paísno mercado internacional.
1.2 - A SUDENE no “nordeste do Nordeste”
Pensando no Brasil e no Nordeste construímos nossa análise não como um
veredicto em que ousaríamos avaliar o alcance final dessas mudanças, mas muito mais atentos
à recepção do discurso de modernização, e a partir dos elementos que florescem neste
contexto regional-nacional, identificar as colocações poticas diversas.
Olhando de perto esses posicionamentos percebemos que ora transparecem
repetições do debate mais nacional, ora também se revelam em posicionamentos originais dos
personagens locais, percebendo ativamente o Piauí dentro desse caldeirão em que o mesmo se
insere.
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Voltando-se inicialmente ao Piauí no âmago do nosso tema específico, verificamos
que os acontecimentos nacionais importantes desse período repercutiram muito na sociedade
local, a qual certamente não pode ser vista como um dos cenários centrais dessa odisséia
brasileira.
Entretanto, observamos a vazão dessas diversas polêmicas argumentativas nas
vozes de diferentes personagens nos jornais da capital Teresina, que montam um quadro
consideravelmente variado desse debate, e nos mostram que essa região é um dos destinos
rotineiros dos temas nacionais, surgindo aqui o projeto da Usina de Boa Esperança como
protagonista nesse debate.
Observamos então que repercutem aqui no Piauí temas variados como
intervencionismo, desenvolvimento industrial, SUDENE, nacionalismo, urbanização, reforma
agrária, comunismo, assim como a cobertura de fatos marcantes como as eleições
presidenciais, a renúncia de Jânio Quadros, a posse de João Goulart, o plebiscito de 1963, o
golpe de 1964, dentre outros.
Todos estes fatos poticos nacionais marcantes povoam os jornais de Teresina,
trazendo para a capital piauiense todo o calor desse debate político ideológico, em matérias
recheadas de posicionamentos diversos, desde o tradicional discurso católico cristão anti-
comunista, até o pensamento anti-liberal e anti-trustes de controle de preços. Nesse meio se
fazia presente ainda dados técnicos que acrescentavam ingredientes nas disputas de palavras.
Focalizando assim na interpretação das nuances locais desse debate nacional,
especialmente no que tange ao processo de modernização produtiva com o tema do
desenvolvimento do Nordeste quase sempre ao centro, encontramos um fragmento do
ricochete dessas discussões da época, numa matéria veiculada pelo jornal O Globo do Rio de
Janeiro. (O DIA, 25/10/1969, p. 5).
A tal matéria foi republicada em Teresina num jornal local, e esclarece alguns
pontos próprios desse discurso de desenvolvimento chegando ao Piauí, tendo como centro a
defesa da atuação decisiva da SUDENE nesta região sempre em parceria com os governos
estaduais. (Ibidem).
Continuando, afirma-se que o que falta para o Piauí progredir é confiança dos
investidores nas suas possibilidades, o que mudaria com a construção da Hidrelétrica de Boa
Esperança, a qual seria o maior triunfo do estado, e nesse sentido governo e povo estariam
juntos para o sucesso do projeto. (Ibidem).
Por outro lado, critica especificamente o governo estadual piauiense, sendo o
mesmo responsável por sérios problemas estruturais que continuam nas cidades do interior e
43
mesmo na capital, Teresina. Nesses casos se misturariam despreparo e omissão, causando
assim a sua atrasada atuação potica uma desconexão entre as interveões institucionais e os
resultados esperados, ou seja, um sério comprometimento dos planos de desenvolvimento
local. (Ibidem).
Acrescenta ainda que a SUDENE exerce papel decisivo para impulsão do
desenvolvimento do Piauí, porém ao mesmo tempo constata que o estado é o menos
beneficiado pelo órgão federal, sendo que Bahia e Pernambuco mais privilegiados ficam com
73,7 % dos recursos direcionados ao Nordeste. (Ibidem).
Assim a matéria amplia as críticas a essa potica de investimentos e aponta esse
problema da concentração de recursos nas duas áreas nordestinas prioritárias, Salvador-BA e
Recife-PE, como uma séria limitação do sucesso aqui almejado.
Apesar deste ponto das ineficiências institucionais, encerra num tom otimista
reforçando a vocação piauiense para a pecuária, na medida em que a mesma atrai projetos de
indústrias. Por último, fecha esse grande comentário referindo-se ao principal tema do Piauí
na época, sobre o qual afirma: “a Hidrelétrica de Boa Esperança é a grande meta que pode
inspirar nos investidores a confiança de que o Piauí necessita.” (Ibidem, p. 5).
Não a toa que nesta discussão são destacados esses dois personagens poticos
institucionais, a SUDENE e o Governo do Estado do Piauí, pois eles agem na vanguarda dos
acontecimentos que sucedem todo o processo de modernização operado nestas terras, sendo
que a superintenncia federal possui um papel preponderante dada a sua eminente e objetiva
criação dentro desse horizonte geral em reformulação.
É então dentro de toda essa reconfiguração potica e econômica nacional-regional,
que se insere este novo órgão, que procura gradativamente se inteirar das características
históricas da formação do Nordeste, produzindo inúmeros estudos e pesquisas na tentativa de
obter um diagnóstico cada vez mais detalhado do problema do crescente atraso econômico
regional.
A proposta de desenvolvimento aqui focalizada com contundentes motivadores
político-econômico-sociais, foi possível com o nascimento e a atuação planejada dessa
importante agência de planejamento do desenvolvimento econômico regional, instituição
pioneira no país, criada em 1959 durante o governo de Juscelino Kubitscheck.
A instituição assim denominada de SUDENE, Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste, surgiu com o propósito de acrescentar ao Plano de Metas uma
atenção ao setor agropecuário nordestino, tentando fazer uma ligação mais eficaz entre este
44
setor e as metas prioritárias industrializantes, que assim pudesse haver completudes e não
entraves estruturais. Para tanto, é que
em 1959 ganha conteúdo o propósito de dinamização das antigas regiões
primário-exportadoras, deixadas à margem pela industrialização concentrada
na região Centro-Sul, com a constituição da SUDENE – Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste entidade federal de planejamento regional
da principal área-problema. (LESSA, 1983, p. 27-28).
Dentro dessa ampla potica industrializante, o Estado brasileiro direciona seu foco
de atuação especificamente a região Nordeste, e assim passa a operar grandes inversões em
infra-estrutura para tentar diminuir a desvantagem dessa região em relação ao Centro-Sul.
(MOREIRA, 1979, p. 100).
Essa seria uma proposta de integração nacional que comporia uma complexa dinâmica
produtiva interna-externa, na qual representava os investimentos no Nordeste um plano decisivo de
expansão e consolidação do mercado nacional, na medida em que alargava as possibilidades
comerciais nacionais e tambéminternacionais.
Tendo em vista esse novo redimensionamento do desenvolvimento econômico
nacional, o Nordeste passa a ser considerado uma prioridade para investimentos públicos e
privados, o que caracteriza-se como um processo de redefinição da divisão regional do
trabalho no conjunto do território nacional. (OLIVEIRA, 1993, p. 37).
Foi então nesse quadro que ocorreu a crião desse óro executivo com o
objetivo de planejar e promover ações no sentido de resgatar o desenvolvimento da região,
voltando ainda sua atenção para as tensões sociais regionais, alvo de rias preocupações
políticas que terminaram por influenciar na formação da nova instituição federal, o que não
isenta o debate de sua crião de eventuais divergências nacionais, regionais e locais.
No casodo Piauí, a crião da SUDENEfoi retratada emmensagens que repetiam as falas
nacionais, como a matéria acerca do primeiro plano diretor da instituão, aparecendo aí às palavras
do presidente João Goulart defendendo a importância da instituão para o Nordeste, um discurso que
logo foi absorvido e repassado em outras oportunidades pelos interlocutores estaduais, sejam eles
poticos, jornalistas, comerciantese intelectuais. (OCOOPERATIVISTA, 30/06/1963, p. 4).
Logo em seu peodo inicial, a atuação da SUDENE passou a ser reivindicada aqui no
Piauí, especialmente por setores poticos locais alocados nos governos da época e interessados em
verbas para montar os servos públicos estaduais, além do interesse premente de comerciantes e
pequenos industriais do estado pelos incentivos fiscais vantajosos.
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Contudo, a SUDENE não foi uma unanimidade local nesse momento de definição de sua
atuação, pois no caso de alguns setores, poticos e econômicos piauienses, o descontentamento era
visível diante de tamanha discriminação do Piauí pela SUDENE, percebendo-se aí a posição de
quem estava fora do governo e assim fazia vigilância de verbas, além disso, a reflexão fatídica
de que se os investimentos quase não chegam a capital, o que diriam as outras cidades
médias e pequenas do estado. (O DIA, 24/12/1968, p. 3).
Por conta disso pedia-se ainda em 1965, pouco tempo depois da sua criação, que
houvesse uma reformulação das diretrizes da SUDENE no Piauí, ampliando-se com isso os
investimentos e o seu próprio foco de atuação no Nordeste, enfatizando-se nesse pedido a
posição de que no Piauí os empreendimentos da SUDENE dependem essencialmente da
Barragem de Boa Esperança. (ESTADO DO PIAUÍ, 24/06/1965, p. 2).
Não só no âmbito local, mas também no regional, no seio da elite agrária nordestina, a
SUDENE enfrentou dificuldades de aceitação, sendo muito contestada pelos seus políticos
tradicionais. No caso, foram esses que em sua maioria menos apoiaram a sua criação, defendendo
apenas a continuidade da atuão institucional do DNOCS na execução de políticas públicas voltadas
para o desenvolvimento regional do Nordeste, garantindo-se assim a potica de distribuição de verbas
já vigorante.
Constitui para muitos observadores um misrio que os representantes
parlamentares do Nordeste tenham-se constituído na verdade, na mais formidável
oposãoa criação do novo organismo e que, pelocontrio, oapoiolhes tenha sido
dado principalmente pelos parlamentares do Centro-Sul, aliados a poucos e
expressivos congressistas mais ligados à burguesia industrial nordestina.
(OLIVEIRA, 1993, p. 116).
O que os fazendeiros nordestinos temiam na verdade era perder o controle político e
ecomico sobre as riquezas regionais, controle esse determinado pela posse da terra e pela
dominação potica que essa classe dominante exercia sobre a populão nordestina, em sua maioria
de pobres agricultores.
Nesse sentido, a proposta da SUDENE representava no seu início uma ameaça aos
privilégios regionais já consolidados desses poderosos oligarcas, tendo em vista que o órgão federal
adotaria medidas estruturantes capazes de realizar a grande promessa do Nordeste como uma região
industrializada, gerando-se com isso alta concentração urbana e diminuindo progressivamente a
populãorural.
Já para alguns representantes do Nordeste ligados ao setor industrial e, sobretudo, para os
parlamentares do Sudeste, representantes da rica e forte burguesia daquela região central, o
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entusiasmo se fez presente com as possibilidades de lucratividade certa, dadas as isenções fiscais e as
deduções no Imposto de Renda pra aqueles que investissemcapitais em novas indústrias no Nordeste.
Não era uma simples empolgação com uma novidade comercial, era a certeza do sucesso garantido
pelaintervenção dos capitais públicos.
Sem saber se por coincidência ou não, encontramos o registro da passagem de um
deputado de SãoPaulo por essas terrasexatamentenesse peodo, numa caravana emque o mesmofez
para conhecer a real situão sócio-econômica dessa rego do Piauí, Maranhão e Pa, ts estados
vistos comatençãoprioritária pelo congressista paulista.
Mais do que registrar aqui a sua passagem, o deputado faz queso de proferir discurso
solene na CâmaraFederal norteado numprimeiro plano emtorno dos problemas que afligema rego,
como a falta de estradas, de energia, de indústrias, consequentemente diante da carência de tantos
elementos básicos perdurando aqui a condição de subdesenvolvimento. Num outro plano omesmo
parlamentar aponta as medidas prioritárias a serem consolidadas para se solucionar esses desníveis
locais frente à realidade de desenvolvimentonacional. (ODIA, 26/09/1963, p. 1).
Esta é uma das pontuações diretas dos discursos nacionais em direção ao Piauí, e um dos
motivos de destaque está justamente no fato dele ter partido de um representante político da região
mais industrializada do Brasil, a região Centro-Sul em especial o estado de São Paulo, com
preocupações gerais para com problemas que são regionais, mas que emsuma afetam no mesmo lance
ocenárionacional.
Dessa forma, o governo passou a adotar várias medidas, entre elas o incentivo a
importação de máquinas industriais com taxas cambiais que mantinham o valor de custo, e inclusive
em alguns casos, conseguia isenções sobre importões de determinados equipamentos, autorizando
ainda a concessão de diversos subsídios e outras vantagens na instalão e funcionamento de novas
indústrias naregião.
São justamente estas as principais tarefas da SUDENE, com destaque para esse poder de
criar empresas mistas, mesclando capitais públicos federais e estaduais, juntamente comos capitais do
setor privado, am de financiamentos estrangeiros. Este e outros papéis conferem a SUDENE o
cater de ineditismo no quadro potico administrativo, agindo assim de forma marcante para tornar o
Estado tambémprodutor no Nordeste. (OLIVEIRA, 1993, p. 116).
Esta atitude do governo revela uma grande atenção institucional na busca da
solução desse problema regional e, por conseguinte nacional. Percebemos, no entanto, que
esta preocupação existiu porque era praticamente impossível fazer progredir a
industrialização do Centro-Sul, numa escala cada vez maior de diversificação produtiva e de
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acumulação capitalista, sem enquadrar o mercado nordestino, e é que começamos a
entender as verdadeiras boas intenções de desenvolvimento para a chamada região-problema.
Partiu-se então da iia, vigorante na época, de que a única saída para o
subdesenvolvimento econômico da região Nordeste era a instria, prevendo-se até a sua
provável decadência final diante da não tentativa de reversão desse quadro crítico detectado.
Esse é ponto central do diagnóstico dos problemas e das perspectivas futuras da
SUDENE para o Nordeste, sendo que tais idéias estão cheias de certo determinismo. Nesse
sentido,
a industrialização seria o motor, por assim dizer, do processo que
impulsionaria o desenvolvimento. Seria a única alternativa para a região
Nordeste, muito mais que para as outras áreas, como vemos na citação: 'na
verdade, se para o Centro-Sul do Brasil a industrialização é uma forma
racional de abrir o caminho ao desenvolvimento, para o Nordeste ela é, em
certa medida, a única forma de abrir esse caminho. Caso se demonstrasse
que a solução é inviável, não restaria ao Nordeste senão a alternativa entre
despovoar-se ou permanecer como região de baixíssimo nível de renda.
(MOREIRA, 1979, p. 57).
Como se pode ver claramente na passagem acima, o caminho previsto para o
Nordeste não seria dos melhores, caso não se garantisse a sua própria industrialização. Aliás,
essa preocupante reflexão foi frequentemente propagada aqui nos jornais teresinenses,
referindo-se sempre as causas desse atraso econômico, e também na época, meados da década
de 1960, já na defesa da atuação da SUDENE como forma de solucionar esse problema.
Uma das análises mais correntes sobre a incapacidade e a estagnação econômica
nordestina é a que contempla a histórica decadência do seu papel agro-exportador no cenário
nacional, o qual se consumira num decnio interminável de suas principais culturas, o açúcar
e o algodão, sendo também nesse foco produtivo que a SUDENE mira sua atuação, como
nos referimos.
Diante de tamanho problema de estagnação da estrutura produtiva dessa região,
estrutura essa secularmente centrada na agro-exportação, o governo federal a partir do final da
década de 1950, sobretudo com o advento do Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck, tenta
criar um sistema produtivo regional forte e competitivo, estabelecendo raízes profundas de
uma estrutura industrial diversificada que pudesse desengatar a marcha ré e fizesse o Nordeste
evoluir progressivamente em direção a um desenvolvimento econômico auto-sustentado.
Entretanto, nesse caso do Nordeste, a industrialização não ocorreu propriamente
como a versão centro-sulista do processo de Substituição de Importações, pois a versão
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regional nordestina desse processo intervencionista de industrialização pode ser entendida
como uma espécie de diversificação geral da economia nacional, que redireciona
estrategicamente seus interesses agora para a região Nordeste, atraindo os investidores com os
tentadores incentivos concedidos.
Compondo assim em todo esse processo de transformação econômica, a iniciativa
de fomentar o desenvolvimento regional nordestino como uma alternativa importante para o
sucesso da expansão produtiva nesse período.
E com essa meta então, o Estado intervencionista exerce papel central na
constituição paulatina de um considerável parque industrial regional, como forma de
desconcentrar um pouco a produção do Centro-Sul e ampliar os seus mercados consumidores.
Essa seria então, a principal engrenagem desse mecanismo de modernização do capital
nacional.
A partir desse objetivo geral, a SUDENE concentra um maior volume de
investimentos em alguns centros urbanos regionais, notadamente nas áreas metropolitanas da
Grande Salvador na Bahia e da Grande Recife em Pernambuco.
A justificativa seria a de que esses los produtivos regionais exerceriam a função
primaz” de impulsionar o desenvolvimento nordestino, devendo com isso tentar reverter o
quadro de regressão econômica, e amenizar a degradação social crescente.
Porém, em se tratando do debate político-econômico nacional lembremos do fator
custo-benefício, que por um lado é elencado para o sucesso do plano traçado, e por outro
tende a comprometer em longo prazo o objetivo propagandeado de avanço geral dantes nunca
visto em todo o Nordeste.
É exatamente através desta guinada diríamos, cirúrgica, que a potica sudenista
também causa complicações, na medida em que se o objetivo era promover a integração
através da desconcentração econômica, como realizar esta tarefa através de medidas
concentracionistas, seria por assim dizer, uma desconcentração concentrada?
Na verdade o que percebemos é uma grande concentração de investimentos em
dois estados, o que provoca reações intra-regionais negativas por parte dos outros estados
nordestinos não atendidos a contento na política governamental de desenvolvimento e de
inserção da região no mercado nacional.
Essa situação desagrada os outros Nordestes”, os quais continuaram a seguir por
um bom período, e em alguns casos até hoje, num ritmo de descompasso produtivo frente às
transformações por que passa a economia nacional.
49
Novamente encontramos o Piauí como o mais afetado por esses problemas, pois o
mesmo, segundo os jornais de Teresina, estaria numa condição de quase esquecimento ao
receber apenas 0,3 % dos benefícios da SUDENE para incentivo a indústria, carecendo assim
o mesmo de uma atenção institucional bem maior.
No entanto, ao passo em que o jornal O Dia faz a denúncia de preterição do Piauí,
também argumenta uma provável justificativa deste esquecimento encontrada nas condições
infra-estruturais superiores dos grandes centros regionais nordestinos, deixando com isso de
aprofundar a reflexão de que o desenvolvimento desses centros se intensifica e se consolida
justamente com as medidas sudenistas, e não antes como deixa transparecer a matéria, sendo
que a priori, como sabemos, essas regiões também careciam de urgente intervenção, o que
representou principalmente para estes uma grande conquista potico-econômica. (O DIA,
25/10/1969, p. 5).
No mesmo rumo desse raciocínio crítico, se fizeram estudos específicos que
discutem as falhas dessas medidas intervencionistas na economia piauiense dentro do
Nordeste.
Constatou-se então, que desde a sua criação em 1959 até o ano da pesquisa em
1978, os incentivos da SUDENE no Piauí foram absolutamente ínfimos, os quais totalizam
recursos que aproximam-se das aplicações do POLONORDESTE em apenas três anos de
execução. (MARTINS, 1979, p. 235-236).
Em outras palavras, investiu-se aqui em vinte anos uma soma quase igual a que se
investiu concentradamente em Salvador e Recife em apenas três anos, o que evidentemente
logrou bons resultados para estes centros regionais.
Enfatiza-se ainda que uma parte considerada dos investimentos da SUDENE no
Piauí foi concentrada na construção da Usina de Boa Esperança, esta que poderia ser a tábua
de salvação, no entanto passa a ter um incompletude, na medida em que, após a conclusão
dessa grande obra de infra-estrutura, necessitava o estado de outras intervenções que fizesse
acontecer realmente esse desenvolvimento local.
Na ponta final dessa argumentação está a concluo da inviabilização do estado do
Piauí dentro dessas poticas de industrialização do Nordeste, na medida em que estas
compõem um programa cujos interesses fundamentais são de ordem nacional e não regional;
E ainda que, dentro do próprio Nordeste, o Programa de Industrialização funciona como
elemento concentrador, estimulando as disparidades dentro da Região. (Id. Ibidem, p. 237).
Concomitantemente a tudo isso, o que ocorre de fato é a franca expansão e
hegemonização da produção industrial localizada no Centro-Sul, com destaque para o estado
50
de São Paulo. É para lá que é direcionado o retorno buscado por essas medidas institucionais
no Nordeste.
É dessa forma então que é definido esse processo de avanço industrial, o qual
termina não atingindo de frente os crônicos problemas regionais mais gerais, apesar destes
terem sido elencados como motivos centrais para as alardeadas medidas da SUDENE.
A preocupação voltar-se-ia principalmente ao Centro-Sul e, nesse sentido, se
decidiu intervir localmente no processo produtivo, o que mais uma vez o estudo do
desenvolvimento do Piauí da época, afirma categoricamente que tal iniciativa potica é um
programa de cartas marcadas, objetivando antes ativar um processo de industrialização já
existente do que incorporar novas áreas. (Id. Ibidem, p. 237).
O Piauí nessa dinâmica toda pode ser considerado como o nordeste do Nordeste,
haja vista que o mesmo foi o menos contemplado nessa dinâmica nova anunciada, pois este
além de partir de uma condição econômica historicamente deficiente, é praticamente
desprezado neste contexto modernizante com o repasse de ínfimos 0,3 % dos investimentos
da SUDENE, tendo como único baluarte da auto-salvação a Usina de Boa Esperança, a qual
teria limites nos resultados e interesses para além das fronteiras piauienses. (Id. Ibidem, p.
242, grifo nosso).
A SUDENE é com certeza protagonista nesse debate da integração com
desconcentração produtiva. No entanto, no meio de todas as suas controvérsias o que
prevalecia era o seu caráter centralizador. Além disso, numa extensão argumentativa quase
automática, o seu projeto aventou desde o começo resolver os problemas estruturais
nordestinos, verificando-se também nesse ponto resultados não tão significativos.
Como parte das suas principais polêmicas iniciais, verificamos ainda que seu
projeto não foi bem aceito por consideráveis setores das tradicionais classes dirigentes
nordestinas. Isso bem no início mesmo, por que depois sua atuação institucional passou a ser
incorporada por estes também.
Em suma, podemos perceber a não solução dos problemas cio-econômicos
crônicos dessa região por meio das poticas sudenistas, no entanto, pelo menos sua atuação
apontou novas possibilidades através de rias estratégias planejadas e implementadas por
esse órgão federal, sendo certamente positivo o direcionamento de verbas federais para essa
região, retificando aqui é claro, o lado não positivo dos desvios costumeiros de parte dessas
verbas para favorecimentos escusos.
Por outro lado, em relação a esse sucesso das medidas intervencionistas,
identificamos os limites impostos com o característico economicismo tecnocrático bastante
51
presente na época nesses órgãos de planejamento, sem nos esquecermos da conhecida guerra
de barganhas poticas das oligarquias regionais. De antemão, verificamos que estes
problemas prejudicaram consideravelmente o alcance das metas dos planos originais.
Fica claro ainda, que a SUDENE deveria funcionar como óro estatal que
efetuasse uma intervenção planejada e monitorada do governo, remodelando a própria relação
do Estado com a sociedade nas suas relações com as diversas classes, encontrando-se aí seu
principal legado.
Foi então, imerso nessa mescla de contradições sócio-poticas e de interesses
econômicos segmentados, que se processou um considerável investimento industrial na região
Nordeste, alicerçando-se aí uma grande infra-estrutura de produção industrial básica e de
geração de serviços.
É justamente nessa reorientação da estrutura produtiva, que se encontra a principal
participação da SUDENE no Nordeste, contida nela o planejamento e a construção, mesmo
que parcialmente, de uma dinâmica econômica nova na sociedade nordestina, engrenada
fortemente pela intervenção estatal nacional, incluídas nesse contexto todas as inerentes
contradições técnicas e poticas, e os desvios e apropriações institucionais.
1.3 - Energia para quem tem fome de Indústrias
Nas raízes históricas de nosso país está fundamentalmente a marca da colonização
portuguesa, sendo que para o processo desta encontramos na poesia de Fernando Pessoa a
definição clássica de toda aquela época dos “descobrimentos”, os quais foram realizados de
acordo com a expressão máxima “navegar é preciso, viver não é preciso!”
Posteriormente, ao chegarem e se instalarem, os conquistadores inspiraram-se nas
palavras de Pero Vaz de Caminha e descobriram uma outra vocação, a de que “nessas terras,
em se plantando, tudo dá!”
Feita esta constatação, eles decidiram consolidar o seu domínio colocando
literalmente as suas mãos na terra para produzir o açúcar, dependendo aí fundamentalmente
da o-de-obra escrava africana. A partir de então, define-se o papel maior do setor agrícola
na produção econômica nacional, salvo outras atividades importantes como a mineração.
52
Portanto, num passado geral, considerou-se no Brasil, a atividade agrícola como a
principal e quase única vocação nacional, destacando-se ainda a rica passagem da produção
de café que alcançou até o século XX.
Depois dessa trajetória de formação, chegamos finalmente em outros tempos, à vez
da indústria brasileira despontar como der do processo produtivo nacional, germinando
ainda no final no século XIX com uma contribuição precisa de parte das excedentes
riquezas cafeeiras, aproveitando-se também da grande leva de migrantes europeus um pouco
mais afeitos a essas transformações nos moldes produtivos.
Deste ponto de incipiência no começo do século XX, até o seu efetivo crescimento
a partir da década de 1930, a opção pela industrialização se tornou uma condição essencial ao
desenvolvimento nacional, tendo ocorrido para isso, o enraizamento dessa estrutura produtiva
na sociedade.
De forma especial, essa transformação se fez determinante nas decisões do Estado
nacional, o qual comandou, e a partir das décadas de 1950 e 1960 aprofundou esse processo.
Toda esta trajeria marca a chegada no Brasil de um futuro potencialmente diferente de
outras realidades já vividas, e para isso decidira-se que industrializar era preciso!
Nesse caso, para viabilizar essa expansão econômica, foram necessários
investimentos numa infra-estrutura básica capaz de fornecer ao Brasil um suporte
indispensável para a sua industrialização. E aí, portanto, apontamos as constrões de
hidrelétricas como uma das ferramentas fundamentais para garantir o sucesso desse
empreendimento.
Entretanto, investir em geração de energia e nos demais setores de infra-estrutura
básica custa caro, e por essa razão o setor privado não se dispunha a mobilizar capitais para
essas novas áreas, obrigando o Estado a fazer pesadas inversões nesse setor estratégico.
Essa preocupação quanto à eletrificação dentre outras prioridades, é revelada na
passagem abaixo:
Nesse sentido fizeram-se estudos e apresentaram recomendações, bem como
projetos prioritários, sobre os seguintes aspectos da economia do país:
comércio, agricultura, pecuária. pesca, piscicultura, combustíveis,
mineração, indústria, transportes, eletricidade, mão-de-obra, assuntos ficais,
bancos, investimentos, financiamentos, discriminação de capitais etc.
(IANNI, 1991, p.105, grifo nosso)
Por isso ocorre uma disseminação acelerada de usinas sendo montadas pelo
poderes públicos federal, estadual e municipais, no Centro-Sul no final do século XIX e início
53
do século XX, passando decisivamente para a ação do governo federal a partir dos anos de
1930, com a chegada ao poder de Getúlio Vargas.
Esse momento histórico já marca também o início dos estudos e da destinão de
investimentos para o Setor Elétrico no Nordeste com a autorização para a formação da
CHESF, Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco, em 03 de outubro de 1945. (CHESF,
1998, p. 7)
Na verdade, havia naquele momento em todo o Brasil uma crise de demanda de
energia, problema que deveria ser sanado para garantir em primeira mão o aumento dos
investimentos privados no setor industrial do Centro-Sul. Concomitantemente nesse
raciocínio estavam as perspectivas de expandir os negócios para o Nordeste, abocanhando
assim o seu considerável mercado consumidor.
É a partir d que se estabelecem no Nordeste as condições para a construção das
usinas hidrelétricas da CHESF, iniciando-se efetivamente com a construção do complexo de
usinas de Paulo Afonso na Bahia, o qual foi continuado durante o segundo governo de Getúlio
Vargas no início da década de 1950, e prosseguido pelos governos de Juscelino Kubitschek e
de João Goulart.
Destacamos aqui as iniciativas do governo Juscelino Kubitscheck para o
crescimento desse setor, garantido daí em diante com a construção da usina de FURNAS no
Centro-Sul, e a decisão da criação da SUDENE que teve papel central no financiamento de
obras hidrelétricas no Nordeste.
Esse mesmo governo consolidou formalmente essas medidas institucionais dentro
do seu Plano de Metas, o qual focalizava o Setor Elétrico como uma de suas cinco metas
prioritárias (LESSA, 1983, p. 28), destacando-se aí o binômio energia-transporte como a
necessidade mais urgente e imprescindível prevista neste plano.
Esse foco prioritário foi trabalhado com afinco, como verificamos na passagem a
seguir que comenta ainda os prognósticos e ações previstas no Plano de Metas, no sentido de
acelerar a formação da infra-estrutura elétrica brasileira. E assim, para alcançar tal objetivo,
apontam-se metas de crescimento desse setor de produção básico que vão para além desse
governo até o ano de 1965.
Fazia-se necessário prever a manutenção de uma taxa de crescimento anual de
produção de energia elétrica pelo menos superior a 10% a.a. Para tal, foi
dimensionada a meta de amplião de capacidade instalada de energia elétrica e
correspondentes sistemas de distribuão, para 5.000.000 Kw em 1960, bem como
início de obras que elevassemem mais de 60% a capacidade em 1965. (Id. Ibidem,
p. 37, grifo nosso).
54
Nota-se uma concentração estratégica no sentido de ampliar a geração de
energia no Brasil, representando o investimento específico nesse setor produtivo 24 % dos
recursos previstos no Plano de Metas.
Também nesse sentido, estimava-se que com o alcance dessas metas se garantiria o
abastecimento das indústrias, e correspondentemente atingir-se-ia o consumo doméstico, seja
com a energia, seja com os produtos industrializados em geral a penetrarem nos recônditos
brasileiros mais remotos.
No entanto, para a realização dessas metas de estruturação produtiva,
especialmente o presidente Juscelino Kubitscheck teve que buscar os capitais estrangeiros, e
para isso ofereceu uma maior abertura econômica do Brasil, permitindo assim a instalação de
diversas empresas estrangeiras, objetivando nesse embalo também incentivar alguns
empreendimentos privados nacionais.
Ao passo em que no governo de Juscelino Kubitscheck um grande incentivo ao
aumento da produção de energia elétrica no Brasil, age também esse governo no sentido de se
delimitar progressivamente as fronteiras entre os papéis produtivos dos setores públicos e dos
setores privados, nacionais e estrangeiros, na medida em que internacionaliza a economia, e
prossegue mais a frente com a contenção gradual do intervencionismo estatal. (LIMA, 1995,
p. 68).
Ainda sobre a atuação administrativa centralizada deste governo, percebemos a
concentração dos investimentos em poucos projetos estratégicos, tendo em vista o receio
desse governo e de seus técnicos do carreamento das verbas federais para projetos pequenos e
sem resultado decisivo para o futuro do país, uma espécie de retalhamento do dinheiro público
por grupos econômicos regionais.
Posteriormente, o que se ver também nos governos de nio Quadros e de João
Goulart, 1961-1964, é a seqüência de muitos projetos iniciados nos governos de Getúlio
Vargas e de Juscelino Kubitscheck, como o da Usina de Boa Esperança no Piauí, além da
intensificação de outros, como os projetos industriais e agropecuários da SUDENE, todos
diretamente ligados à estruturação do Setor Elétrico nacional, o qual se fortaleceu nesse
período com a criação da ELETROBRÁS, Centrais Elétricas Brasileiras S. A.
A ELETROBRÁS, criada em 25 de abril de 1961, [...] é o órgão responsável pela
execução da política nacional de energia elétrica, contada para isso com recursos internos e
externos. (SANDRONI, 1994, p. 113). Portanto, essa empresa controlada pelo Ministério das
Minas e Energia, surge como uma holding federal com a função de coordenar o Setor Elétrico
55
nacional através da função institucional de concentrar e aplicar investimentos nessa área de
infra-estrutura prioritária.
Especificamente no início da cada de 1960, a ELETROBRÁS destaca-se com o
andamento no Nordeste do projeto Paulo Afonso II da CHESF, o qual foi concluído em 1963,
ampliando significativamente o potencial hidrelétrico regional.
Nesse processo de estruturação produtiva, as decisões poticas tomadas
especificamente durante o governo do presidente João Goulart, foram decisivas para crescer a
geração de energia elétrica no Brasil, considerando que o mesmo governo assegurou a
continuidade dos principais projetos hidrelétricos.
Por sinal o projeto de construção da Usina de Boa Esperança no Piauí também foi
efetivamente iniciado em 1963 com a criação da Companhia Hidro Elétrica da Boa Esperança
(COHEBE). (CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL, 1988, p. 235).
O que se segue depois é o início dos governos militares, os quais assumem a
continuidade dos investimentos públicos no Setor Elétrico, assimilando até mesmo um
considerável caráter intervencionista, porém em termos poticos gerais, diametralmente
opostos às posturas e decisões dos governos anteriores vistos como populistas, e sob certos
ângulos de independência econômica nacional perante os mercados mundiais.
Durante o período da Ditadura Militar a estrutura hidrelétrica nacional vive um
momento inicial de grande interesse do Estado, sendo garantidos os investimentos com a
fartura financeira proveniente de vultosos empréstimos estrangeiros, provindos
principalmente do acordo da “Aliança para o Progresso e a Paz” firmado entre o governo
brasileiro e a USAID, agência de desenvolvimento dos Estados Unidos.
Estes recursos estrangeiros foram usados na conclusão de obras iniciadas, no
aprimoramento técnico e no fortalecimento do setor como um todo. Nesse período ocorre o
prosseguimento de inúmeros projetos de novas usinas hidrelétricas, inclusive a de Boa
Esperança no Piauí.
Sobre a participação de capitais estrangeiros encontramos nos documentos oficiais
da COHEBE diversos registros das atividades de empresas e instituões interessadas no
projeto da hidrelétrica construída no Piauí. Tais participações se fazem ao longo dos
principais anos da construção, dos quais podemos citar o ano de 1967 quando a USAID
emprestou a COHEBE a quantia de NCr$ 4.903.650,00. (COHEBE, 1968b, p. 54).
Para esclarecer melhor essa questão do financiamento externo a obra da Usina de
Boa Esperança no Piauí, recorremos a um texto que trata da biografia do presidente Castelo
56
Branco, texto esse de autoria de J. W. Foster Dulles e que trás entre outras realizações do
mencionado presidente militar, a obra da usina hidrelétrica no Piauí.
Ao apresentar a realização destas e de outras obras no período deste governo, o
autor detalha a aquisição de inúmeros empréstimos estrangeiros a medida em que cita fala
também da atuação decisiva da SUDENE como coordenadora geral desse programa de
investimentos regionais. Para nós aqui, a maior ênfase deve ser dada à captação de recursos
provenientes dos EUA, mais precisamente da USAID e para setores estratégicos como o de
geração de energia. Vejamos então um trecho do mencionado texto logo a seguir:
O Govêrno Federal atribuiu a SUDENE a responsabilidade de coordenar a ajuda
externa, financeira e cnica, dirigida ao Nordeste. Tal providência é justificada
pelo fato de os recursos provenientes de fontes externas, estrangeiras e
internacionais, constituírem-se na verdade, elementos complementares ao esforço
interno de desenvolvimento. Atualmente, é bastante elevado onúmero de entidades
estrangeiras e internacionais que emprestam a sua colaboração à Rego, quer
através de assisncia, em seus múltiplos aspectos. Por outro lado, a multiplicidade
de órgãos solicitantes de colaboração internacional, sobreleva o vulto e a complexa
naturezadessaatividade da SUDENE. (DULLES, [s/d], p. 31).
Como vimos na citação o interesse dos órgãos financiadores estrangeiros no
Brasil, e em especial no Nordeste, era muito grande, consequentemente a entrada de recursos
financeiros aqui também foi enorme. Nessa engrenagem institucional se sobressai a SUDENE
como a coordenadora dos projetos de investimentos no Nordeste, exercendo assim esta
autarquia federal o papel de aprovar a destinação de recursos que são inclusive enviados
diretamente a entidade assistida, como no caso da COHEBE que recebeu no ano de 1965 uma
vultosa quantia para impulsionar a construção da Usina de Boa Esperança em Guadalupe. Ao
tocarmos neste ponto especifico identificamos a característica geral desse programa de
investimentos que foi a concentração maior de recursos exatamente nos setores de infra-
estrutura como o de energia.
Sobre isso tudo, continuemos com o texto anterior no qual encontramos a seguinte
citação:
Uma característica fundamental, vale ressaltar, é a de que, em nenhum caso,
a assistência financeira é dirigida a SUDENE. Esta se processa diretamente,
do órgão financiador para a entidade assistida, com a interveniência da
Autarquia, no que tange à aprovação do programa, dos têrmos do contrato de
empréstimos ou doação e dos laudos periciais de auditoria técnico-contábil.
No entanto, o mesmo não ocorre no campo da assistência técnica, onde a
SUDENE aparece como principal beneficiada. [...] O Nordeste vem se
beneficiando do concurso de varias missões técnicas, que têm emprestado
57
muito valiosa colaboração aos técnicos nordestinos, no sentido de buscar
solução para sérios problemas regionais. Dentre os programas em curso, no
ano de 1965, convém ressaltar: [...] 5 Assistência cnica, da parte do
Govêrno dos Estados Unidos da América do Norte, através da USAID, em
assuntos variados, tais como energia, transportes, saneamento básico, etc.
(Id. Ibidem, p. 31-32).
O autor segue seu texto apresentando informações interessantes também através de
gráficos e tabelas que sintetizam essa massiva destinação de recursos financeiros no Nordeste.
logo abaixo mostramos duas imagens que nos informam exatamente os focos de destinão
destes investimentos. Vejamos todas estas informações importantes nas imagens mostradas
logo abaixo:
Gfico1: Distribuão Setorial das Aplicações da
Sudene - 1965.
Fonte: Dulles, [s/d], p. 30.
Tabela 1: Contratos e Convênios Assinados
Comprometendo Recursos para Aplicação no
Nordeste 1965.
Fonte: Dulles, [s/d], p. 33.
58
Vemos então no gráfico da esquerda a informação de que estes investimentos
intermediados pela SUDENE foram prioritariamente destinados ao setor de infra-estrutura da
região Nordeste.
Já na tabela da direita vemos uma relação detalhada de vultosos recursos financeiros
disponibilizados no ano de 1965 pelo BID (itens 20 e 21).; Também observamos o registro da
participação do Governo Alemão que no caso foi o principal financiador estrangeiro neste ano
(itens 22, 23 e 24).; E ainda uma grande lista de projetos financiados pela USAID/EUA, dos
quais destacamos o acordo de financiamento firmado entre esta agência estrangeira e a
COHEBE para a obra da Usina de Boa Esperança em Guadalupe (item 18).
Ainda sobre esta participação financiadora da USAID/EUA na obra da usina
hidrelétrica no município de Guadalupe, encontramos inclusive o registro de uma visita do
cônsul dos EUA e diretor da USAID, Sr. Donor Lion, Cônsul Geral dos EUA ao local da
obra.
Tal visita funcionou como uma demonstração de apoio às obras que estavam sendo
executadas em Boa Esperança, podendo-se identificar, inclusive, a presença de autoridades
como o titular da Pasta do Interior, General Afonso de Albuquerque, em companhia do então
governador do Piauí, Helvídio Nunes, além do Cel. Engº. Stanley Fortes Baptista,
Superintendente-Adjunto da SUDENE, dentre outros:
Fotografia1: Visita de autoridades à obra de Boa Esperança.
Fonte: (COHEBE, 1969, p. 54).
59
Mas não os EUA fizeram investimentos na Usina de Boa Esperança, países
como a Alemanha, a França, o Japão, e Israel, am de instituições como a ONU e a FAO,
todos foram atraídos para dar assistência técnica e financeira de obras e programas sociais,
tanto no Piauí, quanto em toda a região nordestina. (DULLES, [s/d], p. 32-35).
Sobre essas várias participações estrangeiras no assessoramento técnico e no
financiamento de obras no Nordeste, e especificamente sobre a também participação da
França na obra de Boa Esperança, encontramos um registro num jornal local que retrata o
momento em que o governador Petrônio Portela recebe um grupo de engenheiros da SUDENE
e da empresa francesa Societá de France, os quais vieram ao Piauí e Maranhão fazer estudos
sobre o sistema elétrico de Boa Esperança, definindo assim as condições ecomicas dessa
região, e voltando suas atenções principalmente para o futuro mercado consumidor de energia.
(O DIA, 14/10/1963, p. 6).
Entretanto, mesmo com o avanço da instalação de novas usinas em vários cantos
do Brasil, como a de Boa Esperança em Guadalupe, o Setor Elétrico seguia tentando amenizar
as situações emergenciais de fornecimento de energia frente ao crescente mercado
consumidor. Com esse objetivo geral, procura-se então avançar na superação dos limites dos
sistemas municipais de fornecimento de eletricidade baseados nas usinas termelétricas, como
era o caso da maioria das cidades piauienses.
Sobre essa realidade, observamos em matéria jornalística do ano de 1963, o
anúncio da contemplação de municípios do Piauí dentro do Plano de Eletrificação do Norte e
Nordeste a ser realizado pela CERNE, Companhia de Eletrificação Rural do Nordeste,
empresa criada pela SUDENE e que com esse plano estimava atingir 450 municípios da
Bahia, Ceará, Maranhão e Piauí. (O DIA, 30/09/1963, p. 1).
Algo muito interessante de se notar nessa matéria é o detalhamento do projeto de
eletrificação, com o registro da data e a descrição da cerimônia de assinatura do contrato
firmado entre a SUDENE e a indústria paulista Villares, a qual ficou incumbida de fornecer os
motores a diesel para geração de energia nestas comunidades interioranas. (Ibidem, p.1).
Aliás, essa atuação da SUDENE se deu também no Maranhão com a destinação de
verbas para compras de motores para as usinas térmicas de várias cidades, como vemos em
notícia referente ao crescimento da infra-estrutura energética naquele estado, contando
também nesse caso com participação do Banco do Nordeste, e de indústrias brasileiras
dominantes no mercado produtivo. (O DIA, 01/03/1969, p. 4).
Esses investimentos foram feitos para solucionar problemas de falta de energia,
antes mesmo do início da produção em Boa Esperança, e principalmente em cidades que não
60
seriam atendidas pela usina, ganhando o Marano um incremento substancial em sua infra-
estrutura básica.
Ao encontrarmos essas referências a participação de indústrias do Centro-Sul na
estruturação energética dessa região, automaticamente lembramos das ressalvas feitas quanto
ao real propósito de desconcentrar a produção industrial brasileira, sendo o direcionamento ao
Nordeste muito mais uma manobra de absorver esse mercado, alcaado definitivamente pelas
indústrias do Centro-Sul.
Voltando novamente ao Piauí e ao ano de 1963, encontramos ainda no começo de
tudo isso, um detalhamento do montante de verbas a ser investido em cada município
piauiense como parte do já mencionado Plano de Eletrificação do Norte e Nordeste. (O DIA,
28/10/1963, p. 3).
Dentre as quantias para inúmeras cidades, se destacam as verbas para a
termelétrica de Teresina, haja vista a grave crise que passava a capital piauiense com
racionamentos e cortes constantes que irritavam a população. Salta aos olhos também nessa
matéria, o montante considevel de verbas destinadas aos estudos iniciais de projetos
hidrelétricos no rio Parnaíba, percebendo-se o anúncio dos passos iniciais da obra da Usina
de Boa Esperança no Piauí. (Ibidem, p.3).
Começamos a ver com mais freqüência às notícias da usina piauiense, e com elas o
desenrolar do seu debate. Porém, o Piauí não era o único estado, muito menos Teresina e
Guadalupe eram as únicas cidades a serem tocadas por essa nova dinâmica econômica. Outras
rias cidades aqui e em outros estados também estavam sendo capturadas nesse cenário que
trouxe a energia e com ela todo o seu discurso de progresso, de melhores dias para o povo,
conquistados através do desenvolvimento industrial; em suma, o anúncio da tão sonhada
redenção econômica.
No entanto, a demanda por esse serviço elétrico era muito grande, e na medida em
que se instalavam numa nova rego esses novos planos comerciais, descobriam-se novas
áreas desabastecidas de energia, as quais representavam um novo desafio, ou um novo
necio, sempre com a preocupação constante do aumento projetado do consumo.
Percebe-se que na maioria das pequenas cidades brasileiras a realidade era a de
pequenos motores movidos a diesel, os quais geravam energia apenas por algumas horas da
noite, e assim indispunham ao uso regular desse serviço pelos moradores dessas localidades.
Esta situação distanciava-se de uma estabilidade econômica necessária ao avanço da produção
e do consumo nacional planejado.
61
Muito embora, o funcionamento mesmo que repentino de um motor numa dessas
pequenas cidades, causava uma sensação de mudança nos costumes sociais interioranos, os
quais começavam a se iluminar de modernidade, incentivando as pessoas a adotarem novos
hábitos de vida, de trabalho, de consumo, etc.
No caso das médias cidades a situação era diferente por causa da existência de
usinas termelétricas que depois de um período de abastecimento pioneiro, se tornaram
limitadas e obsoletas, causando assim apagões e racionamentos rotineiros. Esse é o caso de
Teresina, que apesar de ter evoluído para um estágio superior àquele vivido nos pequenos
municípios, logo passa a conviver com o drama de um serviço mal estruturado.
as grandes cidades brasileiras alcançam num outro extremo um capítulo
totalmente especial, sendo que estas também conviviam com esses problemas de apagões e
racionamentos, razão de grande parte das justificativas de ampliação do Setor Elétrico. Porém,
nestas a solução veio com os gigantescos projetos hidrelétricos nacionais, sendo que esses
tais problemas são resolvidos e outros prosseguem como é o caso do alto valor das tarifas.
É por conta de algumas dessas deficiências históricas do Setor Elétrico nacional,
que se inicia a trajetória hegemonizadora do setor público nesse ramo produtivo, constituindo-
se uma gigantesca infra-estrutura de geração e distribuição de energia elétrica, para isso
destinando cada vez mais recursos financeiros para estudos e para a imediata construção de
novas usinas.
Esclarecemos nesse ponto, que o setor público assumiu o papel de principal
investidor por causa dos altos custos e da baixa rentabilidade que representavam motivos de
pouco interesse do setor privado por essas grandes obras, ficando assim para o governo federal
o papel potico-social de garantir esses empreendimentos estruturais que firmassem os futuros
investimentos industriais de bens de consumo, estes últimos, os menos arriscados e mais
lucrativos, os investimentos buscados pelo setor privado.
Nesse contexto expansão econômica, sem vida nenhuma o alvo principal da
produção de energia no Brasil foi o abastecimento das indústrias, sendo que para esse público
específico, se tornou comum à concessão de subsídios tarifários, que associados a uma
crescente demanda energética desse setor produtivo, colocavam na direção do Setor Elétrico
nacional a suas exigências de abastecimento de energia, e para legitimar essa iniciativa
utilizava e ainda se utiliza bastante da propaganda da geração de bem-estar social a ser
alcançado com a ampliação deste setor.
Concomitante a este processo, constatamos que o Setor Elétrico destaca-se, ao lado
do Setor de Transportes, como a principal prioridade do governo brasileiro nesse período,
62
tendo havido um sistemático e vultoso investimento nestes dois setores, identificando-se ai
também a participação importante de capitais estrangeiros.
Esclarecemos novamente que especificamente para esta nossa pesquisa, nos
detemos com mais ênfase a evolução do setor hidrelétrico, o qual, com as iniciativas
governamentais dessa época, este setor veio a se consolidar como o coração da matriz
energética brasileira.
Entretanto, ao analisarmos as nuances desse processo potico-produtivo sentimos a
necessidade de pontuarmos algumas reflexões relevantes sobre o desenrolar dos fatos que
cercaram e ainda hoje cercam o tema energético no Brasil.
Desde reafirmamos que não queremos aqui contrapor cegamente ou separar as
discussões ecomica e social, até por que estas duas questões são fundamentais e interligadas
quando pensamos em desenvolvimento de uma região ou de um país.
O que pretendemos é esclarecer que, assim como a maioria das usinas do parque
hidrelétrico nacional, o projeto da Usina de Boa Esperança também foi pensado no seu bojo,
com uma forte inspiração de atender grandes consumidores, e dentre esses, prioritariamente os
consumidores industriais, estabelecendo-se esse rumo como a única saída para o
desenvolvimento dessa região nordestina.
Nesse sentido da prioridade industrializante, Boa Esperança não corrobora,
como come atua de forma integrada com quase todos os projetos hidrelétricos nacionais.
Com as devidas ressalvas tricas, e principalmente com o cuidado de manter
nossas reflexões dentro da linha de pesquisa desse trabalho, ampliamos um pouco mais o
debate do modelo energético brasileiro acrescentando mais um argumento crítico feito pelo
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) sobre os planejamentos desses projetos
hidrelétricos.
De já esclarecemos que as informações a seguir são baseadas em estudos
realizados por grupos acadêmicos que pesquisam este tema geral da energia no Brasil e no
mundo.
No caso dos centros de pesquisa brasileiros, destacamos, dentre outros centros e
dentre outros pesquisadores, a Universidade Federal do Rio de Janeiro que criou o Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional e onde atua o professor Carlos B. Vainer,
pesquisador dos temas relacionados ao Setor Elétrico. Destacamos ainda, a Universidade de
São Paulo a qual mantém o Programa de Pós-Graduação em Energia que tem entre os seus
quadros o professor Célio Bermann, também um pesquisador dos temas aqui mencionados.
(MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS, [200-?]).
63
Dentre as várias questões implicadas nesse debate, o MAB apresenta de um lado
rios dados sobre a estrutura e a importância do Setor Elétrico nacional, e de outro, faz
denúncias sérias sobre as barragens que causam inundações e a conseente expulsão de
populações, além das preocupações ambientais, estas bem mais atuais que as demais questões.
No Brasil 92 % da energia produzida vem da fonte hídrica, tendo
expulsado mais de um milhão de pessoas de suas terras. [...] O Brasil tem
mais de 2.000 barragens construídas em todo o país, alagando uma área de
34 mil km
2
[o Estado de Alagoas tem 29 mil km
2
]. [...] O plano 2015 do
governo federal prevê a construção de mais 494 Usinas Hidrelétricas, tendo
como estimativa a expulsão de 800 mil pessoas de suas terras. A produção de
energia de fonte hidrelétrica era tida como limpa e barata. Mas, além de toda
a destruição social e econômica que causam, as barragens provocam muitos
problemas ambientais. [...] O apodrecimento do material orgânico [...] emite
grande quantidade de gases, como o gás metano e gás carbônico, causadores
do efeito estufa [aquecimento global da atmosfera]. (Ibidem, p. 13).
Na convergência dessa argumentação do MAB está justamente a crítica de que o
modelo energético brasileiro não exerce primordialmente a sua função social de gerar bem-
estar aos consumidores residenciais, haja vista que a grande maioria das pessoas em suas casas
consome menos e paga mais caro pela mesma energia prioritariamente fornecida aos grandes
consumidores industriais. Sobre tudo isso, vejamos as informações a seguir:
O Brasil consome por ano 320 bilhões de quilowatts/hora. A metade desta
energia vai para as indústrias. Dentro do setor industrial é importante
destacar que grande parte deste consumo é feito pelas empresas chamadas
eletrointensivas, que na tabela aparecem como indústrias pesadas. Estas
indústrias têm como características serem grandes consumidoras de energia,
empregam muito pouca gente e poluem o meio ambiente. Além disto, grande
parte da produção destas empresas é para exportação. [...] As casas
brasileiras consomem em média somente 170 kWh por s. Isso significa
que grande parte dos consumidores residenciais não consome os 228 kWh
que seria o mínimo necessário para garantir uma qualidade de vida que a
eletricidade pode proporcionar. O total de 228 kWh (representa o) Gasto
mensal de energia em uma casa com: 1 Geladeira - 60 kWh; 5 mpadas
45 kWh; 1 Chuveiro Elétrico - 90 kWh; 1 Ferro Elétrico - 12 kWh; 1 Lava
roupas - 9 kWh; 1 Televisão - 9 kWh; 1 Aparelho de som - 3 kWh. (Ibidem,
p. 14).
Para ilustrar melhor as informações apontadas na citação anterior, a cartilha do
MAB apresenta os gráficos a seguir:
64
Analisando os gráficos anteriores concluímos que 1.000 MWh consumidos na
indústria de alimentos e bebidas geram 70,2 empregos, e que 1.000 MWh consumidos na
indústria de alumínio geram 2,7 empregos. Além disso, os 25,3 % destinados ao consumo
residencial representam uma baixa proporção em relação à população total do Brasil, isso
segundo os números apresentados pelo MAB. (Ibidem, p. 14-15).
Dessa forma, naquele ano de 2000, 20,3 milhões de pessoas no Brasil não tinham
acesso à energia elétrica (5 milhões de domicílios sem eletricidade). A maioria desses
brasileiros sem energia está no meio rural onde somente 32,8 % tem energia elétrica, sendo
que estes números caem mais ainda nas regiões Nordeste com 13%, e Norte com apenas 2 %
de propriedades abastecidas com energia. (Ibidem, 14-15).
Ratificando os dados dos gráficos, o texto do MAB prossegue até a análise da
relação custo/tarifa da energia, e especificamente sobre essa questão apresenta mais números,
à medida que discute os preços cobrados diferenciadamente entre os tipos de consumidores.
Gráfico 2: Distribuição do Consumo de
Eletricidade no Brasil – 2000
Fonte: (MOVIMENTO DOS ATINGIDOS
POR BARRAGENS. [200-?], p. 14).
Gráfico 3: Empregos Gerados por Consumo
Energético em Setores Industriais
Selecionados (emprego/GWh).
Fonte: (MOVIMENTO DOS ATINGIDOS
POR BARRAGENS. [200-?], p. 14).
65
O custo médio de produção de energia elétrica calculado para cada MWh (ou
cada mil quilowatts-horas) no Brasil é de R$ 35,00 reais. Algumas
hidrelétricas mais antigas tem um custo menor que R$ 8,00 reais o MWh. A
cobraa das tarifas é diferenciada para os diferentes setores. Os
consumidores residenciais estão pagando em média R$ 210,00 reais por
MWh, enquanto que o setor industrial es pagando R$ 74,00. Mas, ainda
tem indústrias que pagam muito menos. A Companhia ALBRÁS, instalada
no Pará, e que produz alumínio para exportar para o Japão, paga R$ 20,00
MWh. A Eletronorte subsidia os preços da energia de Tucuruí a ser
fornecida às indústrias de alumínio. Cerca de 250 milhões de dólares a
cada ano são repassados, sob forma de subsídio, às indústrias
exportadoras de alumínio. (Ibidem, p. 14-15).
Por fim, a análise do Movimento dos Atingidos por Barragens alcança esse ponto
maior de reflexão quando discute a relação custo/benefício do atual modelo energético
brasileiro, no qual as hidrelétricas são absolutamente hegemônicas.
Acrescenta-se ainda, que as construções dessas hidretricas, a maioria grandes
obras, contaram com volumosos empréstimos estrangeiros que incharam a dívida externa
brasileira, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, sendo que 30% da Divida Externa é
decorrente do setor elétrico. (Ibidem, p. 16).
Lembremos aqui que esta potica de endividamento estrutural funcionou nesse
período como a ferramenta central da nova dinâmica econômica internacional. Sobre isso,
encontramos um bom resumo de toda essa conjuntura no texto que se segue abaixo:
O modelo estatal de grandes hidrelétricas teve como fundamento o
levantamento do potencial hidrelétrico realizado na segunda metade da
década de 1960, com o apoio do Banco Mundial, e do qual participou um
consórcio canadense - Canambra. O planejamento e a implantação de
grandes projetos hidrelétricos das cadas seguintes se apoiaram no
inventário de potencial da Canambra, completado, na Amazônia e no
Nordeste, por estudos feitos pela Eletrobrás. No início dos anos de 1970 um
evento internacional vai mudar a situação energética em todo o mundo: a
crise do petróleo. Com a elevação dos preços, que é reforçada por uma
segunda crise no final da década, os países centrais passam a transferir para
países periféricos dependentes e ricos em potencial energético, como o
Brasil, uma rie de indústrias que consomem muita energia. Assim, o Brasil
se transforma, progressivamente, juntamente com outros países periféricos,
em um exportador de produtos eletrointensivos, isto é, produtos que exigem
grande quantidade de energia para serem produzidos. O Japão, por exemplo,
praticamente fecha sua indústria de alumínio primário, e passa a importar de
países como o Brasil. Em poucas palavras: os países dominantes nos
emprestaram dinheiro para construirmos hidrelétricas, para produzir
alumínio, para exportar e pagar a dívida contraída. Os países centrais
ficavam com o alumínio e os juros das dívidas. (Ibidem, p. 9, grifo nosso).
66
Juntamente a essa análise, continuamos discutindo o processo de construção da
Usina de Boa Esperança no Piauí, que a mesma foi um grande projeto hidrelétrico na
época, sendo também definida a sua execução a partir de massivos empréstimos estrangeiros,
notadamente dinheiro fornecido pelos EUA através da sua agência financeira de
desenvolvimento, a USAID.
A nossa intenção com esse retrospecto reflexivo, é certamente o de reunir o
máximo de subsídios informativos para esta nossa pesquisa sobre os impactos da iniciativa do
Estado brasileiro de fortalecer a infra-estrutura elétrica nacional, com ações no Centro-Sul e
no Nordeste.
De acordo com o que discutimos até aqui, esse processo de fomento do
desenvolvimento industrial refletiu desde o início uma parte das demandas cio-econômicas
da sociedade brasileira, a qual se compunha ainda de disparidades poticas regionais que
mantiveram o Centro-Sul como a região prioritária nacional, prioridade seja no atendimento
direto de sua demanda industrial e doméstica por energia, seja na desconcentração da sua
produção manufatureira central, recolocando-se para isso no comércio regional.
Desta maneira a proposta de desconcentração produtiva, melhor entendida sob o
signo da diversificação do mercado nacional, consolidou a hegemonia industrial da região
Centro-Sul. Esta por sua vez, teve um processo de crescimento desde o início instigado por
uma forte urbanização e um conjunto de transformações diversas que determinou o ritmo do
desenvolvimento nacional, desde o final do século XIX até meados do século XX.
1.4 Aintegraçãoeconômicanacionale aobradaredençãodo Piauí
Voltamo-nos direta e definitivamente a partir de agora, ao estado do Piauí e
também a cidade de Guadalupe, mas ainda dentro da análise das conseqüências causadas por
essas múltiplas mudanças nacionais.
Neste sentido de nos valermos das contextualizões feitas para transitarmos entre
o nacional e o local, reiterando sede já a conclusão central de que esse processo complexo
ocorrido no Brasil, teve como motor propulsor a intensidade transformadora da modernidade
industrial, a qual passou a atuar cada vez mais de maneira multifacetada e inconclusa.
Recapitulamos aqui o bojo de nossa análise, e assim vamos reiterando a conclusão
de que essas transformações não ocorrem de maneira simples e rápida, pelo contrário, as
67
mesmas vem se desenrolando ao longo de mais de um culo, tendo como determinantes os
excedentes capitais cafeeiros e as imigrações intensas estrangeiras do fim do século XIX e
início do século XX.
O alvo principal era sem vidas a manutenção a todo vapor da produção
agroexportadora, sendo que de lá para cá, essa iniciativa passava a ser definida em moldes
mais modernos, os quais passavam pela abolição do trabalho escravo, e pela adoção do
trabalho livre assalariado, este último como o elemento-chave das relações ecomicas
capitalistas.
Nesse debate destaca-se claramente o papel essencial do Estado na condução desse
processo de transformação econômica e social, agindo este Estado prioritariamente no âmbito
do espaço urbano, o qual, na grande maioria das vezes em benefício dos mais ricos, foi
construído, reconstrdo, regulado, e por fim sempre segregado.
Sobre estas transformações processadas no espaço urbano, e sobe as suas
características próprias na sociedade capitalista, trazemos para a discussão a seguinte
afirmação: o espaço urbano da cidade capitalista é fortemente dividido em áreas residenciais
segregadas, refletindo a complexa estrutura social em classes; [...] a desigualdade constitui-
se em característica própria do espaço urbano capitalista. (CORRÊA, 2000, p. 08).
Misturamos um pouco as discussões das mudanças e das segregações no espaço
urbano, e ainda, do papel do Estado nessas mudanças, por que entendemos que o fazer
público muito se confunde com o privado, atendendo os interesses de grupos particulares e
relegando a último plano o atendimento das necessidades sicas das populações mais pobres,
que seguem carentes do que é mais simples em termos de serviços blicos, função básica
que preferencialmente deveria ser cumprida pelos administradores públicos, como se refere a
seguinte passagem:
No entanto, é atras da implantação de serviços públicos, como sistema
viário, calçamento, água, esgoto, iluminação, parques, coleta de lixo, etc.,
interessantes tanto às empresas como a população em geral, que a atuação do
Estado se faz de modo mais corrente e esperado. (Id. Ibidem, p.24).
Dentro dessa realidade potico-econômica, identificamos não o Estado e seus
beneficiados, proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários, promotores
imobiliários, como agentes sociais que fazem e refazem a cidade. (Id. Ibidem, p.12).
Segundo o próprio Roberto Lobato Corrêa nessa sua obra intitulada “o Espaço
Urbano”, existem também os grupos sociais excluídos que mesmo a contrapelo da ordem
68
socioeconômica vigente, atuam ativamente na transformação do espaço urbano ocupando
espaços ociosos ou subutilizados, modelando segundo suas devidas necessidades, dando a sua
versão urbanística das cidades, enfrentando na grande maioria das vezes a repressão policial
do Estado que não mede esforços no exercício de seu caráter capitalista excludente com forte
papel repressor.
O Estado capitalista permite ceder o espaço urbano quando lhe é conveniente, e
essa conveniência acontece justamente em momentos e eventos que não ameaçam a
reprodução das relações de produção capitalistas intrínsecas dessa sociedade de classes. Essa
postura do Estado de autorizar o que não lhe ameaça e combater o que lhe confronta, é
refletida nas palavras de Lefebvre:
Trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de reapropriação do
espaço urbano que o poder autoriza quando permite a realização de eventos
nas ruas: carnaval, bailes, festivais folclóricos. Quanto à verdadeira
apropriação, a da ‘manifestação’ efetiva, é combatida pelas forças
repressivas, que comandam o silêncio e o esquecimento. (LEFEBVRE,
1999, p. 31).
Continuando um pouco mais e em outros aspectos dessa discussão acerca do
processo de urbanização brasileira, constatamos que ocorreu uma considevel aceleração
desse processo com a iniciativa intervencionista estatal Varguista e de outros presidentes
populistas como JK e Jango.
As a passagem desses presidentes civis pelo governo, chegamos-se até o período
dos governos militares, os quais, com concepções potico-ideológicas diferentes dos
governos anteriores, dão rumos próprios na estratégia intervencionista estatal. Enfatizamos
aqui a questão de que, mesmo em moldes bem distintos, os governos militares seguem o
plano geral de desenvolvimento e de consolidação do Brasil num mercado nacional de fluxo
eficiente.
Neste sentido, os governos militares objetivaram o alcance da meta através do
crescimento e da instrumentalização econômica dos grandes centros urbanos nacionais,
integrando-se massivamente este mercado brasileiro as magnitudes capitalistas mundiais, num
redesenho que se sintetiza na Nova Divisão Internacional do Trabalho.
O objetivismo tecnoctico agora predomina na formulação da questão
urbana, a serviço do nacional-desenvolvimentismo. O projeto de constituição
da nação desloca-se para o eixo econômico. Essa ideologia consegue,
todavia, articular esse projeto com uma prática de modernização acelerada
69
baseada na internacionalização da economia. (RIBEIRO e PECHMAN,
1996, p.65).
Talvez essa consoante engrenagem seja um prelúdio ou mesmo a
operacionalização em curso da chamada Revolução Urbana de que fala Henri Lefebvre em
seu texto, do qual, na intenção de condensarmos mais este debate acerca do tema Cidades,
extraímos a citação abaixo:
Do mesmo modo, em seguida, utilizando-se as palavras ‘revolução urbana’,
designaremos o conjunto das transformões que a sociedade contemporânea
atravessa para passar do período em que predominam as questões de
crescimento e de industrialização (modelo, planificação, programação) ao
período no qual a problemática urbana prevalecerá decisivamente, em que a
busca das soluções e das modalidades próprias à ‘sociedade urbana’ passará
ao primeiro plano. (LEFEBVRE, 1999, p. 19).
Ora, se observássemos melhor, veríamos que essa separação cidade-campo existe,
mas não é assim tão radical, até porque o processo de industrialização expandiu
desmesuradamente a “urbe”, a qual alcançou o campo, integrando fortemente essas duas
áreas, por isso que de uma ponta a outra encontramos muitas diferenças, mas a principal
característica dos tempos atuais é mantida e ampliada a cada dia, que é essa circularidade em
todo o sistema de relações entre lugares e entre pessoas.
O campo não é mais o mesmo, pois se industrializou, seja diretamente, com a ida
de instrias, seja indiretamente, com a automação das lavouras e com o crescente consumo
de produtos industrializados que chegam a substituir alguns produtos artesanais como a
manteiga trocada pela margarina, as carnes e cereais substituídos por enlatados em geral, e
ainda o uso de automóveis e motocicletas no lugar de animais para realizar o transporte.
Sobre esse assunto afirma Corrêa que o espaço urbano é um reflexo tanto de ações
que se realizam no presente como também daquelas que se realizaram no passado e que
deixam suas marcas impressas nas formas espaciais do presente. (CORRÊA, 2000. p. 08).
À medida que vamos discorrendo esse nosso texto, percebemos o quanto é
fascinante estudar os temas relacionados às cidades, pois, segundo o que aprendemos em
nosso trabalho, esse estudo dos temas urbanos proporciona ao pesquisador a oportunidade de
entender esses lugares de incrível intensidade humana e material, numa deliciosa prática de
aproximação, de vivência, de troca de informações, e de tantos outros resultados.
70
Nessas idas e vindas, surgem muitas e muitas descobertas e conhecimentos que
encantam mais ainda quando o pesquisador e o objeto de estudo “cidade” tem uma relação de
identificação do morador com o seu lugar de morada.
A cidade desperta o desejo, a curiosidade, deliberada e constante, num
envolvimento intenso de idas e vindas, partidas e chegadas, um cotidiano verdadeiramente
frenético de experimentações que evoluem ou regridem; são então essas, as atitudes tomadas;
os passos dados; as opiniões expressadas; enfim; Eis para nós, o ser e o estar na cidade.
Assim, vamos começando a verificar que a cidade não é um aglomerado de
pessoas ou um desenho arquitetônico. Na verdade, a cidade representa isso e para além disso,
significantes e significados que se entrelaçam atraindo e por vezes engolindo seus próprios
entes humanos, e junto com estes também os seus elementos culturais.
Cidade e modernidade, as terminações das palavras combinam e seus significados
confundem-se, na medida em que as cidades foram se tornando centros poticos e
econômicos de importância primeira.
Tais concentrações humanas representam hoje mais do que nunca o resultado de
um processo histórico que relocalizou alguns papéis institucionais e sociais em geral, antes
ínfimos e restritos a poucos e até pequenos lugares, ao passo em que foram surgindo outras
funções genuinamente citadinas.
Todo esse processo de transformação ocorreu com certa auto-exaltação do
universo urbano em oposição ou mesmo “negação em relação ao espaço do campo e suas
respectivas significações, formando-se então as cidades como lugares históricos, e com isso
também, surgiram para nós pesquisadores como objetos de estudos especiais.
Ao estudarmos a cidade percebemos que ela é viva, ativa, de certa forma
dominante, apreensiva, e com armadilhas variáveis que te prendem ou te soltam, apresenta-se
ou se esconde, eleva ou derruba seus moradores, e conseqüentemente a si mesma, num
contínuo viver e conviver consciente e inconsciente.
No momento atual de enorme avanço industrial marcado principalmente por um
avanço tecnológico surpreendente, verificamos uma realidade que confere a cidade um papel
de maior destaque em relação ao campo, sobretudo na criação e propagação dos resultados
inovadores, sendo então a cidade o lugar de destacadas mudanças, como identifica Roberto
Lobato Corrêa, que, essa é uma das principais características urbanas: O espaço é também
mutável, dispondo de uma mutabilidade que é complexa, com ritmos e natureza
diferenciados. (CORRÊA, 2000, p. 08).
71
Crescimento econômico, industrialização, tornados ao mesmo tempo causas e
razões supremas, estendem suas conseqüências ao conjunto dos territórios, regiões, nações,
continentes.
Assim, o resultado se apresenta claramente, ou seja, o agrupamento tradicional
próprio à vida camponesa, a saber, a aldeia, transforma-se intensamente. Dessa forma,
unidades mais vastas o absorvem ou o recobrem, sendo que aqueles agrupamentos
tradicionais são integrados à indústria e ao consumo dos produtos dessa indústria.
(LEFEBVRE, 1999, p. 17).
Ao estendermos um pouco mais essa análise da expansão como uma conseqüência
direta da dinâmica ecomica, potica e social, entendemos que esta expansão tomou curso
no Brasil, e proporcionalmente aqui também no Piauí, e em Guadalupe.
Dentro dessa reflexão mais geral, prossigamos com uma citação direta do mesmo
texto de Lefebvre sobre esse tema geral da expansão da dominação do tecido urbano até os
núcleos mais simples e mais distantes:
A concentração da população acompanha a dos meios de produção. O tecido
urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária. Estas
palavras, ‘o tecido urbano’, o designam, de maneira restrita, o domínio
edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da
cidade sobre o campo. (Id. Ibidem, p. 17).
A partir deste ponto na discussão do tema transformações nas cidades, começamos
também a ponderar as diferenças entre campo e cidade, as quais entendemos que já foram
mais rígidas, sobretudo num mundo, e especialmente num Brasil, em que a indústria nem
sempre foi o setor econômico predominante, tendo havido assim disparidades bem mais
definidas do que nos dias de hoje.
Num passado não tão distante, principalmente em se tratando de Brasil, outras
atividades desempenharam esse papel transformador dos espaços, com destaque para a
agricultura e para a pecuária, que tempos acionam várias transformações e avanços no
cotidiano humano, como é o caso verificado na cidade de Guadalupe aqui estudada, na qual a
agricultura e a pecuária são os motores do desenvolvimento, associando-se a isso na época, o
grande potencial da navegação no rio Parnaíba.
Somente com a realidade moderna, que agrega eficientemente a agricultura e todas
as atividades na maquinação industrializante e no mercado de consumo, a cidade passa a
prevalecer definitivamente como um núcleo efusivo.
72
No caso do Brasil, constatamos que ocorreu esta mudança forte na dinâmica
estrutural da sociedade, com a conseqüente relocalização de massivas levas humanas, em
constantes idas quase sempre sem voltas em direção às cidades, sobretudo buscado nesses
deslocamentos o rumo das grandes metrópoles regionais e nacionais.
Especificamente no caso da cidade de Guadalupe, distante 340 km da capital
piauiense, o contato com essas grandes metrópoles era muito mais difícil ainda, agravada essa
distância nessa época pela quase inexistência de boas estradas e a ineficiência dos transportes
fluviais. No entanto, descobrimos que existiram algumas ligações concretizadas nas viagens
do senhor Jociler, morador de Guadalupe, até a cidade do Recife, capital pernambucana. Ele
levava gado para vender lá, e trazia as novidades de consumo do mundo industrial.
(PEREIRA, 2006).
É essa iniciativa de trazer novidades (primeira geladeira, bicicleta, motor elétrico,
automóvel, etc.) até a sua pequena cidade, que o faz considerar-se um pioneiro de Guadalupe
como já o apresentamos (Id. Ibidem). Para nós este relato nos serve para constatar, ainda que
de forma esporádica, a ligação daquela pequena cidade piauiense com os grandes centros
regionais como é o caso de Recife-PE.
Na verdade, estas viagens do nosso entrevistado representam um acontecimento
localizado, porém, não deixa de fazer parte dessa realidade das décadas de 1950-1960, quando
ocorre essa grande virada do rural interiorano e agrícola, para o urbano nacional
industrializado.
Dentro do marco mais geral de nossa análise, o processo de mudanças que ocorre
na cidade de Guadalupe, por conta da construção da Usina de Boa Esperança, come
efetivamente como um ponto importante dessa conjuntura de transformações posta em
andamento no Brasil nessa época.
Naquele cenário bucólico vemos claramente a chegada do dinamismo industrial,
na medida em que aquela pequena cidade vai sendo tocada pelas novidades trazidas pelo
senhor Jociler. Ao mesmo tempo, Guadalupe vai crescendo com as suas potencialidades
econômicas, haja vista o promissor ponto de comércio naquele trecho do médio Parnaíba.
Para completar essa dinâmica de crescimento faltava àquele lugar apenas uma
ligação mais eficaz com os grandes centros do estado e da região. Isso veio a se processar
justamente a partir do projeto da Usina de Boa Esperança, a qual trouxe muito mais do que a
promessa de geração de energia, trouxe consigo tamm a integração daquele pequeno
município ao mercado de consumo industrial.
73
A integração a essa circularidade econômica foi com certeza o papel
preponderante exercido por essa grande obra o em Guadalupe, mas em toda essa região
do Piauí e do Maranhão.
As estas rápidas reflexões temáticas sobre o estudo das cidades, a expansão do
mercado nacional, e o papel do Estado no desenvolvimento urbano brasileiro, focalizemos
agora as nossas atenções especificamente na evolução econômica do Piauí centrando esta
análise no papel exercido pela Usina de Boa Esperança, e ainda sobre esta obra podermos
verificar a repercussão social por ela causada, e os seus impactos mais graves na cidade de
Guadalupe.
Inicialmente esclarecemos que as transformações causadas pela construção dessa
obra em Guadalupe, surgem no texto, e o entendidas como conseqüências da evolução
econômica urbana piauiense e brasileira.
Deste modo prosseguimos com algumas considerações sobre os problemas do
Piauí, entre eles destacamos que neste estado existe uma dificuldade natural que é a seca, tem
também uma economia em formação, faltam investimentos estatais mais robustos, em suma,
vive-se aqui um estado de grandes dificuldades econômicas. Mas, mesmo com todas estas
dificuldades o Piauí continua tendo também um povo trabalhador que busca incansavelmente
por melhores condições de vida e de trabalho.
O Piauí têm ainda, como um razoável destaque econômico, o seu comércio, que
segue a ampliar-se e conectar-se as regras do consumo nacional. Finalmente este estado, tem
o importante rio Parnaíba, sempre muito generoso, caudaloso, em tudo este se caracteriza
como um rio muito rico.
Por outro lado, carece o estado de um sistema de transportes mais eficientes, de
serviços públicos de qualidade, da instalação de instrias e toda a modernidade que vem
junto com elas, para que assim possa haver uma maior circulação de riquezas.
Como passo inicial na tentativa de superação destes e de outros problemas
estruturais locais é que entra em cena com todo destaque o projeto de construção da Usina de
Boa Esperança, remetendo-nos ao debate da época sobre a urgência para o Piauí conquistar
sua autonomia na geração de energia elétrica.
Registradas essas considerações pontuais, as quais tiveram o cuidado de não se
fixarem exatamente em datas mais recentes ou passadas, remetemo-nos ao nosso tema de
pesquisa que passa pela usina hidrelétrica, por Guadalupe e pelo Piauí.
Assim, ao centrarmos nesse nosso foco específico, concluímos que essas
afirmações de problemas estruturais e de perspectivas futuras, todas essas e outras questões
74
pertinentes a construção da usina hidrelétrica no Piauí, todas poderiam tranquilamente compor
os discursos dos interlocutores locais (jornalistas, intelectuais, e políticos) em algumas das
rias matérias de jornais e documentos, fontes nas quais encontramos inúmeros e
peremptórios anúncios da chegada da tão sonhada redenção econômica.
Neste caso de estudo específico, esses interlocutores revelam em sua maioria o
pensamento predominante quanto à vocação salvacionista da obra da Usina de Boa Esperança,
tendo sido esta a maior esperança cultivada nesse período de intenso debate do
desenvolvimento do Piauí.
Analisamos assim, a importância de acontecimentos marcantes dessa conjuntura e
trazemos a tona o tema da construção da Usina de Boa Esperança, o qual está mais ligado à
realidade local, mas que se relaciona aos desdobramentos nacionais e mundiais desse período,
num cerio geral de consolidação do capitalismo brasileiro que tinha como protagonista o
intervencionista estatal.
E percebemos que o tema mais geral de incentivo a industrialização nacional
impulsionado nas décadas de 1950 e 1960, em particular na região Nordeste nesta última
década, está ligado diretamente ao tema mais específico da construção da hidrelétrica no
Piauí, pois, como vimos, esse projeto intervencionista de repercussões múltiplas poderia
ser viabilizado com uma infra-estrutura operacional básica que tinha na geração de energia
uma de suas metas prioritárias.
Nesse contexto múltiplo, as opiniões e os diversos argumentos, alternando-se em
alguns períodos de maior defesa do papel produtivo desse grande empreendimento. Havia
ainda momentos de desconfianças com as promessas apresentadas, mas tais dúvidas e críticas
se desmancham em elogios ao contatarem com o discurso modernizador, e com a presença no
próprio canteiro da obra. Fazem-se presentes também no debate os queixosos da preterição de
suas cidades no beneficiamento inicial da energia da usina.
Começamos então pela descrição do processo de construção e todo o debate
desencadeado por ele, destacando num primeiro plano a posição de defesa da Usina de Boa
Esperança como alicerce dessa estrutura produtiva ascendente e salvadora do Piauí. De cara
lembramos que o estado há tempos vinha sendo considerado uma das áreas críticas de atraso
com relativos reflexos no desenvolvimento econômico regional e nacional.
Para tanto são dados os primeiros passos durante o governo de João Goulart que
autoriza a criação em 1963 da Companhia Hidro-Elétrica da Boa Esperança, COHEBE, como
uma sociedade de economia mista, formada, mantida e monitorada majoritariamente por
quatro instituições governamentais, fato esse citado em trecho jornalístico escolhido, o qual
75
nos fala da grande importância dessa instituição para o andamento do projeto. (O
COOPERATIVISTA, 28/02/1965, p. 1).
Sendo assim, os responsáveis pela obra requisitaram a participação e coordenação
de diversos órgãos e empresas, públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, como a
SUDENE, o DNOCS, O Ministério das Minas e Energia, os Governos Estaduais do Piauí e do
Maranhão, e a COHEBE criada especialmente para centralizar o andamento das obras da
usina. (Ibidem, p.1).
Assim a COHEBE tinha os objetivos de planejar e executar a construção da Usina
de Boa Esperança, monitorando todas as etapas da obra, para depois com a sua conclusão,
organizar e promover a geração e o comércio de energia elétrica a partir de Boa Esperança,
nos estados do Piauí, Maranhão e parte do Ceará. (Ibidem, 31/12/1965, p. 1).
Esse elemento da demanda do consumo de energia elétrica foi bastante pesquisado
pela SUDENE como forma de garantir a viabilidade local desse investimento, servindo esses
estudos como parte considerável do plano de atuação da COHEBE, seja durante a construção,
e principalmente a partir da operação da usina.
Preocupações quanto à necessidade e capacidade de consumo que garantisse a
viabilidade comercial da Usina de Boa Esperança nesta região são vistas em documentos do
período da construção, como é o caso do trecho do Projeto Boa Esperança, o qual é
apresentado a seguir nos dizendo que:
os estudos sobre o mercado de energia basearam-se em pesquisas efetuadas pela
SUDENE em 1961 nas principais cidades dos estados do Maranhão e do Piauí, em
dados dos censos de 1950 e 1960, em resultados alcançados pela CHESF em seu
plano de ão durante o desenvolvimento da usina de Paulo Afonso e em
estasticassobre o consumo de energia no Brasil. (COHEBE, 1968a, Parte VI-5-
6).
Com base nesses estudos técnicos justificou-se a extrema necessidade da
construção da hidrelétrica no Piauí, e como ênfase a esse argumento se apresentaram outros
como a descrição dos limites dos sistemas térmicos em funcionamento nas cidades piauienses
e maranhenses nesse período, chegando-se ainda a informação do consumo per capita de
energia elétrica, no Piauí de 20,3 kWh e no Maranhão de apenas 9,7 kWh, comparativamente
desprezíveis em relação a São Paulo com 779,0 kWh e também para com a média nacional de
359,5 kWh. Até mesmo se olharmos o vizinho estado do Ceará encontraríamos o consumo de
34,6 kWh. (Ibidem, Parte VI-1).
76
Constatamos numa outra vertente, que os financiamentos administrados pela
Companhia Hidroelétrica de Boa Esperança na obra foram provenientes das instituições
públicas mencionadas, além de agências estrangeiras como a USAID dos EUA que atuava
no Brasil. Segundo a COHEBE, a USAID colaborou dentro da filosofia da Aliança para o
Progresso, compenetrada do seu papel desenvolvimentista. (COHEBE, 1968b, p. 12).
Os estudos do projeto da usina de Boa Esperança começaram no final da década de
1950 por técnicos do DNOCS. Posteriormente, os resultados desses estudos passam a
incorporar o planejamento geral da obra, num trabalho realizado por um grupo de técnicos do
DNOCS, SUDENE, Ministério das Minas e Energia, com a coordenação central da COHEBE,
responsável pelo acompanhamento da obra.
As obras iniciaram efetivamente em 1963 na cidade de Guadalupe, e percorreram
toda a década de 1960, com conclusão preliminar em 1969, sendo inaugurada oficialmente e
passando a funcionar plenamente apenas em 1970, já no governo do presidente Emílio
Garrastazu Médici. Neste momento culminante se reafirmaram o ponto central das promessas
pra região, afirmando-se que ao ser inaugurada nesse período a hidrelétrica piauiense
coincidiria com o início de uma nova década, o despertar para o progresso do Nordeste
Ocidental com o grande salto do país para o desenvolvimento integrado. (COHEBE, 1970, p.
4).
O projeto sico total durou aproximadamente sete anos, ampliando-se em um
pouco mais de um ano diante das previsões iniciais. No entanto, mesmo para cumprir esse
cronograma até o ano de 1970 teve que se adotar um ritmo de trabalho intenso em torno 20
horas de trabalho diárias, tendo para isso a disponibilização de um contingente operário
enorme e além do grande volume financeiro disponibilizado para a sua conclusão. (O DIA,
08/10/1964, p. 1 e 2).
Ao longo disso a COHEBE contou com a acessoria de inúmeros escritórios de
pesquisa técnico-científica, tendo escolhido a construtora de Minas Gerais Mendes Júnior
para a execução das principais obras físicas, além de outras empresas menores de construção
civil e empresas prestadoras de serviços em geral.
Sobre a obra da Usina de Boa Esperança no Piauí, observamos uma informação
publicada euforicamente num jornal de Teresina, o qual diz: cerca de 15 firmas, inclusive uma
estrangeira participou da obra que representa para o Piauí e Maranhão, o mesmo que Paulo
Afonso representava para as outras unidades do Nordeste. (O COOPERATIVISTA,
28/02/1965, p. 1).
77
Nesse sentido, a construção da Usina de Boa Esperança no estado do Piauí
remonta a atuação inicial da própria potica sudenista no Piauí, como podemos conferir nas
palavras do primeiro superintendente da instituição o economista Celso Furtado, que em visita
a capital piauiense em 1962 declarou que a obra fazia parte do primeiro plano diretor da
SUDENE. (Ibidem, 30/04/1962, p. 1).
É nesse quadro que relacionamos a construção da usina no Piauí ao papel da
SUDENE na região, pois se a diretriz central dessa agência era o de garantir condições
básicas para o desenvolvimento auto-sustentado no Nordeste, isso seria possível aqui e em
toda a região, garantindo-se uma infra-estrutura de fornecimento de energia capaz de suportar
o estabelecimento de fábricas, gerando assim empregos e divisas para os estados nordestinos.
Não se pode, fazer em poucas linhas, análise dos empreendimentos da SUDENE,
no Piauí, que passaram a depender da Barragem de Boa Esperança, mas pode-se
observar, diante do noticrio, que a Superintendência do Desenvolvimento
Econômico no Nordeste, temmotivos para reformular os seu planos de trabalho, as
suas metas prioritárias em relão ao nosso estado. (ESTADO DO PIAUÍ,
24/06/1965, p. 2).
Este ponto da atuação da SUDENE no Piauí é bastante tocado pelos interlocutores
locais, os quais cobram uma maior prioridade na fomentação de indústrias no estado,
corroborando com essas reivindicações as críticas já mencionadas sobre essa restrita iniciativa
sudenista, o caso da prioridade dada aos estados da Bahia e Pernambuco, em detrimentos das
outras unidades.
Ao mesmo tempo em que se faziam essas críticas estes personagens defendiam o
repasse de verbas para a obra da hidrelétrica piauiense, agarrando-se talvez ao único grande
projeto sudenista no estado, não se esquecendo ainda de alertar para a necessidade de ir am
de Boa Esperança, devendo então a SUDENE investir também em projetos industriais no
Piauí.
Como já vimos estudos comprovam as raríssimas intervenções na estruturação
produtiva mais geral do estado, carecendo-se assim de uma amplitude bem maior que não
apenas a geração de energia para o consumo doméstico.
Até mesmo quando a SUDENE aprova incentivos financeiros a algumas poucas
indústrias piauienses, ela transparece a não priorização em se investir no Piauí e fazer avançar
o seu desenvolvimento, revelando-se então a sua postura até certo ponto negligente.
Esta postura institucional da SUDENE aparece de forma oficial nos jornais da
época, como podemos perceber no registro de um parecer da instituição que aprova uma linha
78
de crédito para uma instria de alimentos, no qual ao mesmo tempo são reafirmadas as
análises das condições precárias do estado e que o projeto industrial aprovado seria pequeno
em termos de Nordeste, mas considerado relevante para a economia piauiense. (O DIA,
09/12/1963, p. 1).
Como percebemos, durante a década de 1960 é bastante corrente entre o meio
jornalístico piauiense a opinião de que são poucos e pequenos os projetos aprovados no Piauí
pela SUDENE.
Diante destes questionamentos locais acerca da atuação da SUDENE, juntamente
com os dados apontados sobre o ínfimo percentual de recursos destinados ao Piauí,
verificamos no nordeste uma trajetória concentracionista desta instituição federal,
observando-se no caso específico do Piauí, uma atuação feita basicamente de duas formas,
sendo que a mais comum era a ajuda dada ao governo e empresários em pequenas
intervenções, na maioria das vezes para estruturar os serviços públicos das cidades maiores
como a capital Teresina.
A outra intervenção da SUDENE no Piauí, e certamente a mais expressiva, foi o
financiamento da Usina de Boa Esperança, a qual além de concentrar os recursos federais no
estado, foi considerada na época a segunda maior do Nordeste, incorporando assim todo um
discurso de desenvolvimento geral a partir da energia elétrica.
Dessa forma, a hidrelétrica foi ganhando desde o seu princípio uma função
redentora, pensada assim como uma obra que pudesse solucionar o problema do crônico
atraso e desenvolver economicamente o estado do Piauí, numa relação de causa e
conseqüência.
Nesse entremeio, a COHEBE agiu como a principal irradiadora desse discurso
salvacionista incorporado a obra da usina no Piauí. Esta posição é percebida num trecho do
relatório de atividades da COHEBE de 1967, depois de três anos de obras da usina. O
documento reafirma a importância da obra para essa região com a seguinte mensagem:
Assume, ainda, o sistema em construção pela COHEBE um verdadeiro papel de
BOA ESPERANÇA, para os nordestinos do leste, do meio norte e até para os
nortistas da Amania, configurando para o país, o rompimento das fronteiras do
sub-desenvolvimento [...] O isolamento dos sistemas etricos é, também, o das
civilizações humanas cujas bases m no uso da energia etrica, abundante e a
preços acesveis, um dos parâmetros que condicionam o desenvolvimento
econômico dos povos. (COHEBE, 1968b, p. 7).
Logo se seguiram às inúmeras matérias jornalísticas que engrossavam o coro dos
esperançosos, repetindo o eixo do discurso de modernização nacional quase sempre
79
enfatizando os mesmos argumentos políticos e técnicos para cá direcionados pelas instituições
oficiais, especialmente a COHEBE que inclusive paga colunas jornalísticas locais e nacionais
para noticiar suas atividades, elegendo-se quase sempre nestes espaços a Usina de Boa
Esperança como uma obra da redenção.
Enfatizamos aqui, o resultado decisivo que deveria render esse investimento local,
passando pela expansão e integração dos mercados nacional e regional, estruturando-se assim
o seu planejamento com o objetivo de viabilizar o desenvolvimento econômico dos estados do
Piauí, Maranhão e parte do Ceará, regiões das mais deficientes do país quanto à produção e o
consumo sustentados de energia.
De uma forma mais direta, verificamos a busca da meta estratégica de integrar o
mercado local piauiense a economia nacional, seja diretamente através do consumo de energia
elétrica viabilizado pelas inversões estatais, seja através da posterior ampliação do consumo
de bens industrializados em geral. Ou seja, o que se desejava era estabelecer as condições
básicas de necessidade e consumo desses produtos industrializados, alcançando-se essas
garantias somente com a eletricidade, mesmo que não se implantem tantas instrias nestas
regiões interioranas. É exatamente essa a mensagem de alguns jornais nacionais inclusive
citados de que só faltava ao Piauí energia para se desenvolver.
De uma forma especial, a execução desse projeto na década de 1960 no Piauí, traz
para o dia-a-dia dos piauienses um debate potico intenso que marcava os posicionamentos
sociais variados no estado e no país.
Compreendemos então mais de perto a interligação da realidade local piauiense
com a realidade nacional, visualizando essa conexão no projeto de construção da Usina de
Boa Esperança. Nesse rumo, percebemos primeiramente as coincidências entre os temas
diversos, entre os argumentos e polêmicas levantadas, e ainda nas repercussões tanto na
sociedade piauiense por conta da obra, quanto nas sociedades nordestina e brasileira que
promoviam o debate geral da modernização.
Em se tratando especialmente da sociedade piauiense da época, verificamos que os
canais de debate são principalmente os jornais, espaços onde as opiniões dominantes são mais
restritas a jornalistas, e a demais personalidades poticas e intelectuais locais.
Por conta desse fato restritivo, sabemos também que as opiniões dos setores
sociais piauienses mais pobres, nem sempre são contempladas nesse esforço de propagação de
idéias, restando a estes últimos nem tanto o papel de opinar, mas muito mais com a função de
contribuir como mão-de-obra no projeto.
80
É assim então, que por meio desse turbilhão de informações, o discurso
desenvolvimentista nacional penetra no seio da sociedade piauiense, tendo como matiz central
a propaganda da Usina de Boa Esperança, e no seu bojo um conjunto de planos e promessas
próprias que apontam para a solução do atraso com a aceleração do desenvolvimento
industrial.
Analisando um pouco mais a repercussão dessa obra no Piauí, verificamos que
logo de início a Usina de Boa Esperança transforma-se nesse instrumento maior para a
conquista da redenção ecomica do Piauí. Essa seria a tarefa primordial da obra, a de
resolver os problemas regionais, num posicionamento que é demasiadamente presente nas
publicações jornalísticas da cidade de Teresina.
A condição em si de subdesenvolvimento dessa região era conhecida através de
estudos federais realizados aqui, sobretudo nos momentos que sucedem à elaboração do
projeto da usina e no começo de sua construção. Esses estudos engrossavam os argumentos
dos porta-vozes locais defensores do papel preponderante da Usina de Boa Esperança no
desenvolvimento do estado.
E nesse sentido os problemas por aqui sofridos, seriam prontamente resolvidos
com a chegada da luz do desenvolvimento, trazendo consigo as indústrias, o aumento do
comércio e o avanço geral da sociedade piauiense.
Antecipando um pouco a análise destes alvos produtivos encontramos
especificamente a expansão do comércio com um aumento razoável de suas perspectivas,
percebido isto no aumento considerável das propagandas de lojas variadas e outras empresas
comerciais em Teresina, a partir do início da obra da usina. se destacam ainda os anúncios
de oferta de eletrodomésticos, cada vez mais presentes no meio social piauiense a partir desse
período que coincide com a chegada da energia em abundância. (O DIA, 21/10/1964, p.6).
No entanto, alguns setores sociais piauienses demonstravam a sua desconfiança
com as promessas em torno do projeto da Usina de Boa Esperança e ao mesmo tempo
alertavam que sua produção não deveria ser monopolizada por grandes trustes sem nenhum
interesse no desenvolvimento de povos subdesenvolvidos. (Ibidem, 16/05/1963, p. 1).
Para estes piauienses menos empolgados e mais reflexivos com a obra da usina,
com esses referidos cuidados a Boa Esperança poderia trazer o almejado desenvolvimento
para o pobre estado do Piauí, alcançando o mesmo, portanto, a sua independência
econômica e com isso podendo oferecer um melhor padrão de vida ao seu povo. (Ibidem).
Nesse debate da construção da Usina no Piauí e das transformações a serem
trazidas por ela, encontramos intelectuais piauienses como o professor Raimundo Santana, o
81
qual analisa esse processo de integração regional-nacional e aproveita para também alertar
sobre a necessidade premente de se investir em infra-estrutura em todo o estado.
Raimundo Santana discute os reflexos das mudanças econômicas e sociais em curso
no Piauí, causadas pela integração do Piauí a realidade nacional, o que ele chama de
secularização da sociedade. Diz ainda que o sistema de mercado rasga a estrutura
tradicional, [...] quebra a rigidez e a simplicidade do tecido social do Piauí. (Ibidem,
05/09/1963, p. 2).
Este interlocutor num subseqüente artigo jornastico, fala ainda dos papéis
preponderantes da SUDENE e do governo estadual na operação desses investimentos, além de
defender a necessidade de se formar uma elite representativa dos interesses nacionais no
Piauí para que a mesma pudesse liderar o processo de industrialização. (Ibidem, p. 8).
Nessa oportunidade enfatiza que esses personagens deveriam se integrarem ao
povo piauiense para assim marcharem em direção ao desenvolvimento. Nesta tarefa o
governo do estado exerceria uma lideraa decisiva, porém sempre junto ao povo, garantindo-
se a este último uma participação ativa nesse processo, sob pena de haver um fracasso se toda
esta interação político-social não ocorresse.
Dessa forma ele alerta o governo estadual para a necessidade de se preparar e
garantir o êxito do desenvolvimento do estado que se anuncia. Para isso seriam necessários
investimentos na criação de uma infra-estrutura indispensável, tendo a SUDENE um papel
imprescindível neste cenário.
Entretanto o intelectual sintetiza algumas dificuldades a serem enfrentadas aqui
durante esse processo como a falta de matérias-primas, mercado interno fraco ou
praticamente inexistente com uma área monetária restrita, e uma população e uma economia
majoritariamente rurais. Mesmo assim, diante de tamanhas limitações, ele reforça que as
relações do Piauí com o restante do país se intensificam, e que por isso, no Piauí a tarefa seria
a de levar o capitalismo ao meio rural. (Ibidem, p.8).
Encontramos também nesses espaços de discussão alguns setores divergentes da
política governamental vigente, os quais expressam suas opiniões na forma de duras críticas
ao governador Petrônio Portela e a SUDENE.
A oposição se faz principalmente pelo fato de que, no começo desse processo, o
mencionado chefe potico presidiu a reunião da SUDENE em Recife que deliberou a
aprovação do projeto da Usina de Boa Esperança e a correspondente criação da COHEBE.
82
Segundo esses opositores a participação do governador Petrônio Portela nesta
cerimônia teria lhe proporcionado uma imensa vaidade carreirista, esquecendo-se então o
governante da sua tarefa principal de defender os interesses do povo piauiense.
Para os representantes desses setores divergentes, o que se processara naquela
reunião seria um ataque aos interesses dos piauienses na definição do plano dessa obra tão
importante, pois os grandes beneficiados seriam os maranhenses e os cearenses, seguindo-se
por todo o texto jornalístico com bastante ironia para com o governo estadual.
Com isso suscitavam seguidas vidas no blico local através de afirmações
fortes, como a de que os piauienses terminariam como herdeiros presuntivos dos sobejos da
grande obra. (Ibidem, 13/06/1963, p. 1 e 3).
Portanto várias eram as opiniões e vários também eram os interesses. Os que
estavam no governo exerciam o papel de coordenar localmente todo esse processo, sendo que
dos mesmos emanavam as principais diretrizes do discurso da moderna salvação.
Diferentemente daqueles se colocavam alguns grupos poticos econômicos que
estavam de fora do governo. Estes, apesar de se expressarem em menor quantidade, se
fizeram presentes com críticas e até propostas alternativas, como a do projeto de uma usina no
rio Longá levantado por grupos da região norte do estado.
Restavam ainda os conterrâneos pobres e não letrados, os quais sem condições de
penetrarem diretamente nesses espaços de discussões, participavam indiretamente das
polêmicas provocadas pelos outros personagens nesses jornais. Dessa forma, as camadas
populares representavam uma das pontas de ressonância dessas polêmicas expostas na
sociedade piauiense.
Percebemos assim que o debate de certa forma fluiu nas mais variadas camadas
sociais, até por que visava com essa expansão da modernidade atingir o meio social de forma
ampliada, inclusive incentivando com a massiva propaganda o deslocamento de operários
para a obra que traria a redenção de um povo e a riqueza de todo um vale. (Ibidem,
10/07/1964, p. 1 e 4).
Nesta arena social, geralmente a maioria das posições que defendiam a obra,
baseavam-se sobretudo na reivindicação de soluções para os já contumazes problemas
estruturais do Piauí, destacando-se aí a questão do abastecimento de energia elétrica, marcado
por constantes racionamentos e apagões, provocavam muitas reclamações nas principais
cidades piauienses e até conflitos de consumidores com as empresas de eletricidade,
especialmente na capital Teresina, sob a responsabilidade da CEPISA, Centrais Elétricas do
83
Piauí S. A., empresa que foi criada no ano de 1962 com a supervisão da SUDENE. (CHESF,
1998, p. 39).
Toda essa realidade frustrava futuras pretensões de desenvolvimento do estado, e
sobre esse fato, podemos acompanhar o seguinte trecho de um jornal de Teresina:
A dirãoda CEPISAsente-se na obrigação de informar aos habitantes de Teresina
e Timon que, em virtude da incapacidade atual de a Usina Termelétrica poder
oferecer um fornecimento normal de energia etrica aos seus consumidores
poderá conceder novas ligões a partir da presente data a instalações residenciais
comcarga de até 150 watts e a instalações de força 2 HP. [...] Recomenda a direção
aos senhores consumidores, [...] a necessidade de limitar ao estritamente necessário
o consumo de energia [...] Avisa as Indústrias, Fábricas, Serrarias e Oficinas que
não poderão funcionar entre 18 e 22 horas, sob pena de desligamento. (O DIA,
28/11/1963, p. 3).
Portanto, esses problemas de falta de energia, repercutiam como ponto de grave
deficiência da infra-estrutura de serviços básicos do estado seja aos consumidores
residenciais, e pior ainda aos consumidores empresariais.
A solução então viria com a realidade palpitante de Boa Esperança que acudiria os
empresários e o povo em geral, trazendo um crescimento comercial jamais visto em Teresina
e no Piauí, proporcionado pela interligação desse mercado local aos mercados nordestinos, e
aos mercados centrais nacionais.
Constatamos então que o Piauí, semelhante a outros estados menos privilegiados
da região nordestina, passou a presenciar um pouco mais de perto o projeto de
modernização em curso no país com o impulso considerável das obras de eletrificação,
representando assim a obra da Usina de Boa Esperança, a matriz dessa modernização.
Reiteramos então, que esta obra e todos os acontecimentos que a cercam, ocorrem num
contexto polêmico que marca de incertezas o seio da sociedade piauiense.
Certamente também é motivo de aquecimento dos debates, a antiga reclamação
local acerca do desinteresse do Governo Federal pelo desenvolvimento do estado do Piauí,
sendo que no caso do projeto da Usina de Boa Esperança, os reais resultados dessa
intervenção estatal, com a construção da usina e a distribuição de energia para várias regiões
do estado, demoraram um pouco para se firmarem, alimentando-se assim as reclamações
locais em torno das ações do Governo Federal no Piauí.
Coloca-se, portanto, para nós esta reflexão sobre a condição de ínfima prioridade
dada ao estado Piauí, e como resposta a isso devemos considerar a relutância de muitos
personagens locais em aceitar essa desfeita regional.
84
Nesse sentido os porta-vozes piauienses mais otimistas expressavam o desejo de
superar esse estigma do atraso, e assim podendo avançar essa região tão pobremente
estruturada. Para isso, a Usina de Boa Esperança exerceria um papel de destaque nessa
salvação econômica do Piauí, tornando-se por fim, com a massificação informativa, no maior
e quase único instrumento de solução dos problemas locais.
A hidrelétrica então reuniu de uma forma nunca antes vista um forte discurso de
mudanças positivas nessa região, projetando-se a partir dela a grande conquista do
desenvolvimento industrial. No entanto verificamos que esta previsão se concretizaria com
a extensão dos planos a outros setores que não apenas o de geração de energia, devendo com
isso terem se ampliado os investimentos talvez na mesma proporção em que se propagaram as
promessas.
Até mesmo em relação à conclusão da rede energética podemos fazer algumas
ressalvas, haja vista que no Piauí a construção de todo esse suporte estrutural se
concretizou ao longo da década de 1970, bem depois da conclusão da usina.
depois disso começaram a surgir algumas melhorias econômicas, notadamente
no fornecimento de eletricidade em geral e especialmente no ramo do comércio, esboçando-se
o fortalecimento do sistema básico de serviços, mesmo com os limites inerentes ao
mencionado projeto institucional.
Enquanto se ampliava esse sistema de distribuição aqui no Piauí a produção de
Boa Esperança ficou subutilizada, sendo identificada essa limitação de consumo local nos
estudos do aproveitamento inicial da usina, os quais apontavam para a necessária
interligação do sistema piauiense ao sistema da CHESF através das linhas de transmissão de
energia.
Existia então uma necessidade estratégica de compor o sistema de geração de
energia no Nordeste, através da interligação da produção de várias usinas na região,
indicando-se assim que a produção de Boa Esperança representaria uma reserva suplementar
de energia aos mercados consumidores de energia das grandes zonas industriais regionais
formados e nesse momento em franca expansão, destacadamente as cidades de Salvador-BA,
Recife-PE, e ainda Fortaleza-CE por está mais perto da usina piauiense.
Acrescenta-se novamente a esse argumento, os resultados de estudos apontando
para uma demanda de energia no Piauí e regiões, no final da década de 1960, menor que a
capacidade a ser instalada na usina, o que representava um aproveitamento apenas parcial
num primeiro momento de funcionamento durante a década de 1970. Somente no final desta
85
década a produção iria se alastrar por todo o estado, devido o aumento da população e o
conseqüente aumento do consumo de energia. (COHEBE, 1969, p. 36-39).
Para se distribuir eficientemente a energia produzida na Usina de Boa Esperança,
foram montados 1.330 km de redes transmissão no território piauiense, abastecendo a
demanda das principais cidades piauienses e garantindo a viabilidade comercial desse
investimento na medida em que se estabeleciam as condições mínimas para o consumo do
produto com vistas a um rápido crescimento. Além disso, essas linhas de transmissão
evidentemente estabeleceram uma ligação desse mercado local piauiense com os mercados
nordestinos mais centrais.
Estas e outras queses da produção, comercialização e distribuição da energia de
Boa Esperança foram muito pesquisadas, como nos revela a passagem que logo se segue.
A SUDENE em cooperão com autoridades estaduais e municipais da rego
tencionada, à época da pesquisa, promover uma série de melhorias relacionadas não
apenas com a produção de energia, mas também com a sua distribuão. Tais
melhorias visavam: - suprir a demanda existente e a prevista em um futuro
pximo, - prepara o mercado para a futura conexão com o sistema etrico de Boa
Esperança padronizando as características da rêde de distribuão de modo a
facilitar a conexão. (COHEBE, 1968a, Parte VI-5).
Entretanto, assim como no Nordeste esse conjunto de mudanças não veio
acontecer com a mesma força que na região Centro-Sul, especificamente dentro desse quadro
regional de atraso, o Piauí não teve o mesmo aquinhoamento que estados nordestinos mais
centrais como Bahia, Pernambuco e Ceará. Encontramos muito nos jornais teresinenses,
denúncias do desprezo por parte do governo federal para com o estado do Piauí, denuncias
estas notadamente feitas pela elite piauiense.
Antes mais nada, esclarecemos o faz parte de nossas intenções engrossarmos o
coro demagógico desta elite piauiense de que os problemas do estado se explicam única e
exclusivamente pela pouca importância dada pelo governo federal a este estado, rejeitando
assim de forma veemente, qualquer sentido em nossas palavras que possam simplesmente
fazer valer a inocência desta elite nas responsabilidades potico-administrativas locais ao
longo de séculos.
No entanto, ao analisarmos a bibliografia sobre os temas regionais nordestinos, e
dentro desse debate mais amplo, analisarmos também a atenção institucional federal destinada
especificamente ao Piauí e o seu papel dentro do processo de desenvolvimento econômico
nordestino e nacional, não podemos deixar de observar que esta pouca importância do estado
86
do Piauí no cenário nacional e regional se faz presente para além das reclamações elitistas,
configurando-se assim como um fato, o qual não pode deixar de ser comentado.
Neste sentido, até mesmo ao compararmos as atenções destinadas ao Piauí e ao
Maranhão, o resultado traz a tona uma considerável diferença relativamente favorável ao
último, como podemos perceber no próprio projeto da Usina de Boa Esperança em que o
estado vizinho contava com mais municípios a serem servidos logo após a conclusão da obra,
mirando-se nessa projeção o alcance do mercado de energia da capital maranhense, São Luís.
Dessa forma, percebemos certa preocupação prioritária por parte da COHEBE para
acompanhar os investimentos no estado vizinho ao Piauí, encontrando inclusive nos
documentos oficiais referências mais freqüentes a estruturação da rede energética
maranhense.
É nesse sentido que o departamento comercial desta instituição acompanhou a
evolução do mercado de energia, de modo muito estreito no lado do Maranhão e através de
informações fornecidas pela CEPISA no lado do Piauí. Neste particular prestou constante
assessoramento à CEMAR. (COHEBE, 1968b, p. 41).
Nesse sentido uma atenção considerável é dada às ações da Companhia Estadual
de Energia do Maranhão, a CEMAR, a qual recebeu assessoramento da COHEBE no sentido
de formar pessoal para as redes de distribuição. (Ibidem, p. 40).
Não queremos aqui alimentar nenhuma disputa interestadual, muito menos com o
Maranhão, o qual pode ser historicamente considerado como o estado mais próximo do Piauí.
Entretanto, o que nos intriga é justamente a maior quantidade de municípios maranhenses
citados, e a atenção prioritária da COHEBE em relação à CEMAR, a qual é bem mais citada
do que a sua correspondente piauiense, a CEPISA.
E então, lembramos inevitavelmente de algumas matérias aqui citadas, as quais
levantam suspeitas de grupos piauienses divergentes sobre o favorecimento do Maranhão e
até do Ceará em detrimento do Piauí.
Torna-se importante neste ponto lembrarmos também das palavras do intelectual
piauiense Raimundo Santana, quando defendeu a necessidade de se formar no Piauí uma elite
que representasse eficazmente o estado nesse processo de modernização nacional. E assim,
expomos mais uma vez que esta realidade local fazia parte de um processo de cunho nacional,
produzindo-se aqui reflexos regionais variáveis, mas sempre direcionados por um controle
intervencionista central.
Nesse contexto o Piauí é prejudicado com essa opção de desenvolvimento regional
concentracionista, pois, em se tratando do assistencialismo do Estado intervencionista
87
aplicado pela SUDENE no Nordeste, o Piauí foi um dos estados preteridos, principalmente
nos seus primeiros anos de existência por causa dessas prioridades regionais localizadas.
Algumas das razões desse desinteresse estavam no fato de que
O assistencialismo ocorreu com mais intensidade em relação a outros
estados do Nordeste, cujas respectivas economias tiveram um peso mais
notável no conjunto nacional e cujas elites dirigentes exerceram um poder de
barganha, no sistema político brasileiro, mais significativo que o das
oligarquias piauienses. (MARTINS, 1979, p. 96).
Lembremos aqui do já identificado papel suplementar da Usina de Boa Esperança
no fornecimento de energia aos grandes centros urbanos regionais mais destacados do
Nordeste, Salvador na Bahia, Recife em Pernambuco, e também Fortaleza no Ceará.
Com essa intenção concentracionista, reforçada inclusive por um previsto sub-
aproveitamento inicial da produção de Boa Esperança em sua região de predonio
considerada relativamente incipiente, justificou-se a possibilidade de exportar a energia para
fora da área de cobertura oficial da COHEBE, situação essa que foi assegurada com a
interligação dos sistemas de transmissão de energia, o sistema de Boa Esperança com o
sistema da CHESF em Paulo Afonso-BA,
Entretanto mesmo com todas essas vidas, constatamos que o que prevaleceu
mesmo foi o apelo à esperança de desenvolvimento econômico do Piauí nesse período.
Certamente essa é a expressão mais propagandeada pela construção da usina hidrelétrica em
Guadalupe, um projeto de cunho nacional com ares de salvação desta terra e de seu povo,
contando para o sucesso desse projeto, com a participação de um elemento central fornecido
pelo ente histórico piauiense mais querido, o rio Parnaíba.
88
CAPÍTULO - 2
GUADALUPE E A USINA DE BOA ESPERANÇA
G U A D A L U P E
Velho Porto Seguro do passado,
Imerso na memória de tua gente,
Guardamos tua imagem duplamente...
Foste Porto Seguro nos dois lados.
Guadalupe nasceu alvissareira,
Como nasce n`alma o amor ardente,
Guadalupe de outrora e do presente,
Guadalupe da nossa Padroeira.
[...]
Dimas Ribeiro da Fonseca
Morador da Guadalupe Velha
2.1 - A Guadalupe Velha revelada pela saudade dos seus filhos
Ao iniciarmos esta parte decisiva de nosso texto citando um poema de autoria de
um guadalupense, vamos diretamente ao âmago dos sentimentos dos moradores para com
aquela pacata cidade que tem uma história muito bonita, de idas e vindas, começos e
recomeços, do lugar de referências múltiplas com um futuro promissor. Olhar para trás e
imaginar as suas casas, ruas, pessoas, o rio, e enfim, idealizar a vida lá construída.
Guadalupe dos sonhos, e Guadalupe das lembranças, sendo esta última palavra a
denominação do recurso mais recorrido pelos moradores entrevistados na busca de
informações para comporem as suas descrições memoriais de um lugar tempos submerso
nas águas e nas mentes desses seus filhos, os quais jamais esquecerão a saudosa Porto Seguro,
para sempre eternizada como a Guadalupe de outrora, e tamm de agora.
Nessa análise intertextual, poderíamos facilmente transpormos também os versos
do poema “A Rua” de Torquato Neto, poeta piauiense, o qual descreve com maestria esses
espaços urbanos de sociabilidades que vão sendo compostos ao longo de toda a vida,
89
construindo-se assim a história de um lugar pelas mãos, pelas mentes e pelos corações de
pessoas que desse espaço sobrevivem, e sem ele sofrivelmente vivem.
Torquato fala então das ruas onde as pessoas passam, as mesmas onde as
memórias ficam, num ir e vir cotidianamente frenético de interessantes e irrisórias passagens,
porém todas importantes na composição dessas vidas urbanas.
São em ruas como as de Teresina, ou mesmo de Guadalupe, e de tantas outras
construídas nas margens do rio Parnaíba dos lados piauiense e maranhense.
São essas as ruas cantadas no poema de Torquato Neto, as mesmas e molhadas
pelas águas do mesmo rio; vividas por pessoas semelhantes em várias cidades semelhantes; e
por fim, as ruas que vão historicamente sendo calçadas pelas memórias dos seus moradores.
Assim nos surge poeticamente o cotidiano das cidades piauienses e maranhenses,
sobretudo essas que margeiam o longo curso do rio Parnaíba. Dentre essas cidades,
destacamos Guadalupe, dos versos escritos e memoriais, e que, a partir de agora, segue
descrita nesse texto.
Junto dessas descrições memoriais que começamos a apresentar, encontramos
também vários dados oficiais sobre o surgimento e a evolução da cidade Guadalupe, o que
veio a reforçar mais ainda a precisão das informações prestadas pelos nossos moradores
entrevistados.
Diante de tão poéticas e saudosas considerações no despertar para a história de
Guadalupe, resta-nos ainda, recuperarmos na nossa memória aquelas saudosas histórias de
nossos pais guadalupenses, dentre as quais destacamos aquela a que iluminamos na
apresentação introdutória deste trabalho.
No caso no referimos aquela história contada de um jovem vaqueiro viajando a
noite pelos interiores de sua cidade, e que quase que divinamente esta surge ao alvorecer,
irradiada pelo sol que descobre o lugar, o qual recebera o nosso personagem com tamanho
sentimento.
É com aquele mesmo espírito que iniciamos detidamente a reconstrução desse
lugar que hoje existe num local, mas que até ontem estava vivo em outro. Discorramos então
com mais liberdade a história desse lugar de constantes transformações, de vários nomes,
Porto Seguro; Guadalupe Velha; Guadalupe Nova; cidade da Barragem; entre outros. Mas por
fim, encontramos um lugar de um mesmo povo, nascido e criado ao longo dos seus passados,
presentes e futuros.
90
Torna-se necessário, antes de passarmos diretamente às entrevistas, abreviarmos
algumas considerações acerca da História oral. Iniciemos então escolhendo a seguinte
definição conceitual:
História oral é um recurso moderno usado para a elaboração de
documentos, arquivamentos, e estudos referentes à experiência social de
pessoas e de grupos. Ela é sempre uma história do tempo presente e também
reconhecida como história viva. Conceito número 1: História oral é uma
pratica de apreensão de narrativas feita por meios eletrônicos e destinada a
recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente e
facilitar o conhecimento do meio imediato. (MEIHY, 2002. p. 13).
Começamos a entender o que é História oral e quais são as suas fontes próprias,
sendo que no caso de nossa pesquisa, as narrativas apreendidas através das entrevistas com os
moradores, representam exemplos fortes de fontes orais.
Ora, mas o que o autor diz na citação não é que a história oral é uma análise de
processos sociais do presente (Ibidem), e, então, como é que poderemos considerar as
informações dos nossos entrevistados sobre o passado vivido por eles na sua cidade. De
pronto, encontramos um complemento desse mesmo texto citado, onde se esclarece que:
Como pressuposto, a história oral implica uma percepção do passado como
algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. É
isso que a marca como história viva. A presença no presente imediato das
pessoas é a razão de ser da história oral. Nessa medida, ela o só oferece
uma mudança do conceito de história, mas, mais do que isso, garante sentido
social à vida de depoentes e leitores, que passam a entender a seqüência
histórica a se sentem parte do contexto em que vivem. (Id. Ibidem, p. 15).
Feitas essas necessárias considerações, encontremos então as falas de alguns
desses moradores mais vividos, e comecemos logo as apresentações com a dona Maria
Amélia, a qual chegou a Guadalupe com quatros anos, vinda de Jerumenha com seu pai João
Machado de Matos primeiro tabelião público, o qual também participou da fundação da
cidade.
Dona Maria Amélia substituiu o seu pai e se tornou a tabeliã civil da cidade após
fazer em Teresina um teste no qual ela afirma que passou em primeiro lugar. Assim, logo
iniciou sua carreira, casou-se e teve filhos, isso tudo já chegando à época da transferência para
a nova cidade.
Ela conta de forma apaixonada como era a Guadalupe Velha, e nesse sentido
afirma categoricamente:
91
s somos nossas pessoas, s somos nossos guadalupenses, s vencemos!
Tanto que trouxemos Guadalupe para cá, hoje é uma ótima cidade, de onde
veio?! Da nossa cidadezinha pequena! Ela foi que sofreu! (FONSECA,
2006).
Sendo assim, a nossa inspiração conectou-se a essas várias fontes de informações,
que apesar de estarem muitas delas esquecidas ou subutilizadas, sejam as escritas ou as orais,
mostraram-se todas de valor histórico incomensurável ao apresentaram o surgimento da
cidade, ao delinearem o seu desenvolvimento, e por fim bem enfáticas ao descreverem o
momento da mudaa para um novo lugar.
Capturando então essas informações e interpretando-as em nosso texto, seguimos
ao começo de tudo situando geográfica e historicamente o surgimento da cidade de
Guadalupe.
Antes de mais nada, devemos registrar que é o rio Parnaíba uma referência de
primeira grandeza neste texto, haja vista que o rio é extremamente reconhecido pelos
primeiros moradores como o grande patrimônio natural da cidade de Guadalupe.
Nesse sentido, constatamos essa imbricação natural entre os moradores e o rio,
pois a cidade começa na sua margem, exatamente no lugar aonde eles chegam primeiro e
escolhem para morar, no beiço do rio! (ARAÚJO, 2006).
Estas últimas palavras citadas são de uma das moradoras mais antigas de
Guadalupe, dona Mundiquinha, hoje com a idade de oitenta anos, sendo que 60 deles vividos
nesta cidade que escolheu pra construir sua vida, e assim o fez com muita luta, e muitas
dificuldades. Ela chegou então quando tudo começou, logo que Guadalupe realmente se
tornou cidade, final da década de 1940.
Esta mais uma das guadalupenses batalhadoras, que trabalhando de costureira e de
doméstica ajudou a construir àquela cidade, sempre na labuta diária, de sol a sol, como tantos
outros guadalupenses. Foi assim que se fez a cidade de Guadalupe, pelas os dessas pessoas
e batizada pelas águas do rio Parnaíba.
E dessa forma, se fazem presentes todos estes nossos entrevistados como
personagens ativos dessa história, e também o rio como marco natural de fundação e também
como baliza cotidianamente visualizada, passada, sentida.
Todos os nossos entrevistados registram firmemente a ligação praticamente
umbilical” da cidade com o rio Parnaíba. Todos confirmam as mesmas opiniões, de que
92
aquelas águas em tudo serviam aos moradores, consumo, pesca, banho, navegação, lazer,
além de representar a sua maior referência histórica.
Melhor trazer novamente mais algumas falas sobre o rio, o qual é sempre tratado
com altivez, com beleza, reconhecendo-se assim a sua riqueza e lhe reservando inúmeros
agradecimentos, como nos afirma dona Maria Amélia, de que o rio era maravilhoso!
(FONSECA, 2006);
Ampliando mais um pouco o nosso conjunto de entrevistas, encontramos logo de
início três falas interessantes a respeito da importância do rio Parnaíba para a cidade de
Guadalupe:
- A fala direta do senhor João Alencar de que o rio era a nossa riqueza!
(ALENCAR, 2006).
- Também as palavras precisas do senhor Jo Jociler de que a relação dos
moradores com o rio era tudo![...] Era interessante! (PEREIRA, 2006).
- E ainda a enfática afirmação de dona Maria do Carmo, de que a presença do rio
era muito forte na vida de todos em Guadalupe! (MOUSINHO, 2006).
Apresentemos a seguir alguns detalhes das vidas destes três últimos entrevistados
que expressam com suas falas opiniões a respeito do rio.
Primeiramente temos o senhor João Cardoso de Alencar, que no alto de seus
oitenta e seis anos está presente na cidade desde antes de sua fundação. Ao perguntarmos
sobre sua formação profissional, ele faz questão de identificar-se como militar reformado,
advogado, técnico em contabilidade, e ex-prefeito da cidade, justamente o prefeito do período
da mudança da velha para a nova cidade;
Seguindo-se a fala do senhor João Alencar, tivemos também uma suspirante
declaração sobre o rio Parnaíba dada pelo senhor José Jociler Pereira, filho nativo da cidade
velha e atualmente com a idade de setenta e seis anos. Ele foi um comerciante que trouxe
novidades para a cidade, um pioneiro, como ele próprio faz questão de identificar-se, além de
ter sido o primeiro prefeito eleito na Guadalupe nova.
As falas dos senhores Jociler Pereira e do senhor João Alencar, sobretudo se
interpretadas do lugar social e potico exercido por eles na cidade na época da transformação,
mostra-nos que os dois foram os maiores entusiastas da promessa de desenvolvimento vinda
para Guadalupe com a obra da Usina de Boa Esperança.
Fechando aquele parágrafo de expressões elogiosas em torno do rio, encontramos
dona Maria do Carmo, professora que nasceu em Guadalupe e que muito jovem começara a
lecionar, saindo em seguida da cidade e logo voltando no início das obras.
93
Feita a naturalização histórica e geográfica da cidade, e também de seus
moradores, verificamos um pouco mais os detalhes da construção do lugar inicialmente
batizado de Porto Seguro. De partida esclarecemos que este nome representava uma fiel
herança maranhense de onde veio à maioria dos primeiros moradores, exatamente transpostos
do outro lado do rio, do lado do Maranhão, de uma localidade que também se chamava Porto
Seguro.
De lá, do lado do Maranhão, migraram em meados da década de 1920 caravanas
de fazendeiros, comerciantes e pequenos agricultores, os quais fugiam de uma intensa cheia
do rio Parnaíba, buscando então no lado piauiense um local mais seguro para reconstruírem
suas vidas. Montaram assim suas casas neste local, na margem direita do rio, encontrando lá
maior proteção por conta dos lajedos, talhados e morros, os quais os moradores referem-se
repetidas vezes em seus depoimentos.
Porto Seguro representava exatamente um lugar onde os navegantes do rio podiam
se abrigar, se apoiar um pouco antes de enfrentar a Cachoeira da Boa Esperança com suas
temíveis pedras e corredeiras de águas rasas, sobretudo no verão, que corriam rapidamente e
ameaçavam a segurança das embarcações com eminentes acidentes.
É justamente este lugar no rio, a Cachoeira da Boa Esperança, localizada um
pouco mais a frente da antiga Porto Seguro do Piauí, que se relaciona diretamente com o
processo de mudanças iniciado nesta região por conta da obra da hidrelétrica. Junto deste
local que um dia fizera parte do berço da construção de Guadalupe, estará então o destino
desta pequena vila corriqueiramente nascida e renascida, pelo rio e pelos homens.
Recorramos agora de maneira mais aprofundada, às informações apresentadas pelo
senhor João Cardoso de Alencar, que nascido na antiga localidade de Porto Seguro do lado do
Maranhão, e vindo de lá para a Porto Seguro do Piauí na época do povoamento inicial, revela-
se com suas palavras um conhecedor como poucos do desenrolar original deste lugar.
O senhor João Alencar, conta-nos como foi esse processo de povoamento inicial,
através um texto de discurso escrito e proferido pelo mesmo em 2002 por ocasião da fundação
do Memorial Porto Seguro, local este concebido para reunir documentos, imagens e objetos
que contam a história da cidade de Guadalupe.
Este e outros textos, documentos, imagens e objetos, se encontram reunidos neste
local que foi concebido para preservar a memória da cidade, compondo-se assim neste
Memorial um conjunto valioso de fontes, as quais detalham a fundação do lugar e a jornada
de vida de seus primeiros moradores.
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Assim, segundo o senhor João Alencar, os primeiros guadalupenses fundaram a
localidade com o primeiro nome de:
Porto Seguro/PI, encravado no lugar Bom Princípio [antiga Melancias], um
dia se chamaria Guadalupe. Vivia em situação economicamente inferior a
Porto Seguro/MA. Os habitantes deste, após sofrerem freqüentes e terríveis
enchentes do rio Parnaíba, decidiram se fixar definitivamente no lado
piauiense. E por aqui se fixaram para sempre. Desse fato, viria surgir mais
tarde a Vila de Porto Seguro, no ano de 1929. (ALENCAR, 2002, p. 1, grifo
nosso).
Entretanto, refletimos um pouco mais, sobre a condição subjetiva do senhor João
Alencar como personagem vivo destes primeiros passos da futura Guadalupe, pois o mesmo á
época da fundação da vila tinha oito anos de idade, e com isso certamente alguma
limitação concreta na sua descrição.
Não que estas suas memórias infantis o se façam presentes, de forma nenhuma,
pois ele também sentiu o que se passava. Apenas o que iluminamos é o seu lugar de
personagem na época, o lugar próprio de uma criança que mesmo com sua mente repleta de
fantasias, assistiu a tudo, confirmando-se como uma testemunha ocular do acontecido.
Sendo assim, no intuito de corroborar e enriquecer tal descrição do momento de
surgimento da cidade encontramos alguns outros documentos escritos que nos contam com
riqueza de detalhes o desenrolar do fato marcado por um clima fraternal, festivo e otimista.
E com esses sentimentos apresentamos um documento em especial que é a Ata de
Despedida, feita exatamente no momento da mudaa da velha para a nova cidade.
A citação que se seguirá é longa, no entanto, sua extensão se faz necessária pelo
extremo valor de suas palavras, as quais detalham de forma única o momento da fundação
oficial da cidade de Guadalupe, coroada esta cerimônia com a vinda de caravanas de diversas
regiões circunvizinhas, sendo que estes grupos de pessoas juntamente com os primeiros
moradores que habitavam, foram à base para a formação do povo guadalupense. Ainda
segundo a descrição contida na ata, vieram também pelo rio Parnaíba as autoridades estaduais
que consagrariam a oficialização do novo município.
Todas essas informações são apresentadas integralmente neste documento,
justificando-se novamente a sua completa citação. Sendo assim, vejamos um trecho da Ata de
Despedida onde se transcreveu a fala de um dos fundadores da velha cidade e à época
vereador, o senhor Manoel Ribeiro da Fonseca, o qual se pronunciou com as seguintes
palavras:
95
A 24 de Agosto de 1929, spera do dia da instalação concretizante de nossa
emancipação política e administrativa. Estive presente quando da chegada a
esta cidade das caravanas do interior, do novo município, em
abrilhantamento as solenidades marcadas por lei, para o dia seguinte; do
Povoado Coqueiro entrou triunfal caravana chefiada pelo ativo político
Raimundo Gomes de Oliveira. Do Povoado Tingüis, hoje cidade de Marcos
Parente, outra importante caravana chegara, essa liderada por Francisco José
da Fonseca, Manoel Monteiro Gomes e a pequena e irrequieta figura de
Manoel Domingos de Oliveira, todos de saudosas memórias e ainda o
remanescente Ricardo Manoel de Santana. Da Santa Rosa, entrou uma das
mais importantes das caravanas, esta comandada pelo coronel Elídio Alves
de Carvalho, em cujo semblante lia-se francamente aquela figura tradicional
do Senhor de Engenho. A caravana da zona Uruçuí sobressaia-se em número
de pessoas. Essa tinha liderança de Vitor Antunes da Rocha, Elesbão
Gonçalves Guimarães, Pedro Gonçalves Guimarães e Augusto de Freitas
Varão a todos a nossa saudade. Foi brilhante a caravana que Porto Alegre
enviou chefiada pela figura imperial de Horácio da Silva Ribeiro, e na qual
participava o homem mais alto do município de nome Santo Coriolano. A
representação Porto Franco em nada ficou atrás, tendo a frente à figura
arrogante do líder Firmino Leite de Brito acompanhado de Lucas da Cunha
Holanda e Paulo Pereira dos Reis. Às 18:30 horas desse mesmo dia, soou aos
nossos céus o apito do vapor Chile conduzindo a seu bordo os passageiros
ilustres Dr. Albino Lopes, Juiz de Direito de Uruçuí deste estado e o senhor
Napoleão Moreira, Secretário do senhor Juiz e ainda o chefe da empresa
fluvial, João Luis da Silva. Todas as caravanas eram recepcionadas pelos
habitantes da nova cidade e ao ar subiam girândolas de foguetes daqueles
fabricados localmente, pelos exímios fogueteiros José Granjeiro de Luna e
Elias Ferreira de Araújo. Grandes banquetes foram oferecidos aos
caravaneiros e ao povo em geral. Aos 25 dias de Agosto de 1929 às 14 horas,
toda a multidão comprimia-se em torno do casarão do Sr. Mousinho,
alugado para funcionar a nova prefeitura, localizada hoje a Praça da
Bandeira s/n. Ao recinto do salão das solenidades via-se uma grande mesa
ornamentada na qual tomaram assento os senhores Dr. Albino Lopes, Juiz;
Napoleão Moreira seu Secretário; Frutuoso José da Silva, Prefeito nomeado
[...]; Francisco Ramos de Freitas, Juiz Distrital; Alexandrino Moreira
Mousinho, Adjunto de Promotor; João Mariz Guimarães, Coletor Estadual;
João Machado de Matos, Oficial do Registro Civil; Cícero José de Sousa,
Tabelião; Manoel Alves de Castro, Escrivão da Coletoria; E, João Maria
Mousinho, Pedro Cesário de Albuquerque, Adelino Ribeiro da Fonseca,
Elídio Alves de Carvalho, membros do Conselho Municipal. Depois de
apossadas as novas autoridades, pronunciou-se diversos oradores, encerrados
pela figura máxima do momento, Artur de Araújo Passos, Patrono do grande
acontecimento. À noite festas daantes até o sol raiar. Completados hoje 38
anos, 4 meses e 5 dias que em festas recebemos o importante missão que
embora com leves incidentes, os guadalupenses tem sabido zelar.
(CAMÂRA MUNICIPAL DE GUADALUPE. Ata de despedida e
encerramento dos trabalhos desta Câmara, nesta cidade de Guadalupe
do Estado do Piauí, que se transferirá para nova cidade do mesmo
nome, próximo a Barragem da Boa Esperança. Guadalupe, 30/11/1967,
10h00min).
Pode até parecer um pouco incoerente falar de um começo recorrendo a um final,
mas sobre isso justificamos que entre outros documentos, esta ata retrata com muito mais
96
detalhes e principalmente com muito mais sentimentos aquele momento único da festa da
fundação da vila de Porto Seguro, a futura cidade de Guadalupe.
A ocasião da despedida proporciona esta emocionada recuperação do começo da
cidade de Guadalupe, e aí está a maior especialidade deste documento.
Esse episódio, da descrição da fundação da cidade no momento da mudança, é um
caso clássico de valorização de um momento passado lembrado mais a frente numa ocasião
totalmente inversa: Ao que um dia tivera começo, agora se depara com um fim!
Nesse sentido mesmo, identificamos um saudosismo indisfarçável dos
entrevistados em torno das suas referências históricas como povo, e de inquietações por conta
das mudanças que advieram com a construção da Usina de Boa Esperança. É todo esse caráter
especial que vemos nesse documento, o qual ganha um valor inestimável exatamente por se
tratar de uma Ata de Despedida.
Continuando nesse rumo, seguimos com mais algumas informações contidas
naquele outro texto fornecido pelo senhor João Alencar (ALENCAR, 2002), e neste
verificamos que naquele lugar de povoamento inicial da cidade, já havia se arranchado um
fazendeiro e comerciante piauiense de nome Alexandrino Moreira Mousinho, o qual
aproveitou as ótimas condições naturais daquele lugar pra sediar seu entreposto de comércio
agropecuário.
O senhor Alexandrino, então, montou uma pequena feira que logo crescera no
intercâmbio com o Porto Seguro maranhense, ponto de povoamento e comércio existente
na época do outro lado do rio.
Ainda segundo outras fontes documentais colhidas no município, documentos do
museu, prefeitura, cartório e câmara, o senhor Alexandrino Mousinho foi o personagem que
mais se destacou nesse processo de povoamento. Fazendeiro e capitão da antiga Guarda
Nacional, ele é reconhecido na historiografia oficial do município como o desbravador do
local que mais tarde veio a ser a base da futura vila.
Aqui continuamos com o texto do senhor João Alencar que se refere de forma
especial ao pioneiro Alexandrino Mousinho, categorizado ainda como um empreendedor que
ali havia construído uma pequena casa de feira para comerciar os produtos colhidos em suas
terras, além de ter fundado também uma pequena escola, tudo isso neste mesmo lugar, bem ali
na beira do rio Parnaíba.
O capitão Alexandrino Mousinho nascera em 1873 em terras piauienses que
margeiam o grande rio, na localidade Bom Princípio, especificamente numa propriedade
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conhecida como “Fazenda Boa Vista”, terras estas nas cercanias da futura Porto Seguro
piauiense.
Passado esse seu começo de vida, ele logo viaja até a cidade originária de seus pais
que era Umari no estado do Ceará, onde fica um tempo até alfabetizar-se. então no ano de
1902 ele finalmente retorna a terra onde havia nascido, para nunca mais dela sair.
O senhor Alexandrino continua então a vida no seu lugar de origem, como nos
conta o senhor João Alencar, este que faz questão de ressaltar a presença de seu pai, Miguel
Pereira de Alencar, que foi durante muito tempo o Marchante contratado pelo senhor
Alexandrino para tomar conta dos negócios na feirinha sediada na margem piauiense do rio.
(Id. Ibidem, p. 2).
Seguimos em nosso texto com o depoimento do senhor João Alencar, no qual o
próprio faz questão de registrar o seu nascimento no povoado de Porto Seguro do lado do
Maranhão em 1921. Segundo ele, pouco tempo depois, em 1926, ele e todas as famílias
residentes em Porto Seguro (Maranhão) saíram em busca de abrigo e atravessaram até a
margem piauiense do rio Parnaíba após uma grande inundação que assolou aquele povoado
maranhense. (Id. Ibidem, p.1).
Na margem piauiense do rio Parnaíba estas pessoas recomeçam suas vidas
construindo assim uma nova comunidade, eis aí então os marcos iniciais da futura vila de
Porto Seguro do Piauí, a mesma que mais tarde adotaria o nome definitivo de Guadalupe.
As um período inicial de construção das primeiras casas ao redor da pequena
feira levantada pelo senhor Alexandrino, passou-se então as definições dos espaços públicos e
privados, dos locais para a produção econômica, para o lazer, etc., prosseguindo-se assim toda
a localização urbana do novo ajuntamento.
A estruturação de Porto Seguro do Piauí foi muito rápida, tanto que em apenas três
anos após seu povoamento, aquele lugar alcançou a almejada categoria de vila. Fato este
registrado por meio de uma cerimônia de instalação oficial, realizada no dia 25 de agosto de
1929 com a presença de autoridades estaduais e com repercussão da imprensa da época,
segundo nos informa um compêndio histórico que destaca entre outros assuntos, da ocasião de
fundação da cidade. (JORNAL DA SAUDADE, 27/12/1975, p. 1).
Retomamos novamente ao texto escrito pelo senhor João Alencar, no qual o
mesmo conta resumidamente a história do surgimento deste lugar, permitindo-se inclusive
expressar em suas palavras num certo tom saudoso, revelando assim esse seu testemunho:
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Volto-me agora, [...], à tarde de 25 de agosto de 1929. Vencidas as
dificuldades de ordem jurídica, aquele modesto núcleo habitacional, formado
inclusive por cearenses, transformou-se em Vila de Porto Seguro, pela Lei nº
1251, de 11 de julho de 1929, realidade o sonhada por seus fundadores.
(ALENCAR, 2002, p.1).
Depois desse nascimento histórico, Porto Seguro perdeu sua condição de vila num
grande revés causado pelo Golpe de 1930, voltando a compor juridicamente o município de
Jerumenha. Apenas no ano de 1938 a pequena localidade de Porto Seguro reconquistou a sua
autonomia administrativa, alcançando aí nesse momento uma nova denominação
administrativa que foi a sua elevação à categoria de cidade, oficializada pelo Decreto
Estadual de 26 de julho 1938. (JORNAL DA SAUDADE, 27/12/1975, p. 5).
As esse intervalo de 12 anos, a contar da migração dos primeiros moradores,
configura-se de maneira efervescente a estruturação social, econômica e potica desta nova
cidade piauiense, batizada como Porto Seguro. Entretanto, o lugar ficou por pouco tempo com
esse nome, haja vista que existia a mais tempo no estado da Bahia, uma outra cidade
chamada Porto Seguro.
Esta duplicidade foi legalmente resolvida com a definitiva adoção do atual nome
de Guadalupe, numa referência direta a sua padroeira Nossa Senhora de Guadalupe,
assumindo assim seu novo nome a partir do dia de janeiro de 1944 no batismo final da
então nova cidade.
Nesta época Porto Seguro que possuía Igreja e um modesto Mercado
Público, teve sua sede elevada à categoria de cidade. As disposições da
legislação federal relativas à duplicidade de nomes de cidades e vilas
brasileiras atingiu o município de Porto Seguro que, por efeito do Decreto-
Lei Estadual nº 754, de 30 de dezembro de 1934, ganhou a denominação de
GUADALUPE, a partir do dia de janeiro de 1944. Tal denominação foi
dada em homenagem à padroeira do lugar Nossa Senhora de Guadalupe.
(Ibidem, p.1).
Eis então a estruturação da pequena cidade de Guadalupe nas margens do rio
Parnaíba, entre as décadas de 1930 e 1940. Curiosamente, quinze anos após a sua
consolidação inicial, esta mesma cidade, fundada e reconhecida pelo duro labor dos seus,
começava a ser pensada novamente sob os signos de mudanças e despedidas, pois, na década
de 1960, com a construção da Usina de Boa Esperança, passou a ser reconhecida também
como a Guadalupe de outrora perdida nas saudades de seus primeiros moradores.
Diante deste resgate fundacional, voltamos aos seus primeiros passos na intenção
de caracterizar um pouco mais a figura física da cidade de Guadalupe, as suas casas, a sua
99
descrição urbana, a natureza que compunha o lugar, o rio no compasso da vida, e o dia-a-dia
dos seus moradores.
Para isso recorremos além dos documentos escritos, aos depoimentos de algumas
destas pessoas que para se dirigiram, e dirigiram sua história, num desaguar de palavras
quase poéticas que tivemos o prazer de presenciar e aqui nos pomos a contar.
Quando se pensa num lugar distante dos seus olhos, um lugar que conhece, mas
muito não se visita provavelmente lhe causa certa dificuldade em rememorá-lo exatamente
como o era. Por outro lado, difícil mesmo seria imaginar um lugar sem nunca tê-lo visto, eis
aí um exercício desafiador de idealização.
Como descrever um lugar fazendo uma colagem de imagens, isso sem fugir da
coerência do real mentalmente fotografado? Para além disso, como compor estas imagens sem
conhecer o lugar, sem visualizá-lo num esboço previamente idealizado?
No caso de nossa cidade estudada, temos exatamente estas dificuldades, pois de
um lado temos os moradores entrevistados os quais completam quarenta anos sem visualizar
aquele lugar. E de outro, temos nós como pesquisadores que não tivemos a oportunidade de
conhecer Guadalupe Velha. Estas duas dificuldades se impõem obviamente por conta da obra
da usina hidrelétrica e a conseqüente inundação da velha cidade, permanecendo esta até hoje
submersa nas águas do Lago de Boa Esperança.
Mesmo diante de tais dificuldades e limitações que permeiam a nossa pesquisa,
encontramos a solução no trabalho com as seguintes formas de descrição: Um desenho geral
da cidade velha exposto no Memorial Porto Seguro; Os documentos escritos da mara
Municipal, da Prefeitura e do Cartório da cidade; Algumas fotografias feitas pelos
funcionários da COHEBE na época da mudança; e também as descrições orais feitas por
aqueles que construíram e viveram neste lugar, e que de lá foram obrigados a sair.
São justamente essas memórias das pessoas retiradas daquele lugar que se
configuram como as fontes mais valiosas de que pudemos dispor. Neste sentido, recorremos
então a estas fontes, as quais registram este ato final dramático quando os últimos suspiros são
dados por aqueles personagens mais passionais, os que mais vêem, exatamente porque mais
sentem, e mais sofrem. Estas são as reservas descritivas aqui validadas para tratar de
Guadalupe como uma cidade desfeita.
No intuito de justificarmos esse rumo metodológico, apresentamos um trecho da
obra O Tempo vivo da Memória” de Ecléa Bosi, na qual a autora enfatiza a importância da
memória como fonte de informações e de representações simbológicas a serem trabalhadas
nos estudos historiográficos, enriquecendo-se estes estudos com o uso das fontes orais,
100
sobretudo a importância dos depoimentos das pessoas mais vividas, fontes as quais comem
destacadamente essa nossa pesquisa.
A memória oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crônica
do quotidiano. [...] A história, que se apóia unicamente em documentos
oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás
dos episódios. [...] A memória oral, longe da unilateralidade para a qual
tendem certas instituições, faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo
menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior riqueza. (BOSI, 2003,
p. 15).
Então, partindo-se da constatação da extrema importância das fontes orais para a
nossa pesquisa, e ainda da necessidade de relacionar entre si as diversas fontes visuais,
escritas e orais, passamos a reconstruir a imagem da primeira cidade de Guadalupe,
ressaltando novamente a valiosa contribuição dos nossos entrevistados, que através das suas
próprias palavras descrevem muito mais que o esperado daquela humilde cidade.
Começamos pela descrição da estrutura física, e assim encontramos os
depoimentos dos nossos entrevistados reconstituindo as ruas sem calçamento, apenas uma era
calçada, e ainda os poucos prédios públicos como a Igreja, a Prefeitura/Câmara e o Mercado.
A maioria das casas foi feita com parede de barro, umas com teto de telha e outras
com teto de palha, encontrando-se algumas grandes casas com paredes de tijolos,
notadamente as resincias dos principais proprietários da cidade.
Havia ainda uma pequena ponte sobre um riacho que cortava a cidade em duas
partes, numa parte ficava a Igreja e o prédio da Prefeitura/Câmara, e na outra parte ficava o
Mercado. Cada um desses dois lados tinha suas devidas casas e os seus moradores,
características estas fielmente identificadas por nossos entrevistados ao descreverem a
estrutura da cidade e as suas casas de morada e tamm os seus locais de trabalho.
Revela-se então a nós este desenho bem rústico de casas e ruas, tendo no seu
entorno cercados com pequenas plantações que quase sempre rumavam para as margens do
rio, nas conhecidas vazantes que movimentavam a agricultura local, sobretudo no período de
pós-cheia.
Vejamos então o desenho dessa cidade exposto num painel na entrada do
Memorial Porto Seguro construído na cidade nova no ano de 2002. Esta imagem proporciona-
nos um panorama geral daquela vida bucólica, fornecendo assim elementos visuais para
entendermos todo o saudosismo que cercava e ainda cerca aquele lugar.
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Neste sentido, a imagem que logo se segue, nos confirma todas as informações
apresentadas aqui nas narrativas dos nossos entrevistados, descortinando-se assim este
espetáculo de simplicidade e magia conhecida hoje pelos seus entes como a cidade de
Guadalupe Velha.
Figura 1: Vista parcial da Guadalupe Velha.
Fonte: Memorial Porto Seguro. Guadalupe-PI.
Essa imagem da Guadalupe Velha nos revela uma cidade voltada para o rio
Parnaíba (1); Do canto esquerdo inferior em direção ao rio, estava o riacho (2) que cruzava
sinuosamente a cidade e a dividia em dois lados: o lado onde ficavam a Igreja (3) e a
Prefeitura/Câmara (4); e o lado onde ficava o Mercado (5); Os dois lados eram unidos por
uma pequena ponte (6) visualizada acima ao centro;
Esta é a forma geral e este é o lugar do pequeno núcleo urbano do município de
Guadalupe, ali nas ribanceiras do Velho Monge [...] essa pequena comunidade composta, na
sua sede, de 243 homens e 280 mulheres, abrigando em todo o seu espaço físico uma
população de 7.409 habitantes, segundo dados estatísticos da época extraídos da Enciclopédia
dos Municípios e registrados num jornal organizado por guadalupenses após a saída da cidade
velha para a cidade nova. (JORNAL DA SAUDADE, 27/12/1975, p. 7).
Seguem-se então as falas dos moradores entrevistados, os quais narram o início da
ocupação do lugar, as suas ruas, casas e prédios, de novo e sempre o rio, pontuando sempre as
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pessoas que viviam, além de contarem como eram a economia, a potica, as sociabilidades,
as festividades, etc.
Passamos então a reencontrar as narrativas destes entrevistados, que ao se
colocarem neste exercício descritivo, acionam as suas memórias, e junto com elas trazem
também as suas emoções. Assim eles nos contam com grande sintonia sobre a simplicidade, a
pureza, a beleza stica, o funcionamento em ritmo regular da cidade de Guadalupe, frisando
sempre a felicidade característica que conectava as pessoas entre si, e que as unia com o lugar
em que viviam.
Podemos começar por dona Maria Amélia que abre sua fala com uma descrição
romântica do lugar que para ela parecia um presépio divino, [...] a coisa melhor que Deus nos
ofereceu, foi aquela cidade maravilhosa! (FONSECA, 2006).
Seguimos as palavras da entrevistada e baseando-se nelas percebemos que a cidade
de Guadalupe reunia várias qualidades como simplicidade e beleza, originalidade e riqueza.
Continuando o trecho anteriormente citado, ela enfatiza suas palavras dizendo que
era maravilhoso, era uma cidade linda, parecia um presépio divino, ela tinha assim uns
altos, baixos, você olhava assim parece que você via um horror de casinhas, num presépio,
menino era bonita Guadalupe! (Ibidem).
Na tentativa de entender o tom das palavras de dona Maria Amélia, encontramos
bem adiante mais uma de suas veementes exclamações, na qual ela afirma: Sempre fui
positiva e sempre defendi Guadalupe, eu sou guadalupense! (Ibidem).
Dona Maria Amélia descreve também a forma das ruas, das casas, das pessoas,
porém, o que mais cresce na sua narrativa é o enfoque da riqueza econômica da cidade. Nesse
mesmo sentido, ela refere-se também aos moradores como pessoas dedicadas à produção em
geral, e destaca a navegação em mais uma relão direta da cidade com o rio Parnaíba.
Dessa forma, no seu depoimento ela caracteriza Guadalupe como uma cidade:
muito simples, mas muito boa e rica, Guadalupe era muito rica de tudo, por
que todo mundo naquela época não esperava empreguinho não, ia era
trabalhar de roça, criação, plantava na beira do rio e também plantava fora na
região mais distante, todo mundo trabalhava. [...] Era um posto de
abastecimento, e tinha mais o rio corrente, que vinham balsas e balsas,
cheias de arroz, cheias de feijão, cheias de farinha, de goma, menino era
coisa espetacular. Fruta, banana, laranja, abacaxi, essas coisas que vinham
mais de cima, de Uruçuí, de Santa Filomena, vendia pra cidade, vendia
também para Floriano e Teresina; Eles se transportavam até Teresina, as
balsas eram imensas. (Ibidem).
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Continua dona Maria Amélia falando-nos das atividades econômicas da cidade
original, da participação sua e de sua família em algumas dessas atividades. Além disso, ela
acrescenta-nos detalhes sobre o desenho urbano de Guadalupe, contando-nos sobre as ruas,
casas, o mercado, o riacho e o rio, a igreja, enfim, a entrevistada declara como era o modo
guadalupense de vida:
Meu marido era comerciante, tinha uma usina de descaroçar algodão, de
pilar milho, essas coisas todas. A gente tinha grandes armazéns pra abastecer
a população que vivia de comprar; por que muitos viviam a de vender pra
gente. [...] Eu morava na avenida Gelio Vargas; tinha a praça do
mercado que era a praça da Igreja, e adiante tinha um Mercado; tinha a
Igreja num alto, que era muito bonitinha, tinha a praça bonitinha, as
subidinhas; ficava bem defronte o Velho Monge; do outro lado tinha a
praça da Bandeira, por que lá tinha um riacho no meio, vo ficava na parte
de cá; Era bem entre as casas, tinha até uma ponte para a gente poder passar;
era corrente mesmo, e o pessoal lavava muita roupa lá, eu não sei se
chamava Grota?! (Ibidem).
As palavras de dona Maria Amélia sugerem-nos os pormenores do cotidiano de
Guadalupe Velha, pois, na medida em que ela pontua uma divisão territorial da cidade, ela
aponta alguns traços das diferenças sociais existentes naquela cidade, juntando-se aí é claro,
as suas preferências pessoais, as quais sugerem que o lado da Igreja” onde ela morava, era a
melhor parte da cidade, apresentando-se na sua narrativa a igreja como a referência mais forte
na disposição urbana e também na sociabilidade da cidade.
A outra parte era denominada por ela simplesmente como o lado da “Grota”, era
justamente o lado da cidade onde não ficava a igreja. É bem verdade que neste outro” lado,
era onde ficava o Mercado Público da cidade. Entretanto, também este fato é prontamente
esclarecido pela entrevistada, pois o prédio de comércio central havia sido mudado
recentemente de lugar tendo em vista o acelerado desenvolvimento local.
Seguindo na descrição, dona Maria Amélia informa que um pouco antes, tudo de
importante ficava exatamente na parte onde ela morava, na praça da igreja, local onde
também estava sediada a prefeitura, a câmara e o primeiro mercado municipal de Guadalupe.
A gente morava bem na beira do rio, esse riacho despejava as águas bem no
rio, ele vinha de longe, ele passava bem no meio da cidade, que ficava o
lado da Grota, que era o lado de cá, e o lado da Igreja que era o nosso lado.
do lado da Grota [riacho] tinha um Mercado e do lado de tinha a
Igreja. Antigamente a gente também tinha Mercado, mas você sabe a cidade
vai evoluindo, aparece um prefeito, aparece outro, aí ficava o Mercado do
lado de que ficava mais adiante da Igreja, na praça da Igreja. passou
para a praça da Bandeira, tinha bem mesmo um Mercado, a que o era
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ruim não, era outra parte comercial que morava muita gente. (Ibidem).
Sendo assim viajamos nas palavras de dona Maria Amélia para descrevermos a
cidade velha de Guadalupe e entendermos a sua evolução com o crescimento do comércio
local e seus reflexos na transformação do desenho urbano da cidade. Nesse sentido, revela-se
à nossa imaginação o ritmo de vida que transcorria naquele lugar, a forma como o núcleo
urbano foi sendo edificado, e os lugares sociais e culturais diferentemente ocupados.
Transparecem-nos ainda as transformações que ocorriam e que nem sempre
eram bem aceitas, confirmando-se assim a máxima de que as pessoas em geral têm certa
aversão a mudanças, sejam as menores como a da localização do mercado que deixara de
estar do seu lado da cidade; sejam as mudanças maiores, as quais alteram drasticamente as
vidas das pessoas, como foi o caso da construção da Usina de Boa Esperança que veio e
transformou radicalmente todo aquele espaço.
Com a obra da hidrelétrica então, ficou para trás o valor de mudanças anteriores,
mas, contudo disso, os nossos entrevistados não se esqueceram de enfatizar os principais
acontecimentos daquela cidade de Guadalupe, registrando-se assim a viva lembraa que eles
possuem de todas estas passagens, sejam elas pequenas ou grandes, sejam elas antes ou depois
da usina.
Encontramos também, nesse início da descrão de Guadalupe Velha, dona Ana
Luiza, a qual apresentamos como dona-de-casa e professora da cidade. Ela morava na zona
rural da cidade com parte da sua família, mas mantinha uma casa na sede urbana onde os seus
filhos maiores viviam. Ela então ia até a cidade para visitar seus filhos e resolver outros
assuntos particulares.
Assim, a entrevistada discorre de uma forma geral sobre a simplicidade dessa
cidade velha com uma estrutura urbana muito simples, e faz questão de enfatizar o clima de
grande amizade que havia entre os moradores. Assim ela nos diz que na cidade de Guadalupe
Velha
tinha calçamento já, quando foi no tempo da barragem tinham
calçamento. Era simples, atrasada, não tinha tamanhos comércios, era
coisinha. As ruas eram poucas, as casas também. Era uma cidade pequena,
mas todo mundo era amigo um do outro, num tinha esses fuxicos, briga,
intriga, todo mundo era amigo, quando se via era tudo abraçando. Tudo
gostava uns dos outros, tudo era como parente, era uma família só, quase,
que só era Mouzinho [família], a maior parte; os outros foram entrando
nos Mouzinho sem ser Mouzinho, contanto que ficou tudo Mouzinho.
(SILVA, 2006).
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Dona Ana Luiza continua sua narrativa descritiva sobre a simplicidade bucólica de
Guadalupe, e, logo em seguida, pontua também as limitações da pequena cidade, com poucos
serviços blicos, mencionando ainda que era através da navegação no rio que se fazia a
ligação principal de Guadalupe com outros lugares.
Eram poucas mesmo, agricultura, era vaquerice; era alfaiate, que nesse
tempo ninguém comprava roupa feita, mandava era fazer; tanto as mulheres
fazia vestido, como os homens fazia as roupas de homem. Médico também
não tinha, era uma vez por ano que aparecia um médico, para aqueles mais
doentes, e os mais sadios ficavam sem fazer consulta que não dava tempo.
As viagens pra Floriano, Teresina, sempre era em embarcação, quando o
tinha vapor, ia mesmo em balsa, era por água que a gente vinha. (Ibidem).
Prosseguindo nossa análise, apresentamos a narrativa de dona Mundiquinha, que
inicia esclarecendo: Não nasci em Guadalupe não, eu sou filha de Landri Sales aqui, mas
naquele tempo era município de Jerumenha; Eu vim em 1948, em junho de 1948, eu tinha
vinte e um anos. (ARAÚJO, 2006).
Foi então a partir dos vinte um anos de idade que ela começou a visualizar
Guadalupe, cidade essa que, aliás, ela faz questão de descrever minuciosamente a sua
estrutura urbana, especialmente referindo-se às casas, à sua evolução histórica, e de como as
instituições existiam e funcionavam normalmente lá. Sobre todas essas características ela nos
diz:
A cidade de Guadalupe era uma cidade, que se chamava cidade, mas quando
eu cheguei em Guadalupe não era Guadalupe ainda, se chamava Porto
Seguro, depois passou para Guadalupe. tinha o festejo quando eu cheguei,
tinha sim, da santa, aí registraram como Guadalupe, mas o nome chamava
Porto Seguro. [...] A cidade era uma coisa muito pequena, era assim, era uma
cidade no nome, mas era assim aquelas casinhas de pobre mesmo. [...] Tinha
as casas dos comerciantes de lá. Era casa de todo jeito, casa construída de
madeira, umas eram de alvenaria, outras eram de adobo, a minha era de
adobo, outras eram de taipa cobertas de palha, outras eram fechadas de
palha. A primeira casa que eu possui era assim, bem humilde, piso batido,
junto da Prefeitura de Guadalupe. Tinha igreja, tinha prefeitura, a igreja era
de junto da prefeitura; cartório, tudo isso aqui, que nós trouxemos de foi
isso. (Ibidem).
Interessante recorrermos ao depoimento de dona Mundiquinha para contarmos a
história de Guadalupe, tendo em vista que ela foi morar com vinte e um anos de idade,
estando assim fora do contexto inicial de surgimento da cidade. Seu depoimento então,
repercute como uma voz diferente das outras falas de moradores pioneiros entrevistados,
106
sendo que, a partir de sua chegada, ela passa a relacionar-se ativamente com várias pessoas de
diferentes posições sociais.
Toda essa interatividade social de dona Mundiquinha foi possível porque a sua
rotina profissional e pessoal a levava a maioria das casas da cidade, e, portanto, ela trabalhava
convivendo em rias casas ao mesmo tempo. Foi assim que ela construiu sua vida nesse
lugar.
Desse jeito, dona Mundiquinha estava muito presente na vida de vários moradores,
e com isso fortalecia a sua percepção da cidade ao ampliar suas amizades, e dessa forma,
coloca-se em nosso estudo como um exemplo expressivo da sociabilidade na velha cidade.
Sobre a cidade ela nos fala um pouco mais das atividades produtivas, da estrutura
da cidade, do rio, da navegação, do dia-a-dia das pessoas, e da saudade muito forte que guarda
de Guadalupe Velha.
Então, de maneira muito franca, dona Mundiquinha inicialmente nos conta o
seguinte sobre as atividades econômicas, públicas e privadas, e destaca os nomes dos
principais comerciantes daquela época:
O trabalho só tinha mesmo o colégio, a prefeitura e o colégio; Tinha
comércio, tinha seu Beija Fonseca que era dono de comércio, senhor José do
Egito, senhor Elísio, o Benedito, senhor Leó, esses tudo que eram dono de
comércio. [Agricultura?] Tinha, isso aí era o que mais tinha, agricultura que
se chama é o trabalho de roça. (Ibidem).
Prosseguindo a viagem ao tempo a bordo das palavras de dona Mundiquinha,
descobrimos a forma saudosa e detalhada em que é revelada a extensa relação da cidade com
o rio. E sobre esse pico, de forma direta perguntamos: E o rio? E de pronto a entrevistada
nos responde:
Ah, o rio, a gente morava no beiço do rio, a casa do senhor Beija mesmo, a
gente saia bem assim, tava enxergando a água do rio; aí era bem pertinho,
tinha a rampa onde a gente trabalhava. Nesse tempo os transportes eram de a
s, ou então era por água, era barco, canoa, vapor, lancha, era assim, o
transporte era esse. Tinha um lajeiro na beira do rio, tinha uma rampa
aonde o senhor Beija morava mesmo, na casa dele, a água quando vinha
subia ali na rampa, tinha assim uma parede de um lado e outra do outro. As
pessoas ficavam ali olhando quando vinha um vapor, uma embarcação
qualquer, uma balsa, uma barca, que desciam com frutas, vinham de Uruçuí,
dos Tucuns, e paravam em Guadalupe, aí a gente ia e comprava ali uma
parte, porque o comércio num tinha frutas assim, das roças mesmo, só
de pano, e alguns cereais, era. (Ibidem).
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Todas essas passagens da entrevista de dona Mundiquinha são muito marcadas por
um forte sentimento de apego ao lugar que ela escolheu para viver, apego às suas atividades
de trabalho, no caso de doméstica e de costureira. Lembramos ainda que dona Mundiquinha
morava sozinha na cidade e que por isso sugere-nos uma busca, por parte dela, de uma
familiarização com os demais moradores.
Percebemos ainda na sua descrição um declarado sentimento de saudade da velha
cidade do jeito que ela era em sua rústica origem, saudades da vida simples e pacata que se
levava lá, do dia-a-dia sem maiores alterações, cada pessoa com sua função, seu trabalho
doméstico, as instituições, o comércio e a agricultura.
Novamente são as palavras da nossa entrevistada que ilustram o texto, e nesse
sentido ela resume sua jornada diária expressando-se com as seguintes palavras:
em Guadalupe eu vivia sabe de quê? Da costura, que eu trabalhava na
máquina, e da lata d’água, eu botava água nas casas para ganhar o dinheiro,
aquelas casas que eram mais longe do rio, eu botava, eu botava doze
caminhos d’água por dia nas casas, na cabeça, ganhando dez mil réis por
s, num era por dia não. Sempre eu era mais nova, eu agüentava. Eu
trabalhei muito para o povo de Guadalupe, que eu faço como tem uma
música, [...], eu me acabei de trabalhar, num foi de saudade, foi de trabalhar,
trabalhar demais para essa casa. Eu levantava da máquina, hoje eu sei que é
cinco horas, por que hoje o povo tudo pergunta a hora, mas não sabia, era
o quebrar da barra; quando o dia clareava eu levantava da máquina e ia
carregar pedra para botar no baldrame da casa. voltava de enquanto o
povo acordava na rua para eu ir botar água nas casas. Quando o sol saia, o
povo já tinha acordado, que hoje a gente sabe que é de seis a sete horas; e eu
ia botar água nas casas; lá eu tomava um cafezinho na casa da Florzinha com
um pedacinho de beiju, e voltava para o meu serviço. De tarde tornava ir. Eu
vivia era disso, era do meu trabalho. (Ibidem).
Dona Mundiquinha fala-nos um pouco mais sobre a estrutura da pequena cidade,
que apesar de funcionar praticamente durante o dia, chegou a ter uma vida noturna com o
funcionamento de um pequeno motor movido a óleo diesel, o qual era ligado logo ao
anoitecer às dezenove horas, funcionando até as vinte horas quando era desligado, e então a
cidade ia definitivamente dormir. Passadas as noites, estavam novamente todos de para a
labuta de um outro dia, a partir das cinco horas da manhã.
Assim eram os dias e as noites na velha Guadalupe, e sobre o cotidiano desse
período, dona Mundiquinha faz questão de desabafar:
Eu não esqueço daquele lugar velho não! Eu não esqueço daquele tempo
bom, de lá, que a gente, a gente não tinha luz elétrica como nós temos
aqui; tinha na rua, mas quando eu cheguei nem isso, não tinha. tinha na
108
rua, mas nas casas, em algumas casas que tinha, e era até nove horas, aí
parava. (Ibidem).
É claro que estamos falando de um município bem pequeno, que apesar de naquela
época ter 7.409 habitantes em todo o seu território, tinha no seu núcleo urbano apenas 523
moradores, como já citado anteriormente.
No entanto, aquele número total de pessoas serve de parâmetro para entendermos a
grande importância da cidade de Guadalupe como um centro de atração naquela região,
ocorrendo assim um fluxo intenso de pessoas, que mesmo com as dificuldades de transportes,
constantemente se dirigiam dos interiores próximos até a cidade para oferecer ou adquirir
produtos, e também para contatarem familiares e amigos.
Identificamos então esta vocação natural da cidade de ser um lo de aglutinação
de pessoas naquela rego, vocação esta potencializada com o trânsito fluvial, que fez de
um ponto de comércio bastante promissor. Além disso, ao aportarem em Guadalupe, os
navegantes confirmavam uma condição natural do lugar como um apoio antes da difícil
travessia da cachoeira da Boa Esperança, obstáculo perigoso que merecia cuidados para não
se perderem cargas, nem vidas.
Continuando assim essa nossa viagem ao passado adormecido da cidade velha de
Guadalupe, analisamos agora mais uma fala, a de dona Maria do Carmo, a qual descreve a
localização da cidade, da mesma forma que os outros entrevistados, destacando a forma das
casas, as ruas, as instituições públicas com uma referência especial ao colégio, por esse ser
um lugar muito presente no início de sua atuação como profissional da educação.
Dona Maria do Carmo descreve ainda as pessoas, as atividades ecomicas, o
colégio onde a mesma começou sua carreira profissional, menciona também o rio, enfim,
descreve a simplicidade da vida naquele lugar que mais tarde fora coberto pelas águas
represadas do rio. Neste sentido, ela sintetiza o saudoso cotidiano de Guadalupe, e apresenta-
nos esse passado com as seguintes palavras:
Era muito simples, a maioria das casas eram de tijolos, casas pequenas, o
teto de telha mesmo com madeira bruta, a maioria das casas, casas de taipa, e
a cidade era assim localizada entre o morro e o rio, tinham casas que ficavam
em cima do morro, entre o morro e o rio, umas ficavam bem altas, e outras
ficavam naquele espaço ali que ficava entre o rio. [...] E também tinha um
riacho que dividia a cidade, que dividia uma rua da outra, que uma rua era
chamada rua Presidente Vargas e a outra a rua da Bandeira, que nessa rua da
Bandeira é que era a rua especial de Guadalupe, que era onde tinha o
mercado, era onde tinha o colégio João Pinheiro era nessa rua, e era onde
morava mais assim as autoridades de Guadalupe, prefeito, ex-prefeito,
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comércio de Guadalupe, mais era nessa rua da Bandeira. Comércio do
senhor Jociler era lá, o João Pinheiro, que era o único colégio de Guadalupe
também era nessa, nessa cidade. (MOUSINHO, 2006).
Incorporando-se a todo esse panorama geral da cidade velha de Guadalupe,
aprofundamos um pouco mais na fala do senhor Jociler, o qual se aproxima dos outros
entrevistados ao descrever toda a estrutura daquela sede municipal, a sua natureza pacata, os
seus moradores, e numa referência especial aos seus conterrâneos, ele reforça as saudosas
lembranças reveladas também pelos outros moradores.
O senhor Jociler, antes de partir para uma descrição mais direta da cidade, falou
brevemente sobre sua trajetória profissional, que segundo o próprio, desde o começo atuou
com um espírito de pioneirismo, o qual o motivava a trazer novidades como nos conta logo a
seguir:
na nossa Guadalupe, quem mais andava assim era eu, que logo novo com
catorze anos eu era um pouco comerciante. Aí eu comecei a trazer: a
primeira bicicleta quem trouxe pra Guadalupe fui eu; o primeiro fogão a gás
fui eu; o primeiro liquidificador; primeira geladeira; primeiro carrinho;
Tinha um carro da prefeitura, mas o primeiro foi eu, depois outros tiveram.
Buscava em Floriano e ia a Recife, com dezesseis anos eu já estava indo até
o Recife, levava gado, caminhão com gado, e trazia mercadoria. (PEREIRA,
2006).
Continuando na análise da fala do senhor Jociler, e atendo-se especificamente a
apresentação da velha cidade feita por ele, encontramos um considerável reforço do que nos
contaram os outros entrevistados, enfatizando novamente as ruas, as casas, as instituições,
sempre citadas como pequenas, porém presentes as principais de toda cidade como a
Prefeitura, a Câmara, o Judiciário, a escola. Sobre isso ele diz:
A cidade velha de Guadalupe, era, praticamente tinha uma praça e uma
outra área de lazer. A praça da Bandeira, era exatamente a pracinha onde eu
morava em frente o Mercado, tinha o meu comércio, e tinha a rua da Areia
que era a saída pra cá. Tinha a outra avenida Getúlio Vargas que era
exatamente que dava no rumo da outra rua, atravessando uma ponte,
chamavam o riacho da Pinguela, atravessando a avenida Getúlio Vargas; de
a gente ia a a Igreja, e ali tinha a parte maior de comércio era ali.
(Ibidem).
Aproveitamos para descrevermos um pouco mais a vida econômica da cidade
velha, tendo em vista que o senhor Jociler em suas falas toca nesse ponto repetidas vezes,
considerando-se o mesmo morador como um bom comentarista dessas relações, pois o
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mesmo era um dos maiores comerciantes e, talvez, o mais inovador naquele tempo de outrora.
Dessa forma, o senhor Jociler discrimina as principais atividades ecomicas da velha
Guadalupe, que segundo ele eram:
O principal era, para o pessoal, para as moças e as senhoras, a atividade
delas era mais a trança do olho da carnaúba. Fazia a traa, um chapéu, [...]
muitas outras coisas. Mas o que predominava mesmo era o babaçu e a
carnaúba, naquele tempo tinha muita cera da carnaúba, tinha muito valor, e
era isso que mais tinha. Agrícola era o milho, o arroz e o feijão. Pecria
tinha um pouco, tinha um pouco aquele pessoal, tinha uma criação, o irmão
do meu avô, João Maria Mousinho, foi um dos pioneiros ali daquela região,
que mais criou gado e tinha também muito movimento de cana, de engenho,
aquelas coisas todas. O comércio foi também dentro da proporção do
município, tinha um comérciozinho que movimentava, e eu fui um dos
pioneiros. (Ibidem).
Prossegue o senhor Jociler Pereira com a sua detalhada descrição da cidade,
sempre enfatizando as atividades comerciais na medida em que relata também como era a sua
casa na cidade velha, local este em que ele centralizava os seus negócios. Então, segundo ele a
sua casa era grande, tinha a casa do comércio e seis depósitos, tinha uma moageira de café, e
o Café Jociler, e tinha a residência também. Era um comércio mais ou menos, era o pioneiro
de lá, graças a Deus pelo trabalho que a gente tinha de atendimento. (Ibidem).
Como não poderiam faltar, logo surgem às lembranças do morador em relação ao
rio Parnaíba, e assim, durante a entrevista também são revelados detalhes do dia-a-dia dos
velhos guadalupenses interagindo com o rio, o qual representava muito mais do que o
principal limite geográfico da cidade, servindo o mesmo com suas águas para as mais variadas
atividades.
Ah, era interessante. Tudo, vou dizer assim, todo o lazer principalmente dos
jovens era o rio. Aquelas tardes; essas canoas; atravessava-se o rio de nado,
não era o largo, e o movimento era isso; O banheiro dos homens, o
banheiro das mulheres, aquilo era uma beleza rapaz. Mas o banheiro a gente
num banhava lá, um banhava para baixo, outro banhava para cima, e tinha os
banheiros no tempo do veo, tinha os banheiros que a gente fazia assim de
palha, que ficava bonzinho, e tomava aquele banho ali. (Ibidem).
O senhor Jociler o contém seus suspiros ao recordar-se do rio Parnaíba, juntando
sua fala às falas dos outros moradores entrevistados, pois todas transparecem as suas fortes
ligações com esta que era certamente a principal característica natural da velha cidade,
lembrando aqui aquelas reflexões que fizemos no início deste capítulo sobre a importância
inestimável do rio para com os moradores, e para com a cidade em todos os seus aspectos.
111
Relembremos que foi a partir do rio que se iniciou o povoamento da cidade
primeiramente chamada de Porto Seguro e depois batizada como Guadalupe. Lembremos
também do próprio desenho da cidade que tinha ao fundo toda a força e a beleza do rio,
estabelecendo-se o mesmo como o principal limite urbano.
Complementando o que se disse, podemos afirmar com base nas falas dos
moradores, que o rio era uma extensão das casas, formando-se nesse caso os quintais da
cidade aonde chegavam às águas em que as pessoas se serviam. Estas observações nos levam
a identificar o rio não apenas como um limite final da cidade, mas sobretudo como um espaço
de continuidade da mesma.
A partir de todas essas informações vamos entendendo que em Guadalupe o rio era
ao mesmo tempo um espaço blico e privado, um local de trabalho e de lazer, enfim, um
espaço de vida como um todo.
E era lá, no rio, que se encontravam tantos aspectos cotidianos juntos, como o
consumo em geral d’água, a pesca, a navegação, o lazer, o comércio, e até mesmo servia o rio
como inspiração para criações artísticas de alguns moradores, como afirma dona Maria do
Carmo que a beira do rio era muito saudoso. foi onde surgiram tantas coisas, músicas,
brincadeiras, idéias que a gente fazia, mas era lá na beira do rio! (MOUSINHO, 2006).
Especificamente sobre o lazer no rio, podemos afirmar que esta atividade se
destacava mais no verão, pois à medida que o rio secava a diversão tornava-se mais segura.
Geralmente isso ocorria nos períodos de férias, e sobre isso novamente dona Maria do Carmo
nos diz que a presença do rio era muito forte na vida de todos em Guadalupe, que era não só
para outras necessidades básicas, como também para o lazer, era a maior atração do
estudante quando chegava lá, da gente que estudava fora, era o rio. (Ibidem).
Em suma, o rio era tudo por assim dizer, água para beber, lavar, banhar, servindo
assim para tudo o que se pudesse dispor, destacando-se aí as atividades remuneradas de coleta
de água para o consumo nas casas e também o uso para lavagem de roupas. Esses trabalhos
rotineiros eram realizados principalmente pelos moradores mais humildes da cidade, os quais
garantiam com essas ocupações certo alívio na sua sobrevivência diária, como era o caso da
nossa entrevistada, a dona Mundiquinha.
Percebemos então que havia entre os guadalupenses e o rio Parnaíba, uma história
muito rica baseada neste vínculo íntimo das pessoas com a natureza, gerando-nos inclusive a
imaginação de uma vida quase toda voltada em direção a estas águas. Neste sentido, podemos
afirmar que o rio Parnaíba foi o principal elemento de geração e de continuidade da cidade de
Guadalupe.
112
De tanto falarmos sobre o rio, voltamos ao nosso personagem do início deste texto,
um guadalupense que muito nos inspira com sua história de vida e suas histórias contadas em
torno desse universo bucólico formado pela velha cidade de Guadalupe e suas redondezas.
Destacamos aqui mais uma vez a contribuição deste vaqueiro, retomando aqui o
saudosismo das suas narrativas, a exemplo daquela que contamos na abertura introdutória, a
qual fala de uma viagem noturna a cavalo que este personagem ainda jovem realizou do
interior para a sede da cidade.
Como vimos, tal aventura terminou com um breve susto causado por uma raposa,
sendo que após toda essa jornada, o vaqueiro guadalupense deparou-se com o imaginável
amanhecer do dia e o começo da “labuta” na cidade de Guadalupe.
Então, esse nosso personagem em mais uma passagem inspirada de sua memória,
exemplifica a relação próxima que ele também manteve com o rio Parnaíba quando estava na
cidade. Ele nos conta como era divertido atravessar o rio a nado até a outra margem no lado
do Maranhão.
Lá, ele e seus amigos, iam colher as farturas de caju, manga, e outras frutas
dependendo do período, sendo que quando eram descobertos pela proprietária das terras, eles
saíam em disparada e do jeito que vinham correndo pulavam no rio com as frutas presas a
boca pelo talo, retornando assim ao lado piauiense, onde ficava à cidade de Guadalupe.
Dessa forma, ao tratarmos da relação do rio com os moradores da cidade,
novamente encontramos informações sobre sua importância para os transportes, haja vista que
na época as rodovias eram precárias, e que o principal e mais eficiente meio de transporte era
a navegação. Sobre isso nos fala o senhor Jociler a seguinte informação:
A navegação, nós tínhamos aquelas embarcações, rebocadores com aquelas
barcas enormes, carregados de sal, sal grosso, levava até o Balsas, até o
Ribeiro Gonçalves; Por que nós não tínhamos estradas, era terrível. Depois
de muito tempo é que a gente começou a viajar de Guadalupe. Ia por Tingüís
que hoje é Marcos Parente, para Landri Sales e atravessava na ponte
depois de Jerumenha. Importante, foi importantíssimo naquela época o rio
Parnaíba e todo aquele movimento. Eu tinha uns barcos, dois barcos manuais
que era a Salvação, a Tataia, e tinha uns motorzinhos também, motor de
centro como o São Luís Gonzaga. (JOCILER, 2006).
Ao passo em que apresentamos as falas de todos os moradores sobre a descrição
da cidade velha, começamos também a partir daqui, a refletir sobre os posicionamentos
tomados por eles nas suas entrevistas. Pois, apesar deles caminharem juntos em certos
113
momentos, volta e meia eles se desencontram e tendem a se afastar à medida que rumam para
o cmax da mudança para a nova cidade.
Suas opiniões vão e vêm, coincidindo-se e esbarrando-se de acordo com as
perguntas, variando assim de acordo com a posição social, e com o nível de convencimento
sobre o caráter positivo das mudanças provocadas pela construção da hidrelétrica.
Percebemos também que eles falam como se tivessem voltado ao exato momento em que
viram tudo se transformar, incluindo as transformações neles próprios.
Neste sentido de ponderar semelhanças e difereas entre os depoimentos dos
moradores, prosseguimos com a fala do senhor João Alencar, o qual, como o mais antigo dos
entrevistados, faz uma ancoragem necessária das raízes da cidade com os fatos mais recentes,
em especial com o momento da mudança. Sobre a estrutura da antiga cidade ele nos diz:
nós tínhamos aquelas ruas D. Pedro I, a Cruzeiro do Sul, a Praça da
Bandeira, a rua Getúlio Vargas, a praça da Matriz, e muitas ruazinhas ali que
a gente denominava mesmo na mara só pra saber o nome; [...] Calçamento
só tinha na rua Getúlio Vargas. (ALENCAR, 2006).
Juntamente com esta descrição básica, ele começa seu texto definindo a velha
cidade como um lugar um pouco atrasado e pobre, prevendo com isso um futuro muito
limitado. Esta sua opinião preliminar aponta para o centro de sua argumentação que é a defesa
de que a mudaa viria a ser um grande avanço para Guadalupe.
Especificamente sobre o povo, o senhor João Alencar nos conta que a gente,
aquele pessoal que tinha mais condições de vida, eles viviam muito mais despreocupados, o
pobre vivia naquela luta, de uma pesca, de tudo que podia fazer pra sobreviver. (Ibidem).
E segue dizendo-nos um pouco mais sobre os moradores da velha cidade de
Guadalupe, e amplia essa descrição, apontando as principais atividades econômicas realizadas
no município, com um destaque para a agricultura e o comércio que, segundo ele,
era muito pequeno; tinham mercadoria pra vender, tecido; vendiam a prazo,
o pessoal pagava de ano em ano, comprava aí vinha no outro ano pagar; o
cereal vendia muito pouco por que o pessoal cada qual que tinha a sua ra,
eles gostariam de ter pelo menos um único meio de vida em casa, produzido
por eles mesmos da agricultura. Nossa renda era o coco babaçu, a
carnaúba, era o peixe, era a amiunta, feira de cabra, criação de gado, e a
lavoura, vivia disso. (Ibidem).
Sobre a navegação, ele também nos conta que havia um fluxo razoável de barcas,
balsas, vapores, e pequenas lanchas, todas as embarcações que levavam e traziam vários
114
produtos, sendo que em Guadalupe embarcavam muito babaçu, [...] recebiam frutas que
vinham de Uruçuí, lá de cima dessas cidades, chegavam em Guadalupe e vendiam até mesmo
suíno, caprino, vendiam cereal, farinha, tudo eles vendiam em Guadalupe, trazendo em
balsas e vendendo aí. (Ibidem).
O entrevistado descreve Guadalupe ora subestimando o potencial do lugar, ora
citando mais e mais exemplos de suas atividades diversificadas, como já citamos. Nesse
sentido, ele fala um pouco mais sobre a navegação comercial que para ele era fraca, pois
tinham poucos barcos: foi pouco, tinha umas duas lanchas; uns quatro vapores! (Ibidem).
No entanto, ao ser instigado para detalhar um pouco mais as atividades
econômicas da cidade e especificamente sobre a navegação, ele fala-nos do intenso fluxo de
comércio fluvial para época e até enfatiza dizendo que frequentemente, era indo pra Santa
Filomena, pra Uruçuí, passando aí constantemente, subindo e descendo. (Ibidem).
Além de nos fornecer um bom embasamento sobre o povoamento inicial e a
construção da velha cidade de Guadalupe, o senhor João Alencar posiciona-se também como
um pioneiro do desenvolvimento da nova cidade, constituindo esse avanço através das
benfeitorias por ele realizadas quando prefeito, e por ocasião especial da construção da Usina
de Boa Esperança, o que para ele foi um verdadeiro prêmio conquistado pela cidade.
Depois de analisarmos todas essas informações fornecidas por nossos
entrevistados, percebemos então inúmeros aspectos da primeira cidade de Guadalupe, com
sua simplicidade sócio-cultural, e ao mesmo tempo com suas riquezas naturais e a sua
diversidade ecomico-produtiva.
Toda essa potencialidade produtiva e social de Guadalupe é reforçada pelo
razoável fluxo de navegação de pequenas, médias e grandes embarcações que volta e meia
passavam pelo conhecido ponto de apoio e de comércio que se configurou na cidade batizada
inicialmente como Porto Seguro, o porto seguro antes da passagem pela temida Cachoeira da
Boa Esperança.
Concomitantemente retomamos aqui o tom forte de saudade e amor com que os
nossos entrevistados referem-se a sua terra berço. Sobre isso entendemos que o elemento
emoção não prejudica nossa interpretação, muito ao contrário, essa caráter passional
revela-nos a importância de seus relatos para reconstruirmos o universo social, econômico,
político e cultural em geral daquela velha cidade.
Além disso, enfatizamos que as raízes guadalupenses dos nossos entrevistados são
bem relevantes, tendo em vista que alguns deles estiveram lá no momento inicial de
povoamento, fundação e reconhecimento da vila de Porto Seguro, futura Guadalupe.
115
Mais do que isso, todos eles depois atuaram diretamente como moradores desse
núcleo municipal, como construtores do mesmo, e, portanto, imbricando e sendo imbricados
em todo esse processo geral de transformações provocadas pela obra da Usina de Boa
Esperança, a qual logo viria para aquele município.
Com o início dessa grande obra de engenharia, os moradores de Guadalupe
depararam-se com todos os significados de mudanças advindas a partir daí, os debates, os
trabalhos, e em especial a inundação que forçou a transfencia, obrigando assim essas
pessoas a retirarem-se deste que havia sido o seu lugar de vida, o lugar ao qual destinaram
todo um encantamento que reforçava as suas raízes sócio-culturais, além da recolocação numa
nova cidade.
Por tudo isso, os nossos entrevistados especificamente constituem-se como fontes
valiosas em nosso trabalho de pesquisa, pois, participaram desde a constituição inicial até a
submersão final da velha cidade com a obra da usina. Nesse caso, os traços emotivos de suas
falas representam marcas de autenticidade que valorizam ainda mais os seus depoimentos
como ricas e verdadeiras fontes orais.
A partir dessa observação, podemos afirmar que a memória é sem dúvidas uma
fonte incalculável de informações, devendo ser apreciada e devidamente valorizada.
Entretanto, devemos ressaltar que a memória não é infalível, assim como nenhuma fonte o é.
Consideremos assim estas fontes orais como uma salvaguarda para produções de
pesquisas como esta ora apresentada, encontrando-se assim, informações interessantes que
esse tipo de fonte pode fornecer aos pesquisadores que desejam construir seus trabalhos sob
uma ótica aberta a vários ângulos de interpretações.
Ao passo em que as fontes orais nos fornecem ricas informações, devem ser
tratadas por pesquisadores com atenção especial, necessitando destes profissionais uma
sensibilidade maior no seu trato, sobretudo requisitada essa atenção pelo fato de se estar
trabalhando com pessoas, das quais nos aproximamos, e que numa relação de confiança nos
revelam importantes trechos de suas histórias de vida.
Assim, é necessária muita sensibilidade nesse trato com as fontes orais, e ao
mesmo tempo, muita paciência do pesquisador com os seus entrevistados, pois é trabalhoso
ouvir as pessoas e principalmente entendê-las. Nesse sentido, freqüentemente nos deparamos
com interrupções das falas, silêncios espontâneos e incompletude de determinadas
informações, que, associadas às expressões emotivas, revelam um grau de autenticidade que
tanto um pesquisador procura em suas fontes de pesquisa.
116
Essa almejada autenticidade felizmente encontramos nas fontes orais que
compõem este trabalho sobre a construção da Usina de Boa Esperança, destacando-se todas as
suas conseqüências para Guadalupe e para outras cidades do estado do Piauí.
Sobre essas características especiais das fontes orais, e sobre a importância dos
pesquisadores sociais trabalharem com tais fontes, retornamos a Ecléa Bosi e a sua obra sobre
memória, na qual ela afirma:
Se nos quisermos aproximar da esfera que resiste ao formato social,
registremos atentos as hesitações e silêncios do narrador. Os lapsos e
incertezas das testemunhas são o selo da autenticidade. Narrativas seguras e
unilineares correm sempre o perigo de deslizar para o estereótipo. [...] Nos
idosos, as hesitões, as rupturas do discurso não são vazios, podem ser
trabalhos da memória. situações difíceis de serem contadas que
pareceram absurdas às próprias vítimas delas. [...] Quando a narrativa é
hesitante, cheia de silêncios, ele não deve ter pressa de fazer interpretação
ideológica do que escutou, ou de preencher as pausas. [...] Ao silêncio do
velho seria bom que correspondesse o silêncio do pesquisador. A fala
emotiva e fragmentada é portadora de significações que nos aproximam da
verdade. Aprendemos a amar esse discurso tateante, suas pausas, suas franjas
com fios perdidos quase irreparáveis. (BOSI, 2003, p. 63-65, grifo nosso).
2.2 - A construção da usina nos cotidianos do Piauí e de Guadalupe
Não se pode fazer omeleta sem quebrar os ovos!
(O COOPERATIVISTA, 31/12/1965, p.1).
Durante o debate sobre a construção da Usina de Boa Esperança no Piauí dentro
do processo mais geral de modernização do capitalismo nacional, chegamos finalmente ao
momento de nos debruçarmos em torno dos impactos dessa obra na cidade de Guadalupe.
Desse modo, ao direcionarmos nossas atenções a esse tema, especialmente nos
concentramos nas transformações vividas pelos moradores, os quais passaram a conviver com
bem mais do que discursos e polêmicas, exigindo assim essa nossa pesquisa um foco de
atenção privilegiado em relação a essa população.
Essa atenção se justifica exatamente por conta dos significados concretos desse
grande empreendimento estatal que foi a Usina de Boa Esperança, construída no Piauí, e mais
especificamente nessa pequena cidade de Guadalupe na década de 1960. Sendo assim, essas
pessoas se configuram como as personagens que sentiram mais de perto todo esse conjunto de
mudanças.
117
É justamente a partir desse ponto que retomamos mais detidamente a discussão de
todo o processo de transformações desencadeado pela obra da usina em todo o estado,
especialmente refletido esse debate nos jornais da capital Teresina, sendo que estes veículos
de informação são praticamente os únicos e os mais eficientes da época.
Na medida em que buscamos os reflexos mais variados desse processo de
mudanças, apresentamos neste espaço as reações dos moradores atingidos pela barragem.
Reafirmamos assim, este foco principal de nossa pesquisa, haja vista que estas
pessoas entraram em contato com o projeto desde o início com as pesquisas iniciais feitas por
técnicos do DNOCS em meados da década de 1950, até a chegada dos primeiros funcionários
da COHEBE na cidade de Guadalupe no começo da década de 1960.
Associado a isso, percebemos os impactos nas pessoas com a chegada na cidade
das primeiras notícias acerca da hidrelétrica, da barragem do rio e da conseqüente inundação
da cidade. Nesse sentido, procuramos sempre que possível conectar esse ambiente mais local
ao universo regional, privilegiando a repercussão no estado do Piauí, especialmente na capital
Teresina, centro este de onde se irradia a maior parte do discurso de desenvolvimento
econômico.
Inicialmente retomamos a análise dos jornais de Teresina para entendermos o
processo de mudanças motivado pela obra da Usina de Boa Esperança, e então encontramos
nessas fontes um volumoso discurso de defesa dos benefícios advindos com a construção e o
posterior funcionamento da hidrelétrica, sobretudo sendo apresentadas as vantagens para a
capital, e progressivamente o beneficiamento de todas as cidades do estado do Piauí.
Não é difícil percebermos os posicionamentos variados, as posições técnicas,
políticas, e até as opiniões mais leigas do ponto de vista operacional, além de alguns pontos
de vista com certos reflexos populares.
Assim encontramos nestes órgãos de imprensa piauienses um discurso que se
consolida em Teresina e de parte para ser construído em todo o estado. A partir daí,
percebemos nesse discurso o caráter dominante das grandes vantagens a serem trazidas pelo
projeto da Usina de Boa Esperança a ser construída na cidade Guadalupe.
A maioria desses posicionamentos sobre a obra de Boa Esperança é então a favor,
e até mais do que isso, estes personagens em grande parte políticos, técnicos, jornalistas e
intelectuais em geral, colocam-se quase todos como defensores da construção e eufóricos
divulgadores dos inúmeros benefícios advindos com a conclusão do projeto, tornando-se
assim os Jornais de Teresina instrumentos de massificação da propaganda do
desenvolvimento econômico que viria para todo o estado. Segundo as palavras dos próprios
118
jornais da época a Usina de Boa Esperança será a redenção de um povo e riqueza de todo um
vale! (O DIA, 10/07/1964, p. 1 e 4).
Visualizamos então todo esse clima de euforia gerado pelo debate a respeito da
obra e seus significados para todo o estado do Piauí, e ainda encontramos em artigos
jornalísticos da imprensa teresinense um corrente discurso de intimação para apoiar-se a obra
da Usina de Boa Esperança, como podemos perceber num trecho, logo do início do projeto,
em que é publicado praticamente um ultimato a sociedade piauiense, no qual se proclama: A
nenhum piauiense se lícito negar sua colaboração a COHEBE! (O COOPERATIVISTA,
31/07/1965, p.1).
Mesmo assim com todo esse forte discurso defensor do projeto da usina,
encontramos algumas opiniões críticas e reflexivas, notadamente de grupos políticos
descontentes com o gerenciamento da construção estar nas mãos de adversários, além de
grupos econômicos do norte do estado que sentiam-se prejudicados com a tardia previsão de
chegada da energia àquela região do Piauí, chegando inclusive a defender a construção de
uma outra hidrelétrica no rio Longá.
Encontramos ainda jornalistas e intelectuais que apontavam necessários cuidados
para não ocorrerem ilusões em torno do projeto de geração de energia no Piauí, pontuando
como prioridade para a normalização no abastecimento de energia elétrica e o conseqüente
barateamento das tarifas, situação esta que seria alcançada com um controle rígido feito
pela sociedade sobre as empresas de fornecimento de energia.
Para tudo isso acontecer de fato, segundo estes mesmos jornalistas e intelectuais,
seria imprescindível que o governo tomasse algumas medidas estruturantes urgentes em todo
o estado do Piauí focalizando prioritariamente o aspecto sócio-cultural, com destaque para a
formação profissional do povo em geral. Diretamente na área econômica, deveria haver
investimentos e incentivos a produção. Por fim, e concomitantemente a tudo isso, deveria se
seguir um amadurecimento da elite potica local.
Ao serem observadas todas essas ressalvas, e somente assim segundo os
personagens mais críticos, poder-se-ia acreditar que a Usina de Boa Esperança exerceria
plenamente seu papel desenvolvedor.
Agora como direcionar para a cidade de Guadalupe todo esse debate sobre a usina
hidrelétrica no Piauí? Certamente não poderíamos utilizar apenas os jornais, pois eles tratam
muito das discussões poticas e técnicas quase sempre voltadas para o universo estadual e
regional.
Os jornais até falam de Guadalupe, mas com o único tom positivista do que a obra
119
proporcionaria para a pequena cidade, ignorando assim os prejuízos sociais causados pelo
mesmo projeto às pessoas daquele lugar, se é que naquele tempo se tinha essa discussão
ponderada acerca dos problemas em torno de aspectos sociais específicos, como era o caso
dos moradores de Guadalupe.
Na verdade, o que se ver mesmo é um olhar prioritário destes jornais em direção
aos centros urbanos maiores como Teresina capital do Piauí, e também São Luís capital do
Maranhão, além de mais algumas cidades médias todas elas na região norte desses dois
estados, conformando-se aí a área a ser abastecida pela Usina de Boa Esperança.
Entretanto, esse foco prioritário dos jornais o surge tão espontaneamente assim.
Na verdade, sua origem é emanada quase que completamente dos textos técnicos da
COHEBE, a qual, como coordenadora geral do projeto, direciona suas preocupações somente
ao atrativo comercial das grandes e médias cidades piauienses e maranhenses, ignorando com
isso as questões sociais como o bem-estar de populações que viviam em lugares menores.
Talvez por isso que essa energia tenha demorado tanto para chegar a alguns desses
humildes lugares, inclusive algumas localidades nos arredores da própria Guadalupe, cidade-
sede da Usina de Boa Esperança. Estas localidades menores muitas delas atingidas pela
construção da hidrelétrica, após a inauguração, seguiram por décadas sem receber energia
elétrica, provavelmente por que estes “mercados” não interessavam aos planejadores
econômicos.
Vejamos então a argumentação da COHEBE sobre o foco unicamente
mercadológico da Usina de Boa Esperança:
A população do Piauí e Maranhão, totalizando cêrca de 3.700.000 habitantes
es quase que totalmente concentrada ao norte do sítio do Projeto. A região
sul registra uma densidade populacional extremamente baixa e a falta de
conhecimento dos seus recursos naturais, torna impossível estimar as
potencialidades de desenvolvimento e o eventual futuro mercado de energia.
[...] No estudo executado sôbre os aspectos econômicos do Projeto de Boa
Esperaa foram consideradas como zonas de influência, as regiões dos
estados do Piauí e Maranhão, situadas ao norte do sítio da barragem. Essa
região compreende uma área de 200.000 Km
2
e uma população total de
2.500.000 habitantes. Seu ponto mais distante fica a uma distancia de 450
km de Boa Esperaa o que permite a transmissão de energia da COHEBE
em condições econômicas favoveis. (COHEBE, 1968a, Parte VI-2 ).
Entretanto, nas páginas desse projeto são pontuadas as finalidades “universais” que
justificam os empreendimentos de geração de energia, abrangendo-se assim, pelo menos com
as palavras, não a visão puramente economicista, mas também outras questões como os
120
benefícios sociais gerais, e não apenas as atenções localizadas como pudemos ver na citação
anterior.
Como exemplo de que essas linguagens e esses objetivos se contrapõem, vejamos
uma outra passagem em que ao se justificar o investimento na Usina de Boa Esperança,
utiliza-se o argumento de que essa obra traria possibilidades de desenvolvimento aos estados
do Piauí e do Maranhão.
O Projeto Hidrelétrico de Boa Esperança, localizado a rca de 70 km a
montante da cidade de Floriano, no curso médio do rio Parnaíba irá
beneficiar uma das zonas mais escassamente servidas de energia elétrica no
Brasil, fornecendo o implemento básico ao possível desenvolvimento
econômico dos estados do Piauí, Maranhão e Ceará. (Ibidem, Parte VI-1).
No trecho acima lido, vemos que não se limita o alcance do projeto da Usina de
Boa Esperança, pelo contrário, se expande o seu foco de atuação, observando-se aí que esta
passagem é dita um pouco antes daquela outra citação anterior, todos os dois trechos
pertencentes ao mesmo documento da COHEBE.
Ou seja, bem no começo do documento Projeto Boa Esperança elaborado pela
COHEBE (COHEBE, 1968a), o que se apresenta justificadamente como um projeto de
salvação geral e sem restrições de todo o estado do Piauí e também do Maranhão, logo mais a
frente no mesmo documento o projeto é direcionado somente aos mercados prioritários,
limitando-se estes às regiões dos estados do Piauí e Maranhão, situadas ao norte do sítio da
barragem. (Ibidem, Parte VI-2).
Lembramos aqui daquela preocupação constante dos técnicos da COHEBE em
criar alternativas concretas de abastecimento de energia para os grandes centros regionais de
Salvador capital da Bahia, Recife capital de Pernambuco, além de Fortaleza capital do Ceará.
Apesar dos documentos da COHEBE não indicarem diretamente esta ampla
prioridade regional, um dos tópicos importantes do projeto da Usina de Boa Esperança era a
interligação das redes de distribuição do Nordeste e assim a possibilidade de todas essas
grandes cidades serem complementarmente abastecidas com a energia gerada aqui no Piauí.
Além de todas as obras postas a termo na cidade de Guadalupe pelo projeto Boa
Esperança, uma das obras feitas fora desse perímetro-sede foi à construção das Linhas de
Transmissão, as quais partiram de Guadalupe, cortaram os sertões adentro, e finalmente
alcançaram os seus destinos primeiros que eram as regiões prioritárias do Piauí e do
Maranhão, vista essa prioridade do ponto de vista genuinamente comercial.
Ao mesmo tempo em que alcançava esse objetivo básico de, interligar a energia
121
produzida em Guadalupe aos mercados mais próximos nesses dois estados, a COHEBE
indicava também as finalidades múltiplas desse sistema energético recém criado aqui, dentre
elas estava justamente a possibilidades desse sistema de geração aqui se conectar a grande
rede de distribuição da CHESF em todo o Nordeste, destacando-se aí novamente os principais
centros regionais.
Destacada assim a importância das redes de transmissão de energia dentro desse
contexto todo de grandiosidade imposto pela obra da Usina de Boa Esperança, visualizemos
então a constituição das imensas torres de transmissão com suas imagens também grandiosas
e inovadoras.
A presença dessas armações metálicas passa agora a ser mais uma constante nesse
contexto de mudanças, neste caso a imagem de uma infinidade de pontos a cortar o sertão
árido em meio às palmeiras de babaçu, esticando-se em cima dessas estruturas milhares de
quilômetros de cabos que levavam a energia até as cidades. No meio do caminho ficavam os
sertanejos que além de não entender aquilo tudo, muitos nem sequer usufruíram seus
benefícios.
Eis mais um dos impactos causados pelo projeto Boa Esperança, as torres de
transmissão que rasgaram os sertões piauienses e maranhenses numa corrida acelerada em
direção aos seus mercados prioritários, deixando pelo caminho alguns órfãos do consumo
dessa energia. Vejamos então as duas imagens dessas torres metálicas no trecho da linha de
transmissão de energia entre Boa Esperança-Teresina-São Luís.
122
A foto da esquerda mostra as torres metálicas das Linhas de Transmissão antes de
serem lançados os cabos no começo da penetração das linhas de energia pelo interior do Piauí
e do Maranhão.
A outra foto, a da direita, mostra-nos as torres de transmissão instaladas num
percurso de aproximadamente 450 km entre as capitais Teresina e São Luís. No caso dessa
fotografia já vemos os fios que conduziriam a eletricidade até as capitais e até as demais
cidades piauienses e maranhenses.
Essas duas fotos são na verdade emblemáticas, pois revelam a nós a imagem das
torres de metal rasgando o sertão adentro, passando estas estruturas, a fazer parte desse
cenário até então povoado apenas por babaçus, carnaúbas, animais, e o povo sertanejo.
A partir desse momento, as torres da COHEBE passam a compor todo o cenário
sertanejo, modificando com isso não o visual das chapadas e caatingas, mas também o
cotidiano das populações que habitavam próximas a estas Linhas de Transmissão.
Sobre a possibilidade do projeto da Usina de Boa Esperança se interligar com o
sistema CHESF encontramos ainda um trecho tratando do alcance do mercado cearense, sobre
o qual se diz que Sobral, o centro populacional mais importante da região do Ceará próximo
Fotografia 2: Trecho da Linha de
Transmissão de 230 KV, no percurso Boa
Esperaa a Teresina-PI, antes do
lançamento de cabos.
Fonte: (COHEBE, 1969, p. 38).
Fotografia 3: Trecho da Linha de
Transmissão de 230 KV, no percurso
Teresina a São Luís.
Fonte: (MORAIS, [200-?a], p.18).
123
do Piauí, [...] será interligado ao sistema da CHESF. A energia elétrica a ser suprida pela
COHEBE ao Ceará dependerá de sua interconexão com o sistema da CHESF. (COHEBE,
p.1).
De Boa Esperança partiriam os fios de alta tensão que abasteceriam uma ampla
região nos estados do Piauí e do Maranhão, enfatizadas as áreas das capitais e cidades
importantes dos dois estados.
Sobre essa interligação dos mercados piauiense e maranhense com os grandes
centros regionais nordestinos, vejamos também o mapa de operações da COHEBE, no qual é
visualizado além dos mercados mais próximos a Boa Esperança, a projetada conexão com
estes grandes centros, principalmente Salvador-BA e Recife-PE, os quais eram desde de
meados da década de 1950 abastecidos pelas Linhas de Transmissão da CHESF.
Figura 2: Mapa das Linhas de Transmissão da COHEBE.
Fonte: (COHEBE, 1970, p. 21 e 22).
Vemos no mapa acima um esquema de localização das Linhas de Transmissões e
subestações construídas pela COHEBE a partir da década de 1960 até o início da década de
124
1970 quando o eixo prioritário de abastecimento em operação, destacando na imagem a
Usina de Boa Esperança como o centro produtor e irradiador de toda essa energia.
Para entendermos melhor, esclarecemos que ao centro e um pouco a esquerda no
mapa, vemos que no início de 1970 já como operante a Linha de Transmissão Boa Esperança-
Teresina-São Luís, eixo este que concentrava a atuação principal da COHEBE.
Ainda à direita no mapa, temos também a Linha de Transmissão da CHESF que
vem de Pernambuco e corta o Ceará até Fortaleza, e de lá levando energia também até a
cidade de Parnaíba no Piauí.
A propósito desse abastecimento de energia em Parnaíba a ser garantido pela
Linha de Transmissão da CHESF e não pela Usina de Boa Esperança da COHEBE gerou
severas críticas da parte da elite norte-piauiense ao projeto de Boa Esperança, tendo havido
assim nos jornais teresinenses uma enorme repercussão a chegada dessa energia àquela
cidade, fato esse que discutido aqui no texto em passagens anteriores. (O DIA, 29-
30/06/1969, p. 4 e 5).
Por fim visualizamos no mapa anterior a projeção futura da interligação dos
sistemas COHEBE e CHESF com a conexão feita através das linhas que passando por Piripiri
e chegam até Parnaíba, ligando-se então a Linha de Transmissão da CHESF que vinha do
Ceará passando por Sobral até Fortaleza. Com esse percurso longo se efetivava a interligação
COHEBE-CHESF. (COHEBE, 1970, p. 22 e 23).
Voltando ao tema mais específico da pesquisa, lembramos que a região
considerada como prioritária pela COHEBE compreendia as áreas centrais do Piauí e do
Maranhão, sendo que esta região toda só conhecia a energia gerada pelas usinas termelétricas,
destacando-se as usinas de Teresina e de São Luís, além de mais algumas nas cidades
médias nos dois estados. Ao lado dessa realidade estavam algumas outras cidades menores
que sobreviviam ou sem energia ou com a utilização muito mais restrita ainda de pequenos
motores a diesel.
Então com o objetivo central de gerar e distribuir energia a esta região tão carente
de energia, se impulsiona esse projeto de grande envergadura e dantes nunca visto por aqui, o
projeto da Usina de Boa Esperança, a qual traz consigo um conjunto de obras com rios
significados impactantes.
Prosseguindo neste rumo crítico de leitura, e retomando a nossa narrativa central
sobre a construção da Usina de Boa Esperança em Guadalupe, analisamos novamente os
jornais, e encontramos neles, por exemplo, reportagens que tratam somente das grandes
vantagens trazidas pela COHEBE ao estado do Piauí e especialmente àquele pequeno.
125
No entanto, ao aprofundarmos a análise destes jornais logo percebemos que quase
toda a discussão sobre a Usina de Boa Esperança é direcionada para a solução de problemas
estruturais recorrentes á época principalmente na capital Teresina. Dentre esses problemas, a
falta de energia elétrica era de longe tratado como o mais sério.
Sendo assim, com a prevalência desta opção majoritária, praticamente inexistem
espaços para as opiniões dos moradores atingidos pela inundação causada pela Barragem de
Boa esperança, registrando-se somente os pontos positivos da obra. É neste sentido que um
Jornal de Teresina afirma que o complexo da Usina de Boa Esperança trará transformação
física e material para grande parte do sul do Piauí, em especial para a cidade de Guadalupe
que vai desaparecer do mapa e surgir noutro local em têrmos altamente vantajosos para os
seus moradores. (O DIA, 12/07/1964, p. 2).
Constatamos assim um alto grau de unilateralidade por parte dos jornais que se
referem aos moradores da cidade de Guadalupe como grandes beneficiados pelo
desenvolvimento proporcionado pela construção da Usina de Boa Esperança. Segundo estes
mesmos jornais, estes moradores, apesar de terem sua cidade velha inundada pelas águas da
barragem, lograram a aquisição de uma nova e moderna cidade, a qual teria pontos
positivos a oferecer aos seus moradores.
Por esse ângulo, os principais jornais piauienses da época não se preocupam em
diretamente entrevistar os moradores e oferecê-los um espaço para exporem suas mais
diferentes opiniões, tendo inclusive podido fazer isso durante algumas das visitas à cidade.
Teria sido interessante uma iniciativa de registrar as diversas falas, sejam as
opiniões a favor, sejam as contrárias a obra, e todas as questões a serem discutidas com os
moradores, como o projeto de suas novas casas, o desenho de sua nova cidade, os impactos
nas suas ocupações profissionais, e todos os outros aspectos agora alterados pela reordenação
econômica e social processada com a obra da usina.
No entanto, a maior preocupação dos jornalistas teresinenses era de saber se a
usina seria mesmo concluída, quando seria, juntamente com informações detalhadas do
esquema das obras e do ritmo de trabalho.
Neste caso, todas estas questões vieram a ser prontamente respondidas pelos
técnicos da COHEBE tanto em palestras e entrevistas concedidas na capital Teresina, como
também nas visitas feitas pelos jornalistas ao canteiro de obras da Usina de Boa Esperança.
Especificamente sobre estas visitas, observamos uma coluna do Jornal O Dia em
que o jornalista Joaquim Castro Aguiar trata periodicamente sobre a barragem. O mencionado
126
jornalista então, depois de visitar o local da obra, faz num tom confessional a seguinte
declaração:
Fui a Boa Esperança com um único propósito. Queria, tão somente, sondar
os serviços, analisar a obra, sentir a realidade do problema, traçar paralelo
entre o montante das despesas e os trabalhos executados, porque eu tinha
uma verdadeira incredulidade a respeito da Barragem de Boa Esperança. [...]
Mas a verdade, leitor, é que voltei convencido de que teremos, realmente,
nossa Barragem construída. A obra agiganta-se, cresce dia-a-dia, toma vulto
confortador. [...] o se exagero dizer-se que teremos, com a sua
construção a redenção social e econômica de nosso povo. [...] Os serviços
não param. Executam-se durante todo o dia e se estendem por dentro da
noite, num regime de 22 horas de trabalho, diariamente. (O DIA,
19/11/1964, p. 1, grifo nosso).
Sobre esta opção unilateral dos jornais teresinenses em mostrar somente a
grandeza física da obra e assim proceder à propaganda dos seus futuros resultados
salvacionistas, encontramos vários registros em que se evita olhar para Guadalupe como uma
cidade que se esvairia com a breve chegada das águas. Dessa forma então, não houve espaço
algum para se entrevistar estas pessoas atingidas pela barragem, o que se mostra
repetidamente nestes jornais é tão somente a magnitude da aclamada obra redentora.
Entendemos que nessa época os órgãos de imprensa piauienses pouco se
preocupavam com as questões sociais envolvidas nessa grande obra. Pois, apesar de
identificarmos passagens de uns poucos colunistas sensibilizados com os problemas sociais
enfrentados pelas parcelas mais pobres da população piauiense (Ibidem, 14/03/1963. p. 2),
estas crônicas reflexivas por fim, não alcançam as querelas dos moradores de Guadalupe,
ficando as matérias sobre a construção da usina resumidas mesmo à grandiosidade e ao papel
redentor da obra.
Com estas reflexões sobre as desconsiderações das questões locais por parte dos
Jornais de Teresina, e também do enfoque tecnicista dos documentos da COHEBE, seguimos
direcionando nossa atenção àquelas pessoas que neste nosso trabalho repercutem como
protagonistas de todo esse cenário de transformações que mexeram com o Piauí e
principalmente com aquela pequena cidade de Guadalupe.
Nesse sentido, as informações fornecidas pelas entrevistas desses moradores
representam verdadeiros tesouros que enriquecem o texto de nosso trabalho de pesquisa,
enfatizando-se assim o grande valor dessas fontes orais como retentoras de informações
únicas, atuando ainda essas fontes orais como contrapontos indispensáveis aos dados
encontrados nos documentos escritos.
127
Aqui novamente nos valemos das palavras de Meihy (2002) aqui citadas, e que
falam da importância das fontes orais no preenchimento de vazios documentais, e ao mesmo
tempo na articulação do diálogo destas fontes com outras fontes conhecidas, podendo-se
inclusive a partir daí, usá-las mesmo separadamente. (Ibidem, p. 24.)
Dentro dessa mesma obra, e corroborando com a afirmação da importância das
fontes orais, encontramos também um trecho de Eclea Bosi, a qual acrescenta ainda sobre a
originalidade e a livre desenvoltura dessas fontes narrativas, fugindo-se assim da tentativa de
definição exata dos acontecimentos, e ainda contribuindo para a transformação do próprio
objeto em estudo.
Assim, Bosi diz que a narração é uma forma artesanal de comunicação. Ela não
visa a transmitir o em si” do acontecido, ela acontece até atingir uma forma boa. Investe
sobre o objeto e o transforma. (BOSI, 2003).
As essa reiteração teórica, retomamos as falas dos nossos entrevistados para
reconstruirmos o cenário guadalupense de chegada da notícia da construção da usina, os
primeiros estudos, os primeiros pesquisadores do DNOCS, os funcionários da COHEBE que
se encarregaram de coordenar a obra e de cuidar diretamente dos moradores de Guadalupe.
Com o auxílio destas entrevistas, podemos verificar também a reação dos
guadalupenses sobre a inundação e a perda de suas casas, a perda que foi de toda a sua cidade.
Eis que ressurgem com destaque as suas opiniões diversas sobre a obra, e também as suas
impressões na mudança para a nova cidade construída pela COHEBE.
Assim percebemos mais claramente os encontros e desencontros entre os discursos
regionais, presentes nos jornais teresinenses, e as opiniões bem mais locais salvaguardadas
nos depoimentos dos nossos moradores, os quais se lembram inclusive das visitas de vários
jornalistas ao local da obra e a cidade velha de Guadalupe, entretanto os moradores registram
que não foram procurados pelos jornais para expressarem suas opiniões.
Logo de início, encontramos as observações do senhor Jociler sobre esta
indiferença dos jornais teresinenses para com os moradores de Guadalupe, sendo que o
entrevistado queixa-se do fato desses jornalistas o terem procurado os moradores para ouvir
as suas questões mais particulares, havendo assim uma escolha pontual pelos grandes
personagens poticos que coordenavam essa obra de infra-estrutura. Sobre isso o entrevistado
nos conta o seguinte:
Esse pessoal veio aqui, mas foi entrevistar as pessoazinhas deles, saía
àquele pessoal, a realidade mesmo não saía, eu não gosto nem de falar muito
128
disso, que eu num gosto de aparecer. Eu quero mostrar é que foi o povo com
uma outra mentalidade, nós, que começamos a mudar a nossa cidade.
(PEREIRA, 2006).
Notemos que o senhor Jociler além de se identificar como um guadalupense
pioneiro, ele revela-se também como um entusiasta da obra, sendo que com freqüência ele
aponta os benefícios que a Usina de Boa Esperaa trouxe para Guadalupe. No entanto, o
entrevistado em alguns trechos reclama da necessidade de terem sido escutadas algumas das
reivindicações dos moradores, criticando assim a indiferença dos jornalistas para com os
guadalupenses.
Esta ausência de registro das opiniões locais ocorreu tanto com as autoridades
municipais, como era o caso do senhor Jociler como vereador na época, como também com os
demais moradores, saindo assim nos jornais, segundo ele, as declarações de personagens
que não faziam parte do contexto social da pequena cidade.
Nesse caso, como conferimos nas matérias dos jornais da época, foram
registradas as falas das autoridades mais altas dos escalões federal e estadual. Aqui vemos
claramente a contraposição entre os contextos regional e local, e nesse sentido pontuamos
criticamente a omissão dos jornais de Teresina para com os posicionamentos dos moradores
de Guadalupe.
Prosseguindo em nossa narrativa, encontramos novamente as falas dos senhores
Jociler e João Alencar, os quais descrevem um dos primeiros encontros entre os moradores e
os técnicos do DNOCS, os quais se preparavam para localizar o canteiro de obras da usina
a ser construída no leito do rio Parnaíba pelo lado do Piauí.
Segundo o senhor Jociler, na cidade de Guadalupe ainda o se sabia direito sobre
esse projeto tão grandioso que viria a modificar radicalmente aquela pequena cidade. Então
ele, numa viagem descendo o rio rumo a Floriano juntamente com o senhor João Alencar, ao
chegarem ao ponto conhecido como Riacho dos Macacos, depararam-se com um grupo de
técnicos realizando um trabalho de levantamento topográfico do terreno, visando com isso
escolherem o melhor local para se situar a obra da usina.
Nessa oportunidade, o senhor Jociler teria inclusive sugerido aos técnicos o melhor
lugar a ser localizada a usina. Assim, o senhor Jociler, ao ser indagado sobre o primeiro
momento em que ouviu falar dessa grande obra, nos descreve o epidio da seguinte forma:
Quando uma vez eu ia descendo, chegando logo depois do povoado Artur
Passos, tinha um pessoal fazendo um levantamento lá. eu vi aquilo, uma
curiosidade, eu estava passando e observando ali, menino vamos encostar
129
aqui esse barco. Aí eu perguntei e o rapaz disse: ‘Nós estamos fazendo um
levantamento pra construção de barragem; Foi destinada uma barragem para
o Piauí.’ [...] Aí eu disse: ‘O lugar ideal chama-se aqui no riacho dos
Macacos, logo abaixo da Boa Esperança.’ O riacho dos Macacos é
exatamente onde está hoje a usina, é logo bem de frente. [...] Rapaz, num é
que da outra vez eles estavam fazendo o levantamento aqui, eu assisti
desde a primeira hora que eles colocaram a primeira estaca do levantamento
topográfico, e ficou aqui mesmo. (Ibidem).
Num esforço para visualizarmos especificamente este local escolhido para sediar a
Usina de Boa Esperança, vejamos a foto uma seguir, percebendo assim nesta análise não o
lugar da hidrelétrica e do seu complexo operacional, mas também as proximidades dessa área
onde foi construída também a nova cidade de Guadalupe.
Lembramos ainda que este local do canteiro de obras estava a aproximadamente
trinta quilômetros do local da velha cidade de Guadalupe, e que, exatamente este lugar abaixo
retratado ficava bem próximo da Cachoeira da Boa Esperança, logo em frente a foz do Riacho
dos Macacos, como já vimos nos relatos dos entrevistados e nos documentos oficiais da
COHEBE que tratam especificamente da localização da Usina de Boa Esperança.
Fotografia 4: Trecho do rio Parnaíba antes da Implantação da Barragem da Boa Esperaa.
Fonte: MORAIS, [200-?a], p. 7.
130
Observamos aqui que em alguns trechos do depoimento do senhor Jociler, como
por exemplo no último trecho citado, o entrevistado sugere a sua auto-identificação como um
dos primeiros moradores que viu a usina chegar a Guadalupe, fazendo questão inclusive de
identificar a sua participação na escolha do local da barragem, a qual, segundo ele, ficou
sediada de acordo com a sua sugestão dada naquele momento de encontro com os primeiros
técnicos.
Sobre esse mesmo episódio encontramos uma passagem do depoimento do senhor
João Alencar que confirma o encontro dos dois moradores com os técnicos, num povoado nas
margens do rio Parnaíba logo após a Cachoeira da Boa Esperança, e bem próximo ao Riacho
dos Macacos, local este onde se construiria a hidrelétrica.
De acordo com o senhor João Alencar os técnicos em questão estavam fazendo os
últimos preparativos para a instalação do canteiro de obras, exatamente no local escolhido
para se erguer à hidrelétrica, a qual passava a ser conhecida como a Usina de Boa Esperança.
Este nome era uma referência direta a cachoeira que havia bem próximo a este local. Segundo
o entrevistado esse referido encontro ocorreu da seguinte forma:
Eu estava em Guadalupe. o governador Joqueira, criou um Cais em
Guadalupe, e estava um pessoal fazendo um levantamento desse cais. E
eu, era tenente da polícia, e andava fazendo uma revista em armamento
em Ribeiro Gonçalves, Antonio Almeida, em Guadalupe, esse povo todo,
esses municípios, eu passei por lá. E o rapaz nos trouxe na canoa, o rapaz
que estava fazendo o levantamento; numa canoa de motor nos trouxe pra
Floriano, eu e o Jociler. Quando s chegamos aqui na casa da dona da Boa
Esperaa, postando, tinha aqueles homens, rando, aquele acero, e nós
perguntamos: ‘O que é isso? [Eles responderam:] ‘Isso é a barragem na Boa
Esperaa. E a gente ficou sabendo que era ali aonde ia ser o paredão; No
riacho dos Macacos mesmo que s cortamos, eles estavam roçando ali, que
era pra fazer a parede [barragem] da Boa Esperança; eles desceram abaixo
da cachoeira. (ALENCAR, 2006).
O senhor João Alencar contextualiza um pouco mais o começo da obra da Usina
de Boa Esperança, que segundo ele iniciou na década de 1960 já com o presidente João
Goulart a frente do governo federal. Em relação ao governo do Piauí ele também faz essa
identificação e cita o governador da época a quem ele se refere como Joqueira, nome este
também usual do governador João Clímaco de Almeida. (JORNAL DA SAUDADE,
27/12/1975, p. 1).
Nosso entrevistado segue detalhando um pouco mais a chegada desses técnicos
fazendo os primeiros estudos, no caso funcionários contratados pela empresa Cruzeiro do Sul
para fazer o levantamento do local onde ia ser construída a hidrelétrica e ainda a medição da
131
área ser inundada pelas águas represadas. Segundo o senhor João Alencar, além dos
funcionários da mencionada empresa, participaram também nesse levantamento alguns
militares do Exército Brasileiro.
Foi no tempo do presidente João Goulart, foi decretada de utilidade pública
essa área a jusante, na raia da Boa Esperança [Cachoeira]. Foi declarada de
utilidade pública essa área aqui, de um lado e do outro. Então o que faltava
era medir pra saber quanto precisava. [...] Aí mandou uma empresa aqui,
a Cruzeiro do Sul, pra fazer o levantamento com o povo do Exército. Era um
subtenente do Exército e um sargento, e mais dois soldados, que
acompanharam essa firma Cruzeiro do Sul. (Ibidem).
Avançando na análise da fala do senhor João Alencar percebemos que à medida
que essa equipe de funcionários da empresa Cruzeiro do Sul avançava no término do
levantamento técnico, outra equipe se adiantava na localização e efetivação do canteiro de
obras para o início da construção da Usina de Boa Esperança.
Ao questionarmos se esse grupo de técnicos da empresa Cruzeiro do Sul e de
militares visto por ele, era aquele mesmo que ele e o senhor Jociler tinham encontrado em
uma viagem descendo o rio Parnaíba, ainda antes do início da obra, ele nos diz que não, esse
era outro, este aqui fazia era só levantamento. (Ibidem).
No caso aí, pelo que entendemos, esta equipe vista pelo senhor João Alencar
estava fazendo apenas o levantamento da área a ser inundada pela represa.
Já aquele outro grupo de técnicos encontrado por ele e pelo senhor Jociler na beira
do rio, praticamente no local onde se construiria a Usina de Boa Esperança, esse grupo era
do projeto. Ficavam arranchados em Guadalupe, e saíram de Guadalupe acima medindo.
(Ibidem).
Na verdade todos esses profissionais, civis e militares, faziam parte do projeto de
construção da Usina de Boa Esperança, sejam estes responsáveis pela determinação do local
da obra, ou aqueles outros encarregados de fazer o levantamento da área a ser atingida pelas
águas da barragem.
Todos eles faziam parte de uma grande equipe responsável pela condução técnica
da obra como um todo, o que incluiu logo também a construção da nova cidade de Guadalupe
e a transfencia de toda a população.
O que torna interessante na fala do senhor João Alencar é a diferenciação que ele
faz ao identificar uns como técnicos que fazem apenas levantamento, e outros que já iniciam o
132
projeto em si. Pode ser também que o entrevistado faça tal distinção por não saber definir
exatamente as diferentes datas em que encontrou tais equipes de técnicos.
Outro fato interessante na caracterização que o entrevistado faz das primeiras
equipes de técnicos, é a informação de que esses profissionais, bem no início e até mesmo
antes da obra em si, escolheram a cidade de Guadalupe como a principal base de suas
operões, sendo que, segundo o senhor João Alencar, esses referidos técnicos ficaram
hospedados um período na cidade de Guadalupe, e de lá saíam para fazer seus trabalhos de
levantamento.
Isso tudo nos uma idéia clara de como foi prematuro a instalão na cidade de
Guadalupe do clima de expectativa e ao mesmo tempo de tensão por causa das grandes
mudanças que se anunciavam.
É interessante que todas estas informações sobre a empresa Cruzeiro do Sul, sobre
os técnicos e os anos em que tudo começou, são confirmadas também por dona Mundiquinha
em seu depoimento apresentado um pouco mais a frente.
Entretanto, sobre a descrição aqui já feita do episódio do encontro dos moradores
com os técnicos da COHEBE na beira do rio, e sobre a suposta sugestão do melhor lugar para
a localização da usina feita pelo senhor Jociler, o senhor João Alencar em seu depoimento
diferencia-se em alguns detalhes do seu conterrâneo.
Sobre o fato, o senhor João Alencar diz que não se lembra do acontecido
exatamente com os detalhes referidos pelo senhor Jociler. Ao mesmo tempo, o senhor João
Alencar questiona a importância do suposto comentário feito pelo senhor Jociler sobre o
melhor lugar para se construir a usina hidrelétrica.
Ao passo em que faz essa contraposição, ele também indica o momento em que
retornou definitivamente para Guadalupe, momento esse em que as primeiras companhias
chegavam à cidade para iniciar as obras.
A orientação deles era do técnico. Pode ele [Jociler] ter dado essa sugestão,
mas eu nem me lembro disso aí. Eu passei, fui embora pra Teresina, aí custei
muito vim aqui, quando cheguei estava em andamento; Eu voltei e
estavam àquelas companhias arranchadas na rua [Guadalupe Velha], a
Cruzeiro do Sul fazendo o levantamento de toda a obra. (ALENCAR, 2006).
Assim como os senhores Jociler e João Alencar, dona Maria Amélia também
descreve o trecho do rio logo após a cidade de Guadalupe, trecho entre a Cachoeira da Boa
Esperança onde se construiu a hidrelétrica, até o Remanso do Surubim próximo do povoado
Artur Passos. Estes dois locais, a Boa Esperança e o Surubim, ficaram marcados pelos perigos
133
para a navegação por causa das enormes pedras e das fortes correntezas, ocorrendo
frequentemente acidentes e mortes, inclusive de moradores de Guadalupe.
Falando disso a entrevistada nos conta como era a passagem por Guadalupe das
embarcações que navegavam naquele tempo no rio Parnaíba, entre o sul e o norte do estado.
Dona Maria Amélia fala pelo menos de uma de suas viagens fluviais à medida que descreve o
ritmo da vida dos moradores de Guadalupe e a natureza daquele lugar.
Eles se transportavam a Teresina. As balsas eram imensas, você pensava
que era uma casa. Eu mesmo ainda viajei numa delas de uns amigos, que a
gente estudava em Floriano. Vinha no rio, era maravilhoso. tinha uma
coisa que a gente tinha medo, era ali a passagem do Surubim e a da Boa
Esperaa onde hoje fizeram essa barragem. Uma cachoeira de mais de
légua! Oh, pedra assim oh, uma coisa mais horrível do mundo, mas passava.
[...] Uma corredeira braba, ela ficava mansa no inverno, mas a quando
era na seca, os vapores que vinham, barcos essas coisas, ultrapassavam, mas
era puxado no guincho, às vezes a gente até descia e ia por terra pelo lado do
Maranhão, aí esperava na frente; Era perigoso, arriscado furar o barco,
arriscado virar a canoa, ou mesmo a balsa dispersar nas imensas pedras. Era
muito bonito, só que era muito perigoso, mas todo mundo passava, que Deus
dar um jeito tão grande, acostumava. Daqui pra Guadalupe [Velha] dar cinco
ou é seis léguas, da Boa Esperança. o Surubim ainda existe, é aqui nos
Veados que hoje chama Artur Passos, é muito perigoso, de Guadalupe
mesmo morreram várias pessoas. Mas, é muito bonita a história de
Guadalupe. (FONSECA, 2006).
Encontramos logo abaixo das fotos que retratam essas embarcações mais simples e
mais comuns que eram utilizadas no transporte fluvial no rio Parnaíba na época da construção
da Usina de Boa Esperança, décadas de 1960 e 1970.
134
A foto da esquerda mostra duas balsas encostadas na margem do rio num ponto
o identificado na imagem. Esta foto faz parte de um conjunto de imagens compiladas que
compõem um trabalho sobre a construção da hidrelétrica em Guadalupe realizado por um
autor guadalupense já citado. No caso, a imagem que vemos a esquerda, permite-nos imaginar
como era a ribanceira do rio lá na cidade de Guadalupe Velha.
a foto da direita revela uma outra balsa ancorada no cais da Avenida Maranhão
em Teresina, no caso vemos o descarregamento de mercadorias numa grande movimentação
que sugere a considerável importância desse tipo de transporte no Piauí da época.
Retornando a narrativa do senhor João Alencar, pontuamos mais do que a
descrição do local escolhido para se construir a hidrelétrica, verificamos também as
especificidades técnicas que fizeram da Boa Esperança em Guadalupe o local ideal para a se
construir a usina, definindo-se assim a partir de estudos técnicos realizados pelos profissionais
do DNOCS e da COHEBE, os quais contaram também com a participação ativa de alguns
moradores da cidade, como é o caso de dona Mundiquinha que foi contratada para auxiliar
esses primeiros profissionais.
Fotografia 5: Balsas de buriti usadas para
transporte.
Fonte: (MORAIS, [200-?b], p. 5).
Fotografia 6: Balsas de buriti descarregando
mercadorias no cais da Avenida Maranhão em
Teresina.
Fonte: (COHEBE, 1970, p. 17).
135
os senhores João Alencar e Jociler, participam desse momento inicial da usina
em Guadalupe quando se encontram com os técnicos na beira do rio ainda durante as
primeiras pesquisas. Além do relato desse encontro, o senhor João Alencar faz comentários
baseando-se em informações que recebeu no período da obra, quando o mesmo exerceu o
mandato de prefeito de Guadalupe.
Por tudo isso, o senhor João Alencar se confirma como um dos personagens
importantes que participaram deste processo, sendo que neste período de definição do local,
do início e do acompanhamento da obra, ele conviveu com estes técnicos e funcionários do
DNOCS e da COHEBE sempre na função de representante do poder municipal.
A partir das informações dos entrevistados João Alencar e Jociler, podemos dizer
que foram aqueles primeiros técnicos que selaram o destino final daquela região, ao optarem
pelo local da Cachoeira da Boa Esperança por causa de todas as suas vantagens naturais,
preterindo-se assim a qualquer outro lugar no Piauí ou no Maranhão.
Sobre uma possível concorrência, e sobre essa vantagem guadalupense, o senhor
João Alencar nos fala de pelo menos um lugar chamado Mateiro, tamm localizado no rio
Parnaíba, próximo à cidade de Ribeiro Gonçalves:
Por isso que nós ganhamos aqui, quando fizeram, tinham duas comissões, uma de
Mateiro, Ribeiro Gonçalves, e outra aqui na Boa Esperança, em Guadalupe, e nós vencemos,
nosso material foi melhor do que o de lá, por isso que nós estamos com essa barragem aqui,
por que o nosso material foi excelente, pedra terrível mesmo que ferro. (ALENCAR, 2006).
Para complementar essa informação do senhor João Alencar, retomamos a análise
dos dados técnicos fornecidos pelos documentos da COHEBE sobre a opção pela hidrelétrica
construída na Cachoeira da Boa Esperança no município de Guadalupe.
Sobre esse ponto específico da escolha entre os dois locais mencionados pelo
entrevistado, não encontramos nos documentos oficiais nenhuma referência a este lugar
chamado Mateiro localizado na cidade de Ribeiro Gonçalves.
Encontramos sim a citação desta cidade num trecho do documento intitulado de
Projeto Boa Esperança, no qual é apresentado o relatório dos estudos e pesquisas que servem
de suporte para a efetivação das obras da hidrelétrica. É dito neste relatório que os objetivos
dos estudos foram direcionados para
a hidrologia, a geologia e a topografia da região interessada, tendo os
estudos indicado a viabilidade da construção de barragens eclusadas em
Uruçuí, Surubim e Macacos, no rio Parnaíba. [...] Visando à escolha do local
para implantação das obras o DNOCS promoveu o reconhecimento de locais
136
topograficamente propícios a implantação de barragens, numa extensão de
aproximadamente 250 km, entre as cidades de Floriano e Ribeiro Gonçalves,
e contratou a cobertura aerofotogratrica de extensão de área, à escala de
1:10.000, abrangendo todo o Parnaíba, tendo sido escolhido para local das
obras, um boqueirão a montante da confluência do riacho dos Macacos. Foi
promovido o levantamento topográfico deste boqueirão e adjacências, sendo
seu estudo geológico iniciado pelo DNOCS com a realização de algumas
sondagens ao longo de um eixo de estudo. (COHEBE, 1968a, Parte V-1).
Como é dito na citão anterior, desde o início, a Cachoeira da Boa Esperança no
município de Guadalupe foi confirmada como o local para sediar a usina hidretrica, não
havendo assim nenhum registro da possibilidade concreta de alguma outra obra na cidade de
Ribeiro Gonçalves. Com esta constatação, passamos a desconsiderar uma parte específica da
fala do senhor João Alencar, na qual o entrevistado disse ter havido uma concorrência direta
entre essas duas cidades.
Houve apenas uma menção às pesquisas que foram feitas num trecho total entre as
cidades de Floriano e Ribeiro Gonçalves, sendo que ao longo desta área no rio Parnaíba,
cogitou-se sim três possíveis lugares: um na cidade de Uruçuí, e os outros dois próximos à
cidade de Guadalupe.
Como vimos na última citação, um desses locais chamava-se Surubim, o qual
também é conhecido por alguns entrevistados como o Remanso do Surubim, trecho do rio de
difícil passagem com pedras e fortes correntezas, tendo ocorrido lá vários acidentes.
(FONSECA, 2006).
O outro lugar mencionado nos documentos e nas entrevistas é a Cachoeira da Boa
Esperança, que com um grande conjunto pedregoso também prejudicava a navegação no rio
Parnaíba. Este local, a Boa Esperança, um pouco antes do riacho dos Macacos, foi exatamente
o lugar escolhido para a obra da hidrelétrica.
Nesse caso, vemos confirmar-se a fala do senhor João Alencar, pelo menos num
sentido geral, pois a Usina de Boa Esperança foi para o município de Guadalupe por que o
local de melhores condições para a construção e o futuro aproveitamento hidrelétrico era
justamente este nas proximidades dessa pequena cidade.
Apesar de o se confirmar completamente àquela informação do senhor João
Alencar sobre uma concorrência entre as cidades de Guadalupe e Ribeiro Gonçalves, para
escolha do local da hidrelétrica, verificamos que houve sim outras alternativas ao projeto da
usina construída na Cachoeira da Boa Esperança, tendo sido escolhido todo um trecho que
indicava alguns pontos de possível aproveitamento hidráulico.
137
Além desses estudos realizados no rio Parnaíba, o mesmo relatório do Projeto Boa
Esperança elaborado pela COHEBE, indica uma outra opção que seria a de se construir uma
hidrelétrica menor na cidade de Caxias no Maranhão, no leito do rio Itapecuru, sendo dado o
nome de Criminosa para esta possível usina. (COHEBE, 1968a, Parte VI-16).
Entretanto, o projeto da Usina de Criminosa não se mostrou financeiramente
viável, haja vista que seu custo inicial apesar de menor, encarecia-se futuramente pela
necessidade de complementar a sua produção com o funcionamento de usinas termelétricas.
(Ibidem).
De acordo com essas informações, reforça-se a tese do senhor João Alencar de que
em Guadalupe, especificamente na Cachoeira da Boa Esperança e nas suas imediações,
reuniam-se as melhores condições de custo-benefício para se construir uma hidrelétrica, pois
os materiais encontrados neste local eram de boa qualidade, sendo inclusive muito utilizados
para se construir a barragem. (Ibidem, Parte III-8-10).
Portanto, em Guadalupe seria construída uma hidrelétrica maior e mais eficiente
segundo os estudos técnicos da COHEBE, exatamente porque a Boa Esperança reunia os
principais recursos geológicos e hidrológicos, com destaque para o fato de que esta
hidrelétrica seria movida pelas águas do grande rio Parnaíba, atingindo-se então o objetivo
principal que era o de gerar o máximo de energia para abastecer o maior número de cidades
no Piauí e no Maranhão.
E assim se fez a Usina de Boa Esperança, logo após a acidentada Cachoeira da boa
Esperança, numa curva íngreme que quase ao seu final encontrava-se com à foz do Riacho
dos Macacos.
A partir deste ponto visualizamos um desenho e uma foto, que nos mostram um
pouco mais a seqüência dos passos de todo o processo de construção da usina de Boa
Esperança. Em suma, podemos a partir das imagens a seguir, ter uma idéia geral das etapas da
construção da usina, começo, meio e fim de toda essa odisséia que transformaria para sempre
as vidas de muitas pessoas no Piauí e no Maranhão.
A primeira imagem mostra-nos o projeto inicial com a planta da hidretrica do
local exato escolhido para sua construção e de todo o seu complexo. Eis então logo abaixo o
desenho geral de seu projeto, o qual serve para nossa análise visual e para mensurarmos a sua
grandeza técnica:
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1-Trecho natural do rio Parnaíba antes da construção da usina; 2-Foz do riacho dos Macacos; 3-
Principal trecho do paredão da Barragem de Boa Esperança; 4- Canal de Adução, construído para
levar as águas desviadas do rio até as turbinas da usina; 5- Local onde se construiu a Casa de Força
que é onde ficam as turbinas da Usina de Boa Esperança.
Figura 3: Planta Geral da Usina de Boa Esperança
Fonte: COHEBE, 1968a, Parte V-2.
Logo mais a frente, temos uma outra foto que mostra esse mesmo local durante
os arranjos finais da obra, com a visualização da conclusão do paredão da barragem, e com
isso os preparativos para o represamento total do rio e o início do funcionamento efetivo da
usina.
2
1
3
4
5
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Fotografia 7: Vista geral do canteiro de obras da Usina de Boa Esperança
Fonte: (COHEBE, 1969. Foto de capa, montagem do Autor).
Nesta foto logo anterior, visualizamos o término das obras do paredão da
barragem, e com isso iniciando-se o começo do represamento do rio, com o detalhe do canal
que leva a água até os túneis da hidrelétrica numa preparação para o processo experimental de
funcionamento. Mais ao fundo visualizamos ainda o leito normal do rio que segue após a
passagem pelo complexo da usina.
Desde esclarecemos as nossas intenções ao mostrarmos estas fotos anteriores, e
também algumas fotos seguintes. No caso desse nosso texto, a apresentação dessas fotos todas
se justificam por um lado pela necessidade de entendermos toda a grandeza desta que foi a
maior obra de infra-estrutura do estado do Piauí. E por outro lado, intencionamos também
com essas fotos recriarmos visualmente o clima de movimentação no local da obra, e
especialmente a agitação causada na cidade de Guadalupe.
Depois das passagens até aqui descritas pelos nossos entrevistados, especialmente
sobre o local onde foi constrda a usina, passamos a analisar a fala de dona Mundiquinha, a
qual também participou ativamente desde o início do projeto da Usina de Boa Esperança,
140
como moradora que vivenciou todas as mudanças juntamente com todos os outros
guadalupenses.
Além disso, dona Mundiquinha também vivenciou esse processo como funcionária
contratada pela primeira empresa a chegar a Guadalupe para trabalhar na obra da hidrelétrica,
essa empresa era a Companhia Cruzeiro do Sul que, a serviço do DNOCS, acertava os últimos
preparativos para o começo da obra.
Dona Mundiquinha discorre sua fala de maneira constante e precisa, revelando
detalhes sobre os primeiros técnicos que chegaram à cidade, e sobre a reação dos moradores e
a sua participação nos trabalhos, quase sempre datando minuciosamente os acontecidos. Ela
nos conta da seguinte forma o começo da obra e a repercussão em Guadalupe:
Os engenheiros chegaram, em maio de 1959, eu estava trabalhando na
Paciência, tirando o resguardo da Santa, da Socorro. Quando chegou a
notícia, disse: ‘Vai começar a Barragem! Vai tomar as casas de
Guadalupe!’ eu fiquei o s de maio, junho, eu vim no dia 10 de
junho. Quando eu cheguei, em junho, em julho, agosto, chegou à
companhia do DNOCS, a Cruzeiro do Sul. eu fui ser barraqueira.
Trabalhei com eles seis meses, mais de seis meses eu trabalhei com eles. Aí
estavam os engenheiros na beira do rio, no rumo de Artur Passos pra
baixo, para o rumo da Manga por aí. Isso era uma turma de engenheiros,
tudo na beira do rio olhando, pesquisando as pedras num tem, como é que
podia entrar. Aonde eles passavam eles colocavam umas bandeirinhas
vermelhas, era um sinal onde a água ia passar. Era um trabalho que eu
adoeci, de trabalhar demais, por que eu num dormia, nem me alimentava.
s fomos até a Cachoeira do João da Rolinha, acima de Nova Iorque, aí
encerrou o trabalho e nós voltamos pra Guadalupe, terminou em dezembro.
eles fizeram e deu um erro. quando foi em outubro de 1960, eles
voltaram de novo, pra consertar, eu tornei trabalhar com eles. (ARAÚJO,
2006, grifo nosso).
Além de dona Mundiquinha, e dos senhores Jociler e João Alencar, as outras
moradoras entrevistadas também nos revelam esse momento dos preparativos iniciais para as
obras da Usina de Boa Esperança, caracterizando-se na fala de cada uma dessas pessoas o
grau de interesse, saudade ou de ressentimento, os quais definem, mais ou menos, o que se
deve contar.
Por exemplo, ao analisarmos os depoimentos de dona Maria Amélia e de dona
Maria do Carmo, percebemos que as mesmas não registram com tanta precisão o momento da
chegada desses primeiros técnicos do DNOCS e da COHEBE, estes mesmos, os quais
definiram e aprontaram as condições básicas para o começo de toda essa transformação,
destacando nesse momento inicial a escolha do local onde ficaria a usina e todo o seu
complexo (barragem, lago, sangradouro, nova cidade, etc.).
141
No caso das falas das entrevistadas Maria Amélia e Maria do Carmo sobre esse
momento inicial do projeto da Usina de Boa Esperança, as duas, diferentemente dos outros
três entrevistados, não se preocupam em detalhar tanto esse momento dos estudos técnicos.
Elas concentram-se mesmo é no clima de preocupação da populão, como podemos ver na
fala de dona Maria Amélia que afirma: Nem me lembro do ano não, todo mundo ficou assim,
meu Deus como vai ser isso?! (FONSECA, 2006).
Neste sentido, dona Maria Amélia descreve prioritariamente as sensações sentidas
pelos moradores de Guadalupe, os quais segundo ela, foram os que mais sofreram com todo
esse ocorrido.
A propósito das descrições das reações assustadas do povo de Guadalupe ao saber
da obra da usina, lembremos também aqui de um trecho da fala citada de dona
Mundiquinha, a qual revela o temor de que tudo ia se acabar, os moradores iam perder as
suas casas e não as teriam de volta. (ARAÚJO, 2006).
Voltando a fala de dona Maria Amélia, segundo ela as reuniões na cidade velha
eram no Colégio João Pinheiro, na Prefeitura, no Centro Social, que tinha tudo! O povo
era bobo, tinham medo de não receber casa, mas o que eu tinha pra dizer eu dizia na vista
delas [assistentes]! (FONSECA, 2006).
A partir de então, os moradores de Guadalupe passaram a participar de reuniões
periódicas, preparando-se assim para enfrentarem todo esse processo de transformação, a
construção da hidrelétrica com o represamento do rio, a submersão de sua cidade, com suas
casas, ruas, igreja, cemitério, etc.; e por fim, a mudança para a nova cidade.
a dona Maria do Carmo assinala o início de tudo com a atuação das assistentes
sociais da COHEBE que vieram para trabalhar diretamente com os moradores de Guadalupe.
Estas profissionais então, passam a promover reuniões onde se apresentam
assuntos importantes e delicados como a necessidade da usina hidrelétrica, e as conseqüências
da sua construção, no caso, as desapropriações e a preparação da transferência para a nova
cidade, tudo isso dentro de um processo geral de recolocação social, profissional e cultural.
Assim, segundo dona Maria do Carmo, tudo:
Começou com a chegada das assistentes sociais lá em Guadalupe, porque foi
um grupo de assistentes sociais pra preparar o pessoal pra essa muda, que foi
muito necessário. As assistentes sociais da COHEBE, elas eram da
COHEBE. Era muito necessário, elas fizeram um trabalho muito
interessante, foi muito importante o trabalho delas, eu acho que se o
tivesse sido esse trabalho, tinha sido um pouco difícil. (MOUSINHO, 2006).
142
Estas profissionais, as assistentes sociais, juntamente também com os engenheiros,
são sem vidas os personagens institucionais mais citadas por todos os moradores, inclusive
dividindo opiniões como é o caso de dona Maria Amélia que os tem como pessoas arrogantes
que frequentemente desconsideravam e subestimavam os moradores de Guadalupe, atitude
esta prontamente questionada pela nossa entrevistada.
A partir da análise dessas informações, passamos a idealizar melhor todo esse
processo de transformações as quais os moradores de Guadalupe passaram a assistir, um
verdadeiro processo de destruição de suas reminiscências físicas, juntando-se a esse cenário
um sentimento de desmanche de suas memórias, que, apesar de ainda estarem em suas
mentes, passam a estarem cobertas pelo lago.
Esses estranhamentos assim como todas essas mudanças trazidas pela obra, vão
interferindo naquele modo de vida simples e pacato que existia na cidade até então, um modo
de vida tão simples que permitia os comerciantes da cidade venderem suas mercadorias em
troca de pagamentos que às vezes só se faziam anualmente, como já nos relatou o senhor João
Alencar em uma de suas falas de descrição da economia da cidade velha.
Entretanto, verificamos que esses estranhamentos vão sendo arrefecidos com o
passar dos anos, sendo que à medida que a obra vai continuando, os operários e funcionários
da COHEBE visitam a cidade velha de Guadalupe distante aproximadamente trinta
quilômetros da obra. No caso, esses funcionários e operários se deslocavam para a cidade
velha principalmente todos os finais de semana em busca de mantimentos na cidade e de lazer
no rio.
A respeito desses contatos ocorridos na cidade velha entre moradores, funciorios
da COHEBE e operários da obra, encontramos na fala de dona Maria do Carmo uma das
poucas passagens dentre os entrevistados sobre essa integração.
O pessoal daqui [Local da Obra] ia para Guadalupe no final de semana; Mas
depois, com a continuação do tempo o pessoal foi se adaptando mais por que
estavam tendo renda. O pessoal ia, dia de bado e domingo tinha uma
feirinha, e o pessoal foi ficando mais conformado, mais satisfeito por uma
parte. [...] Os funcionários da CHESF aqui, da usina, da COHAB nesse
tempo, eles iam passear em Guadalupe dia de domingo, passear, tomar
banho no rio que era mais folgado, no começo da construção, exatamente,
o pessoal foi arranjando amigos, através desse meio, dessa classe assim
que era igual a nossa lá. (Ibidem).
143
De acordo com a fala de dona Maria do Carmo e também de outros entrevistados
que após o início da obra da usina nas imediações da Guadalupe Velha, percebemos que
passou a haver um trânsito intenso de pessoas entre o local da obra e a sede da cidade velha.
Esse trânsito se justifica pelo fato de que Guadalupe era cidade mais próxima deste
local da obra, configurando esta definitivamente como a cidade-sede da Usina de Boa
Esperança, sendo que a própria obra em si cuidou de atrair muitas levas de pessoas que foram
para lá trabalhar, provocando uma intensa movimentação na pequena cidade de Guadalupe.
Além desta intensificação na movimentação da cidade de Guadalupe, encontramos
ainda algumas referências a alguns momentos lebres que marcaram o curso da obra da
Usina de Boa Esperança e que trataram de movimentar mais ainda aquela pequena cidade.
Entre estes momentos lebres destacamos a visita do então presidente Mal.
Humberto de Alencar Castelo Branco até o canteiro de obras para realizar o Desvio I do rio
Parnaíba, tendo ocorrido este fato no dia 29 de maio de 1965. (MORAIS, [200-?/B] p. 20).
Além desta fonte, encontramos nos jornais de Teresina a repercussão a esta visita
do então presidente Castelo Branco até a obra da Usina de Boa Esperança, sendo que os
jornalistas aproveitaram estes espaços jornalísticos para exaltar de forma ufanista a grandeza
da obra e o futuro de desenvolvimento que ela consagraria. (JORNAL O ESTADO,
18/07/1965, p. 1 e 3 e 30/05/1965, p. 1).
Além desse episódio da visita do presidente para inspecionar a obra em 1965,
encontramos o registro nos documentos da COHEBE de outro momento celebrizado que foi a
cerimônia do Desvio II realizada no ano de 1968. (COHEBE, 1969, p. 9 e 51-53).
Nessa ocasião do Desvio II o rio Parnaíba comou a ser efetivamente retirado de
seu curso natural nesse trecho da barragem, sendo então desviadas as suas águas por um canal
e túneis até a casa de força da usina, onde as suas turbinas movimentar-se-iam posteriormente
gerando assim a tão desejada energia etrica.
Para visualizarmos a grandeza da cerimônia do Desvio II, um dos maiores
acontecimentos da obra, ficando atrás somente da inauguração oficial em 1970, vejamos uma
seqüência de fotos a seguir que nos mostra em detalhes toda a movimentação em Guadalupe
no dia desse evento importante.
144
Fotografia 8: Visita dos Ministros Costa Cavalcanti, das Minas e Energia e Hélio Beltrão. Do
Planejamento, às obras de Boa Esperança, sendo recebidos pelos Diretores da COHEBE.
Fonte: (COHEBE, 1969, p. 52).
Destacamos na imagem anterior a passagem de ministros da república e de
diretores da COHEBE enquanto eram observados por moradores da cidade de Guadalupe
Nova e também por operários da obra. Enfatizamos novamente a especialidade daquele
momento por conta do desvio definitivo do rio Parnaíba e de preparação final para a
conclusão da obra da Usina de Boa Esperança e com isso o início de seu funcionamento.
Em seguida temos outra foto que mostra-nos a visualização geral do local do
desvio no momento exato da explosão da margem do rio com centenas de pessoas próximas
ao canal assistindo toda essa movimentação.
145
Fotografia 9: Cerimônia do Desvio II – Vista do canal de acesso aos túneis inferiores no momento da
explosão da ensecadeira.
Fonte: (COHEBE, 1969, p. 51).
Na seqüência do texto temos mais duas fotos que nos revelam um pouco mais do
ambiente de trabalho no canteiro de obras da hidrelétrica.
No detalhe, temos a imagem da esquerda que retrata a grande movimentação da
obra, com muitos veículos, máquinas e estruturas, sendo que no caso desta parte mostrada
abaixo vemos a construção do Canal de Adução, que é a estrutura que controla a entrada da
água para as câmaras inferiores onde se movimentam as turbinas.
a foto da direita mostra o mesmo local da Tomada de Água, mas que nesta
outra foto esta etapa da obra já se encontra concluída, e inclusive com a água passando para
os túneis numa fase de operação experimental.
Vista do canal de acesso
aos túneis inferiores no
momento da explosão
da ensecadeira.
Milhares de pessoas
a beira do [canal]
observaram o evento.
Palanque de autoridades na cerimônia do Desvio II
146
Seguimos em nossa descrão do clima de mudanças instalado em Guadalupe
durante a transferência para a nova cidade, e encontramos inclusive algumas informações
sobre os contatos dos moradores com pessoas de outras cidades tratando-se sempre da
repercussão de todas essas transformações.
Sobre isso dona Maria do Carmo diz que até em Floriano mesmo [diziam]: ‘Ah,
você é de Guadalupe?! Da cidade que vai ser inundada?!’ Aí todo mundo ficava: Como foi
lá? Como foi que a água chegou?!’ Todo mundo naquela imaginação, como era que a água
tinha tomado à cidade. (MOUSINHO, 2006).
Voltamos assim aos sentimentos mais fortes sentidos por esses moradores
atingidos pela barragem, e atingidos também pelas pressões de ter que perder as suas cidades
e ainda ter que conviver com as pessoas que, ao estarem fora do seu meio social, certamente
o entendiam a profundidade de seu sofrimento.
Aproveitamos esse ponto para ampliarmos as caracterizações desse clima de medo
presente na cidade por conta da inundação e da transferência. Para isso, recorremos
primeiramente à dona Mundiquinha que nos conta que tudo aconteceu da seguinte forma:
Fotografia 10: Canal de adução. Início da
concretagem da estrutura da Tomada de
Água, [antes da realização do Desvio II].
Fonte: (MORAIS, [200-?/a.] p. 16).
Fotografia 11: Canal de adução. Terminada a
concretagem da Tomada de Água, e com a
água passando pelo canal de acesso, depois
da realização do Desvio II.
Fonte: (COHEBE, 1969, p. 48).
147
Isso era um choro danado! Pois é, não acreditávamos que ia ter inundação.
Mas ficava todo mundo naquela ilusão que num ia ganhar casa, que ia se
acabar Guadalupe e ninguém ia possuir mais uma casa. quando eles
começaram a fazer, ave Maria! Meu Deus eu não gosto nem de me lembrar,
foi em 1967, em 1960, a 1962 por aí assim. Começou a turma lá, 1964, 1965,
1966. Veio 1966 e começou o movimento da muda, mudar pra cá, a água do
rio começou a subir. Ave Maria menino! Tinha gente que dizia que não saia
de lá, eu mesma dizia assim: ‘Eu quero ficar é bem aqui, lavando roupa
bem aqui na calçada dessa casa, eu mesma não vou sair daqui! Hoje em
dia no lugar que era minha casa em Guadalupe, dizem que nem os
pescadores num vai no fundo, o mar d’água que tomou tudo. (ARJO,
2006, grifo nosso).
Os moradores de Guadalupe então, com a ameaça eminente da inundação e a
incerteza quanto ao recebimento de suas casas, vivem esses momentos sob um clima de
extrema tensão. Na tentativa de escoar todos esses temores e insatisfações as assistentes
sociais da COHEBE realizaram várias reuniões com os moradores, e assim, todas as dúvidas e
reclamações foram sendo tratadas nessas reuniões com os devidos esclarecimentos das
assistentes.
Sobre esse clima de tensão existente em Guadalupe as vésperas da mudança, dona
Mundiquinha detalha que os moradores
ficaram um pouco abalados. As assistentes sociais faziam reunião,
chamavam os moradores pra se dizer como é que queriam as casas, se eles
estavam aceitando, se eles estavam gostando dos modelos das casas. Por que
faziam as casas assim, contando quantas pessoas tinham na casa. Aqueles
que tinham muita gente, a família grande, a casa era grande; a casa era
pequena, como a minha, saiu assim. A gente ia para a reunião, quando
chegava lá, que ela começava a explicar, quem num entendia, sabe como é,
às vezes a gente nem sabia, era um susto quando a gente ia pra essas
reuniões, pra saber dizer como é. Muitas informações, aquilo elas
explicavam como é que ia ser, aí todo mundo dizia: ‘Tá bom! Quando se
saia daquela reunião àqueles maiores diziam: ‘Eh, eu não gostei daquele
modelo, o que e que você achou?! Mas pra elas [assistentes] num diziam.
deu as confusões, quando receberam as casas, acharam pequenas, que não
queriam daquele modelo, mas na hora não diziam. (Ibidem).
Logo na seqüência do seu depoimento, dona Mundiquinha tenta explicar o porquê
de tantos descontentamentos por parte dos moradores, conflitos esses que para ela se
explicava pelo acanhamento dos moradores diante daquelas pessoas que vinham de outros
lugares, com visões diferentes de mundo e que contrastavam com aquele modo de vida
simples que era levado na cidade velha de Guadalupe.
Além dessa linguagem técnica e carregada de estranhamentos, com a qual
frequentemente as assistentes sociais e os engenheiros se dirigiram nessas reuniões com os
148
moradores, para boa parte desses guadalupenses, todas essas pessoas de fora” da cidade
incorporavam o papel de transmissores de temerosas notícias que intranqüilizavam as pessoas
quanto aos seus destinos.
Nesse sentido, dona Mundiquinha nos diz reflexivamente que faltou explicar muita
coisa importante para esses funciorios da COHEBE, necessidade não garantida justamente
pelos estranhamentos e pelo clima de tensão que indispunha a um claro entendimento.
quem num dizia nada eram os pequenos, como eu e outros! [...] Eu acho
que era por que a gente tinha acanhamento de dizer num sabe. Por que você
sabe que gente que num tem muita experiência, ficava muito abatido com
esse povo que a gente não conhece, ave Maria! Ah, tinha muita coisa pra
gente explicar pra eles [funcionários da COHEBE]. Ainda entramos nessa
batalha, foi esse tempo todinho, de 1959 a 1960, e quando s viemos mudar
pra cá já foi em 1967. (Ibidem).
Apesar da predominância dos comportamentos acanhados dos moradores de
Guadalupe nessas reuniões, existiram algumas poucas exceções de pessoas que não aceitaram
as argumentações nem das assistentes sociais nem dos engenheiros.
Sendo assim, as reuniões não conseguiram silenciar todos os guadalupenses, tendo
havido alguns exemplos de discordância e até de enfrentamento, como foi o caso de dona
Maria Amélia que por vezes levantou sua voz contra o discurso da inevitabilidade das
mudanças, e também contra a unilateralidade na tomada das decisões.
Então ela começa a sua descrição das reuniões com as assistentes sociais
apresentando informações semelhantes a dos outros entrevistados, confirmando assim por um
lado a coerência com que essas informações foram concedidas, pois apesar de terem sido
feitas separadas, encontram-se em muitos trechos com muitas informações concordantes.
Sobre as primeiras reuniões na Guadalupe Velha, dona Maria Amélia nos conta
que
eram na Prefeitura, no Centro Social, que tinha tudo! Elas convidavam
[...] isso foi a muito tempo, nós agüentamos; Uns acreditavam, outros não,
mas a gente que tinha mais experiência sabia que isso ia acontecer, por que o
tanto de gente que chegou aqui nesse tempo. (FONSECA, 2006).
Percebemos então, que a entrevistada nos falou do clima de tensão e
desinformação existente entre os moradores de Guadalupe, o que causava uma verdadeira
confusão na cidade, ficando assim essas pessoas entregues a própria sorte diante de tamanhas
dúvidas sobre sua vida futura.
149
Somado a esse clima nervoso de incerteza, medo e insatisfação, aconteceu ainda
em Guadalupe o fenômeno da migração de pessoas que vinham dos mais variados lugares do
Piauí, Maranhão, de outros estados do nordeste e de todo o Brasil. Toda essa vinda em massa
de pessoas para Guadalupe Nova, segundo dona Maria Amélia, fez a cidade contabilizar uma
população de mais de dezoito mil pessoas (Ibidem), isso tudo já contando também com os
moradores que já tinham vindos da cidade velha.
Imaginemos uma situação crítica como essa, pois na maioria das cidades um
processo normal de evolução da população se ao longo de décadas e até de séculos, e não
de uma forma tão rápida.
No caso de Guadalupe, em menos de três anos, desde o período de intensificação
da obra da usina em 1965, período em que os funcionários iam constantemente visitar a
cidade velha; Até a transferência final da população no final do ano de 1967, momento em
que foi estabelecida a população definitiva de Guadalupe, isso tudo juntando na cidade nova
os moradores antigos e os migrantes recém-chegados atraídos pela obra.
Dona Maria Amélia nos fala um pouco mais dessa desinformação geral que existia
na cidade na época sobre a obra da usina e sobre a cidade nova. Fala-nos também do caráter
de convencimento unilateral das reuniões, e ao mesmo tempo revela sua revolta com as
pressões que os moradores sofriam para não se oporem ao projeto e para aceitarem
silenciosamente as propostas dos funciorios da COHEBE.
O povo quase todo ia, elas chamavam as famílias pra ir assistir e discutir;
aqueles que tinham coragem de falar como eu, acabava com a vida delas. O
povo era bobo, tinham medo de falar, com medo de não receber casa. Eu
disse: ‘Eu posso ficar debaixo de um pau, mas o que eu tenho de dizer eu
o peço para ninguém dizer, eu digo na vista delas bem aqui, dessas
assistentes sociais, de engenheiros, do que tiver aqui! Por que que eu vou
ficar calado?! Deus deu minha língua, a hoje eu dou glória, eu digo
obrigado senhor, e o que eu tenho de dizer eu não peço pra ninguém dizer,
eu mesmo digo. [...] Tinham medo de falar; Pensavam que se elas falassem
não recebia casa; podiam ser presos; Pensavam que se elas [moradoras]
falassem elas [assistentes sociais] repeliam muito. Comigo não! Se
dissessem um’, eu dizia ‘dez!’ dizia na hora; num ia ficar calada;
Sempre fui positiva e sempre defendi Guadalupe, eu sou guadalupense!
(Ibidem, grifo nosso).
De uma forma bem particular, dona Maria Amélia denuncia a tentativa das
assistentes sociais de proibirem a sua participação nessas reuniões, sendo que essas tentativas
fracassaram dada a obstinão dela em garantir a expressão de suas opiniões pessoais.
150
Segundo suas palavras, ela falava na posição de moradora, e, ao mesmo tempo, de
tima de todo esse processo de transformação, revelando-se a sua entrevista num exemplo
latente das opiniões contrárias ao processo de condução da obra, demonstrando de forma
incisiva a sua insatisfação para com a inundação da cidade velha, seguida da transferência dos
moradores, e ainda direcionando suas severas críticas a estrutura da cidade nova como um
todo.
Verificamos claramente essa sua grande revolta, em todo o discorrer do seu
depoimento, através das palavras carregadas de emoções, e dos gestos não menos comuns de
indignação em relação ao tratamento dado pela COHEBE aos moradores da Guadalupe Velha.
Ela nos diz que não aceitava calada e não permitia que fosse negado o seu direito
de livre questionamento, e de opinião sobre o melhor caminho para a sua cidade. Sobre essas
divergências com as assistentes sociais da COHEBE, dona Maria Amélia nos conta então o
seguinte:
Tinham as assistentes sociais da COHEBE, ave Maria, elas escondiam pra
mim o ir, queriam me negar; Quando eu descobria que tinha, pensava que
não eu estava na porta: ‘Não deixar eu entrar por que?! Meu marido está
bem dentro! Impede eu de entrar aqui! Ora, deixava eu entrar! Por que
eles sabiam que eu era contra tudo de ruim que eles eram. (Ibidem).
Assim foi feita toda a preparação para as mudanças que viriam a alterar a vida de
todas aquelas pessoas, sendo que de um lado o foco estava na argumentação da importância
da hidrelétrica não só para Guadalupe, mas também para todo o estado do Piauí. Este discurso
de desenvolvimento inclusive era consoante ao divulgado pelos jornais de Teresina como
pudemos notar.
Por outro lado, o objetivo das assistentes sociais e demais funciorios da
COHEBE dirigia-se prioritariamente à condução dos moradores na transferência para a nova
cidade, preparando-os não só para abraçar as novidades que viriam, mas principalmente
fazendo-os se desgarrarem das referências históricas que eles tinham construído ao longo de
suas vivências na velha cidade.
O sentimento mais comum entre os moradores era sem dúvidas o medo de não
receber uma casa na nova cidade. Porém, influenciados por um discurso de modernização
emitido pelas assistentes e pelos engenheiros da COHEBE, percebemos também uma grande
expectativa de melhorias que viriam a se concretizar com a vida na nova cidade.
151
Esse discurso de uma vida melhor numa cidade nova e moderna, era um discurso
sintonizado com o macro objetivo em que foi concebida a obra da Usina de Boa Esperança,
pensada assim como a propulsora maior do desenvolvimento dessa região.
No caso do Piauí, havia duas frentes principais de propagação desse discurso, que
são os jornais de Teresina, os quais se direcionam prioritariamente ao público da capital e das
principais cidades do estado;
Os outros espaços de vazão desse discurso são exatamente as reuniões dos
funcionários da COHEBE com os moradores das áreas atingidas pela barragem, entre essas
áreas focalizamos especialmente o local escolhido para ser a sede da usina hidrelétrica, no
caso a cidade de Guadalupe que foi inundada e recolocada num novo lugar.
Dona Maria Amélia, sobre esses sofrimentos causados pela transfencia, resume
os sentimentos seus e dos seus conterrâneos no seguinte desabafo: Choraram muito;
desespero muito; foi muito desespero. Olhe, a gente sair de um lugar querendo é difícil. E
a gente sair de um lugar arrancando tudo da gente. Ver que tudo da gente vai ser submerso!
(FONSECA, 2006).
As a inundação da cidade velha, processou-se então a recolocação das suas
vidas num novo lugar, numa nova cidade, tentando nesta última remontarem o seu cotidiano.
Contudo, diante de tamanhas seqüelas, nem sempre se consegue transpor todas as suas
memórias, podendo felizmente resguardarem as suas mais valiosas essências de velhos
guadalupenses que sempre serão.
Todas essas descrições que vão sendo aqui apresentadas nos revelam o clima de
mudanças entre os moradores, às reuniões com os funcionários da COHEBE, às
concordâncias, os atritos, os silêncios, além de toda a movimentação por conta das obras, as
relações dos guadalupenses com os funciorios da COHEBE e com os operários das
construtoras, a migração, o comércio, etc. Destacadamente os moradores nos falam da sofrida
mudança da cidade velha para a nova cidade, com a difícil adaptação a uma nova vida.
152
2.3 - Choques e adaptações sociais na transferência para “O Cativeiro Educado”
[...]
Para rever-te, terra dos meus sonhos,
Nessa homenagem simples e sincera,
Altos montes transponho ou removo;
Cantando teu passado já distante,
Viverei a lembrar eternamente,
O encanto e a bondade do teu povo.
(FONSECA, 1975).
Até este ponto nos esforçamos na tarefa de recontarmos a história da formação da
cidade de Guadalupe através do estudo de fontes diversas como documentos, imagens e
depoimentos, os quais nos proporcionaram informações valiosas para uma reconstrução
historiográfica dos capítulos mais emocionantes de toda a trajetória desse lugar e de seus
moradores, especificamente dentro dessa dinâmica de constantes transformações ao longo da
década de 1960.
Especialmente sobre essa característica de mudança existente na cidade de
Guadalupe, encontramos indícios no fato de que dentro de um curto espaço de quarenta anos
esse nosso lugar estudado foi constrdo e reconstruído pelos seus moradores, e também por
novos agentes sociais, notadamente pessoas trazidas ou atraídas pela COHEBE durante a
construção da usina hidrelétrica.
Assim verificamos inicialmente o seu povoamento inicial em 1926 e a sua
fundação oficial como vila em 1929, passando pela perda do seu título de vila em 1930, a sua
reoficialização potico-administrativa como cidade em 1938, e o seu batismo final com o
nome de Guadalupe em 1944, ocorrendo ainda dentro desse período uma dinamização
política, econômica e social razoável dessa cidade que se firmava como lo de atração
naquela região.
As esse período relativamente curto, em se tratando da idade de uma cidade,
este primeiro lugar de vida guadalupense chega logo ao seu destino final com a obra da Usina
de Boa Esperança realizada durante a década de 1960.
Chegamos enfim ao momento de detalharmos o acontecimento mais crítico de toda
essa trajetória, exatamente esse o seu epílogo com a retirada dos moradores do lugar de
morada inicial, o qual se inundaria.
Interligado a esse drama da transferência das pessoas estava à chegada delas a um
novo núcleo urbano, a nova cidade de Guadalupe, a qual foi concebida pelos técnicos da
153
COHEBE, e, batizada pelos antigos e novos guadalupenses como a cidade da Barragem, ou
simplesmente como a “Barragem”.
Recomeçamos então a nossa narrativa com a descrição feita pelos nossos
entrevistados que seguem caracterizando essa seência de fatos, partindo aqui dos momentos
finais da velha cidade de Guadalupe, marcada por todo esse clima de mudanças radicais,
ocorrendo com isso inevitavelmente insatisfações e conflitos entre os moradores e os
funcionários da COHEBE, empresa responsável pelas obras.
Identificamos estes encontros e desencontros, entre as demandas dos moradores e
os procedimentos estabelecidos pela COHEBE, ao confrontarmos os documentos oficiais da
empresa com as opiniões dos moradores entrevistados que destacam as reuniões com as
assistentes sociais como os momentos-chave da preparação para a mudança daquele lugar.
Sobre essas referidas reuniões com as assistentes sociais da COHEBE,
encontramos opiniões diferentes entre nossos moradores, uns exaltam a importância dessas
profissionais na preparação do povo para a mudança, outros entrevistados questionam a
funcionalidade das reuniões e também criticam abertamente o papel das funcionárias da
COHEBE.
Essas posições díspares nos mostram nada mais do que a riqueza do nosso
conjunto de fontes orais, as quais apresentam com detalhes os mencionados encontros e
desencontros nesse contexto de mudanças.
Partindo da fala do senhor João Alencar, encontramos uma posição extremamente
favorável à atuação em Guadalupe dos funcionários da COHEBE, especificamente os
engenheiros e as assistentes sociais.
Nesse sentido, o nosso entrevistado afirma: esse pessoal é um pessoal muito
interessante, pessoal educado, pessoal que sabia com quem estava falando. Eles sabiam falar
com o caboclo, às vezes iam falar com a gente mais importante, eles eram técnicos mesmo em
tudo. (ALENCAR, 2006).
Segue o senhor João Alencar esclarecendo a tarefa das assistentes sociais de
convencerem os moradores para a necessidade da mudança, e para os preparativos para a vida
a ser levada na nova cidade de Guadalupe.
Aprofundando a reflexão sobre esse trabalho de reunirem os moradores para
discutirem as mudanças, questionamos ao entrevistado se o caráter dessas reuniões era o da
negociação. Automaticamente ele nos esclarece que não era nesse sentido da negociação que
trabalhavam as assistentes, mas sim com o propósito do convencimento.
154
Assim ele diz que o convencimento que teve foi as assistentes sociais [...]; e as
assistentes sociais iam só ensinar como ia acontecer, já tava tudo certo. (Ibidem).
Ora, a partir da fala do senhor João Alencar, começamos a tentar entender esse
tipo de convencimento o qual excluía a negocião. Na verdade, quando se pretende
convencer livremente alguém, parte-se do pressuposto de que provavelmente haverá uma
negociação reciprocamente favorável. Caso contrário, na medida em que não possibilidade
de negociação, é porque o convencimento ganha ares de imposição, restando à parte mais
frágil o ônus de uma posição passiva.
Corroborando com esta opinião do senhor João Alencar sobre o trabalho das
assistentes sociais, encontramos também a fala do senhor Jociler que nos descreve de uma
forma geral as reuniões e as apresentações feitas por essas profissionais da COHEBE para
convencerem a população de Guadalupe.
Importante, importante foi. Dos mais importantes aquelas assistentes sociais,
por que elas estavam semanalmente na nossa cidade e nos interiores,
fazendo aquelas reuniões e discutindo, informando e mostrando a realidade,
[...] e mostrando, é, as passagens que é uma usina; o que é uma hidrelétrica;
quais são os benefícios que traz. E outras reuniões mostrando um pouco
mais; o povo foi começando a sentir a realidade. [...] De início ninguém
nem queria falar, ninguém queria nem ouvir falar. Mas depois com o tempo,
com essas assistentes, davam aquela assistência mesmo, procurando mostrar
a realidade das coisas, o povo foi começando, mas ainda tinha uma meia
dúzia de pessoas que veio acreditar no dia que mudou pra cá.
(PEREIRA, 2006).
Encontramos novamente nas falas dos senhores João Alencar e do senhor Jociler
um característico entusiasmo com a obra da Usina de Boa Esperança em Guadalupe, haja
vista que os dois se consideram como moradores esperançosos com as promessas de
desenvolvimento.
Além disso, os dois foram poticos na época, prefeito e vereador, respectivamente,
identificamos assim os dois como fortes defensores das mudanças vindas com essa obra. Para
eles o futuro da cidade estava diretamente ligado à promessa de desenvolvimento trazida pela
COHEBE, e nesse caso, as assistentes sociais eram as principais propagandistas desse avanço.
Seguimos na descrição daqueles momentos decisivos para a cidade de Guadalupe
velha e para os seus moradores, à medida que tratamos do trabalho realizado pelas assistentes
sociais da COHEBE e associado a esse trabalho técnico verificamos como foram as reações
dos moradores em relação a tudo que estava acontecendo, o movimento da obra, a inundação,
a transferência, etc.
155
É sobre tudo isso que o senhor Jociler nos conta logo a seguir:
O trabalho das assistentes sociais foi o que deu mais movimento. Elas foram
de casa em casa, e toda semana elas tinham reuniões em lugares diferentes,
mas tinham. [...] A maioria no início era desfavorável, era contrária. Depois
com a chegada das assistentes sociais contratadas pela COHEBE, e muitas
até da Mendes Júnior, aquele pessoal, começou a conscientização do
povo, começaram a acreditar que isso só poderia trazer futuro para a nossa
região, a construção de uma barragem. (Id. Ibidem).
Ainda um pouco mais com a descrição feita pelo senhor Jociler, encontramos outro
trecho em que ele fala sobre essa questão da incredulidade do povo de Guadalupe quanto à
grandiosidade da obra da usina.
E ainda nesse mesmo trecho, ele nos fala que, à medida que a obra seguia em
frente, e logo quando o rio foi represado e a água começou a inundar a cidade velha,
cresceram os temores dos guadalupenses fazendo com que as pessoas acreditassem mais no
que as assistentes sociais falavam nas reuniões. Assim segundo ele as reações do povo
foram grandes, por muito tempo. Pelo menos a minha ex-esposa, a dona
Maria Morena, gente muito boa, não acreditava que um rio fosse cortado.
Ela não acreditou. acreditou quando fizeram o primeiro desvio, que a
água começou a mudar, começou a parar em Guadalupe, num foi
aumentando, mas começou, aquela velocidade foi diminuindo, bem lenta.
Muita gente num acreditava não. Tem tantas coisas que você vai ver no
meio, que você nem acredita que aconteceu. (Id. Ibidem).
Vejamos a seguir duas fotografias expostas num relatório das atividades realizadas
pela COHEBE no ano de 1967. Essas imagens feitas pelos funcionários dessa empresa,
registram alguns desses momentos das reuniões organizadas pelas assistentes sociais e pelos
engenheiros, junto aos moradores da região atingida pela Barragem de Boa Esperança.
156
Fotografia 12: Reunião com um grupo de moradores do povoado Riacho dos Macacos.
Fonte: COHEBE, 1968b, p. 49.
Nessa foto vemos claramente o momento em que os funcionários da COHEBE,
assistentes sociais e engenheiros, faziam a apresentação da situação criada pela obra da
Barragem de Boa Esperança, com a eminente inundação e a urgente transfencia dessas
populações a serem atingidas pelas águas represadas.
Visualizamos então os funcionários da COHEBE no centro da foto.
Especificamente vemos um engenheiro com um capacete na cabeça o que o identificava
pontualmente como um executor da grande obra em questão, e ao lado deste funcionário
graduado, estavam duas assistentes sociais com seus trajes, calça, sandálias, óculos escuros e
fita passada na cabeça, tudo isso num modelo bem feminino e que provavelmente era a última
moda da cidade de Recife onde as mesmas residiam.
No caso vemos também a grande atenção que os moradores davam a essas
palestras, apesar de percebermos que esta atenção se justificava bem mais pelo medo que se
espalhava pela região deles perderem suas casas e não mais reavê-las.
Estas pessoas humildes tiveram os seus gestos registrados nessa imagem,
demonstram não entenderem muito as argumentações dos funciorios, estando boa parte
desses moradores então numa posição reflexiva, boa parte deles com as pernas cruzadas, o
queixo apoiado sobre o punho, além de muitas mulheres com as crianças no colo, e por fim
157
todos com os olhos direcionados ao centro do rculo onde estavam os palestrantes, as
assistentes sociais e os engenheiros da COHEBE.
Não podemos definir com certeza as opiniões ou os sentimentos dessas pessoas no
transcorrer dessas reuniões acima retratadas, mas provavelmente a posição dos seus rostos
revelam sobretudo temores e incertezas diante de tamanhas mudanças que se anunciavam e
que lhes causavam uma incômoda perplexidade pela sua forçosa retirada daqueles lugares a
quem eles tinham depositado boa parte de suas vidas.
Especificamente nessa primeira foto, vemos os moradores do povoado do Riacho
dos Macacos, local este provavelmente uns dos mais perto donde resolveram construir a
usina, como já vimos nos documentos oficiais e também nos relatos dos moradores.
Era nesses lugares, nos povoados, vilas, e nas cidades de Guadalupe no Piauí e
Nova Iorque no Maranhão, dos quais estas humildes pessoas retiravam o seu sustento no
trabalho diário, onde construíram as suas vidas com sua família e com outras famílias, lugares
onde, além de seus corpos, repousavam também os seus sonhos.
As preocupações se faziam presentes exatamente por que todo a sua história de
vida estava sendo fortemente alterada a partir desse momento com a chegada da Usina de Boa
Esperança, e as promessas de melhorias não exatamente lhes traziam a certeza de que tudo
pelo menos voltaria ao jeito que sempre foi, quando não lhes suscitavam o receio de que
muitas coisas poderiam até mesmo piorar.
Ao apresentarmos então essas imagens e discutirmos os objetivos desse trabalho
dos funcionários da COHEBE, vamos remontando tais encontros para entendermos como se
deu a intervenção junto a essas populações humildes, trabalho esse feito em várias frentes
sejam nas áreas urbanas das cidades atingidas, no caso especialmente Guadalupe e Nova
Iorque, e tamm em inúmeras áreas rurais dessas cidades e de outras também pelo lado do
Piauí e do Maranhão.
A seguir apresentamos a outra fotografia feita pelos funcionários da COHEBE.
Esta por acaso se uma assistente social explicando aos moradores de uma localidade rural
as mudanças que estavam ocorrendo.
Nitidamente vemos a funcionária da COHEBE com um quadro na mão, no qual
identificamos o desenho de uma casa. Provavelmente ela estava naquele momento explicando
como seria o processo de recolocação de suas casas em outro local, no caso suas explicações
apresentavam também aos moradores as orientações gerais de como seria essa nova vida a ser
encarado por essas pessoas humildes do campo.
158
Fotografia 13: Reunião com um grupo de moradores da zona rural.
Fonte: COHEBE, 1968b, p. 22.
No caso das fotos anteriores vemos alguns detalhes interessantes, como o destaque
que os funcionários da COHEBE exercem sobre os moradores, e da parte desses últimos
percebemos novamente todos voltados atentamente ao centro da palestra.
No fundo encontra-se provavelmente a proprietária da casa. De frente para o semi-
círculo constituído por populares encontra-se uma funcionária da COHEBE. Na frente e de
costas para o fografo, vemos a figura curiosa de um morador com as mãos na altura da
cintura, provavelmente revelando-se assim uma postura de quem não está muito a vontade
com toda aquela situação.
Dessa forma, identificamos nessas reuniões uma provável incerteza dos moradores
diante das palavras dessas funcionárias que, em suma, apresentavam uma realidade muito
diferente daquela até então vivida por eles.
Além disso, o fato das assistentes sociais e dos engenheiros terem vindos quase
todos de Recife capital de Pernambuco por si só já acarretava um contraste muito grande para
a maioria daquelas pessoas que levavam uma vida extremamente simples. Essa diferenciação
entre funcionários da COHEBE e os moradores é citada por dona Maria do Carmo em um
159
trecho de sua entrevista, e à medida que seguimos em nossa análise percebemos que tal
distanciamento naquele período se fez mais comum do que pensamos.
No entanto, lembramos que nessa mesma fala de dona Maria do Carmo é
ressaltada a importância das assistentes sociais na preparação do povo para as mudanças que
viriam. Para a entrevistada, as reuniões feitas por essas profissionais foram muito necessárias,
e ainda segundo ela, se não tivessem ocorrido tais encontros para esclarecimentos teria sido
muito mais difícil ainda para aquelas pessoas enfrentarem todo esse processo de
transformação.
Ao mesmo tempo, vamos recriando o clima de medo e angústia instalado no seio
da população guadalupense, sendo que todos os moradores falam do sofrimento das pessoas
quando entenderam finalmente nesse cenário o seguinte fato principal: perderiam as suas
casas; a sua cidade inteira iria ser inundada! E, diante dessa perda terrível, restava a eles
serem levados para viverem em outro lugar.
Sobre as tensões dessas pessoas nesse clima de mudanças, dona Maria do Carmo
nos diz que no começo
as pessoas sempre duvidavam, não acreditavam, só conversavam muito.
Todo dia era uma história: ‘Amanhã a água do rio vai chegar!’ Amanhã
outro chegava e dizia: ‘Eu já vou arrumar a minha bagagem, vou
arrumar a minha casa, por que eles dizem que vai chegar amanhã. Era
aquela coisa. [...] Muitas pessoas choravam, muitas, muitas mesmo
choravam. [...] O pessoal também com medo de não ganhar as casas de
volta, e diziam, que vinham pra [Guadalupe nova] depois que a casa
tivesse terminada, que foi exatamente o que a COHEBE fez, depois das
casas todas terminadas no ponto, nós chegamos aqui num teve nenhum
problema, instalação, água, luz, tudo. (MOUSINHO, 2006, grifo nosso).
Vendo o trecho final das palavras de dona Maria do Carmo verificamos que ela
reforça o grupo de defensores dos benefícios ganhos pela cidade com a construção da Usina
de Boa Esperança. No caso de dona Maria do Carmo é um pouco mais compreensivo pelo seu
papel de funcionária contratada pela COHEBE para alfabetizar os trabalhadores durante a
construção da Usina.
Sendo assim, nossa entrevistada fala como defensora do projeto por ter sido
incorporada profissionalmente ao mesmo, mas ao mesmo tempo, ela não deixa de falar como
moradora filha de Guadalupe velha, e nesse sentido pontua algumas críticas de problemas
ocorridos por causa da obra.
160
Posta então nessa condição de moradora que também critica o projeto, dona Maria
do Carmo se diferencia um pouco dos senhores João Alencar e Jociler em alguns pontos, e
nesse sentido, aproximando-se mais dos moradores descontentes com a mudança.
Assim, dona Maria do Carmo faz inicialmente algumas ressalvas sobre a
localização das casas na nova cidade, e sobre a localização da própria Guadalupe nova como
um todo. Todos esses assuntos eram segundo ela, discutidos nas reuniões entre moradores e
funcionários da COHEBE, e sobre esses encontros ela nos conta o seguinte:
A discussão com os vereadores, com os prefeitos, era que os prefeitos
incentivados mesmos pela comunidade, cobravam também muito, só que não
foram atendidos, assim no que diz respeito assim à localização das casas, e
as pessoas também culpavam o prefeito por que o entendiam bem a
história. Aí culpavam muito o prefeito: ‘Que a cidade só ia ser transferida
por que o prefeito era mole! Por que o prefeito num tinha idéia! Por que
o prefeito o podia ir contra! Não dizia nada! Que ninguém num tinha
quem defendesse!’ As discussões eram essas nesse tipo, o prefeito nesse
tempo sofreu muito; (Ibidem, grifo nosso).
Na intenção de resumir o conjunto de opiniões expostas pelos moradores na época,
dona Maria do Carmo nos afirma que a maioria nem era contra e nem era a favor; o que
existiu mesmo foi muita acomodação! Para ela os moradores eram muito acomodados! (Id.
Ibidem).
Dona Maria do Carmo continua nessa sua descrição reflexiva e assim nos diz:
As pessoas nem chegaram assim a pensar muito bem, a levar a coisa assim
muito a sério. A gente num pode dizer assim, fulano era contra. Uma vez a
pessoa estava a favor, depois já estava contra. Depois eu acho que foi bom.
A gente veio pra assim dessa maneira, sem saber realmente dizer;
ninguém certo se aqui [cidade nova] ia ser melhor do que [cidade velha].
Só aquela saudade de deixar, e aquela dúvida também. (Ibidem).
Percebemos então com essas informações passadas pela entrevistada que no rumo
da cidade nova os moradores de Guadalupe imaginavam todo um universo de incertezas,
levando ainda nas suas bagagens todas as suas saudades da velha cidade.
Seguimos com as informações apresentadas por dona Maria do Carmo e sobre o
clima apreensivo dos moradores na cidade velha de Guadalupe durante a mudança para a
cidade nova. Ao mesmo tempo, vamos tentando entender os condicionantes que influíram no
posicionamento passivo da maioria desses moradores.
161
Assim, de um lado, percebemos nesses moradores uma natureza humilde e
totalmente despreparada para tamanhos choques, e de outro lado, vemos a estratégia
operacional dos técnicos da COHEBE.
Então com um planejamento de trabalho bem definido, a COHEBE se direcionava
aos moradores preferencialmente através das assistentes sociais, as quais deveriam, sem
debates contraditórios, preparar os guadalupenses a se portarem como colaboradores do
projeto da Usina de Boa Esperança. Com isso se evitava qualquer interferência desses
mesmos moradores nas decisões da obra, até mesmo em ponderações mais gerais para o
conjunto da obra, como a questão da localização das suas casas.
Essa operacionalização é mesmo bem definida, de um lado estavam as assistentes
sociais tratando junto aos moradores, passando estes a exercerem nessa história o papel de
atingidos pela barragem. E numa frente oposta a esse trabalho das assistentes, estavam os
construtores da hidrelétrica com seus números, suas metas e prazos a cumprir.
A partir dessa interpretação acerca dos comportamentos dos vários funcionários da
COHEBE podemos inclusive imaginar o pensamento da direção desta empresa: As assistentes
cuidam do povo, à medida que estes são distanciados dos debates, e enquanto isso os
engenheiros, técnicos e operários tocam a obra para frente, evitando com isso a interferência
popular nas decisões sobre o curso geral do projeto.
Sobre essa funcionalidade de engenheiros e assistentes sociais, e sobre as
dificuldades de entendimentos entre essas profissionais e os moradores de Guadalupe,
encontramos novamente referência nas palavras de dona Maria do Carmo, a qual afirma:
O povo estava sem saber como reagir, por que não tinha como. Por que aqui
na Barragem, na época da COHEBE, quem era o administrador, o dirigente
era pernambucano, de Recife. Até pra uma integração era difícil, por que
esse pessoal você sabe como é, todo...! A gente se comunicava mais com as
assistentes sociais, havia uma separação assim. (Ibidem).
Além de todas as dificuldades acarretadas pelo choque que provoca a construção
de uma hidrelétrica, o tamanho da obra e principalmente a inundação da cidade, os moradores
de Guadalupe ainda tiveram que se adaptar a dinâmica profissional dos funcionários da
COHEBE com suas discussões unilaterais e os distanciamentos provocados por seus
comportamentos tecnicistas.
Neste ponto do texto, fazemos uma rápida analogia entre o processo de preparação
dos moradores de Guadalupe para a transferência de suas casas, na segunda metade da década
de 1960; e o epidio da intervenção junto à população da Favela Cohebe em Teresina, capital
162
do Piauí, tendo ocorrido isso de meados da década de 1970 até o início da década de 1980, ou
seja, logo após a conclusão da obra de Boa Esperança.
No caso, a principal semelhança que identificamos entre esses dois acontecimentos
de transferências de populações, tanto na área da Boa Esperança, quanto na Favela Cohebe
que se formara na área das Linhas de Transmissão de energia, foi exatamente em relação a
atuação dos técnicos da COHEBE, os quais aparecem, decisivamente com seus contatos e
reuniões, nestes dois processos críticos de tratamento de populações a serem transpostas.
No caso específico da Favela Cohebe, vejamos como a citação a seguir descreve a
atuação desses técnicos da COHEBE:
Era uma preocupação permanente da CHESF [empresa que incorporou a
COHEBE] a desocupação da área. Por isso passou a exercer fortes ameaças
aos moradores e pressão sobre o poder público, cujos representantes,
cautelosamente, interpretavam a situação como um problema social de
grandes dimensões, merecendo, portanto, um tratamento especial. [...] as
primeiras ameaças da CHESF, conforme depoimentos de ex-moradores,
partiram de funcionários da companhia que realizavam serviços de inspeção
na área. Esses agentes, como dizíamos favelados, cotidianamente faziam
ameaças e os amedrontavam usando, de um lado, o argumento da ocupação
ilegal, e, de outro, discorrendo sobre os perigos a que estavam submetidos
por habitarem sob fios de alta teno, o que, de fato, era um risco concreto.
Instalara-se um clima de conflito permanente e de insegurança para as
famílias, face à perspectiva de, a qualquer momento, serem expulsas do
local, visto que as ameaças se tornavam constantes. (LIMA, 1990, p. 67s).
Encontramos neste mesmo texto que trata da Favela COHEBE, uma outra citação
interessante sobre a intervenção das assistentes sociais da COHEBE junto aos moradores
dessa ocupação. Neste caso, assim como no caso das reuniões em Guadalupe, percebemos o
caráter unilateral com que estas profissionais, a mando da empresa, se dirigiam às pessoas
para fazer o “convencimento”.
Quando se deu chegou uma assistente social pra fazer uma reunião com a
gente, dizendo que a D. Miriam tinha conversado com os engenheiros do Rio
de Janeiro e não era mais pra ser daquele jeito, ia ser um conjunto, aí eu aja
dizer pro povo que conjunto não daria certo. Eu não sabia o que significava
conjunto, eu ficava perguntando... Tem que pagar por s e quando vier
os aumentos? E nós para pagar casa, pagar água, luz e para nós comer sem
emprego, sem ter de onde s sobreviver, por que aqui eu tô passando fome
e como eu passando fome um mundo de gente aqui no mesmo sufoco.
(Id. Ibidem, p. 75).
163
Nestes casos quase não se garantiu o direito de contra-argumentação para estas
populações, que em geral eram de pessoas humildes que em boa parte se sentiam desarmadas
para o debate com estas funcionarias.
Ao focalizarmos a atuação da COHEBE, percebemos que esta empresa fez questão
de pontuar algumas diferenças entre os dois casos, os quais, a partir do que pudemos verificar,
foram tratados como sendo de um lado, um caso de desapropriações e indenizações legais por
causa da obra de Boa Esperança em Guadalupe; e na outra vertente um caso de ocupação
indevida de imóveis urbanos da empresa vindo a se formar a Favela Cohebe em Teresina.
Sobre essa posição oficial da COHEBE e novamente sobre a atuação importante dos
funcionários dentro desses processos tensos, encontramos a seguinte citação abaixo:
As invasões de pessoas na área de servidão das linhas sempre aconteceram.
Para resolver o problema, a CHESF utiliza-se do todo de convencimento
pessoal. Atras de técnicos especializados mantém contatos diretos com os
invasores, alertando-lhes não somente sobre a transgressão ao direito de
propriedade, mas também aos riscos de vida ... Esgotadas as possibilidades
de êxito desse todo, então utiliza-se do procedimento judicial. Mas o
que a CHESF chama de convencimento pessoal, para os favelados eram
ameaças, que geravam um clima permanente de tensão e medo. [...] O
espectro da propriedade privada rondava a favela e pairava sobre a cabeça
dos dirigentes da CHESF, desvelando a ‘face humanitária’ do Estado e o
fetiche da propriedade pública. Revelava-se o Estado como detentor privado
dos ‘bens públicos’. (Id. Ibidem, p. 73).
Independente das perceptíveis considerações da COHEBE sobre esses dois casos
de tratamento de populações, o que nos é confirmado pela análise dos dois casos é a
importância da atuação dos funcionários desta empresa no trato com estas populações,
sobretudo no quesito da prática do “convencimento argumentativo junto a estas pessoas para
que os planos da empresa não sejam prejudicados. Além disso, verificamos também nos dois
casos, semelhantes climas de tensão entre os moradores por causa das eminentes retiradas.
Aqui esclarecemos que no caso das desapropriações em Guadalupe, as reações dos
moradores não chegam a esboçar muitas reações, tendo havido apenas algumas resistência
pessoais como os conflitos protagonizados por dona Maria Amélia. Por outro lado, no
episódio da Favela Cohebe, o que não faltaram foram reações individuais e principalmente
coletivas contra as remoções para novas áreas de povoamento.
Continuando a especificidade de nossa análise dos temas específicos de
Guadalupe, encontramos outro ponto importante tocado pelos moradores como sendo
164
prejudicial a Guadalupe, que foi à questão da COHEBE o ter aproveitado a mão-de-obra
dos guadalupenses.
Especificamente sobre este importante ponto, dona Maria do Carmo faz uma fala
bastante forte de reclamação a esse não-aproveitamento dos guadalupenses. Neste caso, ela se
situa como professora que, ao lecionar no canteiro de obras, constatou um nível de formação
muito baixo entre a maioria dos operários, não havendo assim nenhuma justificativa plausível
para a não contratação de mais guadalupenses. Segundo o que defende a entrevistada, a
incorporação desses moradores ao trabalho geral de construção da usina poderia integrar mais
a cidade com o projeto da Boa Esperança.
Outra coisa que o pessoal sentiu muito foi que no início os empregos não
eram para o pessoal daqui. Tinha muita gente de fora, é o que também
abalou muito Guadalupe, por que com muitas pessoas de fora, até medo os
moradores tinham de pessoas que não eram conhecidas, até de vender pra
uma pessoa que não conhecia. Por que deveria ser uma fonte de renda o
comércio, mas a pra essa questão de venda o pessoal temia um pouco por
que num conhecia. (Id. Ibidem).
A entrevistada critica o não aproveitamento da mão-de-obra de Guadalupe e ao
mesmo tempo ilustra novamente a nossa leitura dos estranhamentos ocorridos entre
funcionários da COHEBE e moradores da cidade.
Retornemos a alguns trechos em que os nossos entrevistados falam sobre os
momentos decisivos de todo esse processo de mudanças, o dia da saída. Nesse mesmo mote,
apresentamos essas diversas falas que ilustram um pouco mais as suas reações como
moradores atingidos, o papel das assistentes sociais junto a eles moradores, as reuniões, o dia
da saída definitiva, e a chegada na cidade nova, etc.
Desde já, esclarecemos que ao colhermos essas informações orais, sentimos que
todos esses momentos estão bem vivos na lembrança de todos esses guadalupenses, como
podemos verificar através de suas palavras e gestos expressivos revelados durante as
entrevistas, e aqui expostos a análise.
Continuemos com as falas, por vezes sentimentais, dos moradores de Guadalupe.
Entre essas falas apresentamos logo de início as palavras do senhor Jociler que nos conta
como foi a chegada das águas tomando as casas e seguindo aí da retirada das pessoas com
seus pertences.
Foi levando aos poucos, por que aí quando eles foram fechando mesmo as
últimas, que eu assisti aqui fechando as últimas pedras enormes pra fechar.
165
Rapaz, eu vou te dizer, foi muita luta. A água foi tomando, o povo,
noventa por cento do povo tinha sido transferido pra cá, estavam nas
suas casas, nas suas casas de permuta, e aqueles que não tinham casa em
Guadalupe [Velha], eles tiveram, ganharam aqui em mutirão, as assistentes
sociais acompanharam tudo isso, e o pessoal foi construindo suas casas com
o material que a própria COHEBE ia fornecendo da Guadalupe, e
carregava tudo pra [Guadalupe Nova]. A gente tinha autorizado o pessoal
da COHEBE que podia tirar o material, aqueles que a gente queria, o melhor
a gente trazia, o outro deixava que as pessoas iam aproveitar, o pessoal
dos mutirões, os mais humildes. (PEREIRA, 2006).
Especificamente questionado se assistiu a inundação total da cidade velha de
Guadalupe, o senhor Jociler continua com sua detalhada descrição nos dizendo:
Aquilo é uma coisa que a gente falta nem acreditar! Aqueles momentos
passam assim, depois você pára, e é como se um filme tivesse passando na
sua cabeça. [...] Mas a gente ver a água chegando nas casas; e a gente via
as casas, muitos deles aproveitando o material, carregando e tal; Mas isso é
uma coisa triste! Aí começou a aumentar e foi tomando tudo, a igreja e tudo,
tudo, tudo! A igreja tinha uns trinta metros de altura a sua torre, foi até
construção do meu pai, mais cobriu tudo! [...] Depois que cobriu a gente
num tinha mais acesso. (Ibidem).
O senhor Jociler vai nos contando como foram os momentos finais da cidade velha
de Guadalupe, e ao mesmo tempo ele apresenta mais algumas informações importantes sobre
a vida na cidade velha e o medo das pessoas na transferência. Segundo ele, o medo das
pessoas era principalmente o de perder a sua criação, o seu bode, a sua ovelha, a sua
galinha, é, o seu terreninho e tal, não ter outro e ficar aqui vivendo de quê?! O medo era
esse. (Id Ibidem).
Especialmente ele nos fala sobre as sessões da Câmara Municipal para discutir as
questões pertinentes aos moradores, suas opiniões, expectativas, denúncias de problemas no
tratamento direcionado pela COHEBE, tudo isso dentro do tenso debate geral em torno da
obra.
Nessas reuniões na Câmara foram proporcionadas oportunidades para o debate dos
temas polêmicos, sendo que as divergências ora fluíam, ora não, dependendo da presença de
pessoas mais favoráveis, ou contrárias à obra e à transferência da cidade. Ele enfatiza ainda o
fato de que, nesse período mais difícil do início da obra, ele era vereador na cidade de
Guadalupe Velha.
Então, segundo o senhor Jociler, Nestas reuniões se viram confrontadas opiniões e
interesses pessoais, aflorando ainda as divisões poticas existentes dentro da própria classe
166
política guadalupense, a qual se atônita tendo que defender seus interesses e ao mesmo tempo
responder as demandas de toda a populão nesse momento crítico.
alguns, embora a gente notasse que eram contra, mas num podia se
manifestar por que iam pegar vaia, por que tinha os estudantes chegando ali,
tinha aquele pessoal com outra mentalidade, eno eles tinham que seguir
mais ou menos um padrão, um trabalho de acordo com o desenvolvimento.
Teve algumas dessas sessões da mara que foram bem movimentadas, por
que diziam uma coisa e era contra a vontade de uns, e aquela coisa toda; E
você sabe, vem aquele impacto, aí eles procuraram de todos os meios
mostrar ao povo que tinha trazido beneficio pra nossa região. [...] Fui
vereador de 1962 a 1966, exatamente aquele período pesado da construção
da barragem que eu era um dos fornecedores aqui pra Mendes Júnior.
(Ibidem).
O senhor Jociler a partir desse ponto começa a defender mais firmemente as
vantagens que foram alcançadas na transferência para a nova cidade. À medida que ele segue
nessa descrição da inundação e da mudança para a cidade nova, ele também se identifica
como um colaborador da construção da barragem.
Nesse caso ele explica que a partir de certo período não acompanhou diariamente o
clima de tensão na cidade, tendo deixado lá sua esposa cuidando do comércio pois estava
constantemente viajando da cidade velha para o local da obra. Segundo ele essas viagens eram
constantes por que ele se tornara um dos fornecedores de alimentações para os trabalhadores
das empresas construtoras.
Eu fiquei sempre viajando. O comércio lá, a dona Maria Morena cuidando lá
do comércio, antes da inundação, aquele trabalho que ia toda semana, eu
ia duas vezes, ou três vezes [Guadalupe velha]. [...] Eu era um dos
fornecedores da Mendes Júnior, e da própria COHEBE. tinha época que
eu trabalhava com as duas cantinas, a cinco e a seis, que num tinha hotel,
num tinha nada; As cantinas eram pra fornecer refeições para os
trabalhadores, os peões que trabalhavam na barragem. Num período de
enchente, que o pessoal do Maranhão, aqui do lado que trabalhava, não tava
dando pra atravessar, [...] cheguei a fornecer três mil refeições num dia. É
mais eu mandava comprar carne em todo canto, com um caminhão [...] e um
caminhoneiro, carregava todo tipo de alimento. (Ibidem).
Ao mesmo em que vai falando da grandeza da obra da usina e do ritmo frenético
com que foram se dando os trabalhos, sendo que ele registra a chegada de várias empresas e
milhares de trabalhadores que se instalavam nas imediações de onde estava se construindo a
usina.
167
Este local de apoio à obra era o povoado Coqueiro, local este que logo foi
escolhido também para sediar a nova cidade de Guadalupe. Sobre isso tudo ele nos conta o
seguinte:
Foi desenvolvendo, chegavam tantas firmas, vieram chegando empresas, e a
coisa foi movimentada, aqui foi muito, foi grande o movimento. Logo no
início foram feitos os galpões, feitos pela Mendes Júnior para os seus
funcionários, o pessoal, os trabalhadores. E aquele outro pessoal, os
comerciantes, e uns que vinham explorar; era aqui no Coqueiro. Foi onde
começou a Guadalupe [Nova], foi ali o Coqueiro. (Ibidem).
Ao passo em que ele descreve os sentimentos confusos das pessoas em Guadalupe
velha, ele também vai defendendo as vantagens trazidas pela obra da usina. Nesse sentido ele
tenta explicar o caso do não-aproveitamento e da subutilização do trabalho dos moradores da
cidade, fato este que, segundo ele, só ocorreu por que
o nosso povo num tinha profissão! Era mais acostumado a trabalhar na
lavoura. Pra você ver, na barragem eram os peões mesmo, vinham mais de
fora, os nossos aqui pegou mais foi de vigia, aquela coisa assim. Num tinha
nada assim, num tinha costume de mexer com esse negócio de construção,
então o povo veio mais de fora. Pois bem, quando foi construído, o nosso
povo, os nossos jovens, esses foram quase todos embora, eles chegavam
aqui, mal faziam o primário, e quando era o ginásio o rapaz ia saindo.
(Ibidem).
Também sobre essa questão do não-aproveitamento da mão-de-obra dos
moradores na obra da usina, encontramos também na fala do senhor João Alencar algumas
justificativas semelhantes àquelas emitidas pelo senhor Jociler. Entre os principais
argumentos está a questão da o-experiência e da ausência de formação técnica, além do
que, segundo os nossos dois entrevistados, estes guadalupenses humildes estavam mais
acostumados era mesmo com o trabalho de roça.
O senhor João Alencar acrescenta ainda a acomodação da maioria dos moradores
em não trabalharem para a COHEBE. Mesmo assim ele faz questão de afirmar que alguns
moradores foram integrados na obra pela COHEBE, e que estas pessoas hoje têm uma
situação de vida bastante privilegiada, o que para ele, foram possíveis essas oportunidades
graças à vinda da usina para Guadalupe.
Quando eles chegaram aqui muitos deles num queriam nem trabalhar, que
num sabia, acostumado nesse negócio de roça, depois foram se
atualizando e foram entrando aí. [...] A população da cidade, algumas
168
pessoas que trabalharam, algumas pessoas foram amparadas e hoje moram
em Teresina bem de vida agradeçam a isso aqui. [...] Aproveitou muita
gente, gente que vivia em situação precária, e hoje está rico. (Ibidem).
Notadamente identificamos nessa informação do senhor João Alencar um grupo
muito restrito de moradores de Guadalupe que foram contratados pela COHEBE para
trabalhar na obra, sendo depois efetivados para continuarem trabalhando para esta empresa,
seja na usina em funcionamento, seja nas vilas de funcionários e ainda na Guadalupe Nova.
Prosseguindo em nossa viagem e com o intuito de aprofundar essa nossa narrativa,
direcionamos cada vez mais a nossa atenção àqueles momentos únicos de decisões aceleradas
pela chegada da água na cidade velha no início do mês de novembro de 1967.
Aqui neste ponto do aproveitamento do trabalho dos moradores de Guadalupe
Velha na obra da usina, retornamos aquela fala de dona Maria do Carmo já citada em que ela
reclama desse não-aproveitamento da mão-de-obra.
Continuando em outro trecho da sua fala, vemos o protesto da entrevistada por não
ter a COHEBE aproveitado mais guadalupenses, sendo que para ela, alguns trabalhadores da
construtora Mendes nior, principal empreiteira da obra da Usina de Boa Esperança, o nível
de alfabetização compatível, senão até menor do que o nível escolar de muitos moradores de
Guadalupe Velha.
Lembramos que ela fala na condição de moradora, mas também fala na posição de
educadora contratada pela COHEBE para alfabetizar os trabalhadores que vinham as levas de
fora de Guadalupe para lá trabalhar na obra da usina.
Dona Maria do Carmo então nos conta como foram as suas experiência como
educadora contratada pela COHEBE para alfabetizar esses trabalhadores da obra:
Eu fui contratada para alfabetizar os peões da Mendes Júnior, mas não os
nossos daqui; os que vinham de fora, e que sabiam menos que os nossos
daqui. Que eram chefes; eu até lembro de uma pergunta que eu fiz para um
aluno meu; como era que ele despachava mantimento para um carro se ele
num sabia ler?! Aí ele me disse que ele corria o dedo; ele mandava o pessoal
botar o número das caixas em ordem; e ele saia uma, duas, três, quando era
na três ele sabia. E quer dizer, e era do almoxarifado da Mendes Júnior. [...]
Aproveitar a mão-de-obra que nós tínhamos aqui; o que eu achei negativo
foi isso. Por isso Guadalupe ficou sendo habitada por pessoas de fora; hoje
são guadalupenses. Eu acho que eles achavam que ninguém de Guadalupe
tinha condições. (MOUSINHO, 2006).
Avançando mais em nossa análise da transferência dos moradores de Guadalupe
para uma cidade nova, chegamos a um momento muito especial para os guadalupenses, a
169
considerarmos como o clímax de todo esse processo de transformação causado pela
construção da Usina de Boa Esperança. Esse momento foi exatamente o dia da Procissão da
Mudança da Santa Nossa Senhora de Guadalupe. Foi nesse momento-chave em que os
moradores prepararam-se para deixar definitivamente as suas casas e se mudarem para a nova
cidade.
Essa despedida foi marcada por um sentimento de saudade e sofrimento, um
verdadeiro adeus àquele lugar, que num dia surgiu para todos eles; Que ao longo de tantos e
tantos dias foi o lugar onde todos eles levaram suas vidas com muita luta e com as benções
divinas; E finalmente, o lugar que definitivamente a partir do dia da mudança, lá ficou sendo
tomado pelas águas, passando a existir apenas em suas memórias.
E então, a partir da apresentação cada vez mais aprofundada dos relatos dos nossos
entrevistados, podemos recriar com mais detalhes como foi que ocorreram todos esses
momentos: a inundação, a Procissão da Mudança da Santa Nossa Senhora de Guadalupe, o
transporte dos objetos pessoais e o começo da adaptação da vida na nova cidade de
Guadalupe.
Aqui encontramos novamente o depoimento de dona Maria do Carmo que nos
descreve a chegada das águas inundando a cidade, e a partir daí, intensifica-se a mudança. O
que ela nos conta da seguinte forma:
Vi a casa do meu pai quando a água estava assim na calçada, bem pertinho,
a água do rio alagando. [...] Eu vim com a Santa, a vim com a nossa
Senhora de Guadalupe pra cá. Houve uma procissão, e tinha carros para as
pessoas virem. Mas o pessoal quiseram mais vim a pés. Foi um dia de muito
clamor, por que foi exatamente o dia que a água chegou mais na cidade,
tomou mais as casas. Nesse dia mesmo eu fui lá, foi difícil eu ir lá na casa de
cima do morro, que a gente tinha uns pés de goiaba por lá, uma coisa assim;
por que a água tinha tomado muito, e por que a água tinha tomado o
Cemitério. Muito assim dos entes queridos já estavam debaixo da água! E foi
um dia assim de muita tristeza pra gente! (MOUSINHO, 2006).
A descrição de dona Maria do Carmo, assim como também as falas dos outros
entrevistados, se destaca justamente pela riqueza de detalhes com que é relatado a procissão a
pés que os moradores fizeram entre a cidade velha e a cidade nova, num percurso de
aproximadamente trinta quilômetros trazendo a Santa Nossa Senhora de Guadalupe.
Esta saída da santa representou na verdade o marco final da retirada daquelas
pessoas do seu lugar de vida, como eles mesmos gostam de dizer em suas falas que primeiro
veio a santa, para só depois então virem todas as pessoas.
170
Quem veio primeiro foi a Nossa Senhora de Guadalupe! todo mundo da
cidade veio em procissão deixar. Marcou a saída! Por toda rua que ela
passava a gente dava uma volta. Lembro, foi dia doze de novembro [...] Ela
veio aqui para o João Pinheiro, por que não tinha ainda onde colocar a santa,
num tinha nem igreja! Aí ela ficou aqui no Colégio João Pinheiro. (Ibidem).
Vejamos a importância simlica dada pelos moradores de Guadalupe a
transferência da santa a qual emprestara seu nome para o batismo da cidade de Guadalupe.
Além disso, a imagem que até então repousava incólume no altar da igreja, estava ameaçada
pela inundação, assim como todos na cidade.
A igreja era um dos principais prédios da cidade velha, o mais alto por sinal, e por
esses dias os moradores já viram as águas chegando às suas escadarias. Essa imagem
certamente lhes causaram demasiado impacto, deixando-os muito aflitos quanto a tragédia do
apagamento de partes consideráveis de suas memórias passadas, sem esquecermos das
incertezas que cercavam as suas idéias de futuro.
Deveras impactante é sem dúvidas assistir a todo esse cenário onde a cidade era
atingida pelas águas represadas. Em especial ver se esvaindo aos poucos o núcleo central do
seu cotidiano de sociabilidades, espaço onde se reuniam as pessoas na igreja para as orações e
para as comemorações do festejo municipal, tendo ainda bem ao lado do templo religioso, a
sede da prefeitura/câmara onde eram tomadas as decisões políticas da cidade.
Neste local central estava a principal praça da cidade, configurando-se assim como
uma passagem mais do que obrigatória dos moradores no caminho do rio ou das suas casas.
Lugar especial que, além dos principais prédios da cidade, resguardava muitas das
memórias de convivências desses moradores, e que, nesses dias críticos, comara a ser
coberto por toda aquela água, sem que os moradores pudessem fazer nada para impedir o pior.
Não nos esqueçamos que associado a isso tudo, havia ainda o inseparável sentimento de medo
do que estava por vir na nova cidade.
Sobre esse episódio que foi a Procissão da Mudança da Santa, novamente
reencontramos de forma especial a fala de dona Mundiquinha que, como dona Maria do
Carmo, participou ativamente desse momento marcante.
Assim, com sua narrativa precisa, Dona Mundiquinha nos detalha aqueles
momentos:
s viemos nos carros. Teve uma procissão até ali na Cruzeta, na avenida,
até ali os carros trouxeram a imagem. Dali nós pegamos o adorno e
trouxemos a imagem e botemos bem ali no João Pinheiro [Colégio], por que
num tinha a igreja ainda, aí depois foi feito. Foi uma coisa terrível! Num tô
171
lhe contando que foi um peso pra s tudo, foi um peso muito grande! Nós
começamos a mudar no fim do ano. [...] Aí quando a gente trouxe a imagem
tinha algumas pessoas nas casas, mas aí começou do dia em diante que
nós trouxemos a imagem, no dia doze de novembro, daí em diante começou
a muda. Toda semana vinha caminhão de duas, três, quatro, cinco famílias
de [cidade velha], a semana toda, direto. Eu mesma, no caminhão que eu
vim veio duas famílias, era eu e outra mulher, a bagagem de nós duas. [...]
Eu num sei como foi, a gente olhava, e saia olhando e dizendo assim:
‘Deixar a minha casa pra a água cobrir! [...] Eu me mudei no dia vinte e
nove de novembro de 1967, e nós trouxemos a imagem pra cá no dia doze de
novembro. (ARAÚJO, 2006, grifo nosso).
Abrimos aqui um parêntese para considerar as diferentes datas da procissão que
foram apresentadas pelos moradores. Nesse ínterim, esclarecemos que nem sempre
consideramos essas informações temporais como os fatores mais cruciais para nossa
interpretação.
Mas entendemos que, em determinados casos dentro da análise geral, esses
referenciais de tempo nos permitem contrastar as informações de diferentes fontes, orais e
documentais, por exemplo, servindo por fim o debate das datas como uma contribuição na
tentativa de esclarecer certas pendências de registros históricos, mesmo que para isso nos
deparemos com algumas incertezas do campo da memória.
Especificamente ao vermos os entrevistados descreverem a Procissão da Mudança
da Santa, nos deparamos com duas datas diferentes, uma é o dia oito de novembro e a outra é
o dia doze de novembro, as duas do mesmo ano de 1967.
Percebemos assim, que sobre este ponto certa inquietação entre os moradores
entrevistados sobre a data correta a ser respeitada como a data histórica da mudança da
cidade. Essa reação é, sobretudo, daqueles que desconsideram o dia oito, e afirmam que a data
correta é o dia doze, que, segundo eles, não deveria ser esquecido.
Este é sem vidas um bom exemplo de uma disputa pelo registro oficial dos fatos
histórico, uma disputa pela memória, repercutindo assim esse debate numa verdadeira disputa
social, potica e cultural entre os membros de uma mesma comunidade, para decidir-se quem
fará vencedora a sua versão do passado histórico, conquistando-se com isso uma relevante
autoridade a partir da oficialização da versão vencedora em detrimento da versão de demais
grupos de munícipes, o que não cala nem faz desaparecer aquela memória não oficial, a
memória não registrada do grupo social vencido, que segue viva entre setores sociais da
comunidade.
No caso de dona Mundiquinha, como vimos no trecho logo anterior, ela afirma
categoricamente que o dia exato em que ocorreu a mudança foi o dia doze, e concordando
172
com ela se junta dona Maria do Carmo a qual também não titubeia ao afirmar que o dia doze
foi mesmo o dia em que fizeram a procissão para trazer a santa.
Dona Mundiquinha inclusive questiona a decretação mais recente do que para ela
seria a data errada para o feriado municipal que lembra a Procissão da Santa.
Botaram um feriado no dia oito de novembro dizendo que foi o dia que nós
trouxemos a santa, mas é por que não disseram qual tinha sido o dia, por que
se tem me perguntado, eu tinha dito a data que foi no dia doze de novembro.
Eles num sabiam e botaram o feriado no dia oito de novembro. Por que fazer
o feriado no dia que nós trouxemos a imagem pra cá, mas num foi no dia
oito, foi no dia doze, mas num sabiam, e a pessoa que pesquisou disse
errado. Se tivesse me perguntado eu tinha dito a ele qual foi o dia. (Ibidem).
Neste caso dona Mundiquinha está se referindo de uma recente alteração da data
da mudança da santa em procissão até a cidade nova, data essa que apesar de ser lembrada
pela maioria dos moradores como sendo o dia doze de novembro, fora recentemente alterada
pela mara Municipal de Guadalupe para o dia oito de novembro, ficando este dia por fim
como o feriado municipal para se lembrar do ocorrido da mudança.
o senhor João Alencar, ao se referir ao episódio da Procissão da Mudança da
Santa, confirma que houve a procissão, sendo que a santa veio num carro na frente, e que logo
atrás desse carro com a imagem vieram todos os moradores a pés, e que ele próprio não
participou desse percurso até o final, tendo ele logo voltado até a Guadalupe velha, para no
outro dia ir até a cidade nova ver a santa já posta no colégio. Segundo ele a procissão com a
santa começou no
dia sete de novembro de 1967, chegando aqui no dia oito, essa procissão foi
a . Eu pelo menos vim até um pedaço e voltei. Depois peguei um carro.
Mas o resto veio tudo de pé. E os restos do pessoal vinha nos carros da
COHEBE e no nosso [da prefeitura]. Tiraram à santa por que a água estava
chegando! Saímos dia sete e chegamos dia oito! Saímos de lá dia sete à
tarde, e chegamos aqui dia oito de manhã, mais ou menos. O povo tudo em
pé aí, devagarzinho. E, na hora que começou a tirar gente, aí constantemente
chegava aqui [cidade nova] e voltava, chegava aqui e voltava. (ALENCAR,
2006).
O senhor João Alencar, apesar de não ter participado tão ativamente do ocorrido
como as entrevistadas Mundiquinha e Maria do Carmo, afirma que o dia da procissão foi o dia
oito, mais precisamente ele diz que começou no dia sete e terminou no dia oito, diz
firmemente que a data foi essa dita por ele, data a qual, tempos depois foi oficializada como
feriado municipal.
173
O mais curioso é que a outra data, a do dia doze de novembro a ser considerada
como o dia da Procissão da Mudança da Santa, coincide justamente com a data em que todos
os anos os moradores de Guadalupe comemoravam os festejos da santa.
E mais, essa mesma data fora inclusive declarada logo dois anos após a saída final
da cidade velha, como sendo, este dia doze de novembro, o dia do feriado municipal
especialmente reservado para a realização dos festejos da santa e também para lembrança da
transferência da mesma para a cidade nova.
Essa oficialização se deu através do Decreto-Lei Municipal 4/1969, de 11 de
dezembro de 1969, sancionado pelo próprio senhor João Alencar quando esta era prefeito,
contrariando assim um pouco as informações passadas por ele mesmo em seu depoimento.
(PREFEITURA MUNICIPAL DE GUADALUPE. Livro de Registro de Decretos-leis.
Livro-Ata (1955). Guadalupe, 11/12/1969, p. 83).
Para compor finalmente a polêmica das datas da mudança, a Câmara Municipal de
Guadalupe mais recentemente modificou a data que já era definida como sendo o dia doze, e
estabeleceu finalmente a data do dia oito, como se refere o senhor João Alencar,
permanecendo ate hoje esta última data como sendo a data da mudaa.
É exatamente essa recente mudança que é prontamente questionada por dona
Mundiquinha e pela maioria dos moradores, sobretudo pelas moradoras que participaram
ativamente desse acontecimento.
Sobre essa questão da data da Procissão da Mudaa da Santa para a cidade nova,
consideremos finalmente as palavras do senhor Jociler, que, sobre esses momentos
importantes da saída da Guadalupe velha, afirma o seguinte:
Tanta gente que chorou naquela despedida, no dia doze de novembro que é a
data de Guadalupe, quando eu fui prefeito foi criada essa lei pra ficar o dia
da transferência do município, doze de novembro. Mas eles depois
votaram oito de novembro. Esse oito de novembro era registrado lá, mas no
dia doze de novembro foi que veio, aqueles dezesseis carros, vinham
conduzindo a Santa Nossa Senhora de Guadalupe, e a primeira missa foi
celebrada ali no João Pinheiro [Colégio], celebrada até pelo José de Anchieta
que foi padre em Floriano. (PEREIRA, 2006).
Então, diante dos testemunhos da maioria dos nossos entrevistados, e da
importância das informações passadas por essa maioria que participou ativamente daquela
marcante despedida, somos impelidos a optar finalmente pela consideração dia doze de
novembro de 1967 como sendo a data mais correta do acontecimento da Procissão da
174
Mudança da Santa, mesmo sabendo que para uma definição mais definitiva e correta dever-
se-á fazer um levantamento bem mais total do conjunto de fontes documentais e orais.
Entretanto, ainda sobre esse desencontro na datão do episódio da Procissão da
Mudança da Santa, e até mesmo independente do grau de participação de cada um neste
evento, o importante mesmo é que todos eles expressam, com mais ou menos detalhes, os
mesmos sentimentos de importância e/ou de tristeza em relação ao ato marcante da condução
da santa para a cidade nova, destacando-se ainda a condição de fragilidade latente da maioria
dos moradores naquela inevitável transferência.
Falando em temas delicados relacionados à transferência da cidade, certamente um
deles foi a submersão do Cemitério da cidade e com isso a perda definitiva daquele lugar que
reunia guardava os restos mortais de familiares e amigos dos moradores, significando assim
um dos lugares da memória da cidade velha e que também se perdia com a chegada das águas.
Sobre essa questão por demais sofrida para eles moradores, a água inundando a
cidade, submergindo as casas, prédios e até mesmo o cemitério, sentindo-se assim os
moradores absolutamente sem ação por não quererem mexer nas sepulturas o que era
considerado como uma verdadeira violação.
E ao mesmo tempo, a partir daquele momento, eles tinham que se acostumar com
a iia de não poderem mais ter resguardado aquele lugar de tanto valor emocional e histórico
para eles todos, atingindo no fundo dos seus sentimentos durante a despedida final também
desse lugar onde se guardavam os seus entes queridos falecidos.
A única exceção nessa questão do Cemitério foi o senhor João Alencar, que de
uma forma decidida e até desprendida, resolveu remover deste Cemitério de Guadalupe Velha
cinco sepulturas de familiares e amigos seus, e relocalizando estas sepulturas numa
propriedade rural de sua família.
Vejamos como o senhor João Alencar narra essa questão delicada, pouco
comentada pelos outros entrevistados, e que ele trata de uma forma muito tranqüila.
Eu trouxe cinco pessoas enterradas lá. Trouxe pra Boa Vista [fazenda.]
Minha mãe Marcolina Alencar eu trouxe; Alaíde Alencar que era minha
sobrinha, e que era esposa do Zé do Vital. Trouxe a Maria Pereira; Trouxe a
Teresa; e trouxe um escrivão, Milton José de Sousa; era muito amigo da
gente. Trouxe cinco; e botei no cemitério da Boa Vista. Está lá, o cemitério.
Mamãe está enterrada lá. O Elísio, o José, todo mundo foi...; Ninguém quis!
[...] Eu botei na Boa Vista. Ficar pra sempre debaixo dessa água!
(ALENCAR, 2006).
175
Sobre o cemitério, o qual marcava a entrada da cidade velha, lembramos aqui
novamente do nosso personagem inicial, o vaqueiro que relata exatamente o final de sua
viagem na chegada ao cemitério na entrada de Guadalupe Velha. Interessante se torna
também, identificarmos que especificamente esse tipo de lugar povoa as memórias e também
as histórias de lendas e fantasmas que compõem a cultura popular espalhada viva em quase
todas as cidades.
Ainda sobre o momento da mudança, vejamos o caso específico de dona Maria
Amélia que por o ter podido participar da procissão com a santa ela expressa em seu
depoimento um doloroso lamento, pondo-se inclusive a nos explicar o porquê de sua
ausência.
Ao mesmo tempo em que ela retrata a tristeza e o seu trauma no ocorrido da
mudança, deixando escapar que também por o ter assistido a esse momento tão marcante de
despedida da velha cidade, as suas críticas direcionadas aos funciorios da COHEBE, se
tornaram cada vez mais ferozes.
Sobre isso tudo dona Maria Amélia faz uma narrativa contínua, e que apesar de ser
um pouco longa, ela se fez extremamente necessária e importante para entendermos com mais
detalhes o universo do sofrimento dessas pessoas que se sentiam desalojadas e arrasadas por
estarem vivendo aqueles dias em que as suas casas, a sua cidade e as suas memórias estavam
sendo deixadas para trás para serem consumidas pelas águas.
Vejamos então este detalhado trecho da fala de dona Maria Amélia:
s sofremos muito por que a saudade que s sentimos. [cidade
velha] nós nhamos tudo minha gente. Na minha casa mesmo era fartura
mais linda do mundo. Meu quintal tinha de tudo, laranja; quando a gente saiu
pra cá ficou os pés de laranja, isso estava a coisa mais linda do mundo.
Pessoal ia trazer, [eu disse:] ‘Gente num tragam pra mim não que eu não
quero não, num quero mais ver essas coisas!’ Eu quase num saio de lá, eu
tive que vim em carro particular, eu não pude me entrar nesses caminhões
que vieram pegar. Quando foi no último dia que era pra mudar a Nossa
Senhora de Guadalupe pra cá, eu estava em Teresina e estava com a
passagem tirada, mas amanheci com papeira e aí não pude vim não! Eu não
assisti essa parte da transmissão da virgem de Guadalupe pra essa
cidade, eu o assisti! Quando eu cheguei ela não existia mais em
Guadalupe [Velha]! Eu quase me acabo de chorar! Oh criatura, foi uma
tristeza, foi uma saudade! Aí eu me revoltei com meus ‘trens’ tudo
desarrumado dentro de casa, pra vim transportar para cá. Ah mais estava
tudo diferente, tinha mais nada não. O povo estava tudo saindo, eu fui das
últimas que saiu, ainda foram me buscar, e eu disse: ‘Eu não vou nesse carro
com esse pessoal de jeito nenhum, eu vou ficar mesmo aqui, ninguém vai me
tirar daqui não, só Deus! Aí foram me acalmando, me acalmando, me dando
chá e eu chorando muito, até que graças a Deus me trouxeram pra cá.
176
(FONSECA, 2006, grifo nosso).
O comentário em tom de desabafo de dona Maria Amélia é por demais interessante
por que enfatiza a importância simbólica que estes moradores atribuem à transferência da
santa padroeira da cidade de Guadalupe, pois até alguns moradores que não puderam
participar da Procissão da Mudança, como é o caso de dona Maria Amélia, todos eles
consideram esse momento como sendo o mais triste de sua retirada.
Para dona Maria Amélia o sortilégio de não ter podido participar de um momento
tão representativo como esse, representou mais um duro golpe sofrido, certamente o pior a
notar pela sua reação desesperadora ao chegar e não encontrar mais a santa padroeira, com a
qual os moradores haviam batizado a cidade velha.
O que percebemos na fala de dona Maria Amélia é que essa infelicidade do
desencontro com o momento da Procissão da Mudança da Santa, reforçou em muito a sua
descrença pessoal para com as promessas de melhorias a serem alcançadas com construção da
usina e a transfencia para a cidade nova, aumentando inclusive com isso o grau de
agressividade das suas opiniões de contrariedade à transferência, e de críticas a obra de uma
maneira geral.
Deste ponto em diante rumamos ao ponto culminante de nosso texto ao
começarmos a tocar finalmente na chegada dos moradores na cidade nova de Guadalupe,
cidade toda projetada e quase toda construída pela COHEBE, sendo que coube aos
funcionários desta empresa definir os critérios para quase todos os aspectos da nova vida a ser
levada pelos moradores, os quais, e segundo eles próprios dizem nas entrevistas, os
funcionários diziam nas reuniões que na cidade nova se viveria de acordo com os patamares
compatíveis para uma vida numa cidade moderna.
Quase tudo fora projetado na cidade de Guadalupe Nova, desde os espaços físicos
todos construídos seguindo estritas regras de tamanho e de localização, até os costumes dos
moradores que a partir desse momento passaram a ser diuturnamente instrdos, vivendo-se
segundo alguns moradores sob um regime de verdadeira vigilância executada por parte dos
funcionários da COHEBE.
Para ilustrarmos com riqueza de detalhes essa chegada e o início dessa nova vida
na cidade de Guadalupe Nova, continuemos com o relato carregado de emoções de dona
Maria Amélia, que faz nesse trecho da entrevista uma fala quase sem pausas.
Quando eu cheguei aqui, pra transportar o tanto de roseira que tinha em
177
jarro e tanta planta, que eu tinha três jardins [cidade velha], a coisa mais
linda do mundo! E quando eu cheguei aqui [cidade nova], aqui era tudo
mato, num valia nada! Entregaram essa cidade pra nós como que a
gente fosse algum ANIMAL! Que eu acabei com a vida deles! Eles num
gostavam de mim nas reuniões! Aqui o tinha muro, aqui não tinha nada!
Aí a gente foi fazer tudo. Quando foi de manhã, meu Deus eterno, num tinha
mais uma planta, os jumentos vieram e comeram tudo! Oh meu filho eu
quase enlouqueci, minha tristeza dobrou! o tinha água ainda pra s!
Tinham água de cisterna, eu fui ao menos tomar um gole, quase boto as
tripas de vomitar! Meu Deus eterno o quê que é feito de mim nesse lugar!
Valha meu Senhor Jesus Cristo! Tivemos que apanhar água do rio e trazer
pra s, por que ainda num tinha tratamento de água; e quando começou,
que foi a limpeza dessa água com esse cloro, rapaz botaram demais, muita
gente quase botava as tripas. foi chamado a atenção; foi que diminuiu,
a gente foi se acostumando; mas eu ainda hoje não me acostumei. [...]
Vo olhava por aqui tinha mato, um sofrimento muito grande! (Ibidem,
grifo nosso).
Como podemos perceber, as falas da maioria dos moradores, que vinham sendo
emitidas em tons de medo e desconfiança, agora se declaram mais abertamente com críticas e
reflexões acerca do que consideraram como errado nesse processo, e o que teria faltado de
assistência a eles nesses momentos tempestuosos em que eles foram obrigados a fazer dois
sacrifícios, o de assistir sua primeira cidade ser tomada pelas águas, e o de se adaptarem
rapidamente a uma vida quase que totalmente nova na cidade construída pela COHEBE.
Logo aqui começamos com as falas dos moradores questionando a escolha do
local onde fora construída a cidade nova de Guadalupe. Segundo os entrevistados esse lugar
era na verdade uma mata fechada de chapada, tendo sido derrubada a maioria das árvores
acertando o terreno para se construírem as casas, permanecendo este lugar com características
naturais que dificultou a ocupação humana por muitos anos durante o começo da nova cidade.
Aqui voltamos a uma discussão feita anteriormente por alguns entrevistados de
que não houve sintonia entre as reações da maioria dos moradores e os discursos, inovadores
e planificados, dos funcionários da COHEBE, nem tampouco houve ainda espaço nas
reuniões para que os moradores se expressassem com liberdade, sendo que todo esse
desencontro acabou por provocar entre os moradores mal-estares ao chegarem à cidade nova.
Alguns exemplos dessa polêmica são as falas das senhoras Maria Amélia, Maria
do Carmo, e Mundiquinha, as quais falam com argumentos e posições diferentes do mesmo
tema da insatisfação dos moradores ao chegarem à nova cidade, começando tudo lá na saída
da cidade velha que estava sendo inundada, e continuando o sofrimento na nova cidade.
Sobre essa informação de alguns entrevistados de que o local da nova cidade era
uma área de mata fechada, direcionamo-nos a um recente trabalho de pesquisa sobre a
178
construção da Usina de Boa Esperança em Guadalupe, feito pelo jovem pesquisador
guadalupense Carlos Morais. (MORAIS, [200-?b]).
Neste trabalho de pesquisa, num trecho que fala justamente da construção da nova
cidade de Guadalupe e da transferência dos seus moradores para este local até então
inabitável, encontramos uma foto que, apesar de não conter legenda específica, nitidamente
mostra-nos funcionários no comando de tratores derrubando árvores e limpando uma área de
mata fechada, provavelmente onde se construiria a cidade de Guadalupe Nova bem próximo
ao local onde de construção da usina. (Id. Ibidem, p. 29).
Vejamos então a seguir essa foto bastante ilustrativa das informações apresentadas
pelos nossos entrevistados sobre as condições desse lugar onde foi localizada a cidade de
Guadalupe Nova.
Fotografia 14: Tratores a serviço da COHEBE derrubando a mata fechada no local onde se construiria
a cidade de Guadalupe
Fonte: MORAIS, [200-?b], p. 44.
Sobre essa questão do local escolhido para a construção da nova cidade de
Guadalupe, a fala anterior de dona Maria Amélia é uma das mais expressivas quanto à
expressão das revoltas dos moradores por terem saído de sua cidade, aquele pequeno e
179
humilde lugar, que, na opinião dela e de outros entrevistados, já tinha tudo organizado nos
seus devidos lugares.
Assim, de acordo com essas opiniões, Guadalupe Velha era sim uma cidade
pequena onde os moradores levavam uma vida simples, mas , se tinha uma estrutura
política, econômica e social consolidada, exatamente as características mais importantes que
uma cidade pode oferecer as pessoas que nela vivem, e são essas características que não
foram encontradas pelos entrevistados na cidade de Guadalupe Nova.
Então, segundo os entrevistados, após a traumatizante saída da cidade velha, eles
chegaram nesta nova cidade onde, de início, foi muito difícil se adequarem aos novos espaços
urbanos, levantando assim um questionamento muito pertinente quanto aos critérios com que
foram estabelecidos estes espaços, as ruas, os prédios públicos, os comércios, todos esses
espaços estavam agora dispostos sob rígidos critérios e em áreas pré-estabelecidas pela planta
da cidade.
As casas, os seus desenhos e as delimitações dos seus espaços privados, e até
mesmo as relações de vizinhança, foi tudo alterado, havendo agora nessa nova cidade a
necessidade de um reinício do processo de socialização e de habituamento com os espaços
redefinidos.
Sobre essa questão da mudança de vizinhos, da falta de privacidade nas casas sem
muros da cidade nova, e de outros problemas enfrentados pelos moradores na chegada na
cidade nova, dona Maria do Carmo nos conta o seguinte:
Aqui no começo num tinha muro, as casas eram tudo soltas. Era aqui uma
casa, bem aqui outra, se via tudo que o outro fazia. [...] o meu vizinho de
era um, aqui foi outro completamente diferente, que morava distante de
mim. E aí, além de tudo, ainda ter que se relacionar até com o próprio
vizinho que veio de lá. E às vezes até desavenças de um com o outro.
Começar a plantar tudo, num tinha nem um pezinho de erva pra fazer um
chá; Era uma chapada mesmo! Mato; Mato mesmo! (MOUSINHO, 2006,
grifo nosso).
Como vemos o que não faltam são observações sobre a dificuldade enfrentada
pelos moradores no começo dessa nova vida na Guadalupe Nova.
Um pouco mais a frente, encontramos também as palavras de dona Mundiquinha
que, no mesmo sentido dos depoimentos de dona Maria Amélia e de dona Maria do Carmo,
mas num grau muito relevante de detalhamento, nos fala dos problemas enfrentados pelos
moradores naquele momento da chegada na nova cidade e do começo da nova vida nesse
lugar que em grande parte, era muito estranho para a maioria dos moradores da velha cidade.
180
Assim dona Mundiquinha nos fala do início da vida na Guadalupe Nova:
Quando nós chegamos aqui [cidade nova], só tinha as casas e mato! [...] isso
aqui só tinha essas casas aqui. Por ali num tinha casa; essas casas que tem
para aquele lado ali, num tinha. Aquilo ali tudinho, tudinho, tudinho era
mato. Rapaz, aqui tinha unicamente cobra! [...] Esse lugar aqui era
contaminado de todo inseto, de cobra, de formiga, e tudo no mundo! Por
que isso aqui era só mata! (ARAÚJO, 2006, grifo nosso).
De acordo com as palavras de dona Mundiquinha, este lugar onde foi construída a
cidade nova era bastante impróprio para se viver, sobretudo pela natureza ainda selvagem do
terreno que permitia o contato dos moradores com os bichos que ainda existiam lá no início
do povoamento.
Para preenchermos mais ainda a nossa percepção dos fatos ocorridos em
Guadalupe nessa época, e para entendermos como foram a transferência e a chegada para uma
vida bem diferente na nova cidade, apresentamos a seguir uma outra foto que traz para nós a
imagem das novas casas construídas pela COHEBE.
Vemos então as casas pelo meio das árvores, numa mostra bem emblemática do
argumento levantado por alguns dos entrevistados de que o local onde foi construída a cidade
nova era impróprio exatamente por ser parte de uma mata fechada.
Então, apesar de ter havido um desmatamento intenso nesse local durante o
processo de construção da nova cidade, constatamos que a COHEBE relocalizou os
moradores numa cidade inacabada, o que se percebe facilmente nesta imagem logo abaixo em
que vemos as casas pelo meio das árvores.
181
Fotografia 15: Casas construídas pela COHEBE.
Fonte: MORAIS, [200-?/b.], p. 45.
A imagem que vimos nos permite entendermos um pouco a insatisfação dos
moradores quanto à localização da cidade nova, a disposição imprópria das casas, e ainda no
início dessa ocupação as mencionadas deficiências na estrutura da cidade como foi o caso da
falta de água potável.
Como poderiam esses moradores achar tudo isso muito normal, se eles foram
retirados do seu lugar de vivencia histórica, onde tudo havia se arranjado, de maneira simples
é verdade, mas sempre com a participação ativa deles no processo de construção, desde o seu
início em 1926, até o seu fim com a inundação em 1967-1968, tudo fora ajeitado segundo
as perspectivas e as necessidades daqueles que faziam a cidade viver.
Nesse sentido, à medida que as entrevistas seguiam e tocavam nesse ponto do
início da vida na cidade de Guadalupe Nova, fomos sentindo a insatisfação da maioria dos
entrevistados e as opiniões não menos raras sobre todos esses problemas, os quais foram
agravados pela falta de escolhas em todo esse processo de mudança.
Tais escolhas deveriam ter sido discutidas naquelas reuniões organizadas pelos
funcionários da COHEBE, o que não ocorreu evidentemente pela unilateralidade daqueles
debates em que prevalecia apenas a propaganda dos benefícios futuros.
182
O que poderia ser considerado até mesmo como sendo uma tentativa de
arborização natural da cidade, logo é questionada pelos moradores como sendo inviável por se
tratarem de uma vegetação típica da chapada, encontrando-se assim algumas árvores
inadequadas para o espaço urbano, como é o caso da cagaita”, árvore típica da vegetação do
Piauí e que tem frutos impróprios para o consumo humano.
Neste caso, quem exemplifica essa questão é mais uma vez dona Maria Amélia
que afirma em sua entrevista ter sido deixado uma árvore dessas (cagaita) no terreiro de sua
casa, e que num dia acidentalmente as suas crianças consumiram alguns desses frutos
impróprios e passaram muito mal, tendo que serem tratados para poderem melhorar.
(FONSECA, 2006).
Depois desses instantes das impressões iniciais dos moradores na chegada na nova
cidade, estas pessoas passaram a enfrentar o desafio de reconstruir as suas vidas, surgindo
também outros pontos de estranhamento e de conflitos com a estrutura da cidade e com os
funcionários da COHEBE.
Segundo as informações dos entrevistados, esses funcionários, bastante presentes
nos anos finais da cidade velha, agora, nesta cidade toda projetada, passaram a atuar mais
ostensivamente junto aos moradores, seja para controlar o ajuda de custo dada pela empresa
ao moradores no início da vida na nova cidade, seja pelas constantes orientações que
chegaram a ter um caráter de vigilância.
Sobre os problemas da cidade de Guadalupe Nova, o aproveitamento de materiais
da velha cidade, e sobre as vigilantes orientações em relação aos costumes sociais blicos e
privados na cidade nova, retomamos as palavras de dona Mundiquinha que nos descreve esta
cidade nova assim:
Eram só as casas, só essas casinhas, num tinha muro, num tinha quintal, num
tinha nada. E as exigências delas é que não era pra fazer o quintal, não era
pra cercar de madeira, nem de talo, nem de nada, e não era pra criar nem
galinha! [...] Por que é cidade! Não era pra criar! Mas a gente criava
assim mesmo! [...] Aí a gente foi fazendo e desmanchando, por que tinha as
fiscais pra fiscalizar como é que a gente estava fazendo. Aí a gente fazia, e a
vizinha dizia não, não é por aqui; desmancha, faz por onde?! Mas eles deram
muito material das casas de lá [cidade velha]. (ARAÚJO, 2006, grifo nosso)
Para nós, fica claro que a cidade de Guadalupe Nova era para ser totalmente
diferente daquela humilde cidade velha, a qual deveria ser deixada para trás sem nenhum
remorso por parte dos moradores, devendo estes olharem somente para frente, e seguirem
assim as suas vidas a partir desse momento incorporando novos hábitos e costumes sociais.
183
Para que toda essa mudança fosse bem sucedida, os funciorios da COHEBE,
especialmente as assistentes sociais, a partir da chegada na nova cidade, estiveram bem
presentes no dia-a-dia dos moradores não orientando, mas agora também fiscalizando a
efetiva assimilação dos novos costumes.
No entanto sobre isso, dona Mundiquinha termina por esclarecer que num sabe se
essa fiscalização era repassada por esses funcionários ou pelos próprios moradores
apreensivos em seguir direitinho as regras da nova cidade. Então ela nos diz o seguinte:
Ninguém num sabe se foram eles [moradores] que disseram, ou foram os
fiscais que ficaram fiscalizando as casas, assim, para determinar, dizer como
era pra fazer quintal, como era o quintal. surgiu essa história, mas
ninguém num sabe se era verdade. (Ibidem).
Dona Mundiquinha prossegue em sua rica narrativa contando-nos mais e mais
sobre essa chegada conflituosa na Guadalupe Nova, e o mais interessante é que ela, assim
como os outros entrevistados também, a cada nova revelação vai compondo as suas falas com
emoções fortes e que até então estavam guardadas na suas intimidades mais recônditas.
A partir desse momento de liberdade narrativa, os entrevistados deixam serem
reveladas algumas particularidades das suas vidas, podendo inclusive permitir-se transportar
mentalmente até ao passado, num verdadeiro e admirável exercício de reconstrução daqueles
momentos vividos por eles tempos atrás.
No caso de dona Mundiquinha, depois de estarmos sentados com ela por algumas
dezenas de minutos no terraço de sua casa realizando a entrevista para esta pesquisa,
passamos, nesse determinado momento de empolgação pessoal da entrevistada, a nos
sentirmos não mais apenas como um pesquisador-entrevistador, mas muito mais forte do que
esse papel, passamos a estarmos ao lado de dona Mundiquinha como felizes expectadores de
suas maravilhosas descrições narrativas.
Assim, ela de lá mesmo da varanda de sua casa, assume o lugar de excepcional
narradora histórica, e com isso, parece se transportar até o passado, de onde ela retorna com
tantas e tantas informações interessantes, tantos e tantos detalhes saborosos que além de nos
servem generosamente a nossa atividade de pesquisa, a nós revelam-se esses trechos de vidas
como deliciosos pedaços de um quebra-cabeça que nos desafia e ao mesmo tempo nos realiza
laboriosamente.
Mais maravilhoso ainda foi ter esta mesma felicidade ao lado também dos outros
entrevistados, os quais, aliás, coincidentemente também nos concederam as entrevistas
184
sentados todos nas varandas de suas casas, lugares estes que marcam o início, e por onde se
faz a entrada e a saída das casas.
Neste caso estes terraços onde eles se puseram a viajar rumo ao passado,
gesticulando à medida que compunham suas falas, representam assim este ponto de especial
de demarcação da fronteira do espaço doméstico ou mesmo um lugar de repouso dominical.
Mas, principalmente no caso de nossos entrevistados, este foi o lugar privilegiado de
observação do mundo fora das casas, pelo menos durante os momentos em que a entrevista
transcorreu.
A exceção sobre esses lugares de entrevista descritos, seria dona Maria do Carmo
que pôde nos receber na escola onde trabalha, o que é claro não prejudicou em absoluto o
seu depoimento, pelo contrário, contribuiu em muito a fluidez de seu depoimento, haja vista
que a mesma se configura como sendo uma das mais importantes professoras da cidade, isso
desde o seu começo de carreira já próximo da construção da usina em Guadalupe, sendo que o
fato de ainda está na ativa fortalece mais ainda as suas interpretações descritivas.
Fazemos esse rápido comentário apenas para pessoalmente nos lembrarmos dos
momentos especiais que constituem uma série de entrevistas para um trabalho de pesquisa
como esse. Nesse sentido, a remontagem da meria reflexiva do próprio pesquisador social
contribui positivamente na reconstrução do texto escrito, ajudando assim a repassarmos com
mais clareza as informações contadas pelos nossos entrevistados.
Continuemos então a descrever, a partir dos testemunhos dos moradores
entrevistados, os novos padrões de vida a que eles foram obrigados a se adaptarem na cidade
de Guadalupe Nova.
Sobre isso prosseguimos então com dona Maria Amélia falando sobre as casas,
especificamente sobre o desenho e o tamanho das habitações consideradas pela entrevistada
como sendo muito diferentes das casas da cidade velha o que causava estranhamentos, além
de serem mal-acabadas, constituindo-se assim a sua principal crítica as construções feitas pela
COHEBE.
Suas queixas são tamanhas e carregadas de tanta revolta, que dona Maria Amélia
termina por apelidar essas casas novas de arapucas arranhadas por fora. Acompanhemos
então na fala essas considerações da entrevistada:
Além dessas reclamações sobre a estrutura das casas, outro tema que traz a tona
varias queixas dos moradores, é o problema do enfraquecimento do comércio, o qual fora
afetado durante a construção pela vinda de concorrentes de vários lugares do estado e até do
pais, não havendo assim uma preparação dos comerciantes guadalupenses para a concorrência
185
com estes comerciantes que não eram da cidade e que operavam seus negócios de acordo
com orientações mais agressivas, seja pelo lado do capital, seja pela oferta de produtos novos,
aguçada essa oferta por uma demanda consumista também diferenciada.
As a chegada na cidade de Guadalupe Nova, os comerciantes guadalupenses
sentiram de forma mais direta essa concorrência agressiva e esse contraste entre o ritmo e o
padrão de comércio que havia na cidade velha, e este comércio diferente que se
intensificava na cidade nova com o prosseguimento da obra.
Essa problemática do enfraquecimento do comércio é tocada por alguns
entrevistados, e até mesmo o senhor Jociler que foi um dos principais defensores dos
benefícios que o projeto da Usina de Boa Esperança trouxe para Guadalupe, também faz
algumas críticas pontuais, especificamente em relação à crise sofrida pelo comércio
guadalupense no início da vida na nova cidade.
No meu caso, que eu tinha a moageira de café, tinha um comércio bem
regular. Para aqui foi completamente diferente, era diferente. Por que o
café eu tirei aqui em condição de fazer com que até pudesse fornecer pra
outras cidades; por que aí foi logo, fez outras cidades, tomou de conta. Aqui
a gente ficou imprensadinho, num tinha o capital maior. O nosso comércio,
quem tinha comércio quase não prosperou aqui, por que foi um impacto
assim completamente diferente, a vida era outra. Então o pessoal da CHESF,
dessa primeira COHEBE, num ia fazer compra aqui em Guadalupe, ia fazer
compra fora, então o dinheiro num circulava quase aqui, aquelas
coisinhas. Naquele tempo num tinha um aposentado, num tinha aquelas
coisas. Então as coisas eram mais difíceis. A cidade sofreu, inicialmente
sofreu. (PEREIRA, 2006).
Dona Maria do Carmo também confirma a fala anterior do senhor Jociler sobre
essa opção dos funcionários da COHEBE em o comprar mercadorias nos comércios dos
guadalupenses. Segundo ela a COHEBE inclusive disponibilizava um ônibus pra levar o
pessoal pra fazer a feira em Floriano. O comércio era fora! (MOUSINHO, 2006).
Dona Maria Amélia também fala sobre o prejuízo para os comerciantes de
Guadalupe, e numa outra passagem de sua entrevista e nos narra um episódio interessante em
que ela se dirige aos funciorios da COHEBE de Guadalupe, os quais eram encarregados
pelos serviços de acompanhamento junto aos moradores e de acabamentos nas estruturas
físicas da cidade.
Assim, ela nos conta que resolveu aproveitar uma visita dos diretores da COHEBE
até Guadalupe para inspecionar as obras, e nessa oportunidade apresentou suas reivindicações
diretamente ao presidente da empresa, o senhor César Cals.
186
Entre as principais reclamações de dona Maria Amélia estava justamente a questão
da crise que havia se abatido sobre os comerciantes de Guadalupe, os quais, após a mudança
amargavam problemas, desde o trauma da transferência, passando pelo destratamento dos
funcionários, e finalmente as obras inacabadas da cidade que também prejudicavam o
comércio guadalupense.
Ao contar esse episódio, a entrevistada Maria Amélia narra os diálogos que fez
com o senhor César Cals, sendo que de acordo com sua fala, os seus reclames foram
prontamente atendidos.
Quando foi pra fazer um ponto de comércio, nós tínhamos um ponto de
comércio, e aí meu Deus do céu, meu ponto de comércio num saía, botaram
nós no mercado, que o mercado era o mal feito que caía água, molhava o
açúcar, molhava tudo, acabava com tudo. Aí, doutor César Cals ia chegar e
eu digo: ‘Tenho minha credencial, que eu sou tabeliã, é agora que eu vou
falar com ele; [...] Eles vieram tudinho, era engenheiro que eu num sei de
onde saiu tanto. (FONSECA, 2006).
Dona Maria Amélia segue na sua narrativa e chega finalmente ao momento em que
trocou algumas palavras com o próprio presidente da COHEBE, o Major Engenheiro do
Exército César Cals, com o qual a entrevistada teve a oportunidade de expor algumas de suas
queixas e pedidos.
eu disse assim: Eu peço aos senhores que parem um pouco, está aqui a
minha credencial de tabeliã pública de Guadalupe.’ Ele [Sr. sar Cals],
olhou e disse: ‘Sim, senhora!’ [Eu respondi:] ‘Eu quero falar realmente com
o senhor, fico muito agradecida e peço que o senhor me ajude. Eu vim lhe
pedir meu ponto de comércio que foi credenciado pra mim receber, pra botar
meu comércio que eu tinha em Guadalupe [velha] e não recebi. s estamos
aqui com nosso comércio no mercado e está molhando tudo, a gente o
pode nem comerciar, além do comércio daqui está muito ruim, por que tudo
a Mendes Júnior [construtora] tem seus armazéns e fica muito difícil pra nós;
e ainda está molhando o resto pouco que nós temos.’ (Ibidem).
De acordo com a descrição feita do acontecido, dona Maria Amélia tomou a frente
da comitiva de autoridades ligadas a COHEBE e expôs em praça pública alguns dos
problemas que atingiam os moradores de Guadalupe.
É bem verdade que no caso da reclamação descrita, ela concentrou suas exigências
na solução de problemas mais específicos dos comerciantes, categoria a qual ela fazia parte.
Mas, por outro lado, ela sugere certo grau de insurgência mesmo que incipiente, mas que
mostra um determinado momento em que ela resolveu partir para a ofensiva em busca de
187
serem atendidas algumas de suas causas, sugerindo ainda por fim na sua fala, a sua
insatisfação geral para com toda aquela situação a que foram colocados os moradores da
cidade velha e principalmente a falta de espaço desses moradores junto aos funcionários da
COHEBE encarregados pelos serviços na cidade nova.
Dona Maria Amélia finaliza a sua descrição desse diálogo com o senhor César
Cals, contando-nos mais alguns trechos que são apresentados a seguir:
Ele disse: Olhe dona Maria Amélia, a senhora é uma mulher corajosa, fez
muito bem a senhora me procurar.’ Eu disse: ‘Doutor, eu vim lhe procurar
aqui com essa credencial humilde que eu sou, por que eu tenho certeza que
eu num ia falar com o senhor na CHESF, junto com os outros
engenheiros, por que aí eu tomava muito espaço, e aqui é rápido, o senhor
me desculpa, e me responda o que o senhor tem de fazer pra mim!’ Ele
disse: ‘A senhora pode ficar certa, eu não vou escrever, eu vou dizer, mas a
senhora vai ter a palavra de um homem de confiança e decente. Na próxima
semana o seu comércio vai ser começado a construir.’ [...] E ele cumpriu, na
próxima semana ele mandou, está bem aí o ponto de comércio. (Ibidem).
Neste ínterim, dona Maria Amélia também pontua a acomodação dos outros
moradores em não expressarem suas reivindicações, atitude essa segundo ela mesma não lhe
faltou em nenhum momento.
Muitos se aceitaram. Mas ninguém se revoltou. A única revoltada era eu, que
falava e não me curvava. [...] o Jociler foi um dos que ganhou também, mas
num teve a coragem que tive. E eu disse: ‘Meu Deus, se eu num for falar
com esse homem [César Cals] bem aí, eu num sei o quê que vai ser.
(Ibidem).
Logo em seguida a essas considerações sobre os prejuízos sofridos pelos
comerciantes de Guadalupe na transferência para a nova cidade, apresentamos a fala do
senhor João Alencar sobre esta questão, e então esclarece que para ele, os comerciantes
antigos da Guadalupe Velha não conseguiram se adaptar ao novo ritmo comercial
estabelecido após a mudança.
O comerciante nosso antigo, era coisa muito pouca que eles comerciavam.
Aqui o povo muito diferente; queriam comprar outras coisas. Num era
como lá, feijão, farinha, milho o. Aqui mudou muito; uma nova
realidade. Mas todo mundo se saiu bem. (ALENCAR, 2006).
188
Outrossim, o senhor João Alencar ainda reforça sua argumentação dizendo que
antes da mudança já vinha se desenvolvendo uma feira no povoado Coqueiro a qual ficava nas
imediações da obra e da própria cidade nova, vindo a ser no futuro um bairro dessa cidade.
Esta Feira do Coqueiro cresceu bastante graças a obra da usina, e durante esse
período foi bastante movimentada, restando apenas os comerciantes tradicionais de
Guadalupe Velha serem incorporados nesse processo de crescimento comercial.
De acordo com as palavras do senhor João Alencar, a Feira do Coqueiro se
desenvolveu da seguinte forma:
Com a barragem aqui o comércio foi grande. Aqui por todo lugar. Ali eu
tinha o mercado público, era no Coqueiro. Era cheio, você passava no
mercado de banda, era um bequinho assim; por que cheio de comércio, do
lado de fora era confecção, é fruta. Gente de Floriano; era tinindo de gente.
Foi todo mundo lá no Coqueiro, o comércio foi grande. (Ibidem).
Esta informação da importante feira de comércio desenvolvida no povoado
coqueiro durante a obra da usina, já havia sido citado pelo senhor Jociler em outro trecho de
sua fala. Neste trecho inclusive o senhor Jociler identifica este local, o Coqueiro, perto do
canteiro de obras, como sendo à base para a origem da cidade futura cidade de Guadalupe
Nova. Vejamos o que diz o entrevistado em questão:
O povoado Coqueiro era a base; que ali tinha uma feirinha aos bados.
Vinha gente de Floriano, vinha dessas cidades vizinhas, tudo vender. Por que
num tinha outra coisa não. Ficou pertinho [...] da Quadra Treze toda a
concentração. De um lado residência, e de outro lado comércio; boa parte do
comércio era naquela parte. O Coqueiro foi muito falado naquele tempo;
tinha muito movimento. Muita gente que vinha naqueles carros, naquelas
camionetes, caminhões. Traziam muita gente de fora. Era tipo uma feira
(PEREIRA, 2006).
Entendemos assim primeiramente que na nova cidade de Guadalupe surgiram
novos consumidores, e esses mais exigentes de produtos diferentes e variados, sendo que essa
dinâmica comercial era muito diferente daquele corcio ainda incipiente da cidade velha.
Por outro lado verificamos que essa dinamização do comércio local também foi aproveitada
pelo menos parcialmente por alguns moradores, como é o caso do senhor Jociler que fornecia
alimentações para os trabalhadores das empresas construtoras, surgindo ainda um forte
comércio no povoado Coqueiro que logo foi incorporado como um bairro da cidade nova.
189
No entanto, sentimos com a seqüência das falas dos entrevistados que se
instalaram certos distanciamentos entre a cidade e o promissor desenvolvimento comercial
que se apresentava na nova cidade.
Além disso, concomitantemente as percepções dessas diferenças, não podemos
deixar de considerar mais esse choque causado pela mudança, como uma responsabilidade da
empresa responsável pela obra, e principalmente a responsável por toda a gravidade das
mudanças ocasionadas pela transferência da cidade.
Além dessa questão dos prejuízos dos comerciantes tradicionais de Guadalupe
após a transferência da cidade velha para a cidade nova, lembramos ainda da denúncia de que
os moradores de Guadalupe em sua maioria não foram incorporados na obra da usina,
segundo algumas declarações dos entrevistados aqui já apresentadas.
Entretanto, ainda sobre essa questão do aproveitamento da mão-de-obra dos
guadalupenses, os entrevistados fazem algumas ressalvas e nos informam que pelo menos na
construção de algumas casas na cidade nova, notadamente as casas de moradores mais
humildes, nessas sim foi utilizada a mão-de-obra de alguns moradores pobres, foi o chamado
Programa de Ajuda Mútua (PAM), elaborado pela COHEBE para complementar a construção
de casas da nova cidade.
Segundo o que os nossos entrevistados nos contam sobre o processo de construção
das casas da cidade de Guadalupe Nova, essa construção se deu de duas maneiras: uma foi a
construção das casas dos moradores que tinham titulo de propriedade consolidado em
Guadalupe Velha, tarefa esta realizada pelos próprios trabalhadores da COHEBE, os quais
utilizaram em sua maioria materiais novos; a outra forma de construção de casas foi
utilizando os materiais velhos das casas e prédios demolidos na cidade velha, utilizando-se
a mão-de-obra dos próprios moradores da cidade;
É sobre isso que o senhor Jociler nos conta:
Quando a gente mudou pra cá, a gente tinha autorizado o pessoal da
COHEBE que podia tirar o material; aqueles que a gente queria, o melhor, a
gente trazia; o outro deixava que as pessoas iam aproveitar; o pessoal dos
mutirões, os mais humildes. As construções das casas ali na quadra quatorze,
por exemplo, quase toda foi em mutirão; [...] aquelas pessoas que não tinham
casas lá, às vezes tinham um casebrezinho, e num tinham condições e foram
incluídas no tempo do levantamento. (PEREIRA, 2006).
Segundo os próprios entrevistados, esse processo de construção em regime de
mutirão, o Programa de Ajuda Mútua, foi direcionado somente àquelas pessoas que não
190
tinham moradias regularizadas na cidade velha, e que por isso tiveram que trabalhar na
construção de suas casas na cidade nova.
São esses condicionantes do processo de construção e de ocupação dessas casas da
cidade de Guadalupe Nova, que também surgem na fala de dona Mundiquinha, a qual nos
esclarece:
Aqueles que num tinham casa em Guadalupe, tinha muita gente que num
tinha casa, num ganhavam não. Moravam em casa alheia, eles num
ganhavam o. assistentes sociais, os engenheiros e tudo, combinaram
com eles; pra eles irem fazer o material que eles davam o transporte e
ajudavam a fazer as casas. Tem muita casa aqui feita assim, chamava
Programa de Ajuda Mútua [...] Deram muito material a gente, aquele
material que tiraram lá da Guadalupe Velha. Madeira, telhas e alvenaria, que
eles [funcionários da COHEBE] tiraram de e deram para o povo que num
tinha casa lá, e botaram nas casas deles aqui. Aqueles que num tinham casa
lá, moravam em casas alheias, eles, deram material pra eles construir. [...] E
ensinaram a construir. Teve muita gente que aprendeu ser pedreiro fazendo
essas casas da ‘Ajuda Mútua’. [...] (ARAÚJO, 2006).
Seguindo nosso texto de apresentação e análise dos problemas enfrentados pelos
moradores de Guadalupe, damos passagem às descrições de mais alguns problemas surgidos
nesse começo de vida na cidade de Guadalupe Nova.
Nesse rumo, entendemos que mais agravante mesmo do que os prejuízos dos
comerciantes e das construções das casas novas foi, sem vida nenhuma, a questão da
localização da cidade nova era o fato de que esta se localizava longe do rio.
Certamente essa distância do rio foi o golpe mais doloroso sentido pelos
moradores, os quais tiveram durante toda a sua existência em Guadalupe velha mais que uma
proximidade com o rio Parnaíba, cabendo a este corpo d’água muito mais do que uma simples
referência, como já vimos neste mesmo capítulo, era como se para aquelas moradores
houvesse um ele umbilical entre eles e o rio, o qual dispunha generosamente toda a sua água e
junto com ela inúmeras outras oferendas.
Recuperamos na nossa lembrança aquele desenho inicial que mostra a disposição
geográfica da cidade velha com suas casas, prédios e ruas, e ao fundo a presença majestosa do
rio Parnaíba, marcando assim com precisão a força dessa presença natural nas vidas daquelas
pessoas que tinham a sua cidadezinha com casas e ruas quase todas voltadas para o ritmo
intenso e generoso das águas.
Assim essas pessoas historicamente se habituaram a viver bem próximo do rio,
enfatizando assim que estes moradores cotidianamente se serviam das águas de várias formas.
191
Sair daquele lugar de ocupação inicial, onde eles já tinham uma vida
razoavelmente consolidada, isso com todos os significados traumatizantes que repercutiram a
transferência, para então irem morar numa cidade toda diferente fisicamente, e além de tudo
isso, a partir dessa mudança, ainda ter que morar longe do rio, longe das águas e de todos os
seus benefícios e significados sociais e culturais.
Com certeza esse foi o maior o sofrimento que estas pessoas sentiram, sobretudo
por que, assim que chegaram à cidade de Guadalupe Nova ainda não tinha água potável para o
consumo dos moradores, tendo estes que irem buscar no rio, o qual agora não ficava mais no
final da rua, mas bem mais longe. reside boa parte da incompreensão dos moradores em
o terem sido consultados sobre a localização dessa nova cidade.
Primeiramente apresentamos as informações repassadas pelo prefeito da época da
obra, o senhor João Alencar, que ao ser questionado sobre o papel da prefeitura no
atendimento das queixas dos moradores, ele nos conta o seguinte:
A prefeitura num tinha nada com o levantamento; a prefeitura tinha uma
coisa: ‘Caçar lugar pra cidade.’ [...] Fazer doação de que precisasse. Por que
a cidade podia ser construída nessa área que foi desapropriada, mas essa área
foi só a que o lago ocupou. Ninguém podia botar a cidade dentro do lote,
arriscado até ceder. (ALENCAR, 2006).
O senhor João Alencar continua o seu depoimento apresentando as ações da
prefeitura, os entendimentos com a COHEBE sobre as desapropriações e a construção da
nova cidade, destacando logo abaixo o trecho onde ele nos concede informações específicas
sobre o papel do prefeito nessa escolha do local da nova cidade.
O prefeito é quem sabia onde é que queria ficar. Pra poder construir nós
tínhamos que passar pra ela [COHEBE]. [...] O que ela tinha desapropriado
era ali na beira do rio, não era por aqui. [...] Lá [próximo à cidade velha] nós
tínhamos essa sobra de terras da prefeitura, mas ninguém ia querer ficar lá,
no povoado Campestre. Nós tínhamos três mil e tantos hectares lá. É distante
trinta quilômetros. (Ibidem).
O entrevistado em destaque aqui nessa parte do texto, segue justificando os
critérios seguidos nessa escolha do melhor lugar para sediar a nova cidade de Guadalupe.
Sobre isso tudo então, o senhor João Alencar acrescenta a seguir algumas de suas
considerações pessoais acerca desse tema polêmico:
Eu quis vim para aqui! Melhor vim para aqui! Eu num estou arrependido
192
não! Por que se nós tivéssemos lá, nem essa estrada asfaltada num estava lá.
Mas nós viemos, foi muito bom. Só tinha umas duas casinhas velhas pra lá.
Veio para aqui por causa da obra. Aqui teve essa agitação por causa da obra.
Se nós tivéssemos e eles [COHEBE] desse lado aqui, ninguém ia querer ir
pra lá não, num ia ter tudo isso. (Ibidem).
O senhor João Alencar arremata a sua fala sobre a questão da escolha do local,
esclarecendo a sua atitude como prefeito nessa decisão de ter que passar as terras municipais
para o comando da COHEBE, para então depois disso ter sido construída a cidade de
Guadalupe Nova.
Sobre essa transferência de terras para a COHEBE construir a cidade nova, isso
durante a sua gestão na prefeitura de Guadalupe, ele nos trás a seguinte explicação: A
COHEBE, tinha que passar pra ela. [...] O Governo Federal não constrói nada em coisa
alheia, dele. Num faz coisa em terreno alheio, se não amanhã eles querem o dinheiro,
fazem vim de novo. (ALENCAR, 2006).
Para entendermos melhor as informações apontadas pelo senhor João Alencar,
apresentamos logo abaixo um mapa utilizado pela COHEBE durante os estudos iniciais do
projeto de construção da Usina de Boa Esperança, e neste mapa identificamos o local da
cidade velha e o lugar onde foi construída a cidade nova, nas proximidades da usina.
Olhando esse mapa podemos ver também o trecho entre as duas cidades e a
posição do rio dentro do plano mais geral de fixação nessa área próxima à usina.
193
- Local da Guadalupe Velha nas - Área de localização da Usina de
margens do rio Parnaíba Boa Esperança
- Local escolhido para a Guadalupe Nova, - Percurso de aproximadamente
a qual terminou por não ficar nas margens do rio 30 km entre as cidades velha
e nova
Figura 4: Mapa Geológico do Vale do Médio Parnaíba
Fonte: COHEBE, 1968a., Parte III-1, legenda nossa.
A prosito encontramos nos Livros de Registros de Imóveis do município de
Guadalupe uma enorme quantidade de registros de regularização da posse de propriedades
urbanas e rurais, representando assim estes livros, verdadeiros diários particulares e coletivos
do processo de transfencia de moradores e propriedades da cidade velha inundada, para as
terras da cidade nova.
Esclarecemos aqui que nesse entremeio do registro de imóveis, existem muitos
pormenores que certamente merecem um estudo mais detalhado que possa então abordar
alguns temas específicos, como o da expansão e a especulação imobiliária ocorrida por conta
dessa transferência, as diferenças de condições de aforamento entre os diversos grupos de
moradores, os papéis da Prefeitura e da COHEBE nisso tudo, entre outras queses.
Para citarmos uma dessas passagens do Livro de Registro de Imóveis da cidade de
Guadalupe, apresentamos o menos do que a oficialização da transferência das terras
municipais onde se construiria a nova cidade, passando então essas terras para o domínio da
COHEBE.
194
Entre as partes dessa transferência a Prefeitura Municipal de Guadalupe, e do outro
lado a própria COHEBE. Vejamos então como foi registrada a transferência dessas terras
onde se localizou a cidade de Guadalupe Nova.
Características e Confrontações: Um terreno medindo 5.096.200 m
2
,
denominado “Araçás” na data Santo Antonio, deste município, tendo como
limites, terras do município de Guadalupe, Hermes Neiva e outros, Juvenal
Teves da Rocha e Raquel Antonieta da Rocha, Elvina Alves de Castro e
Raimundo Coelho de Sousa. Adquirente: Companhia Hidro Elétrica da
Boa Esperança (COHEBE) RUA Siqueira Campos, 279, 9º and. Recife – PE.
Transmitente: Prefeitura Municipal de Guadalupe. Título: Doação.
(CARTÓRIO DA COMARCA DE GUADALUPE, 27/10/1964, n.º 1253).
Ao analisarmos os vários trechos dos livros de registros de imóveis de Guadalupe,
percebemos alguns detalhes interessantes sobre esse grande processo de desapropriações e
regularizações de propriedades urbanas e rurais, sendo que entre essas características
identificamos a concentração no município de Guadalupe de todos esses registros e de todas
as outras questões fundiárias provocadas pela construção da Usina de Boa Esperança,
inclusive algumas eventuais pendências jurídicas que foram acionadas em Floriano.
Algumas dessas questões envolvem moradores com suas propriedades em outros
municípios como é o caso de Antonio Almeida, sendo que todas essas questões foram
dirimidas na comarca de Guadalupe.
Também relacionado à regularização da posse de propriedades identificamos a
ocorrência de uma forte especulação financeira ocorrida na cidade de Guadalupe por causa de
todo esse processo de desapropriações promovidas pela COHEBE, por conta da obra da usina.
Os entrevistados pouco tocam nesse assunto, sendo que alguns deles eram
proprietários mais privilegiados da cidade velha, e que por terem essa condição social mais
altiva, procuraram seus devidos direitos de forma negociada na maioria das vezes, e também
acionando a justiça em alguns casos, particularmente entrando com processos na comarca de
Floriano como já citamos ao falarmos dos documentos do Cartório de Guadalupe.
Sobre a especulação mesma em si, encontramos um trecho da fala de dona
Mundiquinha em que ela relata a forma como foi pressionada por moradores demais posses de
Guadalupe para que vendesse a sua casa na cidade velha com a alegação de que as pessoas
pobres, possuidoras de casas mais simples, de palha, não receberiam casa na cidade nova,
tendo assim os pobres, para não terem tanto prejuízo, que venderem suas casinhas para as
pessoas mais ricas. Na verdade o que se escondia por trás dessa suposta atitude benfeitora era
195
o interesse vil em tirar proveito da alta especulação imobiliária provocada pelas
desapropriações feitas pela COHEBE.
Dona Mundiquinha fala-nos então um episódio pessoal em que trata exatamente
dessa questão da especulação imobiliária em Guadalupe.
Quem num tinha casa [Guadalupe Velha], e tinha deles que tinha casinha
ruim, venderam para os grandes. Por que disse que não iam tirar casa aqui, aí
eles venderam. Essa minha mesmo, se eu num tivesse sido muito forte eu
tinha ficado sem ela. Por que o irmão do Zé Mousinho fez assim pra eu
vender minha casa pra ele, a casa de lá. Eu digo: ‘Eu num vendo! - [O
Homem dizia:] Pois tu num vai tirar lá! [Guadalupe Nova]’ - [Dona
Mundiquinha:] ‘Pois tu tira?! Eu num tiro a casa, e tu tira?!’ quando eu
me mudei para aqui, eu: ‘Oh, tu disse que eu num ia ganhar minha casa!
Está aí, eu tenho minha casa! Tu queria era me roubar, era tirar minha casa
de mim!’ Eu chorei muito pra possuir minha casa; eu num ia ficar sem ela
não; eu sofri muito pra possuir minha casa; pra mim está debaixo dessa aqui.
[...] Precisei tirar a escritura da casa [na cidade velha] pra poder receber a
casa [na cidade nova.] [...] Das mulheres pobres de de Guadalupe que
tinha escritura de casa, eu! [...] Agora eu tinha escritura, por que eu
acordei quando a Barragem entrou! (ARAÚJO, 2006).
Encontramos na obra “Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional”
do autor Carlos B. Vainer (VAINER, 1992), uma referência a esta prática de apropriações
indevidas e de especulação imobiliária nessas áreas de desapropriações das barragens, isso
tudo com visíveis benefícios aos grandes proprietários, que por sua vez nestas ocasiões,
aumentam mais ainda as suas concentrações de terras.
A título de ilustração, merece menção o fato de que os grandes proprietários
fundiários na área de influência da Usina Hidrelétrica de Sobradinho foram
enormemente beneficiados: no município de Sento Sé, por exemplo, a área
dos imóveis entre 500 e 1.000 hectares aumentou em 800% após o início da
obra, sendo que os latifundiários por exploração [classificação do INCRA]
passaram, entre 1972 e 1984, de 98 para 985 [cf. Sigaud, 1998, p. 105]. (Id.
Ibidem, p. 45).
Esta citação nos faz prever a grande probabilidade da ocorrência de algumas destas
práticas especulativas nos vários processos de desapropriações realizados por contas de
grandes obras como as das usinas hidrelétricas.
No caso das desapropriações na área de Boa Esperança em Guadalupe, e
municípios vizinhos, percebemos também alguns aspectos dessa mesma prática especulativa,
especificamente de acordo com as informações apresentadas por dona Mundiquinha em seu
depoimento.
196
Feita esta observação, continuamos ainda discutindo o tema geral da escolha do
local da cidade de Guadalupe Nova foi realmente polêmico e suscitou vários outros temas aí
relacionados.
Verificamos assim essa importância da escolha do local da nova cidade, pelo
número de argumentações que até hoje se desencontram e se esbarram em controvérsias que
exem o clima tenso eu que foi realizado o debate da transferência e da construção da nova
cidade, isso tudo dentro do panorama geral do projeto de construção da Usina de Boa
Esperança nas imediações da cidade de Guadalupe.
Assim damos voz aos outros moradores entrevistados e com eles encontramos uma
série de argumentações sobre a questão da escolha, retomando assim os problemas da
transferência e chegada na nova cidade. Segundo a maioria dos entrevistados, esses problemas
foram quase todos agravados pela má escolha do local que ficava dentro de uma chapada.
Iniciamos pelas palavras de dona Maria do Carmo que acrescenta algumas
informações sobre essas questões polêmicas.
Realmente eu achei que precisava do prefeito ter sido mais ativo nessa parte
participativa, no que se diz respeito à localização da cidade, por que você ver
que a cidade foi mais localizada pra cá, tem muita erosão ali mesmo na rua
onde eu moro. Pra lá, na Cruzeta [bairro na entrada da cidade nova], é tudo
mais plano, é mais urbanizado. (MOUSINHO, 2006).
Interessante é sabermos que justamente esse bairro, a Cruzeta foi construído na
cidade de Guadalupe Nova o pela COHEBE, mas pela própria Prefeitura de Guadalupe
ainda durante a administração do senhor João Alencar, o qual seguiu por alguns moldes
diferentes daqueles determinados pela COHEBE. Nesse sentido, o entrevistado se orgulha
desse seu feito, o qual ele nos descreve assim:
Quando eu dei esse terreno aqui pra COHEBE, eu num podia aforar o
terreno por que eu tinha dado. comprei a Cruzeta ao Chico. Comprei
sessenta e um hectares de terra a ele ali; dois milhões. eu fiz novecentos e
um lotes de quinze por quarenta e cinco; e habitei seiscentas famílias.
(ALENCAR, 2006).
Ao chegarmos repentinamente nesse trecho da entrevista do senhor João Alencar,
e ao percebermos que ele ansiava por apresentar as suas ações perante esses problemas
surgidos lá no inicio da Guadalupe Nova, oportunizamos alguns questionamentos
importantes, dentre eles se esses lotes que originaram o bairro Cruzeta foram destinados aos
moradores da Guadalupe Velha que se encontravam sem casas na cidade nova.
197
De pronto ele então nos responde:
Sim! E gente que vinha de fora. Aquele bairro ali tudo foi eu que habitei.
Tudo foi eu que vendi aqueles terrenos. O lote a pessoa dava a entrada e
pagava o outro em dez vezes. Quando num tinha nem a entrada eu deixava
ele morar até quando ele pudesse comprar. Quando ele era pobre e queria
dar uma entrada, dispensava a entrada e ficava dando dois cruzeiros por
s. Contanto que habitei muita gente com esse projeto. (Ibidem).
Além desta iniciativa de reassentamento de moradores dentro do perímetro urbano
da cidade de Guadalupe Nova, o senhor João Alencar também nos fala sobre duas outras
medidas, uma na zona rural de Guadalupe mesmo, em que ele fez lotes rurais; e a outra
medida foi tentar enviar um grupo de agricultores para agrovilas que havia na época na cidade
de Barra do Corda no Maranhão. Sobre isso ele nos conta a seguir:
Eu tive uma reclamação, que esse povo que morava na beira do lago, não
queriam vir para aqui; e disseram que ficavam na chapada. eu fui no
estado do Maranhão; na Barra do Corda. tinham umas agrovilas,
conjunto de casas como a Vila Parnaíba. Aquela pessoa fica naquela casa e
vai pagando, depois de pagar fica dele. A pessoa recebe uma casa com
cinqüenta metros de frente e sessenta metros de fundo, a pessoa pode botar
até mais alguém, e mais trinta hectares de terra lá no campo pra ele trabalhar,
e quando ele pagar isso fica como um bem familiar. eu cheguei aqui, mas
ninguém quis ir. disseram que estavam aqui nesse chapadão, a ra deles
tinha se acabado, e tudo. Aí eu comprei ali ao Chico Moura, dei onze
milhões, por cinqüenta e oito hectares de terra, abaixo da Sussuapara. E fiz
dezesseis lotes agrícolas, de dois hectares, de três, de quatro, de um e meio.
Esse acordo quem dizia era eu, com a carência de três anos; depois eles iam
ficar pagando uma taxa pra prefeitura. [...] Muitos deles mudaram pra lá,
outros botaram a roça. (Ibidem).
A fala anterior do senhor João Alencar remete-nos a busca de dados oficiais acerca
das populações migratórias que se dirigiram para o local da obra, e com isso, para a cidade de
Guadalupe Nova.
Vejamos então a seguir, um quadro-resumo organizado pela COHEBE, no qual
verificamos a quantidade de pessoas deslocadas pela obra da Usina de Boa Esperança na área
da cidade de Guadalupe e em áreas de outras cidades e localidades atingidas pela barragem
pelo lado do Piauí e do Maranhão.
198
Tabela 2: Operações de Transferência das Populações Urbanas e Rurais
Fonte: COHEBE, 1969, p. 21 .
Analisando os dados apresentados no quadro acima, verificamos que inúmeras
cidades do Piauí e Maranhão tiveram um grande número de populações rurais e urbanas
retiradas dos seus locais de ocupações iniciais, e na seqüência transferidas para novas
localidades.
Consequentemente, todo esse processo de remanejamento das populações ocorreu
por causa da inundação causada pelo lago formado pela Barragem de Boa Esperança, sendo
que dentre as cidades mencionadas acima, as mais atingidas foram Guadalupe com 234
pessoas remanejadas, e Antonio Almeida com 214 pessoas, essas duas pelo lado do Piauí.
Pelo lado do Maranhão, a cidade mais atingida foi Nova Iorque, de onde 461 pessoas foram
transferidas para a nova cidade.
Portanto, as duas cidades mais afetadas pela construção da Usina de Boa
Esperança foram Guadalupe no Piauí e Nova Iorque no Maranhão, as duas com as maiores
quantidades de pessoas transferidas. Somemos a estes números expressivos o fato grave de
que somente essas duas cidades tiveram suas populações urbanas atingidas pela água, e que
por isso foram transferidas.
199
Concomitantemente as transferências das populações dessas duas cidades,
ocorreram por fim os desaparecimentos de suas estruturas urbanas, sendo então essas duas
cidades as únicas totalmente reconstruídas pela COHEBE.
Além de todas essas conclusões anteriores verificamos uma especificidade da
cidade de Guadalupe, pois das 1.206 famílias que migraram para aquela região por causa da
obra da usina, 715 se fixaram somente nesta cidade. Neste sentido Guadalupe acolheu uma
grande maioria de pessoas que lá foram tentar construir uma vida nova naquela que se
apresentava também como uma nova e promissora cidade.
As essas apresentações, das justificativas do prefeito da época da construção, o
senhor João Alencar, e dos dados técnicos da COHEBE sobre o remanejamento das
populações atingidas, rumamos ao encerramento do debate sobre a localização da cidade de
Guadalupe Nova.
Sobre isso, encontramos também as palavras de dona Mundiquinha que nos
afirma: Eu acho que se o povo de Guadalupe velha tivesse exigido, eles fariam essa cidade
sem ser aqui nesse local. Mas o quê que era de dizer, eles num conheciam o lugar, onde eles
fizessem estava bom. (ARAÚJO, 2006).
A entrevistada continua sua fala exemplificando o caso da cidade de Nova Iorque
no Maranhão, e da decisão dos seus moradores de não se retirarem da beira do rio, mesmo
com a mudança geográfica do que não mais seria a margem de um rio e sim de um lago,
estando sujeitos os moradores a constante ameaça de inundação por causa da variação do
nível das águas do lago, situação essa determinada pela operação da usina.
Segundo o que nos diz dona Mundiquinha, esses moradores de Nova Iorque
decidiram ficar perto das águas do rio Parnaíba, sejam elas correntes ou represadas, contanto
que não perdessem de vista essa condição valiosa de estar a cidade colada na água, e dela se
servir diretamente como sempre o fizeram.
A gente achava que teve cidade que não aceitou, acho que foi Nova
Iorque, eles não saíram, fizeram sair da beira do rio, pra ficar mais longe
as casas, da água atingir. Eles não exigiram a cidade fora, pra sair de lá. Mas
eu acho que teve alguns que saíram pra São João dos Patos; os que moravam
do outro lado do rio; que se chamava Porto Seguro. [...] Mas foi uma luta
danada, que a gente não queria aceitar não. (Ibidem).
Com essas informações apresentadas vejamos duas imagens a seguir que nos
mostram os desenhos das plantas das cidades de Guadalupe e Nova Iorque respectivamente.
200
Figura 5: Planta da Cidade de Guadalupe – Planejamento Urbano
Fonte: COHEBE, 1968a. Parte VIII-1.
Figura 6: Planta da Cidade de Nova Iorque – Planejamento Urbano
Fonte: COHEBE, 1968a. Parte VIII-2.
201
Analisando as duas imagens das plantas das cidades de Guadalupe e de Nova
Iorque podemos então entender boa parte das queixas dos moradores de Guadalupe Nova em
terem ficado longe do rio Parnaíba.
Vejamos primeiramente então, que as duas cidades foram projetadas seguindo
linhas retas, sendo que a cidade de Guadalupe Nova, por está na área-sede da usina, tem um
projeto bem maior e mais elaborado do que o projeto da cidade de Nova Iorque, o que logo
caracteriza o maior destaque de Guadalupe entre esses dois planejamentos urbanos.
Além disso, verificamos os traços urbanísticos desses dois projetos estão de acordo
com os parâmetros mais modernos de edificações definidos pela COHEBE na época,
diferenciando-se assim radicalmente daqueles desenhos mais rústicos das antigas cidades que
foram historicamente sendo estruturadas seguindo critérios mais simples de ocupação e
desenvolvimento.
Entretanto, ao visualizarmos os dois desenhos dos planejamentos urbanos das
novas cidades de Guadalupe e Nova Iorque construídas pela COHEBE, isso pensando nas
argumentações dos moradores de Guadalupe sobre a má localização de sua cidade,
constatamos um traço fundamental de diferença entre os dois desenhos, exatamente a questão
da proximidade do rio a que tanto os guadalupenses reivindicam.
Vejamos que no desenho da cidade de Nova Iorque a presença do rio é uma
constante. Já no desenho da cidade de Guadalupe, a imagem do rio desaparece da perspectiva
urbanística da cidade, o que eventualmente trouxe inúmeras dificuldades, entre as principais a
falta de água após a chegada dos moradores transferidos e a permanência desses problemas
por certo período.
Entendemos assim como o afastamento do rio trouxe conseqüências por demais
mais dolorosas a estas pessoas que se acostumaram a viver por mais de quatro décadas nas
margens deste grande rio, do qual se serviam, e com o qual eles repartiam as suas vidas
naquela velha cidade de Guadalupe.
É a partir destas observações visuais e escritas que passamos a entender um pouco
melhor o que dona Mundiquinha havia nos dito sobre o privilégio da população de Nova
Iorque de não terem de se afastarem do rio. Para ela a distância da sua cidade daquelas
saudosas margens do rio Parnaíba era o ponto mais sofrido em toda essa empreitada que se
tornou a transferência para a nova cidade.
Somando-se a essas considerações sobre os prejuízos que a cidade de Guadalupe
sofreu na sua localização longe do rio, lembremos por fim que diferentemente de todas as
outras cidades, e até da cidade de Nova Iorque, a cidade de Guadalupe foi, sem dúvida, a mais
202
atingida com o represamento do rio Parnaíba, pois o local onde ela se localizava era o mais
próximo do local da Usina de Boa Esperança, e que por isso, as águas represadas do lago
consumiram de forma mais intensa e definitiva aquele velho núcleo habitacional.
Assim, não foi possível haver em Guadalupe, nem mesmo a oportunidade para
visualizarmos este local em eventuais baixas do vel de águas do lago, situação até mesmo
acontecidas nas outras localidades exatamente pelo fato delas estarem mais longe da usina, e
que por isso, tiveram uma margem mais variável do volume das águas do lago.
Em outras palavras, e ao observarmos todas as circunstâncias com que foram
conduzidas as obras da Usina de Boa Esperança nesse lugar bem próximo de Guadalupe,
percebemos o destino absolutamente sem voltas de desocupação, demolição, e submersão
permanente desta cidade velha, acelerado esse processo desde o momento da saída dos
moradores em 1967-1968, e permanecendo assim esse lugar, coberto pelas águas até os dias
atuais.
Com estas considerações quanto ao destino definitivo da Guadalupe Velha, e a
localização da cidade de Guadalupe Nova longe do rio Parnaíba, acrescentamos mais
elementos à descrição das conturbadas condições em que a maioria dos moradores se
encontrou ao chegar à, com as ruas sem calçamentos, as casas sem muros, e os contato com
uma área recém desmatada com bichos e muito mato ao redor.
Retornando um pouco a esses problemas estruturais e culturais no início da vida na
Guadalupe Nova, recorremos a mais duas imagens a seguir que nos mostram exatamente o
panorama geral das novas cidades construídas pela COHEBE, as casas todas sem muros e
distantes umas das outras, as ruas sem calçamentos, e a cidade toda cercada por muito mato.
As fotos que se seguiram foram encontradas num documento da COHEBE datado
de 1968, exatamente o ano em que se finalizam as transferências para as novas cidades.
A primeira logo abaixo é uma foto aérea da cidade de Guadalupe recém-
construída. Esta foto mostra-nos claramente todos aqueles problemas que foram relacionados
pelos moradores em suas falas.
203
Fotografia 16: Vista aérea da cidade de Guadalupe - PI.
Fonte: COHEBE, 1968b, p. 20.
Na seqüência vejamos a outra foto que nos mostra no detalhe as ruas e as casas da
nova cidade de Nova Iorque construída pela COHEBE no lado do Maranhão, onde
verificamos nas mesmas, características urbanas criticadas pelos moradores, o que no geral
confirma o nosso entendimento de que a COHEBE fixou essas pessoas em cidades ainda por
finalizar, o que certamente acarretou sérios problemas para os moradores e desentendimentos
destes com os funciorios da referida empresa.
Vejamos então mais essa foto desta outra cidade nova, mas que ainda tinha casas
sem muros e distantes entre si, ruas sem calçamentos, e muito mato ao redor.
204
Fotografia 17: Vista do arruamento na cidade de Nova Iorque - MA.
Fonte: COHEBE, 1968b, p. 21.
Todos esses problemas encontrados nas cidades de Guadalupe e Nova Iorque, as
mais afetadas com a construção da Usina de Boa Esperança, são problemas ocasionados no
geral por que a transfencia dos moradores foi feita quando estas cidades ainda se
encontravam inacabadas do ponto de vista da urbanização, havendo assim inúmeras ações
essenciais que amenizassem um pouco mais o desgaste dessas pessoas nesse processo de nova
fixação.
Entre essas ações essenciais destacamos o abastecimento de água potável, os
muros das casas, o calçamento, a limpeza do terreno, enfim, tudo isso de que os moradores se
queixam e com muita razão.
Como se não bastassem os sofrimentos que eles colecionavam até o momento
da transferência, a inundação da cidade velha, a tristeza de ver suas casas e as suas memórias
submersas, a mudança de seus pertences na culminância de toda essa dolorosa despedida, para
então chegarem nessa nova cidade, a qual fora concebida praticamente sem ouvir as opiniões
dos moradores, essa nova cidade passa a ser vista como estranha, piorando esse
estranhamento pelo fato da sua estrutura urbana está mal-acabada.
Intencionados a nos aproximar do final desta análise, damos vozes aos moradores
a apresentarem a seguir mais alguns trechos de seus depoimentos, oportunidade em que
205
tentamos resumir mais algumas de suas considerações sobre os problemas enfrentados por
eles na chegada na cidade de Guadalupe Nova.
Ao passo em que eles expressam um pouco mais das suas opiniões sobre a
mudança, eles também vão fazendo comparações entre as cidades velhas e a cidade nova,
juntando-se assim num processo de auto-avaliação da evolução da cidade de Guadalupe.
Estes moradores agora se depararam não mais com imaginações ou perspectivas
futuras, a partir dessa chegada na nova cidade, logo eles passaram a enfrentar o que se tornara
a sua realidade definitiva daí pra frente, e pelo que vimos até aqui, representaram essas suas
reclamações muito mais do que impressões iniciais, comprovando-se essas reprovações com
as informações repassadas pelos entrevistados e ainda com o confronto destas com os dados
dos documentos da própria COHEBE.
Sobre isso tudo, retomamos a seguir as falas dos entrevistados numa série final de
colocações acerca dos problemas enfrentados nesse começo da vida na cidade de Guadalupe
Nova.
Nesse sentido então, recorremos às palavras de dona Maria Amélia, a qual segue
quase sempre ancorando suas afirmações na exaltação da saudosa Guadalupe Velha em
contraposição à estranha e mal-acabada Guadalupe Nova.
Sobre essas comparações e sobre outras questões gerais a entrevistada nos fala o
seguinte:
Sabe como eu chamava essas casas: ‘Arapucas arranhadas por fora!’ E as
minhas casas [na Guadalupe Velha] o tamanho que eram! [...] Você olhava
por aqui [Guadalupe Nova] tinha mato. Aqui num tinha passagem nessa
rua. [...] A gente tinha que caminhar por aqui e subir um morrozinho que
tinha ali. Um dia eu caí bem nos pés do engenheiro; Esculhambei ele! Rapaz
nesse dia ele ficou muito contrariado, [e disse:] ‘Dona Maria Amélia, com fé
em Deus essa é a última queda que a senhora vai ter aqui. Amanhã eu vou
tomar providências.’ [Ela respondeu:] ‘O senhor devia ter tomado! Isso
não é coisa que se faça. Nós não viemos aqui para uma cidade! Quando se
faz cidade nos outros lugares, e quando se entrega, as casas estão
muradas, as ruas eso calçadas e tudo enfim. E nós aqui fomos jogados
como bicho dentro do mato! (FONSECA, 2006, grifo nosso).
Nesta citação anterior, dona Maria Amélia reafirma sua posição de revolta com
todo esse processo de mudanças, começada essa sua revolta lá nas reuniões na cidade velha,
até chegar o dia da sofrida retirada e a chegada na cidade nova.
Pelo que percebemos na maioria dos entrevistados, os moradores iniciaram a
vida na nova cidade com uma aversão muito grande a toda a estrutura urbana que lhes
206
apresentava, sendo que essa mesma maioria de moradores preferia a velha cidade, mesmo ela
sendo simples, mas pelo menos tinha sido organizada por eles próprios.
Em mais um trecho de elogios a sua cidade velha, dona Maria Amélia diz:
A nossa cidadezinha era pequena, mas ela também era calçadinha, ela
também tinha luz, tinha todas as coisas pequenas, num tinha grande como
nós temos aqui, mas era uma cidade bonita, uma cidade querida. Todos nós
queríamos muito bem a ela. (Ibidem).
Todos os problemas da cidade nova referentes aos muros, às ruas, a localização
longe do rio, todos identificados nas falas da maioria dos entrevistados, são também
confirmados pela análise visual das fotos e imagens da cidade nova também aqui apresentada.
Além destes problemas presentes os moradores falam ainda do tamanho das casas
da cidade nova, pois para eles as suas casas na cidade velha tinham os tamanhos definidos
pelos próprios moradores, sendo bem mais espaçosas do que essas casas construídas pela
COHEBE.
As casas da cidade velha também tinham muros, calçadas, ruas organizadas, e
grupos de casas próximas com relações de vizinhança já consolidadas por décadas. Todas
essas características nos levam a crer que até a chegada da construção da usina, a urbanização
da cidade velha estava praticamente consolidada e seguindo o seu ritmo gradual de
desenvolvimento, sem pressa e sem preocupação com pressões externas por mudaas.
Dona maia Amélia fala ainda sobre a forma como foram construídos alguns dos
edifícios públicos da cidade nova, sendo que para ela houveram alguns erros estruturais, como
nos conta a seguir sobre a construção da escola da cidade:
Aquele Grupo (Colégio João Pinheiro) ali, quando eu passava aqui a cavalo;
aquilo era uma lagoa! Eles o prepararam o terreno para fazer aquele
Grupo. Ainda hoje ele se enche de água! Eu provei! Eu disse: ‘Eu num sou
engenheiro, não sou nada; mas eu vou dizer...; Que quando nós chegamos
aqui o cartório foi pra lá; a igreja foi pra lá; que não estava construído nada!
Dona Mar disse assim: ‘Nossa Senhora ajudai que não chova!’ [E d. Maria
Amélia disse:] ‘Eu peço a Deus dona Mar, que dê uma chuva muito grossa
para a senhora ver que eu não estou mentindo. Que eu não sou engenheira,
mas não sou doida! A senhora vai ver a água dar no meio da canela hoje, que
é pro engenheiro rabo-de-cabra que fez isso aqui ficar desmoralizado! o
aterraram nada. Do jeito que estava o terreno fizeram na seca; depois veio o
inverno enchia de água ! Foi uma negação! [...] [e disseram:] ‘Dona Maria
Amélia o engenheiro é aquele ali! [E ela respondeu:] ‘Pois aquele que é bom
escutar mesmo, que é pra ele aprender engenharia, que ele num sabe!
(Ibidem).
207
Doa Maria Amélia vai mais além dos pontuais desentendimentos e segue
praticamente numa cruzada pessoal contra todas as mazelas que ela considerava graves aos
moradores de Guadalupe, num outro trecho em que ela descreve como foi feito pela COHEBE
o auxílio no fornecimento de alimentos aos moradores recém transferidos, entendendo aí que
se tratou de uma ajuda necessária por estarem os moradores com seus meios de vida alterados
por causa da obra e principalmente por causa da mudança para a cidade nova.
Dona Maria Amélia conta de forma orgulhosa as suas reações diante de
destratamentos e até de comentários desrespeitosos emitidos por alguns funcionários da
COHEBE.
Neste caso, dona Maria Amélia, sem nenhuma paciência naquele período,
passou a agir cada vez mais rispidamente com as funciorias da COHEBE, as quais lhe
faziam perguntas incisivas sobre os mantimentos e a entrevistada respondia imediatamente em
cima das perguntas.
‘Botar a cadeira?! o! Se quiserem sentar, sentem bem no chão!
Engenheiro; assistente social?! Eu apanhar cadeira pra eles?! De jeito
nenhum! ‘Não senhor! O senhor me desculpe, mas o chão está aí pra gente
sentar; eu também me sento no chão; se vocês quiserem que eu fale é tudo
sentadinho bem aí no chão! Era pra mim dizer tudo e discutir com ele. Ele
me perguntando e eu respondendo; acabando com a vida alheia. As
assistentes sociais chega esfriavam as mãos! Disse: ‘Por quê que vocês ficam
com as mãos frias?! A senhora está dizendo que está com frio?! Pois a minha
mão está é quente! Eu num estou com medo é de nada! A senhora está com
medo de quê?!’ Elas eram exigentes. Quando elas iam pra casa da gente, elas
queriam que você desse a nota do que você comia. Rapaz, eu dava uma nota
tão grande dos alimentos que a gente comia; [...] Pensando que a gente o
tinha com o que comer. Aí eu botava nessa nota tanta coisa. ‘E a senhora faz
essa despesa todinha?!’ ‘E não lhe peço nenhum tostão! Desse jeito rapaz.
Eu era bruta. Por que eu agüentei tanto desaforo delas, que fiquei desaforada.
Tudo que a gente estava botando ali na lista é por que tinha costume de
comer. Não ia pedir nada pra elas. Que a gente tinha o que comer.
(Ibidem).
Segue dona Maria Amélia nesse mesmo trecho de sua entrevista contando que
alguns funciorios da COHEBE falavam ironicamente sobre as “fracas” condições de vida
dos moradores da cidade. Dessa forma segundo ela, estas pessoas desrespeitosamente diziam
em público:
Que eles podiam pisar na gente! Eles gritavam na rua que eles comiam a
carne e nós íamos roer os ossos! ‘Não! Vocês comem o que vocês comem!
Eu como é com osso e tudo! E nós matamos o nosso e comemos a carne; tem
nada a ver com o que vocês comem. Vocês vieram achar de morrer de fome;
208
achar pra encher a barriga foi aqui! Pensava que a gente vivia morrendo de
miséria. Mas não era assim como eles pensavam. Era muito diferente! A
gente era simples, era humilde mais num passava fome, e nem miséria. [...]
Quando ofende a gente, a gente também pode ofender; mesmo que o vá
ofender moralmente, nem nada. Mas também num vai aceitar tudo aquilo
que elas queriam que a gente aceitasse, o senhor! De forma nenhuma!
(Ibidem).
Como vimos nas citações anteriores, dona Maria Amélia faz um longo e
importante relato de alguns episódios de atritos entre ela e os funcionários da COHEBE,
sendo que no primeiro as assistentes sociais e demais funcionários da COHEBE chegaram a
sua casa para conferir se ela iria realmente consumir tudo o que constava na sua lista de
mantimentos a serem fornecidos pela empresa, sendo que este epidio um exemplo mais
tenso dos conflitos que houve entre funciorios da COHEBE e alguns moradores.
na segunda citação ela relata alguns comentários blicos e provocativos que
existiram no começo da vida na nova cidade de Guadalupe. Em todas as situações a
entrevistada fala de suas reações duras na defesa do respeito aos moradores da cidade.
Prosseguindo, reencontramos dona Mundiquinha que também nos descreve em
importantes e detalhados trechos como alguns moradores encontraram as casas na cidade de
Guadalupe Nova:
Eles entregaram a casa! Quando nós mudamos pra cá, encontramos tudo
começado. As casas feitas, mas sem terminar. Por que muitas coisas num
tinha. E nós que quiser receber era preciso pagar. E além de tudo nós
tivemos que acabar de fazer as casas. Por que como é que se ia morar
numa casa no aberto; por que com as portas e as janelas, e o resto tudo
aberto. (ARAÚJO, 2006, grifo nosso).
Como vimos na citação da fala de dona Mundiquinha, a cidade de Guadalupe
Nova ainda estava por finalizar. E sobre as casas a entrevistada detalha além da falta de
acabamento, a diferenciação entre as casa dos moradores mais privilegiados, e as casa dos
mais pobres, sendo que estes últimos sofreram mais ainda com as novas casas inacabadas.
Hoje em dia é que está calçada e estão muradas as casas. As casas que eles
receberam, os povos maior, os grandes, os ricos de Guadalupe [Velha],
transformaram tudinho. [...] Mas aquelas casas velhas que eram de lá, que
eram tapadas de palha. Eles davam à casa coberta, uma sala com um
banheiro, e a cozinha. O quarto dava assim as colunas; eles
[funcionários da COHEBE] davam o material, e os donos que fechassem o
quarto. [...] A minha o piso era queimado, mas as outras dali [sua vizinhança
próxima] o piso era grosso, feito o rescaldo. [...] Como era que os pobres
que num tinham nada iam fazer de novo. Eles deram o principal, que era o
209
lugar da pessoa se servir, que a pessoa mora no interior tudo bem, mas quem
mora na cidade tem que ter seu aparelho [vaso sanitário] em casa, essas
coisas que precisa. Isso tudo eles deram. Mas precisou muitas coisas que nós
num tinha lá, e elas num deram aqui. Foi preciso nós mesmos trabalhar!
(Ibidem).
Especificamente sobre essas reclamações dos moradores quanto ao tamanho das
novas casas, o senhor Jociler rebate algumas dessas falas críticas:
O compromisso que a empresa tinha era de dar as casas construídas. Quem
tinha uma casa lá, de acordo com a família, de acordo com as pessoas eles
davam as casas. Se às vezes era uma casa grande lá, mas estavam só ele e
a esposa, como foi o caso do senhor Leovegildo Mousinho, finado Leó; era
uma casa enorme. Aqui ele recebeu uma casinha pequena. Por que quando
eles fizeram o levantamento, os filhos todos já estavam formados, e outros se
formando fora; tinha ele e a esposa, e parece que dois meninos. ele
recebeu a casa [na cidade nova] de acordo com a casa lá [na cidade velha]. A
minha mesma eu recebi praticamente murada, casa pronta. (PEREIRA,
2006).
O senhor Jociler prossegue ainda nesse pico dos critérios estabelecidos pela
COHEBE e logo no trecho abaixo esclarece que a empresa fez sua parte e que os próprios
moradores também colaboraram na finalização da nova cidade, a qual foi aos poucos sendo
concluída já com os moradores transferidos, o que para o entrevistado foi uma situação muito
normal.
Outros que num tinha quase nada, eles deram uma casinha assim. E as
pessoas foram murando, de acordo com as suas possibilidades. Tinha tantas
dificuldades não, por que a COHEBE naquele tempo, ela deu muita
assistência. [...] Foram construídas aos poucos. Mas depois a gente mudou
pra , por que ninguém vai construir tudo de vez, igreja, prefeitura, padaria,
hotel, grupos/colégios. Um dos colégios foi construído mesmo pela
COHEBE. (Ibidem).
Assim como o senhor Jociler, o senhor João Alencar participa das mesmas
argumentações sobre os critérios da COHEBE na localização dos moradores na nova cidade,
sendo que a respeito das pessoas que possuíam mais de uma casa na cidade velha, ele nos diz
que podia ter uma [casa]; Eles indenizavam a outra. Davam um terreno ou pagavam em
dinheiro. Tinham uma quinta; às vezes num queriam receber o dinheiro; eles davam um lote
de terreno. Ninguém se prejudicou. Todo mundo fez foi ganhar! (ALENCAR, 2006).
210
Num certo sentido de mistura das reclamações e justificativas, dona Maria do
Carmo fala dessas questões referentes às condições em que os moradores receberam as casas
na cidade nova.
Assim a fala dela tanto se assemelha com a fala de dona Mundiquinha, quanto com
a fala do senhor Jociler, numa espécie de conciliação argumentativa que entende as ações da
COHEBE, mas não deixa de se solidarizar com algumas reivindicações dos moradores.
Dessa forma, dona Maria do Carmo descreve-nos como foi o processo de
concessão de casas na cidade nova:
Foi limitado, e recebeu uma casa; Pra poder, acho que dar oportunidade
aos outros. Acho que foi por isso que eles temeram muito; ainda foram na
justiça; brigavam. Ali tem uma senhora mesmo que brigou. Até um tempo
desse, se falar no assunto ela ainda reclama pela casa dela. É a dona Maria
Amélia aqui, que era uma das que tinha uma das casas melhores de
Guadalupe, e recebeu uma igual aos outros. Ainda hoje reclama. [...] Nessa
parte aí, só quem lucrou mais foram as pessoas mais humildes. Pessoa que as
vezes tinha uma casinha de palha; por que aqui ninguém recebeu casa de
palha, nem de taipa. Tudo casa de alvenaria, com madeira de lei, de telha.
Foram mais contemplados do que os que tinham casas melhores; os mais
humildes; nessa questão de residência. (MOUSINHO, 2006).
No final de sua fala, dona Maria do Carmo pontua o prejuízo maior foi para os
moradores de mais posses da Guadalupe Velha, tendo sido então os pobres os mais
beneficiados na mudança para a cidade nova.
Na verdade, a fala de dona Maria do Carmo é recheada de posicionamentos
conflitantes, característica essa que demonstram entre outras coisas a sua posição social na
cidade, e ainda com a obra, a sua posição de funcionária contratada pela COHEBE.
Entretanto, vemos que mesmo com essas suas características pessoais, dona Maria
do Carmo não se permite concordar unanimemente com as posições da empresa,
posicionando-se como contrária a inúmeros problemas encontrados na cidade nova, como os
aqui discutidos das casas e ruas mal-acabadas, e outros já citados da fala dela, como o do o-
aproveitamento da mão-de-obra dos guadalupenses e da falta de investimento na educação
desses moradores que habitavam essa região e que foram transferidos com a chegada da
usina.
Inclusive sobre a questão da educação e de sua atuação neste setor durante a
construção e também após a mudança para a cidade nova, tudo isso dentro da análise maior
dos estranhamentos entre a COHEBE e os moradores, dona Maria do Carmo nos afirma que o
que houve foi
211
discriminação de Guadalupe! Foi um sofrimento muito grande; que o pessoal
se queixava muito. E outra coisa; Foi muito difícil por isso: Em vez deles se
adaptarem aos nossos costumes, que era o certo; Nós que fomos adaptados
no costume deles. As assistentes sociais ajudavam muito; mas; elas
ajudavam da maneira que era realmente certa; que eu achava que elas teriam
que começar dos nossos costumes, da nossa maneira de viver; pra depois aos
poucos...; Tanto que essas pessoas velhas morreram; o tem mais ninguém;
que meu tio com pouco tempo ele morreu; Deprimiu muito as pessoas, muito
mesmo! (Ibidem).
Ainda sobre a reclamação dos moradores privilegiados de Guadalupe a respeito do
tamanho das novas casas, dona Mundiquinha lembra das reuniões feitas na Guadalupe Velha
pelas assistentes sociais, onde o que existira mesmo, segundo ela, era um desentendimento
geral entre o discurso das funcionárias e as reivindicações dos moradores.
Eu acho que elas diziam, mas você sabe que quem sabe falar, diz uma
palavra que o outro num entende. Por que conversar com quem entende é
diferente. Agora talvez eles explicassem que era isso que eles aceitavam.
quando saia, dizia que não; que não achava bom daquele jeito. Como a
Maria Amélia que se zangava. Ainda hoje tem gente que tem queixa. Ainda
outro dia mesmo, num velório [...] estavam dizendo que as casas deles em
Guadalupe eram umas casas grandes, que tinham muitos cômodos; e aqui
eles [COHEBE] deram umas casas pequenas e os cômodos pequenos; Mas
que lá ninguém num tinha móveis como tem hoje. Qual era o móvel que eles
tinham lá; e hoje eles tem muitos móveis e acha a casa pequena pra morar. É
a base que eu digo que muitos transformaram a casa, aumentaram muito a
casa por que tem muita coisa pra botar. Agora eles [COHEBE] diziam assim
que tudo que tinha na casa do rico ia ter na casa do pobre, assim o modelo. O
trabalho deles, que eles iam fazer as casas, o material que eles iam botar na
casa do rico, botavam na do pobre. Nós recebemos a casa com banheiro,
com tudo, a luz, toda a instalação. Estava toda no ponto, ninguém foi fazer
instalação de nada. (ARAÚJO, 2006, grifo nosso).
Aqui nessa questão das casas, despontam também nas entrevistas a diferenciação
entre os espaços destinados aos moradores e os espaços destinados aos funcionários da
COHEBE na cidade nova. Para os entrevistados houve uma segregação muito forte por parte
da COHEBE durante a construção e a ocupação da cidade de Guadalupe Nova, prosseguindo
esta segregação durante os anos iniciais dessa nova vida, e sobre essa questão, encontramos a
fala esclarecedora do senhor Jociler que nos conta:
Aqui era considerada a Quadra, Vila Boa Esperaa, como uma quadra dos
funcionários graduados da COHEBE, depois CHESF. Engenheiros,
doutores, médicos, funcionários lotados, técnicos. Agora a Vila Parnaíba
não, era dos trabalhadores braçais. Está aqui pra você ver, tudo foi assim
distante. São quase cinco quilômetros daqui no centro de Guadalupe. [...]
212
No início foi pesado mesmo. Por que tinha uma separação mesmo, num
se pode negar, hoje eles reconhecem isso. Aqui num entrava ninguém. [...]
tinha água somente para aqui [bairro dos funcionários], e também para o
pessoal lá que eram funcionários deles ainda lá na Vila Parnaíba. Pó isso que
eu digo, havia uma separação das coisas. Olha foi luta pra se levar essa
água pra Guadalupe. A luz foi luta. [...] Pra Cruzeta num tinha nada, coisa
nenhuma. [...] Ora, o bairro que é à entrada da cidade, ali num tinha quase
nada! [...] Teve coisa que a gente num deve nem falar, mas teve, por que
quem era da companhia, da empresa [COHEBE] eram bem assistidos.
Já outros, o particular num tinha quase. O estado hoje está dando uma
certa assistência, mas antes era lamenvel! (PEREIRA, 2006, grifo nosso).
Na fala do entrevistado, verificamos que além da área onde foram construídas as
casas dos moradores transferidos, foram construídos ainda dois bairros especialmente
projetados e exclusivamente reservados aos funcionários da COHEBE, são esses bairros a
Vila Boa Esperança, chamada também de Quadra reservada aos funcionários mais graduados;
e a Vila Parnaíba para os trabalhadores menos graduados.
Esses dois bairros, exclusivos dos funcionários da COHEBE, além de terem sido
entregues com uma estrutura urbana mais completa do que a estrutura do restante da cidade,
também foram geograficamente separados, e estabelecidos com visíveis diferenças culturais
em relação aos espaços do restante dos moradores.
Vemos assim que o senhor Jociler, apesar de ser um dos entusiastas dos benecios
trazidos pela usina para Guadalupe, não deixa de pontuar suas críticas quanto aos problemas
neste começo da vida na nova cidade, problemas também citados por outros entrevistados
como a falta de água, e até a demora no fornecimento da tão propagada energia, produzida na
cidade, mas que chegou bem depois para os moradores transferidos. Certamente esses e outros
problemas são também potencializados pela segregação instaurada pela COHEBE entre os
seus funciorios e os demais moradores da cidade.
Na fala do senhor Jociler, assim como em falas de outros entrevistados,
encontramos a informação de que a COHEBE um pouco mais tarde foi incorporada pela
CHESF, tendo ocorrido esta incorporação mais exatamente em maio de 1973, como
conferimos num documento da CHESF (CHESF, 1998), passando a COHEBE e a Usina de
Boa Esperança para o domínio da CHESF.
Dona Maria do Carmo nos conta ainda que, no bairro dos funciorios mais
graduados, a vila Boa Esperança, chamada também de Quadra, tinha tudo e os moradores de
Guadalupe não podiam freqüentar, nem o clube, nem a escola, nada era acessível ao povo da
cidade, numa situação de segregação efetiva que estabeleceu espaços diferentes e bem
213
apartados, cada lugar com o seu devido grupo de pessoas específicas, mas todos morando na
mesma cidade.
Tinha até um clube [Bairro dos funcionários]; tem um clube que nessa
época era o pessoal de que freqüentava. Pouquíssimas pessoas de
Guadalupe tinham o direito de participar de lá. A escola era pra filho de
funcionário. Quem era de Guadalupe que o era funcionário da
CHESF, o estudava . [...] Discriminação! Ainda hoje as pessoas
comentam; Tem aquele complexo de dizer: ‘É CHESF!’ ‘É COHAB!’
Mora na Quadra! Já é um tipo de pessoa diferente. [...] Essa
discriminação está difícil de ser apagada! Isso não havia antes em
Guadalupe! (MOUSINHO, 2006, grifo nosso).
O senhor João Alencar entra na discussão deste tema da segregação e faz uma fala
com uma dupla argumentação, sendo que inicialmente ele mais uma vez justifica a autonomia
e a competência técnica da COHEBE ao definir os espaços da cidade nova de um modo, que
segundo ele foi favorável aos moradores e também conveniente a empresa, inclusive
resguardada a liberdade para serem construídas as casas dos funciorios como bem
queriam, representando a construção da cidade uma questão a parte disso.
Casas velhas maiores [cidade velha], sem uma construção feita por
engenharia. [...] E nosso ponto foi construído por engenharia. [...] Era um
sistema só, um modelo só! Você ver aquelas casas da Vila Parnaíba, Vila
Boa Esperança lá, diferente por que ali é casa de engenheiro; o projeto era
um só. Nós num tinha nada a ver com aquele negócio de engenharia deles lá,
não cabia a nós. [...] era um povo rico. Aqui em dizer assim que
morava na Vila, ave Maria! morava gente grande lá. Até o comércio se
fosse oferecer uma coisa, se morasse na Vila, oferecia tudo que tinha pra dar.
Mas o sistema é um só! Esses projetos que eles fazem as casas é tudo um
tipo só. Agora a casa deles, eles fazem como bem querem, ninguém vai
atrás. Foi bom por que deixou tudo pra nós aí. Ali [Quadra] agora já dar uma
cidade, tem a cinema, tem clube, tem tudo, uma riqueza doida. [...] Depois
foi que eles cederam. Foram embora e cederam pra s. A Vila Boa
Esperaa, a Vila Parnaíba. Mas nesse tempo era deles. (ALENCAR,
2006).
Por outro lado, o senhor João Alencar termina por concordar com os outros
entrevistados ao descrever a grande separação que havia entre os espaços dos funcionários e
os espaços dos moradores, havendo inclusive nessa época barreiras de segurança entre a
cidade e área residencial dos funcionários da COHEBE.
Pra ir pra lá [bairro dos funcionários] é obrigado com permissão. Num tem
essa conversa de prefeito. Eu como prefeito, minha menina foi atropelada
ali, e o hospital era na Vila [Parnaíba], era feito de bua; Levaram a
menina pra lá, e eu sai daqui correndo. Quando cheguei na barreira pra
214
passar, eles num deixaram o carro passar; eu deixei o carro e fui de pé.
Passava ali só com ordem. Era tudo da COHEBE. (Ibidem).
Lembremos novamente que nesse período o Brasil esteve sob o controle dos
governos militares, e que haviam cuidados redobrados em áreas estratégicas como essas áreas
no entorno das hidrelétricas, percebendo assim que essa vigilância provavelmente era
motivada por um provável temor a atentados ou sabotagens por parte de oposicionistas.
Além dessas considerações contextuais, entendemos que estas barreiras não
deixam de ser necessárias por se tratar de uma área de usina hidrelétrica que ocasionalmente
pode trazer perigos as pessoas, o que felizmente nunca veio a acontecer.
Por outro lado, ocorreram muitos estranhamentos entre os funcionários e os
moradores, os quais poderiam ter estabelecido condições de relacionamentos mais
harmônicas, isso se a COHEBE tivesse adotado critérios mais iguais no tratamento desses
grupos que eram diferentes, mas que, no nimo, mereciam os mesmos direitos.
A COHEBE, para evitar, ou pelo menos amenizar essa segregação e seus
malefícios, poderia não ter optado por uma separação tão brusca como a que foi feita em
Guadalupe, com os bairros dos funcionários praticamente apartados das outras áreas da cidade
onde estavam os outros moradores.
Pelo lado dos argumentos da própria COHEBE, encontramos nos documentos
dessa empresa poucas referências às questões urbanísticas das novas cidades constrdas,
priorizando-se assim as questões mais técnicas e operacionais, as quais ocupam a imensa
maioria desses documentos escritos.
Especificamente sobre os padrões em que foram construídas as novas cidades
encontramos um trecho bem pontual em que se afirma o seguinte:
Um aspecto bem característico da COHEBE diz respeito ao cuidado muito
especial de transferir e realojar as populações que habitam toda a extensa
região ribeirinha, cujas terras vão ser cobertas pelas águas resultantes do
represamento do rio Parnaíba. A COHEBE construiu uma nova cidade no
Maranhão [Nova Iorque] e outra no Piauí, [Guadalupe] para substituir as
atuais que serão submersas. [...] Reconstruídos em lugares apropriados e
dentro de moderna técnica urbanística, todos os novos centros
populacionais, nesta altura, abrigam os moradores das aglomerações
urbanas e rurais provenientes dos antigos centros que terão de desaparecer.
Na urbanização das cidades, foram levadas em conta, tradições e
hábitos das populações a relocar. (COHEBE, 1969, p. 17, grifo nosso).
O texto do documento da COHEBE, datado do ano de 1969, encontra-se redigido
numa linguagem bem clara, em que a empresa apresenta o que ela defende como a sua correta
215
atuação na localização apropriada das cidades, na definição de padrões urbanísticos
modernos, e ainda, respeitando os costumes históricos dos moradores durante a construção
dessas novas cidades.
Mas estes procedimentos não são confirmados pelos depoimentos dos moradores.
Pelo contrário. O que vimos até aqui são na verdade os relatos de queixas desses moradores,
exatamente relacionadas a estes pontos das localizações das cidades, do formato das casas e
das ruas, e do respeito à cultura local, como fatores imprescindíveis num processo em que se
procurasse minimizar os impactos sofridos pela população transferida.
As tantos trechos de depoimentos com detalhes de tantas questões polêmicas
seguidas de nossas análises críticas, chegamos agora ao fechamento de nossa narrativa com
algumas considerações finais dos moradores sobre todo esse processo de mudanças, fazendo
eles algumas comparações entre as cidades velha e nova, logo mais a frente as revelações dos
seus sentimentos mais especiais para com a cidade de Guadalupe, especialmente em relação a
cidade velha.
Neste ponto os entrevistados se permitiram, em trechos mais diretos e integrais,
fazerem uma breve avaliação dos pontos positivos e negativos na transferência das cidades,
abrindo espaço para mais ponderações acerca da comparação entre o velho e o novo, e o
significados de tudo isso nas suas vidas.
Dona Ana Luiza esclarece ainda alguns pontos sobre a mudança, pontuando assim
diferenças entre os grupos de moradores jovens e os mais idosos, sendo que, segundo ela,
cada um desses grupos reagiu de uma forma diferente à mudança da cidade. Assim, ela diz:
Pra mim num fez muita diferença não, por que nós morávamos no interior, e
aqui só ficavam meus filhos. nas nossas terras a água não chegou a
atingir a nossa casa. que aqui a gente tinha uma casa pra os nossos
filhos, aí essa casa é que a COHEBE indenizou a gente, e mudamos pra essa
casa aqui [cidade nova]. Mas era pros nossos filhos morarem. Por isso
que pra mim num fez muita diferença o. Agora pra mocidade, ah isso foi
bom demais, a mudança. O movimento todo, as novidades, muitas pessoas.
Mas pra mim mesmo, num senti muito a muda não. [...] Pra mim
melhorou aqui [cidade nova], por que as casas são boas, e por que
aqui tem tudo, tem dico, e outras coisas que [cidade velha] num
tinha, por que lá era mais pequeno. Aqui melhorou muito,
principalmente para os mais novos. (SILVA, 2006).
Dona Maria do Carmo faz assim a sua reflexão comparativa:
Da minha parte eu achei melhor a muda, por que eu vim pra cá na época que
216
meus filhos estavam precisando estudar, e a escola quando era da CHESF,
era muito boa, e como eu era funcionária; eu nem sei como era pra ser se eu
tivesse continuado lá [cidade velha]. Novas possibilidades de vida, não resta
dúvida. Melhorou muito na questão de saúde, educação, trabalho, empregos;
Hoje, a qualidade de vida mudou muito. É uma cidade pequena; mas é um
pessoal idealista; tem progredido muito. (MOUSINHO, 2006).
O senhor Jociler faz questão de participar desse momento de auto-avaliação das
cidades velha e nova de Guadalupe, e sobre isso ele faz a seguinte reflexão:
A nossa velha cidade, que agente era feliz e num sabia! A vida era mais
tranqüila, com muitas dificuldades, mas a gente tinha uma vida muito feliz,
muito tranqüila. [...] Lá na nossa Guadalupe Velha, antiga Porto Seguro, nós
num nhamos quase nada da educação, uma escola singular mista
[Colégio João Pinheiro.] s num tínhamos o transporte, comunicação;
muito arcaico. Aqui [cidade nova] nós tivemos assim, uma transformação,
um giro de cento e oitenta graus, vou dizer logo. Por que num tinha nada, e
aqui hoje nós temos vista a outra lá, s temos tudo. Foi grande a
transformação! [...] As melhorias foram mais por que o que o que s temos
hoje saúde, comunicação, a cidade está bem. (PEREIRA, 2006).
o senhor João Alencar, faz de início, uma fala em que esclarece a sua pouca
lembrança da cidade de Guadalupe Velha, isso porque ele saiu de lá logo cedo, sendo que
ainda assim ele tenta entender, mesmo que muito parcialmente, a eterna saudade que os
moradores cultivaram em relação àquela velha cidade.
Eu mesmo num posso dizer que tenho muita saudade de Guadalupe Velha,
por que eu já quis vim para aqui. Por que bastou o tempo que eles
viveram ali. Aquela tranqüilidade, como dizia o L, viver-se burramente
naquela tranqüilidade, sem nenhuma instrução, sem nada! Eu acho que
num cabe nem ter saudade, pode ter é lembrança! Eu, com franqueza, eu
fui menino em Guadalupe, quando fui pra Teresina eu era menor de idade,
passei a minha vida toda em Teresina. [...] lembrava muito pouco de
Guadalupe, só por que minha mãe morava lá, mas depois que minha mãe
morreu, só ficou meus irmãos, aí trouxe tudo para aqui, acabou a lembrança.
[...] Aquela saudade da terra, aquilo ninguém tira deles não! Ficou sempre
naquela lembraa. Outro dia uma pessoa veio aqui e me perguntou o quê
que eu dizia desse pessoal daquela cidadezinha longínqua, atrasada. eu
disse: ‘O amor da terra e do povo, esquecia o sofrimento! Eles tinham aquele
amor a terra e esqueciam o que sofriam ali. (ALENCAR, 2006, grifo nosso).
Percebemos que o senhor João Alencar faz questão de considerar que todo aquele
arcaísmo fora superado pela chegada do desenvolvimento promovido pela usina e pela nova
cidade. Em poucas palavras: o tempo da cidade velha passou, e chegara a vez de novos e
modernos tempos!
217
Segue o senhor João Alencar numa fala comparativa reforçando definitivamente a
sua defesa das grandes melhorias alcançadas por Guadalupe ao ser reconstruída no novo local
escolhido. Ele então reitera a sua posição de defensor da mudança e ao mesmo tempo
expressa emocionado o seu prazer em ter sido o prefeito que trouxe a cidade para este novo
lugar.
O sofrimento era muito grande! A melhoria foi excelente! Ninguém
perdeu nada, nós só fizemos foi ganhar. Todo mundo ganhou. Gente que
vivia em situação difícil, hoje aqui es em boa situação. [...] Pra mim é
até um orgulho, eu me sinto até assim realizado em comprar esse chapadão
monstro aqui, e ver hoje essa cidade importante encravada aqui. Pra mim eu
fiz tudo. É comprar esse chapadão na esperança de um futuro melhor, e
esse futuro chegou. E eu vejo hoje isso tudo com satisfação, a cidade
moderna, uma das cidades mais importantes do Piauí, ligada a uma obra das
mais importantes do Nordeste. Só posso ter satisfação, e a mesmo me
considero realizado, acho que fiz tudo que eu podia fazer aqui por minha
terra! (Ibidem).
Dona Maria Amélia, sempre muito crítica da mudança, chega nesse ponto do texto
com uma fala interessante em que defende a cidade e a evolução natural que havia lá antes da
usina, prosseguindo com a afirmação da forte saudade que sente da sua “divina cidade”.
em Guadalupe eu gostava demais, não posso falar. Nem vou dizer que era
feia. Era uma cidade simples. Mas estava crescendo. Ela cresceu tanto que
es aqui grande pra todo mundo ver. O que é isso?! Dádiva divina! Por que
era um presépio divino. E mudou pra cá, mas era bonitinha a cidade de
Guadalupe; Boazinha; maravilhosa; eu só faço é elogiar. Um povo todo
amigo. Num tinha essas coisas feias de hoje, de tanto tormento. [...] Tinha
uma pessoa que tomava uma coisa e outra, mas decente. Era muito bonito.
(FONSECA, 2006).
Instigamos um pouco mais as lembranças de dona Maria Amélia, e perguntamos
novamente a ela se a sua casa ficava próxima ao rio, e prontamente tivemos a resposta:
Só fazia descer do quintal! Ainda hoje tenho uma cerca aqui que os meninos
num quer que eu desfaça, por que eu trouxe de pra cá. Os meninos vem
olhar [e perguntam:] ‘A senhora ainda lembra dona Maria Amélia, de onde é
essa cerca?’ [Ela responde:] ‘Sei! do quintal que nós passávamos pra
banhar. Num tinha a porteirinha, pode olhar. Pois está aí a cerca velha. Está
até querendo cair, eu vou mandar reformar ela agora. (Ibidem).
Como vimos esses são certamente alguns dos sentimentos mais fortes da moradora
em relação a sua vida na velha cidade, representando o rio, o ente mais forte dessa cidade, e
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que com a sofrível falta deste na cidade nova, ela resolveu pelo menos trazer uma cerca velha,
que não pôde trazer o rio consigo. A preservação desta cerca se faz até hoje necessária
simplesmente para se lembrar daqueles momentos em que ela e outros guadalupenses
passavam todos os dias para os banhos neste saudoso rio.
Segundo ainda dona Maria Amélia, as suas memórias se encontram compostas
exclusivamente das imagens que ela tem guardadas no seu íntimo, a sua essência de
guadalupense! Sendo que, nesse mesmo sentido, ela não se sente morando na nova cidade, e
até mesmo os seus sonhos se passam naquela cidade de Guadalupe Velha.
Pra falar de Guadalupe, eu?! Deus que me livre! Eu nem me sinto morando
aqui, tu acredita. Eu me sinto morando . Eu nunca sonhei morando
nessa cidade! Eu sonho morando naquela linda e antiga cidade de
nosso coração! A saudade é muito grande. Nunca apagará. Vamos morrer
levando ela no coração. (Ibidem, grifo nosso).
Assim como todas essas riquíssimas falas até aqui apresentadas, neste final nos
reencontramos especialmente com um trecho do depoimento de Dona Mundiquinha que trata
das inconseqüências dos homens ao interferir na natureza, sobretudo no caso da mudança da
velha para a nova cidade de Guadalupe, e de todas as implicações que existiram na mudança e
no choque entre esses dois modos de vida diferentes, o antigo mais simples, e o novo mais
complicado.
Nesse ínterim ela pondera alguns benefícios e malefícios que advieram desse
processo de construção da usina na sua cidade, tocando ainda sutilmente na questão dos novos
costumes definidos principalmente pelo consumismo exacerbado. Tornam-se estas suas
considerações uma análise indireta dos impactos da penetração da economia de mercado
naquela pequena cidade, o que evidentemente fora bastante acelerado pela obra da Usina de
Boa Esperança.
Certamente esta obra potencializou este mesmo processo de desenvolvimento em
outras cidades piauienses e maranhenses, resguardando-se as devidas proporções de cada
caso.
Avançamos um pouco mais com as palavras de dona Mundiquinha que nos fala
brilhantemente sobre esses e outros assuntos, e assim vai aguçando cada vez nossa admiração
nesta sua declaração, que apesar de ser um pouco longa, a sua integra exposição se ims pelo
nível de detalhamento e ao mesmo tempo de ênfase aos temas estudados aqui nesse nosso
trabalho de pesquisa.
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Vejamos então este texto no qual dona Mundiquinha nos presenteia com
interessantes reflexões.
Deus não é quem fez tudo?! E os homens destroem! Este rio, pra q ele
cortado?! Pra tirá-lo do canal que era, pra quê?! Pra nós comprar
água?! Eu num digo a luz [energia], por que a luz a gente sente falta, mas
a água é a principal. O sujeito se achar sem a água como é que vive?! Deus
botou a água, Deus fez tudo no lugar certo. o homem destrói tudinho!
Desmancha, passa uma parede pelo meio, corta por aqui, por acolá. [...]
Aqui a gente teve a oportunidade de ter tudo. Mas lá em Guadalupe nós num
tinha nada, mas no mesmo instante tinha tudo. Sei que aqui é bom pra gente
gastar. [...] Eu fico pensando assim, como é que veio uma coisa dessa cortar
um rio. Tanta água que a gente tinha de graça. Hoje pra gente ter é
comprada! Isso aí é uma coisa que pesa na gente! É o que eu mais sinto aqui.
O Duca Coelho, pai do José do Egito, ele dizia pra nós: ‘Vocês vão pra
Barragem [Guadalupe Nova], a Barragem vai ser um Cativeiro
Educado!’ E é mesmo! Por que aqui é bom, tem tudo, tem médico, mas
também haja dinheiro pra viver num lugar, pra quem num tem um meio de
vida. [...] ele queria dizer que era um Cativeiro Educado assim, por que a
gente tem que pagar pra poder possuir. Aí lá [Guadalupe Velha] não, tudo a
vontade. Quem é que pagava nada. Ninguém num comprava nada.
Principalmente no alimento. [...] a gente tinha toda a liberdade de
criar o que a gente queria, e aqui a gente num pode criar uma criação, como
até hoje num pode. As casas de eram imendadas umas nas outras. Cada
qual fazia a sua casa aonde queria; fazia do jeito que queira. Num era
como aqui que tem que ser na linha. [...] O Cativeiro Educado aqui é
assim. Por que nós num tinha fogão a gás; nós num tinha geladeira; nós
num tinha o que nós tem hoje. E aqui a gente tem por necessidade. Mas
agora aqui é que é o negócio: paga água, paga luz e compra o gás. É três
objetos que ninguém acaba de pagar nunca! [...] O dinheiro tem que
dar. (ARJO, 2006, grifo nosso).
Para entendermos bem esse sentimento de amor dos moradores de Guadalupe em
relação a sua terra, relembramos a todo momento de todas as falas citadas dos moradores
sobre a singeleza, a originalidade e a beleza que aquele pequeno lugar despertava nos seus
filhos.
Na intenção de reforçar essa relembrança, mas sem retroceder tanto até as falas,
continuamos com a fala de dona Mundiquinha sobre o extremo valor que tinha aquele lugar
para os seus entes queridos, e mesmo ela que, não nasceu, e lá só chegou aos vinte um anos
de idade.
Assim ela fala alegremente como era boa aquela vida simples na cidade de
Guadalupe Velha, e como foi triste perdê-la para sempre.
Eu imagino assim, eu num sou filha de Guadalupe, mas eu senti muito a
minha muda. E tem gente que é filho de que diz que nem se lembra, que
220
nem se lembra de ! Pois eu me lembro, era um interior, a gente podia
dizer que era um interior, mas era o nosso lugar! Num era agregado, num era
de dizer eu moro nos terrenos alheios. Pois é aí a saudade que a gente tem é
isso! (Ibidem).
Tão forte é esta saudade que os moradores de Guadalupe transformaram as
lembranças daqueles tempos passados numa festa comemorativa, preservando assim as suas
mais preciosas reminiscências históricas. Realizou-se então logo após a mudança para a
cidade nova, a primeira Festa da Saudade que consagrou todas essas lembranças à medida que
iam superando os impactos das mudanças, inclusive à aceitão da nova vida, permanecendo
ainda assim algumas contrariedades.
Assim finalmente fecharemos as apresentações narrativas de nossos entrevistados
com a descrição desse evento, a Festa da Saudade, que fora organizada pelos moradores no
ano de 1975, ou seja, oito anos depois daquela dolorosa saída da tão querida e saudosa cidade
de Guadalupe Velha. A mesma que eles não deixam de lembrarem em nenhum momento das
suas entrevistas, até os mais entusiastas da obra, e os mais desgarrados dos velhos costumes;
todos se deixaram levar por alguns instantes de lembrança nativista.
Narramos a Festa da Saudade com a fala especial da moradora que até hoje é a
encarregada de organizar esta festa, essa moradora é dona Maria do Carmo, que relembra:
Passei muito tempo indo passar fim de semana em cima do morro. [...] por
que o rio ainda hoje você indo você ver direitinho aonde era a rua, a água
marca assim, [...] e a gente ver o jeito da rua. [...] a Câmara deveria
colocar um Memorial, um marco, alguma coisa, chegar algum filho aqui da
cidade e ver. [...] s ainda fizemos uma Festa da Saudade, não na cidade
mesmo, na margenzinha do rio, na casa do senhor João Machado, que a
cidade estava inundada. Aí nós fizemos a primeira Festa da Saudade lá.
s fizemos uma latada lá pra poder comemorar a Festa da Saudade. E ainda
hoje nós comemoramos essa festa, todos os anos eu sou encarregada dessa
festa, dos filhos de Guadalupe, filhos ausentes. (MOUSINHO, 2006).
Dona Maria Amélia também faz questão de falar sobre esta primeira Festa da
Saudade neste lugar na entrada da velha cidade.
A saudade é profunda, nunca acabará! teve a Festa da Saudade. A gente
ainda via assim partes do Cemitério, via o Morro da Marcolina. Rapaz,
aquilo dava uma saudade, que eu nem sei. Ave Maria! Uma coisa, doía! A
gente chorava, tem muita gente que chora. Eu que num quis mais chorar,
chorei muito; muita saudade; vida toda construída. (FONSECA, 2006).
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Aqui recordamos mais uma vez do nosso personagem inicial, o vaqueiro viajante.
Ora que coincidência mais interessante termos começado esse nosso texto narrando uma
história de um morador exatamente chegando à cidade por essa entrada onde ficava o
Cemitério.
onde ele parou e contemplou o início do dia na Guadalupe Velha, num
momento totalmente especial em que àquela cidade ainda existia integralmente, período ainda
do começo de todo esse processo de mudanças. Esse local da entrada da cidade mencionado
no começo da nossa narrativa, e que lembra o começo da própria história de Guadalupe, foi o
mesmo local onde mais tarde se fizera à primeira Festa da Saudade quando os moradores se
despediram daquele local especial.
Para além dessa pontuação, entendemos que esse local marcou muito mais do que
começo e fim da história desta cidade. Mais importante ainda foi perceber que a partir dele, os
moradores iniciaram um processo de ressignificação das suas memórias, as quais são
arrematadas aqui neste final de texto.
O que surgia agora a partir dessa primeira Festa da Saudade, foi uma iniciativa
mais consolidada de adaptação à vida na nova cidade, reconstruindo-se assim com uma pitada
de novas perspectivas, mas resguardando aquela boa dose de valorização das lembranças da
velha vida na velha cidade.
No auge da celebração de todas essas suas memórias, os entrevistados passaram a
revelar o que havia de mais íntimo neles em se tratando da Guadalupe Velha. E assim, todos
eles encerraram suas falas em momentos semelhantes em que lhes foi feita a seguinte
pergunta: “O quê que havia na Guadalupe Velha de que você mais sente saudade?”.
Tendo em vista que alguns deixaram escapar essas suas respostas ao longo de
tantas outras falas, selecionamos três trechos finais e mais emocionantes das falas de três
entrevistados, revelando-se então as suas maiores saudades da Guadalupe Velha.
Começamos por dona Maria do Carmo que não titubeia e nos diz: O que eu mais
penso e tenho saudade é do rio. Não resta dúvida! Da beira do rio que era muito saudoso!
(MOUSINHO, 2006).
Logo em seguida temos um trecho de dona Mundiquinha que afirma: ‘o que eu
mais senti falta de Guadalupe Velha...; eu senti falta de de muitas coisas; mas o que mais
me servia era a água! [...] Num se pode passar sem ela; E foi quem me deu vida em
Guadalupe! (ARAÚJO, 2006).
Para fechar, tivemos neste um momento interessante do final da entrevista do
senhor Jociler, o qual, ao ser questionado sobre o quê que ele mais sentia saudade da
222
Guadalupe Velha, ocorreu dele se paralisar brevemente, retornando após uma profunda
respiração, para finalmente dizer a nós de forma muito sincera e extremamente concisa, que
na Guadalupe Velha o quê ele mais tinha saudade era da VIDA! (PEREIRA, 2006).
A seqüência que apresentamos, mostraram boas e emocionadas respostas destas
pessoas que fizeram e ainda fazem a história desse lugar constantemente transformado: Porto
Seguro do Piauí, Guadalupe de outrora, e hoje a Guadalupe Nova.
Chegamos inadiavelmente ao final de nosso texto narrativo, abrindo ainda um
pequeno espaço para algumas considerações acerca dos temas gerais e específicos tratados ao
longo de toda essa jornada, apresentando assim mais livremente as nossas observações
pessoais e, sem vida, com fortes inspirações nas diversas passagens textuais até aqui
citadas.
223
CONSIDERAÇÕES FINAIS
um ditado popular que diz que a esperança é o último sentimento a morrer nas
pessoas, sendo que algumas pessoas são mais crédulas do que outras em se tratando do cultivo
deste sentimento tão nobre. Especificamente no nosso caso, fazemos parte da maioria dessas
pessoas, as quais ainda consideram a necessidade de sempre termos esperança, nem que seja
apenas um fio frágil, mas resistente o suficiente para alcançar-se o almejado destino feliz.
Em se tratando da Usina de Boa Esperança construída no Piauí na década de 1960,
a esperança surge a partir do nome escolhido para a hidrelétrica, referência direta ao nome
do local onde ela foi construída, a Cachoeira da Boa Esperança.
No entanto, o que pretendemos discutir nesta parte final deste texto, é exatamente
os significados de todas as esperaas que foram anunciadas com essa grandiosa obra
realizada no estado do Piauí, desde a sua propaganda que lhe concedera um caráter
salvacionista, até a sua constatada importância com a geração de energia a toda esta região
dos estados do Piauí e do Maranhão, permanecendo, mesmo com mudanças, neste papel até
os dias atuais.
A usina hidrelétrica no Piauí começa então sob o signo da esperança, trazendo
consigo todo um conjunto de mudanças reais, sendo que o mais propalado de todos foi o
fornecimento de energia em abundância para centenas de cidades piauienses e maranhenses, e
junto com isso, todas as implicações econômicas e sociais proporcionadas pela instalão
desse setor de infra-estrutura em toda essa região.
Além disso, por conta da obra ofertaram-se milhares de empregos, a maioria
durante a construção, mas também uma parcela menor que permaneceu depois, seja em
Guadalupe cidade-sede da hidrelétrica, seja em outras cidades por conta da estruturação deste
e de outros setores produtivos.
Todos esses resultados dessa grandiosa obra são factuais e dispensam maiores
comentários. Entretanto, o que buscamos fazer com a realização desta pesquisa foi verificar
o apenas a situação presente desse investimento realizado aqui nessa região, mas
principalmente, concentrarmos nossos olhares no início de todo esse processo, exatamente
quando alardeou incansavelmente uma inevitável Redenção Econômica, a qual seria
primordialmente alcançada a partir da obra da Usina de Boa Esperança.
É isso que vimos nos jornais de Teresina da época, os quais ao tratarem da obra em
questão, não poupam espaços para afirmarem categoricamente que o Piauí, juntamente com
224
toda essa região, finalmente sairia do atraso econômico e social seculares, e ingressaria num
futuro certo de grande desenvolvimento.
O que vimos então é que, ao olharmos essa massiva propaganda em torno da obra
da Usina de Boa Esperança, mirando um pouco mais a frente, depois da sua inauguração em
1970, logo percebemos a fragilidade dessas declarações ufanistas, as quais demonstram assim,
uma falta de fundamentação acerca de um processo de soerguimento estrutural, que entre
outros objetivos, pudesse contribuir decisivamente pra reversão do quadro de estagnação
produtiva do estado do Piauí e empobrecimento de seu povo.
Não precisamos ir muito longe no tempo e no espaço para conferirmos essa nossa
reflexão, basta vermos que realmente este processo ainda hoje não ocorreu devidamente,
como deveria, com uma iniciativa bem mais enraizada de estruturação econômica e social,
para que aí sim, se alcançasse o objetivo maior do desenvolvimento do estado e da região.
Para enfatizarmos mais ainda este nosso argumento, colocamos para discussão o
fato de que algumas comunidades interioranas demoraram ainda algumas cadas para
usufruir da energia gerada pela Usina de Boa Esperança, algumas comunidades inclusive do
município Guadalupe e a poucos quilômetros dessa fonte geradora.
Pode-se dizer que comunidades como essas não representariam prioridades no
Projeto de Boa Esperança, concentrando-se primeiramente nos médios e grandes centros
urbanos, para depois e de acordo com as possibilidades, fosse se alcançando lentamente
esses outros lugares menores.
Aqui começamos a aprofundar um pouco mais a nossa reflexão, ao nos
questionarmos se esse elementos restritivos posteriores faziam parte dos discursos dos
planejadores, executores e também dos propagandistas do projeto da Usina de Boa Esperança,
os quais na época da construção diuturnamente apresentavam os grandes objetivos da obra.
Os mais resistentes podem simplesmente pontuar definitivamente que a usina até
hoje possui um papel muito importante no Piauí, tendo inclusive contribuído para o avanço do
estado, mesmo que o totalmente como se previra. Feitas essas considerações, aproveitamos
para participarmos em parte delas também, haja vista que concordamos que esta obra de infra-
estrutura passou a exercer um papel imprescindível na economia e na sociedade piauiense,
permanecendo com este papel até os dias atuais.
Mas novamente direcionamo-nos ao centro de nossa pesquisa, que justamente o
clima da obra e todas as questões suscitadas por ela naquele momento. Dentre essas questões
destacamos o elevado grau exagero nas promessas que foram atreladas somente a obra da
hidrelétrica. Aqui nós encontramos todo o problema, porque na época da construção e da
225
massiva propaganda da obra, os responsáveis pela construção e pela propaganda, em nenhum
momento dirigiram-se aos piauienses alertando que a obra era importante, mas ela sozinha
o resolveria o atraso do estado, pelo contrário, seria ela o estopim definitivo de um
desenvolvimento nascente.
Ressalvamos aqui, algumas poucas observações mais realistas, entre elas as
declarações feitas pelo professor Raimundo Santana, nas quais ele alertava para a necessidade
serem feitos outros investimentos em outros setores importantes no estado e que não no
setor de energia, pois assim se conseguiria um desenvolvimento estruturado do estado do
Piauí.
Nesse caso, para esse intelectual não bastava estabelecer as condições básicas de
integração do estado Piauí ao restante da economia nacional, e para isso, deveriam ter sido
feitos muito mais investimentos do que somente a instalação de uma usina hidrelétrica, por
mais grandiosa que esta obra por si represente.
Então, para nós esta pesquisa esclareceu o fato de que a Usina de Boa Esperança
trouxe, sim, boas esperanças ao Piauí, representando até hoje esta hidrelétrica um papel
importante de atendimento a esse povo piauiense tão sofrido.
No entanto, o tempo passou e tratou de diluir boa parte daquelas maiores
esperanças depositadas por alguns setores poticos, econômicos e intelectuais do estado e do
país, abrindo-se aqui um espaço de possíveis diálogos acerca dos erros na transfencia dos
moradores, sendo oportuno ainda, um chamado a auto-crítica destes que alimentaram tão
desmesuradamente esta “esperança” incompleta.
È claro que ressalvamos aqui, assim com em algumas outras partes do texto, a
constatação de que a hidrelétrica sozinha não poderia resolver todas as questões relativas ao
desenvolvimento local. Mas até mesmo esta conclusão, a qual o é tão difícil de se fazer,
poderia ter sido melhor considerada na época, sendo que inclusive alguns alertas, mesmo
poucos e até isolados, se fizeram presentes naquele período, tendo sido praticamente todos
desconsiderados pelas autoridades estaduais e federais da época.
O que dizer então finalmente dos moradores de Guadalupe que sofreram todo este
processo de choque pela inundação de sua amada cidade original, sendo então a partir daí
transpostas as suas vidas para um novo lugar inacabado e com sérias discriminações neste
tratamento dado a eles moradores menos privilegiados, e aos funcionários da COHEBE,
sobretudo os mais graduados, estes um grupo posto em Guadalupe como os mais
privilegiados.
226
A partir do contato que tivemos com as informações expostas pelos moradores nas
entrevistas, sentimos mesmo que uma obrigação de ponderarmos o discurso dos executores da
obra de que Guadalupe Nova seria uma cidade muito melhor do que aquela velha e simples
cidade até então construída pelos moradores.
Inclusive entendemos alguns argumentos evolutivos estruturais destes técnicos da
COHEBE, sobretudo em contraposição as condições sanitárias e econômicas daquela pequena
cidade. Mas imediatamente, superamos esse entendimento mais técnico e até de
estranhamento cultural, e passamos a recuperarmos as idéias gerais da maioria dos moradores
de que aquela sua cidade de Guadalupe Velha caminhava seus passos naturais, e que mesmo
sem a usina avançaria também nessas questões.
Novamente esclarecemos que, é claro, a usina acelerou em alguns aspectos este
desenvolvimento local guadalupense, mas mesmo essa nova cidade, teve logo no começo
graves carências, como falta de água, de calçamento, de muros ao redor das casas, etc., o que
transpareceu aos moradores que aquela Boa Esperança” alardeada não se confirmou como
havia sido dito a eles.
O que deixamos claro aqui é certamente a nossa posição em entendermos melhor a
posição dos moradores ao defenderem tanto a beleza, assim como a sustentabilidade da sua
pequena cidade, observada aí novamente a sua evolução gradual.
Corroborando com esta nossa reflexão, continuamos a nos valer das falas dos
próprios moradores, os quais também em maioria concordam que a cidade de Guadalupe
Nova é melhor em muitos aspectos em comparação a cidade velha. No entanto, a maioria
deles defende o direito de existência daquela cidadezinha na margem direita do rio Parnaíba, a
qual também era boa, mesmo que proporcionalmente, sendo que em nenhum momento eles
abrem mão das melhorias conquistadas na cidade nova, mesmos as melhorias que demoraram
a se concretizarem.
Ainda tão delicado como o caso da população urbana de Guadalupe, ocorreu
também aos moradores nas comunidades interioranas do município que assim como os
moradores da zona urbana, também viveram de perto todo esse processo em que se
propagandeava o futuro melhor com a energia que chegava, e logo depois de perderem suas
casas ainda esperaram por décadas para ter acesso a esse serviço importante e que, inclusive,
lhe fora prometido como justificativa para todas as mudanças, desde as mais simples até as
mais complexas.
Mais uma vez poder-se-ia dizer que o futuro dependia não somente da atuação da
COHEBE, e, em se tratando da distribuição, necessitava haver uma atuação essencial das
227
subsidiarias locais, no caso do Piauí a CEPISA (Centrais Elétricas do Piauí S. A). Porém,
nenhum desses esclarecimentos foi oferecido aos moradores lá no momento crítico da
construção e da mudança.
É por isso que priorizamos em nosso texto a apresentação das respostas dos
moradores a todas estas questões, os quais apesar de não concentrarem em todas essas
questões polêmicas, aproveitam este espaço para expressarem suas opiniões sobre todo esse
processo, surgindo assim de forma especial em suas falas, as marca das lembranças que os
moradores não deixaram perder, e que aqui foram narradas numa contribuão parcial, como
são todas as narrativas.
Finalmente, fazemos questão de enfatizar novamente as nossas considerações
acerca do importante papel da Usina de Boa Esperança para todo o estado do Piauí,
entendendo assim que, em grande parte, ela foi sim uma “Boa Esperança”, pois trouxe para
essa região algo muito necessário que é a energia elétrica em abundância.
Neste mesmo sentido, enfatizamos também que este nosso texto, de forma
dedicada e singela, se fez primordialmente visando uma recomposição da história geral de
Guadalupe, e principalmente, que seja feita esta recomposição não por aquelas memórias
mais repetidas e oficiais, mas também por estas que andavam um pouco apagadas, e que agora
ressurgem juntamente com seus protagonistas fiéis, os quais nos felicitaram com falas ricas e
encorajadoras, consagrando-se estes personagens como eternos guadalupenses.
Não nos vem mais nada na mente a o ser a força das lembranças contadas por
estas pessoas a quem tivemos o prazer de conhecer. Justamente, elas que com gestos e
palavras expressivas desvelaram um passado considerado por outros remoto, mas que na
oportunidade desta pesquisa foram fortuitamente compartilhados.
Lembramos que as narrativas resguardam algumas diferenças entre si, o que é
compreensivo pela essencial personalidade que cada um deles apresenta. No entanto,
percebemos que em sua maioria eles permanecem unidos pela saudade e o amor àquela terra
outrora perdida nas águas do Lago da Boa Esperança, mas que pelo que vimos e ouvimos,
permanecem guardadas carinhosamente nos corações destas pessoas.
Tocou-nos bastante essa experiência com os entrevistados, tanto que apesar do
nosso contato juvenil com a cidade de Guadalupe, sentimos profundamente todos os
significados de força e beleza que estas entrevistas nos passaram.
Para fecharmos o texto de uma forma menos formal, mas ainda permanecendo na
viagem das falas dos nossos entrevistados, e especialmente nas histórias do nosso vaqueiro
guadalupense, pensamos em alguma mensagem que pudesse ao mesmo tempo transmitir a
228
riqueza descritiva das suas falas, e também homenagear as suas vidas ligadas aquele pequeno
e amado lugar.
Por felicidade, lembramos de uma música sertaneja muito conhecida, um forró-
baião dentre tantos consagrados de autoria de Luiz Gonzaga, este pernambucano-cearense
como ele mesmo se intitulava, nordestino artista que dedicou a maior parte de sua vida para a
música, e que, com ela, pôde descrever e homenagear este sofrido e querido sertão.
O que lemos ou cantamos a seguir é uma forma sublime de descrição de um
cenário o qual é povoado por inúmeros lugares e pessoas, todos com suas marcas identitárias
próprias, mas também todos com muitas características inticas.
Assim, temos nesta música “Estrada de Canindé uma narrativa interessante da
rusticidade destes sertões de outrora, com suas limitadas condições de vida, e na mesma
proporção as limitadas preocupações de seu povo.
Lugares rústicos estes, assim como os seus acessos, estradas de chão, viagens à
noite com a lua a iluminar, lembrando aqui novamente em Guadalupe do nosso vaqueiro
viajante e sua descrita viagem noturna, por estradas de chão como a da música, com tantas
descobertas a serem feitas e que, ao percorrê-las, vê-se tantas coisas, vê-se coisa a grané.
Enfim, Luiz Gonzaga brilhantemente nos poetiza toda esta beleza da natureza e da
simplicidade da vida no sertão nordestino, experiências estas que segundo sua própria música
diz, devem ser observadas ao vivo e de preferência com a gente andando a pé!
Cantemos então logo a seguir, a Estrada de Canindé”, que bem poderia ser a
Estrada de Guadalupe”, ou qualquer uma das tantas estradas que cortam os cantos memoriais
dos seres do Brasil.
ESTRADA DE CANINDÉ
(Luiz Gonzaga)
Ai, ai, que bom
Que bom, que bom que é
Uma estrada e uma cabocla
Cum a gente andando a
Ai, ai, que bom
Que bom, que bom que é
Uma estrada e a lua branca
No sertão de Canin
Automove lá nem sabe se é home ou se é muié
Quem é rico anda em burrico
Quem é pobre anda a
Mas o pobre vê nas estrada
O orvaio beijando as flô
Vê de perto o galo campina
Que quando canta muda de cor
Vai moiando os s no riacho
Que água fresca, nosso Senhor
Vai oiando coisa a grané
Coisas qui, pra mode vê
O Cristão tem que andar a
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17. A Barragem de Boa Esperança. 05/09/1963. p. 2.
18. Desenvolvimento e secularização. 05/09/1963.
19. Cunha Bueno falou sobre a Barragem de Boa Esperança. 26/09/1963. p. 1.
20. Barragem de Boa Esperança. 26/09/1963. p. 3.
21. Energia elétrica para 450 municípios do Norte Nordeste. 30/09/1963. p. 1.
22. Energia elétrica vai baixar de preço. 10/10/1963.
23. Boa Esperança. 14/10/1963. p. 6.
24. Piauí – verbas para energia elétrica. 28/10/1963. p. 3.
25. Industrialização, governo e povo. 25/11/1963. p. 8.
26. Centrais Elétricas do Piauí S. A. 28/11/1963. p. 3 (Repetida no dia 02/12/1963.)
27. Arrozbrás Mais uma indústria a contribuir para o progresso do estado.
09/12/1963. p. 1.
28. Crise de Energia Elétrica. 14/01/1964. p. 4.
238
29. Problemas – Luz. 14/01/1964. p. 6.
30. Presidente manda acelerar Boa Esperança. 14/01/1964. p. 1.
31. Teresina, energia e progresso. 01/02/1964. p. 8.
32. Boa Esperança. 09/02/1964. p. 1.
33. Boa Esperança. 15/02/1964. p. 1.
34. Boa Esperança. 10/07/1964. p. 1.
35. COHEBE Aparelhada para Prosseguir Construção da Hidroelétrica de Boa
Esperança. Pronunciamento do Dep. Milton Brandão. 10/07/1964. p. 4.
36. Boa Esperança. 11/07/1964. p. 1.
37. Guadalupe. 12/07/1964. p. 2.
38. A Barragem de Boa Esperança. 12/07/1964. p. 3.
39. Barragem de Boa Esperança. 15/07/1964. p. 1 e 3.
40. Barragem de Boa Esperança. 17/07/1964. p. 1 e 3.
41. Barragem de Boa Esperança. 19/07/1964. p. 1.
42. Tibério entusiasmado com Boa Esperança. 19/07/1964. p. 1
43. O Recife Informa: Boa Esperança. 19/07/1964. p. 1 e 8.
44. Barragem de Boa Esperança. 22/07/1964. p. 1 e 3.
45. Barragem de Boa Esperança. 11/08/1964. p. 1.
239
46. Usina Elétrica: 50 Anos. 12/08/1964. p. 1 e 4.
47. Boa Esperança na Agenda Prioritária do DNOCS. 13/08/1964. p. 1.
48. Piauiense. (Nota). 20/08/1964. p. 8.
49. Petrônio fala sobre... . 28/08/1964. p. 1 e 7.
50. Regime de Urgência Boa Esperança em Ritmo de 20 Horas de Trabalho Por
Dia! 08/10/1964. p. 1 e 2.
51. Energia, o eterno problema. 14/10/1964. p. 2.
52. Caldeiras destinadas a ampliação da Usina Termo-Elétrica de Terezina-Piauí.
Governo Petrônio Portela. (Nota). 18/10/1964. p. 1.
53. Castelo diz a Petrônio que agora verá o Piauí. 20/10/1964. p. 1.
54. Castelo a Sigefredo: Boa Esperança Será Construída no Meu Govêrno. Ministros
do Interior visitarão, em breve, o local da Barragem. 22/10/1964. p. 1.
55. Recursos para a Barragem: Boa Esperança é a Obra Prioritária do Governo
Federal. 24/10/1964. p. 1.
56. Petrônio concede entrevista ao “O DIA”. 25/10/1964. p. 1 e 4.
57. “O DIA” em Boa Esperança. 28/10/1964. p. 1.
58. Jornalistas visitarão Boa Esperança. 28/10/1964. p. 1.
59. Um Rio Afogará Nova Iorque e Mais Três Cidades Para Salvar o Piauí.
28/10/1964. p. 4.
60. Barragem causa vibração. 06/11/1964. p. 1.
240
61. Boa Esperança. 08/11/1964. p. 1.
62. Governador vai visitar a Boa Esperança. 08/11/1964. p. 1.
63. Visita a Boa Esperança. 10/11/1964. p. 1.
64. Visita a Barragem de Boa Esperança. (fotos) 10/11/1964. p. 1.
65. Companhia Hidro Elétrica da Boa Esperança COHEBE. Cópia Autêntica da
Ata da Quarta Assembléia Geral Extraordinária, realizada a 23-10-1964.
10/11/1964. p. 6.
66. Jornalistas Visitarão Hoje Boa Esperança. 12/11/1964. p. 1.
67. Boa Esperança Suscitou Debates no Rotary. 14/11/1964. p. 1.
68. Jornalistas Empolgados com o Ritmo De Trabalho Em Boa Esperança.
14/11/1964. p. 1.
69. Canto de Página da Barragem. 17/11/1964. p. 1.
70. Boa Esperança na Agenda do Presidente. 17/11/1964. p. 1.
71. Canto de Página da Barragem. 18/11/1964. p. 1.
72. Canto de Página da Barragem. 19/11/1964. p. 1.
73. Canto de Página da Barragem. 20/11/1964. p. 1.
74. Canto de Página da Barragem. 22/11/1964. p. 1.
75. Departamento (Estadual) de Estradas de Rodagem Constrói Silenciosamente.
(Trecho: Estradas Afora). 22/11/1964. p. 6.
76. Canto de Página da Barragem. 24/11/1964. p. 1.
241
77. Canto de Página da Barragem. 25/11/1964. p. 1.
78. Canto de Página da Barragem. 26/11/1964. p. 1.
79. O Presidente no Recife! Detalhes Reunião com Autoridades do Nordeste.
26/11/1964. p. 1 e 3.
80. Compre e ganhe um Refrigerador Cônsul. (Propaganda de eletrodomésticos).
02/06/1964. p. 3.
81. O Piauí e o Plano Diretor. 24/12/1968. p. 3.
82. Nordeste não pode ter energia em níveis diferentes. 28/12/1968. p.1.
83. Consolidado o Esquema Para Conclusão das Obras de Boa Esperança.
23/01/1969. p. 8.
84. Cresce Infra-Estrutura Energética do Maranhão. 01/03/1969. p. 4.
85. Companhia Hidro Elétrica da Boa Esperança COHEBE. Relatório de
Atividades no Exercio de 1968. 12/03/1969. p. 3-8.
86. Piauí Já Ganhou a Batalha Dos Geradores. 13/03/1969. p. 1.
87. COLUNA D: Primeira fase da Boa Esperança será inaugurada este ano. (Trecho).
08/04/1969. p. 8.
88. Parnaíba Invicta com Energia da CHESF retoma ao desenvolvimento. 29-
30/06/1969. p. 4.
89. Linha de 615 Levará Energia de Boa Esperança Até Teresina e São Luis.
02/09/1969. p. 8.
90. Boa Esperança funcionará experimentalmente. 28-29/09/1969. p. 8.
91. Piauí Quer Impor Confiança com Energia. 25/10/1969. p. 5.
242
92. Novas Redes Elétricas CEPISA Concluirá. 01/11/1969. p. 8.
93. I Encontro de Empresas De Eletricidade. 21/11/1969. p.6.
94. Luta de Milton Brandão Em Prol da Barragem de Boa Esperança. 23-24/11/1969.
p.2.
O ESTADO. Jornal de Teresina.
95. Visita do Presidente da República ao Piauí. 30/05/1965. p. 1.
96. A SUDENE e Bôa Esperança. 24/06/1965. p. 2.
97. Por ocasião da visita de 29 e 30 de maio p. p., que fez ao Piauí o Exmo. Sr.
Presidente CASTELO BRANCO, o deputado SOUSA SANTOS... (Discurso).
18/07/1965. p. 1 e 3.
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