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O recitativo é o gênero de música o mais difícil de compor e de executar;
as transições harmônicas são a matéria principal que nele se emprega, e de outra
maneira não seria possível determinar e fazer sentir ao auditório as inflexões da
voz falante e os diversos sentimentos exprimidos pelo discurso. O cantor precisa
graça, expedição ou facilidade de exprimir, e penetração para poder com exatidão
representar as expressões, os sentimentos, e finalmente, uma variedade de idéias
que se sucedem em o recitativo; na verdade, não é o seu desempenho para todos,
ainda que todos os que cantam se julgam capazes de o executar (MACHADO,
1909, p. 187).
Vale a pena transcrever aqui algumas instruções sobre como executar o recitativo,
dadas por Solano. Antes da citação, devemos chamar atenção para um fato. Como o leitor
poderá notar, Solano chama de mordente o que normalmente chamaríamos de apojaturas:
É o Mordente um modo estimativo, com que se exprimem belíssimas
expressões, principalmente nos Recitativos, aonde tem seu mais próprio lugar;
mas ainda cantando-se a tempo, se pode muito bem, e com graça usar dele.
Consiste o Mordente em um certo desvio, que faz a Voz daquele ponto,
que havia de dizer, e em seu lugar tocar uma 4ª, ou 5ª abaixo daquele ponto, e
logo subir ao outro imediato, quando são duas Colcheias no próprio Signo,
descartando-se da primeira, ou ao mesmo ponto, se é Semínima. Este último é
com muita imitação dos Apoios, que se fazem de salto de cima para baixo, mas o
Mordente só pode ser feito de baixo para cima.
Para sua inteligência, e minha explicação eu formo o seguinte Exemplo,
ainda que a Música não use dos Sinais, com que o mostro; mas só o faço para
nele dar melhor a entender este motivo com demonstração figurada.
Quando a Voz neste 1º Compasso do Signo de B. quiser passar para a
Figura imediata de C. faça uma queda, ou desvio ao tom de G. 4ª abaixo do C., e
este desvio, e tom ficará suprindo o 1º C.; e quando a Voz for acima firme-se no
2º C.: o mesmo se observará no 2º Compasso com o Mordente de 5ª, que faço
entender em D.: neste torna o Mordente ao próprio D., por ser Semínima, depois
de fazer a queda, ou desvio a G. 5ª abaixo de D., e a harmonia demonstrará
certamente quando dever ser feito de 4ª, ou de 5ª abaixo do ponto, em que se
firma o Mordente.
Nos Recitativos de ordinário não se assinam Apoios, ou Acentos prática,
e demonstrativamente, porque neles todos os motivos ficam ao gosto, e graça do
Cantor; e com especialidade se entenda, que toda a primeira Figura de duas
imediatas no mesmo Signo pelo modo, que se vê nos dois BB., CC., e DD. do 2º,
e último Compasso, se toma sempre a sua entoação uma distância mais alta, para
cair por modo solto no próprio tom da segunda Figura, como v. gr.: no 2º
Compasso o 1º mi se diz no tom de fá, no último Compasso o 1º fá se dirá no tom
de sol, e o penúltimo sol no tom de lá: este modo é como equivalente ao Apoio
nos trânsitos, ou movimentos, que expressivamente faz a Voz, ou de 3ª descendo,
ou de qualquer outro salto subindo, aonde sempre a primeira de duas Figuras