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mesma falta..). “Abismo” e “vale” são, no final das contas, a mesma coisa; o “Nada” e
a “Mãe” são, também, o mesmo; apenas mudam os adjetivos apostos ao “Nome”,
seguindo o temperamento mental de cada momento por que passam as civilizações. ..
Camilo Pessanha publicou, pelo menos, duas peças de clara inspiração taoísta;
duas traduções; dois contos filosóficos, de autores anônimos, e de épocas
desconhecidas: “Vozes de Outono” e “Chon-Kôc-Chao”.
“Vozes de Outono” foi publicado em 15 de janeiro de 1918, no número 27 da
revista Atlântida, de Lisboa, e era uma das traduções mais conhecidas, entre os amigos
do poeta (v.g. OSÓRIO, 2000, p. 64).
VOZES DE OUTONO
(Dinastia Tang)
Eu, Ao-Iéong-Tze, estava de noite lendo, quando se ouviu aquele rumor, das
bandas de Sudoeste. Ao ouvi-lo, reflecti, em um sobressalto:
– É singular! A princípio há o tamborilar da chuva – que depois se transforma
na zoada do vento, para logo, em um vertiginoso crescendo, dar lugar a estes
violentos estampidos, como de grandes vagas apavorando a noite. O vento e a
chuva, precipitando-se em turbilhões, encarniçam-se contra o que se lhes defronta; e
é uma conflagração retumbante de todos os metais ressoando. Tais os guerreiros,
avançando para o combate, ferramos dentes na mordaça, e aceleram a carreira, não
se lhes ouvindo gritos de incitamento ou de medo, mas só o estrupido dos peões e
dos cavalos em marcha...
Pergunto, para o meu moço discípulo:
– Aqueles sons o que são? Vai fora a informar-te. Responde-me, voltando: –
No céu brilham puras as estrelas e a Lua; a Via-Láctea esplende. Para todos os lados
não há voz humana. São vozes do arvoredo...
E eu então:
– Ai, ai! Oh dor! Todas estas vozes outonais donde será que procedem?
Porque a natureza do outono é desta sorte: a tinta por vezes indecisa e pálida,
- neblinas à flor da terra e as nuvens acumuladas no alto -; ou, por vezes, o
semblante desanuviado e claro – profundo o céu e radioso o sol -; e um ar de morte,
penetrante e gélido, causticante a carne, confrangendo os ossos; e magoado o todo –
outeiros, fontes, ao abandono... como também no tom da sua voz igual volubilidade
se revela: plangentemente dorida, e logo clamorosa e irada!
Viçam as ervagens, túrgidas de seiva, rivais em louçania; e as grandes
árvores, enramadas e verdes, ostentam-se formosas... E ao seu contacto as ervas
esmaecem! E ao seu encontro as árvores desfolham-se! Onde quer que a sua energia
destrutiva se exerça, tudo definha e perece!
Pela obra de devastação que realiza, o outono exercita, em cada um dos seus
bafejos, uma severa, exterminadora magistratura; e, como estação, que é,
influenciada pelo princípio feminino ou negativo da natureza, a sua acção tem
inevitavelmente de ser análoga à dos exércitos. Dos cinco elementos é o metal o que
lhe corresponde. Com razão se lhe chama amor de justiça do céu e da terra: é o seu
inquebrantável rigor justiceiro que constitui a sua ternura...
Segundo a ordem da criação estabelecida pelo Céu, as plantas nascem na
primavera e frutificam no outono. A concordância é perfeita entre as leis da música e
as da natureza. O tom séong rege as harmonias do Ocidente; i é a nota da sétima lua.
Ora séong é o golpe: quando envelhece há-de resignar-se a ser cortado... E i é o
patíbulo: tudo o que atingiu a maturidade carece de ser eliminado...