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O capítulo “Noite de luar” é um rico exemplo desse intuito do autor. Neste capítulo
torna-se muito clara a idéia de suspensão da trama narrativa para arrolamento de dados da
cultura, conforme discutimos no capítulo anterior. “Noite de luar” inicia com uma
brincadeira de roda infantil, chamada copué, depois reproduz uma lenda utilizada pela mãe
de Catarina para explicar por que não somos todos da mesma cor
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; em seguida as crianças
passam a uma outra brincadeira, igualmente acompanhada de canto. Note-se que no final
há o “Elucidário” em que o autor registra as mesmas canções em quimbundo. Em seguida
acompanharemos ainda uma série de adivinhas. Após as adivinhas, a mãe de Catarina,
estimulada pelas crianças, ocupará a posição de um contador de histórias. Recorrerá a duas
peças do repertório de histórias de animais, e assim leremos e imaginaremos ouvir a
história do Leão e do Coelho e a história da Onça e do Coelho; em ambas ressalta-se a
esperteza do coelho para livrar-se de seus oponentes. Finalizando o capítulo, a mãe de
Catarina contará a história de uma mulher que não cumpre suas obrigações com o marido.
Nos contos que envolvem animais ilustra-se o que escreveu Ribas em Temas da
vida angolana e suas incidências, no ensaio “O folclore angolano: sua investigação e
Literatura Oral”. Neste, constata o autor que “a tartaruga, o coelho, o macaco, a seixa,
sobrelevam, nos lances de sua vida agitada, os bichos de maior envergadura, como o leão, o
elefante, a pacaça, etc.”. (RIBAS, 2002, p.84) Observará ainda que os contos,
ordinariamente, refletem aspectos da vida real, podendo neles figurar as mais variadas
personagens, como homens, animais, monstros, sereias ou almas.
Héli Chatelain, apontado por Carlos Ervedosa (1979) como um importante
pesquisador da literatura tradicional angolana, em Folk-tales of Angola propõe uma
classificação para os textos orais de origem quimbundo. De acordo com a classificação de
Chatelain as duas narrativas que contêm animais seriam chamadas de mi-soso, e a terceira,
voltada para a instrução, mas também servindo como fonte de distração, se encaixaria na
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A lenda, conforme versão contada em Oscar Ribas, diz o seguinte: “Foi nos tempos muito antigos, ainda no
mundo havia um casal. O homem era preto, a mulher também era preta. Os filhos que nasceram, portanto,
também eram pretos. Na terra onde viviam, só havia uma lagoa. Mas essa lagoa era pequena, muito pequena
mesmo. Um dia, resolveram tomar banho, desde o pai ao último filho. E todos foram para a tal lagoa. Os que
se banharam primeiro, foram o pai e a mãe. E saíram rosados. Depois, um filho e uma filha. E saíram brancos.
A seguir, outro casal de filhos. E saíram mulatos. Por fim, o último casal. Como já não havia mais água,
esfregaram no lodo as palmas das mãos e as plantas dos pés. E só essas partes ficaram brancas.” (RIBAS,
1985, p.172) Vale registrar que essa lenda também fora aproveitada no nosso Macunaíma (1928) de Mário de
Andrade, e no conto “As mãos dos pretos”, publicado em Nós matamos a cão-tinhoso, uma das mais belas
peças da ficção moçambicana, de Luís Bernardo Honwana, cuja edição brasileira é de 1980.