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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira
Maria Rita Sigaud Soares Palmeira
Cada história, uma sentença: narrativas contemporâneas do cárcere
brasileiro
São Paulo
2009
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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira
Cada história, uma sentença: narrativas contemporâneas do cárcere
brasileiro
Maria Rita Sigaud Soares Palmeira
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do título de doutor em letras.
Orientador: Prof. Dr. Jaime Ginzburg
o Paulo
2009
2
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Sumário
Introdução: p. 7
Capítulo 1 (ou “Cada detento, uma sentença”): p. 23
Capítulo 2 (ou “Ninguém sabe o peso que tem uma grade”): p. 51
Capítulo 3 (ou “Sou o que resulta daí”): p. 88
Capítulo 4 (ou “Vivo em dois mundos simultaneamente”): p. 117
Capítulo 5 (ou “Neste mundo fora do mundo”): p. 145
Anexo: p. 166
Bibliografia: p. 170
3
Agradecimentos
A Jaime Ginzburg, a quem devo a orientação paciente e sempre generosa.
Aos meus amigos do grupo de orientandos, que souberam aliar a seriedade do trabalho
intelectual ao amparo amigo, imprescindível para não sucumbirmos aos corredores
labirínticos da USP: a Cristiana Boaventura e Valéria Freitas Pereira, pela leitura do texto
da qualificação, pelos cafés em que tanto falamos de nossas pesquisas, pela presença; a
Jayme Costa Pinto, Moacyr Godoy Moreira e Vinícius Veneziani, pela discussão do último
capítulo da tese, pela generosidade de sempre; e a Cristiano Augusto da Silva, pelas
conversas no início do doutorado.
Aos professores Márcio Seligmann-Silva e Marcos Natali, pela leitura cuidadosa de meu
texto de qualificação.
A Miguel Palmeira, meu irmão, “contemporâneo de USP” e estimado interlocutor, e a
Fernanda Guimarães, minha cunhada, pelo acolhedor teto paulistano no início desta
empreitada e pela força-tarefa ao final dela.
A Flávia Trocoli, com quem, desde os tempos de mestrado, venho compartilhando
inquietações literárias, porque, entre muitas coisas, foi ela quem, em 2003, primeiro
imaginou que a curiosidade em torno desses livros pudesse se tornar um projeto de
doutorado. A Ana Raquel Motta de Souza, pelos livros, textos e leituras que
compartilhamos. A Carlos Minchillo, pelo empenho, ao qual sou muito grata, para que eu
obtivesse um semestre dedicado exclusivamente à redação da tese. A Olga Fernández,
pelos livros achados e indicados, quando a pesquisa era uma idéia, e pela amorosa
disponibilidade em me ajudar quando a tese teimava em despontar. A Edu Marin, pela
inestimável ajuda com as imagens.
Ao Miguel e à Tereza, e também à Mariana, porque, com incansável amor fraterno, se
desdobraram para que, nos últimos meses, eu tivesse serenidade para terminar a redação
deste trabalho. E, claro, ao João, pela leveza e doçura dos seus quase 17 anos.
A Lygia e Moacir, meus pais, cuja integridade intelectual me faz apostar que a dedicação à
universidade e à pesquisa é não possível como desejável, agradeço o apoio amoroso, as
indicações de leitura e a apresentação do mundo.
Ao Flávio Moura, meu melhor leitor, por esta e por outras, porque sim.
4
Para Lygia Sigaud, minha mãe,
(que partiu quando as palavras ao pé do ouvido terminaram, mas muito antes de a história
acabar),
porque nomeá-la é, afinal, honrar a sua memória.
5
Resumo:
Esta tese analisa quatro livros publicados entre 2000 e 2001, quando foi lançado um grande
número de livros escritos por homens encarcerados: Diário de um detento, de Jocenir,
Sobrevivente And du Rap (do Massacre do Carandiru), de André du Rap e Bruno Zeni,
Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, e Vidas do Carandiru, de
Humberto Rodrigues. Sustento que a disposição material desses livros e o modo como a
matéria narrativa é enformada sejam indícios de que as narrativas do cárcere brasileiro
tragam as marcas dos modos de sociabilidade daquele ambiente, em que se reconhece a
condição de preso, mas se almeja o estatuto de escritor.
Palavras-chave: literatura brasileira; prosa contemporânea; prisão; literatura carcerária;
testemunho.
Abstract:
This work analyses four books published between 2000 and 2001, when there was a boom
of “prisoners narratives”: Diário de um detento, by Jocenir, Sobrevivente André du Rap (do
Massacre do Carandiru), by André du Rap and Bruno Zeni, Memórias de um sobrevivente,
by Luiz Alberto Mendes, and Vidas do Carandiru, by Humberto Rodrigues. I argue that the
material disposition of these books and the way the narrative substance is constructed are
signs that the narratives from Brazilian prisons carry marks of the sociability of that
environment, in which one acknowledges the condition of prisoner, but also aims at a
writer status.
Keywords: Brazilian literature; contemporary prose; prison; prison literature; testimony.
6
Introdução
I.
A escrita a partir da clausura aparece como um tópos na tradição literária ocidental.
O silêncio e a solidão costumeiramente associados a esse tipo de trabalho encontrariam nos
espaços fechados seu ambiente ideal
1
. A experiência do encarceramento, no entanto, lança
por terra qualquer idealização a respeito desse espaço. À clausura forçada, vista muitas
vezes como espaço que reuniria condições de trabalho desejáveis
2
, impõe-se a realidade
carcerária, tão brutal como aniquiladora.
Os textos produzidos por escritores e intelectuais quando aprisionados costumam
ser alvo de atenção das ciências humanas: os Cadernos do cárcere (1948) de Antonio
Gramsci, as Recordações da casa dos mortos (1861) de Fiódor Dostoiévski, A balada do
cárcere de Reading (1898) de Oscar Wilde, passando pelas não menos canônicas, se
consideradas as letras nacionais, Memórias do cárcere (1953) de Graciliano Ramos é
vasta a gama de livros produzidos por escritores e intelectuais a partir da prisão.
Menos difundidos o os livros de homens que, depois de presos, passam a
escrever, alçando-se assim à condição de escritores. Ainda que haja exceções, como a de
Jean Genet
3
, os livros escritos por homens que se tornam escritores na prisão ou a partir da
vida criminosa são bem menos conhecidos do grande público
4
.
No Brasil, um número considerável de livros feitos por intelectuais a partir da
prisão (em sua franca maioria, motivada por suas atividades e posições políticas), mas são
poucos ao menos a o início desta cada os produzidos por homens “do crime”, os
chamados presos comuns.
1
Ver, particularmente, Victor Brombert, La prison romantique: essai sur l’imaginaire.
2
Graciliano Ramos conta, em suas Memórias do cárcere, antes de ser de fato preso, mas quando ouvia
rumores de que sua detenção não tardaria: “A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de
tranqüilidade necessária para corrigir o livro [Angústia]” (Memórias do cárcere, v. 1, p. 45). Essa
percepção, evidentemente, se altera de todo quando Graciliano é levado à prisão.
3
Cuja notoriedade possivelmente se deve em muito também, a despeito de suas qualidades literárias, ao
estudo que lhe foi dedicado por Jean-Paul Sartre (Saint-Genet). A esse respeito, ver o artigo de Andrea
Saad Hossne “Autores na prisão, presidiários autores. Anotações preliminares à análise de Memórias de um
sobrevivente”.
4
Um caso exemplar é o do norte-americano Edward Bunker, cujos livros vêm sendo publicados no Brasil
pela editora Barracuda. De Bunker, ver especialmente A educação de um bandido, um romance de suas
memórias.
7
A partir de 2000, livros escritos por homens presos ou recém-saídos da prisão
ganharam as páginas dos suplementos culturais dos grandes jornais
5
e revistas, fosse
porque publicados por casas editoriais dias ou grandes
6
, fosse porque parece haver, hoje
em dia, maior curiosidade em torno da vida na prisão
7
.
Este trabalho procura investigar, a partir da análise de quatro volumes de um
conjunto bastante mais amplo
8
, livros escritos por homens que, na cadeia, em na
publicação de seus escritos uma possibilidade de se tornarem autores: Diário de um
detento: o livro, de Jocenir; Sobrevivente And du Rap (do Massacre do Carandiru), de
André du Rap e Bruno Zeni; Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes; e
Vidas do Carandiru: histórias reais, de Humberto Rodrigues
9
.
5
Ver, por exemplo, na ocasião de lançamento de Sobrevivente André du Rap: “Sobrevivente relata massacre
do Carandiru” (Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 09/09/2002). Ou a resenha do livro de Humberto Rodrigues
feita por Hélio Schwartsman: Vidas do Carandiru: instantâneos expõem o sistema prisional
brasileiro” (Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 21/12/2002). Ainda, sobre Luiz Alberto Mendes: “Ex-preso usa
as próprias cicatrizes” (FSP, “Ilustrada”, 20/08/2005) ou as resenhas que lhe dedicaram a escritora Ana
Miranda (“Arte e crime em rota de convergência”, FSP, “Ilustrada”, 17/03/2002) e o sociólogo Sérgio
Adorno (“A ciência da tortura”, Jornal de resenhas, 12/01/2002). Na revista Istoé gente, saíram, sobre o
livro de Jocenir, “Memórias do cárcere: parceiro do rapper Mano Brown, o ex-detento Jocenir lança livro
sobre a sua vida atrás das grades” (04/06/2001), sobre o livro de André du Rap e Bruno Zeni: “Sobrevivente
André du Rap: ex-detento conta o que viu no Pavilhão 9” (07/10/2002); sobre Vidas do Carandiru: “Vidas
no cárcere: livro de jornalista que ficou preso no Crandiru ajuda leitores deprimidos” (29/01/2003). Em O
Estado de S. Paulo: “Chega às livrarias Vidas do Carandiru(11/12/2002); “Ex-detento descreve em livro a
rotina da violência” (21/02/2001, sobre Diário de um detento).
6
Para me ater apenas aos autores abordados nesta tese: a Companhia das Letras publicou dois dos livros de
Luiz Alberto Mendes: Memórias de um sobrevivente, 2001, e Às cegas, 2005; a Geração Editorial publicou
um outro livro de Mendes (Tesão e prazer, 2004), além de Vidas do Carandiru, de Humberto Rodrigues
(2002); a Labortexto Editorial foi responsável pelo lançamento de Sobrevivente André du Rap, de André du
Rap e Bruno Zeni (2002) e Diário de um detento, de Jocenir (2001).
7
As razões hão de ser rias. Regina Dalcastagné, por exemplo, em edição da revista Cult dedicada ao
tema, sugere que: “A atração pela escatologia e a literatura de presos talvez supra o prazer de violência do
público” (Cult 59, p. 40). É possível apontar ainda o crescimento na mídia das discussões sobre
criminalidade, política de segurança pública, bem como o surgimento, desde o fim dos anos 90, de bens
culturais versando sobre violência e o universo prisional.
8
Ver, na Bibliografia, a seção “Outros livros do cárcere”.
9
Há, pelo menos, dois casos que merecem ser comentados por seu caráter predecessor, ainda que não
façam parte desta pesquisa. O médico Hosmany Ramos tornou-se escritor depois de preso. Descoberto pela
prestigiosa editora francesa Gallimard, é, entre os escritores que pertencem a esse segundo grupo (qual seja,
o dos que se tornam escritores na prisão), um caso bastante particular: começou a escrever e publicar
muitos anos antes e, salvo em seu Pavilhão 9, sua escrita diferencia-se bastante das demais por não narrar
em nome de um grupo, não demonstrar compromisso com o que se entende por “coletividade” na cadeia
(distanciando-se nesse sentido do grupo que será aqui analisado): “Não faço literatura de presidiário. Sou
um escritor preso” (Revista Cult 59, p. 39). Em seu Pavilhão 9, a pedido de outro detento, Milton Marques
Viana, um sobrevivente do Massacre do Carandiru, narrou o 2 de outubro de 1992 assumindo a ótica de
Viana.
Além dele, o caso talvez mais conhecido seja o de William Carlos da Silva, cujo Quatrocentos contra um:
uma história do comando vermelho, publicado em 1991 entrelaça sua trajetória ao processo de formação da
famosa facção criminosa carioca. A reedição do livro (por um selo que se dedicaria a essa literatura a
Labortexto Editorial) em 2001, ano em que saem outras publicações ligadas à vida na prisão, revela seu
8
O que provocava, desde o início da pesquisa, minha reflexão não era que
escrevessem
10
, mas que enxergassem na publicação de seus livros a reinserção, que
buscassem legitimar-se aos olhos da sociedade a partir de um discurso deslegitimado
previamente, o de homens encarcerados
11
. A escrita implicaria transformação. Nesse
sentido, escrita parecia assumir uma dimensão ética.
Alguns deles traziam relatos de constrangimentos físicos e morais, outros, embora
não se furtassem a contar as violências a que seus autores haviam sido submetidos nas
prisões, dedicavam boa parte do texto à narrativa de suas histórias de vida. Uniam ao relato
fotografias, reproduções de cartas recebidas e enviadas, fragmentos de textos de sua autoria
(em muitos casos, letras de rap); mas também reflexões sobre o sistema carcerário
brasileiro, glossários, contos, poemas.
Esses livros comungavam nos valores ali expressos, que, por sua vez, remetiam ao
ambiente de onde provinham a prisão. Assim, o eixo das histórias narradas parecia ser a
manutenção desses valores, o que ajudava a caracterizá-los como dignos de reunião para
fins de análise. O que se encontrava ali como matéria narrativa construída a partir de
qualidades como lealdade, humildade, solidariedade, professadas à exaustão por seus
autores, era na maior parte das vezes o relato da experiência na prisão (a vida “no crime”;
eventualmente, suas motivações; a saudade de casa; a dureza do rcere;), mas também o
rememorar da vida para além do “peso da grade”.
Despertava-me curiosidade a maneira como seus autores, na maior parte das vezes
provenientes dos estratos menos favorecidos da sociedade, lançavam o de um objeto
com o qual pareciam o ter muita familiaridade o livro e o transformavam,
caráter precursor. Sua prosa, bem como suas escolhas por privilegiar o texto em detrimento de fotos, cartas
etc., se aproxima da de Luiz Alberto Mendes.
10
Nos livros há sempre referência à escrita e à leitura – e até mesmo em relação ao papel que essa atividade
desempenha no dia-a-dia da cadeia: “No campo [de futebol] todo mundo se encontrava, combinava de
passar um no barraco do outro. Você ia no barraco de um companheiro, ele mostrava um jornal da
quebrada dele ou mostrava o que tava escrevendo, pegava amizade. Era uma troca no dia-a-
dia” (Sobrevivente André du Rap, p. 50).
11
“O automatismo [de aceitar que textos escritos por escritores a partir da experiência prisional sejam
literários] se rompe e se expõe quando o objeto enfocado não ocupa de antemão o panteão literário. Nesse
caso, não se trata mais de autores (e personagens e narradores) na prisão, mas de presidiários autores, ou
seja, aqueles nos quais a condição de encarcerado precede e mesmo preside a da escrita. O que se coloca
em xeque, então, não será apenas a natureza da representação e a matéria representada, mas também, e
sobretudo o acolhimento crítico a ela” (Andrea Hossne, “Autores na prisão, presidiários autores”, p. 129).
9
reorientando-o em sua disposição material, em função de certas percepções que diziam
muito sobre a vida no cárcere. Esse ajuste era feito de maneira bastante peculiar, uma vez
que não se abandonava uma concepção previamente estabelecida do livro ou do que
significa contar uma história. Assim, se estavam ali para narrar a maneira como as suas
trajetórias individuais entrelaçavam-se à história de violência dos presídios brasileiros, o
que a então o fora feito, era preciso dar conta disso partindo de um modelo em tudo
oposto a sua situação: ao romance burguês e sua solidão constitutiva, opunha-se uma
escrita formada a partir de condições precárias e violentas de concentração humana, como
as reveladas pela superlotação das celas, os acertos de contas entre presos e a vigilância
nem sempre distante das forças do Estado.
Chamava ainda atenção o que resultava desse enfrentamento, quase uma forma em
mosaico, provocada pela reunião do texto a outros elementos que se assumiam como
igualmente narrativos, como as cartas e as fotos. Os livros traziam, em sua maioria, não
o texto propriamente, como também fotografias, letras de música, glossários, cartas
recebidas e enviadas, o depoimento dos seus próximos. Parecia que a escolha do livro
como meio privilegiado de expressão determinava que, ao fazê-lo, fosse preciso
transformá-lo de modo a dotá-lo de singularidades que, a alguém que se dispusesse a ler o
sem-número de títulos editados, não escapariam como índices de formação de um conjunto.
Em maior ou menor medida, as narrativas a partir da prisão obedeciam a uma disposição
que remetia à história ali enunciada – ainda que lançassem mão do livro para fazê-lo.
Era preciso verificar se também na escrita se manifestava essa primeira
ambivalência reveladora da adesão ao mundo exterior às grades (visível na escolha do livro
em ambiente não especialmente letrado) e interior a elas (perceptível na lealdade aos
valores compartilhados e na conduta assumida).
Diante desse conjunto, era possível perceber a recorrência do que se poderia
considerar um certo padrão: seus autores mobilizavam, ao recuperar fragmentos da história
vivida no cárcere, formas de atestar que aquilo tudo havia, de fato, se passado com eles. Ao
menos esta era a hipótese mais plausível quando se constatava o temor, reiteradamente
expresso, de que o que ali se contava não fosse levado a sério
12
.
12
Alfredo Bosi, em artigo sobre as Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, chamou a atenção para o
fato de o testemunho “quer[er]-se idôneo, quer[er]-se verídico, pois aspira a certo grau de objetividade”, ao
mesmo tempo em que não escapa à idéia de que o que se tem ali é obra de uma testemunha, impondo à sua
história um “foco singular de visão e elocução”, portanto, de subjetividade. (“A escrita do testemunho em
10
A fim de que a respeito daqueles relatos não pairassem dúvidas uma necessidade
de cercar-se de todas as maneiras da pergunta que se fazia premente naqueles indivíduos
que começavam a reivindicar o estatuto de autores: “mas quem vai acreditar no meu
depoimento?” (“Diário de um detento”, Jocenir/ Mano Brown) –, recorria-se a depoimentos
e fotografias que recuperassem as trajetórias narradas. A sensação de serem alvos de
desconfiança de seu eventual público leitor se fazia presente nessas histórias fruto
certamente da sensação da intraduzibilidade da violência a que foram submetidos, mas
também do sentimento de exclusão, este muito anterior na maior parte das vezes à
experiência do cárcere, que a maioria da população carcerária provém das camadas
menos favorecidas da sociedade: é pobre, moradora de periferia ou favela e, sobretudo,
pouco letrada. Salvo raras exceções, essas narrativas mostravam que a palavra escrita
parecia pertencer ao outro, não a eles o outro de quem se distanciam pelas diferenças
sociais e pelas grades. Era preciso tomar posse dela e adequá-la a seus propósitos, afinal, a
palavra escrita é, antes, do mundo que o condenou e de suas instituições, o mundo dos
“homens livres”.
Esse volume de títulos, como aqui se disse, desiguais em muitos aspectos,
começou a ser publicado com certa freqüência. Passou-se a chamar de “literatura
carcerária”
13
o que autores como Jocenir, Luiz Alberto Mendes, Humberto Rodrigues, entre
outros, escreviam.
Além disso, uma vez publicado seu primeiro livro, esses homens passaram a
reivindicar para si o título de escritores. Quando saíssem da prisão, ou mesmo enquanto
pagavam a sua pena, estariam longe “do crime” e se dedicariam à escrita (d a aludida
dimensão ética que essa narrativa parecia assumir).
O que ali se notava era um imperativo de relatar a dureza da experiência carcerária
– as humilhações, torturas, falta de condições básicas de higiene e de acesso aos benefícios
previstos em lei , aliado a certo sentido de missão (presente principalmente entre aqueles
que sobreviveram a rebeliões violentas ou ao Massacre de 1992
14
). Por outro lado, tal
Memórias do Cárcere”, p. 222).
13
Ver, por exemplo, Márcio Seligmann Silva, “Violência, encarceramento, (in)justiça: memórias de
histórias reais das prisões paulistas”. Andrea Hossne, em seu “Autores na prisão, presidiários autores.
Anotações preliminares à análise de Memórias de um sobrevivente”, prefere referir-se a esses livros
(particularmente o de Luiz Alberto Mendes) como uma expressão da “literatura marginal”.
14
Ou “Massacre do Carandiru”, quando pelo menos 111 presos foram mortos pelas forças policiais do
Estado de São Paulo, durante invasão da Casa de Detenção do Carandiru.
11
necessidade vinha acompanhada de uma incapacidade de narrar com precisão os piores
momentos vividos na prisão.
Pareciam escrever (e também aqui era possível perceber uma dupla intenção) tanto
aos jovens cuja origem se assemelhasse à deles (a fim de que estes não seguissem os maus
exemplos, não “caíssem no crime”) quanto a um público a eles estranho – aquele capaz de
inseri-los como autores, legitimar sua escrita.
Antes de passar ao próximo item, é preciso lembrar que esses autores, muitos dos
quais assumem a condição de “sobreviventes”, trazem em suas narrativas a idéia de que são
mensageiros da realidade carcerária, tarefa à qual não podem se furtar
15
. Contudo, uma
ambigüidade no modo de apresentar-se: o foco é contrário ao “sistema” – categoria em que
aglutinam as forças que lhes seriam contrárias –, mas, como uma espécie de redenção, uma
maneira de sair da “vida no crime” ou, antes, da vida simplesmente marginal, apostam na
nova profissão a de escritor , o que os colocaria dentro do “sistema” combatido. Esse
aproximar-se e afastar-se do “inimigo” contribui para entender a complexidade desses
livros.
Como escrevem esses autores? Como representam em seus relatos a experiência do
cárcere? Como se colocam frente à literatura, isto é, adotam os modelos tradicionais de
escrita ou procuram rompê-los? O que, finalmente, os distingue como narradores? Como a
elaboração que fazem da experiência do cárcere atua na constituição dessas obras?
Este trabalho procura discutir essas questões, cujos desdobramentos apresento no
próximo item, em Memórias de um sobrevivente (Luiz Alberto Mendes), Diário de um
detento: o livro (Jocenir), Sobrevivente André du Rap do Massacre do Carandiru (André
du Rap e Bruno Zeni) e Vidas do Carandiru: histórias reais (Humberto Rodrigues). A
escolha desses títulos, um recorte na relativamente extensa literatura prodiuzida a partir do
cárcere, se pautou pelo desejo de estabelecer um pequeno conjunto de textos que, a
despeito de suas similitudes formais e da experiência comum de seus autores, preservassem
15
A idéia de que não possam escapar à tarefa dolorosa perpassa os volumes estudados (sobretudo nos livros
de Jocenir e de André du Rap) e faz lembrar a observação de Michael Pollak e Natalie Heinich, em seu
estudo sobre os campos de concentração, quando discutiam o caráter autobiográfico de uma experiência
coletiva: “o acesso à palavra pública e à publicação de uma vida individual não depende da notoriedade da
pessoa, mas de seu estatuto de representante de um grupo [aqui, dos deportados] e de porta-voz de uma
causa (transmitir a experiência da impensável barbárie e lutar contra ela)” (“Le témoignage”, p. 13
[tradução minha]).
12
particularidades. Além disso, procurei obedecer ao critério de que fossem os próprios
presos os autores de seus relatos ou que, ao menos, estes tivessem se originado a partir de
uma necessidade deles, isto é, em que ficasse clara a exigência do narrar como pertencente
aos sujeitos daquelas narrativas.
II.
Algumas das questões que nortearam este trabalho merecem maior detalhamento
ainda nesta parte.
A escrita a partir do cárcere se funda sob o signo de várias ambivalências que
parecem remeter ao modo de sociabilidade das prisões. É possível estabelecer um esquema
que funcionaria assim: a sociedade (o mundo dos “homens livres”) recusa aos presos
condições mínimas de cumprimento das penas, mas, ao mesmo tempo, tem curiosidade
pela experiência carcerária e cria uma demanda por suas narrativas (admitindo-se aqui que
a circulação dos livros não se dê apenas dentro dos presídios). Os homens encarcerados que
escrevem, por sua vez, querem opor-se a essa mesma sociedade (que os expõe às piores
condições de cumprimento de sua pena), ao “sistema”, mas querem também de algum
modo pertencer a esse mundo, cujas leis reconhecem em sua normatividade..
Essa literatura, embora (ou porque) feita por homens enclausurados, traz uma
tentativa de interlocução, nem sempre explícita, com a sociedade que privou seus autores
de liberdade. Isso se percebe quando, mesmo encarcerados por um “sistema” que julgam
injusto, os autores o vêem como detentor de um conjunto de regras claramente
identificáveis em seus textos e às quais se reportam com certa freqüência: não é permitido
matar, roubar, ser cruel, injusto. Apesar de não as terem seguido quando em liberdade e,
em alguns casos, mesmo quando presos, incorporam-nas, cada um a seu modo, a sua
escrita. Haveria, portanto, o que, em meu trabalho, chamo de adesão aos códigos dos
homens livres, a partir do olhar duplo do narrador.
O confinamento, contudo, faz com se criem leis próprias àquele universo, as leis do
crime, as leis dos presos regrário que se impõe pela palavra empenhada. Os valores
exaltados nos textos que aqui analiso são também ambivalentes. Quando legitimam a
13
conduta humilde, quando condenam a soberba, quando prezam a coletividade e a
fraternidade, ecoam, para além do discurso de cunho religioso e também por causa dele, o
mundo dos homens livres.
A escrita a partir do cárcere deixa revelar, portanto, uma adesão ambivalente a esses
dois universos, o que de algum modo repõe no texto a relação estabelecida com a sociedade
da qual estão apartadosou com o “sistema” –, responsável pelas condições precárias dos
presídios, bem como por submetê-los a experiências-limite, mas também capaz de nomeá-
los escritores.
Essa junção do ambiente majoritariamente iletrado com o mundo dos livros produz
uma nova configuração material da escrita, provavelmente, reflexo do pouco crédito dado à
palavra desses homens (daí a necessidade de cercar-se das “provas” materiais da
experiência as fotos, as cartas, os depoimentos de outras pessoas) e à dificuldade de
torná-la crível (em razão, por um lado, da introjeção do estigma de presidiário; por outro,
do estigma que lhes é de fato atribuído); mas reflexo também de um conjunto de condutas e
valores que devem ser expressos a lealdade, a fraternidade etc. Os princípios partilhados
pelos enclausurados contribuem para dar forma à sua escrita. Novamente, se repõe, desta
vez na formalização material do livro, o modo como essa escrita e seus autores se
relacionam tanto com o mundo além das grades quanto com o mundo da prisão.
A escolha do romance
16
, aqui entendido como forma híbrida e problemática
17
, cuja
origem remonta à expressão da individualidade e dos valores burgueses, é em si um modo
de singularizar a si e a experiência. Porém, como a identidade se liga, aqui especialmente, à
defesa das normas compartidas, é preciso de algum modo dar conta disso, que a prisão
impossibilita ignorar a coletividade.
Como ocorre em narrativas produzidas a partir de confinamento coletivo, aqui
também o questionamento do modo de formalizar, pela escrita ou pela disposição dos
elementos que compõem o livro, o que é particular e o que é do grupo. A experiência traz
uma dimensão coletiva, mas quem narra a viveu de modo obviamente particular
18
. No
16
Romance de teor autobiográfico, testemunhal ou autoficcional, uma vez que todos eles assumem narrar a
própria experiência prisional.
17
Ver Fredric Jameson, Marxismo e forma, p. 136.
18
A esse respeito, é iluminadora a observação de João Camillo Penna sobre o testemunho quando trata de
“estatuto coletivo do sujeito” ou de “singularidade plural” (“Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o
testemunho hispano-americano”, p. 313 e 320, respectivamente).
14
entanto, chamar a atenção em demasia para o estatuto individual recusa a própria idéia de
coletividade a que um homem deve aderir quando chega à prisão. De modo geral, esses
autores vêem sua narrativa encrespar-se diante disso – daí um movimento que observei nos
textos e a que chamei, com fins meramente indicativos, de singularização e coletivização.
Além de explorar a conformação material dada a esses livros (leia-se: como são
dispostos os elementos formadores do mosaico), procurei perceber em que medida essa
dupla adesão se revelava também na escrita. Valer-se do uso de clichês, por exemplo, se
revelaria fundamental na construção narrativa de alguns desses volumes. Afinal, tal
emprego sugere a adesão ao que esses autores reconhecem como código escrito dos
homens “livres”, como boa escrita, mesmo se não os percebem como vocabulário gasto. As
rias, as expressões “da cadeia”, ao contrário, constituem linguagem própria.
19
A junção
que advém dessa mistura de registros repõe para o vel da escrita o que se percebe na
apropriação do livro como objeto e que recupera o modo como o interno se relaciona com o
mundo exterior.
III.
Apesar de crescente, o interesse por essas obras é ainda bastante restrito. Salvo
algumas dissertações de mestrado
20
e artigos em periódicos
21
, um estudo mais detido sobre
esses livros ainda estava por ser feito.
A tese está montada em cinco capítulos. Os quatro primeiros dedicam-se ao exame
dos livros. Optei por discutir separadamente cada um dos textos. Com isso, pude apresentar
as questões conforme surgissem no enfrentamento analítico. Nesse sentido, a tese inclui o
seu próprio memorial. Cada capítulo serve de base ao seguinte. Se essa escolha evidencia
19
Karl E. Schollhammer, em seu artigo “Memórias de delinqüência e sobrevivência”, atribui o excesso de
clichês “à expressão da impotência do testemunho” (p. 142). Acredito que o emprego dos lugares-comuns,
longe de resultar em uma perda, se observado junto ao uso da “linguagem da cadeia”, reverte-se em arranjo
formal interessante e que poderia ser visto à luz da dúplice adesão a códigos de escrita e de conduta de que
venho tratando.
20
Ver, especialmente, Adauto Locatelli Taufer, Do factual ao ficcional: memória, história, ficção e
autobiografia nas Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (UFRGS); e Pablo Augusto Silva,
O mundo como catástrofe e representação: testemunho, trauma e violência na literatura do sobrevivente
(Unicamp).
21
Ver, especialmente, os artigos de Márcio Seligmann-Silva, que, com certa constância, tem se dedicado ao
assunto “Novos escritos dos cárceres: uma análise de caso. Luiz Alberto Mendes, Memórias de um
sobrevivente”; “Violência, encarceramento, (in)justiça: memórias de histórias reais das prisões paulistas” –,
bem como, de Karl Erik Schollhammer, op. cit., e de Andrea Saad Hossne, op. cit.
15
um percurso crítico, também pode se revelar por vezes arriscada: como os livros trazem
questões semelhantes, abordá-las em quatro momentos poderia ser visto como
procedimento repetitivo. Não se trata disso. Examiná-los de imediato pelo que trazem de
próximo diluiria suas especificidades e tornaria as questões que aponto no Capítulo 5
menos claras. As repetições, ademais, são elementos característicos à literatura produzida a
partir do cárcere incorporá-las ao trabalho recupera o próprio objeto. Os fios condutores
desta tese a apropriação do objeto livro, a adesão a códigos de escrita e comportamento
dúplices, a reivindicação do estatuto de autor, a perspectiva da escrita como transformação
– aparecem assim como se apresentam em cada história.
No primeiro capítulo, analiso Diário de um detento, de Jocenir. Tento mostrar como
haveria um “olhar duplo” por parte do narrador. Por olhar duplo, algo que venho
perscrutando nesta introdução, entenda-se uma adesão ambivalente aos códigos carcerários
(dos homens presos) e ao dos homens livres. Procuro mostrar como a escolha vocabular e a
estrutura sintática ora revelavam uma incorporação do etos prisional
22
, ora mostravam-se
mais próximas ao que se compreende como pertencente ao mundo dos homens livres. Essa
ambigüidade narrativa constitui a particularidade do livro de Jocenir e aí reside a minha
aposta do conjunto pesquisado de narrativas a partir do cárcere. Entrelaçando essa
preocupação à da escolha do livro como meio privilegiado de expressão, procuro mostrar
como ela obedecia a uma mesma “lógica”: o livro, como objeto de um universo letrado,
pertenceria ao mundo dos “homens livres”, mas a apropriação que Jocenir fazia dele
transformava-o em objeto igualmente pertencente ao cárcere, dotando-o de particularidades
que expressavam essa ambivalência formal.
Sobrevivente André du Rap, de André du Rap e Bruno Zeni, é objeto do Capítulo 2.
Analiso-o como a convergência de duas urgências narrativas de origem diversa, da qual
resulta um livro ambivalente não apenas em sua adesão ao discurso externo e interno à
cadeia, mas também na dupla autoria de sujeitos com trajetórias distintas e que trazem para
a linguagem essas diferenças, em que a prisão, ainda assim, se impõe como elemento
estruturador.
22
Compreendido como o conjunto de valores e condutas reconhecidos como legítimos dentro da prisão.
16
No Capítulo 3, apresento as reflexões sobre Memórias de um sobrevivente, de Luiz
Alberto Mendes. Esse livro, em suas quase 500 ginas, narra a história da vida de
Mendes, desde a infância até meados da década de 1970. É a narrativa de sua história na
prisão, mas também antes dela. Para além do fôlego de escrita, as suas Memórias de um
sobrevivente diferenciam-se dos outros livros também em sua conformação, ainda que
esteja presente a dupla adesão aos códigos externo e interno à cadeia. Não aparecem, como
nos outros três livros que estudo, reprodução de cartas, nem fotos, tampouco seu autor
disponibiliza espaço para declarações dos “aliados”. Memórias de um sobrevivente é fruto
da dupla experiência de Mendes na vida criminosa, encarcerada (por um lado), e na vida
letrada (por outro). Procurando construir um personagem que ultrapassa, sem exatamente
negar, o que o ambiente prisional reconhece como legítimo, até porque escolhe narrar
também a sua vida anterior à prisão, afasta seu texto do de outros autores egressos do
cárcere. Faz isso, contudo, sem negar sua experiência, o que seria, sob a ótica da prisão, um
desvio como preso que foi e que ainda era no momento da elaboração e publicação do seu
texto.
O Capítulo 4 versa sobre o último dos livros estudados: Vidas do Carandiru, de
Humberto Rodrigues. O publicitário, preso aos 67 anos, conta a sua experiência enquanto
encarcerado. Rodrigues, ainda que faça questão de se apresentar como observador
diferenciado, dedica grande espaço às histórias ouvidas enquanto esteve preso, o que o
aproximaria dos outros livros analisados. Seu Vidas do Carandiru apresenta diário,
glossário e uma espécie de elucidário das tatuagens feitas pelos presos; faz a crítica ao
sistema penitenciário que os outros volumes também se esmeram em fazer; bem como o
relato de seu inferno pessoal. A maneira como mobiliza o conhecimento livresco (nas
constantes epígrafes, citações, notas de rodapé) e, a partir dele, tenta escapar à condição de
preso esbarra em como o seu livro está amoldado a um fazer narrativo característico do
cárcere.
No capítulo 5, tendo esmiuçado os quatro livros, passo ao que seriam as
considerações finais, quando proponho uma leitura para a escrita prisional, destacando-a de
outras produções que surgiram paralelamente.
Com o avançar da pesquisa, pude perceber que se, por um lado, essa escrita não
negava a experiência prisional e miserável, assim como não deixava de atacar a
17
“sociedade”, o “sistema”, responsável, afinal, pelas s condições de cumprimento da
pena; por outro, essa nova expressão literária parecia estabelecer no plano textual uma
cumplicidade com essa mesma sociedade e sistema recusados, porque capazes de alçá-los
ao estatuto de autor e tirá-los do passado marginal (nesse sentido, esses autores parecem
ver na escrita um caminho para a redenção social). A própria escolha do livro indicava essa
aderência, que poderia se dar a um tempo em duas vias: a preservação da identidade
carcerária e a necessidade de esquecê-la para poder continuar.
A tese investiga, portanto, essa ambivalência, que pode ser vista em diversos níveis,
mas que remonta a uma duplicidade que se poderia chamar de original ou constitutiva e
que diz respeito à relação que esses livros estabelecem entre o mundo interior à prisão e o
mundo exterior a ela. A escrita prisional procura ser fiel aos modos de sociabilidade do
cárcere, o que implica o respeito aos códigos de conduta estabelecidos pelos próprios
presos, bem como o respeito reiterado pelos valores ali compartilhados.
Na construção de suas narrativas, esses escritores procuram evidenciar a
importância que teve a escrita durante a estada na instituição penal: é ela que irá diferenciá-
los dos demais, garantindo-lhes um papel privilegiado no hierarquizado jogo das cadeias.
Além disso, a escrita aparece como saída para vencer o tempo e evitar confusões com
outros presos.
Jocenir, autor de Diário de um detento, conta que, enquanto estava preso, aos
poucos ia sendo reconhecido por seus pares como alguém que sabia fazer versos (nesse
sentido, os outros presos legitimavam sua escrita, quando começavam a lhe pedir que
escrevesse versos e cartas para a família deles) e por ele mesmo (quando constrói para si a
imagem de alguém que tem intimidade com as palavras, em função de um “dom” que
outros também enxergam nele).
A facilidade com a escrita, ao mesmo tempo em que cria uma identidade prisional
(a de alguém que sabe escrever bem, é capaz de fazer versos, mas que continua detido),
destaca-o do conjunto de detentos, aproximando-o da função almejada de escritor. Nesse
sentido, aproximando-o também do mundo exterior à prisão. Além disso, trazer a escrita
para o proscênio aparece como possibilidade de reintegração ao mundo além-grades
23
.
23
Essa dimensão da recuperação é explorada de maneira bastante aguda no trabalho de José Ricardo
Ramalho sobre o Carandiru como fazendo parte do discurso dos presos: “A viabilidade da recuperação se
afirma pela prática do trabalho, pela manutenção ou restauração de laços familiares, pelo acesso à
instrução, pela profissionalização, valores aos quais o preso adere, por ‘esforço’ pessoal,
18
Quando Jocenir afirmava que as experiências eram as mesmas (e, nesse caso, ele
sendo um “homem de letras” é capaz de traduzi-las para o papel, o que o singulariza nesse
conjunto), sinaliza que uma experiência comum em jogo e que seu livro é o relato de
“seu inferno”, que, por sua vez, é muito próximo ao de tantos outros.
A desenvoltura com as palavras lhe rende, então, para além da fama de homem das
letras, um ofício raro na cadeia e reconhecido como digno também fora dela. Assim, o
tornar-se escritor e o vislumbre de uma recuperação por meio desse novo estatuto apontam
para fora do cárcere, embora, para fazê-lo, Jocenir precise narrar da e sobre a cadeia.
“Há também o fato de que, boa ou ruim, esta é a minha história. Quer dizer: sou o
que resulta daí” escreve Luiz Alberto Mendes. “Mas eu não tenho vergonha de ser ex-
presidiário, não. É a minha história. Acho que é por isso que essa história deve ser contada
da maneira que aconteceu, porque é a história de cada um, ninguém se livra dela, ningm
tem outra pra contar” – pontifica André du Rap.
Tanto no que diz Mendes como no que diz André percebe-se um modo ambíguo no
tratamento da própria história. Ambos repetem “é a minha história”, no que parecem
expressar certa altivez. Mas a ressalva é feita. Mendes coloca em questão se se trata de uma
história “boa ou ruim”, sugerindo que ele seja o “resultado” disso portanto, se hoje ele
escreve sobre o que houve do modo como escreve, é porque passou por tudo aquilo. Ao
mesmo tempo em que expressa orgulho por sua trajetória de mudança, conversão, sugere
saber que não pode recusar a pecha de “ex-presidiário” (ou, no caso de Mendes à época da
publicação desse seu primeiro livro, de presidiário), dono de uma história que pode ser
vista como boa, pelo que dela resultou, mas também ruim, pelos muitos percalços
enfrentados.
André é mais explícito e diz “Mas eu não tenho vergonha de ser ex-presidiário,
não”. O uso do “mas” sugere um discurso contra o qual tenta se insurgir o de que ele
talvez devesse ter vergonha de ser ex-presidiário.
Logo depois, justifica a necessidade de contar a sua história: “porque é a história de
cada um” – num elogio às trajetórias no que elas têm de único –; “ninguém se livra dela” –
o verbo é especialmente digno de nota porque remete não só à idéia de livramento da pena
(e, nesse caso, a própria história é também uma pena), mas também à idéia de que de outras
voluntariamente” (Mundo do crime: a ordem pelo avesso, p. 112).
19
coisas se pode escapar, mas não da própria história. “Ninguém tem outra pra contar”,
sentencia André, sugerindo, no que se mostra muito fiel aos ditames do cárcere, que é
impossível fugir ao vivido quando se está na prisão.
Humberto Rodrigues, autor de Vidas do Carandiru, assim se refere à decisão de
escrever: “Subitamente, não me sentia mais como um preso, mas como um pesquisador que
havia se proposto a permanecer durante algum tempo num local de privações para elaborar
um livro”. O preso é, aqui, colocado em oposição ao pesquisador. A escrita funcionaria,
portanto, como modo de não assunção da identidade prisional, embora Rodrigues não tenha
como se furtar a ela.
No Capítulo 5, exploro a idéia de que a saída pela escrita poderia fazer parte do que
Erving Goffman chamou de uma forma de o indivíduo estigmatizado “corrigir” a sua
condição, “dedicando um grande esforço individual ao domínio de certas áreas de atividade
consideradas, geralmente, como fechadas a pessoas com o seu defeito”
24
. O investimento
na escrita seria, desse modo, uma maneira de tentar fugir ao estigma, mas, no que diz
respeito à literatura prisional, também de reafirmá-lo.
Estou aqui considerando o estigma, não como um atributo depreciativo, mas como
“uma linguagem de relações”, que “um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar
a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso, nem desonroso”.
O estigma” precisa ser entendido, no contexto dessa produção, como marca de
reivindicação autoral e no modo como se concatena à ambivalência constitutiva que
mencionei.
Ao depender das instâncias de legitimação, para que sua trajetória (ou “carreira
moral” para continuar com Goffman) possa ser contada e transformada (afinal, tornam-se
escritores), esses autores fazem um movimento de diálogo com o mundo exterior à prisão,
que, por sua vez, pode reconhecer aquele discurso, mas que dificilmente o entenderá além
da perspectiva prisional.
Na tentativa de livrar-se da pecha de presidiário, esses homens procuram construir
para si um novo caminho, por meio da escrita, quando se tornam autores. No entanto, a
experiência prisional é tão extremamente disciplinadora que, como diz Jocenir, “um
24
Erving Goffman, Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, p. 19.
20
homem nunca é o mesmo depois da prisão”, e, por isso, eles não podem se furtar a narrar a
partir da prisão, mesmo se já fora dela.
Narrando a partir da prisão, constroem uma perspectiva que, ao mesmo tempo em
que dialoga com os pares, confirmando o pertencimento ao grupo, procura escapar à
condição limitadora. A escrita produzida a partir da prisão revela oscilação entre o
sentimento de fazer parte de um coletivo (quando faz valer na sua escrita o conjunto de
valores solidariedade e fraternidade, por exemplo e condutas não delatar, não
testemunhar, não deixar de pagar dívidas, não deixar de cumprir as tarefas etc. próprios
ao cárcere, ou quando é capaz de solidarizar-se com o sofrimento alheio e escrever a
história do companheiro, colocar em seu livro uma foto sua, ou simplesmente louvá-lo
como sujeito digno) e de não fazer parte desse grupo (quando se torna um escritor
publicado: aqui, afasta-se do grupo não só pela destreza com a escrita e o que vem com ela
afinal, posta-se como observador privilegiado –, como também pela inserção ou
possibilidade de inserção – por meio da edição de sua história, quando é alçado à categoria
de autor).
Também reitera seu pertencimento a partir do estigma de “presidiário”, que
acompanha a recepção desses livros, mas também, como se viu, o seu próprio discurso.
o se trata, contudo, de discurso solidificado: uma aposta num porvir não
estigmatizado, embora, paradoxalmente, esses autores tenham que narrar a prisão,
entendida aqui, de acordo com Myriam Castro, como “um lócus que, embora faça parte do
contexto social global, está fora dele, não pela sua circunscrição jurídica como pelas
suas práticas específicas”
25
daí o que afirmei acima a respeito da costumeira fidelidade
dessas narrativas às formas de sociabilidade do cárcere.
Lançando mão do livro (no que se destaca do que se espera do ambiente prisional),
mas conformando-o às necessidades impostas por essa “microssociedade (porque precisa
honrá-la, sob risco de ser desleal aos companheiros), a recente literatura carcerária propõe
uma identidade paralela à do presidiário, qual seja, a do escritor.
IV.
25
Myriam Castro, “Ciranda do medo: controle e dominação no cotidiano da prisão”.
21
Antes de passar ao Capítulo 1, uma pequena citação, para que se esclareça o quão
extraordinária é a situação abordada nesta tese: presidiários escrevendo histórias e
conseguindo publicá-las em editoras de médio e grande porte.
Em seu Cabeça de porco, Luiz Eduardo Soares comenta o assassinato do traficante
rcio Amaro de Oliveira (“Marcinho VP”), em 2003, logo após o lançamento de sua
biografia:
“[Márcio] temia ser assassinado não propriamente porque o livro
[Abusado, de Caco Barcellos] divulgasse inconfidências que
envolvessem terceiros, mas pelo simples fato de [ele] ser objeto de um
livro, destacando-se, diferenciando-se, ultrapassando fronteiras
simbólicas que o mundo cerrado da comunidade encarcerada erguia.
Essas fronteiras invisíveis eram erguidas justamente para opor-se à
diferenciação individualizante sobretudo quando ela sugerisse
possibilidades de mudança e de superação do universo valorativo
compartilhado pelo universo dos apenados. Uma coisa é converter-se à
Bíblia, que é parte do código cultural dos apenados, outra coisa é furar a
parede cultural com livros, que são armas poderosas e perigosas porque
absolutamente inclassificáveis. Pouco depois, em 2003, Márcio foi
encontrado morto numa caçamba de lixo da penitenciária em que
cumpria pena. Seus livros estavam jogados sobre ele, coroados por um
cartaz: ‘Nunca mais vai ler’”
26
.
26
Celso Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo Soares, Cabeça de porco, p. 107.
22
Capítulo 1 (ou “Cada detento, uma sentença”)
I.
Quando em 2001 Jocenir Prado publicou, pela Labortexto Editorial
27
, seu Diário de
um detento: o livro, tinha seu nome associado ao rap homônimo, do qual é co-autor, e
que alçou o grupo de rap Racionais MCs ao que, com alguma licença, se poderia chamar
de estrelato fora do “gueto”
28
. Daí, talvez, a necessidade de esclarecer, por meio do seu
subtítulo (o livro), que aquele volume não trataria da música, conhecida no país pela voz de
Mano Brown
29
.
A foto da capa, em preto-e-branco, é uma imagem do videoclipe da música “Diário
de um detento”, dirigido por Maurício Eça e Marcelo Corpanni, e mostra a silhueta de um
homem com um cigarro em uma das mãos olhando, através das grades, para fora do
presídio. Ainda na capa, a informação de que a apresentação é assinada por Drauzio
Varella e que o livro é de autoria de Jocenir.
A própria identidade do autor do livro fica atrelada a sua relação com os Racionais,
uma vez que adotou esse pseudônimo depois de Mano Brown ter confundido o seu
verdadeiro nome (Josemir Prado), que nunca aparece, com “Jocenir”. Com o sucesso da
sica, adotou como assinatura artística aquela que o notabilizara no rap feito em parceria
com o famoso grupo da zona sul de São Paulo.
Ocupando as páginas 4 e 5, uma fotografia de um homem de costas (parece ser
Jocenir, embora não haja indicação que o confirme) em um salão, apoiado em janelas
gradeadas. Outra vez, o olhar é para além das grades (aqui, o horizonte é bem mais restrito:
avista-se outro prédio, no que parece ser o outro lado do tio). Jocenir o aparece em
fotografias ao longo do livro.
27
A Labortexto, no início desta década, trouxe a público alguns livros escritos a partir da experiência do
cárcere, como Sobrevivente André du Rap e Quatrocentos contra um: uma história do comando vermelho
(2001), de William da Silva Lima, e também da assim autodenominada “Literatura Marginal”, cujo
exemplo mais destacado é o primeiro livro de Ferréz, Capão Pecado (2000).
28
O CD Sobrevivendo no inferno (1997), no qual “Diário de um detento” consta como uma das faixas,
vendeu cerca de 500 mil cópias. A associação entre periferia e gueto está presente nas letras do grupo. Ver,
por exemplo: “Eu sou o Mano, homem duro do gueto, Brown Obá/ Aquele louco que não pode errar”; “Aí,
você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você, morou, irmão?” (“Negro drama”, do álbum Nada como
um dia após o outro dia, 2002). Ou ainda: “O pobre, o preto, no gueto, é sempre assim/ O tempo não pára, a
guerra não tem fim” (“Crime vai e vem”, idem, 2002).
29
É, no entanto, o próprio Brown quem aparece, de costas, na capa do livro de Jocenir. Ainda que o líder
dos Racionais só seja reconhecido pelo auxílio dos créditos dentro do livro.
23
As fotos confirmam o que o título anuncia: é a história, o diário, de um detento.
As histórias de prisioneiros se espalhavam, desde 1999, pelo país, muito
provavelmente na esteira do enorme sucesso do best-seller de Drauzio Varella Estação
Carandiru. O médico, aliás, além de responsável pela pequena apresentação do livro de
Jocenir, tem um capítulo dedicado a ele, bem como é incluído na diminuta lista de
agradecimentos que abre o volume.
Em comum, a sica dos Racionais e o livro de Varella trazem o relato do
massacre do Carandiru, em 1992, que Márcio Seligmann-Silva, em artigo recente, afirmou
constituir “o núcleo e o ‘buraco negro’ em torno do qual esta nova literatura do cárcere se
orienta”
30
.
Chamava-me atenção que o livro de Jocenir fosse composto o só pelos capítulos
propriamente, ou seja, a “matéria narrativa assim reconhecida, mas também por outras
30
Márcio Seligmann-Silva, “Violência, encarceramento, (in)justiça: memórias de histórias reais das prisões
paulistas”.
24
pequenas seções, cuja presença, se não chegava a destoar, era intrigante pelo que podia
revelar.
O livro se estrutura da seguinte maneira:
Na seção dos agradecimentos, vêm citados apenas os nomes de (nesta ordem)
Drauzio Varella; Ferréz; José Luis da Conceição, responsável pela foto que ocupa as duas
páginas precedentes à de rosto; Mano Brown, responsável por aquilo que, na falta de termo
mais apropriado, se pode chamar de sua “descoberta”, e também “modelo” da foto da capa;
Maurício Eça, diretor do videoclipe da música de Jocenir e Mano Brown.
Em seguida, a pequena apresentação de Drauzio Varella, em que o médico ressalta
o fato de ser Diário de um detento “um livro escrito por quem experimentou a dureza do
cárcere”. Comenta ainda o estilo “cortante” de Jocenir e recomenda a leitura: “É um relato
forte. Vale a pena ler”. Percebe-se aqui a valorização, por parte do médico, da experiência
na prisão, como a sinalizar que o autor daquele livro é digno de ser escutado (“relato”)
porque esteve presente, porque vivenciou uma situação-limite, a do cárcere. Esse aspecto
não pode ser ignorado, não porque está presente em boa parte das narrativas originárias
do cárcere (de Dostoiévski a Graciliano), mas porque aparece expressa no livro em vários
momentos ou seja, a experiência é valorizada também por Jocenir e por seus
companheiros.
Depois do sumário, a dedicatória aos cinco filhos, à cunhada e, em especial, à
“companheira”. Todos são nomeados e o serão novamente no último capítulo do livro, que
narra o momento em que é libertado.
Os capítulos de maneira geral obedecem à cronologia dos fatos narrados: a prisão e
a passagem por cadeias públicas e penitenciárias. Alguns deles são digressivos para que se
possa narrar um episódio específico, nada que comprometa aquilo que o autor deseja que
seja a compreensão exata, por parte do leitor, de como os fatos se deram. A preocupação
com a fidelidade de suas palavras também se faz notar ao longo do livro e é aspecto
importante para sua construção.
Além disso, um ponto central a Diário de um detento é o cuidado com a
apresentação do espaço e do modo como a vida na cadeia funciona, em um reconhecimento
ou expectativa de que aquele que o ignore o ambiente em que se desenrolarão as ações
narradas, bem como as suas regras de convívio.
25
As epígrafes que abrem alguns dos capítulos o extraídas do rap “Diário de um
detento e têm como tema o que de algum modo será tratado no capítulo seguinte, como se
a letra da música reunisse os vários episódios por que Jocenir passou na prisão: uma
espécie de mote à espera de glosa. O que me parece especialmente curioso aqui é que a
história contada no rap de Mano Brown e Jocenir não é a história de Jocenir (não tem,
portanto, apelo autobiográfico claro), que nem sequer estava preso à época do Massacre,
mas a de outro(s) presidiário(s). Portanto, ao anteceder o relato de cada capítulo de sua
história prisional ou, como ele prefere chamar, de “seu inferno”
31
com um trecho da
canção que não fala propriamente da sua vida, Jocenir compartilha o seu inferno, ou seja, a
sua dolorosa passagem pelo sistema prisional paulista, com o de tantos outros
“companheiros”, como mostram alguns excertos do rap reproduzidos dentro dos capítulos:
“Na cadeia, vale o que o sistema não quis, esconde o que a novela não diz” (p. 131)/ “Nada
deixa o preso mais doente que o abandono dos parentes” (p. 116, p. 149 na letra do rap,
“preso” é substituído por “homem”).
Entre os capítulos “Um visitante chamado Mano Brown” e “Periferia, futebol e
televisão”, aparece fac-similada uma carta de Erick, um companheiro de cela, bem mais
jovem que ele, a quem Jocenir aconselhava e por quem tinha se afeiçoado, apesar das
constantes confusões em que o rapaz se metia. A carta vem depois de menção feita a ela no
capítulo sobre Mano Brown, em que se : “Um ano após o encontro com Mano Brown,
recebi uma carta de Erick dizendo que meus versos tinham se transformado em música, um
rap, e que era um sucesso, tocava nas rádios a todo momento, tinham até gravado um
videoclipe da música no Carandiru(p. 101). Nesse sentido, a carta atestaria para o leitor a
veracidade de seu sucesso.
31
A imagem do “inferno aparece nos outros livros dessa chamada “literatura dos cárceres”, principalmente
no de André du Rap (não por acaso, sobrevivente do Massacre ver Capítulo 2), e faz lembrar os escritos
de Primo Levi sobre o campo de extermínio (ver, por exemplo, É isto um homem?).
26
No fim do livro, “Um salve aos manos” (onze nomes, alguns seguidos de apelidos,
aparecem): “A todos, mencionados ou não, minha mais profunda gratidão. Que Deus
ilumine seus caminhos e alivie suas dores e sofrimentos” (p. 173).
Jocenir termina o livro com a transcrição da letra de Diário de um detento”, uma
extensa narrativa que se passa entre a véspera e o dia seguinte ao Massacre do Carandiru,
em outubro de 1992.
Essa disposição material parecia apontar para algumas particularidades do livro de
Jocenir e em maior ou menor grau dos volumes que compõem o que se costuma chamar de
“literatura carcerária”: uma conformação generosa do livro, visível no amplo espaço
dedicado aos que o ajudaram na edição, aos que o esperaram pacientemente enquanto
esteve preso e aos que esperam pacientemente presos. Parecia haver na maneira como se
organizava o livro uma elaboração estética do etos, que supõe o companheirismo, a
lealdade, a solidariedade, a humildade.
27
Vista por outro ângulo, essa conformação não poderia estar só, uma vez que o livro
como objeto o parece ser dos mais familiares aos presos não entra, por exemplo, na
ampla rede de trocas que alicerça a economia dos presídios, como cigarros, produtos de
higiene pessoal, rádios, tvs, maconha, facas etc. Outras questões surgiam.
O livro de Jocenir estava sendo publicado por uma editora, que ao fazê-lo
chancelava-o junto aos seus prováveis leitores; recebia de um médico, também autor de um
grande best-seller sobre a prisão, um pequeno texto à guisa de prefácio recomendando a
sua leitura. Para quem? Certamente, não para os detentos, para os quais os livros
praticamente não chegam, para os quais, salvo raras exceções, o livro nem sequer é, como
sugeri acima, um objeto familiar. O mais provável é que a publicação do livro e sua
recomendação de leitura se dirigissem para aqueles que estão distantes do universo
carcerário, o que, empregando expressão do próprio Jocenir, vou chamar de “mundo dos
homens livres”.
Sem negar nenhum dos ambientes tanto aquele a que pertenceu enquanto esteve
preso, quanto aquele a que deseja pertencer e do qual espera legitimação pela escrita –,
Jocenir equilibra-se em um volume que é ambivalente na sua forma material, como
também em sua forma narrativa.
Antes de partir para uma análise do texto propriamente, algumas considerações.
Diário de um detento como de resto a “literatura carcerária” ou literatura produzida a
partir do cárcere – nasce sob o signo de uma ambivalência estrutural. E ela se deixa ver em
pelo menos dois aspectos.
O primeiro deles diz respeito a uma movimentação do narrador que oscila entre a
singularidade de sua experiência (“este é meu inferno, doloroso e meu”) e a necessidade
um imperativo moral de ampliá-la para a de um grupo (“Meu e de milhares de
companheiros que tentam sobreviver trancafiados”, p. 17), coletivizando-a, sem anular as
particularidades de cada sofrimento, de cada trajetória. Aqui, está-se diante de uma
ambivalência circunscrita ao ambiente carcerário e, por isso, a chamarei de “interna”.
Paralelamente, e eis o segundo aspecto, que não deixa de ser desdobramento do
primeiro, um movimento igualmente duplo de adesão aos códigos bem marcados de
conduta do universo prisional e aos códigos de conduta entendidos como os do além-
28
grades.
32
Aderindo às normas de fora da prisão, o narrador singulariza-se dentro da prisão,
mas também fora dela, uma vez que reconhece as “leis que regem a sociedade e as toma
para si, considerando-as legítimas e legitimadoras do seu discurso e da sua trajetória.
Quando se aproxima das regras da prisão, o narrador autentica o discurso e a trajetória dos
companheiros, bem como o seu na qualidade de “detento”.
Essa dupla aderência aparece na construção sintática, que pode tanto remeter às
estruturas orais, como a subordinações mais elaboradas, próprias do registro culto da
língua.
Essa oscilação aparece também na eleição daquele para quem parece ser escrito o
livro: em alguns momentos, Jocenir sugere voltar seu discurso para seus antigos
companheiros de prisão, quando, por exemplo, lições aos mais jovens ou quando
compartilha os valores ali dentro professados, mas em outros, mais imediatamente
identificáveis, parece escrever para quem jamais esteve em um presídio ou em uma cadeia
pública, daí a constante presença de expressões retificadoras: “O funcionário nos arrumaria
os litros, mas exigiria um pau, isto é, uma taxa” (p. 120, grifos meus); “O mais agitado era
Mineiro. Pálido, andava de um lado para o outro, dizia não querer justificativas, era da
opinião de que deveriam subir os do Márcio, ou seja, matá-lo” (p. 133, grifos meus).
Essa preocupação de Jocenir em se fazer entender também por quem pertence a
outra realidade ou é alheio às particularidades da vida no cárcere permeia o livro todo e
surge na necessidade de clareza quase didática que imprime a seu texto. Veja-se, por
exemplo, o esclarecimento trazido neste trecho que o faria sentido se unicamente
dirigido aos companheiros de prisão: “Personalidades do meio artístico fazem com
freqüência visitas à Detenção. Às vezes como contratados da direção do presídio para
shows, às vezes para rever amigos cumprindo pena” (p. 99).
A coexistência desse movimento duplo do discurso que ora adere à perspectiva
externa, ora à interna aponta para uma questão talvez anterior, qual seja, a própria escolha
do livro como meio privilegiado de expressão. Parece-me que a adoção do livro não
32
Um esclarecimento talvez seja necessário: quando estabeleço essa distinção entre códigos de conduta dos
presos e dos homens livres, eu o faço em função do que mostram os próprios relatos prisionais: na cadeia, o
modo pelo qual os detentos pautam seu comportamento é fruto de uma rígida normatização elaborada por
eles mesmos e que não corresponde exatamente ao que se supõe dos homens do além-grades. Isso deve
ficar mais claro adiante.
29
significa aceitar suas “limitações”, seu estatuto previamente dado e que não corresponde ao
etos prisional, o que se percebe na própria estruturação das partes que o compõem. Quero
sugerir que o livro assume em Diário de um detento como em outros exemplares dessa
“nova literatura do cárcere um formato próprio, que, por sua vez, é revelador de um
“conjunto de traços que faz com que esse narrador, sem perder sua especificidade óbvia,
pertença a um grupo. Ao escolher o livro, objeto raro nas prisões da pouco letrada
sociedade brasileira, Jocenir o faz de modo a não recusar sua condição dolorosa de
encarcerado, o que significa inserir-se em uma coletividade e tomar para si muitos de seus
valores. Isso aparece na estruturação do volume, mas também no próprio texto, e de
maneira tão coesa que é possível arriscar que tudo não só os capítulos, mas as seções de
abertura e de fechamento do volume componha a matéria narrativa de Diário de um
detento.
Está-se diante, portanto, de um volume cuja estrutura, exigida pela tensão presente
da vida no cárcere, configura-se como peculiar. Procurarei a seguir mostrar como esse
movimento ambivalente aparece em Diário de um detento e quais os desdobramentos
surgidos daí.
II.
A apresentação do espaço no qual se desenrolam as ações narradas merece atenção
especial na “literatura carcerária”. Se tomasse de empréstimo as palavras de Lukács em seu
célebre ensaio “Narrar ou descrever?”, diria que em Diário de um detento “a narração
distingue e ordena” (em oposição à descrição, que, segundo o mesmo autor, “nivela todas
as coisas”
33
), uma vez que o espaço é fundamental nessas narrativas. O espaço narrado
confina, enclausura, animaliza, se torna metáfora da condição encarcerada (“as grades”),
remodela as relações de tal modo que aparece até na capa do livro.
, portanto, uma preocupação bastante expressiva em situar o leitor quanto ao
ambiente narrado e suas implicações. De modo geral, a apresentação do espaço vem antes
do entrecho e surge acompanhada de observações sobre as condições precárias das cadeias
e presídios. Observe-se o quarto parágrafo do livro de Jocenir:
33
Georg Lukács, Ensaios sobre literatura, p. 62.
30
“A privação da liberdade, retirar o condenado do convívio social, não
representa o maior sofrimento do homem que passa a fazer parte da
realidade carcerária do país. A hipocrisia da elite, bem como das
instituições públicas, não admite que esta idéia seja propagada: os
distritos policiais, cadeias públicas e alguns presídios, antes de
restringir a liberdade de um indivíduo, tirá-lo de circulação, são campos
de concentração, senão piores, iguais aos que os nazistas usaram para
massacrar os judeus na 2
a
Guerra Mundial. São verdadeiros depósitos
de seres humanos tratados como animais” (pp. 17-18).
A denúncia do sistema penitenciário faz-se presente ao longo desse livro. Na
ausência de parâmetros que dêem conta do horror vivido, apela-se à comparação – também
presente em outros volumes sobre o cárcere com o Holocausto, em uma tentativa de
inscrever-se em um sofrimento reconhecido como tal por quem o lê.
As instalações, o relato da violência entre os presos (como parte da práxis local), a
higiene, a comida, as drogas tudo compõe um cenário assustador que serve a um
tempo para tentar sensibilizar os “de fora”, sem faltar com a lealdade aos “de dentro”, que
sofrem com os desmandos do “sistema”
34
.
III.
Logo no início do livro, Jocenir comenta:
“Tudo o que se possa julgar sobre uma prisão não pode ser
fundamentado nos princípios morais, éticos e religiosos da sociedade
dos homens livres. Nela os princípios são outros, escritos pelo
sofrimento e pela delinqüência do mundo marginal” (p. 19, grifos
meus).
34
O uso do termo “sistema” merece atenção. Pode referir-se tanto ao sistema penitenciário, como a
genericamente tudo aquilo que oprime o preso: a estrutura cio-econômica, a elite etc.: É duro ser bode
expiatório do sistema. Fiquei pensando naquele momento qual seria o tamanho do presídio se a justiça
funcionasse e botasse todos os criminosos de colarinho branco. Eles teriam direito a corredor polonês?
Comeriam merda?” (Diário de um detento, p. 80), ou então: “Os presos são vitimados por transgressões de
todas as ordens. O sistema não educa. Pune de maneira cruel, machuca o homem para sempre, o torna
quase irrecuperável” (idem, pp. 53-54). O “sistema” pode ser ainda, embora mais raramente, algo que os
aglutine e cujas regras devam respeitar.
31
Evidenciam-se no excerto acima alguns aspectos relevantes para a escrita desse
autor, que diferencia, por oposição, a “sociedade dos homens livres” da prisão, baseando a
distinção nos digos de conduta, que são também princípios morais, e nos valores
vigentes na cadeia.
Hoje talvez de conhecimento mais amplo até mesmo em função do crescente
interesse pelo assunto –, a existência de um rígido conjunto de normas entre os presos
poderia ser motivo de espanto. O percurso do prisioneiro supõe, quando “homem livre”, a
infração às leis e como sabê-lo? o não reconhecimento de sua legitimidade. Uma vez
preso, de se submeter (o que implica aprendizado mais ou menos rápido) às leis da
prisão: as do presídio como instituição, mas principalmente as geridas pelos próprios
prisioneiros (e das quais a instituição presídio também se beneficia).
Muitos dos comportamentos esperados são aqueles que valem para os “verdadeiros
malandros” ainda antes de serem presos: como a não delação, a cobrança da palavra
empenhada. Outros são mais propriamente aplicados ao ambiente prisional, porque
decorrentes das circunstâncias (como o respeito às visitas: “O respeito é fundamental.
Qualquer visita é bem recebida. No código de honra dos presos, maltratar uma visita pode
levar à morte”, conta Jocenir, à página 96) e, a bem da verdade, não chegam a causar
espanto: em situação de extrema precariedade material, esses homens se organizam para
estabelecer um convívio possível.
O tribunal o é moroso, o julgamento é rápido, e a pena, amiúde, capital. A lei
vigente é a de que alguns, por infringirem o código local, não seriam dignos de viver entre
eles: “Procurava conhecer bem as normas do presídio a fim de não as transgredir. Prestava
muita atenção às normas de conduta dos detentos. o eles que determinam a vida
cotidiana no Carandiru” (p. 85).
Para o bom funcionamento da cadeia, alguns valores como respeito e honra
precisam ser preservados: “Em jogos entre times na detenção não existem palavrões nem
ofensas. Tudo transcorre no maior respeito e harmonia, assim evitam-se problemas e brigas
sérias. A honra de um preso vale muito” (p. 109, grifos meus).
Repare-se aqui na necessidade de dar a perceber ao leitor (que, a julgar pelo que
sugere o texto, é alguém que desconheceria aquele ambiente) a importância, inclusive para
os episódios narrados no livro, da adesão do preso àquele código. E sentencia: não se pode
32
olhar para a prisão com os mesmo pametros que se enxerga o “mundo dos homens livres”
– a situação é outra, exige conformações próprias.
35
O etos prisional liga-se primordialmente à palavra empenhada. É ela que determina
a existência de respeito e honra por parte dos presos: “Uma palavra mal colocada, um
desentendimento, seria motivo para começar uma carnificina” (p. 137). Mas liga-se
também, para além das obrigações, ao senso de fratria
36
e solidariedade. O reconhecimento
por parte dos presos de que partilham infortúnios traduz-se em ações de companheirismo.
Aqui, Jocenir conta como foi amparado pelos outros detentos depois de ter sido surrado
pelos carcereiros na Cadeia Pública de Osasco:
“Imediatamente procuraram me ajudar, perceberam o péssimo estado
em que me encontrava depois das duras agressões que sofri. Pediram a
alguns manos que esquentassem água para que eu pudesse mergulhar
meus pés, que estavam inchados demais (...) Um dos presos gentilmente
ofereceu-me a cama em que dormia, a fim de que eu ficasse melhor
acomodado e descansasse” (pp. 59-60).
A cena se repetiria. Logo na chegada ao Carandiru, depois de ter sido torturado na
Cadeia Pública de Barueri, ele conta que: “Das celas, os presos gritavam oferecendo algum
tipo de ajuda, roupa, alimentos, remédios (...) A todo momento apareciam presos
procurando saber de onde vínhamos, nos traziam mais alimentos e roupas limpas” (p. 81).
Por parte dos presos, há, evidentemente e a existência do código de conduta
implacável é prova disto –, a percepção de que, mobilizando-se coletivamente, têm mais
chances de se preservar. No caso de Jocenir, a popularidade de que goza por ser “homem
das letras” (discutirei mais detidamente essa dimensão no item IV), por escrever cartas
37
35
Observe-se, por exemplo, este episódio, narrado no capítulo “A chegada de Márcio”: Márcio, seu irmão,
chegou à Casa de detenção sob ameaça de outros presos que, supostamente, haviam sido roubados “lá fora”
por ele. Em episódio delicado como esse, Jocenir revela que o etos prisional supõe, em muitos casos, a
conversa, o debate. Quando explica a situação aos companheiros de cela, recebe apoio (“Disseram estar
dispostos a me ajudar, iriam propor um debate para clarear a situação”, p. 136), mas também um alerta:
caso se confirmasse o erro do irmão, valeriam as regras do cárcere (“Fui avisado: se meu irmão estivesse
errado, seria a cara dele procurar uma forma de acertar com os manos, me disse Branco, de forma incisiva”,
p. 136).
36
Maria Rita Kehl explorou em um ensaio intitulado “A fratria órfã” a importância do sentido de fratria no
discurso do rap, que não por acaso é incorporado pelos próprios prisioneiros.
37
As cartas ocupavam, a julgar pelo que nos contam os livros produzidos a partir do cárcere, enorme
espaço na rotina prisional. É por meio delas que se dá a comunicação com o mundo exterior, sobretudo
33
para as famílias dos outros presos, contribui claramente para o respeito solidário que
muitos lhe dispensam. Em momento embaraçoso em sua passagem pela prisão, ele narra
que:
“Reuni meus companheiros de cela para colocá-los a par do que estava
para acontecer, rapidamente prestaram solidariedade a mim, estavam do
meu lado para o que desse e viesse (...). Muitos manos queriam falar
comigo sobre o assunto, aos poucos eu ia recebendo o apoio de muitos
lugares do presídio. Dos pavilhões chegavam mensagens de força, eu
era sangue-bom, e muito respeitado na Casa de Detenção de São Paulo”
(p. 135).
Note-se, aqui, a aderência ao etos prisional, revelada na nomeação dos pares como
“companheiros” e “manos”. Ele reconhece naqueles que o amparavam um comportamento
digno e correto, por ser o narrador igualmente digno e correto (“sangue-bom”). Desperta
interesse a estruturação do trecho, em que o narrador parece proceder de duas maneiras,
alternando um registro coloquial (como a reproduzir a provável fala de alguém: “estavam
do meu lado para o que desse e viesse”, “eu era sangue-bom”) e o seu correlato em chave
culta (“prestaram solidariedade a mim”, “[eu era] muito respeitado na Casa de Detenção de
o Paulo” respectivamente). O que não significa, importante frisá-lo, o abandono da
percepção de que escreve para quem não compartilha esse etos tanto que, ao lançar mão
dos dois registros, emprega uma sintaxe culta, própria ao registro escrito.
O elogio do espírito fraterno no cárcere aparece de modo eloqüente no momento em
que narra a chegada do seu “alvará de soltura”. Trata-se do último capítulo do livro, não
por acaso chamado “Adeus sangue-bom”. Aqueles que ficavam eram os que davam adeus.
Nesse sentido, no título, Jocenir presta homenagem, transferindo o foco narrativo aos
companheiros cuja hora de saída ainda não tinha chegado. A estrutura do capítulo contribui
para essa sensação de que era preciso, mais uma vez, dar espaço a outros relatos que não
apenas o seu. No momento mais desejado, Jocenir, em pequena digressão, interrompe a
narrativa de sua saída da prisão para comentar a importância de sua amizade com outro
detento, Papi. Apesar de tão aguardado por ele, o momento de liberdade era também o de
quando os presos estão recolhidos em unidades distantes da cidade de origem.
34
reverenciar os “aliados”, em clara expressão dos valores da cadeia. Claro, não era qualquer
aliado, mas Papi, com quem, nos últimos meses, havia passado madrugadas em longas
conversas.
Nesse capítulo, que, aliás, precede a seção “Um salve aos manos (aquela na qual
faz questão de nomeá-los em movimento de explicitação dos laços de afeto), lê-se:
“Ia pela galeria com um funcionário de cada lado quando comecei a
ouvir de dentro das celas os gritos de adeus e boa sorte. Eram muitos
gritando ao mesmo tempo. Em determinado momento o som tornou-se
ensurdecedor, os companheiros começavam a bater com suas canecas
de plástico nas portas. Era uma homenagem. Fiquei emocionado. (...)
Ao olhar para as celas, os manos paravam de bater suas canecas e com
as mãos me desejavam felicidade e boa sorte. Seguia pela galeria e
meus olhos se enchiam quando das portas partiam os sinais de positivo
e vitória das mãos dos que ficavam” (p. 170).
O emprego de “olhos se enchiam” pode ser interpretado como uma junção das
expressões “olhos cheios d’água e “de encher os olhos” (aqui, como sinônimo de
contentamento). O uso do clichê, dada a lacuna que pode ou não ser preenchida por
“d’água” (afinal, os olhos apenas se enchem, não se sabe de quê), não é completo, e o
enunciado se oferece em chave dupla, tensionando algo cujo sentido seria dado de
antemão, se apenas clichê fosse. Nesse flerte que não se completa com o fácil, com o lugar-
comum, o texto de Jocenir se revela em sua ambivalência de registros.
A incorporação dos valores da prisão, sem que isso representasse a recusa daqueles
compreendidos como próprios ao mundo dos homens livres, aparece assim formulada na
escrita de Diário de um detento:
“Quando digo que a cadeia ensina, refiro-me ao contato com os presos e
suas histórias, seus costumes, seu comportamento. (...) Aprendia com
cada situação em que me via envolvido, tirava de cada fato uma lição
que aos poucos mudava meus valores. Foram experiências
enriquecedoras. Passei a entender que o que se conhece no mundo dos
35
homens livres por dignidade, moral e bons costumes, deve ser deixado
do lado de fora. Na prisão um outro universo, regido por regras
próprias, e um código de honra muito forte, sua violação representa a
pena de morte” (p. 107).
Jocenir faz questão de explicar (“quando digo que..., refiro-me a”), para que não
pairem dúvidas quanto à ineficácia do desumano sistema penitenciário. O aprendizado
vem, não da instituição, mas da troca de experiências entre homens
38
que, reduzidos a um
espaço exíguo, alçam a palavra a um estatuto sem igual se se considerar o lado de fora da
prisão. É a esse público de fora da prisão que, na maior parte das vezes, Jocenir se dirige e
a quem precisa dar explicações. Sendo os seus prováveis leitores associados ao “sistema”,
haveria o risco, que Jocenir não quer correr até mesmo em lealdade aos companheiros, de
se acreditar que, em última instância, a cadeia pudesse educar.
o há espaço para essa dúvida:
“Meus dias no Carandiru foram, a um tempo, sofridos e valorosos. A
prisão deixa seqüelas que nunca mais se apagam na vida de quem nela
esteve, mas traz também experiências interessantes. Parece
contraditório, mas a cadeia ensina, e nos faz descobrir novos valores. E
o Estado e a sociedade não devem ficar satisfeitos com o que acabo de
afirmar, pois o que seria seu objetivo, o de recuperar o indivíduo para o
convívio, isso nem de longe acontece. Pelo contrário, a prisão apenas
pune irracionalmente uma parcela da população, que na maioria das
vezes é a menos culpada pela criminalidade” (p. 107).
O reconhecimento de uma identidade prisional contribui para essa clara distinção
que estabelece entre os códigos de conduta e seus desdobrados registros lingüísticos.
Pense-se, por exemplo, na maneira como apresenta Papi, “um argentino de 74 anos que
cumpria pena por tráfico de droga” (p. 167). Além da idade e nacionalidade (dados, aliás,
nada desprezíveis, porque podem despertar a compaixão: trata-se de um homem idoso e
estrangeiro), o que se sabe sobre esse personagem é apenas a razão de sua pena, em clara
38
Veja o que diz sobre as conversas com o argentino Papi: “Nas longas noites que passamos conversando,
pude ouvi-lo narrar situações e acontecimentos que com certeza dariam um excelente livro” (p. 162).
36
incorporação do discurso institucional em imagem
39
feita do amigo. Naquele ambiente, o
crime cometido passa a determinar a identidade.
40
Importa pensar que a explicitação da existência de rígido código de conduta, bem
como de valores comungados coletivamente, expõe igualmente a existência de uma forma
narrativa e material que procura dar conta deles. Tomado por esse etos, o escritor precisa
conformar a sua escrita a esse modo de ver o mundo, sob o risco de ser desleal (lembre-se:
a lealdade é um valor) por não “narrar a verdade da cadeia”. Entre o etos da cadeia e a
expectativa de ser alçado a escritor (pertencer, portanto, ao mundo dos homens livres),
um abismo social e, claro, narrativo – e é onde reside a especificidade da prosa prisional.
IV.
Jocenir, como outros dos autores discutidos neste trabalho, trata a escrita como um
“dom”, ou seja, como algo que lhe foi dado, sem que para isso despendesse maior esforço.
Nesse sentido, sente-se em dívida com aqueles que não foram merecedores da mesma sorte
e dispõe-se a narrar também em seu lugar.
41
O estatuto obtido graças à familiaridade, que pode ser nima, com a prática da
escrita e da leitura é em si denunciadora da realidade sócio-educacional brasileira.
Interessa-me pensar mais detidamente em como essa percepção do dom transforma-se em
um certo senso de missão que se manifesta na necessidade premente de narrar a experiência
e isso é um traço constitutivo da chamada literatura de testemunho, mas que aqui ganha
dramaticidade social em função do letramento extremamente baixo dos presidiários –, sem
deturpá-la. Como sentencia logo no início do livro: “Quero pintar um quadro que possa dar
uma idéia do que se passa no interior de uma prisão brasileira, um quadro macabro, mas
também repleto de histórias humanas” (p. 17).
Com isso, devolve-se o que ganhou, respeitando dois preceitos fundamentais: a
lealdade ao realmente vivido (reiteradas vezes manifesta) e, como um desdobramento, o
respeito aos “companheiros de sofrimento”.
39
Ver, a esse respeito, o volume organizado por Ruth Amossy, Imagens de si no discurso.
40
Apropriar-se do discurso oficial, institucional a respeito dos companheiros presos é um recurso de que se
vale também Humberto Rodrigues (ver Capítulo 4).
41
É possível pensar também que, nesse sentido, é um herdeiro da tradição da autobiografia moderna, que,
como afirma Mario Barengui, “desenvolveu-se sob o signo da tensão entre exemplaridade e
excepcionalidade” (Mario Barengui, “A memória da ofensa: recordar, narrar, compreender”, p. 177).
37
No capítulo “A rebelião”, conta que, depois de ter sido surrado e humilhado por
policiais, havia rezado e agradecido a Deus por tê-lo “preservado do pior e que havia
prometido publicar um dia a prece feita naquele momento. A publicação da oração ao
final desse mesmo capítulo é um acerto de contas consigo e com sua fé.
42
, aqui também, um movimento ambivalente o dom é singular e pessoal, mas a
devolução deve ser mais ampla, coletiva portanto. A sua história é parecida com a de
outros. Ao narrá-la, Jocenir individualiza-se, mas o faz também em nome daqueles que não
têm o privilégio da escrita.
Atente-se para o fato de que é preciso narrar pelos companheiros, mas não
exatamente para os companheiros. O público visado, como mencionei, é aquele que
desconhece o ambiente prisional, assim como aquele que flerta com a marginalidade e deve
tomar aquelas palavras como sábios conselhos. Se é Jocenir quem assina o livro e nesse
sentido, ao ressaltar sua inserção na categoria de autor, singulariza-se –, os valores e os
sofrimentos são partilhados pelos outros encarcerados, que se reconhecem naquela história
– coletivizando-a.
A relação com a escrita ocupa lugar fundamental em Diário de um detento e pode
ser vista, inicialmente, sob três ângulos assim formulados por seu narrador: evitar
aborrecimentos com outros presos; fazer o tempo passar; adquirir status em função da
destreza com as palavras. São três possibilidades conferidas à leitura e, sobretudo, à escrita
dentro do cárcere.
Em primeiro lugar, argumenta que essa atividade o resguardava das confusões:
“A maior parte do tempo eu procurava ficar dentro da cela escrevendo
versos e cartas, ou lendo livros espíritas. Desta maneira evitava contato
direto com alguns elementos indesejáveis. Também não ficava exposto
a acontecimentos violentos que ocorriam com freqüência” (p. 45).
42
É também, na aguda observação de Márcio Seligmann-Silva, a única instância de quem se espera justiça:
“Se universo jurídico e Justiça não têm nada em comum a não ser a sua mútua exclusão, esta literatura [dos
cárceres] é uma das provas mais contundentes deste fato. Não por acaso Hosmany Ramos vai fazer apelo à
‘Justiça divina’ ao descrever o massacre do Carandiru (...). Esta parece ser a única justiça possível em um
mundo carcerário abandonado ao tempo da repetição infernal do castigo” (“Violência, encarceramento,
(in)justiça”, op. cit., p. 7).
38
Em segundo lugar, porque a escrita e a leitura contribuíam para diminuir a angústia
do tempo que custava a passar:
“Eu procurava vencer o tempo. Na cadeia o tempo anda em câmera
lenta
43
. Fazia versos para os presos presentearem suas famílias, também
lia e respondia cartas. Com isto, ia pouco a pouco ganhando a simpatia
de todos, a dos mais perigosos. Por ler e escrever com facilidade, o
que é raro na cadeia, tomei contato com muitas almas infelizes. Isso era
bom, ganhava respeito, mas virei espectador de muitas tragédias” (p.
55, grifos meus).
No trecho acima, o que se percebe também – e este é o terceiro ângulo pelo qual se
pode analisar a sua relação com a escrita é que a declarada destreza com as palavras lhe
rende fama e respeito. Além disso, chama atenção que Jocenir assim a perceba, mais uma
vez reforçando a sua posição singular no ambiente carcerário, salientada ainda mais quando
se leva em consideração que ele se opõe às “almas infelizes”, que, no entanto,
encontravam-se na mesma condição que ele.
44
“Prova”
45
dessa condição de “homem das letras” é que, como ele nos conta, os seus
cadernos repletos de versos circulavam pelos pavilhões para serem copiados pelos detentos,
que se reconheciam naqueles versos, sem, no entanto, deixar de enxergar em Jocenir uma
posição destacada em função do trato com as palavras
46
.
Se se ampliar a questão, se possível ver a relação com a escrita, em um
desdobramento da abordagem inicial com seus três ângulos (quais sejam: evitar
aborrecimentos; passar o tempo; adquirir status), sob dois aspectos. Em primeiro lugar: a
43
A frase em destaque é também parte da letra do rap “Diário de um detento”, o que contribui para a
sugestão de que haja aí o tal movimento de singularização, presente na adoção do “eu para contar o seu
empenho em minorar o tempo ocioso, e expansão, visível na incorporação desse rap, que, em sua
expectativa de representatividade, pode ser visto como a história de todo detento.
44
Humberto Rodrigues adotará procedimento que caminha na mesma direção.
45
As aspas em “prova” devem sinalizar aqui a necessidade instante de atestar a veracidade do que é dito
pelo autor, que, a todo tempo, exemplifica o que conta com acontecimentos. Essa idéia de “prova” remete,
evidentemente, a uma situação de tribunal de algum modo, repõe-se a todo tempo a cena do julgamento.
Márcio Seligmann-Silva discutiu essa dimensão em seu “Violência, encarceramento e (in)justiça”: “A
literatura dos cárceres coloca-se abertamente enquanto literatura-denúncia, cumprindo o papel de acusação
nos tribunais jurídico e da história” (p. 5).
46
Segundo Jocenir, a popularidade de seus versos levou-o a ser apresentado a Mano Brown, o líder dos
Racionais. Esse encontro rendeu a já referida parceria famosa.
39
facilidade com a escrita, ao mesmo tempo em que cria uma identidade prisional (a de
alguém que sabe escrever bem, sabe fazer versos, mas que continua detido), destaca-o do
conjunto de detentos, singularizando-o, aproximando-o da função almejada de escritor.
Justamente esse movimento, decorrente da facilidade com as palavras, capaz de
alçá-lo à categoria de autor na ocasião da publicação do livro, constitui o segundo aspecto
pelo qual se pode discutir a relação de Jocenir com a escrita. Trata-se da possibilidade de
recuperação
47
.
“A dor de cada um se transferia para mim, e de mim para o papel.
Primeiro ouvia atentamente o que o companheiro dizia, procurava
interpretar suas ansiedades, seus sonhos, seus desejos. Se o solicitante
quisesse versos para a esposa, eu procurava compor como se fosse para
minha esposa, para algum amigo, procurava pensar em algum amigo,
filhos, pensava nos meus, e assim sucessivamente. Incorporava nos
versos minhas experiências que, sabia, eram as mesmas daqueles
homens. Cada detento uma mãe, uma crença, cada crime uma sentença,
cada sentença um motivo, uma história de lágrimas, sangue, vidas
inglórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão,
ação do tempo. Traduzia o cárcere com um lápis” (p. 97, grifos meus).
O movimento que pode ser lido em chave dupla aparece explicitamente quando
Jocenir afirma que as experiências eram as mesmas (e, nesse caso, ele sendo um “homem
de letras” é capaz de traduzi-las para o papel, o que o singulariza nesse conjunto), mas
também quando lança mão de um trecho de sua música famosa (em destaque na citação)
para sinalizar que uma experiência comum em jogo e que seu livro é o relato de “seu
inferno”, que, por sua vez, é muito próximo ao de tantos outros. Repare-se em que, depois
de assumir que as experiências eram próximas, recorre ao trecho da canção que aponta para
a singularização. Esse vai-e-vem costura a narrativa de Diário de um detento.
47
Essa dimensão da recuperação é explorada de maneira bastante aguda no trabalho de José Ricardo
Ramalho sobre o Carandiru como fazendo parte do discurso dos presos: “A viabilidade da recuperação se
afirma pela prática do trabalho, pela manutenção ou restauração de laços familiares, pelo acesso à
instrução, pela profissionalização, valores aos quais o preso adere, por ‘esforço’ pessoal,
voluntariamente” (Mundo do crime: a ordem pelo avesso, p. 112).
40
A desenvoltura com as palavras lhe rende, então, para além da fama de homem das
letras, um ofício raro na cadeia e reconhecido como digno também fora dela. Assim, a
segunda abordagem, com seus dois aspectos (quais sejam, o tornar-se escritor e o
vislumbre de uma recuperação por meio desse novo estatuto), aponta para fora do cárcere.
V.
No capítulo em que narra a chegada à Cadeia Pública de Barueri, logo no início de
sua detenção, comenta a respeito dos presos que já estavam por lá:
“Vieram para me ver. Faziam inúmeras perguntas ao mesmo tempo,
todos juntos, querendo a minha atenção. Alguns pediam os meus
sapatos, outros a minha roupa. Eu estava atordoado com o que via e
ouvia. Uma multidão de pobres-diabos molambentos me chamando.
Meus companheiros” (p. 41).
Aqui, a parataxe acentua a percepção que Jocenir tem do quadro miserável que o
cercava e do qual ele começava a fazer parte, sem, ainda, atribuir-lhe relações de sentido.
Acentua seu mal-estar, por não se sentir parte do ambiente, mas dá-se conta de que
pertencia àquele lugar e tinha, portanto, aqueles “pobres-diabos molambentos” como
“companheiros”. O termo não poderia ser mais justo. Companheiro é aquele que, nas
acepções dicionarizadas, “participa das ocupações, atividades, aventuras ou do destino de
outra pessoa” ou “aquele que vela por uma pessoa, trazendo-lhe consolo ou ajuda”. É isso
que Jocenir percebe durante todo o tempo de encarceramento.
O desconhecimento do rap é também um modo de singularizar-se em meio à massa
carcerária (aqui, pela idade e pela origem), embora se perceba o respeito ao tratar do
assunto: “(...) sabia da admiração e do respeito que os presos cultivavam pelo rap, em
especial os mais jovens. Sempre ouvia falar do som dos Racionais MC’s, e sabia da
identificação daquela gente sofrida e condenada com Mano Brown. Eram da mesma
realidade” (pp. 99-100).
Nesse trecho, quando se refere aos “presos”, exclui-se do grupo, assim como
quando se refere a eles como “gente sofrida e condenada”. Aproxima-os de Brown mas
não de si –, ampliando a distância estabelecida.
41
Ao longo de sua narrativa, Jocenir vai se familiarizando com as demonstrações de
lealdade, companheirismo, solidariedade, imbuído que estava dos chamados “valores da
prisão”. O momento em que isso atinge o paroxismo é precisamente quando, na cadeia de
Avaré (no interior de São Paulo), recebe uma carta de Tadeu, um de seus antigos
companheiros de cela no Carandiru, avisando que “chegara ao presídio Adrenalina”, um
preso que o havia agredido impiedosamente na Cadeia Pública de Barueri, porque Jocenir
se negara à extorsão, prática veementemente condenada nos presídios. Assim é narrado o
episódio:
“[a carta de Tadeu] dizia que muitos detentos que presenciaram a
covardia de Adrenalina e seus comparsas em Barueri queriam, em
respeito a mim, subir com o referido elemento. E mais, queriam que a
decisão partisse de mim. Sim ou não, matar ou não Adrenalina? Por um
lado, me emocionei com tamanho respeito e consideração que os manos
daquele presídio tinham com minha pessoa. Por outro, fiquei chocado
com a possibilidade de decidir de maneira tão banal a vida de um ser
humano” (p. 144).
Note-se que aqui, para explicar o termo “subir”, não faz uso de expressão
retificadora (até porque o termo havia sido esclarecido ginas antes, no episódio
envolvendo seu irmão), mas de sinonímia algumas depois (“matar”). Não deixa de aderir à
ótica prisional quando não se preocupa em dar imediatamente o significado do termo, mas,
quando lança mão de um sinônimo, parece ter em perspectiva a possibilidade de ser lido
pelos que estão fora da cadeia. Ademais, a aderência ao código local divide espaço com os
valores dos homens livres, segundo os quais não vale ou o deveria valer a lei de
Talião.
Essa incorporação dos princípios norteadores da conduta prisional é decisiva na
construção narrativa do livro. Percebe-se isso, por exemplo, quando escreve sobre o amigo
Tadeu e faz questão de expressar sua gratidão e lealdade:
“Desde que chegou à Casa de Detenção, Tadeu foi uma companhia
constante. (...). Devo-lhe muito pelo amigo leal que sempre foi. Deus
42
queira me permitir algum dia retribuir tudo o que ele fez por mim (...)
Aprendi a admirá-lo pelo caráter, pela simplicidade e humildade. (...)
Todos que o conheceram passaram a respeitá-lo como pessoa de bem e
sujeito homem, pois tinha muita palavra e honra” (p. 124).
O que se nota aqui é a assimilação do modus operandi prisional, com a valorização
da humildade sempre exaltada como uma das qualidades mais importantes em um preso
–, da lealdade, da solidariedade, do companheirismo. Além disso, paira a necessidade de
retribuir algo que lhe foi dado
48
. A idéia de “aprendizagem” revela um antes e um depois na
trajetória narrada. A conseqüente ampliação dos que, como ele, consideram Tadeu dono de
muitas qualidades (ter palavra e honra) é o desdobramento do movimento de singularizar-
se e coletivizar-se.
Esse aprendizado do etos prisional leva à incorporação dos valores da cadeia, daí,
como sugeri acima, a necessidade de nomeação, a exigência pessoal de contar a história de
seus companheiros, o “inferno” de cada um deles, o sentimento premente de narrar o que
foi capaz de observar.
Ao terminar seu último capítulo, sentencia que “Um homem nunca é o mesmo
depois da cadeia” (p. 171) e, com isso, acentua o caráter único da experiência prisional. Ao
escrever “um homem”, compartilha o que viveu e redimensiona seu relato, que é seu, mas é
também de outros, como daqueles “manos” mencionados por ele na página seguinte a essa,
justamente na seção “Um salve aos manos”.
Assim, Diário de um detento pode ser lido a partir de uma primeira chave de
leitura: a existência de um olhar duplo, que ora adere à perspectiva prisional, ora prefere
aproximar-se da dos chamados “homens livres”.
Essa tensão que atravessa todo o livro não impede que os princípios norteadores da
vida no cárcere façam-se presentes na disposição que Diário de um detento assume, com as
suas pequenas seções. Essa segunda chave de leitura remete, novamente em veio duplo, à
escolha do livro, objeto usualmente associado ao ambiente dos “homens livres”, que aqui é
48
A necessidade de retribuir está ligada à honra, como sugeriu Marcel Mauss em seu “Ensaio sobre a
dádiva”. Na cadeia, em que a honra é um dos mais altos valores, essas imposições não deixam de aparecer.
“A diva não retribuída ainda torna inferior quem a aceitou” (Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva”, p.
294) ou ainda: “(...) aceitar sem retribuir, ou sem retribuir mais, é subordinar-se, tornar-se cliente e
servidor, ser pequeno, ficar mais abaixo” (idem, p. 305).
43
transformado de modo a não trair o etos prisional. Dessa forma, a escolha do livro es
necessariamente associada à sua adequação aos valores e às condutas que se mostram
presentes tanto no texto como na organização de Diário de um detento os valores e as
condutas do cárcere.
Essa ambivalência narrativa parece-me própria de seu lugar de enunciação, a prisão,
de onde Jocenir lançou com precisão o verso em forma de questão que carrega de
significados a idéia de uma escrita da violência: “Mas quem vai acreditar no meu
depoimento?”.
V.1.
A prosa de Jocenir obedece, no geral, a uma estrutura fato-comentário. Narra a ação
e, em seguida, a comenta. Alguns aspectos internos a essa formalização merecem olhar
detido.
No que concerne à análise de estilo, é possível encontrar em sua prosa elementos
que remetem à estrutura folhetinesca, em que se destaca o anúncio de desdobramentos,
apenas futuramente revelados: “Esta foi a última vez que os vi [refere-se a Nego Nardo e
Adrenalina, dois presos que o haviam surrado na Cadeia Pública de Barueri]. Mas
Adrenalina, algum tempo depois, cruzaria meu destino de maneira trágica” (p. 51).
O fim de um capítulo que posterga revelações, apontando para o que viria a seguir,
é ilustrativo: “Em meados de 1996, fui surpreendido por um fato muito interessante em
razão de meu gosto por escrever versos” (p. 98).
Só se sabe a que fato remete no capítulo subseqüente, não por acaso intitulado “Um
visitante chamado Mano Brown”, quando trava conhecimento com aquele que o projetaria
como compositor.
A mesma estrutura se repete ao longo do livro: Em meados de 1998 eu cumpria
pena na penitenciária de Avaré. E foi que talvez tenha ocorrido o fato mais curioso e
trágico da minha passagem pelo sistema carcerário. Entretanto mais tarde é que fui
tomar consciência da dimensão inusitada deste acontecimento” (p. 143).
parágrafos constituídos de uma única frase e que também contribuem para
prender o leitor à revelação do que não é dito em um primeiro momento: “Uma vez
aconteceu comigo” (p. 125).
44
A incorporação de uma estrutura narrativa consagrada vem entrelaçada a
construções sintáticas que podem remeter à oralidade (aqui, percebida na repetição: “Facas
nas cinturas. Todos tinham facas na cintura”, p. 138), bem como à criação de termos o
pertencentes ao registro culto da língua e cuja autoria não é necessariamente sua, mas fruto
de sua passagem pela prisão (“[...] queriam subir com o referido elemento
49
”, p. 144, grifo
meu).
A sintaxe peculiar muitas vezes está a serviço da escrita dirigida primordialmente
para os que não compartilham os códigos da cadeia: “Laranjas. São presos que assumem a
autoria de crimes que não cometeram” (p. 95)
50
. De algum modo essa construção alude à
dos próprios capítulos, cujas epígrafes dão mote ao que será narrado em seguida.
“Laranjas” é o mote. Sua explicação vem em seguida.
A interrupção da narrativa para esclarecer alguns termos aos leitores é igualmente
constante: “Ele queria receber e ainda mandar o Erick para o Seguro, no pavilhão Cinco./ O
Seguro é um lugar para onde vão os presos que correm risco de vida. É a maior fábrica de
laranjas da Detenção (p. 119). Tendo explicado algumas páginas antes o que “laranja”
queria dizer, basta que explique o que é o “Seguro”.
A linguagem assume tom informativo quando, no último capítulo, prestes a deixar a
cadeia, sente-se compelido a esclarecer, estabelecendo, pelo emprego do conectivo, uma
relação de sentido, possível porque adere ao que chama de “tradição dos presídios”:
“(...) pois é da tradição dos presídios doar todos os objetos de uso pessoal para aqueles que
ficam, um preso quando ganha as ruas normalmente leva a roupa do corpo e as
correspondências acumuladas em sua passagem” (p. 167, grifo meu).
A ausência de subordinação, normalmente associada a construções mais simples,
faz-se igualmente presente: “Alguns presos estavam endividados. Droga. Resolveram me
extorquir. Diziam que eu não era bandido, nem ladrão. Não era digno de viver entre
eles” (p. 45). O uso dos períodos breves, que prescindem de conjunções reveladoras de
sentido, é extremamente adequado à situação: Jocenir, que ao longo de todo o livro
49
Aqui, é digno de nota que as gírias dos presidiários muitas vezes incorporam termos e expressões do
jargão policial, como “elemento”.
50
Curiosa aqui é a necessidade de explicação do termo “laranja”, gíria que pertence ao mundo dos “homens
livres”, ainda que para indicar ato de infração. O laranja, na prisão, não é o que assume a compra de algo
que não adquiriu, mas a autoria de um crime não cometido por ele nesse sentido, tem seu sentido
aprofundado.
45
argumenta que sua prisão foi injusta, reitera o seu não pertencimento àquele ambiente
corrompido
51
dos falsos malandros quando, recriando a situação, atribui aos outros a
identidade que reivindicava para si: “Diziam que eu não era bandido, nem ladrão”. Mas
quem infringia o digo de conduta eram os que lhe diziam aquilo, uma vez que a extorsão
é prática condenada nos presídios. Ao recriar a fala dos que o ameaçavam, Jocenir o faz de
modo a evidenciar a inadequação, no ambiente da cadeia, do que lhe diziam os “falsos
malandros”. A ameaça não era vista como correta naquele universo, o que pode indicar que
a narrativa da cena traz em sua sintaxe a ausência de conectivos causais, justamente pela
incapacidade de, em acordo com o etos do cárcere, conferir explicação àquela extorsão. As
lacunas explicativas podem ser lidas como o modo de Jocenir, tendo introjetado as regras
de conduta da prisão, refutar um discurso e uma prática não reconhecidos como dignos à
cadeia.
À medida que se aproxima do fim, a narrativa se concentra na espera ansiosa do
alvará de soltura: “Meu coração batia descompassado, pedia para sair do peito, pedia para
sair do presídio” (p. 164). À estrutura em paralelo deve ser dedicada atenção. Com o
coração que pedia para sair do peito, o leitor vê-se novamente às voltas com o clichê.
Trata-se, contudo, do mesmo coração que pede para sair do presídio. O emprego do lugar-
comum nesse trecho pode ser pensado de dois modos: lançando mão dele, aproxima a
situação de seu público-alvo, que não sabe o que é o desejo de liberdade (“Quando se está
em liberdade essas coisas [botar os filhos na cama, dar-lhes boa noite, abraçar a
companheira e beijá-la] parecem não ter tanto valor”, revela Jocenir um pouco adiante,
ainda à página 164), mas é capaz de, pelo reconhecimento do clichê, imaginar uma dada
situação. O acréscimo de um “coração que pede para sair do presídio”, além de transformar
o “peito” anteriormente mencionado em, no sentido figurado, uma “prisão”, contribui para,
agora, tendo deixado o leitor mais ou menos próximo de uma circunstância conhecida (a do
clichê), trazê-lo para a especificidade da sua sensação e situação.
51
Esse episódio, ocorrido durante sua passagem pela Cadeia de Barueri, revela uma distinção reiteradas
vezes anunciada pela “literatura carcerária” entre os “falsos malandros” (que não seriam bandidos de
verdade e, para tentar suprir essa “lacuna”, oprimiam os recém-chegados cujos laços com a “comunidade”
não parecessem suficientes para protegê-los) e os “verdadeiros malandros” (aqueles que habitavam os
presídios, tinham penas longas e eram respeitados por seus pares). Os verdadeiros malandros, adeptos do
código de conduta dos próprios presos, vêem a extorsão como uma prática vil.
46
Nesse sentido, novamente o lugar-comum é incorporado ao texto, mas em sua
negatividade trata-se de um recurso para tentar fazer-se entender por alguém que não
compartilha a linguagem do cárcere, mas que é capaz de compreender a expressão-clichê.
O uso do dito compartilhado parece ser uma tentativa de, mobilizando a linguagem
esgotada do lugar-comum, fazer entender a não-banalidade da sua experiência, torná-la
mais próxima do leitor.
À página 76, lê-se: “Ironizavam com nossos ossos quebrados, nosso sangue que
escorria, nossas roupas rasgadas, nosso desespero. Preparavam uma maldade policialesca.
Algo bem podre e condizente com eles” (p. 76, grifo meu).
O adjetivo empregado “policialesca” poderia parecer redundante, visto que
quem cometia as barbaridades narradas eram policiais, mas o termo escapa ao exagero, não
porque a situação narrada é desmedidamente brutal e, portanto, qualquer acusação de
“exagero” será leviana, mas porque sugere que atos tão covardes são próprios de policiais.
Os ossos quebrados e o sangue que escorria o são apenas revelados, mas m
acompanhados do verbo “ironizar”, aqui, de um descaramento ímpar. As roupas rasgadas e
o desespero acentuam a crueldade do quadro. Nesse plural sem nomes, os policiais são
reduzidos a um “eles” sem cara, não reconhecíveis, o resumo do horror, tanto que os verbos
“ironizavam” e “preparavam” ficam sem sujeito explícito, a sinalizar uma separação abissal
entre nós” e eles”. Não adesão possível a esse “eles”, porque eles são o contrário do
que é entendido como próprio ao “mundo dos homens livres”, embora, na prática, sejam
por esse mesmo mundo engendrado e autorizado.
Nesse sentido, colocar “policialesca”, termo sugestivo de seu local de enunciação
(que nega o respeito à força policial), ao lado do culto “condizente” é um gesto resistente à
violência infligida, em que o narrador, sem recusar sua condição (circunstancial) de homem
preso, incorpora a língua do agressor para fazer notar que sua condição circunstancial não o
torna bestial.
As leis institucionais da prisão, aquelas também não escritas, mas praticadas pelos
seus responsáveis, como carcereiros, guardas, diretores, não m espaço na literatura
carcerária, porque os homens presos não as reconhecem como legítimas. Se adesão há e
minha aposta é de que ela exista –, ela se entre a efetividade dos códigos criados pelos
47
próprios presos e a normatividade da conduta dos homens livres, ou seja, na aposta de que
o etos do lado de fora exista tal qual imaginado.
V.2.
Diário de um detento é o único livro de Jocenir, autor ainda de um conto publicado
no suplemento “Literatura Marginal”, organizado por Ferréz e editado sob o selo da revista
Caros Amigos.
A partir de seu livro, constrói para si uma imagem a de escritor que vai na
contramão do que o senso comum poderia esperar de alguém “oriundo”
52
das prisões. Sua
escrita é construída sobre valores muito bem definidos, que o os seus a partir da
experiência prisional, portanto, presumem um antes e um depois. A idéia do aprendizado
igualmente supõe uma condição prévia (homem livre) e ulterior (ex-detento). Entre esses
dois momentos, passa pelo que a sociologia dos campos chama de ritos de instituição
53
(e
que Jocenir, apropriando-se do jargão dos presídios, nomeia como “processo de inclusão”,
quando os presos recebem uniformes, têm a cabeça raspada etc.), impostos pelo Estado,
que, ao fazê-lo, determina uma nova identidade, a de presidiário
54
.
“(...) a investidura exerce uma eficácia simbólica inteiramente real pelo
fato de transformar efetivamente a pessoa consagrada: de início, logra
tal efeito ao transformar a representação que os demais agentes
possuem dessa pessoa e ao modificar sobretudo os comportamentos que
adotam em relação a ela (a mais visível de todas essas mudanças é o
fato de lhe conceder títulos de respeito e o respeito realmente associado
a tal enunciação); em seguida, porque a investidura transforma ao
mesmo tempo a representação que a pessoa investida faz de si mesma,
bem como os comportamentos que ela acredita estar obrigada a adotar
para se ajustar a tal representação”
55
.
52
nesse discurso que ora incorporo, lançando mão das necessárias aspas, uma idéia muito reveladora do
estigma que acompanha o presidiário, afinal ninguém pode ser originário da prisão.
53
Ver Pierre Bourdieu, “Os ritos de instituição”, em Economia das trocas lingüísticas. O ato de instituição,
segundo Bourdieu, notifica a alguém – aqui o homem detido – a sua identidade (de presidiário).
54
Ver Michel Foucault, “Sobre a prisão”, em Microfísica do poder.
55
P. Bourdieu, op. cit., p. 99.
48
Como esse antes e depois aparecem no texto?
56
Observe-se um dos excertos em que
Jocenir cria uma imagem de si:
“Nasci e fui criado em bairros de classe média, talvez por isso minha
facilidade em notar que a história da grande maioria dos presos está
absolutamente ligada ao estado de miséria em que se encontra nosso
povo. Miséria brava, patrocinada pelo mesmo sistema que trancafia as
pessoas em celas” (p. 108).
O narrador posta-se aqui como observador privilegiado
57
. Indicando um antes, tem-
se, então, segundo sua formulação, a sua origem social distinta à da grande maioria dos
presos, bem como a capacidade de enxergar o que outros não vêem.
O depois é percebido no modo como vai, enquanto está preso, transformando-se em
autor, sendo assim reconhecido por seus pares (que legitimam sua escrita, quando lhe
pedem versos e cartas para a família) e por ele mesmo (quando constrói para si a imagem
de alguém que tem intimidade com as palavras, em função de um dom que outros também
enxergam nele).
Em um segundo momento, sua escrita é reconhecida externamente por Mano
Brown (responsável pela comunicação com os de fora), com quem assina música de
sucesso, a qual lhe rende a publicação do livro (portanto, a chancela de uma, ainda que
pequena, editora). Nesse movimento, torna-se um compositor e escritor, com ouvintes e
leitores.
Jocenir preocupa-se em produzir uma escrita que seja leal aos valores aprendidos na
prisão, de modo a não falsear a experiência, a não deixar cair no esquecimento as
brutalidades sofridas por ele e pelos companheiros, mas também para memorar as suas
histórias. Nesse sentido, incorpora a identidade recebida (a de presidiário), mas não a deixa
reduzir-se ao que dela é esperado: valoriza a sua experiência, a dos outros, confere nome e
56
M. Foucault, em seu Vigiar e punir, atenta para a importância do elemento biográfico na história da
penalidade: “Porque ele faz existir o ‘criminoso’ antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste” (p.
224).
57
Essa posição é partilhada, segundo as suas próprias formulações por Humberto Rodrigues (em função de
sua origem social) e, em razão dos anos de prisão e das leituras feitas, por Luiz Alberto Mendes. André
Du Rap vê-se como alguém a quem foi dado o dom da escrita e, sobrevivente, portanto, em dívida, precisa
fazer uso dessa dádiva.
49
dignidade aos que com ele compartilharam o cárcere, conforma seu livro de modo a exaltar
essa subversão identitária.
Ao mesmo tempo, ao fazê-lo, cria uma identidade autoral que lhe é única é ele
quem assina o livro, foi ele quem compôs a letra –, que pode significar a legitimação de seu
discurso e, em última instância, uma possibilidade de (re)inserção social. Mas a
ambigüidade está dada: pois se precisa ser fiel à experiência e um homem nunca é o
mesmo depois da cadeia” –, a marca permanece, não pode se furtar a escrever sobre isso e
como o etos prisional exige, sob risco de ser deslegitimado pelos antigos companheiros.
Em sua adesão ambivalente a códigos de conduta distintos, a partir de um uso
dobrado da linguagem, a prosa de Jocenir quer provar a sua autenticidade. Essa dimensão
remete-nos ao relato de Primo Levi da “cena sempre repetida [em seus sonhos] da narração
que os outros não escutam”
58
. No caso da “literatura carcerária”, a suposição de que não o
escutem aparece, de início, pela condição a ele atribuída de marginal. Em um segundo
momento, porque narra os horrores decorrentes de ter recebido o título de marginal:
brutalidade policial, covardia dos carcereiros, condições desumanas. De tão assustadores,
podem soar inverídicos, sobretudo se assinados por quem já se mostrou capaz de infringir
os preceitos da vida civilizada em sociedade. Sob esse duplo risco, Jocenir conforma sua
narrativa à busca da credibilidade, seja pela nomeação (presente nos agradecimentos, no
salve aos manos), seja pela fotografia, seja pela carta fac-similada, seja pela apresentação
feita por um médico respeitável e conhecido.
Nesse sentido, seu livro é leal aos preceitos da vida no cárcere, porque se propõe a
não falsear a verdade, não descumprir a palavra e manter intacta a sua honra. Como o é
também ao mundo dos homens livres, quando, reconhecendo-o como instância
legitimadora, confere ao papel, à escrita, à prova, a autenticidade da experiência.
58
Primo Levi, É isto um homem?, p. 60. No livro Lembrar escrever esquecer, Jeanne-Marie Gagnebin
analisa em alguns de seus ensaios a repetição e a importância dessa cena (ver, por exemplo, “Memória,
história, testemunho” ou “Verdade e memória do passado”).
50
Capítulo 2 (ou “Ninguém sabe o peso que tem uma grade”)
I.
Sobrevivente And du Rap (do Massacre do Carandiru), lançado no segundo
semestre de 2002 pela mesma editora de Diário de um detento, a Labortexto Editorial,
impunha-se desde o início desta pesquisa como um objeto de difícil enfrentamento, não
pelo impressionante relato que continha, o de um sobrevivente ao Massacre do Carandiru,
mas também porque se tratava de um livro escrito a quatro mãos. De todos os livros que
constituem o corpus deste trabalho, Sobrevivente é o único com esse perfil
1
. José Andde
Araújo, que, assim como Jocenir, adotou um pseudônimo André du Rap –, escreveu seu
livro com o jornalista Bruno Zeni. Resultado de um encontro durante o julgamento do
coronel Ubiratan Guimarães
2
, o livro de André e Bruno nasce de uma dupla necessidade de
narrar o que houve em 2 de outubro de 1992: para que não fossem esquecidos os seus
mortos e para que “aquilo” não voltasse a se repetir.
3
Também ao contrário dos outros livros aqui discutidos, o de André e Bruno nasce
de quatro sessões de conversas gravadas e tem como razão de existência a narrativa de Du
Rap sobre o Massacre
4
. Não nasce, portanto, da escrita
5
, mas da fala em registro dialógico
1
Enjaulado, de Pedro Paulo Negrini, conta a história prisional de Rogério Aparecido e, nesse sentido,
poderia se assemelhar a Sobrevivente André du Rap, mas algumas observações de Negrini, que se nomeia
“autor do livro”, a respeito de seu papel afastariam os dois volumes. Afirma, por exemplo, que: “O autor,
embora dando sua própria redação às idéias de Rogério, tentou ser o mais fiel possível ao que lhe foi
exposto, colocando no texto o linguajar da cadeia, quando tal foi viável. As conversas havidas entre Rogério
e o autor que possui experiência profissional adquirida como advogado criminalista por muitos anos
possibilitaram que este livro fosse escrito” (p. xvi, grifos meus). Márcio Seligmann-Silva aponta as
diferenças entre os dois livros, ao mesmo tempo em que marca o papel de Zeni: “Bruno Zeni, como
jornalista, literato e estudioso de literatura, encontra-se à parte neste grupo de escritores e tem também um
papel sui generis na sua parceira com André du Rap, diverso do de Pedro Paulo Negrini com relação ao ex-
prisioneiro Rogério Aparecido, que Zeni optou por uma elaborada estratégia de ‘intervenções mínimas’
no relato de André du Rap” (“Violência, encarceramento, (in)justiça”, op. cit., p. 11).
2
O coronel Ubiratan Guimarães era acusado de ser o responsável pela operação de invasão à Casa de
Detenção de São Paulo, o Carandiru, em 2 de outubro de 1992, quando foram mortos, segundo os dados
oficiais, 111 presos.
3
Como se adiante, André muitas vezes se refere ao Massacre como “aquilo”. Sobre sua urgência em
narrar: “Minha intenção é alertar a sociedade do que pode acontecer. Que o que aconteceu pode acontecer
de novo. Um novo massacre” (p. 106).
4
Nesse sentido, talvez se assemelhasse a livros do testimonio latino-americano, como Meu nome é
Rigoberta Menchú e assim nasceu a minha consciência, mas, aqui também, a experiência prisional
brasileira dota o livro de especificidades. Além disso, ao contrário do que ocorre naquele livro, no de André
e Bruno, ambos respondem pela autoria (o de Rigoberta é assinado por Elizabeth Burgos).
5
Esse ponto não parece ser pacífico entre os dois autores. Na ocasião do lançamento do livro, ambos
concederam entrevistas ao jornal Folha de S. Paulo em que expressavam divergências a esse respeito.
Referindo-se à seção “Fragmentos de uma correspondência”, Bruno comenta que “Essas cartas são o único
lugar no livro em que tem, de fato, a escrita dele; o resto é a nossa conversa” (“Sobrevivente relata o
51
entre seus dois autores. É sob essa ótica que deve ser analisado é nisso que se diferencia
dos outros volumes discutidos neste trabalho e é também a partir dessa dupla elaboração
que constrói a sua particularidade. De um lado, André, recém-saído de quase uma década
aprisionado, tentando refazer a vida, mas precisando se haver com seu passado. De outro,
Bruno, autor (O fluxo silencioso das quinas, pela Ateliê Editorial, 2002), jornalista e
então mestrando em Teoria Literária nesta Universidade. Tinham, portanto, trajetórias
muito distintas, provenientes de classes sociais igualmente díspares e haviam recebido
graus bastante variados de educação formal. Bruno detinha as possibilidades rápidas, fruto
de sua inserção nos meios editoriais como jornalista e como editor, de publicação do relato
de André, mas não conhecia a experiência-limite vivida por ele.
Embora na capa e na ficha catalográfica Bruno apareça como responsável pela
“coordenação editorial”, no final do livro ambos são “os autores” (ver seção “Sobre os
autores”). São ainda de autoria de Zeni as notas de rodapé, a apresentação e o ensaio que
fecha o livro. Se a história narrada é a de André, era de se supor, por todas as intervenções
de Zeni e por seu ensaio, que ele respondesse pela forma do livro, ainda que ele a atribua
ao que reconhece como sendo de André: as fotos, as cartas, a história, a autoria. No último
item deste capítulo, procurarei discutir essa questão.
Nesse sentido, a questão da inserção pela autoria, tal qual a discuti no capítulo
anterior, deve ser vista a partir dos novos contornos impostos por esse livro. Para pensá-la,
acredito que seja necessário enfrentar, em um primeiro momento, passada a descrição do
objeto, o modo como a história de And assume uma forma narrativa, como é feita a
apropriação do livro, em que pese a formação acadêmica de um dos autores. O ensaio de
Bruno indica valiosas pistas interpretativas para o seu próprio livro, como procurarei
destacar mais adiante.
Sobrevivente André du Rap, a seu modo específico, comunga dos valores expressos
nos outros livros da chamada “literatura carcerária”, que, por sua vez, remetem ao ambiente
de onde provêm a prisão. A matéria narrativa, construída a partir de qualidades como
lealdade, humildade, solidariedade, professadas à exaustão por André, é na maior parte das
massacre do Carandiru”, Folha de S. Paulo, 09/09/02). André, ao responder ao repórter se havia sido
difícil publicar o livro, afirma: “Desde que eu comecei a escrever as primeiras páginas” (“Decidi fazer da
experiência terrível algo bom”, Folha de S. Paulo, 09/09/02). Tomo aqui, para efeitos de análise, como não
poderia deixar de ser, o que o livro afirma: o que há ali é resultado de quatro entrevistas gravadas.
52
vezes o relato da experiência na prisão, mas tamm o rememorar
6
da vida para além do
“peso da grade”, para usar sua expressão sobre o rcere. Nesse sentido, aqui também, a
exemplo do que percebi na prosa de Jocenir, é possível notar a adesão do discurso de
André a um conjunto de regras e valores do ambiente prisional, mas também, em outros
momentos, a expectativa de diálogo com o mundo exterior, do qual, no momento de
concepção do livro, Du Rap fazia parte (ao menos idealmente, como ele próprio deixa
entrever quando discute o estigma do ex-presidiário). A origem do livro, o encontro dos
dois, contribui para esse vislumbrar do mundo dos “homens livres”, do qual Zeni é
inconteste membro.
No Capítulo 1, dedicado à análise de Diário de um detento, o movimento de
singularizar e ampliar a experiência, que ora era apenas de Jocenir, ora era feito em nome
de todos os seus companheiros, dava-se primordialmente em função do trato com a escrita.
A identidade prisional de Jocenir, a partir da qual construi uma identidade para depois,
ganhava contornos específicos graças a essa habilidade. No caso de André, esse ponto,
também presente em seu livro, torna-se mais complexo: reconhece-se, como Jocenir,
alguém a quem foi dado o “dom da palavra” (nem sempre escrita, muitas vezes cantada,
falada, como se verá adiante), mas a sua identidade prisional não pode escapar à
sobrevivência ao Massacre. Esse movimento de singularizar e compartilhar a experiência
da prisão deve-se em muito, embora não somente, aos companheiros mortos (ele
sobreviveu, outros muitos morreram, mas, como ele, outros que estavam lá tamm estão
vivos).
No trecho que segue, é possível ter uma idéia do modo como se condensam essas
questões para André: “A sociedade aqui fora é totalmente diferente do nosso mundo, do
mundo que você vive atrás das grades. Ninguém sabe o peso que tem uma grade” (p. 186).
no primeiro momento, falando como homem livre (o “aqui fora” é o “mundo dos
homens livres afinal), reitera seu pertencimento ao ambiente prisional (“nosso mundo”),
6
Entende-se aqui rememorar na acepção benjaminiana, de acordo com Jeanne-Marie Gagnebin: “Tal
rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora, que, em vez de repetir aquilo de que se
lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações,
solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A
rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, particularmente a estas estranhas
ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas
também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do
presente” (“Memória, história, testemunho”, p. 91).
53
compartilhado apenas com os seus pares. Ao continuar, toma o “você” no lugar do “nós”
antes empregado, de modo a tornar o que vai dizer mais próximo de seu interlocutor, ao
mesmo tempo em que, momentaneamente, deixa de se inscrever (ele não está mais
preso). Quando comenta que “ninguém sabe o peso que tem uma grade”, esse ninguém
evidentemente refere-se aos que estão “aqui fora” e que nunca estiveram lá dentro. Atrela o
conhecimento do “peso da grade” (entendido como o sofrimento que ultrapassa os anos de
confinamento) à verdadeira experiência. quem viveu é capaz de narrá-la e talvez de
compreendê-la. Mas quem viveu, sugere André, não deixa de sentir-se na prisão com tudo
o que ela implica: dos valores preservados (o que lhe parece positivo) ao estigma do
bandido (visto, evidentemente, como um problema, embora faça questão de não negar essa
identidade).
Faço, no próximo item, a apresentação do livro, para em seguida olhar mais
detidamente para a seção Free Style (item III), que de algum modo reproduz a estrutura
do volume, e para o capítulo inicial do livro, em que And fala sobre o Massacre (item
IV).
II.
A capa de Sobrevivente And du Rap é uma foto em preto-e-branco de André,
também reproduzida no caderno de fotografias do livro, no pátio do Pavilhão 8 do
Carandiru. Tirada em 2001 por Bruno, mostra ainda outros três homens ao fundo. O título
traz esclarecimento do caráter de “sobrevivente– referência ao Massacre, já sugerida pela
imagem do presídio, facilmente identificável com suas janelas gradeadas e com as roupas
dependuradas. Não menção a autor, mas a foto de And parece funcionar como
indicadora da identidade do dono daquela história. Em letras bem menores, a indicação de
que a coordenação editorial é de Bruno Zeni.
A página 5 é inteiramente tomada por fotografias (reprodução de contatos
fotográficos), também em preto-e-branco, do rosto de André. Se vistas com atenção,
deixam notar a presença de cicatrizes na testa, no queixo e acima do olho.
54
Em seguida, lê-se a dedicatória
1
. A reverência de André aos amigos, que perpassará
todo o livro, aparece na homenagem stuma a Natanael Valêncio, a quem chama de
“irmão”: “descanse em paz”.
1
A dedicatória é um item presente em três dos quatro volumes que compõem o corpus desta pesquisa.
Deve ser compreendida, portanto, como aspecto formal estruturador dos livros aqui analisados, como
procurarei discutir adiante.
55
Às páginas 9 e 10, Bruno Zeni apresenta a estrutura do livro. Afirma que ele está
dividido em quatro partes (exclui do rol das partes o seu texto, que funciona como um
posfácio). Para Bruno, apenas as partes iniciais são a matéria narrativa do livro:
“Depoimento” (“transcrição das quatro sessões de entrevistas feitas [por ele] com André du
Rap”); “Fragmentos de uma correspondência” (reunião de algumas cartas escritas e
recebidas por André); Free style (“trechos do relato que André gravou sozinho”); e
“Aliados” (“companheiros de hip-hop e de luta social falam sobre a convivência com o
autor”
2
).
Essa apresentação funciona como uma explicitação metodológica dos
procedimentos adotados por Zeni. Afirma ter sido ele o responsável pela edição do
“Depoimento”, que parte de escolhas suas quanto à necessária adequação forma-conteúdo.
Conta que respeitou a ordem do relato de André só mexeu na narrativa do Massacre, que
trouxe para o início, e que suprimiu as “perguntas e outras intervenções que f[e]z durante
as (...) conversas”: “Na edição do texto, procurei ser o mais fiel possível às particularidades
da fala de And– mantive inclusive suas incongruências e incorreções – por acreditar que
não se pode separar a forma e o conteúdo daquilo que se diz, escreve ou cria (p. 9). Essa
sugestão será reforçada pela presença das notas de rodapé ao longo de todo o volume, pelos
procedimentos próprios de arquivista na seção das cartas, bem como pelo próprio ensaio,
que se dispõe a analisar o material.
Na apresentação da seçãoFree Style (de improviso)”, à qual dedicarei análise mais
minuciosa no próximo item, Bruno comenta: “Escolhi trechos do relato que And gravou
sozinho”, evidenciando ter sido sua a escolha a partir de um relato espontâneo de André.
Explica o free style do título e depois afirma: “Acho que é uma definição justa para o
depoimento que And fez com toda liberdade, sem a minha mediação”, que, no entanto,
está dada no momento em que é ele quem atribui um título que remete ao hip-hop
(ambiente de André) e que submete o improviso à edição.
3
2
Note-se que Bruno, nesse excerto, chama André de autor do livro (o que ganha maior peso quando se
percebe que Bruno assina todas as partes que considera suas, notadamente, a apresentação que não chega
a ser assim chamada – e o ensaio-memorial ao final).
3
Não se pode perder de vista, no entanto, que, no “Depoimento”, o próprio André comenta o nome dado a
essa prática de improviso: “A gente fazia o que hoje se chama free style, um mandava uma rima, outro
mandava também” (p. 48).
56
A primeira parte ou “Depoimento” é dedicada ao relato da vida de André na
prisão, incluindo o trecho, que abre o livro, em que o seu testemunho do dia do
Massacre. Dividido em sete pequenos capítulos, conta o cotidiano da cadeia, as relações
amorosas, a vida de foragido antes de ser preso, o trabalho com o hip-hop na cadeia. O
relato do Massacre é, junto à tumultuada relação com a namorada Eliana, o ponto central
ao qual André volta com freqüência.
Ao longo desses capítulos, o objeto da atenção de And a linguagem e o etos
prisional, a relação com a escrita (que, aqui, é entendida de modo ampliado: as cartas que
escreve e recebe, as letras de rap que compõe), o estigma de ser um ex-presidiário e a
experiência-limite pela qual passou.
A percepção de que o se dirige a um conhecedor das cadeias (justificada pela
presença de Zeni) aparece na preocupação em explicitar asrias empregadas: “Fui pago no
pavilhão de triagem, o Nove. Na linguagem da cadeia, a gente fala assim: fui pago” (p. 45)
conta André, sem de fato esclarecer o que vem a ser, nessa acepção, o verbo “pagar”
4
.
Ou: “Estou vendo chamar meu nome na boca de ferro, como é chamado o serviço de
locução” (p. 75).
Tal preocupação, como disse aqui, poderia parecer óbvia, uma vez que o livro
parte do encontro de André, que esteve preso, com Bruno, que jamais passou por
experiência semelhante. Mas me interessa pensar na manutenção dessas marcas de
explicação, que se repetem significativamente e que sugerem a intenção de esclarecimento
de um ambiente desconhecido.
Essa apreensão é vista também quando André explicita os valores que norteiam a
vida prisional, por exemplo, quando reproduz o que, à sua chegada ao Carandiru, lhe teriam
dito na cela (“o 69-E”
5
): “Você demonstrou ser um cara humilde, pode ficar morando aqui
com a gente” (p. 46). Ainda: “Dentro do sistema penitenciário existe muita solidariedade
(...)”, A gente pega muito isso, a irmandade, a lealdade (p. 51). Chega a sugerir que tais
valores estejam mais presentes na prisão do que no mundo dos homens livres: “O que
muitas vezes não existe aqui fora, existe dentro” (p. 51). Note-se que aquilo que para
4
No Capítulo 5, discuto, um comentário de Luiz Alberto Mendes sobre esse verbo.
5
André sempre que pode indica o número de sua cela, o que pode ser lido como mais um recurso para
atestar que de fato esteve , afinal, o dados que podem ser comprovados. Assim como fará Humberto
Rodrigues com o número de prontuário seu e dos companheiros.
57
Jocenir era o “mundo dos homens livres” para André é o “fora”, como se o seu “dentro”,
mesmo em liberdade, remontasse à prisão.
Essa idéia é várias vezes reiterada na narrativa de André:
“Dentro do sistema penitenciário, dentro da cadeia, a gente tem o maior
respeito, todos os companheiros têm o maior respeito. Não existe lugar
no mundo onde existe maior solidariedade. (...) Isso é companheirismo,
é de irmão mesmo. Quando a gente fala assim, companheiro, irmão, é
que muitas vezes aqui fora não tem isso” (p. 100).
, inclusive, a percepção de construção de um etos próprio: “(...) dentro do
sistema carcerário, a gente tem essas regras. A lealdade, o respeito, a dignidade. Se vo
mexer com a dignidade de um homem, você está mexendo com toda estrutura dele.
(...)” (p. 111).
O modo de funcionamento do presídio é ditado pelos presos, como já se viu no livro
de Jocenir. Quem ensina o código aos que chegam são os outros detentos: “Quando a gente
chega no presídio, os companheiros explicam como funciona. Mas tem que ficar atento.
(...) Dentro da cadeia, a prioridade é o respeito” (pp. 49-50).
O valor da palavra empenhada também se faz presente ao longo de “Depoimento”:
“Uma palavra errada que você falar, você pode estar se condenando” (p. 55). Esse
fragmento é bastante revelador da idéia de que, uma vez na prisão, o código a ser seguido é
o dos próprios detentos são eles que aplicarão a pena se falha houver. A construção faz
refletir, também, porque lança mão do termo “condenar”, o que sugere a reprodução, entre
os presos, de mecanismos de justiça (como o instituto da “condenação”) que são próprios,
mas não exclusivos, do mundo dos homens livres.
A relação com a escrita está no rol dos assuntos tocados por André, que conta ter
usado o seu tempo para escrever versos, como também para redigir cartas, o principal meio
de comunicação com o “mundo exterior”:
“Eu fazia minhas atividades, fazia limpeza, passava pano, cozinhava,
subia pra jega e começava a escrever. Jega é a cama. Jega ou burra – é o
linguajar de dentro. Subia e ficava olhando pro mundão pela ventana.
58
Escrevia, muitas vezes escrevia pra minha mina (...). Eu sempre
escrevia cartas. Ficava na esperança de vir alguém pra mandar aquela
carta. Se você não tivesse visita, você não podia descer do andar. (...)
Praticamente eu não tinha pra quem escrever nessa época. Minha
família tava revoltada com o que tinha acontecido. Escrevia pra
Bertioga [para Soraia, sua namorada na época], não vinha resposta. Eu
escrevia, escrevia e não tinha resposta. (...) [Não podendo descer para o
pátio no dia da visita] O único conforto que eu tinha era a caneta e o
papel. Escrevi muitos poemas nessas horas” (pp. 47-48).
As cartas têm papel fundamental na história carcerária de André – e parece ser essa
a razão para que um livro dedicado à narrativa desse período de sua vida as incorporasse,
como se na seção “Fragmentos de uma correspondência”. A relação com o mundo
exterior, que, afinal, pauta a vida na cadeia, determina o elo entre as duas formações sociais
(cadeia e mundo exterior).
A possibilidade de criação artística é apontada como um alento à vida no cárcere:
“[Na cadeia] Tudo é conteúdo, é só você pegar, encaixar as coisas, ‘Isso
aqui dá legal pra mim, é um personagem’. É assim, o dia-a-dia. Tem um
lado bom. Não é bom estar preso, mas o lado bom, que a gente fala, é a
noite, quando você está livre de tudo. Este é o lado bom, eu me sentia
livre. A todo momento você se sente livre. Em pensamento, em
pensamento. Mas o momento em que você se sente mais livre é quando
você está dormindo” (p. 54).
A escrita é vista como possibilidade de evasão temporária de uma situação
perturbadora e constritora. A liberdade“livre”, Andre afirma e reafirma – só pode vir em
pensamento (o termo também é repetido), a instância não vigiada e o espaço
momentaneamente não compartilhado.
Quando And relata que, durante o julgamento do coronel Ubiratan, reencontra
companheiros de Carandiru que também sobreviveram ao Massacre, afirma não poder se
esquecer do caráter único da experiência-limite: “O que nós passamos ninguém mais
59
passou” (p. 103). Diante do medo de alguns detentos, sobretudo os que ainda estavam
presos, em testemunhar e serem mortos, no que And o via exagero algum (em clara
denúncia da violência de que continuavam sendo vítimas: tendo sobrevivido ao Massacre,
temiam novamente pela própria vida), comenta: “Eu quero falar a verdade, contar a minha
história pra ela não se repetir” (p. 104).
Essa urgência narrativa vem perseguida pela possibilidade de incredulidade por
parte daqueles que o em, daí, muito provavelmente, a necessidade da prova. Percebe-se
aqui o que chamei no capítulo anterior de movimento de singularização e coletivização do
vivido. Depois de sugerir aos amigos que “o que nós passamos ningm mais passou”,
afirma: “Mesmo que eu não consiga provar, eu tenho que estar falando a minha verdade. É
a minha verdade, é o que eu passei” (p. 111). Trata-se, portanto, da sua história (no que se
singulariza), mas que em determinados momentos, como no do Massacre, confunde-se,
sem perder a sua especificidade, com as de outros tantos companheiros do Pavilhão 9 de
1992. Incumbe-se, até porque não pode negar-se a isto, da tarefa de narrar em seu nome,
mas também no de outros.
Nessa busca pela narrativa do passado, uma incontornável expectativa de
transformação identitária futura. Evidentemente, ela é ambígua. Se Andprecisa ser fiel à
década em que esteve preso e em que comungou dos valores ali sustentados, o estigma de
ex-presidiário (que, no entanto, como ele gosta de frisar “é parte da [sua] história
6
) o
incomoda: “Antes de eu ser preso, eu era o André. Eu era o And que estudava, que
trabalhava, eu tinha a minha família. À parte as intrigas de família, eu tinha uma família. A
partir do momento em que eu fui preso, eu me tornei quem? Não o André, mas o
bandido” (p. 106).
Portanto, assim como se viu que ocorria em Diário de um detento, nota-se que a
narrativa de André é a história de um homem que passou pela experiência da prisão e que
não se furta a dizê-lo. Mas é também a de um egresso da prisão, em busca de reinserção. O
livro pode ter, em seu caráter ideal, esta função: aponta para a possibilidade de, sem negar a
sua história, André tornar-se um autor.
6
“Mas eu não tenho vergonha de ser ex-presidiário, não. É a minha história. Acho que é por isso que essa
história deve ser contada da maneira que aconteceu, porque é a história de cada um, ninguém se livra dela,
ninguém tem outra pra contar” (p. 106).
60
Todos esses aspectos – estigma, percepção da experiência como única, relação com
a escrita e linguagem e etos prisional – reaparecerão ao longo do livro.
A seção seguinte – “Fragmentos de uma correspondência” –, como o próprio nome
sugere e como anunciado na apresentação assinada por Bruno, reproduz cartas enviadas
e recebidas enquanto Du Rap esteve encarcerado. Entre essas duas partes, há algo em torno
de vinte fotografias. São de André na Casa de Detenção, fora dela (em Suzano, onde
morava, ou na Galeria 24 de maio), de amigos, de “resgatados pelo rap”. Chama atenção
que em apenas duas delas André esteja só: na primeira, em que está no pátio do Pavilhão 8
do Carandiru, e em uma das últimas, quando aparece como se estivesse apresentando o
lugar onde vivia. Nas demais, em que se posta ao lado dos seus, prevalece o sentido de
pertencimento a um grupo, ou talvez ao que Maria Rita Kehl chamou de fratria
7
ao analisar
a força do rap na periferia paulistana, presente também no texto na dedicatória, nas
histórias, em “Aliados”.
7
Ver “A fratria órfã”, op. cit.
61
62
Em “Aliados”, amigos de André – os “aliados”, no dialeto da periferia e da cadeia –
dão seu depoimento. Em alguns, o teor consiste na transformação de cada um dos
depoentes, de como o rap ou, de modo geral, o hip-hop foram armas fundamentais para
tirá-los do crime ou das drogas. Em outros depoimentos, a palavra de membros de
associações civis que relatam a convivência com André e sua capacidade de “recuperação”.
também o comentário de dois integrantes dos Racionais MC’s, Edi Rock e KL Jay.
Chama atenção o modo como os sustentáculos da vida prisional se fazem visíveis aqui, no
espaço dedicado aos “manos”: eles se fazem perceber no elogio aos valores presentes a um
só tempo no discurso de André (solidariedade, lealdade, humildade) e na forma que o livro
assume (dando espaço a outros que o apenas seus autores, seja pelas fotos, seja pelos
depoimentos), como discutirei adiante.
63
Depois do ensaio de Bruno Zeni (“Uma voz sobrevivente”), a seção “Sobre os
autores” traz dados biográficos de André e Bruno.
O livro termina com os agradecimentos (outra constante nas narrativas do cárcere),
em que cada um faz uma mais ou menos extensa lista de pessoas que não podem ser
esquecidas. André agradece, em primeiro lugar, aos que morreram no massacre, bem como
a outros amigos mortos. O seu rol de agradecimentos, bem maior que o de Bruno, revela a
necessidade de lealdade aos companheiros mortos, bem como aos que estão a seu lado
(como aqueles que dão seu depoimento na seção “Aliados”). É, como no livro de Jocenir, a
expressão dos valores da cadeia: a necessidade de nomeação dos que lhe são ou foram
solidários.
O livro se encerra com uma foto dos “autores”, diz a legenda, sentados lado a lado
na frente da casa de André.
64
III.
A estrutura do “Free Style, grosso modo, é a seguinte: por meio de fragmentos (ou
pequenas seções que recebem títulos, aos quais farei referência em alguns momentos),
André apresenta-se, comenta a sua chegada à Casa de Detenção, os códigos de conduta, a
escrita (também como algo singular), o reencontro com um antigo vizinho que tinha como
65
ídolo, a rotina, a importância do esporte, a mudança de cela, o Massacre, o amor; faz
apreciações sobre o sistema carcerário, conta dos castigos e das humilhações; revela a
importância de ter sido apoiado pelos parentes e amigos enquanto esteve preso; reflete
sobre o dom da palavra; condena o racismo e a exploração; elogia o hip-hop; e critica a
mídia.
O que se percebe é que a base em que es construído o Free Stylecorresponde,
nesse sentido, à do próprio livro, em que os temas acima mencionados constituem as partes
de Sobrevivente And du Rap. Assim, produzir uma reflexão sobre o “improviso” de
André du Rap é, de algum modo, também pensar como esse fragmento do mosaico que
parece ser uma das marcas dessa literatura atua.
8
No seu improviso, André, a exemplo do que vinha fazendo, não perde de vista o
fato de estar se dirigindo a um interlocutor que o compartilha os seus códigos vide a
explicação, aqui especialmente significativa, uma vez que não há a condução de Bruno, do
que é “triagem”, “pago”, “burra”, “pião”, “barato já tá louco”, “recorte”, “zoar”, “mula”. É
como se André, apesar de a todo instante lembrar que sua mensagem se dirige aos jovens
que flertam com a marginalidade, o se esquecesse de que é preciso contar essa história
também àqueles que estão distantes dessa realidade (como Bruno) e que, portanto, não se
reconhecem no seu “dialeto” (termo empregado por ele próprio)
9
.
No fragmento inicial, André se apresenta, como se, mais uma vez, fosse preciso
singularizar-se. Essa oscilação entre o eu e o nós permeia o seu discurso: falando em nome
do grupo, quando menciona os valores e os digos de conduta da prisão, não consegue
fugir à necessidade de mostrar as particularidades de sua trajetória. Ou seja, reconhece-se
como membro do grupo, mas deseja preservar o que lhe é peculiar. “É a história de cada
um, ningm se livra dela”, nas palavras do próprio André. Chama atenção que à
necessidade de singularizar-se suceda o imperativo de revelar-se parte de uma coletividade
(“nosso dialeto”, repete às páginas 168 e 170).
8
Vale a pena ressaltar o caráter coincidente dessa organização também com a dos demais livros escritos por
presidiários. Todos eles, com maior ou menos insistência, fazem a denúncia ao sistema penitenciário,
confirmam a importância dos entes próximos para atenuar a solidão, mostram-se fiéis aos valores da cadeia,
reafirmam o sentido de missão de todos os que têm jeito com as letras, descrevem a rotina e os maus-tratos.
9
A frase lapidar de Jocenir de que “um homem nunca é o mesmo depois da cadeia” refaz-se no livro de
André na apropriação da fala da prisão como parâmetro ao qual não pode escapar: “Naquele momento, ali,
o cara que era uma referência para mim e para várias rapaziadas aqui fora – não vou usar o termo molecada
porque dentro do sistema moleque é homossexual (...)” (p. 171). Sinaliza com isso que, mesmo estando
fora da cadeia, mantém-se fiel aos seus ditames, a sua linguagem.
66
Na Casa de Detenção, André reencontra conhecidos:
“Tinha uns companheiros que moravam tudo junto, que eram tudo de
Poá. Tem alguns até falecidos, é bom lembrar o nome deles: finado
Durinho, finado Marquinhos os dois falecidos. Tem o Cidoca, o
Valdir, que hoje em dia em liberdade, o Cidoca também, e o Poinha,
que também está em liberdade, moram aqui na região até hoje” (p. 168).
As notas de roda que acompanham o excerto contam, brevemente, como
morreram esses seus aliados. A impressão que se tem é de que esse rememorar os mortos é
uma das tarefas de que André se incumbiu (“é bom lembrar o nome deles”). A existência
de tais notas é especialmente reveladora: se, por um lado, indica marcas de um discurso
que escapa ao universo de André, uma vez que claramente acadêmico, ajuda a dotar
Sobrevivente André du Rap das particularidades que caracterizam a sua hibridez formal.
O fragmento seguinte, “O dom das palavras”, traz a informação de que o hábito da
escrita é decorrente da prisão. A idéia da escrita como um “dom”, a que André alude com
certa freqüência, é reveladora, uma vez que o termo remete à idéia de dádiva e privilégio. E
como tal, deve ser devolvido de algum modo
10
, de preferência, revertido aos seus pares.
Daí que a conduta, antes “viciosa”, uma vez redimida, deve ser exemplar.
Ainda nesse trecho, comenta a rotina, as cenas a que assistia. É especialmente digna
de nota a lembrança do comentário de uma amiga, reproduzido por André: “É, você tem o
dom com as palavras. Basta você exercer ele, e tudo que você quiser e tiver em mente você
coloca num papel porque você pode reciclar isso e transformar em alguma coisa’. Mas eu
não sabia no que transformar” (p. 169).
Aqui talvez apareça de modo mais efetivo como o processo de reindividuação de
André tem relação estreita com mais essa singularidade o que chama de dom da palavra.
A idéia de que isso caminhe junto a uma transformação sugere a potência da palavra em
um universo pouco letrado e a dificuldade mostrada por André, em um primeiro momento,
em lidar com tamanho privilégio.
Considerando-se que os prisioneiros têm um código de conduta próprio, essencial
para o bom funcionamento da vida enclausurada, é bastante coerente que um dos primeiros
10
Ver, de Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva”, op. cit.
67
elementos do depoimento de Andresvale para o confronto com esse etos, como se vê no
fragmento “O ídolo”, que parece ter marcado a trajetória do autor – talvez como um rito de
passagem, uma espécie de perda da inocência.
O ídolo em questão, bom ladrão, conquistador, sujeito firme, havia, dentro da
cadeia, virado “mulher” de outro encarcerado, em razão de tê-lo delatado. André,
desavisado, tem de se haver com o “marido” do antigo ídolo, naquela que se mostrou, a
julgar pelo depoimento, uma das situações mais tensas no convívio com os seus
companheiros de prisão: “Naquele momento minha mente a milhão, porque tudo aquilo
que meus companheiros falavam pra mim tava acontecendo. Conseqüentemente eu tava
entrando em uma fita podre. Tava de chapéu atolado simplesmente por eu ter
cumprimentado um amigo, esse meu amigo” (p. 172).
Embora André aparentasse dominar um certo conjunto de regras do grupo de
presos, o episódio narrado parece ser aquele que lhe permite compreender de fato o seu
significado. A sua estréia na vida prisional, se de início um pouco desastrada, mostra a
rápida incorporação desse mesmo regimento, haja vista o silenciamento a respeito do
desfecho do mesmo episódio. André revela que ainda traz esse digo e esses valores
11
:
“Mediante a isso aconteceram vários fatores que nossos códigos de ética não consistem em
estar contando porque é coisa lá de dentro, nossa” (p. 173, grifo meu).
André passa, então, a tratar da rotina (as saudades de casa, as orações antes de sair
da cela, a hora de cozinhar) e, novamente, dos valores (respeito, humildade, lealdade,
solidariedade e igualdade). Novamente, fala em nome do grupo. Revela que o início
conturbado foi responsável pela assunção de postura mais cautelosa. Menciona esportes
que praticava, o boxe e o futebol. E, ainda uma vez, assume o discurso coletivo: “A gente
procurava se envolver, porque era um esporte, uma forma de você não ficar parado, a gente
corria em volta do campo” (p. 174).
“Até que veio a rebelião [o Massacre] e eu passei por tudo aquilo que já foi falado”
(p. 174, grifos meus). Esse trecho, que início à seção seguinte, contém aspectos de
construção textual
12
que merecem destaque. Em primeiro lugar, o “até” que interrompe a
11
Esse traço é destacado pelo próprio Bruno Zeni em seu ensaio no fim do livro: “Como se percebe em seu
depoimento, a experiência da prisão para André ainda é vivida como presente. Ele ainda fala em nome dos
companheiros presos. Isso não se sem conflito e contradição: ‘Nós temos nossos digos de ética’, diz
ele, mesmo depois de ter deixado o sistema penitenciário” (p. 212).
68
descrição da rotina na prisão. Em segundo lugar, o uso de “tudo aquilo”, expressão que
parece sinalizar a impossibilidade de nomeação do momento traumático.
Chama atenção a incapacidade de escapar à lembrança do Massacre, mas ao mesmo
tempo a sua dificuldade em falar a respeito. André volta ao relato, ressaltando o quão
presente era esse acontecimento quase dez anos mais tarde. Ele passa da descrição de uma
cena ordinária o habitual jogo de bola ao evento deflagrador da “rebelião uma
discussão, segundo ele e, então, promove um corte, em que se percebe a entrada da
polícia na cena.
“Eu me lembro como se fosse hoje”, afirma, sem, em seguida, dizer do que se
recorda. A descrição do Massacre já fora feita no início do livro (ver próximo item). Se em
“Depoimento havia a intervenção de Zeni e ainda assim era possível deparar com a
sintaxe cortada, com a ausência de linearidade, agora, sem tal intermediação, o que se tem
são fragmentos ainda mais estilhaçados. Novamente, André não pode deixar de nomear os
companheiros “Marcos. Fino, o apelido dele. E o finado Pico. Alexandre, o nome
dele” (pp. 174-175).
Atente-se para o uso de aquele” e “aquilo”, repetidos à exaustão neste fragmento
sobre o Massacre, que parece funcionar como um modo de deixar longe o já referido, como
se o que foi dito bastasse: “Chegamos [no segundo andar do Pavilhão] tava
discussão, como eu comentei, aquele tumulto todo. foi onde que gerou tudo o que
aconteceu”; Aquilo ali foi um Holocausto. Eu olhava e não tinha noção do que estava
acontecendo (...)”
13
(p. 176, grifos meus).
A dificuldade de nomeação também se faz presente: “Aí teve um momento que
cessou um pouco, no quinto andar” (idem). Outra vez, não se sabe o que cessou, mas a
sugestão está feita.
André tece, então, uma série de considerações sobre a própria narrativa:
“E a gente corre até risco de vida por falar sobre isso, porque são
poucos os que vieram falar dessa realidade. Eles ameaçam o sistema é
12
O que autoriza uma análise de construção textual em um livro composto por depoimentos gravados é
justamente a preocupação do entrevistador em preservar na transcrição os traços de oralidade: “Na edição
do texto, procurei ser o mais fiel possível às particularidades da fala de André mantive inclusive suas
incongruências e incorreções (...)” (p. 9).
13
Retomo a descrição e a análise dessa situação no item IV.
69
covarde –, mas é a necessidade de alguém falar a verdade. Tem um
companheiro, que é o Jocenir, que escreveu Diário de um detento. O
doutor Drauzio Varela deu o maior apoio pra nós, escreveu Estação
Carandiru. Pavilhão 9, com Hosmany Ramos, tem alguns depoimentos”
(p. 177, grifo meu).
Aqui, é possível notar o uso de “isso”, talvez mais um traço da dificuldade de
nomeação, bem como a eleição de um “inimigo” (“eles”, “o sistema” que pode sugerir
um discurso não raro de engajamento) e a necessidade de dizer o nome de quem contou
essa história (Jocenir, Drauzio, Hosmany), de quem teve a coragem (qualidade inequívoca
entre os presos) de fazê-lo.
O senso de missão evidencia-se com a preocupação de que o Massacre não se repita
(perceba-se a presença do “eles”): “Esta história tem que ser contada e não esquecida,
porque foi uma vergonha pro nosso país. É uma vergonha quando você várias vidas
indo, e até hoje eleso tomaram providência de nada” (p. 177, grifo meu).
A oscilação entre o narrar da sua história e a de seus companheiros reaparece.
Inicialmente, fala de si: “É uma coisa que ficou marcada e vai ficar marcada pro resto da
minha vida. O importante é frisar que foi uma experiência de vida. Que aquilo ali, só Hitler
mesmo” (p. 178). Então, passa novamente à experiência coletiva: “(...) foi um Holocausto,
um massacre, uma invasão, uma covardia, porque nós não estávamos armados, não existia
nenhuma arma de fogo dentro (p. 178). André mobiliza o conhecimento de momentos
de barbárie, na expectativa de compartilhá-lo com o leitor, para tentar se fazer
compreender. Há, evidentemente, a necessidade de estabelecer uma interlocução com
aqueles que não viveram experiência semelhante, aqueles de quem quer se distanciar
quando os nomeia de “sistemaou “eles”, querendo singularizar a si e ao seu grupo –, mas
também de quem busca reconhecimento e compreensão nos momentos em que “traduz”
as rias da prisão ou em que, como no trecho acima, procura aproximar o seu relato do
Holocausto. Tal preocupação percorre o livro todo.
A tensão existente entre a vítima do trauma e o criminoso que se redimiu, sendo
então capaz de aconselhar os mais jovens, aparece com bastante ênfase nesta sentença:
“Então, passado isso tudo, hoje eu tenho essa reflexão” (p. 178). O emprego de “isso” o
70
mantém distante do fato, mas a idéia de que, em função do vivido, é portador de
experiência aproxima-o da situação traumática.
14
Em “Caminhos entrelaçados”, retoma o fragmento “A saudade na direta”, a respeito
da ex-namorada Eliana. Nota-se que a palavra é proferida em nome do grupo, salientando a
existência de um objetivo em sua escrita: “Então, o meu objetivo, o nosso objetivo é
mostrar o valor que tem uma companheira lá dentro, o valor que tem a família, porque a
Eliana, ela me aceitou do jeito que eu era, reestruturou a minha vida, e toda companheira
que aceita um companheiro que está lá dentro é uma guerreira” (p. 182).
A sua trajetória, as suas necessidades são também as dos companheiros de prisão, o
que se percebe neste excerto em que ele parte da experiência individual para chegar a uma
situação coletiva: “Ela [Eliana] me apoiou nos momentos mais difíceis, como cada
companheira que apóia seus maridos lá dentro” (p. 182).
um senso de missão próprio de quem passou por experiências singulares,
sobreviveu a elas, e é, portanto, capaz de enunciar uma palavra que sirva de conselho aos
que não dispõem da mesma sorte. O fato de ser um sobrevivente do Massacre aparece-lhe
como um sinal de eleição divina, e não é possível ignorá-lo: “Eu sei que Deus me deu um
dom. Seja de compor, compor poema, poesia, letra de rap, seja de costurar, de conversar
com as pessoas. Deus me deu um dom, e eu tenho que explorar ele. Então é isso que eu
passo pros adolescentes, pras pessoas, quando eu vou num show, num evento” (p. 184).
No fragmento subseqüente, percebe-se que atrela a condição de sobrevivente ao
discurso militante, proferido em nome da coletividade: “Então, quando a gente fala da
consciência negra, é porque nós hoje, negros, ocupamos um lugar muito pequeno perante a
nossa sociedade” (pp. 184-185).
O elogio ao hip-hop faz parte desse sentimento de grupo e recupera a premência de
narrar a realidade a ser contada: “O movimento hip-hop faz a revolução através das
palavras. É o jogo das palavras, é vopegar os conteúdos e transformar num ritmo, numa
14
Márcio Seligmann-Silva notou que, nas obras produzidas no cárcere, “reencontramos (...) toda a
metaforologia ligada à memória e ao esquecimento. A memória traumática e encriptada é revelada como
uma modalidade de apresentação do esquecimento, do censurado e recalcado, que agora vem à tona nessas
obras e reivindica o seu direito à voz. Inúmeras vezes lemos sobre prisioneiros ‘aprisionados’ em suas
recordações, em flash back, das torturas que sofreram ou dos assassinatos a sangue frio a que assistiram
dentro da prisão. Essas marcas, se por um lado são terríveis na sua presença constante e massacrante que
leva paradoxalmente à escritura como estratégia de arquivamento para esquecer –, por outro lado, são
consideradas também como provas do ocorrido” (Márcio Seligmann-Silva, op.cit., pp. 40-41).
71
poesia, numa realidade. (...) Porque a gente fala a verdade doa a quem doer, e a gente fala a
nossa realidade” (p. 185). Na crítica que faz à mídia, encontra-se novamente o emprego de
“eles” sinalizando o outro: “Por que a gente não está na mídia, por que a gente não estoura,
não tem um canal aberto pro hip-hop? Porque eleso querem ver essa realidade” (p. 185).
Ainda aqui, a necessidade de evidenciar a experiência compartilhada: “Como eu,
tem milhares de sobreviventes, mas todos eles sofrem represálias, como eu sofro
também (p. 185). A condição de sobrevivente, tantas vezes evocada por André, remete
inicialmente, como o próprio título do livro deixa entrever, ao Massacre de 1992, mas
André é também um sobrevivente da periferia, no que mais uma vez seu discurso se
coaduna ao do rap: “Aqui quem fala é mais um sobrevivente” (Racionais MC’s).
Em “Free Style”, se a impossibilidade de dar conta da experiência se faz presente (o
que é característico das vítimas de trauma), há outro aspecto que fica à espreita desse e que
ajuda a singularizar a escrita prisional: a exemplaridade do relato. É preciso que essa escrita
traga as marcas da humildade de modo a admitir os erros pregressos de seu autor, mas ela
deve ser igualmente resistente ao discurso produzido pelo que And chama de “sistema”.
Esse enfrentamento é, também ele, exemplar dos valores coletivos ali professados
responsabilidade, honra, coragem, além da já aludida humildade.
IV.
“(...) eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. (...) o horror de um
quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de
sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais
ousada.
1
A narrativa do Massacre, que não por acaso abre o livro, inscreve-se muito
provavelmente entre as mais terríveis cenas da literatura brasileira. Faz lembrar a descrição
abjeta dos destroços de Canudos, na aguda escrita de Euclides da Cunha, que tomo de
empréstimo para a epígrafe.
O relato de André começa assim: “No dia dois de outubro, meu aniversário, abriu a
tranca como de rotina” (p. 17).
1
Euclides da Cunha, Os sertões, p. 778.
72
Logo de início informa a data (apenas em parte, pois não situa o ano), mas não o
espaço. Presume-se, no entanto, que ele, o sujeito que narra, estivesse trancafiado e aquele
não fosse seu primeiro dia enclausurado (“abriu a tranca”, “como de rotina”). Alguns dados
não inteiramente esclarecidos aqui são esperados como de conhecimento prévio do leitor,
como a existência do Massacre do Carandiru (e, em segunda instância, a sua data, 2 de
outubro de 1992, o que preencheria a lacuna do ano não informado). Tendo-se a
compreensão desejada e pressuposta (para a qual o título da seção igualmente contribui), o
relato ganha ainda maior dramaticidade porque, de chofre, somos informados de que o dia
do Massacre é também o dia do aniversário de André.
Apenas na frase seguinte se sabe quem “abriu a tranca André explica: “o
funcionário veio e abriu”. Para fazer compreender a rotina do presídio, Bruno lança mão de
uma nota de rodapé, o que, como já insinuei, parece ser indício de incorporação de discurso
científico, que precisa esclarecer e, no limite, comprovar. O teor explicativo da nota, a
respeito das atividades desenvolvidas pelos presos, é suavizado pela ressalva de que foi
André quem sentiu necessidade da explicação (“como lembrou Anddurante a revisão do
depoimento”, p. 17).
No desenrolar de seu testemunho, relata um fato ocorrido na véspera, ao qual
parece atribuir o início da confusão entre os presos: “O dia anterior também tinha sido
normal, só tava aquele zunzunzum devido a terem descoberto que o cara que morava com o
Barba era moleque. Na linguagem da cadeia moleque quer dizer homossexual” (p. 17). “Na
linguagem da cadeia” sinaliza a um tempo a existência de um interlocutor externo”,
não conhecedor do modo de falar da prisão, e de uma “linguagem da prisão, que, assim
como as atitudes implicadas, decorre da vida compartilhada naquele ambiente. Note-se
ainda o uso do sinônimo culto para “moleque” “homossexual” –, reconhecendo não
esse registro, como a conduta esperada pelo mundo dos homens livres, qual seja, a de
respeito aos homossexuais, quando evita termos que possam assumir sentido pejorativo.
Logo a seguir, ocorre a explicitação do modo como se resolvem os conflitos na
cadeia: primeiro o “debate” (em que se destaque o uso da palavra como primeira instância),
depois, não resolvida a situação, pode-se partir para a agressão
2
, com direito a
2
O que parece ser uma espécie de reprodução dos mecanismos judiciários (testemunho, veredicto, punição)
aparece na narrativa de André como modo predominante de regulação dos conflitos entre os presos:
“Quando tem uma confusão todo mundo quer ver, saber se é um irmão da quebrada, um companheiro. Pra
tentar trocar uma idéia antes, fazer um debate, saber quem certo, quem errado” (p. 18). Esse modo de
73
desdobramentos (quem fica desmoralizado precisa reverter aquela desvantagem
momentânea para não fazê-la perpetuar-se). Na história de André, Coelho (o preso
responsável pela descoberta de que o “moleque do Barba” era estuprador) e Barba primeiro
tentam “trocar idéia” para resolver a situação. Depois discutem e partem para a briga.
Como Coelho “levou a pior”, viu-se obrigado a, conforme as regras do cárcere, reagir:
“aquilo não podia ter acontecido, ele ia ficar desonrado dentro do presídio” (p. 18).
Ao comentar o episódio entre Barba e Coelho, Du Rap afirma, em um primeiro
momento, que “foi negligência dos funcionários”, como a reclamar uma ação eficaz do
Estado capaz de conter a confusão que levaria à barbárie; em um segundo momento, parece
querer reafirmar o etos prisional, indicando que aquela era uma questão a ser resolvida
internamente e que, portanto, prescindiria da interferência dos carcereiros:
“Não existia [naquele momento] confronto entre os presos. Houve
aquele do Barba com o Coelho e acabou. Os funcionários... Foi
negligência dos funcionários. As pessoas que são responsáveis pela
segurança, na hora que o pavio queima, na hora que a bomba explode,
deixam você a pé, deixam você sozinho. (...) Os funcionários quiseram
intervir, nós não deixamos. Treta de ladrão é treta de ladrão. É preso
contra preso e já era. Acho que todo mundo sabe disso. As regras do
presídio são essas, polícia pra um lado e preso pro outro. É o
respeito” (pp. 18-19).
A interdição aos funcionários faz parte da separação existente entre as partes
desse reconhecimento derivam o respeito e bom convívio, em uma subversão clara do
papel dos carcereiros, o de proteger os presos e zelar pelo bom funcionamento do presídio
função reclamada momentos antes por André. A ambigüidade desse trecho revela, por
um lado, a expectativa de um dever-ser do mundo dos homens livres, em que funcionários
de presídio comportam-se de modo a evitar a selvageria, por outro lado, ao perceber a
impossibilidade de efetivação de um comportamento visto como impraticável, And
conduzir as desavenças no presídio havia surgido em Diário de um detento, notadamente no episódio em
que Márcio, irmão de Jocenir, chega à prisão sob ameaça de outros presos (ver Capítulo 1).
74
reafirma o modo de regulação dos próprios presos, na obediência à lei da prisão (“As regras
do presídio são essas”).
Pouco adiante, And comenta: “Todo mundo sabe que dentro da cadeia a gente
tem que se defender contra a opressão. O preso não vai ficar ali esperando ser
massacrado” (p. 19). A aniquilação é percebida por And como uma possibilidade real,
mesmo se sob a tutela do Estado visto por ele como “opressão”, em uma atualização do
uso feito anteriormente de “eles” ou “sistema”.
Os valores sustentados se fizeram valer quando, suspeitando da iminente invasão,
os presos começaram a se proteger: “Todo mundo procurou ficar próximo ‘Cadê fulano,
cadê beltrano?’, todo mundo se procurando. Um preocupado com a segurança do outro, dos
companheiros da quebrada, seu irmão, seu cunhado, primo, parceirose acontecer alguma
coisa a gente todo mundo junto” (p. 19). Aqui, além da preocupação com o grupo, a
tentativa de amparar os mais próximos. São vizinhos, parentes, parceiros, o que o pode
deixar de ser percebido como um indício da sordidez do perfil penitenciário brasileiro, em
que as pessoas se reencontram na cadeia, seja porque m de uma mesma família, seja
porque moram em um mesmo bairro e, claro, muitas vezes, na cumplicidade da
contravenção.
À medida que avança a narrativa do horror, a presentificação da situação-limite faz-
se entrever, assim como a necessidade de interlocução, solicitando ao que o escuta que
“imagine” a cena inimaginável: “Você imagine mais de dois mil companheiros presos em
situação de pânico. Tentando se defender, escapar da morte. Você escuta um tiro, o
sentimento é de pânico” (p. 19).
Ao relatar a proximidade da morte, diz: “Naquele momento vo faz uma
retrospectiva da sua vida” (p. 20) perceba-se que ele não diz “naquele momento eu fiz”.
André mostra a incapacidade de fazer “passar” o evento traumático, ao mesmo tempo em
que tenta aproximar o interlocutor de fora do sentimento da catástrofe à espreita (“você”).
É o início da invasão. Note-se a recorrência do emprego do “você”, a necessidade
de documentar (ao enumerar as celas em que se deram os eventos), a repetição de
“morrer (em que se destaque “gente morrendo”, a sinalizar que não eram bichos) e a
condição aviltada em que isso se dava (escondendo-se, debaixo da cama, fora de sua cela)
3
:
3
Em “Uma voz sobrevivente”, Bruno Zeni comenta essa passagem.
75
“Na hora do tumulto, qualquer buraco mais próximo você entrando
a maioria dos companheiros que morreram não estava na própria cela.
Vi vários companheiros morrendo do meu lado. Gente morrendo. No
terceiro andar, morreu muita gente dentro de uma mesma cela. Do 84-E
até o 78-E morreram todos e a maioria nem era daquelas celas. Eram
todos amigos que estavam se escondendo. Morreram debaixo das
camas, dentro dos banheiros, se escondendo. Tem companheiro que
tava de roupa, morreram de roupa, rendidos, antes da polícia mandar
todo mundo ficar nu” (p. 21).
Em seguida, a dificuldade de ordenar cronologicamente o relato, a percepção de que
estar vivo era um “milagre”, o horror de ter se escondido entre cadáveres, companheiros
brutalmente assassinados na sua frente, e as repetições da mesma cena:
“Teve um momento que eu apaguei ali no chão, embaixo dos cadáveres.
Foi um milagre o que aconteceu. Tinham vários companheiros mortos e
eu fiquei ali embaixo dos corpos. A polícia atirava pelos guichês das
celas. Eles colocavam o cano da metralhadora nos guichês e
disparavam. Eu, encolhido numa cela, escutando tiro pra tudo quanto
era lado. A gente escutando
4
. É metralhadora? É fuzil? Não parava,
aquele barulho. Chegavam no guichê, a janelinha da porta da cela, e
metralhavam. O barulho aumentou até a nossa porta. Um cano apareceu
no guichê. Eu vi quatro companheiros caírem do meu lado e me joguei
também” (p. 21).
A categoria “sobrevivente”, à qual André alude com freqüência, presente inclusive
no título do livro, confunde-se com a presença de Deus:
“Nisso teve um companheiro que praticamente salvou a minha vida.
Sou grato a ele. Ele também é sobrevivente. Hoje ele é pastor. Essa
baionetada que eu tomei no meio da testa, a primeira foi nele, no
4
O embaçamento sinestésico dos sentidos ele olha e escuta também se faz notar no relato: “Eu olhei
para trás e só ouvi gritos de horror, gemidos. Tropeçava em cadáveres, levantava” (p. 22).
76
corredor. Ele me encobriu e acertaram o olho dele. Ele tinha
problema em um olho e acertaram o outro olho dele, ficou cego do
outro olho. Teve outro companheiro que era crente, saiu com a Bíblia
na mão, deram tiro em cima dele, mas ele conseguiu escapar” (p. 22).
A provação, a cegueira que leva, paradoxalmente, ao encontro da luz divina são
motivos constantes no relato de André e aludem ao texto bíblico, como se o enfrentamento
da morte tivesse sido tal que fizesse André acreditar que ali sua sobrevivência fosse um
atestado da existência de Deus. Daí inclusive o acento na atitude sacrílega dos policiais,
que nem sequer respeitaram a Bíblia.
Em sua narrativa dos “terríveis lances, obscuros para todo o sempre”, André se
compelido a justificar algumas atitudes que tomou (“Foi a única alternativa”), como quem
explica que apenas se animalizando (ao jogar-se no meio dos corpos dos companheiros
assassinados) ele teria alguma chance de sobreviver: “Do terceiro pro segundo andar, a
cena era horrorizante: aquele monte de gente caída, e você ali em pânico. No segundo
andar, numa distração deles, a gente se jogou no meio dos corpos
5
que estavam ali no
corredor. Foi a única alternativa” (p. 23).
Novamente, percebe-se a necessidade de fazer ver ao interlocutor-de-fora a
covardia, ao mesmo tempo em que duvida da capacidade de apreender a cena. A
humilhação sofrida é tal que André, em novo baralhamento dos sentidos, diz não sentir
frio, apesar de nu e da temperatura hostil, mas apenas querer esquecer a dor (que nem
sequer afirma sentir):
“Você imagina? Os caras encapuzados e você indefeso, nu como veio
ao mundo. Nós fomos ver o rosto de alguns policiais de noite,
5
O quadro formado pelas imagens de cadáver, deformação, sangue, urina e fezes lembra, comosugeri, o
final de Os sertões. que agora narrado por quem sobreviveu ao massacre: “Tô ali, deitado, vários
companheiros sangrando do meu lado, urinando, cheiro de fezes... Olhava pro lado e via companheiros
rasgados de metralhadora, cara estrebuchando, braços tremendo em cima de mim. Eu estava em estado de
choque” (p. 24); “Vi cara ser mutilado por cachorro na minha frente” (idem); “Começamos a lavar o
pavilhão, puxando com rodo aquele monte de sangue. Pedaço de carne, pedaço de companheiro seu, pedaço
de ser humano ali no meio da água misturada com sangue, sangue de vários homens” (p. 25). Francisco
Foot Hardman, em seu ensaio “Tróia de Taipa: Canudos e os irracionais”, explora a presença
fantasmagórica do episódio de Canudos na história recente (mas não só) do país: “quantas Canudos são
massacradas por ano nas favelas, delegacias, ruas e ermos desse Brasil?” (“Tróia de Taipa: Canudos e os
irracionais”, p. 129).
77
quando tava todo mundo rendido e eles começaram a entrar nos
barracos
6
e quebrar televisão, quebrar rádio. Tava chovendo, a gente
sentado no pátio, nu, frio. Mas eu nem sentia frio, euqueria esquecer
a dor” (p. 25).
A impossibilidade de esquecimento vem junto à lembrança de que tudo aconteceu
na data de seu aniversário, data de seu (re)nascimento. Como aparece em Free Style”, o
emprego de “isso parece sinalizar a impossibilidade de nomear o que houve. Prevalece o
sentimento de impotência e de revolta:
“Ninguém nunca vai tirar isso da minha mente. Tem companheiros que
ficaram traumatizados, não gostam nem de lembrar. Eu mesmo, até hoje
eu tenho pesadelos com isso. Às vezes eu me vejo naquele dia, lembro
de como começou, um amigo de cela me falando, alguém dizendo:
Ô, André, hoje é seu aniversário, mano! Segunda-feira eu vou
embora, vou mandar um presente pra você aí, de lá de fora.
Esse amigo morreu na minha frente, tomou mais de 18 tiros de
metralhadora na minha frente. Vi o cara caído e não podia fazer nada.
(...)
O que aconteceu no Carandiru foi uma crueldade. Nenhum ser humano
merece aquilo. Estar num sistema qualificado como o pior do mundo e
sair de morto... É um pedaço da minha vida e eu tenho que estar
aberto para falar disso. Foi um fato que aconteceu e está escrito na
história do país. Acho que Deus tinha um propósito na minha vida, um
propósito em me tirar daquele lugar, como na vida de muitos
companheiros que também sobreviveram” (pp. 25-27).
Desse último excerto, gostaria de reter alguns pontos:
André constantemente retoma a narrativa do companheiro que seria solto poucos
dias depois, mas que foi morto no Massacre. Percebe-se a dificuldade em lidar com a sua
6
O emprego de “barraco” para designar a cela sugere que a “linguagem da cadeia” (nos termos do próprio
André) incorpore a visão estereotipada que se atribui à prisão como uma grande favela (aqui entendida
como habitação precária reservada ao que o senso comum reconhece como escória da sociedade ou como
“os irracionais – ver F. F. Hardman, op. cit.).
78
sobrevivência e a morte do rapaz, o que contribui para a necessidade de narrar repetidas
vezes o episódio, em homenagem ao companheiro assassinado.
Estar no “sistema”, como André se refere ao sistema penitenciário, mais
precisamente, o paulista, visto como “o pior do mundo”, é em si um castigo. A tentativa de
aniquilá-los é a duplicação do castigo (“e sair de morto”). A idéia é a de um sofrimento
dobrado: ele e os outros presos viviam como animais e nem a dignidade mínima de
sobrevivência lhes foi garantida.
André, nesse fragmento, parece responder ao discurso que tende a condená-los
porque presos, chamando a atenção para o fato de que eram, antes de tudo, seres humanos:
“nenhum ser humano merece aquilo”.
Outra vez, ele se mostra imbuído de uma missão (“eu tenho que estar aberto para
falar disso”, grifo meu). Aproveita para inscrever o fato como real e como pertencente à
história do país – e nesse sentido nos torna cúmplices do que houve.
Mais uma vez, Du Rap celebra a presença de Deus (várias vezes evocado), a
realização de um milagre, tanto com ele (singulariza-se: é a sua história), como com outros
(os que sobreviveram – aqui, nota-se movimento de ampliação do discurso). A necessidade
é de narrar a sua história, mas também o que houve com os outros. A idéia da provação
divina refaz-se aqui, como se, tendo sobrevivido, precisasse louvar a existência de Deus.
Curiosamente, essa preocupação em contar a história também dos outros é o que
parece aproximar Bruno e André em seus – chamemos assim – “projetos de narrar”: André
precisa fazê-lo na condição de sobrevivente; Bruno precisa fazê-lo porque se sente no
dever de narrar o que ouviu, de “dar rosto” aos 111 mortos.
Jeanne-Marie Gagnebin, em artigo intitulado “Memória, história, testemunho”,
propôs que:
“uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; a
testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos
(...). Testemunha também seria aquele que não vai embora, que
consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas
palavras revezem a história do outro: não por culpabilidade ou por
compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida
apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada
79
reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente
(...)”
7
.
Nesse sentido, talvez seja possível comungar da perspectiva de Gagnebin e alargar
o sentido de testemunha a Zeni.
V.
“Uma voz sobrevivente” é o nome do ensaio, de autoria de Bruno Zeni, que fecha o
livro. Como já salientei, a julgar pelo prefácio, Bruno não parecia considerar seu texto final
como parte integrante da matéria narrativa de Sobrevivente And du Rap. Tal exclusão
precisa ser compreendida, parece-me, pelo que revela: em primeiro lugar, tentativa de
preservar como matéria a história, as cartas, as fotos, os depoimentos de André e de seus
amigos, sinalizando que, pesadas todas as possíveis escolhas suas, é André o autor do livro.
Em segundo lugar, ao não incorporar o seu ensaio como parte do livro propriamente, Zeni
fica autorizado a tecer comentários sobre ele (ainda mais quando se leva em conta que a
autoria, assim vista, era de André e, portanto, era possível escrever sobre a história de
André).
Interessam-me esses dois aspectos imbricados um ao outro: ao apartar o ensaio do
livro, Bruno confere autoria a André e, afastando-se dela, pode escrever sobre o resultado
obtido. Como fiz em relação às outras seções analisadas, passo à descrição do ensaio:
Logo de início, Zeni sugere que “experiência” e “presença” são vistas como fatores
importantes de legitimação e dignificação do relato. Aproveita para apontar qual o objetivo
do livro: “somar à história do massacre mais uma narrativa” (p. 199). Ora, se percebe
aqui o que será confirmado ao longo do texto: as filiações críticas de Bruno, que, na melhor
tradição benjaminiana, preza a história feita de histórias, bem como valoriza a experiência.
A crítica à violência (a partir da Escola de Frankfurt) perpassa o ensaio, assim como
o elogio do trabalho de memória, a percepção dos mecanismos de poder (a partir de
Foucault) – Bruno mobiliza seu repertório crítico para interpretar a obra da qual é co-autor.
Observem-se, por exemplo, os subtítulos conferidos a algumas das seções do ensaio, todos
eles em clara incorporação de um discurso crítico que condenaria com toda a veemência o
que houve naquele 2 de outubro de 1992, em São Paulo: “Dar rosto aos 111 e contar as
7
Jeanne-Marie Gagnebin, op. cit., p. 93
80
suas histórias”, “Memória e evocação”, “Testemunho e representação”, “Os corpos
dóceis”.
Quando, por exemplo, comenta o cinismo dos agentes envolvidos na invasão ao
presídio, ou quando trata da ação de entidades ligadas aos Direitos Humanos e do trabalho
de artistas e escritores que criaram a partir do Massacre, Bruno parece revestido de
preocupação política, sem descuidar de suas dimensões (necessariamente atreladas)
sociológicas e estéticas. Um excerto em que comenta o comportamento do grupo de rap
Racionais é bastante emblemático: “Eles se recusam, por exemplo, a participar de
programas de auditório, atitude que certamente os preserva da massificação
homogeneizante, que iguala tudo no simulacro de realidade da TV, tão bem executado no
Brasil” (p. 201, grifos meus). À postura francamente política, junta-se o vocabulário de
inspiração frankfurtiana e pós-estruturalista, o que se confirma no decorrer do texto, tanto
no que toca à sugestão
8
, como de modo explícito
9
.
Tendo feito o trabalho de recuperação da sua memória do Massacre e do modo
como se viu tocado por ele, Bruno conta como conheceu André e como nasceu o livro. Faz
a análise de alguns aspectos da narrativa de Du Rap, como o tempo (“O tempo da ação é
circular, não obedece linearmente ao desenrolar dos acontecimentos”, p. 207), o léxico
(“‘Horrível é certamente pouco: talvez por isso André use a palavra ‘horrorizante’ uma
palavra deformada, assim como a situação vivida”, p. 208) e a linguagem de modo geral
(como quando comenta o uso do termo “cão “Vocês vão ver o que é o cão por parte
dos policiais invasores: “É o real hipertrofiado, é a impossibilidade absoluta de abstração, a
aniquilação da capacidade de figurar, fabular ou sonhar a amortização da linguagem, sua
redução ao que ela tem de mais cru: uma tautologia e uma literalidade sem brechas”, p.
208).
8
Observe-se, por exemplo, esta passagem em que deixa clara a intenção de seu projeto inicial em dar nome
aos que morreram: “O número 111, com todo o seu poder de ícone, se prestava então a uma dupla função:
conferia uma violenta força de identidade ao episódio, fazendo do Massacre um emblema da nossa
barbárie, mas também cristalizava a condição anônima daqueles que haviam sofrido a ação de extermínio.
(...) as vítimas do Massacre tinham virado número” (p. 203).
9
Exemplo disso é quando, tendo parafraseado o argumento de “O narrador”, de Walter Benjamin, comenta:
“A memória de André a respeito do Massacre me parece ser capaz de exercer essa função de nos aproximar
a todos, tecendo na sua narrativa uma história que é sua, mas também daqueles que morreram” (p. 206).
81
Zeni faz questão de compreender aquilo que venho chamando de etos prisional,
quando, por exemplo, chama atenção para a preocupação de André com o fato de que
vários companheiros tenham morrido “fora do xadrez”.
Depois de listar outros assuntos narrados por Du Rap e que contribuiriam para
mostrá-lo não como um “bandido”, Bruno sentencia:
“A história de André antes e depois do Massacre dá concretude àquilo
que julgo ser fundamental para compreender o absurdo daqueles
posicionamentos (...) que defendem a violência policial contra a
população carcerária: sua vida não se reduz à condição de presidiário ou
de ladrão’; José André de Araújo, assim como todo e qualquer homem
preso, não é um número nem uma besta” (p. 211).
Aqui, parece evidente que a narrativa de And também tem, para Bruno, a função
de mostrá-lo sem o estigma do ex-presidiário, a que André faz referência diversas vezes
daí talvez a escolha em publicar as suas cartas, as fotografias que o mostram à frente de
vários projetos sociais na periferia de o Paulo, o testemunho dos aliados que confirmam
que André é um sujeito digno.
Em seguida, Bruno atribui importância à condição de sobrevivente de André, que,
como tal, precisa narrar para que os fatos não se repitam: “As lembranças de André du Rap
também estão, de forma inequívoca, delineadas por sua função social exercida aqui e
agora. A necessidade de contar a história do Massacre para que ela não se repita (...) vem
de sua condição de sobrevivente” (p. 210). Nessa condição, aproxima-o, fazendo a
mediação não estabelecida por André, da comparação com o Holocausto. Quando, por
exemplo, comenta proximidades com a experiência-limite dos campos de concentração, faz
ressalvas:
“Na fita em que gravou sozinho, (...) André compara o Massacre do
Carandiru ao Holocausto e ao Vietnã. Ainda que as comparações
pareçam desmedidas e o recurso tentador de chamar o Massacre do
Carandiru de ‘O Holocausto brasileiro’ seria diluir as particularidades
de cada um dos genocídios, empobrecendo a ambos –, a comparação
82
o que pensar, especialmente em relação à dificuldade em elaborar
simbolicamente uma experiência traumática, ponto cervical de toda a
literatura de testemunho do Holocausto e do debate crítico e ético que a
envolve” (p. 212).
As citações que vêm como desdobramento da mediação feita são especialmente
reveladoras e se coadunam ao arcabouço teórico delineado ao longo do ensaio Zeni
recupera os estudos feitos a partir dos testemunhos da Shoah e, em esforço analítico, tenta
compreender em que medida são úteis para a narrativa de André. Essa sua busca aparece
quando articula a linguagem de Paul Celan à “fala fraturada de André du Rap” (p. 214) e
comenta que: “A opção pela manutenção das arestas da narrativa oral busca conservar as
marcas do seu trauma, identificadas na forma do seu relato, e que corriam o risco de se
diluir se procurássemos consertar ou reescrever o seu depoimento” (p. 214). Explicita aqui,
portanto, os princípios críticos que nortearam suas escolhas no momento de dar forma ao
livro
10
.
Chegando ao fim, reafirma seus propósitos: “Este livro se pretende uma peça de
resistência, dentro de um sistema que tem por norma excluir e massacrar, para que nada de
semelhante ao que se fez no Carandiru em 1992 volte a acontecer” (p. 218). A urgência em
narrar para que nada parecido ao Massacre aconteça é formulada em termos muito
próximos aos dos sobreviventes dos campos de extermínio da Segunda Guerra – o que não
deve ser visto com espanto, uma vez que Bruno assume as referências teóricas que balizam
seu ensaio, notadamente, mas não apenas, os filósofos frankfurtianos e pensadores do
dever-de-memória pós-Holocausto
11
, aqueles que pesquisam formas de representação em
tempos de catástrofe.
Valendo-se da contribuição de Michel Foucault (em seu estudo seminal sobre as
prisões francesas Vigiar e punir) e de Roberto Schwarz (especialmente de sua tese sobre
10
Isso fica ainda mais evidente quando Bruno faz menção a um ensaio em que Jeanne-Marie Gagnebin, a
partir das reflexões de T. Adorno e M. Horkheimer, escreve que: “a mancha do Holocausto impõe uma
reflexão ética e moral que acompanha nossas criações estéticas” (p. 218).
11
Observe-se, como exemplo, este fragmento de autoria de Shoshana Felman: “Aquilo em que consiste a
violência do Holocausto a própria essência do apagar e do aniquilar não é tanto a morte em si, mas o
fato ainda mais obsceno de que a própria morte não faz diferença, o fato de a morte ser radicalmente
indiferente: todos são colocados num mesmo plano, pessoas morrem como números, não como nomes
próprios. Em oposição a esse nivelamento, testemunhar é, precisamente, engajar-se no processo de
reencontrar seu nome próprio, sua assinatura (“Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”, pp.
64-65).
83
as “idéias fora de lugar” Ao vencedor as batatas), sugere, no que parece ser o ponto
central de seu ensaio, que, se na França as penas pararam de incidir sobre os corpos, no
Brasil, esse sistema persiste: “as penas que incidem sobre os corpos da população
carcerária [pré-moderna, segundo Foucault] continuam atuando no ventre do inchado e
abarrotado sistema carcerário brasileiro” (p. 215), o que se comprovaria, segundo a
percepção de Bruno, na manutenção da tortura nas prisões do país.
A minha insistência no “rastreamento” da filiação crítica de Bruno Zeni tem certa
razão de ser. No início deste capítulo, sugeri que a forma final do livro talvez fosse
responsabilidade de Bruno, em um difuso compartilhamento de autoria com André. Feito o
percurso, expostos os procedimentos que Zeni assume como escolhas suas, a questão
poderia ser dada como encerrada. Mas eis que se torna mais complexa: ao atribuir a autoria
a André, o que faz tanto textualmente como ao eximir seu ensaio final da condição de parte
da matéria que compõe o livro, Bruno torna-se capaz, mesmo se momentaneamente, de
olhar para Sobrevivente André du Rap como se não lhe pertencesse, embora evidentemente
seja também seu. Nesse momento, analisa o livro à luz dos mesmos autores que
contribuíram para a forma final de Sobrevivente And du Rap. As referências procedem:
tratam da impossibilidade de narrar causada pelo trauma e a urgência narrativa daí advinda,
para render homenagem aos que morreram e para que o que houve não se repita. Nesse
sentido, o livro é, como disse Bruno, uma peça de resistência.
Interessa-me, no entanto, olhar para o que se desdobra daí: um livro que tanto
interna quanto externamente aponta para uma dupla autoria. O que resulta desse encontro e
se conforma em livro é igualmente a junção de duas experiências pessoais e sociais
díspares. Se a história é a de André, a forma parece adequada aos valores professados por
André, quais sejam, os valores da cadeia, que André toma como seus mesmo em liberdade.
Assim, a forma corresponderia, como tenho sugerido, aos modos de sociabilidade do
cárcere. Mas como entender a presença do jornalista e literato que, conhecedor das
pesquisas sobre violência, trauma e memória, inequivocamente contribui para conformar o
texto
12
da maneira que julga corresponder ao modo de ser de André?
12
“Eu fiz questão de colocar o massacre, que seria o clímax, primeiro; porque acho que é forte e é atual, mas
também porque eu acho que é a condição, a identidade dele: ele se considera o sobrevivente” (Folha de S.
Paulo, 09/09/02, op. cit.).
84
Parece-me que não exatamente o que resolver, mas o que apontar. De um lado,
as necessidades, as marcas de oralidade, o senso de missão, as repetições, além das cartas,
dos depoimentos e das fotos, tudo enfim que envolveria o etos da cadeia e também um
certo modo de André ver o mundo. De outro, o desejo imperioso de Bruno de dar nome aos
111, de dar a sua contribuição para que o 2 de outubro de 1992 o se repita o que é
também a maneira como parece enxergar o mundo. São ambos, como se vê, desejos
convergentes. O modo de formalizá-lo, por meio da narrativa da história de André, é
igualmente um anseio comum. Como sugerido acima, Bruno é imbuído de um desejo
político de narrar de modo a não negar a identidade de André, de modo a não estigmatizá-
lo (ele troca cartas
13
, dá valor à escrita, tem relações amorosas, sofre), a contribuir para não
perpetuar a imagem de “número ou besta” que parece envolver os presidiários. E para fazê-
lo, mobiliza o que conhece, tal qual André quando escolhe as fotos, as cartas, os amigos
que gostaria de ver publicados ou quando, no Free Style”, retoma episódios narrados
nos momentos de conversa gravada com Bruno, sinalizando o que deve permanecer na
edição da sua história.
Se se considerar o livro com um todo, sem excluir os dois textos de Bruno (o que
apresenta e o que encerra o volume), tampouco desprezar as notas de rodapé, ele se torna
mais complexo, porque passa a permitir a percepção da formalização de algumas
impossibilidades objetivas do quadro social brasileiro.
Sobrevivente André du Rap, sendo a convergência de duas urgências narrativas de
origem diversa, traz essa dualidade quando adota uma forma que é brida. O livro não é
simplesmente uma transcrição das entrevistas (além do “Free Style”, as fotos, as cartas,
os depoimentos), não é apenas uma autobiografia (a presença de Bruno é inequívoca),
tampouco uma biografia (o que se poderia sugerir pela presença de Zeni, se ele falasse por
André, o que não se confirma). É, sim, um livro escrito a quatro mãos em que se fazem
notar as contribuições de cada um deles para dar forma à história de André.
Bruno responsabiliza-se pela edição, jornalista que é, e pelo ensaio, que deve levar
em conta as particularidades das lembranças de quem viveu a possibilidade real do
13
Ainda na entrevista à Folha de S. Paulo, Bruno comenta sobre as cartas: “Essas cartas são o único lugar
no livro em que tem, de fato, a escrita dele; o resto é a nossa conversa. E acho que elas, de um jeito um
pouco desarrumado, com lacunas, conferem materialidade à história dele. São o registro do que ele sentia
na época; o depoimento é a memória dele, com tudo o que ela tem de mais rico: a memória refaz o que
aconteceu e deixa muita coisa de fora, não é? É inevitável” (Folha de S. Paulo, 09/09/02, op. cit.).
85
extermínio e para tanto constrói estratégias formais de linguagem que mobilizam as
pesquisas feitas com os sobreviventes da Shoah, bem como o que reconhece como a
contribuição dada pela Teoria Crítica para o narrar após Auschwitz, revelando a sua
filiação como estudioso da literatura. Procura fazê-lo de modo a não recusar a condição de
sobrevivente de André nem a sua própria condição: esclarece o que julga ser necessário em
notas de rodapé, um recurso do discurso acadêmico-científico, que não pertence ao
ambiente da prisão. É claramente um modo de não se fazer notar – tal qual o pesquisador –
mas que acaba por revelá-lo como também autor daquele modo de narrar a história de
André.
André, por sua vez, parece ter interesse no uso da nota de roda porque, assim
como a presença de Bruno, ela contribui para atestar que o que ali está sendo narrado de
fato aconteceu as notas de rodapé afinal têm esta função: amparam o que acaba de ser
escrito.
Resulta daí um livro ambivalente não apenas em sua adesão ao discurso externo e
interno à cadeia (dimensão evidentemente presente), mas também na dupla autoria de
sujeitos com trajetórias distintas e que trazem para a linguagem essas diferenças. Por um
lado, desponta o discurso articulado, legitimado, acadêmico. Por outro, percebem-se as
marcas de oralidade, a insuficiência vocabular daí os neologismos para dar conta do
evento traumático, a sintaxe interrompida, a necessidade de transformar o livro para ser fiel
aos ditames da cadeia, aos quais ainda se reporta. Ainda, essa escrita mostra-se leal aos que
o ajudam ou ajudaram, dando-lhes rosto e palavra (nas fotos e nos depoimentos) e nesse
sentido aqui também André faz valer os valores da cadeia. O discurso de André atesta o seu
pertencimento àquele ambiente, o que se percebe na ambígua relação que estabelece com o
título-estigma de ex-presidiário, como também na inclusão das fotos, inclusive a da capa,
em que ele está dentro do presídio, ou mesmo, logo no início do livro, na reprodução dos
contatos fotográficos de seu rosto (cujas cicatrizes seriam rememoradas no texto como
marcas da violência).
Essa dupla autoria que revela suas condições de produção, sem mascarar os dois
sujeitos que falam e de onde falam
14
, mas, ao contrário, apostando nas suas contradições
14
A respeito do papel daquele que transcreve o testemunho latino-americano e seu estatuto problematizado
pela teoria que a ele se dedica, ver o artigo “Este corpo, esta dor, esta fome”, de João Camillo Penna, op.
cit.
86
como formadoras do livro, configura-se como traço de originalidade desse volume em
relação aos demais. Ao mesmo tempo, a fotografia ao final (Du Rap e Zeni juntos) pode ser
lida como uma aposta inusitada de que o senso de fratria que parece reger os valores de
André é ali compartilhado com Bruno. No entanto, é preciso salientar que a vida prisional é
tão coerciva que, mesmo com as intervenções de Bruno, certas estruturas frasais de
André que expõem o que aparece também nos outros livros aqui estudados, como procuro
mostrar.
87
Capítulo 3 (ou “Sou o que resulta daí”)
I.
Memórias de um sobrevivente é o livro de estréia de Luiz Alberto Mendes. Depois
desse, vieram Tesão e prazer: memórias eróticas de um prisioneiro (2004) e Às cegas
(2005). Mendes é, sem dúvida, o mais bem-sucedido desse grupo de escritores egressos da
prisão e é aquele cuja escrita mais repercutiu: Autor de duas peças e de, segundo conta, 5
livros inéditos, sua escrita tem atraído a atenção da crítica acadêmica, que lhe dedicou
artigos, dissertações e monografias.
15
Assina, desde 2002, coluna na revista mensal Trip.
Seu Memórias de um sobrevivente, de acordo com ele, vai virar filme
16
.
Encarcerado por cerca de trinta anos, é também, do grupo aqui analisado, o escritor
com mais tempo de prisão. Seu contato com a literatura, segundo Sérgio Adorno, o “ponto
de inflexão que torna o [seu] livro distinto dos demais
17
, se deu na cadeia, em episódio
narrado nas Memórias e por ele sempre evocado em entrevistas.
O “Professor”, como era conhecido na Casa de Detenção, deve sua “descoberta” ao
escritor Fernando Bonassi (autor do prefácio do livro), que, em 1999, ministrou oficinas de
literatura e organizou um concurso literário do qual o conto “Cela-forte”, de Mendes, foi o
vencedor.
O lugar de destaque que ocupa não é, decerto, à toa. Seu primeiro livro, publicado
pela prestigiosa editora Companhia das Letras (assim como o seria seu Às cegas)
18
,
apontava para um domínio da escrita e das estruturas narrativas, visível nas suas quase 500
páginas.
Memórias de um sobrevivente, assim como Diário de um detento e Sobrevivente
André du Rap, conta a história de Mendes enquanto esteve preso, mas, ao contrário do livro
de Jocenir e de André du Rap, não se limita a isso, recua aos anos de infância, às primeiras
15
Ver, especialmente, de Márcio Seligmann-Silva, “Novos escritos dos cárceres: uma análise de caso. Luiz
Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente”; e, de Andrea Saad Hossne, “Autores na prisão,
presidiários autores. Anotações preliminares à análise de Memórias de um sobrevivente”; bem como
dissertação de Adauto Locatelli Taufer, Do factual ao ficcional: memória, história, ficção e autobiografia
nas Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (UFRGS); e a monografia de Luciana Araújo
Marques, De dentro: escritos da periferia e da prisão (Faculdade Cásper Líbero).
16
Ver entrevista feita por Mauro Ventura com Mendes em 30/03/2008, na Revista O Globo.
17
Sérgio Adorno, “A ciência da tortura”, Jornal de resenhas, 12/02/2002.
18
Tesão e prazer: memórias eróticas de um prisioneiro foi editado pela Geração Editorial, que é também a
casa pela qual foram lançados, entre outros, Pavilhão 9, de Hosmany Ramos, e Vidas do Carandiru, de
Humberto Rodrigues, que será objeto do Capítulo 4 da Tese.
88
transgressões, insiste na relação (conflituosa) com o pai e (amorosa) com a mãe.
Procurando entrelaçar sua história à do país, narra o início da vida criminosa ainda garoto,
as passagens pelo Recolhimento Provisório de Menores (RPM), os assaltos, as relações
amorosas, as idas-e-vindas nas delegacias, convivendo, nos terríveis anos 70, com a tortura
“uma instituição no Brasil”, em suas palavras –, com a corrupção de policiais, com a
crueldade dos próprios presos. Condenado a quase 100 anos de prisão, vai do desespero por
se ver “enterrado” tão jovem (tinha 19 anos) ao alento da descoberta dos livros, como ele
gosta de frisar. O livro termina, e seus anos de cadeia, não. Quando publicado, em 2001,
Mendes continuava preso. Só sairia três anos mais tarde, a tempo de lançar, na condição de
homem livre, seu Às cegas, a continuação de suas memórias.
Memórias de um sobrevivente, além de seus 23 capítulos, tem também um prefácio,
escrito por Bonassi, e epílogo do próprio Mendes, duas epígrafesuma de Sartre, outra de
Brecht e é dedicado aos filhos. Inexistem aqui, ao contrário do que se viu nos outros
livros analisados, reprodução de cartas, espaço para companheiros, glossário ou
fotografias. Há, sim, a dedicatória, o que o constitui particularidade de uma escrita do
cárcere, embora também faça parte dela, e as duas mencionadas pequenas epígrafes.
Sua não adesão à transformação do livro em espaço compartilhado pelos
companheiros de prisão poderia ser vista como seu desejo de se tornar um autor, para o que
mobiliza tudo aquilo que reconhece como próprio de um romance e como próprio de um
autor de romances. Mendes não se apropria do livro para diferenciá-lo e dar conta das
particularidades das formas de sociabilidade do cárcere. Nesse sentido, seu livro está mais
próximo do que se reconhece como tal, o que, talvez, seja fruto de sua maior
familiaridade com esse objeto.
Sem, no entanto, poder escapar à prisão, sua prosa é aderente a dois registros
distintos, que não se coadunam em nova organização espacial do livro, materialmente
falando, até porque, a julgar pelo que conta, tornou-se leitor voraz, capaz de reconhecer – e
por que não? – aderir à disposição previamente dada.
Apesar de se distanciar em aspectos vários dos outros livros escritos a partir do
cárcere, Memórias de um sobrevivente não recusa a Mendes a condição de presidiário. Ali
estão, como nos outros livros analisados, além da adesão dobrada ao regrário dos homens
89
livres e dos homens encarcerados, a comparação com o Holocausto
19
; o conhecimento do
código penal
20
; a explicar das rias da cadeia
21
; a imagem da prisão como inferno
22
; os
episódios de tortura; a solidariedade
23
; a precariedade material resolvida com engenho
24
; a
precisão nas datas
25
; o respeitoso epíteto dedicado aos outros presos: “companheiros de
sofrimento”; a preocupação em apresentar o espaço
26
; a incorporação do etos marginal e da
19
A respeito do “bondão”, carro que fazia o transporte dos presos do Carandiru ao fórum: “Parecia aqueles
carros com escapamentos para dentro em que os nazistas transportavam os judeus” (p. 271).
20
“Agora sabia que não ficaria preso muito tempo. Como primário em condenações, na minha primeira
condenação receberia sursis automaticamente” (p. 335). “Não podíamos ser pegos. Estávamos em flagrante
de latrocínio, o pior dos crimes, eu sabia” (p. 362). “Não bateriam mais [em Bala, seu companheiro] porque,
em menos de vinte e um dias, a lei dizia que ele teria que ser apresentado ao juiz, após auto de
flagrante” (p. 397).
21
No livro de Mendes, percebe-se o desejo de explicar também o que ele reconhece como pertencente a um
ambiente diferente do de seu eventual público leitor não apenas da cadeia, mas dos bairros pobres. Essa
percepção não vem sem certo sarcasmo (e neste caso seria apenas um comentário, e não uma explicação):
“Numa brincadeira de taco (beisebol de pobre), tomei uma paulada no olho” (p. 29).
22
Sobre o DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais), onde foi torturado: “O medo era o
instrumento mais utilizado e aproveitado naquela sucursal do inferno” (p. 300).
23
A solidariedade dos presos com ele e com os companheiros torturados aparece, por exemplo, em: “Os
companheiros de xadrez nos deram banho, lavaram nossas feridas, alimentaram-nos e nos colocaram em
um canto, em cima de várias cobertas” (p. 383).
24
“O fogão era um tijolo com ranhuras e, dentro das ranhuras, uma resistência dessas que transformam
energia elétrica em calor. Era proibido, resultava até em castigo. Mas na prisão quase tudo era proibido e
permitido ao mesmo tempo. Dependia de não deixar o guarda ver, ou, dependendo do guarda, de comprá-
lo” (pp. 404-405). A precariedade material vencida com a astúcia se acentua quando está no “castigo”:
“Bolamos um esquema. Precisávamos de linhas de costurar bola e duas pilhas pequenas. O Ênio agora
estava na faxina e ficava solto, faria a ponte para nós. No dia seguinte, pedimos para ir ao médico,
encontramos Ênio e armamos as coordenadas. À noite, fiz o teste. Joguei do meu guichê a pilha com linha
na janela da galeria do quarto andar. Ênio, alerta, amarrou o que pedíamos. Consegui trazer tudo a
minha cela e dali distribuí para os outros” (p. 420).
25
“No dia 27 de abril de 1973”, Mendes foi transferido para a Penitenciária do Estado.
26
“O pavilhão era assustador. As velhas paredes descascadas de várias camadas de tintas davam um ar de
deterioração aos corredores. Aquilo parecia um velho navio encalhado, morrendo, enferrujado, com suas
luzes nas janelinhas. Portas de carvalho cheias de trincos e rangidos de castelos mal-assombrados. A cela,
em seu interior, trazia as paredes inscritas, em baixo relevo, de cima a baixo; um mundo de nomes e
identificações. Tudo era impregnado de mais de cinqüenta anos de sofrimento de várias gerações de presos.
Era tudo fantasmagórico, amedrontador. Sentíamos qual estivéssemos entrando em um cemitério, e as celas
eram os túmulos” (p. 425).
90
cadeia
27
; os comentários sobre o “sistema
28
; a necessidade da experiência para legitimar a
escrita
29
; o reconhecimento do ler-e-escrever como indícios de prestígio na prisão
30
.
Algumas particularidades de sua escritura precisam ser anunciadas: ao ampliar o
arco temporal de suas memórias para além do tempo de prisão, Mendes imprime interesse a
seu livro, uma vez que é possível observar a trajetória do menino que vira bandido e que se
recupera pelos livros. Além disso, ele faz questão de articular sua vida às transformações
por que passavam a cidade e o país: é assim que se acompanham as mudanças na cidade de
o Paulo e os tempos sombrios da ditadura do início dos anos 1970 – o que torna seu livro
o registro de um tempo feito pelo olhar inusitado de quem passou a maior parte desses anos
encarcerado.
O público-alvo também é fator de particularização da sua escrita e da sua posição
como autor. Ao contrário do que foi visto nos dois livros anteriormente analisados, em que
era possível perceber uma intenção ambivalente no tocante a quem aquela escrita, afinal, se
dirigia, a depender de Mendes, sua literatura não é para seus pares
31
(desenvolvo esse ponto
no último item deste capítulo).
Interessa-me pensar no modo como se dá, nas Memórias de um sobrevivente, a
oscilação do olhar do narrador. Não me refiro aqui apenas à adesão ao mundo dos homens
livres ou ao ambiente da cadeia. Para além da dúplice adesão, aqui presente e à qual
dedicarei análise mais adiante, desperta-me a atenção o uso que Mendes faz dos tempos
verbais: a oscilação ganha outra dimensão quando associada à inflexão de sua trajetória,
não por acaso associada às letras. Mendes escreve após rever seu percurso e suas escolhas.
Sua escrita pode ser compreendida a partir dessa conversão: um antes (e um jeito de
27
“Eu precisava me manifestar. Era a lei do crime. (...) [Se não agisse] teria que calar, baixar a orelha,
porque esse era o costume, o código criminal” (p. 409).
28
“Num país em que o desemprego é parte do esquema para manter os salários baixos, o artigo 59 do
código penal é um absurdo inominável. No momento em que alguém é mandado embora do emprego, já
está infringindo as disposições legais desse artigo. Mais trinta dias e poderá, inclusive, ser apanhado por ter
sido desempregado. Além de ficar sem o emprego, ainda vai preso” (p. 232). “Éramos a escarradeira do
mundo. Jamais houvera qualquer preocupação em nos reeducar. Tudo era vingança social e contenção” (p.
451).
29
“Quem conhece a muquirana, sabe a força do que estou dizendo (p. 123).
30
“Fui deixado de lado porque era um dos mais velhos aqui e porque sabia ler e escrever, quando quase
todos eram analfabetos. Muitos pediam que eu escrevesse cartas para mães, namoradas. Fazia até poesia
para enfeitar. Dessa maneira, fui saindo do sufoco total que vivera por seis meses” (p. 150).
31
“Os caras podem até me enquadrar, mas eu faço literatura. Uma literatura que é para todo mundo, não
para a periferia” (Folha de S. Paulo, 20/08/2005).
91
olhar o mundo prévio) e um depois (de onde vem a mirada mais próxima da atual). Está-se
diante de um narrador que se mostra em sua compreensão pretérita e presente (no livro,
pretérita, uma vez que entre o fim da escrita e sua publicação transcorrem cerca de 10
anos).
Decerto, se se aceita a premissa de transformação pela escrita, a autopercepção
refeita pelo novo olhar apareceria também nos outros livros vistos neste trabalho, mas a
dimensão aqui é outra: ao percorrer sua vida de menino a homem feito, a narrativa de
Mendes acompanha as motivações de seu narrador-protagonista-autor a cada época. Esse
olhar que desliza por entre os anos dá-se a perceber no trato verbal, que se revela
construção particular, porque, mesmo revisto, esse olhar não é indulgente consigo. Ao fazer
se si uma imagem complexa, nuançada, constrói personagem que o distancia de seus pares.
Tem-se, então, a história do menino, do adolescente, do jovem, que achava que o
mundo lhe devia algo e ao qual respondia com violento desprezo, como também a do
adulto redimido, que não nega seu passado, ao contrário o assume em seu paroxismo
(assassinato, roubo, drogas etc.), mas reivindica novo estatuto para si. Para tanto, contribui
a construção de um personagem muitas vezes vil, (embora a esse traço acompanhem as
fragilidades contingentes). Exatamente porque revê a sua conduta, de que a existência do
livro é prova cabal, Mendes pode narrar a si dessa forma.
Neste capítulo, discuto a construção, em Memórias de um sobrevivente, do
personagem Luiz Alberto Mendes; o modo como, no trato verbal, na oscilação do olhar, na
assunção de certa inescrupulosidade aliada ao receio, revela-se redimido sem negar sua
condição; e, finalmente, o estatuto de autor que reivindica.
II.
“Dona Eida, minha e, dizia que a os seis anos eu era um santo. Meu pai, seu
Luiz, dizia que eu era um bil mental” (p. 13) é assim que Mendes começa a sua
história. De chofre o leitor é exposto à brutalidade de sua relação com o pai e ao
condescendente trato que sua mãe lhe dispensava.
o demora muito para que o menino associe a existência de regras ao pai
opressivo
32
, que o surrava ao mais leve tropeço de conduta. Para escapar ao pai, refugiava-
32
Mendes chega a, mais adiante, associar o pai a policiais que o torturaram: “(...) deram-me uma sacola
para carregar, e fui levado a uma salinha no mesmo corredor. (...) Quando tiraram o conteúdo da sacola é
92
se na casinha da cachorra, que o lambia “qual [ele] fosse mais um de seus inúmeros
cachorrinhos (p. 14). A primeira infância em que se via mais à vontade com os animais
parece um prenúncio (armado narrativamente) para o processo de bestialização a que seria
submetido em suas várias passagens por reformatórios e prisões.
Nos capítulos que dedica à infância, procura construir a imagem de um menino
desregrado, insubmisso. Há um olhar pouco complacente consigo mesmo, que, de resto,
perpassa o livro, embora assumindo facetas diferentes. Ao se referir ao seu nascimento, por
exemplo, Mendes conta que, nas duas primeiras vezes em que a mãe engravidou, a avó
patrocinou os abortos. Até que, na terceira vez, Dona Eida teria usado o dinheiro para
comprar um armarinho de cozinha. Dali nasceu Luiz Alberto. A idéia de uma origem
acidental acentua o lado gauche que parece querer construir para si como personagem.
Essa tendência se acentua. Observe-se, à guisa de exemplo, este gênero de
formulação, impensável nos dois outros livros analisados: “aos dez anos era um
ladrãozinho bastante bem-sucedido e oportunista”. Ou então: “Com onze anos já comprava
minhas relações. Não sabia conquistar amigos” (p. 31).
, no cultivo dessa imagem de escritor maldito, à la Jean Genet (ao qual, não por
acaso, foi comparado
33
), também, um elemento que o diferencia
34
. Não tentativa de
negar os crimes que cometeu, nem de justificá-los; ao contrário, associa-os a sua busca pela
felicidade, que, para ele, tinha estreita relação com a possibilidade de consumo (“eu queria
viver, e viver significava ter dinheiro, muito dinheiro para fazer o que se gosta”, p. 344).
Percebe-se, nesses capítulos iniciais, o que sugeri: além de evidenciar as
transformações por que passa, sempre um olhar que, em relação à experiência narrada,
que percebi que carregava os instrumentos de tortura. Ali estavam as ataduras, as cordas de náilon, os fios,
os cacetes e a máquina de choques. Recordou-me meu pai mandando que eu buscasse a cinta para ele me
bater” (p. 385). A relação ambígua com o pai, guardadas as proporções, vai ser reproduzida com seus
algozes, quando, mesmo depois de espancado, afirma: “De repente, transformaram-se em seres humanos.
Riram de mim, estavam com pena do meu estado físico e mental, notei até compaixão em seus olhos.
Levaram-me a um bar, pagaram-me uma média com pão com manteiga e conversaram amistosamente
comigo. E eu gostei deles naquele momento. Inexplicavelmente, eu até os perdoaria, caso não soubesse que
aquela manifestação de humanidade era passageira” (p. 395).
33
Ver artigo de A. Hossne (op. cit.), que, embora não os compare diretamente, discute os meios de
legitimação de ambas as escritas.
34
Imagem presente não em seus livros, mas também nas entrevistas que concede: “Em Estação
Carandiru, do Drauzio Varella, aquelas conversas não têm sentido. Nas histórias, todos eles têm uma
justificativa para estar ali. Eu falo: ‘Fiz, gostava de fazer, mereci estar preso’. Não faço uma literatura
salvacionista. Meu pai era alcoólatra, me batia, mas mesmo assim eu deveria ter me saído bem. Sou um
produto de mim mesmo” (Revista O Globo, 30/03/2008, op.cit.).
93
aproxima (quando recupera as sensações e os desejos de então) e a distancia (quando
salienta que aquilo se dava naquele momento).
Aos doze anos, em sua primeira detenção, se mostra atento aos códigos dos que
pertencem ao mundo do crime, quando recusa, “apesar do frio enorme”, uma blusa que
outro garoto quis lhe oferecer: “Meu medo era do que ele viria cobrar depois” (p. 35).
Como também o demora a aderir à norma. Quando tira a carteira de trabalho,
ainda menor de idade, acredita-se “homem” (p. 40), em momento de clara valorização do
trabalho como indicador de status. Começa a trabalhar como office-boy em um escritório,
onde fica durante oito meses.
A dupla adesão de Mendes aos digos dos homens livres, em momento de
reconhecimento da norma, por um lado, e às regras de conduta do mundo do crime e da
cadeia nas Memórias de um sosbrevivente, entendida como qualquer espaço de detenção
–, não se como nos outros livros analisados. Ele mostra sua aderência hesitante como
personagem de sua história: em alguns momentos de sua trajetória, achava que se
corrigiria, em outros, tinha clara a intenção de permanecer na vida criminosa. Em Mendes,
a percurso é incerto, pendular, e depende, para existir como tal, de um olhar, transformado,
que o revisite.
Ainda muito jovem, o desejo de ser visto como malandro, em nova oscilação de
conduta, aqui reelaborado de modo crítico no momento da narração
35
:
“Para eles [os outros meninos] eu era malandro (e esse era um título
que eu queria muito), sujeito esperto a ser respeitado. Adorei o jeito
reverente como me tratavam! Gostei mesmo daquilo, deu-me enorme
prazer! (...) Queria me mostrar mais malandro ainda, aproveitando a
oportunidade para formar minha nova identidade de vez. O prestígio era
fundamental” (p. 49).
35
A elaboração crítica aparece em vários momentos, sendo constitutiva do livro. Observe-se este trecho, à
página 189, por exemplo, em que comenta como pensava aos dezoito anos: “Estava condicionado a me
defender sempre, em qualquer tempo. Sentia que o mundo e as pessoas me prejudicaram e fizeram
sofrer. Não era bem assim, mas era assim que eu via, destacava apenas o que me ferira, valorizava apenas o
meu sofrimento, que se fodesse o dos outros. Imaginava não conhecer bondade nem amor” (pp. 189-190,
grifos meus).
94
Nesse trecho, o narrador reforça suas aspirações junto ao grupo de meninos
freqüentador da Praça da República e seu desejo de ampliar a imagem já, contudo,
alcançada. Essa necessidade expressa com todas as letras de ampliar o respeito que detinha
é um olhar não retrospectivo, o que pode parecer uma banalidade em um livro de
memórias, mas revisitador no sentido de que Mendes procura expor as razões que, na
época, o moviam e acentuar o que via, então, como importante.
Logo começa a freqüentar o Snake, um bar na Galeria Metrópole. Novamente,
constrói uma imagem depreciativa, se observada com olhos dos homens livres, a respeito
de si e de seu bando:
“Éramos vândalos da pior espécie, aquela que destrói pelo prazer de
destruir. Cagávamos nas mesas das casas; cortávamos estofamentos,
cortinas, quadros; quebrávamos vasos, bibelôs, estatuetas, televisores,
móveis; rasgávamos tudo o que fosse papel etc. Sei por quê, mas ao
ver coisas bonitas, coloridas, delicadas, o instinto destruidor vinha à
tona. (...) Colocava toda a minha raiva, meu ódio naquela atividade
destruidora” (pp. 59-60).
Nesse excerto, nota-se o olhar que revisita e perscruta o passado, mas que o o
encobre. Repare-se na ausência de subterfúgios quando, para dar conta do perfil destruidor
do grupo, recorre ao rude “cagar”, que contribui para ampliar o não embotamento do leitor.
À virulência da ação destruidora, ele opõe o desconhecimento exato das razões para aquilo,
bem como a evocação de “coisas bonitas, coloridas, delicadas”.
Muito cedo nas ruas, muito cedo começa a incorporar, como visto acima, o etos
malandro, que lhe garantirá a sobrevivência no RPM, nas delegacias e nos presídios por
que passaria:
“Aos poucos, fui introjetando o ambiente violento, até modificando
meu jeito um tanto meigo e infantil. Fazia parte de tudo aquilo já. Se
não fosse pequeno, talvez estivesse abusando dos menores, como
faziam os grandes. (...) A moral estava na bunda, e a minha era o meu
tesouro” (p. 129).
95
A assunção de que, tivesse compleição distinta, agiria com covardia, aproveitando-
se de outros menores, é formulação característica desse personagem para quem a
“introjeção” (note-se o emprego do termo de origem psicanalítica) da violência era
responsável por fazer com que o menino antes doce fosse capaz de atos torpes. Fazer parte
de “tudo aquiloimplicava agir em conformidade com ditames vis aos quais, aos olhos dos
homens livres, não se espera que crianças adiram. Quando opta por mostrar-se dessa
maneira, Mendes, por um lado, assume-se desalinhado pelo ambiente hostil em que vivia,
por outro, justamente porque escreve sobre isso, com o distanciamento permitido pelo
preciso manejo das palavras, amplia sua revolução pessoal.
Esses momentos alternam-se com aqueles em que Mendes parece querer viver na
“ordem”:
“Aprender coisas era algo fascinante para mim. Além disso, de repente
já era um rapaz. Desejava freqüentar bailes, festas, namorar, viver como
um rapaz normal, quando saísse dali [do RPM]. Queria paz e
tranqüilidade, viver como um sujeito de minha idade vivia” (p. 136).
Aos poucos, à medida que as intenções de se guiar pela norma arrefecem, assume a
transformação em um “animalzinho mau, agressivo e perigoso (p. 150). Ainda sobre essa
passagem pelo Recolhimento Provisório de Menores, onde era alvo constante de surras dos
guardas e dos próprios meninos, conta que:
“Todas as minhas boas intenções de trabalhar, viver com meus pais
numa boa, foram se evaporando na medida exata dos dias que ia
passando no inferno. Julgava-me traído, roubado, e pensava que não
merecia tudo o que passara” (p. 154).
Observe-se o verbo que escolhe para dar conta de seus sentimentos à época: julgar-
se. O emprego desse termo, que significa “ter-se por”, implica distanciamento que fica
mais evidente se, à guisa de exemplo, fosse substituído por “havia sido” traído, roubado – o
efeito seria por completo outro, e o olhar revisitado de Mendes aderiria ao ponto de vista de
96
outrora, o que não ocorre. Dizer que se acreditava traído é em tudo diferente de afirmar-se
traído e Mendes não cai nessa armadilha e, nisso reside, como procuro mostrar adiante,
sua particularidade.
Quando, depois de mais de um ano no RPM, é transferido ao Instituto de Menores
de Mogi-Mirim, percebe a existência do que venho mencionando existir na cadeia, qual
seja, um conjunto de regras rígidas, cunhadas pelos próprios meninos, às quais era dever
obedecer. Segundo ele, o “famoso proceder”:
“Ali havia, de modo dominante, o famoso proceder. Conjunto de
normas que eram mais fortes que as leis oficiais do Instituto e que nos
governavam, implacavelmente. Um sujeito sem proceder era cagüete,
veadinho, desprezado, sem direito a tomar atitude de homem com quem
mexesse com ele. E uma das regras do proceder era que cada um
arcasse com as conseqüências de seus atos. Seria extrema falta de
proceder, e portanto colocar-se à execração pública, deixar que outros
apanhassem por culpa nossa” (p. 159).
Ao mesmo tempo em que queria ser malandro, bandido, cada vez mais se afastando
da possibilidade de retorno à vida familiar, mostra-se reticente quanto a assumir
inteiramente a identidade marginal. Por exemplo, quando se recusa a tatuar-se: “Os
companheiros enchiam-se de grosseiras tatuagens. Jamais fizera alguma, não queria ficar
marcado de modo algum” (p. 189). A tatuagem, como os outros livros a partir do cárcere
dão a saber, é uma marca importante entre os presos, muitas vezes sinalizando o crime
cometido
36
.
Aos 18 anos, Mendes pensa como um preso: “Todos os meus parâmetros eram de
prisão. Em tudo eu pensava apenas como um preso” (p.189). Embora, novamente,
aparecessem as oscilações: “Meu pensamento era nunca mais roubar nem me meter em
trapalhadas. Todas as idéias anteriores de revolta, assaltos, aventuras, diante da
possibilidade de ser livre, sumiam como que por encanto. Agora era maior de idade. Se
fosse preso, era cadeia mesmo” (p. 199).
36
Ver, particularmente, Vidas do Carandiru, em que Humberto Rodrigues dedica um capítulo à análise das
tatuagens, qual um glossário corporal. Discuto isso no Capítulo 4.
97
O que parece é que o se está diante de um personagem plano, cujo caminho foi
trilhado sem titubeios. Em liberdade, exibe a vontade de criar laços:
“Senti a maior vontade de começar uma nova vida, namorar uma garota
séria, casar, produzir filhos e ter paz, amor e tranqüilidade. Percebi na
Sílvia [a cunhada] um amor e uma devoção a meu irmão, que me deu
inveja dele. Queria ter alguém assim, apaixonada por mim” (p. 209).
Porém, novamente, a resolução dura pouco: “Já não procurava mais documentos e
muito menos emprego. Descambava para o crime. (...) Jamais cheguei a tirar os
documentos” (pp. 220-221). Atente-se, nesse trecho, à escolha de “descambar”, cuja
acepção é, em relação às normas, necessariamente negativa, como a convergência do olhar
do Mendes menino e adulto, ambos cônscios do desvio.
Vê-se, então, obrigado a mentir à e a respeito de uma rápida passagem pela
prisão:
“Sabia que era necessário mentir. Ninguém com mais de trinta anos
podia entender minhas verdades, justificava. Para mim, meus motivos
justificavam os meios plenamente, e pronto. Precisava de capital para
financiar a vida que gostava de levar, e todos os meios me eram lícitos e
permitidos. Não tinha culpa se os outros haviam nascido antes e se
apossado de tudo o que havia. Competia-me buscar minha parte. Afinal
de contas, eles não eram, de modo algum, melhores que eu. Pensava
assim, imaginando-me com toda a razão do mundo” (p. 226).
A reflexão a posteriori sobre as razões que alegava na época é importante para que
se perceba que o amplo arco temporal de que Mendes conta traz uma imagem de si
reelaborada. Mendes escreve “Ninguém com mais de trinta anos podia entender minhas
verdades”, numa muito provável alusão à sica de sucesso na época “Com mais de
trinta”
37
. Além disso, escolhe “justificava”, deixando claro que esse era seu modo de ver as
coisas à época. Acentua o perfil impaciente e juvenil quando reitera “e pronto”. O exagero,
37
Marcos Valle, Garra, de 1971.
98
também próprio à gente moça, aparece em “todos os meios me eram lícitos e permitidos”,
formulação neste caso que vai além da retórica. O ressentimento de então também se faz
sentir com seu “não tinha culpa se os outros haviam nascido antes e se apossado de tudo o
que havia”. O narrador termina o parágrafo enfatizando, por meio do emprego (aqui como
ao longo do excerto) do pretérito imperfeito: era esse o modo como pensava a sinalizar,
como se preciso fosse, que não adere mais a esse discurso.
Quando se acompanha a trajetória de Mendes, percebe-se, em primeiro lugar, um
narrador distanciado temporal mas não afetivamente daquelas ações e que, portanto, pode
circunstanciá-las, mas não escamoteá-las. Ele matiza temporalmente sua percepção,
tornando-se dois, por meio do uso do tempo verbal. Em segundo lugar, nota-se a hesitação,
que torna seu livro mais intricado, entre aderir definitivamente ao “mundo do crime” e
optar por uma vida menos arriscada e também mais aborrecida.
38
III.
À medida que a narrativa avança, o personagem e o trato verbal se tornam mais
complexos:
“Nos últimos tempos, minha cabeça mudara muito. Tinha a ver com
tudo o que vivera nas prisões. Estava mais calculista, mais violento,
prepotente, mais duro e a cruel. pouca coisa me importava. não
me preocupava se tivesse que atirar em alguém. Atiraria agora, sem
vacilar. Achava que personificava o crime” (p. 313).
O distanciamento temporal, resultado do uso do pretérito mais-que-perfeito e do
imperfeito, parece, por um lado, suavizar a postura desumana (por exemplo, ele estava”,
não está mais), por outro, ao indicar como pensava àquela época, Mendes não tenta
maquiar o que foi no que se faz respeitar se se levam em conta as regras da cadeia.
Revela-se transformado, o que é inequivocamente bem visto de acordo com os valores dos
homens livres. Em um único momento parece atualizar seu ressentimento, precisamente
quando diz “Atiraria agora, sem vacilar”. Embora o advérbio remeta, no contexto, ao
38
Mendes é o único, entre os autores estudados neste trabalho, que assume o fascínio exercido pelo crime.
Jocenir e Rodrigues dizem-se inocentes, presos indevidamente. André assume certos delitos, mas não
aquele pelo qual foi preso. Mas em nenhum momento diz-se seduzido pela vida criminosa.
99
passado, é dúbio o suficiente para sugerir a atualidade do ódio, de resto, negada ao longo
da história.
Depois de ter se apresentado como criminoso, afirma:
“No fundo, paradoxalmente, eu não era nada disso. Continuava a ser o
menino assustado consigo mesmo, medroso e só, de sempre. Carente,
profundamente angustiado e agora tenso para conseguir manter a
imagem que queria que cultivassem de mim. (...) Queria fama também,
sair nos jornais, ter a polícia sempre em estado de alerta por minha
causa. (...) Ainda havia um ódio crescente em mim. Não sabia ao certo
como, mas todo malandro que fosse metido a bandidão ia se dar mal em
minhas mãos. Ia fazer meu nome de bandido em cima deles. E mataria
quantos fosse preciso para sustentar tal posição” (p. 314).
A apresentação de si, oferecida como paradoxal, reforça que, por um lado, a
imagem é a de alguém que se desprotege ao admitir as fraquezas, a solidão, a necessidade
de afeto e atenção. Por outro, diz ele, “continuava a ser a indicar uma característica,
também um elo com os valores do mundo dos homens livres, que não pode admitir como
completamente rompida, porque é preciso que a transformação pelos livros seja crível
(fazendo valer o domínio das estruturas narrativas). Em outras palavras: é preciso pôr em
evidência que havia, nele, a possibilidade àquela época ainda distante, ainda remota – de
reinserção. Nesse sentido, a escrita de Mendes parece armar narrativamente as
possibilidades de reinvenção de seu narrador-personagem, de modo a deixá-lo verossímil
na história.
Depois de preso, sob acusação de latrocínio, é submetido a várias sessões de tortura
no DEIC. Neste excerto, Mendes revela o alívio em saber que seria transferido para a casa
de Detenção, mesmo tendo a certeza de que passaria o resto da vida preso:
“Era terrível, mas eu estava contente com isso [ir para a Casa de
Detenção], por mais incrível que possa parecer. Queria era sair daquele
inferno [o DEIC]. Cadeia não me fazia medo. Agora eu pensava em
não sair mais. Ficaria preso pelo resto de minha vida. Faria da prisão
100
meu mundo. Que ninguém se atrevesse a atravessar meu caminho que
eu trucidaria. Nada mais importava. E eu tinha dezenove anos” (p.
395).
Atente-se, novamente, ao emprego dos tempos verbais. No primeiro período,
quando afirma que “era terrível”, faz uso do imperfeito do indicativo, mantendo-se nesse
mesmo tempo verbal em seguida: “eu estava contente com isso”. Comenta “por mais
incrível que possa parecer” ao lançar mão do presente do subjuntivo (“possa”), e não do
mesmo modo verbal no pretérito (“pudesse”), aponta que, diante da brutalidade, o espanto
permanece, não sofre transformação.
Adiante, afirma que “agora [ele] não pensava mais em sair”. Novamente, ele se
às voltas com o advérbio que torna presente a ação descrita, mas que pode ser apenas
um indicador de que “naquele instante” era assim que Mendes se percebia. As últimas
frases são construídas de modo a expressar eloqüentemente a barbaridade da nova
condição. Que ninguém se atrevesse a atravessar meu caminho repare-se que ele o
emprega “atreva”, o que atualizaria a perspectiva cruel (“que eu trucidaria”) que, no
entanto, não é mais a sua. Para silenciar o parágrafo e seu 20
o
capítulo, escreve: “E eu
tinha dezenove anos”. Esse comentário, uma reflexão a posteriori, sugere a percepção
dolorosa daquilo em que o jovem Mendes havia se transformado; aqui o lamento,
próprio de um olhar que revisita a trajetória.
O discernimento quanto à situação em que se encontrava vem pouco depois:
“Até que, em agosto de 1972, assinamos o último papel. Era o ciente da
decretação de nossa prisão.
Estávamos presos, ilegalmente, desde 18 de maio, passáramos três
meses de torturas intensas, agora tudo terminara. O sofrimento havia
sido o máximo, envelhecêramos: com exceção do Alemão, estávamos
todos com cicatrizes e marcas no corpo e na alma. Ficariam para
sempre. Algo fora destruído em nós. Pelo menos o que ainda nos
restava de humanidade, pureza e inocência. Agora éramos cobras
criadas. O ódio em nós era o mais virulento possível.
101
Estávamos cientes de que aqueles que nos barbarizaram o fizeram em
nome de uma sociedade. Uma sociedade que nos repelia, brutalizava,
segregava, e que quase nos destruía. E o pior: uma sociedade que
precisava dessas monstruosidades para se manter. A tortura era uma
instituição social” (p. 400).
Note-se aqui a estrutura repetida nos dois últimos parágrafos: “estávamos presos”;
“estávamos cientes”, que sugere gravidade e pesar. Olhe-se particularmente para esta
última construção: “estar ciente” é estar a par, ter conhecimento, tomar consciência (das
brutalidades feitas com ele e seus comparsas). Recupere-se: eles vinham de assinar um
documento declarando “estar cientes” de sua prisão, mas na verdade “estavam cientes” da
violência a que vinham sendo submetidos sob a tutela do Estado. Mendes usa o mesmo
termo “ciente” que havia empregado no primeiro parágrafo em seu sentido
substantivo (“o ciente”: a assinatura que se apõe a documentos). O substantivo ciente”,
comumente associado ao universo jurídico, é subvertido, sem que, com isso, se recuse sua
outra acepção, igualmente dicionarizada, em seu uso adjetivo. Mendes aponta o caráter
violento e falso uma vez que ele e seus companheiros estavam presos havia meses do
termo- substantivo, sob o qual a covardia estatal se amparava. Nesse sentido, ele não
precisa lançar mão de neologismos, porque, conhecedor da língua, é capaz de, em seu uso
culto, revolvê-la.
39
-se adiante que: “Exigiram que ficássemos nus. Um homem nu perde não sei
quanto em porcentagem de sua dignidade. É o todo mais usado nas prisões para
intimidar, desmoralizar o preso e quebrar sua resistência” (p. 424).
Antes de passar ao próximo item, deve-se examinar, ainda que brevemente, esse
trecho. A narrativa da ação é feita no pretérito perfeito (“exigiram”), ação acabada que é,
mas, quando comenta a relação entre nudez e dignidade, Mendes escolhe o presente do
indicativo, porque parece ainda acreditar nessa vinculação e a apresenta como, aos olhos de
seu narrador, ainda aviltante.
39
Uso semelhante é feito neste trecho, em que Mendes se mostra impregnado das regras da prisão: “eu
tinha na cabeça os valores da prisão, estava livre, mas preso por aqueles valores aprendidos no juizado e
reforçados na cadeia” (p. 346, grifos meus). Aqui, “preso” se opõe a “livre”, porque indicaria a condição de
Mendes (detido ou liberto), mas ele o emprega para referir-se a um estado ter incutido regras que
valeriam mesmo quando em liberdade.
102
IV.
Como disse no início deste capítulo, no livro de Luiz Alberto Mendes a
aderência ao etos da cadeia. Ponderei que ela não vinha só, mas se articulava a um olhar
lançado sobre o que Mendes tinha sido e o que passara a ser no momento da escrita do
livro. Comentei também que não há, em seu livro, uma disposição formal de elementos não
comumente associados ao livro como objeto. Nesse sentido, ao não ceder espaço aos
aspectos tomados de empréstimo à sociabilidade do cárcere, faz uso do livro na forma
usual entre os homens livres
40
.
Observe-se mais de perto a adesão de Mendes ao etos prisional:
“O Coroa, com sua inteligência, havia descoberto um meio de colocar a
erva para dentro da prisão. Viria no meio das coisas de uso pessoal e
comestíveis que as pessoas de fora colocavam em nome deles. Havia
descoberto um objeto em que era fácil colocar a droga e que passava
pela revista dos guardas sem despertar suspeitas” (pp. 405-406).
Ao não revela o objeto que serviria à entrada da droga no presídio, Mendes reitera o
compromisso com os companheiros e, nesse sentido, faz valer a regra que condena tratar de
assuntos internos à prisão fora de seus domínios.
Sua adesão não é inconteste quando diz respeito aos valores, e o exatamente ao
regrário, da prisão. Neste excerto, por exemplo, revela certa tibieza de caráter (se olhada
pela ótica prisional), quando, depois de matar um homem [Toninho Magrelo, que o
assediara] a sangue-frio, sente falta da mãe: “Foi difícil a solidão, cheguei a chorar várias
vezes e ainda querer minha mãe. Os anos haviam se passado, e eu ainda era um menino
querendo suae” (p. 420).
Como se vê, ao, momentaneamente, recusar a virilidade
41
que acompanharia o
assassino (aqui, vista sob a ótica da cadeia, que permite e louva esse nero de vingança),
percebe-se que o propriamente um julgamento moral, o remorsos pela ação, o
40
O que não impede que os homens livres, vistos como elementos de legitimação, também possam conferir
ao livro apropriado de maneira diversa o estatuto de livro.
41
A esse respeito, ver, de Márcio Seligmann-Silva, “Novos escritos dos cárceres: uma análise de caso. Luiz
Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente”.
103
que, sim, indicaria a adesão ao etos do mundo exterior. Mendes simplesmente sente-se só e,
ao fazê-lo, recusa o discurso que acompanha o etos do cárcere para revelá-lo insuficiente à
sua percepção e sensação.
Um episódio central nas Memórias é quando Mendes é mandado à cela-forte,
regime em que o prisioneiro fica sem ver a luz do dia, privado de qualquer contato com os
outros presos, bem como de quaisquer objetos, mesmo os mais indispensáveis como roupa,
colchão, cobertor. Na cela-forte, Mendes conhecerá Carlão. Sobre esse preso, o leitor
havia sido informado do seguinte:
“Havíamos chegado [à Penitenciária do Estado] em época. A leva
que viera [da casa de Detenção] antes de nós havia aprontado coisas
jamais vistas na Penitenciária. O Carlão e o Jamil, atiçados por alguns
presos mais velhos que dominavam a política da cadeia, haviam dado
uma rupa ali recente. Saíram, cada um com uma faca na mão, matando
e esfaqueando aqueles do pavilhão indicados como cagüetes e
informantes. Mataram três e feriram uma meia dúzia.
Jamais ocorrera algo assim na Penitenciária. Fora chocante para o
diretor, para os guardas e até para os presos” (p. 427).
Carlão é, portanto, na primeira menção que lhe é feita, descrito como personagem
que beira a psicopatia (até mesmo aos olhos brutalizados dos detentos). Uma vez na cela-
forte, Mendes é amparado por Carlão, que se lhe mostra extremante solidário. Nu,
passando frio, Mendes não conseguia dormir e temia enlouquecer. Carlão, condenado a
cinco anos naquele regime, conhecedor dos seus meandros, ajuda-o a comunicar-se pelo
encanamento e a obter ilegalmente objetos que minimizassem o seu sofrimento. No oitavo
dia, Mendes, completamente debilitado pelo frio (o castigo consistia em deixar o preso
nu os primeiros dez dias de cela-forte), consegue um colchão, mantas e roupas. Ao narrar
esse momento, comenta:
“Estava feliz: o frio já era! Carlão poderia dormir tranqüilo, pouco
dormira desde que eu chegara ali. Devo-lhe um favor de valor
inestimável, impagável. Muitas vezes me acalmou, me ouviu. Em todos
104
os momentos que o procurei, encontrei-o sempre disposto a me ouvir e
apaziguar. Pode ter matado vários (e matou mesmo), mas para mim foi
sempre um grande companheiro” (p. 434).
A última sentença é bastante iluminadora: “pode ter matado vários” (admite a
infração ao código dos homens livres), enfatiza esse reconhecimento com o que vem entre
parênteses – “e matou mesmo” –, até porque não pode ser acusado de encobrir o fato e ser,
por isso, tachado de faltar com a verdade, infração grave no código de conduta dos presos.
Em seguida, Mendes defende Carlão e, concomitantemente, a si mesmo: “mas para mim foi
sempre um grande companheiro”. Note-se que o uso da conjunção adversativa “mas”
reforça o conhecimento do código dos homens livres, indicando implicitamente que aquele
era um comportamento condenável, ao mesmo tempo em que sugere que, na prisão, a
realidade se impõe de modo a rever o julgamento passível de ser feito pelos homens livres.
Sua adesão ambivalente aos dois códigos aparece ainda em outro episódio
envolvendo Carlão:
“Quinta-feira era dia de fazer barba, cabelo e tomar banho. Os guardas
do Choque abriam as celas, passávamos pelo barbeiro, que raspava
nossa cabeça e cara, e entrávamos numa ducha. Numa dessas quintas,
que eram como dias de festa para nós, uma vez que saíamos da cela,
tomávamos um ar e nos amos, o Choque nos soltou, e fomos para a
ducha. Fiquei no último boxe, como era meu costume, o Carlão ficava
em frente. Preso é assim mesmo: cada um estabelece um canto e se
acostuma a fazer uso sempre desse mesmo local. Acaba por se sentir
proprietário de seus espaços preferidos, e é, de certo modo, respeitado
nisso. Cada um estabelece seu território.
Tomava banho quando vi Carlão apanhar uma faca colocada na parte de
baixo do boxe dele. fiquei em suspense. Enxagüei o corpo
rapidamente, enxuguei-me e fui saindo. Sabia quem ele iria pegar.
Não queria assistir. A gente nunca sabe o que pode acontecer em casos
assim. Não é bom ficar perto, no mínimo, podemos ser envolvidos
como testemunhas, e testemunha não é bem-vista na prisão” (pp.
438-439).
105
Mendes revela saber quem seria a vítima de Carlão (“Sabia quem ele iria pegar”),
mas, por uma adesão ao código do rcere, não o diz parecendo sinalizar que há coisas
que não devem “sair da cadeia”. Explica, em seguida, a sua pressa em se retirar do lugar
onde haveria a confusão provocada por Carlão, revelando ao leitor externo por que o
seria bom testemunhar aquela cena. Nesse ponto, mostra como havia introjetado a lógica
prisional, embora o a naturalize no momento em que escreve, que acredita precisar
justificar sua atitude ao leitor que não compartilha os mesmos códigos.
Repare-se, ainda, que o verbo conjugado na primeira pessoa do plural acentua sua
inclusão em um grupo (o dos detentos), assim como o pretérito imperfeito revela o caráter
rotineiro das ões narradas, ampliando a familiaridade com aquele universo. O
comentário, no entanto, é feito no presente do indicativo (“Preso é assim mesmo [...] cada
um estabelece seu território”), empregado para tratar do modo como os homens quando
presos se relacionam com aquele espaço, comentário possível apenas pelo seu
conhecimento do ambiente. O mesmo acontece nas linhas finais do segundo parágrafo,
quando ele recorre ao presente do indicativo para enunciar a norma de conduta a ser
seguida: “A gente nunca sabe o que pode acontecer...”; “Não é bom ficar perto...”,
“testemunha não é bem vista na prisão”.
Preocupação constante na literatura produzida a partir do cárcere é a descrição
espacial. Assim como o se conhecem as regras dos presos, a rotina de um presídio, não
se conhecem as celas e os outros espaços nos quais circulam e aos quais não podem
escapar. A escrita prisional é uma narrativa também confinada espacialmente. A declaração
de que cada um escolhesse um canto ressignifica os espaços.
V.
Luiz Alberto Mendes faz o elogio da ilustração quando narra o momento de sua
transformação pelos livros. Se se reconhece transformado pela experiência da leitura, sabe
que nem por isso deixa de trazer a dolorosa vivência do cárcere, resultado da falência dos
ditames esclarecidos. Assim, admite duas experiências aparentemente opostas e consegue
trazer essa dualidadeo resolvida para sua escrita.
106
Assim como Jocenir e André du Rap, Mendes reconhece que se dirige a um
interlocutor de fora: “Ali [na prisão] tudo era pagar. (...) A comida não era distribuída, era
paga. Pagar um sapo’ era fazer uma ameaça” (p. 414). Logo depois: “Estava ocorrendo
uma rupa (morte ou esfaqueamento de várias pessoas de uma vez ) no pavilhão 9” (p.
415). As rias da cadeia aparecem, no livro de Mendes, atreladas a um comentário, a
uma observação que deixe seu autor distanciado daquela linguagem, embora a conheça
profundamente.
Apenas nas páginas finais, Mendes irá tratar de sua aproximação com os livros, da
transformação que provocaram, dos interesses a partir dali despertos. Por nove meses
encerrado em uma cela-forte, descobriu, graças a Carlão, que a situação de
incomunicabilidade geral era usualmente driblada pelos companheiros com um sistema de
conversas pelo encanamento das privadas. Em uma dessa conversas, sempre à noite,
quando os guardas o poderiam surpreendê-los, fala a Henrique, que viria a ser o
responsável por revelar em Mendes o gosto pela leitura:
“Henrique tinha o rosto parecido com os dos antigos patrícios romanos.
Estava preso havia cinco anos e tinha muitos outros pela frente. Era
assaltante de bancos e estava com quatro latrocínios. Fora um dos
maiores assaltantes de São Paulo e era muito respeitado por isso. Era
uma pessoa boa, extremamente generosa e despojada. Meu maior e
melhor amigo de toda a minha vida. O cara parecia aqueles nobres
cavaleiros da Idade Média, estava sempre a tomar o partido dos mais
fracos e humildes. Estava na cela-forte porque tentava ajudar o
Claudinho, seu amigo de infância, a resolver uma questão que nada
tinha a ver consigo [ambos haviam tentado matar outro preso,
Jorginho].” (p. 438)
Nota-se, logo de início, o emprego de uma construção peculiar “estava com
quatro latrocínios para apontar que o amigo havia sido sentenciado por quatro desses
crimes. Mendes lança mão de jargão prisional e também faz menção ao etos próprio àquele
ambiente quando afirma que “era muito respeitado por isso” – em que “isso” se refere a ser
107
um dos maiores assaltantes de São Paulo. Essa é ainda a esfera de valores em jogo a do
verdadeiro bandido. Em seguida, desfia as qualidades de Henrique: bom, extremamente
generoso e despojado. Aqui, podem viger tanto os valores do mundo dos homens livres
como, a depender das circunstâncias, também os dos presos. “Tomar o partido dos mais
fracos e humildes” aparece também em chave positiva, se sob o ângulo dos homens livres,
e não necessariamente do da prisão. Ainda que a humildade seja uma qualidade bem-vista
pelos presos, Mendes não a exalta em seu livro, como fazem os outros escritores que
escrevem a partir do cárcere.
Em seguida, Mendes comenta a razão de Henrique estar na cela-forte: havia tentado
matar outro presoo que é (ou ao menos deveria ser) inadmissível segundo a conduta dos
homens livres, mas, na ótica dos presos, absolutamente pertinente, a depender das razões
alegadas pelo preso perseguidor (neste caso, não reveladas). Nesse trecho, alguns detalhes
são igualmente reveladores. Ao leitor, resta a informação de que Henrique “estava na cela-
forte porque tentava ajudar o Claudinho, seu amigo de infância, a resolver uma questão que
nada tinha a ver consigo”. A razão para a cela-forte era, portanto, ter ajudado (nesse
sentido, ele é solidário, o que é positivamente visto não importa sob qual ângulo) seu
amigo de infância Claudinho (os laços afetivos o amplamente valorizados, como
costumam ser também fora da prisão, inclusive sobrepondo-se muitas vezes às leis do
Estado) a resolver uma questão (aqui o nomeada; ele havia feito menção ao crime no
parágrafo anterior, antes de iniciar sua descrição afetiva de Henrique. Essa não nomeação é
em si reveladora da incorporação do etos prisional, em que há coisas sobre as quais se pode
falar, outras que não são mencionáveis e pertencem definitivamente ao ambiente da cadeia.
Essa questão, salienta Mendes, “nada tinha a ver consigo” daí seu desprendimento, sua
generosidade, configurados como valores positivos. Mas, se vista em chave invertida, ou
seja, quando se sabe que ajudar alguém significava matar outra pessoa, não há positivação
possível no mundo dos homens livres, e Mendes parece aderir ao etos prisional.
Ainda sobre Henrique:
“O novo amigo falava em livros, contava-me romances que lera, falava
em poesia, filosofia, um monte de coisas novas para mim. Foi a
108
primeira pessoa no mundo, fora minha mãe, em quem depositei minha
confiança total e irrestrita.
As histórias dos livros que contava eram extremamente fascinantes e
belas. Ensinou-me a valorizar livros, a querer conhecê-los todos. Agora
ansiava sair do castigo para começar a ler aquelas histórias de que ele
falava. Era poeta, e eu também quis ser poeta. Prometeu ensinar-me” (p.
438).
A descoberta dos livros ou ainda nesse momento o imenso desejo de lê-los
funciona, segundo conta, como motor para se manter são em situação de extrema violência
como a da cela-forte. O grau de amizade que atribui a sua relação com Henrique é tal que o
admite como, além da mãe o único em quem seria capaz de depositar sua confiança. Note-
se que a relação se estabelece no ambiente prisional quela época ainda mais violento e,
sobretudo, menos regulado pelos próprios presos do que nos dias de hoje), no qual cada
detento deveria estar sempre alerta para não ser surpreendido por um desafeto. Portanto, a
relação de confiança se em ambiente de constante desconfiança. Henrique, conta
Mendes, o ensina a valorizar livros e a querer conhecê-los o que talvez pudesse ser lido
como pertencente à racionalidade dos homens livres, que prezariam, ao menos em teoria, a
ilustração e a instrução como formas de escapar à destruição e à violência. A ambigüidade
se mostra quando se considera que ambos –Mendes e Henrique estavam submetidos ao
cruel e irracional castigo da cela-forte por terem matado (no caso de Mendes) ou tentado
matar (no que concerne ao seu amigo) outros presos, obedecendo à lógica do cárcere e
sendo, por isso mesmo, absolvidos pelos companheiros. Mendes estava agindo
corretamente (sob a ótica dos outros presos) ao matar Toninho Magrelo, que queria
estuprá-lo e fazer dele “mulher de cadeia”; assim como Henrique e Claudinho
provavelmente (sobretudo se levado em conta o prestígio de que gozava Henrique) veriam
sua ação ser aprovada se tivessem tido êxito na morte de Jorginho.
O livro, portanto, pode ser a salvação (e a declaração de atribuir a mesma confiança
à mãe o apelo à ordem e ao amigo que o insere no mundo dos livros o pode ser
desprezada), mas a dignidade dentro do ambiente não tem relação com esse objeto. Para
salvar-se, é preciso agir em conformidade com as condutas ali expressas. O livro, desta
109
maneira e nesse contexto, aparece como dispensável e pouco familiar, e apenas tangencia a
vida no cárcere.
Depois de nove meses de cela-forte, Mendes vai para o regime de observação (que
o obriga à permanência em uma cela, agora com janelas, sem direito a sair para o tio,
mas podendo conversar com outros presos). Faz, então, algumas considerações sobre a
experiência:
“A cela-forte era uma relação muito estreita com a morte. Muitos se
suicidaram ali. (...) momentos na vida de um preso em que ele não
acredita que exista nada além da prisão. Mesmo vendo a rua pela janela,
aquilo parece mais um quadro apenas. Rua é ficção, ilusão” (pp.
442-443).
Comentários como esse são formulados ao longo o livro eles apontam para o
desconhecimento do leitor quanto àquele ambiente, àquela experiência traumática, o que
contribui para afirmar que seu blico-alvo não contempla os detentos nem tampouco os
jovens que flertam com a marginalidade (desejo, no entanto, expresso em Memórias de um
sobrevivente e Diário de um detento). Daí a necessidade de reforçar o que o pode ser
compreendido. No caso específico de Mendes, esse traço ganha ainda maior relevo porque
sua relação com o mundo exterior, supostamente mais letrado, parece se pretender mais
efetiva. Almeja e tem o estatuto de escritor, conhecedor do cânone literário, como faz
questão de ressaltar ao nomear os muitos autores lidos na prisão, mas está indelevelmente
ligado à experiência prisional, o que o atrela parcialmente a códigos normalmente diversos
dos do mundo letrado.
Mais uma vez, percebe-se que o cerceamento espacial tem implicações sobre um
sistema de referências emocionais. Um espaço – que é sinônimo de um castigo – estabelece
vínculo com a morte. Mesmo a perspectiva da liberdade, dado o caráter coercivo do espaço
carcerário, é visto como falseador. Aqui, a “amplitude negativa da experiência
prisional, que conforma um jeito de (passar a) ver o mundo, revela-se agudamente.
O interesse pela leitura e pela escrita, esboçado nas conversas com Henrique na
cela-forte, ganha contorno mais visível ao sair de lá. A primeira missão de que se incumbe
110
é escrever, com o auxílio do novo amigo, uma carta à e, com quem o se encontrava
havia dois anos.
No dia seguinte ao de sua saída da cela-forte, Mendes recebe de Henrique “uma
pilha de livros, cadernos com poesias e textos dele, papéis, canetas, a carta-rascunho para
minha mãe e uma carta dele mesmo”. É quando toma contato com a materialidade da
escrita, o que acaba por determinar o seu desvio de percurso. Esforça-se para obter novos e
mais livros e, para isso, recorre ao auxílio de companheiros que não liam, mas que
poderiam solicitar volumes ao bibliotecário da prisão (ele ainda estava em castigo, no
regime de observação).
Mendes retoma os estudos, começa a trocar correspondência
42
a partir do contato
com um sujeito que dirigia o “Círculo dos Missivistas Amigos”, e lê. Aos poucos, revela, a
escrita e a leitura passam a ocupar enorme espaço em sua rotina:
“O crime, a malandragem, a idéia que perseguira desde a infância, de
ser bandido, malandro, foram se afastando do meu foco de visão. Agora
aquilo era muito pouco para mim, diante dos horizontes que divisava. A
cultura, o aprendizado, levavam-me a fazer uma releitura do mundo.
Havia um lado melhor, e eu queria pertencer a ele. Claro, a cultura do
crime que assimilara desde a adolescência ainda era, de certa forma,
dominante em mim, mesmo que então não conseguisse perceber. Estava
no meu sangue, nos meus ossos, demoraria a vida toda para conseguir
um certo equilíbrio com a cultura social” (p. 469).
No trecho, Mendes revela-se constitutivamente ambivalente: reconhece-se
transformado pela experiência da leitura e do conhecimento livresco, que tem em alta
conta, mas sabe que nem por isso deixa de trazer a dolorosa vivência que se liga à “cultura
do crime”. Assim, admite-se duas experiências aparentemente opostas e consegue trazer
essa dualidade para sua escrita por meio daquilo que caracterizei como olhar revisitado.
Salta aos olhos, ainda, o que vinha se esboçando no livro, e que aqui pode ser
delineado com maior nitidez: o uso dos tempos verbais para estabelecer o que era, no que
42
A troca de correspondência, como se afirmou aqui, é uma atividade a que muitos presos se dedicam e
constitui ponto importante de sociabilidade com o mundo exterior. Além disso, como foi visto nos
Capítulos 1 e 2, constituem um modo de aproximação com a escrita.
111
se transformava naquele momento, no que pensava enquanto se transformava e no que
pensa quando escreve suas memórias. Observe-se: as idéias de criminalidade esmaecem
naquele momento. Novamente, “agora se impõe como advérbio ambivalente (era-o na
época; pode sê-lo também no momento da escrita). Especialmente, aponta para o que o
sabia então, mas sabe quando escreve a “cultura do crime era dominante nele. Quando
afirma que “demoraria a vida toda para conseguir um certo equilíbrio com a cultura
social” (que aqui pode ser entendida como a do mundo dos homens livres), sugere que o
seu oposto – a cultura do crime, como diz – ainda faça parte de si.
Mendes o recusa sua condição de presidiário naquilo que há de mais radical, se
se estabelecer a perspectiva dos homens livres: ele afirma ainda carregar a cultura do crime
e nesse sentido sua redenção não estaria completa. Essa complexidade da imagem que
cria para si e que, no limite, o torna um personagem de si próprio é talvez o que melhor o
defina.
O epílogo de Memórias de um sobrevivente foi escrito em 2000, pouco antes da
publicação do livro. Havia ali, entre a redação do livro e a daquela palavra final, um
intervalo de quase 10 anos e, em relação aos eventos narrados, 20 anos. “Estou preso, como
sempre” – é a frase que abre a cena final de seu livro.
“Somo agora quarenta e sete anos de idade, cumprindo vinte e sete anos
de prisão. Consegui escapar duas vezes e fui recapturado em ambas,
poucos meses ou dias após as fugas. Nos últimos vinte e sete anos, não
consegui ficar nem cem dias solto, com fugas e tudo. (...)
Continuo condenado a um montão de anos de prisão, sem perspectivas
de quando vou sair, como sempre” (p. 470).
Chama atenção, nesse trecho, a recorrência da menção ao tempo de prisão e do
emprego da expressão “como sempre”. Essa construção contribui para o sentido de
gravidade desejado: a de um homem encarcerado a maior parte da sua vida. Conta então
que chegou a cursar um ano de direito na PUC de São Paulo
43
, que passou dois anos em
regime semi-aberto, que casou, que tem dois filhos. Mendes revela que perdera os pais
havia pouco e que a sua intenção era “escrever sempre e para sempre”. Curiosamente, a
43
Esse período é desdobrado em seu Às cegas, de 2005.
112
mesma expressão que usa de modo redentor (a escrita, sugere, é uma saída) é empregada
para indicar o tormento de se ver encerrado numa prisão por toda a vida.
Ele recupera suas intenções com a publicação das Memórias de um sobrevivente:
“A intenção do livro não foi a de ter uma mensagem. Não tenho essa
pretensão. Apenas escrevi para ter uma seqüência que permitisse que eu
mesmo entendesse o que havia acontecido realmente. Pois, afora
poucos momentos em que estive no comando de minha existência, a
maior parte da minha vida transcorreu em uma roda-viva, descontrolada
e descontínua. Eu queria ordenar momentos e acontecimentos, ações e
reações, para ver se entendia um pouco dessa balbúrdia que foi a minha
vida” (p. 476).
A explicitação de que não de sua parte uma tentativa de conferir a seu livro um
caráter exemplar também se mostra importante na sua narrativa. Ao contrário da maior
parte dos volumes escritos a partir da prisão, Memórias de um sobreviventeo traz
possíveis lições da trajetória de seu autor. Em suas próprias palavras: “Sou de opinião que
os fatos, a vida, falam por si mesmos e não carecem de explicações, e sim, tão-somente de
narração acurada. As conclusões e ilações, sem dúvida, são pessoais”.
Como mencionei, Mendes dirige-se a um público que seja capaz de inseri-lo de
vez, capaz de alçá-lo à categoria de escritor. Ele depende desse reconhecimento, como
deixa claro, ainda no epílogo, quando diz que “Para ele [o escritor Fernando Bonassi,
responsável pela publicação de seu livro], eu sou escritor. Eu ainda espero a publicação
deste livro para me considerar como tal” (p. 474). A sua trajetória absolutamente peculiar
deve ser, segundo seu desejo, entendida assim: é a partir dessa singularidade que ele se
transforma em escritor. Apresentando-se como leitor de Dostoiévski, Henry James e Hegel,
é como exceção que deseja ser visto. Por isso, provavelmente, seu livro não tenha
fotografias dos companheiros, não tenha glossário, não seja dedicado aos aliados, mas
tenha epígrafe de Sartre e Brecht.
Enquanto para André e Jocenir o livro precisa ser devidamente apropriado para dar
conta de suas histórias, para que seja de fato um meio de expressão, Mendes, que conta ter
passado vinte anos debruçado em livros, sugere não precisar disso para manejá-lo – trata-se
113
de um objeto que já lhe é próximo – e nesse sentido aproxima-se de um grupo ao qual quer
pertencer.
Persiste, como procurei mostrar, a adesão ambivalente, que ora age em
conformidade com o etos da prisão, ora com o mundo exterior (aquele que, da cadeia, lhe
parecia uma ficção). Como diz no epílogo: “Há também o fato de que, boa ou ruim, esta é a
minha história. Quer dizer: sou o que resulta daí
44
, leia-se: é, como anunciado, um
escritor, sim, mas que passou a vida na prisão, sendo torturado, surrado, humilhado pelas
forças do Estado e por outros presos, e que compartilhou os códigos do crime e do cárcere.
VI.
Ao longo do capítulo, procurei salientar que a palavra de Mendes se destaca das
demais em função de um olhar que, percorrendo a própria trajetória, se reinventa. Para
tanto, lança o de um trato elaborado do aspecto verbal. Ao fazê-lo, diferencia o que
reconhecia como justo (aos olhos do menino travesso, do adolescente que delinqüia, do
jovem bandido) daquilo que, no momento da escrita, considera ainda correto. Não , ao
contrário do que possa parecer à primeira vista, um julgamento moral. Mendes, por meio
de seu narrador, em sua tentativa de compreensão, lança olhar condolente mas não
benevolente às ações de tempos remotos.
Essa imagem criada de si sugere um personagem, que ao procurar mostra-se
revolvido pela experiência da escrita e da leitura é capaz de expressar sem tantos senões as
covardias, as fragilidades, tudo o que parece reconhecer como capaz de conferir
complexidade a um homem, mas também a um personagem que não seja plano. Nesse
sentido, mais do que os outros autores a partir do cárcere, consegue questionar a imagem
solidificada do bandido.
Se, por um lado, cria um olhar em retrospecto, preocupado em recuperar sua
mundividência de épocas passadas, por outro, Mendes, para tanto, faz isso a partir de uma
linguagem cultivada, portanto, revista. Observe-se este trecho:
44
Formulação muito próxima é feita também por André Du Rap: “Mas eu não tenho vergonha de ser ex-
presidiário, não. É a minha história. (...) é a história de cada um, ninguém se livra dela, ninguém tem outra
pra contar” (p. 106).
114
“A felicidade para nós eram armas, carros velozes, mulheres fáceis,
droga, bebidas e curtição. Significava liberdade para fazermos o que
aprendêramos no juizado e nas ruas, como o mais significativo para
uma vida. Sermos bandidos era a glória. O nosso poder parecia infinito
dentro do carro, com as armas. Tudo era nosso. Era descer e tomar.
Se tudo o que tinha significado estava nas mãos dos outros, nada mais
justo que fôssemos tomar nossa parte. Por que tudo para eles e nada
para nós? Cabia-nos buscar nossa parte da maneira como aprendêramos
a buscá-la. Todos eram iguais a nós. Estávamos justificados se
matássemos, roubássemos. Quem se interpusesse no caminho que
seguíamos em busca de nossos objetivos, merecia morrer. Nada mais
correto. Tudo o mais parecia irrelevante” (pp. 371-372).
Logo de início o leitor sabe qual o significado de felicidade para Mendes e seus
companheiros.Seus objetos de desejo eram, majoritariamente, ilícitos. Associa-os à
liberdade e a tudo que aprendera nos institutos voltadas para proteção dos menores
perceba-se a crítica, sutil, às instituições (eles aprendem nos juizados; o modo como
aprenderam é violento). Reconstruindo suas impressões de então, mostra como tentava
justificá-las de modo a considerá-las justas a seus fins, de resto, louváveis: a busca pela
felicidade.
Olhando o excerto com atenção mais detida, para além do assunto tratado, depara-
se com uma escrita castiça, em que se privilegiam os tempos e modos verbais literários
como o mais-que-perfeito (“aprendêramos”) e o pretérito imperfeito do subjuntivo
(“fôssemos”, “matássemos”, “interpusesse”). Vê-se, também, o infinito flexionado, a
omissão de sujeito já expresso anteriormente – todos usos próprios a quem domina a língua
vernácula. O uso culto da língua a serviço da narração de tempos em tudo distantes desse
mesmo uso acentua, na prosa de Mendes, a sua ambivalente posição.
O trabalho de composição de Mendes continua. Se se joga luz sobre as construções
sintáticas, por exemplo, vê-se que, nos momentos em que recupera mais expressamente
formulações de antanho, os períodos são curtos e inexistem subordinações (“Tudo era
nosso”; “Era descer e tomar”). Suas formulações escapam, nesse sentido, ao
estabelecimento das relações de sentido além daquelas imediatamente à mão na época e
115
que parecem convergir, inequivocamente, à violência e à pobreza (como se dissessem: eu
sou igual a eles – eu posso ter o que é deles; eu apanhei – eu bato).
A essas formulações (“Tudo era nosso. Era só descer e tomar”), segue-se outra, que
transforma o mote paratático. Agora, o narrador recupera a formulação de antes,
conferindo-lhe sentido a partir do uso da conjunção (“se”), que exigirá, para o
estabelecimento de sentido, o verbo no imperfeito do subjuntivo: Se tudo o que tinha
significado estava nasos dos outros, nada mais justo que fôssemos tomar nossa parte”.
Percebe-se nesse trecho, mas também ao longo do livro, uma concepção elaborada
do registro culto da língua, que servipara sem subterfugir à condição de presidiário e de
criminoso, mostrar Mendes como capaz de regeneração pela escrita e apto a ser
considerado um autor. As instâncias de legitimação da escrita, a começar pela editora,
reconhecem a capacidade particular que Mendes exibe de controle narrativo e lingüístico.
A oscilação do olhar, em Memórias de um sobrevivente, dá-se também em relação
aos códigos reconhecidos como internos à cadeia (e em seu livro também à vida
delinqüente) e externos a ela. A criação de um olhar distanciado, pelos anos e pela leitura,
das ações passadas se revela em modo especialmente intricado nesse livro de Mendes
porque, por mais que procure recuperar as inquietações de tempos outros, apenas a partir
do conhecimento que obteve no cárcere mas que não pertence ao cárcere é que foi capaz de
formalizá-lo dessa maneira. Se não transige com o que então reconhecia como modo de ser
e de escrever daqueles que queria atingir, sua redenção e possibilidade de reinserção
dependem de um uso da língua e de instâncias legitimadoras reconhecidas por e
pertencentes àquelas mesmas pessoas. Resulta d essa prosa encrespada de Luiz Alberto
Mendes.
116
Capítulo 4 (ou “Vivo em dois mundos simultaneamente”)
I.
Vidas do Carandiru, de Humberto Rodrigues, foi publicado em 2002 pela Geração
Editorial. Rodrigues, um publicitário de 67 anos, havia se apresentado ao blico que
acompanhava a produção emergente das cadeias quando teve seu conto “O futuro a Deus
pertence” publicado na coletânea Letras de liberdade
45
.
Seu livro em muito se aproxima dos outros aqui analisados. Estão as críticas ao
sistema penitenciário, a narrativa do cotidiano e a descrição do espaço prisional, a
valorização da experiência, a nomeação dos que lhe são ou foram caros e solidários, as
imagens do inferno para melhor definir a experiência numa instituição total, o
conhecimento da lei, a salvação pela escrita, a adesão ambivalente ao código de conduta do
cárcere assim como o formato híbrido, a criação de um leitor-em-texto (o “narratário” de
tempos idos) claramente externo àquele ambiente.
As singularidades do livro de Rodrigues, no entanto, não tardam a se fazer sentir:
além de escrito por um homem de quase 70 anos (“A maioria dos homens com minha idade
está pensando em aposentar-se. Eu pensava em como iria reiniciar”, diz ele logo no início),
Vidas do Carandiru é o único livro do conjunto aqui analisado que não reivindica a
experiência própria no título. O “diário” de Jocenir, as “memórias” de Luiz Alberto
Mendes, a foto de André du Rap na capa de seu livro assumindo o título de “sobrevivente
todos eles, a seu modo, apontavam para a própria história. Humberto Rodrigues não se
furta a fazê-lo, mas não desde o início: a sua história está lá, mas estão também as
narrativas das vidas de alguns companheiros de prisão.
Outro aspecto que o distingue dos demais escritores do rcere tratados neste
trabalho é a sua peculiar trajetória: formado em publicidade, segundo conta, havia
trabalhado em multinacionais, sempre ocupando cargos de chefia, recebendo altos salários
45
Trata-se de livro de autoria coletiva, fruto de concurso literário feito nos presídios paulistas. Traz, como
todos os outros, certas especificidades que mereceriam análise, como a opção por apresentar, para cada um
dos participantes, o número de seu prontuário (a fim de que, diz a nota do Editor, os leitores pudessem
escrever-lhes), uma fotografia sua e um pequeno perfil. Acompanha cada texto um posfácio de autoria de
alguém que venha do mundo dos “homens livres”, incluídos escritores como Ignácio de Loyola
Brandão, Fernando Bonassi, Ruy Castro –, jornalistas, figuras ligadas aos movimentos de defesa dos
presos, juristas e um cantor que já esteve preso, Lobão.
117
até que, por razão que o chega a revelar, abre mão dessa vida e passa a viver com
dificuldades. É nessas circunstâncias que é preso.
A formação, uma vez na cadeia, lhe garante certos “privilégios” institucionais
primeiramente, um trabalho na burocracia do presídio, depois, como professor – e entre os
presos
46
. Se Jocenir, André du Rap e Luiz Alberto Mendes preconizam nova posição entre
seus pares em função da escrita, Rodrigues também o fará: seu livro mobiliza, com
insistência, um certo conhecimento livresco que o diferenciaria dos companheiros.
reprodução de poemas, citações e epígrafes à exaustão em cada uma das muitas partes de
seu livro. Isso se determinante ao modo como constrói uma imagem de si em seu livro,
mas também nos arranjos formais que daí resultam, como tento mostrar adiante.
Dividido em várias seções (cada uma com outras tantas subseções), Vidas do
Carandiru obedece, grosso modo, à seguinte estruturação: uma parte inicial (composta pelo
prefácio assinado pelo jurista Ives Gandra Martins; pelos agradecimentos; e por
considerações iniciais, às quais acresce a reprodução do famoso poema If”, de Rudyard
Kipling); a parte mais propriamente narrativa (que compreende a sua história prisional; um
caderno de fotos com legendas que remetem a trechos do livro; e as histórias de 12
companheiros de Carandiru); uma parte final (em que constam considerações sobre o
sistema penitenciário, problemas e soluções; uma “mensagem” final; a publicação do
poema “Desejo”, de Victor Hugo); e uma espécie de anexo, em que se dedica a explicar o
que significam vários vocábulos “da cadeia” (“Glossário”) e muitas das tatuagens feitas
pelos presos (“Tatuagens”).
As reflexões que proponho estão centradas no seu “diário”, nas histórias de dois de
seus companheiros e no “anexo”.
II.
A parte que chamei de “propriamente narrativasupõe dois esforços de seu autor: a
narrativa da sua detenção e dos seus dias de prisão (“O futuro a Deus pertence”) e as 12
histórias de companheiros seus. Nesta parte, atenho-me à narrativa da sua própria história.
46
Um sinal disso é quando, tendo se submetido a uma seleção da Funap (Fundação de amparo ao preso)
para tornar-se monitor de 2
o
grau no presídio, teme não ser aprovado: “Resta agora aguardar o resultado da
seleção. Se eu for reprovado, vai ser um vexame, pois sou tido como intelectual. Afinal, em terra de
cego...” (p. 110).
118
Apesar de, na apresentação do livro, vir à frente da história de seus companheiros,
essa parte parece ter sido pensada como publicável depois da recolha das vidas alheias.
Rodrigues revela ter tido dúvidas quanto a narrar a sua própria vida, o que condiz com a
perspectiva de observador externo que assumi como meio para aliviar a sua condição de
detento. “O futuro a Deus pertence (minha história)” compõe-se de quatro momentos assim
enunciados: “Prisão súbita”, “A chegada ao Carandiru”, “Ironia e injustiça” e “Meu diário”,
quando a narrativa obedece, como sugere o título, a uma observação regular do dia-a-dia na
cadeia. Um momento importante é quando escreve seu registro cotidiano da prisão.
Na primeira entrada do diário, em 5 de julho de 2000, quando chega ao Carandiru
(transferido do Depatri), lê-se:
“Vamos para o pátio do Pavilhão II e somos encaminhados até a
rouparia (estou com a habitual roupa dos presos em DPs: de camiseta,
short e sandálias), para receber uma calça de brim bege, cujo uso, daqui
por diante, será obrigatório.
Em seguida somos levados, sempre em fila indiana, para a barbearia e
nossas cabeças são raspadas de forma tragicômica, e assim nos sentimos
mais presidiários ainda. Depois, tiramos a célebre fotografia de lado e
frontal. E após preenchermos as planilhas com as nossas impressões
digitais e algumas fichas burocráticas, ganhamos um número de
prontuário. O meu é 171.511” (p. 49, grifos meus).
Fazendo uso do presente do indicativo, Rodrigues aproxima sua narrativa do
registro diário. Revelar o ritual faz com que ele e seus novos companheiros se sintam “mais
presidiários ainda”, a partir de um corte de cabelo que ajuda a identificar os detentos. Além
disso, informa ao leitor as diferenças entre o vestuário do “preso de DP” e do presídio: se lá
imperavam o short, a camiseta e o chinelo, a mudança para o Carandiru se faz notar na
inconfundível “calça bege” (celebrizada no rap de Jocenir e Mano Brown, para quem o
Carandiru era “o país das calças bege”). , na narrativa de Rodrigues, espaço para a
ironia, quando fala em “célebre fotografia de lado e frontal” marca facilmente
reconhecível (mesmo por parte de um leitor externo à cadeia) dos procedimentos de
detenção. Como fará nos contos dedicados à história de seus companheiros, informa o
119
número do prontuário, de modo a revelar a assimilação de uma identidade que lhe é
conferida pelo sistema penitenciário. Ao tratar das roupas, do corte de cabelo e informar o
número do prontuário, Rodrigues marca o ritual de passagem, apresenta-se como um
presidiário. O número do prontuário é pouco revelador para quem está fora do sistema – ele
faz sentido dentro, não porque inexistente como registro do lado de fora, mas
porque determina a identificação de alguém em função do seu crime. Essa tensão, vista
na análise dos outros livros, entre operar a narrativa de modo a ora falar aos seus pares na
cadeia, ora àqueles que desconhecem por completo aquele ambiente está presente no diário
de Rodrigues, mas de forma bastante particular.
É preciso lembrar que a “forma-diário”, embora não rara em textos de teor
autobiográfico, repõe a questão de “para quem se escreve”. A publicação do diário,
justificada pelo autor como uma espécie de caderno de campo (em que ele seria o
pesquisador, observador do dia-a-dia da cadeia – segundo Rodrigues, a tarefa que se impôs
tornaria menos penosa a temporada no inferno), é elucidativa porque inscreve essas notas
em forma de diário numa espécie de etnografia da cadeia, o que, por um lado, o afastaria
daquele universo, por outro, supõe o seu conhecimento, a sua empatia, a tentativa de
compreender o pesquisado – e é aqui que reside talvez o elemento mais perverso, ainda que
óbvio, nesse olhar ambivalente: Rodrigues era tamm detento. Ele constrói suas
observações de modo a mostrar-se surpreendido com o que se lhe apresenta, como os
rituais iniciáticos de uso do uniforme, corte de cabelo, número de prontuário, mas é ele
quem passa por aquilo. Aludindo, implicitamente, ao conhecimento que os leitores de fora
podem ter da prisão (a célebre fotografia remete a notícias de jornais ou filmes policiais),
lançando mão de adjetivos que ironizam o relato, Rodrigues não escapa à própria condição:
um homem na terceira idade, com trajetória absolutamente distinta à da grande maioria da
população do Carandiru, mas que estava preso.
Na entrada de dois dias depois, de 7 de julho de 2000, nomeia os companheiros de
cela e revela o que cada um supostamente fez:
“Os companheiros são: Pedrinho (32), simpático e extrovertido, era
traficante e foi preso com sua companheira. Ela já saiu e ele ainda tem
uma caminhada pela frente de mais dois anos. O outro é o Fábio, um
120
‘pipoca’ (preso novato) de 23 anos. Coitado, é totalmente analfabeto.
Foi preso porque estava com o irmão quando este foi roubar um carro.
Trabalha na cozinha como lavador de pratos. Finalmente, o Mohamed
(38), um libanês introvertido e revoltado com a prisão, jura que é
inocente. (...) Como sempre a solidariedade prevaleceu e me
emprestaram lençol, fronha e travesseiro” (p. 51, grifos meus).
A cada mudança de cela ou de setor de trabalho, Rodrigues procederá da mesma
forma que aqui: nomeará os companheiros de “xadrez”, informando sua idade (entre
parênteses) e seu delito, e tecendo comentários sobre cada um
47
. Também exaltará, como
aqui, a enunciada solidariedade entre os presos não circunstancial mas constante (“como
sempre”). Nesse trecho, apesar de o deixar de se postar como observador privilegiado
daquela circunstância, elogia os valores dos detentos e os nomeia, dando-lhes
singularidade, conferindo-lhes identidade que, embora referida ainda aos crimes, aos
delitos, ultrapassa a dos prontuários. Esse posto de pesquisador reaparece aqui – e ao longo
de todo o livro, culminando no “Glossário” na necessidade de explicação das gírias da
cadeia. Elas vêm sempre entre aspas e são seguidas de parênteses explicativos:
“‘pipoca (preso novato)”. Aqui, não dúvida de que seu leitor esperado é o do mundo
além-das-grades.
A necessidade de tradução das gírias, como do cotidiano, da conduta e dos valores,
perpassa o diário:
47
A estrutura se repete: “No setor onde estou trabalhando tenho quatro companheiros: o Paulo Alberto
(40), encarregado do setor, simpático e inteligente (meio nervoso). Dizem que, na rua, era um grande
falsificador. O Garrincha, preso ‘piolho’ (veterano), beirando os 50 anos, bonachão, está aqui pela segunda
vez, e o Otavinho (22). Para ele, eu daria liberdade na hora. É um bom menino, que vai ser pai em breve.
Finalmente, o Paulo Elias (40), que é uma figura carismática, vaselina e simpático. Pena que é viciado em
crack” (pp. 51-52, 8/7/2000).
“Mudei para o X 200. Agora, os meus companheiros são: o Paulo Alberto (a quem fico devendo este
favor), o João (32), um rapaz simples (parece o Tintin, aquele das histórias em quadrinhos), ex-
caminhoneiro, que se envolveu em tráfico de drogas, e um negro nigeriano (35), que tem um nome muito
complicado e o apelido de Naná, traficante internacional, que está sempre sorrindo” (p. 56, 8/8/2000).
“Tenho três companheiros, o Valter (56), condenado a 8,8 anos por homicídio: num momento de ciúmes,
matou a esposa e já está amargando a prisão há 6,7 anos. Ninguém imagina como ele (uma pessoa simples)
foi capaz dessa atitude. Tem o Jaime (37), um pequeno equatoriano, simplório, que foi preso por tráfico de
drogas, está aqui há 1,4 ano, aguardando sentença, e finalmente o Crescêncio (44), que está condenado a 14
anos e pagou 11. Condenado por três tentativas de homicídio e diversas agressões. Agora está mais
calmo, é um homem humilde e simples, introspectivo, que se tornou um religioso evangélico bastante
dedicado à sua igreja. Fica na sua e não perturba ninguém.” (p. 99, 23/3/2001).
“Novo companheiro no ‘barraco’. A exemplo do Marcelo, que se foi, também é italiano. Seu nome é
Marco (47), preso por tráfico internacional” (p. 116, 21/5/2001).
121
“’Bonde’ é um termo que usamos para designar a transferência de
presídio, que normalmente é solicitada pelo preso. Esse tipo de
transferência é solicitada por quase todos os presos do Carandiru, que é
considerado um depósito de presos. (...) ‘Bonde louco’ é bem
diferente: acontece quando somos transferidos sem aviso prévio.
Acordamos de manhã, o Agente de Segurança aparece na porta do
‘barraco’ e avisa que temos de descer e nos encaminhar para o
transporte, que nos levará para destino ignorado. É uma espécie de
castigo, que pode acontecer a qualquer um. (...) Vamos só com a roupa
do corpo: a calça, camiseta e um calçado. Não tempo nem podemos
pegar os nossos pertences, quando muito conseguimos levar a escova de
dentes. (...) Fico temeroso e pensando que se isso acontecer comigo e eu
não puder pegar os originais de meu livro, vou ficar muito louco, como
o bonde. Ainda bem que mais da metade dos originais está com meu
irmão e meu sobrinho.” (pp. 114-115, 11/5/2001)
Nesse trecho, percebe-se que, mesmo quando usa a primeira pessoa do plural,
Rodrigues põe-se como observador distanciado. Ele imprime um tom próximo ao didático
no intuito de relatar situações em que se usam as palavras e expressões mencionadas. As
observações mais propriamente pessoais dizem respeito ao livro, àquela altura bastante
adiantado, justamente o que o diferencia dos demais presos.
Rodrigues dedica boa parte do diário a esse relato em formato de anotações do
dia-a-dia da cadeia, de suas normas de funcionamento. Explica como funciona o horário de
visitas (regras da instituição), como se deve proceder quando elas estão no presídio (regras
dos próprios detentos, mas absolutamente necessárias ao bom funcionamento institucional),
a economia local, com tabelas de conversão em que uma moeda equivale a um maço de
cigarros de determinada marca. Como revela neste trecho, quando diz o que fará com os R$
100 que recebeu do irmão: “São os próprios presos que lavam nossas roupas. Cada três
peças custam uma moeda, que é representada por um maço de cigarros Hollywood.
Também vou poder pagar a faxina do ‘barraco’, que custa dez mos mensais para cada
122
companheiro que mora na mesma cela”
48
. Note-se aqui que opõe “presos” a “nós”, como a
sinalizar que trata de presos específicos, aqueles que fazem trabalhos “domésticos”, o que
não era o seu caso. O trecho é significativo para perceber as hierarquias existentes na prisão
e a necessidade de construir seu lugar a partir da moeda.
Rodrigues revela também aquilo que não é tolerado pelos presos: “O pior é que ele
[Paulo Elias] es devendo para os traficantes. Esse proceder aqui na cadeia acaba em
morte” (p. 53); “Dizem que o infeliz [preso morto por outros detentos] havia desrespeitado
a esposa de um companheiro no dia de visitas. O desrespeito à visita quase sempre é
fatal” (p. 85). Mantém-se, nessas escolhas, fiel a sua proposta de descrever a prisão. Isso
aparece até mesmo quando as regras esbarram na sua própria conduta:
“Como estou sem nada para comer, os 60 reais que arrumei vão servir
para comprar alguma coisa (miojo, cigarros, mandar lavar algumas
roupas e pagar a faxina do ‘barraco’). Estou devendo R$ 20,00 a um
companheiro, que pretendo pagar ainda hoje. Ficar devendo aqui na
cadeira não é muito recomendável” (p. 72, 12/12/2000)
49
.
A quantia a que alude foi obtida com a venda dos seus exemplares de Letras de
liberdade e que, revela, lhe permitirá maior dignidade na cadeia (de acordo com todos os
códigos, mas também com os códigos da cadeia afinal, esse dinheiro servi para saldar
uma vida, nada recomendável em ambientes como aquele). Nesse trecho, Rodrigues, ao
mesmo tempo em que insiste nas aspas, como a sinalizar que reconhece a todo tempo a
impropriedade do uso de certas palavras, mostra-se refém de um modus operandi próprio à
cadeia: não quer correr o risco de dever naquele ambiente.
Percebe-se do mesmo modo a introjeção do etos prisional quando conta que brigou
com o sujeito que substituiu Paulo Elias na cela, mas não revela o porquê. Aqui, como foi
visto em trechos de Diário de um detento, Sobrevivente André du Rap e Memórias de um
sobrevivente, impera uma adesão inconteste ao “proceder” da cadeia.
48
p. 59, 11/9/2000.
49
Note-se que a estrutura se repete: narra uma dada situação e, em função dela, vai revelando aos poucos o
modo de se comportar na cadeia.
123
Faz parte do diário – ou do seu caderno de campo – o outro lado do “proceder”, já
aqui mencionado: a amizade possível entre os detentos (“Quando tenho oportunidade de
sair do meu setor de trabalho um pouco mais cedo, passo no X-602, aquele que tem 40
ladrões. Deixei bons companheiros e vou bater um papinho com eles”, p. 108), como
quando, na última entrada do diário de mais de ano de Carandiru, chega o seu alva de
soltura. Além de nomear aqueles que, de fora, o ajudaram, menciona a reação dos
companheiros à boa nova:
“A notícia logo se espalhou pelo pavilhão, como um rastilho de
pólvora. Em dois minutos, o salão térreo estava cheio de companheiros
e alunos. Fui aclamado, abraçado e jogado para o ar, com uma alegria
que demonstrava que o sofrimento é capaz de criar amizades fortes e
duráveis, que transcendem o coração. Foi um momento apoteótico. (...)
Quando cheguei ao enorme e pesado portão principal, vi com emoção o
funcionário manuseá-lo e ouvi o seu barulho que na entrada foi tétrico e
agora é uma música celestial. (...)” (pp. 142-143, 18/10/2001).
A construção da imagem da notícia da sua libertação correndo rápido como um
“rastilho de pólvora” é especialmente bonita, sobretudo quando se leva em consideração o
abuso de chavões de que Rodrigues costuma se valer
50
inclusive nesse trecho, quando fala
em “transcendem o coração”. Para além disso, o excerto elogia os laços fraternos em
ambiente hostil como aquele.
Uma parte considerável de seu diário é dedicada à escrita: a decisão de participar do
concurso literário que haveria no presídio, a publicação do conto afinal selecionado, o
desejo de escrever um livro. Quando trata da escrita, deixa entrever algumas de suas
concepções acerca da literatura, do livro e do ofício do escritor:
50
Hélio Schwartsman, em resenha elogiosa a Vidas do Carandiru, faz ressalvas nesse sentido: “O texto é
um pouco repetitivo e com alguma freqüência resvala na pieguice, o que provavelmente é um problema
comum a todo o gênero literatura de prisão. O autor também abusa das epígrafes, espalhando-as por todos
os cantos do livro. São pequenos defeitos que não chegam a comprometer o conjunto, cuja força, insisto,
reside na vivacidade das histórias” (“Vidas do carandiru: instantâneos expõem o sistema prisional
brasileiro”, Folha de S. Paulo, 21/12/2002).
124
“Depois de alguns dias pensando e meditando sobre o assunto, resolvi
encarar o desafio de escrever um livro. A crônica que escrevi para o
concurso literário, apenas sete páginas de sulfite datilografadas, estou
transformando em uma história, na qual procuro, nos mínimos detalhes,
transportar o leitor para a experiência mais dramática de minha vida.
Posteriormente, pretendo escrever algumas histórias de meus
companheiros e finalmente complementar com esse diário, tudo
autêntico, mostrando o dia-a-dia de um grande presídio, seus dramas,
alegrias e tristezas. (...) Pretendo também inserir algumas fotos e
ilustrações elaboradas pelos próprios presos. Aqui temos alguns que
têm esse dom. O Leno é um deles e se prontificou a colaborar. (...)
Sei que as palavras formam os fios com os quais tecemos nossas
experiências e, pelo que vislumbro, elas não serão poucas. Acredito que
consiga um livro de pelo menos 200 páginas. Afinal, parece que minha
caminhada será um pouco longa. Não posso deixar-me consumir pela
revolta, amargura e desespero. O objetivo de escrever este livro de
me ajudar bastante. O desafio é apreciar as coisas boas da vida, em vez
de ficar reclamando. (...) Enquanto não conhecemos o inferno, não
paraíso que sirva” (p. 56, 15/8/2000).
Rodrigues intenta, com a escrita, “transportar o leitor para a experiência mais
dramática de [sua] vida”. Para isso, antevê a necessidade de narrar sua história “nos
mínimos detalhes”. Sua narrativa, à qual acrescentaria fotos e ilustrações, quer-se
“autêntica”. O que se percebia nos livros até agora analisados é dito textualmente aqui: a
escrita do rcere pretende-se verdadeira, porque falsear a experiência é romper com os
valores tomados para si no cárcere, é desmerecer o sofrimento (seu e dos outros), é ignorar
os mortos. A necessidade de um relato fiel está presente, em menor ou maior grau, nesses
livros. É preciso inspirar a compaixão do leitor, daí ter de transportá-lo à experiência
dramática de sua vida o encarceramento. Mais uma vez, depara-se com o espectro da
incredibilidade e a necessidade de mobilizar recursos vários para se fazer crível: as fotos
(documentos) e as ilustrações feitas pelos próprios presos que ele não chega a incluir de
fato em seu volume. Junte-se a isso o informe do seu número de prontuário, a reprodução
de excertos de seu alvará de soltura, o conhecimento das gírias locais (“Glossário”) e das
125
tatuagens características (“Tatuagens”), e se percebe o mosaico de referências que ancora a
narrativa do cárcere. Quando mobiliza aspectos oficiais (prontuário, alvará de soltura etc.),
ao mesmo tempo em que aceita a identidade de detento que lhe é designada pelo Estado (a
fim de “comprovar sua passagem pelo sistema penitenciário), utiliza-se dela para relatar
os desmandos daquele ambiente (ou seja: vale-se da regra do algoz para lhe apontar o dedo
e mostrar os excessos e abusos cometidos naquele lugar). Quando escolhe reproduzir fotos
daquele ambiente e desenhos feitos por seus moradores, parece insistir na certificação de
sua passagem por agora, acionando os meios extra-oficiais dos detentos
(paradoxalmente, como mostram estudiosos de prisão, as regras dos presos são
fundamentais à manutenção da ordem e, nesse sentido, interessam ao sistema
penitenciário). Os mínimos detalhes a que alude Rodrigues confeririam a exatidão almejada
pelo escritor. Essa “estética do rcere é configurada de algum modo no trecho acima.
Além disso, chama atenção a imagem que tem da construção de um livro. Para Rodrigues,
ele deve ser extenso, deve dar espaço aos companheiros, deve trazer fotos. Ao afirmar essa
idéia de seu livro, lança mão de vocabulário mais atrelado ao registro culto (“vislumbro”),
no que termina por se distinguir de seus pares.
Para além de alguns procedimentos conformadores dessa escrita, aparece aqui o
que também aproxima Rodrigues do time de escritores egressos do cárcere já tratados neste
trabalho a percepção de que a escrita poderia “salvá-lo da assim chamada “experiência
mais dramática de [sua] vida”. Isso aparece na própria idéia do diário, depois reproduzido
no livro, como também na redação do conto para o concurso e, uma vez decidido que faria
um livro, na transformação das histórias dos companheiros em contos
51
. A relação com a
escrita passa a ocupar a maior parte das entradas de seu diário. Ele faz comentários sobre o
concurso, sobre o livro que dele resultou (reunião com editor, número de exemplares,
lançamento, resenhas elogiosas ao seu conto etc.) e, principalmente, sobre o processo de
pesquisa e criação:
51
“Já terminei a terceira história e estou sempre animado para escrever a seguinte. (...) Refiz a história
‘Seus dois amores’ mais de três vezes. Tive que fazer a história baseada apenas no processo que meu
companheiro forneceu. Ele disse ‘se vira e não põe o meu nome; alguns detalhes eu forneço depois’. Como
tenho os sábados e domingos com folga, passo esses dias escrevendo. não estou me sentindo um preso,
mas um pesquisador escrevendo um livro. Não fosse o desconforto do ‘barraco’ atual, tudo estaria bem” (p.
70).
126
“No pátio fico analisando meus companheiros e indagando a mim
mesmo como será o meu primeiro personagem. Para tanto, procurei
conhecer outros pavilhões. É difícil, pois precisamos de autorização
para visitá-los. Conheci os pavilhões VIII e IX. A diferença que existe
entre eles e o II, onde estou alojado, é a mesma que existe entre a
Avenida Paulista e a Praça da Sé. Os Pavilhões VIII e IX têm uma
população bem maior e mais heterogênea. Nas suas galerias
encontramos gêneros alimentícios, refrigerantes, sabão, pentes,
isqueiros. As galerias são pequenas feiras, sempre se encontrando
muitas coisas para comprar. Tudo custa o dobro do preço da rua e não
tem nada que necessite de geladeira. Aqui no presídio não entram
eletrodomésticos, mas, com gorjetas, consegue-se quase tudo. O
aparelho de TV entra legalmente, mas é uma burocracia danada, e aqui
dentro não podemos negociá-la em hipótese alguma” (p. 58, 10/9/2000).
Nesse trecho, Rodrigues parte da observação de seus companheiros, prestes a se
transformarem em personagens da sua história, para chegar à do espaço e da economia
doméstica do presídio. Porta-se novamente como pesquisador, valoriza a necessidade da
experiência ele precisa conhecer os outros pavilhões para tratar deles, para ter contato
com outros e mais detentos que lhe sirvam de personagens –, estabelece comparações com
o mundo externo (quando menciona a Avenida Paulista e a Praça da Sé), numa clara
eleição de leitor preferencial, para então mencionar aspectos demográficos e econômicos
do presídio. Trata-se de um espaço que não se dá a conhecer para quem é de fora. A função
de Rodrigues, neste sentido, passa a ser também a de o apresentar aos leitores. É preciso
que eles compreendam, para melhor alcançar a vida no cárcere, como são os pavilhões,
como são seus moradores, como é a vida(o que se compra, o que não se vende, o que é
permitido e o que é interdito, o que é cumprido, o que é burlado). Como é uma vida
fechada mas comum (não é um claustro individual), própria a uma instituição total, que
disciplina seus habitantes, explorar o espaço e o cotidiano é fundamental para falar da sua
vida e da dos seus personagens.
Repare-se ainda no modo como constrói seu depoimento no diário: o “para tanto”
que inicia seu segundo período retoma, ao estabelecer nexos consecutivos, aspectos do
127
discurso de pesquisador, apontando, em seu relatório, as impossibilidades de acesso a todas
as fontes desejadas. A escolha vocabular é igualmente digna de nota: ao optar por “alojar”
para se referir ao pavilhão onde está preso, Rodrigues nuança a própria condição. Para ele,
não apenas a escrita é uma saída para o estatuto de presidiário, mas também o é o modo
como em boa parte de seu texto constrói sua imagem a de um pesquisador, a de alguém
que se mantém, portanto, a uma distância mínima daquele universo
52
. Ele também é, pois,
um personagem de sua história.
Aos poucos, o livro assume uma centralidade tal no seu dia-a-dia que tudo aquilo
por que passa é elaborado para ser narrado. Neste excerto, de 21 de dezembro de 2000
dia do seu aniversário, esclarece –, ele conta que vai depor no fórum da Barra Funda.
Rodrigues, como André du Rap, Jocenir e Mendes, também se queixa das condições de
transporte e do modo como são tratados os presos (“Parece que somos os piores bandidos
do mundo. Será... talvez... quem sabe? Se continuarmos a ser tratados dessa forma, é
provável”, p. 75), mas o foco está mesmo no livro: “De tempo em tempo, eu perguntava as
horas para o guarda, que acabou brincando comigo, perguntando se eu ia viajar, mas era
apenas para fazer esse relato” (p. 75); “O meu depoimento foi exatamente o resumo da
história que escrevi (‘Ironia ou injustiça’), tudo na ponta da língua, pois já a tinha escrito e
reescrito” (p. 76).
As suas ações passam a ser intermediadas pela perspectiva de torná-las matéria
escrita dseu alívio quando, em fins de fevereiro de 2001, depois de mega-rebelião nos
presídios paulistas, descobre que seus originais escaparam à destruição. É como se, com
isso, preservasse a sua história e a nova identidade (apartada da que sofreu a rebelião).
52
“Aos sábados e domingos, como não tenho visitas, passo o fim de semana lendo ou escrevendo. Minha
grande frustração é não ter a história de um companheiro para escrever. Fico perdido no tempo e no espaço,
como hoje, primeiro domingo de um novo ano. Como alternativa, fico pensando em escrever sobre o dia-a-
dia do presídio, mas isso é rotineiro demais. Minha meta é a espontaneidade das histórias dos meus
companheiros e evitar coisas abstratas e subjetivas. No entanto, será que possuo capacidade literária para
levar a bom termo esse objetivo? Essa é uma pergunta que constantemente está em meu pensamento.
Enfim, escrever este livro foi a melhor alternativa que eu poderia ter encontrado para enfrentar tudo do que
estou participando. É um escapismo da solidão, da burocracia, da rotina, da disciplina e do imprevisto. Por
tudo isso, invadiu-me uma necessidade tal pelo trabalho a que me propus, que dele passei a precisar como
se fosse uma droga. Um fator que compensa o tempo que passarei aqui. Espero que esse tempo todo não
seja inútil. Tempo perdido. Acho que tal coisa não existe. (...) Sei que tudo que estou passando servirá para
o futuro. Será? Quem sabe? Sei que vale a pena sonhar e sonho. Vivo em dois mundos simultaneamente,
me habituei a não permitir que este ambiente se torne parte de minha vida emocional, ele não é importante.
Talvez agora, por estar escrevendo este livro, eu tenha algum interesse. Quando escrevo, não me sinto um
preso, apenas um pesquisador que está escrevendo uma obra” (p. 79, grifos meus).
128
III.
Em Letras de liberdade, o livro que resultou do concurso de que Rodrigues
participou, os contos e crônicas que o compõem são sempre precedidos por foto do autor,
ilustração feita por outro detento, e uma espécie de ficha cadastral em que constam nome;
informação sobre cor da pele e dos olhos; eventuais sinais particulares; estado civil; data de
nascimento; naturalidade; grau de instrução; profissão; apelido (ou “vulgo”, como aparece
no livro); unidade prisional em que cumpre a pena; data de entrada; número do prontuário;
indiciação e condenação. Rodrigues, em Vidas do Carandiru, quando vai contar as
histórias dos seus companheiros de prisão, informa os mesmos dados (ou parte deles) antes
de iniciar a narrativa propriamente.
Isso tem maior relevância se se leva em conta que, quando o faz, recorre à
formatação oficial proposta pelo livro de que é co-autor (Letras de liberdade), mas que
partiu de iniciativa do sistema penitenciário pelo qual se sente injustiçado e que fará
questão de denunciar ao final de seu livro. Rodrigues, nesse sentido, mobiliza o que
reconhece como próprio à narrativa prisional: se em Letras os contos dizem respeito à vida
marginal ou à vida na prisão – Rodrigues pretende fazer o mesmo, só que não a respeito da
própria história (já o fez), mas das dos companheiros –, parece-lhe natural explorar os
recursos que estão à mão. Assim, sempre que dispõe destes dados, Rodrigues fornece
nome, apelido, cor de pele e de olhos, prontuário, condenação de seus personagens. Essa
escolha é em si reveladora do formato que o livro assume: seu autor não hesita em se
apropriar do formato “oficial quando precisa contar a história de outros prisioneiros,
embora, ao contrário do que poderia supor o arrolamento de dados burocráticos, não
dispense a seus amigos um olhar acusatório, mas, antes, compassivo. Se ao longo do livro
Humberto Rodrigues denuncia o sistema penitenciário, é a ele que recorrerá (ou àquilo que
ele oferece) quando desejoso de escrever sobre as trajetórias alheias. Nesse sentido, assume
o posto de pesquisador e de observador privilegiado (quando aceita o olhar oficial sobre os
detentos), mas também se assume em sua condição circunstancial de detento quando
procura explicar as razões que levaram um ou outro ao crime, sugerindo, generosamente,
que, não apenas no que lhe diz respeito, a situação de delinqüência pode ser explicada por
vários fatores. O olhar compassivo alcança a todos.
129
De modo geral, as narrativas contadas em “As histórias de meus companheiros”
dizem respeito à vida, antes de sua chegada ao Carandiru, de cada um dos doze homens que
escolhe como personagens. Em alguns casos, sobretudo quando o personagem em questão
é reincidente, a história pode tratar também do período de encarceramento. Mas
necessariamente as narrativas versam sobre o que causou a detenção
53
. Além disso e da
“ficha cadastral”, trazem uma epígrafe (no início) e uma citação (no final). Quando
aparecem, os dados burocráticos, aos moldes de uma ficha criminal, vêm acompanhados de
um comentário seu. Quando não dados criminais e cadastrais, é apresentado um texto
(em itálico, de modo a se diferenciar da história de fato) em que faz comentários mais
extensos sobre o companheiro cuja história irá contar, divulga a forma como se
conheceram, se eram próximos etc.
Aqui, vou me ater a duas histórias uma delas, a bem da verdade, é um poema
escrito pelo preso que seria personagem de uma narrativa de Rodrigues, mas que, ao final,
preferiu ele mesmo escrevê-la. A primeira narrativa é sobre um preso chamado Rubens
Lima da Silva; e o poema é de autoria de Antônio Donizetti.
III.1.
Leva o título “Uma alma nobre a narrativa que Rodrigues dedica a Rubens Lima
da Silva. A história vem precedida de uma epígrafe, que faz as vezes de um ensinamento
moral de auto-ajuda (“Devemos medir o serviço não pelas cousas feitas, mas pelas
dificuldades vencidas”). Ao revelar o número do prontuário de Rubens, o narrador faz um
comentário a respeito do tempo de prisão do personagem (“depois que ele chegou,
passaram por aqui mais de 90.000 presos”, p. 197) e conta que o “Rubinho era um preso
sem faltas, infrações: Como ladrão foi exemplar, como preso também tem um
procedimento exemplar” (p. 197). A frase ilustra o que venho tentando mostrar desde o
Capítulo 1 deste trabalho. Quando escreve “como ladrão foi exemplar”, quer dizer que
obedecia aos códigos da malandragem
54
e foi incapaz de burlá-los, ainda que o fizesse se
for tomada por parâmetro a lei do Estado. Quando preso, o que o faz exemplar é não ter
53
Nesse sentido, essas narrativas lembram muito algumas das histórias contadas pelo médico Drauzio
Varella em seu best-seller Estação Carandiru, espécie de livro inaugural dessa safra de narrativas do
cárcere.
54
Emprego “códigos da malandragem” aqui para designar um conjunto de princípios a ser seguido pelos
chamados “marginais” e que pauta a convivência daqueles que “estão no crime”.
130
faltas, não cometer infrações – mas agora não se trata da lei da malandragem, mas da lei do
Estado, afinal, é a partir da ficha de prontuário (a que Rodrigues tem acesso por ter
trabalhado no setor) que chega a essa conclusão. As esferas se confundem se se pensar que,
neste caso, as faltas, mesmo se para a direção do presídio, estão ligadas, obviamente, ao
cumprimento das leis estatutárias, mas também a acertos de conta entre os próprios presos,
portanto, à lei dos presos. O fato de ser um preso cujo procedimento é visto como exemplar
desvela o emaranhado existente entre a esfera oficial, da direção do presídio, e a não
oficial, dos presos – uma dependendo da outra para seu bom funcionamento.
O caráter exemplar aqui é ambíguo, porque Rubinho é cumpridor da lei dos presos
e da lei dos que os mantêm presos leis que, teoricamente, o coincidem. Percebe-se,
uma vez mais, como as formas de sociabilidade, os modos como se entrelaçam as esferas
oficial e não-oficial, contribuem para a narrativa a partir do cárcere.
A narrativa se constrói de modo a evidenciar que o caminho delinqüente não é sem
dúvidas, sem idas e vindas ou percalços de toda ordem. Nesse sentido, Rodrigues lança um
olhar compassivo sobre aquele universo
55
. Conta o narrador que, quando Rubinho havia
decidido que “nunca mais faria um assalto”, foi preso: “Mais uma vez se via jogado em
uma cela escura e infecta, miserável. Justamente agora que tinha resolvido parar
definitivamente com o crime (p. 201). Rodrigues explora, aqui como em outras histórias,
uma certa sina perversa que paira sobre esses homens. A idéia de que, a despeito de
qualquer intenção de mudar de vida, a vida criminosa era inescapável ou, melhor
dizendo, uma vez nela, difícil esquivar-se dela.
Apenas no fim da história o narrador revela que Rubinho era um sobrevivente ao
Massacre de 1992:
“De suas lembranças, poderia contar muitas histórias, sem dúvida, mas
a mais trágica o mundo inteiro ficou sabendo: foi o massacre que
55
“Como qualquer obra que leve o título ‘Vidas...’, o texto de Rodrigues se inscreve na tradição inaugurada
por Plutarco no primeiro século da Era Cristã. Mais do que relatar as histórias de seus companheiros presos
– os acontecimentos que os conduziram à cadeia –, o autor pretende apreender-lhes as vidas, revelar algo de
suas existências morais.
O termo ‘existência moral’ pode parecer paradoxal aqui, afinal, os biografados não são exatamente varões
de Plutarco. Ao contrário, a maioria cometeu crimes bastante graves, que podem incluir homicídio. É
curiosa a cumplicidade que se estabelece entre Rodrigues e seus companheiros” (Hélio Schwartsman,
Vidas do carandiru: instantâneos expõem o sistema prisional brasileiro”, Folha de S. Paulo, 21/12/2002).
131
aconteceu em 2 de outubro de 1992, aqui no Carandiru. Afirma que são
imagens que jamais esquecerá, com a morte de centenas de seus
companheiros e rios de sangue escorrendo pelas escadas das galerias,
com presos e funcionários correndo para todas as direções, tropeçando
nos cadáveres espalhados por toda parte. Lembra com pavor e tristeza
da tropa de choque avançando com tiros e rajadas de metralhadoras.
Nada interrompia o avanço de soldados com seus capacetes e escudos,
fortemente armados, cães policiais latindo e atacando os presos
indefesos. Era um delírio total. Dos que conseguiam correr, poucos
escaparam dos golpes de baionetas e dos tiros desferidos por policiais.
O pesadelo era mais real do que nunca.
Recorda também que lavaram de sangue o Carandiru para apresentarem
uma lista dos 111 mortos. Quem viu e sentiu essa crueldade, que
repercutiu pelo mundo inteiro, sabe que foi muito mais. Ele viu os
cadáveres empilhados e até hoje não acreditou no que presenciou. (...)
Essa é uma chaga da história prisional brasileira, que entre outras não se
apagará por muito tempo.
Nessa altura, o Rubinho pára, pensa e diz: ‘Sabe, chega, não quero me
lembrar de mais nada.” (p. 202).
Na leitura do relato o escapam as semelhanças com as lembranças de And du
Rap lá expandidas e repisadas, aqui resumidas e organizadas por um narrador que lhe é
solidário mas não sofreu o massacre
56
. Está aqui a imagem, realmente dantesca, dos rios de
sangue, como a dos cadáveres espalhados e empilhados; está aqui reiterada a
impossibilidade de esquecimento aliada à impossibilidade de crença no que houve; estão
novamente os cães latindo e atacando, e a tropa de choque atirando a esmo; está novamente
posto em vida o número oficial dos mortos negado pelos que, de fato, viveram a
56
A exemplo do que ocorre em “Pavilhão 9”, incluído no livro homônimo de Hosmany Ramos, em que a
história narrada é a de Milton Marques Viana, sobrevivente ao Massacre de 1992. Trata-se de uma
narrativa de 50 páginas que conta a experiência de Viana na prisão, em particular, a do 2 de outubro de
1992. Hosmany conta que escreveu a história a pedido de Viana, que conheceu na Penitenciária de Avaré.
Na construção dessa narrativa e destoando do restante do livro –, Hosmany, cujo narrador assume a
primeira pessoa do singular, formata seu texto aos padrões que tem sido aqui analisado: fotografias (do
autor com Viana e, ao final, um pequeno caderno de fotos com imagens terríveis do massacre), número de
prontuário de Viana, citação, nomes dos companheiros, reprodução da lista oficial dos 111 mortos, assim
como a denúncia dos descalabros do sistema penitenciário e a necessidade de não deixar o episódio cair no
esquecimento, e a percepção de que escapar da morte traz-lhe uma enorme responsabilidade (“missão”).
132
situação. A voz do narrador parece se impor à do sobrevivente quando nomeia o episódio
de “chaga” da história prisional, em denúncia dos desmandos do sistema penitenciário.
Quero me ater a dois comentários mais. “O pesadelo era mais real do que nuncaé
construção singular porque sugere que os pesadelos sejam em certa medida reais. Quando
formula dessa maneira, Rodrigues, talvez dando voz a Rubens, talvez conferindo à história
do amigo a sua impressão do cárcere, sugere que a vida na cadeia seja sempre um pesadelo
e que a invasão que resultou no Massacre seria um pesadelo ainda pior o real aqui serve
de medida de intensidade: um pesadelo mais real é o mesmo que uma situação ainda pior.
Rodrigues escreve: “Era um delírio total”. aqui um uso ambíguo do termo
“delírio”, uma vez que se presta a dupla interpretação, que, no entanto, não exclui uma a
outra: que os policiais fortemente armados e acompanhados de seus es lançavam-se ao
ataque tomados de excitação, arrebatamento, como que agiam de modo absolutamente
insensato, desatinado.
Esse uso dobrado do termo, no entanto, não é o mesmo a que Rodrigues recorre
quando se serve do discurso oficial. A gravidade do relato não o permitiria – parece mais a
irrupção do pesquisador que tenta postar-se no lugar do observado, aqui, o policial, mesmo
que sem lhe dar razão.
O olhar compassivo que não lança ao policial ele dedica ao seu protagonista, a cuja
história o título “uma alma nobre”. Depois de narradas as muitas contravenções de
Rubens, Rodrigues escreve:
“Agora, a surpresa! Os leitores devem estar imaginando que o Rubinho
é um bandido com todas as suas características, mal-encarado e
truculento.
Ledo engano.
Ele tem feições delicadas, 1,65m de altura, pesa 65 quilos, é meio
barrigudinho, educado e prestativo. Bem caracterizado, passa por Papai
Noel. É benquisto por todos os seus companheiros e já cumpriu mais de
dez anos de prisão.
É professor nas lições da vida. Embora não tenha feito nenhuma
faculdade, é diplomado. Durante sua carreira criminosa, levou seis
133
facadas, quatro tiros (que acertaram) e fugiu de delegacias de polícia
cinco vezes.
Seus companheiros, que foram mais de 25 durante a sua vida no crime,
estão todos mortos.
Ele afirma que tinha uma doença incurável, mas garante que através do
Evangelho hoje está curado.
Atualmente é coordenador geral das sete capelas católicas do presídio, e
sua maior preocupação é a evangelização de seus companheiros. Se tem
festa aqui no Pavilhão II, onde está alojado, está o Rubinho
providenciando as bandeirolas e fazendo o bolo, às vezes com dois
metros de comprimento. Se for preciso uma pintura nas galerias, é
sempre Rubinho quem cuida. Quando meus óculos se quebraram, foi o
Rubinho quem, por intermédio da Pastoral, arrumou um novo par. Para
ajudar na manutenção da família, ele faz diariamente doces de leite,
pudins de pão e salgados na capela do Pavilhão II, que vende para todos
nós. Vende até fiado. Não bebe e não fuma. (...)” (p. 203).
A descrição que faz de Rubens tem em vista desfazer a possível ou provável
imagem que o leitor tem ou teria dele. Sugere o que pode ter sido dado a imaginar ao leitor
depois de todas as peripécias narradas: “Os leitores devem estar imaginando que o Rubinho
é um bandido com todas as suas características, mal-encarado e truculento”. Ao estereótipo
do bandido (“bandido com todas as suas características”), ele apresenta um homem de
feições delicadas, baixo, “barrigudinho” (note-se o diminutivo afetivo) em oposição ao
“mal-encarado” do bandido ideal e educado e prestativo, em oposição ao “truculento”.
Para separar as duas imagens de Rubinho, um parágrafo de uma única e curta frase, em que
mobiliza expressão popularizada (“Ledo engano”).
Insiste na caracterização bondosa do personagem, apesar de seu passado no crime,
das fugas, facadas e tiros, quando o compara à figura de Papai Noel. No rol das boas
qualidades de Rubinho estaria ter cumprido mais de dez anos de prisão. Há um pressuposto
nessa última idéia: se o antigo bandido já cumpriu dez anos, está pagando sua “dívida com
a sociedade” e mereceria um voto de confiança (essa seria a percepção do mundo exterior).
134
Mas, sobretudo, se passou dez anos preso, não conquistou inimizades e ainda é comparável
a Papai Noel, dignifica-se aos olhos dos presos e do sistema penitenciário.
Aos poucos, revela a conversão de Rubinho à igreja, o trabalho junto à pastoral,
lançando o vez por outra de lugares-comuns como “professor nas lições da vida”,
sempre de modo a construir para um leitor externo uma imagem positiva de seu
personagem. Ao temível delinqüente da imaginação do leitor, o regenerado no cárcere (mas
não pelo cárcere, o que é em tudo diferente), a alma nobre de Rubinho.
III.2.
“Hoje estou aqui” começa com um comentário sobre a formação da maioria dos
detentos para destacar uma exceção Antonio Donizetti, com quem Rodrigues trabalhou
no Núcleo de Educação do Carandiru. Conta Rodrigues que, apesar das suas insistências,
ele nunca quis lhe contar a sua história e sempre adiava sua narração. Até que Antonio
apareceu com uns papéis e lhe disse: “Eu não posso contar a minha história, mas tenho esta
poesia, que escrevi nos momentos de solidão e meditação. Se você achar interessante, fica
no lugar da minha história”. Rodrigues afirma que, depois desse dia, ele sumiu, sem deixar
rastro. Comenta: “Nunca vi uma poesia retratar tão bem o seu autor. E resolvi incluir a
poesia de um preso neste livro. Aqui dentro também se faz poesia” (p. 251). Em seguida,
reproduz o poema
57
.
O poema de Donizetti apresenta estrutura mais narrativa do que lírica. Ao longo do
poema, impõem-se um verso que funciona como refrão principal (“Hoje eu estou aqui...”) e
uma expressão-gíria que funciona como refrão de apoio (“Cada um, cada um”) –,
conferindo ao poema uma certa estrutura rítmica musical. Percebe-se a intenção de rimar
alguns versos entre si e internamente (constante-instante; vi-aqui; lamentos-
arrependimentos; é-mulher; correram-sobreviveram; forte-filhotes; lá-lugar-tamanduá;
Bradock-Robocop; [sei] lá- [deixa pra] lá; acreditar-lugar; lá-dar-gostar; for-dispor), mas
não há constância nem regularidade na sua execução.
58
57
Ver Anexo.
58
A métrica irregular de seus versos e a inconstância de rima afastariam o poema de Donizetti de uma letra
de rap, apesar da existência de um refrão (“Hoje estou aqui”) e de o tema (comentários sobre um
determinado espaço e situação; uma certa misoginia) pertencer aos topói possíveis do rap.
135
Provavelmente, é Rodrigues quem acrescenta ao poema de Donizetti algumas notas
de rodapé que se prestam ao esclarecimento dos termos “onça” e “tamanduá”, reconhecidos
aqui como rias do ambiente prisional (tanto que têm espaço garantido no “Glossário”).
Vale a nota de que, nos seus próprios textos, Rodrigues lança mão das aspas e parênteses
para sinalizar uma ria e sua explicação. Aqui, como é texto alheio, usa o recurso
notadamente acadêmico das notas de rodapé.
Assim como “selva” é o termo escolhido para se referir ao mundo exterior (“a selva
fora”), as imagens de animais glosam o mote dado logo no início (“Preso como se fosse
um bicho”) e funcionam na determinação de alguns comportamentos próprios à cadeia:
cobras, piolhos, percevejos, onças, tamanduás, camaleões, leões etc., e variantes verbais
como “crocodilar” (“crocodilagem”) e “engolir sapos”. Quando o sujeito lírico se diz um
“animal frio e calculista”, assume-se bestializado, mas adere ao termo a adjetivação
inteligente, que pareceria colocá-lo no posto de “bandido como deve ser”.
A animalização pode ser também recuperada afetivamente seus filhos são
“filhotes”, e as namoradas, “gatinhas”. Aqui, o “como se fosse” um bicho é assumido, mas
deturpado positivamente. Mais uma vez, parece aceitar o estigma (prisioneiro = bicho),
mas manejá-lo como convém.
O poema recorre a certos modos verbais mais sofisticados, como o presente do
subjuntivo (“Talvez seja”), mas também a fórmulas desgastadas para garantir coesão pela
repetição e ênfase ao que vinha sendo dito: “vida esta”, “objetivo este”, “estruturas essas”,
“justiça esta”, ou “os mesmos” (como sujeito da oração). Trata-se de linguagem própria ao
direito, o que sugere certa incorporação vista neste trabalho de estruturas formais
próprias às instâncias jurídicas, aqui, empregadas para colocá-las em xeque. Ao mesmo
tempo, podem estar sendo usadas porque vistas como sinalizadoras de prestígio.
A estrutura mais narrativa que lírica aparece também em formulações que procuram
estabelecer enfaticamente a coesão naquela história: “é como eu já disse anteriormente”.
Os ditos populares (“Firme e forte”; “suando a camisa”; “liberdade não se ganha, se
conquista”) e as referências a Deus (“graças a Deus”, “com fé em Deus”), costumeiramente
presentes nas narrativas do cárcere, adquirem espaço no poema de Donizetti.
O sujeito lírico remete, ainda, a personagens de filmes de ação (Indiana Jones,
Bradock e Robocop) para deles se distanciar (“dentro do meu peito não existe aço”) e
136
reivindicar o estatuto de um animal “normal” como outro qualquer. O “animal frio e
calculista” passa a ser um animal ordinário: não há mais nada que possa distingui-lo dentro
da cadeia.
A oposição criada entre “aqui” e “lá” circunscreve o espaço textual de onde fala e
cuja referencialidade evidente é a prisão. A “aqui” associam-se o inferno, “este lugar” ou
“onde cobra engole cobra” inexiste a nomeação do lugar, o que é sua descrição
espacial e comportamental. É preciso que outro, no único momento em que lança mão de
outro recurso narrativo, o travessão para indicar o discurso direto, nome ao aqui e o
circunscreva a “cadeia de segurança máxima”.
Tampouco o “lá, ou “lá fora”, é digno de nomeação: ele é a selva onde estão os seus
“filhotes”, mas é também onde está a “liberdade”. São, portanto, os iticos, marcadores
permeáveis, que marcam a oposição entre mundo interior à prisão e o mundo externo a ela.
A esperança de “um dia estar lá” e o “lá” tornar-se “aqui” é a tônica do poema e, me
parece, de onde vem sua especificidade. “Aqui” e “lá” se determinam pelo contexto de
enunciação e, precisamente por isso, apontam para seu caráter contingente. Por meio do
jogo entre “aqui” e “lá”, reitera a expectativa de sair do “aqui” inominável e chegar ao “lá”.
O sujeito lírico reconhece, ainda, algumas condutas da cadeia e formula algumas
considerações desesperançadas sobre o cárcere. Ao construí-las, em mais um valimento de
características mais propriamente narrativas, Donizetti emprega conjunções com vistas ao
estabelecimento de sentido das ações narradas. Predomina o “mas”, que expressa, na maior
parte das vezes, ora resignação, ora esperança em relação à idéia à qual se opõe. Nesse ir-e-
vir de expectativas, elabora o que se quer um “retrato” da vida na prisão.
A escolha de Rodrigues por publicar o poema de um companheiro inscreve-se na
lógica própria a boa parte da produção literária feita a partir do cárcere: dar espaço para a
expressão alheia. Assim, fortalece a sua própria vontade de construir um retrato fiel à
prisão, necessariamente um mosaico de vozes.
IV.
Antes de dar início ao seu glossário, Rodrigues escreve: “Quando se é preso, um
dos fatores que nos causam espécie é o vocabulário utilizado nas cadeias, com termos
muito característicos. É fácil perceber que algumas gírias são incorporadas à nossa cultura.
137
Significados que conseguem traduzir de forma única o sentido das questões sociais. São
muitas. Aqui estão as mais conhecidas.” (p. 271, grifos meus)
Atente-se ao modo como Rodrigues se apresenta: inicialmente, é um preso não
acostumado às rias da cadeia, é alguém que, apesar de detido, não pertence àquele
universo (que, o raro, está associado ao universo periférico). Assim, é aos presos
estranhos àquela linguagem que as gírias causam espécie. Duas linhas abaixo, Rodrigues
fala em “nossa cultura”, qual seja, a dos homens de fora da prisão. Nos dois casos, ele se
posta como o observador distanciado, o pesquisador que, pouco reconhecendo o mundo
que visita, precisa lançar o das aspas para sinalizar que identifica aquele termo como
estranho à linguagem que lhe seria própria. Investigando o cárcere, é capaz de compreender
o sentido daquelas gírias e indicá-lo nos parênteses que acompanham todos os termos não
claramente constituintes da linguagem culta de onde parte o pesquisador.
O glossário que constrói reúne de tudo um pouco: vocábulos dicionarizados,
outros que não pertencem a um dialeto peculiar à prisão, mas, sim, ao falar da periferia
paulistana (atestado nas letras de rap com que boa parte dessa literatura tanto flerta). O
projeto de Rodrigues de construir um A-Z de termos usados na cadeia deve ser entendido
como uma tentativa de, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor dos códigos
lingüísticos da prisão, reiterar seu pertencimento ao mundo letrado, capaz de distinguir a
prisão do além-grades. Ao fazê-lo, parece, mais uma vez, querer ser visto antes como o
pesquisador do que como o delinqüente, sobre quem paira o estigma de presidiário.
Algo parecido acontece quando Rodrigues se dedica à exposição das tatuagens que
os presos carregam no corpo. A esse respeito, escreve, antes de passar à decifração dos
sinais: “Há uma coisa que os presos, em sua maioria, adoram. É o uso das tatuagens.
Normalmente, elas são feitas na cadeia de forma rudimentar. (...) São consideradas como
códigos secretos. São feitas na palma da o, ao lado do polegar e normalmente não são
reveladas” (p. 291).
138
de início, Rodrigues aparta-se do grupo quanto ao apreço pelas tatuagens (os
presos adoram, mas isso não o inclui). Ao distanciamento mais evidente, acresce outro,
mais sutil, perceptível não mais por uma questão de gosto (os presos adoram; ele não), mas
por uma recusa em partilhar os digos secretos que as marcas no corpo comportariam:
“são consideradas” é, em tudo, diferente de “consideramos” sobretudo porque,
139
recorrendo à voz passiva, incorre em elipse (quem as considera afinal?), que se desvela
pelo contexto (os que adoram as tatuagens consideram-nas como digos secretos). A
forma como constrói seu afastamento do universo observado (e vivenciado) reitera a
ambigüidade ostentada ao longo do livro. Rodrigues é capaz de dissertar sobre os códigos
secretos, mas não é um seu usuário. Esse movimento de recusa à identidade prisional
assume o paroxismo nessa seção, quando Rodrigues afirma que as tatuagens são vistas
como códigos secretos, normalmente não revelados, ao mesmo tempo em que se põe a
destrinçar seus sentidos aos quais teve acesso em função de uma identidade que
partilhou com aqueles homens – a de presidiário
59
. Ele só pode postar-se como conhecedor
privilegiado do cárcere porque esteve como encarcerado, e não, ao contrário do que
assumidamente constrói, como visitante. É na qualidade de interno àquele mundo que tem
acesso às suas regras e aos seus valores.
Os limites para a sua identificação com tudo aquilo que o cerca ficam claros quando
suspende os laços fraternos em nome do projeto do livroque já vinha tomando a cena no
próprio livro. Para dar conta da experiência na prisão, repleta de leis e códigos de conduta
tão rígidos quanto específicos àquele ambiente, precisa recusá-la, mesmo se
momentaneamente. Ao fazer conhecer o significado dos sinais, verdadeiros estigmas
corporais, revela o que não poderia ser divulgado nesse sentido, descumpre os princípios
do cárcere. É capaz de fazê-lo de modo a impor distância ainda maior quando, depois do
trecho acima citado, constrói uma pequena mas muito significativa digressão: “A prática da
tatuagem é muito antiga: foi difundida no mundo por navegadores que (...) dominavam os
mares e o seu uso; desde então, era visto como tabu, pois identificava marinheiros (que
eram tidos como arruaceiros e malfeitores)” (p. 291). O modo como mobiliza um certo
conhecimento livresco, ao qual volta e meia recorre, contribui para afastá-lo daquele
universo. Ainda que pouco rigoroso nas informações que alardeia, Rodrigues se vale delas
59
A esse respeito, escreve Seligmann-Silva: “De resto, é importante lembrar a questão das tatuagens que
desempenham um papel central na cultura carcerária. Os policiais lêem, por exemplo, as tatuagens de
André du Rap como sinal de que ele ématador de polícia’ (DU RAP, 2002, p. 109). Assim como Kafka
descreve a máquina da colônia penal como uma executora que mata ao escrever o código infringido no
corpo do infrator (nas suas costas), do mesmo modo Negrini narra que nas prisões as leis violadas são
muitas vezes inscritas sobre o corpo do detento. A tatuagem viola, por sua vez, a lei mosaica que proíbe a
inscrição sobre a pele. No universo onde a lei impera do modo mais radical a contravenção está em toda
parte. De resto, nas tatuagens vemos marcas escritas sobre a pele que fazem parte da tentativa do
prisioneiro reconstruir seu ser despedaçado pela violência.” (Márcio Seligmann-Silva, “Violência,
encarceramento, (in)justiça: memórias de histórias reais das prisões paulistas”, p. 10).
140
para acentuar seu não pertencimento à prisão, onde a forma de conhecimento por
excelência é a experiência
60
.
A opção, no entanto, ao contrário do que poderia parecer, termina por aproximá-lo
do conjunto de autores cuja matéria narrativa vem da experiência carcerária.
V.
Ao longo de seu Vidas do Carandiru, Humberto Rodrigues põe em prática um
desejo anunciado: distanciar-se da condição de preso a partir da assunção da identidade de
pesquisador. Procura, nesse sentido, escapar da dolorosa percepção de que sua história, tão
distante da da maioria dos presos, tivesse sofrido inflexão tão significativa. De publicitário
bem-sucedido passara a, já em idade avançada, detento do Carandiru.
A escrita, que o afastaria do universo prisional, passa a ser a prioridade no seu dia-
a-dia, guiando suas ações e preocupações. Transformar o vivido em texto alcança, em seu
livro, dimensão ética bastante expressiva. Postando-se como observador privilegiado do
cárcere, em função de suas habilidades adquiridas na vida pregressa ao aprisionamento,
Rodrigues parece querer afastar-se de vez da imagem de presidiário e livrar-se do estigma
que a acompanha.
Por outro lado, o autor, mesmo na condição reivindicada de pesquisador (em um
“como se” próprio à ficção), amolda o seu texto, o seu fazer narrativo, ao formato que
venho tentando esboçar neste trabalho. A história de Rodrigues antes de chegar à prisão
não é suficiente para fazer com que escape à nomeação dos companheiros, à denúncia do
sistema penitenciário, à adoção dos códigos de conduta e dos valores ali dominantes, como
nos outros livros aqui analisados, ainda que cada um deles, a partir de suas especificidades,
o faça em graus próprios e, por isso mesmo, variados. Rodrigues tampouco soube, na
tentativa de livrar-se da identidade prisional, escapulir das fotografias (que não
aparecem, no corpus visto nesta tese, em Memórias de um sobrevivente), dos
agradecimentos, do espaço concedido aos companheiros de aflição e mesmo dos lugares-
60
A valorização da experiência como fonte de conhecimento aparece em vários momentos do diário de
Rodrigues: “Quando recebemos um ‘jumbo’, ficamos como crianças, nossos olhos brilham de alegria.
não sabe disso quem nunca passou por essa experiência” (p. 57, 21/8/2000). “Para escapar da insônia,
chego a fazer uma retrospectiva de tudo o que passei, que ninguém sabe, porque ninguém passou por
mim” (p. 139, 17/10/2001).
141
comuns (que, em Vidas do Carandiru, ao contrário do que ocorre em Diário de um detento,
são constantes e muitas vezes, justamente por isso, não dão novos sentidos ao texto).
Claro está que Rodrigues tem razoável domínio das formas consolidadas e
respeitadas, lançando mão, em boa parte do texto, de modos verbais e escolhas lexicais
mais sofisticados e de uso mais raro naquele meio. Assim como seus enunciados são
muitas vezes construídos em estruturas sintáticas de certo apuro. Não se pode ignorar que o
excesso de citações (muitas delas, a bem da verdade, parecem extraídas de livros do
nero) revela pertencimento a ambientes mais letrados do que a média. Todos esses
artifícios parecem estar a serviço da reivindicação não de um espaço de autoria (ser
autor é, para ele como para os outros três escritores estudados, a possibilidade de escapar),
mas de uma autoria que o singularize em definitivo, a partir do domínio do que
compreende como próprio das estruturas de prestígio. Assim, tornar-se autor é a chance de
recomeçar aos 67 anos mas é também a de apresentar-se como alguém que por acaso
está naquele ambiente, mas que não pertence a ele, no sentido de que não é esperado que
alguém com as suas qualificações ali esteja. A singularização viria, portanto, por meio não
apenas da transformação em autor, mas da transformação em autor extremamente
diferenciado, em outras palavras, da restituição de sua condição de homem de outra esfera.
Isso posto, a persona de pesquisador vem a calhar porque, uma vez assumida, não
falseia a proclamada realidade, que, com ela, Rodrigues não esconde a situação de preso
e condenado. O fato de precisar dela para manter-se o inspira a compaixão do leitor,
tocado pela avançada idade do autor-narrador. A distância, derivada dessa escolha, que ora
assume para com seus companheiros, condói (quando parece ser a única válvula de escape
para um homem aprisionado) também porque reveladora da necessidade de fugir ao
estigma
61
que acompanha os presos.
Nesse sentido, a escrita passa a funcionar de modo semelhante ao que identificou
Erving Goffman em seu Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada:
“O indivíduo estigmatizado pode, também [entre outras], tentar corrigir a sua condição de
maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de certas áreas de
61
O termo “estigma” é aqui empregado em conformidade com o seminal estudo homônimo de Erving
Goffman: “(...) usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso na
realidade é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode
confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso, nem desonroso” (p.
12).
142
atividade consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a
pessoas com o seu defeito” (p. 19). O domínio da escrita sugeriria o desejado não
pertencimento de Rodrigues ao ambiente prisional, uma chance de esquivar-se da condição
prisional. D o recurso das notas de rodapé, das citações e das epígrafes (demonstrando
familiaridade com a cultura letrada e pretensa erudição).
No entanto, quando mobiliza fotografias e dados documentais, como a se proteger
da fantasmal descrença que acompanha a literatura feita a partir da prisão, reporta-se
novamente à identidade que mais facilmente identifica-se com a prisional. É, afinal, assim
que estão construídas as narrativas de Letras de liberdade, livro que fez parte de uma
iniciativa oficial do sistema penitenciário e do qual Rodrigues participou. Essa mesma
adesão se faz perceber quando Rodrigues valoriza a experiência e a aponta como única
possibilidade para quem escreve sobre o cárcere
62
.
Trata-se, contudo, do mesmo autor que se regozija no seu conhecimento livresco.
Esse aparente pertencimento a dois diferentes mundos e códigos parece-me ser, na verdade,
ainda com Goffman, um desdobramento do estigma:
“(...) o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos
que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de
normais, quanto um processo social de dois papéis no qual cada
indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em
algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são pessoas, e
sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os
62
Logo no início de seu livro afirma: “Se alguém sem essa experiência tiver a pretensão de escrever um
livro sobre as histórias de um preso, sua vida ou mesmo o dia-a-dia de um presídio, olharei esse livro com
incredulidade” (p. 11). Nesse sentido, assemelha-se muito à formulação de Graciliano Ramos em suas
Memórias do cárcere, quando se aborrece com o amigo José Lins do Rego, que resolvera escrever sobre a
prisão: “O indivíduo livre não entende a nossa vida além das grades, as oscilações do caráter e da
inteligência, desespero sem causa aparente, a covardia substituída por atos de coragem doida. Somos
animais desequilibrados, fizeram-nos assim, deram-nos almas incompaveis. Sentimos em demasia, e o
pensamento já não existe: funciona e pára. Querem reduzir-nos a máquinas. Máquinas perras e sem azeite.
Avançamos, recuamos nem sabemos para onde nos levam. Zanguei-me com José Lins. Por que se havia
lançado àquilo? O admirável romancista precisava dormir no chão, passar fome, perder as unhas nas
sindicâncias. A cadeia não é um brinquedo literário. Obtemos informações lá fora, lemos em excesso, mas
os autores que nos guiam não jejuaram, não sufocaram numa tábua suja, meio doidos. Raciocinam bem,
tudo certo. Que adianta? Impossível conceber o sofrimento alheio se não sofremos. O começo do livro de
José Lins [Usina] torturava-me. Quase desejei ver o meu amigo preso. Recusei a afirmação de que a
presença dele não nos interessava. Se ele estivesse conosco, jogaria no papel com firmeza as nossas almas
aflitas, a morte a pingar, dias, meses, em porões, em cárceres úmidos” (p. 215, grifos meus).
143
contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que
provavelmente atuam sobre o encontro” (pp. 148-149).
Compreendido como relacional, o estigma fornece uma pista alentadora para a
interpretação da literatura feita a partir do cárcere e, aqui particularmente, daquela feita por
Humberto Rodrigues em seu Vidas do Carandiru. As personas assumidas por Rodrigues
(preso e pesquisador) parecem trazer os papéis sociais que ele desempenha.
Sugiro que a disposição material desses livros, bem como o modo como a matéria
narrativa é enformada sejam indícios de que as narrativas do cárcere brasileiro tragam as
marcas dos modos de sociabilidade daquele ambiente, em que se reconhece a condição de
preso mas se almeja outro estatuto (nos casos aqui analisados, de escritores). Quando
narrada, a história de cada um desses sujeitos, uma vez submetida às constrições e
constrangimentos próprios à instituição prisional, tende, por um lado, a ser disciplinada
quando lança o dos recursos documentais e oficiais (número de prontuário, fotografia,
reprodução de documentos e toda sorte de provas que atestem a passagem do autor por
aquele mundo), por outro lado, igualmente constrita e constrangida pelos arreios da
representação do que seja boa literatura, em um diálogo claramente estabelecido com o
mundo de fora, além-das-grades, a história desses homens aponta para possibilidades
futuras.
144
Capítulo 5 (ou “Neste mundo fora do mundo”)
I.
Nos 4 primeiros capítulos, procurei, na apresentação de cada um dos livros que
compõem a pesquisa, apontar para algumas de suas similitudes formais, temáticas e
materiais. É necessário, ainda, recuperar essas semelhanças e discuti-las como próprias de
um ambiente que se ancora na coerção. Algumas questões impuseram-se desde o início do
trabalho – e merecem agora ampliação.
A escrita prisional parece destinar-se a dois interlocutores distintos: os pares na
prisão (mesmo quando o de modo explícito, simplesmente por esses autores não
romperem em seus textos com os valores e condutas previstos, numa incorporação de um
etos prisional) e os leitores do mundo exterior (nesse sentido, a escrita molda-se a um
universo de expectativas do que seja visto como um bom livro, ou seja, aquele que
satisfaça, segundo certa compreensão, os requisitos necessários para ser considerado pelos
outros e por seus próprios autores como tal). Isso aparece na escolha lexical, na
estruturação frasal, na recorrência de expressões retificadoras, parênteses, notas de rodapé;
na dedicatória, nas fotografias, na reprodução de documentos (sentenças, prontuários etc.),
nos agradecimentos, no espaço para a escrita de outros; na necessidade de denúncia dos
maus-tratos sofridos na prisão, nas considerações sobre a justiça, nas descrições do espaço,
dos costumes, dos valores e das condutas da prisão.
A perscrutação dos livros mostrou que, variando o grau e a recorrência, essas
questões apareciam em todos os volumes analisados. Se o fato de esses homens escreverem
sobre a própria situação era algo relativamente inédito nas letras nacionais, chamava ainda
mais atenção o modo como o faziam: a hibridez desses livros no que diz respeito aos
aspectos acima mencionados.
A produção literária surgida da prisão parece estruturar-se em função do
confinamento a que eram submetidos seus autores, o qual engendra uma sociedade fechada
em si (ainda que reportada ao mundo exterior). Recuperava-se naquela hibridez os modos
de sociabilidade do cárcere, como sustentei nos capítulos anteriores a este. Nesse sentido,
não se pode ignorar que a prosa produzida na cadeia é feita a partir dos constrangimentos
sofridos por quem está em reclusão, participando, forçadamente, de um ambiente fechado,
145
de obrigatória proximidade física com outros homens
63
. Nesse ambiente, é preciso
rapidamente reconhecer as regras de funcionamento a fim de garantir a própria
sobrevivência. Há uma necessidade de assimilação dos códigos e valores muito particulares
que são não norteadores como definidores da convincia forçada. A prisão teria um
modus operandi, segundo as narrativas aqui analisadas, semelhante ao da sociedade de
corte, tal qual analisada por Norbert Elias, porque pautado por um etos próprio e definidor
da sobrevivência.
64
A ressalva feita por Elias – “a não ser quando eles renunciam à convivência em seu
círculo de sociedade e à participação em seu grupo social” não cabe ao universo
prisional, em que não se pode escolher dele participar. O constrangimento é coerção física:
a violência moral é também física. A prisão funcionaria como uma corte às avessas: não se
está diante de uma elite que pauta comportamentos aos cortesãos, não se está na ponta da
pirâmide, mas no que pode haver de mais basilar do terceiro estado: homens infratores que
ditam regras para outros tantos infratores.
Mas cabe a esse universo o que o sociólogo afirma logo a seguir:
“Tais normas não podem ser esclarecidas a partir de um mistério
encerrado no peito de grande número de homens singulares; elas
podem ser esclarecidas em conexão com a figuração específica que os
muitos indivíduos formam conjuntamente, e com as interdependências
específicas que os ligam uns aos outros”
65
.
63
Em livro feito após o Massacre de 1992, Elói Pietá e Justino Pereira afirmam: “A falta de privacidade é
um dos principais problemas do presídio. É impossível alguém conseguir ficar sozinho por um segundo
sequer. Como alguém que tivesse as pálpebras cortadas, o detento está condenado a sempre ver o outro, a
não esquecer jamais da condição em que se encontra (Pavilhão 9: o massacre do Carandiru, p. 19, grifos
meus).
64
Na sociedade de corte, afirma Elias, “(...) encontramos um outro sistema social de normas e valores,
cujos mandamentos são obrigatórios para os indivíduos” (Norbert Elias, A sociedade de corte, p. 85). Uma
razão pela qual talvez se devesse usar com parcimônia a análise de Elias é de que a sociedade de corte se
pauta por uma racionalidade pré-burguesa, e os presos são, em sua maior parte, reflexo da consolidação da
sociedade burguesa. No entanto, uma vez dentro da prisão, a lógica que passa a imperar, embora com
fundamentos econômicos rudimentares, que é proibida a circulação de dinheiro nos presídios, é a das
coerções de interdependência que podem render maior ou menor prestígio e poder. Ainda que assim não
fosse, a análise de Elias debruça-se em sociedade, que, a exemplo da prisional, fecha-se em si.
65
Idem, ibidem.
146
Essas interligações que produzem “códigos e comportamentos originais
66
está na
base das relações prisionais, de uma “sociedade” fechada em si, mas que, para existir,
precisa reportar-se ao mundo exterior. Se na corte a existência dos não-cortesãos servia,
pela diferença, para confirmar a distinção dos cortesãos, na cadeia o mundo exterior é que é
visto como sinal de privilégio. Se, como pretendi mostrar nos capítulos anteriores, a escrita
produzida a partir da prisão retoma os modos de sociabilidade do cárcere, é preciso
entender como esse “modo específico de dependências recíprocas” se configura na escrita
produzida a partir de um ambiente coercivo.
Na prisão, a rede de relações se dá entre os próprios presos – respeitadas hierarquias
várias –, entre os presos e os funcionários (aqui entendidos como todos aqueles que possam
ser vistos como sinônimo de manutenção da ordem incluem-se, portanto, os guardas dos
presídios, os carcereiros, os policiais, os funcionários de fóruns etc.), entre os presos e seus
familiares/ visitantes.
Nas narrativas estudadas, encontram-se situações que tratam na maior parte do
tempo da relação entre os próprios presos (quando estes se debruçam sobre a vida na
prisão), mas também tratam da relação que os detentos entretêm com os funcionários,
notadamente aqueles que não fazem parte do funcionamento da cadeia ou do presídio, mas
os guardas responsáveis pelo transporte até os fóruns, a tropa de choque, ou estafe de
algum modo ligado ao sistema judiciário: os psicólogos (responsáveis por pareceres que
podem amainar a pena), advogados, juízes etc. As narrativas o especialmente queixosas
com aqueles funcionários que não estão no ambiente da cadeia, mas que, de alguma forma,
contribuem para que a permanência de seus autores se em condições custosas
emocional e fisicamente
67
.
Uma prosa que surge do confinamento em grupo impõe-se como uma escrita que
não pode escapar à dimensão coletiva do que se narra, mas que pleiteia a especificidade em
um ambiente sem possibilidade para isso. Arma-se d uma prosa que reivindica em sua
forma a tensão que a constitui.
66
A expressão é de Roger Chartier na introdução que fez a A sociedade de corte: “Formação social e
habitus: uma leitura de Norbert Elias”, p. 93.
67
“Em frente a um juiz gordo, cheio de empáfia, decerto julgando-se parceiro de Deus no julgamento dos
míseros presos subumanos, fui réu confesso” (Luiz Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente, p. 336).
147
Ao longo deste trabalho, viu-se que a chegada ao ambiente prisional supunha um
ritual de iniciação. Este se dava tanto pela via oficial, com a raspagem dos cabelos, a
indicação da obrigatoriedade do uso do uniforme, do seguimento de horários e regras,
como mais importante pela via extra-oficial, a dos presos. A aprendizagem do regrário
prisional (ditado pelos próprios encarcerados) requeria de um preso novato uma observação
atenta e discreta dos à sua volta. Essa iniciação é sociologicamente semelhante ao processo
de curialização descrito por Elias e comentado por Chartier:
“(...) a vida de corte requer dos que nela participam propriedades
psicológicas específicas, que não são comuns a todos os homens: é o
caso da arte de observar os outros e de se observar a si próprio, a
censura dos sentimentos, o domínio das paixões, a incorporação das
disciplinas que regulam a civilidade. Uma tal transformação não
modifica apenas as maneiras de pensar, mas toda a estrutura da
personalidade, a economia psíquica que Elias designa por um termo
antigo, o Habitus. O processo de curialização é também um processo de
remodelação da afetividade (...) que submete o homem de corte a uma
rede apertada de autocontroles automáticos que refreiam todos os
impulsos espontâneos, todos os movimentos imediatos. Este habitus
inédito produz uma forma de racionalidade inteiramente específica, dita
höfische Racionalität (Racionalidade de corte), que deve adequar
exatamente cada conduta à relação onde ela se inscreve e adaptar cada
comportamento à finalidade que ele deve permitir”.
68
Interessa-me, portanto, discutir o modo como a racionalidade prisional
69
se inscreve
numa forma própria. Parto, para tanto, de uma premissa aqui explicitada e que retomo
apenas para fins de clareza a de que os modos de sociabilidade do cárcere inscrevem-se
na literatura produzida a partir daquele ambiente.
68
Roger Chartier, op. cit. p. 113.
69
Veja, a esse respeito, o que se nas Memórias de um sobrevivente: “Todos os meus parâmetros eram de
prisão. Em tudo eu pensava apenas como um preso” (p.189); “eu já tinha na cabeça os valores da prisão,
estava livre, mas preso por aqueles valores aprendidos no juizado e reforçados na cadeia” (p. 346). Ou em
Sobrevivente André Du Rap: “A sociedade aqui fora é totalmente diferente do nosso mundo, do mundo que
você vive atrás das grades” (p. 186).
148
A sociabilidade do rcere supõe um entrelaçamento do que, ao longo deste
trabalho, chamei de condutas e dos valores prisionais. Uns diferem-se dos outros por
formarem as primeiras um conjunto de regras imposto pelos e aos detentos
70
; e os
segundos, por pautarem uma junção de traços compartilhados. Às vezes condutas e valores
têm limiar de difícil determinação. Podem se sobrepor, como quando são narradas cenas
cujo desfecho, porque envolveria a revelação de detalhes da dinâmica prisional, é omitido:
trata-se da explicitação de uma regra ( coisas sobre as quais é preciso silenciar, porque
são próprias da cadeia) e de um valor (não se deve dizer aos de fora as coisas próprias ao
cárcere
71
).
Trata-se, portanto, de condutas e valores próprios ao universo prisional, mas que,
para existir, dependem da expectativa de “estar-fora” daquele ambiente. Os textos
reportam-se a todo tempo ao que chamei de “mundo além-grades”, revelando a
ambivalência própria à condição de encarcerado
72
e, no que me interessa mais
propriamente, à escrita produzida a partir do cárcere.
Os laços que constroem na prisão e que formarão os valores partilhados são,
segundo Erving Goffman, próprios às instituições totais, onde os “internados” desenvolvem
um processo de confraternização que funcionará como modo de apoiarem-se mutuamente e
resistirem a um sistema que os forçou à intimidade. Lá, “(...) tendem a desenvolver-se um
70
Luiz Alberto Mendes, em seu Memórias de um sobrevivente, conta que, já no Recolhimento Provisório de
Menores (RPM), havia uma conduta a ser seguida:“Ali havia, já de modo dominante, o famoso proceder.
Conjunto de normas que eram mais fortes que as leis oficiais do Instituto e que nos governavam,
implacavelmente. Um sujeito sem proceder era cagüete, veadinho, desprezado, sem direito a tomar atitude
de homem com quem mexesse com ele. E uma das regras do proceder era que cada um arcasse com as
conseqüências de seus atos. Seria extrema falta de proceder, e portanto colocar-se à execração pública,
deixar que outros apanhassem por culpa nossa” (p. 159).
71
A idéia de que alguns aspectos da vida prisional devem permanecer velados, enquanto outros podem ser
desvendados aos leitores de fora, inclui-se numa hierarquia própria da dinâmica prisional. Saber o que pode
ser dito faz parte das disposições adquiridas pelos presos no processo de socialização naquele ambiente
(para usar a idéia de Pierre Bourdieu) e determinará seu real pertencimento ao grupo. Quando, como fez
Humberto Rodrigues ao revelar o significado das tatuagens dos detentos, esse pacto é rompido,
compromete-se a lealdade (um valor caro) ao grupo. Por outro lado, quebrar esse laço pode marcar o limiar
com o “além-grades”, na tentativa de catapultar-se como autor.
72
“Para o internado, o sentido completo de estar ‘dentro’ não existe independentemente do sentido
específico que para ele tem ‘sair’ ou ‘ir para fora’. (...) [as instituições totais] Criam e mantêm um tipo
específico de tensão entre o mundo doméstico e o mundo institucional, e usam essa tensão persistente como
uma força estratégica no controle de homens” (Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos, pp.
23-24).
149
sentido de injustiça comum e um sentido de amargura contra o mundo externo, o que
assinala um movimento importante na carreira moral do internado”
73
.
O modo de sociabilidade precisa ser entendido, portanto, como um sistema que,
mediado em texto, supõe o que chamei de olhar duplo, que ora se volta para dentro da
prisão, ora para fora dela, mas muita vez para os dois a um só tempo (como em Memórias
de um sobrevivente). Esse olhar duplo se constrói em diversas camadas.
A primeira delas é a própria situação da escrita: é preciso manter-se leal à conduta
prisional (d o caráter silencioso da narrativa em muitos momentos), mas não a ponto de
tê-la como regra única afinal, do reconhecimento, por parte de quem escreve a partir da
prisão, da existência de uma normatividade além-muros prisionais é que depende a sua
possibilidade de reinserção.
A segunda camada pode ser vista quando os narradores dos livros aqui discutidos
relatam situações em que seguiram à risca o regrário do rcere, mas o fazem de modo a
sinalizar que reconhecem a burla aos preceitos do mundo exterior e, com isso, reivindicam
o pertencimento a ele.
Na escolha das estruturas sintáticas (mais ou menos orais), do léxico (mais ou
menos formal) e na necessidade de traduzir certos termos ou expressões, percebe-se um
terceiro nível, mais propriamente ligado à forma, em que esses autores, a partir da
introjeção do que seja uma boa escrita, revelam seu pertencimento e não pertencimento ao
que, afinal, é uma condição circunstancial – a de encarcerado.
Finalmente, no tocante à materialidade do livro, vê-se, na maior parte dos livros
analisados, a inclusão de seções que criam uma espécie de padrão: agradecimentos,
caderno de fotografias, reprodução de documentos. Aqui, parece estar em jogo a
credibilidade da narrativa. Como se seus próprios autores partissem do pressuposto de que
não seriam críveis, numa mobilização do estigma, a que já aludi a partir do livro homônimo
de Goffman, a que estão expostos muitos daqueles cuja narrativa é de teor testemunhal.
74
73
Manicômios, prisões e conventos, p. 56.
74
Como aponta Beatriz Sarlo em seu Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva: “Todo
testemunho quer ser acreditado, mas nem sempre traz em si mesmo as provas pelas quais se pode
comprovar sua veracidade; elas devem vir de fora” (p. 37).
150
No caso dos escritores saídos dos presídios paulistas, como disse aqui, em sua
grande maioria, provenientes das camadas mais pobres da população, a sua palavra é
duplamente desacreditada, pela origem e pelo delito cometido. A necessidade de amparar-
se de formas variadas, mas que remetem às estruturas jurídicas
75
, para poder ser lido pelos
“não-iguais”, disputa espaço com o compartilhamento do livro com o seu “grupo-de-
iguais”
76
(outros detentos), mas também os amigos, vizinhos etc.
A título de exemplo, observe-se um trecho de Memórias de um sobrevivente: “Ali
[na prisão] tudo era pagar. A semântica do verbo pagar era bastante interessante por ali.
Tudo o que nos era fornecido pela cadeia trazia uma idéia de pagamento. A comida não era
distribuída, era paga. ‘Pagar um sapo’ era fazer uma ameaça” (p. 414).
O comentário de Luiz Alberto Mendes é sobre a particularidade do uso de um
determinado verbo dentro da cadeia. Ao fazê-lo, alterna dois registros facilmente
identificáveis: um mais coloquial e impreciso (“ali tudo era pagar”); outro mais culto, em
que alude a um termo de caráter técnico, ou científico, ou ainda lingüístico (“semântica”),
e, em seguida, recorre a uma construção mais complexa como a voz passiva analítica
(“tudo o que nos era fornecido pela cadeia”). O olhar do narrador, ao mesmo tempo em que
revela sua proximidade com o mundo prisional (conhece suas gírias e o momento exato de
empregá-las, a ponto de dissertar a respeito), distancia-se dele porque é capaz de assumir
uma ótica que estranha o uso do verbo “pagar”, o que não ocorreria se estivesse
inteiramente absorvido pelo pólo prisional.
Nesse sentido, assume-se como um interno, mas, quando, ao fazê-lo, o deixa de
estar referido aos padrões sintáticos e lexicais legitimados pelo mundo exterior, revela o
caráter contingente de sua condição de encarcerado. A sua presença numa instituição total
(e, como sugere Goffman, a própria existência da instituição total) só se dá como tal porque
a perspectiva de sair de lá. A literatura feita a partir do cárcere inscreve na sua
construção a dinâmica relacional própria a uma instituição coercitiva ou, para retomar
Foucault, “onidisciplinar”
77
.
75
Observe-se, por exemplo, a indicação do número do prontuário (ver, especialmente, Vidas do Carandiru),
a remissão às datas de prisão e soltura, a inclusão de fotos dentro do presídio (conferir Sobrevivente André
Du Rap).
76
A expressão é de Goffman. Ver Estigma, op. cit., p. 48.
77
Vigiar e punir, p. 211. Ainda Foucault: “Esse ‘reformatório’ integral prescreve uma recodificação da
existência bem diferente da pura privação jurídica de liberdade e (...) da simples mecânica de
representações com que sonhavam os reformadores (...)” (idem, ibidem).
151
Dessas escolhas derivaria uma construção destacada do personagem-narrador.
Como procurei mostrar nos quatro primeiros capítulos, sobretudo nas análises de
Memórias de um sobrevivente e de Vidas do Carandiru, na identificação de construção
sintática, lexical e estilística de suas frases, é possível notar a criação de uma “imagem
de si”, mesmo quando não escreve explicitamente sobre si
78
. Quando a constroem, os
escritores estudados revelam, por um lado, ter em conta uma expectativa de leitor
79
que não
os outros presos, uma vez que mobilizam, ao que parece, um conjunto de percepções
referidas ao mundo exterior. São indícios de determinada apreensão do livro como objeto
80
.
Aquilo que mobilizam, em função da incorporação do que seja o leitor externo à cadeia,
pode contribuir para que o que ali se conta seja aceito como crível
81
. Assim como as
práticas sociais se moldam, a escrita também o fará. Os livros de que trato articulam a
imagem que têm de seus leitores e a imagem que seus leitores fazem de alguém que
escreve a partir da prisão ajustando-as a fim de produzir uma escrita que seja confiável e
faça sentido a quem é de fora à necessidade de o desfazer a imagem que seus autores
sustentam entre os companheiros de prisão.
Por outro lado, como também se discutiu aqui, esses autores não perdem a
dimensão de que também escrevem para seus pares (embora em níveis variados: Diário de
um detento e Sobrevivente André Du Rap trazem marcas mais claras disto), quando a sua
78
Aproprio-me aqui do raciocínio de Ruth Amossy em “Da noção retórica de ethos à análise do discurso”,
p. 9.
79
Não estou considerando, como sustentava H. R. Jauss, que “a história da literatura é um processo de
recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os
recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete” (A história da
literatura como provocação à teoria literária, p. 25), nem tampouco sugiro que o horizonte de expectativa
(passível de reconstrução) de qualquer desses livros possa determinar seu caráter artístico a partir do
modo e do grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público” (idem, p. 31, grifos meus).
Não há, ainda, como pretendia Jauss, posteridade a ser considerada (os livros todos são recentes, publicados
nesta década), mas, sobretudo, neste trabalho não se di que a qualidade desses livros tem relação com o
efeito produzido por cada um deles. No limite, é possível atribuir a este aspecto o interesse que despertam,
mas não que venha daí o seu valor. Interessa aqui pensar o texto à luz das práticas sociais prisionais, que,
justamente por envolverem o vislumbre de liberdade, têm no mundo exterior um eixo de construção.
Interessa-me mais pensar numa formação social constritora que produz um discurso específico ou, nas
palavras de Chartier: “Numa formação como esta [sociedade de corte], a construção da identidade de cada
indivíduo situa-se sempre no cruzamento da representação que ele de si mesmo e da credibilidade
atribuída ou recusada pelos outros a essa representação” (Roger Chartier, op. cit., p. 112).
80
Veja o que traz a esse respeito Vidas do Carandiru: “Acredito que consiga um livro de pelo menos 200
páginas” (p. 57) e “Meu avô, que era advogado e poliglota, sempre afirmava: livro que é livro tem que ter
um número de páginas que proporcione a ele ficar em pé sozinho. E eu não posso decepcioná-lo” (p. 58)
81
O orador adapta sua apresentação de si aos esquemas coletivos que ele crê interiorizados e valorizados
por seu público-alvo” (Ruth Amossy, “O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática,
sociologia dos campos”, p. 126).
152
narrativa assume caráter exemplar, ou, ao menos, mostra-se leal às condutas e aos valores
do cárcere, quando cede espaço a companheiros, quando faz questão de nomeá-los ou
colocar seus retratos, quando cala a respeito de determinadas práticas, quando critica o
sistema penitenciário e as s condições de cumprimento da pena, quando sustenta que
para escrever sobre a cadeia é preciso ter estado lá
82
.
A escrita prisional assume uma dimensão ética quando se espera dela (e parece ser
esta a aposta de seus autores) que transforme a percepção a respeito daquele que a produz e
do ambiente de onde provém.
Um texto de teor autobiográfico
83
como os quatro livros aqui analisados precisa
construir uma elaboração da própria existência e trajetória em que é preciso determinar
quais os eventos importantes, quais os comentários a incluir disso resultando uma
imagem a respeito de quem narra e é personagem daquela história. Constrangidas pela
experiência prisional, de que precisam dar conta, que precisam narrar, essas narrativas
convergem em traço determinante, o do estigma – ou de uma escrita estigmatizada.
Em todos os textos analisados nesta tese aparece, de modo mais ou menos explícito,
a questão do estigma que carrega um ex-presidiário.
Em Sobrevivente André Du Rap, está lá: “Antes de eu ser preso, eu era o André. Eu
era o André que estudava, que trabalhava, eu tinha a minha família. À parte as intrigas de
família, eu tinha uma família. A partir do momento em que eu fui preso, eu me tornei
quem? Não o André, mas o bandido” (p. 106).
82
Como sugeri aqui, este aspecto não seria uma particularidade da escrita carcerária atual, mas estaria
presente, por exemplo, nas Memórias do rcere, em que Graciliano Ramos assume como pré-requisito
básico para tratar da cadeia a experiência.
83
Uso a expressão “texto de teor autobiográfico” em função das superposições de gênero que existem na
literatura feita a partir da prisão. Evidentemente, até mesmo aplicando-se os termos de Lejeune, o “pacto
autobiográfico”, mas não é isso o que me interessa propriamente. Parte-se dele, mas se chega a questões
mais relevantes para este trabalho: aceitando que se escreva partindo da experiência, como determinadas
práticas sociais se tornam texto, são elaboradas numa escrita que deve servir para alçá-los à categoria de
escritor (tirá-los da condição prisional), mas sem que abram mão dessa circunstância, porque é em função
dela que almejam mudar sua situação. Ademais, uma das características da literatura produzida
recentemente é a incorporação de elementos autobiográficos, em certa medida porque o próprio ato da
elaboração escrita assim o requer ficcionalizando-os (haja vista, para permanecer na esfera nacional, o
êxito de crítica obtido pelo último livro de Cristóvão Tezza, O filho eterno, e pelo romance de estréia de
Tatiana Salem Levy, A chave de casa).
153
Assim como no livro de Jocenir, quando o narrador, depois de ter sido maltratado
pelo médico do presídio, se mostra surpreso ao ser atendido por outro médico, que lhe
dedicou atenção:
“Ele [o médico] não rabiscava nada no papel, tinha a cabeça erguida, e
me olhava com muita atenção. Senti um nó na garganta, me veio uma
vontade de chorar. Sei que não é normal, era apenas uma consulta
médica, mas ser bem tratado na cadeia por gente que não está presa é
algo que não ocorre todos os dias, é diferente”
84
.
No caso de André, o que se é a elaboração da situação de estigmatizado, é a
reflexão sobre o próprio estigma. No trecho de autoria de Jocenir, o estigma parece estar
incorporado (presos o o bem tratados pelos o-presos) e o fato de aquele com quem
fala tratá-lo como um igual é que o surpreende.
Se parecido o modo como Luiz Alberto Mendes dará conta da questão, que
aparece com mais freqüência nas páginas finais de seu extenso livro, quando narra sua
relação com a escrita e a leitura. Nesse sentido, pode parecer paradoxal, pois ao mesmo
tempo em que sugere que nunca seria nada além de um preso, tem na publicação de seu
livro por uma grande editora a prova contrária. Nas suas Memórias de um sobrevivente,
quando menciona a paixão por Eneida, uma moça com quem se correspondia, já na fase em
que abraçou a literatura, Mendes comenta:
“Quem era eu, afinal de contas, para ter uma Princesa que, além de
tudo, estava comprometida? Se não fora pelo fato de ser casada, eu era
um presidiário, um bandido, excluído da sociedade para sempre.
Condenado a quase cem anos de prisão, na época, em treze processos
por assalto, homicídio e latrocínio. (...) A mim restavam as portas e
grades fechadas. Por mais que estudasse e me transformasse, ainda
assim seria um preso”
85
.
84
Diário de um detento, p. 127.
85
Memórias de um sobrevivente, pp. 462-462.
154
“Por mais que estudasse e me transformasse” quando Mendes insiste nessa idéia,
amplia o alcance do êxito obtido. Com a publicação, sabe-se que estudou, que se
transformou, que foi capaz de “mudar de vida”. Daí o estigma poder ser manipulado por
ele de modo a lhe render dividendos.
Finalmente, em Vidas do Carandiru:
“Muitos leitores poderão estar se perguntando: ‘O que este ex-
presidiário pretende, abordando temas de política socioeconômica de
nosso país?’. É certo. Fui preso, condenado (sem ser ouvido!) e
posteriormente absolvido pelo Tacrim. Muita gente não conseguiria
passar por esse crivo. Lembro os nomes de alguns. Eu passei pelo crivo
e, com a dor, a vergonha e o sofrimento, ganhei muito mais maturidade
e consciência do sofrimento de nosso povo” (p. 265)
Rodrigues transforma o estigma (“este ex-presidiário”) quando faz da sua superação
uma prova de suas qualidades. É como se sugerisse que a passagem por uma situação
inédita para alguém de sua classe e condição social o tornasse muito mais sensível para as
questões sociais, sobre as quais falava àquela altura do livro.
Indo um pouco além, vê-se que, nas formulações de Jocenir, André e Rodrigues,
estão implícitas ou explícitas as marcas de interlocução. Na pergunta de André (“eu me
tornei quem?”), de Rodrigues (“O que este ex-presidiário pretende, abordando temas de
política socioeconômica de nosso país?”) e de Mendes (“Quem era eu, afinal de contas,
para ter uma Princesa que, além de tudo, estava comprometida?”), no comentário de
Jocenir – “Sei que não é normal [chorar em uma consulta médica]”. Em todas elas, parece
haver uma pressuposição de que o leitor os tem como presidiários: pessoas que
delinqüiram, sem direitos, definitivamente marcadas.
Sem perder a noção, cara a Goffman, de que o estigma só existe porque os não
estigmatizados, não se pode esquecer também que:
“Nos muitos casos em que a estigmatização do indivíduo está associada
com sua admissão a uma instituição de custódia, como uma prisão, um
sanatório ou um orfanato, a maior parte do que ele aprende sobre o seu
155
estigma ser-lhe-á transmitida durante o prolongado contato íntimo com
aqueles que irão transformar-se em seus companheiros de infortúnio”
86
.
Nesse sentido, a incorporação do estigma é resultado das coerções, do
confinamento, das s condições para cumprimento da pena. Ao elaborarem a condição
estigmatizada, incorporando a projeção do que os leitores provavelmente pensariam a
respeito daquele comentário, pretensão, expectativa, mostram reconhecer a existência da
norma, a existência daquilo que não é visto como fonte de estigma e mais uma vez
elegem como parâmetro o mundo exterior.
Outra maneira, manifesta nos livros, para evitar o estigma é a relação com os sinais
físicos, como as tatuagens. Rodrigues, na seção que dedica a explicá-las, pontua,
excluindo-se: “Há uma coisa que os presos, em sua maioria, adoram. É o uso das
tatuagens”
87
. Mendes tampouco as defende: “Os companheiros enchiam-se de grosseiras
tatuagens. Jamais fizera alguma, não queria ficar marcado de modo algum”
88
. A essa altura
da narrativa, a contrariedade que Mendes demonstra em relação às tatuagens tem razão de
ser que não a que possivelmente assumiria mais tarde – tatuar-se era, então, contribuir para
a identificação dos policiais, ao passo que, quando escreve a história, não carregar uma
tatuagem no corpo ajuda a livrar-se do estigma de presidiário e, nesse sentido, o distingue,
ao aproximá-lo do mundo dos homens “livres”.
No entanto, há que se entender a tatuagem como sinal também ambivalente, porque
constrói uma identidade prisional (sobretudo quando os desenhos são reveladores dos
delitos cometidos), bem-vista entre os pares, mas também tomada com receio pelos de fora
do mundo prisional
89
.
A relação que André Du Rap estabelece com as próprias tatuagens em tudo difere
da de Mendes e de Rodrigues. Em muitas das fotografias em que And aparece, estão
86
E. Goffman, Estigma, op. cit., p. 46.
87
Humberto Rodrigues, Vidas do Carandiru, op. cit., p. 291.
88
Luiz Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente, op. cit., p. 189.
89
Repare-se no comentário que Mendes faz quando conta que um preso, selecionado para uma sessão de
tortura, prefere meter a cabeça na porta de ferro da cela a ser conduzido até os algozes: “Coisa dantesca,
cena estarrecedora. Retiraram-no. Jamais soube do sujeito novamente, sumiu. Nunca mais esqueço aquela
poça de sangue na entrada do xadrez, acho que está fotografada para o resto da vida, como uma
tatuagem” (p. 301). Mendes serve-se da idéia da “tatuagem” para sugerir a sensação terrivelmente
duradoura que lhe deixou a cena “suicida”. Percebe-se assim algo que procurei discutir nos outros capítulos
desta tese: o vocabulário com que se constrói a elaboração da experiência se impõe a partir da observação
cotidiana e é referido ao dia-a-dia prisional.
156
visíveis os desenhos que carrega no corpo. Mas é também André o único dos autores que
exibe-se dentro da cadeia, tanto na foto da capa quanto naquelas que compõem um seu
pequeno registro fotográfico. É como se, a exemplo do que faz pelas palavras (“mas eu não
tenho vergonha de ser presidiário não, é a minha história”), quisesse pelas imagens mostrar
que, sim, esteve preso (e as fotos no Carandiru o atestam), mas que tem também outras
coisas a dizer, outras histórias a contar.
Os outros autores fazem um uso bastante mais comedido de sua imagem. o ,
por exemplo, uma única fotografia de Mendes em seu livro, o único deles que não traz
nenhuma foto. Uma imagem de Rodrigues, por sua vez, é exibida na orelha de seu Vidas
do Carandiru, mas ela rompe com qualquer noção pré-construída de um presidiário. Trata-
se de um homem bem-vestido, com óculos nas mãos e, no fundo, cortinas de escritório, em
ambiente claro, em tudo diferente do prisional. Posa qual o pesquisador que simula ser para
sua própria salvação, na sua narrativa. O livro, embora contenha um caderno de fotos
tomadas na prisão, não tem imagens suas naquele ambiente. A preocupação em distanciar-
se da prisão, uma constante na prosa de Rodrigues, como se viu no Capítulo 4, reaparece
no cuidado em o se deixar marcar, não por tatuagens, mas também pela ausência de
fotografias. Mas, como até mesmo sobre sua palavra paira o descrédito, ele se ampara em
fontes documentais que comprovem que ele esteve de fato na prisão apenas o faz de
modo a deixar clara a injustiça na sua detenção e julgamento e, por conseguinte, sustenta
como a prisão era um ambiente estranho a quem vinha de seu estrato social.
Em Diário de um detento, como apontei no Capítulo 1, as poucas fotos (a da capa e
a das páginas iniciais) não revelam o rosto de seu autor em ambas repete-se uma mesma
situação: um homem de costas amparado nas grades olhando para fora. Não a imagem
de Jocenir como havia a de André em Sobrevivente André Du Rap.
A relação com o estigma pode aparecer das mais diversas formas na existência e
decorrente arranjo de fotografias, na assunção da tatuagem como um fator de
inclusão/exclusão. Ambas as situações repõem a marca, o sinal pelo qual alguém pode ser
mais facilmente identificável como pertencente a um determinado grupo (aqui, o de
presidiários). Se, por um lado, é confortável o próprio reconhecimento em um “grupo-de-
iguais”, por outro, essa mesma identificação acarreta enormes prejuízos à imagem.
157
“Dada a ambivalência da vinculação do indivíduo com a sua categoria
estigmatizada, é compreensível que ocorram oscilações no apoio,
identificação e participação que tem entre seus iguais. Haverá ‘ciclos de
incorporação’ através dos quais ele vem a aceitar as oportunidades
especiais de participação intragrupal ou a rejeitá-las depois de havê-las
aceito anteriormente. Haverá oscilações correspondentes nas crenças
sobre a natureza do próprio grupo e sobre a natureza dos normais”
90
.
Nesse sentido, a incorporação do estigma e a necessidade de se livrar dele
remontam ao olhar duplo, que ora aponta para dentro da cadeia, ora para fora dela.
Outra forma de lidar com o estigma é, como mostrei no Capítulo 1, pela assimilação
do discurso produzido pelos não-presos. É comum os presos se chamarem de “ladrão”,
apelido dado pelos funcionários da Casa de Detenção
91
.
A esse comportamento Goffman deu o nome de “ambivalência de identidade”:
“Quer mantenha uma aliança íntima com seus iguais ou não, o
indivíduo estigmatizado pode mostrar uma ambivalência de identidade
quando de perto que eles comportam-se de um modo estereotipado,
exibindo de maneira extravagante ou desprezível os atributos negativos
que lhes são imputados. Essa visão pode afastá-lo, já que, apesar de
tudo, ele apóia as normas da sociedade mais ampla, mas a sua
identificação social e psicológica com esses transgressores o mantém
unido ao que repele, transformando a repulsa em vergonha e,
posteriormente, convertendo a própria vergonha em algo de que se
sente envergonhado. Em resumo, ele não pode nem aceitar o seu grupo,
nem abandoná-lo”
92
.
90
Erving Goffman, Estigma, op. cit., p. 47.
91
Para essa formulação, ver Elói Pietá e Justino Pereira. Pavilhão 9: o massacre do Carandiru, p. 17. Nos
livros estudados, nota-se a incorporação: “Alguns presos estavam endividados. Droga. Resolveram me
extorquir. Diziam que eu não era bandido, nem ladrão. Não era digno de viver entre eles” (Jocenir, Diário
de um detento, p. 45). Ou: Treta de ladrão é treta de ladrão”, diz André, à página 18 de seu Sobrevivente
André Du Rap.
92
E. Goffman, Estigma, op. cit., p. 118.
158
A maneira encontrada para lidar com o estigma é, como se sustentou aqui,
mostrar aptidões, além daquelas esperadas para alguém daquele grupo, como o aludido
“dom da escrita”. Mas, ao fazê-lo, esses autores correm o risco de distanciar-se em excesso
dos seus pares, porque, afinal, estabelecem na escrita um sinal de distinção:
“O caráter que esses porta-vozes permitem ao indivíduo é gerado pela
relação que ele tem com seus iguais. Se ele se volta para o seu grupo, é
leal e autêntico; se se afasta dele, é covarde e insensato. (...) Ao chamar
a atenção para a situação de seus iguais, ele está, de uma certa forma,
consolidando uma imagem pública de sua diferença como uma coisa
real e de seus companheiros estigmatizados como constituindo um
grupo real. Por outro lado, se ele procura algum tipo de separação, e
não de assimilação, pode descobrir que está necessariamente
apresentando os seus esforços militantes na linguagem e no estilo de
seus inimigos. (...) Os argumentos que apresenta, a situação que
examina, as estratégias que defende são parte de um idioma de
expressão e sentimento que pertence a toda a sociedade. Seu desdém
por uma sociedade que o rejeita pode ser entendido em termos da
concepção que aquela sociedade tem de orgulho, dignidade e
independência”
93
.
A noção de estigma, no que traz de relacional, contribui para a análise da literatura
produzida a partir do cárcere porque repõe a ambivalência constitutiva dessas narrativas: a
necessidade de reportar-se ao mundo exterior, ao reconhecer as suas condutas e valores (e
porque se almeja estar fora a cadeia pode existir), mas sem abandonar de vez o grupo a
que pertence, os valores e as condutas que imperam na prisão.
A publicação do livro deve ser vista, portanto, como uma espécie de “investidura”,
para usar a nomenclatura de Bourdieu
94
. É quando aqueles homens são investidos da
condição de autor, o que significa uma passagem de condição, ainda que o que suscite a
93
Erving Goffman, Estigma, op. cit., pp. 124-125.
94
“A investidura (do cavaleiro, do deputado, do presidente da República etc.) consiste em sancionar e em
santificar uma diferença (preexistente ou não) fazendo-a conhecer e reconhecer, fazendo-a existir enquanto
diferença social, conhecida e reconhecida pelo agente investido e pelos demais” (Pierre Bourdieu, A
economia das trocas lingüísticas, p. 99)
159
obra seja a experiência estigmatizada, qual seja, a prisional. Mas até mesmo aqui é possível
compreender essa produção por um viés dobrado: se no momento em que se tornam
autores, chancelados por casas editoriais, por prefaciadores e por resenhas em jornais de
grande circulação
95
, ganham evidente prestígio, não conseguem romper inteiramente com a
pecha de autor-presidiário. A experiência do confinamento aprofunda esse jogo perverso de
mercado porque é, como procurei mostrar, constritora.
Embora este não seja assunto que apareça nos livros com freqüência, é importante
lembrar que o estigma de presidiário, como mostra a grande bibliografia sobre o assunto, é
definidor para que alguém que tenha estado preso não consiga um emprego, como aponta
Carvalho Filho: “Cumprida a pena, o estigma da prisão acompanha e isola o condenado.
o perspectiva visível de emprego (...). Quanto mais tempo atrás das grades, distante
da dinâmica do mundo real, mais profunda a desadaptação e mais previsível o retorno à
criminalidade”
96
.
Torna-se, assim, ainda mais notável que, na literatura produzida a partir da prisão,
uma literatura que precisa ser lida como tentativa, por parte de seus autores, de reinserção
ao mundo além-grades, o estigma seja explicitado e incorporado como seu traço definidor.
Com isso, a literatura feita a partir da experiência prisional incorpora a própria imagem
marcada, indicadora de uma série de características desabonadoras.
II.
Em 1970, Antonio Candido publicava seu “Dialética da malandragem”, em que
analisava a obra de Manuel Antonio de Almeida a partir do que chamou de dialética da
ordem e da desordem. Em seu ensaio, questionava: “Qual a função exercida pela realidade
social historicamente localizada para constituir a estrutura da obra?”. Destacando um
sistema de relações entre os personagens de Memórias de um sargento de milícias, chegava
à constatação de que haveria ali “a construção, na sociedade descrita pelo livro, de uma
ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados”
97
e tamm
detectava sua correspondência profunda, muito mais que documentária, a certos aspectos
assumidos pela relação entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira
95
Ver Bibliografia.
96
Luís Francisco Carvalho Filho, A prisão, p. 71.
97
Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, p. 36.
160
metade do século XIX”. Para, finalmente, pontuar: embora elementares como concepção
de vida e caracterização dos personagens, as Memórias são um livro agudo como
percepção das relações humanas tomadas em conjunto. Se o teve consciência tida, é
fora de dúvida que o autor teve maestria suficiente para organizar um certo número de
personagens segundo intuições adequadas da realidade social
98
.
Trinta e quatro anos mais tarde, em texto inicialmente publicado em jornal de
grande circulação, João Cezar Castro Rocha propôs, em função do que identifica como
uma necessidade histórica, uma reformulação da expressão consagrada por Antonio
Candido
99
. Sugeria que, no lugar da dialética proposta por Candido, estivesse surgindo uma
“dialética da marginalidade”. Segundo Castro Rocha, a mudança fazia-se necessária por
conta da produção então recente, que, ao invés de conciliar conflitos, expunha-os. No rol de
obras que pertenceriam a esse universo, incluía alguns livros produzidos a partir da prisão
(ele cita o de And Du Rap, bem como Letras de liberdade), afirmando que, junto à
sica dos Racionais MCs, formavam uma “poética da sobrevivência”, cujo “impulso
principal era testemunhar a sobrevivência em meio a condições as mais adversas, fosse no
cárcere, fosse na periferia”.
Além de sinalizar certa tendência a reunir em uma mesma “poética a produção
vinda da periferia e a proveniente dos presídios, até certo ponto questionável pelas razões
que exponho abaixo, o ensaio de Castro Rocha revia a formulação de Antonio Candido em
função do seguinte: “A dialética da marginalidade (...) tem como alvo o dilema coletivo e
se caracteriza por um esforço sério de interpretação dos mecanismos de exclusão social,
pela primeira vez realizado pelos próprios excluídos”, enquanto, segundo o autor, a
dialética detectada por Candido em Memórias de um sargento de milícias escamotearia o
conflito, por meio da figura do malandro, que pendia ora para a burla, ora para a norma.
Escritos (salvo raras exceções como a de Humberto Rodrigues) por moradores das
periferias e favelas, os livros produzidos a partir do cárcere guardam certa semelhança com,
como sugeria Castro Rocha, os livros de Ferréz, por exemplo, quando cedem espaço a
companheiros, a quem agradecem e cujas fotos incorporam, quando assumem o discurso de
denúncia às desigualdades sociais. Mas as coincidências param aí. A escrita do cárcere
precisa ser pensada a partir do confinamento e de uma exclusão que é também espacial,
98
Idem, p. 37.
99
João Cezar de Castro Rocha, “Dialética da marginalidade”, Mais!, Folha de S. Paulo, 29/02/2004.
161
segregadora em todas as instâncias. Exatamente por isso essa escrita se inscreve em uma
dinâmica ainda semelhante à descrita por Antonio Candido. Afinal, Jocenir, André Du Rap,
Luiz Alberto Mendes e Humberto Rodrigues têm a pretensão de ser absorvidos pelo que
Antonio Candido chamava de pólo convencionalmente positivo, ainda que a pecha de
“presidiários” os mantenha naquilo que se poderia chamar de pólo negativo, para
permanecer na nomenclatura proposta por Candido.
Ao contrário, no entanto, do que acontece ao final das Memórias de um sargento de
milícias, nenhum desses narradores-personagens é de fato absorvido pelo pólo positivo,
mas deixa entrever o seu desejo de o ser quando publica o livro (e o agradecimento
presente em boa parte desses volumes o prova textualmente
100
), almeja a investidura de
autor e o reconhecimento de sua transformação. Na expectativa de “absorção” reside talvez
a maior dificuldade em considerar a produção do cárcere como característica do que Rocha
chamou de dialética da marginalidade. Se não se negam a expor a própria situação, esses
escritores o o fazem de modo a negar o “sistema criticado até porque a identidade
prisional depende da perspectiva de estar fora, portanto, da perspectiva (nunca de fato
completada) de ser absorvido pelo que Candido chama de “pólo convencionalmente
positivo”.
A dialética da marginalidade quando enclausurada repõe-se como dialética da
ordem e da desordem, em prosa construída, aí, sim, pelos próprios presos.
Em artigo dedicado às narrativas do cárcere, Eneida Leal Cunha pontuava:
“(...) as narrativas que saem dos presídios, nos títulos, afirmam sua a
sua vontade forte de inclusão no sistema literário, através do apelo a
formas instituídas as memórias, o diário, o conto de vertente
autobiográfica”
101
.
A vontade de inclusão no sistema literário a que se refere Cunha e já aqui repisada
deve ser colocada talvez de outro modo: como narrativas produzidas em circunstâncias tão
100
A percepção do privilégio da publicação aparece em muitos dos textos na forma de interlocução: “Muito
lhes agradeço a atenção dispensada”, diz Luiz Alberto Mendes, à página final de seu livro; “Este livro é um
sonho realizado. Obrigado por tê-lo lido”, afirma Rodrigues, também nas últimas linhas de seu Vidas do
Carandiru.
101
Eneida Leal Cunha, “Margens e valor cultural”, p. 166.
162
específicas se apropriam de “formas instituídas”?. O debate a respeito da apropriação de
formas existentes remonta à constituição da visada sociológica na literatura brasileira.
Quando Roberto Schwarz, referindo-se ao romance brasileiro do século XIX, declarou, em
seu Ao vencedor as batatas, que nossa imaginação fixara-se numa forma cujos
pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se
alterados”
102
, supôs que a forma-romance, burguesa por excelência, teoricamente não se
prestasse à realidade escravocrata brasileira. Nesse sentido, haveria um descompasso entre
forma e vida social e a capacidade de evidenciar a tensão seria o momento de maior
destaque das letras nacionais, com a publicação dos romances da segunda fase de Machado
de Assis.
Já se disse aqui que, nos livros produzidos a partir do cárcere, a escrita é vista como
meio de (re)inserção. Também já foi mencionado que esse movimento pela legitimação da
escrita se constrói por um olhar que ora se volta para dentro da prisão, ora para fora dela.
Ao fazê-lo, os autores mantêm-se leais aos companheiros de infortúnio, sem descuidar do
leitor externo, porque se a legitimação pode ser dada em duas vias (pelos pares, que
lidimam aquela narrativa, e pelos leitores externos, quando a publicam), a inserção no
“mundo exterior” só pode ser dada por aqueles que não compartem o espaço prisional.
Decorre daí uma forma híbrida, que recorre a formatos vários e que remete, por um
lado, ao precário letramento da população carcerária
103
(quando um livro é visto como
necessariamente extenso, quando excesso de citações), por outro, à necessidade de
validar, com os instrumentos reconhecidos, a própria palavra. Quando, no entanto, valendo-
se dessa necessidade, superpõem diário, memórias, livros de citações, ditos bíblicos, além
de lançarem mão das fotografias e reprodução de documentos, esses autores não deixam de
sugerir uma forma própria que, se estou certa, deve ser lida à luz de sua situação de
produção, o cárcere.
Ao apontar para a incapacidade de organizar a própria história sem escapar à
experiência prisional, os autores aqui estudados revelam certa insuficiência das formas
reconhecidas e estabelecidas, ainda que recorram a elas
104
, de modo sobreposto, por
necessidade de verem sua prosa e trajetória legitimadas.
102
Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, p. 35.
103
De acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, em 2000, 75% dos
presos tinham apenas o ensino fundamental incompleto
(http://www.sap.sp.gov.br/common/vinculados.html).
163
A vida social na cadeia, comosugeri no início deste capítulo, deve ser entendida
como portadora de características próprias (ao ambiente de onde essa narrativa provém e
do qual essa prosa o escapa), os tais modos de sociabilidade do cárcere, mas são traços
que existem porque reportados a outros, os do mundo livre, “sem grades”. Nesse
sentido, a exposição dos conflitos (a denúncia de torturas, maus-tratos de toda ordem) vem
acompanhada de desejo de cooptação por parte do mundo das letras, que não é reportado à
prisão. A oscilação que é entre a ordem prisional (a desordem?) e a ordem exterior à
prisão (a ordem) esse movimento pendular é, como procurei mostrar ao longo do
trabalho, visto na interlocução, na forma narrativa e na disposição de elementos
“extratextuais”.
Portanto, por um lado, a escrita prisional reatualizaria uma dinâmica social, a que
Paulo Arantes chamou de “dinâmica da combinatória brasileira”
105
e que remonta ao século
XIX, remodelada pela experiência prisional. Por outro, trata-se da primeira vez que
surgem, efetivamente, escritores na prisão – o que embaralha os modelos interpretativos.
Ordem e desordem, no contexto da cadeia, precisam ser esmiuçadas: quando presos,
os homens que antes infringiam a lei passam a seguir a lei da cadeia à risca. Quem não a
segue, segundo as narrativas que compõem o corpus desta tese, não é digno de viver
naquele ambiente. O cumprimento de um estrito código de conduta é necessário para ser
admitido como um do grupo, o que, em ambiente de clausura, é fundamental. Organizam-
se para que se pautem todos por um conjunto de procedimentos essa parece ser a ordem
reinante entre os presos. Os presos procuram cumpri-la, porque correm o risco de ter
decretada a pena capital se se insurgirem contra ela ou se não a reconhecerem como
legítima. Os funcionários e a direção dos presídios se beneficiam dessa norma ditada e
cobrada pelos detentos: é ela quem garante certo controle dos impulsos e, portanto, a
relativa paz no cárcere.
No momento em que alguns presos resolvem contar a própria história, com o intuito
de escrever um livro e publicá-lo, o mundo exterior ganha contornos mais nítidos do que os
das visitas que recebem, do que o dos funcionários que trabalham no presídio ou dos juízes,
104
Conforme Roger Chartier, “(...) não produção cultural que não empregue materiais impostos pela
tradição, pela autoridade ou pelo mercado e que não esteja submetida às vigilâncias e às censuras de quem
tem poder sobre as palavras ou os gestos” (“Textos, impressos, leituras”, p. 137).
105
Paulo Arantes, Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, p. 96.
164
psicólogos que definem seu destino. O mundo exterior à prisão passa a ser visto por quem
escreve a partir da prisão como uma possibilidade de, a um tempo, ter sua história
ouvida e acreditada (o que não é pouco), e reinserir-se àquela sociedade sem que tenha de
esconder a vida pregressa, quando, ao menos supostamente, infringiu as suas regras.
Quando a escrita-que-se-publica em tudo diferente da escrita das cartas, meio de
comunicação bastante empregado nos presídios) é a forma escolhida para contar uma
história que revela o seu autor como delinqüente, mas não apenas isso, o vislumbre de
pertencimento ao “pólo positivo” (que, nas narrativas, é o equivalente a estar livre e tornar-
se escritor) reorienta a dialética da ordem e da desordem.
Agora, é preciso mostrar o conhecimento de normas mais específicas literárias,
gramaticais, estilísticas para, enfim, postular uma futura e improvável inflexão na
trajetória desordeira. Mas, como muito se insistiu aqui, tendo que narrar a partir do
cárcere (porque a experiência é tão aniquiladora quanto constritora), de se respeitar
certas condutas próprias àquele ambiente e não tão facilmente reconhecíveis por quem não
está lá. Cria-se, portanto, a seguinte situação: o ambiente pouco cultivado das prisões
brasileiras engendra livros que serão publicados por editoras reconhecidas. As histórias
narradas nesses livros precisam, numa equação delicada, manter-se fiéis aos ditames do
cárcere e acenar aos que estão fora dele para a possibilidade de transformação em sua
carreira marginal. Mobilizam um mosaico de refencias internas e externas à cadeia e o
que resulta daí é algo que se destaca na produção cultural recente.
165
Anexo
“Hoje estou aqui”, de Antonio Donizetti
Preso como se fosse um bicho, sem ter ao menos o direito de me
defender.
A carência e a solidão mexem com as minhas estruturas.
Estruturas essas que jamais pensei que um dia fossem ser abaladas.
Quem diria, heim?
Logo eu, um animal frio e calculista, capaz de planejar e arquitetar
tudo o que eu possa um dia querer.
Mas a vida tem dessas coisas mesmo, são situações inexplicáveis, e
com isso a gente nunca pára de aprender.
Hoje eu estou aqui...
Mas eu não deixo de sonhar um dia poder estar lá novamente.
Particularmente, não me iludo com a justiça.
Justiça esta que até o momento desconheço
Aqui é cobra engolindo cobra,
Até os veadinhos não escapam dessa corrupção.
Parece um pedágio de sobrevivência.
Hoje eu estou aqui...
Vendo e ouvindo, mas não posso fazer nada,
os meus filhotes estão lá fora.
Presos assim como eu, só que num mundo diferente.
Parceiro, o meu coração está todo riscado,
sendo torturado pela solidão.
Para explicar é difícil, nem eu mesmo consigo,
até eu às vezes fico perdido, é verdade.
A liberdade não se ganha, eu sei, se conquista!
Mas o que eu queria mesmo é ter uma pista de como chegar lá.
Mas é quase impossível neste lugar, porque tem muito “tamanduá”.
Isso sem falar dos “piolhos” e percevejos,
os mesmos dão um trabalho enorme aqui.
166
Então o jogo de cintura tem de ser constante.
O inimigo está ao seu redor a todo instante, pronto para dar o bote.
Sem dó, sem pena.
Que pena! a “crocodilagem” predomina por aqui.
A carne humana é descartável.
Vejo camaleões camuflados, para que o sejam devorados
também.
Hoje eu estou aqui...
Amanhã posso não estar, porque a patifaria é total.
E eu não sou nenhum Indiana Jones, Bradock ou Robocop.
Dentro do meu peito não existe aço.
Sou um animal, normal como todos os outros.
Indefeso, mas com um objetivo.
Objetivo este que poucos têm, e quem tem, guarda para si mesmo.
Poder olhar este mundo diferente, diferente como eu vejo todos os
dias na televisão. Viver a vida.
E quando isso acontecer, o dia será curto.
Mas em compensação, a noite será longa.
Hoje eu estou aqui...
Vendo a imagem crítica deste lugar.
Vejo, com meus próprios olhos, lagartos e passarinhos e observo
com atenção seus olhares assustados.
É simplesmente a imagem mais sincera que eu já vi.
o quero nem procurar saber por que estão aqui.
Cada um, cada um...
Fiz de conta que nem os vi
Mas, para ser sincero, o engraçado aqui é ver um monte de leões
assassinos fugindo de uma simples onça.
Por que será que os leões não enfrentam as onças?
Será que elas são mais perigosas do que eu?
Ou será simplesmente pelo fato de eles serem todos primogênitos?
167
Ah, sei lá, deixa pra lá.
Hoje eu estou aqui...
Um dia, um companheiro disse-me aqui:
– Você agora está numa cadeia de segurançaxima.
No começo, não acreditei muito naquilo que meu amigo dizia.
Mas depois de engolir alguns sapos, comecei a acreditar.
Que lugar! Aqui os filhos choram e as mães não vêem.
o só lamentos, arrependimentos, mas que fazer?
É como eu já disse anteriormente:
eu vejo e ouço, mas infelizmente não posso fazer nada.
Cada um, cada um...
Fiz de conta que nem os vi.
Hoje eu estou aqui...
Com saudades das minhas gatinhas.
Saudades daqueles olhares ingênuos que me fascinavam.
É, na selva lá fora tem muito disso!
Algumas eu só aproveitei, outras só usei, você sabe como é.
Mas não consigo esquecer daquela que eu fiz mulher.
Agradeço muito pelos filhotes que me deu.
Talvez seja por isso que sobrevivo até hoje neste inferno.
Muitos não agüentaram, muitos correram,
muitos aqui não sobreviveram.
Mas graças a Deus estou de pé – Firme e forte!
Suando a minha camisa para um dia voltar para meus filhotes.
Simplesmente eles são a minha vida.
Vida esta que por aqui não vale nada.
Infelizmente esta é a linha
por onde tenho que fazer a minha caminhada.
Mas vou-que-vou, e com fé em Deus, eu ainda chego lá!
E quando isso acontecer, muitos carinhos vou lhe dar.
E se eu me sentir bem e gostar,
168
pode ser quem for,
porque hoje estou aqui,
amanhã ao seu dispor.
169
Bibliografia
Livros da pesquisa:
ANDRÉ DU RAP. Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru). (coord.
editorial Bruno Zeni). São Paulo, Labortexto Editorial, 2002
JOCENIR. Diário de um detento: o livro. São Paulo, Labortexto Editorial, 2001
MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo, Companhia das Letras,
2001
RODRIGUES, Humberto. Vidas do Carandiru: histórias reais. São Paulo, Geração
Editorial, 2002
Outros livros dos cárceres:
BISILLIAT, Maureen (org.). Aqui dentro, páginas de uma memória: Carandiru. o
Paulo, Imprensa Oficial do Estado de o Paulo/ Fundação Memorial da América
Latina, 2003.
BUNKER, Edward. Educação de um bandido. São Paulo, Editora Barracuda, 2005.
DOSTOIÉVSKI, Fiodór M. Memórias da casa dos mortos. Rio, Nova Aguilar, 2004.
GENET, Jean. Diário de um ladrão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.
Letras da liberdade. São Paulo, WB Editores, 2000.
LIMA, William da Silva. Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho.
o Paulo, Labortexto Editorial, 2001.
MENDES, Luiz Alberto. Às cegas. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
________________. Tesão e prazer: memórias eróticas de um prisioneiro. São Paulo,
Geração Editorial, 2004.
NEGRINI, Pedro Paulo. Enjaulado: o amargo relato de um condenado pelo sistema penal.
Rio de Janeiro, Gryphus, 2002.
PRADO, Antonio Carlos. Cela forte mulher. São Paulo, Labortexto Editorial, 2003.
RAMOS, Hosmany. Pavilhão 9: paixão e morte no Carandiru. o Paulo, Geração
Editorial, 2001.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro/ São Paulo, Record, 2002.
VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
170
WILDE, Oscar. A balada do cárcere de Reading. São Paulo, Nova Alexandria, 1997 (trad.
e introd. Paulo Vizioli).
Bibliografia sobre os livros estudados:
ADORNO, rgio. “A ciência da tortura”. Jornal de resenhas. São Paulo, Folha de S.
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