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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A ARTE NA/DA EDUCAÇÃO:
A INVENÇÃO COTIDIANA DA ESCOLA
Aldo Victorio Filho
2005
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Aldo Victorio Filho
A ARTE NA/DA EDUCAÇÃO:
A INVENÇÃO COTIDIANA DA ESCOLA
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de s Graduação em
Educação da
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor
Orientadora: Profa. Dra. Inês Barbosa de Oliveira
Rio de Janeiro
Outubro de 2005
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Aldo Victorio Filho
A ARTE NA/DA EDUCÃO:
A INVEÃO COTIDIANA DA ESCOLA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
s - Graduação
em Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Doutor
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profa. Dra. Inês Barbosa de Oliveira
Orientadora
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
Universidade Estadual de Campinas
__________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço
Universidade Federal do Espírito Santo
__________________________________________
Prof. Dr. Jorge Luiz Cruz
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________________
Prof. Dr. Roberto Luís Torres Conduru
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
2005
Dedicatória:
Esta pesquisa é dedicada aos estudantes da escola que estudei e de todas as
escolas públicas do Brasil.
À Maria Helena e aos meus filhos.
Agradecimentos
À orientação sensível da Professora Inês Barbosa de Oliveira, a quem devo além do
respaldo intelectual, o apoio e incentivo durante a aventura deste trabalho, além da
energia de seu generoso bom humor.
À Professora Nilda Alves, por tantas coisas, do acolhimento às broncas, pelo sempre
generoso incentivo, pela sua obra, pelo empréstimo de parte do tulo deste trabalho e,
sobretudo, pela exemplar na beleza no/do cotidiano das escolas.
Ao Aristóteles, professor como eu, da educação pública, pela amizade, companhia e
diálogo permanentes, sem os quais não teria conseguido realizar esse trabalho.
À Professora Lílian do Valle pela atenção, apoio e amizade.
Ao Filé e à Anelise pela amizade e companhia, pela força e carinho.
Aos professores Roberto Conduru e Luis Antônio Baptista pela participação
enriquecedora no exame de qualificação.
Aos integrantes dos grupos de pesquisa das Professoras Inês Barbosa de Oliveira e
Nilda Alves, cujos encontros são importantíssimos para a minha formão e trabalho.
A todos os meus companheiros das escolas nas quais trabalho e trabalhei.
À Angelice, à Carmen, ao Caê pela força e amizade.
Ao Instituto de Geografia e Estatística – IBGE, pelo imprescindível investimento.
Ao amigo Kaizô Beltrão, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas
ENCE, pelo apoio e confiança.
Ao David Wu Tai pelo permanente apoio e amizade.
Ao Marcos Balster e à Elizabeth Saramela pela ajuda e amizade.
Aos estagiários Miracy Antonio Martins Junior e Sandra Porto, pela companhia
solidária e pelas imagens.
Aos meus alunos e alunas por tudo que me ensinam, pelo prazer e orgulho da
convivência que desfruto.
Especialmente à Maria Helena, sem a qual absolutamente nada seria possível.
O nome da escola assim como de seus alunos e alunas, professoras e diretoras o
fictícios.
As fotografias presentes neste trabalho foram produzidas nas aulas de arte e o de
autoria coletiva. As imagens dos alunos e alunas foram devidamente autorizadas para
o uso exclusivo nesta tese.
RESUMO
O presente trabalho parte das experiências vividas no colégio no qual sou
professor de artes - um colégio público de ensino médio do Estado do Rio de
Janeiro as quais o utilizadas como argumentação da tese que defende o
espaço escolar como cenário imagético permanentemente reinventado nas
relações e vivências coletivas que abriga. A escola imaginada cotidianamente
por seus protagonistas, professores, professoras, alunos e alunas é, então,
apresentada em seu dia-a-dia como uma rede imagética na qual aparece a
produção de sentidos para a existência desses praticantes no/do cotidiano do
universo escolar público.
O que é tomado como central neste universo é a potência imaginal investida na
produção da escola em seus transitórios espaços e tempos sempre
impregnados de belezas. Sob essa perspectiva, os protagonistas da escola
fazem de uma vida difícil, às vezes dura, a estética do acontecimento do dia-a-
dia, sem racionalizarem, necessariamente, a condição sisífica inerente à
permanente criação de sentimentos de existir, imprescindível ação para tornar
a vida mais que suportável, fruível.
Nesse caminho, tentei captar o fugidio, a fugacidade dos pequenos
acontecimentos cotidianos que, a despeito de sua volatilidade e aparente
irrelevância, emergem como preciosos indícios de um universo não
considerado ou não percebido por muitos que pesquisam a Educação nesses
mesmos espaços escolares. Para tanto, o texto foi articulado entre cinco
categorias do imaginário - reprodução, irrealização, evocação, fabulação e
criação - entendidas como produtoras das imagens da escola. Imagens que se
enredam e confundem na contínua invenção da escola. Imagens narradas por
meio da escrita e por meio das fotografias produzidas ao longo da pesquisa,
mediadas pela idéia de que a vida cotidiana é mais próxima da arte do que
comumente é imaginado.
arte - imaginação - cotidiano – escola
RÉSUMÉ
Le présent travail part des expériences vécues dans le lycée je suis
enseignant des Arts - un lycée gratuit de l'enseignement secondaire
appartenant au réseau public de l'Etat de Rio de Janeiro - lesquelles sont
utilisées comme argumentation de ma thèse qui soutient que l'espace scolaire
est un scénario iconique réinventé en permanence dans les relations et les
cohabitations collectives qu'il abrite. Le lycée imaginé quotidiennement par ses
protagonistes, ses enseignants, ses élèves - hommes ou femmes - est alors
présenau jour le jour comme un réseau iconique dans lequel resplendit la
production des sens pour l'existence de ces pratiquants, à la fois du quotidien et
dans le quotidien, de l'univers des lycées publics.
Ce qui est pris comme noyau dans cet univers est la puissance imaginelle
investie à la production dans le lycée aussi bien dans ses espaces transitaires
que dans ses temps toujours si impregnés de beautés. Sous cette perspective,
les protagonistes du lycée font d'une vie difficile, voire dure, l'esthétique de
l'événement au jour le jour, indifférents à leur condition de Sisyphe inhérente à
la permanente création des sentiments d'exister, action indispensable pour
rendre la vie plus que supportable, réjouissante.
Ce faisant, j'ai essayé de capturer le fuyant, la fugacité de petits événements
quotidiens qui, malgré leur volatilité et leur apparent manque d'importance,
émergent comme étant des indices précieux d'un univers qui n'est ni pris en
compte ni apperçu en matière d'Education par beaucoup de chercheurs
travaillant dans les mêmes espaces scolaires. À cette fin, le texte a été articulé
entre cinq catégories de l'imaginaire - reproduction, irréalisation, évocation,
fabulation, et création - entendues comme productrices des images du lycée.
Ces images s'emmêlent et se confondent dans la continuelle invention du lycée.
Ces imagens sont narrées au moyen de l'écriture, et au moyen des
photographies produites tout au long de cette recherche, moyennant l'idée que
la vie quotidienne est souvent beaucoup plus proche de l'art que ce que nous,
d'habitude, l'imaginons.
art – imagination – quotidian - lycée
uma imagem
O que quero é escrever sobre a escola que me habita. Pensei, certa vez, que
retornava à escola para me vingar, uma volta mítica, uma fabulação. A gente
vive fazendo essas coisas, vivendo retornos trágicos... na medida certa, na
distância exata. De todo modo, era preciso enfrentar esse espetáculo. Mas, as
coisas se o sob a inexorável rebeldia do cotidiano, do imaginário que
remenda a existência... remendos imaginários sobre tecidos imaginários.
A tragédia está posta: a escola imaginada ressurge com toda a potência da
criação de seus protagonistas. É eminentemente estética, é sensação e prazer
amalgamados com a dor de se fazer o que se é, a cada instante, sem a ilusão
do abrigo das consolidações definitivas... sem prisão nem liberdade.
1
Sumário
1- Entre imagens, entre os jovens, na escola: a Hidra ....................................2
1.1 Entre imagens ...............................................................................10
1.2 Entre os jovens...............................................................................28
1.3 A Hidra............................................................................................35
2- As redes teórica e metodológica
2.1 A rede teórica .................................................................................46
2.2 A rede metodológica .......................................................................68
3- As imagens da invenção cotidiana da escola
3.1 A escola produzida pela imaginação fabuladora
3.1.1 Direção e docentes fabulosos ...........................................85
3.1.2 Alunos e alunas fabulosos .................................................98
3.2 A escola produzida pela imaginação irrealizadora ........................115
3.3 A escola produzida pela imaginação reprodutora .........................133
3.4 A escola produzida pela imaginação evocadora ...........................162
3.5 A escola produzida pela imaginação criadora,
pesquisa artística ou considerações finais .....................................181
4- Referências bibliográficas ...........................................................................199
2
Entre imagens, entre os jovens, na escola: a Hidra
Proceder a uma investigação no campo da educação, via o cotidiano escolar e
seus múltiplos processos de produção da vida escolar e, no que cabe a esses
espaços, da própria vida, é sempre um formidável desafio. Desafio, este,
constituído pelos muitos, e imbricados, obstáculos que a pesquisa atualmente
enfrenta: da suspeição sobre a utilidade e adequação dos métodos tradicionais
de pesquisa à ameaça do esvaziamento de sentido da pesquisa como busca
de uma, cada vez mais, improvável alcançável verdade. Entretanto, nada
aponta para a capitulação da busca de entendimentos sobre qualquer aspecto
do complexo universo da educação. Para nós, aqueles que se encontram
ligados ao universo das escolas e acreditam na luta por uma vida melhor para
todos, é cada vez mais urgente compreender, ou apreender, o máximo possível
– que na maioria das vezes parece ser o mínimo – dos processos, tramas,
engendramentos, encontros e desencontros que instituem e constituem o
universo escolar contemporâneo.
3
A minha iniciativa neste âmbito, ou seja, a minha escolha para enfrentar esses
desafios, parte do trabalho sobre algumas experiências vividas no colégio no
qual sou professor de artes. Um colégio público, de ensino médio do Estado do
Rio de Janeiro. As experiências utilizadas foram selecionadas de acordo com
seu poder revelador de como o espaço escolar investigado, a despeito de uma
infinidade de possibilidades e realidades, é palco de um vasto número de
relações e vivências coletivas que têm, como resultado maior, a produção de
sentidos para a existência de parte de seus autores e autoras, os estudantes.
O que dá relevo às marcas da diferença desses jovens estudantes, no
universo das pessoas de maior visibilidade com que convivemos na cidade,
e o que os fazem especiais para mim, e, portanto, atrai minha atenção é,
fora o quase “natural” interesse de um professor por seu trabalho, a
condição extremamente grave de desfavorecimento e riscos na qual se
encontram. Por serem pobres, por serem alunos de um sistema escolar
debilitado, enfim, por, também, estarem expostos a uma série de riscos
agravados por tudo que a formação, e condições, não muito melhores, de
vida de seus professores, lhes acabam por trazer e pelas diversas maneiras
que a escola, em suas muitas imagens, lugar no qual são observados, lhes
desafia, estimula, limita, oprimem e liberta.
Entretanto, o que é central no meu interesse, o que me surpreende e me
conduz à empreitada dessa pesquisa, no seio desse mundo de problemas, é a
contrastante capacidade, necessidade, exigência, enfim, desses jovens de
construírem seus mundos, transitórios mundos, impregnados de belezas, como
percebo e defendo. E assim fazem de uma vida difícil, freqüentemente muito
dura, algo belo, indiferentes à condição sisífica dessa permanente invenção de
4
sentidos, de construção de sentimentos de existir (Todorov,1996). Eterno
recomeço, a cada novo dia a ser enfrentado, vivido. Para tornar a vida um
pouco mais que suportável: fruível.
Reconheço, contudo, que afirmar a existência da beleza abre flancos para a
discussão da verdade ou da possibilidade estética. Devido às dimensões desse
trabalho e de seu direcionamento, não avanço nessa discussão,
interrompendo-a para registrar que a perspectiva aqui adotada é de que as
relações estéticas com a vida são primordiais e, por conseguinte, são aquelas
que dão o tom à dramaticidade de seus cruciais desdobramentos. A esse
respeito, as palavras de Maffesoli ajudam a elucidar essa idéia que
participa da nervura central dessa pesquisa.
A experiência compartilhada gera um valor e funciona como vetor de
criação. Mesmo que esta seja macroscópica ou minúscula ou que
corresponda aos modos de vida ou à produção de arte, engloba a
totalidade da vida social na suas diversas modalidades. É a partir de
uma arte generalizada que se pode compreender a estética como
faculdade de sentir em comum (Maffesoli, 2005:14).
Nesse caminho, os desafios multiplicam-se na imposição de captar o fugidio, a
fugacidade dos pequenos acontecimentos cotidianos que, a despeito de sua
volatilidade e aparente irrelevância, são preciosos indícios de um universo não
visto, não percebido, via de regra, por muitos dos que pesquisam a Educação
via os mesmos espaços escolares. O que denomino pequenos acontecimentos
não são somente o resultado de ações, mas também, aparências, olhares,
atitudes coletivas e individuais, as previamente articuladas, as subitamente
criadas e aquelas que parecem espontâneas, perdidas entre tantas outras
ações que constituem o cotidiano das escolas. Falas, formas de marcar
identidades em suas multifacetadas formas, adesões, partidos. Para mim,
5
experiências imagéticas que expõem tramas importantes da rede de sentidos
que é, também, e fundamentalmente, o espaço escolar.
Direcionando minha atenção para as visualidades desses jovens, para suas
falas, seus mundos enfim, pretendo dar relevo à estética das operações que
configuram a busca de sentidos, como entendo, que lhes constitui e lhes
permite enfrentar a vida. Defendo, assim, que essas muitas operações de
estetização da vida, forma e conteúdo da própria existência, têm muito a
revelar sobre o universo juvenil, no caso específico desse trabalho,
acontecimentos indissociáveis do teatro da educação formal. Tentarei neste
enfrentamento, por meio de caminhos nem sempre muito seguros, trabalhar, na
medida do possível, sobre a percepção de algumas - muitas vezes
desregradas e mesmo abusadas - formas de produção do cotidiano, espaço
irredutível do acontecimento da vida. Maffesoli (2005:12/13) me auxilia, mais
uma vez, no esclarecimento do partido que adoto.
Toda a vida cotidiana pode ser considerada uma obra de arte. Em
função, certamente, da massificação da cultura, mas também porque
todas as situações e práticas minúsculas constituem a terra fértil sobre
as quais crescem cultura e civilização... pode-se dizer que o interesse
culinário, o jogo das aparências, os pequenos momentos festivos, as
perambulações diárias e o lazer não podem ser mais vistos como
elementos sem importância ou frívolos da vida social. Como expressões
de emoções coletivas, constituem uma verdadeira centralidade
subterrânea, um querer viver irreprimível que deve ser analisado. Há
uma autonomia em formas banais da existência que numa perspectiva
utilitária ou racionalista, não possuem qualquer finalidade, embora não
sejam menos carregadas de sentido, mesmo que este se esgote in actu.
A utilização de recortes imagéticos do cotidiano implica em lidar com a
deslizante tessitura de múltiplas táticas, Certeau (1994) que, indômitas, às
vezes violentas, às vezes indolentes, emergem como fonte originalmente
6
reveladora da vida na escola. Por conta de suas condições, os acontecimentos
que busco explorar mostram-se em permanente movimentação: fugas, rápidas
revelações, fulgurações quase sempre em mimetismo desconcertante com a
ambiência regulada dos espaços oficiais, portanto, acontecimentos que não
permitem facilmente sua exploração. As formas de ser e de viver que
denotam são, sem dúvida, fonte tão, ou mais, significativa para o estudo
da educação do que um mundo de questionamentos e abordagens
algemados aos projetos e resultados da esfera da cognição. Assim, a minha
aventura, em seus imprevisíveis desdobramentos, é acompanhada pela
instabilidade comum às iniciativas que se inventam no curso de seus próprios
processos de acontecimento. Processo instigante e frágil, porquanto inebriado
mais pela poesia que emana do ato de fruir do que respaldado pela ciência,
acaba sendo, temo, ameaçado pela permanente sombra dos regimes
outorgados de pesquisa com seus métodos sistematizadores que marcam e
questionam, de uma forma ou de outra, os pesquisadores nos atos da
experimentação. Contudo, reconheço que o muitas vezes torturante diálogo
com as formas tradicionais de estudo e pesquisa contribui para o
encaminhamento da pesquisa no cotidiano.
Captar as imagens e registrá-las, ou proceder a tais capturas sem esvaziá-las
de significado ou aviltá-las pela também permanente ameaça da colonização
dos meios acadêmicos convencionais de abordagem, representa uma
dimensão da luta que procuro traduzir na invenção do cotidiano estudado.
Cotidiano diagramado pelas experiências que me prendem no dinâmico jogo da
sedução e da perda. Sedução pelo que sinto e não racionalizo, às vezes por
não conseguir, às vezes por não desejar apreender dessa forma. Sedução pelo
7
que presencio e atribuo importância e que perco por não ser aprisionável
metodologicamente, segundo os entendimentos tradicionais que atravessam
esse significante, nem conceitualmente, sob o ângulo das teorias tradicionais da
ciência moderna que, inevitavelmente, emaranha - se nas minhas formulações.
Mas, é preciso, ou melhor, eu preciso narrar essa escola. E a minha narrativa
procura ser para além da visada meramente cognitiva. O que proponho discutir
e mapear certamente não pode ser, mesmo porque não o consigo nem o
desejo, territorializado dentro dos limites das representações mais tradicionais
da escola, sob certo aspecto, reduzidas ao jogo domesticado do ensino e da
aprendizagem. Por outro lado, a “escola”
1
que pesquiso, via as peculiaridades
que destaco, não parece ter seu devir assegurado pelo viés dos auxílios que a
investigação cognitivista pode oferecer em sua territorialização específica.
Na tentativa de apresentar a escola na qual atuo como professor e
pesquisador, acho fundamental, antes de tudo, destacá-la como resultado
exemplar das tramas políticas que regulam a educação pública no Estado do
Rio de Janeiro. Trata-se de uma escola, sob inúmeros aspectos, imagem de
precariedade e destinada a uma gente sem futuro, conforme palavras de
alguns de seus trabalhadores, ratificadas por algumas de suas imagens,
muitas vezes dominantes. Uma escola cuja polifonia imagética não mostra
indícios de esperança fora do que os seus alunos podem, e de fato criam, em
seus encontros, em seus afetos, em suas criações de sentidos, insisto, que
geram as suas vidas naquele espaço em nosso complexo tempo. Criações
esteticamente ricas e originais, forma e conteúdo de uma poética inconcebível,
1
Aqui não me refiro especificamente à “minha escola” ou qualquer instituição escolar
específica, mas à instituição escolar genérica que subsiste em todas as escolas, ou na qual
subsistem todas as escolas, com seus nomes e sobrenomes.
8
muito torta, às vezes rude, às vezes tosca, mas vital para seus autores e para
aqueles que, como eu, precisam desse tipo de fruição para viver.
Percebo tal espaço escolar como um caleidoscópio de fragmentos de
muitas imagens que tanto traduz quanto expõe e engana sobre si próprio.
Imagens estilhaçadas que expõem e, num piscar de olhos, ocultam os
acontecimentos que dinamizam o nosso cotidiano na escola, território
irredutível de suas verdades.
A complexidade das imagens cotidianas – ao mesmo tempo encantadoras
e assustadoras – desarma facilmente a organização dos dispositivos de
compreensão do pesquisador, e essa constatação aponta a necessidade
de, permanentemente, no curso da pesquisa e de seu registro, revisitar
meus limites pessoais e, assim, reconsiderar as aplicações do que
considero meus lastros teóricos. Esse estado de inquietação me leva a
entender como fundamental ao caminho dessa pesquisa a aceitação da
entrega desavisada, talvez via breves relaxamentos ou até mesmo, via a
tentativa intencional de fruição desarmada, como convém, muitas vezes, à
aventura de qualquer pesquisa.
Para deflagrar e nortear a relação estabelecida com o “objeto” desta pesquisa
elegi como centralidade referencial, o que percebo como sua imagética. E esta
imagética, como resultado do imaginário que é produzido, produz e circula nos
espaços e lugares escolares. Imaginário também compreendido como criador
da movimentação de sistemas sígnicos que opera a dinâmica permanente dos
acontecimentos que, por sua vez, configuram as narrativas, as localizações, os
pertencimentos, enfim, o pulverizado acontecer e devir da vida nas pequenas
ações cotidianas.
9
Segundo Ruiz (2004:32) os termos imaginário e imaginação não significam a
mesma coisa. O primeiro termo corresponde ao aspecto insondável do ser
humano, em que se produz, além de todos os condicionamentos psíquicos e
sociais, o elemento criativo; ele constitui o sem fundo inescrutável da pessoa
humana, que possibilita o segundo, a imaginação, e também a racionalidade,
entendidas como dimensões próprias do humano. A imaginação e a racionalidade
seriam, nessa perspectiva, criações do imaginário, e ambas coexistiriam,
necessariamente, co-referidas na dimensão simbólica inerente ao ser humano.
10
Entre as imagens
Com efeito, temos aí um problema propriamente filosófico: será o imaginário
um bom conceito? Inicialmente há um primeiro par, “real-irreal”. Pode-se defini-
lo à maneira de Bergson: o real é a conexão legal, o encadeamento
prolongado dos atuais; o irreal é a aparição brusca e descontínua à
consciência, é um virtual enquanto se atualiza. Além disso, há um outro par,
“verdadeiro-falso”. O real e o irreal são sempre distintos, mas a distinção entre
os dois nem sempre é discernível; existe o falso quando a distinção entre o
real e o irreal não é mais discernível. Porém, precisamente, quando há falso, o
verdadeiro não é mais decidível. O falso não é um erro ou uma confusão, mas
uma potência que torna o verdadeiro indecidível.
O imaginário é uma noção muito complicada, porque está no entrecruzamento
dos dois pares. O imaginário não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o
real e o irreal. Os dois termos não se correspondem, eles permanecem
distintos, mas não cessam de trocar sua distinção. É o que se vê bem no
fenômeno cristalino, segundo três aspectos: existe a troca entre uma imagem
atual e uma imagem virtual, o virtual tornando-se atual e vice versa; e também
há uma troca entre o límpido e o opaco, o opaco tornando-se límpido e
inversamente; enfim, há a troca entre um germe e um meio. Creio que o
imaginário é esse conjunto de trocas (Deleuze, 2004:85).
11
Trabalhar com “imagem” induz, entre outros movimentos, à localização e à
identificação das ações que a produzem e ao mapeamento das condições que
permitem apreendê-las. Esse esforço inicial me parece ser um exercício
oportuno à necessária localização e aplicação de algumas noções a respeito
da “imagem”, o que significa, de certa forma, enveredar por algumas trilhas do
universo do imaginário, aceitando que a imagem pode ser entendida como um
de seus resultados. Para tanto, tomo o “imaginário” como todo o universo
produtor da imaginação, individual ou coletiva, que se caracteriza pela ação de
criação, leitura e apreensão de configurações que representem e recriem o
mundo. Jogo que se dá nas tensões das tramas subjetivas dos produtores e
interlocutores das imagens. Nesse caminho, entendo que as leituras e fruições,
bem como as produções das imagens, certamente, seriam, também,
agenciamentos de infinitas possibilidades de criação e combinações de sentidos,
concordâncias, composições e criações simbólicas que urdem a vida social.
A imagem não se reduziria à sua possibilidade ótica, retiniana, mas avançaria a
toda carga de ambigüidade que essa palavra pode suscitar, considerando a
sinestesia entre um complexo ambíguo de estímulos auditivos, visuais e
emocionais (Santaella, 2001: 298).
A imaginação,
na acepção comum, como observa Ruiz, (2004:30), é sinônimo
de alucinação, pois o real se contrapõe à imaginação, assim como a verdade,
ao erro. O imaginado seria assim um subproduto da racionalidade. Enquanto o
racional possui um estatuto ontológico de verdade, a imaginação é
caracterizada por sua falta de consistência. Atribui-se, portanto, à imaginação
um papel de coadjuvante da racionalidade. Ela possibilita que o logos possa
extravasar tensões, recreando-se com a imaginação estética, aliviando-se no
12
mundo da imaginação onírica, alienando-se no mundo da imaginação mística
ou, simplesmente, relaxando-se na arena da imaginação lúdica
A imaginação e o imaginário constituem dimensões antropológicas e sociais
que interagem permanentemente com a racionalidade. Racionalidade e
imaginação estão implicadas numa tensão permanente. Dentro desse
entendimento, a imaginação pode ser considerada um processo vital de
produção de imagens geradoras de uma das forças amalgamadoras das
subjetividades e de seus desdobramentos nas formações coletivas. Pois ela se
mostra como intensa e fundamental mediação na relação homem – mundo.
Para dimensionar sua força e movimentação é preciso considerar que, a
despeito da sua potência aqui ressaltada, a desvalorização da imagem tem
atravessado o pensamento ocidental dominante, principalmente quando é
avaliada em face de outras funções do psiquismo humano, tais como a
inteligência, memória e pensamento. Durand (2002) explica esse fato como
conseqüência do cientificismo e do método da verdade oriundo do
13
atualidade, o que faz com que as produções artísticas ou estéticas, bem como
as manifestações juvenis e infantis resultantes de seus imaginários sejam
freqüentemente menosprezadas ou apartadas pela indiferença.
Entretanto, a despeito do que lhe reservou a lógica cientificista, os valores do
imaginário foram resguardados em momentos historicamente importantes
como se deu nos movimentos romântico, simbolista e surrealista, para ressaltar
apenas os momentos de maior visibilidade. Fora do campo da arte, na
psicologia, temos mais um importante exemplo da valorização dos processos
imaginários quando Freud toma as imagens como mediações entre o
inconsciente e o consciente. Contudo, a concepção de imaginação trazida pela
psicologia a toma como uma combinação de elementos fornecidos à psique,
visão esta que, se não ignora, também não aponta relevância para a
característica fundamental da imaginação que é a criação.
Mais recentemente a filosofia trará outros enfoques para a imaginação,
Castoriadis, por exemplo, sublinha a relevância do imaginário e imaginação,
elevando esses conceitos à grandeza dada à razão. Para ele a história da
humanidade é a história do imaginário humano e de suas obras (Castoriadis,
2004:127). Com relação, especificamente, à psique humana, afirma que esta
é, antes de tudo, imaginação radical, na medida em que é fluxo ou torrente
incessante de representações, desejos e afetos” (idem: 131).
Estendendo essa breve recuperação conceitual da “imaginação”, encontramos
esse termo como faculdade mental de representar imagens. Em alguns casos
como na definição de Japiassu e Marcondes (1990), esse termo é descrito
como “faculdade criativa do pensamento em que este produz representações,
de objetos inexistentes”. Nesta definição subjaz um certo desvalor ao processo
14
imaginal, como se este não tivesse efeito de entendimento ou apreensão do
mundo, como se este não constituísse o real.
Se em Aristóteles encontramos a imaginação como uma das formas de
conhecimento que atuaria junto com a sensação, a percepção, memória,
raciocínio e intuição, sem me sentir levado pelo devaneio, penso não ser
arriscado aventar a imaginação como conjunção de todas essas forças.
Conjunção que aconteceria sob a categorização da tradição filosófica na qual a
imaginação é dissecada em duas possibilidades principais, a reprodutiva e a
criadora. A primeira tendo relação direta com a capacidade de evocar imagens
do que é percebido, portanto fortemente ligada à memória. A segunda, a
possibilidade criadora, seria a imaginação como capacidade de produzir
imagens do que não foi percebido ou do que não existiria. Seria, então, a
imaginação entendida como criação, capacidade fundamental do ser humano.
A imaginação, sendo compreendida como reprodutora ou criadora, não
deixa de ser um processo vital de representação, transformação, ordenação
e composição imagética que expressa o acontecimento de cada sujeito e,
conseqüentemente, de seus coletivos, e mais ainda, das conexões que os
viabilizam, enfim, os seus encontros.
A imaginação, portanto pode ser compreendida como uma rede que comporta
as possíveis e as impossíveis realizações, assim como o real comporta o que é
realizado e as possibilidades não realizadas. Equivocadamente, a imaginação
é acusada de apenas parecer ser a matéria viva da tessitura do real, sobretudo
quando é denominada fantasia, ou seja, o oposto do real. No que tange os
caminhos e descaminhos desse trabalho ela é o real, tanto quanto o real é fruto
da imaginação (Silva, 2003:7).
15
Imaginar pode ser fantasiar, de uma forma ou de outra, criar. Sendo
entendido que criar é produzir o que não existia antes, como, por
exemplo, uma nova leitura do que já se tinha como esgotado em termos
de leituras e interpretações.
Nesse passeio pelos conceitos da imaginação, encontramos em Sócrates a
afirmação de que a imaginação é o poder de representar o que não é.
Definição não distante daquela na Crítica da Razão Pura de Kant, na qual a
imaginação é definida como “a capacidade de representar um objeto na intuição,
mesmo sem a sua presença”, ou “capacidade de fazer aparecer representações,
procedam ou não de uma incitação externa”. A imaginação seria, então, o poder
de fazer ser o que, na realidade não é, entendimentos que, numa insólita
aglutinação com especulações mais atuais, dariam consistência à idéia de que a
imaginação é geradora do inescapável universo cotidiano, no qual cada um
participa com suas possibilidades de criação da feitura do real, real que se
transmuta a cada sentir e a cada encontro de sentires.
Seguindo os grandes planos nos quais se traduziria a imaginação, Chauí
(1997: 35) explica que a ação da ‘imaginação’ teria, a princípio, as seguintes
possibilidades: reprodução, evocação, irrealização, fabulação e criação.
A reprodução tomaria as imagens da percepção e da memória buscando uma
ligação direta com uma realidade palpável; a evocação presentificaria o
ausente, produzindo imagens sob o viés da afetividade; a irrealização, em parte
ao contrário da evocação, apagaria o presente para viabilizar a vivência de
uma realidade íntima. A irrealização, então, seria a ação da imaginação ativada
nos sonhos, nos devaneios e nas brincadeiras, como produção imagética se
aproximaria da mágica. Já a fabulação criaria mitos ou lendas pelos quais uma
16
sociedade, um grupo social ou uma comunidade pensaria e imaginaria sua
própria origem e a origem das coisas, oferecendo explicações para o seu
presente e justificando certa trajetória apoiada em imagens fundamentalmente
simbólicas para um fim considerado positivo ou negativo, para o justo e para o
injusto, para o certo e para o errado entre outras polarizações, da mesma
forma como opera a imaginação religiosa.
Finalmente, a criação seria a força que inventa ou cria o novo nas artes, nas
ciências, nas técnicas e na filosofia onde se combinam elementos afetivos,
intelectuais, estéticos e culturais que, enredados, produzem as condições para
que algo novo seja criado. A imaginação criadora, então, acionaria a
percepção, a memória, a imaginação reprodutora e a evocadora para
acontecer como criação ou invenção.
Lançando mão dessas cinco imagens da imaginação e tomando a imagem
como produto da imaginação, pretendo emoldurar as prospecções e mesmo as
deambulações superficiais do que considero como universo imagético do
cotidiano escolar. Molduras que não têm a função de isolar, mas de constituir
espaços que permitam a própria elaboração imagética desse trabalho. É
importante ressaltar que esse caminho não se arvora em esgotar as
possibilidades de entendimento do processo imaginal, assim como as
categorias escolhidas são utilizadas como um ponto de partida, mesmo que
venham a se mostrar provisórios e/ou insuficientes, para a aventura do diálogo
e da narrativa do cotidiano escolar, a um só tempo, no meu entendimento,
máquina e produto imagético.
Numa outra perspectiva, o termo imagem remete, comumente, ao âmbito da
arte, campo onde tradicionalmente é territorializada nas obras visuais, literárias,
17
musicais, arquitetônicas, teatrais, cinematográficas, cibernéticas, etc. Aceitando
que o universo da arte é potencialmente, e prioritariamente, estético, a imagem
é considerada a partir das suas características formais e das suas
possibilidades perceptivas e/ou de fruição, mesmo que sob esses canais
subjazam outros objetivos, de comunicação ou outros intentos pragmáticos.
Entretanto, considerando o universo artificial, ou seja, a interminável obra
humana, como processo permanentemente enredado, constituído e movido
pelo imaginário, operação humana que se imiscui em toda a produção material,
virtual e discursiva, torna-se difícil, arriscado e desnecessário simplificar a
imagem sob o estabelecimento de qualquer limite definidor que a enclausure
conceitualmente. Sobretudo, se entendemos as imagens como resultantes de
ilimitadas possibilidades e múltiplas condições de produção, mesmo admitindo
que, entre essas inumeráveis formas de produção imagética, apenas algumas
são selecionadas e evidenciadas, de acordo com a cena cultural que as
envolvem, de acordo com os discursos e os sujeitos que as narram.
Defendo que a localização de cada imagem no tempo e no espaço, além de
auxiliar na elucidação dos procedimentos que a instituem como tal e lhes
atribuir valores específicos, possibilita entender a evidência de determinada
imagem em meio a uma infinidade de outras imagens, assim como os
agenciamentos que as permitem ser legitimadas como tais.
Quando pensamos em “imagem”, são as imagens visuais as primeiras a serem
evocadas, muito provavelmente em decorrência da hegemonia da visualidade
nos primeiros contatos com o mundo externo e o forte apego às aparências dos
objetos, que, na aceleração do tempo, acabam, muitas vezes, por ser o início e
o fim do conhecimento sobre as coisas. Dessa forma, o campo imagético tem
18
sido privilegiado como o universo do visível, do explícito, do iluminado, muito
embora, como entendo, mesmo as imagens visuais não se reduzem à sua
visualidade, ou seja, não limitam sua significação e/ou sentidos à articulação
dos elementos que expõem na sua face alcançável pelo olhar. Como defende
Baitello
2
, é preciso considerar que toda visibilidade carregaria consigo a
invisibilidade correspondente, o que pode significar que, além da inflação ou
exacerbação das visualidades, agregar um desvalor à própria imagem, tudo
aquilo que é evidenciado anuncia uma ocultação correspondente. A redução da
imagem ao que é alcançável pelo olhar pode representar a perda de
considerável manancial imagético, pois, como também alerta Baitello, a
iconofagia (consumo voraz das imagens) nos ronda. Quanto mais se vê menos
se viveria, quanto menos se vive mais se dependeria de visibilidade e quanto
mais visibilidade é conquistada, tanto mais invisibilidade acarretaria, o que
reduziria a própria capacidade de olhar. O que interessa, sobremaneira, na
trajetória dessa pesquisa é à invisibilidade contida no visível, não como algo
subterrâneo a ele, pois, sem tomar o visível como superfície do oculto, me
interessa a maximização da exploração do visível por meio da sua super
fruição, como pretendo explicar melhor nas etapas em que dividi esse texto.
Embora a exploração da imagem via o estudo das suas forças, ou seja, de
suas potencialidades narrativas induza a buscar sempre além da sua mera
constituição visual, e acautele o seu aproveitamento, tomando-a apenas como
elemento indiciário de algo sempre para além da sua corporeidade, como se
esta fosse uma unidade de significação que apenas se dobrasse sobre si
mesma, procurei explorar as potencialidades das imagens cotidianas contidas
2
Baitello, Norval Junior. O olho do furacão. A cultura da imagem e a crise da visibilidade, Centro
Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. Capturado na internet www.cisc.org.Br/biblioteca/
em 10/10/2003.
19
em suas próprias concordâncias, em seus próprios acontecimentos. Apesar da
exploração das imagens, para além das suas superfícies apreensíveis pelos
sentidos, prometer, também, entendimentos importantes nas investidas
investigativas das relações sociais cotidianas, na seleção das imagens foi
importante observar que seus significados nem sempre se dão além dos limites
das tramas de seus corpos e materialidades. Ou seja, julguei importante tentar
apreender a imagem no paroxismo de seu acontecimento, fruí-la em suas
potencialidades próprias e, assim, não deixar me levar pela tentação de uma
tradução estranha ao seu corpo.
Os espaços e os tempos cotidianos, observados em suas visualidades e
demais narrativas, são, ao menos para o flâneur, formidáveis oceanos de
imagens com os quais lidamos permanentemente, mas, a tradicional
valorização do extraordinário acompanhada da naturalização e da banalização
das ocorrências frugais do dia-a-dia tendem a amortecer a percepção das
potencialidades narrativas, simbólicas e estéticas que recheiam o cotidiano.
Não subverter essa lógica acarreta o risco do desperdício de pistas e prazeres
oferecidos pelas situações e acontecimentos cotidianos, elementos importantes
às ações de oposição a um estado das artes que não é favorável à maioria dos
protagonistas do teatro cotidiano.
A hierarquia hegemônica das imagens é outro obstáculo a ser vencido, ou
melhor, uma ordenação a ser desconstruída. Essa organização, que a seu
modo, reflete e respalda, no que lhe compete, a diagramação social em seus
aspectos inaceitáveis, é evidenciada quando se constata que as imagens da
arte, da publicidade, da televisão e, mais recentemente, das redes informáticas
são as fontes prioritariamente eleitas e destacadas como fluxo imagético a ser
20
discutido e investigado. O imaginário, ou seja, os processos da imaginação que
constituem centralmente cada uma das imagens, materiais ou não, acabam por
parecer irrelevantes, o que significa, minimamente, um encolhimento das imagens
investigadas, assim como dos produtos do imaginário que não são materiais, que,
não menos imagéticos não são, via de regra, sequer considerados.
A despeito do elenco das imagens reconhecidas como tais, que por si só nos
revela uma das performances dos poderes hegemônicos, a vida vai se dando
em meio às criações imagéticas que se desdobram, transportam e cumprem
seus percursos sobre, entre e a despeito das escalas reguladoras que
pretendem oficializar o que deve ser visível, quando e onde pode acontecer
sua visibilidade e do que é e quando pode ser.
Quando as imagens dos espaços escolares são investigadas, a tradição
freqüentemente predomina e a abordagem se dá de forma habitual. A
atenção se volta para o campo concreto do visível no qual se destaca a
alvenaria da própria escola como suporte de suas imagens. O olhar já
predisposto volta-se objetivo para a materialidade das paredes, fachadas,
murais, trabalhos escolares expostos, etc e passa, quase sempre indiferente,
diante das imagens mais eloqüentes: os estudantes e trabalhadores.
Suportes vivos, cujos corpos e falas são, também, imagens móveis,
transitórias e transitantes de uma torrente de narrativas.
O cotidiano dos estudantes, fulgurado em suas presenças e encontros, é
sempre recheado por inusitadas criações poéticas. Modos de ser e estar no
mundo que evidenciam as redes simbólicas por meio das quais esses
personagens centrais da escola escrevem e descrevem suas vidas. Redes
imagéticas em cujos movimentos fulguram suas criações, reproduções,
21
irrealizações, fabulações e evocações, na permanente produção de seus
acontecimentos, na produção de seus sentimentos de existir. Conforme explica
Todorov (1996:98):
O que é universal e constitutivo na humanidade é que entramos, a partir de
nosso nascimento, numa rede de relações inter-humanas, portanto, num
mundo social; o que é universal é que todos aspiramos a um sentimento de
nossa existência. Os caminhos que nos possibilitam aí chegar, em
compensação, variam segundo as culturas, os grupos e os indivíduos. Assim
como a capacidade de falar é universal e constitutiva da humanidade
enquanto as línguas são diversas, a sociedade é universal, mas não as suas
formas. O sentimento de existir pode ser o efeito do que chama de
realização, de contato não mediatizado com o universo, como a coexistência
com os outros; esta pode tomar a forma de reconhecimento ou cooperação,
de luta ou comunhão...
No espaço específico do colégio observado, o contingente estudante tem em
comum, em sua maior parte, o pertencimento à mesma faixa etária e, todos, a
mesma posição em relação à hierarquia institucional, ou seja, a condição de
aluno, o que significa uma localização de suposta passividade. Fora isso,
representam uma vasta gama de multiplicidades irredutíveis a qualquer
etiquetação generalista.
Antes de me debruçar sobre algumas das imagens que esse heterogêneo
grupo produz e faz circular é preciso destacar certas condições determinantes
do espaço escolar, cenário no qual são encontrados.
A condição mais flagrante é a da precariedade de recursos e a de um certo
abandono. O corpo de funcionários que desempenha funções de manutenção,
organização e controle, o faz de forma incipiente. O desempenho dos
funcionários, por mais dedicado que seja, em certas ocasiões aproxima-se do
burlesco, por dar a impressão de ser uma farsa que tenta ocultar o
22
agravamento do esvaziamento institucional. A escola, como a maior parte das
instituições públicas, não consegue ocultar a cruel escassez de recursos
necessários à sua produção. Sem dúvida, essa condição de carência é uma
das faces da crise, cada vez mais agudizada pela hegemonia neoliberal, da
legitimidade do papel da escola pública cada vez mais aviltada pelas ações
predatórias do capitalismo na nossa sociedade.
Sob essas imagens, esta escola se mostra uma instituição incapaz até de criar
qualquer encenação que lhe permita ser vista como espaço viabilizador de
trajetos que conduzam à ascensão social ou a outras conquistas que
assegurem uma agenda de futuro para seus alunos e alunas. Essa situação,
comum à rede de ensino público estadual do Rio de Janeiro, evidencia o
enfraquecimento da imagem da escolarização como trajetória indispensável às
conquistas sociais, visto que o combalido ensino público parece não ter mais
energia para convencer, nem aos mais ingênuos, que é um Tc ensávelnas. Equist68.00i.205 -2Td( i(energia ador de )l esdeolcrat343o )Tj-0.0distas di008 Tc 0.123 Tw 1516785 0 Td6(tar a cres )Tj-0.041rios à õr plcam a-0.0007 Tc 0.3227 Tw 0 -4205 -2Td6Td(necess[(bpar umj-0.,0.dutorTj-0.,o uni)4(ve-0talisocuutmet-0.)]TJ Tc 0.123 Tw 1403qualquerAda escol63rdiA escolarização )Tj-0.0005 Tc 0.013 Tw 14017 0 Td(( ingêjetpm uapo)Tjvencesara seu005 Tc 025227 Tw 22-4205 -2d(( i(energia ensimagos devasas açTje3o stam ór005 Tc 025027 Tw -18785 0 Td5lido ens43o de carns, esta e ada esdesj-t3o cTc en005 Tc 02523 Tw 1033205 -2Td5d(energia da dexemp47jeo de carz am005 Tc 025027 Tw 019.26 -12.61 ingêagin à s en7ãagos. fab.0002 w 0117 0 T1.14ingêaTj. Um cho um estTc etce n002 w 054.435 623.755(das faces 7o v )Tnabilibude quissobia ivncidi43oi005 Tc 025825 Tw 15357 0 Td04ingêescdr paa v ccond )Tjerespaóetude,n002 w 0541205 -2d04i(das facerasseja ma041rios papel . form3o, )Tj-0.0jereias.005 Tc 025578 Tw -22885 0 Td72 ingêao, )Tj-0.0etcs. uimpiedir depapel criTj-0.0006 w 183.205 -2Td72 i(necess carj-ostas jetistas dies )Tj-0.0arizaç005 Tc 025227 Tw 19-4205 2Td8 essa coitu363etamag ma0zação )Tj-0.0form3lcTc en005 c 0775205 -2Td8d(das faceimpe3osTc 5s )Tj-0363ria indispen0.0004 Tc 025426 Tw 07-2.3 T12.5lido ensas sociais,41rios à j-03s )TiA p3o )Tj-0.0 vistj0rasseja m006 w 1575205 -22d5d(energia j-03form3o, )Tj-0 cepapTj-. T3lcT223 esco-42vcola ur004 Tc 02573 Tw 19.459 0 Td7lido ens.duzsr paitui escol mais
23
escolarização vêm se reduzindo ao significado mais frágil da imagem e,
como tal, vêm sofrendo contínuo esmaecimento, como é flagrante no
entrecruzamento com outras imagens que emergem continuamente no
seu cotidiano.
O cotidiano dessa escola expõe a aparente ausência de ações e discursos,
energicamente objetivos, de sustentação do sentido maior da instituição
escolar em conformidade com a sua própria fabulação original: a formação
do cidadão. A fragilidade e decadência da escola são explicitadas na
desconcertante falta de professores, no deprimente abandono das
instalações físicas e no indisfarçável e minguado investimento que lhe tem
sido contemplado em recursos materiais e humanos.
As imagens de pobreza e abandono harmonizam-se com as não menos difíceis
condições de vida dos estudantes e de seus grupos sociais. A escola evidencia
que a apartação social que sempre marcou a sociedade brasileira produziu
situações extremamente complexas e que a educação formal, de sintonia
tradicional, não tem condições de intervir, ou sequer dialogar. Inusitadas
culturas foram geradas nos limbos da periferia, entendendo a periferia não
como localização geográfica, mas como eloqüente territorialização social e
cultural. E são os filhos dessa periferia que ocupam essa escola, cuja imagem
mais tensa advém do fato de ter sido imaginada segundo as regras de outro
território que, por sua vez, é colônia dos mantenedores da apartação.
Observadas tais imagens, é possível compreender como vem se tornando cada
vez mais difícil aos jovens estudantes deixarem de perceber a crescente
inconseqüência das relações tradicionais com a escola. Essas imagens
também permitem perceber a relevância das ações dos estudantes na
24
apropriação dos espaços desocupados pela atuação oficial, ou seja, a
ocupação dos lugares abandonados pelos desfavorecidos com esse abandono,
mais ou menos como se dá nos terrenos baldios, fábricas abandonadas e
outros espaços públicos, ou não, cada vez mais marcados pela passagem e
práticas do povo, a propósito, uma das mais freqüentes marcas visuais são os
grafites e as pichações. Pois, na dinâmica social, os espaços demandam usos,
e, quando abandonados, facilmente se transformam em oferta à criação, às
variadas formas de aproveitamento, no caso das escolas, pelos alunos e
alunas via suas práticas cotidianas, ou seja, a contingência de operar as
interações entre eles próprios e o mundo. O que ocorre, quase sempre, à
esquerda da oficialidade.
Então, os jovens diante dos resultados favoráveis das atuações oficiais, que se
mostram cada vez menores, conscientes ou não da tíbia contribuição da
“escolaridade pública” para seu futuro, frente, também, à inexorável concretude
das realidades de fora da escola – falta de emprego, desproteção social,
exposição constante à violência, ameaça permanente das poucas benesses
que lhes são concedidas, como o limitado passe livre, entre muitas outras
agruras e violências simbólicas ou não – se vêem ilhados no imediatismo das
realizações e fruições que lhes oferecem os seus territórios particulares,
territórios inventados na oportunidade fugaz da caça, espécies de
ecossistemas paralelos à ordenação da cidade legitimada nos quais o mundo
pragmático e o imaginário são impossíveis de serem percebidos
separadamente e também podem ser compreendidos como a tessitura
complexa e diversificada da rede cultural juvenil. Esses espaços, que longe de
se tornarem lugares próprios na acepção de Certeau (1994), vão sendo
25
produzidos agudamente distanciados da codificação que inscreve a sociedade
legitimada como modelar. E nesse processo, as culturas juvenis dos pobres, e
aqui não há como contornar essa etiquetação um tanto ou quanto
simplificadora, vão se mostrando, cada vez mais, ligadas às culturas
marginalizadas ao mesmo tempo em que vão se afastando cada vez mais das
possibilidades de compreensão pelas culturas dominantes. Esse afastamento é
a todo tempo constatado na perplexidade dos professores diante do aparente
desinteresse dos estudantes que também são acusados pelos seus mestres de
indiferença aos tradicionais valores do bem, apatia, irresponsabilidade e outros
comportamentos nefastos à boa produção e conduta escolar.
A produção do imaginário que viabiliza, às vezes em movimentos fugazes, o
cotidiano dos jovens estudantes e dão textura às suas culturas, toma
potencialidade considerável e animadoramente observável nas imagens que
criam e vivenciam. Imagens que a todo o momento sugerem que o que vale a
pena ser feito, e de uma forma ou de outra acaba por ser prioritário, são as
experiências possíveis no âmbito das relações de amizade, coleguismo e
companheirismo, muitas vezes permeadas por seus avessos. Tudo em
movimentos que ocorrem em constante fluxo de interação, de difícil captação
pela observação estranha a esse universo.
Como numa outra esfera temporal e espacial, múltiplas e contrastantes
criações identitárias se atravessam, ora flagrantemente estampadas, ora
fugazmente refletidas, nos seus corpos individuais e nos seus corpos coletivos.
Criações que amolecem a idéia de consistência da identidade. Entretanto, é
preciso sublinhar que o trânsito das formas de ser e estar no universo juvenil
dessa escola pública traz consigo dispositivos de defesa contra qualquer ação
26
externa que possa representar a interferência de qualquer leitura reguladora.
Essa noção permite compreender como a dinâmica das criações imagéticas
dos jovens desbota o sentido de permanência da categorização identitária, pois
a polifonia e fugacidade de suas imagens abortam a tentação de lhes
sistematizar em um desenho qualquer de localizações e características de
identificação permanente.
Tomando esse necessário cuidado, é possível aproveitar o que esse universo
oferece em seu dinamismo de produções de linguagens e saberes, de
criação de formas e canais de comunicação pessoal e grupal, nos quais os
jogos das imagens são uma das forças centrais de propulsão, para uma
percepção dos sentidos da educação e de sua complexidade no drama do
dia-a-dia escolar.
27
28
Entre os jovens
Durante o meu trabalho no último ano letivo, tive a oportunidade de viver
com os meus alunos debates cujo tema central era a ‘imagem’. Registro
desses momentos um fato, para mim especialmente significativo. Em uma
aula, indagando sobre os sentidos da arte fui surpreendido com a afirmação de
que arte seria a mesma coisa que imagem. Embora seja comum, como
comentei anteriormente, a associação entre a imagem e as artes visuais, a
compreensão de que a arte tinha relações diretas com o mundo imagético, me
surpreendeu pela segurança com que foi defendida pelo aluno e porque nos
permitiu encaminhamentos produtivos ao nosso trabalho em classe e as
29
minhas reflexões sobre o universo pesquisado. A conversa enveredou para a
discussão do que viria a ser, então, a imagem. Um dos alunos,
surpreendentemente, afirmou que imagem era ele próprio. A partir dessa
instigante afirmação propus que dissessem que imagens pensavam
representar para os outros, ou melhor, como imaginavam ser vistos e
percebidos.
Alguns jovens apresentaram argumentos bastante próximos ao que, suponho,
pensavam que eu gostaria de ouvir. Ou seja, argumentos que descreviam
personagens idealizados, diretamente em harmonia com a escola imaginada
via a fabulação. Imagem esta sempre potente e circulante, de um sujeito
modelo constituído de qualidades universalmente aceitas. Declaravam
pensar serem vistos como rapazes e moças honestos, sinceros e com
aspiração a uma formação que os capacitassem para uma vida de sucesso.
Tudo que é contradito por muitas das imagens da escola, imagens estas,
convém sublinhar, em permanente embate com as formulações fabuladoras
que mantêm o discurso que a apresenta como instituição, por princípio,
fomentadora e geradora de ações emancipadoras.
Outros alunos e alunas, distanciando-se das imagens estereotipadas,
discorreram sobre a multiplicidade e transitoriedade dos seus gostos e da
conseqüente diversidade de características que constituíam aquilo que se
sentiam ser. Um deles, a título de exemplo, falou das músicas que gostava e
dos momentos em que fazia sentido ouvi-las, determinado tipo de rock quando
praticava skate, outro quando namorava, outro quando estava com os amigos,
da mesma forma que variavam suas roupas e acessórios. Uma diversidade de
30
afinidades que se movimentam conforme o fluxo das interações desse jovem
com seus mundos na cidade, conforme Diógenes (2003:69):
A cidade produz um sentido, uma significação nomeada e apropriada
por cada sujeito a partir de um conjunto de imagens que ele acumula:
um repertório de signos urbanos. Não se faz isso sem o corpo, não se
faz isso sem movimento, sem experimentação. São os jovens que
parecem, mais do que outro personagem urbano, perceber o caráter
imagético da existência da cidade e do corpo...
Essas interações sugerem um estilhaçamento que, longe de fragmentar sua
imagem, dá consistência e relevo à singularidade do jovem. Um exemplo de
aderência de camadas identitárias que sem eclipsar umas às outras
constituíam a rede subjetiva do aluno acima referido.
Fruto da imaginação criadora, Gabriel me descreveu um especial e complexo
mosaico que não é, no entanto, de menor ou maior escala frente às
composições imagéticas de seus colegas, e que, no que explicava, lhe
assegurava a participação de sua autoria na sua própria criação e o protegia,
quando necessário, no abrigo das afinidades coletivas, conforme o espaço em
que se encontrasse.
Esse relato me parece significativo na defesa do contraste entre as imagens
produtos do imaginário criador dos alunos e alunas e as imagens fabulosas de
uma escola que, a despeito da multiplicidade de elementos que a compõe,
pretenderia se explicar, se isso fosse possível, sob o escudo discursivo e
imagético de uma máquina de funcionamento linearmente conseqüente.
Máquina, de fato, que, entre outras funções, prioriza a proteção de sua própria
permanência. Fabulação que se defende mecanicamente de qualquer
suspeição sobre os agenciamentos que a institui, que lhe fabulam uma origem
ao mesmo tempo em que a produzem no estado em se encontra.
31
A multiplicidade imagética encontrada no cotidiano escolar é a que olhamos e a
que nos olha, estilhaçando qualquer organização prévia do nosso olhar e
evidencia a escola, também caleidoscópica, que tem nas facetas configuradas
em suas cotidianas imagens fruto da irrealização, aqui entendida como
operação de apagamento de um contexto adverso. Imagens irrealizadoras que
se deixam perceber no constante clima lúdico que envolve os aproveitamentos
dos espaços e tempos de encontro dos quais a escola é palco privilegiado. A
escola irrealizada pelos estudantes fulgura nos momentos e lugares nos quais
acontecem as situações prazerosas de brincadeiras, de conversas e de
encontros. Trata-se de momentos nos quais essas práticas são o que, de fato,
têm importância e sentido para os seus praticantes. Canais discretos e fugazes
de reverbeação de certo orgiasmo
3
vital para suportar as imposições
disciplinares que imperam na oficialidade de seus lugares. Não acuso, convém
sublinhar, a existência de um explícito sistema rigoroso de disciplina e
organização quando menciono as imposições disciplinares, aponto apenas a
organização oficial da escola como força de oposição aos desejos
freqüentemente manifestados de ampliação dos momentos de brincadeira e
conversas, ou seja, maior espaço para o que representa a maior
necessidade e satisfação para a maioria dos jovens do colégio, segundo
suas próprias declarações, confirmadas pelo empenho que dedicam no logro
às normas disciplinares.
As imagens oriundas do imaginário reprodutor mostram sua força na
formulação dos cenários da escola e evidenciam a seu modo, peculiaridades
da amálgama das redes subjetivas nas tramas coletivas. Cada aluno e aluna
3
“O orgiasmo como fator de socialidade” in MAFFESOLI, Michel. A Sombra de Dionísio:
contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk, 2005.
32
lança mão de suas experiências particulares, seus afetos e desafetos, suas
escolhas e tantos outros canais da sua subjetividade no jogo das relações
coletivas. Cada performance individual é, portanto, uma face da ação coletiva.
A balbúrdia dos corredores, as conversas e risadas nos banheiros, o encontro
nas escadas e nos cantos do pátio, bem como os comportamentos nas aulas,
expõem a intensidade da potência sensual do universo desprezado das
imagens dos corpos, a um só tempo, pessoais e coletivos. Potência que aponto
como fonte farta de novos sentidos do desafiador cotidiano das escolas ao
mesmo tempo em que reconheço seu aspecto singular que, mais do que
informa sobre o mundo dos jovens na escola, escancara a impossibilidade de
devassa antropológica, intelectual, semiótica ou policial da vida que esses
sempre belos personagens constroem na fuga do tempo, na fuga da
colonização codificante de nossos saberes sedimentados, na fuga à nossa,
muitas vezes, insidiosa e inútil intromissão.
Os momentos de pura entrega às brincadeiras, que me parecem ser formas do
perpétuo jogo do existir, me remetem ao que Maffesoli aponta como divino
social quando o mundo fica entregue a si mesmo e vale por si mesmo, cresce o
que me liga ao outro, aquilo que se pode chamar de religação. (idem, 2005:13)
Esses momentos, que não ocorrem necessariamente em tempos diferentes
dos outros acontecimentos e rotinas da escola, evidenciam sintonias
4
que
parecem inexpugnáveis pela compreensão adulto-referenciada, ou seja, pela
linguagem dos professores e professoras, diretores e inspetores. Linguagem
que é produzida marcada pela intenção de traduzir, explicar e colonizar o que é
visto, o que deve, na sua perspectiva, ser corrigido, avaliado e encaminhado,
4
Refiro-me às línguas criadas e utilizadas pelos jovens, sistemas simbólicos tão particulares
que não permitem qualquer tradução, porque todas elas parecem amputar-lhes sentidos
centrais
33
conforme as ações que movimentam a escola fabulada pelas instâncias que
oficialmente controlam e conduzem a escola.
Tentar registrar uma descrição fidedigna dos jovens é, antes de tudo,
acreditar na capacidade do registro e ter fé na captação fiel de algo que é
permanentemente mutante. Não seria este o meu intuito. A presente pesquisa
não pretende buscar um outro para etiquetar, como a velha etnografia (Pais,
2004:9) farejava o exótico para melhor colonizar. Pois o outro, os jovens com
quem convivo e busco construir uma relação que fuja à dominação absoluta
das óticas que me formaram, seria, sob esse entendimento, o exótico, ex-
óptico, porque sai da ótica da normalidade dos entendimentos que me são
familiares e, de uma forma ou de outra, escapam do regime de identificação
dominante no próprio universo escolar fabulado.
Os jovens, alerta Pais (idem: 11) são o que são, mas também são (sem que o
sejam) o que deles se pensa, os mitos que sobre eles se criam. Foi preciso,
portanto, estar atento à atuação permanente da imaginação instituidora e
identificadora e de seus frutos, pois os mitos não refletem a realidade, embora
a ajudem a criar. O sentimento que deu norte ao estranhamento, que muitas
vezes tencionou nossos encontros, foi de que certas conceituações, qualquer
uma equivocada, poderiam me levar a confundir a realidade com as
representações que dela brotavam. Sem ter como princípio a existência de
uma realidade fixa territorializável, preocupei-me em minimizar meus
entendimentos prévios sobre as representações que construíamos juntos, ou, a
bem da verdade, que lutava para que assim o fizéssemos.
Os desafios titânicos, metaforizados pela imagem da Hidra que explicarei a
seguir, emergiram a todos os momentos e se potencializam no momento de
34
seus registros, neste momento da escritura de um texto posterior à
experiência.
A luta para resgatar e captar o fugaz, ler o fugidio, perscrutar o subterrâneo
colore essa operação escriturística e é a dimensão da empreitada a que me
propus. Não deixar que predominassem minhas marcas no desenho do que
entendi representar os jovens na escola foi reconhecidamente algo
inalcançável, mas, apesar dessa consciência, a própria pesquisa foi marcada
pela atenção aos encontros cromáticos entre minhas tintas e as que julguei
encontrar no cotidiano do meu trabalho, a um só tempo de professor,
pesquisador e fruidor.
35
A Hidra
Uma visão única produz ilusões piores
do que uma visão dupla ou do que uma visão
de um monstro de múltiplas cabeças
(Donna J. Haraway)
Apesar da organização deste texto apresentar, de forma alinhada, as
partes que seu título anuncia, entre imagens, entre os jovens, na escola: a
Hidra, não há impermeabilidade entre seus conteúdos. A bem da verdade,
tratam do mesmo assunto. O que marca sua diferenciação é o
deslocamento. Sua organização é devida mais à adoção de uma estética
organizacional do que a uma crença conceitual.
36
Estar entre os jovens na escola é estar em confronto com a Hidra, um
nome que julguei adequado ao desenho deste trabalho:projeto/pesquisa/tese/
problema, Hidra
5
multifacetada que quer realizar não uma verdade, mas o
embate que é se criar entre tantos circuitos contrastantes que são as nervuras
constituidoras de sua própria máquina corpórea. Tem, essa Hidra, entre tantos
percalços, de enfrentar até a improvável verdade de sua existência, dúvida que
emaranha as suas asas, retrai, atrapalha seu vôo ao mesmo tempo em que a
projeta a espaços inusitados. Hidra que se assusta até com suas faces
opostas, sua imagem no espelho. Dessa aparente contradição emergem
múltiplos desafios que impõem a superação de sua própria poiesis, sua
autocriação. O espelho mostra a gravidade da perspectiva cientificista que
impõe a obediência rigorosa ao ideal da imparcialidade e do distanciamento.
Murmura falas de integridade conceitual, de encadeamento lógico e de
fidelidades teóricas. Trata-se da permanente tensão entre a ousadia da
invenção e o permanente retorno de fluxos de certezas que também me
formaram e impregnam as narrativas que crio. As certezas do passado
empalidecem com a experiência empírica da pesquisa, mas, enfatizando a
complexidade da Hidra, não se deixam apagar totalmente. Essa tensão revela
a Hidra em devir, em permanente embate entre as limitações do olhar, as
limitações da escritura e a paixão do que vivencia.
5
Conforme Homero e Hesíodo, que compuseram para os helenos uma teogonia, deram nome
aos deuses e descreveram seus aspectos, a Hidra era uma serpente gigantesca e de muitas
cabeças que aterrorizava a região de Lerna, na Argólida. Filha de Equidna e Tífon, tinha por
irmãos Cérbero, o cão do Hades, Ortro, o cão monstruoso de Géridon, e a Quimera. A picada
de Hidra era extremamente venenosa, e contra o veneno não existia antídoto. Quando uma
cabeça era cortada, outra nascia em seu lugar, e, além disso, uma delas era imortal.
HESÍODO. Teogonia/A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991. HOMERO. Ilíada. São
Paulo: Círculo do Livro, 1982.
37
Defende-se, minha Hidra pesquiso (esquizo) teórica, armando-se dos poderes
da escolha, do gosto acontecido que luta por uma representação, por um
desdobramento do acontecimento vivenciado. A movimentação central da
Hidra é a escolha. Gesto ressaltado como avanço primordial de produção de
sentidos, como se dá nos processos de criação estética. A contradição entre
essa forma de lavrar conhecimentos e os sistemas consolidados e legitimados
de produção de saber tende a diluir-se quando o enfrentamento é o cotidiano
em seus cursos, percursos e percalços, em sua rebeldia (Oliveira, 2003:51).
Penso que, sob a perspectiva estética, as fronteiras da pesquisa se abrem e as
menos ortodoxas iniciativas são agenciadas. Contudo me sei - e a minha Hidra
ou máquina-pesquisa em seus movimentos livres sabe-se também -
aprisionado apenas pela verdade de que cada escolha feita compromete,
irreversivelmente, o campo das futuras escolhas, visto que a cada movimento,
cada nova intervenção torna-se matéria com a qual se dá a criação dos gestos
que lhes sucederão, como o primeiro traço ou palavra na folha em branco
reduz drasticamente o universo total de possibilidades de criação. Condição
que vai se adensando a cada novo traço, a cada nova palavra, mesmo que
nunca estabeleça um impedimento definitivo à nova interferência na obra.
Dessa forma, a composição desse trabalho vai-se comprometendo e se
limitando à sua própria constelação de sentidos, sua teorização vai refazendo
suas chances de acontecimento e abrindo novos espaços para outras
inferências, novas suspeições, sem esmaecer seu gesto inicial de busca pelo
encontro entre imagens, com os jovens, na escola.
Inicialmente tentei traçar um esquema determinado de concordâncias que
sustentassem um desdobramento, o mais coerente e compreensível que me
38
fosse possível; entretanto, foi-se instaurando a necessidade da escolha
entre explorar e elucidar questões que emergiam no próprio registro das
idéias e a obediência a uma escrita servil à lógica linear que eu almejava,
hierarquizada em início, meio e fim. Venceu-me a primeira opção, e minha
narrativa se vê emaranhada num desenho pouco linear, enredado em
formulações de idas e vindas que caracterizam um procedimento pouco, ou
quase nada, ortodoxo, assumindo, nessa forma de escrita, o mesmo
erratismo que marcou muitos momentos da parte empírica da pesquisa,
erratismo, afinal que conduz o cotidiano.
Mais à vontade com essa tentativa de explicação, retomo o espaço e o tempo
da escola. E retomo o mapeamento da minha localização com referência ao
“objeto” do meu interesse, e nova configuração se produz e o que eu fui antes
de entrar em contato com o que pesquiso parece ser secundário, quando centro
a atenção no que pretendo descrever, registrar, investigar, estudar, e mais que
tudo, reviver, na medida em que a observação/percepção do que tento alcançar
impõe idas e vindas ininterruptas entre o que, primeiramente, estabeleço como eu e
o outro. O que é um permanente processo de criação. Assim, defino o “outro”,
espaço externo a mim constituído por todas as pessoas, suas ações e
mediações, supostamente fora de mim. Esse circuito entre o suposto eu e o
além de mim mostra-se, a cada instante, mais determinante na minha
investigação, evidencia a irrelevância de uma definição do meu espaço
particular anterior ao espaço que penetro para a aventura da pesquisa.
Certo de que o mapeamento do local do qual escrevo já não se restringe ao
espaço anterior à minha fala, a territorialização que importa é o que vai sendo
definido, mesmo com sua permanente transitoriedade, ao passo em que me
39
situo e relaciono com o campo estudado, a cada novo desenho e nova leitura do
que tenho vivido e do que esses contatos, suas leituras e tentativas de
mapeamento me levam a ser.
Como já registrei, cheguei ao colégio, lócus da pesquisa e campo da batalha da
criação deste texto, como professor de artes, mas o que se manteve de
importante desse personagem inicial foi o desejo de entrega às experiências do
cotidiano escolar, desejo revigorado a cada dia. O que permaneceu de relevante
da história que me constitui foi a disposição de reencontrar um espaço que
me foi caro: a escola pública. Sabia, de alguma forma, que lá eu retomaria,
mesmo que em ângulo diverso, a apreciação e interlocução com as escolas
que me conduziram à profissão de professor. As escolas que me
horrorizaram, me fascinaram e me mantiveram cativo até hoje. Como
escreve Ferraço (2003:158), Estamos sempre em busca de nós mesmos, de
nossas histórias de vida, de nossos lugares, tanto como alunosalunas que
fomos quanto professoresprofessoras que somos.
Talvez o que mais interesse registrar como sentido do abissal ponto de partida
da relação do pesquisador com a pesquisa, relação metaforizada pela exótica
Hidra de muitas imagens e tonitruantes perguntas, seria o envolvimento afetivo
que tentei recuperar acima. O afeto, que também é o seu oposto, gera circuitos
que desfazem os limites entre o mesmo e o outro. Esses circuitos, em suas
diferentes vibrações, fazem surgir, como obra holográfica, a Hidra-imagem-
pergunta-resposta. Os circuitos dos afetos funcionam também como um
monumento maquínico gerador de intensa fruição e como um monumento
imaginário que dá forças à Hidra, vicejam sobre a pulverização da
impermeabilidade entre a subjetividade e a alteridade, entre a forma e o
40
conteúdo, entre o fora e o dentro, enfim apagam as diferenças territoriais entre o
par e o ímpar, o acerto e o erro.
Maffesoli (2005: 74) quando alerta que,
é preciso estar em franca ruptura com os modos de análise tradicionais,
constar dos insurretos do pensamento, para sentir a cadência original que
está marcando o ritmo atual da vida social e para compreender a relação
cínica ou astuta que as diversas tribos estabelecem com os valores
institucionalizados. A liberdade de atitude reclama uma liberdade de tom,
uma tomada de distância em relação aos sistemas que, como tal ou sob a
forma de um vestígio, continuam a inspirar massivamente as produções
intelectuais. Os historiadores da arte costumam fazer uma distinção entre a
cor e a linha na análise das grandes pinturas. Por analogia, direi que
acompanhamos de perto a linha dos pequenos acontecimentos sociais, o
que eles têm de duro, de categórico, o desenho (esboço) preciso; mas
esquecemos, com freqüência, a cor, muito mais difusa, dissimulada,
indefinida, mas que conota uma atmosfera cujos efeitos ainda não foram
suficientemente percebidos.
me auxilia a expor os sentimentos que me conduzem. Investigar o cotidiano
escolar, sob a perspectiva do acontecimento dos sentimentos de existir é
também explorar sua dimensão estética. As minhas pequenas certezas se
recompõem na medida em que me entrego ao fluxo da fruição do cotidiano. O
cotidiano vivido pela Hidra tem a incomensurável dimensão da complexidade
das relações humanas que o dinamizam. Torrente permanente de interação
entre suas condições de fabulação, irrealização, reprodução, evocação e
criação. Apreendê-lo, da forma que me foi possível, demandou reconhecer a
armação dessas produções do imaginário. Foi, portanto, prioritário perceber e
perscrutar as imagens do cotidiano, a despeito da minha maneira de elegê-las e
descrevê-las, se conflitarem com outros elementos que compuseram a rede de
41
perspectivas teóricas e metodológicas de que me servi e atravessaram meu
entendimento e a ação de pesquisar.
Tomando como urdidura da pesquisa a bela idéia de “o sentimento de existir”,
procuro identificar e escolher indícios (Ginzburg, 1989) que revelem os
caminhos e ações desse sentimento nos meus alunos e alunas. Indícios que me
alcancem, vencendo as ou se revelando nas minhas redes de afeição ou
sentidos que, a despeito das minhas intenções premeditadas, operam ao sabor
das marés de uma subjetividade coletiva, na qual me situo quando estamos
juntos a conversar. Esfera de jogos de sensações que se perde e se recupera
no cotidiano da escola.
Na busca pela composição ou energia estética que permearia a produção desse
sentimento de existir dos jovens, tento localizar o que a instituição escolar
representa para mim, como imagem que se refaz a partir dos meus processos
imaginários. Processos que transitam dos tempos das minhas experiências
desde quando aluno aos tempos atuais, de suposto interesse intelectual
envolvido com a vivência pragmática de um cotidiano escolar concreto.
Percebo, então, uma densa interação entre sentimentos diversos, como a
afinidade com os estudantes e a decepção, ou desencontro, que se produz na
proximidade com meus colegas professores e professoras. Enquanto o universo
juvenil é enfeitado pelas relações amistosas e divertidas, nas quais fulgura forte
tendência de estetização da vida, os traços mais marcantes do “universo adulto”
dessa escola são alinhavados pelas relações de trabalho desfavoráveis e
insatisfatórias. Como se ali o mundo adulto em face do juvenil não rompesse a
tradição de uma estética sombria de fatura opaca, indiferente à luz. Sem dúvida,
o universo adulto da escola não se reduz a uma vida de beleza precária, nem se
42
reduz às agruras de um trabalho cansativo, mal remunerado e em condições
inadequadas, mas, são essas as marcas generosamente expostas ao meu
olhar. Olhar e sentir de pesquisador, que assume sua parcialidade, não se deixa
incomodar pelo seu gosto, sob certo aspecto mesquinho, e não esmorece diante
de sua tibieza metodológica.
A diferença entre o que percebo nos professores e professoras e o que
apreendo e aprecio nos alunos e alunas, anuncia a plasticidade da pesquisa
assim como expõe a densidade dos problemas que enfrento na investigação
desse cotidiano específico. A distinção entre estes e aqueles explicita, por sua
vez, o desafio que acompanha cada passo deste trabalho: o problema que é o
enfrentamento das escolhas. Tal enfrentamento significa a dispensa definitiva da
neutralidade e do distanciamento, por mais que essas improváveis posições
supostamente oferecessem, ao pesquisador, proteção de questionamentos mais
severos direcionados à sua própria localização e ao sentido de suas escolhas.
Não investi mais do que o que julguei suficiente à análise dos fluxos que me
levam a perceber essa ou aquela característica e a atribuir-lhes determinadas
relevâncias, pois, entendi ser mais necessário direcionar a atenção sobre o que
reside nas múltiplas possibilidades que a juventude, com suas diversidade e
multiplicidade, sob as intempéries dos mais fortes e pregnantes agenciamentos,
cria, recria e revela, em seu dia-a-dia escolar, de táticas de superação,
desvio ou contorno, mesmo que transitórios, emergenciais e fugidios, das
inexpugnáveis imposições que as forças, que não são as suas, lhes impõem. E
da elucidação dessas potencialidades, dessas possibilidades dos sentimentos
de existir, a meu ver, sempre e cada vez mais, mais bonitos, aventar campos de
possibilidades de novas práticas favoráveis à utópica emancipação, práticas
43
deflagráveis a partir, e em harmonia, com essas vislumbradas potencialidades
de existir. Conforme Santos (2005:277),
...a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim
definido. O que a distingue de outros conjuntos de luta é o sentido político da
processualidade das lutas.
Falar sobre os jovens é escrever sobre sua escola, é tentar registrar os
sentimentos experienciados nas suas companhias. É escrever sobre seus
professores e tentar escrever sobre minhas simpatias, sensibilidades e
emoção. É descrever a Hidra como um monstro indômito, que, como a
“rapaziada” , só quer conversar (Berino, 2005).
Nas imersões no universo da pesquisa, muitos movimentos fizeram e
desfizeram meu percurso; lidar com a “imagem” impôs, entre decifrações e
invenções, a localização e caracterização das ações que produzia aquilo que
considerei imagem, assim como era constantemente necessário refletir sobre as
condições que me permitiam apreendê-la como tal. Foi necessário investir muita
paciência, controlar os sentimentos que precipitavam entendimentos
equivocados. Foi necessário reinventar os limites da estética, e enfrentar a
potência de belezas nunca imaginadas. Pesquisar esse meu cotidiano foi
entregar o corpo e a alma às oscilações das redes de saberes, fazeres e
sentires coletivos. Foi um mergulho cego, embriagado pela desesperança e
pela fé. Desesperança na escola beatificada pela tradição educacional e crente
numa escola pensada subterrânea, gauche, desterritorializada, infernal. Pensar
a escola “desse modo é experimentar tudo o que é estranho e problemático no
pensamento educacional, tudo o que, até agora, foi banido pela moral,
ressentimento, má consciência, niilismo cristão, fé no ideal” (Corazza, 2002:35).
44
Não se trata, contudo, de um mergulho, como pressupõe o verbo, de fora para
dentro da rede de acontecimentos cotidianos, pois, na verdade, fazemos
parte da rede que constitui as articulações estruturantes do cotidiano no qual
vivemos, mesmo quando nos julgamos fora dele, mesmo quando desejamos
estudá-lo como no caso desta pesquisa. Mergulho de dentro para dentro, pois
o cotidiano é sempre o que a Hidra pretende apreender: um caleidoscópio por
meio do qual nos deleitamos com o jogo imagético que sua movimentação
proporciona, ou seja, a dinâmica do imaginário.
O jogo de imagens projetado pelo caleidoscópio cotidiano é cheio de
contrastes. As imagens que percebemos, às vezes são ambíguas, às vezes
se opõem, mas não se contradizem, pois, em suas diferentes sintonias, não
deixam de articular e se articular, na infinita tessitura de sentidos que é a
dinâmica societal. A força dessa tessitura se revela nos aparentemente mais
insignificantes e banais acontecimentos em qualquer espaço e a qualquer
tempo em que a vida transcorra e pulse.
Tal compreensão permite apreciar a vitalidade gerada pelos protagonistas da
escola em suas pequenas ações cotidianas, como é o caso das redes de
amizade dos jovens estudantes, sem outra finalidade que a de se reunir sem
finalidade, sem projeto específico, encontros cada vez mais multiplicados em
todos os espaços da vida cotidiana da escola, como nos ocorre no cotidiano de
qualquer aglomeração. Captar a beleza e potência desses encontros e de suas
formas foi o desejo e a própria corporeidade da Hidra, que não quer analisar,
não quer traduzir, domesticar ou sujeitar o indômito cotidiano às amarras da
palavra. O que quer então a Hidra? Quer sentir, fruir, mostrar (Pais, 2003) e,
sobretudo, como apontei, conversar.
45
46
As redes teórica e metodológica
A rede teórica
Não há céu para os conceitos.
Eles devem ser inventados,
fabricados ou antes criados,
e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam.
(Deleuze e Guattari).
47
A rede teórica que referenciou esta pesquisa é, a bem da verdade, resultante de
toda leitura que me acompanhou ao longo da vida. Dos livros infantis e contos
de fada aos romances, da poesia aos, mais tarde lidos, ensaios teóricos. A
leitura de jornais e de revistas em quadrinhos também participou da formação
do meu olhar/ler/ouvir/sentir (Oliveira, 2005) e faz parte da rede de leituras que
norteia a minha escrita.
Entretanto, alguns autores marcaram especialmente a condução e produção
desta tese e sobre eles convém escrever para melhor registrar os sentidos que
tomou a pesquisa e o desenho dos objetivos que pretendeu alcançar. As idéias
dos autores, das quais me ocuparei a seguir, se enredam com muitas outras
formas de captação e de leitura do mundo. Enfoques oferecidos por muitas
outras fontes, em diferentes ocasiões, como as conversas com amigos e
parceiros, os filmes a que assisti, a música, o teatro e, principalmente, o diálogo
inventado com as paisagens humanas e urbanas que fruí ao longo da vida.
Embora seja difícil listá-las, julgo importante registrar, ao menos, a amplitude e a
diversidade dessa rede que sustentou a minha trajetória. Muito foi lido e visto,
muitas idéias me pareceram esclarecedoras, e até conclusivas, a respeito dos
problemas que enfrentei. Contudo, a despeito das ocasiões em que minhas
apropriações foram por demais superficiais e o aproveitamento dessa ou
daquela proposta ter sido fortemente pessoal, foi essa a rede que tive para
recorrer na reflexão sobre o que vivia ao longo da pesquisa.
Procuro, então, registrar a reflexão sobre as minhas relações com a tessitura
teórica que destaquei para conduzir as questões que deram corpo à
investigação. Para tanto, é necessário mapear os sentidos dessa composição
48
de diversas idéias em face do que pretendi pesquisar, e localizar seus
autores em relação ao mundo que discuto.
Esse percurso exigiu, antes de tudo, investir na elucidação, sempre provisória,
das muitas relações que envolvem as minhas próprias escolhas: o que me levou
a esses autores, que sentidos atribuo às suas produções, cuja aplicação em
meu trabalho julgo satisfatória ou pertinente, e o que significa, também, rever o
que me conduz ao tema que me aventuro investigar.
Inicialmente, e mesmo durante o processo de pesquisa, foi preciso
reconhecer as condições às quais me submeti aceitando ou escolhendo
determinado referencial teórico. Dar sentido, mais que respostas, às
questões postas impôs repensar o ponto de partida e assim retomar as
territorializações onde me localizo para, daí, dar início à discussão da
fundamentação teórica que permeará os muitos momentos e instâncias dessa
narrativa e dos caminhos percorridos.
Minha localização diante do que desejei elucidar é a condição de professor da
rede escolar pública. E é o que deve, fatalmente a priori, ser considerado sob o
entendimento de que o que me levou a escolher o exercício dessa profissão traz
ligações importantes com o que acabei por pesquisar. Assim, me parece que os
encontros com determinadas idéias e suas escolhas, bem como as maneiras de
articulá-las de modo que pudessem atender às necessidades que emergiram
nos processos de aproximação e investigação do objeto de minha pesquisa, são
indissociáveis do lugar que ocupo ou no qual me coloco e me sinto estar.
Localizar-me em relação ao “objeto” estudado seria iluminar parte da rede
teórica que mostra a sua interseção com a rede de sentidos que formulo em
minha vida cotidiana. Rede de sentidos de difícil descrição, na medida em que
49
resulta da conjunção das sensações com as identificações, dos afetos com os
desejos, da imaginação com a razão. É esta a rede que me conduz à profissão,
ao trabalho, ao estudo e a tantos outros lugares. O que a dinamiza é,
certamente, a forte condução estética que media as escolhas e se oculta nos
subterrâneos da razão, assim como, invisível, também, é a densidade dos
afetos, a estrutura das crenças e o combustível dos desejos. Enfim, a força
estética é a razão e desrazão das escolhas. Sejam elas encobertas pela
declaração de motivações políticas, utopias sociais, busca de encontros, de
fraternidade ou de paixões. Entendo, nesta lógica, a teoria como uma tentativa
de elucidação do encontro com aquilo que me cativa. Uma espécie de criação
decorrente do contato movido pela inquietação enredada com a atração, enfim,
a tentativa de representar a escolha.
Teorizar seria, então, promover a movimentação das formas de significar,
atribuir e mesmo produzir sentidos, e também, discutir os sentidos dos sentidos
antes admitidos, repensá-los a partir dos esforços de compreensão envidados
nas abordagens do que investigo. Assim, ampliado o sentido da teoria como o
resultado do esforço da suspeição sobre as definições, formação,
conceituações, etc, que estabeleceram o que nos constitui e que nos limita
diante do mundo, esta poderia significar o mapeamento das interrogações e
respostas, por mais provisórias que sejam, sobre tudo o que dizemos e o que
poderia ser dito sobre o que pensamos perceber, e mais ainda, se o que
percebemos esgota o que pode ser percebido e elucida os indícios desse
possível e provisório esgotamento.
A atração investigativa por determinados objetos, questões ou temas parte da
perplexidade resultante do nosso encontro com o que iremos pesquisar.
50
Perplexidade próxima ao espanto, que se dá acompanhada da insatisfação com
as “verdades” ou sistemas de verdades vigentes que localizavam esses objetos,
51
minha maneira de flanar pela vida, buscando fruir o que os micro
acontecimentos diários sempre oportunizam.
Uma rede de afetos me levou ao estudo das artes e também à educação.
Desse encontro resultou minha profissão e meu campo de estudo. Durante
muito tempo, tive o universo das artes como o universo das experiências
estéticas. Como se o primeiro concentrasse todas as possibilidades do
segundo. A prática pedagógica corroborou com algumas teorias que acabei
por vir a conhecer e diluiu esse equívoco.
A luta em defesa das formulações a respeito da arte dominantes na educação,
que acaba sendo o ensino da arte, exigiu repensar seus próprios sentidos e
esse caminho levou à abolição de suas pretensões. Ensinar arte me fez investir
no pensamento a respeito da estética e sua participação na vida dos alunos e
alunas, enfim, me fez investir na reflexão sobre a participação da experiência
estética na palpável vida cotidiana.
Embora minha pesquisa não se concentre especificamente no campo da arte,
nem no campo de seu ensino, o pensamento de teóricos como Richard
Shusterman (1998) na obra “Vivendo a arte” representou uma importante
contribuição para o seu encaminhamento, na medida em que este autor defende
a participação da força estética na vida cotidiana de qualquer pessoa. Proposta
que veio ao encontro da minha perspectiva de que a estética é um elemento
central nas práticas cotidianas, especialmente nas formas de viver dos jovens.
Esse entendimento conduziu as minhas especulações.
A força estética se manifesta nas múltiplas relações cotidianas, nas quais os
seus elementos subjazem e afloram, muitas vezes discretos, outras tantas
vezes, evidentes. Embora esses elementos e situações não se deixem localizar
52
de forma simples e nem permanente, visto que emergem nômades em múltiplos
espaços e tempos, das conversas aos corpos, denotando inusitadas
concepções de mundo. Maneiras de ser que emergem nos processos que
agenciam cada instante e instância da autocriação dos protagonistas da escola.
Quanto aos jovens, a força estética representa um dispositivo central nos
processos e procedimentos que concorrem para sua autocriação. Ações
indissociáveis da criação de condições para viverem o presente, criações, por
sua vez, decorrentes dos engendramentos imaginários que também formulam
as várias imagens da escola.
A articulação teórica que proponho produz o encontro do pensamento de Michel
de Certeau (1994,1995 e 1998) com o pensamento de Boaventura de Sousa
Santos (1995, 2000 e 2004). Enreda suas leituras com o que apreendo da
filosofia de Deleuze (2000, 2001, 2002 e 2004), com as propostas de Michel
Maffesoli (2000, 2001 e 2005). Autores cujas idéias constituem o suporte
conceitual que orientou a abordagem e o registro deste trabalho. Por mais de
autores que julguei adequada ao meu trabalho. Mais pela amplitude das ações
investigativas que suas idéias inspiram, do que pela possibilidade de
correlações diretas com o que vi e registrei.
Entre muitos outros autores que influenciaram o meu pensamento, são, aos
acima citados, que darei maior destaque. A ousadia em listá-los como eleição
teórica respalda-se mais no entendimento de que cada leitura que fiz
representou um fio para a criação de uma teoria própria para as idéias que
defendo nesta tese, do que pela aplicação linear e tecnicamente, se é que é
possível, exata das suas teorias.
53
A ordem de chegada dos autores nesse texto não tem significado hierárquico,
todos são igualmente importantes na minha rede de relações teóricas.
Reconheço que teria sido um exercício proveitoso escrever sobre cada um dos
pensadores aos quais recorri ao longo do trabalho, mas seria uma tarefa acima
das minhas possibilidades e também uma inflexão onerosa. Assim, me ocuparei
dos que compuseram a seleção de primeira ordem, sem, como afirmei, aplicar
qualquer escala de valor que os organizem nos comentários registrados.
Escrutando essa realidade fugidia e permanente, tem-se a impressão de
explorar a noite das sociedades, uma noite mais longa que seus dias,
camada obscura onde se distinguem instituições sucessivas, imensidão
marítima onde os aparelhos sócio-econômicos e políticos seriam como que
insularidades efêmeras (Certeau,1994: 105).
O pensamento de Michel de Certeau é uma das referências mais caras nesta
tese. Sua obra “A invenção do cotidiano” ocupa um lugar decisivo em meus
estudos e pensamentos. Os deslocamentos da visão, do ato de ver e perceber o
mundo, as coisas e os acontecimentos que o constituem, como propõe em sua
obra, foram, perseguidos como norte desta investigação.
Com proposições como “A partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os
praticantes ordinários da cidade” (Certeau, 1994:171), Certeau faz repensar os
enunciados urdidores da lógica dominante que marcam as formas de entender e
elucidar o ‘real’. O diálogo com sua obra implica na revisão da pertinência e da
abrangência dos modos de ver que constituíram o regime de verdades
hegemônico nos últimos séculos. Acompanhar seu pensamento significou a
desestruturação dos entendimentos sobre os fenômenos culturais e sociais que
eu trazia antes da sua leitura. Significou, portanto, por meio de agudo
deslocamento conceitual, a ampliação das leituras do campo pesquisado. Assim
54
como precipitou a suspeição sobre o que eu tinha como sabido, me instigou a
perscrutar o que não havia considerado relevante ou promissor. Essa instável
rota de busca foi intensificada pela leitura dos outros autores aos quais
igualmente recorri.
A primeira preocupação ao buscar a produção teórica de Michel de Certeau foi a
de tentar entender de que mundo falaria e que idéia de “homem” traria sua
complexa escrita. A resposta a essas indagações está na sua forma de criar o
mundo a partir dos seus anônimos praticantes.
De difícil exploração, seu texto parte do inconformismo com as teorias vigentes
que tentam elucidar as relações sociais, culturais e políticas que nos envolvem.
Sua forma iconoclasta de relativizar as verdades objetivas e de valorizar o que
se esconde, muitas vezes nas profundezas da planura das aparências, me
encanta. Por menos acadêmico que seja esse argumento, é com encantamento
que percebo na obra de Certeau que a valorização das práticas cotidianas,
antes de seus produtos, anuncia elucidações imprescindíveis ao estudo da vida
palpável, percebível e sensível do dia–a-dia, a vida que me interessa, também
no campo teórico, enfrentar.
Em seu livro “A cultura no plural”, Certeau (1995:126) escreve que,
o que importa já não é, nem pode ser mais a “cultura erudita”, tesouro
abandonado à vaidade de seus proprietários. Nem tampouco a “cultura
popular”, nome outorgado de fora por funcionários que inventariam e
embalsamam aquilo que um poder já eliminou, pois para eles e para o poder
“a beleza do morto” é tanto mais emocionante e celebrada quanto melhor
encerrada no túmulo. Sendo assim é necessário voltar-se para a
“proliferação disseminada” de criações anônimas e “perecíveis” que
irrompem com vivacidade e não se capitalizam.
55
O entendimento contido nesse pequeno trecho exemplifica o aproveitamento
de seu pensamento na busca pelo que se oculta no universo da escola. Pois
nesse lugar, o discurso dominante ainda privilegia aspectos distantes da
realização dos praticantes de seu cotidiano. A relativização e a conseqüente
reavaliação dos valores que circulam na educação permitem a
problematização do imaginário fabuloso e estratégico que privilegia a versão
erudita da produção humana como referência de uma epistemologia legítima.
Esta versão, ainda dominante na escola imaginária, condena ao eclipse muitas
outras formas de produção de saberes, sobretudo as práticas que fervilham na
vida cotidiana. A exaltação e defesa exclusivas de certos saberes, nas
palavras de Santos (1995:328) geram o epistemicídio, nesta pesquisa, do que
é produzido pelas práticas silenciosas dos protagonistas da cena escolar. O
que priva a todos de entendimentos fundamentais ao enfrentamento da
complexa atualidade que encurrala a educação e suas instituições.
Certeau discute, de certa maneira, a multiplicidade dos agenciamentos que
formam o que chamamos de cultura a partir das relações cotidianas. A
amplitude da discussão que daí emerge concorre favoravelmente com o esforço
de partir do cotidiano à busca de outros entendimentos da e para a educação.
Esforço facilitado pelos deslocamentos conceitualmente férteis que propõe.
Trabalhar o desafio do diálogo entre autores que divergem em alguns pontos
importantes, a despeito de seus encontros, ou daquilo que entendo serem
conexões, me parece uma tarefa arriscada, mas inevitável neste trabalho.
Shusterman, por exemplo, é bastante amparado por certezas que se assentam
na aproximação da teoria marxista e Certeau me parece ir numa rota teórica que
se afasta da generalização conceitual presente na discussão das relações e
56
produções sociais a partir da luta de classes e de suas decorrências. Entretanto,
proponho trabalhar com as visões de autores de interesses diversos, de forma
que esses inusitados encontros provoquem uma articulação conceitual produtiva
no âmbito da minha investigação.
A elucidação das práticas cotidianas, como forma de produção de conhecimento
sobre a educação ou qualquer outro campo social, reivindica a criação de novas
operações conceituais, novas formas de abordagem que acompanhem o ritmo
intenso das ações de seus praticantes. Assim, penso ser justificável o risco e a
experimentação do que chamei de inusitadas composições teóricas. Pois estas
iniciativas possibilitam complementações às muitas questões que vão se
colocando ao longo da pesquisa. Recorrer a determinado autor permite apreender
algo além do que se havia esgotado com a sondagem apoiada em outra
perspectiva teórica. Assim, esperei aproveitar o manancial de conhecimentos que
permeia e subjaz às, aparentemente frugais, cenas e ações cotidianas.
Entender o mundo a partir da invenção ou reinvenção das condições, ou melhor,
dos discursos que narram essas condições, da vida pragmática, me parece ser
a proposta mais instigante de Michel de Certeau. Embora não identifique em sua
obra a prescrição de caminhos ou modelos em direção a uma situação ideal
generalista e redentora para a humanidade, interpreto sua forma de interrogar
as categorias estabelecidas para a leitura do mundo, como um horizonte de
caminhos para se pensar as relações sociais como uma saída de um estado das
artes que parece não ter saída. Saída inventável por meio de originais
composições de elementos até então impensadas. Esses elementos seriam as
práticas, efeitos e situações que se ocultam nas ruínas de muitos dos sentidos
que dão corpo aos discursos que pretenderam esgotar a explicação do real.
58
das práticas sociais torna a obra deste pensador indispensável ao objetivo deste
trabalho e justifica sua apropriação como força movimentadora dos seus
processos de investigação.
A invenção do cotidiano é, também, a teoria da invenção, a partir do momento
que explicita a potência dos deslocamentos dos aparatos de apreensão do que
é dado como limite do real. Sua abordagem é a reinvenção das narrativas, das
escrituras, das omissões e oclusões das pequenas ações humanas. Essa
reinvenção das coisas é a manifestação do poder de criação nos modos de ver
e sentir o mundo. Essa reinvenção da percepção do mundo permite, por meio
de sua estética própria, saber que as banalidades que constituem a vida quase
imperceptível e tangível do dia-a-dia são também micropotências que
consubstanciam os grandes acontecimentos.
A insurgência da percepção, ou invenção de novas formas de apreensão da
vida, implica na emergência de uma outra estética investigativa. Ação que
viabilize uma abordagem teórica que roce com mais intimidade o “que acontece”.
Implica, também, em outras formas de visão, de olfato, de tato e de
representação escriturística que venham concorrer, favoravelmente, para ações
produtivas na ciência, na arte e na educação. Mesmo não se referindo
explicitamente a esses objetivos, a obra de Certeau instiga a problematização
da fragmentação desses territórios e suas implicações, visto que a separação da
vida comum da história, da arte e da ciência, da razão e da imaginação e outras
polarizações resultam em limite instransponível erigido pela estagnação dos
processos de compreensão enclausurados em uma única matriz de leitura. A
obra de Certeau impõe a invenção de novas chaves de leitura e fertiliza o
campo da compreensão dos acontecimentos e dos seus autores.
59
Boaventura de Sousa Santos é mais um autor que tomo como central no
norteamento teórico desta tese. A aproximação com sua obra representa uma
aquisição importante para a trajetória de construção da narrativa da educação
imaginária e o seu acontecimento na invenção cotidiana da escola.
“A Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência” e “Pela mão
de Alice” foram os livros de Santos nos quais me referenciei e cujas leituras,
enredadas com a de outros autores, me ofereceram inestimável apoio. Nessas
obras encontrei formulações que apaziguaram as minhas inquietações e
propiciaram novos planos de entendimento para o campo investigado.
O que este autor aponta como transição paradigmática conduz a reflexão sobre
as revelações do cotidiano para um horizonte de conseqüências ou de
desdobramentos vivenciáveis em sentidos positivos para os seus protagonistas.
“Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do tempo, entre
um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu” (Santos,
2000:41). Com o vivo questionamento da ciência moderna como última forma de
elucidação do mundo real, Santos provoca, por sua vez, a desequilibração das
formas de entender as relações sociais. Essa desequilibração abre terreno para
aventuras teóricas que permitem revelar possibilidades emancipatórias onde
pensávamos a estagnação. O encontro com as reflexões de Santos representou
o vislumbramento de indícios promissores ocultados sob o que tem sido
identificado apenas por meio das leituras dualistas e cientificistas que reduzem
drasticamente as possibilidades dos panoramas sociais contemporâneos.
O rigor científico afere-se pelo rigor das mediações. As qualidades
intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar,
passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir.
60
O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o
método científico assenta na redução da complexidade (idem, Op.cit).
Numa apropriação talvez pessoal, identifico na obra de Santos uma significativa
aposta no devir. Não em um devir definitivo, pois as lutas emancipatórias são
sempre processuais, mas é das suas práticas que emergem a imaginação social
e estética propulsoras do reencantamento do mundo (Santos, 2005:106). Pois, a
idéia de humanidade apresentada por ele e a sua localização diante do mundo
que define para essa humanidade vão ao encontro das expectativas que me
conduziram à investigação no/do cotidiano. A explicitação da força do humano
que percorre sua obra se dá por uma sucessão de interrogações que aplainam
cordilheiras de certezas para oferecer um horizonte no qual despontam novas
conjugações de atuações sociais acompanhadas de outras formas de leitura da
“realidade”. Nesse panorama podemos vislumbrar movimentos pragmáticos em
direção a vidas mais felizes.
O conceito de uma racionalidade estético-expressiva, apoiado pela discussão de
um possível novo senso comum ético, portanto solidário e indissociável de um
novo senso comum político, engendrador de novas lógicas de participação, é
apoiado por um novo senso comum estético, que o autor chama de “senso
comum reencantado”. Portanto, a idéia proposta de que o prazer é a marca
estética do novo senso comum (Santos, 2000:114) define uma posição teórica
em sintonia com as propostas dos outros autores desta rede teórica. O diálogo
com a obra de Santos representa um de seus fortes fios e inspira a
movimentação da poesia e da ciência no andamento do trabalho.
“A crítica da razão indolente” é uma obra densa. O enfrentamento de sua
discussão teórica não é menos desafiador do que as obras dos outros autores
aos quais recorri. Devido aos limites deste trabalho e às minhas próprias
61
limitações, seria difícil elucidar todas as implicações teóricas que esta obra
encerra. Assumo, entretanto, que a identificação com a idéia de caminhos para
a emancipação (libertação, reinvenção das relações políticas, produção de
novas formas de interação sociais, etc. que viabilizem um mundo melhor para
todos), ainda que numa apreensão precipitada das reflexões de Santos, seria a
marca do nosso encontro. Pesquisar decorre do espanto e da não aceitação de
fatos e situações, a presente pesquisa pretende ressignificar as razões do
espanto em motivos de esperança, em indícios de devir.
O estudo no/do cotidiano como sociologia das ausências (Santos e Oliveira,
2004) ou arqueologia das existências tornadas invisíveis aponta o devir como
produção humana, caracterizado como mera conseqüência do hoje. O devir é
também o desejável para além do possível (Op.cit: 106).
O tempo dedicado a essa investigação e às vivências que a constituíram me
levaram a compreender que os percursos investigativos do cotidiano, além de
serem sempre acompanhados pela crucial necessidade de inventar formas de
percepção, exigem constantes experimentações teóricas por meio da
articulação de idéias nem sempre convergentes ou avizinhadas. Penso que,
tanto a aventura teórica quanto a metodológica justificam seu arriscado jogo, na
medida em que concorram para a produção de material útil à educação,
pretensão final deste trabalho.
Mais abrindo que fechando as páginas que dedico à apresentação dos autores e
de suas teorias apontados como referência à pesquisa, incorporo Deleuze. Não
poderia apontá-lo como referencial teórico convencional, por meio do qual
tivesse dado seguimento sistemático à presente pesquisa e ao seu registro, da
mesma forma como não ousaria fazê-lo em relação a qualquer autor. Deleuze
62
representa uma surpresa típica dos encontros que a rebeldia do cotidiano nos
arma. Escrever sobre esse encontro é uma tarefa difícil, pois a partir da leitura
de alguns dos seus textos, tudo parece apontar para a multiplicidade de
explicações, de leituras e de enfrentamentos que a própria escritura também
passa a significar.
Reconheço, a partir de Deleuze, que o meu caminho de busca pelas
experiências e as decorrentes intenções de elucidações, de organização de
relações e significações, que acabam por ser o próprio conjunto de forças e
vivências que configuram minha pesquisa, se deu via certo empirismo errático
no flanar pelo cotidiano e pelos livros. Perambulei por vários autores que me
pareceram próximos, na medida em que todos tinham em comum o meu
interesse. Deleuze, que também não estudei com a profundidade recomendada
pelo parâmetro científico, me interessou por criar novos conceitos para muitos
conceitos de que me servi até então. Eis aí o ponto de encontro que estabeleço
entre ele e os outros pensadores da rede.
O pensamento deleuzeano, em suas originais formulações, provocou-me
interesse e desespero. Desespero, por que me sugeriu a ameaça de ter de rever
tudo o que já havia, de certa forma, estabilizado. Contudo, escolho por manter a
imagem desse trabalho, de um corpo que se transforma. Deixo, assim, na sua
escrita os sulcos de certezas que contrastam, e até conflitam, com as novas
interferências sofridas pelo que entendi do pensamento deleuzeano. Revejo as
organizações iniciais e não as anulo, a despeito de se mostrarem frágeis diante
da novidade desse inquietante pensador, pois entendo que algumas
perspectivas por mim eleitas significam agenciamentos que se enredam com as
ações dos novos conceitos encontrados. Deleuze, aposso-me dessa forma,
63
defende a multiplicidade no que se aventava unidade. Fala de novas
concordâncias no mapeamento do que não se sabe por não caber na
organização constituída pelo sabido e pelo não sabido. Amplia, à vertigem, o
precipício da sondagem, da interrogação e do destino presentes no pesquisar.
Assim, a inquietação gerada pela desterritorialização dos meus
encaminhamentos, me levou a outros autores que trabalham com suas idéias e
esses contatos erráticos adensaram as tramas da minha rede teórica. Ler
Deleuze representou uma verdadeira movimentação na estabilidade que
procurava, consciente ou não, para a minha pesquisa. Potencializou a Hidra que
me engole, que me atrai e, às vezes, rejeita.
Deleuze avança na abertura de possibilidades investigativas impondo a
dramática suspeição, antes dos conceitos, das próprias ações que os
engendram, das palavras que os narram. Reinventa a idéia da estética e dos
movimentos que a agenciam e de seus limites, de seus mil platôs. Faz o mesmo
com tantos outros conceitos, inescapáveis à ação criativa do pensamento. Para
mim, Deleuze reinventa o pensar, sem oferecer uma matriz estabilizada,
estruturada como as formulações que sempre auxiliaram e nortearam as
práticas investigativas.
“De fato, o que importa é retirar do filósofo o direito à reflexão ‘sobre’. O filósofo
é criador, ele não é reflexivo”. (Deleuze,1972:152 )
Com essa assertiva, esse pensador potencializa o ato de pensar o mundo como
criação. E é este horizonte que estimula a ação investigativa, nutrindo-a de
esperançosa liberdade. Portanto, um respaldo indispensável para quem procura
o que parece inalcançável e que, especificamente na pesquisa do cotidiano, são
64
as formas de condução da vida de seus praticantes como anúncio de
possibilidades para além da heteronomia.
Discorrendo sobre seu conceito de “modos de existência”, enfoque muito caro
à minha pesquisa, Deleuze (1972:126) explica que se no que somos
“capazes” de ver e de dizer,
... há toda uma ética, há também uma estética. O estilo, num grande escritor,
é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a
invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência.
Aplico essa compreensão aos anônimos escritores da vida cotidiana e, sempre
atento à estética das suas existências, ou seja, às suas formas de fazer a vida
como obra de arte, tento perscrutar as implicações das produções imaginárias
da escola na formulação dessas obras.
De todo modo, as contribuições de Deleuze aconteceram como as demais
leituras que fruí ao longo da minha vida, sem pretensão de acertar numa
suposta apropriação pertinente, mas, sobretudo guiado pela curiosidade e
pelo prazer do encontro.
Em última análise, penso que as sensações causadas pela leitura de seus
textos potencializaram, produtivamente, a minha rede de experiências. Contudo,
não ouso reduzi-las à condição de referência ou respaldo a essa ou àquela
condução teórica ou ação metodológica. É esta a melhor maneira que alcanço
para registrar a participação do que pude apropriar dos textos de Deleuze e de
sublinhar o seu atravessamento na movediça experiência que é escrever a
experiência do, no e sobre o cotidiano e do pensamento decorrente dessa
experiência. Especialmente quando se trata de um cotidiano entendido e criado
como um corpo estetizado pelas vidas estetizadas dos jovens.
65
O cotidiano de uma escola diagramada em imagens configuradas por
agenciamentos diversos que, a todo tempo, também fazem circular a ocorrência
dos sentimentos de existir de seus protagonistas.
Na rota da produção da minha rede de leitura, que é uma das faces da rede
teórica aplicada na pesquisa, os muitos romances, as poesias e os ensaios
foram sendo aproveitados na medida em que geravam encontros novos e
instigavam novas formas de perceber o mundo. Como contribuição ao melhor
entendimento dos acertos e desacertos dessa Hidra pesquisa, não como
argumentação final, mas apenas com a qual julgo necessário marcar
esse texto, cito Tadeu, Corazza e Zordan (2004: 24 e 25) sobre a
experiência/experimentação da ação de pesquisar :
... debaixo de suas histórias e divisões oficiais, existem outras potências,
que são atualizadas por outros tipos de encontro e de invenção: minorias,
diferenças moleculares, devires, processos de descodificação e de
desterritorialização etc. Eles libertarão a imaginação da pesquisa de toda
representação de algo dado, anterior, original. Eles farão com que a
pesquisa se torne parte de uma “fabulação” (DELEUZE e GUATARRI, 1992,
p.218, ss.) escolar, ao traçarem percursos das minorias, com as quais
experimentarão tudo que está fora dos estados escolares, todas as espécies
de fugas que escapam a estes estados ou de forças que estes tentam
capturar. Nesta pesquisa, todos procedem por experimentação, apalpação,
injeção, recuperação, avanço, retirada, vendo os pontos en fuite, que não
são obstáculos a remover, mas em torno dos quais surgem novos devires e
onde ganham formas novas as maneiras de pensar.
Como aquisição teórica de última hora, registro o encontro, certamente já
percebido pelo leitor, com a obra de Michel Maffesoli. A leitura de alguns de
seus livros, entre estes “A sombra de Dionísio” e “O mistério da conjunção” me
propiciou o encontro com um caminho conceitual que intensifica a importância
do cotidiano como fonte imprescindível de conhecimento sobre a atualidade das
66
relações sociais, bem como foca o sentido estético da existência humana.
Maffesoli redimensiona a “experiência estética” propondo como sua energia
fundamental a ação coletiva.
Crendo pouco proveitoso aprofundar a argumentação que defenda a presença
desse pensador na inusitada rede teórica que criei, pretendo apenas e ainda,
defender essa rede em suas prováveis contradições, ou melhor, em seus fortes
contrastes, reafirmando minha fé de que o que dá a consistência teórica, seja
qual for a textura, a tessitura e a densidade, alcançada na minha pesquisa é o
horizonte das muitas leituras e das muitas experiências estéticas que
aconteceram ao longo da minha vida. Horizonte certamente pouco explorado,
mas suficientemente fruído para permitir chegar ao ponto, não de conclusão,
mas antes, de interrupção desta tese, trabalho no qual predominam menos as
certezas que os desejos. Desejos que conduziram todos seus caminhos e
levaram a saídas e a retornos, desvios e à criação de atalhos, mas que, nos
acertos e desacertos, buscaram conhecer, fruir, enfim, viver a beleza do cotidiano
de uma escola pública, como base de lançamento de novas compreensões para
a educação irrealizada, evocada, reproduzida, fabulada e criada.
67
PS. Entre os muitos autores que marcaram meus caminhos investigativos é
preciso reverenciar Cornelius Castoridis, Edgar Morin, Michel Foucault, Gilbert
Durand, Lucia Santaella, Nilda Alves, Regina Leite Garcia, Sandra Corazza,
Tomas Tadeu, Christoph Wulf, Tzvetan Todorov, Walter Benjamin, Castor
Bartolomé Ruiz, José Machado Pais, Lílian do Valle, Inês Barbosa de Oliveira,
Carlos Eduardo Ferraço, Aristóteles Berino, Valter Filé e muitos outros
escritores, professores, artistas e amigos que, de uma forma ou de outra,
contribuíram com o aproveitamento dos autores destacados e assim me
ajudaram a mergulhar, navegar na aventura do conhecimento dos autores
anônimos do cotidiano.
68
A rede metodológica
Pesquisar o cotidiano é criar metodologias.
...ora, mas o cotidiano é rebelde!
6
A pretensão desse texto é, tão somente, inscrever minhas considerações sobre
um percurso marcado pelas surpresas inerentes ao cotidiano pesquisado e,
portanto, à pesquisa no/do cotidiano. Defendo nele a invenção da minha forma
de apreender o imprevisível que permeia a enganosa previsibilidade atribuída ao
cotidiano. Ação investigativa que pouco pôde dispor de elementos que
permitissem um planejamento operacional prévio aos acontecimentos
pesquisados.
6
Frase de autoria da professora Inês Barbosa de Oliveira, dita no cotidiano de suas aulas no
Programa de pós-graduação em Educação da UERJ e registrada em alguns de seus textos
sobre o cotidiano escolar.
69
Minha metodologia resultou, portanto, do enredamento de muitas leituras,
principalmente das que narravam as experiências de pesquisadores que se
dedicam à aventura do cotidiano, com as experimentações e tentativas de
explorar, da melhor forma possível, as situações com as quais me deparava
durante o desdobramento da minha pesquisa.
Muitos caminhos metodológicos me seduziram e também me confundiram, mas
acabaram por contribuir, de uma forma ou de outra, para o acontecimento da
pesquisa e para a aprendizagem/criação de modos de pesquisar. Não seria
cabível listá-los e identificar os sentidos que cada um ofereceu à minha
trajetória, entretanto, uma, entre as várias possibilidades metodológicas de que
tive conhecimento, me chamou especialmente a atenção. Trata-se da proposta
que Juremir Machado Silva (2003: 73) apresenta no texto “Questão de método:
da sociologia compreensiva às narrativas do vivido”,
O pesquisador... “precisa estar à altura do cotidiano”, como disse Max Weber.
Mais do que demonstrar isso ou aquilo, deve mostrar, dar a ver, fazer vir,
desentranhar, fazer emergir, revelar, descobrir, desvendar, expor à luz. Não lhe
basta conhecer o poder (institucional explícito) deve perceber o fluxo da
potência (subterrânea). Se não pode provar o que aconteceu no passado nem
prever o futuro, cabe-lhe narrar bem o presente. Mescla de antropólogo, de
fotógrafo, de repórter, de cronista e de romancista, necessita captar e narrar a
fluência, o extraordinário e a complexidade do vivido.
naoentu o bada s qudtu aisa tJurter,er(Muajuste41-lodo: )Tj-8.0004 Tc0.0318 1 Tc8.825 -2.3sobrante locsdobramsta, nordinxpor m, aodo:
70
especulações sobre o imaginário e sobre as imagens que ele produz têm
centralidade na minha abordagem.
Constato, contudo, ser equivocado qualquer ajuste ou deslocamento do diálogo
que estabeleço com o cotidiano em atenção a essa proposta, posto que, para
meu percurso, não foi preciso me pôr à altura do cotidiano, pois, o cotidiano de
meu interesse esteve, sempre, ao rés do chão, abaixo da cintura do notável,
apesar de inundar todos os espaços da escola, espaço no qual sempre estive,
visto que sou professor da instituição onde desenvolvo a pesquisa.
Redimensionei, também, a idéia da captação do extraordinário, visto que o
cotidiano, a despeito do gigantismo titânico da força do imaginário que o
engendra e nele circula, é o pequeno, o ordinário, o vulgar.
Estar à altura desse cotidiano, segundo a minha iniciativa e percurso
metodológico, era estar abaixo de qualquer visão de topo, era lutar para
manter-me pequeno o suficiente para assegurar o encontro com seus micro-
acontecimentos, suas insignificâncias.
Entendo que narrar o presente da escola é narrar minha própria pequenez
como ator de seu teatro. O cuidado com a estatura da minha percepção foi
importante para a articulação da tentativa de narrar tudo o que meu olhar e
minhas sensações criaram no dia-a-dia ordinário da escola. Dessa maneira fiz-
me antropólogo, o bastante para não permitir que a técnica ortodoxa da
antropologia impedisse minhas experiências, nem condicionasse o meu olhar
na produção das muitas fotografias que fizemos. Longe de visar um registro
‘científico’ foram estas norteadas pelo prazer do jogo e do afeto, mais ou
menos como se registrássemos uma festa doméstica. Éramos fotógrafos
comuns, visto que as fotos que me serviram foram feitas também pelos alunos.
71
Com relação ao registro de certas imagens, é preciso acrescentar que as
fotografias que produzimos aconteceram apenas por estarmos seduzidos pelas
imagens e pela amizade que untavam os momentos em que brincávamos com
a máquina fotográfica.
Também não trabalhei objetivamente com o sentido jornalístico, pois era
difícil operar com esse sentido sobre algo que não se dava descolado da
minha efetiva participação. Por outro lado, tentei ser cronista, embora meio
canhestro, do cotidiano que vivia. Contudo, o encantamento com o
universo investigado me fez assumir o papel de romancista. Escritor que
pretendeu captar e narrar a fluência do ordinário e desta torrente ressaltar
as suas faces extraordinárias, para mim, parte e todo que compõem a
complexidade do cotidiano escolar.
Criar e lidar com os processos que envolvem uma investigação de aspectos da
educação por meio do cotidiano escolar foi lidar com um ser titânico de muitas
cabeças. Cada cabeça apresentava como ataque, defesa ou desafio,
discursos, aparências e realidades diferentes entre si e freqüentemente
contrastantes. Quando se é professor ou professora e o lócus da pesquisa é o
nosso próprio local de trabalho, essa Hidra mostra-se muito mais potente. Entre
suas muitas cabeças que se multiplicam, cotidianamente, estão aquelas que
nos interrogam intimamente, que nos impõem pensar sobre os sentidos de
nossa presença, nos fazendo descartar as explicações simplistas e
reducionistas do que vemos e sentimos. A Hidra, agenciamento de muitas forças,
nos encurrala na desafiadora situação de encarar as nossas próprias redes de
sentidos, tramas do que temos como subjetivo e que nos levam a estar onde
estamos do jeito que nos encontramos.
72
O que nos faz sentir o que sentimos quando sentimos o que sentimos exige ser
pensado, assim como o exigem as ações e percursos que visam, mesmo que
73
uns aos outros. Sob essa perspectiva, o respaldo da mítica rigidez da exatidão
científica, assim como a maioria das técnicas tradicionais da etnografia
moderna, se mostrou de utilidade parcial.
Percebi a dimensão do desafio metodológico na medida em que rapidamente
me dava conta que para alcançar o que desejava não poderia contar com o
recurso das técnicas disciplinares tradicionais que são armadas pelo rigor
metodológico. Por outro lado, conforme propõe Oliveira (2003:72 e 73),
se nos mantermos excessivamente ligados
a premissas predefinidas a respeito do que
pretendemos pesquisar, em função daquilo
que acreditamos já saber, criamos, em
nossas redes, “nós cegos”, que subtraem
dela algo de sua maleabilidade e, portanto,
da possibilidade de entradas e articulações
de novos fios de saberes ao anteriormente
sabido.
Porque, nesse modo de pesquisar, a flexibilidade das ações investigativas deve
ser permanente para que se possa dialogar com a sucessão de
acontecimentos que vibram o cotidiano e cujas relações não se mostram
imediatamente claras, visto que os canais de ligação entre este ou aquele fato
são rizomáticos, muitas vezes subterrâneos, muitas vezes invisíveis ao olhar
interrompido na superfície das práticas. Como esclarece Maffesoli (2005:104):
... a efervescência epistemológica perceptível em nossas disciplinas
acadêmicas é o indicador mais claro dos diversos deslocamentos em ação
nas sociedades contemporâneas. È inútil retomar a saturação dos grandes
sistemas explicativos, pois isso agora é uma evidência. Em ricochete isso
fragilizou as certezas metodológicas e as grades de leitura
preestabelecidas e aplicadas a priori em qualquer situação social.
74
Da rede de ações que nortearam essa pesquisa destaquei cinco elementos
centrais, que não se diagramam em ordenação hierárquica: considerar a
poética da vida dos praticantes da cena investigada; considerar o afeto que me
liga à escola pública e especialmente a escola pesquisada; considerar o
possível aproveitamento dos resultados deste trabalho na ajuda aos que lá
estão (Ferraço, 2003:72); investir no diálogo aberto com os protagonistas com
as imagens da escola e finalmente, redimensionar, a todo o momento, as
distâncias entre eu-pesquisador e o campo pesquisado, procurando não perder
a noção das complexidade e riqueza das ações de seus praticantes.
Tomamos, então, como primeiro elemento o reconhecimento da força central
do cotidiano, ou seja, a poética que emana da própria ambiência da pesquisa:
o acontecimento da vida dos sujeitos que o produzem. Explorar a potência do
cotidiano seria impensável sob a tutela de abordagens e registros guiados por
qualquer unidade metodológica rígida, pois entendo que, para esta aventura
investigativa, a idéia de uma metodologia concebida e estruturada em
procedimentos regulares não levaria além da ilusão de uma tradução limitadora
de algo que prima pelo constante transbordamento de seus próprios limites.
O método ou o caminho que tomei aconteceu destituído da pretensão de sua
cristalização teórica, ou seja, da possibilidade de transmutação de sua
experiência singular para um esquema acabado que pudesse ser aplicado em
outras pesquisas. Simplesmente porque a metodologia aplicada foi sendo
criada mediada pelas ocorrências cotidianas que encontrei. Assim, em cada
procedimento adotado se buscou a sintonia com as ações e acontecimentos
que presenciei e dos quais, de uma forma ou de outra, sempre participei.
Logicamente, essa metodologia criada nesta pesquisa tem sentido exclusivo
75
para o ecossistema do qual emanou, não podendo, portanto, seus
procedimentos serem meramente aplicados em outros espaços e tempos sem
forte perda de sentido.
O sentido dessa experiência como referência e incentivo a outros trabalhos
está nos princípios que a nortearam, entre esses, os de ordem metodológica.
Foram colhidos em recente produção metodológica especialmente pensada e a
partir de intenso investimento na pesquisa do/no cotidiano. Entre esses
princípios está uma das preocupações centrais de Alves e Oliveira (2001), a de
buscar nesses cotidianos, para além de entendê-los como lugar de reprodução
e consumo, o que neles se cria. Para tanto, afirma Alves, vai ser necessário
desenvolver uma discussão com o modo dominante de ‘ver’ o que foi chamado
a ‘realidade’ pelos modernos (2001:15), sem desconsiderar o conjunto de
teorias, categorias, conceitos e noções que herdamos das ciências criadas e
desenvolvidas na chamada modernidade e que continuam sendo um recurso
indispensável, aliado à incorporação da noção de complexidade.
Esse conjunto de idéias é de fundamental relevância na definição das ações que
fortaleçam as investigações de qualquer aspecto do cotidiano como fonte de
novos saberes, e assim respalda a criação de artifícios metodológicos necessários
ao aproveitamento do que os campos pesquisados possam vir a oferecer.
A ação que deflagrou a minha pesquisa concentrou-se na tentativa de
territorialização do seu campo de atuação. Para isso, tentei criar um mapa que
configurasse os encontros e os movimentos das muitas imagens que se
superpõem, se atravessam e se espelham no panorama da escola. Imagens
visuais, sonoras ou discursivas que configurariam, nessa primeira idéia,
enigmas a serem elucidados, no que fosse possível tal elucidação pelo
76
pesquisador. Mas, rapidamente percebi que o mapeamento do cotidiano tem
validade muito breve. A minha ação metodológica poderia, nesse sentido, ser
reduzida à reconstrução diária desse mapeamento.
É preciso sublinhar que essa forma de trabalhar não pode ser compreendida como
um conjunto de ações que pairaram acima do cotidiano investigado, pois se tratou
de um inevitável encontro no, do e com o cotidiano, cujo relato, estudo ou narrativa
não são formatáveis sob amparo de procedimentos já experimentados, mesmo
admitindo que as teorias que embasaram abordagens passadas foram preciosas
como partida para compreender a dimensão epistemológica do cotidiano. Dar conta
da minha tarefa implicou em lidar com a concretude do estilhaçamento das
metanarrativas. Em outras palavras, me fez perder o pé e flutuar sobre a lacuna
deixada pela evaporação dos discursos totalizantes e os regimes de verdades que
me formaram e que, vez por outra, insistem em se manifestar.
Certo de que lançar mão de um partido metodológico compatível com essa
consciência significa dialogar com a efervescência teórica circulante, tentei
desvencilhar-me dos resquícios de qualquer tradição metodológica para
dispor de espaços nos quais florescesse a invenção de caminhos
apropriados que facilitassem a apreensão do que fosse possível apreender.
Enfim, foi preciso desapegar-me do conjunto de idéias que me respaldava
antes da pesquisa sem ter certeza de conseguir outros que
desempenhassem a mesma função protetora. Esforcei-me para, no lugar de
procedimentos técnicos oriundos de matrizes hermenêuticas rígidas, investir
na poética da fruição acreditando ser esse o modo adequado de aproveitar e
resguardar as relações de afeto que foram se fortalecendo ao longo do
trabalho e que, pouco a pouco, fortaleciam meu percurso.
77
No caso específico da escola estudada, lidei com uma atualidade marcada por
paradoxos e discrepâncias que, em sua efervescência, fraturavam as matrizes
teóricas que nos últimos tempos lhes pretendeu elucidar. Dessas formas
consagradas e crescentemente difundidas de explicar a escola, na reflexão
sobre o que vivi, pouco pude aproveitar. As muitas faces da Hidra que ameaça
aqueles que se aventuram a estudar o cotidiano se contradizem, ao mesmo
tempo em que se interrogam e se agenciam. Sob essa metáfora concorrem
todas as diferentes visadas do cotidiano, ou seja, cada uma das imagens que
dele podemos captar. Nos contrapontos dos embates de cada uma das
cabeças da Hidra, de cada aparente contradição do cotidiano, essas muitas
visadas têm sua significação como parte de uma rede de acontecimentos que
se entrecruzam e cobram uns dos outros, reações aos problemas que trazem.
E tais entendimentos precisaram ser considerados em harmonia com os
olhares que os perceberam. Quando tais reações sugeriam respostas, estas
serviram apenas para suscitar novas questões, infinitas exigências de novos
enunciados, turbilhão irrefreável e de impossível termo. Respostas e
enunciados em fluxo que apontavam novas possibilidades de entendimento e
de relações para além do que era investigado.
A densidade das multiplicidades e enredamentos dos acontecimentos do dia-a-
dia teve que ser considerada para que a tarefa investigativa pudesse acontecer
de forma que a incontornável traição ao que é investigado fosse atenuada pela
poesia. O reconhecimento, pois, da traição e da colonização teórica que
subjazem às investidas da pesquisa, me levou, a cada momento, à
interrogação dos sentidos das formas como eu atuava. Interrogação que
provocava o redimensionamento da atuação metodológica fazendo com que eu
78
a compreendesse como criação permanente de meios e recursos de
conhecimento em sintonia com os desdobramentos da vida na escola.
Uma das maneiras de investigar o cotidiano escolar é via sua prolífera produção
imagética. Foi essa a forma eleita para a condução do meu trabalho. Acreditando
que diante do olhar e sentir desarmados em conjunção com a curiosidade livre, a
escola revelaria suas peculiaridades. As palavras de Azevedo (2001) ajudam a
explicar o sentimento que acompanhou as minhas iniciativas para alcançar as
características singulares da escola, percorrer algumas das pontes que a unem às
outras escolas, bem como para sentir os seus isolamentos.
Nossa curiosidade e nossa insatisfação nos impulsionam até o limite das
nossas certezas. Alguns, mais cautelosos, param por aí; outros mais atrevidos
“atravessam o Rubicão” de suas certezas e se deixam molhar pela dúvida, pela
incerteza, pela ansiedade advinda. A esse movimento, a essa busca podemos
chamar de pesquisa (Azevedo, 2001: 57).
Procurei, sob a tensão das minhas dúvidas e ansiedades, criar dispositivos
de captação das imagens por meio dos quais pudesse sentir as nervuras, a
ossatura, a musculatura e a derme do corpo cotidiano da escola. As
imagens que apreendi variavam em sua multiplicidade entre as
essencialmente físicas, as discursivas e as predominantemente imaginárias.
No momento do registro da pesquisa, neste momento no qual as experiências
são vertidas para a rigidez do texto escrito, o aspecto puramente metodológico
parece ser irrecuperável, tudo que é descrito a esse respeito parece distante
do que de fato aconteceu. Essa constatação ratifica o desafio que é o uso
7
de uma metodologia de pesquisa no/do cotidiano, seja no que toca às suas
necessidades e imposições de criação, seja na adequação do que é criado
7
Uso no sentido certeauniano como prática para além da mera aplicação ou consumo, ou seja,
prática criadora que marca a reinvenção cotidiana.
79
ao que se busca captar. Contudo, alguns princípios centrais à minha
experiência podem ser apontados como elementos que, articulados,
constituíram seu mosaico metodológico.
Considerei como um desses elementos ou princípios caros à minha criação
metodológica o cuidado em não separar a imagem imaterial, produto da
imaginação, das imagens materiais, defendendo que as segundas não se
reduzem à sua fisicalidade, pois têm sempre relação direta com as primeiras.
As imagens materiais, mesmo não sendo constituídas da forma como o são as
imagens discursivas, que exibem de forma mais flagrante idealizações e
demais construções imaginárias, guardam proveitosos conteúdos indiciários
(Ginzburg, 1989) da permanente produção imaginária que permite a existência
das instituições que habitam ou representam.
A abordagem investigativa que toma o cotidiano escolar como um universo
imagético, longe de reduzir sua tonicidade social, pretende ampliar o
panorama de possibilidades de suas leituras. Pois, a perscrutação do
cotidiano escolar, via suas imagens, facilita o desmonte de entendimentos
sacralizados dos seus espaços e assim facilita vislumbrar outros sentidos
para o que era banal, para o que era inquestionável (Oliveira, 2003). A
observação atenta das imagens leva, também, à pulverização dos tapumes-
tabus que ocultaram as dissonâncias entre uma gênese fabulada
8
e os
agenciamentos que forjam a contemporaneidade.
O cotidiano escolar é aqui defendido como um dinâmico atravessamento das
potencialidades do imaginário que forjam muitas imagens de formidável
8
O sentido aqui utilizado para a fabulação é o modo de ou faculdade de criar ficções ou
superstições que expliquem ou justifiquem determinados eventos ou acontecimentos.
80
consistência. A sombra da inconsistência – facilmente associada ao imaginário
quando reduzido ao devaneio e ao sonho – só ameaçou meus métodos de
trabalho quando pensei atingir entendimentos definitivos. Aprendi que o fluxo
dos acontecimentos cotidianos não se deixa aprisionar por abordagens que lhe
imponham sentidos monolíticos ou ações que pretendam dar conta de uma
única e decisiva concretude do real. Criar métodos de ação investigativa no/do
cotidiano foi, portanto, trabalhar com as oportunidades que o inesperado,
inerente a essa aventura, me reservou. Não houve, portanto, a possibilidade de
uma esquematização convencional, mínimas programações técnicas ou ações
previamente decididas que lograssem sucesso total. O percurso metodológico
emanou dos enredamentos da minha percepção e sensibilidade com os
encontros com a rebeldia do cotidiano. É preciso enfatizar que as dimensões
da minha experiência como pesquisador estão ligadas à minha condição de
professor da escola que pesquisei. Cada ajuste e redirecionamento da minha
atuação foram deflagrados pela alquimia dos encontros com as pessoas e os
acontecimentos que fazem as rotinas escolares. Assim, cada imagem com a
qual trabalhei e que descrevi encerra singular exemplo de produção de
metodologia. Imagens que falam da escola e de seus protagonistas, mas
narram também um percurso pavimentado por diferentes formas de trabalho,
de acordo com cada experiência, que se ajustaram para a construção do
mosaico metodológico que viabilizou o meu trabalho.
Do suporte metodológico criado, o segundo elemento a ser destacado,
responsável pela densidade das ações investigativas é o forte afeto que me liga à
escola pesquisada. Foi preciso investir no mapeamento dos circuitos que, nem
sempre evidentes, me ligavam ao que desejei estudar. Foi preciso captar o que a
81
sensibilidade e a percepção emaranhadas com a reflexão crítica, por sua vez
atravessada por uma rede de propostas teóricas, me ofereciam. Foi preciso
trabalhar com a escassez de certezas em prol do gozo da intuição, do jogo da
sedução, na brincadeira de busca de qualquer indício de afeto e de desejo.
Sendo impossível reconhecer e mostrar a maior parte dos fios que constituem
nossas relações com o mundo, trabalhei com o que pude, as linhas mínimas
que erraticamente desenhavam a escola que eu pesquisava e na qual vivia,
que a cada dia, mais flagrantemente, se tornava a escola que eu imaginava.
O terceiro elemento, deste mosaico, lastro importante que me trazia à tona nos
meus muitos mergulhos na incerteza, foi a crença no aproveitamento possível
dos resultados da minha pesquisa na melhoria, mesmo que mínima e indireta,
do universo investigado. A minha história pessoal, ou seja, a rede de encontros
que me fez pesquisador, é a mesma que me fez professor e que me faz
acreditar na possibilidade de muitos resultados produtivos da educação pública
formal. E, sobretudo, na participação direta da escola pública nos processos
emancipatórios dos seus protagonistas.
Quero crer que o investimento na elucidação das relações entre o pesquisador e o
campo pesquisado tem sentido – valor metodológico – na medida em que a
compreensão das ligações entre o que sou e o que procuro foi o que, de fato, me
norteou diante das muitas alternativas de abordagem a que poderia recorrer.
Compreender as relações entre pesquisador e pesquisa não é uma tarefa que se
possa concluir. Entretanto, a mínima compreensão alcançada a esse respeito
auxilia na necessária relativização das conseqüências e sentidos de muitas das
imagens captadas no cotidiano da pesquisa. Empenhei-me em entender o jogo de
relações que me levou a atribuir maior relevo à determinada imagem e descartar
82
outras. Quase sempre o resultado dessas buscas serviu para que eu repensasse
minhas crenças e meus procedimentos, embora revelassem também filetes de
sentido que, quase imperceptíveis, eram decisivos na direção do meu olhar.
O quarto elemento que aponto como princípio norteador dos caminhos
investigativos que percorri, tão importante para o mosaico metodológico quanto
os demais citados, é o sentimento de que pesquisar o dia-a-dia das escolas
requer investir no diálogo mais aberto possível com seus protagonistas e com
suas imagens, como caminho seguro de apreensão das conexões entre estes
e os agenciamentos que os elaboram. Como orienta Oliveira (Op.cit :72),
... para aprendermos e apreendermos a multiplicidade de elementos
constitutivos das realidades que fazem parte de nossos campos de
pesquisa, é preciso que a eles cheguemos de modo aberto e, tanto quanto
possível, despidos de preconceitos.
Nesse caminho, tentei sintonizar as imagens da escola com os múltiplos contextos
que as produziam, investigando-as na orbitação dos acontecimentos diários.
Tratavam-se de ocorrências ordinárias que não se isolam entre os muros físicos
ou simbólicos da escola e para melhor apreendê-las foi necessário romper com as
imagens inevitavelmente construídas a respeito desse ou daquele aspecto da
escola. Pois, muitas vezes, me surpreendi formulando imagens que pré definiam o
que eu ainda não havia investigado com a devida atenção.
Abrir-me à ampliação da leitura dos muitos gestos autoritários freqüentemente
presentes no ambiente escolar é um exemplo adequado de reforço dessa
argumentação. Contudo, buscar entender os agenciamentos que urdem a
violência do autoritarismo não significa, necessariamente, aceitá-lo como algo
imutável, pois o aprofundamento da interrogação de procedimentos
sedimentados, como a violência, a disciplina, a hierarquiazação, etc., serve de
83
base para novas formas de intervenção e transformação do que pode e deve ser
modificado, um dos sentidos que tem a pesquisa do cotidiano.
Reforço que o trabalho em prol da ampliação do diálogo com o que encontrava e
convivia significou a desconstrução de muitas imagens que, por uma razão ou por
outra, havia criado como representação de muitos aspectos da escola. Portanto, o
redimensionamento das distâncias entre eu-pesquisador e os espaços
investigados seria o quinto elemento da pavimentação da minha trajetória, que
poderia chamar de metodologia aplicada.
A permanente atenção em evitar a cristalização dos sentidos atribuídos aos
fenômenos observados e evitar a generalização do que é singular representou a
articulação entre todos os elementos que nortearam a minha experiência em
suas práticas, em minhas táticas.
Interrompo a descrição dos elementos centrais da minha invenção metodológica
ressaltando que a preocupação que estes representaram não me permitiu o
refúgio confortável na ilusão de que aquilo que observo não me concerniria de
forma inexoravelmente direta. Assim, a proposta de invenção metodológica,
aqui narrada, foi norteada pelo pensamento de que para a pesquisa do cotidiano,
o que interessa, e tem relevo, é sempre tratado por meio de miniconceitos, tão
efêmeros quanto os objetos analisados. Conforme Maffesoli (idem, 2005:104),
sem dizer o que deve ser, esses miniconceitos, se dariam apenas para
epifanizar o que é. Pois, a forma com a qual se quer evidenciar a realidade sob a
perspectiva da sociologia da vida cotidiana, seria articular no e pelo
conhecimento tudo o que está próximo, inventar (no sentido de in-venire), pôr em
relevo o que parece fragmentado, situações minúsculas, banalidades que, por
sedimentação, configuram o que há de essencial na existência.
84
As imagens da invenção cotidiana da escola
A escola produzida pela imaginação fabuladora
Modo ou faculdade de criar ficções ou superstições...
...ficções mais ou menos consoladoras,
procura defender a vida contra o poder desagregador da inteligência.
Abbagnano
9
« La fabulation n’est pas un mythe impersonnel, mais n’est pas non plus
une fiction personnelle : c’est une parole en acte, un acte de parole par
lequel le personnage ne cesse de franchir la frontière qui séparerait son
affaire privée de la politique, et produit lui-même des énoncés
collectifs »
(L’image-temps, Ed. de Minuit)
10
.
9
Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000 (pág. 424)
10
G. Deleuze, L'image-temps, Minuit, 1985, p 196.
« A fabulação não é um mito impessoal nem uma ficção pessoal: é uma palavra em ato, um
ato da palavra pelo qual o personagem não cessa de romper a fronteira que separa o que lhe é
particular da política, e produz enunciados coletivos » (Livre tradução)
85
Direção e docentes fabulosos
O registro das imagens produzidas pelo imaginário fabulador, um dos que
produzem a imagética cotidiana da escola, representa uma delicada tarefa,
pois acaba por ser, a um só tempo, captação e criação do que é captado. As
imagens são, então, destacadas com o cuidado de não serem aprisionadas em
etiquetas definitivas e definidoras de um sentido único, mas, sim com a
intenção de evidenciar sua polissemia. Para tanto, é necessário reconhecer,
também, a participação da criação de sentidos que se dá sobre o que é
observado pelo sujeito que observa. A pesquisa no/do cotidiano (Alves, 2001:
15 e 16) a despeito de qualquer enganosa facilidade, exige ações
investigativas próprias, formas de caminhar em sintonia com a complexidade
do universo abordado, o que não significa, de forma alguma, a dispensa da
86
dedicação rigorosa às tarefas da pesquisa como, aliás, é necessário a qualquer
empreitada científica que logre o sucesso. Assim, a busca das imagens como
atuação investigativa do cotidiano se dá na tensão entre a existência - do
pesquisador também personagem do espaço pesquisado - imersa no cotidiano
e a sua observação atenta e metódica, sempre em confronto com as marcas
das práticas de pesquisa tradicionais da modernidade que exigem um
afastamento estratégico do pesquisador em relação ao que pesquisa. Amplia
essa tensão o fato dessas imagens deslizarem meio às outras, pois, como já
afirmei, o cotidiano pesquisado se configura no permanente fluxo das muitas
imagens que resultam das forças, sempre em ação, do imaginário escolar, aqui
representado por meio das cinco categorias do imaginário (evocação,
reprodução, irrealização, criação e fabulação), as quais utilizo para formular
mais um possível entendimento dos muitos elementos que produzem e
configuram o cotidiano escolar.
Retomando o conceito de fabulação como o ato da imaginação coletiva que cria
mitos, ou seja, formas de explicar as origens dos fenômenos por meio das quais
os coletivos justificam suas origens e as origens das coisas que permeiam suas
vidas, a fabulação, nesse sentido, justificaria e explicaria o presente e seus
desdobramentos. Seria, também, um regime de verdades que diagrama os
lugares próprios (Certeau,1994:100) por meio dos quais se organiza a escola -
real e imaginária – e, sob outro aspecto, o resultado das potencialidades
fabuladoras de seus sujeitos, ao mesmo tempo, habitantes, protagonistas,
antagonistas e autores.
Castoriadis a respeito da instituição e do simbólico, escreve:
Encontramos primeiro o simbólico, é claro, na linguagem. Mas o
encontramos igualmente, num outro grau e de uma outra maneira, nas
87
instituições. As instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só
podem existir no simbólico, são impossíveis fora de um simbólico em
segundo grau e constituem cada qual sua rede simbólica (1982:142).
Tomamos a escola como uma máquina de acontecimentos formuladores de
imagens, por meio das quais são manifestadas as redes simbólicas que a
instituem. As diferentes composições formadas por sua profusão imagética,
entre outras, permite saber uma escola fabulada, resultado de conformações da
rede simbólica que a faz existir e que é fruto da imaginação de seus atores.
Atores e autores que, entre outras escolas imaginárias em que vivem, também
encenam a escola como fabulação.
Discutir a força representada pelo termo fabulação impõe localizar, na medida
do possível, de onde emana o que consideramos como tal. No caso específico
de uma determinada instituição educacional, demanda o esforço de
esquadrinhar alguns momentos ou espaços de sua complexa tessitura. Tal
como fazemos quando admiramos e buscamos entender as formas espraiadas
em um imenso tapete. Formas cujos desenhos nos levam a percorrer as suas
muitas áreas cromáticas, os intrincados caminhos de seus fios e as imagens
que formam. Imagens que ora se espelham e se complementam, ora nos
surpreendem com inesperados contrastes e a cada olhar nos desafiam com
novas possibilidades formais. No caso desta pesquisa, formam um tapete sem
fim que se tece e retece indefinidamente no desdobramento do dia-a-dia.
As imagens que apresentam a escola fabulada são as que exibem uma
instituição que se pretende acima de qualquer suspeição e que tem seus
personagens imobilizados nas definições de atribuições permanentes. Como,
por exemplo, é o estabelecimento rigoroso de quem ensina e de quem aprende,
ou ao menos, dos que devem aprender. A única margem de dúvida ou
88
mobilidade, nessa composição reduzida a apenas dois lugares é destinada aos
segundos personagens, alunos e alunas, visto que na escola fabulosa, aos
primeiros personagens, os professores e as professoras, cabe sempre ensinar,
pois sua função, ou a imagem que lhes é fabulada, não permite nenhuma outra
alternativa. Quanto aos estudantes, há sempre duas possibilidades: aprender ou
não aprender, triunfar na peleja da aprendizagem ou fracassar. Como na maioria
das fábulas, uns personagens cumprem os papéis de sucesso enquanto a outros
resta o fracasso, numa lógica em que a ocorrência de um acontecimento depende
do acontecimento de seu oposto. Uma imagem que, tendo rebatido seu verso e seu
anverso, constrói a sua própria imagem.
A concretude das verdades que oficializam a escola, que, de uma forma ou de
outra, faz parte fundamental dos mecanismos que a mantêm existindo, remete
ao fabuloso. Pois a imagem da escola, enquanto instituição comprometida com
determinada produção engendradora de determinadas conseqüências, no
contraste com os acontecimentos que atualizam a vida de todos como as
agruras de uma sociedade cada vez mais complexa e assimétrica desprovida
das imagens do imaginário fabulador, correria o risco de sucumbir ao
esmaecimento.
Apesar dos contrastes com muitos aspectos da contemporaneidade, a
instituição escolar atravessa os tempos guardando, ainda que combalida, sua
integridade, sobretudo enquanto produto emblemático do imaginário social. O
elemento fabuloso preserva-lhe a enganosa nitidez via a atualização de suas
narrativas cujas origens, sob observação superficial, parecem se perder em
um passado imemorial, como se a escola existisse simplesmente e qualquer
questionamento em relação aos sentidos de sua existência fosse
89
interrompido pela inexistência de palavras que o formulassem e também pela
gravidade da heresia que representa esse tipo de questionamento.
Corroborando com os valores circulantes que instituem a inquestionável
importância da escola, encontramos em seus ambientes fragmentos cotidianos
que explicitam sua inquestionável existência. Grande parte dessas pequenas
ocorrências resulta da performance dos atores da instituição, via de regra, em
manifestação de poderes só compreensíveis no domínio da fabulação.
Entendida, a fabulação, também como a imaginação dos poderes desfrutados e
exercidos e da instituição dos lugares dos quais emanam.
Entre os muitos fragmentos captados nas situações oferecidas pelo cotidiano
registrei a seguinte cena: certa vez a diretora ao passar diante de alguns jovens
que conversavam sentados na escada de acesso ao prédio principal do colégio,
pergunta-lhes, em tom de admoestação: Vocês estão fazendo o que aqui? A
escola serve para que? Para ficar de papo fiado, atrapalhando os outros? Um
aluno, com certo temor e alguma ousadia, responde: - Para estudar. Ao que
Isabel
11
, a diretora, imediatamente replica: - Vocês estão aqui é para aprender!
E aprender, inclusive, onde vocês devem ficar! Esse tipo de entrevero, que
ocorre inúmeras vezes ao longo do dia-a-dia da escola e a despeito de sua
aparente banalidade, reflete a potência das verdades, nem sempre coincidentes,
engendradoras da escola. Uma das várias escolas que coabitam o mesmo
espaço e são criadas ao mesmo tempo.
A escola (fabulada) existe para ensinar. Sentença mágica que, na perspectiva
desse trabalho, representa um dos enunciados que materializam a imagem
fabulosa da escola. Imagem que não encerra todos os sentidos da instituição
11
Todos os nomes utilizados nesta tese são fictícios.
90
nem esgota todas as suas narrativas imagéticas, da mesma forma que as
imagens que esse enunciado produz não expõem um único sentido para a
aventada fabulação. Ocorrências como esse breve diálogo entre a diretora e os
alunos serviriam, sob certo deslocamento, também para ilustrar discussões
sobre o poder, a disciplina e muitas outras questões importantes que, muito
mais do que emergirem do cotidiano, o constituem. Entretanto, uma das
intenções da captação dessas banalidades diárias é ressaltar a complexidade
que indiciam, evitando a simplificação do que, na pesquisa do cotidiano, não é
absolutamente simplificável.
A força da imagem fabulosa não impede a profusão de outras imagens nem
impede a coexistência delas nessa multiplicidade imagética que dá corpo ao
caleidoscópio que projeta a escola. Pois cada fragmento imagético que o
compõe é articulado por incontáveis outros fragmentos resultantes das
diferentes elaborações da escola. Esse caleidoscópio apresenta um
estilhaçamento paradoxal, que compõe mais que fragmenta, e, assim, conduz à
compreensão da escola em seu cotidiano sob a perspectiva da complexidade.
Portanto, a imagem fabulada da escola não é aventada no sentido de diminuir a
intensidade de outras interpretações ou leituras de seu cotidiano, mas, valendo-
se destas, evidencia a necessária consideração de sua complexidade como
caminho produtivo de abordagem.
Voltando às imagens do cotidiano, apresento mais uma imagem da face
fabulosa da escola.
No início do ano letivo de 2004 todos os professores da escola, a partir de agora
denominada Colégio C.E.M.S., foram convocados pela direção para uma
reunião. O lugar desse reencontro foi o amplo refeitório, cujas mesas foram
91
dispostas em forma de “U” para que todos pudessem, de seus lugares, ver e
ouvir o que a diretora e sua adjunta tinham a nos dizer. As mesas estavam
enfeitadas sugerindo a festividade e o acolhimento daquele reencontro. A
diretora, logo no início de sua fala, manifestou sua preocupação e contrariedade
com o movimento reivindicatório deflagrado pelo sindicato dos professores que,
segundo ela, oportunisticamente, tomava o reinício do ano letivo. Em agudo
contraste com o ambiente festivo que organizara, iniciou sua fala em irado tom
ameaçador “... aquele professor que falasse mal da governadora, de sua amiga
(sic), desceria a ladeira!”. O colégio C.E.M.S. situa-se na subida de um morro,
daí a expressão muito empregada por Isabel de “descer a ladeira”. A violência
de suas palavras, bem como o silêncio aparentemente passivo dos professores
92
Essas ligações não significam a continuidade predominante dos sentidos
revelados na primeira imagem observada, pois os fios que a determinam
mudam de sentido na medida em que invadem o espaço suporte de outras,
revelando, assim, outras faces da mesma escola.
A imagem do encontro aqui narrado se desdobra em fortes evidências do
imaginário fabulador. Isabel emociona-se, ajusta a configuração de sua fala,
como se se apercebesse da violência de suas próprias palavras
12
e fala de si
como uma heroína, a quem seria permitido ameaçar os professores e
professoras, poder ser, com certa freqüência, violenta com os estudantes e
estar, por sua posição heróica, naturalmente abonada de qualquer atitude
ríspida com os demais trabalhadores da escola. Só um limite seria imposto a
essa personagem, apenas uma interdição fabulosa, ou seja, questionar a justiça
e a honestidade do governo com as instituições que lhe cabe dirigir e prover. O
que significa não questionar a parcimônia do governo quando a este cabe
retribuir a lealdade de seus escudeiros.
Na escola fabulada, a idéia de política e da coisa pública torna-se um detalhe
irrelevante nas operações administrativas. Resultado da imaginação da
12
Facilita a compreensão desse evento ressaltar que Isabel, ainda que assumindo explicitamente
sua relação de fidelidade político-partidária com o governo, é guiada, como qualquer professor em
seu dia-a-dia na escola, tão somente, pela profunda intimidade e conhecimento do universo
escolar nas suas decisões frente à administração do colégio E.C.M.S, tarefa titânica, mas
cumprida com excelência, na medida em que os recursos são mínimos e os problemas
compatíveis com um colégio que, em seus três turnos abrigava um total de 90 turmas.
93
diretora, este espaço oficialmente público acaba por ser reduzido a um campo
de ação subserviente aos supostos aliados políticos, por mais assimétrica que
se mostrasse o que Isabel chamava de aliança.
Meio às afirmações de sua intimidade fraternal com “políticos poderosos e
influentes” Isabel contou, naquela reunião, episódios da sua vida, nos quais
enfrentou batalhas terríveis, sempre na militância profissional da educação.
Acontecimentos de um passado distante cuja localização não era necessária,
tendo em vista a formulação heróica de seu discurso, sem dúvida, uma flagrante
manifestação do poder da fábula. Frases emblemáticas se encadeavam
evocando os muitos anos de magistério e a conseqüente intimidade com suas
práticas e, acima de tudo, atestavam seu profundo conhecimento do que é e do
que deve ser a escola pública. Argumentos que serviam, principalmente, para
afastar qualquer dúvida sobre a produção, validade ou outra conseqüência
positiva do trabalho executado ao longo de sua carreira. Afinal tratava-se do
passado mítico de um personagem fabuloso, consolidado na matéria imutável
da narrativa da fábula.
Frente à teatralidade de Isabel não houve reação explicitada, até porque não se
tratava de um diálogo, mas de uma encenação evocadora da fábula, necessária
à manutenção das relações oficiais dos docentes da escola. Naturalmente, a
performance de Isabel não refletia a única forma de orquestrar a atuação dos
professores e professoras, mas era o que lhe permitia sua rede pessoal de
sentidos sobre a escola da qual era autora e personagem. Diante dessa
fulguração da escola fabulada, os professores e as professoras se mantiveram
em inquietante silêncio como se naquele momento não passassem de um
público solene assistindo a uma cena dramática. O comportamento dessa súbita
94
platéia mostra a potencialidade das práticas cotidianas que, via de regra,
impõem a ação tática como superação do insuportável e que, em suas
inesperadas performances, invadem a cena dominante e a ocupam com
produtos de outros imaginários. Imaginários que, na permanente variação de
intensidade e de eloqüência, vão compondo a complexidade do cotidiano.
Isabel não estava só em cena, se fazia acompanhar por Adelaide, a adjunta,
cuja função, naquele e em outros momentos, era dar a fala à protagonista, uma
espécie de Oenone, a ama de Fedra
13
. Uma coadjuvante que não media
esforços para cumprir o seu papel. Adelaide, o oposto complementar de Isabel,
era calma e pouco enérgica, sua atuação no colégio C.E.M.S. quase se reduzia
às tentativas de legitimar sua função oficial que era a de coordenadora
pedagógica. Sua responsabilidade, como sempre repetia, era com os processos
de ensino e aprendizagem e não com as questões administrativas que, de fato,
cabiam exclusivamente à diretora.
Como seu cargo era de diretora adjunta, Adelaide parecia acreditar que
complementava a atuação de Isabel, a quem buscava demonstrar incondicional
lealdade. Durante sua breve estada no colégio tentou implantar uma série de
procedimentos pedagógicos, mas nenhuma de suas iniciativas logrou êxito. Por
diversas razões, Adelaide não teve reconhecido pelo corpo docente nenhum
poder ou legitimidade. Flagrantemente vacilante em suas iniciativas, logo
passou a ser considerada confusa e inoportuna, na medida em que seu
trabalho, ou o que acreditava sê-lo, pretendia intervir diretamente nas rotinas
docentes. Seus interesses centravam-se na produção dos estudantes, o que a
levava a exigir dos professores e professoras esforços acima do que, em suas
13
Racine, Fhèdre. Paris: librairie Hachette, 1968.
95
táticas diárias, estes consideravam necessário dedicar ao trabalho. Não
dispondo do poder nem das armas discursivas de Isabel, Adelaide logo
sucumbiu ao processo de irrealização de seu personagem.
Os agenciamentos que sustentavam a personagem da diretora eram lastreados
por uma transparente permissividade com as atuações docentes. Ocultos do
palco, cuja centralidade pertencia à Isabel, havia espaços já negociados, de tal
maneira que os professores e professoras, cumprindo sua parte do acordo,
aceitavam suas marcações cênicas de aparente sujeição aos desmandos da
direção. Essa imagem me pareceu evidenciar a troca do silenciamento pelo
papel fixo de personagens que, na particularidade de suas atuações nas salas
de aula, podiam agir com paradoxal autonomia.
A continuação da reunião mostra como a complexa imagética escolar, na qual
tem peso determinante a produção do imaginário fabulador, oferece faces de
notável potencialidade simbólica na aparente repetição cotidiana. Isabel, sempre
emocionada com suas próprias palavras, dirigindo-se ao seu público e
subordinados
14
, informa que hoje é uma pessoa espiritualizada pois encontrara
Jesus, tornando-se evangélica como sua governadora e amiga, mas, no
passado – mais uma vez um passado imaginado, fabuloso – ela dedicara-se,
como se dedica Adelaide, à magia. Isabel confessou a todos que, em um
passado nebuloso, praticara magia negra (sic.)! Adelaide constrangida e
encurralada diante da revelação de Isabel a seu respeito, observa que “... a
magia da Isabel era negra, mas a minha é branca...” e tentando equilibrar-
se entre a manutenção de sua imagem, já arranhada e o apoio incondicional
14
Observo que nesse caso não há diferença entre as duas condições, já que o poder
oficialmente outorgado compreende o direito ao monólogo que facilmente descamba para a
verborréia teatral.
96
à sua “chefe” argumenta em tom dramaticamente patético: “ é por isso que a
gente se dá bem!”
A platéia permanece muda, transmutada em coro trágico, fora de função,
enquanto as protagonistas da cena, respaldadas apenas pela imaginária
potência de seus personagens, declamam textos de suas próprias autorias,
não raro, em forte dissonância com a fabulação da escola que ensina o que é
certo ensinar. Um certo que sobrevoa os truísmos que também sedimentam o
cotidiano.
De acordo com certa idealização fabulosa, seria a escola conduzida por um
rigoroso sistema ético que neutralizaria intervenções que ameaçassem seus
objetivos científicos, morais, laicos, etc. A despeito do conflito entre as duas
versões de fabulação, a que descreve o ideal escolar que circula na sociedade e
a fabulação que se produz cotidianamente na escola em conformidade com as
redes de subjetividades dos sujeitos que a operam na concretude de sua
existência, as personagens centrais dessa tragédia se auto-significam guardiãs
dos verdadeiros sentidos da instituição e não identificam, aparentemente em
momento algum, qualquer dissonância entre seus papéis como professoras e
dirigentes de uma escola pública e suas performances personalíssimas no
cumprimento dos seus compromissos profissionais. Muito ao contrário, acreditam
que até quando lançam mão da exposição de suas vidas pessoais como argumentos
a favor desse ou daquele objetivo estão cumprindo, rigorosamente, seus papéis na
educação. Afinal, o sentido dos personagens fabulosos é dar consistência e
coerência à fábula à qual pertencem. Da mesma forma como os professores, os
diretores e os estudantes produzem, cotidianamente, a imaginária escola real. Assim,
97
a manutenção da fábula faz valer as mais contraditórias ações, pois as mais
tacanhas atitudes são ofuscadas pela amplitude do acontecimento da escola.
A fabulação, como ação de produção de significações para o presente -
alicerçadas no passado – permeia, todo o tempo, as muitas ações que formulam
a escola, desempenhando sentido nevrálgico em suas redes, sendo o sentido
maior de sua investigação a elucidação do que provoca, e como o faz, na vida
dos alunos e alunas, reconhecendo-os como alvo do teatro da educação
pública. O C.E.M.S., a despeito do universo de singularidades que o constitui,
representa uma fonte de informações sobre a rede pública de educação da qual
faz parte. Em outras palavras, muito pode oferecer à reflexão sobre os sentidos
da educação pública na atualidade. E assim ajudar a compreender como a ação
livre e arbitrária da imaginação fabuladora de seus dirigentes, amparada pela
fabulação de um estado democraticamente gerido, produz realidades da
escola e, no que a escola pode alcançar, interfere e conduz a vida dos
estudantes. Personagens que, autores de seus textos, dirigem suas
atuações e elaboram seus cenários no mesmo lugar onde outras fabulações
cintilam e fulguram. Imagens da evocação, da irrealização, da reprodução e
da criação da escola cotidiana
98
Alunos e alunas fabulosos
A potência das produções imaginárias sulca marcas no universo escolar.
Marcas que desenham as intrincadas imagens que atravessam a materialidade
dos espaços físicos, a intangível matéria dos espaços praticados (Certeau,
1994:122) e os corpos de seus praticantes. Na escola fabulada os jovens
representam a maioria numérica e encarnam, de uma forma ou de outra, a
minoria atingida pelas emanações de tudo que é produzido nos lugares próprios
onde se diagrama a escola, a escola fabulosa. Muito embora não se reduzam às
conseqüências desses contatos, ou seja, dos resultados do que é projetado sobre
eles, e para eles, os jovens estudantes do C.E.M.S., em suas ações e situações
nas territorialidades escolares, expõem, aqui e ali, o enredamento cotidiano com o
universo escolar fabuloso.
As imagens que denotam a harmonia entre os jovens e a escola constituída
pelas tessituras da fábula têm duas marcas predominantes. A primeira é a
aparentemente mansa aceitação da sua localização na hierarquia escolar.
Como enunciam frases do tipo: “estamos aqui para aprender”, “para ser alguém
99
na vida”, e outras representações da mesma ordem. Mesmo quando uma profusão
de outras imagens que lhes afetam evidenciam o contrário. A precariedade das
condições do ensino público a superficialidade dos estudos justificada pela “falta de
base” do ensino fundamental; a indisfarçável diferença entre as muitas escolas e
suas produções de formação diretamente associadas às condições sócio-
econômicas dos estudantes; enfim, a inevitável conivência com uma lei tácita, mas
aparentemente eficaz, que dita uma escolarização de baixa categoria para sujeitos
de quase nenhuma importância. É como se os estudantes do C.E.M.S. aceitassem
passivamente a encenação de uma escolarização universal que lhes coubesse
percorrer, como se a sua escola fosse igual - e na perspectiva da fábula o é - a
qualquer outra escola que, na sua fabulação maior, conduz aqueles que se
fazem merecedores, ao sucesso de ser alguém na vida graças a tudo que a
instituição ensina.
A segunda marca indicia a fertilidade incontrolável da fabulação desses
personagens, a um só tempo figurantes e protagonistas do mesmo teatro. Como
nos ensina Certeau, o domínio sob o qual estão aprisionados, não significa
imobilidade. A simples obediência implica em ações. Cada praticante do
cotidiano precisa movimentar-se, mesmo que no cerceamento dos limites que a
estratégia dominante lhe impõe. E essa movimentação acaba por ser resultado
das singulares maneiras de agir de cada um. Portanto, no limite da clausura de
uma organização escolar imaginariamente produzida, há condições de se
fabular a própria coexistência com os limites contextuais. Mesmo quando o
espaço de ação se reduz ao próprio corpo e aos seus fugazes encontros com
outros corpos, sejam estes individuais ou coletivos.
100
As formas como os estudantes lidam com a imagem da escola conseqüente, ou
seja, a escola que produz, ao menos no campo do conhecimento, as condições
que levam a uma idealizada ou fabulada realização de seu projeto, que é
também, precipuamente, a formação para a emancipação de seus alunos,
guardam um emaranhamento de assimilações muitas vezes divergentes.
Reconhecer que o universo dos estudantes é, sob poucos aspectos, redutível a
características gerais sublinha a delicadeza do terreno investigado. No universo
específico do C.E.M.S., a idéia de cada sujeito trazer suas redes subjetivas em
conformações singulares é um possível norte para a captação da potencialidade
das operações coletivas. Potencialidade evidenciada em imagens nas quais
reverberam as redes pessoais como capilaridades orgânicas dos coletivos.
Pude perceber em diversas situações como os estudantes vivem ativamente a
imaginação fabuladora na mesma sintonia na qual o mundo adulto
freqüentemente transita. As falas e os comportamentos dos estudantes
também narram uma escola mítica, uma instituição convencional que, sob esse
aspecto, não lhes parece favorecer, mas por eles é defendida.
Um exemplo do encontro de visões semelhantes entre os jovens e os outros
autores da escola fabulada é a reação dos primeiros diante da hipótese de
abolição de sua escola. Tal idéia lhes soa quase como uma blasfêmia,
mesmo quando são ressaltados seus flagrantes e crescentes problemas,
responsáveis pelo abismo que os separa de qualquer possibilidade de ganhos
reais no campo da formação.
Reagem como se estivessem convencidos de que muitos dos problemas que
cercam a escola não tivessem relação com a missão que lhe é atribuída. De
alguma forma, manifestam certa fé ao demonstrarem pensar a instituição
101
escolar dissociada das ações dos que a dirigem e a fazem funcionar. Sabem
da potencialidade da educação, não sob a perspectiva teórica, mas sob a
perspectiva de seu acontecimento pragmático, materializado nos espaços de
encontros e inseparável da produção de conhecimento. No embalo da
imaginação de uma escola que lhes possibilitará a realização da apontada
fábula de uma formação segura não aventam uma escola sem professores e
diretores e, na defesa de um projeto paradoxal, é como se tivessem como certa
a possibilidade da reinvenção da escola, mesmo que travestida em fábula, a
escola que, de fato, desejam e à qual têm direito.
Sendo também a fabulação uma narrativa de um acontecimento notavelmente
positivo no embate entre as muitas pequenas ações que erigem a vida, seria,
portanto, algo que se mostrasse, a princípio um indício de um possível
acontecimento que socorra, a qualquer tempo, ou seja, um sonho/bálsamo de
que se possa lançar mão para cauterizar qualquer esperança ferida. A
fabulação socorre como uma máquina de símbolos que desmonta a ameaça da
inexpugnabilidade do real.
Certa ocasião, em aula, conversava com meus alunos sobre a escola, como
fazemos com freqüência
15
, e alguns alunos e alunas, o que também
acontece com freqüência, não estavam dispostos a participar dos trabalhos
propostos. Registrei a seguinte conversa entre Bruno e Karen. Bruno tentava
convencer Karen a participar do trabalho: “Tu vem para cá pra quê?
Questiona Bruno, com certa jocosa ironia, característica bastante presente
nas conversas entre os jovens.
15
Penso ser necessário registrar que minhas turmas foram informadas da minha atuação como
pesquisador e que nos nossos encontros discutem e narram vários assuntos, especialmente ao
fim das atividades práticas quando conversamos sobre o que foi produzido.
102
Pra estudar, ué!” Responde Karen, ao que rebate Bruno: “mas, tu não quer
fazer nada! Por que não ficou em casa?” ,“... a gente vem pra cá com sono,
não posso faltar, né?” replica Karen. Nesse momento intervenho questionando
as razões que a impediriam de faltar. Karen começa sua resposta evocando
verdades canônicas: “sem estudo fica difícil... a gente não chega a lugar
nenhum”, e saindo da esfera mítica, pondera: “... mas não precisava ser como
é... com essa obrigação toda”. Tiago provoca: “Não tinha era que existir a
escola!” Intensifico, então, a provocação: “E se a escola não existisse?” Karen
é peremptória: “Se não existisse escola? doido?”. A simples hipótese da
anulação da instituição remete à insanidade, mesmo para o epidérmico
senso comum, sem demoradas reflexões, de uma jovem estudante. A
aparente superficialidade do enunciado de Karen tem raízes profundas. Sua
certeza está ligada à subterraneidade dos sentidos que estruturam a
invenção das instituições, que por sua vez, dão corpo à própria sociedade.
Curiosamente, as idéias da permanência e perenidade da escola
acontecem sem nenhum confronto com as inúmeras situações que revelam
seu presente em grande desacordo com os ideais que a fabulam. Em
muitas outras conversas, os estudantes demonstram consciência dos
problemas que assolam a escola à qual pertencem, problemas estes que
impedem uma formação compatível com as exigências do “mundo lá de
fora”, como o vestibular, o acesso ao mundo do trabalho e até mesmo a
“aquisição de cultura”.
Aqui a gente não aprende direito, muitos professores não têm paciência pra
explicar, também quase ninguém quer nada...” (Karen). Esse tipo de
entendimento exposto por Karen é recorrente entre os estudantes e significa
103
uma forma de corroborar com certas ondas do imaginário que fabula a escola
em algo que existe acima e independentemente dos próprios alunos e alunas.
Como se a escola atravessasse o tempo imune aos acontecimentos gerados
em seu próprio interior; como se os desdobramentos da imagem totalitária da
direção, em consonância com a passividade dos professores, não tivessem
nenhuma relação com a produção e atuação dos estudantes.
As imagens captadas nos momentos em que os estudantes se mostram
conformados com essa forte realidade servem para iluminar a fábula de uma
escola que cumpre sua missão, missão esta que, em inúmeras ocasiões,
parece, simplesmente, perpetuar o absurdo de sua fabulação.
Contudo, percebo, sem dificuldade, que o cotidiano é enredado por imagens
aparentemente contraditórias, porquanto suas diferentes facetas se choquem
ao mesmo tempo em que se harmonizam. As imagens que aponto como
produto e máquina da fabulação, a despeito de suas concretudes, logicamente
não representam a totalidade da riqueza imagética do cotidiano pesquisado.
Portanto, nem estas nem outras serviriam como argumentação ou tradução de
uma verdade única sobre a escola. A escola e seus personagens, vislumbrados
nas tramas da fabulação, oferecem a chave de leitura para suas existências e,
a partir destas, para a o universo da educação, apenas quando são observados
em articulações com suas outras imagens: a escola concebida pelos
movimentos do imaginário reprodutor, do imaginário evocador e do imaginário
irrealizador. Mosaico que atualiza a escola como espaço de ação do imaginário
criador, que, no meu entendimento, produz as suas imagens mais promissoras.
Avançar na pesquisa do cotidiano via fragmentos imagéticos, como as falas
registradas anteriormente, requer certas cautelas e cuidados. Segundo Pais
104
(2003:141), um dos desafios mais entusiasmantes que se colocam à sociologia
qualitativa, que podemos aplicar também à pesquisa no/do cotidiano, consiste,
precisamente, em descobrir, no ato da fala, todo o afluxo de idéias, de
excitações, de associações, de metaforizações, de sonorizações que possam
indiciar as pulsões da linguagem nesse ato de fala. Não reduzimos a fala à
emissão da voz e às significações das palavras. Para melhor aproveitá-las e
fruí-las é preciso não afastar a voz do corpo que a emite, não separá-la da voz
inaudível dos movimentos corporais. As representações legíveis nas
movimentações dos corpos são inseparáveis das palavras pronunciadas, por
serem fundamentais à sua compreensão, ou seja, necesrias à receão do
que se quer captar em sua potencialidade. Os corpos relaxados equilibrados
sobre as cadeiras e carteiras escolares falam mais claramente do sono da
jovem aluna, assim como seu olhar meio cansado, meio entediado explicita
a vastidão dos argumentos a favor de uma outra organização e orientação
da escola “... mas não precisava ser como é... com essa obrigação toda”.
Os corpos dos jovens, enquanto elementos imagéticos, têm participação
importante na revelação da escola imaginada como fábula. As imagens
formadas pelos corpos estão em sintonia, nem sempre em direta linearidade,
com as falas que emitem.
As instituições escolares já foram apontadas, tal como os hospitais e
penitenciárias, e provavelmente outras instituições, como lugares de disciplina
dos corpos e das mentes. Contudo, observando as maneiras e modos como os
jovens estudantes narram suas relações com os lugares e espaços escolares,
entendendo lugares como a esfera dominante da oficialidade e os espaços
como resultado das práticas dentro dessas esferas, mas, gerados
105
singularmente pelos modos e maneiras de cada praticante (Certeau,1994) viver
cotidianamente, percebemos que a sujeição, também manifestada pelos corpos
juvenis, narra a dominação, a predominância da rede de poderes instituidores
do sistema oficial de ordenação escolar, nas minhas palavras, da escola
fabulada, mas também expõe a libertação quando observada na produção
desses espaços.
Observados nos lugares da oficialidade, os corpos são disciplinados em
função do que Najmanovich descreve como objetivo da educação na
modernidade, que:
... foi de disciplinar a subjetividade para que não “infecte” com suas
deformações a imagem canônica aceita no mundo. O espaço relacional
esteve embebido de espírito disciplinar... Finalmente os alunos foram
concebidos e tratados como indivíduos uniformes e não como sujeitos
encarnados diferentes, sensíveis e criativos
(2001:126).
Objetivo que subjaz na conflitada contemporaneidade na qual navega o
C.E.M.S..Permanece como que cristalizado em uma esfera sacra e imutável
que é assim, por ter suas origens perdidas, como são narrados certos mitos
fabulosos. O projeto de disciplinamento dos corpos, como nos mostram os
corpos que se movimentam pela escola driblando as imposições que lhes são
dirigidas, tem seu papel na composição da fábula escolar, sempre em sintonia
com as redes de agenciamentos políticos, sociais e culturais que a atravessam.
A escola precisa ser fabulada como forma de justificar sua permanência
diante de tantos outros fatores que ameaçam sua unidade e também como
forma de se proteger no confronto com a contradição de sua formulação que
vem se reduzindo ao mítico, na medida em que recorre a lógicas de outros
tempos para justificar a manutenção de suas práticas em face dos processos
106
que formulam a própria contemporaneidade. Processos os quais, de uma forma
ou de outra, denunciam, se não o anacronismo da fábula, mas seu
descompasso com as realidades que cercam, invadem e encharcam a escola.
Quando os jovens são observados sob a perspectiva das operações de
formulação dos espaços, das formas de agir dentro da esfera dominante, eles
revelam, através de seus corpos e maneiras de agir, como é inútil entender a
escola por meio apenas de sua imagem fabulada. Visto que os rapazes e as
moças, nas operações de superação das condições que lhes são adversas, se
valem da criação de outras fabulações, que mesmo em operações de caça
(Certeau), na fugacidade e na brevidade do tempo que sobrevive à irreverência
das linhas de fuga que inventam, vão sendo criadas as estruturas aéreas de
uma escola adequada às suas vidas.
Uma das estratégias disciplinares institucionais é o emprego do uniforme. A
fábula de uma escola que funciona da mesma forma para todos precisa apoiar-
se também na argumentação visual. É preciso que todos pareçam iguais. Os
argumentos para a defesa do uso do uniforme são os mais variados, mas,
entre tantos, o que interessa aqui ser ressaltado, em defesa da tese da escola
fabulosa, é a produção da fabulosa imagem da igualdade.
Na rede estadual de ensino o uso do uniforme é obrigatório nos turnos diurnos,
mas a Secretaria de Educação permite que cada escola defina o seu. Assim, a
direção do C.E.M.S.decidiu adotar um uniforme original, ou seja, um modelo
exclusivo, que, segundo Isabel,...desse um tchan... e, por meio de sua
singularidade, seu colégio se destacasse. Assim, tendo solicitado a um
estagiário da disciplina de Educação Artística alguns modelos de uniforme, os
submeteu à escolha dos estudantes por meio de votação. O modelo mais
107
votado foi instituído. Camisa caqui com o símbolo do colégio bordado no bolso
em diagramação semelhante a um ideograma, conforme observou um aluno
chinês
16
. A presença de imigrantes chineses na escola propicia interessantes
encontros e mostra como o cotidiano revela em seus detalhes situações
desprendidas da obviedade das rotinas. Oportunamente voltarei às situações
que envolvem os caras que vieram do outro lado do mundo
17
.
Complementando o uniforme, calças jeans e tênis com meias. Apesar do
modelo do uniforme ter sido submetido à escolha dos estudantes, a
obrigatoriedade de seu uso desagrada a quase todos. E, como qualquer
uniforme escolar, seu uso sofre resistência dos estudantes e sua conseqüente
adaptação pessoal. O uniforme tem importância crucial no jogo de manutenção
da unidade imagética da escola. O uniforme é signo que quer significar a
existência da instituição escolar que acolhe a juventude para oferecer-lhe a
esperada formação. Elemento aparentemente sem grande importância faz a
propaganda da atuação do estado e indicia outras atuações, fabuladas ou
não, do serviço público. Assim, pode-se afirmar que os alunos uniformizados
representam bem a escola fabulada pela oficialidade.
A direção controla, com rigor, o seu uso. Uma das formas mais eficazes desse
controle foi designar um funcionário para fiscalizar a entrada dos alunos e
verificar se o uniforme está sendo usado conforme as determinações
superiores. Não raro, a diretora adjunta se põe ao lado do inspetor na estreita
porta de acesso ao prédio principal da escola para auxiliar naquela operação
diária, o que revela a importância dessa imagem. O uso de bonés é proibido. O
uso desse acessório representa uma falta grave. Segundo a direção, a
16
A escola tem alguns alunos chineses recém imigrados.
17
Expressão utilizada por Tiago, aluno brasileiro a respeito de Sun, aluno chinês, que gostava
de estudar.
108
proibição do boné deve-se ao fato de que, os diferentes tipos e marcas do
boné, e sua forma de utilização, com a aba para trás, para o lado, etc.,
simbolizariam as diferentes facções criminosas que dominam os morros nos
quais moram a maioria dos estudantes. Impedidas as manifestações de
“pertencimento” a este ou aquele grupo rival, a escola neutralizaria possíveis
rixas, evitando, desse modo, ser alvo da violência que assedia a vida da
maioria de seus estudantes. Essa forma de ação ressalta mais uma imagem
fabulosa da escola. Como se a adesão a rivalidades delituosas fosse uma
questão de manifestação visual e sendo estas coibidas, a violência fosse
neutralizada. O que nos revela o cotidiano é que as marcas das diferenças
identitárias e dos pertencimentos aos diferentes coletivos que mosaicisam a
juventude, não são abolidos pelo pretenso controle das aparências. E a mais
surpreendente revelação cotidiana é que o desejo da escola em impedir
conflitos entre seus alunos não é frustrado, seja devido a essa ou aquela
proibição ou não.
O uso do boné, como de outros acessórios, tem peso nas composições
identitárias dos jovens, assim como a movimentação de seus corpos e suas
falas são veículos indicadores de pertencimento, contudo não são,
isoladamente, elementos que permitam reduções generalistas.
Devido à localização de suas moradias, o convívio desses estudantes
com as situações de ilegalidade e sua proximidade física com o ilícito e
as suas conseqüências violentas é indiscutível. Entretanto, o uso deste ou daquele
acessório surge como elemento integrante das ações de tessitura da vida atual,
algo muito caro e necessário a todos os jovens, cujos corpos são territórios dos
quais partem e para os quais retorna o ser e o estar no mundo.
109
Muitos limites devem ser considerados no entendimento da vida desses jovens,
entre estes, de acordo com os seus depoimentos, estão a falta de espaço
privado em suas residências, a interdição econômica aos muitos produtos de
consumo que o mercado tão bem seduz e faz desejar, e a ausência de
espaços sociais dedicados especialmente ao lazer e ao encontro. A partir
desse mapeamento podemos, com facilidade, entender a importância da
exploração do irredutível território corporal do jovem como espaço de livre
trânsito do acontecimento prazeroso de estar no mundo. Espaço singular que
também é a conexão dos muitos fios dos acontecimentos coletivos.
É importante sublinhar que nas imagens corpóreas, a separação entre o que é
pessoal e o que é coletivo demanda uma sutil atenção, pois a existência desses
jovens, que parece se desdobrar em um deserto de possibilidades alentadoras,
acontece permanentemente associada ao fluxo dos encontros entre uns e
outros, fluxo de uma torrente de encontros, identificações e de pertencimentos.
“... quando ando de skate ouço punkrock, quando estou com meus amigos de
casa (vizinhos) gosto de pagode...” (Gabriel).
A escola fabulada não pode ver o que o tempo transmuta. Sua permanência
necessita do congelamento de seus atores em localizações fixas, como se
houvesse um único modo de ser jovem, criança e aluno. Não pode perceber,
sob perspectiva diferente da de seus fundamentos, que a complexidade de
agenciamentos que desfocam as imagens defendidas pela modernidade, via de
regra anunciadas como resultados da passagem do tempo, ou do final dos
mesmos, amolecem também seus alicerces mitológicos. E assim, essa
instituição fabula crenças como a modulação de seus personagens, o professor
110
que ensina e o aluno que aprende e estertora na tentativa de manter o
ilusionismo produtor dessa realidade.
Sob os bonés proibidos, cabelos cortados rentes às nucas exibem desenhos
delicadamente inscritos à gilete. As cabeças se exibem como suportes móveis
de ideogramas sofisticadamente plásticos. Desenhos intrincados que às vezes
se estendem às sobrancelhas e trazem cores tão diversas quanto as diferentes
dosagens da água oxigenada acrescida a tinturas especiais permite. Desenhos
belos que podem significar, para os que dominam seus códigos, adesão a
Jesus, apoio a esta ou aquela facção, e, sobretudo, a adesão a uma vida
fabulosamente bonita. Visão deflagradora de conexões que, orientadas pela
estetização da existência, enredam coletivos de sujeitos fabulosos. A formulação
desse tipo de acontecimento estético se dá à contrapelo do universo das
imagens pessoais midiatizadas que circulam nas cidades. Não pelas mesmas
razões da estetização mercadológica, as produções visuais das cabeças dos
rapazes guardam certa volatilidade, visto que as imagens vão se
desmanchando com o crescimento do cabelo. A mudança dos desenhos sobre
as nucas revela, em última análise, a imagem do corpo como obra de arte,
corpos que ultrapassam os limites da concretude social e projetam-se na, não
menos concreta, esfera da criação da própria vida, nas possibilidades que
sulcam o cotidiano praticado.
Em um tempo em que todos parecem distanciados do que são e do que fazem,
o ato da utilização do corpo como suporte para a comunicação exige ser
seriamente pensado. O corpo suporte da imagem é imagem viva. Obra de arte
que desmancha qualquer fabulação que o venha interditar.
111
Voltando ao uniforme, percebi poucos atos explícitos de resistência ao seu uso.
Talvez, o que importa não seja eliminá-lo definitivamente; mas exercitar,
sempre, a possibilidade estética de sua variação.Conversando com uma turma
sobre a escolha do modelo adotado, questionei a obrigatoriedade e a função de
seu uso. A maioria dos seus estudantes declarou aceitá-lo e associou-o à
defesa da identidade oficial da escola, além de ressaltarem que é o uso do
uniforme que valida o passe gratuito do riocard nos transportes coletivos.
Na medida em que o uniforme é reconhecido como elemento constituidor da
identidade da escola, sejam quais forem os uniformes e as escolas, a
flagramos como instituição imaginária, como todas as instituições sociais
acabam por ser (Castoriadis, 1999). Ao menos a imagem fabulada da escola,
nessa visão, vem se sustentando mais nas fabulações que a desenham do que
na viabilização de uma agenda de futuro segura que traga resultados benéficos
para as vidas de seus alunos. Apontar a escola como instituição imaginária não é
atingi-la com a exposição de sua inconsistência, mas é apontar as possibilidades
de criação que a plasticidade do imaginário oferece aos praticantes, autores e
atores da cena escolar.
“... faz parte da escola, né? Tem que usar... mas a gente dá nosso estilo,
ninguém é igual mesmo...” (Patrícia).
Os corpos uniformizados multiformes são imagens resultantes do paroxismo da
fabulação escolar. Principalmente quando os vemos nas operações de
obediência à liturgia institucional, sob e entre a qual subjazem acontecimentos
de indiscutível concretude. Os corpos dos jovens são acontecimentos
fabulosamente notáveis enquanto territórios de possibilidades de existir para
além do que a oficialidade determina e induz.
112
A prisão vigiada, em que também se converte a escola, guarda ocorrências
cotidianas que prometem universos singulares para além da fabulação à
qual estão sujeitos. A imagem de duas ou mais meninas conversando
durante a aula pode representar a fratura das imposições de uma relação
esgotada e significar, assim, a urgência de criação de outras relações que
ainda permite o lugar da escola.
Cada imagem da oficialidade da escola, reduzida à encenação, escancara
sua produção fabulosa, principalmente quando avizinhada das imagens
fugazes das operações de escape perpetradas pelos praticantes de seu
cotidiano. Essas duas captações representam bem as faces interna e
externa do caleidoscópio metafórico que multiplica e reinventa as
incontáveis imagens da escola.
Entre os muitos encontros que a minha atuação como pesquisador, totalmente
misturada com a atuação de professor no/do cotidiano do C.E.M.S.dou especial
destaque às poesias de Digão, um aluno de 17 anos que compõe funks. Digão
é morador da comunidade do Borel e guarda muitas características comuns à
maioria dos seus colegas, mas, em sua singular rede de ações, traz a urdidura
da arte. Alguns outros jovens também produzem funks, entretanto, para mim,
Digão parece ter uma ligação mais forte com a poesia. Os outros alunos,
igualmente criativos diferem dele por elegerem como eixos condutores de suas
obras o humor e a brincadeira, o que não reduz o valor de seus trabalhos, mas,
marca uma certa transitoriedade em suas relações com a produção artística,
como se essa tivesse uma relação direta com o trânsito juvenil e não
remetesse a uma possível opção pela produção artística, ou seja, não
sugerisse uma provável continuidade. Compreendo, de qualquer forma, que,
113
sob essas avaliações subjaz a força da minha sensibilidade que conduz à
eleição da obra de Digão, entendendo que sua obra me olharia por que me
diria respeito
18
, provavelmente por que haveria no nosso encontro a força da
minha simpatia. Acrescento a esses fatores, a defesa de certa maturidade e
solidez em sua relação com a poesia funk, que sinto promissora. Ao fim de
uma aula na qual enfatizei a importância da criação estética como fonte de
informações sobre a vida de seu autor, Digão me procurou e me presenteou
com algumas de suas criações.
De uma das poesias de Digão retiro os seguintes trechos para utilizá-los
também como reações à produção do imaginário fabulador, produção de uma
escola que, muitas vezes, se firma com mais intensidade do que as imagens
das outras escolas imaginárias que constituem o C.E.M.S.. A intensidade da
fabulação leva a crer que as operações que produzem as suas sólidas imagens
acontecem sob o respaldo da certeza que seus produtos tenham exclusividade
na representação e apresentação da escola.
Segue a poesia de Digão, como a mais expressiva imagem da escola que tive
oportunidade de captar. Registro-a como exemplo do caleidoscópio ao qual me
referi anteriormente.
Dilema de um estudante
Você conhece um colégio, o MS
É!!! Também estudo lá
Que porra é essa meu irmão de botar grade na escola
Acham que eu sou ladrão, não, só vim pra assistir aula
Esse pessoal já não tem o que inventar
Se não quero entrar pra sala, e daí? sou eu que vou me ferrar
Russinho, esse você conhece, outro vacilão
18
Conforme Didi-Huberman, O que vemos só vale -só vive- em nossos olhos pelo que nos
olha. (1998:29)
114
Fala direito comigo e entra na disciplina
Eu estudo aqui e passo um sufoco
se correr o bicho pega, se ficar o bicho come
eu bato de frente, mostro que sou homem
se altero minha voz, quer me dar advertência
se falo palavrão, lá vem a suspensão
eu aposto com você, quer ver
quando acabar a música, vão querer até me bater
P.S. Silvio Gallo (2003:79) quando desloca algumas características da literatura
menor para a Educação menor - em contraste com o que denomina Educação
maior – escreve:
A primeira característica é a da desterritorialização; se a literatura é a
língua que se desterritorializa, na educação a desterritorialização é dos
processos educativos. As políticas, os parâmetros, as diretrizes estão
sempre nos dizendo o que ensinar, como ensinar, para quem ensinar, por
que ensinar. A educação maior procura constituir-se como uma imensa
máquina de controle, uma máquina de subjetivação, de produção de
indivíduos em série.
Seria essa máquina uma exemplar imagem da escola fabulada.
115
A escola produzida pela imaginação irrealizadora
A posse do real é uma verdadeira impossibilidade e
a consciência epistemológica desta impossibilidade é uma condição
necessária para entendermos alguma coisa do que se passa no cotidiano.
(Pais, 2003:28).
Na ausência da fantasia nada pode ser pensado
(Castoriadis, 1987:360).
116
Conforme a apropriação assumida nesta pesquisa, o imaginário irrealizador
produz imagens que apagam o presente para ocupar seu espaço com outras
realidades. A irrealização como resultado da imaginação ativada nos
sonhos, nos devaneios e nas brincadeiras se aproximaria da mágica,
mágica que veicula o acontecimento de importantes imagens da escola.
Imagens que, por sua vez, evidenciam aspectos relevantes para a
compreensão de parte expressiva da criação permanente da instituição
escolar. Por outro lado, estas imagens também se prestam como panorama
do estado das artes da educação praticada na contemporaneidade do
ensino público no Rio de Janeiro. Imagens que agenciam visadas do
singular ao genérico, do individual ao coletivo, em seus fluxos e refluxos,
que desmontam essa e outras unidades e dicotomias.
117
Para trabalhar com as imagens da escola produzidas pela imaginação
irrealizadora, não limitei a aplicação deste conceito às fronteiras, comumente
aceitas, que o definem como fruto de uma poética pessoal na qual a
irrealização se dá por conta do devaneio embevecido por uma fantasia
geralmente inócua. Como quando estamos no ônibus cheio, no trânsito lento,
nos imaginamos na praia ou em casa.
Sem descartar esse sentido da irrealização, trabalhei com o alargamento de
suas fronteiras, tomando essa forma da imaginação de diluição do real, como
ação marcada pela guerrilha para além do circuito fechado da subjetividade.
Chamo de guerrilha a poética bélica de instauração do que é imaginado, no
espaço e no tempo da concretude de um real que se opõe ao que seus
praticantes querem, ou seja, a irrealização como ato de realização de outras
imagens que forje o devir de um real coletivizado. Contudo, trata-se de um
fluxo de sentidos opostos, que se conflitam e se chocam na construção das
imagens que realizam seus projetos.
Tomando os espaços da instituição escolar como campos de guerra,
configuração esta, é sempre importante ratificar, que convive com outras que a
constituem, procurei, para evidenciar as imagens que aponto como irrealizadoras
da escola e alguns de seus contextos, destacar a tonalidade política dessas
ações. Em outras palavras, essas imagens permitem entender os espaços da
escola ocupados pelas operações dos artefatos de guerra e guerrilha que se
cruzam em conformidade com as práticas de seus protagonistas.
Na elaboração conceitual que proponho, guerra e guerrilha se diferenciam pela
oportunidade de seus acontecimentos e não são caracterizadas pela relação
118
entre oponentes, pois, o teatro cotidiano não é reduzido à diagramação de
antagonismos.
O teatro cotidiano da escola precisa ser compreendido como atuação permanente
de protagonistas. As ações que nele se desenrolam é o que a movimentação dos
corpos dos atores/personagens que desenham: desterritorializações e linhas de
fuga que, ao contrário de esvaziar o espaço cênico, o adensa e amplia. Mesmo
quando escapam, esquivos, hábeis praticantes das oportunidades, adensam os
significativos vazios, prenhes de suas ausências.
Assim como nas artes, o imaginário que vibra o cotidiano também é ativado
para irrealizar o real. O emaranhamento dos gestos e situações que executam o
projeto de irrealização da escola alude à anulação da realidade para que seu lugar
seja ocupado pelos desejos de seus personagens. Subjetivações
coletivizadas pelos encontros de forças ansiosas acabam por cobrir a
119
realidade rejeitada com personas fantásmicas. Essa perspectiva evidencia
que a irrealização que freqüenta o dia-a-dia da escola é também um dos
agenciamentos da fulguração das fantasmagorias da fabulação.
Guerra e a guerrilha, pelejas e pelejas
Os processos imaginários que geram as imagens de irrealização da escola se
configuram pela emergência de muitas fantasmagorias cuja reverberação, é
possível aventar, seria justamente o conflito e a tensão entre a escola
produzida cotidianamente na concretude de suas realizações e a escola
subjetivada pelas instâncias de poder, através das quais o mítico luta por
ocupar todos os espaços, fazendo do cotidiano um campo de guerra entre
imagens contrastantes.
No cotidiano do Colégio C.E.M.S., imagens de variadas proporções e
intensidades espelham as operações de sua própria irrealização. Composições
nas quais é possível perceber como o real vai sendo construído com os
120
resultados do atravessamento de elaborações fortemente ficcionais. Um
entrecruzamento criativo e curioso entre o que o mundo adulto deseja, e pensa
estabelecer, em suas tonalidades próprias e de acordo com sua particular
diversidade, e o, não menos complexo, universo juvenil. Ambos vivenciam, de
formas inauditas, as surpresas e intercorrências que lhes impõe a rotina
imprevisível do cotidiano.
Como exemplo desses embates trago um acontecimento recente deflagrado
pelas estratégias governamentais focadas na rede estadual de ensino
básico. O Colégio C.E.M.S. foi escolhido para sediar uma das “Bibliotecas
Pólo”, unidade integrante de um projeto da Secretaria Estadual de
Educação. Esse tipo de ação das autoridades competentes encerra em si a
potência da irrealização, nesse caso específico, de apagamento de uma
escola envolvida por múltiplos problemas para que seus espaços sejam
ocupados pela encenação de uma outra instituição, ou seja, por uma escola
que oferece uma alternativa de acesso aos fabulados bens da cultura culta
via seus aparatos emblemáticos.
Uma escola biblioteca que no apagamento, via a indiferença às potencialidades e
aos percalços das formas tradicionais de ensino, traz aos seus estudantes um
conjunto de novos meios de desfrute do que é bom e necessário: cultura e diversão.
Conforme o texto publicado no sítio da secretaria
19
,
Atores, poetas, educadores e alunos unidos num só propósito: o incentivo à
leitura. Esse foi o clima de lançamento da primeira biblioteca-pólo, que
aconteceu hoje (08/07) no Ciep Ayrton Senna, na Rocinha.
Em todo o estado, 103 bibliotecas oferecerão uma programação cultural
variada. A Subsecretaria de Planejamento Pedagógico vai preparar cafés
literários, apresentações teatrais, entre outras atividades, em parceria com os
19
http://www.see.rj.gov.br/
121
animadores culturais. A iniciativa faz parte do Programa Estadual de Leitura da
Secretaria de Educação, que tem o apoio da Secretaria de Cultura.
Segundo o Secretário de Educação, Claudio Mendonça, eventos culturais
têm o objetivo de sensibilizar a comunidade para a função social da leitura.
- Esse é um programa essencialmente de mobilização. À medida que
realizamos um evento, despertamos no aluno o interesse em buscar na
biblioteca o livro, o conhecimento, a pesquisa. Nós estamos fortalecendo o
papel do livro e do escritor e, ainda, a função social da biblioteca – disse.
Mendonça afirmou que, além do prazer de ler, a criança e o jovem podem
melhorar o desempenho escolar. - Nossa expectativa é que, através do
fortalecimento das habilidades de leitura e da escrita, o aluno tenha um
melhor desempenho não só em Língua Portuguesa, mas em todas as
disciplinas.
Para o dia da inauguração deste projeto no Colégio C.E.M.S., a direção promoveu
uma festa em seu pátio, para receber autoridades e convidados, entre os quais
estaria o próprio secretário de educação. Os preparativos para o evento foram
acontecendo sem a participação direta dos estudantes e da maioria dos
professores. Não houve tempo ou preocupação em informar a todos do que se
tratava o projeto, sua abrangência e objetivos. Era sabido apenas que a biblioteca,
que ocupa uma grande sala no segundo andar do prédio principal, estava sendo
arrumada para uma festa, segundo palavras de uma professora.
Uma das diretoras adjuntas, falou-me que o colégio seria uma ‘biblioteca-
pólo’ sem saber explicar o que objetivamente viria a ser isso, e me pediu
alguns trabalhos dos alunos para enfeitarem a cena do acontecimento.
Como essa conversa se deu num breve encontro nos corredores do colégio,
não pude obter maiores informações sobre este evento. Mas, essa breve
conversa me permitiu entender tratar-se de mais um evento que envolveria
apenas a administração, eventos que ocorrem ao largo das rotinas escolares
que envolvem diretamente os estudantes.
122
O dia da festa amanheceu chuvoso, o que significou certas dificuldades na
preparação do pátio para o evento, onde foi armado um palanque e diante
deste várias cadeiras foram dispostas como em um auditório, ou teatro. A
segurança dos portões foi reforçada para que nenhum estudante deixasse o
colégio antes da festa, de modo a que a platéia fosse garantida.
Foi solicitado a alguns professores que organizassem barraquinhas nas quais
seriam expostos trabalhos dos alunos referentes às suas disciplinas. Nas
palavras da diretora, “só vamos mostrar coisa bacana! Nada de porcaria!”.
Como não tivesse sido convocado, pude ficar livre no pátio observando os
preparativos para a festa. Enquanto uns professores tentavam encaixar os
tubos de estrutura das barracas, a diretora se ocupava em secar com um rodo
o palanque armado na véspera.
Algumas alunas se divertiam com o que parecia considerarem um
espetáculo à parte:
“Veja só, professor, a Isabel de salto alto, toda perua, puxando o rodo...isso é
que é show”.!
A arrumação do espaço apagava a escola cotidiana, sem deixar de pertencer
ao inevitável cotidiano. O conjunto de operações do evento, ou seja, a
intervenção direta que o colégio sofria na sua rotina ordinária, carregava
123
significações para todos os seus protagonistas. Significações diversas e
espraiadas nos muitos lugares que superpõem as operações de seus
praticantes. Para a direção do colégio, o acontecimento oficial parecia ter, além
de outros sentidos, uma certa carga lúdica. O que era percebido na alegre
excitação e expectativa, não era só a preocupação em receber as “autoridades”
que ratificavam e realçavam seu poder, era também a excitação de gerar um
acontecimento que projetava a escola na freqüência da festa, ordem na qual os
mundos adulto e juvenil manifestam a intensidade da exigência estética.
Quanto ao mundo adulto, esta realização
124
instaurada como tal, fatalmente nela se reverberam, ainda que pulverizados, os
seus arqueossentidos de união e gozo coletivos.
A despeito da oficialidade que a determinou, a festa acaba por ter, além dos
sentidos oficiais, o sentido de fortalecimento dos laços sociais (Maffesoli: ano e
página), pois a consecução de qualquer projeto determinado pela estratégia, no
sentido certeauniano, depende da atuação dos praticantes que o operam e é,
nessas operações controladas, que os sentidos subterrâneos emergem.
Mesmo que invisíveis, mesmo que disfarçados pela obediência às regras.
Subjaz à festa de inauguração das “Bibliotecas-Pólo”, a comemoração pela
colheita passada, ou seja, a realização de uma tarefa importante para a vida
comunitária, ao menos no entendimento da direção, assim como se dá o rogo
pela fartura da futura colheita. Ou seja, atendidas as determinações das
instâncias superiores, espera-se alcançar o atendimento às muitas
necessidades da comunidade escolar, ou benesses quaisquer que venham
contemplar a Direção. Subterraneamente está também a necessidade do
orgiasmo que, fraturando as rotinas cotidianas mais freqüentes, viabiliza o
que Maffesoli chama de equilíbrio societal.
Irrealizadas as dificuldades cotidianas, naquele momento orbitava-se na
sintonia do desejo de vir a ser algo especialmente extraordinário. Contudo,
faltava a essa festa a adesão de todo o grupo de atores da escola. Não se
tratava de um evento com o qual todos se identificavam e encontravam
afinidade de sentidos. Para uma parte expressiva dos professores tratava-se
de mais uma mostra de servilismo da direção com a secretaria de educação e
mantiveram distância estratégica do evento. Outros evitavam, assumidamente,
incorporar mais tarefas ao seu trabalho cotidiano ... “o meu trabalho na escola
125
é na sala de aula, já chega o que eu tenho que fazer em casa....” Comentários
como esses demonstram a irrealização da escola pública. A relação de
trabalho, reduzida ao cumprimento de atividades pontuais, ressignifica a função
docente. Esta função deixaria de ser um trabalho referenciado pela imagem
original da educação, entendida como ação íntima da gestão pública,
desbotando como compromisso político a ser realizado na ampla e efetiva
participação nos desdobramentos das atividades escolares. Ou seja, a
importância do serviço público em toda sua potência de sentidos é considerada
mera fabulação, na medida em que aos professores são impostas
remunerações mínimas, entre outras mazelas, e a instituição escolar é
flagrantemente usada para fins diversos entre os quais predominam ações que
beneficiam os autores da sua fábula político - administrativa.
Paralelamente aos acontecimentos oficiais, imagens contrastantes tecem, ao seu
modo, o cotidiano observado. Enquanto a festa era organizada, os estudantes,
impedidos de deixarem o colégio e dispensados das aulas, se aglomeravam no
pátio e ocupavam a quadra de esportes onde rolava uma pelada.
A imagem dos jovens competidores narrava outra forma de irrealização da
escola. A algazarra dos gritos dos que assistiam e também dos que jogavam, a
movimentação vigorosa dos corpos que a todo o momento se chocavam, se
tocavam e se esquivavam sulcavam a imagem de uma das muitas formas de
praticar o cotidiano por meio da apreensão das oportunidades que constituem o
cenário aparentemente dominado por forças reguladoras.
A brincadeira dos estudantes é uma ocorrência banal, corriqueira e
naturalizada nos ambientes escolares, contudo, sob observação atenta,
essas peculiaridades cotidianas podem ser percebidas como a permanente
126
operação de transformação dos limites organizacionais dos espaços e
tempos escolares em chances de acontecimento de prazer e linha de fuga
desses mesmos limites.
O futebol é um esporte bastante popular e especialmente apreciado e praticado
pela maioria dos jovens das classes populares. Como outras práticas
esportivas, é uma das atividades pedagógicas da disciplina de Educação
Física, assim neste lugar próprio, é colonizado pelo sistema fabuloso do ensinar
e aprender. Mas, quando acontece da forma como era praticada no dia da festa,
fora da orientação disciplinar, sua prática deixa emergir mais fortemente os
arcaicos sentidos das contendas. Jovens machos na disputa do território de
ação. A escola que no pátio se irrealizava para dar espaço para a evocação de
um Estado atuante era uma encenação próxima e distante. Ao lado da quadra,
alguns metros acima, pois o pátio fica em um plano superior àquele onde se
encontra o ginásio, visto que a escola foi construída em um talude na subida de
um dos muitos morros cariocas, aquela representação acontecia, imensamente
distante de outra performance de irrealização que se configurava na “pelada”, a
irrealização da escola pela insurgência das táticas dos alunos.
A disputa entre os estudantes do colégio e o time da “vida nova” – um dos
projetos do governo estadual voltados para a população de baixa renda, neste
caso específico para a juventude desassistida, projeto este que também ocupa
as instalações do C.E.M.S., estilhaçava a realidade da escola, para ocupar seu
vácuo com a fúria da vida.
Ao mesmo tempo em que o pátio era preparado para a festa oficial, a quadra
era palco da festa dos corpos e das emoções de um grupo de estudantes que,
127
naquela conjunção, apagava a clausura que lhe era imposta e reinventava a
escola segundo seus desejos.
Eu dividia o meu olhar entre as tentativas frustradas dos professores armarem
as tendas e o jogo dos rapazes, quando, subitamente, esse último transforma-
se numa violenta luta entre alguns de seus jogadores. Levei algum tempo para
chegar a eles na tentativa de apartá-los, mas um dos inspetores foi mais rápido
e, com gestos e linguagem não menos violenta, estancou a peleja. Dirigi-me a
um dos rapazes, que é meu aluno e com quem desfruto de certa proximidade e
perguntei-lhe as razões da briga. Respondeu-me balbuciando algumas
palavras que não entendi. A resposta à minha indagação estava em seu olhar
que, naquele momento, não me reconhecia. Nele havia uma fúria ancestral,
que evidenciava a impossibilidade da racionalidade e de suas lógicas
dominantes como meio de entendimento, para algo que parecia superior em
força e intensidade ao próprio discurso que eu utilizava, discurso este, na
lógica de uma escola irrealizada, pulverizado, há anos luz de distância da
imagem daquele olhar.
No outro lado da quadra, um dos gladiadores, com o rosto entre as mãos,
chorava. E o fazia como só se permitiria um homem radicalmente deslocado
do contexto das moralidades citadinas. Seu choro era outra imagem que
apagava o medo ou a vergonha de fracassar, tão comum entre os homens
jovens em quase todos os lugares públicos da nossa sociedade, se
encontram, sobretudo, entre eles e diante de seus agressores. Esse jovem
irrealizava, portanto, o real das convenções que em outros tempos, tão
próximos, lhe impediria tal reação. Essa imagem irrealizava tudo para
viabilizar o choro primal que urgia acontecer.
128
O outro jogo, de violência invisível e inaudível, se arrastava no pátio. De fato,
um outro jogo no qual seus jogadores se preveniam de eventual surpresa
desfavorável com a experiência dos lances já vividos. Diretora e professores,
com leituras diversas do que faziam, operavam suas táticas.
Contos e lendas parecem ter o mesmo papel. Eles se desdobram, como o
jogo, num espaço excetuado e isolado das competições cotidianas, o do
maravilhoso, do passado, das origens (Certeau, 1994: 84).
A visita da secretaria era envolvida pelos miasmas e perfumes sempre ativos
da maravilhosa gênese da escola como teleologia do bem. Tudo deveria estar
em ordem e na sintonia do bem. A despeito da irritação gotejada entre os
dentes dos professores que não conseguiam montar a tenda, nem o
desejavam fazer, a despeito do rancor guardado pela secretaria por conta da
aviltante política salarial infringida aos professores, a despeito dos portões
fechados, da água que não escoava do palanque, da fúria do olhar que já se
ocultara e do rapaz que ainda chorava.
O evento do pátio diferenciava-se radicalmente do evento da quadra. Ambos
irrealizavam a escola sem, contudo, aniquilarem-na. Ambas as imagens
paradoxalmente a constituíam, a faziam acontecer. O cotidiano, limite extremo
do acontecimento da vida, se mostra concretizado por meio dessas operações.
A “Biblioteca pólo” e a “pelada” desenhavam a imagem de uma contenda entre
imaginários contrastantes. Suas localizações podem ser explicadas pelo que
Gallo (2003:78) denomina educação maior e educação menor.
A educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de
educação, dos parâmetros curriculares e das diretrizes, aquela da
constituição e das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
pensada e produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do poder. A
educação maior é aquela instituída e que quer instituir-se, fazer-se
129
presente, fazer-se acontecer. A educação maior é aquela dos grandes
mapas e projetos.
Uma não seria menos imaginária que a outra. Ambas, em suas polaridades,
revelam a força dinâmica que seus entrechoques provocam e, assim, expõem
a educação imaginária como máquina de guerra em permanente movimento no
campo do cotidiano.
A educação menor, que associo ao universo também representado pela
imagem da “pelada”, e pela atuação dos professores, é a que, nas palavras
de Gallo (idem) é
Um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os fluxos instituídos,
resistência às políticas impostas; sala de aula como trincheira, como toca
de rato, o buraco do cão. Sala de aula como espaço a partir do qual
traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militância, produzimos
um presente aquém ou para além de qualquer política educacional.
Portanto, ações que operam as linhas de fuga para além do real instituído, nas
quais os professores e os estudantes são os inevitáveis autores do
acontecimento da escola. Seja via a resistência, a irreverência, a subordinação
insubordinada, os protagonistas das pelejas da educação irrealizam a educação
maior, ou seja, a educação fabulada para viabilizarem a poética sensual do
movimento da vida diária.
A imagem dos professores “zoando” o evento frustrado, assim como a imagem
das alunas se divertindo com as trapalhadas da montagem das tendas,
evidenciam mais outra face das artimanhas de viver as situações de controle.
Todos, adultos e jovens, na revolta, na briga, no choro e na diversão produziam
encontros rizomáticos naquele momento de realização e irrealização da escola.
No segundo andar, pronta para receber os seus inauguradores, ficava a sala
da biblioteca que a rebeldia do cotidiano fez substituir. O lugar das autoridades
130
foi ocupado pelos habituais freqüentadores da escola, seus alunos, diretoras e
professores que se encantavam com a nova decoração.
A presente ausência de políticas governamentais conseqüentes para a
produção da escola, naquele momento configurada pela falta das autoridades,
é um dos agenciamentos que a irrealizam. A cenografia que a reveste de
ornatos e emblemas que presentificam o funcionamento conseqüente e
coerente com a sua origem fabulada, em sintonia direta com a educação maior,
é a mesma que compõe algumas das linhas de fuga desta mesma realidade. A
realidade monolítica, outorgada por uma única maneira de ser apreendida e
que, em seu mono-funcionamento, nega a multiplicidade que seria, de fato, a
condição de existência da escola.
A bem da verdade, a escola não pode ser reduzida ao que sobra de sua
irrealização, nem tão pouco do que soçobra de sua fabulação. É preciso
captá-la nos fragmentos de suas múltiplas imagens; mais ainda, é preciso
apreendê-la nos choques entre esses fragmentos. Sonoplastia inusitada que
não guia, nem dá o tom à tragédia, mas compõe a fisicalidade musical do
concerto que é o seu cotidiano.
A festa de inauguração não aconteceu como deveria, a rebeldia do cotidiano
improvisou, no C.E.M.S., a frustração do evento. O secretário de educação
mandou avisar em cima da hora que tivera problemas que impediriam sua ida
ao colégio. Talvez, os mesmos problemas que parecem impedir, sempre, a
presença das autoridades ou o que delas deveria vir à escola.
A festa, sob certo aspecto irrealizada, realizou-se de outra forma. Os
professores e professoras comemoraram, em comentários discretos, a
constatação da falta de compromisso e de atenção do governo com a rede
131
escolar, conforme a leitura que faziam daquela ausência. Ponto para eles. O
jogo não termina.
No segundo andar do prédio principal a biblioteca estava pronta para a festa.
Sua organização foi bastante modificada e recebeu uma decoração especial.
As estantes que anteriormente eram separadas das mesas de leitura por um
balcão improvisado sempre coberto por pilhas de livros, agora estavam
organizadas e acessíveis aos leitores. Não havia mais balcão nem pilhas ou
amontoados de livros. Todas as janelas receberam cortinas nas cores grená e
bege. As paredes e colunas foram enfeitadas com reproduções de obras de
arte emolduradas e com legendas datilografadas, infelizmente coladas sobre as
imagens. Segundo a professora responsável pela biblioteca, isso era bom, pois
“... ensinava coisas que a gente nunca sabe sobre os quadros, é bem didático.
Foi a Isabel que doou, ela ganhou todas elas do Chagas Freitas! ”
20
Dois sofás foram colocados diante de uma mesa que receberia, segundo o
projeto da biblioteca, ainda não totalmente realizado por falta de recursos, uma
TV, um vídeo-cassete e um aparelho de DVD. Tapetes e almofadas ocupavam
os espaços vagos, além de várias mesas de quatro lugares para leitura.
20
Antônio Pádua Chagas Freitas, governador do então Estado da Guanabara de 1961 a 1975
e do Estado do Rio de Janeiro de 1979 a 1983, eleito por colégio eleitoral. Fonte Arquivo
Nacional, http:www.governo.rj.gov.Br/historia03.asp - Portal do Cidadão
132
A despeito da qualidade do mobiliário e da escolha discutível das cores das
cortinas, o cenário, resultante da interpretação feita pela direção das
recomendações da secretaria, encantou a todos, pois, sua organização
cumpria, a seu turno, a irrealização de uma escola de visualidade convencional
e com poucas variantes. Carteiras e quadro de giz.
“Parece casa de bacana... foi um dos comentários de um dos alunos. Vão tirar
tudo depois ou a gente não vai poder entrar?” Comentou outro. Pano.
133
A escola produzida pela imaginação reprodutora
“A imaginação reprodutora é aquela que”.
toma suas imagens da percepção e da memória”
Marilena Chauí
21
“A luz ofuscante e a escuridão são destruidoras das imagens”,
e não há nada mais ameaçador do que um mundo destituído destas.”
Christoph Wulf
22
Vem, chega mais, diz pra mim
O que vai ser da tua vida
Vai voltar ou vai seguir?
eu só estudo aqui, por causa das gatinhas e dos professores
mas nada nessa vida é perfeito, é um eterno perde e ganha
um mundo sem direito
Digão
23
21
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia.São Paulo, SP: Ática, 1997.
22
WULF, Christoph. Antropologia da educação.Campinas, SP: Alínea, 2005.
23
Rodrigo(estudante da escola pesquisada). Funk Dilema do estudante, 2005.
134
A imagética do cotidiano mescla visualidades, sensações, sons, olfatos,
texturas, volumetrias e tantas quantas forem as possibilidades de percepção e
apreensão dos seres humanos. Viver o cotidiano escolar é estar em contato
permanente com essas ofertas de captação de suas realidades. O cotidiano da
escola é feito de muitos sons, os quais podem, facilmente, parecer repetitivos
para aqueles que os ouvem de longe, estrangeiros a esse universo. Os tempos
das aulas, normalmente, são feitos de trégua sonora. Não impera o silêncio,
mas os sons são mais pontuais. Uma fala mais alta de uma professora; um
apagador que cai; um burburinho ou estouro de risos rapidamente estancados.
Com o sinal do intervalo ou recreio, os sons tomam o espaço escolar, risos,
brados, conversas e os passos da galera descendo célere para o pátio.
As visualidades também são marcadas pelos tempos, embora nem as imagens
sonoras nem as imagens visuais sejam imunes à rebeldia do cotidiano, como
135
afinal, nenhuma das imagens que fazem e movimentam a escola o seja. O
ritmo dos tempos e entretempos que cadenciam o dia-a-dia escolar é a
musicalidade de sua dinâmica imagética. Movimentação de imagens que
corporificam a escola.
O presente texto pretende registrar um dos canais imagéticos que concorre
para o acontecimento da escola, a reprodução. Esse canal é entendido como
máquina imaginadora que tem como matéria prima a percepção e a memória,
ou seja, a reprodução de compreensões, de fatos, de procedimentos e crenças
na produção da atualidade do cotidiano. Uma espécie de mimese, em outras
palavras, de cópia que nunca se realiza como foi seu original, mas, obra
referenciada em outros acontecimentos que acaba por transformá-los nas
imagens em permanente devir que cercam e envolvem os praticantes e as
práticas cotidianas.
Segundo Wulf (2004: 14 e 15), A palavra “mimese” caracteriza como os seres
humanos se comportam diante do mundo no qual vivem.
“Eles acolhem o mundo, mas não o vivem de forma passiva, eles respondem
ao mundo com ações construtivas. O que eles receberam do mundo será
trabalhado por eles nas suas próprias ações” (Op. cit).
As formulações da escola que são veiculadas nas falas, nas performances
gestuais e nos mais banais acontecimentos, entre outros suportes de seu
cotidiano, são também imagens suas que remetem à percepção e às memórias
individual e coletiva de seus protagonistas.
A escola e a educação que essas imagens expõem não anulam nem rejeitam
as outras imagens que lhes dão corpo e aparência, pois, as diversas
formulações da imaginação em seu permanente envolvimento, concretizam o
136
que defendo como a escola inventada no seu próprio cotidiano. Assim sendo, a
escola que é irrealizada, também é fabulada, ao mesmo tempo em que se
mostra pela reprodução. Reprodução de crenças, saberes e fazeres que são
reeditados no desdobramento dos tempos que diagramam a existência dos
coletivos e das práticas escolares.
A escola como produto da imaginação reprodutora traz nessa categorização a
contradição que é a impossibilidade da fidedignidade da cópia. Copiar, como
atividade humana, nos ensina a pesquisa do cotidiano, sofre a inevitável ação
das práticas dos que o fazem. As mais banais e rotineiras ações cotidianas,
sob a lupa do cotidianista, expõem sempre inegáveis singularidades. Contudo,
a invenção do cotidiano não acontece desgarrada de referências e similitudes.
A escola operada cotidianamente é resultado de um emaranhamento de
percepções, memórias e práticas. É ação das táticas de superação de
imposições e de invenção de caminhos onde não haveria passagens nem
horizontes. É cópia de situações experimentadas e vivências agregadas. É
reprodução de sentidos sem os quais não há panorama fértil propício à criação
de novos sentidos.
O conceito de reprodução trazido neste texto é calcado na ação mimética, ou
seja, no aproveitamento de experiências vividas, trazidas na memória
individual, social ou outras referências que servem de base às operações
cotidianas. Trata-se, portanto, da proposta de um sentido para o termo
reprodução que não é emoldurado pela teoria de Bourdieu
24
, muito embora
reconheça sua pertinência como uma das leituras das práticas reprodutoras.
24
Um estudo em conjunto com Jean-Claude Passeron, sobre o sistema de ensino francês e os
esquemas de reprodução da sociedade de classes francesa.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoriado
sistema de ensino. 2. ed. Tradução de Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.
137
O cotidiano da escola é pleno de discursos que evocam idealizações e
experiências do passado. Professores e estudantes aglutinam e dão espessura
à atualidade de suas relações com o que trazem de uma memória ancestral,
por sua vez constituída por imagens que lhes foi possível produzir em harmonia
com suas formas de perceber o que viveram, ou de receber o que lhes foi
doado pelos coletivos aos quais pertenceram e pertencem.
“No meu tempo não era assim. O respeito pelo professor era total. Tanto por
parte da escola quanto por parte dos alunos. É por isso que eu digo que a
escola deveria voltar a ser como era antigamente”. Esse tipo de enunciado,
com o qual se desabafava uma professora de química, numa das conversas
que recheiam a sala dos professores, indicia a escola também como
reprodução imaginária. Podemos inferir que a professora de química não
permanece imobilizada na lamentosa constatação da impossibilidade da escola
ser como foi um dia, pois suas lembrança e percepção que concebem uma
forma de ser para a escola, são, indiscutivelmente, agenciamentos vivos que,
de uma maneira ou de outra, em diferentes intensidades, atravessam
permanentemente as suas práticas, as suas performances de trabalho. Pois, a
imaginação como combustível de grande parte das táticas que sulcam o
cotidiano, nem sempre deixa pegadas ou odores, contudo produz a solidez e a
ameaçadora aparência da inexpugnabilidade.
Muitas das ações que erigem as imagens que dão concretude à escola são
alicerçadas pela memória das experiências pessoais e coletivas. A permanente
produção dessas imagens, certamente não ocorre de forma pacífica e a
memória não se reduz, necessariamente, aos acervos de fatos acontecidos
externamente aos sujeitos que os recordam. A memória é eleição e criação, é
138
forma de pensar o que se pensa ter vivido, sabido ou observado. Sob essa
perspectiva é criação de discursos em consonância com os desejos e
interesses daquele que recorda. Contudo, é essa lembrança e referência que
deflagra os atos miméticos. Wulf (2004) explica, também, que nos atos
miméticos o sujeito recria o mundo por meio de suas próprias configurações.
Isto é o seu mundo, mas ao mesmo tempo ele divide este mundo com todos
aqueles que com ele vivem neste mundo... e adianta que se procurarmos a
fórmula mais curta para definir ações miméticas, poderíamos dizer que esta
seria fazer o mundo mais uma vez e este fazer teria um lado simbólico e um
material, um prático e um corporal. Reproduzir o que se viu, o que se quis ou o
que se idealizou não escaparia do fazer, mais uma vez o mundo, como
processo de humanizá-lo, enquanto apropriação humana.
A escola não reproduz apenas o que lhe seria nefasto nem o que lhe seria
favorável. As suas imagens que denotam a reprodução de esquemas,
enunciados, princípios e crenças também explicitam a transformação desses
referenciais na atualidade de seu acontecimento.
Os tempos da escola não são somente a repetição previsível que deixam
transparecer. Os silêncios e os sons nem sempre atendem à pauta de uma
única orquestração.
Um dos cortes nas rotinas escolares é a saída da escola. Não a do fim do
turno, quando os alunos deixam a escola, mas quando ocorre alguma
programação fora da escola durante o horário escolar, os sempre esperados
“passeios” muito valorizados pelos estudantes. Os passeios fazem parte da
rotina da escola, as visitas a museus, exposições etc. e aparentemente não
representariam uma excepcionalidade às práticas pedagógicas, contudo, por
139
se tratar de uma retirada das ordenações, no mínimo espaciais, da escola,
impõem aos alunos e professores c
140
menores de idade, visto que sempre, por diferentes motivos, muitos não as
trazem, assim como manter o grupo tranqüilo e unido na hora da saída da
escola, pois o passeio sempre guarda expectativa e ansiedade por parte dos
jovens que, à exaustão, perguntam a que horas sairemos, se é longe, se
iremos de metrô, etc. Essas saídas parecem ser, sempre, da maior importância
e prazer para os jovens.
“Ah, professor, sair da escola é muito bom...”. (Juliana).
Mas para que isso aconteça é preciso estar na escola, lugar contraditório onde
aprenderíamos o que nos seria ensinado, lugar no qual somos cativos e
entediados. Contudo, a clausura, o tédio, as admoestações, as obrigações,
sempre distantes dos interesses imediatos, não são os únicos agenciamentos
formadores da malha que impulsiona o prazer de sair da escola. Afinal o fora
da escola com a potencialidade do passeio não é disponível sem a escola.
141
Refiro-me ao sentido que passa a ter a saída da escola em grupo. Embora a
maioria dos estudantes tenha certa autonomia e o costume de transitarem pela
cidade, estar com seus colegas de turma no horário das aulas pelas ruas em
direção a um outro espaço é, quase sempre, especialmente prazeroso.
Situação que dificilmente ocorreria sem a participação da escola. Pois, só a
partir dela que o mundo de fora oferece a possibilidade de certas preciosas
experiências. Seria, então, preciso estar sob as ordenações escolares, sem as
quais não haveria o encontro, não haveria o desfrute do pertencimento aos
coletivos apenas nela formulados. Rapazes e moças, que já têm certa
autonomia e bastante intimidade com a cidade, parecem redescobri-la nessas
ocasiões. Operação mimética, na qual a conquista dos espaços urbanos se
reproduz em uma outra sintonia.
A ida a um centro cultural reproduz o movimento educacional de ampliar a ação
escolar por meio do investimento em espaços afins com o seu agenciamento,
espaços de cultura e conhecimento. A função desses espaços, com suas
atividades ilustradoras, residiria na ampliação e repetição da ação pedagógica.
Museus e demais espaços oficiais da cultura oficial sofrem também o contraste
de suas imagens. A forma de uso por parte dos estudantes que parece mais
flagrante é o aprendizado do respeito à cultura, via de regra culta, seja na
forma em que é apresentada ou pelo conteúdo que é quase sempre exposto.
Mas o que interessa esmiuçar é exatamente o que fervilha rasteiro e
clandestino nessas visitas de adestração ao acatamento aos emblemas da
cultura culta, da cultura dos bacanas, como denominou Camila diante do
Centro Cultural do Banco do Brasil, se referindo às pessoas que ali entravam,
142
quando nos encaminhávamos para o Centro Cultural dos Correios onde seria
vista a “Estética da periferia”.
Ainda no pátio da escola, os grupos de estudantes se formavam enquanto
aguardavam a hora da saída para a exposição. Nos dias que antecederam o
passeio conversamos bastante sobre a exposição que iriam assistir.
Tentei discutir os possíveis significados dos termos estética e periferia.
Surpreendi-me com a compreensão da relatividade dos conceitos de centro e
de periférico, quando um aluno citou o Brasil como um país periférico em
relação à centralidade política dos Estados Unidos. Uma visão macroscópica,
tantas léguas acima das centralidades e marginalidades vivenciadas no nosso
dia-a-dia. Falamos da centralidade como determinação conceitual, aplicada em
conformidade com os discursos e narrativas. Vivenciava naquela aula a
atuação professor/aluno que evidencia a reprodução da escola como máquina
de conhecimento legitimado. Máquina azeitada que produz o que, sob certa
perspectiva, espera-se que produza, muito embora não a revele como meio
decisivo e exclusivo para a concreta democratização dos saberes necessários
à formação fortalecida de seus estudantes. A mesma aula na qual, em certo
momento, reconhecia a participação produtiva de alguns alunos era também
marcada, em outros instantes, pela aparente indiferença de outros com a
presença do professor, enquanto uns envolviam-se com os conteúdos da aula,
outros conversavam. Nessa simples descrição, percebo como é inseparável da
reprodução de procedimentos entendidos como tecnicamente produtivos, a
ação da crença de uma forma ideal de acontecimento da escola.
Acontecimento o qual, sob a perspectiva da mimese(Gebauer e Wulf, 2004),
não se daria por meio da repetição integral de um determinado modelo, de
143
alguma forma, trazido nas ações do professor e dos alunos, pois não evitaria
oferecer suas referências às operações da rebeldia do cotidiano das quais
sempre emerge a originalidade do acontecimento do presente. Pois os
processos miméticos, copiados ou reproduzidos, são experimentais em
grande medida e planejáveis somente em medida limitada. “A saída deles
está aberta” (Op.cit :140).
144
A reprodução do desabafo
Quando chego na sala de aula é comum encontrar a turma imersa em ações
ainda distantes da sintonia adequada ao encaminhamento das tarefas
pedagógicas, ou seja, da sintonia com a reprodução das formas do professor
dirigir a turma. Naquele dia não foi diferente, uns conversavam, outros
dormiam. Alguns conversavam animadamente na porta da sala e, em um dos
cantos, um casal namorava. Diante de situações como esta, quase sempre me
perco pensando nos sentidos que me fariam romper com essas organizações
espontâneas e por meio da reprodução da ordenação escolar oficial,
seqüestrar a atenção da maioria, senão de todos. Contudo, mesmo investindo
a repetição das rotinas escolares, esta se daria apenas aparentemente, na
medida em que sob a repetição visível subjaz a produção de novos sentidos.
145
Diariamente, a impossibilidade da educação parece assaltar um ou outro
professor e lançar a sombra da incerteza sobre a iluminação pedagógica. O
espanto diante da inexorável autocriação de cada sujeito e de cada coletivo
parece, nesses momentos, ameaçar a reedição da aula, interrompendo, de
uma vez por todas, o fluxo maquínico da reprodução escolar. Contudo, essa
apreensão, essa incerteza concreta, muitas vezes disfarçada sob a falsa
capitulação veiculada em declarações do tipo “a educação nessas condições
não faz mais sentido” (mais uma fala da professora de química, que poderia ser
minha ou de qualquer outro professor), é ainda a reprodução, ou antes, uma das
capilaridades da ação mimética de recriação diária da educação e da escola.
No dia em que deveria falar sobre o passeio, recebi um estagiário, aluno de
um curso de licenciatura. Encontrava-me, então, desafiado por duas
responsabilidades, mostrar ao futuro professor uma prática convincente e
cumprir com a mimética função de professor na minha turma. Ou seja, além
de dar conta de minha função, oferecer ao estagiário algo que viesse
corroborar, positivamente, com sua formação docente. Não podia perder
aquela guerra perdida.
O fato é que ninguém me dava atenção, e eu compreendia e aceitava o meu
abandono naquele oceano de multiplicidades, de risos, de brincadeiras e de
conversas paralelas. Seriam necessárias tantas palavras para explicar minha
imobilidade e maravilhamento típico do flâneur que sempre sou. Esse pequeno
momento de muitos significados é trazido para esse texto como marca do
paradoxo que articula as muitas imagens da escola, e a revela como um
irredutível campo da crucial mimese humana. Minha ação como pesquisador,
146
professor, apreciador do cotidiano escolar, são as cabeças contrastantes da
mesma Hidra que interroga e vive a educação.
Por mais que eu acredite que a rotina escolar seja feita por impossibilidades,
desacertos e poucos sucessos imediatamente notáveis, a escola imemorial que
me habita exige sempre se repetir. Mimetizá-la, seria mais que acontecer como
um professor competente que dirige adequadamente sua classe, seria inventar
a conjunção entre meus temores, minhas crenças e os agenciamentos da
aparente dispersão da turma. Esperei que a turma se acomodasse, ou melhor,
que me acolhesse, reconhecendo a minha presença. Enquanto isso não
acontecia ouvia as conversas entrecortadas dos alunos e alunas. Constatava,
assim, a profunda pertinência da frase de Berino (2005), “quando estão juntos,
querem apenas conversar...”.
147
Como em qualquer dia, a escola acontece na reprodução de suas rotinas. Uma
série de eventos singulares movimenta a sua criação diária. Na minha turma
uma novidade deu o tom à formulação daquela quinta-feira. Thiago, um dos
alunos, havia sofrido um pequeno acidente numa partida de futebol e
precisou engessar um dos pés. Como a sua sala localiza-se no quinto
andar, e ele, para locomover-se, precisava do apoio de uma muleta, seu
deslocamento requisitou a ajuda dos colegas. Esse banal incidente
envolveu a turma, que o transformou no mote de muitas brincadeiras. A
muleta foi tomada por um de seus colegas e ele teve de ser carregado por
outros, em meio à multidão de estudantes que se dirigiam pela estreita
escada às salas distribuídas pelos seis andares da escola.
A chegada de Thiago à nossa sala de aula foi acompanhada por muitas
brincadeiras e algazarra. Ele chegou suado e cansado e, para espanto do
estagiário, aproximou-se de uma das janelas e tirou a camisa para amenizar o
calor que sentia.
Na escola memorável, a escola fabulosa na qual a organização e a disciplina
concorrem para a eficaz aprendizagem de seus alunos, tal comportamento, um
aluno sem camisa, seria impensável. Essa escola impossível, irrealizada e
fabulada, se reproduziu mais uma vez na provocativa pergunta de uma colega
do aluno acidentado: “Isso agora pode, é professor?”.
Mais importante que minha resposta, que foi em defesa do gesto de Thiago,
era a evocação de um sistema de regulações configurador da instituição
escolar, sistema subjacente à pergunta marota de Katiana. Ao mesmo tempo
em que, provavelmente, compreendia e concordava com o gesto de Thiago, a
148
aluna parecia ver nesta atitude uma abertura para o questionamento do lugar
próprio em que nos encontrávamos e de sua rede simbólica, a qual, a
seminudez do rapaz fazia oscilar.
A imagem aparentemente caótica desta primeira aula do dia guardava traços
das várias produções imaginárias da instituição escolar. Escorrendo meio à
algazarra provocada pela novidade do acidentado, permeando as brincadeiras
feitas com a muleta, refletindo-se na irreverência da camisa retirada, a
imaginação reprodutora da escola refulgia. Pois, se a imaginação reprodutora é
a reorganização de situações e imagens que vamos recolhendo durante nossa
vida e as quais a memória acumula para que possamos efetuar os diversos
jogos compositivos para representar e compreender o que experienciamos
durante a vida, a imaginação reprodutora também é um poder ativo que se
deflagra através da combinação de dados sensoriais com apreensão racional.
Em outros termos, a imaginação reprodutora é o desdobramento do poder da
percepção humana; é o poder de reformular que dá nervura e novidade às
ações miméticas, além se ser fonte da criação artística.
No território da racionalidade, fortemente tido como oposto à imaginação, a
afirmação de que uma simples brincadeira, Isso agora pode, é professor?
pronunciada, sobretudo para “zoar” um colega, traria indícios do
questionamento da consistência imaginal da escola pode parecer delirante e
até despropositada, visto que a visão de topo (Certeau) encerra na condição
inócua os microacontecimentos cotidianos, pois os territorializa à margem da
centralidade da relevância outorgada, amparada que é na tradição da
verdade unicista.
149
No entendimento que conduz minha abordagem, a escola reproduzida e
reprodutora é a escola mimetizada e como tal, sua própria invenção avança no
cotidiano, refazendo a memória, reorganizando as imagens provocadas pela
percepção, sejam estas oriundas das captações individuais ou coletivas que,
no vórtice das experiências sociais, desembocam no mesmo canal do qual
jorra o acontecimento da vida.
Assim, a imaginação, além de sua versão reprodutiva, ou seja, por meio das
suas ações de irrealização, evocação, fabulação e criação, oferece a
possibilidade de captar o lado invisível das situações vividas e de assegurar
que há mais em nossa experiência nos coletivos do que nos habituamos a
reconhecer. Para se aproveitar as potências das imagens resultantes da
imaginação reprodutora é preciso abrir mão da visão literal da realidade e
buscar, no que se vivencia, sua eloqüência figurativa e seu tônus simbólico.
Esse posicionamento não só oferece acesso ao lado metafórico do que temos
como imagem, mas, também, nos dá acesso ao manancial de suas
potencialidades expressivas.
No jogo das práticas cotidianas, as condições impostas pela máquina
reprodutora da organização escolar não impedem a reordenação dessas
condições, nem mesmo a sua absoluta diluição, ainda que fugaz e
provisoriamente. Pois, a matriz organizativa da instituição escolar, a despeito
de sua força emblemática, é mítica, e, assim sendo, será utilizada na
medida em que venha a ser útil nos embates cotidianos gerados pelo
funcionamento das estratégias. Funcionamento, este, que só ocorre por
meio das atuações táticas, pois o cumprimento das regras dominantes e o
150
enfrentamento de suas delimitações dependem, inexoravelmente, da rede
de práticas dos sujeitos da escola.
A constatação de que somente os últimos quinze minutos da aula foram
utilizados, de maneira satisfatória, para dar conta do que programara
como conteúdo da aula, ou seja, tratar da exposição que iríamos
assistir, dos conceitos que veiculava e das nossas supostas relações
com o evento, leva a enfrentar uma inquietante imagem da escola. A
imagem que evidencia a relação entre a ação da imaginação reprodutora
de formulações fixadas pela rotina oficial e as ações dos jovens no
aproveitamento dos vazios ocasionados pela incapacidade ou lacuna da
dominação docente. A mais rígida e totalitária disciplina não impede
que, sob seu controle, escorram, também, operações táticas. No caso
específico das minhas aulas, eu tento conduzi-las para que aconteçam
ao sabor das movimentações livres dos estudantes, o que geralmente
resulta em movimentações facilmente denomináveis como desordem.
Contudo, o que resulta dessa forma de agir não pode ser reduzido ao
entendimento, por demais superficial, de bagunça, como seria o
entendimento da aparente desordem em qualquer turma com ou sem
qualquer professor, entendimento este que carrega em si a reprodução
da condenação de tudo que fuja a repetição da ordenação idealizada da
escola fabulada.
Essa experiência específica, a pretensa alteração da disciplina tradicional, não
escapa da apropriação de um lugar próprio pela tática do professor, tática que
objetiva muitos acontecimentos, todos eles deflagrados a partir da idéia original
de que há algo a ser ensinado, que há uma função a ser exercida, sem
151
mencionar o jogo de poder que percorre as capilaridades de todas as relações,
das mais libertárias às mais farsistas. O que importa, então, é ressaltar o papel
da imaginação como produção dos cenários concretos da educação e das
potencialidades miméticas que atuam na invenção do cotidiano.
Produzir um espaço propício à liberdade de ação criativa pressupõe,
inevitavelmente, partir de alguma operação já experimentada. O que
significa ter partido de engendramentos simbólicos familiares para
reordená-los, em harmonia com o que é posto pela amálgama dos sentidos
que formulam o coletivo. Recorro às palavras de Ruiz (2004:155) para
melhor esclarecer esse enfrentamento.
Não existe espaço neutro de onde possamos contemplar de modo objetivo,
ou só racional, a produção simbólica. Sempre que acharmos esse espaço,
teremos realizado uma construção significativa e com ela teremos
introduzido uma nova forma simbólica. A própria noção de espaço não
existe para nós, de forma natural. Nossa percepção do espaço se
apresenta como uma aprimorada elaboração simbólica dos elementos,
coordenadas e referências que nos circundam.
A condução da ordem na sala de aula, por mais que aparente um momento de
anarquia, implica em reordenações de sentidos que vão sendo experimentadas, na
medida em que os estudantes, co-autores do espaço em questão, também
trazem a memória de uma escola referencial. E, cedo ou tarde, nos primeiros
ou derradeiros minutos da aula, ou talvez o tempo todo do espaço e tempo da
aula, a imagem da reprodução produtiva da escola, escola como máquina
fabulosa de conhecimento, refulge.
152
Prólogo da reprodução ou Vamos a la plaia!
“Professor por que não vamos a praia?Tá maior calor!”.
Greicy, uma das alunas, interrompeu as minhas explanações com essa
pergunta. E continuou: “Por que a gente tem que ir a essas exposições? A
gente nunca vai a um lugar maneiro, à praia...”.
Agora, quando retomo minhas anotações para construir esse texto, relembro o
desconcerto provocado pela proposta de Greicy. Mais uma pergunta que não
deseja uma resposta objetivada pela superfície de seu enunciado. Pergunta
imagem que quer significar, e esse desejar gera mais uma imagem que dá
corpo concreto à educação imaginação. Pois na desterritorialização imanente
na proposta, na irreverência do deslocamento, na sua zoação desconstrutora,
coloca-se a interrogação profunda das ordenações que se reproduzem
eternamente no embate que é a invenção diária da escola.
As risadas que provocou me deram tempo suficiente para me reerguer do
abismo a que a pergunta me lançara: um dia de sol, um grupo de jovens
estudantes diante da possibilidade de deixar a clausura escolar, por que não
poderiam ir à praia? Questões como esta poderiam ser rapidamente
respondidas por variados, competentes e pertinentes discursos, porém, todos
153
oriundos do imaginário reprodutor, que lembram e impõem, a todo o
momento, a disposição dos entes em seus lugares determinados, unificações
como freio às multiplicidades.
Embora o processo reprodutivo dê margem a ajustes e ressignificações, parece
que essa área de manobra vai se tornando, a cada dia, menor, quando se trata
das ações exigidas pela complexidade da educação pública. Contudo, as
cruciais perguntas estão presentes na banalidade do cotidiano, nas menos
conseqüentes brincadeiras, nas mais estapafúrdias zoações, pois a mimese
como invenção da cópia, portanto, produção de algo que não existia, pode
trazer, na sua novidade, a potencialização tanto do que é favorável aos
processos emancipatórios quanto o recrudescimento do que lhe é oposto.
No dia seguinte à aula narrada, nos dirigimos à exposição “Estética da
Periferia”. Dois professores em meio a quarenta e nove adolescentes. A
trajetória desse grupo pelas ruas da cidade, pelo metrô, até chegarmos ao
antigo prédio dos Correios exibia as incomensuráveis dimensões da educação
formal como agenciadora de territorializações, como ponto de partida para
entendimentos dos lugares próprios e suas delimitações. Sair da escola como
alunos e professores estabelece, inevitavelmente, um ponto de partida, ponto
este, definidor dos olhares dos seus atores e dos olhares que para estes são
projetados. A reação dos passageiros do metrô ao verem seu vagão invadido
pela turma alvoroçada denota apreensão e certo medo.
“Hi professor! Parece que a gente vai fazer um arrastão!”. Tempo.
As imagens da escola, que a expõem como instituição de controle e
repetição, ocupam, facilmente, o panorama do olhar que investiga a
educação pública. Métodos, políticas e maneiras parecem se repetir
154
indefinidamente. Entretanto, observando a escola como território
fenomenológico da educação, nos deparamos com a vertiginosa
multiplicidade dos acontecimentos que a constituem.
A escola pública estudada - o singular C.E.M.S.- é feita, como tenho
defendido, de múltiplas imagens que transbordam para além das
conceituações utilizadas nessa tese. Pois, como já foi sublinhada, a escolha
de cinco títulos não pretendeu ir além de uma criação conceitual
referenciada numa das muitas versões que certas propostas da filosofia
criaram para tratar da imaginação e de seus produtos, as imagens. Como
penso ter já explicitado, a escolha dessas cinco possibilidades de atuação
da imaginação deveu-se mais a uma tomada de caminho, do que a uma
crença na verdade definitiva de um porto conceitual seguro. As cinco
categorias que se articulam, se mimetizam e falam da mesma multiplicidade,
prometem apenas inquietação e não certezas, a inquietante incerteza como
fertilizante para outras apreciações da escola e de seu acontecimento.
A imagem da escola que reproduz as diagramações sociais e consolida suas
desigualdades e indiferenças também é a imagem que repete o descontrole da
máquina controladora. É a imagem de reações alquímicas inusitadas, de
insurgências imprevistas e não previsíveis, é o curto-circuito das correntes da
lógica linear, da conseqüência maquínica e da produção seriada. É a
singularidade emergindo da esteira da fabricação da igualdade e da mesmice
desfuturadas. É a subversão do banal que, em sua performance cotidiana,
quando menos se espera, sorrateiro, pressiona o detonador e estilhaça o metrô
da repetição.
155
Perceber e aproveitar essas potencialidades vinculadas aos pequenos eventos
cotidianos permitirá evitar, na aventura de fruir o que produz a escola e nas
formas como esta é produzida, ou seja, na aventura da sua apreensão, um dos
perigos que, segundo Corazza (2002), rondam a teoria educacional, que é a
perda da capacidade de criar suas próprias idéias.
Marcelo, a caminho do Centro Cultural dos Correios, comenta seu desejo por
um boné que custaria quarenta e cinco reais. Seus colegas são de opinião que
pagar essa quantia por um boné é um absurdo. Pergunto por que esse caro
boné lhe é tão caro. Responde-me que o tal boné é muito “maneiro”, e que usá-
lo ajudará a compor sua aparência e isso é importante. Pergunto porque a
aparência é importante.
“Por que mostra como a gente é. Quem é a gente!”.
São inúmeras as imagens que fazem a escola ser o que é. Contudo, nenhuma
delas veicula todos os seus sentidos. Marcelo, que cria a todo o momento a
sua própria forma de acontecer no mundo, é uma das imagens que sintetiza a
escola, embora não esgote todos os seus sentidos. Esse jovem, como
protagonista do teatro da educação, muito tem a oferecer para a sua elucidação.
Seja por meio da sua forma de agir no coletivo da escola, seja no que apresenta
como característica pessoal, sua fala expõe traços da complexidade do universo
mimetizado da escola. Imagens da reprodução como resultado da criação
cotidiana da escola investigada.
“E quem é você, Marcelo?” Pergunta-lhe Katiana. No momento em que o tema
da conversa é diretamente ligado ao universo juvenil e demanda as opiniões
pessoais dos estudantes, o encontro entre professor e alunos conquista a
agradável e envolvente participação geral. Marcelo responde afirmando que é
156
um cara normal, mas gosta de roupas de playboy e me explica que playboy é
quase a mesma coisa que mauricinho. Mauricinho é o rapaz que gosta de
roupas de marcas caras, é quem procura andar na moda, geralmente filho da
classe média. Nas palavras de Marcelo, “quem tem grana”.
Explicando a participação dessa tribo na sua “identidade” declara que tem uma
bermuda que custou mais de cem reais. O que significa um gasto impensável
para a maioria de seus colegas de turma. Marcelo amenizando sua imagem
consumista, sua diferença, explica que foi um presente da mãe e por ter sido
muito caro seria o único presente que ganharia até o fim do ano. E comenta:
gosto tanto da minha bermuda que pra mim é como se ela fosse uma filha...”.
O entendimento do rapaz sobre a imagem de seu próprio corpo simbolizava,
neste depoimento, a ruptura das relações esperadas na representação do afeto
por um objeto e inaugurava a metáfora do parentesco com um objeto
inanimado para descrever a potência simbólica da imagem.
Gosto dela como uma filha, frase comumente repetida em relação a alguma
pessoa querida, é recriada para descrever o apreço à imagem que se deseja
aparentar, ou, acima dessa explicação um tanto surrada, o apreço ao gozo que
a satisfação de produzir sua aparência como parte do acontecimento da própria
vida pode alcançar.
Insisti, perguntando o que Marcelo pretendia mostrar que era, já que havia
afirmado que as coisas que usamos mostram quem somos. Marcelo me
responde com uma pergunta: “e você professor o que quer mostrar usando
as roupas que usa?”.
157
Paro para pensar. E logo imagino que a própria educação poderia ser
interrogada com a mesma questão. O que pretendemos, educadores e escola,
mostrar com as imagens que formulamos?
O que as nossas imagens exibem, com seus gastos e investimentos, é a
inevitável construção de sentidos, sôfrega insistência que, açodada por uma
atualidade, jamais prevista, claudica apoiada na memória de sentidos
ancestrais. Atento a Ruiz (2004:60) quando define que “O sentido é sempre
uma forma de significar o mundo, um modo de simbolizar a realidade. Ele é
criado sempre a partir do desejo”, concluo ser preciso reconhecer que os
sentidos que denomino ancestrais são as formulações antepassadas, quase
míticas, e de cujas consistências iniciais nos sobra, apenas, a imagem de uma
educação que teria sido conseqüente e imprescindível. Imagem de outros
desejos que rejeita qualquer cumplicidade com os processos que geraram o
158
atual estado das artes da escola pública, por sua vez imagem rebatida de uma
sociedade em sofrimento agudo. Entretanto, mesmo sendo essas imagens
ingredientes, imprescindíveis, para a reedição da educação contemporânea, é
fundamental atualizar o desejo.
Em outra ocasião, Marcelo e seus colegas de turma, retomando a conversa
sobre as formas de se vestir e de aparecer nos seus mundos e nos mundos
que não são seus, falaram das realidades que os cercam, das maneiras que
inventam para conviver com as intempéries sociais, táticas para suportar as
abordagens, sempre violentas, da polícia e as táticas de convívio com os
riscos, cada vez mais agudizados, que envolvem a juventude da periferia social
do Rio de Janeiro. Essas conversas mostram, mais uma vez, que a tribo, entre
os jovens, além de ter fronteiras frouxas, tem seus territórios extremamente
flexíveis no que concerne à relação afetiva entre integrantes de diferentes
tribos e que as etiquetações identitárias têm alcance superficial. Marcelo usa
roupas de playboy, mas playboy não mora em comunidades como a em que
ele e seus colegas de turma moram. Os múltiplos Marcelos acontecem pela
vida, assim como freqüentam os bailes freqüentados por jovens de aparência
semelhante e pertencimentos tão múltiplos quanto os seus. Pois, o que se
entende como tribo representa, sobretudo, abrigos e pertencimentos
provisórios, sempre de acordo com as circunstâncias e nesse trânsito, também,
159
significa maneiras de integração e produção de vínculos sociais. Como explica
Pais (2004:17):
...entre as chamadas tribos urbanas a subversão está também
estreitamente ligada à conversão. Por outras palavras, as tribos geram um
sentimento de pertença que assegura marcos conviviais que são garante
de afirmações identitárias. Por isso, nas chamadas tribos encontramos
manifestações de resistência à adversidade, mas também vínculos de
sociabilidade e de integração social.
É possível perceber as conversas e as maneiras de viver desses jovens como
narrativas que nos oferecem um manancial de imagens em que atravessa e, no
qual navega, o cotidiano escolar. Torrente imagética, quase sempre invisível
para a máquina puramente reprodutora que procede, no que lhe tem cabido
proceder, a produção do cotidiano escolar. Entretanto, essas imagens
corporificadas nos estudantes evidenciam a exigência de outras maneiras de
imaginar a educação e a própria escola. Evidenciam que o poder imaginário,
como potência anterior à própria razão, é instituidor do real e, portanto depende
do jogo estético de se criar o que se quer ser, o que se quer transparecer e
acontecer. Por meio da imaginação é possível aproveitar a plasticidade das
relações coletivas e, destas, fazer emergir o acontecimento de conversas
criadoras, enfim, de entendimentos e acordos que provoquem gestos
formuladores de realidades mais favoráveis à reprodução da escola como
invenção poética, como mimese fundamental à criação da vida.
160
Afinal, a mimese social perpetuada pelos jovens, mesmo em sua fugacidade
que é sua ação tática, parece ter como elemento norteador o que Maffesoli
(2000:18) aponta como “paradigma estético”, ou seja, o vivenciar e sentir em
comum. E Pais (Idem:18) auxilia a compreensão dessa idéia, esclarecendo que
é nas formas de sociabilidade que devemos pensar quando falamos de tribos
urbanas, sociabilidades que se orientam por normas auto-referenciais de
natureza estética e ética e se assentam na produção de vínculos identitários.
Talvez nas pequenas ocorrências cotidianas, nesse caso, as falas e
entendimentos dos jovens, estejam os indícios do que Santos (2000:76)
postula como racionalidade estético-expressiva, outras formas de leitura do
mundo, que não são novas, mas apenas negligenciadas maneiras de dar conta
de sua reprodução produtiva.
Os indícios mais flagrantes dessa racionalidade não estão somente no discurso
ou nas imagens que estes formulam, mas nas visualidades, nas produções
pessoais, nos gestos que invadem a cena escolar. Como explicitam as
161
fotografias dos jovens estudantes, auto-retratos, auto-imagens dos produtores
e produtos da escola como reprodução.
162
A escola produzida pela imaginação evocadora
A imaginação evocadora presentifica
o ausente por meio de imagens
com forte tonalidade afetiva.
Marilena Chauí
25
... a evocação é uma chamada à imaginação de uma realidade existente,
ou seja, é uma reprodução da realidade
que não a traduz necessariamente,
que a pode trair quando se traz à lembrança.
José Machado Pais
26
"Quien nombra, llama. Y alguien acude, sin cita previa, sin explicaciones, al
lugar donde su nombre, dicho o pensado, lo está llamando.
Cuando eso ocurre, uno tiene el derecho de creer que nadie se va del todo
mientras no muera la palabra que llamando, llameando, lo trae"
(Ventana sobre la memoria (III) - Eduardo Galeano)
27
25
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia.São Paulo, SP: Ática, 1997.
26
PAIS, José Machado e BLASS, Leila Maria da Silva. Tribos urbanas: produção artística e
identidades. São Paulo: Annablume, 2004.
27
GALEANO Eduardo. Las palabras andantes. Chile: Catálogos, 1996;
163
Segundo Pais (2003:17), na introdução do livro “Tribos urbanas: produção
artística e identidades”, no que tange ao campo das evocações, poderia ser
interessante, mas não seria suficiente, evocar as figuras de um outro tempo,
como ritos, vivências comuns, agregados, etc. O essencial seria explicitar as
dessemelhanças que estão na base de uma analogia, pois, na leitura das
evocações, qualquer analogia estabelecerá uma relação entre objetos
diferentes.
Este texto se ocupará das imagens resultantes dos processos imaginários que
têm a evocação como sua base de projeção, entretanto, as imagens
selecionadas são aquelas nas quais parecem resplandecer os resíduos e
resquícios do jogo semelhança e dessemelhança, movimento entre o que se
evoca e o que é produzido com a evocação.
164
A escola em seu cotidiano reluz e atua nas imagens que produz. A escola, sob
esta perspectiva, é também uma imagem múltipla e sem fundo, horizonte de
muitos planos nos quais são refletidas as produções da imaginação de seus
protagonistas. Esse manancial imagético e, ao mesmo tempo, imaginal é uma
das importantes fontes da matéria que dá corpo às evocações cotidianas,
evocações que concorrem junto aos outros processos da imaginação para o
acontecimento da escola.
Muitas das imagens da ação evocativa se configuram nas movimentações dos
corpos e dos pensamentos dos sujeitos da escola. A ação da imaginação
fortalece os fios e flexibiliza as conexões das redes subjetivas na dinâmica das
redes coletivas. Pois, a evocação, aqui, é compreendida como performance
dos sentimentos de cada protagonista da cena escolar em múltiplos encontros
com os outros, que devido ao caráter coletivo que é primordial à significação da
escola, aponta para o estilhaçamento das fronteiras do uno e privado, para
fortalecer o múltiplo e o inédito. Assim, cada evocação é deflagrada em uma
espécie de dança da memória afetiva que só cintila na medida que compõe a
coreografia acolhedora dos coletivos, emaranhado do mesmo com o outro.
A evocação de experiências, de sentidos e ou de entidades dá substância às
ações que ocupam o múltiplo e movimentado cenário escolar. As pequenas
atitudes e os micros acontecimentos são recheados de recuperações simbólicas.
Maffesoli (2001:107) defende que “a vida humilde e seus trabalhos simples
somente podem ser vividos porque existe uma força mágica, poética que os
alimenta”. É justamente a dimensão poética da vida cotidiana escolar, sob a
perspectiva da imaginação evocadora, que interessa ressaltar para melhor
elucidar o panorama imaginal da educação, uma das intenções desse trabalho.
165
Para dar o colorido necessário à argumentação da evocação como
agenciamento gerador da vida nas escolas recorro a mais uma narrativa que
tentará registrar uma das experiências da pesquisa, uma das muitas
experiências propiciadas pelas práticas do cotidiano.
Sexo, amor e traição
Uma quarta-feira, sete horas da manhã. Junto com dois estagiários entro na
sala da turma 45. Apesar do horário, quase todos os alunos estão presentes.
Com a preocupação de não parecer auto-elogioso, devo registrar que as
minhas aulas são geralmente bem recebidas pelos estudantes, talvez pela
disciplina, talvez pela amizade que nos envolve, talvez por tudo isso junto.
Evocar as lembranças recentes ou antigas, de certa maneira, é um dos
alimentos que nutrem a prática pedagógica. Assim, as minhas lembranças são,
também, exemplos da ação evocativa que ajuda a criar as imagens com as
166
quais trabalho nesse texto e que, por outro lado, representam também a
energia que necessito para minha atuação como professor. Necessidade essa,
bem exemplificada por uma professora, colega de trabalho na mesma escola
“... é preciso lembrar das coisas boas dessa profissão para nos dar estímulo
para continuar!”
Voltando à quarta-feira, a freqüente presença de estagiários é, provavelmente,
um dos fatores que favorecem a amenidade que geralmente dá o clima às
minhas aulas. Para aquele dia, eu havia programado assistirmos à continuação
de um filme que havíamos começado a assistir na aula anterior. Entretanto, fui
avisado que a diretora da escola precisaria ocupar a sala de vídeo, uma das
maiores salas da escola, para uma reunião emergencial. Assim, tivemos que
postergar o fim do nosso filme.
Comuniquei à turma a mudança da programação e, em tom de brincadeira,
comentei com os estagiários que não sabia o que fazer visto que meu
planejamento sofrera uma mudança repentina. Comentei que aquela
intercorrência era uma boa oportunidade de aprendizagem e que poderiam me
substituir e darem a aula. Os estudantes, atentos à brincadeira, riram da recusa
dos estagiários, pois estes argumentaram não saber o que fazer sem
planejamento prévio.
Dayvison, um dos alunos mais extrovertidos, em divertida provocação, se
ofereceu para dar a aula. Diante da minha pronta aceitação não se intimidou e
aceitou a tarefa. Contudo, impôs uma condição; que o conteúdo da aula
deveria ser da sua livre escolha. Fechado. “É nós!”
Quando retomo a essa experiência para registrá-la penso na imagem de
subversão em que se configurou a aula e a associo às possibilidades da
167
“educação menor” que Gallo (2003:78) descreve como aquela que está no
âmbito da micropolítica, na sala de aula, expressa nas ações cotidianas de
cada um. A sala de aula, territorializada como lugar próprio da fabulada ação
maquínica do ensinar-aprender e da sedimentada diagramação aluno-
professor, é subitamente desterritorializada pelo agenciamento das micro-
relações cotidianas, por meio das quais se pode instaurar um mundo dentro do
mundo, cavando trincheiras de desejo (Op. cit).
Dayvison quis dar aula. Eu desejava que ele fizesse o que desejava fazer.
Lembro que naquele momento eu evocava a lembrança de uma escola que
jamais permitira esse tipo de subversão, essa brecha para o improviso
deslimitado, entretanto, evocada pela minha memória, preservara a
possibilidade de realizá-la. Na memória, a escola impositiva trazia um curioso
espelhamento no qual sua imagem afrouxava seus próprios limites e sugeria
possibilidades. A escola naquele entreato era a imagem evocada de uma
escola em devir, fora do tempo e fora do eixo da linearidade imaginal que
estrutura quase sempre a sua imagem convencional.
O aluno daria aula e o professor a assistiria. Pensei num lampejo: e se em
todas as outras salas estivesse acontecendo a mesma coisa?
Dayvison se dirige ao quadro e pergunta se alguém poderia ajudá-lo. Fernando
prontamente se oferece e também se dirige ao quadro. O inusitado se
ampliava. Dois professores dariam aula ao mesmo tempo, dois alunos eram os
professores. O que simulariam estaria carregado de evocações e, assim,
formulavam mais uma imagem daquela escola. O restante da turma aguardava,
curioso, o desdobramento da cena. Quanto a mim e aos estagiários, tomamos
assento junto aos demais alunos, pois conforme determinaram os professores,
168
nós seriamos, apenas, como os demais alunos. Junto à novidade da criação de
uma diagramação avessa, restava a evocação de imagens cristalizadas, como
a divisão de papéis e, nesta divisão, a rígida marcação das atribuições de
cada um dos personagens daquele teatro, daquela escola imaginária.
Impressionou-me o contraste entre a transgressão e a tradição, pois os
falsos professores compunham suas personagens com todo o rigor que
pareciam imaginar lhes caber.
Dayvison anunciou que o tema da aula seria “sexo, amor e traição” e dividiu o
quadro em três áreas verticais, no alto de cada uma escreveu um dos três
termos. Pediu, então, que cada um dos estudantes dissesse à qual das
categorias pertencia. Protestei dizendo que essas categorias poderiam não
representar a todos e que a proposta, além de provocar certo constrangimento,
era um pouco absurda. Fernando foi inflexível e, interrompendo minha
argumentação, replicou que se eu não atendesse às determinações dos
professores deveria deixar a sala. Literalmente, ameaçou os que discordassem
da proposta de expulsão.
Enquanto a turma se divertia, eu pensava nas configurações dadas que
referenciavam a imagem que os rapazes produziam. Tentava elucidar o
emaranhado de relações que era evocado para constituir a mimese da aula.
Uma aula na qual o professor professava a palavra final que irrealizava
qualquer contra-argumentação. Sem dúvida, uma das imagens mais freqüentes
da escola fabulada, aquela que se configura na certeza de que é possível se
reproduzir na rigidez dos papéis permanentes de seus personagens. Por outro
lado, uma outra escola era evocada, na qual a ação do professor se projetava
169
ao encontro dos interesses dos seus alunos, pois a turma acolheu com prazer
o “estudo” proposto: sexo, amor e traição.
Quando lhes era indagada a categoria na qual se encaixavam, todas as
meninas declararam pertencerem ao amor. Contudo, cabia aos “professores” a
palavra final e, de acordo com as suas opiniões, decidiam em que quadro
escreveriam os nomes das alunas. Já os rapazes não se importavam, e até
reivindicavam ter seus nomes associados ao sexo e à traição.
Diante do desenho no quadro, onde os espaços foram delimitados para separar
em celas simbólicas, o inseparável, visto que não há impermeabilidade nem
fronteiras entre o sexo, o amor e a traição, intrigava-me a potência indicial
daquele mapa no qual o enredado era desfibrado. Mas a aula separava o
inseparável. Afinal, a escolarização procede dessa maneira, pois um dos seus
alicerces é a ordenação disciplinar com a divisão dos saberes em gavetinhas
(Gallo,,2001:23) cuidadosamente separadas. Um expressivo exemplo da
separação do inseparável. A disciplinarização dos currículos escolares não
reflete apenas a compartimentação dos saberes, conforme Gallo, nela está
embutida também a questão do poder. A disciplinarização e a questão do
poder, dois problemas bem flagrantes na aula dos rapazes. A disciplinarização
dos saberes recebeu, naquele momento, uma das críticas mais certeiras com
que tive contato, e uma das mais divertidas, quanto ao poder. Este era
problematizado e seus limites eram questionados, bem como, seu exercício e
as tensões que provocava não eram disfarçados, nem sublimados, na medida
em que o teatro contava com a interação livre de todos os atores.
A aula de Deyvison e de Fernando desnudava a escola, expunha suas
intimidades e suas traições, contudo não a privava do sentimento, do amor que
170
a fazia existir. Mesmo que refletido numa imagem fugaz de uma aula, que,
como todas as aulas, não se repetiria.
A aula absurda seguia seu ritmo em conformidade com sua proposta inusitada,
os assuntos abordados, a despeito de serem intimamente ligados, eram
tratados como assuntos distintos.
Os “professores”, depois de terem cadastrado todos os alunos presentes,
inclusive eu, exigiram que cada um explicasse seu pertencimento a esta ou
àquela categoria. O que representava mais uma das dramáticas imposições
do sistema escolar que, a despeito da sua permanente atualização,
sobretudo via as práticas cotidianas, eram evocadas pela improvisação dos
professores improvisados.
Muito embora a evocação no sentido proposto neste texto refira-se à
recuperação de imagens de valor afetivo, eu constatava que a escola evocada,
para constituir a escola presente, trazia características contrastantes. Como se
a escola imemorial que buscassem, para que desta referência fosse produzida
a sua atualização, trouxesse suas mazelas e seqüelas que devessem ser
purgadas na reinvenção da sua própria configuração. Assim, era necessário
enfrentar suas imposições e rigores, era necessário vivenciar, no jogo liberto da
brincadeira, suas faces mais coercitivas para que a escola, na enunciação dos
alunos, pudesse acontecer.
O teatro de Dayvison e Fernando, pura manifestação estética e criação artística
na aula de Artes, ensinava ao professor e aos futuros professores, - os
estagiários, - a arte de pensar a escola e de vivê-la como agentes ativos de sua
encarnação cotidiana. Com eles aprendíamos que o cotidiano é o
imprescindível laboratório das experimentações emancipatórias, em outros
171
termos, é o espaço irredutível das linhas de fuga de suas próprias
imposições, campo permanentemente criado para as operações táticas de
seus praticantes.
Cada um dos alunos e alunas defendeu seu pertencimento a cada uma
das categorias propostas. Cada um falou de si e do que pensavam a
respeito daqueles assuntos tão instigantes, ou seja, o sexo, o amor e a
traição.
A maior parte das meninas, com o viés romântico que lhes é peculiar na nossa
cultura machista, defendiam a fidelidade e a amizade amalgamadas com o
amor. Os rapazes não avançavam muito na defesa do que lhes parece ser
exigido, ou seja, uma forma de masculinidade heróica, acima da razoabilidade.
Ser macho, naquele meio juvenil indiciado nas brincadeiras e frases de muitos
sentidos, parece significar a evocação de uma liberdade ancestral, na qual o
ser masculino predominaria nas organizações sociais e desfrutaria do privilégio
de ter muitas parceiras em detrimento do livre trânsito afetivo e sexual das
últimas. Contudo, diante da defesa franca e destemida, divertidamente
apresentada por outras tantas meninas, a reivindicação do respeito à liberdade
de ter muitos namorados e de desfrutar do prazer e das benesses, até então
exclusivas dos rapazes, estes acabavam por se mostrar menos hábeis na
defesa do que, sob certo aspecto, era configurado como natural e que, naquela
aula, desbotava como real.
A aula evocada pela memória afetiva dos alunos era a imagem que tínhamos a
oportunidade de fruir. A aula subversiva nada mais era que um indício do
deslocamento da forma hegemônica de compreender o mundo da escola e nela
perceber a veiculação de outras possibilidades de tomar o mundo. Estávamos em
172
uma aula, em um terreno convencional de busca de conhecimento. Segundo
Boaventura de Sousa Santos (1987), todo conhecimento é autoconhecimento, e o
que os jovens propunham era, por meio do jogo, da brincadeira, e das suas
metáforas peculiares, investigar suas próprias relações com a vida. Dedicavam-se,
no que podemos inferir, ao conhecimento de suas próprias vidas, por meio das
brincadeiras que tomam expressivo espaço de seus cotidianos, sobretudo quando a
regulação não os impede de tais práticas. Uma imagem estética da dignidade do
efêmero.
A ocupação de um espaço com práticas outras que divergem fortemente da
vocação que foi instituída para a escola, como ocorreu no episódio narrado,
apresenta o espaço da educação formal, irrefutavelmente coletivizado, como
campo propício ao lançamento de alternativas de seu uso e iniciativas outras
que venham a ter maior sintonia com os praticantes desses espaços. Apesar
da aula buscar seu ritmo e sua performance na evocação de uma aula
atemporal, espécie de aula emblemática, o que presenciávamos era a tensão
entre a regulação das práticas regulatórias de determinado contexto social,
neste caso o lugar próprio da educação formal, e as sempre presentes,
ocultadas ou não, possibilidades de ações emancipatórias.
Santos (2000:258), dando relevo à tensão entre a regulação e a emancipação
que, segundo ele, marcam os tempos atuais de mudanças de paradigma, visto
que nos processos sociais são responsáveis pela construção dos poderes, do
direito e do próprio conhecimento, sublinha a necessidade de ser observada a
não-ação que subjaz essas produções, ou seja, os processos sociais que
suprimem formas de ação declarando-as impossíveis ou impróprias, imorais ou
ilegais, utópicas ou loucas. Pois,
173
na prática social, a dialética da regulação e da emancipação é exercida em
núcleos de ação e não-ação, conflitos relativos à impossibilidade, a
propriedade, à moralidade, á legalidade, ao realismo e à normalidade.
A escola evocada está nas imagens resultantes do desejo de recuperação de uma
instituição que marcou afetivamente seus protagonistas, contudo, a sua atualização,
que também significa o confronto com as outras imagens com as quais entra em
jogo, acontece na tensão entre o real disponível e insatisfatório e o que é possível
aventar, ou mesmo criar, em consonância com os desejos de seus praticantes.
Sob essa perspectiva, a escola cotidianamente criada é fruto dos afetos que
proporcionou num espaço e tempo fora dos limites dados pela racionalidade. A
escola que Dayvison e Fernando representavam em sua aula e a escola que
eu evocava para me servir de referência para compreender, nos limites da
ação da compreensão, a aula dos rapazes, pareciam emergir do mesmo
espaço e da mesma temporalidade, o espaçotempo da evocação.
Seria essa a plataforma a partir da qual projetávamos nossas ações de
apropriação do mundo para produzir o acontecimento daquela quarta-feira.
Uma aula que desconstruía algumas fronteiras imaginárias, tão presentes nas
categorizações que permeiam o ensino impondo a decifração das relações
primordiais entre o mesmo e o outro, via o amor o sexo e a traição.
Aparentemente diferentes imagens da mesma coisa, assim como a escola se
contradiz para se realizar em suas plenitude e intensidade cotidianas.
174
Uma outra evocação
175
fabulada e faz sobrar o vazio a ser ocupado pela criação de uma outra
realidade que sei ser urgente mais não sei fazer.
..Sabe, professor, eu não gosto de assistir as aulas. São muito chatas. Mas
eu também não gosto, nem consigo ficar em casa. Eu gosto muito da
escola. A escola é muito legal, ela é enorme. Sabe, eu gosto de escolas
grandes. Não conseguiria estudar em uma escola pequena. Escola tem
que ser assim como essa, muito grande (Greicy),
Olho ao redor e vejo os limites do pátio. De um lado o prédio central, do outro
a quadra. Entre ambos, as figueiras quase centenárias. O retângulo do pátio
tem, em seus outros dois lados, o prédio da cozinha e refeitório e, oposto a
este, o muro com o portão que dá para a ladeira. Penso que não é tão grande
assim. A imagem que naquele momento tenho do pátio não apresenta a
vastidão da descrição de Greicy. Tento entender o que ela quer me dizer, a que
imensidão ou grandeza se refere.
O olhar de Greicy percorre os limites físicos do pátio mais rápido que o meu e
antes que eu comente qualquer coisa, argumenta:
É que eu me sinto bem aqui. Nem precisa ser muito grande... a aula é que
é chata. Eu gosto muito da minha primeira escola, fiquei lá até a quarta
série (do ensino fundamental) minha mãe também estudou lá, ela também
adora aquela escola... depois eu fui para outra, que também era grande,
mas não era como a primeira, nem essa aqui se compara...
Greicy se referia à grandeza da imagem de sua autoria, evocava uma escola
que pertencia a ela e à sua mãe; evocava uma das qualidades do objeto de
seu afeto, uma escola imaginária que desenhara durante sua ainda pequena
existência partilhada com a mãe. Essa imagem era fundamental para a
realização da escola que naquele momento partilhávamos.
176
Greicy sempre chega atrasada nas aulas e não gosta de aulas teóricas, não
gosta de aulas expositivas, mas gosta de desenhar e colorir.
Ai, professor, não gosto de blá blá blá! Vamos desenhar hoje?
Com seu corpo pequeno e ágil, sempre atravessa a sala sem que eu perceba;
quando a percebo ela faz com que eu acredite que estava na sala desde o
começo da aula, e eu sempre acredito.
O encontro e as formas do encontro dos alunos e alunas do C.E.M.S. parecem
ser sempre um grande evento. A potência estética dos corpos e das maneiras
desses jovens agirem inscreve a urgência de acontecer diariamente, como se
dissessem com muita clareza que o sentido maior de estarem nos espaços
escolares está à milhas de distância do que lhes é atribuído pelo regime e
rotinas escolares oficiais. Nas suas formas de ocupar os espaços escolares há
o entendimento, quase sempre discreto, de que a escola fabulada como ponte
segura para um futuro promissor é uma imagem pouco significativa, pouco
convincente. Mas isso não enfraquece nem abala a importância de estar na
escola. Só que a escola evocada na produção desse ‘estar’ nela é uma escola
que emerge na irrealização dos professores, dos regimes disciplinares e das
diversas formas de controle. Quando esses elementos não se mostram nada
além de obstáculos à produção da escola que convém às práticas do prazer de
existir. Obstáculos que são ludicamente superados para que o espaço e o
tempo escolar sejam aproveitados, ainda que sem a durabilidade temporal, na
intensidade do acontecimento de seus encontros, de suas experiências
coletivas de amizade, de camaradagem, de namoro, de futebol e de todas
essas banalidades juvenis que a miopia adulta pouco se apercebe e, no
entanto, alicerçam a fortaleza da vida desses jovens que sabem que o termo
177
futuro não tem significação idêntica para todos e que, não raro, a vida se reduz
à busca da chance fugaz da caça que não se guarda (Certeau, 1994).
Assim, a rapaziada aponta a premência de novos sentidos para a escola que
evocam, ao estar na escola concreta na qual nos encontramos. Os jovens
liquefazem, contudo, essa concretude, pois, atravessam imagens, soldam
luzes e misturam cores. É um cabelo “chapado” que faz a novidade do dia,
ou amplia essa novidade com um novo corte ou colorido de uma ou outra
cabeça. Camisas coloridas de marcas importantes aparecem sob a camisa
do uniforme, óculos e relógios da moda encontram tênis transados... uns
ganham ou compram cópias desses artigos, fartamente oferecidos nos
mercados populares, como o da rua Uruguaiana, por onde passamos a
caminho dos ‘centros culturais’. Outros usam os caríssimos originais. Uns
nunca trazem esses signos e mimetizam-se sob o uniforme, mas, apenas
por momentos. Logo resplandecem singulares, múltiplos, num pequeno
olhar, em um pequeno gesto de carinho com o colega, a beleza de um
p42 Tc9ompistapeculoo Outros. Om
178
descontrolados pelos professores cansados, pelos professores desatentos, e,
sobretudo, nas aulas dos professores curiosos, dos professores encantados que
só querem conversar.
Essas práticas malandras, nas quais o sentir do pesquisador que, no seu devir,
mais é fruidor daquilo que investigaria e transita como o flâneur, encaram
questões que açambarcam muito mais que a miudeza cotidiana. Cada aula
achada chata, cada saudade de algo nunca vivido, cada evocação do sexo, do
amor ou da traição, cada olhar fugidio, cada gesto banal, cada abraço sensual
e cada desejo semiocultado fala da trajetória do mundão que a fabulação
sobrepõe à escola. Os jovens evocam, nas imagens que fruo, a condição de
intensa cumplicidade afetiva como forma e movimento, imprescindíveis, de
viver a clausura e as outras imposições não favoráveis às suas vidas que, por
sua vez, também produzem a escola.
As pequenas banalidades diárias dos jovens, banalidades que tecem, às vezes
cerzem, às vezes remendam ou até mesmo esburacam o cotidiano da escola,
remetem, crucialmente, à grandeza da humanidade que à educação imaginada
cabe defender.
Maffesoli (2005: 75) acerca da morte e contradição, afirma que:
É certo que a diferença tem como situação limite a morte. A alteridade é a
negação de si. Mas a analogia cósmica nos ensina, mesmo neste caso, que
é possível negociar com a finitude e o que fazer para lisonjeá-la. De certa
forma, o orgiasmo não tem outro objetivo.
Aproveito a radicalidade desse pensamento para defender a idéia de que as
ações que produzem as imagens da escola evocada lidam, a todo tempo, com
a finitude presente nos limites estabelecidos pelo aparato institucional. Lidam,
também, com os fundamentos das diagramações sociais nas práticas
179
cotidianas e, nestas, revertem as inexpugnabilidades da subjetividade para
procederem ao orgiasmo, como acontecimento coletivo, tão caro à saúde
societal. O orgiasmo seria o concerto de formulações e atitudes que dinamizam
a existência como criação crucialmente estética.
Maffesoli (Idem:17) defende que a domesticação dos costumes, ou seja a
predominância da regulação, fez esquecer que a efervescência, comumente
reduzida ao exagero, à transgressão ou quebra dos limites normativos, é
necessária à qualquer estruturação social. Nesse sentido, aventa a
possibilidade de uma estética do desenfreamento, que não seria exclusividade
dos marginais ou dos jovens ainda não integrados, mas uma potência de
realização da vida que remete ao que o autor denomina “parte da sombra”, que
não seria um lado oposto à normalidade ou ao que é aceitável, mas uma
dimensão da existência humana que sempre ronda a sociedade e cada um de
seus membros. O conceito de estética é utilizado em toda sua amplitude para
designar a sensação, a sensualidade e as potencialidades da percepção e
fruição. Seria uma das formas de se compreender o orgiasmo como uma
designação do desenfreamento, por sua vez elemento integrante do todo
complexo que são o corpo coletivo e o corpo individual. Instâncias que, nos
engendramentos do cotidiano, esfacelam suas fronteiras e, com suas múltiplas
interações, instauram as linhas de fuga das regulações via as invenções de
novas possibilidades da atuação da vida em comum.
A invenção cotidiana da escola traz em si a arqueocriação da vida coletiva.
Evoca, em seu dia-a-dia, a lembrança do jogo de permanência da humanidade
conduzido pelo encontro coletivo concertado. Observar o cotidiano nas suas
micro-performances permite perceber que não seria apenas liberando-se das
180
coerções políticas e econômicas, ou só superando as muitas formas de
alienação que os coletivos de praticantes afirmariam a sua existência. Talvez o
acontecimento da vida coletiva se dê exatamente na vivência, no dia-a-dia do
contraste tensional entre o racional e o afetivo. No jogo do excesso, na
circulação do sexo e na troca das palavras, sob as diversas máscaras da
passividade e do conformismo, nas micro-interações, nas transgressões e nos
acatamentos circularia a potência estética do orgiasmo.
Essas e outras imagens apontadas como resultantes dos agenciamentos da
imaginação, imagens nem sempre evidentes nem franqueadas às visões
distanciadas, cientificistas ou totalizantes, constituem o que Maffesoli
(2005: 87) chama de poética cotidiana. Que seria fazer da vida de cada um
uma obra de arte. E esse ato, desbotado como atributo exclusivo da
vanguarda artística ou de qualquer outra instância outorgada, que é
estetizar a vida, revela-se no cotidiano como uma prática popular que,
através de modulações diversas como se produzir, comer, conversar, etc.,
dá a solidez necessária às tramas sociais.
A escola como produto da imaginação evocadora é um sem número de
fragmentos, de pequenos gestos e de micros e macros contrastes, é o corpo de
cada estudante e o corpo do encontro entre cada um e seus companheiros. É,
também, a trama da rede de imagens que cada um dos praticantes do
cotidiano escolar carrega e envolve em suas ações de criação da estética
social. É, portanto, a obra de arte que fulgura nas satisfações, nos prazeres e
nos percalços que enfrentamos para imaginar a educação.
181
A escola produzida pela imaginação criadora, pesquisa artística
ou considerações finais
A imaginação criadora inventa ou cria o novo nas artes,
nas ciências, nas técnicas e na filosofia.
Aqui combinam-se elementos afetivos, intelectuais e culturais
que preparam as condições para que algo novo seja criado
e que só existia, primeiro, como imagem prospectiva
ou como uma possibilidade aberta.
A imaginação criadora pede auxílio à percepção,
à memória, às idéias existentes,
à imaginação reprodutora e evocadora
para cumprir-se como criação ou invenção.
Marilena Chauí
28
A expressão de uma Pesquisa Artística,
Não determinada pela representação, alegoria, simbolismo,iconografia, realiza-se através de
imagens e signos que fazem dela uma experimentação estética. Assim operada como uma
obra de arte, ela é um compósito de afectos e perceptos, que são dois tipos básicos de
sensação e que não devem ser confundidos com estados subjetivos, nem com sensibilidade,
porque estão nas próprias coisas pesquisadas, não nos pesquisadores. Os afectos vão para
além dos pesquisadores- os quais passam pelos afectos, e não são os afectos que passam
pelos pesquisadores – e são impessoais, inumanos até; os perceptos não são modos de
representar a ação pedagógica, por exemplo, perante um olho, mas paisagens pedagógicas,
nas quais os pesquisadores-artistas devem se perder para que possam ver com olhos-artistas
Tadeu, Corazza e Zordan
29
28
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997.
29
TADEU, Tomáz, CORAZZA, Sandra e ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte:
Autentica, 2004.
182
O termo criação detona uma formidável explosão de significações, na qual a
imaginação inflama seu decorrente vasto panorama de perspectivas.
Aplicada à escola, a criação é, sobretudo, um dos processos imaginativos do
qual resultam suas mais significativas imagens. A própria escola como
resultante da imaginação criadora é, a um só tempo, o universo de imagens
que a perpetua e a reinventa cotidianamente.
A escola produto da imaginação criadora é cada uma e todas as imagens que
configuram sua existência e agenciam os seus devires. Contudo, essa
afirmação, longe de pretender esgotar a significação da escola apenas como
criação imagética, deseja explicitar a centralidade da ação criadora e suas
potencialidades na sua invenção cotidiana. A escola resultante da
imaginação/criação denota, em seu corpo múltiplo, a tonicidade do fazer/criar
humanos já presentes nas arqueocivilizações, ou seja, a inexorável
necessidade humana de criar as melhores condições possíveis para o
florescimento da vida em comum. Em outros termos, trata-se da inevitável obra
de articular o jogo social com a invenção de conexões entre as diferenças, a
qual reverte as inadequações entre os espaços e os corpos e também inventa
a maciez nas arestas, assim como cria o fluxo onde o movimento é estancado.
Dessa forma, a vida da escola se mostra como a permanente obragem do
gesto criador, seja na invenção da sua musicalidade, da sua visualidade, ou
dos modos de seus praticantes praticarem o seu dia-a-dia.
A criação tem nas artes suas mais férteis explicitações, sobretudo quanto à
permanente dinamização da imaginação que conduz todas as suas
articulações, desata seus movimentos e viabiliza suas produções. A invenção
183
do inédito conduziu a arte através dos tempos até os momentos nos quais o
ineditismo ou a originalidade tornou-se fator de pouca importância ou
relevância, entretanto, o aspecto que interessa aproximar a criação artística da
criação das práticas que configuram a escola, como invenção do que não
existia antes, é a produção fundamentalmente estética que caracteriza ambas
as formas de criar a vida nos campos da arte e do cotidiano.
A aproximação aventada neste trabalho entre a arte e o acontecimento da
escola, acontecimento pulverizado em tantas pequenas ocorrências cotidianas,
pode ser apontada nas aulas de arte, nas aulas de qualquer outra disciplina,
nos pátios, nos intervalos, nas reuniões docentes, nas conversas animadas ou
letárgicas dos alunos e professores, enfim em inúmeras ocasiões e situações,
nas quais a face responsável por essa designação não invalida os outros
sentidos que cada ocorrência também tem. Pois, a produção estética do
cotidiano é encontrada nos corpos e nas suas movimentações, está nas táticas
de condução da cotidianidade e nas maneiras de cada um acontecer no
universo de multiplicidades moventes que se reordena a cada momento do dia-
a-dia.
A complexidade de relações que configuram a arte lhe dá um sentido trágico,
na medida em que arte é o campo irredutível da poetização das maiores
tensões da humanidade, o surgimento e a finitude, ou seja, a inseparável
articulação entre o que emerge e o que desaparece. Conforme Tadeu, Corazza
e Zordan.
Um plano de pensamento que envolve o sentido trágico da arte é traçado
pela tensão de forças que não param de se desfazer, modificar a matéria,
desafiar a gravidade, diferenciar, vir de novo mais forte. Pouco importa que
a arte copie imagens, siga modelos; o que faz uma arte é a singularidade
184
das sensações que subsistem na criação errante dos estilos, efeitos que
mostram os jogos do pensamento. (2004:105)
A vida cotidiana da escola pesquisada se desenrola em tensões semelhantes,
tem suas dramáticas contradições, suas contrastantes aniquilações e
invenções, visto que é tecida pela materialidade da vida tangível, pulsada com
toda a intensidade do jogo trágico das
185
Finalmente, com este texto, atinjo o ponto crucial da interrupção dos registros
dessa pesquisa e do que senti e/ou pensei constatar sobre ela. Neste texto
permanecerá o registro das minhas reflexões e sentimentos sobre o que
pesquisei, a educação imaginada vislumbrada nas muitas imagens da escola
pesquisada. São, portanto, esses registros, os pensamentos resultantes do
enredamento de todas as imagens que captei e das quais me servi para dar
corpo às reflexões e sensações propiciadas pelo que vivi ao longo da pesquisa.
Embora esses pensamentos sejam colocados como ponto final desta tese, são
registrados mais como uma interrupção aberta do que uma pretensa
finalização, entendendo o ponto final apenas como um ponto múltiplo, um
ponto meio aos muitos outros pontos que se desdobraram no devir do
pensamento sobre a escola viva e vivida.
Escola espaço e tempo, da qual me apossei para produzir o que não existia, ou
seja, a forma de como dela me apercebi para apresentá-la, para fruí-la na
perspectiva do encontro que decorre do meu encontro com ela. Refiro-me ao
encontro que se dá nesse momento entre as imagens que narro e o leitor
desse texto. Para tanto, tentei narrar uma escola imaginada, uma escola que a
partir das suas dinâmicas potencialidades estéticas, já circulantes antes do
meu primeiro olhar sobre ela, apresento como um corpo estético, uma obra
aberta, que refulge liberta das próprias palavras que a descrevem.
Da escola C.E.M.S. fiz a matéria prima da minha obra, obra modesta que
jamais pretenderia superar o universo sobre o qual se volta e que na sua feitura
flana da discussão das muitas realidades que a constituem, limitadas pela
minha capacidade de sentir e senti-la, à sua celebração. Celebração da escola
pública como imagem da potência imaginal que produz seus espaços para a
186
criação do encontro, encontro tão necessário ao acontecimento da vida
daqueles para os quais foi imaginada: todos.
A celebração da escola pública é, contudo, inseparável do alerta quanto à
urgência de se reordenar os significados que lhes são atribuídos, à escola, à
educação e aos seus praticantes, e da urgência do deslocamento dos pontos
de investigação da educação pública. Deslocamento que tentei proceder na
intenção de que esse movimento desterritorializante pudesse contribuir com
a importante agregação de tudo o que oferecem as microrealidades,
permanentemente criadas no cotidiano escolar, às macro visões e outras
formas mais experimentadas de tratar a educação para que, da alquimia
resultante o maior beneficiado seja o encontro das diferenças que recheiam a
escola pública, percebidos e aproveitados então via a conjunção das diferentes
formas de pesquisá-la e de fruí-la.
A escola C.E.M.S., no embate de suas imagens, conforme afirmei antes, se
revela como fértil campo da criação imaginária. A começar pela inspiração que
me ofereceu para criar minhas formas de senti-la. A movimentação de suas
múltiplas imagens, ou seja, o seu vórtice imagético, sensorial e fruível, permite
187
perceber como a escola imagética e imaginal acontece como permanente
criação estética, fundamental modus operandis do seu próprio cotidiano e de
criar sentidos diante dos diversos impedimentos que obstaculizam os seus
movimentos de busca de acontecimento.
Tomar a escola como imagens em devir permitiu constatar que para cada uma
das formas elencadas de imaginação que as produzem correspondem
múltiplos contrastes.
A escola fabulada traz consigo seus impedimentos e limites criados no
confronto com a atualidade. Portanto, sua fabulação se dá na criação de
maneiras de relacionar-se com as intercorrências de um presente desafiador. A
fabulação não se dá impermeável às outras possibilidades de invenção que
criam cotidianamente a escola.
Por sua vez, a irrealização da escola, uma das maneiras ativas da imaginação
produzi-la, entendida como forma de apagamento de tudo que lhe opõe o
presente, não acontece sem o diálogo combativo com as imposições desse
presente múltiplo, inquietante e quase nunca amistoso. Irrealizar a escola, por
188
sua vez, ou tudo aquilo que, muitas vezes, não interessa se considerar ou
conviver, é, acima de tudo, um ato ou conjunto de ações criadoras, os quais, na
faina de irrealizá-la, a reinventam onde e quando é possível, na justa medida
do que permitem a tática e a estratégia (Certeau, 1994).
Evocar imagens afetivas é, inevitavelmente, outro movimento da criação, ou,
ao menos, um de seus canais de produção. Concretizar a imaterial memória
para apoiar a invenção do cotidiano não se reduz, nessa perspectiva, a
qualquer ação possível de ser isolada da imaginação criadora. Da mesma
maneira como a reprodução, movimento mimético da humanidade, acaba por
ser um dos elementos imprescindíveis à criação do mundo. A criação dos
espaços coletivos e das imagens que os alicerçam e os configuram acontece
de forma semelhante, e em sintonia, com a criação de cada indivíduo. Segundo
Wulf (2003: 210),
Todo o indivíduo depende de uma comunidade ou de uma sociedade, da
qual tira múltiplos elementos que auxiliam as mimésis, apropriando-se
delas ao longo da vida e transmitindo-as aos outros. Cada um depende dos
outros para a educação e a formação, o trabalho e a segurança, a
infelicidade e a felicidade. A imagem de si próprio se forma e se transforma
através da vida com os outros e o seu reconhecimento.
A escola criada seria, então, a atualização da rede de elementos que a
constituíram, seja no âmbito individual, seja na imaginação e sentimento
coletivos. Atualização, esta, que só é possível acontecer por meio da
imaginação criadora de cada um dos protagonistas da cena escolar e dos
coletivos que constituem. Dessa maneira,a escola como imagem resultante da
imaginação criadora, será, sempre, o resultado da artesania de todos os
praticantes do seu cotidiano. Portanto, para ser fruída, deve ser considerada na
ampla e complexa tessitura que enreda as micros-ações individuais às grandes
189
ações coletivas e que, reverberando umas nas outras, dão corpo, ritmo e
textura à rede viva do dia-a-dia, a rede que liga todos a cada um dos autores
da escola.
A criação da escola é, sobretudo criação estética. Pois, os elementos e
movimentos que a geram combinam escolhas com modos de fazer.
Combinação que projeta o seu devir, desdobramentos de sua poética nunca
adiados para um futuro intangível, mas abertos ao permanente movimento da
poética cotidiana.
Se entendermos a escola narrada como uma instituição tomada pelo
enfrentamento de um presente sob diversos aspectos antagônico, poderemos
perceber a importância e centralidade da ação criadora para a sua existência.
Pois a ação criadora é a manutenção de seu acontecimento; é a imaginação
que a faz perdurar nos seus micros avanços e recuos cotidianos, nos seus
pequenos grandes lances e oportunas jogadas. Não como preservação do seu
sentido fabulado, distanciado da mixórdia banal do dia-a-dia, mas sim como
ação de existência rasteira em inexorável devir.
A escola, a despeito desta ou daquela imagem nas quais cintila, está
posta, concreta em sua multiplicidade. Contudo, os sentidos que a fizeram
chegar à contemporaneidade foram consumidos pelos desdobramentos e
190
destroçamentos da modernidade e nela pouco resta do que teria sido há vinte,
há dez, há cinco anos atrás, além da imaterialidade dos sentimentos, crenças e
imaginação. Seus pátios, suas salas, seus espaços físicos e simbólicos foram
tomados por inusitados agenciamentos, grande parte destes antagônicos a ela,
pois, tudo o que desnorteia e maltrata a vida nas ruas da cidade também
atravessa incontrolavelmente a escola. Múltiplas novas circunstâncias são
desenhadas a cada dia no seu seio aberto, pois, fora e dentro de seus lugares
próprios assim como no corpo de seus espaços praticados, a globalização das
diferenças e indiferenças impõe seus enigmas, violências e demais armadilhas.
As agendas oficiais de futuro pouco auxiliam as tentativas de, mimimamente,
se vislumbrar os desdobramentos da educação pública oficial, da mesma
maneira como, infelizmente, acontece com as tentativas de se pensar o devir
da maioria da população brasileira e de suas instituições. Imagens sem devir;
enganosas imagens corporificadas no presente das instituições educacionais
públicas. Contudo é preciso continuar a perscrutar o invisível, ouvir o inaudível,
é preciso lançar mão do que se dispõe, apropriar-se dos resíduos cotidianos,
catar tudo que é rejeitado pela razão dominante e pela maquinação capitalista,
para com esse material operar a própria continuidade daquilo que
investigamos, daquilo que estudamos porque desejamos, porque nos aliamos,
enfim, porque nessa luta e nesse sonho nos encontramos.
Para esse olhar desesperado por esperanças resta a aspereza do que é
relegado pela estratégia, pela máquina de controle e dominação. Ou seja,
aquilo que não é possível colonizar, que não serve para ser capitalizado, que
na verdade não serve para nada que traga resultados contabilizáveis na órbita
191
do capital. Esse rebotalho, nada mais é do que as banalidades do cotidiano, as
imagens que fogem até da fotografia que as registra.
O aproveitamento desse material, que para a visão de topo é amorfo, sem
atrativos e até inútil, ou seja, as pulverizadas práticas cotidianas, revelam na
sua insignificância os sulcos e rastros dos atos de estetizar a vida, de
potencializar o mínimo para que este, na brevidade da oportunidade,
resplandeça ao máximo. Lidar com essas pequenezas é captar os mergulhos
para fora da máquina pasteurizadora do real, paroxismos nos quais os corpos
em linha de fuga, antes do estilhaçamento final, fazem das cambalhotas no ar,
do urro primal-final, o sentimento da existência, fugaz, malandra, da vida como
obra de arte. Pois como escreve Furtado
... se a estetização do cotidiano tem um sentido filosófico... é na medida
em que, para além das acusações lançadas contra a mediocridade da vida
e da cultura capitalista (quando não a denúncia da própria mediocridade da
vida cotidiana como tal), é contra a objetivação em geral e todas as leis
que dela emanando pretendem guiar e corrigir a existência. (2002:294).
Nessa perspectiva, o cenário cotidiano da escola é a ópera das movimentações
emancipatórias e ações reguladoras. Sendo essas últimas maquinações que, a
despeito da inconseqüência de seu poder de controle e das suas práticas
subordinadoras, coercitivas e inibidoras do espontâneo, ainda mantêm a força
na condução da instituição. Entretanto, esses embates, nem sempre audíveis
ou visíveis, ocorrem sem vitórias definitivas graças à manipulação das sobras,
à reciclagem dos rejeitos, às oportunidades de caça. Momentos e espaços nos
quais a beleza da vida comum brilha e reverbera traçando céleres linhas de
fuga das territorialidades sedimentadas pela imaginação hegemonizada.
Territorialidades esvaziadas de energias vitais, desbotadas de sabor,
192
amornadas nos tons e amorfizadas na temperatura. Territorialidades
resultantes das estratégias de terra arrasada que atravessaram a educação
pública estadual nos últimos tempos e que na indiferença de sua pressa não
podem perceber a capacidade regeneradora das operações nômades que se
desdobram discretas nas práticas diárias dos esquecidos.
Dou-me conta, neste momento, que a aventura desta pesquisa foi inicialmente
conduzida pela imagem da escola que evocava como maquinaria do mal. A
face da escola que mostra sua conivência com as mazelas sociais, afinal a
educação formal acompanhou e enredou-se com todos os movimentos que
configuram a sociedade e seu atual estado das artes. Nesse caminho, pensava
ser preciso apontar sua participação ativa na manutenção do conservadorismo
predominante na nossa sociedade. Era como se, de alguma forma, me sentisse
conduzido a retornar à escola para purgar algumas lembranças nefastas.
Evocava uma escola sem lembranças afetivas, mas sob essa evocação
vicejava, microscópica, uma escola em devir, algo que não se concluíra em
minha experiência no passado e mas que, a partir do meu retorno à ela, exigia,
a cada dia, experiências que dessem continuidade à sua revelação, revelação
de improvável conclusão.
193
Imagem múltipla que me ofereceu cada uma das imagens que viria a captar e
cuja apreensão possibilitou a apreciação de um panorama oposto à inútil
evidenciação dos agenciamentos nefastos, por mais concretos ou
inexpugnáveis que sejam ou pareçam ser, que constituem certas faces da
escola. Em outras palavras, a investigação das imagens da cotidianidade da
escola provocaram, antes de mais nada, e acima de tudo, a celebração da
escola pública como espaço e tempo nos quais a guerra entre forças
contrastantes, entre oposições imaginárias e concretas, não impedem a
permanente produção da imaginação criadora. A criação de realidades que,
ainda que fugazes, são decisivas para a emergência de outras ordens que
rasgam linhas de fuga nos mapas das ordenações brutais agenciadas pela
parcialidade do Estado, pela sociedade excludente, pelas investidas das
máquinas da heteronomia e pela violência da indiferença.
194
Muito embora as reverberações das profundas assimetrias sociais ressoem
atrozes na cena escolar, a educação pública e a escola não podem ser
reduzidas apenas a tais imagens, pois a indelével vocação para a conjunção,
para o encontro entre as diferenças, entre as diferentes formas de imaginá-la e
de criá-la produzem sua aparição maior, se não a de maior pregnância ou
visibilidade, inegavelmente a de maior intensidade. Imagem múltipla que me
acolheu e que, neste trabalho, busco acolher, muito distante de qualquer
radicalidade cientificista, mas, prazerosamente imerso na dimensão da poesia.
Minha narrativa, pensamento e sentimento sobre e com a escola me conduz à
sua celebração. Depois de tentar investigá-la, elucidá-la, iluminar suas
particularidades, tomá-la por meio do conhecimento, apenas me reconheço
artífice da escola inventada, cena da educação imaginada. Artífice da imagem
que desejo, que apreendo e relato em um registro paradoxal, pois a cada
moldura discursiva elaborada apenas intensifico o jogo liberto de seu devir, de
sua polissemia.
Acometido pelos furores passionais do pensamento, o artífice afirma o
desejo no manejar das criações, na matéria curvada e forjada de acordo
com uma vontade. Multiplicidades maquínicas ao invés da Criação
Divinizada, a vida criada, nomeada, ordenada. Trata-se do caos oceânico,
“Grande onda”, sempre em vias de se fazer, nunca pronta. Potencialidade
do ovo, mistério indeterminado dos instantes prolongados ao infinito, sem
imagem formada, nome, número ou qualquer designação, apenas beleza
trágica, a graça de um devir. (Tadeu, Corazza e Zordan, 2004:124)
Muitas sensações, pensamentos, incompletudes me assaltam. O fim do texto,
dos prazos, a hemorragia do tempo avança e a escola pesquisada amplia-se
mais a cada momento. Nessa vertigem, cada palavra escrita parece perder a
tonicidade de sua significação sobre a vida vivida. Sinto que o que vivo na
195
concretude cotidiana recusa-se ao registro, recusa-se à colonização das
palavras, como se não autorizasse aproximações e configurações fora da
dimensão da expressão poética.
Nos momentos nos quais tento recuperar as anotações, as experiências
vividas, refulge a potencialidade mágica do cotidiano criado. As pequenas
ocorrências cotidianas ganham sentidos densos quando recuperadas no
mapeamento amplo da vida da escola.
A vida humilde e seus trabalhos simples somente podem ser vividos porque
existe uma força mágica, poética que os alimenta sem cessar. A poética da
vida cotidiana, as criações minúsculas e imperceptíveis permitem de fato a
perduração da socialidade. Se não houvesse uma carga mágica na vida
cotidiana, o aspecto mortífero da automação dominaria a pulsão do querer-
viver. O encantamento que suscita a imagem (cinematográfica, romanesca,
vivida) corresponde à medida de seu conteúdo cotidiano. A imagem
estranha, fantástica, prospectiva, utópica vale justamente pelo que contém
de banal. Reencontramos aqui a importância do duplo, a fascinação
repousando sobre o fato de que a imagem é sublimação, reflexo empírico,
do concreto. (Maffesoli, 2001:108)
No drama que é a interrupção desse diálogo entre as imagens da escola e o
artífice de sua captação, muitas lembranças afluem, tantos acontecimentos não
relatados, tantas significações não discutidas, mas a grande afetividade que
me liga ao universo estudado funciona como cauterizante das lesões das
ausências, das incompletudes e das inconsistências que possivelmente
marcam essa aventura investigativa. A afetividade foi a chave das grandes e
intraduzíveis experiências de prazer que marcaram o cotidiano narrado como
uma sucessão de experiências estéticas. Experiências similares às
experiências que oferecem o universo outorgado da arte, sob a perspectiva de
que a imaginação criativa da arte seria capaz de traduzir as possibilidades
196
libertadoras da existência através da sensualidade da experiência da beleza
(Furtado, 2002:291).
Enfim, tentando formular uma idéia que concentre a pesquisa e tudo que me
ofereceu o C.E.M.S., me dou conta que suas imagens produzidas pela
imaginação criadora, rede na qual todas as possibilidades imaginativas
circulam, evidenciam que não seria somente liberando-se das coerções
político-econômicas e lutando contra as diversas formas de alienação que a
comunidade escolar afirmaria sua existência, mas talvez o faça vivendo, no seu
dia-a-dia, o contrastante passional e afetivo, seus jogos do excesso, da
enganosa aparente passividade, na circulação do erótico, na troca de palavras,
nas micro-ações táticas, enfim, sob as diversas aparentes marcas do
conformismo, a escola vive a “arte da conjunção” (Maffesoli,2005:86), que faz
197
das minúsculas criações cotidianas a energia do devir de sua socialidade,
potência da educação na escola.
Por outro lado, a imaginação criadora que instaura afetos e significações
libertadoras às rotinas escolares manifesta também o que se pode sentir como
poética cotidiana, assim seus praticantes deixam perceber que fazer da sua
vida uma obra de arte, uma permanente criação de formas de existir, de criar
seus sentidos e sentimentos para a própria existência, que não é mais
exclusividade da vanguarda ou de uma boemia especializada, ou seja do
mundo outorgado da arte. Criar a vida como obra de arte é no dia-a-dia uma
prática popular que, através de modulações diversas constitui a sólida trama da
existência coletiva (Op. cit :87), e que na escola é a ação fundamental do seu
sentimento de existir. Pois, configura seu acontecimento como criação
espraiada pela vida de todos seus praticantes e pelos seus corpos sociais.
A estética do cotidiano da escola estilhaça os limites da fábula, preenche a
vacuidade da irrealização, reordena a evocação, desregula a reprodução e
concretiza a criação da escola.
198
Durante uma aula, explico os sentidos do termo fabulação. Pergunto então à
turma o que seria a escola fabulada. Bruno responde: uma escola com uma
moral no final. Pergunto qual seria essa “moral”.
Enquanto alguém distraído canta ...Eu só quero é ser feliz ..., Bruno responde:
“Ah professor! A moral a gente inventa!”
...
199
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