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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
ABEL MENEZES FILHO
A TRAMA DA VIDA
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2010
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ABEL MENEZES FILHO
A TRAMA DA VIDA
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais, sob a orientação do
Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho
SÃO PAULO
2010
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Banca examinadora
_______________________________
_______________________________
______________________________
______________________________
_____________________________
Agradecimentos
A construção e a transmissão do conhecimento podem ser prazerosas, criativas,
híbridas e dionisíacas. É possível rejuntar parte e todo, texto e contexto, local e
global, desde que os educadores se empenhem nisso.
Esse é o pensamento do Prof. Edgard de Assis Carvalho. Essa narrativa foi possível
graças ao nosso convívio e interlocução, que envolve amor, poesia, troca de saberes,
respeito e confiança. A liberdade criativa é uma das chaves da sua orientação. Essa
autonomia foi essencial, para as nossas ousadias. Meu querido maestro, ao longo
desses anos construímos o que existe de mais precioso na convivência humana: a
amizade. Agradeço por tudo e lhe desejo saúde, vida longa, criativa e continuamente
amorosa.
Minha querida mestra Profa. Maria Aparecida Lopes Nogueira, se o meu mestrado só
foi possível graças ao seu amor, carinho e orientação, nossos laços se ampliaram,
mais ainda, depois que você fez a ponte que me ligou ao Prof. Edgard. Você é uma
pessoa de pontes, coerente com a cidade de Recife. Por você ser quem é, e por tudo
isso, lhe reverencio e agradeço, desejando também todas as bênçãos de Vida.
Agradeço aos que fazem as minhas instituições de origem: UFPe e Aggeu
Magalhães/FioCruz e a Capes, pelo empenho em me proporcionar o privilégio de
fazer esse doutorado em plenas condições.
Minha gratidão contínua à família humana mais próxima:Marlene, Mário, Adélia,
Evani, Juana, Ilka, Júlia e Pedro.
Minha reverência e agradecimentos se expandem aos demais artistas do viver
amoroso:
Alfredo Bello, Amélia Toledo, André Monteiro, Anelis Assumpção, Arnaldo
Antunes, Carlos Pontes, Cecília Didier, Ceumar, Chico Sá, Ciça, Clarissa Carvalho,
Dudu Tsuda, Edmilson, Edu, Erika, Fernanda Couto, Francisco de Assis, Fred, Glívio,
Gustavo Ruiz, Halley, Iara Rennó, Idê Gurgel, Jane Pinheiro, José Antônio
Madureira, José Miguel Wisnik, José Ruben de Alcântara Bonfim, João Darwin,
Junio Barreto, Karina Buhr, Kátia Hale, Kirstein Pim, Larissa, Laura, Leo Cavalcanti,
Lídia Chaib, Lúcia Falcão, Lúcia Rangel, Luiz Chagas, Luiz Tatit, Luíza Toledo, Mano
Victor, Marga, Maria Lia, Marcelo Jeneci, Maeve de Barros, Maíra Santos, Marco
Melo, Maurício Cavalcanti, Toledo, Mônica Tarantino, Nala, Nina Cavalcanti,
Nitalma Elaine, Odara, Osvaldo Borgez, Paulo Barros, Péricles Cavalcanti, Petrônio
Cunha, Reinaldo, Rita, Ronaldo Brito, Ronice Sá, Rosane, Serena Assumpção, Sílvia
Carbone, Simone Soul, Socorro Freire, nia Vizachri, Teca Didier, Telma Buarque,
Tiê, Tiago Pethit, Tulipa Ruiz, Vilma, Walmir Véio Mangaba Chagas.
RESUMO
A partir da compreensão de que os saberes estão fragmentados e dispostos em
compartimentos estanques, esta tese propõe que a arte, por suas características
transdisciplinares pode contribuir para fazer pontes, religações, entrelaçamentos. O
pensamento complexo é a inspiração e a literatura foi o método escolhido para
mostrar esse possível diálogo.
A narrativa é tecida por quatro personagens, duas mulheres e dois homens, que se
propõem a escrever um livro coletivo. Os personagens moram em cidades diferentes
e começam o diálogo por e-mails. O modelo escolhido foi o caduceu de Hermes,
um bastão em que se entrelaçam duas serpentes, em sete rtices. Desdobradas no
plano existem três narrativas, paralelas, autônomas e, simultaneamente entrelaçadas.
As serpentes laterais é a maneira que encontrei para dialogar com os autores com
mais fluidez e romper com a compreensão habitual de notas, que sustentam ou
complementam o texto principal, muitas vezes de forma mecânica.
A dupla espiral do caduceu tem ressonâncias com o código genético, que a partir de
quatro letras, combinadas ao pares, em extensões diferentes, criam todas as formas
de vida. Embora cada um dos quatro personagens tenha seus campos temáticos
predominantes, foi possível a troca de saberes e o modelo mostrou-se adequado.
Palavras-chave: Narrativa. Religação dos saberes. Pensamento complexo.
ABSTRACT
On the basis of the knowledges are fragmented and placed in watertight
compartments, this thesis proposes that art, by its transdisciplinary
characteristics, may contribute to bridging, to make reconnections,
entanglement.
The complex thinking is the inspiration and literature was
the method chosen to shows this possible dialogue.
The narrative is woven by four characters, two women and two men,
who proposes to write a collective book. The characters lives in different
cities and began the dialogue by e-mails. The model chosen was the
caduceus of Hermes, a bat where two snakes interwine , in seven
vertexes. Unfolded in the plane there are three narratives, parallel,
autonomous and simultaneously intertwined. The side snakes is the
form I found to dialogue with the authors with more fluidity and break
with the usual understanding of notes, which support or complement
the main text, often by rote.
Caduceu’s doublé helix has resonances with the genetic code, that from
four letters, combined in pairs, in different extents, create all forms of
life. Although any of the four characters have their predominant
thematic fields, the knowledges exchange became possible and the
model suited as well.
KEY-WORDS: Narrative. Knowledges reconnection. Complex thinking.
SUMÁRIO
SUMÁRIOSUMÁRIO
SUMÁRIO
Prelúdio ...............................................................................................................................01
I – O Prazer da encarnação ................................................................................................04
II – As paixões viajantes ......................................................................................................24
III – O sabor dos dias ...........................................................................................................58
IV – A vida quer da gente coragem ...................................................................................115
V – Somos som sol solos ..................................................................................................164
VI – A arte de conviver ......................................................................................................181
VII – Bem – aventurança ..................................................................................................190
VIII – O Coração da Terra .................................................................................................201
IX – A Noosfera de Gaia ..................................................................................................207
Referências Bibliográficas .................................................................................................209
Discografia ..........................................................................................................................218
1
Prelúdio
Método é o caminho que se percorre.
A Trama da Vida
é uma narrativa. O instrumento de
navegação é a dupla espiral, do genoma e da galáxia, um jogo de espelhos, um fractal: a
repetição em diversas escalas do mesmo padrão. O modelo é o caduceu, duas serpentes
entrelaçadas em sete vértices, em torno de um eixo central. Essa imagem está presente em
diversas culturas. É o bastão dos deuses Hermes e Esculápio, na Grécia, e de Mercúrio, em
Roma. O fluxo espiral dessas serpentes é a
kundalini
, na tradição espiritual indiana. Cada
vértice é chamado de
chakra,
que em sânscrito significa
núcleo rodopiante
. Chakras são
vórtices de geração, recepção, emissão, distribuição e amplificação da energia vital em nossos
corpos. O caduceu, desdobrado no plano, conduz três fluxos narrativos, paralelos,
autônomos e simultaneamente entrelaçados. A serpente do lado direito do corpo é solar e a
do esquerdo lunar, elas são opostas e complementares. No fluxo da narrativa, a primeira é
predominantemente prosaica e a outra mais poética. A palavra latina
complexus,
significa
um tecer juntos
. O
homo complexus
sempre se envolve com dilemas da repetição, da
criatividade, da afetividade, do sentimento de comunidade. Esse novo sentido tornará
possível praticar uma reforma interior que nos capacite para habitar poeticamente a Terra.
No eixo central a tessitura é feita por quatro personagens. São eles que entrelaçam a troca de
saberes, a polifonia das vozes. A concepção de serpentes narrativas laterais foi a maneira que
encontrei para dialogar com os autores com mais fluidez e romper com a compreensão
habitual de notas, que sustentam ou complementam o texto principal, muitas vezes de
forma mecânica. A religação da cultura científica e da cultura das humanidades e a
copresença das artes convertem-se em exigências fundamentais dessa ciência em construção.
Imaginei que essa estrutura narrativa poderia contribuir para compreender os modos de
integrar os saberes.
O
Pensamento Complexo
está empenhado em religar os saberes fragmentados, através do
diálogo amoroso, das conversas e mudanças de comportamento. O corpo é nossa identidade
universal. A
corporeidade
é uma das dez ideias-matrizes da complexidade e indicativa da
consciência de si.
É preciso retomar a posse do corpo, distribuir melhor a energia que circula
por todas as partes, tomar consciência da relação entre o todo que é o corpo e o todo que é
o universo. É preciso mantê-lo ativo o tempo todo. O corpo requer treinamento intensivo,
pois seu aparelhamento sempre traz surpresas e inovações. Corpo e mente, corpo e
imaginação, corpo e sexualidade são, portanto, as bases da formação da consciência
individual, social e cósmica.
É o que nos diz o Prof. Edgard de Assis Carvalho, no artigo
A
religação dos saberes
, sobre a obra de Edgar Morin.
É a partir da relação corpo-texto que os personagens, através de suas técnicas corporais,
tecem a narrativa, percorrendo cada chakra ou capítulo. A narrativa se compõe em nove
capítulos: os sete chakras do nosso corpo e mais dois, que se supõe estarmos ativando. O
2
oitavo é o núcleo da Terra e o nono é a noosfera de Gaia, a Deusa Terra, para os gregos, e o
planeta-organismo, para a ciência. O espaço do corpo pode se ampliar quando, por exemplo,
estamos dirigindo um automóvel ou um avião. A ativação de mais dois chakras nos um
corpo duplo: o pessoal e o planetário.
O sujeito vivo é sempre impuro, pois inclui e exclui a
ele mesmo e aos outros, computa a existência subjetiva, ao mesmo tempo em que comanda
suas relações com os outros. Altruísta e egoísta, sua identidade complexa, assim como seu
devir-sujeito, requer autorreflexão permanente para que a ética do conhecimento venha a
ser construída e consolidada. Simultaneamente diverso, diferenciado e especializado, o
sujeito cria redes policêntricas que se reorganizam por toda parte.
Durante os primeiros
quatro capítulos da narrativa os personagens conversam entre si, a princípio por e-mails e no
quarto capítulo pessoalmente. Do quinto capítulo em diante aparecem as meditações dos
personagens, para que possam aflorar melhor as suas subjetividades.
A Teoria de Gaia,
de James Lovelock, Lynn Margulis e seus colaboradores, descreve a Terra
como um organismo vivo, um corpo composto de muitos organismos menores. Os autores
não sugerem como metáfora, mas como uma descrição real do mundo. Nós nos
acostumamos de tal maneira a pensar nos mitos, nas deusas e deuses como
simbólicos,
que
podemos precisar de algum tempo para compreender a radicalidade de descrever o Planeta
como uma criatura viva. A teoria afirma que a Terra, no sentido biológico, tem um corpo
mantido por complexos processos fisiológicos. O conceito permite-nos readquirir o pleno
poder do mito como uma história que é genuinamente verdadeira, física e metaforicamente.
A Teoria de Gaia reintegra o mito à ciência e a ciência ao mito.
É Joseph Campbell, no seu livro
O poder do mito,
quem nos diz:
você não pode prever que
mito está para surgir, assim como não pode prever o que irá sonhar esta noite. Mitos e
sonhos vêm do mesmo lugar. Vêm de tomadas de consciência de uma espécie tal que
precisam encontrar expressão numa forma simbólica. E o único mito de que valerá a pena
cogitar, no futuro imediato, é o que fala do planeta, não da cidade, não deste ou daquele
povo, mas do planeta e de todas as pessoas que estão nele. Esta é a minha ideia fundamental
do mito que está por vir.
A Trama da Vida
é fruto também de uma pesquisa histórica sobre os momentos e o que nos
levou a cindir corpo e alma e quando e porque houve um rompimento das
sociedades de
parceria,
substituídas pelas
sociedades de dominação
.
É preciso retornar aos fundamentos
sapientiais, recriar valores universais, redefinir conceitos, religar saberes, rearticular ciência,
arte, tradição, espiritualidade e mito.
É preciso, também, retomar o pensamento da ética e a
ética do pensamento, as relações entre ética, ciência e política e, finalmente, os fundamentos
da autoética, da socioética e da antropoética. Todo ato ético é um ato de religação com o
outro, com os seus, com a comunidade, a humanidade e o cosmo. Regeneração é a palavra-
chave dos desafios éticos. Para isso, é preciso reformar a sociedade, a civilização, a vida, a
alma e o corpo. Essa é a missão ética diante da crise planetária. É ela que tem a insana tarefa
de regenerar o humanismo e restaurar a esperança.
3
No campo antropológico a pesquisa se desdobra em dois grupos: os novos músicos e
compositores paulistanos e os adeptos do
sincronário da paz,
que propõem a mudança do
calendário solar, gregoriano, pelo calendário lunar, que segundo seus adeptos es mais
sincronizado com os nossos biorritmos. Essa mudança está inspirada no calendário da
cultura maya, do México e da Guatemala.
A Música Brasileira é fundamental na criação da minha linguagem e com esses músicos pude
compartilhar as diversas criatividades e ampliar meu repertório.
Com o grupo
sincronário da paz
, me interessava saber quais os mitos que estavam latentes
em seus imaginários. Embora sejam grupos bem diversos foi possível encontrar algo que os
unia: o padrão das
sociedades de parceria
. Todo movimentação é feita em redes de
solidariedade, em que uns participam dos projetos dos outros.
Prelúdio é o ato preliminar, o primeiro passo para alguma coisa. É o preparo ou ensaio antes
do espetáculo. Na música, os prelúdios evoluíram a partir de improvisações feitas pelos
instrumentistas para testar a afinação, o toque e o timbre de seus instrumentos.
A Trama da
Vida
foi escrita pela convergência de muitas vozes. Foi um prazer e uma alegria esse tempo
de convivência amorosa. Auspícios são sinais, desenhos de pássaros em que se busca
significado. Espero que a leitura seja auspiciosa!
Sabe-se, a partir da alquimia
indiana - T
antra
, que a
realidade absoluta, encerra
em si todas as dualidades e
polaridades reintegradas em
um estado de absoluta
unidade. A Criação
representa a dispersão da
Unidade Primordial e a
separação em dois
De: Hermes <hermes@caduceu.com.br
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto:
Estou no
onde é preciso.
em busca do invisível
nos pés.
a suavidade,
tem mais um lugar específico está bem situado,
para reencontrar em si as raízes de uma relação
universal.
textos quando a obra vai longe. Contudo, nes
r
omance, sinto que tem de ser coletivo desde o
começo, já que
do
m
eu, o que acha?
escolher um ícone.
presente em várias culturas, mas achados
arqueológicos mais antigos datam de 300
a.C, e
Suméria, e em
estrutura trina
conduz
simultaneamente, entrelaçados.
escolhido,
duas serpentes, uma solar,
predominantemente prosaica, e outra, lunar,
mais poética. Uma contém algo da outra, elas são
opostas e complementares, como o signo que
representa o Tao.
espir
energia
na tradição indiana.
1
11
1
O prazer dá encarnação
De: Hermes <hermes@caduceu.com.br
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto:
Narrativas
Estou no
sul da Índia. A
Unesco
manda-
me pra
onde é preciso.
O elmo é minha cabeça nas nuvens
em busca do invisível
. O
s aviões são minhas asas
nos pés.
Sou coerente com meu nome.
Sobre o ar,
a suavidade,
a leveza, diz o
I Ching
: aquele que
não
tem mais um lugar específico está bem situado,
para reencontrar em si as raízes de uma relação
universal.
Você sabe que gosto de mostrar
textos quando a obra vai longe. Contudo, nes
s
e
omance, sinto que tem de ser coletivo desde o
começo, já que
o propósito é ampliar a c
onversa
m
undo. Para começar seríamos Janaína
, você e
eu, o que acha?
Imagino que cada um de nós pode
escolher um ícone.
O meu é o
caduceu
. Ele está
presente em várias culturas, mas achados
arqueológicos mais antigos datam de 300
0 mil
a.C, e
estão em uma taça encontrada em
Lagash
, na
Suméria, e em
esculturas de pedra, na Índia.
A
estrutura trina
da narrativa é o caduceu,
que
conduz
três fluxos paralelos, autônomos
, mas,
simultaneamente, entrelaçados.
Nesse
modelo
escolhido,
um eixo vertical em que
se enroscam
duas serpentes, uma solar,
yang
predominantemente prosaica, e outra, lunar,
yin
mais poética. Uma contém algo da outra, elas são
opostas e complementares, como o signo que
representa o Tao.
Essas serpentes
polares,
espir
aladas em sete vértices, são os fluxos
de
energia
vital em nosso corpo: a serpente
kundalini
na tradição indiana.
Cada vértice é chamado de
4
me pra
O elmo é minha cabeça nas nuvens
s aviões são minhas asas
Sobre o ar,
não
tem mais um lugar específico está bem situado,
para reencontrar em si as raízes de uma relação
Você sabe que gosto de mostrar
e
omance, sinto que tem de ser coletivo desde o
onversa
, você e
Imagino que cada um de nós pode
. Ele está
presente em várias culturas, mas achados
0 mil
, na
A
que
, mas,
modelo
se enroscam
yang
,
yin
,
mais poética. Uma contém algo da outra, elas são
opostas e complementares, como o signo que
polares,
de
kundalini
,
Cada vértice é chamado de
Serpente sou cio silvo início
sete mil espirais girando nas
entranhas da terra,
sustentando-nos em seu lugar
para que não precipitemo-nos
no abismal mar. Com o tempo,
aumento o redemunho
desenroscando minha carne
ondulante, e ergo-me
lentamente numa gigantesca
5
princípios polares,
encarnados em
Shiva e
Shakti
ou
Linga
e
Yoni,
dos
quais derivam os termos
chineses
Yang
e
Yin.
Toda
existência condicionada
implica um estado de
dualidade e, por
consequência, o sofrimento,
a ilusão. O objetivo final do
praticante tântrico é reunir
os dois princípios polares –
Shiva e Shakti – em seu
próprio corpo.
Quando Shakti, que dorme,
sob a forma de Serpente:
Kundalini,
na região reto-
genital, é despertada por
certas técnicas iogues,
move-se no interior de um
canal medial: Sushumna
,
atravessa os outros 5
chakras
ou vórtices
energéticos, e sobe até o
chakra 7, no ápice do crânio:
Sahasrara: Lótus de Mil
Pétalas,
onde mora Shiva, e a Ele se
une. A união do casal
divino, no interior do
próprio corpo, transforma o
praticante em uma espécie
de andrógino. Mas é preciso
deixar claro que a
androginização é somente
um dos aspectos de um
processo total, o da reunião
de opostos.
Os textos tântricos falam de
um Sol e de uma Lua, os
dois so
pros, Prana e Apana
e, sobretudo, é preciso
unificar
Prajna,
a Sabedoria
,
e Upaya, o meio de atingi-la:
Sunya, o Vazio, e Karuna, a
Compaixão.
Tudo isso
equivale a dizer que se trata
chakra
,
que em sânscrito significa
núcleos
rodopiantes.
Chakras
são vórtices de geração,
recepção, emissão, distribuição e amplificação da
energia vital do corpo. São também
compreendidos como veis de consciência. São
sete
.
O
primeiro
é o chakra raiz, a fundação, está
localizado na região reto-anal e significa o
aterramento, a chegada do novo ser, o prazer da
encarnação, o impulso da sobrevivência, a
segurança, a confiança, a identidade pessoal. O
elemento é terra, a cor vermelha e a nota musical
dó. É aqui que está pousada a
kundalini
, que se
desenrola e atravessa cada
chakra
; o
segundo chakra
é o sexual, está localizado na região genital e
relaciona-se com a sexualidade, a criatividade, a
auto-aceitação incondicional, a procriação, a
família, o desejo e a fantasia. O elemento é a água,
a cor laranja e a nota ré; o
terceiro chakra
é o do
plexo solar, está localizado na região umbilical e
significa a consciência dos sentimentos, a vontade,
o poder, o intuir, sentir e discernir o caminho da
vida. O elemento é o fogo, a cor amarela e a nota
mi; o
quarto chakra
é o cardíaco, está localizado no
coração e significa a coragem, que literalmente é o
agir do coração:o amor, a compaixão, a comunhão
com toda vida. O elemento é o ar, a cor verde, a
nota musical fá; o
quinto chakra
é o do som,
localiza-se na garganta e significa a expressão vocal,
o canto, a fala, a comunicação do conhecimento,
as trocas da sabedoria. Desse chakra em diante o
elemento é tido como imaterial, o
éter,
algo entre
o ar e o som. A cor é o azul-celeste e a nota
musical sol; o
sexto chakra
é o do terceiro olho,
está localizado na fronte, entre as sobrancelhas e
significa a união dos opostos em si mesmo, a
plenitude do ser individual, a singularidade, o
desapego, a consciência do papel no mundo. É
nossa capacidade de ver além das três dimensões. A
cor é azul-anil, a nota musical lá; o
sétimo chakra
é o de mil pétalas ou o do vazio, está localizado no
topo da cabeça e significa o fim da ilusão de ser um
indivíduo separado do todo. É o sentimento de ser
espiral que envolve o cosmo.
Nos céus, solto as estrelas, o
Sol, a Lua e todos os corpos
celestes; na Terra criação dou
à luz, serpeando pelas encostas
em fusão para formar os rios,
os quais, como artérias e
veias, se tornam os canais por
onde flui a essência de toda
Vida. No calor causticante,
forjo os metais e, novamente
ergo-me ao céu e arremesso
para Terra fulgurantes raios
que dão origem às pedras
sagradas. Estendo-me ao longo
do caminho do Sol e
compartilho sua natureza. No
interior da minha pele de
múltiplas camadas, retenho a
fonte da eterna vida e no
zênite solto as Águas que
enchem rios, mares, que
alimentam a todos os seres.
Quando a água beija a terra,
surge o Arco-Íris e eu o tomo
como esposo. Nosso Amor
entrelaça-se numa voluta
cósmica que forma um arco de
um lado a outro dos céus.
Nossa fusão dá nascimento ao
espírito que anima o sangue.
As mulheres aprendem a filtrar
essa substância divina através
dos seus peitos e produzem o
leite, assim como os homens a
passam através de seus grãos e
criam o sêmen. Nós instruímos
às mulheres a recordar essas
bênçãos uma vez por mês, e
ensinamos aos homens a
represarem o fluxo para que o
ventre possa encher-se e
produzir mais vida. Agora,
como dom final, ensinamos a
vocês a repartir sempre o
sagrado sangue e recordar o
espírito: saber criar prazer ser
Serpente.
6
de uma coincidência de
opostos, de uma
simultaneidade de
contrários, efetuada em
todos os níveis da Vida e da
Consciência. De
certo ponto
de vista, pode-se dizer que
numerosas crenças que
implicam coincidência de
opostos traem a nostalgia
de um paraíso perdido, a
nostalgia de um estado
paradoxal no qual os
contrários coexistem sem
confrontar-se, e onde as
multiplicidades
compõem os aspectos de
uma misteriosa unidade.
Mircea Eliade
Ioga e Imortalidade.
O sentido de um livro é
primeiramente dado não
tanto pelas ideias, quanto
por uma variação
sistemática e insólita dos
modos de linguagem e da
narrativa ou das formas
literárias existentes. Se a
expressão é bem sucedida,
um sotaque, uma modulação
particular do discurso
falado é assimilada aos
poucos pelo leitor e lhe
torna acessível um
pensamento ao qual ele, de
início, era por vezes
uno: corpo é cosmo. É a bem
-
aventurança,
a
iluminação. A cor é branca, a nota musical si.
A ampulheta ou tambor de
Shiva Nataraja
, o
dançarino cósmico aqui na Índia representa, além
do tempo, o processo de encarnação: um
vórtice
em espiral descendente: a
kundalini,
que entra
verticalmente pelo sétimo chakra, no topo da
cabeça, e atravessa os outros, como a areia na
ampulheta, e chega ao outro vórtice, no primeiro
chakra, na região reto-anal, que nesse momento
está bem aberto, pois ainda não controle
esfincteriano voluntário, o que facilita o
aterramento do novo ser. Os
chakras
dois, três,
cinco e seis são horizontais, atravessam o corpo
carnal, da frente para o dorso, também em forma
de ampulheta, mas nos recém-nascidos os vórtices
energéticos e aberturas estão suavizados e vão se
intensificando a cada sete anos. Passando pelo
coração, o
quarto chakra
, há também um fluxo
centrífugo, em todas as direções, de ondas em
forma de oito, crescentes, que ligam chakras: o três
ao cinco, o dois ao seis e o um ao sete. Na medida
em que outros chakras, campos de energia ou
níveis de consciência, fora dos nossos corpos, são
conscientemente ativados, esses campos
energéticos em oito são amplificados em oitavas
musicais
ad infinitum.
Creio que, nesse momento,
estamos ativando mais dois: o
oitavo
chakra
que
é
o do coração terrestre e está localizado no centro
da Terra, é o núcleo de ferro e níquel em
temperatura e pressão altíssimas. É o local onde são
gerados os campos magnéticos flutuantes do
planeta, o grande dínamo terrestre. O
nono
chakra
é o da noosfera de Gaia ou consciência da Terra,
está localizado em um campo energético também
em forma de oito, cujo vértice passa pelo núcleo
terrestre e o cume está na fronteira da atmosfera e
significa o saber do ser planetário. Se o nosso
quarto chakra cardíaco se confunde com o oitavo
chakra do núcleo terrestre e o nono passa, como
todos os outros, pelo mesmo lugar dos corações
Wade Davis.
A Serpente e o Arco-Íris.
Ritmo não é medida, é visão do
mundo. Calendários, moral,
política, técnica, artes,
filosofias, tudo enfim que
chamamos cultura tem suas
raízes no ritmo. Ele é a fonte
de todas as nossas criações.
Ritmos binários ou ternários,
antagônicos ou cíclicos,
alimentam as instituições, as
crenças, as artes e as
filosofias. A própria história é
ritmo. E cada civilização pode
se reduzir ao desenvolvimento
de um ritmo primordial. Os
chineses antigos viam, talvez
seja mais exato dizer ouviam o
Universo como a combinação
cíclica de dois ritmos: uma vez
Yin, outra vez Yang: isso é o
Tao. Yin e Yang não são ideias,
tampouco são meros sons ou
notas. São emblemas, imagens,
que contêm uma
representação concreta do
Universo, dotados de um
dinamismo criador de
realidades, se alternam e, se
alternando, engendram a
Totalidade.
Octvio Paz
O Arco e a Lira.
7
indiferente ou mesmo
rebelde. A comunicação em
Literatura não é simples
apelo do escritor a
significação que fazem parte
de um
a priori
do espírito
humano: estas, ao contrário,
são suscitadas por um
aprendizado ou por uma
espécie de ação oblíqua. No
escritor o pensamento não
se dirige de fora da
linguagem: o escritor é ele
mesmo um novo idioma que
se constrói, que inventa
meios de expressão e se
diversifica segundo seu
próprio sentido. O que
chamamos de Poesia talvez
seja a parte da Literatura
onde essa autonomia se
afirma como ostentação.
Toda grande Prosa é
também uma recriação do
instrumento significante,
doravante manejado
segundo uma sintaxe nova.
O prosaico limita-se a
abordar por signos
convencionais as
significações já instaladas
na cultura. A grande Prosa
é a arte de captar um
sentido jamais objetivado
até então e de torná-lo
acessível a todos os que
falam a mesma língua. Um
escritor morre em vida
quando não é mais capaz de
fundar assim uma
universalidade nova
e de se comunicar em meio
ao risco.
Maurice Merleau-Ponty.
A Prosa do Mundo.
unidos,
virtualmente
todos
somos,
simultaneamente, nosso corpo individual e o
corpo de Gaia: a Deusa Terra. No momento
sabemos que o número de estrelas da nossa galáxia
e o de nossos neurônios são aproximadamente os
mesmos: 300 bilhões. Essa Consciência Terrestre
nos conecta a outros
chakras
mais remotos: o do
Sistema Solar, o da Via Láctea, o desse Universo e
quem sabe de outros?
Proponho nosso diálogo em nove movimentos,
por serem também os meses da gestação humana.
Embora seja possível estabelecer momentos
sucessivos no desenvolvimento de um organismo
vivo, as suas partes componentes crescem
simultaneamente e são interdependentes.
Para que Janaína e você possam avaliar meu
impasse nesse começo narro um mito aqui da
Índia. Está no
Mahabharata,
talvez o maior poema
do mundo, com cerca de 100 mil estrofes e um
volume equivalente a 15 Bíblias, escrito em
sânscrito,
uma língua da família do
latim.
Sei que
vocês gostam disto: o inventor da escrita na Índia é
Ganesha, e seus semelhantes são
Thot
, no Egito, e
Hermes
, na Grécia. O título do poema
Mahabharata
pode ser traduzido como
A Grande
História da Humanidade.
Um homem surge, vem da floresta: velho, sujo e
maltrapilho, cabelos e barba entremeados de terra e
de gravetos, caminha silenciosamente, como se seu
espírito vivesse em vários mundos ao mesmo
tempo. Insensível à chuva e ao vento, calca
espinhos com os pés sem ferir-se, procura alguém.
Encontra um menino, que segue os pássaros na
campina, debruça-se à beira de um lago, a sede
sacia. Ergue-se e percebe o homem que o olha.
Face a face, os dois ficam um momento sem falar.
O menino não tem medo algum. Nem tenta fugir.
Então, através do desgrenhado cinzento dos pêlos,
o homem esboça um sorriso e pergunta: sabes
O mapa do Milênio, de João, é
pior do que meramente
enganador. Sua atitude de
intolerância cruel, sua brutal
aspiração de poder e da
capacidade de julgar
envenenam o poder criativo do
mito. Lembremo-nos dos
versículos fundamentais:
Eu vi
descer do céu um anjo, tinha
em mãos a chave do abismo e
uma grande corrente. Ele
segurou o dragão, a antiga
serpente, que é o diabo,
satanás, e o prendeu por mil
anos. Apocalipse, 20:1-2.
Vamos supor que a serpente
simboliza nosso poder criativo.
Nesse caso, nosso legado
mítico nos põe em oposição à
melhor parte de nós mesmos. O
escritor Arthur Koestler e o
neurocientista Paul MacLean
têm muito a dizer sobre a
neurose humana, na qual vêem
um traço paranoico muito
ativo. Esse traço paranoico
baseia-se em um tipo de
fratura esquizoide em nosso
sistema neural, mediocremente
evoluído. O cérebro reptiliano
desligou-se por si mesmo e
nenhuma comunicação mantém
com o n
eo-córtex
, o nosso
novo c
érebro
p
ensante
. Em
suma, ideias e emoções estão
fora de sincronia, consciente e
inconsciente são estranhos
entre si. O ego n
eo-cortical
assume uma pose, adota um ar
superior e se recusa a bater um
papo com o
id reptiliano,
com o monstro que João
chamou de
ophos archaios,
a
velha serpente, que, para
todos os paranoicos do futuro,
ele chamou de sua satânica
majestade. O demônio é
também chamado de dragão. O
8
Descobrimos hoje o
elemento narrativo dentro
do universo, em todos os
níveis: na cosmologia e na
biologia molecular, como na
cultura humana. O universo
parece ter algum parentesco
com as
Mil e Uma Noites
, no
qual
Sherazade
narra
estórias encravadas umas
nas outras: há a cosmologia,
a história da natureza
encravada na cosmologia, a
vida na matéria, as
sociedades humanas como
parte da história da vida.
Sempre pensei que o único
modelo satisfatório para o
universo, essa mistura de
vir-a-ser de regularidades e
de eventos, era a obra de
arte, sobretudo a música,
que constroi seu próprio
tempo e cria a via estreita
que lhe permite escapar
tanto do arbítrio quanto da
previsibilidade. É esta
mesma via estreita que
permite hoje à física de
escapar de um duplo
pesadelo: aquele de um
mundo autômato, em que
não há nenhum lugar para a
novidade, e aquele de um
mundo absurdo, acausal,
dominado por um acaso
cego. O símbolo de um
universo assemelhado a um
autômato era o de um
relógio. O universo como
vemos hoje, com suas
instabilidades, flutuações,
criatividade, seu símbolo
seria o de uma obra de arte.
Passar do relógio à obra de
arte, que coisa magnífica! A
ciência é um diálogo entre
escrever? Não, disse o menino. Por quê? Compus
um grande poema. Está todo composto, porém
nada foi escrito. Preciso de alguém para escrever o
que sei. Como te chamas?
Vyasa
. De que fala teu
poema? Fala de ti. De mim? Sim. Conta a história
do teu povo, como teus antepassados nasceram e
cresceram; como se desenrolou uma guerra muito
vasta.É o grande poema do mundo! Se o escutares
com atenção, ao final serás outro, pois é uma
história límpida e total, que apaga os erros, aviva a
inteligência e dá longa vida.Logo que o velho acaba
de pronunciar essas palavras tão ambiciosas, ouve-
se uma sica. O homem e o menino voltam-se e
vêem o Deus com face de elefante, que se
aproxima. Caminha pesadamente, porém com
graça. Seu rosto sorri por detrás da tromba. Traz
um grosso livro sob o braço. Quem é? Pergunta o
menino.
Ganesha
, diz Vyasa. O próprio Ganesha?
Em pessoa, diz o deus, com voz sincera e doce. O
menino e o poeta estão surpresos, encantados! O
deus dos poetas, dos escritores, dos músicos, das
encruzilhadas, por vezes até dos ladrões, Ganesha, o
filho de
Parvati e Shiva
, o princípio da
manifestação, o que evoca todas as possibilidades e
expressões da vida, o que abre os portais dos
mistérios eróticos, o que corta todas as ligações
acessórias, o que obstáculo remove e sucesso, o
que tem a visão sutil, o forte e prudente, o Deus
que sabe ouvir, o que brinca e dança com a
gravidade da Terra, aquele a quem se invoca em
todos os começos e que abençoa e protege no
caminho, o andrógino, com sua trombacaralho e
sua lasciva bocaboceta. O deus usa um capacete
dourado, todo brilhante de pedras preciosas, senta-
se tranquilamente no chão e diz a Vyasa: Ouvi dizer
que se procura um escriba para o maior poema do
mundo. Aqui estou! Vieste mesmo para escrever o
meu poema? Foi o que eu disse. Por ordem de
quem? Ganesha tem uma ligeira hesitação. Abre
seu grosso livro na primeira página, bota o tinteiro
perto e depois diz:
Brahma
enviou-me a ti! Vyasa
prostra-se em terra, ao ouvir o nome do criador.
dragão é um animal da fábula,
uma serpente alada. Como tal,
sugere o casamento Terra-Céu.
O dragão simboliza o Tao, a
harmonia do
Yang
e do
Yin,
a
dança de
Shiva
e
Shakti,
a
convergência de opostos. O
dragão, visto dessa forma, mais
oriental, transforma-se em um
símbolo de síntese, de diálogo
entre o cérebro novo e o
antigo. Como tal, acho que o
dragão é uma linda imagem do
futuro da evolução humana.
O erro de João, então, foi pior
do que pensamos.
Ele não só criou o mito
perfeito para dualizadores e
endemoniados compulsivos,
mas dificultou, ao estimular a
provocação do dragão,
qualquer esperança de
melhoramento. É claro que se
o dragão simboliza nosso
futuro evolutivo, precisamos
tomá-lo carinhosamente nos
braços, e não bani-lo da
consciência. Em suma, o livro
do Apocalipse, ao nos separar
da sabedoria do dragão, torna-
se um obstáculo à nossa
evolução espiritual. Em vez de
dominar o dragão, a serpente,
que haja uma dança. A
serpente hinduísta significa
Kundalini,
energia erótica,
Shakti
ou Deusa da Vida! O
confuso João tentou esmagar
a irreprimível magia fálica, mas
tolo que era, ousou escarnecer
da Deusa. Onde esteve a
Deusa durante todos esses
milênios? Não terá chegado o
tempo de os humanos
retratarem-se, de
neutralizarem toda essa
maldição contra a Plenitude da
Vida?!
Michael Grosso
O Mito do Milênio
9
os
humanos e a natureza. Um
diálogo, não um solilóquio,
como mostram as
transformações conceituais
às quais fomos levados nas
últimas décadas. Na
verdade, a ciência faz parte
da procura transcendental
que é comum a tantas outras
atividades culturais: arte,
música, literatura.
Ilya Prigogine
Ciência Razão e Paixão.
É a verdade da existência
encarnada que inspira o
artista, ou melhor, a carne
do mundo, este tecido a que
pertencemos por nosso
corpo e que não se limita a
suas fronteiras objetivas. A
Arte expressa nosso secreto
e carnal pertencer ao
mundo, este pertencer
tácito, implícito, cujos
símbolos serão dados pela
obra, ao qual ela não
cessaria de fazer alusão e
ao qual ela deve nos
reconduzir.
M. Haar
A Obra e a Arte
A Grande Narrativa revela a
universalidade do tempo ou,
mais concretamente, o
tempo do universo. Alguns
lugares da Terra ocultam e
exibem as marcas dessa
duração global. A
Ganesha arranca seu marfim da direita, que usa p
a
ra
escrever, e molha-o no tinteiro. Depois, levanta a
mão e diz: Estou pronto, podes começar. Mas, eu
te previno! Minha mão não pode parar enquanto
escrevo. Deves ditar sem uma única hesitação, sem
nenhuma pausa. Vyasa levanta-se e vem sentar
perto do deus, e lhe diz: quanto a ti, antes de
escrever, deves primeiro compreender o sentido do
que digo. Conte comigo! O menino senta-se entre
os dois, muito atento. Encontram-se a pequena
distância da floresta, perto de um rio calmo. O
primeiro sol da manhã aquece a terra. Em torno
deles, as conversas dos pássaros, a passagem do
vento pela relva, a múltipla atividade dos insetos.
Após eterno silêncio, Ganesha pergunta: Esperamos
alguém? Não. Então? Os inícios quase sempre são
secretos. Não sei o que dizer para começar.
Achei-o didático e engraçado. Na mesma noite
desse começo, meu sonho: um homem vaga
agoniado pela praia. Está curvado pelo peso do
mundo, mergulha no mar e sente um alívio. De
saem dois pequenos dragões brancos, voam baixo.
Um deles fica fora do foco e o outro, depois de
algumas piruetas, pousa junto de um peru e
jocosamente disputa pose com ele. Depois se
mistura com galinhas brancas e fica indistinguível
delas que ciscam vigorosamente a terra.
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Hermes <herm[email protected]om.br
Assunto: Narrativas
Hermes amigo, o sonho zomba do seu maravilhoso
delírio de grandeza, ao incorporar Ganesha, Vyasa, a
Índia e a Grande História da Humanidade!
Contudo, gosto dessa tessitura narrativa que integra
os diversos saberes através de um corpo terrestre,
cosmocêntrico. Às vezes penso que você é
renascentista, ou quem sabe um alquimista da idade
O Corpo é o instrumento de
todas as realizações humanas e
deve ser tratado como tal. A
criação em sua totalidade,
beleza, florescência,
crueldade, harmonia, é a
expressão do pensamento
divino, é a materialização do
corpo de deus. Somente
aqueles que compreendem o
mundo natural, que se
identificam com ele, que
ocupam um lugar entre as
árvores, as flores, os outros
animais, podem realmente
aproximar-se do mundo dos
espíritos e dos deuses,
pressentir a divina alegria. Foi
sob a influência das
concepções religiosas
rudimentares dos
conquistadores nômades, que
as religiões da cidade
adquiriram um caráter
antropocêntrico, que não era
aparente na origem. Os povos
nômades não têm verdadeiro
contato com o mundo da
natureza. Não vivem em
comunidade com lugares,
árvores, animais, a não ser com
aqueles que eles dominaram e
domesticaram. Caminham com
seus deuses e lendas, e são
mais predispostos que os
outros
à simplificação monoteísta, a
considerar a natureza como
pastagens anônimas que eles
exploram e destroem, e os
deuses como guias a serviço
dos humanos. As religiões
antidionisíacas, na origem, são
todas elas religiões nômades.
Alain Daniélou
Shiva e Dioniso
Antes de o Ser ou o Não-Ser
existirem ou a atmosfera, ou o
firmamento, ou o que está
ainda além. O que fazia parte
de quê? Onde? Sob a proteção
de quem? O que era a água, as
profundezas, o insondável?
10
desdiferenciação de nossos
corpos assegura-nos o
acesso ao universal. Algum
aspecto desse universal
revela-se, por vezes, num
quadro, num trabalho ou
numa cultura. Aos nossos
olhos, o tronco comum da
Grande Narrativa iniciou
seu crescimento a partir do
momento em que o
Big-
Bang,
se é que ele existiu,
começou a construir os
primeiros átomos que
compõem as coisas inertes e
os seres vivos; desde que os
planetas se resfriaram e que
nossa Terra transformou-se
num reservatório de
matérias ainda mais
pesadas que compõem
nossos tecidos e ossos;
desde que, há quatro
bilhões de anos, uma
surpreendente molécula de
ácido começou a se replicar
para, em seguida,
transformar-se em mutante;
desde que os primeiros
seres vivos começaram a
colonizar a face da Terra
numa evolução constante,
deixando atrás de si muito
mais espécies fósseis do
que se possa imaginar;
desde o momento em que
uma jovem denominada
Lucy
surgiu nas savanas do
leste africano e que, sem o
saber, prometeu para a
próxima humanidade a
realização de viagens
explosivas na totalidade
dos continentes emergentes
e divergentes; desde que
algumas tribos da América
do Sul e do Oriente Médio
média.
A grande narrativa
, uma
infinita
ramificação
imaginada pelo filósofo Michel Serres, faz do tempo
um entrelaçamento evolutivo de tudo e afirma a
universalidade dos nossos corpos. Essa narrativa
parte do suposto início do nosso universo, sim
porque a cosmologia agora fala de
multiversos
, que
se tecem juntos. Por isso, Serres é a minha primeira
escolha, no fluxo narrativo da serpente solar do
caduceu. Não sei se você sabe, mas o nome da
nossa ancestral
Lucy
, a que ele se refere, foi dado
em homenagem à música dos Beatles
Lucy in the
sky with diamonds
, que estava tocando no rádio, na
hora da descoberta. E já que estamos falando de
inícios, cosmogonias e você está na Índia, o fluxo
lunar da narrativa, que abre a minha parte, é um
mito daí, e nele é possível destacar interseções com
a ciência, por exemplo: o início de tudo gerado
pelo calor, a partir de um vácuo. Esse criador
primordial, cheio de solidão e tédio cria para saber
de si. E cada criação com memória parcial cria por si
e encanta o criador primordial, que não tinha
pensado naquilo antes. Somos sonhos de um
sonho. Porém, do que mais gosto é de que o desejo
não é maldito, e sim, a primeira semente da mente
e também de que as conexões se fazem pelos
nossos corações.
É a sua concepção da literatura como jogo,
influência de Julio Cortázar, que você sugere
darmos continuidade para driblar, brincar, rir dos
pretensos impasses das tessituras narrativas.
Um
escritor morre em vida quando não é mais capaz de
fundar assim uma universalidade nova e de se
comunicar em meio ao risco
. É essa a sua conversa
com Merleau-Ponty, que está na serpente solar da
narrativa. Quem responde é Nietzsche:
o segredo
da maior fertilidade e do maior gozo da existência
é: vivam perigosamente! Construam as suas cidades
debaixo do Vesúvio!
Agora você quer algo ainda
mais ambicioso: transformar a vida em escrita e
experimentar a escrita virar vida; começar com as
nossas e ampliá-las para uma conversa do mundo,
Nem morte ou imortalidade
existiam, nenhum sinal da noite
ou do dia,
apenas o Um respirava, sem ar,
sustentado por sua própria
energia.Nada mais existia
então. No princípio a
escuridão existia submersa em
escuridão, tudo isso era apenas
água latente, em estado
embrionário. Quem quer que
Ele seja, o Um, ao passar a
existir, escondido no Vazio,
foi gerado pelo poder do calor.
No princípio esse Um evoluiu
transformando-se em Desejo, a
primeira semente da Mente.
Aqueles que são sábios, ao
buscar seus Corações
encontram o Ser no Não-Ser
Existia o abaixo? Existia o
acima? Quem realmente sabe?
Quem pode declará-lo?
E assim nasceu e se
transformou em uma
emanação. Dessa emanação, os
Deuses, mais tarde,
apareceram.
Quem sabe de onde tudo
surgiu?
Apenas Aquele que preside no
mais elevado dos céus sabe.
Apenas Ele sabe, ou talvez,
nem Ele saiba.
Marcelo Gleiser
A Dança do Universo
11
inventaram o cultivo do
milho e do trigo, sem
esquecer da dignidade do
patriarca que plantava o
vinhedo ou do herói
indígena que fermentava a
cerveja, domesticando pela
primeira vez seres vivos tão
minúsculos quanto
levedura; desde que foram
articulados os primeiros
sinais da escrita e que
certas tribos passaram a
fazer versos nas línguas
gregas e itálicas. Foi nesse
exato momento que o tronco
comum da maior narrativa
de todos os tempos
começou a crescer numa
densidade duradoura,
inesperada, real e comum a
um humanismo enfim digno
desse nome, do qual, afinal,
podem participar todas as
línguas e culturas que se
originaram dele. Ele é único
e universal porque foi
escrito na língua
enciclopédica de todas as
ciências que pode ser
traduzida em cada língua
vernacular, sem
particularismos nem
imperialismos.
Michel Serres
O Incandescente
Há autores que dizem
abertamente que Osíris é o
Sol, que este deus é
chamado Sírios, pelos
gregos, e que o artigo
O
que
os egípcios acrescentaram a
este nome, é a única causa
que pode servir de base
para o equívoco.
com personagens indeterminados, que vão
chegando ao acaso. Mesmo com a abertura do seu
livro anterior, você não quer entregar a obra
pronta, mas criar desde o início algo em conjunto.
É suficientemente louca para ser tentada!
Conversei com Janaína e ela está encantada com
nossa obra coletiva. Sugere que a gente comece os
diálogos com você e depois interconectamos.
Oficialmente o carnaval terminou, mas, como
sempre, os foliões não estão nem aí. vai a
surpresa: conheci uma pessoa em plena folia e
convidei-a para ser o quarto elemento da nossa
narrativa: Janaína a água, você o ar, eu o fogo e ela
a terra. Na loucura e frescor dessa paixão começo a
parte que me cabe:
É na encruzilhada dos 4 cantos, em Olinda, debaixo
do dragão, no
Bloco Misto Carnavalesco Reencanto
do Mundo Início de uma História de Glórias
, que
encontro Isadora, fantasiada de
Ísis
, seu homônimo
no Egito. Na cabeça uma serpente naja de ouro,
um colar de lápis lazúli e brincos de prata em meia-
lua. O faro chega primeiro: seu cheiro é uma
mistura de árvores aromáticas, mel, vinho e
feromônios.
Será
Kyphi
, o perfume sagrado dos
egípcios? Um aroma erótico emana de todos os
lados. O azul dos olhos é o mar do Caribe e a boca
escandalosa ri e goza. A luta transmuta-se em
brinquedo: capoeira é frevo, passo, fogo nas
entranhas vapor que circula é serpentina pelo corpo:
cóccix, sexo, barriga, coração, garganta, nuca,
cabeça, quadris. É bulício, alvoroço, besteira, alegria
nas pernas e pés.
O bloco
Elefante de Olinda
é
Ganesha
no carnaval.
E vem a Grécia viva entre nós a falofória: a
euforia fálica do
Bloco Mulher na Vara
e cada uma
delas sobe, faz piruetas, momices, amostrações,
mungangas. Isadora rebola, rodela, espirila, navega,
na enorme vara priápica que os homens carregam
Ísis
é a principal força
geradora, associada às ervas
curativas e aos poderes da
medicina, ao crescimento do
trigo, cujo cultivo marcou o
início do próprio Egito,
delineando a entrada na atual
época histórica, sendo a
mediadora e, por assim dizer, o
ponto de encontro entre
deuses e o mundo temporal.
Dela é o poder automovente
da geração, que tem a
agricultura como manifestação
exterior e as asas verdes e a
lua crescente como símbolos.
A raiz do seu nome tem
estreitos vínculos com a raiz
egípcia
pr,
que significa
casa,
ou lar
, sugerindo ser ela
senhora nas casas dos deuses.
Uma das mais sugestivas
características de
Ísis
é sua
relação com as
serpentes
enrodilhadas,
ou áspides, com
as quais sempre foi associada,
visto ser a s
erpente
, de
maneira quase universal, um
símbolo da f
orça vital,
a
essência enrodilhada da
própria vida, que eleva a
espinha ao topo da cabeça.
Essa atribuição da força da
vida à forma espiral é
particularmente verdadeira no
âmbito da
tradição tântrica
,
em que a k
undalini,
a serpente
da vida, que dormita na base
da espinha, no reino da
geração, é despertada à
medida que sobe pelo
S
ushumna,
o canal sagrado,
eixo do corpo, através da
abertura de Brahma,
concedendo ao adepto a
libertação.
Embora não possamos dizer
com certeza que
Ísis é Shakti,
nem que
Osíris é Shiva,
o pólo
12
Afirmam também que Ísis
não difere da Lua, que as
suas estátuas onde a
representam com cornos,
são imagens da Lua em
quarto crescente, e que as
que estão cobertas de preto
representam os
desaparecimentos ou
ocultações que sofre,
quando deseja e persegue o
Sol. Por isso invocam à Lua,
pendido-lhe bom êxito nos
seus amores, e Eudóxio diz-
nos que Ísis é quem decide
nos conflitos amorosos. Ísis
é, pois, a natureza
considerada como mulher e
apta para receber toda
geração. É neste sentido
que Platão a chama
Criadeira
e
Aquela
que tudo
contém.
A maior parte
chama-a a
Deusa de
infinitos nomes.
Os egípcios
celebram uma festa
chamada
A entrada de
Osíris na Lua
, que é o
começo da primavera. Por
isso, ao considerarem a
força de Osíris na Lua, os
egípcios dizem que este
deus se une com Ísis, que é
a força produtora. Também
chamam a
Ísis Mãe do
Mundo,
atribuindo-lhe uma
natureza masculina e
feminina, uma vez que,
fecundada e ornamentada
pelo Sol, também emite e
semeia nos ares os
princípios geradores.
Tudo quanto se comemora
nas festas noturnas de
Dionísio
, é análogo ao que
se narra sobre
Osíris
, sobre
o seu desmembramento, o
pela cidade
.
Um nome define um destino? Dionísio. Ter o
nome do deus da dança e do teatro, da
tragicomédia, do carnaval, define o meu destino?
Não é Ísis quem modela, do barro, lama do Nilo,
uma serpente venenosa que morde
, o deus
supremo, suplantando-o, e só concorda em curá-lo
sob a condição de que ele lhe revele seu nome
secreto?
É tempo de brincar/Cantando esta canção/Sorrir
sem ironia/Sem mágoa e ilusão/Não mais se
lamentar/Dançar com emoção/É tempo de
alegria/E paz no coração/É tempo de abraçar/Falar
irmã-irmão/Calar a dor ferina/Que doe na
solidão/É tempo de colher/Uma doce melodia/É
tempo de brindar/A luz de cada dia/ É tempo de
rasgar/A velha fantasia/Achar um novo
amor/Perdido na folia/É tempo de cantar/Num
coro, sem rival/É tempo de amar/Chegou o
carnaval.
O Carnaval agora é um eco entre Olinda e Recife.
Estamos no Hotel Riso da Noite, na rua da Aurora,
às margens dos rios Beberibe e Capibaribe.
Quer a mudança do seu destino Dionísio? Aqui
estou meu amor! Se me olha assim, sabe quem sou:
perigo, luz, risco. Vem, sou sua inexorável sôfrega
vontade, anseio, afã, gana, promessa, fome voraz e
insaciável alimento. Reza ávida, deseja-me até que a
sua boca encha-se d’ água.
Isadora na relva do seu corpo vejo o orvalho, sinto
a brisa, os cheiros, as coxas são peixes, entre os
desvãos, as algas e a luz em feixes. O vento levanta
todas as saias do planeta, vem
Ísis, Isadora, Diotima,
Afrodite, Vênus, Ariadne.
Unhas, dentes, carne, pele, mucosas mil bocas,
volúpia, sem pausa nem vírgula enguias terra fogo
central em torno do qual a
serpente enrodilhada dormita,
não há dúvida de que os dois
pares se encontram
interralacionados.
Nenhum deles pode existir sem
o outro: tal como
Osíris e Ísis
,
eles estão unidos, dissolvidos,
no ventre como um só; são a
realidade divina, da qual
quando combinamos nome e
forma,
nama e rupa,
mente e
matéria, surge o cosmo.
Arthur Versluis,
Os Mistérios Egípcios.
O Universo contém três coisas
que não podem ser destruídas:
a existência, a consciência e o
amor. Para saber o que
realmente é o amor, é preciso
que você descubra que você é
o amor. A força que faz a vida
se expandir é o desejo. Quando
o desejo segue o fluxo do
amor, beneficia a vida como
um todo. Quando o desejo está
bloqueado, o crescimento não
pode acontecer naturalmente.
O que significa crescer?
Significa deixar a vida renovar-
se a qualquer momento. O
desejo é a maneira de o
coração entrar em contato
com o desconhecido. Perder-se
13
seu regresso à vida, o seu
novo nascimento.
Ora bem, que os gregos
considerem Dionísio como
senhor e causa não só do
vinho, mas também do toda
substância úmida, é coisa
que basta para provar o
testemunho de Píndaro,
quando diz; “Oxalá possa
Dionísio, esse doador de
tantos gozos e esse santo
resplendor da estação dos
frutos, aumentar a produção
das árvores!” Também por
essa razão é proibido aos
adoradores de
Osíris
destruir qualquer árvore
frutífera e cegar qualquer
manancial. As procissões
sagradas celebradas em
honra deste deus são
precedidas de um copo
cheio d’água.
Também designam Osíris e a
religião meridional do
mundo com um junco, e
explicam este emblema
dizendo que ele representa
a irrigação e a gestação
universais, e que por
natureza parece
assemelhar-se ao órgão da
geração. Quando celebram a
festa
Pamylias
, que é uma
festa fálica, passeiam diante
dos olhos do público uma
estátua cujo falo é três
vezes maior do que o
normal. Com efeito, Osíris é
princípio, e todo princípio
multiplica pela fecundidade
tudo quanto dele provém.
Plutarco.
Ísis e Osíris.
água
,
ar,
calma respira
,
quem narra quando nossas
partículas dissolvidas?
Recife amanhece. Vamos saltitantes, mãos dadas,
em amplo balanço. Pelos seus olhos revejo a
paisagem e a música vem:
Coisa linda/ É mais que uma idéia louca/Ver-te ao
alcance da boca/Eu nem posso acreditar/ Coisa
linda/Minha humanidade cresce/Quando o mundo
te oferece/E enfim te dás, tens lugar/Promessa de
felicidade/Festa da vontade/Nítido farol,
sinal/Novo sob o sol/Vida mais real/Coisa
linda/Lua lua lua lua/Sol palavra dança nua/Pluma
tela pétala/Coisa linda/Desejar-te desde
sempre/Ter-te agora e o dia é sempre/Uma alegria
pra sempre.
Que seja essa a nossa canção principal. Sou uma
pessoa de trilha sonora.
Namoro é raro passeio.
Dionísio fica combinado: você será meu eterno
namorado!
Cuidado com pactos, senão os dois, pelo menos
um fica preso, mas na melhor hipótese,
dependendo do grau de intensidade do sentimento,
vindo de um, do outro ou dos dois, sempre
poderemos nos encontrar, pelas cidades, ao acaso.
Conheci um pouco de suas cidades: o carnaval, as
praias, as comidas, cantos, recantos, danças, poesia e
nossa paixão. Você é meu mundo, meu relógio de
não marcar horas, esquecê-las. Integração na cama
ou no cosmo? Derrapar nesse amor, ai que dor,
que pétala sensível e secreta. Meu amor menino,
amor possível, plausível, crível, incrível! Amor em
caráter de urgência, amor desesperado, antigo,
egípcio, de outros tempos. Um brinde ao nosso
encontro! Venha namorar também em minha
cidade. Na primavera?
no sexo é um prazer.
Encontrar-se no sexo é uma
bênção. Quando você
consegue promover o amor –
em si mesmo e nos outros – ,
você tornou-se um amante.
Todo desejo, mesmo aqueles
que você condena, está
tentando curar a sua falta de
amor. Quando você pergunta:
Quem sou eu?, A resposta
correta é: eu sou amor. Todas
as outras respostas são ilusões
que com o tempo passarão. No
amor, todas as coisas são
renovadas. O prazer é o sorriso
que o amor concede à
mortalidade. Condenar o sexo
foi o grande erro da
humanidade. O prazer é tão
divino quanto qualquer
catedral ou templo. O espírito
e a carne nunca estiveram
separados. Eles se mantêm
afastados apenas para flertar.
Todos os erros do mundo
surgem da crença no não-amor.
Você deseja uma escritura na
qual possa acreditar? Leia os
olhos do seu amante. Não
anseie por um céu distante.
Este mundo acrescido de amor
é o céu.
Deepak Chopra.
Kama Sutra.
14
O fim do século XX
testemunhou algo realmente
fantástico: a emergência de
uma religião aparentemente
morta durante tantos anos
que o mundo quase havia
esquecido de que ela um dia
existira. Essa religião é a
adoração de uma grande
Deusa, que pode ter muitos
nomes e imagens, mas
sempre representa a
divindade como uma
presença feminina: doadora
da vida, protetora, às vezes,
apavorante, destrutiva,
como
Kali
, na Índia, ou
Coatlicue
, no México, mas
sempre ligada à natureza e à
verdade dos nossos corpos.
E não apenas os corpos
femininos. Os homens
também têm descoberto uma
realidade espiritual na
imagem de uma Deusa viva e
abrangente que cria o
mundo e toda a vida, a partir
do seu corpo, não apenas
De:
Janaína <janaína@estrela.com.br
Para: Hermes <herm[email protected]om.br
Assunto: Narrativas
Hermes querido mensageiro
Como vai a parte que lhe cabe na ventura e na
aventura da vida? O que anda fazendo na Índia?
Mesmo que seja um duplo do deus sonso e ladrão,
que fez das tripas a primeira lira que animou todos
os sons, do deus ligeiro, volante, você prefere o
contraponto: a obra andante, uma escrita lenta,
meditada, saboreada, mais próxima da antiga carta
do correio ou mesmo do e-mail, pelo menos é o
que entendi da nossa conversa no
msn
. Vou
começar entrelaçando duas autobiografias: a minha
e a da terra, ambas não-autorizadas.
Nasci à beira mar. Talvez por isso seja Janaína, um
dos nomes de
Yemanjá.
A mais antiga memória são
os cheiros: sargaço, sal, lama, mangue, peixe,
maresia. As primeiras brincadeiras são com siris,
marias-farinha, castelinhos d’areia, estrelas-do-mar,
pedrinhas brancas polidas pelas ondas. A noção
inicial de infinito vem do mar. depois fui saber
que o sol nascia em outros lugares além do mar.
Cresci entre cajueiros, mangabeiras, coqueiros,
pescadores, jangadas, esperas, pescas em alto-mar,
arrastões. Juntando conchas em colarzinhos,
colando búzios nos ouvidos para ouvir o som do
mar. Cantando e dançando cirandas:
Estava na beira da praia/Ouvindo as pancadas das
ondas do mar/ Essa ciranda quem me deu foi
Lia/Que mora na ilha de Itamaracá.
Vim do Recife/Um rapaz me perguntou/Se na
James Lovelock, o principal
proponente da hipótese de que
a Terra é um organismo vivo
auto-regulador, começou a
formular suas idéias quando
pensava a respeito da maneira
de detectar vida em Marte.
Compreendeu que se os gases
que constituem a atmosfera da
Terra estivessem em equilíbrio
químico, como ocorre nas
atmosferas de Marte e Vênus,
nossa atmosfera deveria
apresentar cerca de 99% de
dióxido de carbono. Em vez
disso, ela contém apenas 0,03%
de dióxido de carbono, bem
como 78% de nitrogênio e 21%
de oxigênio. Essa composição
poderia ter surgido somente
graças às atividades dos
organismos vivos e somente
poderia ser mantida graças à
sua contínua atividade.
Lovelock dispara sua peculiar
questão: E se não fosse assim?
Ora, se a atmosfera
aumentasse em apenas 1% a sua
taxa de oxigênio, a
probabilidade de
15
uma vez há muito tempo
atrás, mas continuamente,
nos processos desdobrados
da existência. Na Grécia, a
Deusa assumia vida através
da narração de histórias,
rituais, procissões,
construção de templos e
sacrifícios. Atualmente, ela
retorna a nós através da
arqueologia, revelações
intuitivas, narração de
histórias, rituais, arte, e de
um modo de conhecimento
que muitas pessoas
acreditam ser o oposto da
religião- a ciência.
A teoria de Gaia, de James
Lovelock, Lynn Margulis e
seus colaboradores,
descreve a Terra como um
organismo vivo, um corpo
independente construído em
parte de muitos organismos
menores. Não sugerem
como metáfora, mas como
uma descrição real do
mundo. Nós nos
acostumamos de tal maneira
a pensar nos mitos, nas
deusas e deuses como
simbólicos,
que podemos
precisar de algum tempo
para compreender a
radicalidade de descrever o
Planeta como uma criatura
ciranda que eu vou/Tem morena bonita/Eu disse
tem, muita morena, mulata/Dessas que a morte
mata/E depois chora com pena.
Barracho de Nazaré/Cirandeiro de primeira/É uma
lembrança viva/Feito chama de fogueira.
São inseparáveis de mim o mar e a música. Antes de
tudo a voz da minha mãe. Antes de nós, o rádio: a
voz do mundo! Melodias, novelas, notícias,
reclames musicados, futebol, sotaques, culturas,
línguas, lágrimas. As vozes apaixonantes! Ainda
pelo rádio chegou a Bossa Nova: o canto podia ser
um sussurro perto do ouvido amado, ficava difícil
cantar do mesmo jeito, depois de Nara Leão e João
Gilberto. A televisão trouxe os festivais, a Jovem
Guarda, o Fino da Bossa, a Tropicália, o Pop
Mundial: Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin, Jimi
Hendrix. Foi primeiro o rádio quem me encantou:
viver é cantar. Janaína não é uma sereia? Decidi:
tons, notas, luz, vocábulos, partituras, improvisos,
timbre, soltura. Quero elevar minha voz à altura da
Música Brasileira!
O mar agora está revolto. Recordo com todas as
minhas células, moléculas, átomos, o que
aconteceu antes: vulcões expelindo lavas e vapor
d’água, cometas são gametas, espermatozóides
gigantes de gelo e matéria orgânica, derretendo em
recorrentes choques e fecundando o óvulo-corpo
terrestre incandescente e, junto com os vulcões,
criando toda nossa água. O mar vermelho de ferro,
radiatividade e calor, rochas derretidas, um
turbilhão de metais, gases superaquecidos, amônia,
sulfeto de hidrogênio, fósforo, metano, espirilam
num início de atmosfera, cortada por impactos
meteóricos e relâmpagos. A Terra gira rápida: um
dia talvez durasse dez horas, muitos desequilíbrios e
vem um dos maiores cataclismos: um planeta do
tamanho de Marte arranca-nos um pedaço: Eva, a
desencadeamento de incêndios
aumentaria em nada menos que
60%. E se a taxa de oxigênio na
atmosfera fosse apenas 4% a
mais que a taxa atual, um
simples raio de uma
tempestade bastaria para
incendiar todas as florestas do
Planeta! Mudando
do ar para a água, se a
concentração salina dos
oceanos, cuja taxa atual é de
3,4%, alcançasse 4%, a vida no
ambiente oceânico seria muito
diferente da que conhecemos.
Se ultrapasse 6%, simplesmente
não haveria qualquer vestígio
de vida animal, assim como
acontece no Mar Morto.
Finalmente, a atual
temperatura da crosta
terrestre, obtida no decorrer
da evolução de Gaia, garantiu
a faixa constante que hoje
conhecemos.
Se essa temperatura caísse
fora da faixa que vai de 15° c a
35 °c, a vida não teria
condições de se sustentar.
Calcula Lovelock que, a
produção de calor do sol
aumentou entre 30% a 50%
desde a origem da vida.
Entretanto, por todas as
evidências, a temperatura da
Terra permanece constante.
Gaia como eu vejo, não é uma
mãe que, excessivamente
16
realmente viva.
O conceito permite-nos
readquirir o pleno poder do
mito como uma história que
é genuinamente verdadeira,
física e metaforicamente. A
teoria de Gaia reintegra o
mito à ciência e a ciência ao
mito.
Rachel Pollack.
O Corpo da Deusa.
A teoria de Gaia não afirma,
como muitos pretendem, que
a Terra é um só organismo;
todavia, a Terra, no sentido
biológico, tem um corpo
mantido por complexos
processos fisiológicos. A
vida é um fenômeno
planetário e a superfície da
Terra está viva há pelos
menos 3 bilhões de anos.
Em minha opinião, a atitude
do homem de se
responsabilizar pela Terra é
cômica – a retórica dos
impotentes. É o Planeta
quem toma conta de nós, e
não o contrário. A
obrigação moral que
presunçosamente nos
atribuímos de governar uma
Terra instável ou curar
Lua, uma
c
ostela da Terra
.
A vida, desde as bactérias até toda biosfera,
continua ao criarmos novas quantidades, qualidades
e diversidade de nós mesmos. O padrão de
organização de um sistema vivo é sempre um
padrão em rede, individual e coletivamente. Cada
componente da rede produz ou transforma outros
componentes, em um jogo recursivo: rés, ires,
seres, marés. A manutenção de um sistema vivo é
feita por meio da assimilação de energia útil e
dissipação da energia não-utilizada, de modo geral,
em forma de calor. um fluxo de energia e
matéria. Um sistema vivo é, ao mesmo tempo,
aberto e fechado. Estruturalmente aberto, mas,
organizacionalmente, fechado. A matéria e a
energia fluem através, mas o sistema mantém a
forma estável, e o faz de maneira autônoma, por
meio da auto-organização,
autopoiese
ou auto-
criação. Esse fluxo de energia e matéria ou
metabolismo
, é a incessante química de
auto-manutenção, criação, e é uma característica
essencial da vida. Mas o sistema pode se afastar do
equilíbrio, até alcançar um limiar de estabilidade,
um ponto de bifurcação. Trata-se de um ponto de
instabilidade, no qual, novas formas de ordem
podem emergir espontaneamente, resultando em
desenvolvimento e evolução. Sistemas bioquímicos
complexos, operando afastados do equilíbrio,
morrem ou criam novas estruturas e seres de
ordem e desordem diferentes.
A própria vida é a maior força geológica da Terra:
move e transforma oceanos, continentes,
montanhas, atmosfera. Pólos, campos magnéticos,
o núcleo da Terra é um gigantesco dínamo. O
núcleo
: coração da terra, é de níquel e ferro
ferventes: nas entranhas e na superfície a terra
continua uma estrela; depois, em estado pastoso,
está o
manto,
em cima do qual se deitam as
placas
amorosa, seja tolerante em
face da má conduta, nem frágil
e delicada donzela em perigo
frente à brutal humanidade.
Ela é dura e severa, sempre
mantendo o mundo aquecido e
confortável para aqueles que
obedecem as regras, mas
implacável na destruição
daqueles que as transgridem.
Rupert Sheldrake
O Renascimento da Natureza
Os compostos orgânicos de
carbono se encontram por
toda parte. Eles constituem
20% da poeira interestelar, e a
poeira interestelar constitui
0,1% da poeira galáctica. Nesta
nuvem orgânica, que impregna
o universo, a vida não pode
deixar de surgir. Tal conclusão
me parece inescapável.
Aqueles que afirmam que a
vida é um acontecimento
extremamente improvável não
examinaram com a devida
atenção as realidades químicas
que subjazem à origem da vida.
17
nosso Planeta doente é uma
prova de nossa capacidade
de nos iludir. Na verdade,
temos de nos proteger de
nós mesmos.
Lynn Margulis
O Planeta Simbiótico
A vida é fundamental para o
processo de organização da
matéria. Rejeito a idéia de
que tenhamos enveredado
por um desvio chamado
existência orgânica, que
nosso verdadeiro lar é a
eternidade. Essa
modalidade de existência é
importante no ciclo. É um
filtro. Há a possibilidade de
extinção, a possibilidade de
cair para sempre na
physis,
e, nesse sentido, a metáfora
da queda é válida. Há uma
obrigação espiritual, uma
tarefa a ser cumprida. Mas
não é algo tão simples
quanto seguir um conjunto
de regras ditado por outra
pessoa. O empreendimento
noético
é uma das
obrigações primárias da
existência. Dele depende
nossa salvação. Nem todos
precisam ler livros de
alquimia ou estudar
moléculas supercondutoras
para fazer a transição. A
maioria das pessoas
consegue fazê-la
ingenuamente,
t
ectônicas
, onde repousam os
c
ontinente
s
, jangadas
de pedra. Toda história da Terra, até os nossos dias,
é regida pelas placas tectônicas e suas danças. As
placas principais:
Pacífica, Eurasiática, Arábica,
Africana, Indo-Australiana, Antártica, Nazca, Sul-
Americana, Cocos, Caribe e Norte-Americana
. As
placas tectônicas são muito maiores e podem
carregar mais de um continente, e seus
movimentos abrem e fecham oceanos, elevam
montanhas, submergem continentes. Supõem-se
que no inicio os continentes estavam unidos em
um só:
Pangéia
. Na partida, deriva dos continentes,
cada um carregou sua população de animais e
plantas, e ao serem isolados de sua origem comum,
evoluíram, e esta evolução foi uma grande
contribuição em variações e diversidade de espécies.
Em algum momento saímos da água: caudas,
barbatanas, patas, asas, escamas, cascas, couraças,
pelos, penas, peles. Rastejamos, andamos, pulamos,
voamos, respiramos. Liquens, anfíbios, répteis,
insetos, pássaros, mamíferos. Mas a evolução é
tortuosa: os golfinhos e as baleias são descendentes
de animais totalmente terrestres, que voltaram para
a água cerca de 55 milhões de anos. Não vêm a
terra firme sequer para reproduzir, são mamíferos e
respiram ar. Seus parentes próximos são os
hipopótamos, em seguida os porcos e depois os
ruminantes. As focas e os leões-marinhos voltaram
parcialmente. outro grupo de animais que
voltou para a água e mais tarde tornou a reverter o
processo, voltando para a terra pela segunda vez:
são as tartarugas-marinhas, menos apegadas à água
do que as baleias, pois ainda desovam na praia.
Respiram ar e saem-se melhor do que as baleias
nesse ponto, porque extraem oxigênio adicional da
água.
Amanhece. Nenhuma brisa. Límpido espelho, o
Ou a vida é uma manifestação
da matéria, reprodutível e
comum, dadas certas
condições, ou é um milagre. O
universo é uma sementeira de
vida. O universo não é o cosmo
inerte dos físicos, com uma
pitada a mais de vida por
precaução. O universo é vida,
com a necessária estrutura à
sua volta.
Consiste principalmente em
trilhões de biosferas geradas e
sustentadas pelo restante do
universo.
Christian De Duve
Poeira Vital
A evolução começa com uma
célula viva, a primeira que
provoca todo processo. A
célula não nucleada torna-se
nucleada, depois multicelular,
ramificando-se pelos três
reinos: fungos, plantas e
animais. Cada uma dessas
transformações é um
gigantesco salto quântico de
criatividade. No reino animal, a
transformação criativa produz
primeiro os invertebrados,
depois os vertebrados,
começando pelos peixes. Dos
peixes vêm os anfíbios, depois
os répteis. Estes dão um salto
quântico até os ramos das aves
e dos mamíferos. Chama-se
essa consciência quântica,
identificada com essa vida
única em evolução na Terra,
de consciência de Gaia. A
seleção natural torna-se a
escolha que Gaia faz com o
raciocinando com clareza
sobre o presente, mas nós,
intelectuais, estamos presos
a um mundo onda há
informações em demasia.
Perdemos a inocência. Não
podemos esperar atravessar
a ponte estreita mediante um
bom ato de contrição; isso
não é suficiente. Precisamos
compreender.
Terence MacKenna.
O Retorno à Cultura Arcaica
Todos os homens têm
consciência da tragédia na
vida. Mas a tragédia como
uma forma de drama não é
universal. A arte oriental
conhece a violência, a dor, e
o golpe de desastre natural
ou planejado; o teatro
japonês é cheio de
ferocidade e morte
cerimonial. Mas a
representação do
sofrimento e heroísmo
pessoal que chamamos
drama trágico é distinta da
tradição oriental. Ela se
tornou uma intensa parte da
m
ar agora é
e
strela d’
c
achoeiras,
sargaços, pelos
deusa.
toda intensa: cada onda, crista, espuma, peixe, grão
de areia, coral, arrecife, furo, poro, grota, vácuo,
p
ulsa
Cosmo.
De:
Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: H
Assunto: Paixão
Gosto mesmo é de
respeita razão, lógica, coerência, distância,
seq
u
esperança, que aceita a fugacidade das coisas e
mesmo sem ter mais nada ainda dança. Vontade do
c
oração
Isadora aprendi a nunca mais desistir de nada
em
juventude viçosa, cheia de dança, esperança,
festança. Na boca o riso inunda minh’alma a luz
dos seus olhos azuis
L
épido menino,
r
egozijo!
juramentos.
impossível, ninguém
durante todo tempo da
m
áxima
ar agora é
l
ago: deito
-
me nua e contemplo a
strela d’
alva. Dádiva generosa da vida: f
lorestas,
achoeiras,
rios, mares; bichos, trigos, a
lgas,
sargaços, pelos
. De mim mesma m
ãe, amante,
deusa.
Envolvo, enovelo, aconchego, escancaro-
me
toda intensa: cada onda, crista, espuma, peixe, grão
de areia, coral, arrecife, furo, poro, grota, vácuo,
ulsa
, cada vez mais acho que posso a
braçar o
Cosmo.
Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: H
ermes <hermes@caduceu.com.br
Assunto: Paixão
Gosto mesmo é de
a
mor impossível, desse que não
respeita razão, lógica, coerência, distância,
u
ência; que ri na cara do futuro e zomba da
esperança, que aceita a fugacidade das coisas e
mesmo sem ter mais nada ainda dança. Vontade do
oração
: coragem, p
aixão, além de tudo, com
Isadora aprendi a nunca mais desistir de nada
v
ital
em
mim. Ela passeia em minha v
ida, brisa fresca
juventude viçosa, cheia de dança, esperança,
festança. Na boca o riso inunda minh’alma a luz
dos seus olhos azuis
. Sua tépida pele suave é
macia
épido menino,
a dádiva agradeço
à Deusa e me
egozijo!
Mortais jamais deveriam f
azer
juramentos.
A
gente finge que desiste: não,
impossível, ninguém
aguenta nem
consegue,
durante todo tempo da
vida manter o prazer
em
áxima
voltagem.
A sensação é sempre a mesma
18
me nua e contemplo a
lorestas,
lgas,
ãe, amante,
me
toda intensa: cada onda, crista, espuma, peixe, grão
de areia, coral, arrecife, furo, poro, grota, vácuo,
braçar o
mor impossível, desse que não
respeita razão, lógica, coerência, distância,
ência; que ri na cara do futuro e zomba da
esperança, que aceita a fugacidade das coisas e
mesmo sem ter mais nada ainda dança. Vontade do
aixão, além de tudo, com
ital
ida, brisa fresca
juventude viçosa, cheia de dança, esperança,
festança. Na boca o riso inunda minh’alma a luz
macia
.
à Deusa e me
azer
gente finge que desiste: não,
consegue,
em
A sensação é sempre a mesma
ambiente não vivo, de forma
simbiótica, para sua jornada
evolucionária conjunta na
transformação do inconsciente
em consciente. O ambiente não
escolhe a biota, nem Gaia – a
biota escolhe o ambiente, mas,
por trás das cenas, a
consciência quântica//Deus
escolhe o curso de ambas.
Desse modo, gostar-se-ia de
acreditar que o darwinismo e a
teoria de Gaia, juntas,
expressam completamente a
verdade total sobre a evolução
Amit Goswami
Evolução criativa das espécies
O amor não vence a morte. É
uma aposta contra o tempo e
seus acidentes. Pelo amor
vislumbramos, nesta vida, a
outra. Não a vida eterna e sim,
a vivacidade pura. Ao falar da
experiência religiosa, Freud se
referia ao sentimento
oceânico, esse sentir-se
envolto e movido pela
totalidade da existência. Ao
nascer, fomos arrancados da
totalidade; no amor todos
sentimos voltar à totalidade
original. Por isso as imagens
poéticas transformam a pessoa
amada em natureza- montanha,
água, nuvem, estrela, selva,
mar, onda – e, por sua vez, a
natureza fala com se fosse
19
nossa percepção das
possibilidades da conduta
humana; a
Oréstia, Hamlet e
Fedra
estão tão arraigadas
em nossos hábitos mentais,
que esquecemos o quanto é
estranha e complexa a re-
encenação da angústia
particular em um palco
público. Essa idéia e a visão
do homem que ela implica
são gregas. A tragédia é
alheia da percepção judaica
do mundo.
O Livro de Jó
é
sempre citado como uma
instância da visão trágica.
Mas essa fábula pertence ao
outro extremo do judaísmo,
e mesmo aqui uma mão
ortodoxa tem insistido nos
clamores da justiça contra
os da tragédia: ”Assim o
Senhor abençoou o último
fim de Jó mais do que o
início: pois ele possuiu
quatorze mil ovelhas, e seis
mil camelos, e mil parelhas
de bois, e mil mulas”. O
Senhor devolveu em bens a
destruição enviada ao seu
servidor; Ele compensou Jó
por suas agonias. Mas onde
há compensação, há justiça,
não tragédia. Essa demanda
por justiça é o orgulho e o
túmulo da tradição judaica.
Jeová é justo, mesmo em sua
fúria. Mas na somatória do
tempo, não pode haver
dúvidas de que os caminhos
de Deus para com o homem
p
aixão: absorto, como passei tanto tempo morto?
Fechar meu coração que nada nem ninguém
consigam. Tumulto de mil desejos é difícil ser deus
vivo. Teremos coragem de viver a eternidade que
nos cabe? O que faço se meu coração vagabundo
quer vagar o mundo? Pela primeira vez não sinto
culpa, não é uma bênção? Experimentamos a
energia do
arquétipo,
mas pra Janaína é
estereótipo: um velho de quase sessenta,
apaixonado por uma mulher de menos de trinta.
Jung
nos alerta que a identificação total do
indivíduo com o arquétipo pode nos partir em mil
pedaços. Esse teria sido o caso de
Nietzsche
,
flutuando entre
Dionísio e Cristo
. Creio que o
maior perigo é o indivíduo se sentir um deus único,
ilhado no mar infinito do cosmo. É o ego quem
não aguenta a potência máxima do arquétipo! Se
todos nós somos, simultaneamente, humanos e
cósmicos, onde estaria o delírio de grandeza? O
termo
arquétipo
foi utilizado por Platão para
significar
modelo ideal
,
tipo supremo, protótipo
,
idéias de Deus,
preexistentes, eternas, anteriores à
criação das coisas sensíveis. Nós somos apenas
sombras, projeções, precários hologramas, sem
nitidez, simulacros dos arquétipos. Para Jung, o
conceito de arquétipo deriva da observação
reiterada de que os mitos e os contos da literatura
universal encerram temas bem definidos, que
reaparecem sempre e por toda parte. Encontramos
esses mesmos temas nas fantasias, nos sonhos, nas
idéias delirantes e nas ilusões dos indivíduos que
vivem atualmente. A essas imagens e
correspondências típicas, ele denominou
representações arquetípicas.
Quanto mais nítidas,
mais são acompanhadas de tonalidades afetivas
vívidas. Elas nos impressionam, nos influenciam,
nos fascinam. São
numinosas
, comotivas,
inexprimíveis, misteriosas, tremendas, são
o
totalmente outro;
essas imagens são propriedades
que possibilitam a experiência imediata do divino e
mulher. Reconciliação com a
totalidade do mundo. Também
com os três tempos. O amor
não é a eternidade; tampouco
é o tempo dos calendários e
dos relógios, o tempo
sucessivo. O tempo do amor
não é grande nem pequeno: é a
percepção instantânea de
todos os tempos num só, de
todas as vidas num instante.
Não nos livra da morte, mas
nos faz vê-la cara a cara. Esse
instante é o reverso e o
complemento do sentimento
oceânico. Não é o regresso às
águas da origem, mas sim a
conquista de um estado que
nos reconcilia com o exílio do
paraíso. Somos o teatro do
abraço dos opostos e da sua
dissolução, resolvidos numa só
nota que não é de afirmação
nem de negação, e sim de
aceitação. O que vê o casal, no
espaço de um piscar de olhos?
A identidade da aparição e
desaparição, a verdade do
corpo e do não-corpo, a visão
da presença que se dissolve
num esplendor: vivacidade
pura, o ritmo do tempo.
Octavio Paz
A Dupla Chama
Psiquê
, a terceita filha de um
rei, é adorada pelos homens
como uma deusa, em razão de
sua excepcional beleza. Mas
ninguém ousa pedi-la em
casamento, ao passo que suas
irmãs, que nada têm de
extraordinário, são casadas.
Eros
se apaixona ao ver
Psiquê
. Os pais de
Psiquê
consultam o oráculo, a fim de
conseguir um marido para ela,
e o oráculo diz: leva, ó rei, tua
filha para o rochedo mais alto
do monte, e a expõe
suntuosamente formosa para
as núpcias mortais. Não
esperes para genro um homem
de estirpe mortal, mas um
monstro cruel e feroz, cercado
de cobras.
20
são justos. Não somente
justos, eles são também
racionais. O espírito judaico
é veemente em sua
convicção de que a ordem
do universo e dos bens do
homem é acessível à razão.
O drama trágico surge da
compreensão de que a
necessidade é cega e o
encontro do homem com ela
lhe roubará seus olhos, seja
em Tebas ou em Gaza. A
asserção é grega, e o
sentido do trágico da vida
construído a partir daí é a
maior contribuição do gênio
grego ao nosso legado. É
impossível estabelecer
precisamente onde ou como
a noção de tragédia formal
se apossou da imaginação
pela primeira vez. Mas a
Ilíada
é a arte trágica
primeira. Aí estão
estabelecidos os motivos e
as imagens em torno das
quais o sentido do trágico
se cristalizou por quase três
mil anos de poesia
ocidental: o encurtamento
da vida heróica, a exposição
do homem à criminalidade e
ao capricho do inumano, a
queda da Cidade. Note a
diferença crucial: a queda
de Jericó ou Jerusalém é
meramente justa, enquanto
que a queda de Tróia é a
primeira metáfora da
tragédia. Quando uma
têm sua origem no
a
rquétipo que, em si mesmo,
escapa à representação; forma preexistente e
inconsciente, que parece fazer parte da estrutura
psíquica herdada e pode, portanto, manifestar-se
espontaneamente sempre e por toda parte. É muito
comum o mal-entendido de considerar o
arquétipo como algo que possui um conteúdo
determinado; em outros termos, faz-se dele uma
espécie de representação do inconsciente. É
necessário sublinhar o fato de que os arquétipos
não têm um conteúdo determinado; eles são
determinados em sua
forma
e assim mesmo em
grau limitado. Uma imagem primordial tem um
conteúdo determinado, a partir do momento em
que se torna consciente e é, portanto, preenchida
pelo material da experiência consciente.
Para você entender melhor o destino onde me
meto, vamos recordar o mito:
Dionísio
, filho de
Zeus
com a mortal
Sêmele
, filha
de
Cadmo e Harmonia.
Dionísio, dos deuses o mais
jovem e o único que tem mãe mortal, pertence à
segunda geração dos Olímpicos, como
Hermes,
Apolo e Ártemis
.
Zeus
, quando a paixão estava no
auge, disse a
Sêmele
que pedisse o que quisesse! No
princípio, Sêmele tinha tudo o que desejava. Mas
depois, grávida, talvez inspirada, envenenada,
pelos ciúmes de Hera, esposa de Zeus e deusa do
casamento, quis que ele se mostrasse em todo seu
poder e esplendor! um deus não volta atrás.
Uma vez prometido, cumprido: Sêmele, incapaz de
suportar a visão, transfiguração, em relâmpagos,
trovões, raios e fogo, foi fulminada! Zeus apressou-
se em arrancar-lhe a criança, que estava no sexto
mês de gestação, e enxertou-a imediatamente
dentro de sua coxa uterina. Quando deu à luz, por
ser duas vezes nascido, o menino recebeu o nome:
Dionísio. A criança foi confiada a
Hermes
, seu
irmão e parteiro, e esse o deu para criar ao rei
Ele voa pelos ares e não
poupa, viperino, ninguém.
Destrói tudo, pois sabe como
fazê-lo, com ferro e fogo. Faz
tremer o próprio Zeus e
aterroriza os imortais, pois
também eles estremecem de
horror diante das trevas dessa
fonte,
Estige
, de águas
envenenadas. Os infelizes pais
obedecem ao oráculo.
Psiquê
não é morta, mas levada por
Eros
, para viver uma vida
paradisíaca com um marido
invisível. No palácio de Eros
Psiquê se vê sozinha, embora
cercada de servidores
invisíveis e de tudo que é
maravilha. O esposo, cuja
identidade não conhece e a
quem não tem direito de ver,
só se aproxima à noite, com
seu corpo ardente que a faz
desfalecer de prazer. Apesar
da felicidade em que vive,
Psiquê
sente saudades da
família e com quem falar do
seu amor. Eros previne-a
contra os perigos de uma
visita, mas Psiquê sucumbe à
inveja de suas irmãs, que dizem
que seu misterioso esposo é
uma serpente que quer matá-la
e, por isso, deve ser eliminado.
Quando a noite chega, ela se
arma de uma tocha e de um
punhal e surpreende o esposo
adormecido: reconhecendo
Eros por seus arco e flechas e
por suas asas, tenta voltar o
punhal contra si mesma, mas
deixa cair um pouco de cera
derretida sobre o ombro do
deus que, sentindo-se
queimado, desperta.
Eros
então alça vôo, e
Psiquê,
tentando ainda pendurar-se a
ele, é arrebatada, mas acaba
caindo no deserto. Cheia de
culpa e desesperada,
repudiada por
Eros, Psiquê
quer atirar-se num rio, mas a
intervenção do deus
a
impede de fazê-lo; este incute-
lhe coragem para agir e obter o
perdão do esposo, ao invés de
dar-se uma morte desonrosa. O
21
cidade é destruída por ter
desafiado Deus, sua
destruição é um instante
passageiro no desígnio
racional da intenção de
Deus. Seus muros se
erguerão novamente, na
terra ou no reino dos céus,
quando as almas dos
homens forem restauradas
para a graça. O incêndio de
Tróia é definitivo porque é
desencadeado pelo esporte
feroz dos ódios humanos e
pela escolha do destino
temerário, misterioso.
George Steiner.
A Morte da Tragédia.
Desde a origem das
sociedades, é pelas danças
e pelos cantos que o
humano se afirma como
membro de uma comunidade
que o transcende. O
momento ascendente do
humano não se registrou
apenas uma vez na origem
das grandes civilizações,
com a paixão de
Ísis e Osíris
ou de
Ariadne e Dionísio
,
com a
dança de Shiva
. Ele
nasce da experiência
incessante do trabalho
humano: em cada
organização coletiva a
comunidade se realiza, e se
realiza de maneira rítmica. A
Átamas
e
a
sua mulher
,
Ino
, recomendando que
vestissem o pequeno Dionísio com roupas
femininas, para despistar da perseguição de
Hera
,
que o queria matar. Hera não se deixou enganar e
enlouqueceu Ino e Átamas, os pais adotivos. Então,
Zeus levou Dionísio para longe da Grécia, para um
país chamado
Nisa
, que uns situam na Ásia e
outros na África, e o jovem deus foi criado pelas
sete
ninfas:
Ambrósia, Eudora, Esile, Corónis,
Díone, Polixo e Feo
, as quais foram também suas
primeiras
mênades,
as dançarinas do seu cortejo e,
depois, foram transformadas em estrelas: as
Híades
,
um grupo que fica próximo às
Plêiades
e cuja
aparição coincide com a primavera. Foram as ninfas
que revelaram a Dionísio os segredos da natureza.
Para evitar que Hera o reconhecesse, Dionísio foi
metamorfoseado em cabrito. adulto, o deus
descobriu a videira e seu tutor, o velho sátiro
Sileno,
ensinou-lhe a produzir o vinho, mas Hera
enlouqueceu-o. Em sua loucura, Dionísio vagou
pelo Egito e pela Síria. Desse modo, regressando da
Ásia, atingiu a Frígia, onde foi acolhido pela
deusa
Cibele
, que o purificou e iniciou nos ritos do seu
culto. Curado da loucura, Dionísio dirigiu-se à
Trácia, onde foi mal recebido pelo rei
Licurgo,
que
tentou aprisioná-lo, sem conseguir, pois o deus
fugiu para junto de
Tétis, a nereide
, que lhe deu
abrigo em seu leito: o mar. Mas Licurgo conseguiu
capturar as mênades. Então, milagrosamente, as
mênades foram libertadas e Licurgo acometido de
loucura: julgando destruir a videira, uma das plantas
sagradas de seu inimigo, cortou as próprias pernas e
dilacerou seu filho. Caindo em si, apercebeu-se
também de que a esterilidade atingia o seu país.
Interrogado o oráculo, esse revelou que a cólera de
Dionísio só se apaziguaria se Licurgo fosse morto, o
que os seus súditos providenciaram, atando-o a
quatro cavalos que o esquartejaram. Da Trácia,
Dionísio dirigiu-se à Índia, e é aí que se situa a
origem do cortejo triunfal, de que se faz
acompanhar: carro puxado por panteras e
ornamentado por videiras e heras, ao som de
primeiro ato de
Psiquê
, com
vistas à redenção, será vingar-
se das irmãs, que ela envia à
morte, enganando-as da mesma
forma. Depois dessa primeira
purificação, ela se põe a vagar
pela Terra para reencontrar
Eros
que, durante todo tempo
das provas purificadoras e
iniciáticas, permanecerá
prisioneiro de sua mãe,
Afrodite, enfraquecido pelo
seu ferimento. Para
demonstrar compunção,
Psiquê
pede a proteção a
Deméter
e
Hera
, que ao lado
de
Ísis
, duplo das duas, são as
deusas mais importantes,
depois de Afrodite, sua grande
adversária. Mas, prevenidas
por Afrodite, as deusas a
repelem, apesar de
emprestarem-lhe simpatia.
Depois de muito perambular,
Psiquê,
desanimada, decide
entregar-se a Afrodite,
justamente quando esta havia
acabado de obter a ajuda de
Hermes
, a quem incumbiu de
propalar por toda a Terra que
Psiquê
era uma escrava
fugitiva.
Uma vez mais vem à tentação
do suicídio, e é com o
sentimento de fracasso de sua
busca que ela chega ao templo
de Afrodite. Antes de impor-
lhe uma série de provas
impossíveis,
Afrodite
entrega
Psiquê
a seus escravos:
Hábito,
Preocupação
e
Tristeza,
que a
farão passar por humilhações,
além de chicoteá-la. Em
seguida,
Psiquê
deverá
enfrentar quatro provas, cada
uma mais perigosa e difícil que
a outra. A primeira consiste
em separar, numa única noite,
um monte de grãos, mas
Psiquê
é ajudada pelas formigas, que
representam o elemento terra e
que se liga à deusa
Deméter
. A
segunda prova será tosar
ovelhas ferozes, mas Psiquê é
ajudada por um caniço, que
representa o elemento água, e
é usado pelo deus
para
22
ressurreição de
Dionísio
,
como a dança de
Shiva
,
anunciam o fim da
individualização, fonte de
todo sofrimento, e a unidade
fundamental de tudo o que
existe. O maior ensinamento
dessa tragédia é a
esperança radiosa de que,
para além do isolamento
dos indivíduos, dispersos
como os membros do deus
Osíris
no Egito, cada
parcela do todo será
reunida por nós, como os
membros do deus, pela
compaixão de
Ísis.
Dançar a Vida.
Roger Garaudy,
flautas, tambores, címbalos, dançam:
m
ênades
encantam serpentes enroscam-se em seus corpos,
saltam bodes, touros, jumentos, tigres, leões,
leopardos, corças, sátiros, Sileno, Príapo e Pã.
Recordo o mito com o intuito de esclarecer o
desígnio, desenho do meu destino. Quando
menino, havia uma maldição que todos temíamos:
pra o raio que o parta!
Depois de adulto, esse
temor perdeu importância, parecia algo que se
dizia para assustar, controlar, crianças. Em um dia
de chuva, relâmpagos e trovões, o pai de Isadora
pescava no rio e foi fulminado por um raio! O pai,
ele
é
Sêmele
! Ficou ainda mais ferino o ausente
sentido de tudo, diante da absurda morte. Isadora é
dançarina e sua irmã atriz. Dionísio pode salvá-
las dessa tragédia.
Não conversei ainda sobre essa coincidência, será
que ela e a irmã têm consciência dessa trama
mítica? Como nunca antes, o encontro com
Isadora e a tragédia, joga em nossos braços a Grécia.
Por ares, terras e mares,
arquétipo da vida
indestrutível
;
o deus que mais ama as mulheres;
seja
o que for
Dionísio
, algo trama, convoca e quer:
somos do cortejo, dançamos juntos e
incorporamos entusiasmos:
Evoé, Evoé, Evoé
!
Dionísio
fazer suas flautas. A terceira
prova é secar a fonte das
águas envenenadas, mas
Psiquê
escuta as próprias águas
gritarem contra qualquer
aproximação. Ela é auxiliada
por uma águia, pássaro de
Zeus,
que seca a água.
O elemento aqui é o ar. A
última prova é a descida ao
reino de
Hades
, nas
profundezas da Terra, para
trazer para
Afrodite
, a caixa
de pinturas de rosto da deusa
Perséfone
. Novamente ela
tenta o suicídio, tentando
jogar-se do alto de uma torre.
A própria torre, atributo de
Hera
e do elemento fogo
,
diz o
que ela deve fazer. Ainda que
vitoriosa nas provas,
Psiquê
sucumbe, mais uma vez, à sua
fraqueza: a despeito das
recomendações da torre, abre
a caixa de
Perséfone
: um sono
de morte toma conta dela, mas
é despertada e liberta por
Eros.
Graças a intercessão de
Eros, Zeus concede a
imortalidade a
Psiquê.
A
criança, fruto desse amor, é
Volúpia.
Pierre Brunel.
Dicionário de Mitos Literários.
23
Hera, filha de Cronos e Réia,
nasceu na ilha de Samos.
Após haver banido seu pai
Cronos, Zeus, irmão gêmeo
de Hera, procurou-a em
Cnossos, Creta, onde a
cortejou, primeiro sem
nenhum sucesso. Somente
quando ele se
metamorfoseou de cuco
molhado é que Hera teve
pena do irmão e o aqueceu
carinhosamente no peito.
Zeus, então, retomou
imediatamente sua forma
verdadeira e a violou,
forçando-a a casar-se com
ele por causa da vergonha.
Só Zeus, o pai do Céu, podia
controlar o raio. Era com a
ameaça do seu lampejo fatal
que controlava sua família
briguenta e rebelde no
2
As paixões viajantes
De: Hermes <hermes@caduceu.com.br
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Sobre paixão e triângulos amorosos
Parece que o deus do qual carrega o nome
incorporou de vez! Sei que está arrebatado pela
hýbris
, a força excessiva, a desmedida, a violência da
paixão, a exaltação de si mesmo, o raio certeiro dos
deuses! Esse era um grande temor e perigo para os
gregos. Claro que o pai de Isadora pode ser
Sêmele
.
A pessoa atravessada pela tragédia é forçada a cortar
todo supérfluo e alcançar o mais difícil: o ser em
sua expressão mais simples. Mesmo que esteja
inexpugnável vou recontar, de outro jeito, o
triângulo amoroso
Sêmele-Zeus-Hera
ou, se
quiser:
Isadora-Dionísio-Janaína.
Na tradição dos tempos cretenses pré-olímpicos,
Hera
era descrita como a grande Deusa-Mãe e
Deusa do Amor.
Zeus
é seu irmão caçula, aparece
como deus mortal e filho-amante que
Hera
escolheu para marido e com quem se casou.
Encontramos assim em
Hera
a representante de
uma ordem matriarcal. Embora tenha sido
Hera
quem na verdade forçou o casamento, os relatos
posteriores narram que a iniciativa do
relacionamento partiu de
Zeus
e, assim, assinalam a
transição do matriarcado cretense pré-olímpico
para o patriarcado dos tempos gregos olímpicos. A
tradição pré-olímpica narra que
Réia
escondeu
Zeus
, seu filho recém-nascido, do pai
Cronos
,
porque este, com medo de ser alijado do poder, por
um dos seus filhos, o que o oráculo revelara,
devorava seus descendentes masculinos. Mas
Réia
quis ficar com esse filho.
Hera
, a irmã mais velha de
É oportuno lembrar que
Dionísio
é essencialmente um
deus das mulheres. Seu culto
era predominantemente uma
prerrogativa das mulheres.
Embora masculino e fálico, não
há misoginia nessa estrutura de
consciência porque ela não
está separada de sua
feminilidade.
Dionísio
, em um
de seus epítetos é homem e
mulher, numa só pessoa. Desde
o início ele era andrógino, e
não só na sua forma
efeminada, conhecida pelas
representações posteriores.
Não é uma meta a ser
alcançada, mas uma
possibilidade apriorística,
sempre presente para todos.
Pertencer a um só deus, a
qualquer cosmo único,
qualquer maneira única de ser
no mundo, é em si uma espécie
de
hýbris.
A consciência
monoteísta impõe essa
hýbris.
Embora ofereça um imenso
apoio para uma psique
24
monte Olimpo. Ele também
ordenava os corpos
celestes, compunha leis,
fazia cumprir juramentos e
pronunciava oráculos.
Quando sua mãe Réia,
prevendo os problemas que
sua lascívia viria causar,
proibiu-o de se casar, ele,
furioso, ameaçou violá-la.
Apesar dela imediatamente
ter-se transformado numa
serpente apavorante,
Zeus não se deixou
intimidar, transformando-se,
por sua vez, numa serpente
macho que, enrolando-se
nela num nó indissolúvel,
cumpriu a ameaça. Foi
então que começou sua
longa série de aventuras
amorosas. Ele gerou as
Estações e as três Parcas
com Têmis; as Cárites, que
são as Graças entre os
romanos, com Eurínome; as
Musas com Mnemósine: a
Memória, com quem
partilhou o leito por nove
noites; e também, diz-se,
Perséfone, a rainha do
Zeus
, pediu à mãe que lhe desse o pequeno
Zeus
,
criou-o em segredo, escolheu-o para marido e
casou-se secretamente. Depois que
Zeus
subjugou
seu pai
Cronos
, ele tornou-se para
Hera
um
carrasco cruel, análogo ao que o pai antes era para
sua mãe
Réia
. Do mesmo modo como
Réia
enganou o marido quando escondeu dele seu filho,
agora
Hera
engana
Zeus,
quando o induz, com
astúcia, a aniquilar ele mesmo a amante
Sêmele
.
Os triângulos amorosos são comuns desde que o
mundo é mundo. Todos nós tivemos
experiências intensas com, pelo menos, um
triângulo amoroso no passado: o triângulo
pai-mãe-criança. Entender os diversos movimentos
desses personagens pode ser útil para você fazer a
mudança que busca.
Uma variante do mito diz que não foi
Zeus
quem
gerou
Dionísio
, mas sim que ele tinha uma origem
matriarcal e descendia de uma
Sêmele
que não era
uma princesa mortal, mas sim, uma grande deusa
lunar. No amor de
Sêmele
,
Zeus
se confrontaria
com um deus de uma espécie totalmente diferente
da sua; ele precisaria, ao envolver-se com
Dionísio
,
virar de cabeça para baixo seu mundo patriarcal.
Dionísio
é um amigável deus da harmonia que não
machuca ninguém, ou um deus dos desfechos
rápidos que restabelecem a ordem de imediato. Mas
Dionísio
também é um deus do sofrimento e da
morte.
Sêmele
conheceu essa morte, mesmo antes
de ser fulminada pelo raio de
Zeus
, ela fez a
transição da filha para a mulher e, ao mesmo
tempo, ela liberou seu pai e a si mesma como filha.
Ela fez com que a amante secreta morresse, através
do seu desejo de ver
Zeus
em sua forma verdadeira.
Com isso ela abandona a clandestinidade, a
escuridão secreta e liberta a primavera!
Quando os participantes, impulsionados pelo
triângulo amoroso, se posicionam com veracidade,
egocêntrica, a psicologia
monoteísta é também
imensamente danosa para o
nosso objetivo de deslocar do
ego essa perspectiva como o
único centro da consciência.
O abandono do monoteísmo
psicológico é um ato radical.
Ele não só faz ruir o governo
do velho eu, como é também
um reflexo na psique do fato
de que, num certo sentido,
Deus está morto- mas não os
Deuses. Quando a psicologia
considera os arquétipos com
seriedade, ela é
necessariamente levada a
liberar a consciência de suas
amarras a um único dominante
e a refletir, na teoria, o fato
empírico de que a consciência
se move como
Hermes
, o guia
das almas, através de uma
multiplicidade de perspectivas
e maneiras de ser. Se a psique
é, como Jung a descreve, uma
estrutura de múltiplas
centelhas, ela não refletirá,
por isso mesmo, os vários
Deuses? Uma psicologia que
queira ser adequada à própria
visão arquetípica da estrutura
psíquica deve refletir esta
multiplicidade de centros e
afirmar um politeísmo
psicológico. Esta declaração
de politeísmo psicológico é o
preâmbulo necessário a uma
25
mundo subterrâneo, com a
qual seu irmão Hades,
casou-se à força, na
presença da ninfa Estige.
Portanto, não lhe faltava
poder acima e abaixo da
Terra e sua mulher, Hera,
estava em pé de igualdade
com ele apenas num ponto:
ela podia conceder o dom
da profecia a qualquer
homem ou animal que
desejasse. Zeus e Hera
brigavam constantemente.
Irritada com suas
infidelidades, ela o
humilhava frequentemente
com suas maquinações.
Embora acostumado a
revelar-lhe seus segredos e,
por vezes, aceitar seus
conselhos, Zeus jamais
confiou totalmente na
esposa. Hera sabia que,
caso uma ofensa
ultrapassasse certo limite,
ele poderia açoitá-la, ou
mesmo arremessar-lhe um
raio. Ela se limitava,
portanto, a intrigas
inescrupulosas, como no
tem início um amplo processo de transformação e
renovação. É um processo difícil de ser executado.
E para sua execução dispomos de pouca ajuda, de
poucos modelos, de nenhuma tradição.
Algo aproxima
Eros
de
Dionísio
: ambos são deuses
fronteiriços, vivem entre opostos.
Eros
, filho de
Poros
e
Penúria
, está entre a saciedade e a fome. E
Dionísio
entre imortais e mortais, entre a tragédia e
a comédia. São deuses da intermediação. Talvez
Dionísio
, deus da morte, da transformação e da
renovação constante possa ser um guia para nós.
Amigo, talvez ache essa reflexão uma enorme
tolice, parece que posso lhe ouvir:
isso é coisa de
alguém desiludido, velho e conformado
. Repenso
meu percurso solitário e aceito a crítica, mas não
podia deixar de lhe alertar, mesmo sabendo que
está tragado pela
hýbris:
a paixão no auge! E porque
também sou amigo de Janaína e imagino o seu
sofrimento.
A pista que tanto procurávamos de como e em
qual momento ocorreu à cisão corpo e alma e a
consequente negação da vida, que nos chegou
através do cristianismo, encontrei afinal. A ironia é
que tenha sido uma contribuição do xamanismo,
que é uma das suas buscas mais essenciais, como
técnica e esperança de reconexão com o mundo
vegetal e animal, com as potências vitais. Essa pista
está no livro de Dodds,
Os Gregos e o Irracional:
Em escritores áticos do século V a.C., assim como
em seus predecessores jônios, o “eu” designado pela
palavra psyche é normalmente mais emocional do
que racional. Fala-se dela como sede da coragem,
da paixão, da piedade, da ansiedade, do apetite
animal. Mas antes de Platão, raramente, ou quase
nunca, ela é citada como sede da razão. Seja ou não
verdade o fato do termo psyche causar um
sentimento tênue de estranheza para o cidadão
ateniense do século V a.C., uma coisa é certa: a
invocação de
Dionísio.
Evocar
só a ele e estar só na
consciência por ele permeada
significaria cometer o erro de
Nietzsche, que tomou um
Deus e colocou todos os
outros a seus pés e, com isto, a
despeito de sua intenção,
perpetuou a tradição que
pretendia abandonar. Quando
nos aproximamos do
dionisíaco, diz Dodds, o nosso
primeiro passo deve ser
desaprender tudo aquilo que já
pensamos sobre estas coisas,
esquecer os quadros de
Ticiano e os de Rubens,
esquecer Keats. Recordar que
orgia
não são orgias, mas atos
de devoção, e que
bacheuein
não quer dizer bacanal, mas um
tipo particular de experiência
religiosa. Sobretudo, não
podemos nos esquecer que
Dionísio
é filho de
Zeus
, a
renovação do deus soberano
por meio do seu filho mais
físico e ainda assim mais
psicológico, no centro de cujo
culto, desde períodos mais
remotos, está a
criança,
o
mistério da nutrição e do
renascimento psicológico
através das profundezas do
mundo subterrâneo.
Compulsão e inibição são
interligadas, como dissemos
anteriormente em nossa
26
caso do nascimento de
Héracles, e, às vezes tomava
emprestada a cinta de
Afrodite, a fim de excitar a
paixão do marido e, assim,
aplacar sua fúria. Num
determinado momento, o
orgulho e a petulância de
Zeus se tornaram tão
intoleráveis que Hera,
Poseidon, Apolo e todos os
outros deuses, à exceção de
Héstia, cercaram-no
rapidamente enquanto
dormia em seu leito e o
amarraram em correias de
couro cru com uma centena
de nós, que o impediam de
se mover. Zeus os ameaçou
com morte instantânea, mas
como eles haviam colocado
o raio fora do seu alcance,
insultaram-no com escárnio.
Enquanto celebravam a
vitória e discutiam
ciosamente sobre quem
seria o sucessor, Tétis, a
Nereide, prevendo uma
guerra civil no Olimpo,
apressou-se em buscar o
hecatônquiro Briareu, que
palavra não possuía nenhum sabor de puritanismo,
e nem sequer gozava de qualquer status metafísico.
A alma não era nenhuma prisioneira relutante do
corpo, mas sim a vida ou o espírito do corpo,
sentindo-se perfeitamente à vontade ali. Foi nesse
momento que o novo padrão religioso fez sua
fatídica contribuição - ao creditar ao homem um
“eu” oculto, de origem divina e, por conseguinte,
colocar em desacordo corpo e alma. Este padrão
introduziu em meio à cultura européia uma nova
interpretação da existência humana. Trata-se da
interpretação que chamamos de puritana. De onde
veio tal noção? Desde que Rohde a chamou “uma
gota de sangue estranho nas veias gregas”,
estudiosos têm realizado pesquisas em busca desta
gota. A maior parte deles têm olhado na direção
leste, para a Ásia menor ou mais longe ainda. Eu
pessoalmente estaria inclinado a procurar em
outros recantos. As passagens de Píndaro e de
Xenofonte, pelas quais iniciamos nossa
argumentação, sugerem que uma fonte da antítese
puritana pode ser a observação de que a atividade
“psíquica” e corporal variam de forma inversa: a
psyche é mais ativa quando o corpo está
adormecido ou, como acrescenta Aristóteles,
quando ele se encontra prestes a morrer. Eis o que
quero dizer ao chamá-la de “eu” oculto. Uma
crença deste tipo constitui um elemento essencial
da cultura xamânica que ainda existe na Sibéria, por
exemplo, e que deixou traços de existência passada
sobre uma vasta área, estendendo-se do imenso
arco da Escandinávia e atravessando a Eurásia, até a
Indonésia. A extensão de sua difusão é prova de
antiguidade. Um xamã pode ser descrito como uma
pessoa psiquicamente instável que recebeu um
chamado para a vida religiosa. Como resultado
disso ele se submete a um período de rigoroso
treinamento, que normalmente envolve solidão e
jejum, podendo também envolver uma mudança
psicológica de sexo. A partir deste “recuo” religioso,
ele ressurge com o poder, real ou assumido, de
passar de acordo com a sua vontade a um estado de
discussão de
Eros
. A vida
animal, como recorda Dodds,
não é uma força desenfreada,
mas auto-regulamentação.
Possui fronteiras tanto no
território quanto no
comportamento.
Dionísio
nos
coloca frente a fenômenos-
limite, de modo que não
podemos jamais dizer se é
louco ou são, selvagem ou
sombrio, sexual ou psíquico,
macho ou fêmea, consciente
ou inconsciente. Ele reina
sobre terras fronteiriças de
nossa geografia psíquica. É aí
que tem lugar a dança
dionisíaca: anulamento de
demarcação, ambivalência.
James Hillman.
O mito da análise.
O diálogo interno é o que
prende as pessoas no mundo
cotidiano. O mundo é assim e
assado, desta ou daquela
maneira, só porque dizemos a
nós mesmos que ele é assim. A
passagem para o mundo dos
xamãs se abre depois que o
guerreiro aprendeu a silenciar
seu diálogo interno. Mudar
nossa ideia sobre o que é o
mundo é o ponto crucial do
xamanismo. E parar o diálogo
interno é o único meio de
conseguir isso. Zangar-se com
27
prontamente desfez os nós,
utilizando suas cem mãos
ao mesmo tempo, e liberou
seu amo. Por ter sido Hera
quem liderara a
conspiração, Zeus a
pendurou no céu com um
bracelete dourado em cada
pulso e uma bigorna
amarrada a cada tornozelo.
As outras divindades
ficaram profundamente
contrariadas, mas não
ousaram resgatá-la, apesar
de seus comoventes
clamores. Finalmente, Zeus
comprometeu-se a libertá-la
mediante o juramento de
que nunca mais se
rebelariam contra ele. E foi
o que, com relutância, cada
uma das partes fez. Zeus
puniu Poseidon e Apolo,
mandando-os como
escravos ao rei
Laomedonte, para trabalhar
na construção da cidade de
Tróia, mas perdoou os
outros, por considerar que
tinham agido sob coação.
As relações maritais entre
dissociação mental. Sob tais situações ele não é
mais visto, como a Pítia ou um médium moderno,
como alguém possuído por um espírito. É a sua
própria alma que é encarada como tendo deixado o
corpo e viajado para locais distantes, mais
frequentemente para o mundo do espírito. De fato,
um xamã pode ser visto em diferentes lugares
simultaneamente. Ele tem o poder da ubiquidade.
A partir destas experiências, narradas por ele através
de canções extemporâneas, ele vai extraindo a
habilidade para a adivinhação, para a poesia religiosa
e para a medicina mágica que acaba por torná-lo
socialmente importante. Ele se torna o repositório
da sabedoria sobrenatural. Um grego asiático,
Hermótimo de Clazomenes, cuja alma viajava
muito e para muito longe, observando
acontecimentos em lugares distantes, enquanto seu
corpo permanecia inanimado, pode servir de
exemplo. Tais contos a propósito da aparição e
desaparição dos xamãs eram bastante familiares em
Atenas, a ponto de Sófocles referir-se a eles na
Electra sem precisar sequer citar nomes. Disso tudo
parece razoável concluir que a abertura do Mar
Negro para o comércio e a colonização gregas,
durante o século VII a.C., responsável pelo primeiro
contato do povo grego com o xamanismo, acabou
por enriquecer com novos traços a imagem
tradicional grega do “homem deus”. Creio que estes
novos elementos eram dignos de aceitação para a
mentalidade grega por responderem as necessidades
da época, assim como a religião dionisíaca havia
feito anteriormente. A experiência do tipo
xamanístico é individual e não coletiva e precisou
do individualismo crescente de uma era para a qual
os êxtases coletivos de Dionísio já não bastavam
completamente. É razoável supor que estes novos
traços exerceram alguma influência na também
nova e revolucionária concepção sobre a relação
entre corpo e alma que surgirá ao final do período
arcaico. O que é certo é que estas crenças
promoveram, nos que a elas aderiram, um horror
do corpo e uma repulsa contra a vida dos sentidos
as pessoas significa que se
considera os atos delas
importantes. É necessário
deixar de sentir assim. Os atos
dos humanos não podem ser
bastante importantes para
impedir nossa única alternativa
viável: nosso imutável encontro
com o infinito. Os atos têm
poder. Especialmente quando a
pessoa que age sabe que
aqueles atos são sua última
batalha. Há uma estranha
felicidade em agir com pleno
conhecimento de que o que
quer que ela esteja fazendo
pode muito bem ser o seu
último ato sobre a Terra. Para
o ser humano comum, o mundo
é estranho porque, se não está
entediado com ele, está com
raiva dele. Para um xamã, o
mundo é estranho porque é
estupendo, assombroso,
misterioso, insondável. Um
xamã deve assumir a
responsabilidade por estar
aqui, neste mundo maravilhoso,
nesse tempo maravilhoso.
Em um mundo em que a
morte é o caçador, não há
tempo para remorsos ou
dúvidas. Só há tempo para
decisões. Não importa quais
decisões. Nada pode ser mais
ou menos sério do que
qualquer outra coisa. Em um
mundo em que a morte é o
28
Zeus refletem as da era
dórica bárbara, em que as
mulheres eram privadas de
todo seu poder mágico,
exceto a profecia, além de
serem vistas como
propriedade dos homens. O
fato de Zeus haver violado a
deusa Terra Réia significa
que os helenos, adoradores
de Zeus, passaram a
controlar as cerimônias
agrícolas e funerárias e
Réia ter proibido Zeus de se
casar significa que, até
então, a monogamia era
desconhecida, pois as
mulheres tinham quantos
amantes quisessem.
Robert Graves
O Grande Livro dos Mitos Gregos.
O casamento é
inevitavelmente uma
instituição erótica, e as
incompatibilidades sexuais
podem levar ao seu
fracasso. Paradoxalmente,
portanto, as relações
que eram bastante novas para a Grécia. Suponho
que qualquer cultura da culpa é capaz de fornecer
um solo favorável para o crescimento do
puritanismo, pois ela cria uma necessidade
inconsciente de autopunição que o puritanismo
vem gratificar. Mas na Grécia, foi aparentemente o
impacto das crenças xamanísticas que pôs tudo em
funcionamento. Tais crenças foram interpretadas
pelas mentes gregas em sentido moral; e quando
isto ocorreu o mundo da experiência corporal
surgiu inevitavelmente como um lugar de
penitência, a carne sendo vista como uma “túnica
estranha a alma”. “O prazer”, diz o velho catecismo
pitagórico, “é sob todas as circunstâncias ruins, pois
viemos aqui para sermos punidos e devemos ser
punidos”. Sob esta forma, que Platão atribui à
escola órfica, o corpo era apresentado como a
prisão dentro da qual os deuses guardavam trancada
a alma até que ela fosse purgada de sua culpa. Sob
outra forma, também mencionada por Platão, o
puritanismo encontrou uma expressão ainda mais
violenta: o corpo era concebido como uma tumba
na qual a psyche jazia morta, aguardando a
ressurreição para a verdadeira vida, que seria a vida
sem corpo.
De: Janaína <janaína@estrela.com.br
Para: Hermes <herm[email protected]om.br
Assunto: casamento e carreira artística
Nem bem começamos a criação da nossa narrativa
e quebramos a primeira e essencial regra: a de
compartilharmos nossos textos a cada momento.
Para não aumentar o sofrimento, Dionísio me
pediu que por algum tempo evitássemos saber o
que um ou o outro está conversando com você,
mas mostrou sua resposta sobre triângulos
amorosos. Agradeço o seu carinho e cuidado
caçador, não
decisões
pequenas ou grandes. Só há
decisões que um xamã toma em
face de sua morte inevitável. A
morte é nossa eterna
companheira. Está sempre à
nossa esquerda, à distância de
um braço atrás de nós. A
morte é a única conselheira
sábia que um guerreiro tem.
Toda vez que ele sente que
tudo está errado e que ele está
prestes a ser aniquilado, pode
virar-se para a sua morte e
perguntar se é assim mesmo. A
morte lhe dirá que ele está
errado; que nada realmente
importa, além do toque dela.
Sua morte lhe dirá: ainda não o
toquei.
Carlos Castañeda
A roda do tempo
Como acaba um amor? -
Como, então ele acaba? Em
suma, ninguém- exceto os
outros- nunca sabe nada a esse
respeito; uma espécie de
inocência mascara o fim dessa
coisa concebida, afirmada,
vivida segundo a eternidade. O
29
extraconjugais tornam
-
se
aceitáveis na medida em que
contribuem para a
manutenção do casamento.
A infidelidade
se transforma em um dever
imposto pela conquista da
felicidade erótica quando o
casamento já não aponta
para o horizonte de mais
nenhum ideal de amor.
Dever de tudo fazer para
estimular a performance
sexual e satisfazer o
parceiro, salvando o
casamento. Tornar a
sexualidade exequível no
interior do contrato,
higienizando-a, portanto, é o
objetivo da sexologia
contemporânea. Ela deseja
superar as
incompatibilidades entre o
sistema matrimonial e as
pulsões, deserotizando o
sexo, retirando-lhe a carga
angustiante de um desejo
impossível de fusão, de
comunhão carnal com o
outro, da sua condição de
veículo, mal adaptado, da
ânsia de infinito e
eternidade. Mas a instituição
é preservada à custa da
promoção do imenso vazio
emocional que inunda a vida
comigo, nessas horas se revelam os amigos e, para
esse assunto, não conto com muitos. Quase tudo
diz o mito, contudo não fala se o casamento
sempre termina por matar o amor. No casamento é
possível conciliar, temperar, todos os ingredientes
do amor: sentimento, desejo, sexo, prazer,
criatividade, brincadeira, arte, poesia, com paixão
constante e duração?
Uma amplificação de desejos que tendem ao
infinito. É impossível domesticar a paixão.
Eros
é
fonte, ferida, dor e cura, mais ainda: saúde, procura,
ida. Como não podia deixar de ser, nas coisas mais
essenciais da minha vida, meu amor por Dionísio
nasceu à beira-mar, à noite, em um leito de dunas,
à milanesa, na praia de São José da Coroa Grande.
Minha mãe dizia: filha, não peça marido bom para
Santo Antônio, a fila de atendimento é enorme,
por isso, dependendo do pedido, ele nem escolhe, o
primeiro que aparece despacha. Já São José demora,
mas quando manda é na medida!
Depois de tanto tempo, transar com ele é atravessar
toda a minha história, a juventude inteira. Por isso
esse absoluto. Exclusivo, por que ele tem de ser
todo sentido? Satisfação significa fazer o bastante.
Conseguimos? O segredo de nossa longevidade
talvez seja sinceridade. Depois, também, ambos
somos péssimos mentirosos. Somos de uma
geração ou, mais modestamente, um tipo de casal,
que tolera infidelidades, pelo menos até agora. Ele
gosta de dizer, bem dramático:
a maior infidelidade
na vida é não respeitar e seguir a própria alma.
Safado! Amantes eventuais, de parte a parte, mais
dele do que meus, costumavam arejar, revigorar e
despertar para o valor do outro. E a gente inventava
que o ciúme tem controle. Homens da minha vida
parecem arquétipo, colagem, um homem.
Sempre incompletudes. Mesmo com rompimentos,
nunca termino definitivamente com as pessoas,
que quer que aconteça com o
objeto amado, quer
desapareça ou passe à região
Amizade, de qualquer maneira
não o vejo nem mesmo
desvanecer-se: o amor que
acabou retira-se para um outro
mundo, à maneira de uma nave
espacial que pára de piscar: o
ser amado ressoava como um
estrondo, ei-lo repentinamente
surdo
(o outro nunca
desaparece quando e como
esperamos). Esse fenômeno
resulta de um imperativo do
discurso amoroso: não posso
eu mesmo (sujeito enamorado)
construir até o fim minha
história de amor: sou seu poeta
(recipiente) apenas quanto ao
começo; o fim dessa história,
assim como minha própria
morte, pertence aos outros; a
eles cabe escrever esse
romance;
narrativa exterior, mítica. Um
koan
zen diz: o mestre segura a
cabeça do discípulo debaixo
d’água, durante muito, muito
tempo; pouco a pouco as
bolhas começam a se
rarefazer; no último momento,
o mestre tira o discípulo,
reanima-o: quando você
desejar a verdade como
desejou o ar, então saberá o
que ela é. A ausência torna-se
uma prática ativa, um
atarefamento
( que me impede
de fazer qualquer outra coisa):
30
cotid
iana. Quer queiram os
modernos sexólogos ou
não, os humanos que amam
são visionários de outros
mundos, reinventores da
felicidade perdida na
monotonia dos dias de
trabalho. São guardiães da
idealidade, preservadores
da utopia, porque o amor é
transcendência de tudo
aquilo que se supõe realizá-
lo. O desejo quer sempre
outra coisa, o gozo sempre
“ainda mais”, o amor quer
dar o que não tem,
recebendo em troca a
mesma falta. Por todo lado
utopia, pulsão libidinosa
sem lugar, sem objeto, sem
descanso. Por isso os
verdadeiros amantes
colocam problemas que não
podem resolver. Por isso
também puderam os poetas
projetar na morte a
realização mais plena do
amor e do gozo erótico.
José Luiz Furtado
Amor
Lapidar minha procura
toda, trama lapidar, o que o
coração, com toda
inspiração, achou de
nomear, gritando: alma,
carrego
-
as comigo, tecend
o os pedaços que mais
amo.
Somos filhos de casais felizes, talvez por isso,
acreditemos em eternidade. não tenho mais
certeza de nada. Dionísio partiu, mas seu corpo,
sem alma, tal o meu, ainda vaga comigo, por toda
casa, à deriva. Flutuo entre esperança e medo e
evito admitir que um canal de comunicação vital,
sem vestígios, desapareça. Impossível aceitar que
nada dura. Caro Hermes, sem ter com quem
brincar, o que faço? Somos seres pluricelulares.
Todas as nossas células têm bactérias como
ancestrais e ainda hoje a vida seria impossível sem
elas. Por isso, a bióloga
Lynn Margulis
provoca
outra ferida narcísica: nós somos apenas uma das
ideias que tiveram as bactérias para andar melhor
sobre a Terra. Entro em um delírio de bactéria: a
vida é uma multiplicidade de mim mesma e faz
sentido independentemente de todas as outras.
Separação é parto, somos jogados no mundo por
conta própria, a primeira respiração dói nas
entranhas. Suspiro em um canto, os braços inúteis
arreio, sem saber continuar. Em nada creio. Nem
no tempo ou em seu cúmplice, o esquecimento,
parece que isso nunca vai passar.
Hermes, eis-me aqui: teço e desmancho a trama.
Falsa Penélope, sem paciência ou esperança, pra
aguardar o longo retorno de Ulisses. Será que meu
herói, eterno menino, estica o cordão umbilical ao
máximo e, mais uma vez, volta? Será que nessa
altura do campeonato os meus pretendentes ainda
estarão vivos e interessados? Ando por toda a
cidade do Recife, refazendo os percursos que
fizemos juntos. Não sei se você sabe, mas os judeus
que construíram
New York
saíram expulsos daqui,
por isso um delírio recifense de que se eles
tivessem ficado Recife seria Nova Iorque! Seja
como for, algo vingou: passando pelo porto avisto
nossas torres gêmeas.
cria
-
se uma ficção com
múltiplos papéis (dúvidas,
recriminações, desejos,
melancolias). A ausência do
outro segura minha cabeça
debaixo d’água; pouco a
pouco, sufoco, meu ar se
rarefaz: é por essa asfixia que
reconstituo minha “verdade” e
preparo o intratável do amor.
Roland Barthes.
Fragmentos de um discurso amoroso.
Hera detém as chaves de todas
as alcovas. Mas, nesta
perspectiva familiar, todas as
esposas lá de cima ou cá de
baixo conhecerão os fatais
equívocos da instituição
matrimonial grega. A exemplo
de Zeus, que amarra as mãos
de sua mulher, os vínculos do
casamento transformam-se em
entraves servis. Em
compensação, no Jardim de
Flora veremos Hera descobrir
como a esposa pode passar sem
o marido e exercer com toda a
independência uma soberania
feminina reivindicada como tal.
Jacques Mazel
As Metamorfoses de Eros.
Entre os gregos geralmente se
atribui a invenção da música a
Hermes, Apolo, Cadmo e
Orfeu; entre os egípcios, a
Toth ou a Osíris; entre os
hindus a Brahma. Os
historiadores da ciência
musical louvam Pitágoras, que
31
recriar cada momento belo
já vivido, e ir mais,
atravessar fronteiras do
amanhecer e ao entardecer
olhar com calma, então.
Alma vai além de tudo, o
que o nosso mundo ousa
perceber, casa cheia de
coragem, vida, tira a mancha
que há no meu ser, te quero
ver, te quero ser, alma.
Viajar nessa procura toda,
de me lapidar, neste
momento agora de meu
recriar, de me gratificar, te
busco alma, eu sei, casa
aberta onde mora um
mestre, o mago da luz, onde
se encontra o templo que se
inventa a cor, animará o
amor, onde se esquece a
paz. Alma vai além de tudo,
o que o nosso mundo ousa
perceber, casa cheia de
coragem, vida todo afeto
que há no meu ser, te quero
ver, te quero ser, alma.
Milton Nascimento e José Renato
Anima
Como
sempre
vida e morte
andam juntas
.
De
modo semelhante a outras cantoras,
anteriormente, estou fazendo sucesso no Japão!
Por isso, quero retomar minha carreira e lhe faço
um convite para compor, fazer os arranjos e
produzir meu novo disco.
Comecei a selecionar o repertório. Quero quase
tudo inédito, alegre, leve. Talvez até um cd duplo.
Contudo, não pretendo esconder esse momento.
Neste sentido pensei, inicialmente, em três músicas:
o impressionante minimalismo, um
mantra
mesmo, de Itamar Assumpção, sobre separação, na
música
Fim de Festa
:
Meu amor por você chegou ao fim/é tudo que
tenho a dizer/também não precisa sair assim/espere
o dia amanhecer.
A música de Danilo Caymmi e Ana Terra,
Meu
Menino:
Se um dia você for embora/Não pense em
mim/Que eu não te quero meu/Eu te quero
seu/Se um dia você for embora/Vá lentamente
como a noite/Que amanhece sem que a gente
saiba exatamente/Como aconteceu/Se um dia você
for embora/Ria se teu coração pedir/Chore se teu
coração mandar/Mas não esconda nada que nada se
esconde/Se por acaso um dia você for embora/Leve
o menino que você é.
Noutra direção não pode faltar
Nature boy
.
Cantarei também a versão:
Era um rapaz/Estranho e encantador rapaz/Ouvi
que andara a viajar, viajar/Toda a terra e o
mar/Menino só e tímido/Mas sábio demais/Eis que
uma vez/Num dia mágico o encontrei/E ao
conversarmos lhe falei/Sobre os reis, sobre as leis e
a dor/E ele ensinou/Nada é maior que dar amor/E
receber de volta amor.
inventou um monocórdio para
determinar matematicamente
as relações dos sons. Os
pitagóricos também
consideravam a música como
uma harmonia dos números e
do cosmo, ele próprio redutível
a números sonoros. Era dar aos
números toda a plenitude
inteligível e sensível do ser. É à
escola deles que se liga a
concepção de uma
música das
esferas
. O recurso à música,
com seus timbres, suas
tonalidades, seus ritmos, seus
instrumentos diversos, é um
dos meios de se associar à
plenitude da vida cósmica. Em
todas as civilizações, os atos
mais intensos da vida social ou
pessoal são decompostos em
manifestações, nas quais a
música desempenha um papel
de mediador para alargar as
comunicações até os limites do
divino. Boécio dizia que o
ritmo ternário é chamado de
perfeição, enquanto o binário
é sempre considerado
imperfeito. A simbologia do
número 7 é retomada no plano
musical, número das notas,
número de Atena, pleno de
clarões de sabedoria. Boécio
distingue três tipos simbólicos:
a música do mundo
, que
corresponde à harmonia dos
astros e surge de seu
movimento, à sucessão das
estações e à mistura dos
elementos. A melodia é tanto
mais pungente quanto mais
rápido é o movimento e tanto
mais grave, quanto mais lento.
O cosmo é um magnífico
concerto. O segundo tipo é a
música dos humanos:
ela nos
32
Ao que tudo indica, é
bastante útil mudar do
conceito de estrutura para o
de ritmo, para obtermos uma
descrição coerente da
realidade, capaz de integrar
as verdades mais recentes
da física e das ciências da
vida. Em todo universo
padrões rítmicos, dos
minúsculos aos
gigantescos. Os átomos são
padrões ondulatórios de
probabilidades ; as
moléculas são estruturas
vibrantes, e os organismos
vivos manifestam
padrões oscilatórios
múltiplos e
A primeira composição nova que lhe proponho é o
poema de despedida de Dionísio:
Já me confundo contigo tanto/Que partir de ti
para o mundo/É sair de mim/Já me conformo de
tal modo/Ao teu jeito/Que nem sei direito/Qual o
meu ou o teu corpo/Já me expando disperso pra
todo lado/Com um ritmo de ti tão diverso/Que
nem desconfio quem é esse outro/Quando canta,
anda, dança.
E então, Maestro, nossa parceria também musical
está de volta?
De: Hermes <herme[email protected]m.br
Para: Janaína <janaína@estrela.com.br
Assunto: Música
Quanto riso e alegria existem no sabor de voltar a
ouvir Janaína! A clave de sol está de volta, por isso
acho que esse mito da deusa
Amaterasu
, do mesmo
Japão que lhe descobriu, é a melhor maneira de
celebrar o seu retorno, embora você nunca tenha
saído da música brasileira.
É um encanto a parceria musical com crianças. Esse
é o meu trabalho aqui na Índia. Ravi Shankar diz
que não se pode aprender música hindu sem aceitar
a filosofia hindu. Diz: nossa tradição nos ensina que
o som é Deus. Isto significa que o som e a
experiência musical são passos para a auto-
realização, que eleva o ser interior à paz divina e à
bem-aventurança. O mais elevado objetivo da
nossa música é revelar a essência do universo, é
fazer com que a música produza eco e os
ragas
representem os meios com que possa ser
compreendida a própria essência.
Você que também é bióloga vai gostar disso:
quando Darwin deu os primeiros passos sobre a
rege e é em nós mesmos que a
apreendemos. Ela supõe um
acordo, uma harmonia, da alma
e do corpo. O terceiro tipo é
a
música dos instrumentos.
Se a
música é a ciência das
modulações, da medida,
concebe-se que ela comande a
ordem do cosmo, humana e
instrumental. Ela é a arte de se
atingir a perfeição divina.
Jean Chevalier e Alain Gheebrant.
Dicionário de símbolos.
Amaterasu, a deusa do Sol,
buscou refúgio numa caverna.
Com isso, o mundo tornou-se
frio e inóspito. Não havia mais
luz solar e tudo parecia caos e
desolação. Por isso, Izanagi, o
deus Criador, amarrou seis
arcos gigantes uns aos outros,
criando a primeira harpa. Ele
mesmo tocava lindas melodias.
Encantada com elas apareceu
a deslumbrante ninfa Ameno
Uzume. Enfeitiçada pela
música da harpa, começou a
33
interdependentes. As
plantas, os outros animais e
os seres humanos
passamos por ciclos
de atividade e inatividade;
todas as nossas funções
fisiológicas oscilam em
ritmos de várias
periodicidades. Os
componentes do
ecossistema estão
interligados por trocas
cíclicas entre a matéria e a
energia; as civilizações
surgem e desaparecem em
ciclos de evolução, e o
planeta como um todo tem
seus ritmos e repetições, à
medida que gira ao redor do
seu eixo e se desloca ao
redor do sol. Desde a
antiguidade se diz que a
natureza da realidade es
muito mais próxima da
música do que da máquina,
e essa afirmação foi
comprovada por muitas
descobertas da ciência
moderna. A essência de uma
melodia não está nas notas
que a compõem, está nos
relacionamentos entre as
notas, os intervalos, as
freqüências e os ritmos.
Quando uma corda começa
a vibrar, não ouvimos só
evolução da linguagem, à luz da teoria d
a seleção
natural, sugeriu que a fala humana evoluiu a partir
de uma forma musical de comunicação. A
habilidade de discernir e imitar sons teria gerado
uma protolinguagem tonal e rítmica, que hoje se
expressa na forma da prosódia com que entoamos
frases.
No princípio é a canção! Com os estudos
linguísticos modernos essa hipótese foi
desacreditada, mas agora respeitados
neurocientistas mostraram que existe um enorme
grau de sobreposição entre as regiões do cérebro
usadas para processar a música e a linguagem.
Como pode existir tanta sobreposição sem
associação? O segredo está na gramática: notas
musicais, intervalos e acordes não têm significados
que possam ser traduzidos por um dicionário. A
maneira com que se estruturam, porém, recebe
suporte dos mesmos circuitos cerebrais que ajudam
a combinar palavras em frases. Algumas pessoas
com lesões cerebrais que não conseguem
pronunciar frases simples repetem as mesmas frases
em forma de canção. O espaço ocupado pelo
sistema auditivo no cérebro é menor do que o
ocupado pelo sistema visual, todavia, o
neurocientista António Damásio afirma que o
sistema auditivo é fisicamente mais próximo das
partes do cérebro que regulam a vida; essas áreas
são a base para as sensações de dor, prazer,
motivação e outras emoções básicas. Além disso, as
vibrações físicas que resultam em sensações sonoras
são uma variação no sentido do tato: elas
modificam o corpo de forma direta e profunda,
mais ainda do que os padrões de luz que levam à
visão. A mudança dos olhos para os ouvidos
coincide com a mudança dos valores masculinos
para os femininos, ou seja, do conhecimento
racional para a sabedoria intuitiva, da agressividade
para a gentileza, do ruído para a música.
dançar e, finalmente, a cantar.
Amaterasu quis ouvir melhor a
música que ela ouvia à
distância. Por esse motivo, ela
olhou para fora da caverna e,
no mesmo instante, o mundo
viu-se banhado de luz. O Sol
veio para ser visto e fazer
sentir seu calor, e para as
plantas, as flores e as árvores
começarem a crescer. Os
peixes e os pássaros, os outros
animais e os humanos
receberam a terra repleta de
luz. Os deuses decidiram
cultivar a música e a dança
para que a deusa do Sol,
Amaterasu, nunca mais
precisasse retornar à caverna.
Eles sabiam que fora o Sol que
produzira a Vida, mas sem a
música da harpa dos seis
grandes arcos e sem o canto da
ninfa Ameno Uzume, a deusa
do Sol, Amaterasu, nunca teria
ocupado seu lugar no trono
34
uma tonalidade; captamos
também as suas
subtonalidades- toda uma
escala ressoa. Assim sendo,
cada nota subtende todas as
outras, da mesma forma
como cada partícula
subatômica implica todas as
demais, segundo as últimas
postulações da física das
partículas.
Fritjof Capra.
Nada Brahma.
O amor é como Deus: ambos
só se oferecem a seus
serviçais mais corajosos.
Acho que o melhor é
entendermos todo problema
do amor como um
miraculum per gratiam Dei
,
do qual em princípio
ninguém entende nada. Ele é
Ouça
:
há um entrelaçamento entre os seus dois
talentos. Meu trabalho com as crianças parte dessa
relação entre música e linguagem e a otimização da
aprendizagem, mas vai mais além: quer
compreender como a entoação de canções ou
mantras pode acessar outras dimensões e níveis de
consciência.
Sou amigo dos dois e quero o melhor para cada um
de vocês. É uma ilusão perigosa querer controlar
tudo na vida, especialmente a paixão. Nosso Tom
Jobim já dizia: escolhe tudo quem está confuso.
Posso imaginar o seu sofrer com mais essa crise do
casamento, contudo parece que desde sempre o
que nos salva é a permanente criatividade. O seu
amor pela música sempre foi maior do que tudo e é
cantar que trará de volta sua alegria. E agora que
você vai ampliar sua carreira, com viagens
internacionais, não posso deixar de lembrar Villa-
Lobos, que entrelaçava a música erudita e a
popular, sem estabelecer hierarquias de valor nem
ter preconceitos com padrões de redundâncias
sonoras e sobre a especificidade da nossa
contribuição cultural dizia: O gosto da elite é
vertical. O gosto popular é horizontal. Mas o povo
brasileiro é diagonal.
De: Isadora <isado[email protected]
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Paixão e coragem
No avião para Sampa uma mulher me perguntou
sobre a flor do baobá. Eu querendo ficar bem
quietinha, recordando todos os momentos. Tive
que falar dos nossos baobás, da romaria por vários
bairros do Recife, em busca de suas moradias, dos
rituais, emoções. Me pego falando palavras com
suas entonações e sotaques. Vejo seu sorriso, seu
olhar, seu olhar me olhando. Estou nutrida do seu
amor, cheia de vontade de recomeçar: dança, vida,
arte. Sim lutarei, sobretudo para ser honesta
celestial. Ela teria ficado na
caverna por toda eternidade. E
foi assim que o mundo
começou com o som, com a
música e a dança.
Joachim-Ernst Berendt
Nada Brama: A Música e o Universo da
Consciência.
A paixão é sempre provocada
pela presença ou imagem de
algo que me leva a reagir,
geralmente de improviso. Ela é
então o sinal de que eu vivo na
dependência do Outro. Um ser
auto-suficiente não teria
paixões. Não existe paixão, no
35
sempre obra do destino,
cujas raízes mais profundas
nunca conseguimos
desenterrar. Nunca nos
devemos deixar confundir
pelas ações de Deus. A
sublime irracionalidade ou a
irracional sublimidade
desse acontecimento deve
servir-nos apenas para a
admiração filosófica. É
difícil pensar que este rico
mundo seja pobre demais
para poder oferecer um
objeto ao amor de uma
pessoa. Ele oferece um
espaço infinito para cada
uma. É muito mais a
incapacidade de amar que
rouba das pessoas as
oportunidades. Este mundo
é vazio apenas para aquele
que não quer direcionar sua
libido às coisas e às
pessoas, tornando-as vivas
e belas para si mesmo. O
problema do amor faz parte
dos grandes sofrimentos da
humanidade, e ninguém
deveria envergonhar-se do
fato de ter de pagar seu
tributo a ele. Uma pessoa
que ama pode segurar uma
situação contra qualquer
poder superior, contra a
morte e o demônio, e com
comigo mesma, p
a
ra conseguir minha
independência financeira, familiar, para ser coerente
com o que acredito. Quero viver tudo que
pudermos. Essa é minha oração. Se a palavra teoria
significa preparação do espetáculo, especificamente
de teatro, acho que vou aproveitar essa longa espera
para ensaiar as próximas cenas de nossa arte erótica.
Recordo nossa conversa de que é preciso superar o
excesso de espontaneísmo e sair da pretensão de
que nascemos sabendo tudo sobre sexo. Nesse
tema todos somos leigos. Uma arte erótica passa
por uma técnica, uma fisiologia do prazer. É
necessário que cada um prepare e experimente o
próprio corpo, saiba o que lhe prazer e como,
para dizer e fazer com o outro. Mas também
precisamos buscar as tradições orientais e
ocidentais, particularmente as gregas, as escolas de
Safo e Platão devem dizer algo. Acho que devemos
incluir as neurociências
,
para dialogar com o
entendimento dos fluxos de energia sutil, da
fisiologia
kundalini
, do tantra e do tao. Será que
aguento tanta espera?
Uma das delícias do mundo é a entrega, o
abandono, a malemolência. Jogar conversa fora,
gemer de prazer, mangar de si mesmo e dos outros
são algumas das melhores coisas do mundo! Estou
aprendendo. Sinto saudades da nossa invenção de
personagens, das nossas risadagens, sacanagens,
vagabundagens.
Da janela do meu quarto vejo a jabuticabeira
florindo. Queria seu cheiro agora! A internet
poderia inventar um sistema de cheiros, essas
“inventonices” eles não fazem, aumentam
preços. O afeto de cada momento. Ainda estou
rindo com seu telefonema, a explicação é ótima: o
beijo pernambucano é duplo porque o cabra pode
estar distraído, mas no segundo, atento, vai com
tudo!
sentido mais amplo, senão onde
houver mobilidade,
imperfeição ontológica. Se
assim for, a paixão é um dado
do mundo sublunar e da
existência humana. Devemos
contar com as paixões.
Devemos até aprender a tirar
proveito delas. Esses
movimentos da alma são um
dado da natureza humana e
não se trata de extirpá-los nem
condená-los. Uma pessoa não
escolhe as paixões. Ela não é,
então, responsável por elas,
mas somente pelo modo como
faz com que elas se submetam
à sua ação. Sem as paixões,
também não haveria uma escala
de valores éticos. Sem as
paixões, ou antes, sem a
possibilidade que nós temos de
dosá-las.
Pois as paixões e as
ações são movimentos e, como
tais, contínuas, isto é,
grandezas que podem ser
divididas sempre em partes
menores e em graus menores,
de tal forma que, quando ajo,
me é sempre possível fixar a
intensidade passional exata
36
total convicção criar
estabilidade no caos. Assim
também a solução do
problema do amor exige o
empenho do ser inteiro, até
seus limites. As soluções
libertadoras só existem
quando o esforço é integral.
Todo resto é coisa malfeita e
inútil. O amor só revela seus
maiores segredos e milagres
àquele capaz de uma
doação incondicional e
fidelidade de sentimentos.
Como este esforço é muito
grande, só alguns poucos
mortais podem vangloriar-
se de tê-lo realizado.
C.G. Jung
Sobre o Amor
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo,
nunca é trágica. Não lhe
importa o que vai pela frente
do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os
seios. Ora – murmura a
bunda – esses garotos ainda
Não quero que se preocupe comigo, mas vou
precisar lhe ver. São Paulo me irrita e fascina.
Agora, apaixonada, vejo-a diferente, está mais
atraente. Venha na primavera! Desejo lhe ver de
novo, sem esperar que não pese o efêmero, porque
sei, vai pesar. Dor por dor, prefiro a de lhe ver uma
vez mais e, depois, vo parte de vez. A
possibilidade de a vida nos afastar me aterroriza e
aperta meu coração como jibóia. Você tem medo?
Logo que cheguei procurei uma vidente. Sem saber
de nada da minha fantasia carnavalesca de Ísis, ela
disse que vivemos um amor em um passado
distante, no Egito, você como sacerdote e eu como
sua
vesta, s
acerdotisa do fogo sagrad
o
. Nunca tinha
ouvido essa palavra. Foi um amor muito forte e
ficou mal resolvido, mas não será nessa vida que
vamos resolvê-lo. Mesmo assim, ainda gostaria de
lhe ver algum dia, o mais breve possível, porque
você sabe a paixão pede, exige, é difícil tentar
esquecer agora, sufocar sentimentos, transferir
afetos. Depois de encarnados no Egito, Sampa e
Recife, depois do mergulho no
Lete:
as águas do
esquecimento, se tudo não se resolver nessa vida,
vamos combinar: em outra encarnação, no
próximo encontro, a chave pra recordar é baobá!
Rever nossas fotos faz a jibóia circular meu corpo
inteiro, ai que vontade de
jiboiarte
! Não se
preocupe comigo, vem, vamos viver esse amor
contingente nessa vida, a vida quer! Vem me beijar,
abraçar, na rede balangar, dizer sua cor preferida,
filmes, poesias, medos, fantasias. Nunca fique com
medo de me machucar. Fico pensando: será
possível vivermos nossa paixão e você voltar inteiro
para Janaína? Porque ela é sua metade-inteireza,
nessa vida. Se isso for possível venha me ver sem
medo, de mim eu cuido.
A vidente disse ainda que não devemos ficar
trocando e-mails nem telefonemas, que tudo isso
provocará uma grande dor para muita gente. Não
apropriada à si
tuação. Sem
dúvida, esta escala passional é
limitada. Há um grau além do
qual nenhum ser humano pode
suportar uma emoção e um
grau de apatia abaixo do qual
não há como descer. Tomemos
os personagens mais notáveis
de Dostoievski ou de Proust.
Eles convidam-nos mais a
traçar um
diagnóstico
do que
uma
qualificação ética
. Não
inspiram temor ou piedade, mas
antes curiosidade de decifrar
uma conduta que, em grande
parte, são incapazes de
controlar. Ora, a paixão só
tinha sentido pelo modo de
reagir que a ela imputávamos e
pelo controle a ela imposto. No
momento em que o herói perde
essa liberdade, não passa de
um cliente em potencial para
um terapeuta. Assim, atenua-
se a paixão – essa passividade
que não excluía
responsabilidade. A exigência
de normalidade continua muito
grande – mas a infração da
norma é imputada à doença e
não a uma vontade má. Essa
37
lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas
gêmeas em rotundo meneio.
Anda por si na cadência
mimosa, no milagre de ser
duas em uma, plenamente. A
bunda se diverte por conta
própria. E ama. Na cama
agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem.
Ondas batendo numa praia
infinita. Lá vai sorrindo a
bunda. Vai feliz na carícia
de ser e balançar. Esferas
harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
redunda.
Carlos Drummond de Andrade.
O amor natural.
Essa passagem do
particular ao geral, de uma
felicidade simples a uma
espécie de bem-estar
cósmico, é muito sensível
naquilo que, por excelência,
é o regozijo das espécies
vivas: a sexualidade. No
caso do prazer sexual, e na
alegria dele indiscernível,
torna-se manifesto - embora
sei o que pensar, devo “obedecê
-
la
,
por medo? E se
tudo isso for uma farsa? O que fazer com meu
amor, meu carinho, minha vontade de lhe ver e
viver mais alguns momentos juntos? Vontade de
mandar todas as crenças pro ar. Mas se tudo isso
trouxer muitos tormentos, para nossas vidas,
também não quero.
São os
Tribalistas,
que dão continuidade à nossa
trilha sonora:
Procuro nas coisas vagas ciência/Eu movo dezenas
de músculos para sorrir/Nos poros a contrair, nas
pétalas do jasmim/Com a brisa que vem roçar, da
outra margem do mar/Procuro na paisagem
cadência/Os átomos coreografam a grama do
chão/Na pele braile pra ler na superfície de
mim/Milímetros de prazer, quilômetros de
paixão/Vem pra esse mundo, Deus quer nascer/Há
algo invisível e encantado entre eu e você/E a alma
aproveita pra ser a matéria e viver.
Que os deuses nos protejam! À vida então. Beijo
por todos os poros e cantos.
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Isadora <isadora@lua.com.br
Assunto: Paixão e poesia
No avião a sua conversa sobre o baobá. No mesmo
momento paro à beira-mar pra escrever esse
poema, lembrando nosso namoro e o diálogo
entre humanos, outros animais e vegetais:
Jibóia, penso, contemplando o baobá/Vou me
enroscar de vez/Mas tenho que arranjar mais
três/Pra emendar/E haja arrochar/Tô nem aí,
mangando, o baobá / Porém, comecei a
gostar/Tenho mais de mil anos/E nunca ninguém
assim me abraçou/Sussurrou em meu ouvido: te
transformação é
característica de uma atitude
permissiva? Seria um engano
assim o crer, pois uma moral
austera pode perfeitamente
contentar-se com essa tese de
irresponsabilidade do
apaixonado.
Gérard Lebrun
Os Sentidos da Paixão
A única liberdade possível se
realiza através do
conhecimento das próprias
paixões
,
nos diz Espinosa.
Se nas línguas românicas (e não
apenas nelas) o termo que
significa
amor
provém de uma
raiz
indo-européia
que
apontava a relação fundadora
entre mãe, filho e
mamar,
e em
última instância consistia em
38
esta observação valha para
toda forma de regozijo,
ainda que talvez em grau
menor - que o prazer não se
esgota no benefício que dele
retiram seus protagonistas,
nem mesmo seu único herói,
em se tratando de prazer
solitário. O prazer sexual
sempre revela uma
defasagem notável entre o
prazer esperado e o prazer
obtido; defasagem inscrita,
aliás, na linguagem corrente
que declara de bom grado e
justamente, que o prazer
sexual transporta, quer
dizer, efetua um
“transporte”, um
deslocamento. Ao gozo
esperado se substitui um
gozo não somente mais
intenso, mas também e
sobretudo, de outra ordem;
pois não é mais um certo
corpo que aparece então
como fonte de gozo, e sim,
indistintamente, todos os
corpos, e mesmo o fato da
existência em geral,
subitamente sentida como
universalmente desejável. O
que se realiza no momento
do orgasmo pode ser
descrito como uma
passagem do singular ao
a
mo
t
empo/Fogosas balangam nos meus
braços/Deslizam por todo meu corpo/Inventam o
paraíso/Fazem de mim gato e macaco/Esse baobá é
mesmo um safado/Já tá todo arrepiado/Nele se
esfregaram muitos namorados/E até choraram
emocionados/Mas o que ele não sabia/É o leito
que seria/Pra orgia de jibóias.
No quintal chupei as primeiras jabuticabas dessa
safra, sem saber que o seu pé está florindo.
Sobre a conversa da vidente, minha querida
vesta
,
doce escorpiã, tenho que ser um peixe elétrico para
nadar e pular de seu aquário, circo, cerco, de fogo!
Esse perigoso aracnídeo, seu signo no zodíaco, a
sua forma a um dos mais antigos hieróglifos e o seu
nome a um dos soberanos pré-dinásticos:
Rei
Escorpião
. Agora vem o melhor: a sua imagem
termina com a cabeça de
Ísis
e é encontrada sobre
certos cetros de faraós.
Nem baques de passado, nem ataques de futuro,
toques de presente. Se o acaso pôde atravessar o
espaço-tempo e marcar o nosso encontro em
Pernambuco, por que não poderia no giro espiral
celebrar nosso carnaval, em qualquer lugar e
tempo, se já sabemos um do outro?
Chegarei em plena primavera, mesmo que não
resolva demandas reencarnatórias. Nossa paixão
está repleta de sinais, de coincidências significativas,
de sincronicidades. Também tenho medo, mas a
paixão enfrenta qualquer coisa mal-assombrada!
Para recordar nossos momentos mais íntimos, leio
e releio a dedicatória no livro que vome deu:
O
Amor Natural
. Do poema que você incorporou,
no lado solar da narrativa, retribuo esse fragmento,
do verso e do reverso de Drummond:
O mimo e o milagre de ser duas em uma,
plenamente. A bunda, que engraçada, está sempre
um monossílabo fo
rmado
basicamente por um
m
mais
vocal, que expressaria, de
forma onomatopaica,
o fato mesmo de aprisionar a
mama; nas línguas germânicas
os termos que expressam a
idéia de amor,
love,
em inglês,
liebe,
em alemão, estão ligados
ao
L
, todos provenientes de
um monossílabo formado
basicamente por esse som
(completado por uma
vogal), que requer, para se
articular, um gesto análogo ao
que efetuamos ao lamber. A
raiz indo-européia relevante
aqui é
leubh:
amar, desejar.
Daí provém uma numerosa
descendência: em sânscrito
lobháyati
, desejar; em grego
lipto
, desejar vivamente; em
anglo-saxão
lufo,
amor; em
latim, o verbo
libet,
que
significa compraz, agrada,
encanta, e
libido,
ânsia, desejo
intenso. É J.M.Coetzee
quem diz: “para poder
remontar eticamente as águas
até o presente e identificar
que velhos sentidos continuam
reverberando na linguagem
atual, primeiro deveríamos
aprender a escrever palavras
supostamente reprimidas. A
tarefa do narrador seria, desse
modo, a de desmontar, a partir
do próprio coração do idioma,
39
geral, passagem da busca
de um prazer particular para
obtenção de um gozo, se
não universal, pelo menos
sentido como tal. Pois o
prazer sexual, exatamente
como o prazer estético e
como, aliás, o prazer tido
com qualquer coisa, implica
o pensamento de uma
pretensão legítima a um
reconhecimento universal,
mesmo se essa unanimidade
não tenha qualquer chance
de um dia se realizar
concretamente.
Clément Rosset
Alegria: A Força Maior.
Pensando nas relações
entre poesia e linguagem,
entre paixão, poesia e
linguagem, formulei a coisa
de que a poesia seria uma
manifestação, sobretudo, de
paixão pela linguagem, por
causa do próprio caráter
substantivo da poesia. Um
poema não é como um
conto, não é como um
romance. Um conto, um
romance, são transparentes,
deixam o olhar passar até o
sentido. Não poesia, não. O
olhar não passa, o olhar
pára nas palavras. Um
sorrindo, nunca é trágica. A bunda basta
-
se
!
A espera é uma forma de paciência, confiança,
esperança. Além de todo prazer, tento me
convencer de que antes de você aparecer o universo
existia e continua. Não quis lhe devorar,
comer. Você é quem quase me mata, de prazer.
Ainda ressoa em meus ouvidos: é sica seu gozo.
Vamos sensualizar o viver. Ensaie e aguarde. Arte
erótica, a nossa
jiboiarte
: excitação sem ápice,
relaxamento na planície, corpos encaixam, em
concha.
Veja o que diz o filósofo Georg Simmel:
Uma natureza erótica é, em todo caso, uma
natureza que a cada instante sabe com que objetivo
vive, ainda que o objetivo em questão não se
realize. A natureza erótica é, de fato, erótica
mesmo quando não ama ninguém, do mesmo
modo que é forte o homem forte, mesmo quando
nenhuma tarefa lhe é atribuída.
Sim, você está certa, pistas de uma arte erótica
no Ocidente, na Grécia, principalmente nos
fragmentos de Safo
:
Que te recorde deixa-me ainda, a última, uma vez
mais, algumas horas belas, entre tantas, tecidas
guirlandas, fino fio, lado a lado, rosas, violetas,
açafrão, uma flor em teu cabelo pétalas, corolas,
colares, fragrâncias, teu delicado colo, essências de
ervas raras, sobre a pele a pele, o leito
onde o desejo
totalmente saciavas. Egeu, Eresos, Mitilene, Lesbos,
míngua selene, plêiades declinam, Calíope, Hermes,
Deméter, salva-me Afrodite! Nus, nas tenras flores
da relva, os delicados pés pousam: dança, teatro,
poesia sente-se unge, urde, indomável serpente
cingem-nos: tornozelos, pernas, joelhos, ânfora,
uva, figo, amêndoas, romã, a ti o feitiço desse
os mitos sobre os quais
repousa toda a cultura”.
Ivonne Bordelois
Etimologia das Paixões.
Velas, músicas, flores e vinho –
todos sabemos que são coisas
de romance, sexo e amor. Mas
velas, flores, música e vinho
também são elementos do
ritual religioso, de nossos
rituais mais sagrados. Por que
há essa conformidade
extraordinária, embora
raramente percebida? É
simplesmente por acaso que
paixão
seja a palavra que
usamos tanto para experiências
sexuais quanto místicas?
Ou há aqui uma conexão, de
certa forma ignorada, mas
ainda assim poderosa? É
possível que o anseio de tantas
mulheres e homens por sexo
como algo belo e mágico seja
nosso impulso há muito
reprimido em relação a uma
maneira mais espiritual, e ao
mesmo tempo mais
intensamente apaixonada, de
expressar o sexo e o amor?
Riane Eisler
O Prazer Sagrado
Tristão e Isolda
é a matriz das
histórias de amor em que os
apaixonados se amam
loucamente e morrem de amar,
contra tudo e todos, contra o
mundo. Denis de Rougemont
40
romancista, um romancista
típico, um ficcionista, pra
ele, a palavra não é o valor
fundamental, sua música,
sua forma, suas relações
com outras palavras não é
essencial. O essencial é a
escrita que ele está
contando. Grandes
ficcionistas não se pode
dizer que foram grandes
escritores, por exemplo,
Balzac. Ele era um grande
romancista, mas você não
pode dizer que era um
grande escritor, não um
grande escritor no sentido
de, por exemplo, um
Flaubert, um grande
escritor, como Joyce é um
grande escritor ou Beckett é
um grande escritor, porque
não está preocupado com
os valores da palavra, ele
está preocupado apenas em
criar uma janela, uma
transparência através da
qual você visse o enredo
correndo. A atividade
poética é uma coisa voltada
para a palavra enquanto
materialidade, a palavra
enquanto uma coisa do
mundo. O poeta é, na sua
óbvia paixão pela
linguagem, porque um
poema propriamente não
tem um significado, ele é o
próprio significado.
Paulo Leminski.
Poesia: a paixão da linguagem
canto teço, fugaz amiga, amante, irmã. Queimo
.
Desejo, anseio flutua, a cabeça arde-me medusa,
Crisaor, Pégaso, Polímnia, outra vez Terpsícore
dança, agita-me o tecelão de mitos: Eros, filho de
Afrodite, o deus da astúcia, aquele que tece a
palavra. Como escolher? Sou uma. E os desejos.
Os homens têm o ginásio, o simpósio e outros
espaços públicos da cidade para praticar um
elaborado ritual de corte. Escritores do sexo
masculino, que idealizam o amor por meninos,
descrevem o desejo entre mulheres como
horrendo, imoral, contrário à natureza ou
simplesmente nojento. O homoerotismo feminino
permaneceu uma prática não nomeada por todo
mundo clássico. Contudo, em uma época anterior
à cidade clássica, por volta do começo do século VI
a.C., na ilha de Lesbos, Safo escreveu poemas de
amor, grande parte dedicado às mulheres. Mesmo
depois de Safo, a poesia masculina amorosa nunca
atingiu na Grécia o profundo. Nos primórdios,
somente a mulher é entrega total alma, maleável
amor, lâmina e mel. As meninas eram educadas
para se conceberem mulheres e saberem discernir
parceiros desejáveis, apetecíveis, que pudessem fazer
uma mulher feliz. Revelar-se: a inebriante beleza do
corpo querer. Refletir, repetir Narciso: passagem e
permanente escolher. É preciso extasiar-se com a
magia do mundo sensível e despertar pelo amor a
volúpia, a fantasia.
Isadora, de todas as artes, jogos, eu digo: o que
de mais belo é ser amada por quem aspira o coração
suspira.
viu nesse grande mito europeu
do adultério o próprio
nascimento da paixão no
Ocidente. O romance data do
século XII, quando nos
aparece sob a forma de várias
versões escritas, possíveis
manipulações artísticas de um
hipotético texto original do
qual nunca se encontrou
rastro. Um aforismo de
Nietzsche contém uma
constelação onde a
polarização paixão/casamento
é harmonizada pelo brilho de
outra estrela: a amizade.
O
casamento foi inventado para
os seres humanos medianos,
que não são aptos nem para o
grande amor nem para a grande
amizade, portanto a maioria.
Mas também para aqueles,
raríssimos que são aptos tanto
para o grande amor quanto
para a grande amizade.
Durante muito tempo, de uma
maneira que remonta às mais
antigas relações entre a ideia
de amor e a de casamento, o
princípio da paixão se opõe ao
do matrimônio, como a da
estabilidade da órbita dos
planetas se opõe ao
desgarramento e à ruptura. Os
teólogos da Igreja chegaram a
dizer que o marido ardente,
que se comporta com sua
esposa como amante, trai o
próprio princípio do casamento
desde dentro, constituindo-se
numa estranha forma de
adúltero.
José Miguel Wisnik.
A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda
41
Para incorporar a dança na
arte universal de Wagner,
sua mulher, Cosima,
convidou Isadora Duncan e
deu-lhe carta branca para o
bailado em Bayreuth.
Depois da exibição das Três
Graças da Bacanal de
Tannhäuser
, em 1904,
Isadora apavorou a patrona
anunciando-lhe que a ideia
de teatro musical não
passava de um disparate. “O
homem deve falar primeiro e
só depois dançar”, explicou
à perturbada Cosima, “e o
discurso corresponde ao
homem cerebral, ao homem
pensante. O canto é emoção.
A dança é o êxtase
dionisíaco que nos
transporta para longe. É
impossível misturá-los, seja
de que maneira for.” A
dança, por vezes
denominada a arte original,
é também a arte universal,
pois o humano a traz
sempre consigo. As mais
antigas pinturas em túmulos
egípcios mostram pessoas a
dançarem e, como vimos, o
teatro grego, do qual
derivou o ocidental,
começou com a comunidade
reunindo-se na orquestra:
local onde se dançava.
Apesar da sua antiguidade,
a dança, ao contrário da
arquitetura, da escultura e
da literatura, deixou-nos
escassos testemunhos. Não
tendo sido eficazmente
De: Isadora <isado[email protected]
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Duncan dança
Para um pernambucano e uma paulistana,
excessivos Egitos e Grécias. A dança é nosso código,
elo, eco, encontro. Falando nisso, aqui está uma
noite linda, límpida, de lua azul. Antes de lhe
escrever dancei tambor de crioula.
Lembro-me da sua pergunta: nomes são gratuitos?
Isadora: a dádiva de Ísis descobri depois. O meu
veio de minha xará Duncan, a pioneira da dança
moderna. Foi meu pai quem deu. Talvez
pressentisse a tragédia que estava por vir: sua morte,
fulminado pelo raio.
Você já me disse que não tenho muitas alternativas:
diante da tragédia quem nos salva é o teatro e a
dança, atributos dionisíacos.
Isadora perdeu os dois filhos afogados, no rio Sena.
Seu pai morreu afogado no mar. Amigo de
Maiakovski, o também poeta russo, Sierguéi
Iessiênin, com quem ela se casou, suicidou-se. Ela
própria morreu estrangulada pela sua echarpe, que
ficou presa à roda do automóvel, quando passeava
pelas ruas de Paris, em 1927.
Dançarina, aventureira, revolucionária, feminista,
ardente espírito poético, Isadora Duncan nasceu em
São Francisco, na Califórnia, em 27 de maio de
1877. Alguns fragmentos de sua autobiografia:
Na infância, não tive brinquedos ou brincadeira de
criança. Muitas vezes fugia sozinha para as florestas
ou à praia junto do mar, e dançava. Sentia que
meus sapatos e roupas apenas me estorvavam. Meus
sapatos pesados eram como correntes; minhas
roupas eram minha prisão. Por isso, eu tirava tudo.
E sem olhos me espiando, inteiramente só, eu
dançava nua diante do mar. E parecia-me que o
Em uma instância, no entanto,
um poeta trágico chegou muito
perto de fornecer um resumo
explicito da visão trágica da
vida.
As Bacantes
de Eurípides
permanece especialmente
próxima das origens não mais
discerníveis do antigo
sentimento trágico.
Ao final da peça, Dionísio
condena Cadmo, sua casa real,
e a cidade inteira de Tebas a
uma ruína selvagem. Cadmo
protesta: a sentença é
demasiado dura. É
completamente
desproporcional à culpa
daqueles que falharam em
reconhecer ou que insultaram
o deus. Dionísio se evade da
questão. Ele repete
petulantemente que foi
42
documentada ou
imortalizada, a dança dos
antigos – “o êxtase
dionisíaco” – não faz parte
da nossa herança palpável.
Temos de procurar pistas
das suas características na
pintura e em outras artes
visuais. A dança foi, por
isso, a última forma de arte
a adquirir um identidade
independente.
Daniel J. Boorstin
Os Criadores
Ele olhou para mim com as
pálpebras abaixadas, os
olhos brilhantes, e então,
com a mesma expressão que
tinha diante de suas obras,
se aproximou de mim.
Correu as mãos pelo meu
pescoço, pelo busto, deu
umas batidas nos meus
braços e correu-me as mãos
mar e todas as árvores dançavam comigo. Os meus
temas inspiram-se na contemplação da natureza:
onda, nuvem, vento, árvore. Desde o início apenas
dancei minha vida. Não sou uma dançarina. Estou
interessada em encontrar e expressar uma nova
forma de vida. Eu vim para trazer um renascimento
da religião através da dança, para revelar a beleza e
santidade do corpo humano, pela expressão dos
seus movimentos. Minha alma era um campo de
batalha onde Apolo, Dionísio, Cristo, Nietzsche e
Wagner disputavam terreno uns aos outros.
A tragédia grega, dizia Nietzsche, tinha como
objeto único a paixão de Dionísio. Prometeu ou
Édipo seriam suas máscaras sucessivas. A mesma
divindade se esconde e transparece na vida de
Isadora. Durante a guerra de 1914, sua escola em
Paris foi transformada em hospital militar, disse,
percorrendo a casa:
Compreendi que Dionísio havia sido
completamente vencido. Era o reino de Cristo,
após a crucificação.
Quando voltou para a América do Norte criou o
Dionysion
, cuja primeira montagem seria Édipo.
Isadora foi profundamente influenciada por
Nietzsche, para quem o sentido da tragédia grega é
a unidade fundamental de tudo que existe. O
individualismo é a origem do sofrimento
desnecessário. A arte é a experiência e a promessa
de uma unidade restaurada. A música e a dança não
são a imagem do mundo das aparências, mas do
querer primordial que é a fonte de toda realidade e
de sua superação: a música e a dança são a visão
simbólica da paixão de Dionísio, o deus do corpo:
retalhado e espalhado por toda Terra, cuja
ressurreição anuncia as festas da primavera. Isadora
dedicou-se inteiramente ao renascimento desse
espírito dionisíaco.
Não é difícil imaginar sua
emoção ouvindo
Zaratustra,
em uma página que
imensamente afrontado; então
afirma que a ruína de Tebas
estava predestinada. Não
adianta pedir explicação ou
perdão racional. As coisas são
como são, desapiedadas e
absurdas. Somos punidos
excessivamente por nossa
culpa. É uma percepção dura
da vida humana. Ainda assim,
no excesso mesmo do seu
sofrimento encontra-se o
clamor do humano por
dignidade. Destituído de
poder e alquebrado, um
mendigo cego perambula às
margens da cidade; ele assume
uma nova grandeza. O homem
se enobrece com a maldade
vingadora ou a injustiça dos
deuses. Isso não o torna
inocente, mas consagra-o como
se tivesse passado pela chama.
Desse modo, nos momentos
finais da grande tragédia, seja
ela grega, shakespeariana ou
neoclássica, há uma fusão de
dor e êxtase, de lamento pela
queda do humano e de regozijo
pela ressurreição de seu
espírito. Nenhuma outra forma
poética realiza esse efeito
misterioso; ela faz de
Édipo,
Rei Lear, Fedra
, os mais nobres
ainda que forjados pela mente.
George Steiner
A morte da tragédia
43
pelos
quadris e pelas
pernas e pés nus. Começou
a massagear todo meu
corpo, como se estivesse
amassando argila, e ao fazer
isso emanava dele um calor
que me queimava e me
dissolvia. Meu desejo era
ceder a ele todo meu ser, e
na verdade eu teria feito
isso não fosse o fato de a
minha absurda educação me
ter me deixado
amedrontada; então eu
recusei, joguei o vestido
sobre a túnica e o despachei
aturdida. Que pena! Quantas
vezes lamentei essa
compreensão equivocada
do que me fez perder a
chance divina de dar a
minha virgindade ao Grande
Pã, o poderoso Rodin.
Certamente isso teria
enriquecido a Arte e toda a
Vida!
Isadora Duncan.
Isadora: uma vida sensacional
resume s
ua concepção
da
v
ida e da
d
ança:
sempre um pouco de loucura no amor. Mas
sempre um pouco de razão na loucura. E para mim
também, para mim que estou destinado à vida, as
borboletas e as bolhas de sabão, e tudo o que a elas
se assemelham entre os homens, parecem-me ser
quem melhor conhece a felicidade. Quando
esvoaçar essas almas pequenas, leves e maleáveis,
graciosas e brincalhonas, Zaratustra tem vontade de
chorar e cantar. Eu só poderia acreditar em um
Deus que soubesse dançar. Aprendi a andar; desde
então, deixo-me correr. Aprendi a voar, desde
então não preciso mais que me empurrem para
mudar de lugar. Agora sou leve, agora voo. Agora
um deus dança em mim.
Os gregos são os modelos estéticos de Isadora.
Modelava seus gestos a partir dos vasos gregos, das
esculturas, copiados nos museus, por seu irmão.
Seu movimento preferido era o de jogar a nuca para
trás. Este pode ser visto em cenas do rito
dionisíaco, em toda arte grega: é o movimento de
transe que proclama ter sido o corpo possuído por
uma inspiração sobre-humana. Ela dizia: a dança é
o resultado de um movimento interior.
Não se pode dizer que desenvolveu uma técnica,
talvez um conjunto de sugestões. No sentido de
uma técnica transmissível, a dança moderna
começa com Ruth Saint-Denis.
Nunca tinha lido algo de Drummond sobre dança,
olhe esse:
Descobri que a vida é bailarina e que nenhum
ponto inerte anula o viravoltear das coisas.
Amo a tragédia porque ela é
bela. A única comédia que vale
a pena é aquela que contém
beleza. A obra cômica, se
realizada com vida, pode ser
tão grandiosa quanto uma
tragédia grega. Arte é um
sentimento difícil de ser
definido. O seu tema, por mais
importante e grandioso que
seja, pode ser simplificado ao
ponto de ser compreensível
por todas as pessoas. É aí,
então, que a Arte atinge a sua
forma mais sublime. A Arte
consiste em saber ocultar o
artifício. A Arte é uma
emoção adicional justaposta a
uma técnica apurada.
José Geraldo Simões.
O pensamento vivo de Chaplin.
44
Sabe-se que o dançarino
evolui num espaço próprio,
diferente do espaço
objetivo. Não se desloca
no
espaço, segrega, cria o
espaço com o seu
movimento. O que pouco
difere do que se passa no
teatro ou noutros palcos. O
ator transforma também o
espaço da cena; o esportista
prolonga o espaço que
rodeia a sua pele, tece com
barras, tapetes, ou
simplesmente com o solo
que pisa, relações de
conveniência tão íntimas
como as que têm com o seu
corpo. Do mesmo modo, o
atirador de arco e flecha e o
seu alvo
zen
são um só. Em
todos os casos surge um
novo espaço: chamar-lhe-
emos
espaço do corpo
.
De:
Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Isadora <isadora@lua.com.br
Assunto: Arte erótica
Que seja perdido o dia em que não se dançou uma
única vez! Que seja falsa para nós cada verdade
perto da qual não tenha havido pelo menos uma
gargalhada.
Esboço uma peça de teatro, com outro triângulo
amoroso: Rilke-Lou Salomé-Nietzsche, o título:
Assim Zaratustra Conversa
. O que acha?
Para velhos e meninos, receita pra virar homem,
passando pelo lobisomem: de onde a gente parou
em diante, começo a elaborar melhor a teoria e a
técnica de uma
arte erótica
: a nossa
jiboiarte.
Imagino-a em
5 movimentos
:
água, cama, terra, ar
e jiboiar.
O fogo erótico atravessa todos os
movimentos.
O
primeiro
movimento
: é surfar, com o corpo,
na crista da onda, pegar jacaré no quebra-mar. Essa
é uma boa maneira de driblar a gravidade, fazer
movimentos em várias direções, sem muito
esforço. Quem não tem praia faz na piscina, mas
precisa ter onda. Vou bem cedinho até Boa Viagem
e disputo espaço, à tapa, com os tubas, só para você
saber como seu amado é corajoso.
O
segundo movimento
é na cama. O nome do
filme é na cama ainda sem madona. É uma etapa
intermediária entre a água
e
a
terra, por causa da
maciez e conforto do colchão. São
espreguiçamentos, sensualidades felinas, enroscar e
desenroscar, movimentos serpentinos, peristálticos:
aqueles em que a musculatura de órgãos ocos
enviam adiante, em ondas, o seu conteúdo. Aqui se
conjugam, de forma recorrente, entre extremos,
com pausas: excitação erótica máxima e mínima,
contrações e relaxamentos, respirações rápidas e
lentas, profundas. Contorções serpentinas.
Estou diante da delicada
tarefa de propor um ritual
tântrico para nós, ocidentais,
um ritual que seja ao mesmo
tempo autêntico, adaptado ao
nosso estilo de vida e que
respeite nossas convicções,
especialmente religiosas.
Quanto a este último ponto,
não há problema, pois o tantra
é um culto, não é uma religião,
é um ritual, não uma missa
pagã, por ser precisamente a
repetição de atos
significativos
destinados a nos libertar da
rotina cotidiana, para ter
acesso às realidades supremas
em nós. No corpo se fazem
presentes as energias supremas
de
Shiva/Shakti
que penetram
em tudo que existe. Na
realidade, o corpo é um vasto
reservatório de poderes:
Shakti!
A finalidade do ritual
tântrico é despertar essas
energias para que elas atinjam
45
Espaço paradoxal: diferente
do espaço objetivo, não está
separado dele. Pelo
contrário, imbrica-se nele
totalmente, a ponto de já
não ser possível distingui-lo
desse espaço: a cena
transfigurada do ator não é
espaço objetivo? E, todavia,
é investida de afetos e de
forças novas, os objetos que
a ocupam ganham valores
emocionais diferentes
seguindo os corpos dos
atores. Embora invisíveis, o
espaço, o ar adquirem
texturas diversas.
Tornam-se densos ou
tênues, tonificantes ou
irrespiráveis. Como se
recobrissem as coisas com
um invólucro semelhante à
pele: o espaço do corpo é a
pele que se prolonga no
espaço, a pele tornada
espaço. Daí a extrema
proximidade das coisas e do
corpo. O espaço do corpo
não é apenas produzido
pelos esportistas ou os
artistas que utilizam o seu
corpo. É uma realidade
muito geral, presente por
Se o c
olchão for grande bota
-
se no chão
e
-
se
cambalhotas ou a mais exata e maravilhosa palavra:
bundacanástica.
É importante dizer que durante todas essas etapas e
movimentos é vital fazer circular o fogo: a energia
erótica em alta voltagem! A água ferve, o fluxo do
prazer faz o corpo ousar movimentos mais
audaciosos, pela segurança e garantia que nos o
prazer de que não perigo de se fazer gestos
torpes, que possam nos machucar. Desobstruções
de travamentos, limites, locais de dor, devem ser
tentados depois que o prazer se eleva muito, por
todo corpo. Quando a dor predomina,
abandonam-se, provisoriamente, esses focos, e
volta-se a elevar a voltagem do prazer, em
movimentos recorrentes, até ser só prazer.
Fantasia erótica todo tempo, sem orgasmo-
objetivo, espiralar o gozo. É claro que, mesmo
sendo a fantasia erótica suficiente para o corpo ficar
excitado, ele pode ser tocado, estimulado,
manipulado, em suas zonas mais sensíveis, sabidas e
desconhecidas. É preciso brincar, embaralhar,
inverter, subverter as fases do amadurecimento
sexual de Freud:
fases oral, anal e genital.
Do
primitivo ao civilizado, da criança ao adulto. Essa
compreensão é um equívoco de interpretação do
processo evolutivo. Nada é tão linear ou
escalonado assim. Zonas de maior inervação: dor e
prazer com maiores intensidades, rtices de
energia, coincidem com locais dos
chakras
principais: bocas, línguas, gargantas, mamas,
estômagos, genitais, ânus, continuam sendo as
partes mais sensíveis do corpo. O que precisamos é
fronteiras ultrapassar, estender o prazer ao máximo
pelo corpo todo até o gozo polimorfo. Perverso é
o controle imposto ao corpo, esse enorme
interdito: pessoal, social, religioso, estatal. Ao
longo de séculos a falta de autonomia; de início
por medo, repressão sexual; depois, pela
transferência de responsabilidade; reificação,
sua expressão completa. O
corpo é a nave central da
catedral tântrica. Ele não é o
humilde servidor, nem trêmula
carcaça; nem antítese do
espírito, sede de apetites
grosseiros, coisa desprezível,
que melhor seria submeter e
mortificar para salvar a alma.
Para o tantra, o corpo é bem
mais que um maravilhoso
instrumento de manifestação
ou uma admirável mecânica
biológica. O corpo é divino.
Para entender essa chave do
tantra, é preciso dizer que: o
corpo real é um universo de
extraordinária complexidade,
cuja vida secreta é totalmente
desconhecida; o corpo
vivenciado é uma simples
imagem, um esquema, uma
construção mental, único
aspecto que conhecemos; o
corpo é produzido e animado
por uma inteligência criadora,
a mesma que suscita e preserva
o universo, da mais ínfima
partícula subatômica à mais
gigantesca das inumeráveis
galáxias; o corpo abriga, em
suas profundidades ocultas,
potencialidades inesperadas,
energias extraordinárias, cuja
maioria permanece latente no
humano comum, mas que a
prática tântrica desperta e
desenvolve. A primeira etapa
46
toda a parte e nasce a partir
do momento em que há
investimento afetivo do
corpo. Apresenta-se ao
“território” dos etólogos. De
fato, é a primeira prótese
natural do corpo: dá-se a si
próprio prolongamentos no
espaço, de tal modo que se
forma um novo corpo –
virtual, mas pronto a
atualizar-se e a deixar que
gestos nele se atualizem.
Consideremos o simples
fato de conduzir um
automóvel: se podemos
passar entre dois muros
sem os tocar, ou virar à
esquerda sem roçar a
calçada, é porque o nosso
corpo desposa o espaço e
os contornos do carro. De
um modo geral, qualquer
ferramenta e a sua
manipulação precisa
supõem o espaço do corpo.
José Gil
Movimento Total: O Corpo e a
Dança
hierarquização
ou divinização, de uma parte: a
cabeça; e também a virtualização e abstração do
corpo, do animal que somos
.
Lembra-se da
pichação que vimos, no bairro de Casa Forte,
quando fomos reverenciar o baobá?
Animalizemo-
nos humanos
!
O lugar do maior experimento
é o corpo! O
templo mais sagrado! Delegar a outros esse poder,
não autorizar-se, recusar a busca da consciência do
próprio corpo é o grande escândalo! Agora é você,
Isadora, toda a minha energia da luxúria!
O
terceiro movimento
é a terra: começa no chão,
em conjunto com todos os répteis: rastejamentos,
enroscamentos, automassagens, com as mãos e
com o peso do próprio corpo. Particularmente a
massagem nas mãos é muito importante, porque
elas ocupam uma das maiores áreas motores
cerebrais e, nesse sentido, por via reversa, se faz
uma massagem indireta nas circunvoluções e, sem
precisar abrir a cabeça, pode-se fazer um cafuné
relaxante. Encontrar meios em que se utilizem, o
mínimo possível, instrumentos externos. Mas
também usá-los. As bolas de tênis são ótimas, para
massagens nos pés, mãos e nas costas quando
estamos deitados.
A palavra tem uma carga de subserviência, mas não
é nada disso: humildade vem de
humos
, a camada
fértil e significa literalmente: reverência à Terra. A
palavra humanidade tem essa mesma etimologia. A
integridade é decorrente do conhecimento de si
mesmo e de um senso de reverência por toda vida.
Por isso, todos esses movimentos de solo como,
por exemplo, ficar de cócoras ou de joelhos,
meditando durante algum tempo, aumentam a
elasticidade, fortalecem os músculos e lubrificam as
articulações e ainda têm a vantagem de acalmar o
ser. Nosso corpo é a maior tecnologia disponível
do planeta, da qual todas as outras são projeções,
extensões. Não se deve lutar contra: a gravidade
do ritual tântrico consiste em
meditar sobre a divindade
corporal própria e da outra
pessoa.
André Van Lysebeth
Tantra: O Culto da Feminilidade
Segundo a doutrina dos
Tantras, o culto de
Shiva-
Dionísio
e as práticas do
tantrismo são as únicas vias
abertas para a humanidade
no
Kali Yuga
: a
Idade dos
Conflitos
em que nos
encontramos atualmente. Sem
um retorno ao respeito pela
natureza e à prática dos ritos
erótico-mágicos, que permitem
a realização do ser humano e
sua harmonização com outras
formas de seres, a destruição
do conjunto da espécie
humana não poderia tardar. Os
grandes períodos da arte, da
cultura, estão sempre ligados a
uma renovação erótico-
mística. Um instinto de
sobrevivência num mundo
ameaçado manifesta-se sob
formas particulares, tais como
a ecologia, a reabilitação da
sexualidade, certas práticas de
yoga e a procura de estados
extáticos pelas plantas
expansoras da consciência.
Essas formas de experiência
somente encontrarão seu
47
Hoje conhecemos alguns
trabalhos sobre energia e
vida cujos resultados
validam as pesquisas de
Reich, ao menos em parte.
Tomadas em conjunto, as
pesquisas sobre o princípio
do
orgone,
entre as quais
estão as de Reich,
produziram uma quantidade
impressionante de dados
que aparentemente
confirmam que de fato existe
algo como um campo
constituído por bioenergia.
Isto é um grande caminho na
corroboração dos conceitos
de energia de ensinamentos
erótico-espirituais como o
taoísmo e o tantrismo. O
ponto de discordância entre
Reich e as tradições
orientais que têm uma
atitude positiva em relação
ao sexo está na
supervalorização que ele
atribuía ao orgasmo.
Apóstolo do orgasmo total,
Reich não se lembrou de
levar em conta que a energia
pode ser aliada, parceira e cúmplice. Foi es
s
a uma
das descobertas da dança moderna e, antes dela,
d’África, que com a capoeira, dribla a verticalidade,
desloca o eixo em várias direções. Por isso é
essencial deitar e rolar.
É importante compreender que somos também,
anatomicamente, duas serpentes: a
coluna
vertebral
, da cabeça ao cóccix e o
túnel digestivo
,
do ânus à boca. Ao longo do processo evolutivo,
essas serpentes ainda não estão completamente
erectas, a verticalização ainda está incompleta.
Somos um caduceu se pondo
de pé! Cuidar
carinhosamente do prazer e bem-estar dessas duas
serpentes é saúde! Não é gratuito que algo tão
antigo e vital seja um símbolo de mudança, de
transmutação do ser, do cuidar, curar, meditar,
medicar, em várias culturas antes, e também na
Grécia:
Conta-se que
Hera
e
Zeus
discutem quem goza
mais. Hera diz que é o masculino e Zeus o
feminino. Distraído vem
Tirésias
, que ainda não é
cego, nem famoso, mas que na sua juventude,
como agora, vagava pela floresta e encontrou duas
serpentes copulando e resolveu separá-las. Botou
seu bastão entre elas e se transformou em mulher e
assim permaneceu, por vários anos. Resolveu depois
voltar a ser homem e fez o mesmo. ele sabe
quem goza mais:
a mulher, nove vezes mais do que
o homem!
Pela perda do segredo, do poder, diante
disso, Hera irada o cega. Para compensá-lo, na
sequência, Zeus abre seu terceiro olho.
Em nossa técnica, o corpo se ergue lentamente e
reaprende a andar, pular, correr, sentar, dançar,
verticalizar, respirar. A cada dia ficamos mais tempo
sentados, por isso aprender a sentar é básico no
método. Venho testando vários tipos de cadeiras e
posturas. Ao contrário do que acontece na
coreografia do
Café Müller
, de Pina Bausch, as
cadeiras não são obstáculos para o corpo no espaço,
sentido e realização em um
retorno ao dionisíaco.
Alain Daniélou
Shiva e Dioniso
A literatura tântrica diz que
há dois tipos de orgasmo ou
gozo. Um tipo conhecido é
assim: você atinge o máximo da
excitação e não consegue
seguir adiante. O fim chegou.
A excitação chega ao um
ponto no qual ela se torna
involuntária. A energia circula
intensamente dentro de você e
sai. Você se sente livre dela,
aliviado. Você a está usando
como um calmante. Trata-se de
um calmante natural. Segue-se
um sono reparador. Este é um
orgasmo de pico, de cume, de
ápice. O Tantra, no entanto,
está centrado em outro tipo
de orgasmo, nele você não
chega ao ápice da excitação,
mas ao profundo vale do
relaxamento. A excitação não
ultrapassa o ponto em que é
impossível o retorno. Este é o
48
psíquica pode ser
aproveitada para uma
finalidade que ultrapassa o
bem-estar corporal e
psicológico. Uma coisa é ser
capaz de sentir um orgasmo
completo e a energia sexual
fluir no próprio corpo, e
outra muito diferente é
dirigir para o processo
espiritual aquela energia
que flui livremente. No
estado de êxtase o corpo
sexuado não deixa de existir.
Transcender não significa
evaporar-se; pelo contrário,
a imagem do nosso corpo se
amplia para incluir todos os
corpos. Transformou-se no
corpo magnífico do próprio
cosmo, que é o campo total
da existência. Assim, a
percepção espiritual
é extremamente somática.
Não é um estado espiritual
da existência, é a
encarnação suprema.
Georg Feuerstein.
A Sexualidade Sagrada.
são instrumentos de movimento, repouso e
conforto. A cadeira é a dignidade humana sentada.
O
quarto movimento é o
ar: fluidez, soltura, sem
apegos nem apuros. Expansão, respiração, aumento
máximo dos espaços corporais, geográficos,
paisagísticos. Aqui é fundamental andar, andar,
andar. E respirar. É porque andava muito que
Nietzsche não ficou doido antes.
A revelação de Freud de que o veneno mortal é a
repressão sexual, motivo de tantas neuroses,
paranoias e infelicidades, é uma contribuição
enorme para a humanidade. Mas ele foi mais além:
inventou a cura pela palavra e trouxe os sonhos, os
mitos, a fantasia, o delírio, o desejo, a arte, o
inconsciente, para o campo da ciência. Fez de Édipo
um modelo para todo ser humano: a busca
essencial pela origem, a necessidade e a ansiedade
do autoconhecimento. Freud transformou esse
mito em uma
metanarrativa
do desenvolvimento
da sexualidade e da mente. Édipo resume as
emoções ambivalentes e violentas do desejo entre
filhos e pais que ele considerou a crise emocional
básica no desenvolvimento de qualquer criança. A
infância, bem longe de qualquer inocência, é a
idade de ouro da experimentação sexual, sob todas
as formas. Mais do que o tema do incesto, o
horror da tragédia de Édipo é que não podemos
escapar do passado, da vida submersa, que nos
torna o que somos, e como a busca pela origem
pode ser perturbadora e dolorosa. Édipo significa
pés inchados. A metáfora quer dizer que alguém
em busca do seu destino é manco?
O coro na peça Édipo Rei, de Sófocles, resume
nosso impasse:
Ai
,
vocês gerações de mortais!/São aos meus olhos
menos que nada/Pois quem, que homem/Teve
alguma felicidade/Que não fosse apenas aparência,
esvaindo-se em mera ilusão?
orgasmo de planície. No
orgasmo sexual comum vocês
se encontram como seres
excitados, tensos, com
propósitos, objetivos e tempo,
tentando aliviarem-se. O
orgasmo tântrico é atemporal e
sem um objetivo a ser
alcançado, que não seja o
próprio jogo, tudo já está no
próprio encontro. Os rituais
são justamente para
sincronizar os ritmos e “dar
tempo” para vocês saírem do
tempo profano, do tempo da
ansiedade e dos relógios e
entrarem na eternidade do
instante. Quando o encontro
se dá, quando os parceiros se
tornam um ritmo, quando suas
respirações tornam-se uma só e
seu
prana
flui em um círculo,
quando os egos desaparecem
completamente e os corpos
tornam-se um todo, quando a
dualidade não está mais lá,
então vocês são o próprio
Eros, o Amor.
Rajneesh
Sexo e Epiritualidade
49
Na Índia, o pêndulo do
pensamento oscila entre
extremos; são extremos
inumanos, o que implica
atitudes inumanas e aponta
para metas extra-humanas.
Por um lado, encontramos
uma crítica pessimista da
existência em doutrinas e
práticas do mais rigoroso
ascetismo, nas quais o
sonho da vida é
considerado um pesadelo
assustador, interrompido
pelo despertar. A existência
humana é apenas um
trampolim a ser
abandonado, num salto
sublime para a esfera supra-
humana, supradivina e
escavação camada por camada
, uma arqueologia
da alma: a Psicanálise é um instrumento crítico
poderoso, imprescindível e sutil de investigação
pessoal, de culturas e civilizações. O Édipo de Freud
se tornou parte essencial de como compreendemos
a nós mesmos. Ele dizia que o trabalho da
Psicanálise poderia ser simbolizado pela relação
entre Édipo e a Esfinge: a busca trágica do
autoconhecimento, a descoberta das charadas, dos
enigmas da alma. Nas lendas gregas, uma esfinge
devasta a região de Tebas, um monstro meio-leão,
meio-mulher, que devorava aqueles que não
conseguiam responder aos seus enigmas. pode
ser vencida pelo intelecto, pela sagacidade. Está
sentada sobre a rocha, símbolo da terra: adere a ela,
como se estivesse presa, símbolo da ausência de
elevação. Pode ter asas, mas não voa; está destinada
a sumir no abismo. Ao invés de exprimir uma
certeza embora misteriosa como a esfinge do
Egito, a esfinge grega designava apenas a vaidade
tirânica e destrutiva, um enigma opressor. A esfinge
se apresenta no início de um destino, que é, ao
mesmo tempo, mistério e necessidade.
Gosto da continuidade de Freud dada por Reich: as
couraças corporais, musculares, são zonas nas quais
as repressões sexuais formam armaduras, defesas,
enrijecimentos, bloqueios energéticos, dores, que
impedem o prazer de circular, espiralar. Esses nodos
duros de dor são palpáveis e quando tocados,
massageados, podem provocar uma descarga de
prazer, que se difunde por todo corpo. Reich foi
ainda mais longe: o divã e a palavra não são
suficientes. Inventa a cura pelo orgasmo e uma
máquina para acumular essa energia, que ele
chamou de
orgone
, obtida através de eletrodos
conectados em parceiros no momento do
orgasmo, e que serve para fazer aplicações
terapêuticas, em pessoas sem parceiros ou com
grandes bloqueios. O orgone é azul! Disse ele, tal e
qual o cosmonauta russo Gagárin, ao ver do espaço
A força de
Brahma
manifesta
-
se através do canal que fica do
lado direito do corpo sutil,
conhecido como
Pingala
.
Este canal psíquico controla o
fluxo de energia solar através
do organismo humano. Ele é
ardente, expansivo, agressivo e
arrogante; quando
concentrada na região do
plexo solar, no
Chakra
Umbilical
, a força criadora de
Brahma procura realizar-se
através do despertar de sua
potencialidade intelectual. A
força de Brahma é patriarcal,
lógica e convencional.
A força de
Vishnu
manifesta-
se através do canal do lado
esquerdo do corpo sutil,
conhecido como
Ida
. Este
canal psíquico controla o
fluxo de energia lunar através
do organismo. Suas qualidades
são a fluidez, a contração, a
submissão e a modéstia;
quando concentrada na região
do cérebro, no
Chakra
Coronário
, a força
preservadora de Vishnu serve
para infundir profunda
sabedoria intuitiva na psique
ardente. Vishnu é matriarcal,
instintiva e não-convencional.
A força de Shiva manifesta-se
através do canal central do
corpo sutil, conhecido como
Sushumna.
Este canal controla
a evolução espiritual. É a
estrada que liga este mundo ao
próximo. Shiva é a força
penetrante da consciência
pura não diferenciada. Shiva é
a qualidade transcendental e
50
extracósmica, situada além
do sortilégio e do véu do
mundo. Por outro lado, no
simbolismo tântrico, a
mesma maya que oculta a
realidade divina e autêntica
e esconde o
Self
sob a
miragem da personalidade
individual e sob a
manifestação do universo
perecível é de algum modo
esse
Self
, esse absoluto:
puro Espírito, puro êxtase.
Maya é simplesmente o
aspecto dinâmico do
absoluto. Portanto, tudo,
todas as coisas são uma
revelação, uma
manifestação, uma
particularização da única e
singular essência divina.
a Terra. Reich
pensava
, como Freud, que a repressão
sexual era uma epidemia e por também ser
marxista, queria que suas descobertas fizessem parte
de um programa de saúde pública. Não sei se ele
teve conhecimento das concepções orientais: dos
chakras, os centros energéticos sutis do corpo.
Talvez, em parte, pois essas teorias não consideram
o orgasmo o grande objetivo. Propõem um gozo
de planície, para aumentarmos a troca prazerosa
entre os corpos, a consciência corporal e ficarmos
mais despertos. Reich morreu na prisão, nos
Estados Unidos, tratado como louco e bruxo.
Imagino nossa técnica com etapas e sequências,
mas alguns movimentos podem ser simultâneos,
cumulativos, como a espiral minimalista que, a cada
giro, acrescenta outros gestos. O método é
recordar nosso percurso filogenético, todos os
animais em nós, ou algo ainda mais profundo: uma
espécie de transmigração, uma metempsicose diária
e rápida, em uma única vida, das várias formas de
existência.
Para ilustrar, a parte filogenética, um poema,
Soltando os Bichos
:
Água/íntegra em tudo moldando-se/desde o
início buscando o mais fácil/sempre imitando
vamos indo/cuidando do corpo de ossos carne e
pele/em todos os outros tocamos/o preparo é
auto-erotismo/consigo brincando, lento
movimento/no processo evolutivo recordando a
filogênese/em nós todas as espécies/a dança é
soltando os bichos/o primeiro serpente
serpenteando/lépida mexendo todas as vértebras/a
língua e demais músculos/contorcionista/lobo
gato preguiça/ quase erecto macaco/passando
pelo humano amplo respiro/abro os braços asa:
beija-flor borboleta águia/e você
extasiante da evolução.
Brahma, Vishnu e Shiva juntos
formam a tríade de forças que
pode ser representada
simplesmente por um triângulo
equilátero com a força Shiva
de transcendência no vértice
superior: celeste, a força
criadora de Brahma e
preservadora de Vishnu nos
outros vértices da base. Esta
representação simboliza o
Linga
ou Phalus ereto e
penetrante, elevando-se de
uma base firme.
Brahma,
Vishnu e Shiva
não teriam
poder no mundo dos
fenômenos sem as suas Shaktis,
a energia e o poder Feminino,
que corresponde,
respectivamente, a Saraswati,
Lakshmi e Kali. No triângulo
invertido, a ponta de baixo
corresponde a Kali: terrestre.
A união sexual do casal é a
união entre a Terra e o Céu.
Lakshmi está associada ao
sentido do tato; Brahma, o seu
par, a visão; Kali ao olfato e
Shiva a mente; Vishnu ao
paladar e Saraswati à audição.
A primeira iniciação sexual de
todos os seres ocorre durante
sua saída pela
Yoni
da mãe.
Isto se dá para que nos
esqueçamos das vidas
passadas. Durante esta
primeira iniciação, a mãe
oferece o mundo inteiro a seu
rebento e, em troca, retira
todas as lembranças dolorosas
do passado. O resultado da
primeira iniciação permanece
normalmente até o portal da
51
Isso equivale a uma
santificação indiscriminada
e generalizada do plano
terrestre, a ponto de a ioga,
com sua sublimação
ascética, tornar-se
desnecessária.
Henrich Zimmer
Mitos e símbolos na arte e
civilização da Índia.
A dramatização excessiva
dos enredos e seus
conteúdos marcadamente
psicológicos findaram por
exaurir tanto a platéia como
os criadores. Em meados
dos anos 40, Merce
Cunningham, solista da
companhia de Martha
Graham entre 1939 e 1945,
afastava-se do drama e
começava a trabalhar com
manipulações do movimento
sem compromisso com o
enredo, com caracterização
de personagens ou com a
dramaticidade. Considerado
o guru da dança pós-
moderna, Cunningham
propôs uma série de
conceitos que vinham
questionar a ideologia da
dança moderna,
substituindo a narrativa
única pela estrutura
fragmentada ou episódica; o
engurujado/
n
ão fique olhando arregalado/
a
j
a
coruja!
O quinto movimento é
jiboiar: o nosso
reencontro! Vamos ver se nossa paixão pode
subverter o próprio padrão e inaugurar algo
inédito: não ficar dentro dos quartos, das redes,
camas, pequenos espaços, orbitando em torno de
nós mesmos. Esperemos que possa se espalhar por
todos os cantos, inspirar outros e mesmo correndo
o risco do vampirismo dos invejosos, mangar de
tudo!
Vamos além de
Sherazade,
nas
Mil e Uma Noites:
narrar é mais do que adiar o morrer. É criar,
compartilhar, acalmar o ser, saber esperar.
De: Isadora <isado[email protected]
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Duncan dança e narrativa
Meu homem, menino travesso, não pense que é
inveja de quem não tem direito a praia perto, chega
de fuleiragem, não entre mais no mar de Boa
Viagem! Gracinha, delícia, vai ver que o tuba
também quer lhe experimentar? Pule essa parte da
técnica, eu posso lhe comer. Mordo-lhe
todinho, sem tirar pedaço. Garanto que é muito
melhor! Enquanto escrevo, tenho dois gatos
dormindo,
Miu e Tiquinho
, ronronantes no meu
colo, ai, arrepio.
Não sei se nossa paixão vai se espalhar logo. Quero
muito é praticar dentro dos quartos, em nossa
caminha, pelas praias e montanhas. Primeiro nossa
toca. Todo bicho precisa. Depois,
Zaratustra
Conversa
. Estou curiosa para ver a peça, gosto da
ideia e do título. Depois que falei com você pelo
telefone, acordei hoje cantando pela casa em altos
brados, nada mais, nada menos do que
My Funny
Valentine
, naquela versão bem triste de Chet Baker
.
morte.
O esquecimento é uma
bênção e cria a vida nova, mas
a memória cósmica está
disponível em todos os
encarnados e as chaves para
recordar: as espirais do
coração.
Penny Slinger e Nik Douglas. Segredos
Sexuais.
O repúdio ou fascinação pela
narrativa e suas convenções
têm sido uma marca na história
que a coreografia vem
desenhando desde o
surgimento da Dança Moderna
no início do século. De fato, à
dança pura de Isadora Duncan
nos anos vinte, contrapõe-se à
densa dramaticidade de
Martha Graham entre os anos
trinta e quarenta, que por sua
vez é oposta ao que propõe a
dança abstrata de Merce
52
uso do palco convencional
italiano pelas mais
inusitadas opções cênicas:
topo de arranha-céus,
estacionamentos, galerias
de arte, praças, ringue de
boxe; o processo criativo
linear e pessoal pelo uso
intensivo da experimentação
e improvisação.
Essencialmente ele faz as
seguintes afirmações:
qualquer movimento pode
ser material de uma dança;
qualquer parte ou partes do
corpo podem ser usadas;
qualquer dançarino da
companhia pode ser solista;
a dança pode ser sobre
qualquer coisa, mas é
fundamentalmente e
primeiramente sobre o
corpo humano e seus
movimentos, começando
com o andar.
Eliana Rodrigues Silva
Dança e pós-modernidade
Os gestos da vida não são
transpostos para
movimentos de dança
somente porque são
animados, do interior, pela
força de uma civilização e
de um mundo emergente,
mas também porque o
artista imprime a este
movimento o ritmo
voluntário de sua vida,
criadora e militante, em
favor do advento da nossa
humanização. Martha
Graham, Mary Wigman e
Doris Humphrey
conceberam o ritmo de três
modos diferentes. O ritmo
fundamental para Martha
Graham é o ritmo
respiratório
, o do primeiro
ato da vida biológica. O
conflito, para ela está dentro
do humano. O ritmo
Talvez
,
pelo volume, h
ouve protestos dos outros
habitantes. Saí para rua contente, cantando todo
meu repertório, feliz, por saber que você está
chegando. Nem acredito: a gente se amando e
dormindo juntos, enovelados, você aqui nos meus
braços, seu cheiro, pele, cabelo, cabeça, coluna
vertebral e beijos chupados. Fico imaginando
roteiros: praias, montanhas do Gumeral, um lugar
precioso que quase ninguém conhece, faz anos que
não vou lá. Levar você nos vários grupos de teatro e
dança. Além do currículo da Escola, estou testando
outros gêneros. Sinto-me muito animada, a dança
me centra.
Além de Isadora Duncan, minhas inspirações
essenciais: Martha Graham, que rompe com as
coreografias de uma Grécia e de um Egito
fantasiosos e pesquisa elementos na cultura nativa
americana, para compor sua dança; Merce
Cunningham, que trabalhou com a intervenção do
acaso na dança, em parceria com o sico John
Cage; Maurice Béjart, que mistura gêneros e busca a
dança total; e, Pina Bausch, com sua dança-teatro,
uma inspiração dionisíaca.
Na Grécia, a dança e o teatro nascem juntamente
com os rituais dionisíacos. A maioria das narrativas
lendárias gregas situa em Creta e seus labirintos,
essa origem comum e também de sua arte lírica.
Homero canta:
Os deuses ensinaram a dança aos mortais, para que
estes os honrassem e se alegrassem!
Para os imigrantes do Oriente Médio, Creta foi um
ponto de parada precoce; fixaram-se na ilha no
terceiro milênio antes de Cristo, para depois se
espalharem pela Grécia continental; também a
partir dali estabeleceram contatos com os colonos
estabelecidos no baixo Egito. um fluxo
cultural e uma influência nítida dos ritos e mitos de
Osíris em Dionísio. Não que eu ache que a dança
Cunningham, a partir dos anos
cinqûenta, que vem de
encontro ao virtuosismo de
Twyla Tharp, ou à nova
narrativa de Pina Bausch, a
partir dos anos oitenta. A
resposta dialética tem estado
sempre presente.
Na dança moderna,
conotações eróticas mais
explícitas eram suprimidas das
criações, sendo camufladas
atrás de uma densa
dramaticidade. Dampster
chega ao conceito do corpo tal
como um organismo em fluxo:
o corpo pós-moderno não é
uma entidade fixa nem
imutável, mas uma estrutura
viva que se adapta e se
transforma continuamente. É
um corpo disponível para
muitos discursos. A dança pós-
moderna desvia a atenção de
qualquer imagem específica e a
dirige para o processo de
construção de muitos corpos.
Se a dança pós-moderna é uma
escritura do corpo, ela é
condicional, circunstancial e
acima de tudo transitória; é
uma escritura que apaga a si
mesma no mesmo momento em
que está sendo escrita. O
corpo, e por extensão o
feminino, na dança pós-
moderna é instável, transitório,
fugaz, leve-sujeito de muitas
representações.
Eliane Rodrigues Silva
Dança e pós-modernidade
53
fundamental para Mary
Wigman é o ritmo
emocional
, que nasce de
uma paixão domada, de
motivações do gesto no
esforço para livrar-se de
uma realidade externa
sufocante. O conflito está
dentro, mas em sua relação
com um mundo que nos
esmaga. O ritmo
fundamental para Doris
Humphrey é o ritmo
motor,
que se forma na relação
entre o corpo e o espaço. O
movimento primordial é,
para ela, um esforço para
resistir à gravidade, símbolo
de todas as forças que
ameaçam o equilíbrio do
humano e sua segurança. O
conflito é entre o humano e
seu meio
Roger Gauraudy.
Dançar a Vida
Na vida real, é impossível
isolar nossos hábitos
mentais. Como a mente não
tem uma realidade tangível,
não podemos travar uma
batalha com os hábitos
mentais para mudar nossa
maneira de pensar ou nossa
visão de mundo. Do mesmo
jeito, tentar ignorar uma
emoção forte (como o medo
ou o desespero) ou diminuir
sua importância é muito
difícil. Existem coisas que
tenha que sugerir
significad
os. A recorrência entre
movimento e alegria; a comunhão entre os seres, já
são significados suficientes. Contudo, somos
animais de símbolos, signos, significados,
comunicação, conversa. O fascínio que sinto pela
dança-teatro é pelo elo gesto-fala, gesto-palavra,
corpo-texto. Esse diálogo, ritmo, deve estar na
origem da linguagem. A aproximação dessas duas
artes pode potencializar nossa comunicação
planetária, nossa integração na diferença, harmonia
de contrários, nossa consciente co-evolução.
Concluo com Martha Graham:
Eu creio que a dança sempre exerceu uma atração
mágica, porque ela é o símbolo do ato de viver. Eu
quero mostrar que os dançarinos são o que de
mais bonito na criação divina, mas quero fazê-lo
numa espécie de loucura caricatural. A origem da
dança está no rito, esta aspiração de todos os
tempos à imortalidade.
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Isadora <isadora@lua.com.br
Assunto: Bolero, jazz, rock
Não aguento esperar. A melodia é surpresa, mas
essa letra, feita para você, é canção:
Bolero ou
Jazz
. Composta e cantada pelo meu parceiro
Maurício Cavalcanti:
Sou eu, teu amor/Morto de saudade/Cheio de
vontade/Farto de fervor/Sim, não duvido/Tá bem,
faz sentido/É, mais uma vez/Quem sabe Deus,
talvez/Não desligue ainda/Sei que és a Vida/Que
eu sempre quis/Se tu vens ou vais/Se é bolero ou
jazz/Quero que sejas/Feliz.
Parece que a dança moderna, em seu ramo
americano, nasce do espírito religioso, feminino e
Sabemos que a mente, o corpo
e a emoção estão
inextricavelmente ligados uns
aos outros. Quando estamos
tristes, nossos ombros
afundam, a cabeça tomba para
frente, os pensamentos ficam
pessimistas e sentimos que
nada está dando certo em
nossa vida. Quando estamos
alegres, o corpo se abre, o
peito se expande, a cabeça
fica levantada, e de algum
modo sentimos que é possível
atingir tudo aquilo que
desejamos.
Yoshi Oida.
O ator invisícel.
Ouvir é um mistério. Para que
um corpo seja capaz de ouvir
sem se mover, antes ele precisa
ser desenvolvido no
movimento. Não é uma
coincidência que os maestros
vivam tanto, pois eles passam
as suas vidas em um constante
exercício, tentando
harmonizar o corpo, a emoção
e o pensamento. O esforça de
ensaiar e de apresentar-se
exige deles todas essas partes –
54
não mudam assim
facilmente. Mas o corpo
pode ser alterado
instantaneamente. Podemos
vê-lo, tocá-lo, trata-se de
uma realidade tangível que
nossas emoções e
pensamentos não têm. E
uma vez que o corpo esteja
conectado com outros
aspectos de nós mesmos,
mudar o corpo pode mudar
o resto. Da próxima vez que
você se sentir sob o peso do
desespero, comece a
movimentar o corpo,
procurando particularmente
prestar atenção em soltar a
coluna vertebral e abrir o
peito e a região dos ombros.
Vá abrindo, olhando para
cima e em torno, respirando
forte e profundamente,
relaxando o pescoço e
achando uma imagem
positiva para estimular os
movimentos. Logo
perceberá que o humor
começa a melhorar, e os
pensamentos param de ficar
correndo em torno dos
mesmos círculos estreitos.
Yoshi Oida
O Ator Invisível
...o navio saiu da baía com
as caldeiras sossegadas,
abriu caminho nos canais
através dos lençóis de
taruia, o lótus fluvial de
feminista, seja o da Grécia mítica, pagã, em Isado
ra
e Martha, ou o de uma Índia e Egito imaginários,
em Ruth e Doris. Porém, talvez mais importante do
que tudo, para todas elas, seja a cultura do seu país,
o espírito cristão, a ética protestante, que denuncia
a usura e rompe com a idéia da graça católica: a
recepção gratuita, sem mérito. O reino de Deus
deve ser conquistado pelo trabalho! Para isso é
preciso um corpo rijo e uma disciplina rígida. As
roupas fechadas e apertadas, a sensualidade
disfarçada, os corpos contidos. Essas pioneiras da
dança respiram amplamente, expressam profundas
emoções, desafiam o equilíbrio, buscam outros
gestos, desnudam-se, libertam os corpos! Contudo,
algo vital falta. O transe! Não o da Grécia, Índia
ou Egito. Mas, o d’África! A entrega que vai além
da técnica. Isadora simula o transe dionisíaco, com
seu movimento de jogar a cabeça para trás. Martha
ainda procura elementos na cultura indígena nativa,
mas é ignorado o que está por todos os lados,
cantos, sica e dança: a África! Falta o som grave
que estremece, Você que dançou comigo o
maracatu sabe do tum-tum, tan-tan, dos
tambores, que vibram nas entranhas, tripas, úteros,
ovários, testículos, no corpo todo, e ressoam nos
tuns-tás dos corações. É uma cruel ironia que a
África, que gera nosso gênero e é responsável pelos
diversos ramos da melhor música, dança e alegria
do mundo, seja invisível e inaudível para essas
pioneiras da dança moderna. Mas é compreensível.
Naquele momento, os preconceitos raciais, sexuais
e sociais eram muito mais violentos. depois
viriam Josephine Baker e Elvis e sua pélvis.
De: Isadora <isado[email protected]
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Duncan dança e narrativa
Despertei cedo, pra terminar de ler
O Amor nos
Tempos do Cólera.
O sonho foi uma mistura de
enredos, o nosso e o do livro. Fiquei com medo de
e seus corpos como atletas ou
dançarinos, os seus
sentimentos como cantores e
amantes, as suas mentes como
matemáticos e pensadores –
simultaneamente e em
proporções iguais. Um corpo
desenvolvido dessa maneira
pode, por fim, manter-se imóvel
e ouvir.
Com um corpo
bem-exercitado e um grupo
mais aberto, uns para os
outros, torna-se então possível
discutir o texto e até analisar a
especial natureza do verso,
sem nunca cair em uma
abordagem intelectual, que é
inevitável quando os ensaios
começam com discussões em
volta de uma mesa. Se todo
corpo não está desperto e
envolvido, está-se fadado a
retirar ideias de regiões do
cérebro por demais familiares e
já muito usadas, em detrimento
de níveis mais criativos.
Peter Brook
Fios do Tempo: Memórias
Uma mulher era amante de
uma cobra. Alegando que ia
colher frutos da sorveira, ela ia
todos os dias à floresta para
55
flores de púrpura e grandes
folhas em forma de coração,
e voltou aos pântanos. A
água era furta-cor devido ao
mundo de peixes que
boiavam de costas, mortos
pela dinamite dos
pescadores furtivos, e os
pássaros da terra e da água
voavam em círculos sobre
eles com guinchos
metálicos. O vento do
Caribe se meteu pelas
janelas com o alarido dos
pássaros, e Fermina Daza
sentiu as batidas
desordenadas de seu livre-
arbítrio. À direita, turvo e
parcimonioso, o estuário do
rio Grande da Madalena se
espraiava até o outro lado
do mundo.
Quando não havia mais
nada que comer nos pratos,
o comandante limpou os
lábios com o canto da
toalha, e falou num jargão
procaz que acabou de uma
vez por todas com o
prestígio do bom falar dos
capitães do rio. Pois não
falou por eles nem para
ninguém, mas apenas
tentando pôr-se de acordo
com a própria raiva. Sua
conclusão, ao fim de uma
réstia de impropérios
bárbaros, foi que não
descobria como sair da
embrulhada em que se
metera com a bandeira do
cólera.
Florentino Ariza o escutou
sem pestanejar. Depois
olhou pelas janelas o
círculo completo do
quadrante da rosa náutica,
o horizonte nítido, o céu de
dezembro sem uma única
nuvem, as águas navegáveis
para sempre, e disse:
Sigamos em linha reta, reta,
reta, outra vez até a
Dourada.
optarmos por uma viagem ao esquecimento, como
tantos personagens. Sei da sua coragem, assim
como sei que sua mulher não sou. Não quero o
peso de destruir um casamento tão longo e bonito.
Talvez tenhamos que fazer mesmo uma viagem ao
esquecimento, mas não agora, não seria justo. Vou
acabar com esses ataques de futuros tristes. Não
desisti de nada e rezo para que não desista de mim.
Adorei a letra da minha música! Reflete nossas
incertezas. Gosto da construção alusiva. Quero
ouvir a melodia imediatamente, cante-a pelo
telefone!
Você sempre menciona nossas diferenças de idade,
embora eu acredite que isso não seja empecilho.
Deixe dessa coisa chata, não me trate como se eu
fosse uma ninfeta, já tenho quase trinta! Agora
para mim não importa contabilizar obstáculos.
Sinto lhe informar que eu posso até morrer antes
de você. Essa semana foi muito difícil. Fui muito
dura comigo, tive que me encarar profundamente,
me senti uma farsa. Se não posso viver sem a dança,
porque não tomo iniciativas, nem tenho disciplina?
Tenho vontade de ir embora, não sei pra onde? Mas
sei que a dança me enraíza, me forças para
seguir. Como é difícil crescer! Sei que a estagnação
da
Nova Dança
me pôs em movimento e também
deixei o clássico pelo trapézio, pelos clowns. Se a
dança é tão vital para mim vou acabar encontrando
minha linguagem e um corpo bem preparado, forte
e, principalmente, encontrar realização e felicidade,
que significam também cuidar dos outros.
Que cheiro bom! Adorei o livro,
Giacomo Joyce
,
na ótima tradução de Leminski, com flores de
bugari entre as páginas. O tema do amor aparece
quando ele se apaixona por sua aluna e fala dos seus
lábios:
longos lábios lascivos de soslaios, molusco
sanguinegros
. Sempre soube que a Literatura ajuda
encontrar a cobra, que morava
exatamente numa dessas
árvores. Eles faziam amor até o
anoitecer e, quando chegava a
hora de se despedirem, a cobra
derrubava frutos em
quantidade suficiente para
encher o cesto da mulher.
Desconfiado, o irmão da
mulher, que ficara grávida, foi
espioná-la. Sem ver seu amante,
ouviu-a gritar: não me faça rir
tanto, Tupasherébé (nome da
cobra)! Você me faz rir tanto
que chego até a mijar!
Finalmente, o irmão viu a cobra
e a matou. Mais tarde, o filho
da mulher com a cobra vingaria
o pai.
Claude Lévi-Strauss
O Cru e o Cozido
Uma jovem encontrou uma
cobra na floresta, que se
tornou seu amante e de quem
ela teve um filho, que já
nasceu adolescente. Todos os
dias, o filho ia à floresta fazer
flechas para a mãe, e todas as
noites voltava para o ventre
dela. O irmão da mulher
descobriu o segredo e
convenceu-a a se esconder
56
Fermina Daza estremeceu,
porque reconheceu a antiga
voz iluminada pela graça do
Espírito Santo, e olhou o
comandante: ele era o
destino. Mas o comandante
não a viu, porque estava
anonadado pelo tremendo
poder de inspiração de
Florentino Ariza. Está
dizendo isso a sério? –
perguntou.
Desde que nasci – disse
Florentino Ariza – não disse
uma única coisa que não
fosse a sério.
O comandante olhou
Fermina Daza e viu em suas
pestanas os primeiros
lampejos de um orvalho de
inverno. Depois olhou
Florentino Ariza, seu
domínio invencível, seu
amor impávido, e se
assustou com a suspeita
tardia de que é a vida, mais
que a morte, a que não tem
limites.
E até quando acredita o
senhor que podemos
continuar neste ir e vir do
caralho? – perguntou.
Florentino Ariza tinha a
resposta preparada havia
cinqüenta e três anos, sete
meses e onze dias com as
respectivas noites.
Toda a vida – disse.
Gabriel Garcia Márquez
O amor nos tempos do cólera.
a viver! Tenho separado textos poéticos, lindos,
para lhe mostrar aqui. Ai, meu amado, desculpe
tantos medos, meu coração está apertado. Sua força
eu sei que tenho, mas é tudo tão complicado. Mas
eu poderia simplificar e dizer: o que quero agora é
seu colo, aconchego, abraço. Ouço nesse exato
momento sua gargalhada e você dizendo:
que
conversa é essa mulher.
Rumo ao bendito corpo-a-corpo. Nossa cama
estreita está pronta. Vamos dormir bem juntinhos,
mas aviso: costumo me virar bastante, mas não
roubo a coberta junto. Fico imaginando beijos
molhados, coloridos, perfumados, mordidas, toque
de ossos, coreografias, partituras, improvisos.
Aprendi uma massagem dos deuses que vai deixar
você mole em quase todas as partes. Você vai
berrar, ganir, silvar, sibilar, ciciar, zinir, zoar, barrir,
arrulhar, coaxar, guinchar, rugir, palrear, uivar,
fremir, zurrar, mugir, relinchar, bramir, ronronar,
clarinar, piar, gorjear, ruflar.
Estou me preparando pra você: amanhã vou
arrancar meus pelos pra ficar bem lisinha, para
poder me roçar, deslizar, surfar, lhe acarinhar muito
e outras surpresas mais. Seja bem vindo! As portas
estão abertas. Sagração da primavera! Chega de
sacrifícios, vamos sair dos simulacros para a dança
dos sacros. Vem meu Dionísio que serei sua
Ariadne! Amo-te, com toda a minha dança e toda
minha vida.
assim que o filho partisse.
Quando este voltou à noite, e
quis entrar no ventre da mãe,
como de costume, ela havia
desaparecido. O adolescente
consultou a avó cobra, que o
aconselhou a procurar o pai.
Mas ele não tinha a menor
vontade de ajudá-lo; assim, ao
cair da noite, ele se
transformou em raio de luz e
subiu ao céu, levando o arco e
as flechas. Ao chegar,
quebrou as armas em
pedacinhos, que viraram
estrelas. Como todo mundo
dormia, a não ser a aranha, ela
foi a única testemunha do
espetáculo. Por isso as aranhas
(ao contrário dos homens) não
morrem com a idade, mas
trocam de pele. Antigamente,
os homens e os outros animais
também trocavam de pele
quando ficavam velhos, mas,
desde então, eles morrem.
Claude Lévi-Strauss
O Cru e o Cozido
.
57
Digo que é preciso ser vidente,
fazer-se vidente. O poeta se faz
vidente através de um longo,
imenso e consciente
desregramento de todos os
sentidos. Todas as formas de
amor, de sofrimento, de
loucura; pesquisa a si próprio,
esgota em si todos os venenos
para conservar deles apenas a
quintessência. Inefável tortura
em que ele tem necessidade de
toda fé, de toda força sobre-
humana, onde se transforma
dentre todos no grande doente,
no grande criminoso, no
grande maldito – e no supremo
sábio. Pois chega ao
desconhecido. Pois cultiva sua
alma, que já era rica, mais que
qualquer outro. Chega ao
desconhecido e mesmo
3
O sabor dos dias
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Hermes <herm[email protected]om.br
Assunto: Toda alegria quer eternidade
Em Pompéia vivo meus primeiros dias de
alegria. O bairro é vizinho de Perdizes, Lapa e
Sumaré. O nome é uma homenagem dos
imigrantes italianos à cidade destruída pelo
vulcão Vesúvio, em 79 a.C e está atualizado
por nosso próprio fogo.
Desço a avenida de mãos dadas com Isadora.
Ela foi me esperar em Guarulhos e daí em
diante tem início nossas cenas e personagens.
Eu, Woody Allen, em
Crimes e Pecados
: A
última vez que estive dentro de uma mulher
foi quando visitei a estátua da Liberdade. Ela,
em
Retratos da Vida
: O horror da guerra não
é o assassinato dos que se odeiam, mas a
separação dos que se amam. Juntos, em
Invasões Bárbaras
: Fomos tudo. É incrível.
Separatistas, independistas, monarquistas,
monarquistas-associacionistas. Começamos
existencialistas. Tínhamos lido Camus e Sartre.
Depois lemos Frantz Fanon e viramos
anticolonialistas. Depois lemos Marcuse e nos
tornamos marxistas. Marxistas-leninistas.
Trotskistas. Maoístas. Lemos Soljenistsyn e
mudamos de ideia. Passamos a estruturalistas.
Situacionistas.Feministas. Desconstrucionistas.
Houve algum ismo que não adoramos?
Cretinismo.
Depois de homenagear o grande deus
Kama
,
o primeiro programa foi uma visita as nossas
irmãs serpentes, no Butantã. Ficamos o dia
observando o comportamento das diversas
espécies, em especial as jibóias, pela força de
Eu sou como eu sou, pronome
pessoal intransferível, do homem
que iniciei, na medida do
impossível. Eu sou como eu sou
agora, sem grandes segredos
dantes, sem novos secretos
dentes, nesta hora. Eu sou como
eu sou, presente, desferrolhado,
indecente, feito um pedaço de
mim. Eu sou como eu sou,
vidente, e vivo tranquilamente,
todas as horas do fim.
Torquato Neto
Não serei o poeta de um mundo
caduco. Também não cantarei o
mundo futuro. Estou preso à vida
e olho meus companheiros. Estão
58
quando, enlouquecido,
terminasse por perder a
compreensão de suas visões,
já as teria visto.
Artur Rimbaud.
Poesia-Experiência.
De tudo na vida, ficaram três
coisas: a certeza de que
estamos sempre começando; a
certeza de que precisamos
continuar; a certeza de que
seremos interrompidos antes
de terminar. Portanto,
devemos: fazer da interrupção
um caminho novo; da queda,
um passo de dança; do medo,
uma escada; do sonho, uma
ponte.
Fernando Pessoa
Isso de querer ser exatamente
aquilo que a gente é ainda vai
nos levar além.
Paulo Leminski
Vão dizer que não existo
propriamente dito. Que sou um
ente de sílabas. Vão dizer que
eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava alertar:
quem acha bonito e pode
passar a vida a ouvir o som
das palavras, ou é ninguém ou
zoró. Eu teria treze anos. De
tarde fui olhar a Cordilheira
dos Andes que se perdia nos
constrição do seu abraço.
Elas inspiram uma
técnica erótica, que serve de base para muitos
desdobramentos do movimento: rastejar, se
enroscar, se erguer, sentar, andar e dançar. No
dia seguinte, bicicleta no Ibirapuera. Isadora
não me devolve a juventude, mas a
jovialidade.
Em todos os espaços, seja como for, criando
ninhos d’amor. Consciência corporal é em
tempo integral. Nosso ritual diário: deitados,
nus, de mãos dadas, tal um girassol
concentrados no percurso da luz pela pele,
chakra
a
chakra
, tomamos banhos de sol. Fiz
até um poema:
Onda em 8/minutos a luz do sol alcança-
nos/e o que precisa cada corpo/8 mais de
volta toma consciência/em 8 outro/chega a
resposta.
Ativamos a tesão ao máximo, imaginamos
que o nosso amor tem um poder de difusão
enorme e pelas ruas vamos espalhando-o, por
toda parte: um laser amoroso atravessando,
desobstruindo e curando, principalmente as
zonas mais densas, aquelas do lado contrário
do amor: a indiferença. O filme é
Dançando
na Chuva:
fazendo piruetas nos postes
metálicos e no metrô: os suportes horizontais
são nossas barras, para esticar os braços,
liberar as tensões dos ombros e abrir o peito.
Estamos empenhados em desenvolver uma
coreografia. A ideia é buscar os gestos básicos
de nossa cultura, de duas maneiras: o
gesto
arcaico
, na arte rupestre dos principais sítios
brasileiros; os dançarinos farão uma pesquisa
de campo, documentando os gestos mais
frequentes, poéticos e comoventes,
incorporando-os nos próprios locais. E a
outra maneira: a captação do
gesto vivo
das
ruas, nas nossas principais cidades. O
I Ching
será nosso instrumento de balizamento, de
navegação: uma vez sorteada a mutação do
taciturnos, mas nutrem grandes
esperanças. Entre eles, considero
a enorme realidade. O presente é
tão grande, não nos afastemos
muito, vamos de mãos dadas. Não
serei o cantor de uma mulher, de
uma história. Não direi os
suspiros ao anoitecer, a paisagem
vista da janela. Não distribuírem
entorpecentes ou cartas suicidas.
Não fugirei para as ilhas nem serei
raptado por serafins. O tempo é a
minha matéria. O tempo presente.
Os homens presentes. A vida
presente.
Carlos Drummond de Andrade
Mãos dadas
Uma parte de mim é todo mundo,
outra parte é ninguém, fundo sem
fundo. Uma parte de mim é
multidão, outra parte estranheza
e solidão. Uma parte de mim pesa,
pondera, outra parte delira. Uma
parte de mim almoça e janta,
outra parte se espanta. Uma
parte de mim é permanente, outra
parte se sabe de repente. Uma
parte de mim é só vertigem, outra
parte linguagem. Traduzir uma
parte, na outra parte, que é uma
59
longes da Bolívia. E veio uma
iluminura. Daí botei meu
primeiro verso: aquele morro
bem que entorta a bunda da
paisagem. Mostrei a obra pra
minha mãe. A mãe falou: agora
você vai ter de assumir as suas
irresponsabilidades. Eu
assumi: entrei no mundo das
imagens.
Manoel de Barros
Poesia completa
Nunca fomos catequizados.
Vivemos através de um direito
sonâmbulo. Fizemos Cristo
nascer na Bahia. Ou em Belém
do Pará. Só podemos atender
ao mundo orecular. Se Deus é
a consciência do Universo
Incriado, Guaraci é a mãe dos
viventes. Jaci é a mãe dos
vegetais. No matriarcado de
Pindorama. A alegria é a prova
dos nove.
Oswald de Andrade.
Manifesto Antropofágico.
Em Triste, em 1872, num palácio
com estátuas úmidas e
instalações sanitárias
deficientes, um cavalheiro com
o rosto marcado por uma
cicatriz africana – o capitão
Richard Burton, cônsul inglês
– empreendeu uma famosa
tradução do
Quitab alif Laila
ua laila,
livro que os rumes
chamam
As mil e uma noites.
dia, com a presença de
todos, os dançarinos
vão andar pelas ruas, sozinhos ou em
pequenos grupos. Com a sensibilidade e o
olhar tocados pelo espírito da mutação
sorteada, eles têm um campo coletivo
comum e, simultaneamente, diverso,
individual. No fim do dia, o elenco de gestos
é compartilhado, selecionamos os mais
significativos e que ressoem com os gestos
arcaicos. A coreografia é a composição e o
contraponto entre os
gestos arcaicos,
da arte
rupestre, e os
gestos de hoje,
das ruas. Você
faria a sica? Estamos chamando nossa
pesquisa de
Sampa na ponta do
. Veja essa
cena de rua:
Discutem em voz alta. Brigam. Ela dá uma
topada. Fica com raiva. Pára, senta e ajeita o
sapato. Levanta, passa por ele roçando o
corpo, abusada. Avança na frente. Ele a segue
humilde. Atravessam a avenida ombro-a-
ombro.
No livro
Um homem sem profissão
, Oswald
de Andrade conta um chamego com Isadora
Duncan, aqui em Sampa. Lembrando dessa e
de outras coisas, inventamos a brincadeira:
Alegria é a prova dos nove
. É uma
matemática que busca códigos ao acaso. Por
exemplo: entramos na padaria e pegamos o
número de atendimento e aplicamos a prova
dos noves fora nada. O resultado é o número
do dia. Noves fora um: vamos andar
sozinhos. Dois: vamos juntos. Três:
acrescentamos outra pessoa. Se a soma der
nove é nada: fim de um ciclo. É hora de
recomeçar. Serve para qualquer coisa que
estejamos buscando, é uma chave simbólica.
Quem trouxe o
Kama Sutra
para o Ocidente e
fez uma das principais traduções das
Mil e
Uma Noites
, foi Sir Richard Burton, que foi
cônsul da Inglaterra no Brasil, em Santos, no
período de 1865-1868. Era apaixonado por
Camões, de quem se achava um duplo. Em
questão de vida e morte, será
arte?
Ferreira Gullar.
Poesia completa
Eu canto porque o instante
existe. E a minha vida está
completa. Não sou alegre nem sou
triste, sou poeta. Irmão das coisas
fugidias, não sinto gozo nem
tormento, atravesso noites e dias,
no vento. Se desmorono ou se
edifico, se permaneço ou me
desfaço, não sei, não sei. Não sei
se fico ou passo. Sei que canto. E
a canção é tudo. Tem sangue
eterno a asa ritmada. E um dia sei
que estarei mudo. Mais nada.
Cecília Meireles
Ah, quem dera ir-me contigo
agora, a um horizonte firme,
comum, embora. Ah, quem me
dera amar-te sem mais ciúmes, de
alguém em algum lugar, que nem
presumes. Ah, quem me dera ver-
te sempre a meu lado, sem
precisar dizer-te jamais: cuidado.
Ah, quem dera ter-te, como um
60
Uma das finalidades secretas
de seu trabalho era a
aniquilação de outro
cavalheiro - também de barba
tenebrosa de mouro, também
curtido - que estava
compilando na Inglaterra um
vasto dicionário e que morreu
muito antes de ser aniquilado
por Burton. Tratava-se de
Edward Lane, o orientalista,
autor de uma versão
extremamente escrupulosa
d’
As mil e uma noites,
que
suplantara a outra, de Galland.
Lane traduziu contra Galland,
Burton contra Lane.
Jorge Luis Borges.
Os tradutores d’as mil e uma noites
Contam os homens dignos de
fé que existiu no Cairo um
homem possuidor de riquezas,
porém tão magnífico e liberal
que perdeu-as todas, menos a
casa de seu pai. Diante disso,
viu-se forçado a trabalhar para
ganhar o seu pão. Trabalhou
tanto que o sono venceu-o uma
noite sob uma figueira de seu
jardim, e ele viu no sonho um
homem empanturrado que
tirou da boca uma moeda de
ouro e lhe disse:
Tua fortuna
está na Pérsia, em Ispahan, vai
buscá-la.
Na madrugada
seguinte acordou e
empreendeu a longa viagem,
afrontando os perigos dos
desertos, dos navios, dos
piratas, dos idólatras, dos rios,
das feras e dos homens.
Chegou finalmente a Ispahan, e
no centro da cidade, pátio de
uma mesquita, deitou-se e
dormiu. Junto à mesquita havia
uma casa, e, por vontade de
Alá Todo-Poderoso, um bando
de ladrões atravessou a
mesquita, e meteu-se na casa, e
carta a um amigo diz que no Brasil
perdeu as
melhores traduções desses livros. Isadora quer,
de qualquer jeito, encontrar a tradução do
Kama Sutra,
diz que é essencial para nossa
pesquisa erótica e, debochada, ainda zomba
do núcleo temático e dos personagens que
tecem a trama das
Mil e Uma Noites
: um
corno paranóico, serial killer de mulheres,
não merece o amor de
Sherazade
, a maior
narradora da humanidade!
A tradução das
Mil e Uma Noites,
que Borges
leu, é a de Burton. Ele sabia da perda dessas
versões e também tentou achá-las, quando
esteve em São Paulo. Estou lhe contando isso
também porque, nessa pesquisa com Isadora,
encontramos o que pode ter sido a inspiração
de Borges, para escrever o seu conto
Aleph
.
um tema recorrente nos textos
sufistas:
a
vida é uma peregrinação sem fim. A demanda
do
Santo Graal
, o
Romance da Rosa
e os
andarilhos de Chaucer até a Cantuária,
receberam influência do livro
Mantak al-Tayr
,
do poeta místico persa Fariduddin Attar
(1110-1220). Nossos olhos são cegos,
embora o mundo seja iluminado por um sol
brilhante. Se você consegue vislumbrá-lo,
perde o juízo; se o totalmente, perde a si
mesmo. São frases que estão no livro. Burton
sempre tinha dúvidas em relação a existência
de Deus, mas nunca abandonou a busca
secreta. Seu comentário final sobre a grande
obra de Attar diz:
Assim, no Mantak al-Tayr, os Pássaros,
emblemas das almas, procurando a presença
do gigantesco bípede emplumado Simurgh, o
deus deles, atravessam os sete Mares: o da
Busca, do Amor, do Conhecimento, da
Competência, da Unidade, do Assombro e do
Altruísmo, os diversos estágios da vida
contemplativa. Por fim, chegando à
misteriosa ilha do Simurgh e lançando um
olhar de esguelha a ele, viram nele trinta
pássaros e quando voltaram os olhos para si
lugar plantado num chão verde,
para eu morar-te. Ah, quem me
dera ter-te, morar-te até morrer-
te.
Vinicius de Moraes
Eu sonho com um poema, cujas
palavras sumarentas escorram,
como polpa de um fruto madura
em tua boca. Um poema que te
mate de amor, antes mesmo que
tu lhes saibas o misterioso
sentido, basta provares o seu
gosto.
Mário Quintana
Consagrei toda a minha vida à
liberdade e quero continuar
sendo livre, o que significa que
não me preocupo em saber o que
as gerações futuras dirão de mim.
Aquele que se preocupa com o
julgamento da posteridade não
pode ser livre. A posteridade é
uma hipótese, e o artista não
trabalha em cima de hipóteses.
Ele trabalha sobre o aqui e o
agora, procurando esclarecê-los a
si mesmo e aos seus
contemporâneos.
Pablo Picasso
A união que mais agrada a Deus
não é a união do homem com a
mulher e sim a união do sexo
como o amor. A culpa, e não o
61
as pessoas que ali dormiam, se
desesperando com o barulho,
pediram socorro. Os vizinhos
também gritaram, até que o
capitão dos guardas-noturnos
daquele distrito acudiu com
seus homens e os bandoleiros
fugiram pelo terraço. O capitão
quis revistar a mesquita e lá
deram com o homem do Cairo;
açoitaram-no de tal maneira
com varas de bambu que ele
quase morreu. Dois dias
depois recobrou os sentidos
na cadeia. O capitão mandou
buscá-lo e disse:
Quem és tu e
qual a tua pátria?
O outro
declarou:
Sou da famosa
cidade do Cairo e meu nome é
Mohamed El Magrebi.
O
capitão perguntou-lhe:
O que te
trouxe à Pérsia?
O outro optou
pela verdade e disse:
Um
homem ordenou-me em sonho,
que eu viesse a Ispahan
porque aí estava a minha
forturna. Já estou em Ispahan e
vejo que essa fortuna que me
prometeu devem ser as
vergastadas que tão
generosamente me deste.
Diante de tais palavras o
capitão riu tanto que se viam
seus dentes do siso e,
finalmente, lhe disse:
Homem
desajuizado e crédulo, eu
sonhei três vezes com uma
casa no Cairo no fundo da qual
há um jardim, e nesse jardim
um relógio de sol, e depois do
relógio uma figueira, e logo
depois da figueira, uma fonte e
sob a fonte um tesouro. Não
dei o menor crédito a essa
mentira e tu, produto de uma
mula com um demônio, não
obstante vens errando de
cidade em cidade baseado
unicamente na fé de teu sonho.
Que eu não volte a ver-te em
mesmos, os trinta pássaros pareciam um
Simurgh; viram neles mesmos todo o
Simurgh; viram no Simurgh os trinta pássaros
inteiros. Portanto, chegaram à solução do
problema: Nós e Tu, isto é, a identidade de
Deus e dos Humanos anularam-se para
sempre no Simurgh, e a sombra desapareceu
no Sol.
Veja alguns fragmentos do
Aleph
, de Borges:
Chego, agora, ao centro inefável do meu
relato; começa, aqui, meu desespero de
escritor. O que meus olhos viram foi
simultâneo: o que transcreverei, sucessivo,
porque a linguagem o é. Algo, contudo,
recuperarei. Na parte inferior do degrau, à
direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de
um fulgor intolerável. No início, julguei-a
giratória; depois compreendi que esse
movimento era uma ilusão produzida pelos
vertiginosos espetáculos que encerrava. O
diâmetro do Aleph seria de dois ou três
centímetros, mas o espaço cósmico estava ali,
sem diminuição de tamanho. Cada coisa era
infinitas coisas, porque eu a via claramente de
todos os pontos do universo. Vi o mar
populoso, vi a alvorada e a tarde, vi as
multidões da América, vi uma teia de aranha
prateada no centro de uma negra pirâmide, vi
um labirinto truncado, vi intermináveis olhos
imediatos perscrutando-se em mim como
num espelho, vi todos os espelhos do planeta
e nenhum me refletiu, vi cachos de uva, neve,
veios de metal, vapor d’água, vi convexos
desertos equatoriais e cada um de seus grãos
de areia, vi um câncer no peito, vi ao mesmo
tempo cada letra de cada página, vi meu
quarto sem ninguém, vi tigres, bisões, vi todas
as formigas da Terra, vi a circulação do meu
sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a
transformação da morte, vi o Aleph, de todos
os pontos, vi no Aleph a Terra, e na Terra
outra vez o Aleph, vi meu rosto e minhas
vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e
sexo, é o pecado original. O
orgasmo é aquele momento
efêmero em que o fardo do eu
desaparece. O orgasmo é a
felicidade do corpo. Quando o
amor é acrescentado, ele se torna
a felicidade da alma. Dar prazer a
uma mulher é dar prazer a uma
Deusa. Dar prazer a um homem é
dar prazer a um Deus. O maior
prazer que uma pessoa pode
experimentar é apenas uma
sugestão das possibilidades da
alma. O sexo e a felicidade estão
relacionados, da mesma maneira
como uma rosa está ligada ao
jardim do paraíso. Pergunte-me o
que é o prazer e saberei que você
nunca o experimentou. O prazer
só precisa de palavras se estiver
ausente. O mesmo é verdade a
respeito da felicidade, e do
próprio amor. O que é a verdade?
O amor em ação. Ao fazer amor,
o amante dá todos os presentes e
não pede nenhum. A loucura dos
amantes faz a sanidade parecer
poeira no vento. Inocência é a
capacidade de dar e receber amor
sem se apegar. O sexo não foi o
grande erro de Deus. Condenar o
sexo é o grande erro da
humanidade. O prazer é tão
divino quanto qualquer catedral
ou templo. O espírito e a carne
nunca estiveram separados. Eles
se manteem afastados apenas
para flertar. Todos os erros do
62
Ispahan, Toma estas moedas
e
desaparece.
O homem pegou
as moedas e regressou a sua
pátria. Sob a fonte do seu
jardim, que era a mesma do
sonho da capitão, desenterrou
o tesouro. Assim Alá lhe deu a
bênção, recompensou-o e
enalteceu-o. Alá é o Generoso,
o Oculto.
Noite 351, d’As mil e uma noites.
Casca oca
A cigarra
Cantou-se toda
Primavera
Não nos deixe
Pássaros choram
Lágrimas
No olho do peixe
Silêncio
O som da cigarra
Penetra a pedra
chorei, porque meus olhos tinham visto
aquele objeto secreto e conjectural cujo
nome os homens usurpam, mas nenhum
homem contemplou: o inconcebível
universo. Senti infinita veneração, infinita
pena. Na rua, no metrô, todos os rostos me
pareceram familiares. Temi que não restasse
uma coisa capaz de me surpreender, temi
que nunca mais me abandonasse a impressão
de voltar. Felizmente, ao cabo de algumas
noites de insônia, de novo agiu sobre mim o
esquecimento.
De: Janaína <janaína@estrela.com.br
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Show no Japão
Sol nascente aqui, do avião contemplo,
alimentando o Japão, o mamilo branco do
monte Fuji. Esse é o primeiro retrato, antes
de pousar em Tóquio. Hermes nos esperava
no aeroporto. Voou da Índia três dias antes.
Nosso conjunto musical estava completo!
Ensaiamos durante cinco dias no próprio
teatro em que nos apresentamos, no bairro de
Asakusa. Você pode imaginar a emoção de
ouvir a platéia solfejando algumas músicas e
mesmo cantando trechos em português? Os
japoneses foram muito calorosos e o show
maravilhoso! Quando voltamos para o bis fui
à raiz e todo mundo dançou:
Ai, Xangô, Xangô menino/Da fogueira de São
João/Quero ser sempre o menino, Xangô/Da
fogueira de São João/Céu de estrelas sem
destino/De beleza sem razão/Tome conta do
destino, Xangô/Da beleza e da razão.
Depois fiquei pensando porque cantei essa
música? Você sabe que no Recife o
Candomblé se chama Xangô. A cidade tem
uma predominância masculina, é mais
yang
,
talvez para compensar exista a forte devoção a
Nossa Senhora da Conceição, um sincretismo
mundo surgem da crença no
desamor. Você deseja uma
escritura na qual possa acreditar?
Leia os olhos do seu amante. Não
anseie por um céu distante. Este
mundo acrescido do amor é o
céu.
Deepak Chopra.
Kama Sutra
No primeiro aguaceiro
Deste inverno
Terei um nome
Viageiro
Nuvens de flores
O sino
Vem de Ueno
De Asakusa?
Este outono
Como o tempo passa
Nas nuvens
Pássaros
De tantos instantes
Para mim lembrança
As flores da cerejeira
63
Lua na neve
Aqui a vida vai ser jogada
Em breve
Não me importa
O que já vi
Mas ver de novo
O Fuji
Dói aquilo
Dentro do elmo
Um grilo
Velha lagoa
O sapo salta
Som d’água
d’Oxum. Mas Xangô menino é tido como São
João, esse santo louco que cuspia fogo
anunciando a vinda de Cristo, queimava o
mundo com suas palavras e ninguém ouvia
nada. Depois foi para o deserto meditar,
comer gafanhotos com mel de abelha, beber
água fresca e amaciar o verbo. Voltou suave,
harmonizando fogo e água: batizando nas
cachoeiras com o calor do Espírito Santo e a
bênção de Oxum. quem aproxime São
João de Dionísio. Será que esse meandro
psicanalítico foi à maneira que arranjei para
você estar comigo?
Hoje qual é a metrópole em que é possível
andar despreocupado a qualquer hora do dia
ou da noite? Tóquio deve ser a única e, talvez,
a última. Muitas crianças, na primeira
infância, vão à escola sós, de bicicleta ou
andando a pé, por todos os lugares.
Passear é uma delícia: as calçadas são largas, as
árvores exuberantes, vários canais artificiais
arrodeam a cidade e no meio da zoeira é
possível entrar em um parque ou jardim e
contemplar, em silêncio, a água, os seres, as
pedras e os espaços: sóbrios, elegantes,
repousantes. Em japonês bom dia tem a
sonoridade: ó raiou! Esse anúncio dos raios
solares nos ajuda a recordar as palavras e
assim, pelo som, fazemos muitas associações.
Ontem, pela manhã, fomos ao bairro de
Koto
, onde fica a casa de
Bashô
. De metrô,
Morishita
é a estação mais próxima,
vimos, pelo chão e nas paredes, alguns de seus
hai-kais
. Todo quarteirão em torno da casa é
tratado como um lugar sagrado. uns
santuários para visitação e recolhimento.
Através de um antigo portal de madeira
subimos uma escadaria e, no alto, está uma
estátua do poeta, sentado, contemplando o
rio Sumida.
Cantando, cantando ia
O longo dia
Não basta
À cotovia
Vento de verão
Com qual voz
Aranha
Cantarias?
Porta fechada
Deito-me no silêncio
Prazer
Estar
Armadilha do polvo
Lua de verão
Sonhos flutuantes
O
Tao
que pode ser
pronunciado não é o
Tao
eterno.
O nome que pode ser proferido
não é o Nome eterno.
Ao princípio do Céu e da Terra
chamo Não-Ser.
A Mãe dos seres individuais
chamo Ser.
Dirigir-se para o Não-Ser leva
à contemplação da
maravilhosa Essência.
Dirigir-se para o Ser leva à
contemplação das limitações
espaciais.
Pela origem, ambos são uma
Balizados e conduzidos por seus
próximo dali, à beira do cais, ousei:
Cansei de ser moça fina. Essa Isadora é uma
grande invejosa! Fez de você o pai que ela
perdeu e o amante que provavelmente nunca
teve e além do mais cobiçou sua arte, que ela
nem sabe se tem tempo ou talento para
desenvolver.
De:
Para: Janaína
Assunto: Alegria, amor
Amada cantora, é enorme a minha alegria
com a continuidade da sua arte, inseparável da
expansão da vida. A nossa alegria e felicidade
não podiam permanecer re
ser espalhadas, compartilhadas com tantas
outras pessoas e cidades. A família é uma
invenção maravilhosa,
intimidade e aprofundamento afetivo, amor,
compromisso, cumplicidade e cria o
indivíduo, algo vital na enorme fragm
do mundo. A família é um bom modelo da
nossa possível irmandade coletiva. Mas, é
também o menor gueto e não precisa ser uma
ilha. Nosso casamento estava estagnado. Os
filhos encaminhados e os netos chegando.
Tudo parecia seguir em linha reta ou
descendente. E o rumo das nossas
singularidades, d
Balizados e conduzidos por seus
hai-kais
,
próximo dali, à beira do cais, ousei:
Ó raiou
Jardim
Cascata
Som d’água silêncio
Casa de Bashô.
Cansei de ser moça fina. Essa Isadora é uma
grande invejosa! Fez de você o pai que ela
perdeu e o amante que provavelmente nunca
teve e além do mais cobiçou sua arte, que ela
nem sabe se tem tempo ou talento para
desenvolver.
De:
Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Janaína
<janaína@estrela.com.br
Assunto: Alegria, amor
, expansão
Amada cantora, é enorme a minha alegria
com a continuidade da sua arte, inseparável da
expansão da vida. A nossa alegria e felicidade
não podiam permanecer re
stritas, precisavam
ser espalhadas, compartilhadas com tantas
outras pessoas e cidades. A família é uma
invenção maravilhosa,
permite grande
intimidade e aprofundamento afetivo, amor,
compromisso, cumplicidade e cria o
indivíduo, algo vital na enorme fragm
entação
do mundo. A família é um bom modelo da
nossa possível irmandade coletiva. Mas, é
também o menor gueto e não precisa ser uma
ilha. Nosso casamento estava estagnado. Os
filhos encaminhados e os netos chegando.
Tudo parecia seguir em linha reta ou
descendente. E o rumo das nossas
singularidades, d
os compromissos e
64
Confúcio sempre fez a si mesmo
esta pergunta: manter em mente o
que aprendi, estudar com afinco
e ensinar aos outros
incansavelmente. Tenho feito
todas essas coisas?
Um discípulo de Confúcio
,
65
coisa só, diferindo apenas no
nome.
Em sua Unidade, esse Um é
mistério.
O mistério dos mistérios é o
portal por onde entram as
maravilhas.
Lao Tsé.
Tao-Te King
Todas as culturas trazem sua
voz ao mundo por meio do
bálsamo de cura que é o canto.
Por meio da música, do canto,
e do contar histórias, as
sociedades nativas praticam a
permanência dentro dos Arcos
Sagrados. Algumas tradições
afirmam que uma das formas
de manter-se ligado ao Grande
Espírito é cantar pela sua vida.
Na África diz-se que se você
falar, você pode cantar, se
você pode andar, você pode
dançar. Os grupos sociais da
Oceania acreditam que, se você
quiser saber como falar a
verdade, deve começar a
cantar. Essas sociedades
antigas de há muito
entenderam que cantar é um
recurso de cura. Entre as
culturas indígenas existe a
crença de que nossas canções
favoritas são nossas
canções
de poder.
Pense nas suas
canções prediletas. Elas estão
ligadas aos aspectos criativos
da sua personalidade mais
íntima e revelam aspectos
importantes de sua
autenticidade. Acredita-se,
também, que a música mais
poderosa é a que você cria
com suas próprias palavras e
com sua própria melodia.
re
tribuições
, das nossas
buscas essenciais na
vida? E a expressão plena da nossa arte? É
nesse vácuo que entra Isadora. Talvez você
tenha razão sobre o que pensa dela. Porém,
por caminhos tortuosos e mesmo com toda
dor, essa é a nossa oportunidade. Sei que dessa
vez toquei no seu limite. Ficou eticamente
complicado: não posso prometer nunca mais
me apaixonar e não quero matar o nosso
amor. Muitas vezes as pessoas pagam um
preço alto para permanecerem juntas. Não é
o nosso caso. Mas será que a decadência da
velhice não é muito difícil para ainda ser
imposta a outra pessoa? Vejo isso em muitos
casais antigos e não quero chegar a esse
ponto. Sei que o seu forte são as piadas cruéis.
Aqui se diz que casamento é como a Avenida
Paulista: começa no Paraíso e termina na
Consolação.
Somos de uma geração musical, dançante,
politizada na marra, louca e psicodélica, que
descobriu que a prioridade é a alegria de viver.
A alegria é a prova dos nove, lembra? Essa é
nossa maior subversão. A alegria coragem
às pessoas para enfrentar o perigo e o temor
da morte e a buscarem o impossível. Muitas
pessoas estão perdidas no caminho, talvez
porque deixaram de acreditar no cineminha
da imaginação. Em um mundo em que o
sagrado é desvalorizado e confuso, creio que
as nossas chances são restritas, mas decisivas,
para darmos continuidade consciente à espiral
evolutiva, para reconectarmos com as outras
espécies animais e vegetais, com o corpo
maior da Terra. Essas poucas oportunidades de
acessar as forças vitais são a paixão, uma arte
erótica, a interpretação dos sonhos e as
plantas expansoras da consciência.
Recordo você dizendo que alguns
etnobotânicos sugerem que o início da
consciência e da linguagem pode estar
relacionado com a descoberta dessas plantas,
da experimentação geral e aleatória, na
Zi Gong, perguntou: por que
alguém recebeu o título de culto?
Confúcio respondeu: porque ele
foi brilhante e pronto a aprender.
Nunca sentiu vergonha em
aprender com aqueles que
estavam em posição inferior ou
que eram menos educados do que
ele. Quando se caminha com
outras pessoas, sempre há alguém
com quem se pode aprender
bastante. Descubra seus méritos
e suas limitações. Aprenda com
seus méritos e estude suas
limitações para assim superar as
suas próprias.
Kuijie Zhou.
Aprendendo com Confúcio
A Mulher Aranha recolheu a
terra, que naquele momento, era
de quatro cores: amarela,
vermelha, preta e branca,
misturou com a sua saliva e deu
forma a tudo. Cobriu com o seu
manto o qual era a própria
sabedoria criativa. Cantou por
eles a Canção da Criação e ao
retirar o manto essas formas eram
seres humanos. Breve eles
despertaram e começaram a
mover-se. Imediatamente, com o
som de um vento poderoso,
Sótuknang apareceu na frente
deles.
Estou aqui. Por que
necessitais de mim com tanta
urgência?
A Mulher Aranha
explicou:
como me ordenaste,
66
Comece a criar seu próprio
repertório de canções de
poder. Trabalhar com a voz de
qualquer maneira alimenta a
essência de quem você
realmente é. Os povos
indígenas igualam ou associam
música, linguagem e
respiração, como um dos
grandes círculos da criação.
Dizem que a vida humana está
intimamente ligada à
respiração, a respiração ao
canto, o canto à prece e a
prece à vida longa. O canto dos
xamãs, os tons uníssonos dos
tibetanos, o canto gregoriano,
são todos exemplos de
tradições espirituais com a
finalidade de realinhar as
forças vitais.
Angeles Arrien.
O Caminho Quádruplo
Quem estima grandemente a
Vida, nada sabe da Vida, por
isso tem Vida. Quem
menospreza a Vida, procura
não perder a Vida, por isso
não tem Vida. Quem estima a
Vida não age nem faz planos.
Quem menospreza a Vida age e
faz planos. Quem estima o
Amor age, mas nada tem em
vista. Quem estima a justiça
age e tem planos. Quem estima
a moralidade age e, quando
não lhe fazem oposição, a
provoca com grandes gestos.
Por isso, se o
Tao
está
perdido, a Vida também está
composição das dietas dos primeiros
hominídeos. Esse momento me recorda um
trecho de uma das narrativas mais antigas da
humanidade, a epopéia de
Gilgamesh
, o herói
da primeira civilização, na Suméria, entre os
rios Tigre e Eufrates, atual Iraque. Quando os
deuses criaram os humanos atribuíram-lhe a
morte; mas a vida, essa ficou para eles. A
revolta contra isso é a busca de Gilgamesh. Ele
viu os mistérios e conheceu as coisas secretas;
transmitiu-nos uma história dos dias antes do
Dilúvio. Fez uma longa viagem, conheceu o
cansaço, a fome e a sede, esgotou-se em
trabalhos, descobriu a planta da vida eterna,
que cresce no fundo do mar, mas ao repousar
perto de um poço de água fresca, morada da
serpente, esta sentiu o cheiro suave da flor e
comeu-a. Logo mudou de pele. Então,
Gilgamesh sentou-se e chorou. Regressou a
sua terra e gravou numa pedra toda a história.
O momento da transição para uma
consciência humana é aquele em que o herói
manda uma mulher para domesticar o ser
selvagem
Enkidu
, que viria a ser seu melhor
amigo:
Ela não teve vergonha de recebê-lo.
Desnudou-se e acolheu o seu ardor; e,
enquanto ele estava deitado nela
murmurando o seu amor, ela ensinou-lhe a
arte da mulher. Durante sete dias e sete noites
estiveram deitados juntos, porque Enkidu
esquecera a sua morada nas colinas; mas
quando ficou saciado regressou para junto
dos animais bravios. Então, quando as gazelas
o viram, fugiram aos saltos; quando os bichos
selvagens o viram, puseram-se em fuga.
Enkidu teria ido atrás deles, mas o seu corpo
parecia amarrado por uma corda, os seus
joelhos abandonaram-no quando começou a
correr; a sua agilidade desaparecera. E agora os
bichos selvagens tinham fugido todos; Enkidu
tornara-se fraco porque a sabedoria estava
nele, e pensamentos de homem habitavam o
seu coração. Então regressou, sentou-se aos
criei essas pessoas
primeiras.
Estão plena e firmemente
formadas; possuem a cor
apropriada; têm movimento e vida.
Todavia, não podem falar. Eis a
coisa digna que lhes falta. Assim,
peço que a eles dês a fala. E
também sabedoria e capacidade
para multiplicar, de maneira que
possam desfrutar de sua vida e
dar graças ao Criador.
Desse
modo, Sótuknang deu-lhes a fala,
uma língua diferente a cada cor e
a capacidade de se multiplicarem.
Então, disse-lhes:
com todas essas
coisas, dei-vos esse mundo onde
podeis viver e ser feliz. Há apenas
uma coisa que vos quero dizer:
respeiteis o Criador em todas as
épocas e conservais a sabedoria, a
harmonia e o respeito para como
o amor do Criador que vos fez.
Possa o amor crescer e jamais ser
esquecido entre vós enquanto
viverdes.
Com a sabedoria que lhes foi
concedida, eles entenderam que a
Terra era uma entidade viva como
eles próprios. Ela era-lhes a Mãe.
Eles haviam sido feitos de sua
matéria, amamentaram-se dos seus
peitos, pois o leite era a grama
que os animais comiam e era o
trigo que fora criado
especialmente para prover a
humanidade. Mas a planta do
trigo também era uma entidade
viva com corpo semelhante a eles
mesmos em muitos aspectos e as
pessoas formavam a sua matéria
67
perdida. Se a Vida está
perdida, o Amor está perdido.
Se o Amor está perdido, a
justiça está perdida. Se a
justiça está perdida, a
moralidade está perdida. A
pré-ciência nada mais é que a
aparência do Tao e o começo
da loucura.
Lao Tsé.
Tao-Te King
Os primeiros contatos entre os
hominídeos e os cogumelos
contendo
psilocibina
podem
ter precedido em um milhão de
anos ou mais a domesticação
do gado na África. E durante
esse período de um milhão de
anos os cogumelos não foram
somente colhidos e comidos,
mas provavelmente também
alcançaram o
status
de um
culto. Mas a domesticação do
gado selvagem, um grande
passo na evolução cultural
humana, ao trazer os humanos
para mais perto do gado,
também permitiu um contato
pés da mulher e escutou atentamente o que
ela disse: Tu és sábio, Enkidu, e agora és
semelhante a um deus. Por que queres ser
selvagem como os animais da colina? Vem
comigo; eu te levarei a Uruk, a de fortes
muralhas, ao templo bendito de Ishtar e de
Anu, do amor do céu. vive Gilgamesh, que
é muito forte, e que como um touro
selvagem reina sobre os homens. Ela falou e
Enkidu ficou contente; ansiava por um
companheiro, por alguém que compreendesse
o seu coração.
De: Janaína <janaína@estrela.com.br
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Tóquio, espaço e superpopulação
A narrativa trás elementos essenciais de várias
mitologias: o touro, o dilúvio, a serpente
como símbolo de renovação, o início da
consciência e da linguagem, através da arte
amorosa e a planta da vida eterna. Os
cogumelos com
psilocibina
são um dos
candidatos mais promissores, porque estavam
disponíveis sem precisar de nenhum preparo
prévio. Quando comidos, mesmo em
pequenas quantidades, provocam euforia e
bem-estar, um aumento notável da acuidade
visual, especialmente na detecção periférica, e
excitação sexual. A ingestão de uma
quantidade maior leva ao estranhamento e ao
êxtase. Em qualquer dose que o cogumelo
fosse usado, ele possuía a propriedade mágica
de conferir vantagens adaptativas sobre os
usuários arcaicos e seus grupos. A ampliação
da acuidade visual, da excitação sexual e do
acesso ao outro transcendente, levou ao
sucesso na obtenção de comida, à prole
abundante e ao contato com as esferas de
poder sobrenatural. A presença de cogumelos
contendo
psilocibina
, na dieta dos
hominídeos, pode ter mudado os parâmetros
do processo de seleção natural, ao mudar os
padrões comportamentais sobre os quais essa
do próprio corpo dela. Por
conseguinte, o trigo também era a
mãe deles. Desse modo,
conheciam a sua mãe em dois
aspectos, os quais eram muitas
vezes sinônimos um dou outro:
Mãe Terra e Mãe Trigo.
James Powell.
O Tao dos Símbolos
Franz Boas foi o primeiro
antropólogo a realçar o
relacionamento entre a linguagem
e a cultura. Ele conseguiu isso do
modo mais simples e óbvio: por
meio da análise do léxico de dois
idiomas, revelando as distinções
feitas por pessoas de culturas
diferentes. Por exemplo, para a
maioria dos norte-americanos que
não são fãs do esqui, a neve não
passa de um aspecto do tempo; e
nosso vocabulário é limitado a
dois termos, neve e neve
derretida. Em esquimó, são
muitos os termos. Cada um
descreve a neve num estado ou
condição diferente, deixando
totalmente explícito que esse
povo depende de um vocabulário
preciso para descrever não um
mero aspecto climático, mas uma
característica ambiental
significativa. Desde a época de
68
maior com os cogumelos,
porque esses cogumelos
crescem apenas nas fezes do
gado. Em resultado disso, a
interdependência entre os
humanos e o cogumelo foi
aumentada e aprofundada. Foi
nessa época que os rituais
religiosos, a criação dos
calendários e a magia natural
começaram a existir. Pouco
depois dos humanos
encontrarem os fungos
visionários das pradarias
africanas, e como as formigas-
cortadeiras, nós também nos
tornamos a espécie dominante
em nossa área, e também
aprendemos como manter o
grosso de nossa população
segura em refúgios
subterrâneos. Ao ponderar
sobre o curso da evolução
humana alguns observadores
sérios questionaram o cenário
apresentado pelos
antropólogos físicos. A
evolução nos animais
superiores demora um tempo
maior para acontecer,
operando em períodos de
tempo raramente menores do
que um milhão da anos e
comumente em dezenas de
milhões de anos. Mas o
surgimento dos humanos
modernos a partir dos
primatas superiores – com
seleção vinha operando. Um desses
comportamentos, o uso da linguagem, que
poderia ser anteriormente uma característica
secundária, subitamente tornou-se muito útil
no contexto dos novos estilos de vida
caçadora e coletora. É importante dizer que
nosso corpo fabrica, em pequenas
quantidades, substâncias similares as que estão
presentes no reino vegetal: do ópio: morfina;
dos cogumelos: psilocibina; da ayauasca:
dimetiltriptamina. Em nós existem
neuroreceptores adequados, mas a ingestão
dessas plantas catalisa o processo. uma
relação íntima e inseparável entre nossa
espécie e os estados alterados da consciência,
de qualquer origem: tabaco, café, ópio,
açúcar, álcool, cocaína, marijuana, LSD,
televisão, outros meios tecnológicos e arte.
Sem essa compreensão não podemos encarar
adequadamente o abuso de drogas e a
autodestruição.
Apesar do individualismo de toda grande
urbe, os toquianos, talvez devido à enorme
densidade demográfica, o obrigados a ter
um senso do coletivo. Por não disporem de
vastos espaços abertos e por viverem muito
próximos uns dos outros, os japoneses
aprenderam a tirar proveito de pequenos
espaços. Dedicam muito tempo e atenção à
correta organização do espaço da moradia,
para estimular a percepção de todos os
sentidos. Como indicam os objetos que eles
produzem, têm uma consciência muito maior
da importância da textura. De todas as
sensações, o tato parece a experiência mais
pessoal. Para muita gente, os momentos mais
íntimos da vida estão associados às texturas
cambiantes da pele. A resistência endurecida,
encouraçada, diante do toque indesejado ou
as texturas excitantes da pele, durante o ato
erótico, bem como a qualidade aveludada da
satisfação depois, são mensagens de um corpo
para o outro, com significados universais.
Boas, os antropólogos vee
m
aprendendo cada vez mais sobre
esse relacionamento
importantíssimo entre o idioma e
a cultura, o que tem levado ao
uso de dados do idioma com
enorme sofisticação. Análises
léxicas costumam ser associadas a
estudos sobre as chamadas
culturas exóticas do mundo.
Benjamin Lee Whorf, em
Linguagem, pensamento e
realidade
, foi ainda mais além de
Boas. Ele sugeriu que cada idioma
desempenha um papel
proeminente na própria
modelagem do mundo perceptivo
das pessoas que o utilizam.
Nós dissecamos a natureza de
acordo com linhas estipuladas por
nosso idioma materno. As
categorias e tipos que isolamos no
mundo dos fenômenos, nós não as
encontramos ali, pelo contrário, o
mundo se apresenta num fluxo
caleidoscópico de impressões que
precisa ser organizado por nossa
mente – o que significa em
grande parte pelos sistemas
linguísticos que se encontram em
nossa mente. Nós recortamos a
natureza, passamos a organizá-la
em conceitos e atribuímos
significados, como fazemos,
principalmente porque somos
parte de um contrato para que
ela se organize desse modo – um
contrato que vale para toda a
nossa comunidade idiomática e
está codificado nos padrões da
69
enormes mudanças em
tamanho do cérebro e
comportamento – aconteceu
em menos de três milhões de
anos. Fisicamente, nos últimos
cem mil anos, mudamos muito
pouco. Mas a espantosa
proliferação de culturas,
instituições sociais e sistemas
linguísticos aconteceu tão
depressa que os modernos
biólogos evolucionários
praticamente não a podem
explicar. A maioria nem mesmo
tenta.
Os hominídeos provavelmente
expandiram sua dieta original
de frutas e pequenos animais
incluindo raízes, tubérculos e
bulbos. Os modernos babuínos
das savanas subsistem
principalmente de bulbos de
capim durante certas estações.
Os chimpanzés acrescentam
quantidades substanciais de
feijões quando se aventuram
na savana.
Meu ponto de vista é que os
componentes químicos
mutagênicos e psicoativos
existentes na dieta dos
primeiros humanos influenciou
diretamente a rápida
reorganização das
capacidades de o cérebro
processar informações. Os
alcalóides contidos nas
plantas, especificamente os
Faz parte dos animais, inc
luindo o ser
humano, manifestarem o comportamento
que chamamos territorialidade. Criamos uma
série de bolhas invisíveis. À medida que
desenvolvemos a cultura, ficamos muito
domesticados e nesse processo criamos uma
série de mundos diferentes um do outro.
Cada mundo tem seu próprio conjunto de
estímulos sensoriais, de modo que o que
representa invasão do espaço para pessoas de
uma cultura não representa, necessariamente,
a mesma coisa para pessoas de outra cultura.
Uma das distinções dos outros animais é que
criamos extensões dos nossos organismos,
transferimos a evolução do corpo para nossas
extensões e aceleramos o processo evolutivo,
a tal ponto que, elas assumiram o controle e a
modificação da natureza, com a dimensão
cultural. Mas não devemos esquecer que a
humanidade está enraizada em nossa natureza
animal. Além disso, os outros animais
parecem não racionalizarem o
comportamento, deixando de ocultar com
isso problemas obscuros. Em seu estado
natural, eles reagem com uma constância
espantosa, de tal modo que é possível
observar atitudes repetidas e praticamente
idênticas. A territorialidade, um conceito
básico no estudo do comportamento animal,
é definida como a maneira pela qual um
organismo reivindica a posse de uma área e a
defende de membros de sua própria espécie. É
a territorialidade que garante a propagação da
espécie por meio do controle da densidade e
que mantém os animais a uma distância em
que possam se comunicar uns com os outros,
de tal modo que haja a possibilidade de aviso
da presença do alimento ou de algum
adversário. Sem a devida manutenção dessa
distância, eles perdem a batalha, derrotados
por outro indivíduo de sua própria espécie,
em vez de pela fome, doença ou por algum
predador.
nossa língua. Naturalmente, trata
-
se de um contrato implícito e não
enunciado, mas suas condições
são absolutamente obrigatórias.
Não podemos falar de modo
algum se não endossamos a
organização e classificação de
dados que o contrato determina.
Nenhum indivíduo tem liberdade
para descrever a natureza com
absoluta imparcialidade, mas é
forçado a seguir certas
modalidades de interpretação
mesmo no momento em que se
acredita mais livre.
Whorf dedicou anos ao estudo do
hopi,
idioma dos índios que
habitam as
mesas
no deserto do
norte do Arizona. Poucos homens
brancos, se é que algum, podem
afirmar ter dominado a língua
hopi
nos níveis mais altos de
fluência, se bem que alguns se
saiam melhor que outros. Whorf
descobriu parte da dificuldade
quando começou a entender os
conceitos de tempo e espaço dos
hopis.
Em
hopi,
não há nenhuma
palavra equivalente ao tempo
cronológico inglês. Como o tempo
e o espaço se encontram
inseparavelmente enredados um
no outro, a eliminação da
dimensão do tempo altera também
a dimensão espacial.
O universo
do pensamento dos hopi,
diz
Whorf,
não possui nenhum espaço
imaginário. Ele não tem como
localizar o pensamento que trata
do espaço real em lugar nenhum a
70
compostos como a
psilocibina
,
a dimetiltriptamina (DMT) e a
harmalina podem ter sido os
fatores químicos da dieta que
catalisaram o surgimento da
auto-reflexão humana. A ação
dos alucinógenos presentes
em muitas plantas comuns
aumentou nossa capacidade
de processamento de
informações e nossa
sensibilidade ambiental, com
isso contribuindo para a súbita
expansão do tamanho do
cérebro. Como aconteceu num
estágio posterior desse mesmo
processo, os alucinógenos
atuaram como catalisadores
no desenvolvimento da
imaginação, alimentando a
criação de estratagemas
internos e esperanças que
podem ter sinergizado o
surgimento da linguagem e da
religião. Em pesquisas
realizadas no final dos anos de
1960, Roland Fischer deu
pequenas quantidades de
psilocibina a estudantes de
pós-graduação e em seguida
mediu sua capacidade de
detectar o momento em que
linhas anteriormente paralelas
se desviavam. Ele descobriu
que a capacidade de
desempenhar essa tarefa
específica era aumentada
depois de pequenas doses de
uma necessidade crescente de reexame da
doutrina
malthusiana
que associa a população
ao alimento disponível. Embora tendamos a
deplorar os efeitos da superpopulação, não
devíamos nos esquecer de que o estresse que
ela produz já foi positivo. Ela foi eficaz na
evolução, por empregar as forças da
competição
intra-específica
em vez da
competição
interespecífica
. É muito
importante a diferença entre essas duas
pressões evolutivas. A competição entre
espécies prepara a cena em que os primeiros
tipos poderão se desenvolver. Ela envolve
espécies inteiras, em vez de linhagens
diferentes do mesmo animal. A competição
no interior de uma espécie, por sua vez, refina
a progênie e aprimora seus traços
característicos. A competição intra-específica
serve para refinar a forma incipiente do
organismo. Hipóteses recentes sobre a
evolução dos humanos ilustram os efeitos
dessas duas pressões. Tendo sido
originalmente um animal que habitava o
solo, o antepassado do humano foi forçado,
pela competição interespecífica e por
mudanças no ambiente, a abandonar o chão e
adaptar-se às árvores. A vida arborícola exige
uma visão aguçada e reduz a dependência em
relação ao olfato, sentido decisivo para
organismos terrícolas. Assim, o sentido do
olfato nos chegou menos desenvolvido, e os
poderes da visão foram enormemente
aperfeiçoados. Uma consequência da perda do
olfato, como importante meio de
comunicação, foi uma alteração no
relacionamento entre os humanos. Ela pode
ter proporcionado a nós uma capacidade
maior de suportar a aglomeração. Se os seres
humanos tivessem faro semelhante aos ratos
ou aos cães, ficariam desorientados com o
leque de mudanças emocionais que
ocorressem ao seu redor. A passagem da
confiança no olfato para a confiança na visão,
em consequência de pressões ambientais,
redefiniu totalmente nossa situação. A
não ser no espaço real; também
não consegue isolar o espaço dos
efeitos do pensamento.
Em outras palavras, os
hopis
não
conseguem imaginar, segundo
nossa concepção, um lugar
semelhante ao paraíso ou inferno
de que falam os missionários.
Aparentemente, para eles não
existe nenhum espaço abstrato,
algo a ser preenchido por objetos.
Mesmo a linguagem figurada
espacial da língua inglesa é
estranha para eles. Falar em
captar determinada linha de
raciocínio, ou em entender o
ponto principal de uma
argumentação, não faz sentido
para os
hopis.
Edward Sapir, professor e
orientador de Whorf, também fala
com sugestiva veemência sobre a
relação do humano com o
chamado mundo objetivo.
É uma total ilusão imaginar que
alguém se ajuste à realidade
essencialmente sem o uso da
linguagem e que a linguagem seja
meramente um meio causal para
resolver problemas específicos de
comunicação ou reflexão. O fato
é que o “mundo real” em grande
medida é construído sobre os
hábitos linguísticos do grupo.
A influência de Sapir e Whorf
estendeu-se muito além dos
estreitos territórios da
antropologia e da linguística
descritiva. Sua linha de
pensamento levou-me a consultar
71
psilocibina. Quando discuti
essas descobertas com
Fischer, ele sorriu, depois de
explicar suas conclusões, e em
seguida resumiu:
você vê, o
que se provou
conclusivamente aqui é que,
sob certas circunstâncias,
somos mais bem-informados
sobre o mundo real se
tomamos uma droga do que se
não tomamos.
Terence McKenna.
O Alimento dos Deuses
.
Amor – pois que é palavra
essencial comece esta canção
e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e
enquanto guia, reúna alma e
desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só
alma?
Quem não sente no corpo a
alma expandir-se até
desabrochar em puro grito de
orgasmo, num instante de
infinito?
O corpo noutro corpo
entrelaçado, fundido,
dissolvido, volta à origem dos
seres, que Platão viu
completados: é um, perfeito em
dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no
cosmo?
Onde termina o quarto e chega
aos astros?
Que força em nossos flancos
nos transporta a essa extrema
região, etérea, eterna?
Então a paz se instaura. A paz
dos deuses, estendidos na
cama, qual estátuas vestidas
de suor, agradecendo o que a
capacidade
de planejar tornou
-
se possível
porque os olhos abrangem uma área maior. A
visão aceita dados mais complexos e assim
estimula o pensamento abstrato. o olfato,
embora profundamente emocional e
gratificante em termos sensuais, nos leva em
outra direção.
Essa reflexão sobre nossas relações com o
espaço e a alta densidade demográfica, é fruto
da minha leitura do livro
A Dimensão Oculta
,
do antropólogo americano Edward T. Hall,
que vim lendo durante a longa viagem. Em
relação a Tóquio, Sampa é muito espaçosa!
De: Isadora<isado[email protected]
Para: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Poesia do começo ao fim
Dionísio querido: esse é o momento de
fazermos nossa longa viagem
ao
esquecimento. Nossa última conversa doeu
demais. É muito simbólico que tudo tenha
acontecido em frente ao dragão, no Parque
Água Branca, onde fomos tão felizes! Repito:
não suporto o peso de destruir um casamento
tão longo e bonito. Será que algum dia
Janaína me perdoará?
É minha mestra quem diz: O amor é quando
você o que não tem, para alguém que não
precisa daquilo.
A primavera é quando do escuro da
terra/ascende a música da paixão/a primavera
é quando ninguém mais espera/e desespera
tudo em flor/a primavera é quando ninguém
acredita/e ressuscita por amor.
Tantas vezes cantamos essa música de Wisnik,
ela foi nosso mantra. Muitas primaveras virão.
Sempre será gozado o que foi bem vivido.
Torço por você. Termino por onde
o dicionário Oxford de bolso e
dele extrair todos os termos que
se referissem a espaço ou
tivessem conotações espaciais,
como junto, distante, por cima,
por baixo, longe de, ligado,
fechado, sala, perambular,
derrubar, nível, vertical,
adjacente, congruente, e assim
por diante. A listagem preliminar
revelou cerca de 5 mil termos.
Edward T. Hall
A Dimensão Oculta
Gorjeio é mais bonito do que
canto porque nele se inclui a
sedução.
É quando a pássara está
enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos
maneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça
para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam
loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da
pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido
escolhidas para o concerto.
72
um deus acrescenta o amor
terrestre.
Carlos Drummond de Andrade
O Amor Natural
Como um fósforo a arder antes
que cresça a flama,
distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim
começa e se alastra ao redor,
ágil e ardente, a dança em arco
aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama,
inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos
cabelos e com a arte sutil dos
tornozelos incendeia também
os seus vestidos de onde,
serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com
estalidos.
Então, como se fosse um feixe
aceso, colhe o fogo num gesto
de desprezo, atira-o
bruscamente no tablado e o
começamos, invocando
o corpo e a poesia,
Fernando Pessoa:
A poesia é um saber com o corpo, um saber
musical, rastro ritmado de um sentir
pensando.
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Isadora<isadora@lua.com.br
Assunto: Que o deus mais antigo e jovem nos guie e
ilumine
Isadora amada: ficou insuportável que a
minha presença lhe cause tristeza, dor,
remorso, constrangimento e culpa. O que foi
uma graça da vida, bênção e catalisação da
Deusa, agora existe em mim. A dor é saber
que tenha ficado em você o lado sombrio.
Como posso maldizer o que nos aconteceu?
Como não aceitar as tortuosidades e os
mistérios da vida? Se amadurecer, como
dizem, é suportar não ser amado por quem se
ama nunca vou, nem quero, conseguir.
Teríamos muito para viver juntos, mas parece
que ainda lhe assombra a morte do seu pai, o
círculo vicioso do sofrimento, a compulsão
de repetir a cena da perda: nenhum deus ou
humano, ninguém jamais vai me trair outra
vez, por isso me antecipo: parto. Contudo,
posso estar me enganando e ser o fazer e
desfazer rápido de laços afetivos nesses
tempos líquidos. Lembro Paulinho da Viola:
Todo aquele que sabe separar o amor da
paixão, tem o segredo da vida e da morte no
seu coração.
Tenho certeza de que Janaína no futuro lhe
perdoará. Fique em paz. Quero estar com
você se um dia a nossa convivência voltar a
ser amorosa, criativa, leve e alegre.
Eis a trilha sonora,
Eros Motor
, de Péricles
As fl
ores dessas árvores depois
nascerão mais perfumadas.
Manoel de Barros
Gorjeios
.
Uma mulher me espera: ela tem
tudo, nada está faltando –
embora tudo estivesse faltando se
o sexo faltasse ou o borrifo do
homem certo.
O sexo contém tudo: corpos,
almas, sentidos, provas, purezas,
delicadezas, resultados, avisos,
cantos, ordens, saúde, o mistério
materno, o leite seminal, todas as
esperanças e benefícios, todas as
dádivas, paixões, amores,
encantos, gozos da terra, todos
os deuses, juízes, governos,
pessoas no mundo com seguidores
– tudo isso no sexo está contido
ou como parte dele ou como sua
razão de ser.
73
contempla.
Ei-lo ao rés do chão, irado, a
sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve
sorriso de saudação, erguendo
a fronte altiva, pisa-o com seu
pequeno pé preciso.
Rainer Maria Rilke.
Dançarina Espanhola.
Nas sociedades mais
rudimentares e menos
diferenciadas socialmente, os
mortos são quase confundidos
uns com os outros e
confundidos com os vivos.
“Mas quem és tu, morto ou
vivo”, pergunta-se ao
desconhecido que passa. Os
poderes deles ainda são
difusos. O medo inspirado por
sua presença familiar é
pequeno. Deuses e mortos são
indiferenciados: as duas
noções se correspondem.
Os deuses são produtos de
uma
extensão e de uma
diferenciação
com duas
dimensões,
elas próprias
determinadas pela extensão
das sociedades arcaicas e de
sua diferenciação social, isto é,
de sua evolução geral
. Por um
lado, o mundo dos mortos se
estenderá e se diferenciará do
mundo dos vivos, por outro, no
Cavalcanti:
Eros / cantor da liberdade / Eros / motor das
invenções/Eros mestre das comemorações
/Eros/o próprio entusiasmo/ Eros/ o rei do
bom humor / Eros / zunzum de cada
esquina, capricho de menina / meu sol, meu
provedor / Eros / o arco, a flecha e o alvo /
Eros / o purificador /Eros / a dança e as
linguagens / Eros /o regenerador /Eros /
doutor em sutilezas / Eros / dos sábios
condutor / Eros / meu eu, meu deus, minha
sina / me guia e me ilumina / nos caminhos
onde vou.
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: Hermes <herm[email protected]om.br
Assunto: O tempo transforma luto em saudade
Hermes Amigo
Agradeço o seu telefonema, foi um alívio.
Estava me sentindo tão sem nada nem
ninguém. No dia da separação, acordei de
madrugada com essa letra antiga, do tempo
do samba-canção, se quiser faça a música. O
título:
Debalde mente
, outra feita pra Isadora:
Como disse o vate/Quis debalde varrer-te da
memória/Embora tenha boa vassoura/Só
consegui em parte/Ainda pairas poeira,
estrela./ Esqueci tuas mentiras/Os e-mails
apaixonados/Promessas de felicidade/E
namoros pela cidade/Contudo, a memória
debalde, rebelde, grita/Vocifera teu corpo: a
pele, os olhos, o cheiro. /Digo então pra
vocês/Varri tudo de vez/Em cima e embaixo
da cama, do tapete/Joguei fora travesseiro,
lençóis, o abajur lilás/Queimei até o glorioso
corpete/E agora resta mesmo dela/A
memória/Em cada célula/Doida varrida.
Encontraria Isadora? É o que me perguntava,
muitas vezes, enquanto refazia os percursos
que fizemos juntos e mesmo outros.
Sem se envergonhar disso, o
homem que eu amo conhece e
proclama as delícias do sexo; sem
se envergonhar disso, conhece e
proclama a mulher que eu amo as
delícias dela.
Walt Whitman.
Folhas de Relva
É a experiência de que a arte de
narrar está em vias de extinção.
São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar
devidamente. Quando se pede
num grupo que alguém narre
alguma coisa, o embaraço se
generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura
e inalienável: a faculdade de
intercambiar experiências.
A experiência que passa de
pessoa a pessoa é a fonte a que
recorrem todos os narradores. E,
entre as narrativas escritas, as
melhores são as que menos se
distinguem das histórias contadas
pelos inúmeros narradores
anônimos. Entre estes, existem
dois grupos, que se interpenetram
de múltiplas maneiras. A figura do
narrador só se torna plenamente
tangível se temos presentes esses
dois grupos. Quem viaja tem
muito que contar, diz o povo, e
com isso imagina o narrador como
alguém que vem de longe. Mas
74
próprio interior do mundo dos
mortos, os grandes mortos se
diferenciarão e estenderão seu
poder em relação ao comum
dos mortais.
E o mundo dos mortos, como
um continente à deriva, se
afastará cada vez mais do
mundo dos vivos.
Portanto, quanto mais os
mortos se afastarem dos vivos,
mais precisos se tornarão as
diferenciações entre os
mortos, mais precisas se
tornarão os poderes divinos
dos mortos-ancestrais. E
quanto mais mortos-ancestrais
se divinizarem, mais seus
atributos divinos submergirão
seus caracteres de mortos, até
transformá-los em mortos
jamais nascidos, ou vivos
jamais mortos, que desde seu
nascimento terão vivido a vida
gloriosa do além: isto é,
verdadeiros
imortais
.
Enfim, estes mesmos atributos
divinos transcenderão suas
qualidades de ancestrais para
transformá-los em deuses
criadores da humanidade, da
vida, e até do universo. O
poder dos mortos passou
então a ser o poder dos
deuses, a ciência dos mortos
se transformou em ciência dos
deuses ou religião.
A transformação “quantitativa”
é “qualitativa” no momento em
que a escala divina já não tem
nenhuma relação, salvo
miraculosa, com a escala
humana; a alienação do duplo
se solidificou muito além e
muito alto. Como diz
Frobenius, “o humano se
separa do divino, e desta
separação nasceram os
deuses”.
Assim se desenvolve, do duplo
Tínhamos brincado o tempo tod
o com acasos
e sincronicidades, quem sabe? Por toda parte
ainda sinto o seu cheiro. Acho chocante que
a gente gaste tanto tempo com fantasmas
afetivos e se contente com migalhas. Dói no
peito quando a gente focaliza, personaliza o
amor em alguém e calcula o muito que
damos e o pouco que recebemos de volta. É
nesse momento que surge a ideia de migalhas
afetivas. Tenho andando tão sozinho que às
vezes penso que nunca mais farei um contato
íntimo com outro corpinho. Parece que esse
é o momento do discernimento, o eremita
não é uma meta, mas uma plataforma de
lançamento. A potência da vida está em
todos e em mim. Quando vem a tentação de
me deprimir recordo a dança, o esforço
enorme para dar continuidade à vida, no
filme:
A Marcha dos Pinguins
.
quanto tempo não via Isadora? Na noite
passada sonhei transando com ela em um
elevador. Acordei contente e logo ouvi o
bem-te-vi cantar diferente, descompassado:
bem te vi te vi te vi, com ênfase na visão.
Fiquei desconfiado, mas achei que tudo era
coisa do meu desejo. Fui almoçar na Paulista.
pras tantas, quase em frente ao Masp,
penso que estou alucinando: vem Isadora,
por cima da sinalização de cegos, falando no
celular. Digo-lhe: parece que não precisamos
mais agendar encontros? Sem ouvir, ainda
falando no celular, ela pra mim: qual número
é aquele? Edifício
Scarpa
, uma loja italiana:
Fatto a mano. Uomo.
O número 1765. Faço
as contas, no espírito da nossa brincadeira:
alegria é a prova dos noves fora: um
. Parece
que temos mesmo que seguir cada qual o seu
caminho. O edifício anuncia escarpa: um
abismo entre nós. O código do edifício
traduzido: Um homem se faz à mão. Ela nem
nota o código dado pelo acaso. Pára de falar e
finalmente me ouve e vê. O tempo da
conversa é curto, a pessoa que ela espera está
para chegar. Sem muita consciência faço uma
também escutamos com prazer o
homem que ganhou honestamente
sua vida sem sair do seu país e
que conhece suas histórias e
tradições. Se quisermos
concretizar esses dois grupos
através dos seus representantes
arcaicos, podemos dizer que um é
exemplificado pelo camponês
sedentário, e outro pelo
marinheiro comerciante.
Se os camponeses e os marujos
foram os primeiros mestres da
arte de narrar, foram os artífices
que a aperfeiçoaram. No sistema
corporativo associava-se o saber
das terras distantes, trazidos para
casa pelos migrantes, com o saber
do passado, recolhido pelo
trabalhador sedentário.
O senso prático é uma das
características de muitos
narradores natos. Isso esclarece a
natureza da verdadeira narrativa.
Ela tem em si, às vezes de forma
latente, uma dimensão utilitária.
Essa utilidade pode consistir seja
num ensinamento moral, seja
numa sugestão prática, seja num
provérbio ou numa norma de vida
– de qualquer maneira, o narrador
é um homem que sabe dar
conselhos. Mas se “dar conselhos”
parece hoje algo antiquado, é
porque as experiências estão
deixando de ser comunicáveis. Em
consequência, não podemos dar
conselhos nem a nós mesmos nem
aos outros. Aconselhar é menos
responder a uma pergunta do que
fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que
está sendo narrada. Para obter
essa sugestão, é necessário
primeiro saber narrar a história,
sem contar que uma pessoa só é
receptiva a um conselho na
medida em que verbaliza a sua
situação. O conselho tecido na
substância viva da existência tem
um nome: sabedoria. A arte de
narrar está definhando porque a
sabedoria – o lado épico da
verdade – está em extinção.
Porém, esse processo vem de
75
ao deus, passando pelo morto
-
ancestral-deus, a divindade
potencial do morto, mas
através de seleções severas em
que os mortos-ancestrais e os
mortos-chefes se destacam dos
outros mortos, os grandes
ancestrais se destacam dos
pequenos ancestrais, e os
deuses se destacam entre os
grandes ancestrais. Em seu
desenrolar, a história do
Panteão divino será o reflexo
da história humana.
Na concepção monárquica, o
rei é o duplo do deus, seu “Ka”.
Esta identificação do rei-deus
à divindade solar e lunar foi
por vezes tão absoluta que a
execução ritual do rei
consagrava a morte do ano
solar ou lunar. Depois,
preocupados em não levar tão
longe esta identificação, os
reis mandaram que os
substituíssem por vítimas
sacrificiais.
Nas sociedades guerreiras de
caça ou criação de gado, onde
o acaso exerce um papel
importante, ei-los detentores
prodigiosos da boa sorte,
senhores onipotentes do
sucesso. Mas é sobretudo após
a fixação no solo, que o poder
dos deuses se integra
profundamente à natureza, e
que esta se recobre e se enche
de carne cósmica; para as
civilizações agrárias,
enraizadas na terra fecunda,
ansiosamente voltadas para o
céu, terra e céu aparecem
como dois esposos; a chuva é
líquido seminal do céu
fecundante. Depois o sol e a
lua, senhores das estações,
senhores da vida, se erguem
em seu poder infinito. A terra,
o céu, o sol, a lua revestem
terna
carícia
em
seu rosto
. noto quando
ela se comove. Diz que vai para Alemanha,
trabalhar com o grupo de dança de
Pina
Bausch
. O carro chega, faço uma reverência,
lhe desejo boa sorte e luz no caminho.
Ubíqua ela vai também comigo, talvez em
nossa última trilha sonora:
Na Paulista os faróis já vão abrir/E um milhão
de estrelas prontas pra invadir os jardins/Onde
a gente aqueceu uma paixão / Manhãs frias de
abril /Se Avenida exilou seus casarões/Quem
reconstruiria nossas ilusões?/Me lembrei de
contar pra vo nessa canção/ Que o amor
conseguiu/Você sabe quantas noites eu te
procurei/Nessas ruas onde andei/Conta, onde
passeia hoje esse teu olhar?/ Quantas
fronteiras ele já cruzou?/Num mundo inteiro
de uma cidade/Se os teus sonhos
emigraram sem deixar nem pedra sobre
pedra/Pra poder lembrar/Dou razão, é difícil
hospedar no coração sentimentos assim.
Roy Batty, o andróide, em
Blade Runner
: hora
de morrer. E depois renascer. A existência
deve bastar-se por si mesma, porém se depois
da morte ainda se espera que haja outra forma
de existência individual, me parece uma
homenagem à vida: ah, mais valia! Todavia,
quero é viver muitas vidas agora então, sem
precisar deixar nada para outra encarnação. Ir
a toda até virar uma estrela supernova ova ova
ova.
Talvez a vida humana só seja possível com
borracha e apagador. Ou pintar por cima do
erro, como fazia Matisse. Parece que agora
somos mais quatro solitários pelo mundo. As
mulheres, todas elas são a Deusa, porém
algumas são mais nítidas do que outras. Não
existe ex-mulher na vida de um homem, ai
mãe, vocês são para sempre. Você sabe que
gosto de paradoxos, vim buscar em Sampa:
longe. Nada seria mais tolo que
ver nele um “sintoma de
decadência” ou uma
característica “moderna”. Na
realidade, esse processo, que
expulsa gradualmente a narrativa
da esfera do discurso vivo e ao
mesmo tempo dá uma nova beleza
ao que está desaparecendo, tem
se desenvolvido
concomitantemente com toda
uma evolução secular das forças
produtivas.
Villemessant, o fundador do
Figaro,
caracterizou a essência da
informação com uma fórmula
famosa: Para os meus leitores,
costumava dizer, o incêndio num
sótão do Quartier Latin é mais
importante que uma revolução em
Madri. Essa fórmula lapidar
mostra claramente que o saber
que vem de longe encontra hoje
menos ouvintes que a informação
sobre acontecimentos próximos.
O saber, que vinha de longe –do
longe espacial das terras
estranhas, ou do longe temporal
contido na tradição - , dispunha
de uma autoridade que era válida
mesmo que não fosse controlável
pela experiência. Mas a
informação aspira a uma
verificação imediata. Antes de
mais nada, ela precisa ser
compreensível “em si e para si”.
Muitas vezes não é mais exata
que os relatos antigos. Porém,
enquanto esses relatos recorriam
frequentemente ao miraculoso, é
indispensável que a informação
seja plausível. Nisso ela é
incompatível com o espírito da
narrativa. Se a arte da narrativa é
hoje rara, a difusão da
informação é decisivamente
responsável por esse declínio.
Quanto mais o ouvinte se esquece
de si mesmo, mais profundamente
se grava nele o que é ouvido.
Quando o ritmo do trabalho se
apodera dele, ele escuta as
histórias de tal maneira que
adquire espontaneamente o dom
de narrá-las. Assim se teceu a
76
com seus adornos
deslumbrantes, com seus
mantos sagrados, os antigos
deuses-ancestrais, de forma
animal ou humana, ou os
novos deuses agrários, vaca,
touro, símbolos de
fecundidade ou de renovação.
Nas sociedades urbanizadas,
certos deuses animais se
antropomorfizam pela metade,
e se tornam animais com
cabeças de homens, homens
com cabeças de animais. Eles
continuam a ser animais ao
mesmo tempo que homens, na
medida em que sua forma
animal reflete mais
poderosamente que forma
humana as forças que eles
encarnam; este é o caso do
touro Mitra, símbolo concreto
da fecundidade viril, a pantera
Kali, símbolo da terrível força
destruidora e criadora da
natureza-mãe.
A grande subida dos deuses à
realeza cósmica está ligada,
em parte, ao grande aumento
da angústia da morte. Quanto
mais sólida, rica “proprietária”
se torna a vida dos homens,
mais violentos são o choque e
a regressão infantil sentidos
em face da morte, mais inquieta
é a crença na sobrevivência,
mais poderoso parece o deus,
pai onipotente, e mais ardente
é a prece submissa que lhe
pede a imortalidade.
À promoção dos deuses
corresponde a desvalorização
dos “duplos”. Perante os
deuses imortais e radiosos, o
homem vai considerar de um
ponto de vista cada vez mais
sombrio sua existência pós-
mortal de duplo, pobre
sucedâneo de vida que já vai
sendo corroída pelo nada.
tempo, paciência e calma. Vim do Recife, o
que mais posso fazer na Cosmópolis? Pontes-
pontes-pontes.
Sou um Poeta em tempo integral e dedicação
inclusiva. E quem diria, riria da coisa, até com
bolsa de pesquisa. Agora escrevo o tempo
todo, no computador e pelas ruas, no cinema
e nas livrarias, por toda parte, anoto tudo em
cadernetas, a poesia não está nas ruas? No
bolso do peito sempre trago um poema,
ninguém nunca sabe a urgência! Contudo, faz
todo sentido: vim para Sampa não por
Isadora, mas para virar homem, conseguir
certo grau de autonomia no
Matriarcado de
Pindorama,
onde sempre vivi cercado de
mulheres por todos os lados, comandando
tudo.
Montado em meu sonho sou cavalo,
centauro, pégaso. Hermes querido, liberdade,
coragem de cada dia, coração inventa,
estou fazendo na vida o que tenho vontade,
nem todo mundo aguenta. Sampa não é
propriamente o Saara, mas atravessar o
deserto é ficar muito tempo sem contato
íntimo com outro corpo. Descubro que
sublimação é fazer de imagens eróticas uma
edição. Entre o velho e o menino oscila o
homem. No fio ando, funâmbulo.
O artista tem uma vantagem, em relação
aos outros: mais coragem. O movimento
criativo é o exercício experimental da
liberdade, é o que nos diz Mário Pedrosa.
Quando contei meu pequeno drama para
uma amiga, ela saiu com essa: pois um amigo
meu foi criado pela avó e mais nove
mulheres. A avó lhe deu duas instruções
básicas: ame as mulheres acima de tudo,
porque somos melhores do que os homens.
Mas tenha muito cuidado com nosso ódio,
porque também somos muito melhores do
que vocês. O aprendiz virou mestre.
rede em que está guardado o dom
narrativo. E assim essa rede se
desfaz hoje por todos os lados,
depois de ter sido tecida, há
milênios, em torno das mais
antigas formas de trabalho
manual. Talvez ninguém tenha
descrito melhor do que Paul
Valéry a imagem espiritual desse
mundo de artífices, do qual
provém o narrador: Iluminuras,
marfins profundamente
entalhados; pedras duras,
perfeitamente polidas e
claramente gravadas; lacas e
pinturas obtidas pela
superposição de uma quantidade
de camadas translúcidas – todas
essas produções de uma indústria
tenaz e virtuosística cessaram, e
já passou o tempo em que o
tempo não contava. O homem de
hoje não cultiva o que não pode
ser abreviado.
A ideia da eternidade sempre teve
na morte sua fonte mais rica. Se
essa ideia está atrofiando, temos
que concluir que o rosto da
morte deve ter assumido outro
aspecto. Essa transformação é a
mesma que reduziu a
comunicabilidade da experiência
à medida que a arte de narrar se
extinguia.
No decorrer dos últimos séculos,
pode-se observar que a ideia de
morte vem perdendo, na
consciência coletiva, sua
onipresença e sua força de
evocação. Esse processo se
acelera em suas últimas etapas.
Durante o século XIX, a
sociedade burguesa produziu,
com as instituições higiênicas e
sociais, privadas e públicas, um
efeito colateral que
inconscientemente talvez tivesse
sido seu objetivo principal:
permitir aos humanos evitarem o
espetáculo da morte. Morrer era
antes um episódio público na vida
do indivíduo, e seu caráter
altamente exemplar: recordem-se
as imagens da Idade Média, nas
quais o leito de morte se
77
Mas a decadência do duplo tem
causas bem mais amplas que a
subida dos deuses. Ela se
inscreve no movimento geral
das civilizações que se
urbanizam. Constitui um
momento capital do progresso
da consciência de si.
Lentamente, a alma vai
suplantar um duplo cada vez
mais exterior, estranho.
A ideia de alma se encontra
talvez em germe na concepção
primitiva de morte-
renascimento, onde, embora o
indivíduo mude de corpo ao
renascer como animal ou
recém-nascido, algo, que é a
própria essência dele mesmo,
permanece através da
metamorfose. Mas, na
consciência arcaica, a
essência do eu, que permanece
inalterável através da vida e do
novo nascimento, não é
absolutamente concptualizada,
definida, apreendida: existe
apenas a evidência da morte-
renascimento.
A alma, em germe na morte-
renascimento, também se
encontra em germe em certas
concepções do duplo, nas quis
este, de essência aérea, é
representado pelo suspiro que
se desprende na morte. De fato,
a concepção “pneumática” da
alma nos mostra que esta
poderá conservar por muito
tempo certos atributos do
duplo. Mostra-nos, ao mesmo
tempo, a filiação que vai do
duplo à alma, conforme um
movimento de reintegração do
duplo ao interior do indivíduo.
A alma é o duplo interiorizado.
Essa interiorização não se fará
de uma só vez, imagina-se. A
alma conservará por muito
tempo uma certa materialidade.
Sua sede será localizado no
diafragma, ou no coração, ou
na cabeça, porque justamente,
como diz Zênon, “a alma é um
corpo, e persiste após a
morte”. O “ruach” hebreu,
assim como o “pneuma” grego,
são corpos.
Estava
em Pernambuco.
poucos dias tinha
voltado para Sampa. Depois do almoço fiz
uma sesta, mas fui sacudido por muitas mãos.
Quase caí da cama e acordei confuso. Liguei e
descobri que meu irmão estava internado em
uma UTI, em Recife. Como esses episódios
eram frequentes ainda vacilei em viajar, mas
considerei que ser acordado por muitas mãos
era um aviso importante. Quando nossa mãe
adoeceu gravemente, esteve cida todo
tempo, mas revoltada, por não poder morrer
com todos os seus em volta da cama, em casa,
e sim isolada da família, em uma duplamente
gelada UTI: pelo ar condicionado excessivo e a
ausência de afeto. Naquele momento, jurei
que se tivesse algum poder de decisão, isso
jamais aconteceria em meu entorno. Foi com
essa consciência que fui encontrar meu irmão,
também lúcido, lutando pra viver, mas com
muito sofrimento para ele e todos nós e sem
chance algum de voltar a ter uma boa vida.
Devemos recuperar o direito de morrer com
dignidade. Antigamente, quando o transporte
era precário, a pessoa que não avisasse aos
seus queridos e parentes que iria morrer, com
uma antecedência de pelo menos quinze dias,
era considerada uma pessoa desatenciosa ou
desrespeitosa com os seus, que não teriam
tempo para se preparar e se deslocar. Talvez
porque a morte não fosse reprimida ou
escamoteada, as pessoas recebiam com
naturalidade os sinais: em sonhos, pelo canto
dos pássaros ou outro código qualquer, como
as sacudidas pra me acordar. Ao assumir cada
vez mais esse meu lado de xamã, sei que uma
das funções é ajudar às pessoas no bem viver e
bem morrer. pras tantas, tive coragem de
dizer ao meu irmão que sua luta era vã. Como
não fazia muito tempo chorou. Enxugou
as lágrimas e o nariz com um lenço de papel,
fez uma bolinha e deu um peteleco pra cima.
Caímos todos na gargalhada! Retirou os
equipamentos e pediu pra morrer em casa.
Olhou pra mim e perguntou: quem são esses
índios que estão com você? Nesse momento
transforma num trono em direção
ao qual se precipita o povo,
através das portas escancaradas.
Hoje, a morte é cada vez mais
expulsa do universo dos vivos.
Antes não havia uma só casa e
quase nenhum quarto em que não
tivesse morrido alguém. Ora, é no
momento da morte que o saber e
a sabedoria do humano e
sobretudo sua existência vivida –
e é dessa substância que são
feitas as histórias – assumem pela
primeira vez uma forma
transmissível. Assim como no
interior do agonizante desfilam
inúmeras imagens – visões de si
mesmo, nas quais ele se havia
encontrado sem se dar conta
disso -, assim o inesquecível aflora
de repente
em seus gestos e olhares,
conferindo a tudo o que lhe diz
respeito aquela autoridade que
mesmo um pobre-diabo possui ao
morrer, para os vivos em seu
redor. Na origem da narrativa
está essa autoridade. A morte é a
sanção de tudo o que o narrador
pode contar.
Não se percebeu devidamente até
agora que a relação ingênua entre
o ouvinte e o narrador é
dominada pelo interesse em
conservar o que foi narrado. Para
o ouvinte imparcial, o importante
é assegurar a possibilidade da
reprodução. A memória é a mais
épica de todas as faculdades.
Somente uma memória abrangente
permite à poesia épica apropriar-
se do curso das coisas, por um
lado, e resignar-se, por outro lado,
com o desparecimento dessas
coisas, com o poder da morte.
Mnemosyne,
a deusa da
reminiscência, era para os gregos
a musa da poesia épica. A
reminiscência
funda a cadeia da
tradição, que transmite os
acontecimentos de geração em
geração. Ela corresponde à musa
épica no sentido mais amplo. Ela
inclui todas as variedades da
forma épica. Entre elas, encontra-
78
E os primeiros filósofos
tentarão sempre determinar a
matéria da alma: ar, fogo.
A alma corresponde em geral a
uma nova etapa da
individualidade que,
progredindo na consciência de
si mesmo, interioriza sua
própria dualidade, conforme o
movimento antropológico
definido por nós, e acentua
cada vez mais sua própria
intimidade subjetiva.
A desvalorização do duplo, o
aparecimento da alma vão
colocar o problema da
imortalidade em novos termos.
Por um lado, a alma será o
núcleo imortal do indivíduo
que aspira à salvação; após a
morte, ela se revestirá de um
corpo incorruptível. Por outro
lado, a alma do homem se
descobrirá análoga à alma do
mundo, isto é, à divindade
cósmica absoluta, e irá aspirar
a uma imortalidade que será
fusão nesta divindade cósmica.
Ou seja, ora a alma será o
suporte de uma salvação
pessoal, ora o suporte de uma
salvação cósmica.
A alma e a salvação surgem de
um mesmo movimento, a partir
do culto trácio de Dionísio.
Nas festas iniciáticas
dionisíacas, a alma arrebatada,
desfalecida, ébria de plenitude
em sua identificação com o
deus touro, exaltando-se na
comunicação extática, se
revela de natureza divina, e
garante ao homem não uma
sobrevivência de duplo, e sim
uma ressurreição, vida nova,
resplandecente, dotada de um
novo corpo imperecível.
Edgar Morin
O Homem e a Morte.
compreendi
as sacudi
das
pra me acordar e
disse: é a minha tribo, que veio lhe ajudar a
morrer. Seja como for, Hermes, morrer é
solo, viver é conjunto.
Todo dia rezo pra morrer antes do limite da
autonomia, antes ainda da tentação de
maldizer a vida. Amigo, agora você sabe que
meu luto é duplo. Mas quem cura luto é
saudade e tempo. O velho nasceu comigo. O
que eu não desconfiava é da grande alegria do
menino.
Talvez um dos maiores desejos do artista seja
mostrar o processo criativo por dentro. A
vanguarda sempre existe no limite novidade:
banalidade. Porém é preciso correr o risco, se
quisermos ampliar o repertório estabelecido.
Nossa narrativa pretende levar a Literatura
adiante, ir além do esgotamento das
vanguardas, mas oscila entre ficção científica e
auto-ajuda.
Acho que esse é o momento de continuar a
nossa pesquisa das origens da cisão corpo e
alma; da negação do animal em nós; e da
quebra da conexão com a Terra, antes
mediada pelas plantas psicoativas expansoras
da consciência. Já falei com Janaína. O que
acha?
se em primeiro lugar a encarnada
pelo narrador. Ela tece a rede que
em última instância todas as
histórias constituem entre si. Uma
se articula na outra, como
demonstraram todos os
narradores, principalmente
orientais. Em cada um deles vive
uma
Scherazade
, que imagina uma
nova história em cada passagem
que está contando. Tal é a
memória
épica e a musa da
narração. Os comerciantes
deixaram marcas profundas no
ciclo narrativo d’
As mil e uma
noites.
Podemos ir mais longe e perguntar
se a relação entre o narrador e
sua matéria – a vida humana – não
seria ela própria uma relação
artesanal. Não seria sua tarefa
trabalhar a matéria-prima da
experiência – a sua e dos outros –
transformando-a num produto
sólido, útil e único? Talvez se
tenha uma noção mais clara desse
processo através do provérbio,
concebido como uma espécie de
ideograma de uma narrativa.
Podemos dizer que os provérbios
são ruínas de antigas narrativas,
nas quais a moral da história
abraça um acontecimento, como
a hera abraça um muro.
Assim definido, o narrador figura
entre os mestres e os sábios. Ele
sabe dar conselhos: não para
alguns casos, como o provérbio,
mas para muitos casos, como o
sábio. Pois pode recorrer ao
acervo de toda uma vida – uma
vida que não inclui apenas a
própria experiência, mas em
grande parte a experiência alheia.
O narrador assimila à sua
substância mais íntima aquilo que
sabe por ouvir dizer. Seu dom é
poder contar sua vida; sua
dignidade é contá-la
inteira
.
Walter Benjamin.
O narrador.
79
Os Xamãs – conhecidos no
mundo “civilizado como
“curandeiros” ou “feiticeiros” –
preservam um notável conjunto
de antigas técnicas, que usam
para obter e manter o bem-
estar e a cura para eles
próprios e para os membros
das suas comunidades. Esses
métodos xamânicos revelam-se
de notável semelhança em todo
o mundo, mesmo para povos
cujas culturas são bastante
diversas sob outros aspectos,
povos que estão separados
uns dos outros por oceanos e
continentes, há dezenas de
milhares de anos. Carecendo
do nosso avançado nível de
tecnologia médica, esses
povos chamados primitivos
tiveram excelente razão para
se sentirem motivados a
desenvolver capacidades não
tecnológicas da mente humana,
para a saúde e a cura. A
uniformidade básica dos
métodos xamânicos sugere
que, por meio de tentativas e
erros, os povos chegam às
mesmas conclusões.
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Janaína <jan[email protected]m.br;hermes@caduceu.com.br
Assunto: Elos
Você deve lembrar quando Hermes disse ter
encontrado a pista que tanto procurávamos:
como e em qual momento ocorreu à cisão
corpo e alma e a consequente negação da
vida, que nos chegou através do cristianismo
e a ironia de que tenha sido uma contribuição
do xamanismo, que é uma das minhas buscas
mais essenciais, como técnica e esperança de
reconexão com o mundo vegetal e os outros
animais, com as potências vitais. Essa pista
está no livro de Dodds,
Os gregos e o
irracional:
A abertura do Mar Negro para o comércio e a
colonização gregas, durante o século VII a.C,
responsável pelo primeiro contato do povo
grego com o xamanismo, acabou por
enriquecer com novos traços a imagem
tradicional grega do “homem deus”. Creio
que estes novos elementos eram dignos de
aceitação para a mentalidade grega por
responderem as necessidades da época, assim
como a religião dionisíaca havia feito
anteriormente. A experiência do tipo
xamanístico é individual e não coletiva e
precisou do individualismo crescente de uma
era para a qual os êxtases coletivos de Dionísio
não bastavam completamente. O xamã não
é visto como a tia ou um médium
moderno, como alguém possuído por um
espírito. É a sua própria alma que é encarada
como tendo deixado o corpo e viajado para
locais distantes, mais frequentemente o
mundo do espírito.
Se a alma viajava independente do corpo,
então eram coisas separadas, assim os gregos
interpretaram essas influências. O corpo era
uma prisão dentro da qual os deuses
guardavam trancada a alma até que ela fosse
purgada de sua culpa. O corpo foi concebido
O xamã é precisamente aquele
que se encarrega mais
especificamente na sociedade
primitiva de fazer passar o
indivíduo e o grupo de um código
a outro, de um estado a outro;
como os mitos que utiliza,
traduz
um sistema simbólico num outro,
relacionando os astros com a
alimentação, os animais com as
plantas. Ora, como o consegue?
Encontramo-nos aqui na própria
origem da função significante – o
problema da tradução situando-se
no centro da linguística: como
compreender a transferência de
significante de um código a outro,
como entender
significativamente, nas suas
variações e redundâncias, esta
passagem de uma diferença a uma
identidade? Tanto mais que o
código guarda sempre o seu
segredo, a sua intradutibilidade
de princípio, a sua individualidade
separada.
Dois outros textos de Lévi-
Strauss ajudam a compreender a
função do significante flutuante
e a identificar o permutador de
códigos que ele representa: dois
ensaios que examinam o problema
da cura xamanística.
Sabe-se que em todas as
sociedades primitivas o xamã
80
O xamanismo é uma grande
aventura mental e emocional,
onde tanto o paciente como o
curandeiro xamã ficam
envolvidos. Através da sua
heróica viagem e de seus
esforças, o xamã ajuda seus
pacientes a transcenderam a
noção normal e comum que
têm acerca da realidade,
inclusive a noção de si
próprios como doentes. Faz
sentir aos seus pacientes que
eles não estão emocional e
espiritualmente sozinhos em
suas lutas contra a doença e a
morte. Faz com que eles
partilhem de seus poderes
especiais, convencendo-os, em
profundo nível de consciência,
de que há outro ser humano
desejoso de oferecer seu
próprio Eu para ajudá-los. A
abnegação do xamã provoca
no paciente um compromisso
emotivo correspondente, um
senso de obrigação de lutar ao
lado do xamã para se salvar.
Zelo e cura caminham juntos.
Ao se envolver com a prática
xamânica, a pessoa move-se
entre o que chamo de um
Estado Comum de Consciência
para um
Estado Xamânico de
Consciência
. A diferença entre
como uma tumba na qual a alma jazia morta,
aguardando a ressurreição, para a verdadeira
vida, que seria a vida sem corpo.
Nossas buscas essenciais são os elos: o que
poderia conectar continuamente as diversas
culturas desde o início? Onde e quando
houve rupturas que parecem mais desvios
destrutivos, bloqueios e repressões, do que
saltos criativos?
um personagem arcaico que se confunde
com a origem da nossa espécie e o início da
consciência; que inventa o primeiro ritmo,
rito, mito, fogo, dança, canto, a primeira arte;
que descobre que os outros animais são
aliados e devem ser imitados; que as plantas,
além de serem alimento e instrumentos de
cura, são conexões essenciais com o coração e
a memória da Terra; que transcende
o
cotidiano comum e viaja em êxtase por
dimensões e mundos, atravessa espaços e
tempos, batendo seu bombo, dançando seus
bichos e cheio de dádivas chega ao mundo
contemporâneo dos grandes espaços urbanos.
Esse personagem é o xamã ou o pajé. Creio
que ele é o elo contínuo que atravessa as
culturas e as difunde. Os xamãs apontam o
caminho porque são visionários, poetas,
arquitetos culturais e curandeiros. Os xamãs
acessam a outras dimensões e condições
sobre-humanas e assim confirmam: todos
podemos transcender a nós mesmos. O xamã
é um curandeiro e emprega uma técnica que
lhe é exclusiva, ele é o grande mestre do
êxtase: um vôo mágico a ascensão aos céus
e a descida as profundezas da terra. A viagem
extática na maioria das vezes é indispensável,
mesmo que a doença não decorra do rapto da
alma por demônios ou mortos. Qualquer que
seja a interpretação dada pelo xamã é sempre
através do êxtase que ele encontra a causa das
doenças e o tratamento eficaz. Um xamã
pode ser visto em diferentes lugares
desempenha diversos papéis dos
quais um, essencial, consistem em
ser
medecine-man.
Quer se trate
de doenças psíquicas ou
somáticas – as classificações
indígenas contêm em geral um
conjunto bastante diversificado
no interior destes grupos – a cura
obtém-se no decurso de sessões
que fazem intervir três tipos de
participantes, formando o que
Lévi-Strauss chama “complexo
xamanístico”: o xamã, o doente e
o público que colabora
ativamente na cura. A sessão
compreende várias etapas que
diferem segundo o tipo de
doença, mas das quais uma
reaparece geralmente sempre, a
do
transe.
Tentando analisar os
fenômenos que sobrevêm no
decurso da sessão de cura, Lévi-
Strauss vê neles um meio de
satisfazer esta inadequação entre
significante e o significado que na
Introdução à Obra de Marcel
Mauss
descrevia longamente:
Em
presença de um universo que
quer conhecer avidamente, mas
do qual não consegue dominar os
mecanismos, o pensamento normal
busca sempre o seu sentido nas
coisas, que lho recusam; pelo
contrário, o pensamento dito
patológico extravasa de
interpretações e de ressonância
afetivas, com as quais ele tenta
sempre preencher uma realidade,
noutros aspectos deficitários.
Para um existe o não-verificável
81
esses estados de consciência
pode ser exemplificada, talvez,
por meio de animais. Dragões,
grifos e outros animais que
consideraríamos “míticos”
quando estamos em
estados de
consciência xamânico,
são
“reais”. Não é difícil que os
ocidentais, ao se aproximarem
pela primeira vez dos
exercícios xamânicos, sintam
certa perturbação. Ainda
assim, em cada um dos casos
que conheço, as ansiedades
foram logo substituídas por
sensações de descoberta, por
excitação positiva e por
confiança em si mesmo. Não é
por acaso que a palavra
êxtase
refere-se, comumente, tanto ao
transe
xamânico como a um
estado de exaltação e de
deleite arrebatador.
Durante muito tempo, os xamãs
acreditaram que seu poder era
o mesmo que o dos animais,
das plantas, do sol, das
energias básicas do Universo.
Do jardim da Terra, eles
absorveram seus poderes para
ajudar a salvar outros seres
humanos da doença e da
morte, dando-lhes força para a
vida diária, para a comunhão
com as criaturas irmãs e para
simultaneamente
. Ele tem o poder da
ubiquidade. A partir dessas experiências,
narradas por ele através de canções
extemporâneas, ele vai extraindo a habilidade
para a adivinhação, para a poesia e para a
medicina mágica, o que acaba por torná-lo
socialmente importante. Ele se torna o
repositório da sabedoria sobrenatural.
Aqui em Sampa, em busca dos xamãs
urbanos, aprofundei essas descobertas
históricas, tentando refazer o longo percurso
que chega até nosso tempo. Antes da cultura
clássica, de Homero e de Atenas, está Creta.
No II milênio a.C, a civilização de Creta
representa o clímax mediterrâneo de uma
cultura que tivera início no Oriente,
achando-se originalmente relacionada com a
Mesopotâmia pré-semítica, e mesmo pré-
sumeriana. A peculiar estrutura dos seus
palácios aponta para influências, entre 2000
a.C e 1700 a.C, de arquiteturas da
Mesopotâmia, da Anatólia e da Síria. Em seu
ápice, a cultura minóica, denominação
relativa ao local onde surgiu a mitologia de
Minos
, de
Ariadne:
a Senhora do Labirinto e
o seu irmão
Minotaur
o, constituiria a última
fase de um desenvolvimento autônomo,
porque, como era insular, permanecera
menos sujeita a tendências e influências, em
comparação aos sumerianos e semitas, no
Oriente, e aos indo-europeus, na Península
Balcânica. É nesse lugar e tempo que se
presume haver nascido o culto da Grande
Deusa egeo-anatólica, a
Magna Mater
, que
tão relevante papel desempenhou nas
religiões da Grécia pré-helênica. Todos os
monumentos nos inclinam a considerar a
Grande Deusa da ilha de Minos como figura
muito mais poderosa e importante do que o
touro divino, mesmo que lhe possamos dar o
nome de
Dionísio
. A variedade das
representações plásticas nos deixa entrever
que, em Creta, a Deusa é uma nebulosa da
qual, no decorrer do tempo, certas partes
experimentalmente, isto é, o
exigível; para o outro
experiências sem objeto, ou seja,
o disponível. Recorrendo à
linguagem dos linguistas, diremos
que o pensamento normal sofre
sempre de déficit de significado,
enquanto o pensamento dito
patológico, pelo menos em
algumas das suas manifestações,
dispõe de uma superabundância
de significante. Pela colaboração
coletiva na cura xamanística,
estabelece-se uma arbitragem
entre estas duas situações
complementares. No problema da
doença, que o pensamento normal
não compreende, o psicopata é
convidado pelo grupo a investir
uma riqueza afetiva, privada em si
mesma de aplicação. Um
equilíbrio aparece entre o que é
verdadeiramente psíquico, uma
oferta e uma procura.
A sessão xamanística fornece a
ocasião de uma coincidência
entre os significantes e os
significados. O xamã fornece ao
seu doente uma
linguagem,
em
que se podem de imediato
exprimir os estados informulados
e de outro modo informuláveis. E
é a passagem a esta expressão
verbal, que permite,
simultaneamente, viver sob uma
forma ordenada e inteligível, mas
sem isto, anárquica e inefável,
que provoca o desbloqueamento
do processo fisiológico. Como se
efetuou então a passagem à
expressão verbal? Que operador
simbólico permitiu a
reorganização dos significantes
da doença numa linguagem com
82
viver uma existência jubil
osa,
em harmonia com a Natureza
como um todo.
A conexão entre os humanos e
o mundo animal é essencial no
xamanismo. Para o xamã que
está em estado alterado de
consciência, o passado mítico
é imediatamente acessível. A
pessoa que possui um animal
guardião costuma absorver
dele o poder espiritual de todo
o seu gênero ou espécie,
embora esteja, na verdade, em
conexão com esse poder
através de uma manifestação
individualizada dele. Através
do seu espírito guardião ou
animal de poder o xamã faz
conexão com o poder de todo
mundo animal, com os
mamíferos, pássaros, peixes e
outros seres. O xamã tem de ter
um guardião particular para
fazer seu trabalho, e esse
guardião o auxilia de maneira
especializada.
Michael Harner
O Caminho do Xamã
foram gradualmente se destacando. Algumas
dessas estrelas formadas no interior da névoa
primordial continuam brilhando no céu da
Grécia clássica, sob os nomes de
Reia
,
Atena,
Ártemis, Hécate, Deméter e Perséfone
.
No quadro da religião minóica, qual o papel
da divindade masculina, do deus-touro? A
arte de Creta, em conjunto, encontra-se toda
ela impregnada do dionisíaco, daquele
mesmo espírito de ebriedade e loucura que
transparece com tão sombrio fulgor nos
versos das
Bacantes, de Eurípides
. Embora
Creta seja uma espécie de livro de imagens
sem texto, essas legendas podem ser
encontradas no que acontecia na mesma
época em locais que abrangiam todo Egeu e o
Oriente Próximo, do Indo ao Adriático e da
Anatólia ao vale do Nilo. E essas legendas
podem ser encontradas também, depois, na
Grécia clássica, nos rituais que envolvem
Deméter, Perséfone e Dionísio
, em
Elêusis
.
Podemos dizer que um entrelaçamento
entre o ambiente feminino da Deusa e os
êxtases de Dionísio. Os rituais da
paixão,
morte e ressurreição
de um deus-touro, cuja
epifania é uma planta, está presente em todas
essas regiões antes e depois de Creta.
Algumas vezes é a própria Deusa quem
protagoniza o ritual de paixão, morte e
ressurreição, como Perséfone em Elêusis.
Mas, antes de Creta, de onde vem o culto da
Grande Deusa e qual a sua relação com o
Deus-Touro?
sentido? A única resposta
possível é: o corpo, pois constitui
o suporte das permutações e
correspondências simbólicas entre
os diferentes códigos em
presença – de entre os quais é
necessário não esquecer os
sociais, que a doença desorganiza
e que a cura restabelece
integrando de novo o indivíduo ao
grupo. O permutador de códigos
é o corpo. É ele – e as suas
energias – que o significante
flutuante designa. Não é de
admirar: o corpo sozinho não
significa, nada diz; apenas fala a
língua dos outros (códigos) que
nele se veem inscrever. No
entanto, permite significar. Assim
no
transe
joga-se uma cena dupla:
a da descodificação de um corpo
“usado”, “doente”; e a do renascer
de um corpo novo, são, curado.
Isto porque a viagem fora de
qualquer código significa a
transposição da fronteira da
cultura, e o “corpo puro”,
incondicionado, possuidor de
energias livres deve regressar à
natureza para desempenhar o
papel de permutador de códigos.
O significante flutuante designa
esta força primária que, no
mundo “primitivo”, circula por
toda parte entre os diversos
mundos, atravessando os códigos,
enchendo os seres e as coisas de
poderes, de sorte, de vida.
José Gil
Metamorfoses do Corpo
83
Em 1944, Heinz Mode propôs,
em seu livro
As Primitivas
Culturas da Índia e Suas
Relações com o Ocidente
que,
ao difundir-se, a corrente
cultural de Halâf-Arpatchiah
ter-se-ia dividido em dois
ramos, um para Oeste, dando
origem às primeiras
civilizações do mar Egeu, e
outro para Leste, promovendo
o surto das civilizações pré-
arianas do vale do Indo,
nomeadamente, Harappa e
Mohenjo-Daro. É claro que a
teoria explica, com satisfatória
verossimilhança, a óbvia
analogia entre as duas
civilizações marginais
extremas, em especial, aquela
que se verifica entre cenas
gravadas em sigilos do Indo,
representando saltos de
acrobatas, talvez femininos,
por cima de touros ou búfalos,
e as conhecidíssimas
“tauromaquias” de Creta.
De modo que, no II milênio a.C,
De: Janaína <janína@estrela.com.br
Para: Dionísio> Dionísio@máscaras. com .br;
hermes@caduceu.com.br
Assunto: A Deusa, o Labirinto e o Minotauro
Dionísio querido, dando continuidade a nossa
pesquisa e a sua pergunta veja o que
encontrei:
Os achados arqueológicos, efetuados por
John Evans, entre 1958 e 1960, apontam para
a região da Anatólia, para a maior e mais
antiga cidade que se conhece,
Çatal Huyuk
,
atual Turquia, no período de 7000-6500
a.C. Porém, a difusão cultural é mais
profunda: os habitantes dessa cidade são os
emigrantes que colonizaram Creta. Em Çatal
Huyuk a Deusa e o Touro estão por toda
parte. Contudo, se destaca uma imagem, em
relevo, da Deusa-Mãe, no momento de dar à
luz ao seu
Filho-Touro
. Não é possível deixar
de associar essa imagem com a do
Minotauro
,
filho de um touro com
Pasífae
, mulher do rei
Minos
, de Creta, que aterrorizado e
envergonhado, ordenou ao inventor Dédalo
que construísse o labirinto, para aprisioná-lo.
evidências de que Çatal Huyuk é um
centro primário de difusão do culto da Deusa
e do Touro, para a Suméria, com
Inanna e
Dumuzi
; a Babilônia, com
Ishtar e Tamuz
; a
Índia com
Parvati e Shiva
; e o Egito com
Ísis e
Osíris.
Na Ásia Menor, a Deusa teve o nome
de
Cibele,
que curou e iniciou
Dionísio
em
seu culto, quando o deus foi enlouquecido
por
Hera
. Cibele era a mãe-esposa de
Átis
, o
que morria e ressuscitava eternamente. Em
Creta, os nomes das deusas eram
Reia,
Damater e Ariadne
.
O que em Creta parecia um livro de imagens
sem texto, que não tinha sido possível
decodificar sua escrita, graças aos estudos de
Michel Ventris, em 1952, foi possível saber
que a língua era a grega, se bem que com
outra forma de escrita. No palácio dominante
de Creta, em
Cnossos
, entre 1500 a 1400 a.C.
A religião dionisíaca introduziu-se
em um culto da vida sob os signos
da “visão de aparições” e do “mel”,
mas não apenas sob estes signos,
nem tampouco exclusivamente
sob a regência de um terceiro
signo, o “vinho”. Sua presença e
sua unidade fazem-se reconhecer
pelo concurso de muitos signos.
Assim é que a sua atmosfera
característica assume de modo
efetivo uma forma concreta – mas
não em um único festival. Tais
signos vêm a ser elementos de um
mito bem diferenciado, que pode
encarnar-se em festas diversas. A
onímoda impressão dionisíaca que
a arte minóica nos faz pode
decompor-se em elementos
concretos que só estão presentes
numa mesma combinação no culto
dionisíaco tal como este é
conhecido de tempos históricos.
Para os gregos, Dionísio era
principalmente um deus do vinho,
um deus-touro e um deus das
mulheres. Um quarto elemento, a
serpente, portavam-na as
bacantes – assim como, antes
delas, na cultura minóica, deusas
ou sacerdotisas menos frenéticas.
Para empregar uma expressão
oriunda do vocabulário dos
médicos gregos, vinho e touro,
mulheres e serpentes, compõem
pequenas síndromes especiais. É
84
a civilização de Creta
representaria o clímax
mediterrâneo de uma cultura
calcolítica que tivera início no
Oriente e na época de Halâf,
achando-se originalmente
relacionada com a
Mesopotâmia pré-semítica, e
mesmo, pré-sumeriana; em seu
ápice, a cultura minóica
constituiria a última fase de um
desenvolvimento autônomo,
porque, como insular,
permanecera menos sujeita a
tendências contrárias e
influências contraditórias,
quais foram as dos
Sumerianos e Semitas, no
Oriente, e dos Indo-Europeus,
na Península Balcânica. Ora,
na região e na época a que
parece ascender a remota
origem da civilização de Creta
é que se presume haver
nascido o culto da Grande
Deusa egeo-anatólica, que tão
relevante papel desempenhou
na religião, ou nas religiões, da
Grécia pré-helênica. Antes de
extrair do fato as
consequências que
naturalmente se impõem,
importa atendermos a outro
traço característico da cultua
minóica. Referimo-nos à
peculiar estrutura dos seus
palácios. É possível, se não
demonstrável, que, entre 2000
a.C e 1700 a.C, Creta tenha
recebido sugestões
arqutetônicas de Mâri, na
Mesopotâmia, de Beicesultan,
na Anatótia, ou de Alalach, na
a língua
era a grega e
ficamos sabendo que
antes, em 2000 a.C., foi um período de
influência mútua entre Creta e a Grécia
continental, então governada por reis
micênicos. Certa ambiguidade devia existir em
Creta, quando se falava grego naquele
mundo com um estilo e uma religião tão
próprios, tão diferente do posterior mundo
grego. A herança mítica da Grécia continental
é quase toda de Creta, com pequenas
diferenças de nomes, funções e enredos.
Dionísio se apresentava ante os gregos
continentais como o deus do vinho, deus-
touro, o deus das mulheres e um deus
também de deusas de natureza extática, das
quais a maior era
Reia
, a
Mãe dos Deuses
. Os
elementos mais chamativos do culto, no
palácio de Cnossos, são precisamente esses: o
touro, o vinho inclusive ambos unidos, em
uma vasilha para servir vinho com cabeça de
touro, e as mulheres, como sacerdotisas, com
serpentes nas mãos.
Hoje se pode falar com segurança de uma
chegada precoce da religião de Dionísio na
Grécia continental, desde Creta. Essas
descobertas contestam a tese de Nietzsche de
que Dionísio é um deus tardio. Porém,
existiram também chegadas posteriores,
múltiplas: Ísis e Osíris, do Egito; Parvati e
Shiva, da Índia. A escrita de Creta revela o
nome do deus-touro e o de Ariadne, a
Senhora do Labirinto. Mas, além da escrita,
duas obras de arte impressionantes, também
no palácio de Cnossos:
Um afresco com um touro gigante, com as
quatro patas quase horizontais, solto no
espaço, com os chifres contidos
delicadamente por um homem e atrás do
touro uma mulher com os braços um pouco
acima da linha horizontal, com fios enrolados
nos braços. Ambos os personagens estão nas
pontas dos pés. Com os pés para o alto, em
cima do touro, mas sem o tocar, está uma
como se
fossem sintomas de um
estado dionisíaco agudo que
zoé
a
vida como um todo – criou
para si mesma. Para a cultur grega
esse era o mito de Dionísio; para
a cultura minóica anterior ao
advento dos gregos, esse era o
mito de um deus chamado por
outro nome, porém, sem dúvida,
mais abrangente e nuançado do
que o deus reconhecido na
fermentação do hidromel.
Atestam-no os ricos vãos de
bebida e libação ornados com
bucrânios.
Por um longo tempo, nossa
compreensão da cultura minóica
como um todo foi atrapalhada
por uma suposição de seu
descobridor: a de que a “principal
bebida” dos minoanos era a
cerveja. Traçava-se, com isto,
uma linha divisória entre os gregos
e os minóicos, tornados estes,
assim, mais próximos dos filisteus
que seguramente dispunham de
vasos para a fermentação da
cerveja. Em 1900, escavando
perto do palácio de Cnossos, Sir
Arthur Evans exumou vãos
adornados com espigas de cevada
em relevo. Ele concluiu daí que,
em Creta, uma espécie de cerveja
precedera o vinho. O tamanho
diminuto dos vasos em que se
baseou a tese, antes dá a
entender que em Cnossos eles
eram usados para outro tipo de
bebida à base de cevada – aquela
cujo consumo era um requisito
necessário para a participação
nos
Mistérios de Elêusis.
Em
alguns palácios, contudo,
magníficos vasos de vinho eram
fabricados e usados, em especial
enormes
rhýta,
cornos de beber
85
Síria;
mas também não é
impossível que tais sugestões
se encaminhassem em sentido
contrário, ou, ainda, que se
processassem
simultaneamente em ambos os
sentidos.
Admitamos, por hipótese, que
a “Natureza Divina” do
sincretismo helenístico e
romano mergulhe suas raízes
no solo fecundo da religião
minóica; isto é, que a
Grande
Deusa
egeo-anatólica
continha, como oculta
virtualidade, o evoluir no
sentido já filosófico de uma
natura naturans,
monodeisticamente
identificada com
Ísis
ou
Cibele,
ou qualquer outra das deusas
celebradas pelo paganismo
oriental ou Greco-romano. A
hipótese não é inteiramente
gratuita, pelo contrário; mas,
por consequência lógica,
resultará, para nós, a
obrigação de procurar, no
quadro da religião minóica,
qual a verdadeira situação da
divindade masculina, do Deus-
Touro, ou outro que seja o
chamado ou acólito da Deusa-
Mãe.
Eudoro de Sousa
Dionísio em Creta.
menina acrobata,
virada para a mulher atrás
do touro.
A segunda obra é um mosaico com um
labirinto, em cuja parte central está
Teseu,
com uma arma levantada na mão direita e
com a outra mão segura um dos chifres do
Minotauro
, que está de joelhos. Nas partes
laterais, mas paralelas a imagem do centro
dessa tapeçaria, três cenas que evocam os
principais episódios do mito: Ariadne a
Teseu o novelo de linha; Teseu e Ariadne
embarcam para Atenas; e, na última cena,
Ariadne está se lamentando, abandonada na
ilha de Naxos.
Dionísio, eu posso estar delirando, mas nos
quatro cantos de todo esse conjunto dois
glifos
em cada um, que são muito
semelhantes aos glifos estilizados mexicanos,
que representam os cogumelos do gênero
Psilocybe aztecorum
.
O que essas duas obras poderiam estar nos
dizendo? A leveza da primeira é evidente:
Teseu e Ariadne dançam com o touro e a
acrobata bem que poderia ser Ariadne ainda
menina. E na cena do labirinto, com a morte
do Minotauro, que é irmão de Ariadne, não
seria o padrão mítico da
paixão, morte e
ressurreição
do deus-touro Dionísio? A obra
de Dédalo, o labirinto, nos diz depois
Homero, era um lugar para a dança e a
morada de Ariadne em Cnossos. O desenho
do labirinto indicava os passos de uma dança,
em cuja coreografia participavam as donzelas
que o ateniense Teseu havia libertado do
Minotauro.
Mas o que aconteceu quando esse conjunto
mítico chegou a Atenas?
artificiais, cuja existência
pressupõe a celebração de
grandes cerimônias centradas no
vinho. A expressão minóica dessa
identidade é o uso da cabeça de
touro como jarro de vinho.
Parece mais do que provável que
a viticultura tenha chegado à
Grécia vindo de Creta.
Entre os gregos, a videira era
chamada de
hemerís,
“a mansa”,
porque os gregos sabiam da
existência de parreiras selvagens;
e sabiam que no mato a videira
pode ser uma planta de caule
espesso. No tronco de um tal
árvore teriam os argonautas
esculpido a imagem da Grande
Deusa Réia no Monte Dindimo,
na Ásia Menor. A epopéia de
Nonos, escrita nos fins da
antiguidade pagã, narra um mito
antigo a respeito da invenção da
viticultura, mito que não se liga
com o entrecho da história épica ,
e até a contradiz. No mito, tomam
parte a videira selvagem e a
serpente, e sublinha-se, ao mesmo
tempo, uma sua ligação com Réia.
Atentando a um oráculo da
Deusa, Dionísio aprendeu de uma
serpente o emprego das uvas: pelo
calcar das partes numa laje oca.
Isso aconteceu no tempo em que
a Grande Mãe criava o menino
Dionísio na sua caverna de
Cibele.
Carl Kerényi
Dioniso; Imagem arquetípica da vida
indestrutível.
86
Eurípedes chama de
Zeus Ideu
o deus da Cova do Ida. Porém
não é de Zeus, mas só de
Dionísio que podemos afirmar:
Nenhum deus grego chega
perto dele no horror de seus
epítetos, que atestam uma
selvageria absolutamente
impiedosa. Aonde é que isso
nos transporta? Sem dúvida
alguma, aos domínios da
morte. Na perspectiva da
história da civilização, isso
também nos transporta aos
domínios de uma sociedade da
caçadores selvagens que, em
certas ocasiões, se identificam
com bestas predadoras. Tais
ocasiões, seus dias de festa,
devem ser vistas como
presentificação da vida
agressiva, assassina. Creta
deve ter tido sociedades desse
De:
Hermes<
hermes
@caduceu.com.br
Para:Janaína@estrela.com.br; dinísio@máscaras.com.br;
Assunto: O hino homérico à Deméter
Janaína e Dionísio, queridos amigos, agora é a
minha vez: a resposta está no
culto dos
mistérios de Deméter, Perséfone e Dionísio
,
em
Elêusis,
cidade próxima a Atenas.
O mito é narrado no
Hino Homérico a
Deméter
: a busca da Deusa por sua filha
desaparecida Perséfone, que teve com seu
irmão Zeus. A tragédia trata da maior dor que
se possa conceber: a morte de uma filha.
Antes é preciso lembrar a genealogia dos
Titãs, a primeira geração divina, antes dos
Olímpicos:
Crono
é o filho mais novo de
Urano
, o Céu, e
Gaia
, a Terra. Pertence à primeira geração
divina. Foi o único a ajudar sua mãe a
destronar o pai. Ao chegar ao poder, casou
com sua irmã
Reia
. Seus pais tinham previsto
quer ele seria destronado por um dos seus
filhos, por esse motivo devorava-os assim que
nasciam. Assim, sucessivamente, gerou e
devorou:
Deméter, Hera, Hades ou Plutão e
Posídon
. Indignada e odiando o marido,
Reia
,
grávida de
Zeus
, fugiu para Creta, onde deu à
luz. Depois, envolvendo uma pedra em panos,
deu-a para Crono devorar. crescido, Zeus,
com a ajuda da sua avó Gaia, levou Crono a
tomar uma droga que o forçou a vomitar os
irmãos devorados. Com ajuda dos irmãos,
Zeus liderou uma guerra e derrotou Crono,
que foi encarcerado. Em grego, um jogo de
palavras permite que
Crono
seja personificado
como o
Tempo
, que também devora seus
filhos. O poder foi dividido em três partes:
Zeus
tem o poder maior, pois reina no Céu e
no Cosmo, com seus raios e trovões;
Posídon
reina no Mar, com seu tridente; e
Hades
ou
Plutão
, reina no Mundo Subterrâneo, o lugar
dos mortos, com seu capacete mágico, que
torna invisível quem o usa.
Embora suas sacerdotisas iniciem
as noivas e os noivos nos segredos
do ato matrimonial,
Deméter, a
deusa dos trigais
, não tem seu
próprio esposo. Quando ainda era
jovem e alegre, ela pariu
Perséfone
, literalmente
: a que
traz destruição,
e o robusto
Iaco,
fora do matrimônio, filhos do seu
irmão
Zeus
. Também deu a luz a
Plutão, após deitar-se com o titã
Jásio
, por quem se apaixonara
durante o casamento de Cadmo e
Harmonia. Estimulados pelo
néctar que fluía como água no
banquete, os dois amantes saíram
furtivamente da casa e se
87
tipo em período anterior ao
florescimento da cultura
palaciana, ou ainda na mesma
época, sob distintas formas.
Estudos modernos têm feito
referência a fenômenos
similares entre os árabes da
África. Um paralelo notável
oferecem as sociedades
religiosas dos Aissaoua de
Marrocos: entre vários grupos
Aissaoua, contam-se que os
homens-panteras e os homens-
leões, que devem assumir, para
com a carne viva, atitude igual
à dos predadores com que eles
se identificam. Isto não deve
ser considerado uma
derivação da religião
dionisíaca grega, mas antes
uma migração ou
sobrevivência de um rito pré-
histórico. É lícito supor que
esse rito se originou na Creta
pré-helênica, onde, em todo o
caso, o culto cruel sofreu uma
manifestação decisiva.
É importante no
tar
o fluxo
contínuo
entre
Creta e a Grécia continental: a mitologia
grega nasce em Creta e a tomada do poder,
pela geração dos Olímpicos, ocorre em outro
lugar, mas na hora de dar à luz a Zeus, sua
mãe Reia, foge para lá.
O Hino Homérico a
Deméter
conta o rapto de Perséfone por seu
tio Hades, com o consentimento de Zeus, e a
criação do
Culto dos Mistérios de Elêusis
:
Perséfone
colhia flores, com as filhas de
Oceano
, nas montanhas e planícies de
Nisa
.
Junto de uma figueira, bruscamente, a terra se
abriu e
Hades
,
o que a muitos acolhe
, raptou
Perséfone e levou-a em seu carro puxado por
cavalos voadores, que fez um sobrevôo e
Perséfone ainda pôde avistar a Terra na
primavera, o céu estrelado, os peixes no mar e
os últimos raios de sol, antes de penetrar no
mundo subterrâneo. Os gritos de Perséfone,
chamando pelos pais, ficaram no ar e
foram ouvidos por Deméter, muito tempo
depois. Dilacerada pela dor, com tochas nas
mãos, a Deusa vagou nove dias e noites por
toda Terra. No décimo dia encontrou Hécate,
que lhe disse: Deméter,
a dos ótimos dons
, a
das horas condutora, a da terra fértil e florida,
bênção dos deuses e dos humanos mortais
,
quem raptou tua filha e feriu-te o peito? Ouvi
o grito, mas nada vi. As deusas foram então
ao encontro de
Hélios
, o Sol, que tudo e
de todos cuida. O Sol então disse: com o
consentimento de Zeus, o raptor é Hades,
que a levou para o mundo dos mortos. Mas
teu irmão e genro Hades não é indigno de ti,
ele é
aquele que a muitos rege
. Irada contra
Zeus, Deméter deixa o Olimpo e segue rumo
às cidades e aos férteis e fartos campos
humanos. Disfarçada de velha, a Deusa chegou
ao Poço das Virgens, que abastece a cidade,
perto do palácio de
Celeu
, rei de Elêusis. a
encontram as filhas do rei:
Cleisidice, Calídice,
Demo e Calítoe.
Não a reconheceram. É
difícil aos humanos verem o divino. De onde
vens, quem és?
Dás
é o meu nome, deu-me
deitaram num campo arado três
vezes. Ao retornarem,
adivinhando o que haviam feito
pela expressão se seus semblantes
e pelo barro que tinham nos
braços e nas pernas, Zeus
enfureceu-se com Jásio por ter-se
atrevido a tocar Deméter,
fulminando-o. Mas há quem diga
que Jásio foi morto por seu irmão
Dárdano, ou que foi despedaçado
pelos próprios cavalos.
Deméter tinha o espírito
generoso. Uma das poucas
pessoas a quem tratou com
dureza foi Erisícton, filho de
Tríopas. Liderando vinte
camaradas, Erisícton atreveu-se a
invadir um bosque que os pelasgos
haviam plantado para ela em
88
A julgar pela descrição de
Eurípides, a causa da
transformação teria sido o fato
de que os mistérios de Zagreus
foram absorvidos no culto
mais elevado de Zeus. Em
Os
Cretenses,
tragédia
euripideana que trata do
nascimento do
Minotauro
e do
destino de
Pasífae,
formam o
coro sacerdotes consagrados
a Zeus Ideu, vindos de seu
templo erigido em madeira de
um bosque de ciprestes.
Vestidos de branco, eles evitam
qualquer contato com partos e
óbitos, e se absteem de carne.
Conferem a iniciação – que
também significa purificação –
aos que comeram carne
vermelha. De acordo com o
texto, fazem-no por meio “dos
trovões do noturno Zagreus”,
que neste contexto só pode
corresponder a “Zeus
noturno”. Sabemos que, em
uma época bastante tardia, a
minha mãe, em Creta. Piratas me
arrebataram, mas consegui fugir
. Por tua
aparência deves ter sofrido muito, mas o que
os deuses nos dão nós temos de suportar,
porque eles são mais fortes do que nós. Nossa
mãe,
Metanira
, há de concordar que em nossa
casa darias uma boa ama, de nosso irmão
recém-nascido, disse Calídice. Quando
Deméter
atravessou o portal a casa
resplandeceu. Espantada Metanira pediu que
ocupasse o seu assento, mas a Deusa recusou.
Silenciosa, triste, com olhos baixos, a Deusa
sentou em um canto, consumida pela dor.
Jambe
, uma criada, com gestos e trejeitos
indecentes, fez a Deusa sorrir. Metanira
estendeu-lhe uma taça de vinho, mas
Deméter não aceitou, dizendo que lhe era
interdito. Mas pediu alguns ingredientes e
preparou sua própria bebida. Metanira lhe
disse: salve, Mulher! Do vulgo não creio que
tenhas nascido. Agora que aqui chegaste,
disporás de tudo que tenho. É uma honra que
cuides desse meu filho tardio.
Eu também te
saúdo, Mulher! De bênção te cumulem-te os
Deuses! Vou criar o teu filho, nenhum feitiço
ou erva ruim molestará o menino.
Mesmo
sendo uma velha, deu de mamar ao menino
.
Longe da mãe, à noite, junto ao seu peito,
Deméter lhe insuflava seu hálito e aquecia ao
fogo o menino, para torná-lo imortal. Mas, a
mãe descobriu e alarmada cessou o processo.
Deméter então disse: Ó
néscios e rudes
humanos, sempre incapazes de ver quando a
sorte vos traz o bem ou mal! Agora é
impossível que escape da morte, mas terá o
privilégio de ser um herói. Sou Deméter,
aquela que a máxima graça aos humanos e
imortais. Cuida para que um grande templo
seja construído, eu mesma fundarei os
Mistérios.
Nesse momento, a Deusa deixou o aspecto de
velha, irradiou-se a beleza, sentiu-se um
delicioso perfume e resplandeceu sua pele e
Dotio e começou a cortar as
árvores sagradas para usar a
madeira na construção de um
novo salão de banquetes.
Deméter assumiu a forma de
Nicipe, sacerdotisa do bosque, e
ordenou-lhe, polidamente, que
desistisse de seu propósito. Mas
só quando ele a ameaçou com o
machado é que ela se revelou em
todo seu esplendor e o condenou
ao sofrimento perpétuo da fome,
por mais que comesse. De volta a
sua casa, Erisícton pasou a
empanturrar-se o dia todo à custa
de seus pais, mas, quanto mais
comia, mais fome sentia e mais
magro ficava. Quando finalmente
os pais não puderam mais arcar
com as despesas de sua
89
iniciação na Cova de Ida se
celebrava com uma “pedra de
raio”. A captura de animal vivo
e a devoração de carne crua
são as fases preliminares de
uma iniciação cujo grau mais
alto teria sido alcançado pelos
sacerdotes de cândidas vestes
que não mais comiam carne.
As fases iniciais – captura e
devoração – devem ter
parecido abjetas e
extravagantes do ponto de
vista da religião de Zeus, mas é
improvável que esse rito de
mistério se tenha desenvolvido
em função delas. Em parte
alguma o culto de Zeus se acha
ligado a um requerimento
especial de purificação ou a
um imperativo de poupar
vidas. Deu-se a transformação
quando o próprio deus, cujo
exemplo induziu os homens a
“capturar presas vivas”, foi
reconhecido no animal
capturado que era comido vivo
cabelos. No seu templo Deméter se instalou.
Com a dor e a saudade de Perséfone,
transformou a terra em um deserto. Os
humanos teriam desaparecido, pela fome,
privando também os deuses de existência, por
falta de sacrifícios, amor e outras dádivas
humanas, se Zeus não interviesse: mandou
todos os deuses lhe rogarem, mas Deméter
permaneceu irredutível, dizendo que jamais
voltaria ao Olimpo. Zeus então enviou
Hermes
para persuadir, com suaves palavras a
Hades
, para que devolvesse Perséfone, que
continuava virgem. Hades sorriu ao ouvir as
ponderações e a habilidade de Hermes e disse
a Perséfone:
Não sou indigno de ti. Aqui tu
reinarias sobre os mortos e os vivos. Mas se
esse é o teu desejo e de todos os outros
deuses, volta Perséfone à tua mãe.
Feliz,
Perséfone, que sempre tinha sido prudente,
como uma mênade saltou e dançou de
alegria. Hades, porém, traiçoeiramente
aproveitou o momento e lhe deu um grão de
romã. Qualquer alimento comido em seu
reino traz de volta os poucos que saem. É por
isso que uma terça parte do ano Perséfone
tem de voltar para o centro de terra. Quando
Perséfone, conduzida por Hermes, chega ao
templo de Deméter, em Elêusis, a Terra volta
a ser fértil e por toda parte esse encontro
liberta a primavera.
Antes de tudo é preciso compreender a
mudança de máscaras dos personagens e
mesmo os seus múltiplos. Quando os mitos
se transportam de Creta para Elêusis, Ariadne,
a Senhora do Labirinto, vira Perséfone. Para
cretenses e eleusinos, o nome de ambas
significa a
claríssima
. O labirinto é o
intrincado dos mitos e também o submundo
dos mortos, que não tem caminho de
regresso, a não ser de um modo ou por uma
dança, com um fio espiral muito misterioso.
Hades é uma máscara do Minotauro, o deus-
touro Dionísio. Deméter é Reia, sua mãe, e
alimentação, ele passou a vagar
pelas ruas, alimentando-se de lixo.
Deméter sentindo-se vingada pela
morte de Jásio, concedeu-lhe o
dom real de jamais sofrer de dor
de barriga.
A história de Erisícton, filho de
Tríopas, é uma anedota de cunho
moral: entre os gregos, da mesma
maneira que entre os latinos e os
irlandeses primitivos, a derrubada
de um bosque sagrado era punida
com a pena capital. Mas uma
fome desesperadora e insaciável,
que os elisabetanos chamam de
“lobo”, não era um castigo
apropriado para a derrubada e
árvores sagradas, o nome de
Erisícton – filho também de
Cécrope, o patriarcalista e
90
e comido cru
o touro, de
acordo com o bem atestado
rito cretense. No Deus-Touro –
adorado como Dionísio na
Grécia, mas também como
Zeus em Creta - , reconheceu-
se o deus-caçador
Zagreus
.
Carl Kerényi.
Dioniso
A tradução latina estabelecida
para as palavras gregas
mysteria, myein, myesis,
como
initia, initiare, initiatio,
foi a
que conduziu a palavra e o
conceito de iniciação em nossa
linguagem. Seguindo esta
linha, temos que os mistérios
são cerimônias de iniciação,
também
Perséfone
,
sua filha.
Perséfone é
Sêmele, mãe de Dionísio. Zeus também é seu
filho, Dionísio, que teve com Perséfone ou
Sêmele, e rapta Europa metamorfoseado em
touro. Os personagens se confundem, mas
permanece o padrão da
paixão, morte e
ressurreição:
do Touro ou da Deusa.
E o que são os Mistérios de Elêusis?
De: Dionísio <dionísio@máscaras.com.br
Para: janaí[email protected]m.br;herm[email protected].br
Assunto: Os Mistérios de Elêusis
O nome
Elêusis
se refere ao mundo
subterrâneo de maneira favorável e pode ser
traduzido como o
lugar de feliz chegada
. Há
uma relação com
Elíseo, o reino dos bem-
aventurados
. O culto dos
Mistérios de Elêusis
apelava para uma consciência da morte que
propiciasse um bom viver. A linguagem grega
estabelece uma distinção entre
arreton,
o
segredo inefável, que é impossível expressar, e
aporreton
, o segredo submetido à lei do
silêncio, no caso de Elêusis a violação era
punida com a morte. O relato mítico do
Hino Homérico a Deméter
era conhecido por
todos e considerado uma das preparações para
os
Mistérios
. Deméter difere de Gaia, a Terra.
É também a Terra, porém não como
Mãe
Universal
, e sim como mãe da terra fértil, do
grão, da cevada e do trigo. Não como mãe de
todos os seres, deuses e humanos, senão da
semente e de uma filha misteriosa, que não se
nomeava facilmente na frente do profano. Na
unidade entre mãe e filha havia,
simultaneamente, uma dualidade em Elêusis:
Deméter representava o aspecto terreno e
Perséfone o espiritual e transcendente.
introdutor dos bolos de cevada,
significa “o que rasga a terra”, o
que sugere que seu verdadeiro
crime foi o de atrever-se a arar
sem o consentimento de Deméter.
Robert Graves.
Mitos Gregos
Com o propósito de identificar a
droga de
Elêusis
devemos primeiro
descobrir o tipo de significação
que recobre os mistérios. O mito
sagrado que narra os
acontecimentos concernentes a
fundação dos mistérios aparece
recolhido no chamado
Hino
Homérico a Demeter,
um poema
91
cultos
onde a admissão e a
participação dependem de
algum ritual pessoal, a ser
executado sobre o iniciante.
Esse caráter de exclusividade
é acompanhado pelo segredo
e, na maioria dos casos, por
um cenário noturno.
As iniciações constituem um
fenômeno muito conhecido,
frequentemente discutido pelos
antropólogos. Eles se
encontram numa ampla
variedade de contextos, desde
as mais primitivas tribos
australianas até as
universidades pelo mundo
afora. Existem muitas formas
diferentes de iniciação,
Aristóteles investigou o que sucedia na mente
dos participantes de uma tragédia e na
experiência oferecida pela aventura
anualmente repetida em Elêusis.
O expectador da
tragédia
não necessitava de
um estado de concentração alcançado
mediante preparativos rituais. Não precisava
jejuar, beber o
kykeon:
a bebida sagrada de
Deméter,
caminhar em procissão até o
santuário, nem ter a visão interior. Na
tragédia, o poeta, o coro e os atores criavam
uma visão para o expectador, que entrava no
sofrimento de outras pessoas, esquecia de si e
se purificava:
a kátharsis
. Nos
Mistérios
, a
purificação tinha que ser efetuada antes e
propiciava a visão, que era pessoal, embora na
presença da coletividade. Os mistérios não
eram teatro. Não havia atores representando
Deméter, Perséfone e Dionísio. O mito era
um roteiro, um instrumento de orientação e
estímulo, para a vivência. Os mistérios
ofereciam um único dom:
a iniciação
.
Os Mistérios de Elêusis eram abertos a todos,
com exceção dos assassinos, e estavam
divididos em duas partes:
os Mistérios
menores e os Mistérios maiores.
Os
mistérios menores
eram uma condição
prévia para participar dos
mistérios maiores
. O
primeiro estágio,
dos
mistérios menores,
era
o sacrifício de um porco jovem, animal
consagrado a Deméter e que simbolizava a
morte do iniciado. O
segundo estágio
era
uma cerimônia de purificação, na qual o
iniciado antes de ter os olhos vendados, via
uma forca acima da sua cabeça e já sem
enxergar sentia um fogo circular bem
próximo ao seu corpo. Outras provas para
enfrentar o medo da morte são aludidas, mas,
com o tempo, os responsáveis pelos cultos de
Elêusis incorporaram, aos mistérios menores,
numa espécie de apoteose, as festas que se
espalhavam por toda Grécia: as dionisíacas, os
anônimo que data do século VII
a.C, isto é, sete séculos depois da
provável primeira celebração da
cerimônia. Esta obra nos conta
como a deusa
Perséfone
foi
raptada e levada ao reino dos
mortos por seu futuro esposo
Hades
, enquanto cortava um
narkissos
singular de cem
cabeças, quando recolhia flores
em companhia das filhas de
Oceano, em um lugar chamado
Nisa. Todas as palavras gregas
que terminam em
–issos
provêem
da linguagem falada pelas culturas
agrícolas que habitavam no
território da Grécia antes da
92
incluindo os rit
os de
puberdade, a consagração de
sacerdotes ou reis e a
admissão em sociedades
secretas. De um ponto de vista
sociológico, a iniciação em
geral tem sido definida como
uma “teatralização da
condição social” ou uma
mudança ritual dessa
condição. Vistos desse ângulo,
os mistérios antigos ainda
parecem formar uma categoria
especial: não são ritos de
puberdade num nível tribal,
não constituem sociedades
secretas com fortes vínculos
mútuos, em larga escala a
admissão não depende do sexo
carnava
is. Elas
a
contecia
m
a cada ano,
no mês
de fevereiro, duravam três dias, com danças,
mascaradas, encenações do cortejo dionisíaco,
com seus atributos e personagens: mênades,
sátiros, Sileno, Pã, plantas e animais, carros
alegóricos, especialmente o barco que trouxe
Dionísio de Creta e os concursos para eleger
os melhores autores de tragédias e comédias.
A bebida era o vinho, dosado com água, feito
de várias plantas, algumas psicoativas, com
baixo teor alcoólico, em torno de 14%, que é
o limite da fermentação, pois o processo de
destilação do álcool só seria descoberto na
Idade Média.
Os
mistérios maiores
dependiam de
preparação, inclusive da participação prévia
nos mistérios menores. Começavam na
primavera, no dia quinze do mês de setembro,
e duravam nove dias, da lua em quarto
minguante até a escuridão total da lua nova:
Perséfone arrancada de Deméter, sua outra
metade, raptada por Hades, o Dionísio
subterrâneo, e levada para o labirinto: o
centro da Terra, a lua nova. Na composição,
havia um segundo elemento que tinha a ver
com a vegetação e um terceiro, que era a
visão beatífica: a
Noite do Mistério
. Os
mistérios maiores eram realizados
exclusivamente em torno de Elêusis.
Nas vésperas do início, os objetos sagrados
eram levados, em procissão, de Elêusis até
Atenas. No
primeiro dia
havia uma
convocação e preparação dos iniciados; no
s
egundo
, a purificação com banhos de mar e
sacrifícios; no
terceiro dia
, um sacrifício
oficial, celebrado em nome da cidade de
Atenas; no
quarto dia
, outra purificação, em
honra ao deus da cura:
Asclépio
; no
quinto
dia
uma procissão pela Via Sacra, de Atenas
até Elêusis, com objetos sagrados, tochas de
fogo, plantas e animais, com a multidão
gritando honras a
Évio
, outro nome de
Dionísio:
Evoé, evoé, evoé
!
chegada dos povoadores indo
-
europeus. Os próprios gregos, sem
dúvida, acreditavam que
narkissos
levava esse nome por causa de
suas propriedades narcóticas,
obviamente porque tal era o
simbolismo essencial da flor de
Perséfone. O rapto marital, ou
seja o sequestro da donzela,
enquanto recolhia flores é,
ademais, um tema frequente nos
mitos gregos, e Platão anota uma
versão racionalizada de tais
histórias em que a companheira
da moça sequestrada recebe o
nome de
Pharmaceia
ou segundo
o significado da palavra o “uso de
93
ou da idade, e não há nen
huma
mudança visível na condição
externa dos que passam por
tais iniciações. Da perspectiva
do participante, a mudança de
condição afeta sua relação
com a divindade; o agnóstico,
de um ponto de vista exterior,
tem de reconhecer uma
mudança pessoal, e não tanto
social, um novo estado de
espírito através da experiência
do sagrado. A experiência se
mantém fluida; em
contraposição às iniciações
típicas que promovem uma
mudança irrevogável, os
mistérios antigos, ou pelo
menos partes de seus rituais,
Na fronteira entre Atenas e Elêusis, aparecia
uma série de figuras mascaradas, que
parodiavam a procissão, zombando do velho
tempo e louvando o novo. Abriam-se as
portas dos templos de
Posídon e Ártemis
, que
ficavam em frente ao santuário de Elêusis,
ainda fechado, e cantavam e dançavam até o
amanhecer; o
sexto dia
era de descanso,
jejum, purificação e sacrifícios, lembrando o
percurso da própria Deméter e a esterilidade
da Terra. No fim do dia rompia-se o jejum,
comia-se e bebia-se a mesma comida da
deusa, quando chegara de Creta em busca de
Perséfone. As portas do santuário de Deméter
eram abertas e todos entravam para celebrar
em um pátio enorme, chamado
Telesterion,
palavra
derivada de
teleo: iniciar
. Daqui em
diante, tudo é nebuloso. O que sabemos do
segredo é por via indireta: juntando peças e
épocas soltas em um quebra-cabeça de textos
e fontes diversas; de autores que comentaram
confidências de outros; de pessoas que
tiveram a loucura de revelar algo, já que o
preço era a pena de morte; de rituais
semelhantes, em outras partes do mundo,
como os de
Ísis e Osíris
, no Egito, e mesmo
depois, nos templos de Ísis na Grécia.
Para os três últimos dias, se supõe três etapas:
drómena
, o feito,
a paixão
;
logómena
, o dito,
a morte
e
deiknýmena,
o mostrado,
a
ressurreição
. Os iniciados repetiam o percurso
do mito: cada iniciado, em jejum, bebia, a
cada dia, doses crescentes da cerveja sagrada
kikeon:
uma mistura de plantas que incluía a
cevada, o trigo e uma variedade de cogumelo,
que crescia junto com as outras duas,
contendo
psilocibina
ou outra substância
similar.
No
sétimo dia
, cada iniciado bebia a primeira
dose do
kikeon,
descia para o subterrâneo do
Telesterion
e vivia a dor de todas as perdas;
no
oitavo dia,
depois de muito sofrimento,
concreto e imaginário, o iniciado chegava ao
drogas
.
O mito específico a que
Platão se refere se ocupa em
traçar a origem do sacerdócio em
Elêusis. Não cabe dúvidas de que
o rapto de Perséfone foi
provocado por drogas. Ademais,
os vestígios arqueológicos do
período micênico-minoano da
cultura grega descrevem com
frequência experiências
visionárias ocorridas a mulheres
ocupadas em ritos em que se
utilizam flores. As sacerdotisas
ou mesmo as deusas aparecem
como ídolos decorados com
motivos vegetais, acompanhados
por sua consorte serpente ou
94
podiam se re
petir.
Uma família terminológica que
se sobrepõe largamente a
mysteria
se compõe de
telein:
realizar, celebrar, iniciar;
telete:
festa, ritual, iniciação;
telestes:
sacerdotes da
iniciação;
telesterion:
salão da
iniciação. É evidente que essa
família de palavras tem um
significado muito mais
abrangente; mas não são
suficientes para identificar os
mistérios propriamente ditos,
podendo ser utilizada para
qualquer tipo de culto ou
ritual.
Walter Burkert
Antigos Cultos de Mistério
ponto de preferir morrer
e se entregava
completamente; no
nono dia
, subia à
superfície, era acomodado em um lugar
seguro, aquecido, confortável e com uma luz
suave. Bebia a maior dose do
kikeon
e recebia
a visão da Deusa e do Touro.
Cada um recebia a iluminação de acordo com
a sua singularidade. Todos sabiam dos limites
da linguagem, mas tentavam mesmo assim
dizer algo:
Acerquei-me do limiar da morte, sentei-me à
soleira de Perséfone, percorri todos os
elementos e voltei, vi o sol à meia noite,
cintilando em alva luz, aproximei-me dos
deuses dos mundos superior e inferior e
adorei-os de perto.
Três vezes benditos são aqueles mortais que
viram esses ritos e penetraram assim no
Hades, pois para eles vida! Para os
outros tudo é pesar.
Comecei a me enfiar para dentro de mim
mesmo, a mergulhar em espirais através de
minha própria carne. Eu turbilhonava e me
contorcia e era uma serpente e tentava evitar
os gritos de glória e terror de tudo aquilo.
Então, o olho apareceu, um olho imenso e
brilhante, suspenso no espaço. O olho pulsava
e emitia raios de uma luz abrasadora e
docemente sonora, penetrando meu corpo.
Mas não era mais meu corpo. De súbito
existia o grande olho e vi tudo o que para
ser visto. Era êxtase e era horror e vi tudo
aquilo e compreendi tudo aquilo.
coroadas com um diadema de
cápsulas de ópio.
Mykenai,
a
palavra grega para a cidade
Micenas, de que se dizia que
havia sido fundada quando uma
mulher perdeu a cabeça por um
homem de uma nova dinastia, que
havia arrancado um fungo. A
etimologia da
Mykenai
,
reconhecida na antiguidade
porém repetidamente rechaçada
pelos estudiosos modernos, deriva
corretamente de
Mykene,
a
desposada do
mykes
, ou seja o
cogumelo.
Karl A. P. Ruck
El Camino a Eleusis
95
Como mostra a história
contada por Heródoto, ainda
que os gregos nunca tivessem
dito explicitamente, os
mistérios eram de importância
fundamental para a
comunidade, para a existência
em comum. Porém a ameaça da
morte se dirigia a todos os
humanos e cada um
pessoalmente. A vida havia
sido digna de ser vivida sem a
esperança inspirada pelos
mistérios de Elêusis? Frente à
morte que tudo devora, os
mistérios proporcionavam
confiança tanto à comunidade
como ao indivíduo. Os
mistérios eleusinos
proporcionaram essa
confiança durante toda sua
existência, que provavelmente
abarcou um período de dois
mil anos.
O final do santuário de Elêusis
nos é referido no V d. C por
Eunapio, historiador e
biógrafo dos últimos filósofos
e oradores gregos, na forma de
profecia que se cumpriu
quando Alarico, rei dos
visigodos, invadiu a Grécia no
De:
Janaína <
janaína
@estrela.com.br
Para: dionísio@máscaras.com.br;
Assunto: A Queda da Deusa e o Cristianismo
Elêusis foi destruída no século 4 d.C. por
visigodos cristianizados que incendiaram o
templo de Deméter e massacraram seus
adeptos. Os cultos e percursos da Deusa e do
Touro retornaram para uma longa
obscuridade nas profundezas da Terra e da
memória, quase sem mais esperança de outras
primaveras. Pelo menos no Velho Mundo, a
experiência extática direta da unidade cósmica
estava bloqueada. A comunhão com o corpo
da Deusa, intermediada e facilitada pelas
substâncias psicoativas, a memória vegetal de
conexão planetária, começava a ser esquecida.
O
homo obliviosus,
o esquecidiço, ia seguir
sua saga, sem saber qual o seu destino.
É importante recordar que mesmo antes da
queda de Elêusis, a Grécia homérica e arcaica
situa-se precisamente naquele tempo axial da
história em que surgem
Confúcio e Lao Tsé
na China,
Buda
na Índia,
Zoroastr
o na Pérsia,
os
Profetas
em Israel e os
Filósofos
na Grécia.
Somos humanos brincando de deuses, ou
deuses brincando de gente? É nessa época que
se começa a negar a veracidade do mito,
através da racionalidade, da experiência
iluminada pela razão, pelo conceito, e
também tem início o descrédito dos deuses e
de outras entidades.
O pensamento científico
trabalha com os conceitos e o pensamento
mítico com os significados
.
O conceito opera
a abertura do conjunto e o significado realiza
sua reorganização.
É o que nos diz Lévi-
Strauss. É nesse momento que o mito se
transforma em história, escrita e, depois, em
ciência. A grande originalidade e novidade
que surge no Mundo Antigo, com a Grécia
Clássica, esboçado em Homero, é a fusão
de todos os mitos no mito do herói mortal,
no mito do Humano. Os gregos descobriram
Eram as minas ásperas das almas.
Como veios de prata caminhavam
silentes pela treva. Das raízes
brotava o sangue que parece aos
vivos, na treva, duro como
pórfiro. Depois nada mais foi
vermelho.
Somente rochas, bosques
imateriais. Pontes sobre o vazio e
o lago imenso, cinza, cego, que
sobre o fundo jaz, distante, como
um céu de chuva sobre uma
paisagem. Por entre os prados,
suave, em plena calma, deitado,
como longa veia branca, via-se o
risco pálido da estrada.
Desta única via vinham eles.
À frente o homem com o manto
azul, esguio, olhar em alvo, mudo,
inquieto. Sem mastigar, seu passo
devorava a estrada em grandes
tragos; suas mãos pendiam rígidas,
graves, das dobras das vestes e
não sabiam mais da leve lira que
brotava da ilharga como um feixe
de rosas dentre ramos de oliveira.
Seus sentidos estavam em
discórdia:o olhar corria adiante
como um cão, voltava presto, e
longo andava longe, parando,
alerta, na primeira curva, mas o
96
ano 396 d.C. Eunápio foi
iniciado nos mistérios pelo
último hierofante legítimo de
Elêusis, um fragmento do seu
relato diz:
Alarico com seus
bárbaros avançou pela
passagem das Termópilas,
como se corresse em um
hipódromo. As portas da
Grécia haviam sido abertas
pela descrença daqueles com
suas roupas escuras.
Os
homens de roupas escuras que
entraram com Alarico eram
monges.
Karl Kerényi
Eleusis
Os profetas judeus ( séculos III
e Ia.C.) trarão o abandono e a
culpabilidade ao que será o
cristianismo; mas este os
universalizará. O judaísmo,
através de Cristo, traz portanto
um “arquétipo” da relação
homem-Deus em que se
cristaliza a culpabilidade, ela
própria momento fundamental
do progresso da consciência
de si. O cristianismo centrará
toda esta culpabilidade no
problema da morte e com isto
ele a resgatará com sua
salvação.
A morte não é mais
que os deuses são
apenas
expressões das
nossas potências, fragilidades, desejos, sonhos,
fantasias e delírios. A tragédia e a comédia
estão nesse momento em que tomamos o
destino em nossas próprias mãos.
Mas o herói humano quer mais do que a
imortalidade da história, quer a imortalidade
dos deuses, da alma. Esse é o momento em
que a religião judaica se manifesta como
religião de salvação, na periferia do mundo
romano, e encontra a salvação pagã dos
mistérios. É o momento universal do
judaísmo e do paganismo, através do
cristianismo. Mas o paganismo estava
domesticado pelo
orfismo
, uma seita
filosófico-religiosa bastante difundida na
Grécia, a partir do século VI a.C e que se
julgava fundada por
Orfeu
. Essa crença passou
por várias escolas filosóficas: as de Pitágoras,
Empédocles e Platão. Orfeu, o ancestral da
poesia e da música, que com sua lira e canto,
amansava feras, a fúria das mênades
dionisíacas, encantava e transportava árvores
dos seus lugares, levitava pedras e pôde
comover o próprio Hades e trazer de volta à
vida sua amada Eurídice. Tendo feito sua
iniciação no Egito, nos
mistérios de Ísis e
Osíris
,
Orfeu
ou
Arpha
, palavra fenícia que
significa:
aquele que cura pela luz
, era filho de
Apolo e de uma sacerdotisa do deus. Dos
cultos de
Deméter e Perséfone
restavam
pouca coisa:
Perséfone
ou
Ariadne
, agora se
chamava
Eurídice
e estava definitivamente
encerrada no mundo subterrâneo, morta para
sempre. Orfeu reforma o culto de Apolo em
Delfos, traz o Zeus patriarcal de volta, e
também como sacerdote de Dionísio, não
mais terrestre e subterrâneo, porém celeste e
transcendental, espiritualiza a força selvagem
de Dionísio e de seu culto original. Em seu
canto diz
Orfeu
:
Da exaltação do corpo de Dionísio saíram as
almas dos homens, que sobem para o céu.
ouvido estacava como um faro.
Às vezes parecia-lhe sentir a lenta
caminhada dos dois outros que o
acompanhavam pela mesma senda.
Mas só restava o eco dos seus
passos a subir e do vento no seu
manto. A si mesmo dizia que eles
vinham. Gritava, ouvindo a voz
esmorecer. Eles vinham, os dois,
vinham atrás, em tardo caminhar.
Se ele pudesse voltar-se uma só
vez, se contemplá-los não fosse o
fim de todo empreendimento
nunca antes intentado, então
veria as duas sombras a seguir
silentes: o deus das longas rotas e
mensagens, o capacete sobre os
olhos claros, o fino caduceu
diante do corpo, um palpitar de
asas junto aos pés e, confiada à
mão esquerda:
ela.
A mais amada, essa por quem a
lira chorou mais do que o chorar
das carpideiras, por quem se
ergueu um mundo de chorar, um
mundo com florestas e com vales,
estradas, povos, campos, rios,
feras; um mundo-pranto tendo
como o outro um sol e um céu
calado, com seus astros, um céu-
pranto de estrelas desconformes
– a mais amada.
Ia guiada pela mão do deus, o
andar tolhido pelas longas vestes,
incerto, tímido, sem pressa. Ia
dentro de si, como esperança, e
não pensava no homem que ia à
frente, nem no caminho que subia
97
que o castigo do pecado
, isto
é, do ato sexual.
Esta ideia estava contida no
Gênesis, com a fábula do
pecado original, mas ficara
sempre à margem, inexplorada,
abandonada, recalcada. O
cristianismo, e sobretudo o
cristianismo de Paulo( o
aguilhão da morte é o pecado, I
Cor
., XV, 56) aprofunda
incontestavelmente a
culpabilidade edipiana pondo-
lhe a nu a raiz sexual. E com
isto traz, ao mesmo tempo, a
explicação mais profunda da
morte, já que a necessidade
interna da morte, na história
das espécies vivas, aparece
com a sexualidade. Uma vez
mais uma ideologia regressiva
permite, do outro lado do
conteúdo pré-histórico das
crenças, do outro lado até do
conteúdo animal, recuperar um
segredo biológico enterrado
na profundidade da espécie! E
nisso reside uma das grandes
verdades antropológicas do
cristianismo: seu ódio
englobando pecado e
sexualidade é o ódio da morte!
Quando as sombras ating
irem
o flamejante
coração do Deus, elas se iluminarão como
chamas e Dionísio inteiro ressuscitará, mais
vivo do que nunca, nas alturas do Empíreo.
Eis o mistério da morte de Dionísio. Agora
ouve o da sua ressurreição: os homens são a
carne e o sangue de Dionísio. Os homens
desgraçados são os seus membros esparsos,
que se buscam, torcendo-se no ciúme e no
ódio, na dor e no amor, através de milhares
de existências. O calor ígneo da terra, o
abismo das forças inferiores, atrai-os sempre,
cada vez mais, para o bárbaro, perdendo-os.
Mas nós, os iniciados, que sabemos o que
existe no alto e no baixo, nós que somos os
salvadores das almas, os Hermes dos homens,
os atraímos como ímãs para nós, que somos
atraídos por Dionísio. Assim, por meio de
celestes encantamentos, nós reconstituímos o
corpo vivo da divindade. Nós fazemos chorar
o céu e alegrar-se a terra. Trazemos no
coração, como jóias preciosas, as lágrimas de
todos os seres para transformá-las em
sorrisos. Dionísio morre em nós. Dionísio
renasce em nós. Evoé, evoé, evoé!
O Cristianismo é herdeiro direto desse
paganismo órfico e se desenvolve durante a
pax
romana e a prosperidade do Império.
Expande-se primeiro nas cidades de negócios
cosmopolitas do Oriente: Antióquia, Chipre,
Corinto, Éfeso, profundamente penetradas
pelos mistérios helenísticos de salvação. O
Cristianismo trouxe, por um lado, às classes
pobres, a consagração da aspiração delas à
individualidade, com uma imortalidade que
estabelece a verdadeira democracia nos céus, e
por outro lado, aos ricos, o apaziguamento
do medo da morte. Ele vence sete séculos de
argumentações racionais e de um
pensamento que se afastou da religião e de
muitas superstições. Muito da sabedoria
antiga vai se perder diante da evangelização
cristã. O triunfo total do cristianismo
coincide com a decadência do Império
aos vivos. Ia dentro de si. E o dom
da morte dava-lhe plenitude.
Como um fruto em doçura e
escuridão, estava plena em sua
grande morte, tão nova que não
tinha entendimento.
Entrara em uma nova
adolescência inviolada. Seu sexo
se fechava como flor em botão no
entardecer e suas mãos estavam
tão distantes de enlaçar outro ser
que mesmo o toque levíssimo do
guia, o deus ligeiro, a magoava por
nímia intimidade.
Não era mais a jovem
resplandecente que ecoava nos
cantos do poeta, nem o aroma do
leito do casal nem ilha e
propriedade de um só homem.
Estava solta como os seus
cabelos, liberta como a chuva
quando cai, exposta como farta
provisão.
Agora era raiz.
E quando enfim o deus a deteve
e, com voz cheia de dor, disse as
palavras: “Ele se voltou”. – ela não
compreendeu e disse: “Quem?”
Mas pouco além, sombrio, frente
à clara saída, se postava alguém, o
rosto já não reconhecível. Esse
viu em meio ao risco branco do
caminho o deus das rotas, com
olhar tristonho, volver-se, mudo, e
acompanhar o vulto que
retornava pela mesma via, o andar
tolhido pelas longas vestes,
incerto, tímido, sem pressa.
98
A culpabilidade cristã
transforma a Deusa-Mãe ou a
Grande Prostituta em Virgem
imaculada, o filho salvador em
deus assexuado, e o poder
gerador do Pai em verbo
espiritual. A santíssima
Trindade virginal resgatará
toda a sexualidade do mundo.
Edgar Morin.
O Homem e a Morte.
O poeta-profeta inglês do
período romântico William
Blake, percebe a questão com
clareza definitiva, quando,
ironicamente, renomeia Javé:
“Nobodaddy”, pai de ninguém.
Sem dúvida, não devemos
indagar do dogma trinitário
quem é, exatamente, a Primeira
Pessoa, mesmo porque o
objetivo misterioso e principal
da Trindade é justificar a
substituição do Pai pelo Filho,
da Antiga Aliança pelo
Testamento Tardio, do povo
judeu pelos gentios. Jesus
Cristo é um novo Deus,
Romano: em
313, Constantino
, que
astutamente reconheceu em Cristo a
continuidade da tradição pagã, lhe concede
liberdade de culto; em 392, o paganismo é
proibido; e em 529, um edito de Justiniano
pune com a morte tudo aquilo que não é
cristão. Os profetas judeus dos séculos III e I
a.C, trarão a ideia de abandono e de culpa ao
que será o cristianismo, mas este os
universaliza. O cristianismo através de Jesus, o
segundo Adão, restaurador da vida eterna,
traz o arquétipo do homem-deus como uma
relação de culpa, ela própria fundamental para
a criação cristã da consciência individual. A
morte não é mais do que o castigo do
pecado: o ato sexual, a perpetuação da
espécie.
A Deusa Mãe é virgem, o Filho
assexuado, o Pai verbo sem carne
. O celibato,
a perfeição de um Deus assexuado é levada tão
ao pé da letra, que o bispo de Alexandria,
Orígenes, se castra para melhor servir. A
redenção se dará pelo sofrimento, que será
recompensado depois da morte. Nunca a
obsessão e o horror da morte haviam
penetrado tão fundo no próprio âmago da
vida, no âmago de
Eros
e da consciência. Mas
o cristianismo se afasta muito do judaísmo.
Javé não é mais o deus único, agora a
divindade se divide em três: o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. Essa trindade é uma
reprodução do
mistério órfico
de Zeus, que
na forma de uma serpente gera em sua
própria filha Perséfone, o filho encarnado
Dionísio. A antiga aliança com Javé está
rompida. Jesus Cristo é um novo deus,
segundo o modelo grego de Zeus, que usurpa
o lugar de Crono, o deus Pai. Javé,
semelhante a Crono, recolheu-se no alto ou
no que restou do judaísmo, até poder
retornar, na condição de Alá do Islã. No
século IV d.C, Atanásio, bispo de Alexandria,
convenceu a maioria dos seus colegas que
Jesus Cristo era Deus. Mas os judeus-cristãos,
liderados por Tiago, irmão de Jesus, insistiam
que ele era um homem que tinha atingido a
Rilke
Orfeu. Eurídice. Hermes.
Resta-nos uma passagem notável
de Proclus, responsável pela
Academia no século V d.C.
Elêusis tinha sido destruída cerca
de quinze anos antes do
nascimento de Proclus, e em sua
época o sacrifício pagão era
proibido por lei; no entanto, ele
conheceu a filha de Nestor, o
hierofante eleusino, e admirava-a
como guardiã das mais sagradas
tradições. Assim, o que ele
escreve sobre os mistérios deve
ser levado a sério, como relato de
uma tradição autêntica. Proclus
escreve o seguinte a respeito:
Eles provocam a simpatia das
almas com os rituais de uma
maneira que para nós é
inintelegível, e divina, de modo
que alguns iniciantes são tomados
de pânico, enchendo-se de temor
divino; outros se identificam com
99
segudno o modelo gr
eco
-
romanao de Zeus-Júpiter, que
usurpa o seu lugar ao pai,
Crono-Saturno. Ao estabelecer
o cristianismo como religião
da autoridade romana, o
imperador Constantino,
astutamente, reconheceu em
Jesus Cristo a continuidade da
tradição pagã. Javé, à
semelhança de um velho
Saturno, recolheu-se ao que
restava do judaísmo, até poder
retornar, na condição de Alá
do islã.
O monoteísmo pode até não
ser um avanço em relação ao
politeísmo, mas o cristianismo
jamais admitiria o recurso
pragmático representado pelos
três Deuses, em lugar de um.
Conforme meu entendimento
da Transfiguração, em que
Jesus aparece junto a Moisés e
Elias, tal visão justifica a
hipótese gnóstica e sufi de que
Jesus, primeiro, fez-se “ o
plenitude terrestre, mas Atanásio venceu o
embate dentro da ala mais poderosa do
Cristianismo. Do Jesus gnóstico, de Valentino
de Alexandria, se dizia que primeiro
ressuscitou
, depois morreu. Isso sugere que
despertamos para a verdadeira vida através
de uma transformação mística que em muito
precede nossa morte. É o percurso da matriz
iniciática:
paixão, morte e ressurreição.
Qual
será a culpa humana que deve ser expiada pela
tortura que Javé impõe a Jesus e pela
crucificação de milhares de outros judeus, nas
mãos das forças romanas de ocupação? As
justificativas de Paulo e Agostinho: o pecado
original e a queda de Adão são ridículas e
cruéis. Além do mais são ressonâncias da
Grécia, com o mito de Prometeu,
atormentado por um Zeus sádico. Em quase
todas as religiões a autonomia de pensamento
é um interdito, a busca do conhecimento é
confundido com o satânico. A vida existe
porque conhece, aprende. Bloquear o saber é
negar a vida.
Em Gênesis, 3: A serpente era o mais astuto
de todos os animais que Javé tinha feito. Ela
disse a mulher: então Javé disse que vós não
podeis comer de todas as árvores do jardim? A
mulher respondeu: nós podemos comer
todos os frutos, mas do fruto da árvore que
está no meio do jardim, Javé disse não
comereis, nele não tocareis, sob pena de
morte. A serpente disse então: não morrereis!
Javé sabe que no dia em que dele comerdes,
vossos olhos se abrirão e vós sereis como
deuses, versados no bem e no mal. Eva e
Adão comeram. Depois disse Javé: se o
homem é como um de nós, versado no
bem e no mal, que agora ele não estenda a
mão e colha também da árvore da vida, e
coma e viva para sempre!
O fruto proibido ser representado por uma
maçã não é gratuito: a fruta é vermelha como
o sangue, arredondada como uma bunda.
os símbolos sagrados, abandonam
suas identidades, ficam à vontade
com os deuses e vivem a
experiência da possessão divina.
O próprio fato de que as reações
aqui descritas não são idênticas,
mas variam entre a perplexidade e
a exaltação, indica que não é uma
livre especulação baseada em
postulados, mas a descrição de
algo que foi observado:
sympatheia
das almas e rituais,
alguma forma de ressonância que
não ocorre em todos os casos,
mas que, uma vez ali, abalará
profundamente ou mesmo
estilhaçará as imagens da
realidade. Ignorando o ritual e
incapazes de reproduzi-lo, não
temos como recriar essa
experiência, mas podemos
reconhecer que ela estava ali.
Havia uma possibilidade de “se
reunir ao
thiasos
com a alma”,
thiaseuesthai psychan,
e isso
100
Cristo Anjo” e, então, somente
após
aquela
ressurreição, teria
voltado à condição humana e,
presumivelmente, morrido na
Cruz. Arrisco dizer
“presumivelmente” porque
gnósticos e mulçumanos
insistem que Simão, o Cirineu,
que carregou a Cruz, foi
crucificado em lugar de Jesus.
João Batista foi mestre de
Jesus(por mais que tal noção
constranja os Evangelhos), e,
tanto quanto Elias, o Batista
parece conhecer os mistérios
de Mekaba, a carruagem de
Javé, segundo descrição de
Eqequiel. Javé é um
admoestador, e não um mestre:
este último papel ele confere a
Moisés e Isaías, a Hillel e Jesus,
a Akiba e Maomé. O
Nabucodonosor de
Kierkegaard é o epítome da
percepção do ironista
dinamarquês no que toca à
imensa dificuldade de se
tornar
Representa o desejo e a vida. Quando cortada
no sentido longitudinal revela uma estrela de
cinco pontas na estrutura de suas sementes,
herdada do padrão original da flor. Essa
estrutura lembra o corpo humano: a cabeça,
as pernas e os braços abertos. E também a
cruz, que tem o cinco na interseção dos
braços. É um símbolo da quintessência do
saber e da necessidade de escolher. O cinco é a
soma do primeiro número par e do primeiro
número ímpar. Está no meio dos nove
primeiros números. É um símbolo de união,
o casamento do princípio celeste,
representado pelo número três, com o
princípio terrestre da mãe e seu filho,
representado pelo número dois. Esse
pentagrama era o emblema sagrado da
irmandade pitagórica.
Se Eva e Adão não tivessem ouvido as
ponderações da Serpente, ainda estaríamos em
um estágio de indiferenciação na unidade do
paraíso infantil uterino, sem a consciência
humana. A transgressão é parte essencial da
criatividade. Adão e Eva foram amaldiçoados
com a vida: a procriação com dor, a morte, a
velhice e o trabalho estafante. A negação do
feminino, da mulher, é à base da maioria das
religiões, institucionalizadas ou não. O amor
às mulheres é claro em Jesus. A mensagem de
compaixão de Jesus foi amaldiçoada pela
intolerância, repressão, tortura e morte.
Mas, ao contrário do judaísmo e do
islamismo, que permaneceram monoteístas, o
cristianismo, muito influenciado pelo
paganismo grego, é politeísta desde o início.
O culto de Maria se expande e as antigas
divindades pagãs voltam na forma de santos,
demônios e anjos. O cristianismo atualmente
adora no mínimo quatro deuses: Javé, Jesus,
o Espírito Santo e Maria. Historicamente, a
Igreja reputou o islamismo como uma heresia
significava felicidade.
Os mistérios eram frágeis demais
para sobreviver como “religiões”
autônomas. Eram opções dentro
da multiplicidade do politeísmo
pagão, e desapareceram com ele.
Permanece um estranho fascínio,
mesmo nos vislumbres e
suposições frente aos fragmentos
evocativos: a escuridão e a luz, a
agonia e o êxtase, o vinho, a
espiga do cereal. Os l
ogoi
se
mantiveram experimentais, sem
atingir o nível de um sistema ou
credo. Bastava saber que existiam
portas para um segredo que
poderia revelar aos que
empreendessem uma busca
sincera. Isso significava que havia
uma possibilidade de sair das vias
áridas e fechadas de uma
existência previsível. Tais
esperanças eram tentativas de
criar um contexto de sentido num
mundo banal, deprimente e muitas
101
cristão
,
quando se vive na
cristandade. O órfão Javé é
nosso eterno dilema: quem foi
o mestre
dele
? Como podemos
ter certeza de qualquer fato
acerca de Javé?
Harold Bloom
Jesus e Javé
A distinção entre vida e não-
vida começa a desaparecer
quando observamos nosso
próprio corpo e os corpos das
outras criaturas. Ossos,
cabelos, estruturas e
proporções podem ser
descritos como inorgânicos.
cristã, assim como os rabinos do século II
rejeitavam o cristianismo como uma heresia
judaica e o islã, desde os primórdios,
considera Jesus um profeta e o cristianismo
politeísta.
De: Hermes< herme[email protected]m.br
Para: janína@estrela.com.br; dionísio@máscaras.com.br
Assunto: Paixão, morte e ressurreição
um episódio bíblico, da luta entre o
monoteísmo e o politeísmo, em que
podemos ver a tentativa de destruir o culto
orgiástico do Touro. Está no Antigo
Testamento, no livro do Êxodo:
Vendo que Moisés tardava a descer da
montanha, o povo agrupou-se em volta de
Aarão e disse-lhe: vamos, faze-nos um deus
que marche à nossa frente, porque esse
Moisés que nos tirou do Egito, não sabemos
o que é feito dele. Aarão respondeu-lhes: tirai
os brincos de ouro que estão com os vossos e
trazei-me. Aarão pôs o ouro em um molde e
fez um bezerro de ouro e disse: eis, ó Israel, o
teu Deus, Javé, que te tirou do Egito. No dia
seguinte, pela manhã, ofereceram holocaustos
e sacrifícios pacíficos. O povo assentou-se
para comer e beber, e depois dançou e se
divertiu. Javé disse a Moisés: vai, desce,
porque o povo corrompeu-se, o teu povo
que tiraste do Egito. Vejo que este povo tem
cabeça dura. Deixa, pois, que se acenda minha
cólera contra eles e os reduzirei a nada.
Moisés tentou aplacar o Senhor seu Deus: por
que, Senhor, se inflamaria a vossa ira contra o
vosso povo, que tiraste do Egito, com vosso
poder e à força da vossa mão? Não é bom que
digam os egípcios: com um mau desígnio os
levou, para os matar nas montanhas e os
suprimir da face da terra! Aplaque-se vosso
vezes absurdo, proporcionando a
experiência de um grandioso
ritmo ao qual as ressonâncias da
psique individual poderiam se
integrar, por meio de um
assombroso fenômeno de
sympatheia.
Wakter Burket.
Antigos Cultos de Mistério
A descoberta da Creta minóica,
uma antiga cultura
tecnologicamente avançada e
socialmente complexa, caiu como
uma bomba. Na descrição do
arqueólogo Nicolas Platon, que
em 1980 já escavara a ilha durante
mais de cinqûenta anos, “os
arqueólogos estavam pasmos. Não
compreendiam como a existência
102
Segundo Sahtouris, noventa e
cinco por cento de uma
sequóia canadense ou pau-
brasil são na verdade madeira
morta, mas a árvore vive. Ela
escreve que no decorrer de um
longo tempo a rocha se
transforma em criaturas vivas
que depois finalmente voltam a
se transformar em rocha.
Quase todas as rochas
existentes na superfície do
planeta são feitas de átomos
que um dia pertenceram a
furor, e abandonai vossa decisão de fazer mal
ao vosso povo. Lembrai-vos de Abraão, de
Isaac e de Israel, vossos servos, aos quais
jurastes, por vós mesmo, de tornar sua
posteridade tão numerosa como as estrelas do
céu e de dar aos seus descendentes esta terra
de que falastes, como uma herança eterna. E
o Senhor seu Deus se arrependeu das ameaças
que tinha proferido contra o seu povo.
Moisés desceu do monte Sinai trazendo nas
mãos as duas tábuas da Lei, mas ao ver o povo
que cantava e dançava em torno do Touro,
foi tomado pela ira divina que antes aplacara:
quebrou as tábuas, tomou deles o bezerro de
ouro, queimou-o e esmagou-o até reduzi-lo
a , que lançou na água e fez o povo bebê-
la. Mas quando desceu do monte Sinai Moisés
trazia na cabeça os dois chifres do touro,
como o representavam os artistas medievais e
depois Michelangelo. Os chifres do touro são
a lua crescente e minguante. Os
chifres dos
bovídeos o o emblema da Grande Deusa
Mãe divina, desde as culturas neolíticas. Mas
são também símbolos solares: chifre, poder e
força, cuja palavra
queren,
em hebraico, tem
essas três acepções. É uma potência fálica,
agressiva, patriarcal. Os chifres na cabeça é o
elmo de muitos xamãs e foi usado também
pelo discípulo de Aristóteles, Alexandre o
Grande, que se apropriou do emblema de
Amon,
deus egípcio, representado pelo
carneiro.
No início, uma conjunção entre o Egito e
Israel, os poderes visionários de José ajudam o
Egito durante os anos de fome, e o Faraó
boas vindas a toda família de José. Mas a
conjunção rapidamente termina. A opressão
de quatro séculos introduz a disjunção
espetacular do
Êxodo
, e a partida do Egito em
busca da
Terra Prometida
. A população
israelita, escrava no Egito, se multiplica de tal
maneira que o Faraó a considera uma ameaça.
Ordena que as parteiras dos hebreus matem
de uma civilização tão avançada
tinha passado desapercebida até
então”.
“Desde o início”, escreve Platon,
que por muitos anos foi
superintendente de Antiguidades
em Creta, “foram feitas
descobertas fantásticas”. À
medida que o trabalho avançava,
“vieram à luz vastos palácios de
múltiplos andares, vilas, sedes de
fazenda, bairros de cidades
populosas e bem organizadas,
instalações portuárias, redes de
estradas cruzando a ilha de ponta
a ponta, lugares de culto
organizados e cemitérios
planejados”. Com a continuação
103
criaturas vivas
. E esses
átomos vieram originalmente
das pedras de períodos
anteriores. Grande parte do pó
das nossas casas vem da pele
que se soltou de nossos
corpos no decorrer do dia. E a
própria Terra e tudo que nela
existe provêm da luz estelar,
pois a poeira que
originalmente formou os
planetas começou como restos
de estrelas que explodiram.
Quando começamos a
todas as crianças do sexo masculino
, mas duas
delas, Sefra e Fua, se recusam. Quando
interpeladas, astuciosamente respondem: as
mulheres dos hebreus não são como as
egípcias. São cheias de vida e, antes que as
parteiras cheguem, deram à luz. Então, o
Faraó ordenou: jogai no Rio Nilo todo
menino que nascer. Essa cena mítica vai ligar
Moisés a Jesus, Herodes ao Faraó e Israel ao
Egito. É nesse momento que nasce Moisés,
um egípcio, filho de pais israelitas anônimos,
que o escondem por três meses, mas por
temerem sua morte, fazem de um cesto de
papiro uma barquinha, que põem a navegar
pelo Nilo, acompanhada das margens por sua
irmã, que vê o menino ser recolhido pela filha
do Faraó. Esta o para criar, em segredo e
mediante pagamento, a uma família israelita.
Com o menino adolescente o adota como
filho e lhe o nome de Moisés, cujo nome
em egípcio é
Thutmosés
, que significa: o deus
Tot
nasceu. Nesse momento histórico o
politeísmo está enfraquecido, é o período dos
Reis Divinos, e o Faraó se confunde com o
deus único
, o Sol. Moisés é fruto dessa
tradição monoteísta.
Javé
é tão implacável
como
. Mas, certamente, é mais raivoso,
cruel e vingativo. Depois de tirar o seu povo
do Egito, com raiva pela adoração do Touro,
quer exterminá-lo. A perseguição judaica
começa com
Javé
. Também com raiva tenta
matar Moisés, mas é impedido por sua mulher
Séfora. Depois de provocar todas as epidemias
e pragas contra o Egito, inclusive
endurecendo o coração do Faraó, para
impedi-lo de se compadecer, e levar suas
torturas até o fim, chega ao máximo da sua
vingança com a morte de todos os
primogênitos egípcios, superando a crueldade
do próprio Faraó, ao acrescentar também a
morte dos primogênitos de todos os animais.
Javé condena e maldiz qualquer culto que
não seja o seu, e os judeus são intimados a
escolher entre seu pai protetor que salva o seu
das escavações, os arqueólogos
descobriram quatro escritas:
hieroglífica, protolinear, linear A
e linear B, o que promoveu a
civilização cretense ao período
histórico ou literário, segundo a
definição arqueológica. Muito se
aprendeu sobre a estrutura social
e os valores das fases minóicas,
inicial, e micênica, posterior. E o
mais importante: no decorrer das
escavações, à medida que mais
afrescos, esculturas, vasos,
entalhes e outras obras de arte
iam sendo desenterrados,
percebeu-se que ali estavam os
resquícios de uma tradição
artística única nos anais da
104
observar o planeta como vivo,
passamos a estender mais
ainda a nossa definição de
vida. Apesar de constante
expansão e movimento através
do espaço, as galáxias
manteem uma forma e limites
definidos. Podermos pensar
nas galáxias como orgânicas?
Em nosso planeta, a natureza
produz muito mais células e
sementes que o estritamente
necessário. O excesso permite
que um grande número delas
povo da morte, mas ignora o indivíduo após a
morte, e os deuses estrangeiros, inimigos de
Israel, mas que prometem uma
individualidade com vitória sobre a morte.
Javé é o freio terrível que se opõe à
transformação religiosa, à expulsão das
angústias da morte que a transformação social
provoca. No entanto, desde essa
transformação, quer dizer, desde o VI século
a.C, se esboça, com os profetas, a ideia de
salvação individual, reservada aos justos e
bons.
A alma que peca é a que morrerá. A
maldade do mau recairá sobre ele
, diz
Ezequiel. Javé é um deus vulcânico: aparece
no fogo no topo do monte e colunas de
fumaça são os sinais do caminho que o povo
segue, na fuga do Egito. Javé não parece um
deus celeste. É mais nossa imagem e
semelhança. É cheio de dúvidas e descontroles
emocionais. É um cultivador de jardins, gosta
da boa comida e da bebida, é um deus
ciumento, quer ser amado e obedecido.
Embora tenha testado a de Abraão,
exigindo o sacrifício de seu filho Isaac e de
deixar Jesus ser torturado e morto, além de
silenciar diante do horror de Hitler, pode ser
veemente contra sacrifícios e holocaustos,
como em Jeremias, 7, 21-23:
Ajuntem os holocaustos que vocês queimam,
com seus sacrifícios, e comam essas carnes!
Pois quando tirei do
Egito os antepassados de vocês, eu não falei
nada nem dei ordem alguma sobre
holocaustos e sacrifícios. A única coisa que
lhes mandei, foi isto: obedeçam-me, e eu
serei o Deus de vocês, e vocês serão o meu
povo; andem sempre no caminho que eu lhes
ordenar, para que sejam felizes.
O monoteísmo patriarcal; o povo escolhido;
o ódio a Satã: espelho do ódio por tudo que
não é cristão; o perigo do estrangeiro, o
medo do abandono, são a nossa herança, da
qual nem Jesus escapa, quando diz na cruz:
civilização. A história da
civilização cretense começa por
volta de 6000 a.C quando uma
pequeno colônia de imigrantes da
Anatólia, chegou ao litoral da
ilha. Eles é que trouxeram a
Deusa consigo, bem como a
tecnologia agrária que classifica
esses primeiros pioneiros como
povos neolíticos. Nos quatro mil
anos que se seguiram houve um
progresso tecnológico lento e
constante na cerâmica,
tecelagem, metalurgia, escultura,
arquitetura e outras técnicas, o
comércio cresceu e desenvolveu-
se o estilo artístico vivo e alegre
tão característico de Creta.
105
morra, enquanto uma pequena
percentagem viva e forme
organismos. Os planetas
mortos podem formar as
células excedentes das
galáxias.
A Teoria de Gaia começa a nos
levar de volta à poderosa
intuição de que a vida – e, sim,
a consciência – existe em todos
os níveis. “Tudo vive, tudo
dança, e tudo é sonoro”.
Muitos mitos da Deusa como
sendo uma vaca descrevem a
Minha alma está triste até a morte. Meu Pai,
se te é possível, afasta de mim este cálice.
Pai,
por que me abandonaste?
Se
Eu e o Pai somos Um
, como diz, por que
Jesus vacila? Porque era humano e gostava de
viver. Tem consciência da arte de cada dia:
Não vos preocupeis, pois, com o dia de
amanhã. O dia de amanhã terá as suas
preocupações próprias. A cada dia basta o seu
cuidado.
Quando perguntado sobre o reino do Pai,
depois da morte responde, aludindo à vida
terrestre:
O Reino já está diante de vós e não vês.
E
para os que desanimam diante do tamanho
da obra diz:
Aquele que põe a mão no arado e olha para
trás, não é apto para o Reino de Deus.
Mas tem um momento em que é direto em
relação à busca do caminho:
O Reino de Deus está dentro de vós!
Indica o caminho da plenitude, diz que a
realização da individualidade é a unidade com
o divino e que está disponível para todos.
Dirijo-te esta oração, enquanto ainda estou
no mundo, para que eles tenham a plenitude
da minha alegria!
Mas quando diz:
Meu Reino não é deste mundo.
está de partida, é despedida, começa a se
desprender do mundo, é o estrangeiro, o
Então, aproximadamente em 2000
a.C., Creta entrou no que os
arqueólogos chamam de período
Minóico Médio ou Proto-
Palaciano.
A esse altura já estávamos na
Idade do Bronze, uma época em
que, no resto do mundo
civilizado, a Deusa vinha sendo
paulatinamente substituída por
deuses guerreiros masculinos. Ela
ainda era reverenciada – como
Hathor e Ísis no Egito, Artarte ou
Ístar na Babilônia, ou como a
Deusa Sol de Arinna na Anatólia
–mas, agora, na condição de
deidade secundária, descrita
como consorte ou mãe de deuses
106
Via Láctea, nossa galáxia,
como o leite do Seu corpo.
Entretanto, para a maioria de
nós, tudo isso permanece
como histórias bonitas, talvez
metáforas psicológicas, mas
não uma descrição do mundo
real. A Teoria de Gaia abre
caminho a uma nova unidade
entre a ciência, o mito e a
intuição. Nessa unidade, a
ciência da biologia torna-se
vital e excitante – viva. Quando
eu era criança e tinha aulas de
alienígena.
cena d
a
tortura
tripla não deve
fazer a dor nos confundir: Jesus pregado na
cruz, entre dois ladrões, um mau e outro
bom. Mesmo velado o símbolo está presente:
as três árvores são os fluxos das energias vitais
do corpo:
Yang, Tao, Yin
, na tradição do
taoísmo
chinês e
Ida, Sushumna e Pingala
, na
tradição do
tantra
indiano.
Essa trindade é o movimento da
kundalini,
através dos sete vértices e vórtices do caduceu,
que é o modelo que sustenta as três
narrativas.O interesse de uma instituição
religiosa em reter para si e manipular o poder
é quem esconde da comunidade o caminho
da plenitude terrestre e faz do símbolo outro
fruto proibido. O símbolo e o diábolo no
solo da Terra. Em Jesus não povo
escolhido, mas para o cristianismo que se
seguiu, a salvação está ao alcance da
cristandade. rancor, ressentimento,
vingança e sadismo, como se pode ver nesse
texto de Tomás de Aquino:
Para que a felicidade dos santos lhes possa
parecer deleitável lhes é permitido ver
perfeitamente os sofrimentos dos danados
.
Com a queda de Elêusis perdemos a
autonomia e a conexão direta com Gaia. Ao
longo da História entrariam em cena os
intermediários e atravessadores de todas as
religiões institucionais. Não que eles não
existissem na Grécia, e mesmo em Elêusis,
mas chegava ao ocaso à comunhão com as
plantas sagradas, sejam as do vinho
carnavalesco dos
mistérios menores
, sejam as
do
kikeon
dos
mistérios maiores
. Do mesmo
jeito que Zeus fulminou com um raio
Sêmele, grávida de seu filho Dionísio, se
acreditava que essa era a origem dos
cogumelos que brotavam, repentinamente,
logo depois da chuva e dos raios. Também
pela semelhança sica o cogumelo era
masculinos mais poderosos. Esta
época trouxe um mundo onde o
poder da mulher declinava mais e
mais, um mundo onde a
dominância dos homens e as
guerras de conquista e
contraconquista tornavam-se a
regra geral em toda parte.
Na ilha de Creta, onde a Deusa
ainda reinava suprema, não havia
sinais de guerra. Ali a economia
prosperava e as artes floresciam.
E mesmo quando no século XV
a.C. a ilha finalmente caiu sob a
dominação dos aqueus, período
que os arqueólogos chamam de
cultura minóica-micência, a
Deusa e o modo de pensar e viver
107
ciência na escola, a biologia
não me parecia muito
interessante. Na escola, ela
consistia principalmente de
taxonomia, longas listas de
classificações. Naquela época,
recorríamos à física em busca
de poesia, de mistério. Com o
repentino surgimento de Gaia
onde menos a esperávamos, a
biologia torna-se um novo
enfoque de suposições. Assim
como o retorno da Deusa
significa o retorno da história,
confundido com o falo, outro símbolo
dionisíaco.
O que se perde também com a destruição de
Elêusis, o maior e o último centro de difusão
do culto da Deusa e do Touro no Mundo
Antigo, é
a iniciação
, que tinha como
objetivo essencial conhecer e enfrentar a
morte, como forma de criar uma arte de
viver. Estava rompido o matrimônio sagrado,
que une a Terra ao Céu, e propicia o
movimento cósmico: os ciclos do sol e da lua,
os ritmos das estações e das festas, a
fertilidade da terra e a abundância das
colheitas. No núcleo dessa teologia ainda
estava implantada a sagrada família do tipo
anatoliano, mas o tipo patriarcal dos indo-
europeus, vinha se firmando antes mesmo
da Grécia Clássica.
Mas a Deusa e o Touro nunca foram
completamente derrotados. Tal como Roma
ficara fascinada pela Grécia, o Cristianismo, a
nova religião do Império Romano desde
Constantino, ironicamente iria carregar em
suas entranhas a Deusa e o Touro, nas figuras
de
Cristo
e das duas
Marias
: a de
Nazaré e
Madalena
. Não foi possível escamotear a
matriz mítica da
paixão, morte e ressurreição.
Cristo é o deus-touro, transformado em
cordeiro do sacrifício ou em bode expiatório
e nasce em uma manjedoura, entre vacas e
bois; transmuta o vinho em sangue e o pão
em carne do seu corpo, para serem bebidos e
comidos e incorporados pela comunidade. O
sacrifício humano do deus-touro é feito na
cruz, um símbolo de conexão: o braço
horizontal é a plenitude terrestre, a que
propicia a ligação vertical entre a terra e o céu.
Mas o símbolo da crucificação, que significa o
movimento vital de morte e ressurreição, da
inseparabilidade
morte e vida
, passou a ser
usada para matar, reprimir e manipular o
poder. Cristo indica o
caminho da iniciação
,
mas está em sua tragédia, e a memória da
que ela representava
aparentemente se mantiveram.
Como diz o arqueólogo Platon,
aquela era uma sociedade na qual
“toda vida era permeada por uma
fé ardente na Deusa Natureza,
fonte de toda criação e
harmonia”. Foi em Creta que pela
última vez na história escrita
prevaleceu um espírito de
harmonia entre mulheres e
homens enquanto participantes
iguais e jubilosos da vida. É esse o
espírito que parece irradiar na
tradição cretense, uma tradição
que, nas palavras de Platon, é
única em seu “deleite da beleza,
da graça e do movimento” e em
108
o retorno de Gaia significa o
retorno do corpo, o
conhecimento de que o corpo –
nosso corpo, o corpo da Terra
– existe simultaneamente no
mundo dos objetos e no mundo
das histórias.
Os muitos mitos do corpo
desmembrado da Deusa
surgem de uma percepção de
que tudo está vivo, mas
fragmentado. Esta não é uma
construção intelectual, mas
uma intuição profunda. E
participação coletiva na comunhão vegetal
com a natureza está esquecida. O eterno
retorno das luas e das estações, a
paixão,
morte e ressurreição
da Deusa ou do Touro, a
recorrência dos mitos deu lugar ao evento
único: a linearidade da história. Como co-
autor do imperialismo e colonialismo
culturais, o Cristianismo nem suspeitava que
no lado oculto de todos os seus crimes,
cruzadas, inquisições, torturas, queima de
bruxas e hereges, da sua responsabilidade no
longo bloqueio da espiral evolutiva da
consciência humana, do seu poder brutal,
trazia dentro de si a Deusa e Dionísio,
transmutados em Marias e Cristo: as touradas,
as vaquejadas, o bumba-meu-boi e a
epidemia do Carnaval!
Se há padrões na História, talvez estejamos em
um tempo parecido com a queda do Império
Romano e o advento do Cristianismo. A
hegemonia do império Norte-Americano
vacila, a Deusa Terra se ressente do desamor e
a humanidade está exausta de impérios e do
poder patriarcal e predador. Nenhum deus ou
outro extraterrestre virá nos salvar. Os
iluminados de todos os tempos estão em
nós ou em nenhum outro tempo e lugar.
Agora é o momento da co-responsabilidade
planetária. A iluminação não é uma
recompensa depois da morte. É a plenitude
terrestre, o corpo em máxima saúde. Não
escolhidos, todos somos convidados. A
iluminação é a coragem de viver o mito da
Deusa Vida! É mais sutil e sem alarde, cada ser
pode contribuir nessa rede amorosa
. É a
planetarização acelerada das culturas que
conduz à compreensão de que se algo
absoluto na vida é a nossa interdependência.
Se o aumento da nossa consciência foi
bloqueado ou desviado ao longo desses dois
mil anos, temos outra vez uma grande
oportunidade de dar um salto qualitativo para
a consciência de que todos somos as células
de um complexo organismo, se deslocando
seu “desfrute da vida e
proximidade da natureza”.
Contamos em séculos o tempo da
história que conhecemos. Mas
quando se trata do período
anterior, um tipo muito diferente
de história, os períodos de tempo
são contados em milênios, ou
milhares de anos. O Paleolítico
data de 30 mil anos atrás. A
revolução agrícola do Neolítico
aconteceu há 10 mil anos. Çatal
Huyuk foi fundada há 8500 anos.
E a civilização de Creta caiu há
apenas 3200 anos.
Durante esse período de milênios
– muitas vezes mais extenso que a
história registrada nos
109
assim criamos histórias de
uma Deusa que sacrifica Seu
corpo para construir o mundo.
Uma sociedade baseada no
corpo divino
manteria uma
consciência da unidade da
ciência, da vida cotidiana e do
sagrado – para os organismos
individuais e também para o
organismo maior da cultura.
Duas amigas juntaram-se a
mim no solstício. Então,
realizamos uma cerimônia
simples. Pedi a cada uma delas
evolutivamente no espaço
-
tempo cósmico.
A
inconsciência é infinitamente maior do que a
consciência e é de que ela vem e de onde é
conduzida. Nesse sentido a consciência é
passiva, como nós diante de um deus. O
inconsciente merece toda nossa confiança.
Mas a consciência é co-criação e co-
responsabilidade na obra, é saber e saborear o
que somos, onde estamos e quando: degustar
o tempo: o devorador.
O amor cósmico quando se singulariza em
uma pessoa, se humaniza. O código
arquetípico que chega-nos através de Cristo é
um padrão cíclico, mítico, trinitário:
paixão,
morte e ressurreição
e são os estágios de
recriação permanente do nosso devir psíquico
e talvez ainda mais misterioso e profundo:
indica um ritmo da vida.
Cristo é Dionísio. Deméter é Maria de Nazaré.
Perséfone ou Ariadne é Maria Madalena. O
Cristianismo tenta, de todas as maneiras,
negar a sexualidade de Cristo, mas isso
significa a recusa em considerá-lo um ser
humano pleno. Parece que a humanização de
qualquer deus passa pela simultaneidade do
amor cósmico e do amor pessoal:
Parvati e
Shiva; Ísis e Osíris, Eva e Adão, Ariadne e
Dionísio, Madalena e Jesus.
Mesmo com
todas as distorções, o patrimônio mítico está
codificado em todas as religiões. Os mitos são
a parte que nos cabe na memória da
Anima
Mundi
.
Através dos xamãs, com seus bois e vacas, suas
plantas e técnicas, que permitem a alma viajar
a outros espaços, dimensões e ao mundo dos
mortos, foi que a Grécia interpretou que
haveria uma separação entre o corpo e a alma;
que o corpo é uma prisão ou o túmulo da
alma, que aguarda a ressurreição para a
calendários desde o nascimento
de Cristo – a maioria das
sociedades da Europa e Oriente
Próximo deram ênfase a
tecnologias que sustentam a
aprimoram a qualidade de vida.
Durante os milhares de anos do
período Neolítico, grandes
avanços foram feitos no sentido
de produzir alimento através da
agricultura, caça, pesca e
domesticação de animais. A
habitação avançou com
inovações nos métodos de
construção, de fabrico de
tapetes, mobília e outros artigos
para a casa, e mesmo, como em
Çatal Huyuk, de planejamento
110
que trouxesse algo que
quisesse oferecer à Terra.
Como minha própria
contribuição, fiz um bolo baixo
na forma de uma Deusa e o
levei até lá, junto com sementes
e pedras encontradas em
viagens a locais sagrados de
outros países. Então
realizamos uma procissão,
indo a diferentes árvores e
outros lugares especiais em
volta da casa, cantando
canções, carregando estátuas
verdadeira vida, que seria a vida sem corpo.
Essa compreensão tem como consequência a
negação da vida, que nos chegou mais
diretamente através do Cristianismo.
Por outro lado, os xamãs criaram um elo
entre as diversas culturas, desde a África,
Sibéria, Anatólia, Egito, Índia, Grécia,
Américas, o Velho e o Novo Mundo, através
das suas caminhadas, difundindo técnicas de
êxtase, o cultivo e o uso de plantas mágicas e
a simbiose entre as plantas e os animais. Os
deuses agrários ao serem urbanizados se
antropomorfizaram pela metade, e se
tornaram animais com cabeças de homens ou
homens com cabeças de animais, a exemplo
de
Ganesha,
o deus com cabeça de elefante,
na Índia e os deuses do Egito ou o
Minotauro, na Grécia. São essas divindades
que se transformam em deuses da salvação:
aqueles que nos livram da morte. No cerne da
salvação existe o êxtase, a iniciação e o
sacrifício, para um bom viver e um saber
morrer. O fundamento essencial da salvação é
o sacrifício do deus que morre para
ressuscitar. Os xamãs e os chefes devem ter
sido os primeiros beneficiários da salvação.
No culto da Deusa e do Touro, em várias
culturas, é possível identificar plantas
psicoativas envolvidas em cultos e rituais. Para
citar dois exemplos: na Índia a planta
datura,
conhecida no Brasil como zabumba, são os
cabelos do deus
Shiva Nataraja
, o dançarino
cósmico, cujos passos se dão em cima de um
monstrengo chamado
esquecimento
. Tudo
consiste em recordar: lembrar com o coração.
Não deve ser gratuito que nesse país a vaca
seja sagrada, tal como deveria ter acontecido
com os xamãs, em seu percurso pelo mundo.
A vaca dava o alimento, em forma de leite e
queijo e, pelo seu estrume, a fertilidade da
terra e o brotar dos cogumelos sagrados. No
urbano.
O vestuário deixou para
trás as peles de animais com a
invenção da tecelagem e da
costura. Como os fundamentais
materiais e espirituais para
civilizações mais avançadas
estavam lançados, também as
artes floresceram.
Ao que tudo indica, naquele
tempo a descendência em geral
era traçada pela linha materna. A
mulher mais velha, ou as chefes
dos clãs, administravam a
produção e distribuição dos
frutos da terra, que eram
considerados propriedades de
todos os membros do grupo.
Junto com a propriedade comum
111
da Deusa
e tocando
instrumentos. Quando
chegamos ao montículo, cada
uma de nós falou coisas da
própria vida que desejava
devolver à Terra. Fizemos uma
oração honrando a ascensão
da luz neste ponto culminante
do ano, quando o Sol começa a
readquirir o seu poder.
Quando depositamos nossas
oferendas dentro do montículo,
cortei o bolo em pedaços – o
corpo da Deusa – e os distribuí
México
, que também viveu a destruição dos
seus cultos, o cogumelo
Stropharia cubensis
,
que contém psilocibina, é conhecido como
teonanácatl
: a Carne de Deus.
Foi essa nossa pesquisa que me trouxe até
aqui: Peru, México e Guatemala, em busca
desses cultos ainda vivos, que envolvem
cogumelo, peyote e ayauasca
. Talvez
influenciado pelas nossas descobertas, ao
beber o chá de ayausca, senti a presença
crística. O que mais me impressionou foi a
simplicidade, proximidade e o amor
abrangente desse ser. Um pouco antes, meu
corpo parecia estar passando por um
ajustamento de frequências, vibrações em
oitavas musicais, afinado por um diapasão.
Depois, todo o ambiente ficou cristalino e
vibratório. Chorando muito ouvi:
Nunca quis ser senhor de nada, isso é coisa de
escravos. O máximo é irmão! Nessa transição
somos muitos cuidando da Terra. Nenhum
iluminado é maior do que um Ser Planetário.
Todo horror do cristianismo, ao longo dos
séculos, agora se desmascara através da cruel
ironia:
o vinde a mim às criancinhas
transformou-se em pedofilia. Essa implosão
revela uma agonia que busca a pureza e a
inocência perdidas. O monoteísmo hoje,
comum ao judaísmo e ao islamismo, não está
em melhor posição: uma parte hegemônica
do judaísmo de Javé disputa ironicamente os
seus crimes de guerra com Hitler e o
islamismo, em nome de Alá, explode a vida.
Para essas três tradições a vida é um exílio.
Essa compreensão justifica a decisão de tanta
gente triste, atormentada e aflita para deixar o
mais depressa possível a Terra.
dos principais meios de produção
e uma percepção do poder social,
como responsabilidade e tutoria
em benefício de todos, veio o que
parece ter sido uma organização
social basicamente cooperativa.
Tanto mulheres como homens – e
mesmo, por vezes, como
acontecia em Çatal Huyuk,
pessoas de outras etnias –
trabalhavam em cooperação para
o bem comum.
A maior força física do homem
não servia de subsídio para a
opressão social, guerras
organizadas, nem concentração
de riqueza pessoal nas mãos dos
homens mais fortes. Tampouco
112
entre nós.
Deixamos a parte de
cima na lama para os outros
animais.
Na noite anterior a este ritual,
a noite mais longa do ano,
Gaia veio até mim em um
sonho. Não apareceu sob
nenhuma forma particular, mas
falou comigo e eu sabia com
certeza que era a Sua voz.
Confirmou-me que havia
rompido o Seu corpo em
milhões de pedaços para
compor o mundo. Mas Seu Eu
Tenho a convicção de que
Carlitos
é o modo
que Chaplin encontrou para reencenar Cristo.
Disse uma vez:
As duas personalidades que eu mais desejaria
recriar em um filme seriam Napoleão e Jesus
Cristo. Não representaria Napoleão como um
general poderoso, mas como um fraco,
taciturno, quase melancólico e sempre
importunado pelos membros de sua família.
Quanto ao Cristo, gostaria também de
modificá-lo no espírito das massas. Acho que
a personagem mais forte, mais dinâmica e
mais importante que já existiu acabou por ser
terrivelmente deformada pela tradição.
Mostrá-lo-ia, então, acolhido em delírio por
homens, mulheres e crianças. As pessoas iriam
ao seu encontro para sentir seu magnetismo.
Não mais seria um homem piedoso, triste e
distanciado; um solitário que acabou por ser
o maior incompreendido de todos os tempos.
Em o
Grande Ditador
filma Hitler, o Anti-
Cristo. Inclusive, nesse filme, o discurso final
lembra o Sermão da Montanha e ele cita
Lucas:
O Reino de Deus está dentro do homem, não
de um homem ou de um grupo de homens,
mas em todos os homens. Está em Vós!
servia de fundamento
para a
supremacia dos machos sobre as
fêmeas ou de valores “masculinos”
sobre valores “femininos”. Pelo
contrário. A ideologia
prevalecente era ginocêntrica, ou
guiada pelo feminino, e a deidade
representada na forma de mulher.
Simbolizada pelo Cálice feminino,
ou fonte de vida, as forças
germinativas, mantenedoras e
criativas da natureza – e não o
poder de destruir – eram
extremamente valorizadas, como
vimos antes. Ao mesmo, a função
de sacerdotisas ou sacerdotes
não servia para sancionar através
da religião uma elite masculina
113
permanecia completo e inteiro
em cada fragmento. Por isso,
Seu corpo permanece
saudável, inteiro e perfeito em
cada pedra ou pêlo, em cada
estrela ou beijo, em cada
mariposa ou elefante. Ela se
torna em cada momento o que
sempre foi, o Corpo da Deusa,
em cada raio de luz, em cada
sonho e em cada suspiro.
Rachel Pollack
O Corpo da Deusa
Cura uma
cega em
Luzes da Cidade
.
Carlitos
proclama a liberdade e a dignidade dos que
nada têm, é um vagabundo, como Cristo.
Está sempre com as crianças.
Eu sou o
caminho, a verdade e a vida
, de Cristo, é a sua
marca registrada no final dos filmes, com
Carlitos seguindo pela estrada.
Nas mais diversas correntes religiosas os
místicos dizem que querer ser Deus é buscar a
perfeição. É preciso chegar até o limite desse
delírio incompatível com a Vida. Ir e voltar: é
se humanizar. Dizem que a inveja que alguns
anjos têm dos humanos é porque são
perfeitos, acabados, fechados, e nós somos
incompletos, abertos, amplos, respiráveis,
eternamente aperfeiçoáveis.
O quarto capítulo é o
chakra
do
coração
. Esse
é o momento de nos encontrarmos
pessoalmente. São Paulo me parece o melhor
lugar. Janaína, nós três vamos cuidar da
gravação do seu cd duplo, a partir do
repertório dos novos compositores
paulistanos e outros, com quem Dionísio tem
convivido. Dionísio, podemos compartilhar
nossas descobertas sobre os xamãs urbanos e
o calendário Maya. O que acham?
brutal, mas para beneficia
r
igualmente todas as pessoas da
comunidade, da mesma forma
como as chefes dos clãs
administravam as terras de
propriedade comum e cultivo
comunitário.
Mas então veio a grande
mudança, uma mudança tão
colossal que, de fato, não se pode
comparar a nada que conheçamos
da evolução cultural humana.
Riane Eisler.
O Cálice e a Espada.
114
É sobre-humano amar/cê
sabe muito bem/é sobre-
humano amar, sentir,
doer, gozar/ser feliz/
que sou eu quem te
diz/não fique triste
assim/é soberano e está
em ti querer até muito
mais/a vida leva e traz/a
vida faz e refaz/será que
quer achar/sua
4
A vida quer da gente coragem
JANAÍNA
Sem mais medo de se ferir, o coração do
tamanho do mundo é criança: tudo quer ser.
Brincar, cantar, dançar, abraçar, amar, alegrar. O
corpo é o experimento. Nessa aventura através
dos nossos corpos, o que podemos fazer agora
que chegamos ao coração?
HERMES
Como disse um filósofo: quando a gente cuida
bem do corpo ele dura a vida inteira. Um
mergulho no anonimato: a abertura do coração é
cuidar com mimos, carinhos e carícias, quem
cruzar nosso caminho. Nossa presença amorosa
deve fazer a diferença. Atenas é a melhor escolha
para o nosso banquete, depois de toda essa longa
conversa por e-mails, que passa pelo percurso da
Deusa e chega até a Grécia. Athenas, o
restaurante da Rua Augusta, em São Paulo, uma
das cidades mais cosmopolitas do planeta. Tóquio
é japonesa. A cidade do México mexicana. Das
cidades que conheço New York e Sampa são as
mais cosmopolitas. São Paulo, o apóstolo que
universalizou o Cristianismo, foi motivo de riso
para os filósofos estóicos e epicuristas, quando
falou da ressurreição de mortos e não fundou
nenhum núcleo cristão em Atenas. Vejam o que
está escrito na parede:
Ame mais. Beije muito. Chore com vontade.
generosamente. Erre. Faça aquilo que mais teme.
Grite! Harmonize-se mais. Importe-se menos.
Junte amigos. Lute pelo que acredita. Mude de
opinião. Namore. Ore. Pense em novas
possibilidades.Queira loucamente.Ria
frequentemente.Sonhe! Trabalhe com prazer. Use
a imaginação. Viva! Xe-que-ma-te. Zele por
você!
Vem me abraçar, vem/vem
reparar bem/quem é que
abraçou quem/pois vou lhe
abraçar também/quem dá um
abraço/não sabe se deu/ou se
devolveu/ou se perdeu/quando
o abraço sai de alguém e não
volta/não
envolveu/anunciou/renunciou/d
dissolveu /vem me abraçar,
vem/vem reparar bem/quem é
que abraçou quem/pois vou lhe
115
expressão mais
simples/mas deixa tudo e
me chama/eu gosto de te
ter/como se já não fosse
a coisa mais humana
esquecer/é sobre-
humano viver/e como não
seria?/sinto que fiz esta
canção em parceria com
você/a vida leva e traz/a
vida faz e refaz/será que
quer achar/sua
expressão mais simples.
José Miguel Wisnik
Mais simples
DIONÍSIO
Cristo viu claramente quando disse: se não fores
como as crianças não entrareis no Reino do Céu.
A agilidade emocional que transita da maior raiva
à alegria em poucos segundos; o frescor de olhar
tudo com olhos sempre nascentes, livres, a eterna
curiosidade diante do mistério da vida; o coração
poroso, disponível para o abraço. Ninguém se
livra de Platão e é preciso, simultaneamente, se
livrar dele. Não é estranho que Platão tenha
condenado o amor sico. Contudo, ele não
condenou a reprodução. Em
O
Banquete
chama
de divino o desejo de procriar: é a ânsia de
imortalidade. Os filhos da alma, as ideias, são
melhores do que os filhos da carne; mas, em
As
Leis,
exalta a reprodução corporal. É um dever
político engendrar cidadãos que sejam capazes de
assegurar a continuidade da vida na cidade. Platão
percebeu claramente o amor no sentido da falta,
que chamou de desejo, e sua conexão com a
sexualidade animal e quis rompê-la. Mas uma
terrível contradição na concepção platônica do
erotismo: sem o corpo e o desejo que provoca o
amante, não há ascensão rumo aos arquétipos.
Contemplar as formas eternas e participar da
essência se faz com o corpo. Não outro
caminho. Nisso o platonismo é o oposto da visão
cristã: o
Eros
platônico busca a desencarnação,
enquanto o misticismo cristão é, sobretudo, um
amor, a exemplo de Cristo, que se transforma em
carne para nos salvar. Apesar dessa diferença,
ambos coincidem em sua vontade de romper
com este mundo, considerado inferior, um
simulacro, e subir para o outro, o
verdadeiramente divino. O platônico pela escala
de contemplação da beleza, especialmente a
excitação erótica provocada pela visão de jovens
nus, tratados como objetos de prazer e
instrumentos de ascese. E o cristianismo, pelo
amor a uma divindade que encarnou em um
corpo humano e prometeu, depois de todo
sofrimento, uma recompensa: o paraíso depois da
vida.
ab
raçar também/quem quer um
pedaço/um pouco de
alguém/abraçando tem/e ainda
mais/se o abraço for além de um
minuto/aí é fatal/envolveu/você
tem um alguém total.
Dante Ozzetti e Luiz Tatit
Alguém total
Um homem com uma dor/é
muito mais elegante/caminha
assim de lado/como se chegando
atrasado/andasse mais
adiante/carrega o peso da
dor/como se portasse
medalhas/uma coroa, um milhão
de dólares/ou coisa que os
Às vezes quando eu vou
à Augusta/o que mais me
assusta é o teu jeito de
olhar/de me ignorar/toda
em tons de azul/teu ar
displicente invade meu
espaço/e eu caio no laço
exatamente do jeito/um
crime perfeito/it’s all
right, baby blue/garupa
de moto, a quina da loto
saiu pra você/sem nome e
JANAÍNA
O amor humano
mundo. Est
gravidade do corpo, que é prazer e morte.
alma não amor, mas tão tampouco ele existe
sem o
sem corpo é assombração
chegar ao coração é amar, como exercê
arte de cada dia? Acho importante compreender
as diversas formas do amor.
A primeira forma está no
am
or é desejo, e o desejo é falta.
incompletude. Não é fusão, mas busca. Não é
plenitude, mas pobreza devoradora.
desejo é amor, mas esse amor que falta é desejo
do que não somos, do que não temos.
oscila entre a fortuna e a misé
ignorância, a felicidade e o tormento. A carência
é sua essência e a paixão o seu auge. Quem diz
falta diz sofrimento, possessividade e ciúme.
pessoa
morta,
morta
s. O que desej
perdemos o que tínhamos: o gozo da vida.
o amar que ama mais a si mesmo do que à vida.
Platão propõe duas soluções:
procriação
mestra de Sócrates: a natureza mortal sempre
busca, tanto quanto pode a perpetuidade e a
imortalidade
deixando sempre um indivíduo mais jovem no
lugar de um mais velho. Essa é a eternidade
divindade substitutas. E diz Platão: uns parem
segundo o corpo, é o que se chama família,
outros segundo o espírito, o que se chama
criação, tanto na arte
ciências
uma salvação.
espiritual, um
propriamente dita: o amor e a salvação pela
beleza. Seguir o amor sem nele se perder,
obedecê
as gradações da escala: amar primeiro um
corpo, p
depois a beleza que lhes é comum, em seguida a
beleza das almas, que é superior à dos corpos,
depois a beleza que está nas ações e nas leis,
JANAÍNA
O amor humano
é a afirmação do corpo e do
mundo. Est
amos atados à Terra pela força da
gravidade do corpo, que é prazer e morte.
Sem
alma não amor, mas tão tampouco ele existe
corpo. Corpo sem alma é cadáver; alma
sem corpo é assombração
! Volto ao início: se
chegar ao coração é amar, como exercê
-lo como
arte de cada dia? Acho importante compreender
as diversas formas do amor.
A primeira forma está no
Banquete,
de
Platão: o
or é desejo, e o desejo é falta.
O amor é
incompletude. Não é fusão, mas busca. Não é
plenitude, mas pobreza devoradora.
Nem todo
desejo é amor, mas esse amor que falta é desejo
:
do que não somos, do que não temos.
Esse amor
oscila entre a fortuna e a misé
ria, o saber e a
ignorância, a felicidade e o tormento. A carência
é sua essência e a paixão o seu auge. Quem diz
falta diz sofrimento, possessividade e ciúme.
Se a
que eu amo amar outra é melhor vê-la
ou infeliz junto com a gente ou ambas
s. O que desej
amos não temos: a morte. E
perdemos o que tínhamos: o gozo da vida.
Esse é
o amar que ama mais a si mesmo do que à vida.
Platão propõe duas soluções:
a criação e a
procriação
: a arte e a família. Diz Diotima, a
mestra de Sócrates: a natureza mortal sempre
busca, tanto quanto pode a perpetuidade e a
imortalidade
, mas consegue pela geração,
deixando sempre um indivíduo mais jovem no
lugar de um mais velho. Essa é a eternidade
e a
divindade substitutas. E diz Platão: uns parem
segundo o corpo, é o que se chama família,
outros segundo o espírito, o que se chama
criação, tanto na arte
quanto na política, nas
ciências
e na filosofia. Uma solução, mas não
uma salvação.
Por isso, Platão propõe a ascese
espiritual, um
percurso iniciático
, uma salvação
propriamente dita: o amor e a salvação pela
beleza. Seguir o amor sem nele se perder,
obedecê
-lo sem nele se encerrar é transpor todas
as gradações da escala: amar primeiro um
corpo, p
or sua beleza, depois todos os corpos,
depois a beleza que lhes é comum, em seguida a
beleza das almas, que é superior à dos corpos,
depois a beleza que está nas ações e nas leis,
nessa dor/ela é tudo que me
sobra/sofrer vai ser a mi
Itamar Assumpção e Paulo Leminski
Dor elegante
Mesmo quando tudo pede/um
quando o corpo pede/um pouco
acelera/e pede pressa/eu me
valsa/a vida é tão rara/enquanto
todo mundo espera a cura do
116
valha/ópios, edens,
analgésicos/não me toquem
nessa dor/ela é tudo que me
sobra/sofrer vai ser a mi
nha
última obra.
Itamar Assumpção e Paulo Leminski
Dor elegante
Mesmo quando tudo pede/um
pouco mais de calma/até
quando o corpo pede/um pouco
mais de alma/a vida não
pára/Enquanto o tempo
acelera/e pede pressa/eu me
recuso, faço hora/vou na
valsa/a vida é tão rara/enquanto
todo mundo espera a cura do
117
o endereço é de hotel, eu
mereço/até outra vez/às
vezes quando eu chego
em casa/o silêncio me
arrasa e eu ligo logo a tv/
só então eu ligo procê,
descubro que já
sumiu/não sei em qual
festa que eu te
garimpei/cantando lay
mister lay, será que foi
no meu tio?/ou em algum
bar do Brasil/sei lá, eu fui
mais de mil/cheguei bem
tarde, o vinho estava no
depois a beleza que está nas ciências, enfim a
Beleza absoluta, eterna, sobrenatural, a do Belo
em si, de que todas as belas coisas participam, de
que procedem e recebem sua beleza. É aonde nos
conduz o amor, é o que o salva e nos salva. Eis o
segredo de Diotima, personagem de Sócrates, que
é o maior personagem de Platão: O amor é
salvo pela religião. Mas será que sabemos
desejar o que nunca é atual nem presente, o que
não existe? Não essa pessoa, mas a sua posse, que
não é possível? Não a obra que fazemos, mas a
glória que esperamos? Não a vida que temos, mas
outra, que supomos? sabemos desejar o nada,
a morte? Será que alguém sempre deseja uma vida
diferente daquela que desfruta? Quem goza boa
saúde, pode ainda desejá-la? Deseja a
continuidade da saúde no futuro? O desejo
sempre se confunde com a esperança? E no
momento em que os seres fazem amor o que
lhes falta? Nesse momento a tensão máxima do
desejo não é falta, frustração, é uma tensão
prazerosa, uma experiência de potência e
plenitude! o amor que sofremos, é paixão;
o amor que fazemos ou damos, é ação. No
modelo da nossa narrativa essa primeira forma do
amor corresponde ao segundo
chakra
ou
nível de
consciência: localizado na região genital e
significa desejo, paixão, fantasia erótica,
criatividade.
HERMES
Aqui quero lembrar os poetas provençais, os
trovadores, inventores do
amor cortês
, no século
XII, e patronos de todos os cancionistas que
vieram depois, inclusive dos compositores
brasileiros. Os cantores provençais preferiam
chamá-lo de o
fino amor
. A Provença, região no
Sul da França, vivia grande prosperidade
econômica e o início da urbanização. O amor
refinado é um fruto da cidade. A influência mais
prematura e decisiva vem da Espanha
mulçumana, seja na construção poética, seja no
ideário. Os senhores se declaravam servos de suas
damas e os grandes poetas se espelhavam no
platonismo, embora houvesse uma elevação e
idealização da mulher, que não aparece em
Platão. Na Provença, uma sociedade muito mais
mal/e a loucura f
inge que isso
tudo é normal/eu finjo ter
paciência/o mundo vai girando
cada vez mais veloz/a gente
espera do mundo, e o mundo
espera de nós/um pouco mais de
paciência/será que é tempo que
lhe falta pra perceber?/será que
temos esse tempo pra perder?/e
quem quer saber/a vida é tão
rara, tão rara/mesmo quanto
tudo pede um pouco mais de
calma/mesmo quando o corpo
pede um pouco mais de alma/eu
sei/a vida não pára.
Lenine e Dudu Falcão
Paciência
118
fim/e alguém passou o
chapéu pra mim e
gritou/é grana pra mais
bebum e eu não
paguei/às vezes quando
vou ao shopping/escuto
Money for nothing e
então começo a
lembrar/que eu tocava
num bar e que uma corda
quebrou/foi um deus-
nos-acuda, eu apelei pro
meu Buda/te peguei pelo
braço e nós fomos
embora/eu disse baby,
aberta do que a hispano
-
mulçumana e na qual as
mulheres gozavam de liberdades impensáveis sob
o Islã, essa mudança foi uma revolução. O
fenômeno de Alexandria e de Roma se repetiu: a
história do amor é inseparável da liberdade da
mulher. O casamento não era baseado no amor,
mas sim em interesses familiares, políticos,
econômicos e estratégicos. A poesia provençal
nasceu em uma sociedade profundamente cristã,
contudo, o
amor cortês
, em muitos pontos se
afasta dos ensinamentos da Igreja e até mesmo se
opõe a eles. A Igreja condenava a união carnal,
mesmo dentro do casamento, se não tivesse
como fim declarado a procriação. Os trovadores
eram contra uma união sem amor e exaltavam o
prazer carnal ostensivamente desviado da
reprodução. Os poetas provençais falavam de
uma misteriosa exaltação, ao mesmo tempo física
e espiritual, por eles chamada de
joi
e que era um
estado indefinível de felicidade. É um gozo
carnal, embora refinado pela espera, a mesura e a
cortesia, não é uma desordem e sim uma estética
dos sentidos:
o fino amor
. É a união entre
contemplação e gozo, mundo natural e
espiritual. Trata-se de um conhecimento não-
intelectual: o que contempla e conhece não é o
olho do intelecto, como em Platão, mas sim o
do coração. Outro aspecto, não derivado da
tradição religiosa nem filosófica, mas sim da
realidade feudal: o serviço do amante. Como
vassalo, o amante serve a sua amada. O serviço
tem várias etapas: começa com a contemplação
do rosto e do corpo da amada e continua,
conforme um ritual, com a troca de signos,
canções e entrevistas. O serviço tinha quatro
graus: pretendente, suplicante, aceito e encontro
carnal. Muitos eram platônicos e não queriam o
quarto grau, temendo matar o desejo e a
inspiração poética para suas canções. A ascensão
da mulher foi uma revolução não na ordem
ideal das relações amorosas entre os sexos, mas
na realidade social. É claro que o amor cortês não
conferia às mulheres direitos sociais ou políticos.
Não era uma reforma jurídica, era uma mudança
na visão de mundo. Ao transtornar a ordem
hierárquica tradicional, tendia a equilibrar a
inferioridade social da mulher com sua
superioridade no amor. Nesse sentido, foi um
Há no seu olhar/algo que me
ilude/como o cintilar/da bola de
gude/parece conter/as nuvens
do céu/as ondas brancas do
mar/astro em
miniatura/microestrutura
estelar/há no seu olhar/algo
surpreendente/como o viajar/da
estrela cadente/sempre faz
tremer/sempre faz pensar/nos
abismos da ilusão/quando, como
e onde/vai parar meu
coração?/há no seu olhar/algo
de saudade/de um tempo ou
lugar/na eternidade/eu quisera
ter tantos anos-luz/quantos
119
não chora, amor de
primeira hora/a vida é
chata, mas ser platéia é
pior/e que papel o
meu/chá quente na cama,
sorvete, torta, banana,
lua de mel/às vezes
quando eu vou ao centro
da cidade/evito, mas
entro no mesmo bar que
você/nem imagino o
porquê, se eu nem queria
beber/reparo em sua
roupa, na loira ao seu
lado/no seu ar cansado
passo em direção à equidade dos sexos.
JANAÍNA
A segunda forma do amor está mais bem descrita
em Espinosa. O amor é desejo, claro, pois o
desejo é nossa essência. Mas o desejo não é falta.
O desejo é uma energia, uma potência. O amor é
alegria. É potência de gozar e gozo em potencial.
Todo desejo é potência de agir ou força de existir.
A fome supõe a vida, a falta supõe potência.
Reduzir o desejo à falta é tomar o efeito pela
causa. O desejo é primeiro. Amar é prazer em ver,
tocar, cheirar, sentir por todos os sentidos e estar
o mais perto possível de um ser amável e que nos
ama. Foi Vinicius quem disse:
nada melhor para a
saúde do que um amor correspondido
. Os
amantes sabem quanto pode ser sensual,
voluptuoso e forte fazer amor na alegria, em vez
de na falta, na ação, em vez de na paixão, no
prazer, do que no sofrimento, na potência
saciada, e não na frustrada. Desejar o amor que
fazemos, não o que sonhamos que fazemos, e
que nos atormenta. Regozijar-se é não pedir
absolutamente nada, é agradecer, celebrar uma
presença, uma existência, uma graça! Quem não
se regozija com o gozo que proporciona? Por
isso, o amor nutre o amor e o dobra, tanto mais
forte, tanto mais leve, tanto mais ativo. É o que
nos diz Espinosa. Essa leveza tem um nome:
alegria. Não é o que me falta que eu amo; o que
eu amo é que às vezes me falta. O desejo é
primeiro, a potência é primeira, dos quais o
amor, no encontro, é a afirmação regozijante.
Mas todas as formas de amor estão entrelaçadas,
por isso flutuamos, oscilamos: entre falta e
potência, entre esperança e gratidão, entre paixão
e ação, entre religião e sabedoria, entre o amor
que deseja o que não tem e quer possuir e o
amor que tem tudo o que deseja, pois só deseja o
que existe, o que desfruta e de que se regozija. A
paixão não dura, não pode durar e dura
quando é infeliz. É preciso que essa forma morra
ou mude. Querer a qualquer preço ser fiel à
paixão é ser infiel ao amor como potência e
alegria, ao devir, é ser infiel à vida, que não
poderia se reduzir aos poucos meses de paixão
feliz. A segunda forma de amor abrange a
fosse precisar/pra cruzar o
túnel do tempo do seu olhar.
Gilberto Gil
Seu olhar
Ando devagar/porque já tive
pressa/e levo esse
sorriso/porque já chorei
demais/hoje me sinto mais
forte/mais feliz, quem sabe/eu
só levo a certeza/de que muito
pouco sei, nada sei/conhecer as
manhas/e as manhãs/o sabor das
massas/e das maçãs/é preciso
amar/pra poder pulsar/é preciso
paz pra poder seguir/e é preciso
chuva para florir/sinto que
120
que nem mesmo me
vê/olhando procê,
pedindo outro farnet/será
que não chega, já estou
me repetindo/eu vivo
mentindo pra mim/outro
sim, outra trip, outro
tchau/Outro caso banal,
tão normal, tão
chinfrim/às vezes eu a
pego uma estrada/e a
cada belo horizonte eu
diviso o seu rosto/a face
oculta da lua soprando
ainda sou sua.
Luiz Chagas.
Às vezes
amizade. Platão não escreveu nada importante
sobre ela. Aristóteles, seu discípulo, disse o
essencial: que sem a amizade a vida seria um erro;
que amizade é condição de felicidade e refúgio
contra a tristeza; que a amizade é ao mesmo
tempo útil, agradável e boa; que é desejável por
ela mesma e consiste antes em amar do que em
ser amado; que é inseparável de uma espécie de
igualdade, que a precede ou que ela instaura; que
não é falta nem fusão, mas comunidade, partilha,
fidelidade. Com o tempo a gente descobre que a
maldição é não conseguir amar, mais do que não
ser amado. Amizade é uma benevolência, um
querer o bem de alguém. Mas também é
reciprocidade: a devolução pode vir na forma
simples da alegria que proporcionamos e que
sentimos como gratidão. Os amantes podem
continuar se desejando, mesmo vivendo juntos
por longo tempo, e esse desejo é mais potência
do que falta, mais prazer do que paixão, e se
souberem transformar-se podem transformar o
fascínio do início em continuidade, em alegria,
doçura, gratidão, confiança, cumplicidade, em
felicidade por estarem juntos, em humor,
ternura, intimidade de corpo e alma, em respeito
de duas solidões tão próximas, em amizade. Mas
essas duas formas: o amor como carência e o
amor como potência, supõem o amor que
sentimos por nós mesmos, a nossa própria
satisfação, antes de tudo e, além do mais, em
amar apenas aos próximos de quem gostamos.
Com essas duas formas de amor estamos em um
gueto de no máximo vinte pessoas. E a
humanidade inteira? E a vida toda? Por que
amamos tanto nossos filhos, e tão pouco os dos
outros? Por que amamos nossos amigos, mas
quase nada o desconhecido? E por que amar
nossos inimigos, como queria Cristo?
Ouviste o que foi dito: amarás teu próximo e
odiarás teu inimigo. Pois eu vos digo: amai os
vossos inimigos, fazei bem ao que vos odeiam e
orai pelo que vos perseguem.
A mensagem evangélica, tal como chegou até
nós, excede em muito as duas primeiras formas
de amor. Amar os que não nos faltam nem nos
alegram? Amar os indiferentes, os que nos
seguir a vida seja
simplesmente/conhecer a
marcha, ir tocando em
frente/como um velho boiadeiro
levando a boiada/eu vou
tocando os dias pela longa
estrada, eu vou/estrada eu
sou/conhecer as manhas/e as
manhãs/o sabor das massas/e
das maçãs/é preciso amar/pra
poder pulsar/é preciso paz pra
poder seguir/e é preciso chuva
para florir/todo mundo ama um
dia/todo mundo chora/um dia a
gente chega/e no outro vai
embora/cada um de nós
121
A saia balança/as roupas
bailam /se ela estende/no
varal de nylon/se ela
estende no varal vestido,
blusa, o vento veste
sutiã/no varal de
nylon/na manhã árida do
bairro/é, as nossas
roupas bailam, trocam
botões e babados/elas
vão se cruzar logo
mais/quando a gente se
encontrar/as nossa
odeiam ou nos fazem mal? Escândalo para os
judeus e loucura para os gregos, é o que nos diz o
apóstolo São Paulo. Não creio que o ódio seja o
contrário do amor, mas sua frustração, distorção.
O oposto do amor é a indiferença.
Para ilustrar essas duas formas de desejo e amor
vamos cantar juntos
Mais que a lei da gravidade
,
de Paulinho da Viola e Capinan:
O grão do desejo quando cresce/É arvoredo
floresce/Não tem serra que derrube/Não tem
guerra que desmate/Ele pesa sobre a Terra/Mais
que a lei da gravidade/E quando faz um amigo/É
tão leve como a pluma/Ele nunca põe em risco a
felicidade/Quando chegar abrigo/Beijos,
abraços, açúcar/Só deseja ser comido/O desejo é
uma fruta/E com ele não relute/Pois, quem
luta/Não conhece a força bruta/Nem todo mal
que ele faz/Satisfeito é uma moça/Sorrindo feliz
e solta/Beije o desejo na boca/Que o desejo é
bom demais.
A terceira forma do amor entrelaça as duas
formas anteriores e as transcende: é o amor pela
existência em si, o amor universal, gratuito,
incondicional. As duas primeiras formas de amor
são interpessoais e essa terceira forma é
transpessoal. Corresponde ao sétimo
chakra
, que
se localiza no topo da cabeça e significa o fim da
ilusão de ser um indivíduo separado do todo. É o
sentimento de ser uno: corpo é cosmo. Nesse
sentido, é uma entrega ao corpo maior da vida,
da existência cósmica. É uma renúncia ao querer
tudo controlar, não mais existe um eu no
comando, uma aceitação plena da nossa
fragilidade e uma afirmação da continuidade da
vida, independente de nossa morte pessoal. O
mitólogo Joseph Campbell chama atenção para o
momento do nosso nascimento: separamo-nos
da unidade materna, somos jogados no mundo,
respiramos e a primeira coisa que diz ego é medo.
É por isso que o ego não pode ser o centro da
consciência, não podemos ser comandados pelo
medo. O ego não pode nem deve ser eliminado,
porque é o grande protetor da integridade de
nosso corpo carnal, em momentos de ameaça ou
de perigo. Contudo, o percurso heróico do nosso
compõe/a sua própria história/e
cada ser em si/carrega o dom de
ser capaz/de ser feliz.
Renato Teixeira
Tocando em frente
Se você olha pra mim/se me dá
atenção/eu me derreto
suave/neve no vulcão/se você
toca em mim/alaúde emoção/eu
me desmancho suave/nuvem no
avião/Himalaia himeneu/esse
homem nu sou eu/olhos de
contemplação/inca maia
pigmeu/minha tribo me
perdeu/quando entrei no
122
roupas vão sair pra
jantar/nos levar pra
dançar/e depois ficar a
sós/suadas no tapete
esquecidas de nós.
Lula Queiroga
Roupa no varal
Violão esquecido num
canto é silêncio/coração
encolhido no peito é
desprezo/solidão
hospedada no leito é
ausência/a paixão
refletida num pranto,ai, é
ser é para transcender
essa pequena ilha. É preciso
compreender o símbolo: quem está pregado na
cruz não é Cristo, mas o Ego. Não é uma
afirmação da tortura, do sofrimento e da morte,
como caminhos para a redenção ou salvação. Isso
é a manipulação institucional da sua mensagem.
Cristo de braços abertos é a plenitude da vida,
que significa a conexão, a intermediação, que o
amor humano faz entre o animal e o divino: o
Coração do tamanho de Mundo. Embora velado
ou manipulado pelas instituições, para manterem
o poder da informação para poucos e o controle
do rebanho, o que está disponível no patrimônio
mítico das religiões são
percursos iniciáticos
,
roteiros de iluminação, instruções e práticas para
conseguir uma vida plena! Quando se diz Cristo é
um Deus que se fez homem, faz-se dele um herói
solitário, afastado do mundo, um exemplo
inatingível, um ideal de perfeição incompatível
com a vida, embora seja uma fonte de inspiração,
tira-nos a co-responsabilidade. Quando se diz
Cristo é um homem que se fez Deus, o caminho
está disponível para todos, mas é preciso coragem
e atitude, querer se empenhar com todas as
forças e formas do Amor, em aumentar a Luz da
Vida!
HERMES
Parece que esse é o momento da nossa co-
responsabilidade com o rumo planetário da vida.
Perdido no vago do próprio umbigo/Cansado
sugado querendo achar um culpado/Sempre a
mesma conversa de que tudo errado/Que a
sociedade não presta/Acredite a sociedade
começa na sua testa.
Os grandes
avatares
vieram, deram sua
contribuição, deixaram suas narrativas exemplares
e estão em nossos corações. Esse é
simbolicamente o braço vertical da cruz: os
deuses se fizeram humanos. Agora é o momento
da iluminação em rede: pessoa-a-pessoa, o
coração nas mãos, os braços abertos: o lado
horizontal da cruz, humanos se fazendo plenos
de vida!
templo da paixão.
Chico César.
Templo
Um fogo queimou dentro de
mim/que não tem mais jeito de
se apagar/nem mesmo com toda
água do mar/preciso aprender
os mistérios do fogo/pra te
incendiar/um rio passou dentro
de mim/que eu não tive jeito de
atravessar/preciso um navio pra
me levar/preciso aprender os
mistérios do rio/pra te
navegar/vida
breve/natureza/quem mandou,
coração?/um vento bateu
dentro de mim/que eu não tive
123
tristeza/um olhar
espiando o vazio é
lembrança/um desejo
trazido no vento é
saudade/um desvio na
curva do tempo é
distância/e um poeta que
acaba vadio, ai, é
destino/a vida da gente é
mistério/a estrada do
tempo é segredo/o sonho
perdido é espelho/o
alento de tudo é canção/o
fio do enredo é mentira/a
história do mundo é
No fundo de
cada um pulsa um novo
mundo/Cada indivíduo é um universo vivo/E
você mesmo seu maior inimigo/No fundo de
cada um pulsa um novo mundo/Cada indivíduo
é mais uma peça que completa essa equação
complexa.
Janaína, é preciso dizer algo sobre a sua pergunta:
se chegar ao coração é amar, como exercê-lo
como arte de cada dia? Vou ler para vocês o que
diz
Edgard de Assis Carvalho, no seu estudo sobre
Lévi-Strauss, nos
Enigmas da Cultura
:
essa atitude
do bem-viver envolve a reconciliação entre o
físico e o moral, a natureza e o homem, o
mundo e o espírito. Se os mitos realizaram
lindamente esse empreendimento, cabe reinseri-
los no mundo das realidades globalizadas do
presente e construir um humanismo civilizatório
planetário que nunca começa por si mesmo. Se
perdemos inexoravelmente as qualidades efetivas
do olhar, da escuta e da leitura, resta-nos ainda
supor ser possível enfrentar as condições adversas
do presente e passarmos a entender a vida como
uma obra de arte, a ser simultaneamente
recuperada pelo imaginário e fabricada pelas
materialidades. Viver a vida como obra de arte
implica religar radicalmente as ordens natural e
artificial, em assumir a indissociabilidade do
visível e do invisível.
Esse texto se encontra com sua exposição e
esclarecem que é necessário transitar sem
fronteiras e continuamente entre as três formas
de amor. É provável que esse fluxo amoroso seja
suficiente para criar uma ética, que é algo de cada
pessoa. A moral são prescrições para a
coletividade, é um agir como se amássemos. Se
amamos, a moral torna-se supérflua,
desnecessária. A institucionalização da sabedoria
dos avatares mutilou e escondeu passos essenciais
de suas práticas, para chegar à plenitude do viver.
Desde o início da nossa narrativa, estamos
empenhados em recuperar nossa autonomia, em
juntar as peças e passos desses processos
iniciáticos, dispersas em várias tradições
espirituais. Por exemplo, quase nada sabemos
sobre a técnica de Cristo, mas os vazios de uma
tradição podem ser preenchidos por outra: Buda,
jeito de segurar/a vida passou
pra me carregar/preciso
aprender os mistérios do
mundo/pra te ensinar.
Joyce e Maurício Maestro
Mistérios
Eu quero a sorte de um amor
tranquilo/com sabor de fruta
mordida/nós na batida, no
embalo da rede/matando a sede
na saliva/ser teu pão, ser tua
comida/todo amor que houver
nesta vida/e algum trocado para
dar garantia/e ser artista no
nosso convívio/pelo inferno e
céu todo dia/pra poesia que a
124
brinquedo/o verso do
samba é conselho/e tudo
que eu disse é ilusão.
Paulo César Pinheiro
Alento
Quando eu cheguei das
estrelas/entrei na
Terra/por uma
caverna/chamada:
nascer/e eu era uma
nave/uma ave/da Ave
Maria/e como uma
fera/que berra/entrei na
atmosfera/e cuspido,
inicialmente
,
foi
tentado
a
desprezar o corpo
carnal: chegou a um estado de desnutrição grave
e deformações articulares, causadas pela longa
permanência na mesma posição, enquanto
meditava. A sua proposta do caminho do meio
começa aqui. Vou ler um texto dele, para ilustrar
o que estou falando:
Não acrediteis numa coisa apenas por ouvir dizer.
Não acrediteis na das tradições porque
foram transmitidas por longas gerações. Não
acrediteis numa coisa porque é dita e repetida
por muita gente. Não acrediteis numa coisa
pelo testemunho de um sábio antigo. Não
acrediteis numa coisa só porque as probabilidades
a favorecem ou porque um longo hábito vos leva
a tê-la por verdadeira. Não acrediteis no que
imaginastes, pensando que um ser superior a
revelou. Não acrediteis em coisa alguma
,
apenas
pela autoridade dos mais velhos ou dos vossos
instrutores. Mas, naquilo que por vós mesmos
experimentastes, provastes e reconhecestes
verdadeiro, aquilo que corresponde ao vosso bem
e ao bem dos outros isso deveis aceitar, e por
isso moldar a vossa conduta.
Na medida em que vamos arriscando
experimentar em nossos corpos essas descobertas,
simultaneamente podemos divulgar e
compartilhar com os que cruzam os nossos
caminhos, pessoalmente e na interlocução
internáutica.
As plantas dos pés no chão, sem raízes. Não me
chamo Hermes?
Pés que soam/Pés que sambam/Pedem
calma/Pés de manga/Pés descalços/Pés de
calo/Pés de chinelo/Pés de criança.
gente não vive/transformar o
tédio em melodia/ser teu pão,
ser tua comida/todo amor que
houver nesta vida/e algum
veneno antimonotonia/e se eu
achar a tua fonte escondida/te
alcance em cheio o mel e a
ferida/e o corpo inteiro como
um furacão/boca, nuca, mão e a
tua mente, não/ser teu pão, ser
tua comida/todo amor que
houver nesta vida/e algum
remédio que me dê alegria.
Cazuza e Frejat
Todo amor que houver nesta vida
Eva e eu/eu e ela/Eva e
eu/gosto pela terra/onde jorra/o
125
espremido/petisco de
visgo/forçando a
passagem/pela
barreira/sangrando,
rasgando/subindo a
ladeira/orgasmo
invertido/gritei quando
vi:/já estava respirando.
Tom Zé
Nave Maria
Deixem
-
me contar sobre essa viagem a algumas
cidades da cultura Maya, no México e na
Guatemala. Precisamos compreender que algo
daquelas experiências iniciáticas, que estavam em
Elêusis, na Grécia, ainda estão vivas nesses lugares,
com rituais que usam os cogumelos e o peyote,
na cultura Maya e Azteca e ayahuasca, no Peru.
Por isso, é possível preencher os vazios de
informação de uma cultura com outra, supondo
padrões semelhantes nesses passos iniciáticos. Os
Mayas dizem que a Vida é Tempo e este Arte. A
vida se oferece como uma obra de arte. Mas é
essencial saber o padrão de cada dia, para que
nossa arte não seja completamente aleatória. Para
isso criaram um calendário sagrado, o
Tzolkin,
com 20 imagens e 13 tons, que vão rodando e se
combinando aos pares, como dentes de catracas
com diâmetros diferentes. Cada dia tem uma
imagem e um tom e essa combinação é o
instrumento de navegação. No modelo
capitalista se diz que tempo é dinheiro, lucro,
produtividade e consumo e que é preciso
rentabilizar todos os momentos. A cultura Maya,
pelo contrário, não pensa em rentabilizar cada
instante. Estão empenhados em viver cada dia de
modo adequado. Viver é como compor música,
pintar ou escrever um poema. Cada dia vivido de
modo adequado pode tornar-se uma obra de arte
ou, pelo contrário, ser um desastre, se não forem
encontradas as combinações mais adequadas. É
difícil para nós compreender e aceitar esse
modelo porque prestamos pouca atenção ao que
significa viver bem. Apesar da grande destruição
colonial, a cultura Maya soube se preservar,
provavelmente por sua flexibilidade característica
em avaliar, adaptar e incorporar o que seja
benéfico ao seu padrão. O seu modo de tratar o
tempo pode ter sido decisivo para evitar a
desintegração cultural. O tempo liga os
indivíduos à sua aldeia, aos seus antepassados, aos
deuses e aos rituais divinatórios, ao qual se
acrescenta a relação que liga os indivíduos uns
aos outros, através dos seus corpos. Essa forma de
xamanismo utiliza o corpo como emissor,
receptor e analisador de mensagens. Não se trata
de leituras gestuais ou psicossomáticas, feitas de
fora, objetivamente, mas de funções fisiológicas
de corpos intersubjetivamente integrados. Eles
esperma, a estrela, a primeira, o
primeiro amor/quando o céu
mudou de cor/Eva e eu/nosso
excesso/sexo, ex-céu/nosso fim
começo/eu e ela/uma célula,
pérola, pétala sob o sol/quando
a tarde escureceu/Eva e eu/a
costela dela sou eu/minha mãe
matéria/me leva/onde a terra
tem cheiro, onde chove, onde a
chuva cai/para onde o tempo
vai/onde a carne tem gosto e o
rosto enrugará/onde canta o
sabiá.
Péricles Cavalcanti e Arnaldo Antunes
Eva e Eu
126
As aparências
enganam/aos que odeiam
e aos que amam/porque o
amor e o ódio/se
irmanam na fogueira das
paixões/ os corações
pegam fogo e depois/não
há nada que os
apague/se a combustão
os persegue/as labaredas
e as brasas são/o
alimento, o veneno e o
pão/o vinho seco, a
recordação/dos tempos
idos de
consideram a circulação do sangue como um
elemento ativo do sistema de comunicação
corporal. A capacidade divinatória do sangue é
diretamente herdada dos seus antepassados. Em
casos de cura o corpo do xamã entra em sintonia
e sincronia com o corpo do doente, em uma
espécie de rede fisiológica. O xamã sente uma
pulsação em diferentes partes de seu próprio
corpo. Esse efeito de pulsação, diversa da sua,
permite ao xamã, pelo ritmo, estabelecer um
diagnóstico. Pelo fato da música ter uma
cadência, geralmente as pessoas pensam que o
ritmo tem a sua origem na música. Pelo
contrário, a música é um desencadeador
extremamente elaborado de ritmos enraizados
nos indivíduos. Como explicar de outro modo a
harmonia íntima que se observa entre etnicidade
e música? Pode-se também considerar a música
como uma notável extensão dos ritmos internos
dos seres humanos. Nessa relação, entre
movimentos corporais e linguagem oral, o
antropólogo Edward Hall notou que os
movimentos do corpo abrandam com a
pronúncia de uma vogal e aceleram-se com a
pronúncia de uma consoante e que isto parece
constituir um fenômeno universal.
JANAÍNA
Essa história de integração entre corpos, dos
xamãs Mayas, lembra o que aprendi com os
japoneses em Tóquio. Hermes, você partiu logo
para essa sua viagem, mas eu fiquei um bom
tempo por lá. Os japoneses definem sua ação a
partir de três centros: o espírito, o coração e o
hara,
que é o ventre ou as entranhas. Na cultura
japonesa, a situação ou contexto desempenha
um papel essencial; interessa determinar qual
desses três centros domina uma situação. O
espírito está ligado aos negócios, o coração ao lar
e aos amigos e o hara é o motivo que leva
alguém a fazer esforços não importa em que
domínio. É possível confiar no coração, o espírito
muda constantemente e o hara é a mediação
entre os dois.
Posso sair daqui para me
organizar/posso sair daqui para
desorganizar/da lama ao
caos/do caos à lama/um homem
roubado nunca se engana/o sol
queimou, queimou a lama do
rio/eu vi um chié andando
devagar/vi um aratu pra lá e pra
cá/vi um caranguejo andando
pro sul/saiu do mangue, virou
gabiru/oh Josué, eu nunca vi
tamanha desgraça/quanto mais
miséria tem mais urubu ameaça/
peguei o balaio fui na feira para
roubar tomate e cebola/ia
passando uma véia pegou a
127
comunhão/sonhos
vividos de conviver/as
aparências enganam aos
que odeiam e aos que
amam/porque o amor e o
ódio se irmanam na
geleira das paixões/os
corações viram gelo e
depois/não há nada que
os degele/se a neve
cobrindo a pele/vai
esfriando por dentro o
ser/não há mais forma de
se aquecer/não há mais
HERMES
No México, entre tantas, três imagens
fascinantes: a primeira é a Deusa da Vida e da
Morte,
Coatlicue:
a Senhora da Saia de Serpentes
ou o
Coração da Terra
, da cultura Azteca; a
segunda imagem é a enorme pedra circular do
Calendário Solar Azteca, com os cinco Sóis ou
Eras do Mundo; e a terceira é a do deus Maya
Kukulkan
, que corresponde na cultura Azteca ao
deus
Quetzalcoatl: a Serpente Emplumada:
a
união da cascavel com um maravilhoso pássaro
vermelho e verde, de cauda longa: o
quetzal.
Coatlicue
, a Deusa Mãe da Vida e da Morte, está
representada em uma grande escultura, no
Museu de Antropologia da cidade do México.
Quando os arqueólogos a encontraram, o
impacto foi tão grande que voltaram a enterrá-la.
Ela não tem forma humana. Em sua superfície a
textura é de couro de cascavel. A cabeça
apresenta dois olhos, mas não boca ou nariz e
sim quatro grandes dentes pontiagudos. Os
braços não teem mãos e há quatro garras em
cada pé. No peito vemos quatro mãos abertas,
uma para cada direção cardeal e entre essas mãos
há dois corações. Há uma caveira entre o umbigo
e os órgãos genitais. Conta o mito que a primeira
gravidez de
Coatlicue
foi causada por uma faca de
obsidiana, dando à luz
Coyolxauhqui
, a deusa da
Lua e vários outros irmãos que se transformaram
em estrelas. Um dia Coatlicue estava varrendo
quando encontrou uma bola de plumas e a
aconchegou cuidadosamente em seu ventre. Mais
tarde, quando procurou a bola, descobriu que ela
desaparecera e que estava grávida. Seus filhos não
acreditaram e envergonhados da mãe resolveram
matá-la. Enquanto os filhos conspiravam
Coatlicue deu à luz a
Huitzilopochtli
, deus da
Guerra. Com a ajuda de uma cobra de fogo, o
deus da Guerra matou todos os irmãos e
decapitou a Deusa Lua.
minha cenoura/
ai minha véia
deixa a cenoura aqui/com a
barriga vazia/não consigo
dormir/e com o bucho mais
cheio comecei a pensar/que eu
me organizando posso
desorganizar/que eu
desorganizando posso me
organizar/da lama ao caos/do
caos à lama/um homem
roubado/nunca se engana.
Chico Science
Da lama ao caos
128
tempo de se
esquentar/não há mais
nada pra se fazer/senão
chorar sob o cobertor/as
aparências enganam/aos
que gelam e aos que
inflamam/porque o fogo e
o gelo/se irmanam/ no
outono das paixões/os
corações cortam lenha e
depois/se preparam pra
outro inverno/mas o
verão que os unira/ainda
vive e transpira ali/nos
corpos juntos, na
O Calendário Solar é uma
mandala
de pedra, com
3,60 metros de diâmetro, pesando mais de vinte
toneladas, datada de 1479 e também está no
Museu de Antropologia do México. Nela estão
representados os cinco Sóis ou Eras do Mundo. O
mundo não foi criado uma única vez, mas cinco,
e quatro vezes foi destruído. As quatro Eras
passadas estão representadas nos quatro pontos
cardeais do calendário e a quinta Era, essa que
estamos vivendo, está no centro do calendário. O
interessante aqui é que a ciência afirma ter havido
cinco períodos glaciais, com grandes extinções de
espécies. A humanidade surgiu no quinto
período interglacial, esse nosso. A
primeira Era
ou Sol
é conhecida como
4 Jaguar
, foi um
período brutal de gigantes, durante o qual o
portador do sol era o deus do céu noturno
Tezcatlipoca.
O período durou 13 vezes 52 ou
676 anos e terminou quando
Tezcatlipoca
foi
derrubado por
Quetzalcoatl,
que o transformou
em um jaguar, símbolo do elemento
terra
, que
devorou todos os gigantes. O quadrante é o
Norte. A
segunda Era,
é conhecida como
4
Vento
, iniciou-se quando
Quetzalcoatl
tornou-
se portador do sol e durou também 676 anos,
terminando quando
Quetzalcoatl
foi derrotado
por
Tezcatlipoca
, que o transformou em furacão
e destruiu quase tudo. Aqueles que restaram se
tornaram macacos. O elemento aqui é o
ar
. O
quadrante é o Leste. A
terceira Era
, é conhecida
como
4 Chuva,
o portador do sol era
Tlaloc
, o
deus da Chuva,
aquele que faz brotar,
nomeado
por
Tezcatlipoca
. O seu período durou apenas
464 anos e terminou quando ele foi derrotado
por
Quetzalcoatl,
o que o fez derramar uma
chuva de fogo que transformou seu povo em
perus. Aqui o elemento é o
fogo
e a direção o
Sul. A
quarta Era
, é conhecida como
4 Água,
Primeiro não havia nada/nem
gente nem parafuso/o céu era
então confuso/e não havia
nada/mas o espírito de
tudo/quando ainda não
havia/tomou forma de uma
jia/espírito de tudo/e dando o
primeiro pulo/tornou-se o verso
e o reverso/de tudo que é
universo/dando o primeiro
pulo/assim passou a haver/tudo
quanto não havia/tempo, pedra,
peixe, dia/assim passou a
haver/dizem que existe uma
tribo/de gente que sabe o
modo/de ver esse fato todo/diz
129
lareira/na reticente
primavera/no insistente
perfume de alguma coisa
chamada amor.
Tunai e Sérgio Natureza
As aparências enganam
Mesmo que os cantores
sejam falsos como
eu/serão bonitas, não
importa/são bonitas as
canções/mesmo
miseráveis os poetas/os
seus versos serão
bons/mesmo porque as
teve como portadora do sol a esposa de
Tlaloc
,
a
deusa das águas correntes: Chalchiuhtlicue,
que
foi nomeada para o cargo por
Quetzalcoatl
. O
seu período durou 312 anos e terminou com o
dilúvio, que durou mais 52 anos e transformou o
povo em peixes. O elemento aqui é a
água
e a
direção Oeste. Depois do dilúvio houve
necessidade de uma nova criação.
Quetzalcoatl
desceu ao mundo subterrâneo,
Mictlan
, para
enfrentar o
Senhor da Morte: Mictlantecuhtli.
Voltou com um pacote de ossos humanos e deu
de presente à
Coatlicue,
a Deusa-Mãe,
a que tudo
abrange no Universo.
Ela moeu esses ossos e
despejou o num precioso vaso de barro,
dentro do qual Quetzalcoatl fez sangrar o seu
pênis e depois que todos os deuses cumpriram
sacrifícios e penitências, formou-se o novo povo.
A
quinta Era
, é conhecida como
4 Movimento
e
é o nosso tempo, nascido do sacrifício dos deuses
e que continuará brilhando mediante o
sacrifício das criaturas dos deuses: as mulheres e
os homens.
O quinto Sol
está no centro do
calendário, representado estirando a língua, o
que significa o sol místico, não o sol do dia, mas
o poder por trás dele, a fonte e o objetivo de
toda vida. Essa máscara solar com saliências
semelhantes a orelhas mostra, em cada uma
delas, mãos, cujos dedos terminam em garras de
águia segurando corações humanos. um anel
em torno da máscara solar central com vinte
símbolos dos dias do mês azteca. Todo esse
conjunto se acha envolvido por duas grandes
serpentes emplumadas, com guizos de cascavel
que se encontram na parte de cima e na parte de
baixo duas cabeças humanas, uma de frente
para outra, dentro das bocas abertas das
serpentes.
A queda do Império Azteca era a prova de que os
deuses não mais ouviam o seu povo. o auto-
sacrifício poderia aplacar a fúria dos deuses. Nesse
momento, os aztecas deixaram de simbolizar
a
paixão, morte e ressurreição
dos seus deuses e
começaram a fazer o sacrifício voluntário do seu
próprio povo. Quando mesmo assim os deuses
continuaram sem ouvir, fizeram a guerra para
conseguir mais vítimas. Com uma faca de
obsidiana rasgavam os peitos e com as mãos para
que existe essa tribo/de gente
que toma um vinho/num
determinado dia/e vê a cara da
jia/gente que toma um
vinho/dizem que existe essa
gente/dispersa entre os
automóveis/que torna os
tempos imóveis/diz que existe
essa gente/dizem que tudo é
sagrado/devem-se adorar as
jias/e as coisas que não são
jias/diz que tudo é sagrado/e
não havia nada/espírito de
tudo/dando o primeiro
pulo/assim passou a haver/diz
que existe essa tribo/gente que
130
notas eram
surdas/quando um Deus
sonso e ladrão/fez das
tripas a primeira lira/que
animou todos os sons/e
daí nasceram as
baladas/e os arroubos de
bandidos/como eu
cantando assim:/você
nasceu pra mim/você
nasceu pra mim/mesmo
que você feche os
ouvidos/e as janelas do
vestido/minha musa vai
cair em tentação/mesmo
o alto
ofereciam os co
rações ainda pulsantes aos
deuses insaciáveis de sangue. Essa é uma situação
limite. Esse é um padrão que se repete na história
das primeiras religiões é aquele em que a
comunidade descarrega sua violência sobre uma
vítima, que se julga culpada, e por meio dessa
expiação se restabelece a ordem social, tão
preciosa e fecunda que a comunidade investe de
um poder sagrado exatamente a vítima,
divinizando-a. Sacrifício significa isso: tornar
sagrado. O cristianismo quebra esse padrão. Uma
das originalidades do cristianismo é que a vítima
é inocente. Daí em diante, não podemos mais
fazer de conta que não sabemos que a ordem
social está construída sobre a pele e os corações
de vítimas inocentes. Por meio da encarnação e
da morte de Cristo, e da consequente revelação
do mecanismo violento e vitimário, que estava
na base do sagrado das primeiras religiões,
aprendemos que é Deus mesmo quem
se
enfraquece,
abrindo um espaço onde o humano
possa se emancipar. Cristo veio ao mundo para
revelar que a religiosidade não consiste em
sacrifícios sangrentos, mas em amar o Próximo
como um Deus.
Diz um poema azteca:
A vida
é apenas uma
máscara usada no rosto da morte. A morte é
apenas outra máscara? Quantos podem dizer se
além ou não uma verdade? Apenas sonhamos,
apenas ressurgimos de um sonho. É tudo como
um sonho. A única verdade sobre a Terra é
poesia.
Kukulkan
ou
Quetzalcoatl
é um deus da vida, do
vento, criador e civilizador, padroeiro de todas as
artes, foi ele quem inventou a metalurgia, o
trabalho com pedras preciosas, a arquitetura dos
edifícios, monumentos e zigurates, a matemática,
toma um vinho/diz que existe
essa gente/diz que tudo é
sagrado.
Caetano Veloso
Gênesis
Rebento substantivo abstrato/o
ato, a criação e o seu
momento/como uma estrela
nova e o seu barato/que só
Deus sabe lá no
firmamento/rebento, tudo que
nasce é rebento/tudo que
brota, tudo que vinga, tudo que
medra/rebento raro como flor
na pedra/rebento farto como
131
porque estou falando
grego/com sua
imaginação/mesmo que
você fuja de mim/por
labirintos e
alçapões/saiba que os
poetas como os
cegos/podem ver na
escuridão/e eis que
menos sábios do que
antes/os seus lábios
ofegantes/hão de se
entregar assim:/me leve
até o fim/me leve até o
fim/mesmo que os
a astronomia e o calendário.
Tal como no Egito,
muitos reis-divinos tomaram o seu nome e
criaram dinastias. A imagem original, em pedra,
está hoje no Museu Britânico, mas existem
muitas cópias, por toda parte, no México e na
Guatemala.
Kulkukan
está na vertical, mas não
tem tórax, abdome, nem coxas ou pernas. O
corpo é formado por duas serpentes superpostas,
que se enroscam em espiral anti-horária onde
seriam os pés: atrás a serpente intestinal e à frente
a serpente vertebral. um estômago também
em espiral. De humano vemos a cabeça, com
olhos fechados e um rosto sereno, como quem
medita, e as duas mãos, sendo mais nítida a
direita, com os dedos indicador e mínimo
abertos. Na parte de cima da cabeça está o bico e
as penas do quetzal. A imagem me impressionou
porque, por si só, é um roteiro da arte de viver: o
humano está fisicamente entre a serpente e o
pássaro, ou dito de outro jeito, somos um ser
trino: animal, humano e divino; a vida ou a saúde
é um bom fluxo das serpentes digestiva e neural;
a interiorização ou meditação é vital na
harmonia do ser; os dois dedos destacados
podem indicar a polaridade de tudo. Janaína,
nesses mapas de correspondências que gostamos
tanto de fazer, as três formas de amor que você
descreveu: amor carência, amor potência e amor
universal, podem ser confundidos com essa
trindade: animal, humano e divino. O poder de
Quetzalcoatl
provocou a inveja dos deuses
menores do panteão, especialmente o de um
diabrete obscuro e eternamente jovem, de nome
Tezcatlipoca,
que quer dizer
espelho fumegante.
Foi ele quem comandou os outros, na visita que
fizeram a
Quetzalcoatl
, levando-lhe de presente
um espelho. Quando o deus se viu refletido,
assustado gritou. Achava que por ser um deus
não tinha rosto. Agora via que sua face era a de
um homem, semelhante a sua criatura. Uma vez
que tinha um rosto humano, devia ter também
um destino humano. Por isso partiu, numa balsa
de serpentes e navegou para o Oriente. Prometeu
que retornaria numa determinada data. Percorreu
várias regiões em seu trabalho civilizatório. Um
dia chegou a uma praia, voltou a olhar-se no
espelho: o rosto estava velho. Pensou em sua vida
e chorou. Tirou a túnica de penas verdes e
trigo ao vento/outras vezes
rebento simplesmente/no
presente do indicativo/como a
corrente de um cão
furioso/como as mãos de um
lavrador ativo/às vezes, mesmo
perigosamente/como acidente
em forno radiativo/às vezes só
porque fico nervoso/eu
rebento/ou necessariamente só
por que estou vivo/rebento/a
reação imediata/a cada
sensação de abatimento/eu
rebento/o coração dizendo
bata/a cada bofetão do
sofrimento/eu rebento/como
132
romances sejam
falsos/como o nosso/são
bonitas, não importa/são
bonitas as
canções/mesmo sendo
errados os amantes/seus
amores serão bons.
Edu Lobo e Chico Buarque
Choro Bandido
Quando o segundo sol
chegar/para realinhar as
órbitas dos
planetas/derrubando com
assombro exemplar/o que
vermelhas, a máscara de pele de serpente
, deixou
tudo na areia e se atirou em um vulcão. As suas
cinzas transformaram-se em pássaros de cores
vivas e canto melodioso e seu coração subiu ao
céu transformado na Estrela d’Alva: Vênus.
Quando as profecias, os sinais da natureza e a
história coincidiram: as águas revoltas, cometas
riscando o espaço, casas flutuantes, homens
cavalgando com quatro patas e o deus louro,
barbado e de olhos azuis comandando tudo, os
Aztecas e seu imperador Montezuma, tiveram
certeza de que seu mundo desmoronava e se
fragilizaram:
Quetzalcoatl
tinha retornado, como
havia prometido. Era o desembarque de Cortés,
no golfo do México, na quinta-feira santa de
1519. Um bando de seiscentos homens destruiu
uma das maiores civilizações da América. Cortés
teve como aliados povos de várias culturas,
insatisfeitos com os abusos de poder e a
crueldade de Montezuma, que acreditou até o
fim na divindade dos espanhóis e também que os
deuses estavam tomando de volta o que era
deles. Montezuma morreu apedrejado por seu
próprio povo. Além de todas as mortes, a
catequese cristã contribuiu com sua parte
queimando hereges e quase todos os livros.
Ironicamente
Quetzalcotl
é um deus muito
semelhante a Cristo, com um ciclo de
paixão,
morte e ressurreição
e com as mesmas
características de auto-sacrifício;
os Aztecas
também tinham a cruz como árvore do mundo e
comungavam a
carne do deus
:
teonanacatl
, um
cogumelo com
psilocibina
. um episódio em
que os padres dão a hóstia consagrada dizendo
que era a carne de Cristo. Os índios aguardaram o
efeito, mas nada aconteceu. Então disseram: nós
também comemos a carne de deus. Quando os
padres comungaram o cogumelo viram todos os
seus demônios e apavorados proibiram os rituais.
Nesse momento, a civilização Maya já tivera seu
auge e fora substituída pela civilização Azteca. Os
Aztecas tinham absorvido muitas culturas
anteriores e dos Mayas herdaram os
conhecimentos de matemática, astronomia e os
calendários. Os Mayas descobriram o zero,
simultaneamente aos Indianos, e fizeram
cuidadosas observações astronômicas, como
um trovão dentro da mata/e a
imensidão do som desse
momento.
Gilberto Gil
Rebento
Mexe, mexe, mexe,
mexe/porque/ a arte de mexer
vem desde o tempo da pedra
lascada/todo mundo mexia/todo
mundo requebrava/todo mundo
sacudia/todo mundo balançava
e cantava/mexe, mexe, mexe,
mexe, mexe/quando você pára
de brincar e mexer/você
envelhece/quando você pára de
brincar e mexer/a sua barba
133
os astrônomos diriam se
tratar de um outro
cometa/não digo que não
me surpreendi/antes que
eu visse, você disse/e eu
não pude acreditar/mas
você pode ter certeza/que
seu telefone irá tocar/em
sua nova casa/que abriga
agora a trilha/incluída
nessa minha
conversão/eu só queria
te contar/que eu fui lá
fora e vi dois sóis num
dia/e a vida que
rotações e translações planetárias e estabeleceram
Eras, Idades ou Grandes Ciclos Cósmicos: os
Cinco Sóis. Essas Eras podem ser observadas em
várias culturas e são correspondentes. Na Grécia,
as quatro Idades:
Ouro, Prata, Bronze e Ferro
. Na
Índia, os Yugas:
Krta Yuga
,
Treta Yuga
,
Dvapara
Yuga
e
Kali Yuga
. Essas Eras supõem um ciclo,
com um auge:
Ouro
, na Grécia e
Krta
, na Índia, e
uma decadência gradativa até um máximo: a
Era
de Ferro
ou
Kali Yuga
, e esse decaimento se
em todos os veis: planetário, civilizatório,
comportamental e de níveis de consciência. As
concepções de um Deus imanente, Deus na
História, influenciaram alguns filósofos, como o
renascentista Joachim de Fiore, que concebeu o
seu ciclo a partir da mística cristã da trindade: o
Tempo do Pai
: medo, servidão, infância, luz
estelar; o
Tempo do Filho
: fé, liberdade,
juventude, luz da lua; o
Tempo do Espírito Santo
:
amor, amizade, maturidade, luz do dia. O
filósofo Vico também imaginou um ciclo de
humanização:
Era dos Deuses
, na qual os
governos são de reis-divinos;
Era dos Heróis
, em
que os governos são aristocráticos; e a
Era dos
Homens
, na qual os governos são democráticos.
Ainda é possível falar nas Eras do Zodíaco, da
Astrologia, presente em várias culturas.
Essas diversas visões compartilham a ideia de que
estamos em uma transição de Eras: do Ferro ao
Ouro; do Kali Yuga ao Krta Yuga; da Era de
Peixes para a de Aquário; do Quarto ao Quinto
Sol. Aqui é importante notar que a palavra, em
sânscrito, do Yuga que corresponde a Era de
Ouro, é
Krta
: feito, realizado e vem do verbo
Kr
:
fazer, concluir. uma raiz comum, indo-
européia, da palavra
Krd,
que deu origem aos
vocábulos com o mesmo significado em
armênio, germânico, eslavo, sânscrito e também
em grego, latim, italiano, francês, espanhol e
português:
kard,
cord,
cor, cuore, coeur
,
corazón,
coração.
Então, para que possa surgir a
Nova Era
é preciso a abertura do nosso Coração. Na
mística cristã, a transição é da Era de Peixes: o
Filho, Eu Creio, para a Era de Aquário, o Espírito
Santo, Eu Sei.
Os Mayas, com seu calendário sagrado, o
Tzolkin
, têm uma data para o início desse salto
cresce/quando você pára de
brincar e mexer/seu amor
desaparece/quando você pára
de brincar e mexer/seu
coração, em vez de bater,
padece/mexe, mexe, mexe,
mexe/irmã, irmão/pare, pense,
brinque, mexa/pois a vida é
bela/tem gente que não sabe
brincar e mexer com ela/mexe,
mexe, mexe, mexe/vem mexer
comigo.
Jorge Benjor
Mexe mexe
Pintar, vestir/virar uma
aguardente/para a próxima
134
ardia/sem explicação.
Nando Reis
Segundo sol
O relógio quebrou/e o
ponteiro parou/em cima
da meia-noite/em cima do
meio-dia/tanto faz porque
depois de um vem dois/e
vem três e vem quatro e
eu fico olhando o
rato/saindo do buraco do
meu quarto/e você de
bonezinho caiu do
de Elevação da Consciência Planetária: 21 de
dezembro de 2012. É importante dizer que isso
nada tem a ver com o Apocalipse, no sentido de
destruição do Mundo, mas da morte de uma Era
e o começo de outra. Na cidade Maya de
Uxmal
,
na Guatemala, depois de beber
ayahuasca
, deite-
me no pátio do templo, fechei os olhos e como
se fosse uma confirmação ou aceitação ouvi
cantar, por duas vezes, o quetzal. Nesse
momento, decolei em um voo mágico
xamânico: o corpo carnal ficou deitado na Terra,
mas minha consciência estava nas bordas do
núcleo luminoso da Via Láctea. A vibração era
intensa e musical. Pensei que se quisesse poderia
mergulhar naquela luz e sem medo algum tive a
consciência de que isso significava a morte. Senti
que não era o momento e escolhi que ainda
queria viver muito tempo. Nesse instante, a
consciência incorpórea foi arrastada para o corpo
em uma velocidade maior do que a da luz, mas
ainda pude ver, antes da chegada, a Terra azulada.
vimos antes que, os gregos influenciados pelos
xamãs, interpretaram que havia duas coisas: o
corpo perecível e a alma imortal, a que podia
fazer essas viagens. Mas nada nos impede de
pensar, como os materialistas: essa alma que viaja
ainda é um atributo pouco conhecido ou
esquecido da potência do corpo. Os ortodoxos
da ciência não conseguem admitir que muitas
observações de estrelas, constelações ou galáxias,
podem ter sido feitas diretamente, com esse tipo
de técnica.
JANAÍNA
A propósito da alma, deixem-me dizer algo que
nunca contei para vocês. Considero Tom Jobim
meu pai espiritual. Quis gravar um disco com ele,
mas não tive essa felicidade. Sem saber que ele
estava morrendo, tive um sonho: ele com muitas
pessoas em volta, estava contente e iluminado.
No noticiário da manhã seguinte, soube da sua
morte. Chorei mais do que na morte do meu pai
biológico. Depois pensei sobre o privilégio de
estar presente na partida da sua alma. Talvez o
meu desejo de encontrá-lo fosse tão grande, que
essa demanda poderia atrapalhar em algo o
deslocamento de sua alma.
função/rezar, cuspir/surgir
repentinamente/na frente do
telão/mais um dia, mais uma
cidade/pra se apaixonar/querer
casar/pedir a mão/saltar,
sair/partir pé ante pé/antes do
povo despertar/pular,
zunir/como um furtivo
amante/antes do dia
clarear/apagar as pistas de que
um dia ali/já foi feliz/criar raiz/e
se arrancar/hora de ir
embora/quando o corpo quer
ficar/toda alma de artista quer
partir/arte de deixar algum
lugar/quando não se tem para
135
lado/fazendo cena de
cinema e cena de
teatro/com seu charme de
Greta Garbo/e jeitinho de
bay-hip/fico todo
alucinado/sacou o meu
recado?
Jorge Mautner
O relógio quebrou
The first
mushroom/makes room
for my mind/to get inside
the magic room/of
Dionysus’house/time is
HERMES
uma ironia que vale comentar: o Ocidente
primeiro duvidou de que os povos indígenas
tivessem alma, depois duvidou da existência da
alma feminina e finalmente da própria alma.
DIONÍSIO
Deixem-me dar um exemplo das nossas co-
responsabilidades através de Jung:
É dever daquele que abre o seu próprio caminho
informar a sociedade sobre o que encontra na sua
viagem de descoberta, seja isso água corrente para
os sedentos ou para os desertos arenosos do erro
infrutífero. Não é a crítica dos indivíduos
contemporâneos que decidirá sobre a verdade ou
falsidade de suas descobertas, mas as gerações
futuras. coisas que ainda não são verdadeiras,
hoje; talvez não ousemos tê-las como
verdadeiras, porém amanhã elas o serão. Dessa
forma, todo aquele cujo destino seja trilhar o seu
caminho individual deve prosseguir com
esperança e prontidão, sempre consciente da
solidão e de seus perigos.
Vocês sabem das minhas pesquisas sobre
xamanismo, em busca dessas técnicas de êxtase e
das possibilidades de iniciação que sejam
adequadas ao nosso tempo. Em Pernambuco e
em São Paulo, conheci alguns xamãs urbanos,
que são pessoas sem nenhuma origem indígena,
mas que criaram um corpo de conhecimentos
que parte do xamanismo tradicional e
acrescentam outras correntes de pensamento e
técnicas de cura, inclusive as da ciência sobre
campos de energia. O voo mágico com
ayahuasca
ou outras substâncias nem sempre está presente,
mas se valendo de suas mãos essas pessoas são
capazes de fazer leituras corporais, como se
estivessem escaneando ou fazendo uma
varredura, percorrendo cada
chakra,
para avaliar a
potência das suas vibrações, os possíveis
bloqueios no fluxo da energia ou mesmo
hemorragias energéticas e, mais ainda, ao fazerem
essa leitura corporal com as mãos, são capazes de
receber memórias e imagens vividas, presentes,
passadas e futuras, o que permite um diagnóstico
onde ir/chegar, sorrir/mentir
feito mascate/quando desce na
estação/parar, ouvir/sentir que
tatibitati/ que bate o
coração/mais um dia, mais uma
cidade/para enlouquecer/o bem-
querer/o turbilhão/bocas,
quantas bocas/a cidade vai
abrir/pruma alma de artista se
entregar/palmas pro artista
confundir/pernas pro artista
tropeçar/voar, fugir/como o rei
dos ciganos/quando junta os
cobres seus/chorar, ganir/como
o mais pobre dos pobres/dos
pobres dos plebeus/ir deixando
136
over/war is over/I am safe
and sound/i live and
love/i drink and eat/I can
leap and bound/now I am
dying all my life away/as
well as I am being
reborn/day after day/the
second mushroom/makes
room for my body/to get
inside the tragic room/of
Dionysus’house/time is
on/war is all/I am busy
and sad/from mists of
pain/I rise and fall/like an
endless rain/now I am
mais preciso. A cura é feita com as próprias mãos
do xamã e também com sugestões de luzes de
diversas cores, que percorrem o corpo para
desobstruir bloqueios e que são imaginadas pela
pessoa que está sendo curada; usam também sons
nos locais, cristais adequados para cada
chakra,
florais, homeopatia
e um conjunto de
recomendações, para que a pessoa tenha
autonomia corporal e responsabilidade com sua
vida, saúde e nos processos de autocura.
Contudo, o principal é a interação amorosa: o
coração e as mãos ou o coração nas mãos. Em
algumas dessas curas de que participei, antes bebi
ayahuasca, e vi as cores e luzes dos corpos ou os
campos de energia. É possível ver as alterações
vibracionais e a transferência que o xamã faz,
através das mãos e de todos os seus
chakras,
pulsando amplamente luzes: a energia amorosa
de cura. Penso que Cristo tinha esse lado
xamânico.
É o Cristianismo quem funda a Modernidade, e a
Ciência é a sua última heresia. As universidades
surgem com o cristianismo e grandes artistas do
Renascimento tiveram seu patrocínio. Nesse
momento, a Igreja e a Santa Inquisição
começavam a perder o poder, mas ainda
assustavam: Giordano Bruno é um dos últimos a
serem queimados em uma fogueira; Copérnico
teve coragem de publicar suas descobertas no
leito de morte; Galileu precisou negar suas
convicções; Descartes mudou-se para a Holanda,
para evitar problemas com a Inquisição. Ele era
também um guerreiro e se alistou nas tropas de
Maurício de Nassau, mote que fez o poeta Paulo
Leminski escrever o seu romance
Catatau
, onde o
filósofo tenta aplicar o seu método no Brasil, sem
muito sucesso; Newton e Darwin também têm
origem e formação cristã. Lembrei de uma obra
denominada
Newton
, do poeta e gravador
William Blake, que via anjos e outros seres de luz
e que se indignou com a visão tridimensional,
mecanicista do mundo, que considerava um
abaixamento do nível de consciência da
humanidade. Na obra, a força e a beleza do corpo
de Newton são distorcidas pelo ato de medir.
Sentado em uma pedra, seu corpo tem a mesma
textura dela e é seu prolongamento. Newton está
a pele em cada palco/e não
olhar pra trás/e nem
jamais/jamais dizer/adeus.
Edu Lobo e Chico Buarque
Na carreira
Alguma coisa acontece no meu
coração/que só quando cruza a
Ipiranga e a Avenida São
João/É que quando eu cheguei
por aqui, eu nada entendi/da
dura poesia concreta de tuas
esquinas/da deselegância
discreta de tuas meninas/ainda
não havia para mim Rita Lee/a
tua mais completa
tradução/alguma coisa
acontece no meu coração/que
só quando cruza a Ipiranga e a
137
doing what I have to
do/fulfilling all my will of
conquest/moon after
moon/the last
mushroom/makes room
for the unknown/I get
inside the secret room/of
an unthinkable house/in
which I feel the grace/in
which I getto be the
space/from which I see
the earth/exploding into a
light/that the last
mushroom aroused/the
last mushroom/atomic
encurvado sobre os joelhos,
puxado pela
vingança da força da gravidade. Einstein, David
Bohm e outros físicos posteriores fizeram justiça
à visão multidimensional do poeta. A Ciência
democratiza o conhecimento, amplia o
universalismo cristão, aprofunda a compreensão
das coisas desse mundo e mergulha no coração
da matéria. Mas em certo sentido a ciência nos
traiu: levou-nos ao limiar do voo interestelar,
mas levou-nos também ao limiar do holocausto
termonuclear. O aprofundamento no coração da
matéria nos livrou de muitas superstições, medos
e manipulações; nos fez sair do estado angelical e
pousar na terra, mas nos conduziu também a um
materialismo rasteiro, que ameaça o próprio
ecossistema do planeta. Talvez as culturas
precisem de um choque, um choque equivalente
àquele que a
Ressurreição
representou para o
imperialismo romano. Os mitos que hoje estão
surgindo são mitos messiânicos, semelhantes aos
que precederam o advento de Cristo. São mitos
de intervenção por parte de uma entidade
extraterrestre, hiperinteligente, que ultrapassou
nossa tecnologia predatória e que vem de outras
dimensões para revelar o que esquecemos: o
modo adequado e artístico de viver. A
cosmologia multidimensional da ciência, em
certo sentido, trouxe de volta o encantamento
com o mistério da vida. É preciso não esquecer
que a ciência começou olhando o céu. Contudo,
Hermes, como você observou, a ciência também
contribuiu para a perda da Alma do Mundo. A
Economia Capitalista é hoje a religião mais
universal. Devido à crise de valores, o mundo
está ingressando em um novo momento de
consciência: por meio de seus sintomas o mundo
se torna autoconsciente como realidade psíquica.
O mundo sem alma não oferece intimidade. As
coisas substituíveis, descartáveis velozmente pelo
consumo voraz, são ignoradas, não são
usufruídas pela apreciação lenta e cuidadosa.
Somente as coisas individualizadas,
personificadas, podem ser amadas. Precisamos
recuperar o velho adágio:
as coisas estão cheias de
deuses.
Precisamos recuperar a sensualidade,
amplificar todos os sentidos, sentir o frescor
poético de cada dia. No momento em que cada
coisa, cada acontecimento se apresenta
Avenida São João/
quando eu
te encarei frente a frente/não
vi o meu rosto/chamei de mau
gosto o que vi, de mau gosto,
mau gosto/é que Narciso acha
feio o que não é espelho/e a
mente apavora o que ainda não
é mesmo velho/nada do que não
era antes quando não somos
mutantes/e foste um difícil
começo/afasto o que não
conheço/e quem vem de outro
sonho feliz de cidade/aprende
depressa a chamar-te de
realidade/porque és o avesso,
do avesso, do avesso, do
avesso/do povo oprimido nas
filas, nas vilas, favelas/da força
da grana que ergue e destrói
138
mushroom.
Gilberto Gil e Jorge Mautner
The three mushrooms
E a vida/e a vida, o que
é?/diga lá meu irmão/ela
é a batida de um
coração/ela é uma doce
ilusão?/e a vida/ela é
maravilha ou é
sofrimento?/o que é o
que é, meu irmão/há
quem diga que a vida da
gente é um nada no
mundo/é uma ponta, é um
tempo que nem dá um
novamente como realidade psíquica, que não
requer as mágicas da sincronicidade, o fetichismo
religioso ou qualquer ato simbólico especial,
somos absorvidos numa conversa íntima e
duradoura com a matéria. Nesse momento
Eros
passa de um princípio universal, uma abstração
do desejo, para uma carnalidade das coisas em
que tudo é Vida: os materiais, as formas, os seres,
as cores, os movimentos, os ritmos. Recordar:
literalmente é lembrar com o coração. No
mundo antigo, esse era o órgão da imaginação,
da percepção, imediatamente associado às coisas
pelos sentidos. A palavra grega para percepção ou
sensação era
aisthesis,
que significa, em sua
origem,
inspirar o mundo para dentro.
A
respiração diante da surpresa, do espanto, do
maravilhamento diante do mundo. podemos
caminhar nessa direção quando fizermos
mudanças radicais de orientação, de modo a
valorizar a alma antes da mente, o sentir antes do
significar, o cada um antes do todo, o reparar
antes do conhecer, os outros animais antes do
humano. Precisamos tratar as oposições como
complementares e intercambiáveis: sujeito /
objeto, esquerda / direita, interior / exterior,
masculino / feminino, imanência /
transcendência, mente/ corpo. Como diz Blake:
se pudéssemos abrir as portas da percepção
veríamos as coisas como são: eternas
. Respeitar é
literalmente olhar de novo:
respectare.
E esse
segundo olhar é com
pectus
, com o peito, um
olhar amável, cordial, com o coração.
HERMES
Gostei da empolgação poética! Mas, agora diga-
nos como essas influências do Calendário Maya
se transformaram em mito e em um movimento
mundial, que também se difunde pelo Brasil,
particularmente, aqui em São Paulo. Depois
vamos discutir a gravação do Cd de Janaína.
DIONÍSIO
O movimento é chamado
Sincronário do Novo
Tempo
. Um dos objetivos é a mudança do
calendário gregoriano, solar, por um calendário
lunar, com 13 Luas de 28 dias. Os adeptos
defendem que, guiados pelo calendário
coisas belas/da feia fumaça que
sobe apagando as estrelas/eu
vejo surgir teus poetas de
campos e espaços/tuas oficinas
de florestas, teus deuses da
chuva/Pan-Américas de Áfricas
utópicas/túmulo do samba/mais
possível quilombo de Zumbi/e
os novos baianos passeiam nas
tuas garoas/e novos baianos te
podem curtir numa boa.
Caetano Veloso
Sampa
Atrás do arranha-céu tem o
céu, tem o céu/e depois tem
outro céu sem estrelas/em cima
do guarda-chuva tem a chuva,
tem a chuva/que tem gotas tão
139
segundo/há quem fale
que é um divino mistério
profundo/é o sopro do
Criador, numa atitude
repleta de amor/você diz
que é luta e prazer, ele
diz que a vida é viver/ela
diz que melhor é morrer
pois amada não é/o o
verbo é sofrer/eu só sei
que acredito na moça e
na moça eu ponho a
força da fé/somos nós
que fazemos a vida, como
der ou puder, ou
gregoriano
,
estamos fora de sintonia e sincronia
com os ritmos vitais, dos quais o capitalismo
predatório é o paradigma: tempo é dinheiro. Na
mudança proposta tempo é arte! Habituamo-nos
a pensar que o presente vem do passado, mas ele
vem também do futuro. É tanta luz vinda do
futuro, que estou dormindo de óculos escuro.
O tempo é flexível, codifica e joga com
informações e permite-nos entrar em diferentes
realidades simultaneamente: esticando,
distorcendo, curvando e espiralando. Intuição é
quando o coração ligeiro volta do futuro. É
preciso que cada dia seja vivido como uma obra
de arte e os Mayas codificaram em seu calendário
sagrado, o
Tzolkin
, um padrão para a dança de
cada dia, através de 20 imagens ou
glifos
e 13
tons ou
mantras
. Os ritmos lunares têm mais
sintonia com os nossos corpos, com os ritmos da
vida. Todos os anos, os adeptos do Sincronário
lançam uma edição do calendário, em forma de
agenda, e com esse instrumento de navegação,
que também está sincronizado semanalmente
com as mutações do
I Ching
, é possível saber o
padrão adequado para a arte de cada dia. O
fundador do movimento é José Argüelles, um
artista norte-americano de origem mexicana, que
a partir da cultura Maya criou uma mitologia
própria, complexa e sofisticada. Ele mudou seu
nome para
Valum Votan
, o
Encerrador do Ciclo,
e se diz uma encarnação humana de um ser do
sistema planetário da estrela
Arcturus
. É
frequente, entre os adeptos, a convicção e a
afirmação de uma memória de sua origem
estelar. Uns se dizem das
Plêiades
, especialmente
do sistema planetário da estrela
Maia
; outros se
dizem do sistema de
Sirius ou Órion
e assim por
diante, explicando os seus perfis e a memória das
suas missões. Os mitos existem quando
incorporados! Gosto de metáforas de luz. São elas
que aumentam a nossa vibração e provocam
mudanças. Esse movimento, conhecido também
como
Sincronário da Paz
, é um dos ramos de um
conjunto de manifestações espirituais errantes e
que ficou conhecido como
Movimento
da Nova
Era:
uma maior aproximação e interpenetração
entre o Oriente, dito como o pólo
Yin,
com o
Ocidente, entendido como o pólo
Yang.
Esta é a
base do que se compreende como
Nova Era
. É
lindas que até dá vontade de
comê-las/no meio da couve-flor
tem a flor tem a flor/que além
de ser uma flor tem
sabor/dentro do porta luva tem
a luva/que alguém de unhas
negras e tão afiadas se
esqueceu de pôr/no fundo do
para-raio tem um raio, tem um
raio/que caiu da nuvem negra
do temporal/todo quadro-negro
é todo negro, todo negro/e eu
escrevo teu nome nele só pra
demonstrar o meu apego/o bico
do beija-flor, beija-flor, beija-
flor/e toda fauna flora grita de
140
quiser/sempre
desejada/por mais que
esteja errada/ninguém
quer a morte/só saúde e
sorte/e a pergunta rola, e
a cabeça agita/eu fico
com a pureza da
resposta das crianças/é a
vida, é bonita, é
bonita/viver, e não tenha
vergonha de ser
feliz/cantar, e cantar, e
cantar a beleza de ser um
eterno aprendiz/eu sei
que a vida devia ser bem
enorme
a
complexidade de todos os ramos que
tecem esse movimento maior, que envolve
xamanismo, zen-budismo, taoísmo, cristianismo,
cabala, sufismo, yogas, meditação transcendental,
antroposofia, bioenergética, psicologia
transpessoal, filosofia, mitologia comparada e
arquetípica, angelologia, reike, projeciologia,
física quântica e arte. A tentativa de encontrar
uma unidade transcendente, entre esses saberes e
conhecimentos, pode ser localizada naquilo que
o escritor Aldous Huxley chamou, a partir de
uma expressão de Leibniz, de
Filosofia Perene
,
que é um esforço para fazer dialogar as essências
e medulas dos mais diversos saberes.
Esses movimentos e grupos têm cosmogonias,
cosmologias e mitos próprios de origem, mas
também combinam seus mitos com personagens
de várias mitologias conhecidas. Os diversos
ramos compartilham traços gerais comuns:
aceitam a reencarnação; consideram outras
humanidades anteriores e que foram mais
evoluídas do que a nossa; praticam a canalização,
que é um tipo de mediunidade que não envolve
pessoas mortas, e sim recebem seres e
inteligências interdimensionais, que nos ajudam
em nosso processo evolutivo, rumo a uma
consciência mais elevada, seja por amor
incondicional, seja por interesse, porque alguns
manipularam nosso código genético, desligando
sua potencialidade máxima, que era de doze
hélices de DNA, e foram reduzidas a duas, com o
intuito de obter vantagens com nosso controle.
Essa atitude veio a comprometer o seu futuro
evolutivo, por isso voltam ao passado deles, que é
o nosso presente, empenhados em nos religar,
para que também possam voltar a evoluir. E,
ainda, uma série de entidades que se
alimentam espiritualmente do nosso caos
emocional.
Esses grupos admitem também que somos frutos
de uma experiência cósmica maravilhosa: nossos
corpos são volumes de uma Biblioteca Viva,
compostos de combinações de material genético
dos mais diversos seres do Universo. Todos
podem nos acessar, mas a vibração amorosa
consegue as melhores informações. Quando
amor/quem segura o porta
-
estandarte tem arte, tem arte/e
aqui passa com raça eletrônico
maracatu atômico.
Nelson Jacobina e Jorge Mautner
Maracatu atômico
Sou um homem
comum/qualquer um/enganando
entre a dor e o prazer/hei de
viver e morrer/como um homem
comum/mas o meu coração de
poeta/projeta-me em tal
solidão/que às vezes assisto/a
guerras e festas imensas/sei
voar e tenho as fibras tensas/e
141
melhor, e será/mas isso
não impede que eu repita:
é bonita, é bonita e é
bonita.
Gonzaguinha
O que é o que é
Quando a gente tá
contente/tanto faz o
quente, tanto faz o frio,
tanto faz/que eu me
esqueça do meu
compromisso/com isso
ou aquilo que aconteceu
dez minutos atrás/dez
cada volume é consultado
,
po
r esses seres
,
uma simbiose, uma vantagem para ambos: eles
saem com a informação que precisam e em troca
aumentam nossa vibração energética,
contribuindo para a religação das hélices
desligadas do nosso código genético. Nós somos
uma das doze bibliotecas existentes e todas as
outras estão empenhadas e nos reincluir na rede
de informação multidimensional. Borges teria
adorado saber.
Spock
é
um personagem da série
Jornada nas
Estrelas,
que chegou bem perto da apoteose de
sua iniciação e a perdeu no último momento,
por esboçar uma leve emoção e por isso foi
mandado para Terra, o que é uma metáfora cruel
do modelo cartesiano ou mais ainda da
racionalidade absoluta. Esse personagem serve de
exemplo para a necessidade vital da emoção. Esses
seres extraterrestres dizem que nós somos uma
preciosidade, uma relíquia emocional, porque em
grande parte dessas dimensões a emoção não é
conhecida, foi esquecida ou é desprezada, como
algo inferior, primitivo, carbônico, orgânico,
animal. Mas eles descobriram que é possível
acessar informações, em escalas evolutivas mais
elevadas pelo mergulho no Coração. A emoção
delimita a ação e o acesso à informação. Com
medo podemos fazer três coisas: fugir,
paralisar ou enfrentar. Com alegria ou amor as
probabilidades são enormes. Nossa missão
terrestre não seria converter ninguém, mas
aumentar a frequência e a amplitude da vibração
amorosa, para dissipar a baixa vibração do medo e
receber informações mais sutis. Servir é exaltar a
luz do nosso ser, de modo que todos que entrem
em contato conosco possam ser beneficiados por
nossa presença.
Janaína, essa é outra das respostas a sua pergunta
sobre o que fazer quando abrimos mais o
coração. Nosso nome é coragem e o sobrenome
é confiança na vida. As emoções quebram
padrões rígidos e abrem inúmeras possibilidades
criativas. O caos cria o cosmos. Temer o caos é a
pior viagem, achar o cosmo é linguagem. O
corpo emocional é quem faz a ponte entre os
outros corpos: mental, psíquico, espiritual e
sou um/ningué
m é comum/e eu
sou ninguém/no meio de tanta
gente/de repente vem/mesmo eu
no meu automóvel/no trânsito
vem/o profundo silêncio/da
música de Peter Gast/escuto a
música límpida de Peter
Gast/escuto a música silenciosa
de Peter Gast/Peter Gast/o
hóspede do profeta sem
morada/o menino bonito Peter
Gast/rosa do crepúsculo de
Veneza/mesmo aqui no samba-
canção/do meu
rock’n’roll/escuto a música
silenciosa de Peter Gast/sou um
142
minutos atrás de uma
ideia já deu para uma teia
de aranha crescer/sua
vida na cadeia do
pensamento/que de um
momento pro outro
começa a doer/quando a
gente tá contente, gente a
gente quer pegar/barata
pode ser um barato
total/tudo que você
disser deve fazer
bem/nada que você
comer deve fazer
mal/quando a gente tá
carnal. Mas é o corpo carnal quem harmoniza o
todo, por ser o mais imediato, acessível e
palpável. Por isso, é vital escolher uma técnica
corporal. Meditar é se informar. Luz é linguagem
e através de determinadas formas geométricas
pode-se acessar a outras dimensões. Por exemplo,
podemos meditar uma espiral saindo do nosso
umbigo e conectando o micro ao macro: o
corpo ao cosmo, o código genético ao código
galáctico. Informações sutis podem ser acessadas
pela meditação com figuras geométricas. Essa foi
uma das descobertas de Pitágoras. uma
ligação entre emoção e níveis de consciência. A
mente lógica vai até um determinado limite,
porque se apega à própria identidade e permanece
trancada nos limites do ego. Mas a emoção evoca
sentimentos e permite acessar a diferentes
estados de consciência. Por isso a música é vital!
A emoção é a chave e faz parte de uma equação.
Luz: é Informação e Amor: Criação. É preciso se
informar antes de criar. Amamos para criar e
criamos para saber. O Amor é a emoção mais
sutil e atravessa todos os espaços-tempos
multidimensionais, em contínua Criatividade.
Amar é brincar. Se quisermos um critério de
avaliação de qualquer namoro é observar: se o
casal deixou de brincar e rir, o amor corre
enorme perigo ou já acabou.
O que une essencialmente esses grupos da
Nova
Era ou Era de Aquário
, é o sentimento da Terra
como nosso Corpo Maior: o Amor à Vida. E isso
significa assumir nossa co-esponsabilidade com a
Nave-Mãe. uma compreensão da necessidade
vital de uma elevação da consciência da
humanidade, inspiradas pela crise ecológica
planetária e pela cruel desigualdade social,
patrocinadas pelo modelo capitalista predatório e
patriarcal. Contudo, ao contrário das formas de
fazer política das décadas anteriores, o
enfrentamento é pela micropolítica: a criação de
redes de informação, parceria e solidariedade.
Outro aspecto de união é a necessidade de trazer
de volta a Alma do Mundo. Esses grupos voltam
a acreditar que a Vida é Sagrada, que as Galáxias,
as Estrelas, os Planetas, o Sol, a Lua e a Terra têm
Consciência e são Deusas e Deuses. Argumentam
contra nossa pretensão e arrogância: por que
homem comum.
Caetano Veloso
Peter Gast
Ah, se já perdemos a noção da
hora/se juntos já jogamos tudo
fora/me conta agora como hei
de partir/ah, se ao te conhecer,
dei pra sonhar, fiz tantos
desvarios/rompi com o mundo,
queimei meus navios/me diz pra
onde ainda posso ir/se nós, nas
travessuras das noites
eternas/já confundimos tanto
as nossas pernas/diz com que
pernas eu devo seguir/se
entornastes a nossa sorte pelo
143
contente, nem pensar que
tá contente/nem pensar
que tá contente a gente
quer/nem pensar a gente
quer/a gente quer é viver.
Gilberto Gil
Barato total
Viver é afinar um
instrumento/de dentro
pra fora/de fora pra
dentro/a toda hora/a todo
momento/de dentro pra
fora/de fora pra dentro.
Walter Franco
É de manhã, vem o
sol/mas os pingos da
seres de água e carbono te
ria
m
consciência
, mas
as Estrelas, que nos geraram, não? O problema do
arrogante não é nem a vaidade de tudo saber
melhor, mas o bloqueio na vontade e na alegria
dos outros em doar e trocar informações vitais.
Nesses grupos uma espiritualidade sincrética,
difusa, errante, que se recusa a se institucionalizar
como religião, mas que têm seus próprios ritos,
mitos e cultos.
A obra do antropólogo Carlos Castañeda, que
pesquisou os xamãs do México nas décadas de mil
novecentos e sessenta e setenta, foi o ponto de
mutação para a divulgação mundial dessas
técnicas de êxtase e do uso de plantas psicoativas.
um dito famoso do principal personagem, o
xamã Don Juan:
uma pergunta obrigatória que o guerreiro do
espírito tem de fazer: esse caminho tem coração?
Todos os caminhos são iguais, não leva a lugar
algum. Entretanto, um caminho sem coração
nunca é agradável. Por outro lado, um caminho
com coração é fácil. Ele não faz um guerreiro se
esforçar para gostar dele; ele torna a viagem
alegre; e, enquanto alguém o seguir, é um só
com ele.
Curiosamente essa concepção ressoa em Cristo:
Onde estiver o teu coração, estará o teu
tesouro.
O movimento
Sincronário do Novo Tempo
, que
tem José Argüelles como líder mundial, passa por
essas influências do xamanismo, que tem
antecessores conhecidos como Mircea Eliade,
Aldous Huxley, Robert Graves, Gordon Wasson,
Richard Evans Schultes, Albert Hoffmann, o
cientista suíço que descobriu o LSD, o
etnobotânico Terence Mackenna, além de duas
canalizadoras conhecidas: Barbara Marciniak e
Barbara Hand Clow.
O movimento
Sincronário
do Novo Tempo
parte da cultura Maya, mas cria
com liberdade seus próprios mitos, cosmogonias
e cosmologias. Os astrônomos da cultura Maya
chão/se na bagunça do teu
coração meu sangue errou de
veia e se perdeu/como, se na
desordem do armário
embutido/meu paletó enlaça o
teu vestido/e o meu sapato
ainda pisa no teu/como, se nos
amamos feito dois pagãos/teus
seios ainda estão nas minhas
mãos/me explica com que cara
eu vou sair/não, acho que estás
te fazendo de tonta/te dei meus
olhos pra tomares conta/agora
conta como hei de partir.
Tom Jobim e Chico Buarque
Eu te amo
144
chuva/que ontem
caiu/ainda estão a
brilhar/ ainda estão a
dançar/ao vento
alegre/que me traz essa
canção/é de manhã, vem
o sol/mas os pingos de
chuva/que ontem
caiu/ainda estão a
brilhar/ainda estão a
dançar/ao vento alegre
que me traz essa
canção/quero que você
me dê a mão vamos sair
por aí/sem pensar no que
diz
em
que uma
Era
do Mundo
dura 5.125 anos
e
que essa Era que estamos vivendo teve seu início,
ou data zero, no dia 11 de agosto de 3113 a.C, e
que a próxima Era começa no dia 21 de
dezembro de 2012. Descobertas recentes
mostram que, no ano de 2012, o Sol no solstício
estará alinhado com a nossa galáxia Via Láctea.
Esse alinhamento é uma ocorrência rara,
acontecendo uma vez a cada 26 mil anos. Os
pesquisadores admitem que, os antigos mayas
possuíam conhecimentos astronômicos tão
profundos como seus contemporâneos de outras
partes do mundo, inclusive da Grécia, Índia,
Babilônia e Egito. A doutrina maya das Eras do
Mundo é encontrada no
Popol Vuh
, um dos
poucos documentos salvos da queima da
Inquisição, e datado de 1550. Nele lemos que a
humanidade passou por uma sequência de Eras
do Mundo, e a cada vez que um desses ciclos é
concluído tem lugar uma transformação e
renovação da humanidade. É a partir desses
conhecimentos, que se desenvolve uma série de
interpretações do que significa a data de 21 de
dezembro de 2012. A mais comum, divulgada
através de livros e filmes é a que coincide, mais
uma vez, com o Apocalipse cristão, não no
sentido literal de revelação, mas de catástrofe
planetária. Essa interpretação é totalmente
rejeitada pelos diversos grupos do movimento
Nova Era
e, particularmente, pelo movimento
Sincronário do Novo Tempo
. No seu livro
O
Fator Maia
, José Argüelles diz que o Calendário
Sagrado, o
Tzolkin,
é o Tear dos Maias, um
módulo que tece a Harmonia Cósmica, e é
composto de 20 imagens e 13 tons, que se
entrelaçam em espiral, como a Via Láctea e o
Código Genético. A combinação de uma
imagem com um som dá o padrão adequado,
para se viver a arte de cada dia. Cada imagem e
cada som têm um significado e são instrumentos
para a meditação. É um calendário xamânico
lunar e cada lua tem seu animal correspondente,
para que sua essência, poder e ação sejam
incorporados, imitados e meditados. São eles, na
sequência em que aparecem: morcego, escorpião,
veado, coruja, pavão, lagarto, macaco, falcão,
jaguar, cachorro, serpente, coelho e tartaruga. O
Tzolkin
e o
I Ching
são calendários lunares e
Talvez, quem sabe, um dia/por
uma alameda do zoológico/ela
também chegará/ela que
também amava os
animais/entrará sorridente assim
como está/na foto sobre a
mesa/ela é tão bonita/ela é tão
bonita que na certa eles a
ressuscitarão/o século trinta
vencerá/o coração destroçado
já/pelas mesquinharias/agora
vamos alcançar tudo o que não
podemos na vida/como a estelar
das noites
inumeráveis/ressuscita-me/ainda
145
foi/que sonhei, que
chorei, que sofri/pois a
nossa manhã/já me fez
esquecer/me dê a mão
vamos sair pra ver o sol.
Tom Jobim e Dolores Duran
Estrada do Sol
Sorri/quando a dor te
torturar/e a saudade
atormentar/os teus dias
tristonhos/vazios/sorri/
quando tudo
terminar/quando nada
mais restar/do teu sonho
encantador/sorri/quando
estão relacionados. O I Ching está sincronizado
com o código genético, que governa a
informação de todas as formas e ciclos de Vida. E
o Tzolkin está sincronizado com o código
galáctico, que governa os ciclos de Luz.
Sem ter conhecimento do
Tzolkin
, o
etnobotânico Terence Mackenna, resolveu
estudar o tempo, a partir do I Ching. Deixem-me
ler o que ele diz:
A idéia de que o tempo é experimentado como
uma série de elementos identificáveis e fluentes é
altamente desenvolvida no I Ching. Encara o
tempo como um número finito de elementos
distintos e irredutíveis, da mesma forma como os
elementos químicos compõem o mundo da
matéria. Para os sábios taoístas da China anterior
a dinastia Han, o tempo se compunha de 64
elementos irredutíveis. Foi à base desses 64
elementos que eu procurei construir um novo
modelo do tempo que incorporasse a idéia da
conservação da novidade e reconhecesse o tempo
como um processo de vir-a-ser. Para Newton, o
tempo podia ser representado por um plano, era
pura duração, um domínio necessário para a
descrição dos eventos. Einstein acrescentou a
possibilidade da ligeira e suave curvatura do
contínuo espaço-tempo. Estes dois pontos de
vista ignoram uma propriedade que o meu
modelo do tempo levou a sério: o fenômeno da
conservação da conexão ou complexidade. A
novidade ou criatividade é simplesmente uma
situação de maior complexidade de organização,
ao passo que a entropia é o oposto. Ao nascer, o
Universo era puro plasma; não havia sistemas
atômicos; havia tanta energia dentro do sistema
que os elétrons ou ainda não existiam ou não
conseguiam estabelecer-se em órbitas estáveis.
Depois, à medida que o Universo esfriou,
começaram a formar-se os sistemas atômicos; as
estrelas condensaram-se e, através da química
nuclear, fundiram elementos mais pesados, dos
quais surgiu mais tarde uma química à base de
carbono. Isto ofereceu a possibilidade de uma
química molecular, novos domínios de conexão
e nova proliferação de oportunidades de
criatividade. Essa oportunidade conduziu à Vida.
que mais não seja/porque sou
poeta/e ansiava o
futuro/ressuscita-me lutando
contra as misérias do
cotidiano/ressuscita-me por
isso/ressuscita-me/quero acabar
de viver o que me cabe/minha
vida para que não mais existam
amores servis/ressuscita-
me/para que ninguém mais
tenha de sacrificar-se por uma
casa, um buraco/ressuscita-
me/para que a partir de hoje, a
partir de hoje/a família se
transforme e o pai seja pelos
menos o Universo/e a mãe seja
146
o sol perder a luz/e
sentires uma cruz/nos
teus ombros cansados,
doridos/sorri/vai
mentindo a tua dor/que
ao notar que tu
sorris/todo mundo irá
supor/que és feliz
.
Charles Chaplin, G. Parson, J.
Turner e Braguinha
Meu coração não se
cansa/de ter
esperança/de um dia ser
tudo que quer/meu
coração de criança/não é
Um aspecto interessante dessa concatenação da
complexidade é que cada estágio de sua
condensação ocorreu mais rapidamente que o
anterior.
Chamando de onda máxima de novidade aos
acontecimentos mais importantes da História
como, por exemplo, o início do domínio do
Homo sapiens
e o surgimento da linguagem; o
colapso final do Império Romano; o Iluminismo
europeu; a chegada de Hitler ao poder; a bomba
atômica; a chegada à Lua e tantos outros eventos,
a partir do cruzamento de dados
matemáticos
,
gerados a partir do I Ching, Terence Mackenna
chegou a uma data de criatividade máxima: 21 de
dezembro de 2012. Mais tarde descobriu, com
espanto, que era a mesma data da mudança de
Era do Calendário Maya. Mackenna interpreta
esse momento
como uma mudança na própria
natureza do tempo e usa como metáfora
uma
frase de Platão:
O tempo é a parte móvel da eternidade
.
Outras interpretações do que ocorrerá, a partir de
21 de dezembro de 2012, dão ênfase a um salto
de consciência em que a humanidade se integrará
mais harmoniosamente à consciência maior da
Terra: a Deusa Viva. A luz é composta de ondas e
partículas. Fótons são as partículas da luz e não
têm antipartículas. Isso significa dizer que não
existem dualidades no Mundo da Luz. Alguns
intérpretes falam que nesse momento estaremos
recebendo uma cachoeira de fótons, vindos do
centro da Via Láctea, o que permite uma
transmutação
da Vida. Falam de uma festa
cósmica, da apoteose da iniciação planetária, de
um orgasmo da Terra! Nesse instante, se
restabelece a conexão das doze bibliotecas e
entramos em rede com a Consciência Galáctica!
O mito é a abertura secreta através da qual as
energias inexauríveis do cosmo se derramam
sobre as manifestações culturais humanas.
É o que nos diz Joseph Campbell, indicando que
o mito é o canal de conexão cósmica, um
no mínimo a Terra/a Terra/a
Terra
Vladimir Maiakóvski, Augusto de Campos
e Caetano Veloso
Meu coração está
batendo/como quem diz:/não
tem jeito/zabumba bumba
esquisito/batendo dentro do
peito/seu coração está
batendo/como quem diz:/não
tem jeito/o coração dos
aflitos/pipoca dentro do
peito/coração bobo/coração
bola, coração balão/coração
São João/a gente se ilude
147
só a lembrança/de um
vulto feliz de mulher/que
passou nos meus
sonhos/sem dizer
adeus/e fez dos olhos
meus/um chorar mais
sem fim/meu coração
vagabundo/quer guardar
o mundo/em mim.
Caetano Veloso
Coração vagabundo
aspecto essencial para compreensão de como
esses grupos intuem o poder de transmutação
das
metáforas de luz e de como têm consciência do
papel vital da arte e da poesia no percurso da
nossa espécie.
Eu trouxe o livro
A Arte de Viver
, de Campbell,
ouçam:
O privilégio de uma existência é ser quem você é.
Participe alegremente das tristezas do mundo.
Não podemos curar as tristezas do mundo, mas
podemos decidir viver em júbilo. Quando
falamos em solucionar os problemas do mundo,
estamos redondamente enganados. O mundo é
perfeito. É uma baderna. Sempre foi uma
baderna. Nós não vamos mudá-lo. Nossa tarefa
consiste em endireitar nossas próprias vidas. O
acumulador que existe em nós e que deseja
guardar, apegar-se, deve ser morto. Negativismo
diante da dor e da ferocidade da vida é
negativismo diante da vida. Não estaremos
enquanto não pudermos dizer Sim para tudo. A
reverência é o que faz com que avencemos.
Negar a chamada é estagnar. Aquilo que você
não experimenta positivamente experimentará
negativamente. Você adentra a floresta em seu
ponto mais sombrio, no qual não trilha. Se
trilha ou caminho, é a trilha de outra pessoa.
Você não estará em seu próprio caminho se
seguir o caminho alheio, e não concretizará o seu
potencial. A sociedade é inimiga quando impõe
suas estruturas ao indivíduo. Mate o Tu Deves!
Quando a pessoa faz isso, torna-se a Criança. Ao
enveredar pela vida, seguindo seu próprio
caminho, pássaros cagarão em você. Não se
preocupe em limpar. Ter uma visão cômica de
sua situação proporciona distanciamento
espiritual. Ter senso de humor é o que o salva.
Irromper é seguir seu padrão sublime, abandonar
o antigo lugar, começar sua jornada de herói,
seguir sua bem-aventurança. Quando estiver
seguindo o caminho da vida, você verá um
grande abismo. Pule. Ele não é tão grande
quanto você pensa. É com a descida ao abismo
que resgatamos os tesouros da vida. Onde você
tropeçar, estará seu tesouro. A própria caverna
na qual você tem medo de entrar acaba sendo a
dizendo/já não há mais coração.
Alceu Valença
Coração bobo
Ô mana me traz lá do
mercado/com muito cuidado um
kilo de riso/me traga do
artesanato, um amor barato,
que eu tanto preciso/também,
pra curar meu tédio/aquele
remédio, de casca de raiz/e um
disco bem desmilinguido/que eu
esqueça o perdido/de quem já
me quis/mercado, mercado,
comprado, vendido/qualé, meu
tempo perdido,
sonhado/traçado lá no come em
pé/maninha não deixe por
148
Olinda é para os
olhos/não se apalpa, é só
desejo/ninguém diz: é lá
que eu moro/diz somente:
é lá que eu vejo/tem
verdágua e não se sabe/a
não ser quando se
sai/não porque antes se
visse/mas porque não se
vê mais/as paisagens
muito claras/não são
paisagens, são lentes/ou
claridade somente.
Carlos Pena e Zoca Madureira.
Olinda
fonte do que você procura. A coisa horrível, tão
temida, tornou-se o centro. A meta é viver com
divina compostura, no fluxo pleno de energia,
como Dionísio montando o leopardo sem ser
feito em pedaços. O propósito da jornada é a
compaixão. Quando você superar os pares de
opostos, terá chegado à compaixão. Se deseja
tudo, os deuses lhe darão. Mas você deve estar
pronto para isso. A meta da jornada do herói até
o ponto da jóia consiste em descobrir os níveis da
psique que se abrem, se abrem, se abrem e
finalmente se abrem para o mistério de seu si-
mesmo. Sua consciência búdica ou crística. Você
precisa voltar com o êxtase e integrá-lo. Retornar
é ver a fulgurância em toda parte.
JANAÍNA
Maravilha de texto! Vamos a nossa arte de viver.
Na concepção do Cd duplo o mais importante é
criar novas pontes, afinal viemos do Recife. O
Brasil, como todo país jovem, tem problemas de
identidade. No século dezenove quisemos ser
franceses e no século vinte norte-americanos.
Em Pernambuco somos indígenas, portugueses,
árabes e africanos, mas quisemos ser holandeses e
italianos: a nossa capital é a Veneza brasileira!
DIONÍSIO
Todos querem ser o outro, mas em São Paulo
quem é o outro? Aqui o leque de etnias é tão
grande que as identidades explodem. Bandeirante
pra mim é Volpi! Conversando com um amigo
paulistano eu disse que o carnaval daqui é a
Virada Cultural, ele rebateu: aqui são tantos os
pólos de animação que todo dia é carnaval. Essa
agonia brasileira por identidade tinha a ver
também com nossa baixa estima, mas agora
descobrimos que a falta de identidade é uma
vantagem, porque aumenta nossa porosidade. As
pontes que imaginamos são as trocas culturais
entre as cidades planetárias, mas no Brasil um
fluxo histórico entre o Nordeste e São Paulo: os
pioneiros foram os pedreiros, aqueles que
edificaram a cidade; dando um salto histórico,
houve um fluxo entre modernistas e tropicalistas
e agora a troca é mais uma vez na música. O
menos/me traga os acenos
/da
moça que vende comida/e atiça
uma fome/que quanto mais se
come/mais fome se acende/na
volta me traga uma
lenda/comprada na venda
caminho do cais/não custa,
maninha vem logo/que eu
queimo no fogo/do meu quero
mais/amor/me botou como
sócio/a vida não dá marcha
ré/destino instalou seu
negócio/lá no Mercado de São
José.
Walmir Chagas Véio Mangaba e Sílvio
Roberto
Mercado de São Jo
149
Não se assuste pessoa/se
eu lhe disser que a vida é
boa/enquanto eles se
batem/dê um rolê e você
vai ouvir/apenas quem já
dizia/eu não tenho
nada/antes de você ser,
eu sou/eu sou amor da
cabeça aos pés/e só tô
beijando o rosto de quem
dá valor/pra quem vale
mais um rosto do que
cem mil réis/eu sou, eu
fluxo contínuo entre os músicos que moram em
Recife com os que moram em São Paulo criou
um novo vínculo entre as cidades, principalmente
a partir dos pólos multiculturais, dos carnavais de
Recife e Olinda e do São João de Caruaru. Junio
Barreto é um dos compositores e cantores que
fazem a ponte Nordeste-Sampa. Nós somos
caruaruenses. Tomados por um regionalismo
descabido e exacerbado, uma vez tivemos uma
conversa e concluímos, às gargalhadas, de que
sem a música
Pipoca Moderna
, da Banda de
Pífanos de Caruaru, não existiria a Tropicália.
JANAÍNA
A disponibilidade crescente das novas
tecnologias, que permite gravações domésticas de
boa qualidade, foi um fator importante para a
perda de poder das grandes gravadoras. Os artistas
novos fazem a pirataria de si mesmos,
antecipando o lançamento de seus futuros CDs, e
divulga-os por todos os meios internáuticos.
Hermes, esses que estão mais próximos de nós,
não se constituem em um movimento, como a
Bossa Nova, a Jovem Guarda, a Tropicália, o
Clube da Esquina, a Vanguarda Paulista, o Pessoal
do Ceará ou o Mangue Beat, são mais uma rede
afetiva de solidariedade e parceria. Fazem muitos
shows, antes da gravação dos CDs. maior
liberdade criativa, mas isso não significa total
autonomia em relação à obra, porque é alto o
custo financeiro para se contratar um estúdio
bem equipado.
HERMES
Vamos cantar a música que fiz para a letra
Poeta
Gentileza
, que Dionísio me mandou por e-mail:
A pessoa que decidiu ser gentil/Em tempo
integral/Tem certeza/De que gentileza gera
gentileza/E mesmo quando seu gesto/Anônimo,
sutil/É susto, equívoco/Aproveita o
momento/Pra criar outro movimento/Abraço é
sem tempo.
Perto do fogo/como faziam os
hippies/perto do fogo como na
idade média/eu quero queimar
minha erva/eu quero estar
perto do fogo/fogo, fogo,
fogo/perto do fogo quando
tudo explodir/mas não vai
explodir nada/vão ficar só se
olhando os homens e dizendo
contentes/ está chegando /
ficar perto do fogo/meu amor.
Rita Lee e Cazuza
Perto do fogo
150
sou amor da cabeça aos
pés.
Morais Moreira e Galvão
Dê um rolê
Só louco/amou como eu
amei/só louco/quis o bem
que eu quis/oh, insensato
coração/por que me
fizeste sofrer/porque de
amor para entender/é
preciso amar/porque/só
louco.
Dorival Caymmi
Só louco
Se toda
coincidência/tende a que
DIONÍSIO
A música ficou bonita e delicada, Hermes. Acho
que podemos incluí-la no Cd, o que acha
Janaína?
JANAÍNA
Sim e mais outra parceria de vocês, a ciranda
A
Volta da Lua,
para encerrar o segundo Cd. Mas
ainda quero cantar uma minha com Dionísio,
O
último show de Cazuza
e a parceria de Maurício
Cavalcanti e Dionísio,
Borboleta.
Cantemos:
Eu vi, ouvi, o último show de Cazuza/A morte
estava viva/Enquanto o artista
brilhava/Transparente tal uma bolha de luz/A
certeza de uma esfinge egípcia/Inteiro feito um
menino-homem: Jesus/Eu vi, ouvi, o último
show de Cazuza/A vida se afirmava/Como
nunca, como brasa/O coração, a coragem/Em
cada passo da viagem/A ternura por toda
criação/A vontade: um furacão/Eu vi, ouvi, o
último show de Cazuza/A Terra mais rápida
girava/Ele enorme, mesmo quando
sentava/Todo amplo, todo entrega
escancarada/O suor em seu corpo era água, sal,
era chão/E em cada poro brotava árvore, muitas,
mãos.
Leve borboleta leve/Meu espírito em tua
direção/Pena, palha, folha/Pousa, pausa/Abre as
asas da imaginação/Me arrodeia borboleta e
dança/Dança e me ensina a dançar/Beija
borboleta beija/Bate palmas e sorri.
HERMES
Janaína, pelo que entendi você quer ser um
ponto de encontro entre esses novos
compositores, ser a ponte, através das suas
músicas e dos seus cantos, em participações
especiais. Os arranjos serão coletivos, mas gostei
da produção ser de Gustavo Ruiz, ele já fez muito
bem a de Juliana Kehl e a de Tulipa Ruiz e é um
dos que têm a visão mais panorâmica do grupo.
Janaína tinha-me enviado os dois Cds, quando
ainda estava no México. Vai ser uma grande
alegria conhecer e tocar com esses músicos!
Precário, provisório,
perecível/falível, transitório,
transitivo/efêmero, fugaz e
passageiro/eis aqui um
vivo/impuro, imperfeito,
impermanente/incerto,
incompleto,
inconstante/Instável, variável,
defectivo/eis aqui um vivo/e
apesar do tráfico, do tráfego
equívoco/do tóxico do trânsito
nocivo/da droga do indigesto
digestivo/do câncer vir do
cerne do ser vivo/da mente, o
mal do ente coletivo/do sangue,
151
se entenda/e toda
lenda/quer chegar aqui/a
ciência não se aprende/a
ciência apreende/a
ciência em si/se toda
estrela cadente/cai pra
fazer sentido/e todo
mito/quer ter carne
aqui/a ciência não se
ensina/a ciência
insemina/a ciência em
si/se o que se pode ver,
ouvir, pegar, medir,
pesar/do avião a jato ao
jabuti/desperta o que
JANAÍNA
Vamos repassar o elenco. Nas guitarras: Luiz
Chagas e Péricles Cavalcanti. Gustavo também
toca guitarra, mas será mais constante no baixo.
No acordeom: Marcelo Jeneci. Nos teclados:
Dudu Tsuda, Wagner Tiso e Hermes, na
percussão e bateria: Simone Soul. Quero que o
making off
seja com Nina Cavalcanti, ela fez um
ótimo com Arnaldo Antunes e é uma cineasta
muito criativa.
DIONÍSIO
Por falar em
making off,
vou contar como
conhecemos esses artistas: o primeiro encontro
aconteceu no carnaval de Olinda e Recife. Eles
foram tocar nos pólos multiculturais. Gustavo
Ruiz deu-me de presente o Cd, ainda sem
mixagem, de Juliana Kehl e mais dois:
Composição e Filme Brasileiro
, de um conjunto
de que participava: o
Dona Zica
. Uma das músicas
de Juliana, que vamos incluir no repertório de
Janaína, é uma parceria com Gustavo, que evoca
Guimarães Rosa, a ausência de fronteira no
mundo vivo e suas metamorfoses,
Diadorim:
Mas eu nunca vi o sertão/e você que viu não
sabe/o sertão é do lado de dentro, irmão/e bate
e queima e arde e tem miragem/mulher virando
bicho/bicho virando homem/homem virando
criança/criança virando flor/diadorim deamar
deamo ô/diadorim adorar diá da ô.
Dudu Tsuda e Tatá Aeroplano, que também
participavam de vários grupos, levou-nos os dois
primeiros discos do
Cérebro Eletrônico
:
Pareço
Moderno e Onda Híbrida Ressonante.
E
Alfredo
Bello nos presenteou com Cd
Projeto CRU:
Consciência, Radicalismo e União.
Os artistas:
Tiê,
Anelis Assumpção, Tatá Aeroplano, Simone
Soul, Marcelo Monteiro, Andréia Dias, Iara
Rennó, Mariana Aydar, Karina Buhr e Thiago
Pethit, conheceríamos depois, aqui em Sampa.
No carnaval seguinte, foi a vez de Tulipa Ruiz,
Mônica Tarantino e Luiz Chagas. Itamar
Assumpção e Luiz tocaram juntos no
Isca de
Polícia,
que tem as cantoras Suzana Salles e Vange
o mal do soropositivo/e apesar
dessas e outras/o vivo afirma,
firme, afirmativo/o que mais
vale é estar vivo/não feito, não
perfeito, não completo/não
satisfeito, nunca, não
contente/não acabado, não
definitivo/eis aqui um vivo/eis-
me aqui.
Lenine e Carlos Rennó
Vivo
Sim/eu poderia fugir, meu
amor/eu poderia partir/sem
dizer pra onde vou/nem se devo
voltar/sim/eu poderia morrer de
dor/eu poderia morrer/e me
152
ainda não, não se pôde
pensar/do sono eterno
ao eterno devir/como a
órbita da Terra abraço o
vácuo devagar/para
alcançar o que já estava
aqui/se a crença quer se
materializar/tanto quanto
a experiência quer se
abstrair/a ciência não
avança/a ciência
alcança/a ciência em si.
Gilberto Gil e Arnaldo Antunes
A ciência em si
Milliet
,
o baixo
de Paulo Lepetit e bateria de
Marco Costa. O pai de Luiz Chagas deu uns
toques para o também grande guitarrista Lanny.
Luiz já viveu tanta maluquice que, talvez por isso,
quando perguntamos como vai responde com o
seu bordão: normal. Luiz é o primeiro tradutor,
no Brasil, do livro
Flashback
, de Timothy Leary, o
acadêmico pop que convocou os jovens
universitários a experimentarem LSD e, de acordo
com sua vontade, suas cinzas foram soltas no
espaço sideral, levadas pela nave
Pegasus.
Luiz
sabe tudo sobre rock e é uma enciclopédia dos
Beatles. Luiz é casado com Mônica Tarantino,
minha amiga, confidente e cúmplice de
sincronicidades: a cada momento em que
concluímos um capítulo da nossa narrativa ela
misteriosamente sabe e entra em contato
comigo. É muito antenada, festeira e gosta de
juntar gente. No momento é jornalista da área
de saúde e sabe mais do assunto do que muitos
médicos que conheço. É esse o núcleo de origem
que me adotou em Sampa e a partir dessas festas
maravilhosas, é que as portas se abriram para os
encontros e convivências. Outro núcleo é a casa
de Dudu Tsuda. Ele é um músico excelente,
compõe sinfonias, um luxo de silêncio nesses
tempos. É um personagem muito criativo, leve e
múltiplo. Quando ainda fazia graduação na PUC,
porque falava francês, foi convocado para receber
o filósofo Jean Baudrillard, no aeroporto. Estava
com um cartaz, mas ninguém se apresentou. No
final restaram ele e um velhinho, que não sabia
quem era Dudu Tsuda: o nome no cartaz. O
filósofo estava aborrecido, mas ficou amigo dele,
depois que juntos deram umas bundacanásticas
no Ibirapuera. Foi na casa de Dudu que conheci
Nina e Leo Cavalcanti, um compositor inspirado,
com grande presença cênica e que está na fase de
mixagem do seu Cd. depois, através deles, em
Pompéia, no Sesc, conheci seu pai Péricles
Cavalcanti, e viemos aqui para o Athenas. Esse é
uma curiosa coincidência de nomes: Pompéia,
em Roma, para Atenas, na Grécia, com a famosa
democracia ateniense. Além de ser um grande
compositor e leitor, Péricles é um cinéfilo
apaixonado. Lídia Chaib, casada com Péricles, é
uma mulher valente e amorosa. Além de
produtora musical, Lídia tem livros publicados
serenizar/ah/eu poderia ficar
sempre assim/como uma casa
sombria/uma casa vazia/sem luz
nem calor/mas/quero as janelas
abrir/para que o sol possa
vir/iluminar nosso amor.
Tom Jobim e Vinicius de
Moraes
Janelas abertas
Menina amanhã de
manhã/quando a gente
acordar/quero te dizer/que a
felicidade vai/desabar sobre os
homens/vai/desabar sobre os
homens/menina ela mete
medo/menina ela fecha a
roda/menina não tem saída/de
153
Picture yourself in a boat
on a river/With tangerine
trees and marmalade
skies/somebody calls
you, you answer quite
slowly/a girl with
kaleidoscope
eyes/Cellophane flowers
of yellow and
green/Towering over
your head/look for the
girl with sun in her
eyes/and she’s
gone/Lucy in the sky with
sobre
Candomblé
. Esse é o terceiro núcleo
amoroso por quem fui adotado. No meio da
zoeira, esses núcleos de amizade são vitais para
minha sustentação afetiva, para o meu
aconchego e alegria.
Vocês chegaram no melhor momento: o do
show de lançamento do Cd da cantora,
desenhista e compositora Tulipa Ruiz, no
Ibirapuera. Vamos encontrar todo pessoal lá.
Tulipa, antes do início da carreira, trabalhava em
várias escolinhas de arte, na periferia de São
Paulo. Pegava uns dez ônibus por dia. Conta que
chegava exausta, mas antes de cair na cama, ouvia
uma voz forte, de incentivo, em seus ouvidos:
Guerreira! Na preparação do seu show tive um
sonho, que deveria ser mais dela do que meu:
estava quase na hora de começar o show e não
tinha quase ninguém no grande auditório do
Ibirapuera. De repente, descubro que a saída da
Estação da Luz passava por dentro do teatro, que
logo ficou lotado. Alguns dias depois teve a
Virada Cultural e o show dela aconteceu na saída
da Estação da Luz. Quando lhe falei do sonho, ela
me contou que tinha acordado, no meio da
noite e ainda estava naquela zona imprecisa
entre o sonho e a vigília, quando sentiu a
presença de um ente de Luz, que intuiu ser o
Arcanjo Miguel. Conto esses sonhos não para
fazer proselitismo, mas para constatar a rede sutil
de amorosa solidariedade criativa que nos
harmoniza. um grande sonho que
compartilho com Janaína: como artista, de todas
as maneiras, em qualquer função ou posição que
esteja, quero retribuir ao máximo tudo que
recebo da Música Brasileira!
JANAÍNA
Se algo absoluto na vida é a nossa
interdependência. O pessoal do calendário Maya
e esse grupo de artistas fazem parte de uma
movimentação mundial que está na
contracorrente das
Sociedades de Dominação
,
que se caracterizam pelo controle, competição,
predação, hierarquia e belicosidade. Essa nosso
pessoal busca outras possibilidades: as
Sociedades
de Parceria
, que estão voltadas para o amor, a
cima de banda ou de
lado/menina olhe pra frente/oh,
menina tenha cuidado/não
queira dormir no ponto/segure
o jogo atenção de
manhã/menina a felicidade é
cheia de praça/é cheia de
traça/é cheia de lata/é cheia de
graça/menina a felicidade é
feita de pano/é cheia de peno/é
cheia de sino/é cheia de
sono/menina a felicidade é
cheia de ano/é cheia de eno/é
cheia de hino/é cheia de
onu/menina a felicidade é cheia
de an/é cheia de en/é cheia de
154
diamonds/follow her
down to a bridge by a
fountain/where rocking
horse people eat
marshmallow
pies/everyone smiles as
you drift past the
flowers/that grow so
incredibly
high/newspaper taxis
appear on the
shore/waiting to take you
away/climb in the back
with your head in the
clouds/and you’re
gentileza,
a cooperação,
a mútua
responsabilidade, a solidariedade, o respeito, a
simbiose e as relações horizontais.
O mundo é uma caminhada quando se pisa no
chão de descalço, peito aberto e coração/E
quem só pisa de sapato cuidado de antemão/Que
fura pedra, entra pelo vão/Tem muita gente no
caminho indicando a direção/Só faz sentido
quem conhece a contramão/E quem discursa e
não escuta a palavra do irmão/Tropeça no pé,
engasga na solidão.
HERMES
Janaína, essa sua observação nos remete ao início
da nossa conversa: à Grécia, a Creta, e mesmo
antes. A radical mudança das sociedades
ocidentais não ocorreu simplesmente em função
das guerras de conquista, contudo a guerra é um
instrumento essencial da substituição do
modelo
de parceria pelo de dominação
. É provável que
Creta tenha sido a última civilização baseada na
parceria
. Depois de cinco mil anos de vida numa
sociedade de dominação, é muito difícil imaginar
um mundo diferente.
Sociedades de parceria
,
mesmo pequenas e restritas, nunca deixaram de
existir, quase como um aceno de esperança. Mais
do que pela potência em si, a sensação da falta de
poder, é quem cria a necessidade de dominação e
controle. Sem temores, defesas ou desconfianças,
podemos e queremos compartilhar o poder:
consciência, crescimento, realização. A
competição equilibrada pela cooperação, e o
individualismo pelo amor. A grande mudança de
consciência que buscamos é a das
Sociedades de
Dominação
para as de
Parceria.
DIONÍSIO
Vamos pegar um símbolo da dominação: o
automóvel. Vocês estão sentindo os olhos
ardendo, o nariz irritado e a pele seca. É preciso
dizer e repetir muitas vezes, como um mantra:
não é normal ver o ar que se respira!
Essa é a
situação das metrópoles planetárias. uma
tirania do automóvel em um planeta poluído. Ele
é o grande vilão: é o maior poluidor atmosférico
in/é cheia de on/menina a
felicidade é cheia a/é cheia de
e/é cheia de i/é cheia o.
Tom Zé
Menina amanhã de manhã
Silêncio, por favor/enquanto
esqueço um pouco/a dor no
peito/não diga nada sobre meus
defeitos/eu não me lembro
mais/quem me deixou assim/hoje
eu quero apenas/uma pausa de
mil compassos/para ver as
meninas/e nada mais nos
braços/só esse amor assim
descontraído/quem sabe de
155
gone/Lucy in the sky with
diamonds/picture
yourself on a train in a
station/with plasticine
porters with looking
glass ties/suddenly
someone is there at the
turnstile/the girl with
kaleidoscope eyes.
John Lennon e Paul Mcartney
Lucy in the sky with diamonds
A razão porque mando
um sorriso/e não corro/é
que andei levando a
vida/quase morto/quero
e sonoro
; transforma o pedestre em um inimigo
e pobre coitado; é a prioridade máxima no
planejamento das cidades e destrói o espaço
urbano; diminui a qualidade de vida; tira a
prioridade do transporte urbano; é o maior
mercado da indústria do petróleo, que fomenta a
guerra, e nem cumpre a função questionável
de nos levar mais rápido. Quem começou a
mexer fundamentalmente com o tempo e os
ritmos da vida foi o automóvel. Ouçam essa
entrevista do cineasta brasileiro Domingos de
Oliveira, sobre o tempo:
O presente não é nada. Ele é uma ligação entre o
passado e o futuro, ninguém consegue pegá-lo.
O passado é uma operação mental, um jeito que
inventamos de continuar a ser aquilo que não
somos mais. O futuro é o astro. Nós somos puro
projeto, puro lançar-se sobre o futuro. Sem o
tempo, os instantes seriam eternos. O tempo não
para e a arte é um ato de revolta contra a
fugacidade das coisas. Todo mundo tem a sua
visão do mundo, mas o artista é aquele que cisma
que a visão dele tem que ser comunicada aos
outros, achando que pode ser muito bom para os
outros. Ele cisma isso. Existem dois tipos de
liberdade. A liberdade da arte, em que você
descobre que pode fazer tudo, que não tem
ninguém te mandando, nenhuma limitação para
o artista. O segundo tipo de liberdade é maior, é
quando você pega toda essa primeira liberdade e,
porque você quer, livremente, entrega-a para os
outros. Se o mundo fosse compreensível, não
haveria arte. A arte é uma pesquisa do mistério, e
esse mistério é o que nos une a todos. De modo
que criar é, de alguma forma, se unir ao outro.
É pelo automóvel que devemos iniciar algo.
Como desmontar uma economia global que tem
o petróleo como a principal fonte de energia?
Simplificando muito: o petróleo é o sangue da
Terra. Sua composição principal é de matéria
orgânica: vegetal e animal. Ele é vital para a
renovação do húmus, a camada de terra fértil.
Estamos queimando e sacrificando o sangue e a
carne da Terra.
tudo, não fale/quem
não
sabe
nada se cale/se for preciso eu
repito/porque hoje eu vou
fazer/ao meu jeito eu vou
fazer/um samba sobre o infinito.
Paulinho da Viola
Para ver as meninas
Eu te vejo sumir por aí/te avisei
que a cidade era um vão/dá tua
mão/olha pra mim/não faz
assim/não vai lá não/os letreiros
a te colorir/embaraçam a minha
visão/eu te vi suspirar de
aflição/e sair da sessão frouxa
156
fechar a ferida/quero
estancar o sangue/e
sepultar bem longe/o que
restou da camisa
colorida/ que cobria
minha dor/meu amor, eu
não me esqueço/não se
esqueça por favor/que
voltarei depressa/tão
logo a noite acabe/tão
logo esse tempo
passe/para beijar você.
Paulinho da Viola
Para um amor no Recife
HERMES
Primeiro é preciso desincorporar o deus
Atlas
:
tirar o mundo das costas. E também não
devemos nos intimidar com o tamanho da obra.
Vamos é ampliar nossa micropolítica.
Viver ou morrer/É o de menos/A vida inteira
pode ser qualquer momento/Ser feliz ou
não/Questão de talento/Leve a semente vai onde
o vento leva/Gente pesa/Por mais que
invente/Só vai onde pisa.
É curioso, fascinante, que nesse início de milênio
possa existir uma ciência com o nome de
Caos
. É
como se a gente estivesse deixando de temer a
desordem, o inconsciente, o acaso, o inesperado,
o imprevisível, o tumulto do mundo e dos
desejos. A teoria da nova ciência do
Caos
refere-
se a uma interconectividade subjacente, que
existe entre fatos aparentemente aleatórios.
Enfoca matrizes, padrões ocultos, a sensibilidade
das coisas e os modos que regem os meios pelos
quais o imprevisível causa o novo. É uma
tentativa de compreender a criatividade: os
movimentos que criam as tempestades, furacões,
padrões climáticos, rios turbulentos, litorais
nodosos, o trânsito, a bolsa de valores e todos os
tipos de padrões complexos, desde deltas de rios
até os nervos e vasos sanguíneos do nosso corpo.
A teoria do
Caos
nos impulsiona para além da
simplicidade e da complexidade, da objetividade e
da subjetividade, meu ponto de vista em
oposição ao seu, a ordem e o acaso, poder aberto
versus influência sutil, controle versus incerteza.
Ela transcende essas e outras dualidades por trás
do nosso pensamento e abastece de energia
nossos estereótipos e nossas projeções. A teoria
do
Caos
mostra que é uma ilusão separar o eu do
outro, e que pode ser igualmente ilusório
imaginar uma fusão falsa ou inautêntica do eu
com o outro. Para alguns filósofos o universo era
uma plenitude. Para outros, um vácuo. Para
alguns, a realidade era um eterno fluxo de
infindável transformação; para outros átomos
indestrutíveis e indivisíveis. Aprendemos que
temos de escolher entre o livre-arbítrio e o
determinismo, entre mente e corpo, entre
de rir/já te vejo brincando,
gostando de ser/tua sombra a se
multiplicar/nos teus olhos
também posso ver/as vitrines te
vendo passar/na galeria/cada
clarão/é como um dia/abrindo
um salão/passas em
exposição/passas sem ver teu
vigia/catando a poesia/que
entornas no chão.
Chico Buarque
Vitrines
Juro que não vai doer se um dia
eu roubar/o seu anel de
brilhantes/afinal de contas dei
157
Entre a célula e o céu/o
DNA e Deus/o quark e a
Via Láctea/a bactéria e a
galáxia/entre o agora e o
eon/o íon e o Órion/a luz
e o magnéton/entre a
estrela e o elétron/entre o
glóbulo e o globo
blue/eu, um cosmos em
mim só/um átimo de
pó/assim;do yang ao
yin/eu e o nada não/o
vasto, vasto vão/do
espaço até o spin/do
sem-fim além de mim/ao
criação contínua e um único
big bang, entre
a
ordem e o caos. Desejamos escapar às tensões da
ambiguidade e da incerteza, mas, quanto mais
energia depositamos em um pólo de uma
dualidade, mais ela assume a carga do seu oposto.
Como podemos nos livrar dos domínios dessas
dualidades? A teoria do
Caos
sugere que a ironia,
a metáfora e o humor ajudam a ultrapassar a
dualidade e atingir uma nova clareza de visão. A
arte, a música, o teatro e os rituais sagrados,
assim como as disciplinas de muitas das tradições
de sabedoria do mundo, fazem uso de formas
ricas e ambíguas para escapar da armadilha da
dualidade. A teoria do
Caos
, com sua aceitação
simultânea da simplicidade e da complexidade, da
ordem e do caos, do um e dos muitos, do eu e
do outro, é a que mais se aproxima da sabedoria
tradicional do mundo. O
Caos
convida-nos a
adotar novas maneiras de vida, a andar na corda
bamba entre simplificar demais escolhas por
ignorar sutilezas e complicar muito a ação direta
e as decisões claras. Comparadas às intensas forças
que atuam no mundo, uma borboleta batendo
asas não parece ter muito poder. Contudo, um
antigo provérbio chinês diz que o poder das asas
de uma borboleta pode ser sentido do outro lado
do mundo. A teoria do
Caos
ilustrou essa
sabedoria: pequenas causas, não-lineares,
provocam grandes efeitos. O escritor Robert
Musil, em seu livro
Um homem sem qualidades,
diz:
O somatório social dos pequenos esforços
cotidianos de todos, especialmente quando
reunidos, sem dúvida libera muito mais energia
do que os raros feitos heróicos.
A consciência é um sistema aberto, assim como
o tempo. É moldada pela linguagem, pela
sociedade e por todas as interações do nosso dia-
a-dia. Todos nós somos aspectos da consciência
coletiva do mundo, cujo conteúdo é alterado
constantemente pelas forças do caos que cada
indivíduo expressa. Nada se encontra fixado em
absoluto. Através do caos, uma pessoa ou um
pequeno grupo podem influenciar o mundo
inteiro de maneira profunda e sutil.
meu coração/e você pôs na
estante/como um troféu/no
meio das bugigangas/você me
deixou de tanga/ai de mim que
sou romântica/kiss baby, kiss me
baby, kiss me/pena que você não
me quis/não me suicidei por um
triz/ai de mim que sou
assim/quando eu me sinto um
pouco rejeitada/me dá um nó na
garganta/choro até secar a alma
de toda mágoa/depois eu parto
pra outra/como um mutante/no
fundo sempre sozinho/seguindo
o meu caminho/ai de mim que
sou romântica/kiss baby, kiss me
158
sem-fim aquém de
mim/den’de mim.
Gilberto Gil e Carlos Rennó
Átimo de pó
Dispara o trem bala veloz
feito luzes/e integra a
estação razão à
intuição/por meio do teu
nome ausente em mim
reluzes/enquanto o
garotinho empurra o seu
limão/a blitz ali na frente
diz que aqui a onda/tá
mais pro Haiti do que pro
Havaí/se as coisas nos
reduzem a nada/do nada
simplesmente temos que
DIONÍSIO
O exemplo de uma quebra de dualidades é saber,
simultaneamente, não sofrer juntos: a
compaixão, como também saber gozar juntos: a
congratulação. Acho que alguma técnica
corporal, que envolva meditação é vital. Antes de
falar sobre minha experiência de meditação,
quero ler pra vocês o que diz o físico David
Bohm:
A palavra saúde vem do latim salus, salutis, e
significa salvação, conservação da vida, cura,
bem-estar. A palavra latina mederi, que significa
curar, raiz também da moderna palavra medicina,
deriva de uma raiz que significa medir. Isto reflete
a visão de que a saúde física deve ser vista como o
resultado de uma justa medida interna em todas
as partes e processos do corpo. De modo
semelhante, a palavra moderação, que descreve
uma das mais antigas noções de virtude, vem
também da mesma raiz, e isso mostra que tal
virtude era considerada como o resultado de uma
correta medida interna subjacente às ações e
comportamentos sociais dos humanos. Por
outro lado, a palavra meditação, derivada da
mesma raiz, envolve uma espécie de pesagem,
ponderação ou medição de todo processo do
pensamento, que pode levar as atividades internas
da mente a um estado de medida harmoniosa.
Portanto, física, social e mentalmente, a
consciência da medida interna das coisas era vista
como a chave para uma vida saudável, feliz e
harmoniosa.
JANAÍNA
Engraçado é que a
Harmonia
é filha de
Ares
, o
deus grego da Guerra, que corresponde ao
Marte
romano, e
Afrodite
, a
Vênus
romana:
Deusa do
Amor.
No sistema solar, a Terra está entre Vênus
e Marte, o Amor e a Guerra. No jogo dos
contrários, a Terra é o lugar da Harmonia!
DIONÍSIO
Meditação é movimento e quietude, respiração e
silêncio. O movimento é uma dança, uma
baby, kiss me/
pena que você não
me quis/não me suicidei por um
triz/ai de mim que sou
romântica.
Rita Lee e Roberto Carvalho
Mutante
Lava a roupa todo dia/que
agonia/na quebrada da
soleira/que chovia/até sonhar
de madrugada/uma moça sem
mancada/uma mulher não deve
vacilar/eu entendo a juventude
transviada/e o auxílio luxuoso
de um pandeiro/até sonhar de
madrugada/uma moça sem
159
partir/uma criança
chora?/do nada
simplesmente temos que
partir/produzir
vibrações, rotações,
girassóis/danças, saltos,
gravitações/inventar
novas metas e setas que
vão/disparar novos
corações/o céu está
nublado?/as nuvens
serão tela para o filme
que se quer projetar nas
nuvens.
João Bosco, Antônio Cícero e
Wali Salomão
Trem Bala
entrega às expressões do corpo. Seja em
movimento ou em quietude, deixar os
pensamentos fluírem livremente. Fazer o balanço
do dia e o plano para o dia seguinte. Avaliar-se
como obra de arte, com todo cuidado, disciplina
e rigor, mas sem perder a auto-ternura jamais! O
silêncio surge naturalmente no movimento ou
no repouso. É nesse instante que o Corpo é
Cosmo e o silêncio é a ausculta atenta. A
respiração é o ritmo. É rápida e lenta, superficial e
profunda. Às vezes entrecortada. Respirar é mais
do que a entrada e saída de ar pelos pulmões, é o
arejamento do corpo todo: ossos, articulações,
músculos, vísceras, vasos, sangue, nervos, pele,
pelos. É também o alimento mais sutil. Junto
com os gases: oxigênio e nitrogênio respiramos
fótons: partículas da luz. É essa a compreensão
indiana da energia vital
prana
: ar e luz.
Pronunciar palavras codificadas, os
mantras,
entoar canções ou escolher palavras que nos
toquem o coração, além de aumentar a vibração
do corpo, ajudam a sentir a extensão de cada
inspiração ou expiração. Por exemplo, a palavra
amor pode ser inspirada pela boca, em um
sussurro: arrr e expirada: morr. Parece palavra do
Profeta Gentileza. Imagens também podem ser
usadas: mandalas, figuras geométricas, são os
yantras
dos indianos, e gestos, conhecidos como
mudras.
Todas essas coisas facilitam as conexões,
criam padrões de coerência.
Gosto de improvisar
em tudo, de acordo com o sentimento do
momento. Por exemplo, nos gestos: se quero
abrir o coração faço gestos de distribuição de
dádivas e sementes, saindo do coração em todas
as direções. Para acalmar o meu ser ponho a mão
esquerda, a do lado do coração, na testa e a
direita, a do cérebro, no coração, fechando assim
um circuito e pronuncio: Calma, Dionísio, vai dar
tempo pra tudo. Digo muitas vezes, em voz alta,
e vou baixando o volume até o silêncio.
JANAÍNA
que estamos no Ibirapuera, vamos cantar essa,
de Tulipa:
Naquele curió mora um pessegueiro/Em todo
rouxinol tem sempre um jasmineiro/Todo bem-
mancada/uma mulher não deve
vacilar/cada cara representa
uma mentira/nascimento, vida e
morte/quem diria?/até sonhar
de madrugada/uma moça sem
mancada/uma mulher não deve
vacilar/hoje pode transformar/e
o que diria a juventude?/um dia
você vai chorar/vejo claras
fantasias.
Luiz Melodia
Juventude transviada
160
Fui na rua pra
brigar/procurar o que
fazer/fui na rua cheirar
cola/arrumar o que
comer/fui na rua jogar
bola/ver o carro
correr/tomar banho de
canal/quando a maré
encher/quando a ma
encher/é pedra que a
apóia tábua/madeira que
apóia telha/saco plástico,
prego, papelão/amarra
saco, cava buraco,
barraco/morada popular
em
propagação/cachorro,
gato, galinha, bicho de
pé/é a população
real/convive em harmonia
normal/faz parte do dia-
te
-
vi carrega uma paineira/Tem sempre um
colibri que gosta de jatobá/Beija-flor é casa de
ipê/Cada andorinha é lotada de pinheiro/E o
João de-de-barro acolhe o eucalipto/A ordem
das árvores não altera o passarinho.
Quem sabe um dia sem poeira porre de ar o
Ibirapuera move-se, semeia e floresce por toda
Sampa! Aqui no parque, nessa nave-mãe verde,
depois desse passeio de bicicleta, o melhor agora
é fazermos nossos ritos e reverências à Deusa do
Amor:
Afrodite-Vênus
. Lembrei-me do
Filme de
Amor,
de Julinho Bressane. Vamos recordar o
mito:
Urano
, o Céu, ao ser castrado por seu filho e
sucessor
Crono
, o Tempo, teve em seu último
orgasmo uma ejaculação tão abundante que o
esperma se transformou em espuma do mar:
fecundando-o. Afrodite, a mulher nascida das
ondas, navegou nua, de pé, em uma concha de
madrepérola, levada pelo suave vento amoroso
zéfiro
até à costa de Chipre. Antes de
desembarcar projetou do seu ser uma trindade, as
Graças
: o
Amor
, a
Beleza
e o
Prazer
. As
Graças
são representadas nuas porque a generosidade
não precisa de aparatos. Para cada benefício que
vem, sai de nós, recebemos dois de volta. É o
tríplice ritmo do benefício:
dar, receber, retribuir
.
Ao tocar a terra tudo floresceu e ela foi vestida e
enfeitada pelas
Estações
e
dançou com as
Graças
,
conhecidas também pelos seus nomes:
Aglaia:
Luz do Dia;
Tália
: Primavera e
Eufrosina
: Alegria.
Foram as Graças que teceram as roupas das
núpcias de
Harmonia
e
Cadmo
, que geraram
Sêmele
, mãe de
Dionísio,
fruto
da sua união com
Zeus
. Afrodite gerou muitos filhos, de pais
diferentes: com
Hermes
gerou
Hermafrodito,
um
deus masculino-feminino, que se tornou o
símbolo de plenitude da Obra, na Alquimia; com
Ares
, deus da Guerra, gerou
Eros,
Harmonia e
Fobos, o
Medo; com
Dionísio
gerou
Príapo
; e
com
Apolo
gerou
Himeneu,
o deus que conduz
o cortejo nupcial. São muitas as aventuras que
envolvem
Afrodite
, como o casamento de seu
filho
Eros
com
Psiquê
, e as quase impossíveis
provas que a mãe impôs à
Alma
, para que
pudesse se unir ao
Amor
. Outro episódio é a
Não s
ei se eu estou pirando/ou
se as coisas estão
melhorando/não sei se eu vou
ter algum dinheiro/ou se só vou
cantar no chuveiro/estou no
colo da mãe natureza/ela toma
conta da minha cabeça/é que
eu sei que não adianta mesmo a
gente chorar/a mamãe não dá
sobremesa/mamãe
natureza/tchu, ru, ru, tchu, ru,
ah!
Rita Lee
Mamãe natureza
161
a
-
dia/banheiro, cama,
cozinha no
chão/esperança/fé em
Deus, ilusão/quando a
maré encher/tomar banho
de maré/quando a maré
encher.
Nação Zumbi
Quando a maré encher
disputa causada por
Discórdia
,
que daria uma
maçã a mais bela das três deusas:
Hera, Atena
ou
Afrodite
.
Páris
foi o juiz. Para suborná-lo, cada
uma delas ofereceu suas vantagens.
Hera
ofereceu-lhe a realeza sobre todos os povos;
Atena
o tornaria invencível na guerra e
Afrodite
conceder-lhe-ia a mão de
Helena
. Afrodite saiu
vencedora e isso desencadeou a Guerra de Tróia.
Em Roma, como Vênus, além da Deusa do
Amor, era a Deusa dos Jardins e a grande
protetora da cidade, por ser considerada uma
antepassada dos romanos. Sua flor favorita é a
rosa e o animal o pombo, cujo casal puxa seu
carro pelos ares.
No silêncio desta prece vimos pedir-te a paz, a
sabedoria, a força/Queremos hoje olhar o
mundo com olhos cheios de amor/Queremos ser
pacientes, compreensivos, prudentes/Fecha os
nossos ouvidos a toda calúnia/Guarda a nossa
língua de toda maldade/E que de bênçãos se
encha nossa alma.
Antes de vir ao nosso encontro em Sampa, fui
fazer minhas oferendas, pedir proteção e coragem
à
Yemanjá
. O mar era um espelho, nenhuma
brisa soprava e o sol ainda não tinha nascido. Por
muito tempo fiquei boiando. Quando os raios de
sol tocaram meu corpo e a superfície do mar, o
vento encrespou a água em ondas. Quando fiquei
de pé vi estrelas que pipocavam por toda parte no
colo do mar. Outros tinham visto antes, por
isso assim representavam a Deusa! A resposta foi
imediata a minha súplica:
Receba mais do que
deseja!
Yemanjá abençoou e acolheu-me em seu manto
de estrelas! Chorei, solucei de alegria e quando
falei sabia dizer: ai minha mãe, minha mãe,
minha mãe. E depois, cantei:
Junto a mim, ali só/Ela leva a minha
mão/Acolhe o riso/Nela muito de
mim/Ainda baste a quem glória possa ser/Nela
nela/Está tudo/Que doce agrado é o
mar/Nela, nela, nela/Está tudo/Que doce
agrado, doce agrado, doce agrado/É o mar.
162
Todo dia o sol levanta/e a
gente canta ao sol de
todo dia/finda a tarde, a
terra cora/e a gente
chora/porque finda a
tarde/quando a noite a
lua mansa/e a gente
dança venerando a noite.
Caetano Veloso
Canto do povo de um lugar
Vamos
tirar os sapatos,
dar as mãos e puxar
esse
povo para dançar e cantar com a gente a ciranda
A
Volta da Lua:
Vista do espaço a Terra-Vida/É única bola
azul/Vendo mais de perto em zoom/Esse azul é
mar/ E uma enorme serpente/Os rios juntos
parece/ Mas é o povo a cirandar/Quando toda
humanidade/Der as mãos em solidária rede/A
dança há de ser uma ciranda.
Dentro de si mesmo/mesmo que
lá fora/fora de si mesmo/mesmo
que distante/e assim por
diante/de si mesmo, ad
infinitum/tudo de si
mesmo/mesmo que pra
nada/nada pra si mesmo/mesmo
porque tudo/sempre acaba
sendo/o que era de se esperar.
Gilberto Gil
Meditação
163
Logo no princípio do
mundo,
Yemanjá
já teve
motivos para se desgostar
da humanidade. Pois desde
5
Somos som sol solos
Meditação de Janaína
Cantar é respirar. Caio em mim, Caymmi, pra me
aconselhar: o mar. O corpo é flauta: sopro, som,
fiat, fóton, fonte, fala, fábula, fiar, fluxo, faro,
fome, fogo, feitiço, fascínio, felícia, festança, fruir,
frescor, farfalhar, ruflar, sussurrar, borbulhar,
gorjear, murmurar. A voz é do clã d’alegria, da
espécie éter e quer explodir, expandir sóis, mitos,
rimas, ruínas, ritmos da história, além da poeira do
dia sacudir. Minha maior inspiração para cantar é o
som da água: a onda que quebra na praia, o fluir
dos riachinhos e dos grandes rios, a queda das bicas
e cachoeiras, o som da pororoca: o encontro das
águas dos rios que desembocam no mar. Pororoca,
que palavra engraçada! Por dentro, contem outras:
pipoca, potoca, roca, poro, oca. É uma palavra tupi
poro’roka:
estrondo, estouro, encontro das águas.
Estoura a pipoca, qual água na roca, respinga e toca
a pele no oco dos poros e entra no vácuo do corpo,
que é minha oca, ecoa potoca de gente que troca
lorota, a alegria da conversa boca a boca, o
encontro das águas: pororoca. Sem brincar não sei
criar, cantar, viver. Nunca quis fazer boca de siri,
nem nada de à boca pequena, miúda. Desde cedo
compreendi que meu destino era a boca de cena,
botar a boca no mundo, sem papas na língua,
arrebentar a boca do balão. A boca que canta fala,
come, beija, suga, assobia, grita, vocifera, respira.
Nossa galáxia de perfil é uma boca.
Hércules
mamava em
Hera
e foi arrancado bruscamente do
peito. O último puxão do futuro herói foi tão forte
que esguichou a
Via Láctea
. Respirar até ser toda
pulmonar: esponja, espuma, bolha, mandala. O ar
entra pelas narinas, boca, língua, dentes, cordas
vocais, traquéia, brônquios, bronquíolos, alvéolos e
volta toca cordas, alveolares, palatais, nasais,
labiolinguodentais, velares, úvula, campânula
ascende-se, o som ressoa no céu da boca
vox
: voz.
Quando
Olódùmarè
decidiu
criar a Terra, chamou seu filho
Oxalá,
entregou-lhe o saco da
existência e instruiu-o.
Oxalá
reuniu todos os
Orixás
e
preparou-se, sem perda de
tempo. De saída encontrou-se
164
cedo os homens e as
mulheres jogavam no mar
tudo o que a eles não servia.
Os seres humanos sujavam
suas águas com lixo, com
tudo o que não prestava,
velho ou estragado. Até
mesmo cuspiam em
Yemanjá
, quando não faziam
A emoção de cantar flutua tal onda no mar. Dó, ré,
mi, fá, sol, lá, cantar é falar música como expressão
de si. A arte nada cala abre alas riso, choro, alegria,
desespero, desova, permanente estréia, estonteante
e aleatória fúria:
Supernova
! Uma estrela azul,
gigante, que rapidamente queima seu combustível
e explode fulgurante, para formar outras tantas
estrelas e planetas. Elas são tão energéticas que
podem brilhar mais do que uma galáxia inteira.
Tem gente supernova, que vem para brilhar e
rapidamente desaparecer: Janis Joplin, Jimi
Hendrix, Elis, Cássia Eller, Noel Rosa, Cazuza, Leila
Diniz, Chico Science. Pela vida afora vamos
incorporando canções e parcerias fugazes em
nossos seres. Elis segue comigo, desde que a
conheci e depois, quando juntas cantamos
Meio-
termo,
em um show de Rita Lee:
Ah, como eu tenho me enganado/Como tenho
me matado/Por ter demais confiado/Nas
evidências do amor/Como tenho andado
certo/Como tenho andado errado/Por seu carinho
inseguro/Por meu caminho deserto/Como tenho
me encontrado/Como tenho descoberto/A
sombra leve da morte/Passando sempre por
perto/E o sentimento mais breve/Rola no ar e
descreve/A eterna cicatriz/Mais uma vez/Mais de
uma vez/Quase que fui feliz/A barra do amor/É
que ele é meio ermo/A barra da morte/É que ela
não tem meio-termo.
Dionísio sempre fala em sincronicidades e campos
de atrações temáticas. Saí para dar um passeio e ao
entrar em uma livraria vejo
O Livro dos Mortos do
Rock.
Abro aleatoriamente e encontro esse
comentário de Jung:
Os grandes talentos são as mais adoráveis, e, muitas
vezes, as mais perigosas frutas da árvore da
humanidade. Eles estão presos aos galhos mais
finos, que se partem com mais facilidade.
Graças à Deusa! Ainda bem que precisa existir
simultaneamente o pessoal da manutenção. Sempre
que posso faço meditação à beira mar. Quando
estou em cidades sem mar lembro, e me consolo,
com verso de Jorge de Lima, na
Invenção de Orfeu
:
com
Odùduà,
que lhe disse
que só o acompanharia após
realizar suas obrigações
rituais. Já no caminho,
Oxalá
passou por
Exu
,
o-que-abre-caminhos, e sem o
qual nada pode ser criado.
Exu
perguntou-lhe se já tinha
feito as oferendas
propiciatórias, mas
Oxalá
não
se deteve. Nesse meio tempo,
Odùduà,
consultou
Ifá
, o
oráculo, que revelou: ela
deveria fazer oferendas a
Exu
e a
Olódùmarè ,
que tinha
esquecido de botar no saco da
165
coisa muito pior.
Yemanjá
foi queixar-se a
Olódùmarè.
Assim não dava para
continuar; Yemanjá vivia
suja, sua casa estava
sempre cheia de porcarias.
Olódùmarè ouviu seus
reclamos e deu-lhe o dom de
devolver à praia tudo o que
sempre um copo
de mar/Para um homem
navegar.
Chego à praia antes do sol nascer. Faço
Tai Chi
Chuan
. Na civilização chinesa existem três pilares
filosóficos: o
taoísta
, o
budista
e o
confucionista
.
Essas três formas de pensamento tentam abranger o
movimento recursivo e interconectado entre o
cósmico, os astros, particularmente o sol e a lua, a
natureza, a sociedade, a família, o corpo carnal, o
psíquico e o indivíduo. Existe sempre uma área
principal que se torna o centro da casa, que atrai
todas as energias e direciona todas as atividades.
Este centro que atrai todas as energias é
simbolicamente o
Eixo
da casa e de todas as coisas.
As três tradições utilizam diversas terminologias
para a mesma palavra:
Chun
, que significa
Centro
.
O
taoísmo
expressa o
Chun
através do
Tao,
que
significa, literalmente,
caminho,
mas também
caminhada
ou
caminhante
. Ao mesmo tempo é
aquele que está caminhando, o caminho e o ato de
caminhar. É também aquele que não está
caminhando, o que não foi caminhado e a ausência
do caminhar. Essa potencialidade é o Tao Absoluto.
O
budismo
expressa
Chun
através do
Kuan,
que
significa
visão, compreensão, iluminação.
É clareza
na consciência, no sentimento, no corpo e no
intelecto. É o
pensamento dos iluminados
. O
confucionismo
expressa o
Chun
através do
Yun,
que significa
simplicidade, naturalidade,
espontaneidade.
Os humanos devemos ser simples.
No confucionismo há uma ênfase sócio-política.
Nas três tradições o
Eixo
é
o
Caminho,
a
Visão e a
Naturalidade do Centro.
O
Eixo
é o centro onde se
encontram as
formas
e o
vazio
do espaço. É o
princípio que atravessa a fronteira das formas como
vazio, é o ponto de equilíbrio. Esse ponto é o
Tai
Chi Chuan.
O
Vazio
não é o nada haver e sim o
quase vir a ser. O
Vazio
é
Consciência
Transcendental.
É o que permite que tudo se
manifeste, está em tudo o que se manifesta e existe
antes da manifestação e permanece após a
manifestação. Se ficarmos vagando o
Vazio
ou nos
apegarmos às
formas
, perdemos o
Eixo
. Quem vive
nesta condição de equilíbrio no
Eixo
se torna
Um.
Dessa forma, não se divide entre o que existe e o
que não existe, entre o invisível e o visível. Não
dualidade. O ser assim é
Tai Chi
: um
eixo
ou
ponto,
existência, e neste momento
lhe entregou, a terra da
almofada onde se senta.
Odùduà
encontra
Oxalá
arriado no caminho,
embriagado do sumo de uma
palmeira, que tinha bebido por
causa da sede que Exu lhe
provocara.
Olódùmarè
disse a
Odùduà
, que chamasse os
outros
Orixás
e criassem a
Terra. Tudo é mar:
Yemanjá.
Então, Odùduà derramou
terra e disse às 5 galinhas, que
tinham sobrado da oferenda,
que para todos os lados
166
os humanos jogassem de
ruim em suas águas. Desde
então as ondas surgiram no
mar. As ondas trazem para
a terra o que não é do mar.
Reginaldo Prandi.
Mitologia dos Orixás.
além das polaridades. O
Eixo
é a verticalidade que
liga o Céu a Terra ou a Cabeça aos Pés. Nós somos
a ligação entre Céu e Terra. O
Eixo
vertical é fixo,
mas nós nos deslocamos em relação a esse centro,
de acordo com nossos movimentos ou posturas:
deitados, sentados, inclinados, rolando pelo chão.
Essa consciência, sintonia e retorno contínuo ao
Eixo é o equilíbrio. O
Tai Chi Chuan
vem do
taoísmo, que por sua vez tem como base o
Livro
das Mutações: o I Ching,
que concebe tudo como
um jogo de polaridades que se alternam e se
complementa
m: yin e yang, lua e sol, úmido e seco
água e fogo, contração e expansão, repouso e
movimento, inspiração e expiração. No
Tai Chi
Chuan
o que se faz em uma direção, se repete na
direção contrária. A observação e a imitação da
natureza é uma das suas chaves: os ritmos dos
astros, do sol e da lua, das estações, das marés, dos
ventos assanhando as árvores, do rígido e do
flexível; a imitação do jeito de ser e o movimento
dos outros animais: o bater das asas dos pássaros, o
passo bamboleante dos elefantes, que os ajudam a
dialogar melhor com o eixo da gravidade.
O sol está nascendo. Sento-me, depois do Tai Chi
Chuan, com um copo d’água ao lado, para que ele
também receba os raios de luz que vão me
alimentar. Essa é uma compreensão que vem do
pesquisador japonês Masaru Emoto, que conheci
em Tóquio, e também através da leitura do seu
livro,
As Mensagens da Água,
e do filme
Quem
somos nós,
sobre as alterações das disposições
cristalinas e harmônicas das moléculas da água,
dependendo dos locais onde ela foi coletada e das
vibrações ambientais no contato. Dois terços dos
nossos corpos são constituídos de água, tal como a
superfície terrestre, e nossos fluidos são salgados,
como a água do mar. Meus olhos estão
semicerrados, o que permite a luz passar. A
princípio deixo o vermelho vivo tomar conta de
todo meu corpo. Esse tipo de luz é bem
revigorante. Depois me concentro nos flashes de
luz dos mais variados matizes e os acompanho em
seus deslocamentos erráticos. Abro os olhos e
começo a respiração solar-lunar voluntária.
Durante todo tempo da nossa respiração,
alternadamente, uma narina está mais aberta à
passagem do ar do que a outra. Mas tem
ciscassem. Pra saber se a terra
está firme encarrega o
camaleão, que logo cria uma
infinidade de bichos.
Depois, com todo cuidado, a
Terra toca, pisa, dança.
Juana Elbein dos Santos.
Os Nagô e a Morte
167
momentos em que ambas estão bem abertas. A
narina direita é solar e a narina esquerda é lunar. O
termo
HaTa Yoga
se refere a isso. Ha: Sol. Ta: Lua.
A solar excita e a lunar acalma. A solar é associada
ao masculino
Shiva
, o
prazer transcendental
e a
lunar a feminina
Shakti,
a
energia criativa
. Deitar-se
de um lado ativa a respiração do lado oposto. Para
começar a dormir é melhor deitar do lado solar,
para ativar o lado lunar, o da serenidade. Nossas
mudanças de posição e tosses, durante o sono, são
movimentos para reequilibrar as desarmonias da
vigília. No momento do amor, a proximidade das
narinas opostas do casal, sintoniza melhor os
corpos e dá maior prazer aos dois. A respiração
solar-lunar voluntária é feita quando se tapa uma
das narinas e inspira-se lentamente pela outra, de
maneira profunda e retendo o ar por algum tempo,
sem desconforto e, lentamente, expira-se pela
narina que estava tapada, que é a mesma que volta
a inspirar e assim sucessivamente, até um máximo
de vinte vezes. Tontura é um sinal de alerta, para
parar um pouco, antes de recomeçar. Esse método
de respiração nos conduz a uma respiração
involuntária mais espontânea, ampla e profunda,
que modula nossas emoções, equilibra os
batimentos cardíacos, a circulação sanguínea, a
temperatura do corpo e aumenta a força vital.
Sinto-me pronta para começar os exercícios vocais.
Inicio com algo simples, como a emissão de vogais
e consoantes em diversas oitavas musicais, para
aquecer as cordas, temperando-as com água. Em
seguida passo a cantar o mantra
OM,
cuja
representação gráfica é a dança de
Shiva Nataraja
, o
dançarino cósmico
.
OM
na tradição tântrica
indiana é o som-semente, que contem todos os
outros: o som da criação. Para pronunciar
corretamente é preciso compreender que a vogal
O,
em sânscrito, é considerada uma fusão do
A
e do
U
, então a sílaba
OM
pode também ser escrita e
pronunciada AUM. Dessa forma, é chamada a sílaba
dos quatro elementos:
A, U, M
e o
Silêncio,
que
está antes, depois e ao redor, do qual tudo surge e
para dentro do qual todo som retorna, exatamente
como o universo, que surge do vazio e retorna ao
vazio. Em meio a todo tumulto e ruído do mundo
o silêncio, que tudo permeia, é ouvido quando a
gente chega e está em repouso no coração. O
A
é
168
pronunciado com a boca e a garganta bem abertas;
o
U
carrega a massa de som adiante; o
M,
um tanto
nasalado termina com os lábios fechados até cessar
o som. No momento da transição do
U
para
UM,
antes de virar
M,
é importante dirigir a vibração
para o céu da boca, pois com isso se ativa o cérebro,
especialmente a hipófise e as suas secreções
hormonais, que coordenam várias funções
corporais. Alegoricamente se diz que o
A
representa a
Consciência Desperta,
em que os
objetos estão separados da consciência que os
contempla; o
U
é a
Consciência Onírica,
em que
embora os objetos possam parecer diferentes e
separados um do outro, eles são o mesmo, ou seja,
tudo é o sonhador; e o
M
é o
Sono Profundo sem
Sonhos,
em que perdemos a consciência e a mente
é uma massa ou um
continuum
indiferenciado da
consciência ilimitada ou vazia. Aquele que está
desperto
está consciente apenas do que se tornou;
sonhando
tem consciência do que está se
tornando; e no
sono sem sonhos
está dissociado de
todo compromisso, restituído ao estado de
latência, de caos ou potencialidade primordial, não
diferenciado e não especificado, do qual tudo o que
algum dia vier a ser, deverá surgir no devido tempo.
Jung nos diz algo sobre uma das etapas dessa
experiência:
As profundas camadas da psique perdem sua
unicidade quando recuam cada vez mais na
escuridão. Mais embaixo, isto é, quando elas se
aproximam dos sistemas funcionais autônomos,
elas se tornam cada vez mais coletivas, até que são
universalizadas e extintas na materialidade do
corpo, ou seja, nas substâncias químicas. O carbono
do corpo é simplesmente carbono. Portanto, no
fundo, a psique é simplesmente mundo.
Gosto muito desse provérbio circular:
canto porque
sou feliz e sou feliz porque canto
. Sempre me
lembro dele e serve de critério de avaliação do bem
viver, para mim e para os outros. Pergunto-me:
canto e tomo banho de sol todos os dias?
quanto tempo não os saboreio? Mede o grau de
alegria ou tristeza em que me encontro.
As sereias são seres com cabeça e tronco de mulher
e na garganta e demais partes do corpo são
169
pássaros. Mulher e peixe, a qual associamos
Yemanjá
, é algo posterior.Mas quando canto sou
pássaro-mulher-peixe e imagino os Ulisses sem
amarras mergulhando ao meu encontro e os
abraço. As sereias são filhas de
Terpsícore
e
Melpómene
, as
Musas
da dança e da tragédia, e de
Aqueloo
, o deus-rio. São três:
Parténope, Leucósia
e Lígia.
Uma toca lira, a outra flauta e a terceira
canta. Elas são as companheiras de
Perséfone
, antes
do rapto de
Hades
, e pediram asas aos deuses para
procurar a amiga na terra e no mar.
Minha carreira profissional começou quando
conheci Lula Cortês, em Casa Forte, na
comunidade criativa formada por Marcelo Mesel e
sua irmã Kátia, futura cineasta, que filmaria o
poético
Recife de dentro para fora
, sobre o rio
Capibaribe e seus personagens, da nascente à foz,
inspirada em um poema e com a presença de João
Cabral. Casa Forte é um bairro recifense muito
antigo e bonito, bem arborizado e à beira do rio
Capibaribe. Lula Cortês é um pioneiro do disco
independente no Brasil, um visionário, inventor de
instrumentos e compositor inspirado. Muitos
começaram com ele, como Marconi Notaro e José
Ramalho. Lula Cortês associou-se a fábrica de
discos
Rozenblit,
cuja tradução do romeno é
Rosa
de Sangue,
que também é o título de um dos seus
discos. A Rozenblit, até então, editava discos de
frevo. Chico Buarque e Paulinho da Viola tentaram
comprar a fábrica, para terem mais autonomia
criativa e financeira, mas uma das cheias dos rios
recifense inundou-a e deixou o equipamento
imprestável, além da perda de muitas matrizes.
Estreei publicamente com Lula Cortês, no show de
lançamento do seu disco
O Gosto Novo da Vida.
Muito tempo depois, junto com Dionísio, fui
aprender a dançar frevo com o mestre Nascimento
do Passo e em seguida capoeira, com o mestre
Meia-Noite
, na comunidade de formação artística
Daruê Malungo,
no bairro de Peixinhos, entre
Olinda e Recife. Foi lá que conheci Chico Science e
Fred Zero Quatro, que seriam os principais
criadores da cena pernambucana
Mangue Beat
.
Fizemos alguns shows juntos, no Brasil e no
exterior. O
Tai Chi Chuan
ainda não tinha entrado
em minha vida, mas sem dúvida, intuitivamente, eu
estava procurando o
Eixo
e o nosso
deslocamento e uma das melhores expressões disso
são a capoeira e o frevo. Dionísio chegou até a
inventar um diálogo entre dois mestres, o indiano
Karun, com o T
Noite, com a Capoeira. A coreografia foi chamada
de
Taichipoeira
da cena
tocava no Eixo vertical, que liga o Céu a Terra.
Parei de cantar profissionalmente quando chegaram
os filhos, um menino, e logo em seguida, uma
menina. Os filhos criados e até uma neta poderiam
ser motivos para me aposentar, mas acho que quem
aposenta a gente é a morte. Jung se refere a uma
preparação in
segunda metade da vida. Nesse momento, uma
inversão total dos valores e dos desafios da primeira
metade:
própria criatividade
no mundo.
primeiros
harmonizar adequadamente esse conjunto de
prioridades básicas, que continua essencial na
segunda metade da vida, e que se acumula com os
novos desafios. Mas, nessa segunda metade, a
mo
rte está mais próxima, a vida é mais urgente e
precisamos nos livrar do excesso de besteira metida
à séria. Se a gente não negar, nem escamotear, a
morte dá a justa medida. É o momento de saborear
a essência da vida: a
espiri
com toda tutela, deixar o Deus aprendido de
qualquer religião, com seus intermediários e
atravessadores, que se esforçam em nos convencer
de que somos meros serviçais ou mesmo escravos
da divindade, e abraçar o
Nós. Estamos individualizados, mas não separados
do todo. Somos o todo na parte, nosso corpo pode
acessar essa memória cósmica aos poucos, porque é
preciso antes saúde, para não dar curto
equipamento vivo; o acesso pode ta
momentâneo, o que indica o caminho; ou chegar
ao máximo de comunhão com esse mar de
memória e captação. Se alguém ainda acredita em
hierarquias de valor na obra da criação, acima de
Deus está a Mãe de Deus Viva: a Terra.
deslocamento e uma das melhores expressões disso
são a capoeira e o frevo. Dionísio chegou até a
inventar um diálogo entre dois mestres, o indiano
Karun, com o T
ai Chi Chuan e o mestre Meia
-
Noite, com a Capoeira. A coreografia foi chamada
Taichipoeira
. Depois me dei conta que o mote
da cena
Mangue
:
uma parabólica enterrada na lama
tocava no Eixo vertical, que liga o Céu a Terra.
Parei de cantar profissionalmente quando chegaram
os filhos, um menino, e logo em seguida, uma
menina. Os filhos criados e até uma neta poderiam
ser motivos para me aposentar, mas acho que quem
aposenta a gente é a morte. Jung se refere a uma
preparação in
stintiva para a morte, que começa na
segunda metade da vida. Nesse momento, uma
inversão total dos valores e dos desafios da primeira
metade:
garantir a sobrevivência
,
a descoberta da
própria criatividade
e o
poder de realizar uma obra
no mundo.
Corresp
onde às consciências dos três
primeiros
chakras
.
A maioria não consegue
harmonizar adequadamente esse conjunto de
prioridades básicas, que continua essencial na
segunda metade da vida, e que se acumula com os
novos desafios. Mas, nessa segunda metade, a
rte está mais próxima, a vida é mais urgente e
precisamos nos livrar do excesso de besteira metida
à séria. Se a gente não negar, nem escamotear, a
morte dá a justa medida. É o momento de saborear
a essência da vida: a
quintessência
. É uma revolução
espiri
tual: trocar Deus por Deus. Precisamos romper
com toda tutela, deixar o Deus aprendido de
qualquer religião, com seus intermediários e
atravessadores, que se esforçam em nos convencer
de que somos meros serviçais ou mesmo escravos
da divindade, e abraçar o
Deus que somos todos
Nós. Estamos individualizados, mas não separados
do todo. Somos o todo na parte, nosso corpo pode
acessar essa memória cósmica aos poucos, porque é
preciso antes saúde, para não dar curto
-
circuito no
equipamento vivo; o acesso pode ta
mbém ser
momentâneo, o que indica o caminho; ou chegar
ao máximo de comunhão com esse mar de
memória e captação. Se alguém ainda acredita em
hierarquias de valor na obra da criação, acima de
Deus está a Mãe de Deus Viva: a Terra.
170
deslocamento e uma das melhores expressões disso
são a capoeira e o frevo. Dionísio chegou até a
inventar um diálogo entre dois mestres, o indiano
-
Noite, com a Capoeira. A coreografia foi chamada
. Depois me dei conta que o mote
uma parabólica enterrada na lama
Parei de cantar profissionalmente quando chegaram
os filhos, um menino, e logo em seguida, uma
menina. Os filhos criados e até uma neta poderiam
ser motivos para me aposentar, mas acho que quem
aposenta a gente é a morte. Jung se refere a uma
stintiva para a morte, que começa na
segunda metade da vida. Nesse momento, uma
inversão total dos valores e dos desafios da primeira
a descoberta da
poder de realizar uma obra
onde às consciências dos três
A maioria não consegue
harmonizar adequadamente esse conjunto de
prioridades básicas, que continua essencial na
segunda metade da vida, e que se acumula com os
novos desafios. Mas, nessa segunda metade, a
rte está mais próxima, a vida é mais urgente e
precisamos nos livrar do excesso de besteira metida
à séria. Se a gente não negar, nem escamotear, a
morte dá a justa medida. É o momento de saborear
. É uma revolução
tual: trocar Deus por Deus. Precisamos romper
com toda tutela, deixar o Deus aprendido de
qualquer religião, com seus intermediários e
atravessadores, que se esforçam em nos convencer
de que somos meros serviçais ou mesmo escravos
Deus que somos todos
Nós. Estamos individualizados, mas não separados
do todo. Somos o todo na parte, nosso corpo pode
acessar essa memória cósmica aos poucos, porque é
circuito no
mbém ser
momentâneo, o que indica o caminho; ou chegar
ao máximo de comunhão com esse mar de
memória e captação. Se alguém ainda acredita em
hierarquias de valor na obra da criação, acima de
.
171
Partimos a humanidade e
m duas metades: o
Ocidente e o Oriente e ricos e pobres de cada lado.
Além de todos os excluídos, negamos a equidade
espiritual, econômica, histórica e política entre
homens e mulheres, o que muito mais da
metade da humanidade. Deliramos que esses pólos
são inconciliáveis, mas como nossa
interdependência é absoluta, somos forçados a nos
encontrar e conversar, e a brincadeira pode ficar
muito mais animada. Não é gratuito esse jogo de
noves em nossa narrativa, entre tantos significados
está o do tempo da gestação humana da vida, da
mulher. A negação do feminino é a negação da
vida, da terra, da alma. O machão, que é o
masculino com muita dificuldade de aceitar o seu
lado feminino, virou um padrão de governo
planetário: o capitalismo, que aplica o equivocado
darwinismo social, uma espécie de seleção dos mais
fortes, leia-se cotoveladas e chutes pra todo lado.
Esse tipo de predação é incompatível com a
existência planetária. A competição existe, mas na
vida a cooperação é predominante e é absoluta a
interdependência das espécies. No mercado de
valores a velhice não tem boa cotação. E com toda
a exploração da imagem da mulher jovem, para
vender quase tudo, acreditamos nesse tipo de
eternidade. Mas, antes de tudo, é pela falta de
consciência da mudança espiritual da segunda
metade da vida, que a velhice feminina pode ser
muito mais difícil e dramática. Lembro trechos de
um poema de Adélia Prado:
Ainda me restam coisas mais potentes que
hormônios. Tenho um teclado e cito com
elegância Os Maias, A Civilização Asteca. Falo alto,
às vezes, para testar a potência, afastar as línguas de
trapo me avisando da velhice: Como estás bem!
Gaguejo uma
gag,
à la Woody Allen: a velhice traz
sabedoria, por falta de memória. O tempo diz:
tudo
é tão efêmero.
E a memória responde
: fora o que a
gente esquece, tudo é para sempre.
No essencial
nunca desisti de nada e leio algo parecido no jornal:
depois de mais de vinte anos, o cineasta Arnaldo
Jabor voltou a filmar. Essas coisas me levam às
lágrimas. O sucesso dos meus discos no Japão foi a
senha de que estava na hora de retornar. O contato
com os músicos paulistanos me deixou mais viva
172
do que nunca! Eles sabem, cultivam e respeitam as
nossas matrizes musicais, mas não se deixam
intimidar, ao dar continuidade à espiral evolutiva da
música brasileira. Dionísio e eu nunca fomos
clandestinos, sempre soubemos um do outro, isso é
o mais difícil, mas faz sentido passar pela vida se
esgueirando pelos cantos? um tipo de amor que
nunca acaba.
Não se afobe, não/Que nada é pra já/O amor não
tem pressa/Ele pode esperar em silêncio/Num
fundo de armário/Na posta-restante/Milênios,
milênios/No ar/E quem sabe, então/O Rio
será/Alguma cidade submersa/Os escafandristas
virão/Explorar sua casa/Seus quartos, suas
coisas/Sua alma, desvãos/Sábios em vão/Tentarão
decifrar/O eco de antigas palavras/Fragmentos de
cartas, poemas/Mentiras, retratos/Vestígios de
estranha civilização/Não se afobe, não/Que nada é
pra já/Amores serão sempre amáveis/Futuros
amantes, quiçá/Se amarão sem saber/Com o amor
que eu um dia/Deixei pra você.
Na afinação do mundo, é como se fosse uma
espécie de diapasão para dois, que harmoniza as
diversas frequências e oitavas musicais. Talvez o
mundo precise de gente amorosa mais espalhada.
Somos um conjunto, seguirei com Dionísio para
sempre, mas talvez esse seja o momento do solo:
cada um em seu canto. Hermes fez um arranjo
inacreditável, parece uma combinação dos maestros
Rogério Duprat e Júlio Medaglia, para uma música
de Jorge Mautner, Macalé, Walter Franco, Itamar
Assumpção ou Arrigo Barnabé. As modulações e
ritmos flutuam entre as marchinhas de carnaval, o
samba, a bossa nova, os estilos da tropicália, da
vanguarda paulista e o samba enredo. É uma
surpresa, Dionísio ainda não sabe, mas musiquei e
vou incluir no
cd duplo
, a sua letra
: O Século da
Canção
, que escreveu a partir do livro de Luiz Tatit:
Coisas nossas, bossas, do Brasil tropical/Cadete e
Baiano cantando/Foi Figner com seu fonógrafo
pioneiro/Quem primeiro gravou nossa
dicção/Inaugurando no Rio de Janeiro/O Século
da Canção/Depois pelo telefone Donga/Da casa de
tia Ciata/Entre batuques e umbigadas:
Samba/Chamou Sinhô, Pixinga e Noel/Canto e fala
173
são o mesmo coloquial
/Esse abre
-
alas trouxe
Chiquinha, marchinhas/E Barro e Babo no
carnaval/Dando vários passos, saltos no
tempo/Tivemos dois movimentos/Bossa Nova e
Tropicália/O primeiro gesto decanta o canto/O
segundo tudo inclui e assimila/Em ênfase
alternam-se, mas vão conjuntos/Esses gestos, ao
longo da História/Na busca do equilíbrio
estético/Quando excesso: decanta/Se exceto:
mistura/Citar outros nomes e tudo que veio
depois/No leque sem desenlace da dicção/Não
cabe na letra, ouvide Samba da Bênção/E ainda tem
o risco do excesso ou do omisso/Em cada canto
gêneros uni-vos diversos/E o encanto da canção
taí/Este tem sido o rumo desde o início até aqui.
À beira mar desfio e fio o contínuo reinício, a onda
é o meu ritmo. Somos seres aquáticos e a água
sempre dribla os obstáculos e em seu percurso
busca o caminho mais fácil. Não é critério de valor,
mas a vida precisa ser vivida mais como dor do que
prazer? Encantam-me pessoas para quem a vida é
bem dura, mas não perdem a gentileza, o amor,
nem a ternura. O velho menino que Dionísio é tem
certeza de que nunca termina a brincadeira. Talvez
não haja mesmo fronteira entre conversar,
trabalhar, estar de férias, cantar, criar ou brincar.
Quem busca sua bem-aventurança encontra
festança e haja dança! Talvez a grande pergunta seja:
o quê é a Vida? As demais são consequências. E a
vida é o corpo de cada célula. Essas coisas me
levaram também à biologia, o outro lado do meu
ser e exercer.
A célula não-nucleada torna-se nucleada, depois
multicelular, ramificando-se em três reinos:
fungos, plantas e animais. Cada uma dessas
transformações é um gigantesco salto quântico de
criatividade. No reino animal, a transformação
criativa produz os invertebrados, depois os
vertebrados, começando pelos peixes. Dos peixes
vêm os anfíbios, depois os répteis. Estes dão um
salto até os ramos das aves e dos mamíferos.
Quando me lembro dos darwinistas ortodoxos,
cheios de tantas certezas e que não veem nenhum
sentido ou direção no processo evolutivo, penso
no escreveu Darwin, no final da sua vida:
174
Mi
nha teologia é uma simples confusão. Não
consigo ver o universo como o resultado de um
acaso cego, mas não vejo evidências de um desígnio
benévolo nos detalhes.
Não parece ter ocorrido a Darwin que era preciso
uma evolução da consciência humana, um
despertar para um comportamento mais auto-
reflexivo, ético e virtuoso. Não sabemos para onde
estamos indo, mas brincar no percurso é
divertido. O tecido cósmico se entrelaça cada vez
mais veloz. E o que dizer do aumento da
complexidade e da velocidade variável na evolução
da vida? Há um ritmo lento, darwiniano,
semelhante à prosa contínua, gradual, de uma
narrativa, mas também existem saltos rápidos,
bruscos, rupturas narrativas, intuições poéticas! Se o
ambiente na Terra passa por eventos catastróficos,
como se pode esperar que a evolução dos
organismos seja apenas gradual, ou se afirmar que a
extinção de uma espécie se deva apenas aos seus
desajustes de adaptação? Esses eventos têm sido
identificados como épocas de extinção em massa,
seguidas de imensas explosões de outras formas de
vida. Quando ocorre uma catástrofe maciça, talvez
não seja o mais apto, nem mesmo o mais
afortunado aquele que se sai bem, mas sim o mais
criativo. Há uma busca nos registros fósseis de elos
perdidos e estágios intermediários, mas saltos
evolutivos, quânticos, criam vácuos, pulam
sequências lineares, darwinianas, e não estágios
intermediários e por isso mesmo não existem
fósseis. No caso dos fósseis, novos e súbitos
aparecimentos na flora e na fauna são chamados
radiações
. Durante o início da era cenozóica, 50
milhões de anos, algum tempo depois da extinção
dos dinossauros, subitamente os mamíferos
apresentaram uma espantosa radiação em 24
ordens diferentes roedores, coelhos, elefantes,
baleias, cetáceos e primatas, entre elas. A era dos
mamíferos, que resultou disso, levou apenas 20
milhões de anos para se estabelecer. Depois, a
velocidade diminuiu. Os teóricos das catástrofes
dizem que esses eventos são importantes porque
abrem o panorama evolucionário para macro-
organismos recém-criados. Esses eventos criam a
sensação de urgência da sobrevivência, para a
evolução das espécies que resistiram à catástrofe.
175
Uma evolução repentina no ambiente exige um
salto evolucionário igualmente repentino na
espécie. Não há tempo para esperar que a lenta
evolução darwiniana proporcione adaptação. No
darwinismo, a suposição dominante é que os genes
têm a receita completa para construir a forma. Cada
variação deve ser selecionada individualmente. A
probabilidade de variações isoladas serem benéficas
é mínima. O acúmulo de tantas variações genéticas
benéficas e de tanta programação em nível
somático levaria mais tempo do que a idade do
planeta. A possibilidade é o salto quântico. Um
importante mistério da biologia é que algumas
poucas formas são repetidas várias vezes. Parece que
o desenvolvimento da forma biológica é canalizado
para se dar em certos caminhos preferenciais.
Quando a gente contempla a vida marinha, além da
deslumbrante diversidade das espécies, é possível
identificar seres que parecem órgãos de nosso
próprio corpo, como se a vida experimentasse
partes e depois juntasse em um todo, repetindo em
outra escala a transição dos unicelulares para os
pluricelulares. Um problema para o determinismo
genético é que pequenas diferenças no elenco de
genes de uma espécie pode produzir grandes
diferenças de forma. Entre ratos e humanos os
conjuntos genéticos são bastante semelhantes, mas
a diferença de formas, funções e complexidade é
bem desproporcional à diferença nos genes.
Alguns cientistas, entre eles, Rupert Sheldrake,
tentam resolver esse problema sugerindo a
existência de
campos mórficos
, campos que geram
formas:
Os sistemas auto-organizadores, em todos os níveis
de complexidade incluindo moléculas, cristais,
células, tecidos, organismos e sociedades de
organismos - são organizados por campos
mórficos. A maneira pela qual os indivíduos do
passado, tais como: moléculas, cristais ou elefantes,
influenciam os campos mórficos dos indivíduos
atuais que lhes correspondem, depende de um
processo chamado ressonância mórfica: a influência
do semelhante através do espaço e do tempo. A
ressonância mórfica não é afetada pela distância.
Não envolve transferência de energia, mas de
informação. De acordo com esse ponto de vista, os
organismos vivos herdam não somente genes, mas
176
também campos mórficos. Os genes são
transferidos materialmente de seus ancestrais e lhes
permitem fabricar determinados tipos de moléculas
de proteínas; os campos mórficos são herdados,
não-materialmente, por ressonância mórfica, não
apenas dos ancestrais diretos, mas também de
outros membros da espécie. O organismo em
desenvolvimento sintoniza os campos mórficos de
sua espécie e, desse modo, tem à sua disposição
uma memória coletiva ou de grupo onde colhe
informações para esse desenvolvimento.
Rupert Sheldrake fez experiências simples para
demonstrar a não-localidade da comunicação: no
exato momento em que a dona de um cachorro se
levanta de sua escrivaninha no escritório para voltar
para casa, o seu cachorro se dirige à janela e começa
a esperá-la. Essas concepções de
campos mórficos,
parecem semelhantes ao que a filosofia indiana
chama de
akasha,
uma palavra sânscrita que significa
éter
: espaço que tudo permeia. O
akasha
é
considerado o primeiro, e o mais fundamental, dos
cinco elementos: akasha, ar, fogo, água e terra.
Akasha
abrange as propriedades de todos os cinco
elementos. É o ventre de onde emergiu tudo o que
percebemos com nossos sentidos e também o
imperceptível. É o registro permanente de tudo o
que acontece, e que aconteceu, em todo o
universo. No mundo vivo a correlação quase
instantânea não pode ser produzida apenas por
meio de interações físicas ou químicas, entre
moléculas, genes, células e órgãos. A condução de
sinais ao longo do sistema nervoso, não pode
ocorrer com uma velocidade superior a cerca de
vinte metros por segundo, e não pode ocorrer o
transporte de grande número de sinais
diversificados ao mesmo tempo. Não obstante,
correlações quase-instantâneas, não-lineares,
heterogêneas e multidimensionais entre todas as
partes do organismo. O nível de coerência no
organismo sugere que, sob alguns aspectos, ele é
um
sistema quântico macroscópico
. Se reações mais
rápidas e mais lentas devem se acomodar dentro de
um processo global coerente, as respectivas funções
de onda precisam coincidir, e coincidem, em
consequência disso, os biólogos quânticos falam
em
função de onda macroscópica do organismo
,
um conceito matemático que dá expressão formal à
177
conexão instantânea, que liga todas as partes do
organismo. A dinâmica imaginada por Prigogine
fornece uma explicação sofisticada, mas
basicamente local de como as coisas se relacionam
e evoluem no mundo. A dinâmica de
sistema
aberto de evolução
se refere a sistemas particulares;
as interações com outros sistemas e com o
ambiente constituem o que Whitehead chamou
relações externas.
No entanto, Whitehead afirmava
que no mundo real todas as relações são
internas
:
cada entidade real é o que é por causa de suas
relações com todas as outras entidades reais
. Desse
ponto de vista, as coisas estão internamente,
intrinsecamente e até mesmo não-localmente
conectadas e correlacionadas umas com as outras.
Essas concepções sugerem que algo como a mente
pode ir além da sua existência no cérebro. Se a
gente procurar, no interior de um aparelho de TV,
programas vistos nada encontraremos, além dos
equipamentos e circuitos. O aparelho sintoniza as
transmissões, mas não as armazena. Os
chakras
, que
servem de modelo da nossa narrativa são campos de
consciência individual. Os campos de consciência
não precisam estar, necessariamente, nos chakras
ou em seus órgãos correspondentes, como por
exemplo, o sexto e o sétimo chakras estão na área
do cérebro. O
campo mórfico
ou a
kháshico
pode
ser a intermediação entre a mente e o cérebro e,
por conter toda memória, permite aos chakras, e
aos seus órgãos correspondentes, conectarem e
acessarem a informação vitalmente necessária.
Gaia
, a Deusa Terra, é o ser vivo maior do qual
somos parte. É difícil imaginar que temos
consciência e a Terra não, que somos suas células
e frutos. A consciência de Gaia nos inclui, mas pela
abrangência de todos os seres vivos que compõem
esse nosso corpo maior, a biosfera, essa consciência
deve ser diversa da nossa. Os
campos mórficos
animam os organismos em todos os níveis de
complexidade, das galáxias as girafas, dos átomos as
formigas. Eles organizam, integram e coordenam as
partes constitutivas dos organismos, de modo que
todo sistema se desenvolve de acordo com metas e
fins característicos; eles mantêm a integridade do
sistema e capacitam-no a regenerar-se após sofrer
lesões. Assim, em termos desses princípios gerais,
178
deveríamos esperar que o
campo mórfico de Gaia
coordenasse seus vários processos constitutivos, tais
como a circulação de rochas derretidas em seu
interior, a dinâmica da magnetosfera, os
movimentos das plataformas continentais, os
padrões circulatórios e a composição química dos
oceanos e da atmosfera, a regulação da temperatura
global e a evolução dos ecossistemas. Em primeiro
lugar, isso significa que a pesquisa sobre os campos
mórficos de organismos biológicos e químicos,
poderia revelar características gerais de tais campos
e, desse modo, indiretamente, aprofundar nossa
compreensão do
campo mórfico de Gaia
; em
segundo lugar, levanta a possibilidade de que Gaia
poderia estar interagindo, por
ressonância mórfica
,
com outros planetas semelhantes ao nosso, em
outros lugares do universo; e, ainda, que por
intermédio da auto-ressonância, o campo mórfico
de Gaia contém uma memória inerente. À
semelhança de outros organismos, Gaia forma
hábitos através de padrões repetitivos de atividade.
Galáxias e estrelas também representam padrões
repetitivos de organização, recaindo em tipos
distintos com ciclos de vida característicos. Talvez
esses padrões também sejam habituais; padrões
bem-sucedidos de organização galáctica e estelar
foram, através da repetição, tornando-se cada vez
mais prováveis. O mesmo pode ser verdadeiro com
relação aos sistemas solares e planetários. O
processo evolutivo da Terra pode estar seguindo
um padrão habitual estabelecido em outros
planetas semelhantes. Ou então, talvez o nosso
planeta seja o primeiro a seguir esse tipo de
caminho e haja outros seguindo os nossos passos.
É muita leitura e elucubração mental para uma
beira de praia! Haja sol, vou mergulhar no mar.
Eita! Lembrei de
Sábios costumam mentir
, uma
música de João Bosco, do disco
Zona de Fronteira
,
todo feito em parceria com Wali Salomão e
Antônio Cícero. Tem tudo a ver:
Estrelas no escuro/e fenômenos do vir a ser/que os
deuses me invejem/eu dou tudo por um mero
prazer/Pois o excesso de felicidade/bem do
princípio do amor/quando o amor é fatal/mata os
deuses de inveja/de um simples mortal/Que são o
futuro e o passado/a saudade e a esperança/o amor
.
179
nos convida
à viagem/agora e aqui/Quando você
me inflama/o foco da imaginação/vejo como é
relativo/o poder da razão enfim/Sábios costumam
mentir/isso por força do amor por você
aprendi/Não é que eu ame apesar/do absurdo de
amar/mas justamente porque é absurdo sem
par/Que são o futuro e o passado/a saudade e a
esperança?
180
6
A arte de conviver
Meditação de Dionísio
Quem desmonta seu circo fica sem ter aonde ir? Leve, rápido, múltiplo, sede infinita sem
raízes, o artista voa, todos os lugares quer ser todas as pessoas, palmas, vaias, rimas, em cada
esquina presentes, na vida nada nunca bisa. Resta quem então esquivo dos ritmos da paixão,
por medo, siso ou descaso? Um personagem a cada nível de consciência aparece outra
sintaxe, ritmo de gente conversa, jeito da vida cadência, o espetáculo de cada instante
apavora figurante. No ter, haver, ser e estar, arrancando uma por uma as infinitas cascas,
couraças, é possível enganar a todos menos a si mesmo, até a penúltima máscara.
O circo e o teatro estão na minha vida desde a infância. Antes de Carlitos e de Fellini,
anterior a televisão e aos zoológicos. Um dia, ao abrir o portão do meu grupo escolar, o
deslumbramento: tigre, leão, elefante, zebra, macaco, camelo, girafa: a África! Todos esses
bichos bebendo água no tanque da escola, em troca de ingressos, que seriam sorteados entre
nós. Era assim que o mundo nos chegava. Em cada cidade uma Itália, Rússia, China, Espanha:
Circo Tihany, Garcia, Circo de Moscou. Respeitável blico! Hoje tem espetáculo? Tem sim
sinhô! Hoje tem marmelada? Tem sim sinhô! E o palhaço o que é? Ladrão de mulher!
Nossos olhos enormes no poleiro que vira picadeiro: fios e malhas de aço, globo,
motocicletas, precisão, prumo, equilíbrio: funâmbulo. A mulher com a jibóia enroscada pelo
corpo lembrava a vedete brasileira
Luz del Fuego
e era a mesma artista que atava e desatava
os nós de braços, pernas e pescoço, em um novelo contorcionista. Ela é a grande inspiração
da minha técnica. Dramas e palhaços zombando de tudo. Agitado, quieto, engolir o fogo
dos dias digerir a longa espera: coxia, espelunca, furada lona lua, charanga, rumba, ancas:
delícia, a fera dor, quem doma? Colibri, coxas pra todo lado, a trapezista, mortal salto, chupa
a céptica platéia lívida, apreensiva, risonha, vívida, liberta, levita. Êxtase! Tatuada para sempre
a alma pluma: ânsia de liberdade! O desejo de partir, fugir, descobrir, cigano, ambulante,
mascate, seguir: andante, errante, amante, sempre avisando que mundos adiante e que o
sentido é durante na estrada da vida, liberdade viva, asas abertas, volúpia, dancemos, entre
seres e gentes, o percurso humano em toda parte é ir criando circos e pontes.
O teatro veio dos dramalhões apresentados nos circos e da
Paixão de Cristo
, em Nova
Jerusalém, Pernambuco. Mas na minha infância tudo estava no início, ainda não era um
espetáculo grandioso, mas uma representação feita pelas ruas, entre as pedras da cidade, com
o público participante. Meu irmão era amigo dos atores amadores da companhia e na coxia
fui apresentado ao Cristo e a Maria. Ela tinha uns olhos azuis maravilhosos! Nossa Senhora
foi minha primeira paixão de menino. Quem sabe se não foi a memória desses olhos o que
181
primeiro me encantou quando vi os de Isadora? No meio do espetáculo tive que ser contido
para não agredir os soldados romanos, comovido e revoltado com o sofrimento de Cristo e
da minha amada Maria. O nome de minha mãe também é Maria e o do meu pai Dionísio. É
nesse labirinto de espelhos e nomes que contemplo as imagens e miragens do meu vir a ser.
Minha mãe nunca suspeitou da identidade de destinos míticos entre os deuses Dionísio e
Cristo e que, a imitação que me propunha se tornaria um roteiro quase ao da letra, na
minha
busca iniciática
. Quando meus parentes reclamam da minha loucura, sempre digo:
imito Cristo! De mamãe adquiri uma fé que vacila pouco e um senso comunitário, de serviço
ao outro, como a ação máxima no mundo. Mas ao contrário das suas convicções, logo
compreendi que a Terra não era o exílio do paraíso, o lugar maldito, e que uma coisa
horrorosa como essa, podia solapar nossa vontade de viver e comprometer nossa
reverência e reconhecimento da magnificência da Vida. Não podia concordar com a
existência de um pecado original, uma culpa genética da nossa espécie, na qual não temos
nenhuma responsabilidade mas que, mesmo depois da vinda de Cristo, o novo Adão, ainda
não estávamos completamente libertos; não era possível imaginar um Deus perfeito criando
uma hierarquia de valores em sua obra. Mesmo acreditando que a verdadeira vida era depois
da morte, minha mãe não se conformava com a imperfeição e a incompletude inerentes à
vida e essenciais para sua existência e criatividade. A transferência do valor da vida para depois
da morte, não a impediu de amar ao próximo, mas era melhor que ele fosse católico. Era
difícil para ela o ecumênico. A repressão sexual foi minha revolta básica. Compreendi que
meu compromisso era contribuir para acabar com toda calúnia diante da vida e a tarefa
imprescindível era afirmar com todas as forças a delícia da existência terrestre, a começar pelo
nosso próprio corpo. Gostava de inverter ou reeditar os
Dez Mandamentos
e o
Sermão da
Montanha:
Amar o Corpo acima de tudo e a Deus como Nós mesmos.
Bem-aventurados os que viram e ainda acharam pouco!
Mãe e pai são nossos personagens principais: somos movidos por seus desejos, gestos,
atitudes, exemplos, sonhos e delírios e, mais ainda, por aquilo que não conseguiram realizar.
Talvez depois de mortos eles ganhem mais relevância ainda, porque podemos refazê-los na
memória como obra nossa, mutável, cheia de novas sutilezas, compreensões e ângulos. Em
algum instante esquecemos ou resolvemos nossas dores e começamos a fazer uma edição
especial, contínua, dos melhores momentos. É decisivo para a autonomia e a liberdade do
nosso destino, que façamos as pazes com esses seres essenciais em nossas matrizes anímicas. É
a partir desse garimpo, dessa peneira, do amor e da ternura, que podemos distinguir nossa
originalidade e dar continuidade a longa ancestralidade humana.
Meu pai era um sertanejo manso, mas propenso a raivas raras, explosivas e fugazes. Nasceu à
beira do rio São Francisco, a quem amava tanto quanto ao mar. Durante muitos anos foi
mascate de tecidos e com isso conheceu muitas pessoas e lugares. Nunca esqueci um dos
seus valores sagrados:
a gratidão é a memória do coração
. Gostava de repetir:
pior do
que a
182
velhice é morrer jovem
. Já sou um velho, mas como a saúde e a flexibilidade são boas, ainda
não acredito muito nisso. Daqui em diante o percurso é ainda mais solitário e libertário.
Laranja baía era a sua fruta predileta. Desnudava-a em um lento ritual: de fora para dentro,
sem partir a casca, de modo que com ela era possível esculpir outra laranja. Na primeira
infância lhe perguntei: o que é felicidade? Não soube responder, mas pediu um prazo. Com
tantas perguntas pra fazer, logo esqueci. Um dia me chamou para um passeio em um sítio
próximo. Sentamos embaixo de um de laranja. Ele repetiu, pacientemente, o ritual, me
deu a laranja pra chupar e ficou com o tampo.
Pronto, felicidade é isso: chupar laranja
debaixo do pé, com uma faca bem amoladinha!
Meu pai tinha um enorme medo de morrer, mas mesmo assim estabeleceu um limite:
queria viver com lucidez e autonomia corporal, não depender de ninguém para o cuidado de
si. Foi atendido. Nunca se conformou com a existência da morte e não conseguia ver sua
compatibilidade com a vida. Mais do que um anagrama já é morte o temor. Essa foi a grande
equação que me deu:
como fazer para que o medo da morte não paralise nem envenene o
viver?
Não é fácil, porque parece contracorrente: admitir voltar a não-existência, um retorno
a uma espécie de nada. Em relação à morte, vinte e três séculos depois, o filósofo grego
Epicuro ainda é eficaz:
não porque temê-la, pois, quando ela está presente, nós já não
estamos; enquanto estamos presentes, ela não está.
Na medida do impossível, em algum momento, tomei uma decisão: não quero deixar nada
para depois da vida, nem para outra encarnação. Não quero economizar vida. A minha
grande discordância era a compreensão do êxtase como algo incorpóreo. Talvez o êxtase não
seja à saída do corpo, mas a descoberta da sua potência: a experiência da
multidimensionalidade do ser. E, também, um sair do outro em si, para todos os outros. Dar
ao estranho, ao estrangeiro, que todos somos, um lar. Compreendi que era preciso buscar e
esboçar uma história do êxtase e da alegria, do sabor, saber, uma arte de viver.
Ser artista do viver é em tempo integral e em todas as instâncias do ser. A arte de conviver
estimula e revigora, pelo intercâmbio do saber, em que um alimenta o outro e nessa
comunhão e companhia é possível conversar, descobrir e criar outras formas de viver. Desse
modo, a troca de afetos e conhecimentos se amplia, incorporando múltiplas perspectivas, e
se torna mais multilateral, leve e jovial. O conhecimento não é mero diletantismo. A vida é
cognitiva: existimos porque aprendemos. E, também, não sei se é um atributo humano
ou envolve grande parte dos mamíferos, mas um grande prazer na
amostração
que
fazemos uns para os outros.
Às vezes, a felicidade é concebida como algo que tem continuidade, uma espécie de visão
panorâmica da vida, que inclui a tristeza e outros tantos sentimentos contraditórios, mas
que apesar de tudo sente o viver como um bem em si mesmo. A felicidade é oposta à perda
do eu que sempre está, em certo grau, pressuposta na própria alegria. A alegria é uma
expansão e pelo menos uma perda parcial do eu. A alegria é uma iluminação repentina, um
presente, uma experiência de plenitude: a potência de existir. uma relação entre existir e
183
alegria. Em latim,
existere:
existir é aparecer de repente ser;
ex-sistere:
elevar-se para fora;
vir
do outro mundo, proceder de alguma família; existência é consciência: a passagem da
potência ao ato; existir é sustentar-se em cima do nada. Não é essa nossa condição
planetária?
A alegria é generosa, quebra as fronteiras que separam o eu do outro, a humanidade da
natureza e cria um nós que é toda Terra. A alegria é convicção, firmeza e força que nascem
no coração e que se expressa com suavidade e gentileza. A alegria tem o poder de conectar,
desobstruir, integrar e redimir. A alegria é a experiência de união com um desejo
bruscamente realizado, uma espécie de coincidência momentânea e imaginária do passado e
do presente e que se projeta no futuro. É um deleite diante de um bem presente ou que
certamente se avizinha. É um movimento da alma: alegria-contagia-epidemia-euforia. É
algo que parece ter sido alcançado só parcialmente pelo nosso próprio esforço, uma surpresa,
um dom que irradia luz, uma graça! Em grego, etimologicamente, estão relacionadas:
chara
e
charis,
alegria e graça. Lágrimas e risos são intercambiáveis tanto na alegria quanto na
tristeza.
O excesso de tristeza ri
.
O excesso de alegria chora
, diz um provérbio do poeta
William Blake.
Etimologicamente, a derivação primeira de
joy,
a palavra inglesa para alegria,
vem do latim
gaudia
, plural de
gaudium
, por meio do francês antigo e do inglês médio
joie
.
A palavra
joy
deriva secundariamente da palavra
joi,
um termo que significa a jóia da arte e
alegria eróticas, no
amor cortês
dos poetas provençais. A arte erótica de Provença deu-nos o
controle da gulodice e da impaciência por um clímax; o prolongamento do desejo, muito
melhor do que a satisfação imediata; a calma, o prazer e a alegria de contemplar lentamente
a glória e a beleza do corpo.
O êxtase pode ser compreendido como a alegria em seu ponto de maior abstração do eu, ou
como algo bastante diferente dela. A alegria diz respeito ao retorno e a estar pleno, cheio, a
querer estar no tempo e lugar onde se está. Em grego clássico, o
ekstasis
significa,
literalmente,
estar em outro lugar.
O êxtase é o ponto em que a excitação, incapaz de se
intensificar, transforma-se em ausência. Com o êxtase, a narrativa chega a uma parada
abrupta. A felicidade não fecha a narrativa, como a alegria ou o êxtase, por ser inefável. A
felicidade suspende a narrativa por eliminar as possibilidades dramáticas. Tolstói diz, no
início de
Anna Karenina
, que um romance não pode começar com a felicidade:
as famílias
felizes são todas iguais; cada família infeliz é infeliz ao seu modo próprio.
A fantasia da
alegre reunião depois da morte, de derrotar o tempo e a mutabilidade, por meio de uma
alegria que não depende deles, é essencial no Cristianismo. O conceito de comunidade
duradoura dos fiés só surge com o ele. Na fé em Cristo está o júbilo de uma alegria inefável e
gloriosa.
Eu vos digo isso para que a minha alegria esteja em vós e vossa alegria seja plena.
Tomás de Aquino fez da alegria e da tristeza as paixões-fim, os lugares em que terminam as
histórias sucessivas e, por fim em que terminam todas as histórias, a vontade descansando
alegremente no amor de Deus ou tristemente distante dele. Espinosa atribuiu um papel mais
central para a alegria e para a tristeza em seu sistema, descrevendo-as não apenas como o
ponto final de todas as outras paixões, mas também como seus elementos constituintes. Ele
começa com três afetos primários:
a alegria, o desejo e a tristeza
. A tristeza é ação, um
184
impulso básico do agente para preservar e melhorar o seu próprio ser. Não parece conceber o
desejo como uma paixão, mas como um conduto da atividade fundamental do Universo. A
alegria e a tristeza, reações a eventos ou circunstâncias externas ao agir de cada um, são
paixões originárias, ainda que sejam apropriadamente chamadas de paixões apenas quando
somos passivos, isto é, irracionais ou incompletamente racionais em relação a elas. Alegria é
aquela paixão por meio da qual a mente passa a uma maior perfeição, isto é, aumenta sua
capacidade de ação no sentido da autopreservação; enquanto que a tristeza vai na direção
contrária. Na concepção de Espinosa, o amor é a alegria e o ódio é a tristeza, com a ideia
complementar de uma causa externa. A esperança é uma alegria inconstante, que surgiu da
imagem de uma coisa futura ou passada, de cujo resultado duvidamos. O medo é uma
tristeza inconstante, que também surgiu de algo duvidoso. Espinosa defende que Deus e a
Natureza são a mesma coisa. Conhecer Deus ou a Natureza é um conhecimento adequado
da essência das coisas. O melhor tipo de alegria e de amor deriva, em primeiro lugar, da vida
da virtude social, buscando racionalmente o bem comum de todos e, finalmente, do
conhecimento de Deus, o maior bem da mente.
A alegria é capaz de enfrentar a morte sem temor. Coragem é de vez, mas também cobra
criada que vem devagar. A morte, ou o não-eu, joga uma sombra sobre a vida na história da
alegria. Isso é particularmente verdade quando a alegria se torna êxtase. A surpresa da alegria
sempre aponta para alguma perda do eu e uma comunhão, mas o êxtase é mais claramente
uma espécie de morte: o
transe iniciático
, místico; uma amplificação dos sentidos; uma
expansão da consciência; o
voo interdimensional da alma
. As alegrias não estão atreladas a
alguma grande narrativa, nem ao abandono do planeta que somos. As alegrias no aqui e
agora não miram uma meta, são potências da vida, utopias, danças. Desde os mamíferos mais
próximos dos humanos e desde as crianças, nos ritos das primeiras tribos, nas mais diversas
celebrações da existência, do carnaval ao rock, a alegria e a dança são elos no tempo e fontes
de expansão e expressão da vida, da liberdade e da respiração. A alegria é uma presença, o fio
que conecta tudo na vida. A presença da vida é o que todos compartilhamos: a força
universal que une todas as coisas. A presença do espírito. A presença do amor. A presença do
Eu Cósmico. É fundamental rejubilar-se com a possibilidade de transcender todas as
limitações e perseverar através das ondas da vida, estar totalmente presente durante a sua
duração. A alegria caminha pelo tempo para lugar nenhum, mas no percurso estende o
corpo para outros corpos, para uma erótica da vida, para uma ética em que atos individuais
buscam o bem coletivo e afirmam valores humanos a despeito dos sofrimentos, da
aniquilação, dos males naturais e morais, apesar da dor e da tragédia. A alegria dança vida
que dança alegria. Diz um adágio medieval de Martinus von Biberach:
Venho não sei de onde, sou não sei quem, morro não sei quando, vou não sei onde,
espanto-me de ser tão alegre!
Contudo, ainda uma alegria serena, silenciosa, que se cultiva na solidão e no
recolhimento, em que a gente nada mais deseja do exterior e com tudo que já é se contenta.
É nessa alegria que o ser se alimenta de si para retornar revigorado a todos os outros, no
185
dissenso e consenso do mundo É a alegria que chora e ri com o privilégio simples de existir
no tempo. Essa alegria está livre de sentimentos egoístas, de simpatia ou antipatia, ela avalia e
planeja, todavia não julga nada nem ninguém. Aceita ser parte da enorme complexidade das
coisas. A boa fortuna consiste nessa liberdade, pois ela possui a tranquila segurança de um
coração fortalecido. Essa é a alegria que se cultiva na meditação. A alegria chega de surpresa,
mas também pode ser estimulada: ouvir uma música com ritmo forte e pular na ponta dos
pés, com braços jogados em todas as direções e para o alto em gestos de glória, durante
algum tempo, desvia a tristeza para o outro lado. Se a pessoa já esalegre, essa vibração
aumenta. Primeiro é preciso expandir-se ao máximo, através de uma dança, depois sentar-se
confortavelmente. Não é preciso ficar sentado sem nunca mudar de posição, mesmo
sentindo dores, dormências ou cansaço. Nunca catatônico, mas bem sentado, vivo. É o afeto
que significado. A emoção precede a explicação. Nada contra a desordem das emoções,
ela cria bifurcações, ramos, outras possibilidades criativas. Nada de dizer também que as
emoções falsificam os resultados cognitivos da pesquisa. A emoção é inerente à vida, não
pode ser separada nem eliminada. A respiração harmoniza a emoção. A vantagem cognitiva
de que uma emoção respire amplamente é que ela seja mais aberta, leve e livre. Respirar
calmamente, deixar vir o fluxo de pensamentos sem nenhum controle. um momento
em que entramos no círculo vicioso dos mesmos pensamentos. Esse núcleo é importante,
porque é um aeroporto das ideais, uma essência de todo fluxo e um esgotamento provisório.
A partir daqui, é possível silenciar a mente. Sentir o corpo, seus ruídos e ritmos,
principalmente a respiração. A mente sempre tentará retornar ao papel principal, não
como reprimi-la, mas é possível driblá-la. Inspirar e expirar sons, palavras ou mantras, além
de driblar a mente, permite aprofundar ao máximo os dois movimentos da respiração,
porque o som fica sem ar para soar. Pouca gente que conheço ainda ouve rádio, mas ele
serve de metáfora: o silêncio da mente permite sintonizar as estações micro e macro: corpo-
cosmo.
A meditação pode ser feita em qualquer lugar e pelo tempo que for possível. Não é o local
ou a duração que importa, mas a disciplina diária. Com tempo, cada um descobre o seu jeito
e cria a dinâmica do seu método. Acordo e espreguiço-me, faço alguns contorcionismos,
ainda na cama. Tomo banho. Faço a sequência da dança e um contorcionismo no solo
acolchoado com um edredom. Massageio o corpo todo, inclusive com meu próprio peso.
Com as mãos apoiadas no parapeito da janela e com uma bola de tênis em cada pé,
massageio-os por longo tempo, no ritmo da sica. Pelas cidades ficamos muito tempo
sem pisar a terra com os pés descalços. A massagem dos pés abre os artelhos em leque e os
pés relaxados pisam mais inteiramente o chão. Com isso diminuímos a sobrecarga dos
joelhos e da coluna vertebral. Essa é a única âncora que temos para evitar um excessivo
levitar, afinal nosso estágio não é de anjos. Uma melhor conexão terra-céu ou pés-cabeça
torna os movimentos da coluna vertebral e de todas as outras articulações mais leves e
espontâneos. Essa massagem longa de mãos e pés é essencial pela projeção dos diversos
órgãos em suas superfícies, vistos nos mapas da medicina chinesa. Dessa maneira,
massageamos indiretamente os órgãos internos, facilitando os seus fluxos. Por outro lado, as
186
descobertas da neurologia, na medicina ocidental, mostram que as mãos ocupam a maior
parte da área motora cerebral, responsável por todos os nossos movimentos. Não é relevante
saber quem veio primeiro na evolução da linguagem humana: a mão ou o cérebro? Vieram
em conjunto. Massagear as mãos com elas mesmas, com bolas ou outros objetos é essencial
para a calma, o relaxamento e a flexibilidade geral do corpo. É como ninar o cérebro com as
próprias mãos.
No mundo da matéria, desde o início, do átomo à encarnação, tudo vem em pares de
opostos: negativo-positivo, elétron-próton, óvulo-espermatozóide fêmea-macho,
feminina-masculino, mãe-pai, ida-pingala, yin-yang, água-fogo. Filha de
Vênus
e de
Marte
,
do Amor e a da Guerra, eis a Harmonia.
A singularidade é difícil porque precisamos romper os laços e soltar as âncoras: todas as
autoridades, deuses e entidades são fantasmas, precisam ser soprados para longe. Em algum
momento resta um único fantasma que ainda nos assombra: aquele que a gente mesmo
inventa. Por isso, é preciso respirar calma, coragem, humildade e conforto, para que o ser
pessoal não entre em pânico, diante do cósmico. É o momento em que a parte se entrega e
se integra ao todo: é a confiança na vida. A nossa consciência pessoal é jovem, mas o corpo
biológico é antiquíssimo, fruto de uma longa evolução, desde a explosão das estrelas até o
diamante e o carbono, o carvão e a água: a vida. O corpo de ossos, carne e pele, é o animal
em nós, o divino e o humano são abstrações. Provavelmente, quanto mais frágil um animal
mais ele é feroz. Um animal que tem o sistema nervoso aberto à flor da pele é um animal
muito frágil e talvez por isso sejamos os mais ferozes. Na embriogênese humana, os ramos
que virão a ser o sistema nervoso e a pele são bifurcações do mesmo tronco. Há um
momento evolutivo em que a luz vira pele. Quando o Corpo da Deusa se reveste de pele, a
Terra fica mais frágil e sensível. É decisivo pacificar o animal em nós. Somos muito
domesticados, aguentamos espaços quase irrespiráveis, como os mineiros presos na mina do
Chile: sufocante. Quem rege a convivência dos opostos é essa santíssima trindade: animal-
humano-divino. A entrega e a confiança ao saber do corpo é uma profunda reverência, do
divino e do humano, ao animal. Deixar que todos os bichos que nos habitam se expressem,
na especificidade e elegância de seus movimentos. Essa é uma das maneiras de harmonizar o
fluxo da nossa trindade e de contribuir para a harmonia de todas as espécies.
Na harmonização geral dos opostos, é preciso recordar que estamos, neste momento da
narrativa, no sexto
chakra
, localizado no meio da testa, o chamado terceiro olho. Os olhos
físicos vêm o passado e o presente, o terceiro olho se abre para o futuro. dois grandes
fluxos de energia pelo corpo: o primeiro sobe e desce verticalmente, na sequência dos sete
chakras; o segundo fluxo, de ondas em oito tridimensionais, centrípetas e centrífugas por
dentro do coração, liga os chakras opostos e complementares: o primeiro ao sétimo; o
segundo ao sexto; e o terceiro ao quinto chakra. Esses fluxos são contínuos, mas aqui é o
momento de potencializá-los: o primeiro chakra, a terra em nós, garante a segurança, a
tranquilidade e a integridade do corpo carnal; o segundo chakra, o sexo, a nossa água, faz a
energia localizada nos genitais sublimar-se em excitações eróticas que se espalham por todo
187
corpo; o terceiro chakra, no plexo solar é o fogo e ferve a água no poder e na coragem do
fazer. Os três primeiros chakras são os que compartilhamos, mais nitidamente, com os
outros animais. O coração humano, o quarto chakra, é quem faz a intermediação entre os
nossos lados animal e divino.
Os avatares somos nós mesmos e é a alegria quem amadurece o fruto do avatar. Essa
convivência harmoniosa de opostos é simbolizada pelo andrógino ou o HermAfrodita. Na
tradição tântrica, da Índia, é o momento do encontro de
Shiva
e
Shakti
. Esse é o fluxo da
energia universal, vital, da serpente
Kundalini,
cuja integração é
potencializada, catalisada,
pela autoconsciência do caminho. Fazendo dialogar o Ocidente com o Oriente, as duas
fisiologias corporais, a neuroquímica e o fluxo de energia sutil, é possível supor que a
Iluminação ou Plenitude Vital é também algo físico-químico. A tradição tântrica recomenda
que a meditação deva ser feita com a respiração calma, profunda, som e sol: ar, mantra e luz;
e que é fundamental que a língua toque, frequentemente, o céu da boca. Dizem que
canais sutis que ligam a glândula hipófise, que coordena todos os fluxos hormonais do
corpo, ao céu da boca. O som faz vibrar e ferver a caldeirinha da hipófise, que secreta o
soma,
amrita:
o néctar da lua,
a bebida da imortalidade, da iluminação. É curioso que a
palavra
soma
, no Ocidente, signifique corpo. A hipófise é sensível à luz, por isso a
recomendação de meditar com olhos semicerrados diante do Sol, focalizado no terceiro
olho. Nas imagens tântricas, no lugar da hipófise está uma espécie de
quimera
, um animal
com corpo de cavalo, focinho de corvo, asas de cisne, cauda de pavão, chifres e peitos de vaca
derramando leite. A existência desses canais sutis pode ser facilmente constatada, com o
tempero japonês
wasabi,
que ao tocar o céu da boca imediatamente faz o cérebro ficar
dormente e traz lágrimas aos olhos.
São notáveis os resultados obtidos pela pesquisa, sobre as estruturas moleculares das plantas
sagradas psicoativas. Quase todas essas plantas contêm o elemento
nitrogênio
e pertencem,
portanto, a uma classe de compostos químicos chamados
alcalóides
. A estrutura química das
principais plantas sagradas psicoativas está estreitamente relacionada com a estrutura dos
hormônios que existem no cérebro, agentes fisiológicos que cumprem um papel muito
importante na bioquímica das funções mentais. O princípio ativo do cacto
peyote
é o
alcalóide chamado
mescalina,
um composto intimamente relacionado com a
noradrenalina
.
A noradrenalina pertence a um grupo de agentes fisiológicos conhecidos como
neurotransmissores
, que atuam na transmissão química dos impulsos entre os
neurônios
,
as células nervosas. A
psilocibina
e a
psilocina,
são
os princípios ativos do
teonanácatl: a
Carne de Deus,
dos cogumelos sagrados dos povos nativos do México, e derivam da
triptamina,
o mesmo composto básico da
serotonina,
que é um hormônio cerebral
neurotransmissor e multifuncional, responsável pela modulação geral da atividade psíquica:
regularização do estado emocional, do humor, da atividade sexual, do controle motor, dos
sonhos e de diversas funções cognitivas. A atividade da
serotonina
está associada ao
planejamento e a busca de padrões, a lucidez mental e ao estado de alerta. Além de atuar
como
neurotransmissor
tem um papel
neuromodulador
, afetando outros
neurotransmissores. No grupo dos
alcalóides
também está a
ayahuasca,
dos rituais
188
amazônicos, peruanos e brasileiros, e dos cultos de vários centros urbanos. Os principais
alcalóides psicoativos, extraídos do cozimento de duas plantas, são a
harmina,
a
tetra-
hidroharmina
e a dimetiltriptamina (DMT). grande semelhança estrutural entre as
moléculas da
serotonina
e da
dimetiltrimptamina
. A DMT é encontrada em praticamente
todos os mamíferos, incluindo o ser humano, e também em pelo menos duzentas espécies
de plantas, fungos, algas, em batráquios e alguns peixes. Alguns pesquisadores postulam que
a DMT é sintetizada na hipófise. também uma semelhança estrutural entre essas
substâncias e o composto semi-sintético LSD. A relação entre as substâncias secretadas pelo
nosso corpo e pelas plantas psicoativas ajuda a explicar a potência dos seus efeitos. Como
têm a mesma estrutura básica, esses compostos vegetais provavelmente se acoplam nos
mesmos locais do sistema nervoso: são as mesmas chaves que abrem as portas da percepção.
Essas descobertas mostram que um elo essencial entre os seres vegetais e animais.
Bo
é a
árvore embaixo da qual Buda se ilumina. E a Cruz a simboliza a Árvore da Vida. Somos todos
nós essa Árvore: a copa, a cabeça, a pele, as folhas, que alimentam o nosso ser de Sol e fazem
a fotossíntese, tal como a hipófise; as flores, os frutos e o oxigênio são as nossas dádivas, que
se multiplicam pelo mundo; vinda das entranhas a seiva, que nutre os nossos seres, sobe
pelos xilemas, floemas, artérias e veias das nossas raízes e pés plantados na Terra.
189
7
Bem-aventurança
Meditação de Hermes
Ar, alar, navegar, mãos, coração, cabeça e pés de vento, Hermes, o mensageiro cosmopolita
da
Unesco
, na ventura, aventura da vida, compartilhando bem-aventurança em cada canto
do mundo uma dança. Um pé na África, outro na Índia, o dia na China, à noite na
Alemanha. Vive uma cultura na ponta de cada língua. E cada língua é uma maneira única de
sentir o mundo. A ONU tem muitas falhas na equidade do poder, mas é vital à consciência
humana um concerto entre as nações, para afinar e refinar a harmonia e a melodia
planetária. Ser maestro em uma instituição como essa é pensar, antes de tudo, na afinação
das diversas escalas, na orquestra da conversa do mundo. Qual a música de cada um? Em que
clave essa pessoa ressoa? Toca solo e conjunto? O quanto de intensidade e potência aguenta?
A princípio invisível e impalpável, lembram da bomba atômica? Começa com o choque de
poucos átomos. E nós que somos uma infinidade deles, qual a nossa potência de destruição e
criação? Imaginemos cada pessoa múltipla dessa potência em som e sol no fluxo da amorosa
dança. Sou muito subversivo, tenho problema com limites, não aceito fronteiras: atravesso-
as. Todavia com o tempo aprendi alguma coisa. O melhor no mundo é o amor recíproco,
distribuído e retribuído, mas quanto dar de amor em cada encontro? Tenho dificuldade com
as doses. No meio da tristeza dos outros, quanta alegria pode ser expressa, sem parecer
insulto? Em nosso tempo uma hipertrofia do olhar que termina por nada ver. Parece que
mais do que videntes precisamos ser ouvintes. O bem-te-vi, bem-te-vi canta e a gente se
encanta também com nosso próprio canto, fala, conversa atenta, ser, todo, ouvidos: bem-
te-ouvi. Relembro o que diz o diretor de teatro Peter Brook, que também trabalha com
pessoas de várias culturas:
Ouvir é um mistério. Para que um corpo seja capaz de ouvir sem se mover, antes ele precisa
ser desenvolvido no movimento. Não é uma coincidência que os maestros vivam tanto, pois
eles passam as suas vidas em um constante exercício, tentando harmonizar o corpo, a
emoção e o pensamento. Os seus corpos como atletas ou dançarinos, os seus sentimentos
como cantores e amantes, as suas mentes como matemáticos e pensadores, no esforço de
ensaiar e apresentar-se, exige deles todas essas partes simultaneamente e em proporções
iguais. Um corpo desenvolvido dessa maneira pode, por fim, manter-se imóvel e ouvir.
A dimensão do olho é mais masculina; a do ouvido é mais feminina, tanto literal como no
sentido figurado. Os pesquisadores Robert May e Anneliese Korner estudaram as diferenças
sexuais em recém-nascidos. Os bebês do sexo masculino reagem mais a estímulos visuais, ao
passo que as menininhas reagem com maior facilidade a estímulos recebidos através dos
190
ouvidos. Isso é válido não para os humanos, mas para macacos e ratos. Visto que os sons
são mais importantes para as meninas do que para os meninos, as meninas começam a falar
mais cedo. A palavra é música e a mudança de ênfase dos olhos para os ouvidos, coincidem
com a necessidade de transmutar valores masculinos em femininos; do
yang
para o
yin
; dos
olhos de águia espreitando a presa para a espiral da concha, que recebe e aconchega; da
análise para a síntese, da fragmentação para a religação, do conhecimento racional para a
sabedoria intuitiva, da agressividade guerreira para a convivência em a paz, aumentando o
poder de comunicação intercultural. O método da nossa cosmopolítica tem como base o
amor, a música, o mito, a dança e o tato. O movimento, o sentimento, o som e o
significado são incorporados à flor da pele. Na maioria das metrópoles as pessoas se recusam
a ser tocadas e em muitas culturas o toque do corpo é considerado a invasão máxima. O
verbo se faz carne com o toque. Amar é tocar o corpo do outro com as mãos e a música do
coração. As mãos dadas, os abraços, o toque leve nos ombros que pacifica a raiva, o
encontro das ancas que modula os ritmos e os mais diversos gestos de entrelace. Esse
modelo que combina amor, música, mito, dança e contato, é aplicado nas diversas escolas e
grupos de educação pelo mundo e a aproximação sutil e gentil é modulada pelo grau de
rejeição ou aceitação corporal de cada cultura e de cada pessoa. É um contato de comunhão,
paciência e ternura. Em latim, o termo que significa
soar através de algo
é
personare
, uma
palavra relacionada à
persona
, que é máscara de teatro e pessoa, que nas mais variadas escalas:
soa.
Tudo começou quando fui convidado pelo professor Joachim-Ernest Berendt, que é o
representante da República Federal da Alemanha na Federação Internacional de Jazz, junto à
Unesco
. Ele acabara de publicar o livro
Nada Brahma
:
Tudo é Som
.
A música e o universo da
consciência
. Queria desenvolver um método de fácil e veloz difusão e precisava de artistas
em todas as áreas do conhecimento. Essa concepção de
Nada Brahma
ele foi buscar na Índia.
Em sânscrito,
nada
significa som. A palavra também é definida como
ruído
,
tom estridente,
berro, barulho
,
gritaria.
Do mesmo tronco lingüístico a palavra
nadá
é touro e
nandi é o
Deus
Shiva Nataraja
, o dançarino cósmico, em sua metamorfose de touro. Outro ramo da
palavra é
nádi
, que significa
correnteza
,
murmúrio dos rios, marulho do mar: som
. Mas as
nádis
são ainda as serpentes
ida
e
pingala
, lunar e solar,
os rios ou correntezas da consciência
,
a
energia cósmica kundalini
em sua expressão corporal e que é o modelo da nossa narrativa
tríplice.
Brahma
é o todo da Criação. Mas
Brahma, Vishnu e Shiva
são as personificações da
trindade inseparável do Hinduísmo: Criação, Preservação e Destruição.
Nada Brahma
significa que tudo é som, do macro ao microcosmo e esse som que contem todos os outros
é o
AUM
ou
OM,
um
acorde
que ressoa
de cor:
de coração.
A essência de todos os seres é a
terra; a essência da terra é a água; a essência da água são as plantas; a essência das plantas são
os animais; a essência dos animais são os humanos; a essência dos humanos é a fala; a
essência da fala é o conhecimento sagrado; a essência do conhecimento sagrado é palavra e
som; a essência da palavra e do som é OM.
Os mantras são as palavras sagradas que
interconectam tudo. Toda palavra bem sentida e pronunciada é um mantra, é sagrada, é
como se amássemos a própria carne dos corpos com sons. A palavra latina
cantare
significa
191
cantar e também encantar pela magia. A palavra grega
kosmos,
além de cosmo, universo,
tem a ver com cuidados cosméticos do corpo: enfeitar, adornar. Por aproximação linguística,
o
cosmo é um salão de belezas
. Tal como Fritjof Capra fez antes a relação entre o
Tao
da
China e a
Física
Moderna
, Joachim-Ernst traça as conexões entre a tradição espiritual da
Índia e as descobertas das Cosmologias da Ciência. Há uma
música das esferas
: do átomo, das
estrelas, das galáxias, dos sistemas solares, dos planetas, do sol e da lua, da terra, dos seres
vivos, das pedras, das águas. Depois de Pitágoras, Kepler foi um dos pioneiros na busca desses
sons smicos. A partir das concepções de Kepler, alguns cientistas estabeleceram as notas
que ressoavam em cada planeta no giro elíptico de suas órbitas. Com isso montaram um
dueto entre Vênus, que dança ao redor das três notas
mi,
enquanto a Terra, uma sexta
abaixo, brinca entre o
sol e o sol maior
. Mercúrio, o inquieto e rápido,
Mensageiro dos
Deuses
, tem um som apressado, intenso e estridente. Agressivo e abusado, Marte sobe e
desce através de algumas notas. Júpiter tem um tom majestoso que se assemelha a um órgão
e Saturno produz um trovejar profundo e sinistro. Schubert percebeu que o
sustenido era
uma nota verde. As descobertas da ciência mostram que essa é a nota do átomo de
nitrogênio durante a fotossíntese, quando a luz solar é transformada em clorofila, um verde
vivo. Os filamentos do código genético estão estruturados exatamente de acordo com a
tetractis
pitagórica, a subdivisão quádrupla da oitava, quinta, quarta e segunda maior. Um
dos criadores da Física Quântica, Max Planck, muito interessado em música, conhecia o
fenômeno de que as notas numa escala maior
saltam
de um número inteiro para o seguinte.
Esse é o cerne da teoria quântica ou da
Física Sinfôncia
: a partícula de energia num átomo
não muda gradualmente, mas
salta
. Em um dos seus escritos Planck declara:
Não existe matéria em si. Não é a matéria visível, efêmera, que é real, verdadeira e concreta,
mas sim o espírito invisível e imortal. Contudo, como as entidades espirituais não podem
existir a partir de si mesmas, mas precisam ser criadas, não me acanho de chamar esse
misterioso criador da mesma forma como era chamado pelos povos das antigas culturas da
Terra, há milhares de anos: Deus.
Os discípulos do físico Jean Charon, nos Estados Unidos, são chamados de os
Gnósticos de
Princeton
e acreditam ter descoberto a fonte de impulsos espirituais e psíquicos na partícula
negativa do átomo, o elétron e na partícula da luz, o ton. Para Charon, os elétrons são os
armazéns primitivos da memória. Um elétron que foi sucessivamente parte de uma árvore,
de um ser humano, de um tigre e de outro humano, sempre recordará as experiências que
colecionou nessas diferentes vidas. Os fótons não controlam a memória, mas também o
processo de cognição. Eles são os mensageiros. O pesquisador Hans Kayser, criador da
moderna ciência da harmonia, comenta sobre a sonoridade da Terra:
Um dos fenômenos mais característicos da geologia é a estrutura que se assemelha a uma
concha no interior da Terra. A Terra não consiste numa pele fina que envolve uma massa
líquida, como chegamos a acreditar no passado, mas é, sobretudo, formada de camadas de
variadas densidades que estão nitidamente separadas umas das outras. Descobriu-se isso
através da observação do modo como se espalham as ondas dos terremotos. Dentro da Terra,
192
foram descobertas várias zonas que rompem essas ondas das mais diversas maneiras. Se
compararmos as proporções espaciais dessas zonas com a vibração sonora do acorde maior
primevo da escala de tons secundários, encontraremos a estrutura da tríade sonora dentro da
Terra; e as avaliações das camadas da Terra mostram ter uma estranha correspondência com
aquelas dos números do acorde; a rígida crosta exterior corresponde à sétima oitava,
podendo entendê-la morfologicamente como condensação. A Terra é um acorde
potentíssimo! Trata-se de uma imagem que diz pouco à mente, mas fala muito claramente
ao coração.
É uma música com temas inesgotáveis de contraponto e polifonia. Alguns pássaros, como os
humanos, por exemplo, o sabiá, o
compositor por excelência entre os pássaros,
canta
melodias compiladas que quase chegam a ser
atonais
. Essa constatação do canto do sabiá é
uma parte importante da minha pesquisa com a música do
Maracatu Rural
, na Zona da Mata
em Pernambuco, que acredito ser inspirada no canto desse pássaro. O som está em toda
parte, é ele quem harmoniza, beleza e significado ao mundo. A música das partículas de
luz, a música das estrelas e dos átomos, a música dos cristais e das moléculas do código
genético, a música dos seres vivos, das árvores, dos humanos e dos outros animais; a música
do fogo, do carbono, do diamante; a música das formas arquitetônicas e da estrutura
geológica no interior da Terra.
As Cosmologias da Ciência têm hoje três cenários principais para explicar a origem do
Universo: a teoria do
Big Bang
, a grande explosão, singular, única; a teoria do
Universo
Eterno
; e a teoria dos
Multiversos
, universos múltiplos, que se desdobram uns a partir de
outros e que evoluem simultaneamente em diferentes dimensões.
Na teoria do
Big Bang
, tudo começou a partir do
vazio quântico
, um nada cheio de
potência. Flutuações de nada havia? E antes do tempo, o que existia? Em um dado
momento, 13,7 bilhões de anos atrás, esse nada explodiu e se expandiu criando todo
espaço-tempo. O calor era tão grande que ainda não existia nada como elétrons, prótons,
nêutrons, átomos, fótons: luz. Nesse princípio, primeiro foi o som da grande explosão, que
ninguém ouviu, depois a temperatura diminuiu, as partículas se agregaram e se fez a luz. A
expansão em algum momento cessaria contida pela força da gravidade, o combustível das
estrelas se esgotaria e haveria uma grande contração e morte do universo. Contudo,
observações mais recentes mostraram que o universo não só continua a se expandir, mas que
vem aumentando cada vez mais a velocidade dessa expansão. Por que a gravidade não
impede o afastamento das ilhas de galáxias, em meio ao vazio imenso? Os físicos e
cosmólogos explicam que toda matéria conhecida, visível e invisível, é apenas 4% da matéria
existente. Existe uma
energia e matéria escuras
, misteriosas, que não são formadas de átomos
e que permeiam tudo. Delas só se pode dizer algo indiretamente, elas parecem ser o
contrário da força de atração da gravidade, por isso o universo continua se expandido, talvez
infinitamente até se extinguir em algo gelado e morto. Ou então, nada disso aconteceria
porque a
energia e a matéria escuras
gerariam todo combustível dessa expansão infinita.
193
Cogitam-se que essas
energia e matéria escuras
podem gerar tudo, inclusive a matéria tal
como conhecemos.
Na teoria do
Universo Eterno
estamos vivendo a mais recente expansão, que o
movimento do universo é um pulsar de contrações e expansões eternas, sístole e diástole, tal
e qual nossos corações.
Na teoria dos
Multiversos
, se diz que tudo que existe neste e em outros universos são
vibrações de cordas musicais: as
Super Cordas
, que em alta vibração transmutam-se em
Membranas
, que estão muito próximas umas das outras, na
décima primeira dimensão
. De
repente uma toca na outra: isto é um
Big Bang
. Inúmeros universos explodem quando as
membranas se tocam.
M
é o nome da penúltima teoria cosmológica.
M
: mar, mãe,
membranas, música, mitos, multiversos. Por essa origem mater, matéria, maya, desde o
começo é pele, poro, aconchego. Na teoria dos
Multiversos,
infinitos universos são criados
eternamente, simultaneamente ao nosso, em dimensões diferentes, uns a partir dos outros
ou independentemente. A pergunta: podemos nos comunicar uns com os outros? Há
portais de passagem? Os buracos negros são essas vias?
O mito indiano do Sonho de Vishnu dialoga com essas teorias, que buscam o mistério das
origens:
Vishnu dorme com seu par Lakshmi, deitados em Ananta, a serpente de sete cabeças das
águas primordiais. Às vezes sonha e o seu sonho é sempre o mesmo: do seu umbigo nasce
uma flor de lótus, sobre essa flor em posição de meditação senta-se um Brahma, com quatro
faces, uma para cada direção. Cada vez que abre um dos olhos um universo é criado. Quando
fecha esse olho, um universo cumpriu seu ciclo evolutivo e é reabsorvido no mar da
memória. Assim, sucessivamente, oito olhos são abertos e fechados e universos são criados e
reabsorvidos. Cada universo criado é a dança de um Shiva. Encerrado esse imenso ciclo,
Vishnu deixa de sonhar por um tempo imenso. Novamente volta a sonhar o e tudo
continua.
Somos seres materiais tendo uma experiência espiritual ou seres espirituais tendo uma
experiência material? A vida é sonho? O que estaria antes de nós? O que estaria antes do
antes do antes? A busca pelas origens é tão inerente aos nossos seres que, até parece
paradoxal, mas é o que nos leva adiante. um
Universo-Mãe
de todos os universos? Uma
Universa
? O problema mais preocupante da busca das origens é que muitas vezes nos impede
de viver o breve durante que nos cabe: o instante vivo.
Nasci em Minas Gerais, perto da Serra da Canastra, à beira das nascentes do Rio o
Francisco. Cresci navegando o rio pra lá e pra cá. Ouvindo Luiz Gonzaga pelo rádio:
Riacho do Navio/Corre pro Pajeú/O rio Pajeú/Vai despejar no São Francisco/E o rio São
Francisco vai bater no meio do mar/O rio São Francisco vai bater no meio do mar/Ah, se eu
fosse um peixe/Ao contrário do rio/Nadava contra as águas/E nesse desafio/Saía do mar
pro riacho do Navio/Eu ia direitinho pro riacho do Navio/Pra ver o meu brejinho/Fazer
194
umas caçadas/Ver as pegas de boi/Andar nas vaquejadas/Dormir ao som do chocalho/E
acordar com a passarada/Sem rádio e sem notícia, das terras civilizadas/ Sem raiva e sem
notícia, das terras civilizadas/Riacho do Navio/Tando lá não sinto frio.
Teve um momento em que não voltei. Fui morar em Belo Horizonte, no final de 1963. O
nome do edifício era Levy, e ficava entre a avenida Amazonas e à rua Curitiba. Lá já
moravam Milton Nascimento, Wagner Tiso, Márcio e Lô Borges. Esse é o começo do elenco
do
Clube da Esquina
. Minha aproximação maior foi com Wagner Tiso, também por causa do
piano. Os arranjos eram sempre coletivos e os ensaios não tinham hora para acabar. Nessas
noitadas incorporávamos Drummond, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Clarice Lispector.
Canção Amiga
, de Drummond, foi musicada por Milton depois, no disco
Clube da Esquina
Dois:
Eu preparo uma canção/Em que minha mãe se reconheça/Todas as mães se reconheçam/E
que fale como dois olhos/Caminho por uma rua/Que passa em muitos países/Se não me
veem, eu vejo/E saúdo velhos amigos/Eu distribuo um segredo/Como quem ama ou
sorri/No jeito mais natural/Dois caminhos se procuram/Minha vida, nossas vidas/Formam
um diamante/Aprendi novas palavras/E tornei outras mais belas/Eu preparo uma
canção/Que faça acordar os homens/E adormecer as crianças.
Essa vontade de andar pelo mundo era um dos nossos sonhos coletivos. Quando o grupo
decolou, eu estava em New York, estudando com John Cage, que fazia experiências com
pianos preparados:
a interposição entre as cordas dos mais diversos objetos, para dar um
efeito percussivo. E também a criação de música a partir do acaso, jogando o
I Ching
. Cage
falava da coincidência estrutural entre o
I Ching
e o
Código Genético
: a combinação de 4
letras ou números, três a três que dá, para ambos, 64 possibilidades. Mas, em minhas férias
frequentemente voltava para Minas. Estávamos sempre juntos, tocava com eles nos shows,
passeávamos para todo lado: pelas grutas, cachoeiras, Ouro Preto, Tiradentes, Diamantina.
Nessa última cidade, em 1971, fotografei uma parte do grupo: Borges, Fernando Brant,
Márcio Borges, Milton Nascimento e no meio de todos Juscelino Kubitschek. Estávamos
muito comovidos com esse encontro. O cinema era outra paixão coletiva. Nos cineclubes: o
Cinema Novo,
os
Cinemas Americano, Francês, Italiano, Japonês e Russo. Quando éramos
meninos pegávamos
fitas de cinema:
restos de películas, para fazer cinema em casa, com
lentes, lâmpadas e caixas de papelão. No
Cine Metrópole
tivemos
um momento especial: a
pré-estreia de
Jules et Jim
, de Truffaut. A leitura do
Cahiers du Cinéma
e as eternas
discussões nos bares, sobre o cinema do mundo inteiro. Nesse tempo a gente falava
só existe
conteúdo revolucionário com forma revolucionária
, um mote de Maiakovski, que servia
para quase tudo. Na literatura tínhamos também os nossos prediletos. De Guimarães Rosa
dizíamos muitas coisas de cor:
A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela
quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente ser capaz de ficar alegre a mais, no
meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha
195
em que se quer, de propósito por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear
do dia.
Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que e que estão para haver são demais de
muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o
total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos.
se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem
amor. Qualquer amor já um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Todo mundo tinha ouvido no rádio, mas o primeiro disco dos Beatles fui eu quem levou,
para ouvirmos até a agulha furar o vinil. O contrabaixista pernambucano Novelli, que
também fazia parte do Clube da Esquina, foi quem me apresentou à Janaína e Dionísio. O
engraçado é que eles terminaram fazendo mais parte do grupo mineiro do que eu, tanto que
no segundo disco Dionísio canta no coro da música Credo, em 1978. Nesse momento
havia carreiras solos e o grupo começava a se dispersar em novas atitudes criativas. Eu estava
na Europa, agora estudando com o maestro Pierre Boulez, que no ano seguinte lançaria o
primeiro volume das obras completas do compositor vienense Anton Webern, da qual a
minha predileta é o
Quarteto op. 22
, para violino, clarineta, sax-tenor e piano. É como se
partículas sonoras saltassem das suas órbitas. A música inquieta porque quebra a linearidade
da estrutura narrativa. A concisão formal é máxima e um diálogo impressionante entre o
som e o silêncio. Pela primeira vez o silêncio é audível. Não é mais tratado como pausa, mas
como elemento estrutural, em de igualdade com os próprios sons. Não me sentia muito
distante disso porque vinha das experiências com John Cage, que o tinha como plataforma
de lançamento, mas acrescentava ainda Erik Satie, que também é um dos meus prediletos.
Dizia-se que Boulez devia o serialismo a Cage e este devia a Boulez o conceito de acaso. Cage
dizia que Webern e Satie tinham em comum a brevidade e a simplicidade, e que eles seriam
os responsáveis pela única ideia nova ocorrida em matéria de estrutura musical, desde
Beethoven. Com Beethoven, as partes de uma composição eram definidas por meio da
harmonia; com Satie e Webern, a definição era por meio de extensões de tempo. As trinta e
uma obras de Webern têm menos de três horas e as peças mais curtas, de dois a três minutos,
com movimentos de até quinze segundos. O seu lema era
non multa sed multum
: pouca
quantidade e muita qualidade. Ele também dizia:
entendo a palavra arte como significando a
faculdade de apresentar um pensamento da forma a mais clara e a mais simples, isto é, da
forma a mais compreensível.
Na linguagem pictórica seria um Mondrian. Foi ele também
quem provocou a inesperada conversão de Stravinski à música serial. Stravinski,
humildemente, disse que
Webern, a Esfinge, legou todo um fundamento, assim como uma
sensibilidade e um estilo contemporâneos. Para mim ele é o justo da música e não vacilo em
amparar-me na proteção benéfica de sua arte ainda não canonizada.
Para Boulez, Webern é
o limiar.
É um dos maiores músicos de todos os tempos, um homem indelével.
Quando eu voltava ao Brasil mergulhava em nossas raízes e subia as montanhas com meus
amigos do
Clube de Esquina
. O gosto por cinema e pelos textos só fazia aumentar. Lembro-
196
me de uma vez, perto da minha cidade, na Serra da Canastra, que brincando com o eco, com
pausas breves, gritamos Fernando Pessoa, na persona de Álvaro de Campos, no poema
Tabacaria
:
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo. Vivi, estudei, amei, e até cri, e hoje não há mendigo que eu não
inveje só por não ser eu. Fiz de mim o que não soube. E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e o desmenti, e
perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Estou hoje vencido, como se
soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, e não tivesse mais
irmandade com as coisas. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
E também Clarice Lispector, em
Água Viva
:
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é
mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem
um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.
Esses encontros e contrapontos é o que alimenta os nossos seres. Mas esse eterno retorno à
Minas me recorda de que precisamos com frequência estar de pés descalços na terra e de
amassar o barro com as mãos. Nas metrópoles do mundo já quase o fazemos esse
aterramento, esse gesto tão simples de conexão íntima com a Terra. Fazemos um esforço
enorme para nos mantermos erectos a maior parte do dia e esquecemo-nos de ficar, pelo
menos por alguns minutos, de cócoras ou sentados no chão. A alegria do artista é
compartilhar a expressão da sua arte. Mas é também o encontro ímpar com seus pares.
Lembro de uma grande alegria quando toquei com Hermeto Pascoal e Miles Davis em um
concerto na sede da ONU, em New York. Puxados por Hermeto saímos tocando pelas ruas e
a aquela euforia virou uma romaria.
Desde Minas nós nos sentíamos cidadãos do mundo e na arte, a música é uma das que
mais desconhece fronteiras. A música, a literatura e o cinema são inseparáveis em meu
universo criativo. O mundo exige do artista mais do que a mera catarse pessoal. Não quer
mais um dos inúmeros diagnósticos. Talvez a exigência máxima seja a coerência entre a vida
e a obra. um fluxo em que a vida gera a obra que realimenta a vida. Talvez grande parte
das obras siga a máxima grega do oráculo de Delfos: Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o
Cosmo. No decorrer da narrativa pensamos em muitos modelos. A
Divina Comédia
, de
Dante, dividida entre
Inferno, Purgatório e Paraíso
é um poema em tercetos, que percorre as
etapas de uma busca
iniciática
de sublimação da alma, confundida com o feminino, a partir
de Beatriz, a mulher ideal do poeta. Tudo é construído em múltiplos do número três. A mais
evidente influência é a Santíssima Trindade. Mas, antes de tudo, as várias coincidências na
vida do poeta, em seus encontros e desencontros com Beatriz, e que envolve o número
nove. Pensamos também o que aproximava e afastava Proust de Joyce. Eles se encontraram
uma vez apenas, mas como universos paralelos sem nenhuma comunicação, não se
impressionaram um com o outro. O tempo é o grande tema de todo artista. O tempo
197
pessoal, histórico, cósmico. Proust afirma isso desde o tulo da sua obra. Picasso dizia que a
arte é sempre presente ou de tempo algum. Em Proust e Joyce buscamos o modo de narrar
o nosso tempo. se disse que a estrutura em Proust é sinfônica, no sentido da diversidade
de vozes, ritmos, estilos e timbres. Seu romance começa em um dormitório obscurecido e a
narrativa segue como se fosse um sonho. Sua harmonia, desenvolvimento e lógica são as do
inconsciente. Nisso se aproxima de Joyce, do
Finnengans Wake
, seu último romance, todo
construído em torno da linguagem do sonho, suas associações de imagens e palavras em
uma trama não-linear, fractal, hologramática. Ambos explodiram as formas anteriores de
narrar. Duas importantes influências de Proust foram Wagner e Bergson, este último um dos
antecessores dos modernos antimecanicistas. Os eventos, que podem ser arbitrariamente
considerados como infinitamente pequenos ou pouco abrangentes, formam uma estrutura
orgânica na qual todos são interdependentes, cada qual envolvendo os demais e o conjunto,
numa gigantesca e densa urdidura de complexa e complicada relação. um personagem
que é compositor, Vinteuil, que parece expressar bem a concepção do autor de que somente
na criação artística podemos encontrar compensação para a anarquia, a perversidade, a
esterilidade e as frustrações do mundo. O crítico literário Edmund Wilson, no seu livro
Castelo de Axel
, comenta que as personagens de Proust podem mudar de más a boas, de
belas a feias, assim Proust constrói um esquema ético a partir de fenômenos cujos valores
morais estão sempre mudando. E diz ainda Wilson que, talvez, a avó do narrador possa ser
considerada como desempenhando o mesmo papel que a velocidade da luz desempenha no
modelo de Einstein: o único valor constante que torna possível o resto do sistema. Em certa
época, Proust pensou seu romance dividido em três partes:
A
Idade dos Nomes
,
A Idade das
Palavras e A Idade das Coisas
. Essas três idades são possíveis encontrar também no Finnegans
Wake, de Joyce, que se baseou no modelo do filósofo Giambattista Vico: as
Eras Teocrática,
Aristocrática e Democrática
. Ou, dito de outro jeito: as
Eras dos Deuses, dos Heróis e dos
Humanos
. Nesse seu romance, a última sentença está na primeira página e a primeira
sentença na última. Se, como dizia Joyce, a história é um pesadelo do qual precisamos
acordar, não pelos horrores da guerra, mas por todos os horrores do mundo, o que ele
propõe em sua obra é sair do tempo linear para o tempo cíclico. Parece quase desumano e
insuportável um tempo que nunca retorna. Assim é também o modelo cosmológico do
Big
Bang
: a criação única para sempre expandindo. Esse é um dos aspectos do nosso tempo
histórico, de boa parte da nossa humanidade, que na pressa de quem vai e nunca volta, é
indiferente à Terra que deixa e parece querer chegar ligeiro à morte ou ao nada, deixando
para os outros desertos. É possível fazer uma analogia entre a obra desses dois autores e a
ciência moderna: Proust, com a teoria da relatividade; e Joyce, com a física quântica, que
inclusive fez saltar para si a palavra
quark,
outra partícula,
em sua homenagem,
reconhecendo as simetrias e impasses similares de linguagem, que afinal quase ultrapassam o
ficcional. O
Ulisses
, de Joyce, é um dia na vida de uma cidade. E o
Finnegans Wake
, é uma
noite cheia de sonhos. Há uma numerologia e outros elementos que percebemos: são sete as
partes de
Em Busca do Tempo Perdido
de Proust, tal como os sete
chakras
do nosso modelo;
são dezoito os capítulos do
Ulisses
de Joyce, três vezes os nove capítulos da nossa narrativa.
Joyce segue os passos e a navegação da
Odisséia
de Homero e associa cada capítulo a uma
198
cor, arte, ciência e órgão do corpo humano; em nossa narrativa essas relações existem, mas o
campo narrativo é o próprio corpo e os seus níveis de autoconsciência. Parece que esses
autores optaram por um tempo cíclico, como o modelo do
universo eterno
da ciência.
Além desses autores, nossa inspiração tem uma dívida com as mais diversas fontes, todavia o
nosso modelo narrativo é a espiral, algo quase cíclico: passa por padrões de tempo parecidos,
mas há uma mudança de escala: a cada volta outra oitava, em uma relão diversa de
eventos.
Na estrutura narrativa imaginada por nós, esse é o momento da iluminação, que traduzo
como a grande audição. Meditar é brincar consigo cósmico, ouvir, auscultar, a cada dia
desfrutar o prazer de um tempo de silêncio. Sobre iluminação um ditado:
os que sabem
não falam; os que falam não sabem
. É preciso ultrapassar esse impasse do inefável, do
incomunicável. A iluminação a princípio é individual, mas os que se supõe com mais
consciência, podem e devem indicar pistas, sugerir percursos, técnicas, buscar linguagens e
traduções. Buda teve essa dúvida, mas todos os caminhos de ida ou de volta, passam pelo
coração: a convivência amorosa, a compaixão, a troca de saberes e informação, a alegria da
comunhão. O místico indiano Ramakrishna disse que em sua experiência existem
cinco tipos
de iluminação ou êxtase espiritual:
Nesses êxtases, tem-se a sensação de que a Corrente Espiritual se parece com o movimento
de uma formiga, de um peixe, de um macaco, de um pássaro ou de uma serpente. Às vezes, a
Corrente Espiritual sobe pela espinha, arrastando-se como uma formiga. Às vezes, em
iluminação, a alma nada alegremente no oceano do êxtase divino, como um peixe. Às vezes,
quando me deito de lado, sinto a Corrente Espiritual me empurrando como se fosse um
macaco, e brincando alegremente comigo. Fico quieto. Aquela Corrente, como um macaco,
de um salto repentino atinge o sétimo chakra: Sahasrara, Lótus de Mil Pétalas! É por isso que
vocês me veem dando um salto de repente. Outras vezes, a Corrente Espiritual sobe como
um pássaro, pulando de galho em galho. O lugar onde pousa parece arder. Às vezes, a
Corrente Espiritual se move como uma serpente. Sobe em ziguezague, atinge enfim a cabeça
e eu me ilumino! A consciência espiritual humana não desperta a não ser que a sua
Kundalini seja estimulada. Pouco antes de alcançar esse estado mental, fora-me revelado
como estimular a Kundalini, de que modo os chakras ou lótus de diferentes centros
florescem, e como tudo isso culmina em iluminação. Essa é uma experiência muito íntima.
Vi um jovem de 22 ou 23 anos, parecido comigo, entrar no nervo central Sushumna e
comungar com os lótus, tocando-os com a língua. Ele começou com o primeiro centro no
ânus e passou pelos centros no órgão sexual, no umbigo, no coração, na garganta, no
terceiro olho na testa e no topo da cabeça. Os lótus diferentes naqueles centros – de quatro,
seis, dez, doze, dezesseis, duas e mil pétalas estavam murchos. Ao seu toque, eles
aprumaram. Quando ele chegou ao coração – lembro-me muito bem- e comungou o lótus
ali, tocando-o com a língua, o lótus de doze pétalas, que estava recurvado, aprumou-se e
abriu as pétalas. Ele então chegou ao lótus de dezesseis pétalas, na garganta e ao tus de
duas pétalas na testa. E por último, o lótus de mil pétalas na cabeça floresceu. Desde então,
estou neste estado.
199
Dentro e por toda parte a família segue comigo, mas depois de alguns casamentos, entrego-
me mais ao provisório: o amor que se encontra no caminho. Novamente Maiakovski:
que a
família se transforme, e o pai seja pelo menos o universo, e a mãe, seja no mínimo a Terra.
Quando chego à Minas, sempre refaço o percurso às nascentes do Rio São Francisco onde
nasci. Depois, como agora, pego o barco e me deixo levar. Essa artéria de água verde vai
refrescando e fertilizando tudo a sua passagem, recebendo afluentes e devolvendo efluentes,
que confluem novamente mais adiante. Nossa tríplice narrativa, que são as correntes sutis de
cada corpo, também podem ser de um lado o Rio Amazonas e do outro o Rio São
Francisco.
Da América do Sul: os Rios São Francisco, Amazonas, Prata; da América do Norte: os Rios
Colorado, Mississipi, Missouri; da África: os Rios Congo, Niger, Nilo; da Ásia: os Rios
Amarelo, Tigre, Eufrates, Ganges, Indo, Mekong, Sepik; da Europa: os Rios Danúbio, Douro,
Ebro, Guadalquivir, Havel, Meno, Oka, Pó, Reno, Ródano, Sena, Tâmisa, Tejo, Tibre, Weser,
Volga. Esses rios que somos, vão se encontrar no meio do mar, o coração da superfície da
Terra.
200
8
O Coração da Terra
Meditação de Isadora
Chego ao
Tanztheater Wuppertal
, a escola de dança-teatro de Pina Bausch na Alemanha,
poucos dias antes da sua morte. Esse é outro luto. O filme da memória rebobina: vejo-a no
Instituto Goethe, em São Paulo, no ano 2000, quando estava pesquisando para a
montagem da sua peça brasileira
Água
. Foi lá que nos conhecemos. Ela falou o estritamente
necessário, mas a sua voz suave ainda ressoa:
O quê eu faço? Eu olho. Talvez seja isto. Eu sempre observei somente as pessoas. Eu sempre
vi as relações humanas, ou procurei vê-las, para falar sobre elas. Isto é pelo que eu me
interesso. Eu não conheço também nada mais importante do que isto.
Essa artista que nasce durante a segunda guerra, em 1940, cresce com a tragédia de uma
nação derrotada, arrasada e acusada de genocídio, herdeira de Hitler, o dito anticristo, do
qual Chaplin, no
Grande Ditador,
encarna o oposto. Como enfrentar a ironia de outra forma
de racismo? Como se libertar de um corpo militarmente disciplinado? Como suportar o
orgulho ferido de um povo que se diz continuador da tradição grega? A dança é a sua
resposta. A corrente alemã da dança moderna: Kurt Jooss foi aluno de Mary Wigman que,
inspirada por Rudolf Laban, também buscou libertar o vocabulário da dança dos padrões
rígidos do balé clássico. Kurt Jooss foi seu primeiro mestre e principal proponente da dança-
teatro na Alemanha. Mas o que em Jooss era narração contínua sem palavras, em Pina
Bausch é narração não-linear com palavras. Em 1960, depois de quatro anos na
Folkwangschule,
a escola de Kurt Jooss na pacata cidade de Essen, recebe uma bolsa de
estudos e vai para a
Julliard Scholl of Music
, em New York, onde fica dois anos e meio. Em
1969, recebe o primeiro prêmio de um concurso coreográfico na cidade de Colônia. Em
1973, é convidada para assumir a direção do Teatro de Ópera de Wuppertal, aos 33 anos.
Aqui estou ainda sofrida e perplexa com a sua morte e o meu destino. A cidade tem o nome
do seu rio, Wuppertal, que significa o vale do Wupper. Wuppertal está a 81 km de Bonn e
fica próxima de Essen, Colônia e Düsseldorf. A Arte, que é a expressão mais sensível do nosso
ser, foi a mais afetada pela fragmentação dos saberes. Se a maioria dos saberes se especializou
em suas áreas mantendo alguma integridade, a arte explodiu junto com a bomba atômica,
desde a antecipação visionária de Van Gogh. Com os surrealistas todos poderíamos ser
artistas. Com Picasso, esse touro e toureiro: minotauro, a obra e a vida mais nitidamente se
encontram e ser artista ganha mais autonomia criativa e econômica, algo desconhecido dos
renascentistas. Duchamp explode o objeto artístico e diz, com o seu gesto, que arte é o que
o artista toca. Mallarmé através do seu mote fala do risco e do limite da obra:
nada ou quase
201
uma arte
. A ideia da religação em uma arte total já está em Wagner, mas tem algo de
messiânico e autoritário, da exaltação do orgulho alemão, de antes da segunda guerra. Esse
esforço de integração existe por toda parte, como em Maurice Béjart e Marcel Cunningham,
que ocupou os mais diversos locais para a dança, inclusive uma arena de boxe, e foi parceiro
do músico John Cage, na relação da música e da dança com o acaso. Mas é com Pina Bausch
que esse esforço de romper as fronteiras entre a vida e a arte, o artista e os demais, é mais
nítido: uma abrangente arte da vida.
Meus pais viviam muito ocupados no pós-guerra, o que dava às crianças grande liberdade.
Eles eram proprietários de um restaurante e eu via muita gente entrando e saindo e aprendi a
observar desde pequena. Quando ainda era bem jovem, eu desenvolvi um profundo e
intuitivo senso de observação das pessoas e do que existia dentro de suas cabeças. É a vida, o
que sucede à nossa volta, que inevitavelmente constitui uma influência. É isso, não diria que
sou influenciada por fatores artísticos propriamente ditos. Tento falar da vida. O que me
interessa é a humanidade, as relações entre os seres humanos. Eu não investigo como as
pessoas se movem, mas o que as move.
Como a alma humana se move e se expressa através dos corpos e das culturas? Essa é a
pergunta de Pina Bausch. Em seu caminho pelo mundo o
Tanztheater
vai absorvendo e
incorporando pessoas de toda parte, para que a comunicação entre os corpos e as culturas se
desde dentro. Se um método Pina Bausch ele é mais um instrumento de navegação,
um conjunto de princípios e sugestões de abordagem da obra. Cada obra é o método
realizado naquele momento. Os princípios identificados foram estabelecidos ao longo do
tempo:
seja você mesmo:
um mergulho que cada um deve fazer na sua memória ancestral,
cultural, individual e coletiva;
não atuar:
não usar máscaras sabidas de atuação, desobrigar-se
de representações miméticas, livrar-se dos quadros de referência estáticos e técnicas
descobertas, ser espontâneo, sentir o frescor da primeira vez;
ser justo ao tema, mas não ser
óbvio:
adequar-se ao tema, mas transcender as associações imediatas;
não intelectualizar:
deixar a mente o mais vazia possível à espera das ideias, dar vazão ao caminho intuitivo;
ser
simples:
está ligada à capacidade de síntese na expressão das ações, a tradução mais criativa
com meios mínimos;
não banalizar:
estar atento em não ser óbvio permite fugir do lugar
comum;
não querer mostrar o que se quer dizer:
a expectativa de ser aceito e compreendido
limitam a criatividade e a liberdade expressiva;
não ser abstrato:
não recorrer ao faz de conta,
a simulação de cenas ou objetos que não estejam presentes;
não caricaturar:
nada que
humilhe ou desrespeite o outro. Essas são as observações dos que fazem parte do grupo, pois
Pina Bausch não fala diretamente de nenhum desses princípios, nem qualquer instrução.
O método é o que cada um vivencia, não nenhum jogo secreto, nem nada mais além.
Com o tempo, Pina acrescentou uma
pesquisa intensiva de campo
, no sentido
antropológico. Em cada local onde a obra era apresentada ou criada, todo grupo se
impregnava da vida naquele momento, devolvendo durante o espetáculo essas observações
incorporadas, como meio de aproximação, estranhamento e de conscientização das pessoas
em relação aos seus comportamentos e hábitos. uma tentativa radical de romper as
fronteiras entre os dançarinos-atores e o dito blico, que é convidado a se incluir nessa
202
festa. Embora os artistas tenham um preparo técnico refinado, inclusive passando pelo balé
clássico, os movimentos não intimidam ninguém e podem ser feitos por todos. uma
constante inversão de papéis femininos e masculinos, da relação dos humanos com os
outros animais, dos humanos com os objetos, testando e subvertendo todos os códigos
socialmente estabelecidos. Com o fotógrafo, figurinista e cenógrafo holandês Rolf Borzig,
que estudou com ela em Essen e que foi seu marido e parceiro de trabalho, entre 1970-
1980, quando ele morreu de leucemia, Pina um salto para a inversão de expectativas dos
valores sociais. Juntos criam cenários que envolvem materiais orgânicos como terra, na
Sagração da Primavera,
e água, em
Árias.
Flores, bichos, além do figurino em que se
destacam roupas masculinas que seriam inadequadas à dança, como paletós e gravatas, e
roupas femininas íntimas, como camisolas. Vimos alguns desses elementos no filme
Fale
com ela
, de Almodóvar, os fragmentos ou fractais, de
Café Müller
e
Mazurca Fogo
. A
quebra de fronteiras também está presente no filme
Asas do desejo
, de Win Wenders, que
no momento prepara um filme sobre ela, e em que os anjos atravessam pra e pra o
muro de Berlim, pressentindo sua queda e exaltando a encarnação, pelo desejo dos anjos de
experimentar um corpo, com toda a sua vulnerabilidade, fragilidade e sensualidade. Seu
diálogo com o cinema é recorrente. Pina trabalha como atriz no filme
E La Nave Va
, de
Fellini. A repetição obsessiva dos mesmos gestos é quase uma das suas marcas registradas,
como as aparições sutis de Hitchcock, em seus filmes. Como todos os gestos habituais, que
fazemos a cada dia, a repetição de um mesmo gesto termina por despertar-nos da ausência
de consciência do movimento mecânico, automático, e sentirmos a emoção de cada
momento. Tem uma hora que o gesto salta de órbita. Ela parece ter traduzido, nesses gestos
repetitivos, uma espécie de ritmo da vida, que com poucos elementos compõe uma enorme
diversidade, como as 4 letras do código genético, que combinadas três a três resulta em 64
possibilidades, a partir do acréscimo em um dos lados das espirais. Mas outro elemento
essencial e constante em seus princípios: as palavras, as perguntas. Em 1978, ao montar uma
peça baseada em
Macbeth
, de Shakespeare, surge mais claramente a necessidade de buscar os
sentimentos dos atores:
Utilizei, além de bailarinos, vários atores, e percebi que não podia criar a partir de evoluções
do corpo, mas sim da cabeça, e por isso comecei a fazer perguntas sobre o que o grupo
pensava do texto e o vínculo com a vida pessoal de cada um. Percebi que isso funcionou
muito bem, e desde então sempre utilizei perguntas.
Suas peças são criadas a partir de umas cem a duzentas perguntas, com uma média de duas a
três a cada ensaio. Com esse estímulo da pergunta-tema, Pina Bausch quer que o grupo faça
associações com suas histórias pessoais. Quer que o intérprete se desnude, mas não permite
que se perca a cabeça, pondo em jogo problemas pessoais. Ela sabe quando parar:
o
importante não é que as pessoas vomitem seus sentimentos.
As perguntas podem ser
respondidas com palavras, canto, movimentos ou com a junção desses elementos. As pessoas
dispõem de tempo para pensar a cena. Algumas perguntas ou temas exemplares:
o que
receberam dos seus pais? Um jogo com o próprio corpo. Preconceitos que nos fazem sentir
marginalizados. Uma poesia de amor. Atenção, o programa mudou.
203
Na década de 1980, depois da morte do marido, Pina Bausch vai para a América Latina:
Chile, Argentina e Brasil. Nesse momento sua obra ganha em cores, sensualidade e leveza. A
repetição tem menos espaço em suas coreografias. A inspiração nas culturas locais para criar
espetáculos começa a partir de
Bandoneon
(1981), a peça argentina. A trilha sonora é o
tango e a música, que tinha sido pano de fundo, passa ao primeiro plano. O cenário é um
grande salão de baile com imensas fotos de boxeadores argentinos pendurados na parede.
No espetáculo, o tango é a inspiração, mas seus movimentos são desconstruídos: em uma
cena as mulheres estão sentadas nos ombros dos homens, de frente pra eles e,
repentinamente, caem no chão, e saem dançando em duplas ao som de Carlos Gardel. A
música do mundo inteiro passa a ser relevante em seus espetáculos, mas a música brasileira é
uma das mais presentes, mesmo em peças de outras culturas. Contudo, a peça brasileira,
Água,
começa a ser pesquisada no ano 2000 e estréia em 2001. O cenário é quase uma
tela de cinema, onde são projetadas as imagens da floresta amazônica, das cataratas do
Iguaçu, do mar, tudo muito grandioso, o que faz os atores-dançarinos ficarem pequenos e
humildes. Todos os sentidos são estimulados pelas frutas comidas pelos artistas. uma
antologia da música brasileira, desde as marchinhas de carnaval até os compositores mais
recentes. As pessoas estão com pouca roupa e toalhas com estampas de nudez são
sobrepostas aos corpos, uma ironia da
pop art
, de humor saboroso. A expressão sonora de
um brinde:
tim-tim,
atravessa a peça. Pina viu e ouviu um Brasil. Uma dançarina-atriz negra,
está vestida de amarelo e tem luzes por todo corpo, explicitando a orixá das águas doces, das
cachoeiras: Oxum. A peça brasileira está composta de 7 Águas:
as águas claras:
dos lagos, dos
múltiplos reflexos;
as águas que vinculam
: as que acendem os desejos e amplificam as vozes
em busca do outro, na tentativa de reduzir distâncias e aumentar a comunicação;
as águas
místicas:
as que nos agregam em comunidade;
as águas festivas
: as que ressaltam o jogo, o
lúdico, que estão presentes em todas as sociedades;
as águas mornas:
as que nos relaxam e
estimulam a cultivar os vínculos e a comunicação;
as águas sensuais
: as do prazer, que
aproximam os corpos em um contato íntimo;
as águas energizantes:
as que nos alimentam e
que nos constituem.
No dia seguinte a palestra de Pina Bausch e de alguns componentes do elenco, no Instituto
Goethe de São Paulo, participei de um ensaio para a seleção de artistas brasileiros que
integrariam a montagem da peça
Água
. Esse foi o momento do nosso encontro.
Começamos conversando sobre nossas vidas. Eu lhe disse que junto com Dionísio tinha
desenvolvido um método para buscar gestos significativos pelas ruas, associando a sua
técnica de
pesquisa intensiva de campo
e o acaso, como instrumento de sintonização
coletiva. Através do
I Ching
, sorteávamos uma mutação, que era compartilhada por todo
grupo. A partir desse padrão, pequenos grupos iam a lugares diferentes e nesse espírito
encontravam os gestos que mais ressoavam com a mutação. Esse repertório era trazido,
compartilhado e selecionado ao final do dia. Ela ficou vivamente tocada. Perguntou-me
sobre meu percurso de vida. Contei-lhe sobre minha tragédia pessoal: a morte do meu pai,
fulminado por um raio, em um dia de tempestade, enquanto pescava perto da nossa casa de
campo. Comentamos a semelhança com o mito do nascimento de Dionísio, com Sêmele
204
fulminada pelo raio de Zeus. Ela lembrou-se do livro de George Steiner,
A morte da
tragédia
, em que o autor diz que
a tragédia requer o peso intolerável da presença divina
.
Como os deuses estão mortos, o gênero pode não ser mais possível. Ela discordava, achando
que mesmo que a perda não fosse nitidamente trágica, como a minha, a tragédia pessoal é
inerente aos nossos seres, são as dores que para nós nunca fazem sentido. Nesse momento se
comoveu muito e chorou, disse que nunca se conformara com a morte do marido. Quando
respirou, mais calma, fez a pergunta:
o que se faz com a tragédia em nossa vida?
Fiquei nua,
me deitei na terra, senti o seu cheiro molhada, acariciei o seu corpo lentamente e rastejei,
deslizei, me friccionei toda com um amor intenso de múltiplo gozo. Quando me levantei
nos abraçamos longamente, entre lágrimas e soluços. Agradecemos uma a outra. Antes de
partir para a Alemanha, fez o convite para que eu me incorporasse ao
Tanztheater
Wuppertal
, mas só agora vim. O dançarino Dominique Mercy, parceiro de Pina Bausch desde
a fundação do
Tanztheater Wuppertal
, aceitou dar continuidade ao seu trabalho. Ele diz
que em toda parte sempre pessoas agradecendo e pedindo que não desistam.
É incrível
perceber como ela estava próxima de tanta gente.
Isso nos dá bastante força
. A garantia dessa
continuidade me faz recordar, uma vez mais, a voz suave de Pina:
Assisto sempre aos espetáculos porque creio que eles nunca estão prontos, sempre algo a
melhorar. Tenho muito medo de que o público perceba que algo ainda é necessário e, por
isso, estou sempre presente. Assistir às peças faz parte do meu ciclo de trabalho. Além do
mais, eu acho que foi o meu sentimento que organizou as peças e, por isso, tenho que estar
lá, fazendo as críticas. Toda companhia trabalha tanto, que tomar conta é muito importante.
Tomar conta é sempre necessário, seja numa relação de amizade ou outra qualquer.
Diante da língua alemã, às vezes recordo Dionísio: a humanidade deveria inventar um
chip de
línguas
de todas as culturas. Os alemães são paranoicos com o desperdício. Meu namorado
alemão se encantou quando peguei o conteúdo da camisinha, fiz uma gororoba com água e
reguei as plantinhas domésticas. Essa é outra lembrança risonha que tenho dele. Ai, meu
Dionísio, sei que fui tua Ariadne, mas agora estou em meu próprio labirinto. As religiões
não inventam sentimentos, elas se apropriam deles e os manipulam. A culpa não é uma
invenção judaico-cristã. É uma sensação de que se fez algo grave e irreparável. Com a morte
trágica do meu pai, minha família teve uma destruição parcial. Ao destruir a família de
Dionísio me vinguei do divino. Essa destruição é a minha culpa. Dói-me a deslealdade com o
feminino, com Janaína. Como Pina também minha mãe nunca se conformou com a morte
do marido. Seu heroísmo é a nossa criação, mas a sua criatividade ainda não conseguiu a
alegria para dar um rumo brilhante a sua própria vida. Nossas vidas ressuscitaram melhores
depois dessas mortes? A televisão mostra o resgate dos mineiros chilenos. Trinta e três é o
número dos que estavam presos no ventre da Terra: 33 a idade de Cristo. A cápsula de resgate
tem o nome de
Fênix
, a ave que das cinzas sempre renasce. No deserto de Atacama tudo
floresce. Recebo e aconchego todos os homens da minha vida, mesmo os que mais me
doeram. Sou peitos, braços e abraços dessas mulheres mineiras em choro convulso.
205
A vida é muito maior do que nossos maiores sonhos. O contrário da arrogância é a
reverência. Nenhum iluminado é maior do que o ser planetário. Sento-me à beira do rio
Wuppertal e ponho os pés n’água. A primavera é tão bonita. Somos pólen, pó, de estrelas:
fogo, cinzas, carbono e água. Fecho os olhos e mergulho no túnel, em direção ao cleo:
Coração da Terra. Atravesso camada por camada e agora o tempo é um continuum. Sou
meu Coração de fogo, ferro, níquel, carbono e diamante: âmago, magma, amálgama,
magnética. Tudo é silêncio. Ouço um enorme estrondo do impacto em meu corpo: divido-
me em duas e a outra parte de mim se desloca em alta velocidade no espaço soltando
pedaços do meu corpo incandescente. Estabilizamo-nos em nossas órbitas. Envolve-nos um
colar de estrelas. Contemplo-me no espelho: estou toda iluminada em minha face visível na
noite de Terra Cheia.
206
9
A Noosfera de Gaia
São inumeráveis as expressões do meu ser.
Quando meu corpo se cobre de pele fico ainda
mais sensível. Sou terra, água, fogo e ar. Sou
música, canto, conversa e dança. Sou Vida.
Tenho muitos nomes e infinitas máscaras.
Minha voz é humana. Que falem os meus
personagens:
DIONÍSIO
O que fizemos foi teatro, circo ou filme
musical?
ISADORA
Talvez tudo isso junto.
JANAÍNA
Vamos mergulhar no mar?
HERMES
é quarta-feira. Precisamos começar a pensar
qual o enredo para o próximo carnaval.
207
Tive um sonho que durou três dias/Foi um
sonho lindo/ Um sonho encantador/Eu
dançando, tu me conduzias/Ao castelo azul
onde mora o amor.
208
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Ed Iluminuras, 2006.
WILHELM, Richard. I Ching; tradução de Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto
Pinto. São Paulo: Pensamento, 1983.
WILSON, Edmund.
O Castelo de Axel: estudo sobre a literratua imaginativa de 870 1
1930;
Traduçãode José Paulo Paes. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
ZHOU, Kuijie (compilação).
Aprendendo a viver com Confúcio: com o sábio chinês
ajuda a enfrentar os desafios da vida moderna;
tradução de Gilson B. Soares. Rio de
Janeiro: Agir, 2009.
ZIMMER, Heinrich.
Filosofia das índias;
tradução de Nilton Almeida Silva e Adriana
Facchini de Cesare. São Paulo: Ed Palas Athena, 1986.
ZIMMER, Heinrich.
Mitos e símbolos na arte e civilização da índia;
tradução de
Carmem Fischer. São Paulo: Ed Palas Athena, 1998.
218
DISCOGRAFIA
ALCEU VALENÇA: Sol e chuva. Som Livre, 1997.
ANTÔNIO JOSÉ MADUREIRA: Opereta do Recife. Ancestral, s/d
ARNALDO ANTUNES: Silêncio. BMG, s/d
ARNALDO ANTUNES:Saiba.BMG, 2004.
BEATLES: Sgt. Pepper’s. EMI, 1967.
CAETANO VELOSO: Jóia. Philips, 1975.
CAETANO VELOSO: Cores e nomes. Universal, 1982.
CAETANO VELOSO: Uns. Universal, 1989.
CAROL SABOYA & NELSON FARIA: Músicas Tom Jobim. Lumiar, 1999.
CÁSSIA ELLER: Cássia Eller. Universal, 1999.
CÁSSIA ELLER: Participação especial. Universal, 2002.
CHICO BUARQUE: Paratodos. BMG, 1993.
CHICO CÉSAR: Aos vivos. Velas, 1994.
CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI: Da lama ao caos. Chaos,
CEUMAR: Achou. MCD, 2006.
CÉREBRO ELETRÔNICO: Pareço moderno. Phonobase, 2006
CAZUZA: O poeta não morreu. Universal, 2000.
DONA ZICA: Composição. Trattore, 2003.
DONA ZICA: Filme brasileiro. Music, 2004.
EDU LOBO/CHICO BUARQUER: O grande circo místico. Universal, 2004.
ELIS: Saudade do Brasil. WEA, 1980.
GAL COSTA: Gal a todo vapor. Phillips, 1971
GAL COSTA: Gal canta Caymmi. Universal, 1976.
219
.GAL COSTA: Mina d’água do meu canto. BMG, 1995.
GILBERTO GIL: Gilberto Gil. PolyGram, 1971.
GILBERTO GIL: Refazenda. WEA, 1994.
GILBERTO GIL: Diadorim, Noite Neon. WEA, 1985.
GILBERTO GIL: Quanta. WEA, 1996.
ITAMAR ASSUMPÇÃO: Preto Brás. SescSP, 2010.
JOSÉ MIGUEL WISNIK: José Miguel Wisnik. Camerati, 1992.
JOSÉ MIGUEL WISNIK: Pérolas aos poucos.Maianga, 1994.
JORGE MAUTNER: O ser na tempestade. Dabliu.
JULIANA KEHL: Juliana Kehl. 2009.
KARINA BUHR: Eu menti pra você. Vértices.
LENINE: Na pressão. BMG, 1999.
LENINE: Acústico. MtV, 2006.
LENINE: Cité. BMG, 2004.
LULA QUEIROGA: Aboiando a vaca mecânica. Luni, 2001.
LEILA PINHEIRO: Leila Pinheiro. PolyGram, 1998.
MAURÌCIO CAVALCANTI/ABEL MENEZES: O tom e o timbre. Idearia, 2007.
MILTON NASCIMENTO: Clube da esquina 2. EMI, 1978.
MILTON NASCIMENTO: Anima. Universal, 1982.
MUNDO LIVRE S/A: Por pouco. CNFS, 2000.
NÁ IZETTI: LoveLeeRita. Dabliu,
PAULINHO DA VIOLA: BebadoSamba. BMG, 1996.
PAULINHO DA VIOLA: Paulinho da Viola. EMI,1971.
PÉRICLES CAVALCANTI: Baião Metafísico. Trama, 1999
PÉRICLES CAVALCANTI: O Rei da Cultura. Dabliu, 2007
220
PROJETO CRU: Projeto cru. Mundo Melhor, 2006.
RENATO TEIXEIRA: Ao vivo no Rio. Kuarup, 1997.
THIAGO PETHIT: Berlim, Texas. Classic Master, 2009.
TOM ZÉ: The best of Tom Zé. Warner, 1990.
TULIPA RUIZ: Efêmera. 2010.
VÉIO MANGABA E SUAS PASTORAS ENDIABRADAS: WEA, 1997.
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