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Mas a decadência do duplo tem
causas bem mais amplas que a
subida dos deuses. Ela se
inscreve no movimento geral
das civilizações que se
urbanizam. Constitui um
momento capital do progresso
da consciência de si.
Lentamente, a alma vai
suplantar um duplo cada vez
mais exterior, estranho.
A ideia de alma se encontra
talvez em germe na concepção
primitiva de morte-
renascimento, onde, embora o
indivíduo mude de corpo ao
renascer como animal ou
recém-nascido, algo, que é a
própria essência dele mesmo,
permanece através da
metamorfose. Mas, na
consciência arcaica, a
essência do eu, que permanece
inalterável através da vida e do
novo nascimento, não é
absolutamente concptualizada,
definida, apreendida: existe
apenas a evidência da morte-
renascimento.
A alma, em germe na morte-
renascimento, também se
encontra em germe em certas
concepções do duplo, nas quis
este, de essência aérea, é
representado pelo suspiro que
se desprende na morte. De fato,
a concepção “pneumática” da
alma nos mostra que esta
poderá conservar por muito
tempo certos atributos do
duplo. Mostra-nos, ao mesmo
tempo, a filiação que vai do
duplo à alma, conforme um
movimento de reintegração do
duplo ao interior do indivíduo.
A alma é o duplo interiorizado.
Essa interiorização não se fará
de uma só vez, imagina-se. A
alma conservará por muito
tempo uma certa materialidade.
Sua sede será localizado no
diafragma, ou no coração, ou
na cabeça, porque justamente,
como diz Zênon, “a alma é um
corpo, e persiste após a
morte”. O “ruach” hebreu,
assim como o “pneuma” grego,
são corpos.
voltado para Sampa. Depois do almoço fiz
uma sesta, mas fui sacudido por muitas mãos.
Quase caí da cama e acordei confuso. Liguei e
descobri que meu irmão estava internado em
uma UTI, em Recife. Como esses episódios
eram frequentes ainda vacilei em viajar, mas
considerei que ser acordado por muitas mãos
era um aviso importante. Quando nossa mãe
adoeceu gravemente, esteve lúcida todo
tempo, mas revoltada, por não poder morrer
com todos os seus em volta da cama, em casa,
e sim isolada da família, em uma duplamente
gelada UTI: pelo ar condicionado excessivo e a
ausência de afeto. Naquele momento, jurei
que se tivesse algum poder de decisão, isso
jamais aconteceria em meu entorno. Foi com
essa consciência que fui encontrar meu irmão,
também lúcido, lutando pra viver, mas com
muito sofrimento para ele e todos nós e sem
chance algum de voltar a ter uma boa vida.
Devemos recuperar o direito de morrer com
dignidade. Antigamente, quando o transporte
era precário, a pessoa que não avisasse aos
seus queridos e parentes que iria morrer, com
uma antecedência de pelo menos quinze dias,
era considerada uma pessoa desatenciosa ou
desrespeitosa com os seus, que não teriam
tempo para se preparar e se deslocar. Talvez
porque a morte não fosse reprimida ou
escamoteada, as pessoas recebiam com
naturalidade os sinais: em sonhos, pelo canto
dos pássaros ou outro código qualquer, como
as sacudidas pra me acordar. Ao assumir cada
vez mais esse meu lado de xamã, sei que uma
das funções é ajudar às pessoas no bem viver e
bem morrer. Lá pras tantas, tive coragem de
dizer ao meu irmão que sua luta era vã. Como
não fazia há muito tempo chorou. Enxugou
as lágrimas e o nariz com um lenço de papel,
fez uma bolinha e deu um peteleco pra cima.
Caímos todos na gargalhada! Retirou os
equipamentos e pediu pra morrer em casa.
Olhou pra mim e perguntou: quem são esses
índios que estão com você? Nesse momento
transforma num trono em direção
ao qual se precipita o povo,
através das portas escancaradas.
Hoje, a morte é cada vez mais
expulsa do universo dos vivos.
Antes não havia uma só casa e
quase nenhum quarto em que não
tivesse morrido alguém. Ora, é no
momento da morte que o saber e
a sabedoria do humano e
sobretudo sua existência vivida –
e é dessa substância que são
feitas as histórias – assumem pela
primeira vez uma forma
transmissível. Assim como no
interior do agonizante desfilam
inúmeras imagens – visões de si
mesmo, nas quais ele se havia
encontrado sem se dar conta
disso -, assim o inesquecível aflora
de repente
em seus gestos e olhares,
conferindo a tudo o que lhe diz
respeito aquela autoridade que
mesmo um pobre-diabo possui ao
morrer, para os vivos em seu
redor. Na origem da narrativa
está essa autoridade. A morte é a
sanção de tudo o que o narrador
pode contar.
Não se percebeu devidamente até
agora que a relação ingênua entre
o ouvinte e o narrador é
dominada pelo interesse em
conservar o que foi narrado. Para
o ouvinte imparcial, o importante
é assegurar a possibilidade da
reprodução. A memória é a mais
épica de todas as faculdades.
Somente uma memória abrangente
permite à poesia épica apropriar-
se do curso das coisas, por um
lado, e resignar-se, por outro lado,
com o desparecimento dessas
coisas, com o poder da morte.
Mnemosyne,
a deusa da
reminiscência, era para os gregos
a musa da poesia épica. A
reminiscência
funda a cadeia da
tradição, que transmite os
acontecimentos de geração em
geração. Ela corresponde à musa
épica no sentido mais amplo. Ela
inclui todas as variedades da
forma épica. Entre elas, encontra-