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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSIFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NEURO JOSÉ ZAMBAM
A TEORIA DA JUSTIÇA DE AMARTYA SEN:
LIBERDADE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Porto Alegre
2009
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1
NEURO JOSÉ ZAMBAM
A TEORIA DA JUSTIÇA DE AMARTYA SEN:
LIBERDADE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Tese de Doutorado apresentada como requisito
para a obtenção do Grau de Doutor em
Filosofia no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Nythamar H. Fernandes de Oliveira Jr.
Porto Alegre
2009
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2
Dedico este estudo à minha família,
aos meus amigos(as) e aos meus alunos(as),
colegas e professores(as).
3
AGRADECIMENTOS
Impossível seria não lembrar das pessoas que efusivamente marcaram as diferentes
etapas da minha vida. Ao destacar alguns, inevitavelmente se perdem as presenças genuínas e
diferenciadas. Não mencioná-los poderia parecer desconsideração e ingratidão. Com o
objetivo de incluir a todos, sem distinção, recebam, familiares, amigos, colegas, professores, o
Estado brasileiro (Capes) e as instituições onde atuo a minha mais sincera gratidão.
4
A liberdade tem mil encantos a mostrar, que os escravos,
por mais satisfeitos, nunca hão de provar.
William Cowper
A expansão da liberdade é o fim primordial e o principal
meio do desenvolvimento.
Amartya Sen
5
RESUMO
O ideal de justiça é o objetivo mais importante da organização social, presente nos
diferentes estágios da história da humanidade. Sua fundamentação adquire maior vitalidade
considerando as gritantes desigualdades que assolam as sociedades, caracterizadas pelo
acelerado processo de globalização. Ao mesmo tempo, ocorre um aumento sem precedentes
da produção de bens, da inovação tecnológica e da capacidade de comunicação. Essa
contradição ameaça a legitimidade e a estabilidade social, política, econômica e cultural,
sendo responsável, em muitas situações, pelo desequilíbrio das relações entre as pessoas e
entre os países. O ordenamento social que prioriza o acesso aos bens, a maximização da
liberdade individual e avalia o agir humano e a organização social pela sua utilidade é
insuficiente para a equalização dos graves dilemas contemporâneos. Especificamente, as
desigualdades simbolizadas na distribuição dos bens, nas limitadas formas de participação
política, na utilização indiscriminada dos recursos disponíveis e na deficiência ou inexistência
dos mecanismos e das instituições democráticas demonstram a fragilidade das estruturas
sociais, da mesma forma que impedem as condições para a justiça. As diferenças, por sua vez,
são características que integram a dinâmica da natureza, da ação humana e do funcionamento
da sociedade. Estas, ao contrário das desigualdades, dinamizam e contribuem para a evolução
de uma organização social equitativa. Desconsiderá-las representaria a opção por uma
organização social linear, o que exclui o valor moral substantivo da liberdade, essencial para a
construção da justiça.
A Teoria da Justiça de Amartya Sen, estruturada com base no valor moral
substantivo da liberdade, é decisiva para a implementação e a avaliação da justiça nas
sociedades contemporâneas. Nessa perspectiva, as pessoas têm as condições indispensáveis
para o exercício das liberdades substantivas, a escolha de um conjunto de funcionamentos
essenciais para o desenvolvimento das capabilidades e, na condição de sujeito ativo, atuar em
vista de uma estrutura social justa. A fundamentação filosófica, integrada com a reflexão das
ciências econômicas, caracteriza uma abordagem com as condições de contemplar, além dos
interesses individuais e coletivos, as condições indispensáveis para uma arquitetura social
comprometida com os valores e os recursos da democracia que se consagrou como o sistema
de organização social, que, com seus múltiplos recursos e instrumentos, respeita, dinamiza e
fortalece as diferenças existentes no seu interior; corrige equitativamente as deficiências e as
6
desigualdades; administra as demandas internas e externas com vista à efetivação da justiça.
Por isso, uma sociedade justa também é livre, sustentável e democrática.
O atual modelo de desenvolvimento, que prioriza essencialmente o crescimento
econômico, o aumento da produção e do consumo, o acesso às novas tecnologias e a expansão
do comércio, não tem legitimidade moral porque limita a pessoa à condição de meio para a
realização dos fins previamente planejados; utiliza indiscriminadamente os recursos naturais,
sem a necessária avaliação dos impactos e das consequências para o equilíbrio ambiental e
para as relações sociais, da mesma forma que inviabiliza as condições de existência segura
das futuras gerações. O modelo de desenvolvimento que prima pela sustentabilidade
representa um ideal que impulsiona e orienta a estruturação das relações entre as pessoas, com
os bens disponíveis, os recursos naturais e as futuras gerações de forma equitativa e orientado
pelo valor moral substantivo da liberdade. A atuação do Estado, do mercado e das demais
instituições, garantidas as suas especificidades, ocorre de forma integrada e complementar,
aprimora a democracia e fortalece a construção da justiça.
Uma concepção de justiça que tem como referência o valor moral substantivo da
liberdade tem especial preocupação com a estabilidade e a legitimidade das sociedades,
representadas, prioritariamente, no atendimento das necessidades humanas, nas relações entre
as diferentes culturas, no princípio de sustentabilidade, nas relações internacionais e na opção
e consolidação da estrutura democrática, sem a qual não se podem fundamentar as condições
de igualdade e de justiça social.
Palavras-chave: Democracia. Desenvolvimento Sustentável. Igualdade. Liberdade. Justiça.
7
ABSTRACT
The ideal of justice is the most important goal of social organization, present in
different stages of human history. Its foundation becomes more vital considering the glaring
inequalities that plague societies characterized by the accelerated process of globalization. At
the same time, there is an unprecedented increase in the production of goods, technological
innovation and communication skills. Such a contradiction threatens the legitimacy and the
social political, economic, and cultural stability that accounts for, in many regards, the
imbalance of the relationship between people and between countries. The social order that
gives priority to the access to goods, the maximization of individual liberty and evaluates
human conduct and social organization for its use is not sufficient for the equalization of
serious contemporary dilemmas. Specifically, inequalities symbolized by the distribution of
assets in limited forms of political participation, the indiscriminate use of available resources
and the disability or lack of mechanisms and democratic institutions demonstrate the fragility
of social structures in the same way that prevent the conditions for justice. The differences, in
turn, are characteristics that make up the dynamic of nature, of human action and the
functioning of society. These, unlike inequalities, streamline and contribute to the evolution
of a social, fair organization. To disregard them would represent the choice of a linear social
organization, which excludes the value of substantive moral liberty, essential for the
construction of justice.
Amartya Sen's Theory of Justice, structured from the substantive moral value of
liberty, is crucial for the implementation and evaluation of justice in contemporary societies.
From this perspective, people have the right conditions for the exercise of substantive
liberties, the choice of a set of functioning rules essential for the development of capabilities
and, as active subjects, to work towards a just social structure. The philosophical foundation,
integrated with the reflection of economics, characterizes an approach that allows for the
inclusion, in addition to individual and collective interests, of the necessary conditions for a
social architecture committed to the values and resources of democracy, that proved to be the
system of social organization which, given its many resources and tools, respects, streamlines
and strengthens the differences within it, equally addressing the deficiencies and inequalities,
managing internal and external demands in view of the realization of justice. Therefore, a just
society is also free, sustainable, and democratic.
8
The current development model, which essentially prioritizes economic growth,
increased production and consumption, the access to new technologies and the expansion of
trade, has no moral legitimacy because it limits the person to the condition of means for the
attainment of the objectives previously planned, indiscriminately using natural resources
without the necessary assessment of the impacts and consequences for the environmental
balance and social relations, just as it renders impossible the conditions for the safe existence
of future generations. The development model that excels in sustainability is an ideal that
encourages and fairly guides the structuring of relationships between people, with the
available natural resources for future generations and oriented by the substantive moral value
of freedom. The role of the state, the market and other institutions, granted their specific
characteristics, occurs in an integrated and complementary way, so as to enhance democracy
and strengthen the construction of justice.
A conception of justice that has reference to the substantive moral value of freedom
is of particular concern for the stability and legitimacy of societies represented primarily in
the service of human needs, in the relations between different cultures, the principle of
sustainability in international relations and the option and consolidation of democratic
framework, without which one cannot justify the conditions of equality and social justice.
Keywords: Democracy. Equality. Freedom. Justice. Sustainable Development.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10
1 O VALOR MORAL SUBSTANTIVO DA LIBERDADE NA TEORIA DA
JUSTIÇA DE SEN ................................................................................................ 20
1.1 AS LIBERDADES INDIVIDUAIS ........................................................................ 24
1.2 AS LIBERDADES SUBSTANTIVAS .................................................................. 27
1.3 AS LIBERDADES INSTRUMENTAIS ................................................................ 33
1.4 AS LIBERDADES E A CONDIÇÃO DE AGENTE ............................................. 36
1.5 AS LIBERDADES E AS RELAÇÕES DE MERCADO ....................................... 41
1.6 AS LIBERDADES E AS CAPABILIDADES (CAPABILITIES) .......................... 58
2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A LIBERDADE .................... 71
2.1 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ........................................................ 78
2.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A JUSTIÇA ............................... 89
2.3 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E OS RECURSOS
AMBIENTAIS ........................................................................................................ 96
2.4 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, AS RELAÇÕES DE
TRABALHO E A QUALIDADE DE VIDA ........................................................ 105
2.5 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E OS RECURSOS
TECNOLÓGICOS ................................................................................................ 114
2.6 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E AS CULTURAS ...................... 118
2.7 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A DEMOCRACIA .................. 127
3 FUNDAMENTOS PARA UMA TEORIA DA JUSTIÇA ............................... 138
3.1 A JUSTIÇA E A DEMOCRACIA ....................................................................... 142
3.2 A JUSTIÇA E AS DESIGUALDADES ............................................................... 150
3.3 A JUSTIÇA E O MULTICULTURALISMO ...................................................... 157
3.4 A JUSTIÇA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................... 167
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 182
10
INTRODUÇÃO
A organização de uma estrutura de relações justas, independentemente do período
histórico, é um dos principais objetivos das sociedades e uma das razões fundamentais da sua
existência. A estrutura social, incluídos os mecanismos de participação, as instituições, as
formas de representação e de exercício do poder, a garantia dos direitos individuais e
coletivos, a arquitetura de valores morais, o exercício da liberdade, o sistema de governo, os
mecanismos para o gerenciamento do Estado (considerando especialmente o marco legal), o
atendimento das necessidades das pessoas, a utilização dos recursos disponíveis, a
preocupação com as gerações futuras, entre outros, representa as diferentes formas como as
sociedades se organizam para alcançar as suas metas mais importantes.
A estrutura das relações contemporâneas, especialmente caracterizadas pelo
acelerado processo de globalização, por meio de múltiplos recursos, demonstra a capacidade
humana de responder aos desafios que se apresentam nos diferentes contextos. As
transformações ocorridas nas últimas décadas proporcionaram à humanidade as condições de
comunicação e de cooperação, o acesso a variadas formas de conhecimento, a integração entre
as culturas, a produção de bens, de novas tecnologias e outros recursos jamais ocorridos
anteriormente, assim como diferentes opções de integração e participação no conjunto das
organizações sociais.
Entretanto, a organização das relações sociais apresenta, ainda, inúmeras
deficiências, algumas historicamente sedimentadas, outras geradas pela opção por
determinados modelos políticos e econômicos ou por novas formas de dominação e de
exclusão. Presentes em todos os países, em proporções e com expressões diferentes, entre
estas, é importante destacar o aumento da pobreza, a persistência do analfabetismo endêmico,
as mortes prematuras, as discriminações culturais, as tiranias, o desequilíbrio ambiental, a
concentração de renda e a ameaça às condições de existência das futuras gerações.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a arquitetura das relações sociais é caracterizada
por graves contradições, que influenciam os diferentes espaços e instituições, provocando o
aumento das desigualdades e a instabilidade política, econômica e cultural, entre outras
consequências. O mundo obteve o aumento sem precedentes da produção de bens e riquezas,
o que proporciona a uma pequena parte de pessoas um elevado padrão de vida e o acesso aos
mais diversos recursos, ao mesmo tempo, uma porção significativa ainda convive com muitas
11
deficiências, não apenas de acesso aos bens e serviços, mas às condições mínimas de
sobrevivência individual, de organização familiar, de realização pessoal e participação social.
A extensão das desigualdades inviabiliza, entre outros aspectos, o equilíbrio das
relações humanas, sociais e ambientais e entre os países, o exercício da liberdade, a utilização
adequada dos recursos disponíveis, o acesso aos bens necessários para uma boa qualidade de
vida, o fortalecimento e o aprimoramento da diplomacia e das atividades comerciais, assim
como as formas de estabelecer e cumprir os contratos tanto internos quanto os de nível
internacional. As gritantes desigualdades não m justificativa moral nem encontram
legitimidade nas teorias da justiça mais importantes. Impõe-se, nesse contexto, uma questão
que, tradicionalmente, desafia a reflexão e a capacidade humanas para a organização das
sociedades, qual seja: Quais são as condições para uma sociedade justa?
A igualdade é uma exigência fundamental da justiça. Estabelecer as características de
uma sociedade justa inclui, especialmente, afirmar a igualdade como a condição inicial para a
sua efetivação e avaliação. A eliminação das desigualdades é o ideal clássico que impulsiona
à reflexão e à busca por mecanismos que efetivem a justiça. Com essa compreensão, a
ocorrência de desigualdades assinala a existência de injustiças. Pode-se, então, afirmar que,
quanto maiores forem as desigualdades, maiores serão as injustiças. Essas disparidades, que
por sua extensão chamamos de “gritantes”, simbolizam a negação, na sua origem e nas
consequências que acarretam, do ideal de justiça. Numa reflexão filosófica, pode-se afirmar
que uma teoria da justiça que legitima ou tolera as desigualdades não tem validade moral.
Entretanto, ocorrem significativas diferenças nos múltiplos campos das relações
humanas, no interior da organização das sociedades e na estrutura da natureza, as quais, vistas
empiricamente, impossibilitam a realização do ideal de igualdade preconizado pela justiça.
Essa é uma dimensão que revela o conflito que está presente, permanentemente, na reflexão e
nas formas de organização social: a existência das diferenças que caracterizam e constituem a
identidade humana, da sociedade e da natureza e a necessidade de construir a justiça.
A tensão entre as diferenças que constituem as relações humanas e sociais e as
gritantes desigualdades que não possuem legitimidade moral é, se não o maior, um dos mais
importantes dilemas da justiça atualmente. Em face disso, emergem questões centrais para a
reflexão humana, das quais se destacam: Quais são as condições para a igualdade? É possível
superar as desigualdades? Em que espaços a igualdade é possível? Existem desigualdades que
precisam ser toleradas? Existem desigualdades justas? Quais são as condições e os princípios
para a avaliação da justiça? Quem são os protagonistas da justiça?
12
Entre as causas de grande parte das injustiças está o modelo de desenvolvimento
atualmente em curso, cujos principais objetivos se voltam para o maior progresso econômico,
o aumento da produção de bens de consumo e a busca incessante do aprimoramento
tecnológico para melhor dominar os recursos existentes principalmente na natureza, em vista
da melhoria das condições de bem-estar. A realização desses objetivos teve como
consequência, entre outros fatores, a adoção do mercado como modelo e moderador das
relações econômicas, a instrumentalização das instituições democráticas, a limitação da
pessoa a um meio para buscar os fins almejados e a utilização indiscriminada dos recursos
naturais para a satisfação dos interesses econômicos e financeiros. Tudo isso ocorre sem
virtude da despreocupação com a preservação e o equilíbrio ambientais e com as condições de
existência das futuras gerações, da negação das culturas e seus valores como uma dimensão
importante da convivência entre as pessoas e do equilíbrio social, da satisfação dos interesses
individuais como um princípio fundamental da realização humana e da desconsideração dos
valores essenciais, como a liberdade, a justiça, a cooperação e a solidariedade, como
referências fundamentais da existência humana e da ordem social.
Esta tese tem como objetivo central a fundamentação das referências indispensáveis
para a construção e a avaliação das condições de justiça nas sociedades contemporâneas. A
Teoria da Justiça de Amartya Sen, que se estrutura com base no valor moral substantivo da
liberdade para a discussão e a justificação das políticas de desenvolvimento e para o
relacionamento entre as pessoas, as instituições, as culturas, os países e os demais atores
sociais, assim como o princípio orientador para a avaliação da organização justa das
sociedades, é a referência a partir da qual se organiza a presente argumentação.
A reflexão de Sen integra o patrimônio das temáticas contemporâneas sobre a justiça.
Sua abordagem tem como primeira referência os elementos herdados das ciências
econômicas, de onde provém a sua formação inicial, profundamente integrada com a tradição
filosófica. Uma questão envolvendo a investigação dessas duas áreas do conhecimento, com
suas características peculiares, representa uma contribuição decisiva para a fundamentação e a
estruturação das condições de justiça nas sociedades marcadas por graves desigualdades.
A preocupação com as condições de justiça social supõe uma estrutura de
argumentação que justifique a organização social pautada por razões que considerem a
importância e a atuação das pessoas, das instituições e das demais áreas que envolvem a ação
humana e os meios para a sua efetivação. Uma proposição restrita a uma área do
conhecimento, por exemplo, a economia, representa a negação da evolução social
13
interdependente e sistêmica, assim como dos diferentes espaços que envolvem as relações
sociais no interior de cada país e em nível internacional.
A reflexão filosófica compreende, especialmente, a fundamentação dos valores,
princípios e demais justificativas que têm como objetivo principal a construção da justiça. As
contradições existentes nas sociedades retratam o distanciamento entre a reflexão ética, os
meios e as estruturas sociais responsáveis pelas condições de justiça. Essa dicotomia contribui
para o aumento das injustiças sociais. A preocupação com a legitimidade moral do
ordenamento social representa a afirmação do homem como protagonista da construção da
justiça e das condições para a sua integração nas diferentes instâncias da sociedade.
A compreensão das condições de justiça, com base no valor moral substantivo da
liberdade representa a inversão de uma organização social que prima pelos arranjos e
estruturas funcionais para atender aos objetivos previamente concebidos, por um modelo que
tem suas referências, sua fundamentação e suas justificativas orientadas por valores e
princípios éticos. Ocorre uma mudança não apenas na razão teórica, mas, especialmente, na
dinâmica que compõe a estruturação das relações humanas e sociais. O ordenamento social,
avaliado na perspectiva apresentada por Sen, contém os elementos básicos para que a
sociedade como um todo e, especialmente, as relações econômicas sejam mais justas, porque
sua arquitetura é orientada segundo parâmetros éticos.
Para uma fundamentação filosófica da justiça é preciso considerar a pluralidade de
interesses que integram a busca por uma organização social segura. Independentemente de sua
origem e de seus fins, cada qual, por diferentes meios, procura estabelecer os seus objetivos
para, assim, adequar a estrutura social. A construção de uma concepção de justiça, no presente
contexto, contempla a multiplicidade de fatores que contribuem para a qualidade de vida das
pessoas, a organização das relações sociais, as políticas de desenvolvimento, entre outros
compromissos.
Nesse contexto, a compreensão dos temas que envolvem a justiça precisa ser
abrangente. Isso representa o convencimento de que não se pode limitar o seu conteúdo e a
sua operacionalidade às determinações suscitadas pelos mecanismos que garantem o
funcionamento das relações econômicas, pela formalidade da estrutura jurídica de um país ou
pela legislação internacional. Se assim fosse, as garantias de justiça nas sociedades
dependeriam de arranjos econômicos e jurídicos formais que, exceto em situações específicas,
representam os anseios dos Estados e os objetivos de grupos mais bem organizados em razão
da vontade representativa dos seus interesses políticos e econômicos, mesmo nas democracias
mais evoluídas.
14
Uma teoria da justiça tem como objetivo apresentar uma estrutura de argumentação
bem articulada e contextualizada, com os elementos suficientes para a organização social
justa. Tal proposição tem sentido na medida em que contribui para a transformação da
realidade injusta.
O valor moral substantivo da liberdade é indispensável para a estruturação e a
avaliação da justiça, porque identifica as relações entre as pessoas, a organização das
instituições sociais, o modelo de desenvolvimento sustentável, os valores que sustentam o
ordenamento social e as relações internacionais a partir da garantia e do exercício das
liberdades substantivas. A pessoa, desse modo, está na condição de agente e sujeito ativo,
com as categorias essenciais para poder participar e influenciar a organização da sociedade,
independentemente do acesso aos bens e aos recursos de que dispõe ou dos interesses
previamente estabelecidos. A negação das liberdades substantivas adultera o conceito de
pessoa, reduzindo-a à condição de não sujeito e a estrutura da sociedade, especialmente as
suas instituições, a um meio para a satisfação e legitimação de objetivos previamente
acordados, especialmente de ordem econômica ou para a manutenção de interesses políticos.
O valor moral substantivo da liberdade é o fundamento para a organização justa e
equitativa das sociedades. Sem liberdade não se pode falar do valor da pessoa como sujeito
ativo, das condições de justiça social, do modelo de desenvolvimento sustentável, das relações
entre as culturas, da utilização equilibrada dos recursos naturais, da superação das gritantes
desigualdades existentes no seu interior ou do compromisso com as condições de existência
das futuras gerações.
A liberdade é uma dimensão indispensável para a consideração das condições de
justiça, por isso, com valor intrínseco, próprio e, nesse sentido, inegociável e não dependente
de planos ou objetivos previamente estabelecidos, especialmente representados por interesses
individuais, corporativos ou outros. O valor moral substantivo da liberdade identifica,
caracteriza e diferencia as múltiplas áreas das relações humanas e da organização social,
imprimindo uma dinâmica tal que no seu conjunto se evidenciam a promoção e o
fortalecimento da liberdade.
Em muitos campos da atividade humana e da estrutura social ocorre um grave
distanciamento entre a ética e as diferentes áreas da organização social, particularmente da
economia e da política. Isso acarreta inúmeras consequências, que comprometem
negativamente o equilíbrio do relacionamento humano e das questões sociais, entre as quais
se podem destacar: a instrumentalização das instituições democráticas, as políticas de
desenvolvimento orientadas para o progresso econômico, a submissão da pessoa e das
15
culturas aos objetivos previamente estabelecidos e, geralmente, estranhos à maioria, a
utilização indiscriminada dos recursos ambientais, entre outros.
Essa compreensão de matriz utilitarista, que prioriza a busca da felicidade, a
satisfação do bem-estar, e avalia a ação moral pelas suas consequências não é suficiente para
responder à complexidade da formação e organização social, aos objetivos e às necessidades
das pessoas, ao modelo de desenvolvimento sustentável e às condições de justiça nas
sociedades caracterizadas pelo pluralismo. A concepção utilitarista não se preocupa com as
pessoas e suas diferenças, sejam individuais, sejam culturais, geográficas ou de formação
política, da mesma forma que não se compromete com a democracia como um valor
fundamental e irrenunciável para a organização equilibrada da sociedade e com os direitos
individuais e coletivos.
A avaliação da conduta moral, pessoal ou social tendo como critério as suas
utilidades ou as suas consequências empobrece dimensões que são importantes para a
realização das pessoas e do seu próprio bem-estar, assim como não tem compromisso com um
ordenamento seguro e equitativo da sociedade, particularmente das diversificadas relações
políticas e econômicas. Além disso, em certas circunstâncias, os objetivos finais podem ser
estranhos.
A fundamentação desta tese no valor moral substantivo da liberdade é uma
abordagem alternativa ao utilitarismo, porque constrói a concepção de justiça considerando,
entre as múltiplas dimensões da existência humana e do equilíbrio social: 1) a pessoa na
condição de sujeito, com a possibilidade de participar ativamente na organização da sociedade
sem pré-condições, especialmente provenientes de interesses corporativos e individualistas, e,
dessa forma, capaz de escolher um conjunto de funcionamentos cujo objetivo é fortalecer as
capabilidades que são indispensáveis à sua realização pessoal e dos objetivos mais
importantes para o seu bem-estar; 2) a democracia como um sistema de organização das
relações sociais não dependente de objetivos ou exigências prévias para a sua implementação
e funcionamento, possuidora de instituições e mecanismos que garantem uma estrutura
estável e com as condições de contemplar de forma equitativa os interesses e as aspirações
dos membros da sociedade; 3) as diferenças como constitutivas da identidade humana, social
e da natureza, que, na sua diversidade, fortalecem e aprimoram o exercício das liberdades; 4)
concebe o desenvolvimento legitimado pelo princípio da sustentabilidade e, por isso,
integrado com as necessidades básicas e as aspirações das pessoas, particularmente as mais
pobres, com a utilização equilibrada dos recursos naturais e com um claro compromisso com
as futuras gerações; 5) as relações internacionais e entre as culturas primam pelo
16
desenvolvimento das capabilidades que oportunizam a integração, apoiada em referências
como a solidariedade, a afirmação e manifestação dos valores e dos princípios que as
identificam e com base nos quais se operam, aprimoram e avaliam os diferentes objetivos e
interesses.
Na organização das relações econômicas, a opção pela matriz utilitarista, pela
satisfação das necessidades, principalmente representadas pela busca do bem-estar como
objetivo final, é mais intensa e pode se tornar a meta mais importante da existência da pessoa
e do ordenamento social. Nesse contexto se afirma o valor moral substantivo da liberdade
como a referência que identifica a importância da pessoa como sujeito e objetivo principal de
todo o processo de organização das relações sociais.
Essa opção conduziu Sen a afirmar que “a liberdade é o principal meio e o principal
fim do desenvolvimento”, o que legitima a concepção não utilitarista da justiça. Sem
desconsiderar a importância da busca do bem-estar e dos objetivos individuais das pessoas, a
ação moral não pode ser avaliada tendo como critério a sua realização, nem mesmo as
instituições sociais podem ter sua atuação limitada à satisfação de políticas ou metas cujo
interesse está relacionado à busca pela maior felicidade, ou avaliar a atuação humana segundo
a utilidade das suas ações. As utilidades não têm valor intrínseco; se assim fosse, o valor da
pessoa estaria condicionado à satisfação dos interesses previamente determinados, não
importando se ela conhece seus objetivos ou que consequências isso pode acarretar.
Considerando o valor moral substantivo da liberdade, o processo de organização e
desenvolvimento social tem como objetivo central a qualidade de vida das pessoas, ou seja, o
bem do homem. A liberdade não precisa ser valorizada segundo as vantagens que
proporciona, seja para uma pessoa, seja para um determinado grupo ou categoria, mas por
causa do seu valor próprio integra as pessoas na dinâmica social, aprimora as suas relações,
fortalece a cooperação e a solidariedade e orienta o processo de desenvolvimento econômico e
social para o exercício das liberdades substantivas.
O princípio da sustentabilidade que orienta o processo de desenvolvimento tem suas
preocupações direcionadas não para a satisfação das necessidades das pessoas,
especialmente das mais pobres, mas também com o equilíbrio no uso e na distribuição dos
bens e dos recursos disponíveis, considerando as demandas atuais e das futuras gerações, que,
embora não existam, precisam ter suas condições de sobrevivência e seus direitos morais
garantidos. É importante destacar como uma exigência fundamental do exercício da liberdade
a preocupação com os recursos naturais limitados, cuja utilização indiscriminada pode não
apenas conduzir ao desequilíbrio do ecossistema, mas também à desintegração cada vez mais
17
acentuada do tecido social, da estabilidade institucional e dos valores e princípios que
orientam a convivência social e as culturas.
As diferentes formas de relacionamento, que podem ser pontuais, necessárias ou
decorrentes de certas circunstâncias específicas, entre as culturas e os países, quando
fundamentadas no valor moral substantivo da liberdade, possibilitam a construção de acordos,
tratados e contratos, sejam políticos, econômicos, diplomáticos ou de outra ordem, segundo a
identidade e as características de cada um. A liberdade possibilita o desenvolvimento das
potencialidades individuais e coletivas num processo de permanente integração e cooperação.
O permanente exercício da liberdade evita, primeiramente, a imposição de valores,
princípios, hábitos e costumes, assim como de interesses políticos e econômicos, o que
ocasiona o isolamento de grupos, de nações e de culturas em objetivos e interesses específicos
e impossibilita o diálogo, que é uma das características essenciais para o fortalecimento da
liberdade. Tal limitação nega na sua origem o valor moral substantivo da liberdade, não
permite a valorização e a avaliação das suas concepções e valores, da mesma forma que
dispersa a oportunidade de integrar ou acrescer ao seu patrimônio político e cultural novos
valores, que podem aprimorar a sua maneira de pensar e agir e, até mesmo, corrigir
comportamentos distorcidos ou não refletidos suficientemente. A imposição, especialmente
quando operada de forma violenta e para satisfazer a interesses econômicos ou políticos, e o
isolamento, que pode ter as mesmas causas ou também interesses culturais ou religiosos,
representam uma flagrante contradição à afirmação do valor moral substantivo da liberdade e
contribuem para a instabilidade social, tanto em nível local quanto das relações internacionais.
O ordenamento das sociedades ocorre considerando as diferenças e as desigualdades
existentes no seu interior. Importa destacar, para melhor abordar o tema, que as diferenças são
constitutivas das sociedades, porém as desigualdades, em princípio, são moralmente injustas,
tendo como referência o objetivo inicial do ideal de justiça. Nesse sentido, faz-se necessária a
opção por um modelo de organização social que possibilite um ordenamento justo num
contexto de desigualdades gritantes. Em face disso, é impossível a efetivação de uma estrutura
social igualitária ou aritmética.
Em determinados contextos e por diversas razões, são inúmeras as situações que
impedem que a estrutura da sociedade se organize para atender às aspirações, aos recursos e
às necessidades provenientes da sua composição interna, das relações externas ou dos demais
compromissos. Existem diferentes causas, entre as quais podem ser destacadas aquelas
representadas pelos interesses econômicos e financeiros, pelas deficiências na formação e na
18
organização políticas e por dificuldades de integração ou convivência com as diversas
expressões culturais que dificultam o equilíbrio social.
O aumento das desigualdades configura a dicotomia que existe entre o ideal de
justiça e a realidade social. A permanência dessa contradição impede a coesão das forças e
dos interesses que estão presentes no seu interior de quem depende a efetivação da justiça. As
desigualdades gritantes impossibilitam a unificação social porque interferem em aspectos
fundamentais dos quais dependem os arranjos políticos que criam as condições para a
estabilidade de uma sociedade democrática.
A afirmação do valor moral substantivo da liberdade tem condições de indicar
caminhos para a solução desse dilema que tradicionalmente preocupa as teorias da justiça.
Nesse sentido, destaca-se que as condições de justiça não dependem, primeiramente, do
acesso aos bens primários, das condições de bem-estar, da maximização da liberdade
individual, da busca pela felicidade como objetivo último da ação humana, ou, mesmo, de um
conjunto de capabilidades previamente estabelecidas.
A garantia das liberdades substantivas pelo desenvolvimento das capabilidades é a
referência essencial para as condições de igualdade. Sabendo-se que existe uma constituição
social caracterizada pelas diferenças, a avaliação de uma organização social justa supõe a
necessidade de tolerância e convivência com certos níveis de desigualdade que, em princípio,
não podem ser mensurados matematicamente. É afirmativa a resposta à pergunta sobre se uma
sociedade desigual pode ser justa, porque a identifica com uma sociedade de liberdade; logo,
é injusta quando nega aos seus membros esse valor fundamental.
Considerando seu valor substantivo, a liberdade tem força por si mesma e, por essa
razão, imprime na organização social justa o desenvolvimento das capabilidades que
fortalecem a condição de sujeito da pessoa e integram aqueles aos quais essa condição é
negada, numa dinâmica que não depende exclusivamente das consequências ou da
disponibilidade de certa quantidade de recursos. Estes, por sua vez, são necessários, tanto
quanto a atenção que deve ser dispensada às consequências ou às condições de bem-estar,
entretanto não são suficientes.
O valor moral substantivo da liberdade permite uma compreensão e organização
social não reduzida ou dependente de concepções ou de exigências de ordem política,
econômica, religiosa ou cultural. O desenvolvimento das capabilidades, por meio das
condições de escolha do conjunto de funcionamentos, representa uma mudança significativa
para os rumos da economia e da sociedade modernas. Isso pode ser afirmado porque a
liberdade não depende da existência de certos meios, recursos ou mecanismos e,
19
especialmente, por causa de seu valor próprio, não pode ser instrumentalizada ou legitimar
interesses ou condutas de instituições, grupos ou países.
As condições de igualdade se estruturam pelo exercício e desenvolvimento das
liberdades substantivas. A pessoa, considerando a sua condição de agente, atua e influencia os
destinos da sociedade e tem seu status de liberdade equacionado; nessa condição, exerce a sua
autonomia de forma integrada e interdependente. Injustas são as desigualdades gritantes e a
negação das oportunidades de escolha que impossibilitam a realização pessoal e coletiva.
A proteção, a garantia e o desenvolvimento das liberdades substantivas são mediados
pela opção por uma estrutura social ordenada a partir da democracia. Sua efetivação é
possível em qualquer situação, sem necessidade de condições ou exigências prévias, porque
está respaldada por princípios seguros e por mecanismos, instrumentos e instituições que
contemplam as diferenças (políticas, culturais, religiosas e outras) presentes no seu interior,
ordenam as desigualdades, garantem a estabilidade política e orientam o processo de
desenvolvimento sustentável. Essa dinâmica possui as condições necessárias para a justiça, a
partir do que se pode afirmar que uma sociedade justa é, também, uma sociedade democrática.
20
1 O VALOR MORAL SUBSTANTIVO DA LIBERDADE NA TEORIA DA JUSTIÇA
DE SEN
A busca pela organização justa da sociedade é uma das tradicionais preocupações
dos dirigentes e dos membros das diversas organizações sociais. As teorias da justiça
oferecem um amplo espectro de reflexões e de respostas que evoluem impulsionados pelas
demandas do contexto social onde estão inseridas, pelas tensões oriundas das diferentes
compreensões e pela efetiva participação dos membros da sociedade. À tradicional pergunta
“o que é uma sociedade justa?” propõem-se diferentes concepções que se complementam e,
apesar de contraditórias, em muitas dimensões, oferecem à sociedade importantes critérios
para a sua organização. A busca por condições justas é uma exigência que legitima a
existência segura de uma sociedade. A forma como se arquitetam as respostas às demandas
que emergem do seu interior explicita o sentido e a preocupação da ação política que tem
como objetivo prioritário a realização da justiça. A reflexão em torno dos temas da justiça está
diretamente relacionada com as razões para a igualdade, visto que contempla três dimensões
específicas que identificam o ser humano e a ordem social: as potencialidades humanas, as
necessidades sociais e os bens disponíveis.
A teoria da justiça de Amartya Sen tornou-se uma referência importante para as
questões que envolvem as condições de justiça no contexto contemporâneo ao focalizar a
liberdade como temática central e referência em torno da qual se estrutura uma organização
social justa. Nessa concepção, a liberdade é um valor moral substantivo fundamental para o
ordenamento de uma sociedade, como também caracteriza as relações que as pessoas
estabelecem entre si, com os demais, com as instituições, com o meio ambiente e com as
futuras gerações. O agir humano, em suas diferentes dimensões, perspectivas e necessidades
integra-se e sedimenta-se por meio de uma sólida experiência de liberdade da qual dependem
a sua realização pessoal e a sua integração na vida da sociedade.
O valor moral substantivo da liberdade fundamenta a dinâmica das relações e da
estrutura da sociedade de tal forma que todas as instâncias sejam caracterizadas por uma
sólida experiência de liberdade. A valorização, a garantia e a promoção da liberdade são
condições indispensáveis para a avaliação da justiça social; portanto, sua negação
compromete a realização da pessoa nas suas dimensões mais importantes. Um ambiente de
liberdade caracterizado pelos diferentes aspectos da existência humana imprime na sociedade
o que se pode chamar de “uma sociedade de liberdade”, porque na estrutura, na organização,
assim como no agir individual, estão presentes as garantias mínimas para o seu exercício, as
21
quais caracterizam as instituições e integram a identidade cultural dos seus membros (SEN,
2000).
O entendimento das diferentes etapas da existência humana e suas relações está
diretamente relacionado com o valor moral substantivo da liberdade que caracteriza e
dinamiza as relações pessoais, comunitárias e sociais, assim como as variadas conquistas e
necessidades se integram numa sólida experiência de liberdade. A realização humana e social
é dependente da superação dos mecanismos responsáveis pela sua privação, dentre os quais se
podem destacar: os sistemas políticos autoritários, a falta de acesso aos sistemas de saúde e de
educação com qualidade (incluindo o persistente analfabetismo endêmico em diversas partes
do mundo), o cerceamento das informações, simbolizado no controle da imprensa, o trabalho
infanto-juvenil e o desemprego, entre outros.
A ausência de condições para o exercício da liberdade limita e compromete a
realização da pessoa e as relações que ela estabelece com os demais, com a organização da
sociedade e com o meio ambiente, assim como o compromisso com os direitos implícitos das
futuras gerações. Considerando a complexa organização das sociedades, a necessidade de
avaliar constantemente a evolução sociocultural e a remoção dos entraves que impedem o
exercício da liberdade, a melhoria das condições de vida e o desenvolvimento sustentável
impõem-se como um imperativo.
A promoção, a defesa e a garantia do exercício da liberdade caracterizam a escolha
do tipo de vida que as pessoas consideram importante e o ordenamento das instituições
sociais. Como valor moral substantivo fundamental, a liberdade influencia de forma decisiva
nas diferentes etapas e perspectivas da existência, assim como as suas escolhas Afirma Sen
(1993, p. 44):
A liberdade tem muitos aspectos. Ser livre para viver de maneira que se gostaria
pode ser significativamente ajudado pela escolha dos outros, e seria um erro pensar
em realizações somente em termos da escolha ativa por nós mesmos. A habilidade
da pessoa de conseguir vários funcionamentos valiosos pode ser amplamente
destacado pela ação pública e política, e essas expansões de capabilidades são
importantes para a liberdade por essa razão. Na verdade eu discuti em outras
situações que a “liberdade de passar fome” ou “a liberdade de estar livre da malária”
não precisa ser considerada por ser simplesmente retórica (como elas são às vezes
escritas). Há um sentido real no qual a liberdade de viver como se gostaria é
realçado pela política pública que transforma os meios epidemiológicos e sociais.
Mas o fato de que a liberdade tenha essa característica não despreza a relevância da
escolha ativa pela própria pessoa como um componente importante de viver
livremente. É por causa da presença deste elemento (ao invés da ausência de outros),
que o ato de escolher entre os elementos de uma capabilidade estabeleceu uma
relevância clara na qualidade de vida e bem-estar de uma pessoa.
22
A dinâmica da liberdade imprime na organização social uma identidade específica,
porque se torna o referencial catalisador e impulsionador do seu ordenamento, caracterizado
por diferenças que lhes são próprias e não impedem uma estruturação justa. O valor moral
substantivo da liberdade é um pressuposto indispensável para que se possa caracterizar uma
sociedade justa, pois dessa compreensão dependem as condições, as instituições, as estruturas
e os demais organismos intermediários que compõem a dinâmica da organização e do
funcionamento de uma sociedade que defende, fortalece e promove a liberdade. Essa é uma
concepção ampla da liberdade, por isso, não dependente de pré-condições atreladas a
interesses corporativos e individualistas. Não se pode conferir, sob pena de legitimar
concepções moralmente sem justificativa, à liberdade um valor absoluto ou um conceito que
depende de fins previamente definidos. Atribuindo valor próprio para o ser humano, a
liberdade constitui-se em critério de avaliação do seu agir, do funcionamento e do
desenvolvimento da sociedade.
A liberdade é um valor moral substantivo indispensável para a estruturação segura
das sociedades democráticas, contemplando no interior do seu ordenamento, de maneira
equitativa, as diferenças; contribuindo para a superação das desigualdades que comprometem
o equilíbrio das forças e dos interesses sociais, políticos, econômicos e culturais. As relações
que caracterizam as organizações sociais têm no valor moral substantivo da liberdade um
referencial que influencia, decisivamente, na vida das pessoas, a partir do qual se processam
os critérios e as condições para a organização justa da sociedade (SEN, 2001).
O exercício da liberdade, numa sociedade marcada por diferenças, supõe a
capacidade e as condições necessárias para que seus membros estabeleçam determinados
compromissos comuns e possam, também, partilhar valores que tornam possíveis a
convivência entre as pessoas, a estruturação das relações sociais por meio da organização das
instituições e os mecanismos para que os recursos oriundos do meio ambiente garantam as
condições de vida justa para esta e para as próximas gerações. A privação da liberdade
compromete a realização das pessoas, ao passo que seu exercício determina a qualidade e as
perspectivas da vida humana, da estrutura interna e das relações externas da sociedade. As
pessoas buscam exercer a liberdade como uma característica indispensável e necessária da sua
existência; para isso, dependem de diferentes fatores, especialmente oriundos do contexto
sociocultural onde estão inseridas (HÖFFE, 1991). O exercício da liberdade imprime no ser
humano condições que o capacitam para que, na condição de sujeito, desenvolva suas
potencialidades e, por meio de uma efetiva integração social, participe ativamente do processo
de organização e de desenvolvimento do conjunto da sociedade (SANCHO, 2006).
23
A liberdade tem papel decisivo no enriquecimento da vida humana, influenciando,
particularmente, os demais atores sociais com os quais estabelece uma relação de
complementaridade. O ordenamento social está diretamente relacionado com o acesso, a
promoção e a garantia das liberdades, porque não depende de pré-condições, seja de ordem
política, seja econômica, religiosa ou cultural. As diferentes formas de liberdade têm um
papel determinante na superação daquelas situações que comprometem negativamente a
identidade da pessoa, o desenvolvimento de suas potencialidades, sua inserção na estrutura
social, assim como no processo de desenvolvimento.
A liberdade influencia diretamente na organização e na estruturação da vida das
pessoas em seus diferentes níveis de relacionamento, conforme afirma Sen (2000, p. 29):
“Expandir as liberdades que temos razão para valorizar não torna nossa vida mais rica e
mais desimpedida, mas também permite que sejamos seres mais completos, pondo em prática
nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse mundo.”
Um ordenamento seguro e estável da sociedade depende da garantia e do exercício
das diferentes formas de liberdade, as quais precisam ser constantemente avaliadas e
fundamentadas, considerando a diversidade, o contexto e a dinâmica que caracterizam o seu
interior. Esse dinamismo social, normalmente marcado por tensões, configura as condições
para a convivência entre as pessoas e, destas, com as instituições e o meio ambiente. A
liberdade inclui variadas dimensões, que envolvem contextos diferenciados, bem como o
conjunto de capabilidades, as razões, as oportunidades, a extensão e as condições para a sua
realização. Nesse sentido, destaca Sen (2002, p.10):
A liberdade pode ser valorizada como a oportunidade substantiva dada para seguir
nossos objetivos e metas. Ao avaliar as oportunidades, atenção tem que ser dada às
habilidades de uma pessoa para alcançar aquelas coisas que ela tem razão para
valorizar. Neste contexto específico, o foco não está diretamente no que o processo
envolvido possibilita ser, mas nas reais oportunidades de obtenção nas quais as
pessoas estão envolvidas.
A liberdade é uma referência indispensável para as diferentes dimensões que
caracterizam a vida das pessoas e as relações sociopolítico-econômicas e culturais que elas
estabelecem, de tal forma que a existência humana se torna mais completa e em condições de
influenciar os diferentes campos da sua organização, tornando-os interdependentes e
24
qualificando o ser humano como beneficiário dos seus frutos, ao mesmo tempo em que, na
condição de sujeito, tem a responsabilidade de promovê-la e expandi-la.
A possibilidade de escolher integra a condição de existência livre do homem; sem
essa característica ocorre a redução da pessoa à condição de objeto, isto é, a limitação da sua
humanidade. As relações que se estabelecem a partir do valor moral substantivo da liberdade
proporcionam a garantia e o exercício das diferentes formas de liberdade; são um critério
básico para a avaliação da realização individual, das condições de vida, da estabilidade social
e do desenvolvimento sustentável.
1.1 AS LIBERDADES INDIVIDUAIS
A realização de uma pessoa e sua efetiva participação na sociedade dependem, em
grande medida, do exercício da liberdade individual, que tem implicações decisivas nas
diferentes relações que estabelece com os demais atores sociais. A organização e o
desenvolvimento de uma sociedade estão diretamente relacionados com o acesso e o exercício
da liberdade individual, que identifica a pessoa como sujeito e em condições de influenciar
decisivamente nos seus destinos. Considerando os graves problemas e limites que atualmente
afetam as relações humanas, sociais e ambientais, a afirmação da liberdade individual é uma
referência essencial para que o ordenamento do conjunto da sociedade ocorra de maneira
segura e, juntamente com os outros tipos de liberdade, que se reforçam mutuamente,
contribua para a melhoria da qualidade de vida das pessoas e para com o processo de
desenvolvimento em suas diferentes dimensões. Essa conexão é primordial para o equilíbrio
das relações da pessoa com os objetivos traçados pela organização da sociedade, conforme
afirma Sen (2000, p. 19):
A ligação entre liberdade individual e realização do desenvolvimento social vai
muito além da relação constitutiva por mais importante que ela seja. O que as
pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades
econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como
boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. As
disposições institucionais que proporcionam essas oportunidades são ainda
influenciadas pelo exercício das liberdades das pessoas, mediante a liberdade para
participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que impelem o
progresso dessas oportunidades.
25
As tensões provenientes das diferenças que caracterizam as pessoas, a constituição
social e o meio ambiente integram a dinâmica e o contexto para o exercício da liberdade
individual
1
. A pobreza econômica, a ausência de serviços públicos básicos e assistência
social, ou a negação da livre atuação política e civil, entre outras, configuram as principais
causas que impedem o desenvolvimento das condições para a liberdade, diretamente
relacionadas com a qualidade de vida, a condição de agente e o desenvolvimento social. Sem
as necessárias condições de acesso aos diferentes mecanismos e instituições que ordenam o
corpo social, não se pode falar em exercício pleno das liberdades individuais.
A efetivação da liberdade individual está diretamente relacionada com o
ordenamento da sociedade. Essa implicação em nenhum momento está livre de conflitos e de
tensões; pelo contrário, os valores e as reações que decorrem desse contexto sedimentam e
estabelecem uma relação interdependente entre o indivíduo e as organizações intermediárias
da sociedade. A liberdade individual é entendida como consequência das condições
arquitetadas no interior da organização social, ao mesmo tempo em que não pode ser
compreendida como a realização de vontades individualistas. Sen (2000, p. 46) afirma que
a liberdade individual é essencialmente um produto social, e existe uma relação de
mão dupla entre (1) as disposições sociais que visam expandir as liberdades
individuais e (2) o uso das liberdades individuais não para melhorar a vida de
cada um, mas também para tornar as disposições sociais mais apropriadas e eficazes.
A expansão das liberdades individuais melhora as condições de vida das pessoas,
assim como as disposições para o exercício da condição de agente político, tornando as
instituições e os mecanismos da sociedade mais eficazes. Os arranjos que ocorrem no interior
do ordenamento social deveriam corresponder às demandas trazidas pelos seus membros e
resultar em benefício destes. Esse contexto, no qual a liberdade individual é fundamental e as
diferenças são explícitas, supõe que as partes deem razões suficientes para suas convicções e
para o seu agir. Da mesma forma, no interior das relações que se estabelecem entre os povos
1
A abordagem das diferenças não é um tema que pode ser desconsiderado em relação ao exercício da
liberdade, visto que caracteriza a constituição da natureza, o interior das sociedades, e influencia na formação
da identidade individual e cultural, na estrutura de valores e relacionamentos que as pessoas estabelecem, nas
necessidades e expectativas, na utilização e valorização dos recursos ambientais, contribuindo decisivamente
na estruturação e funcionamento institucional de uma sociedade. Especificamente na constituição humana o
tema adquire relevância, porque “os seres humanos diferem uns dos outros de muitos modos distintos” (SEN,
2001, p. 50), caracterizando os diversos espaços da sua existência, determinando os critérios e resultados das
análises relativas à justiça e à igualdade.
26
(nações), onde a complexidade aparece de maneira mais evidente, verificam-se inúmeros
desacordos ou conflitos originários da formação religiosa, da variedade de culturas, de
interesses econômicos e de concepções políticas, dentre outros. Para um melhor ordenamento
das diferenças que constituem as relações no interior da sociedade, o exercício da liberdade
individual não pode ser delegado ou depender somente da concordância ou da autorização de
autoridades ou líderes (RAWLS, 2001; SEN, 2000). O aparato social para a expansão da
liberdade dos cidadãos é um mecanismo que deve impulsionar favoravelmente o exercício da
responsabilidade individual. Uma relação de dependência dos interesses de terceiros,
especialmente quando estes lhes são estranhos, limita a iniciativa individual da pessoa diante
dos demais e em relação a si próprio (SEN; NUSSBAUM, 1993).
A liberdade individual é insubstituível e fundamental para a formação dos valores
que constituem o funcionamento e o comprometimento social de uma pessoa, para o exercício
da responsabilidade individual, para responder pelos seus atos e para realizar as suas escolhas,
assim como para zelar pela sua autoestima, pela efetivação dos seus interesses e pela solução
dos seus problemas. A expansão e a promoção da liberdade individual dependem do
comprometimento dos diferentes organismos da sociedade: “organizações políticas e sociais,
disposições de bases comunitárias, instituições não governamentais de vários tipos, a mídia e
outros meios de comunicação e entendimento público, bem como as instituições que
permitem o funcionamento de mercados e relações contratuais.” (SEN, 2000, p. 322). Ocorre
uma relação interdependente das forças públicas, especialmente da atuação do Estado, com as
outras instituições sociais e da pessoa na formação dos valores de uma sociedade. As
condições para o exercício das liberdades individuais são indispensáveis e insubstituíveis,
pois comprometem o desenvolvimento da autoestima, das condições de bem-estar e do
exercício da responsabilidade. A superação dessas limitações por meio de diferentes
mecanismos, especialmente das políticas públicas, representa a valorização das liberdades
individuais e as condições mínimas para o seu desenvolvimento.
Para uma pessoa, a capacidade de levar o tipo de vida que considera importante é
uma dimensão decisiva para poder influenciar a organização e o desenvolvimento dos
diferentes campos da sua atuação e do conjunto da sociedade, especialmente pela escolha dos
valores que a sustentam. Para uma efetiva integração da pessoa na estrutura social são
decisivas as liberdades políticas e os direitos civis, porque permitem aos membros da
sociedade o reconhecimento público de sua atuação e o debate de suas concepções.
Considerando o conjunto de experiências que envolvem os interesses e expectativas presentes
no contexto social e o aperfeiçoamento e surgimento de novos valores que integram e
27
caracterizam a dinâmica da sociedade, é de fundamental importância a liberdade de participar
criticamente da avaliação e da seleção dos valores que integram, fortalecem e contribuem para
o melhor funcionamento de uma sociedade (BENHABIB, 2002). Quando prima pelo valor e
pela garantia das liberdades, especialmente pelo seu valor moral substantivo, uma sociedade
encontra na estrutura democrática os instrumentos e princípios necessários que garantem o
exercício das liberdades básicas, assim como a superação das situações que tornam grupos ou
pessoas vulneráveis.
1.2 AS LIBERDADES SUBSTANTIVAS
As liberdades substantivas representam aquelas dimensões essenciais que constituem
o desenvolvimento de uma sociedade, que não depende exclusivamente do crescimento
econômico ou do acesso aos mercados, mas de uma ampla base de referências, que inclui as
variadas formas de interação e de participação social consideradas decisivas para o exercício
da condição de agente e relacionadas com as condições de vida econômica. Sua ausência
interfere negativamente sobre a vida das pessoas, particularmente, nos direitos políticos e
civis básicos indispensáveis para a efetiva participação de uma pessoa nos destinos de uma
sociedade. Destaca Sen (2000, p.18):
Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a
pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter
uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de
vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento
básico. Em outros casos, a privação da liberdade vincula-se diretamente à carência
de serviços públicos e assistência social, como por exemplo a ausência de programas
epidemiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou
de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros
casos a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades
políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de
participar da vida social, política e econômica da comunidade.
As liberdades substantivas são um critério fundamental para a avaliação das políticas
de desenvolvimento, assim como do progresso econômico de uma sociedade. O
desenvolvimento humano e social, entendido como a oportunidade efetiva de expansão da
28
liberdade, engloba diferentes instrumentos e fatores capazes de oferecer, especialmente aos
mais pobres e às mulheres, quando se encontram em situação de ameaça ou vulnerabilidade,
as necessárias oportunidades sociais para o desenvolvimento das potencialidades humanas, a
inserção na vida social e a melhoria da qualidade de vida. As liberdades substantivas
contemplam a satisfação das necessidades básicas e imediatas de ordem econômica e social,
tanto quanto aquelas perspectivas de ordem existencial (por exemplo, poder frequentar os
diversos ambientes sociais sem constrangimento e as condições para a autoestima e o respeito
próprio), considerando que não é possível desfrutar de liberdade em meio a situações de
privação e de penúria.
A privação impossibilita a atuação livre nos diferentes campos da existência, porque
compromete o conceito de pessoa, enfraquece a qualidade das relações individuais, familiares
e sociais e a estrutura e o funcionamento das instituições que sustentam a arquitetura da
sociedade. Uma sociedade comprometida com as liberdades substantivas aos seus
membros as condições para que escolham o tipo de vida que consideram importante. As
escolhas operadas pelas pessoas precisam estar acompanhadas da sensibilidade e da
atratividade necessárias para satisfazer às necessidades e expectativas de cada uma,
proporcionando um amplo horizonte de relacionamentos com outros membros, instituições,
culturas, entre outros, possibilitados pela organização e a integração sociais (KESSELRING,
2007). Nesse sentido, não existe justificativa para a restrição das possibilidades de escolha; se
assim fosse, as opções teriam seu valor limitado à sua utilidade e ao autointeresse de cada
pessoa, o que contraria uma concepção de justiça que tem como referência básica o valor
moral substantivo da liberdade. As liberdades substantivas, que as pessoas desfrutam, m
entre seus méritos remover o comportamento autointeressado, que facilmente conduz ao
individualismo.
A caracterização das liberdades substantivas está relacionada com a oportunidade de
escolha, considerando as diversificadas opções que uma pessoa tem como participante de uma
sociedade e integrada com a pluralidade que constitui o universo das relações humanas,
sociais e culturais. Não obstante, apenas a quantificação, maior ou menor, de oportunidades é
um critério insuficiente para atingir o objetivo desejado. Faz-se necessário considerar o mérito
das opções em relação às quais ocorre o ato de escolha. Ter alternativas diante das quais
alguém pode escolher é decisivo, não apenas por causa da oportunidade pessoal, mas também
pelas utilidades que delas pode desfrutar.
Pelo desenvolvimento das liberdades substantivas as pessoas interagem e participam
ativamente na sociedade, fortalecendo sua condição de agente livre e as bases necessárias para
o desenvolvimento social. A efetiva participação social do agente ocorre por meio das
29
“oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições
habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas.”
(SEN, 2000, p. 19). Essas dimensões, consideradas individualmente, perdem sua força
propulsora, porém, quando interligadas, influenciam diretamente nas escolhas sociais e na
participação nas decisões públicas, sendo um fator decisivo para as políticas de
desenvolvimento.
Um conjunto amplo de opções oferece as condições para que a pessoa participe das
diferentes relações presentes na organização de uma sociedade, o que contribui para o
exercício da liberdade individual, da mesma forma que sedimenta a expansão das liberdades
substantivas. Nesse contexto, a participação no intercâmbio econômico é um fator
indispensável para a realização pessoal, a integração social, a mudança de comportamentos,
tradições e costumes, assim como para o acesso à renda e aos bens que possibilitam a
integração nas relações de mercado. A negação da liberdade econômica está na origem de
outras privações que impedem o equilíbrio de uma sociedade, assim como a sua legitimidade
moral. A participação da pessoa nas atividades econômicas se configura como uma dimensão
decisiva na medida em que possibilita o fortalecimento das relações de troca, o intercâmbio de
experiências e de interesses diferentes, a oportunidade de desenvolver as capabilidades e as
potencialidades individuais, a inserção na vida social e a melhoria da qualidade de vida (SEN,
2006).
No contexto das relações econômicas tem importância fundamental para o exercício
das liberdades substantivas a opção de as pessoas poderem escolher o tipo de trabalho que as
realiza, porque as integra no conjunto mais amplo das relações sociais e lhes garante o
rendimento suficiente para satisfazer as suas necessidades básicas e adquirir os bens que
consideram importantes. O ato de poder optar por um tipo de trabalho, não por outro, não tem
apenas um valor derivado, mas também intrínseco, porque caracteriza a pessoa na condição de
sujeito e a integra na ampla rede de relações sociais e econômicas com as quais se relaciona
direta e indiretamente.
As formas de trabalho forçado, a proibição do trabalho da mulher fora de casa por
razões culturais ou de caráter sexual, a discriminação ou segregação das pessoas com
deficiências ou necessidades especiais e os sistemas escravagistas, além de um grave atentado
à dignidade humana, são uma forma de privação das liberdades individuais e substantivas sem
justificativas perante o valor moral substantivo da liberdade. A participação nos destinos da
sociedade por meio das relações de trabalho, integrada com outras formas de superação da
pobreza e de injustiças, é importante meio para que a pessoa desenvolva as capabilidades. A
não participação no mercado de trabalho, particularmente pelas vítimas do desemprego,
30
acarreta o aumento dos níveis de pobreza, compromete o equilíbrio das relações sociais,
descaracteriza os valores pessoais e familiares, a autoestima e o próprio exercício da liberdade
(SEN, 1975).
O acesso aos bens e recursos é uma dimensão importante para a realização de uma
pessoa, do seu bem-estar e outros aspectos relevantes da sua existência. Entretanto,
considerando os diferentes contextos sociais, a pluralidade de interesses e as características
individuais dos seus membros, esses são insuficientes como objetivos de vida individual e de
uma organização social. Sen (2001, p. 175) destaca essa diferenciação: “recursos são
importantes para a liberdade, e a renda é crucial para evitar a pobreza.”
Alternativo às utilidades e aos bens primários e considerando as condições para que
uma pessoa escolha um estilo de vida que tem razões para valorizar, Sen elege as
capabilidades (capabilities), que englobam as características pessoais, os múltiplos espaços de
atuação e as opções individuais ou coletivas, influenciadas pelo contexto social, pela herança
cultural ou por outros interesses, como critérios de avaliação dos ordenamentos sociais. A
realização de uma pessoa é entendida como um conjunto de funcionamentos importantes e
inter-relacionados que possibilitam diferentes escolhas, dependendo das preferências de cada
um, e “podem variar desde os mais elementares, tais como estar bem nutrido, livre de doenças
que não são inevitáveis e da morte prematura, aos bastante complexos e sofisticados, tais
como ter respeito próprio, ser capaz de tomar parte na vida da comunidade, e assim por
diante”. (SEN, 2001, p. 34). As alternativas entre as quais a pessoa pode optar representam as
condições para construir a sua realização individual e influenciar nos destinos da sociedade.
As capabilidades são um tipo de liberdade importante para que as pessoas tenham as
condições necessárias para perseguir seus próprios objetivos, considerando o contexto, as
necessidades, as expectativas e as motivações individuais ou de outra ordem. A ausência de
um conjunto de capabilidades básicas tem como consequência o rendimento insuficiente para
o preenchimento das necessidades mais importantes de uma pessoa, de um grupo social ou de
uma sociedade como um todo. Nesse sentido, pode-se afirmar que
a capacidade [capability] de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de
funcionamentos cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo
de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de
funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade de ter estilos de vida
diversos). Por exemplo, uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma
realização de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída,
forçada a passar fome extrema, mas a primeira pessoa possui um „conjunto
capacitário‟ diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem
nutrida de um modo impossível para a segunda). (SEN, 2000, p. 95).
31
O poder de escolha é uma dimensão importante das liberdades substantivas, entre
outros fatores, porque a pessoa manifesta as condições para optar entre aqueles
funcionamentos que são importantes para alcançar os seus objetivos. As pessoas têm
diferentes combinações alternativas, que incluem as motivações pessoais e caracterizam o
nível de integração e de participação social. A opção por um conjunto de funcionamentos, não
por outro, caracteriza a liberdade da pessoa de poder escolher entre determinados estilos de
vida aquele que melhor atende as suas expectativas e, sobretudo, representa a realização dos
objetivos mais importantes, que contribuem efetivamente para a sua realização.
Quando as pessoas não têm as condições de escolha, as capabilidades perdem a sua
importância, porque não podem optar entre diferentes alternativas que normalmente deveriam
se apresentar, nem buscar os objetivos que consideram importantes, nem contribuir
eficazmente para o desenvolvimento social. Isso ocorre, particularmente, quando o contexto
onde a pessoa vive é marcado por gritantes desigualdades, que podem ser percebidas na
distribuição de renda, na falta de acesso aos serviços públicos essenciais (saúde, educação,
segurança e infraestrutura), na ausência de um sistema político que ordenam
democraticamente os interesses das pessoas, grupos ou instituições, entre outros (SEN, 1984).
De outra parte, quando as capabilidades, compreendidas como as liberdades
substantivas, se apresentam no corpo da sociedade como o conjunto de funcionamentos e as
pessoas, efetivamente, podem exercer o poder de escolha com profundas motivações pessoais,
sociais e culturais, emerge desse contexto uma ampla rede de opções para cada um e variadas
oportunidades para o conjunto da sociedade, as quais expressam e fortalecem os seus vínculos
internos e externos, fomentam a evolução dos valores e a superação de concepções culturais
reducionistas por meio do debate permanente e do aprimoramento interno e externo das
relações sociais e institucionais. Especificamente para cada pessoa, ocorre o fortalecimento da
condição de agente, como uma característica fundamental para a sua identidade pessoal e
inserção na estrutura da sociedade. (SEN, 2000).
O conjunto de funcionamentos que uma pessoa desenvolve em razão do poder de
escolha, como membro de uma sociedade, contribui decisivamente para a sua realização
pessoal e para o seu bem-estar. Considerando o valor moral substantivo da liberdade, os
funcionamentos, que representam as metas que alguém pretende realizar em diferentes
espaços e períodos de sua existência, não estão atrelados, nem dependem da conquista de
padrões de bem-estar ou do acesso a determinada quantia de bens, mas da liberdade que a
pessoa tem para realizar os seus objetivos, que são diferentes e devem levar em conta desde as
características, as diferenças e as motivações pessoais, a formação cultural, as necessidades
32
sociais e ambientais que emergem de diferentes contextos e interesses, entre outras. Nesse
sentido, afirma Sen (1999, p. 7):
Um funcionamento é uma realização de uma pessoa: o que ele ou ela conseguem
fazer ou ser. Isso reflete, como era, uma parte do „estado‟ daquela pessoa. Tem que
ser distinguido dos instrumentos que são utilizados para alcançar aquelas
realizações. Por exemplo, o ato de andar de bicicleta tem que ser distinguido do fato
de se possuir uma bicicleta. Ele também precisa ser distinguido da satisfação gerada
por esse funcionamento, na verdade, andar de bicicleta não deve ser identificado
com o prazer obtido através desta ação. Um funcionamento é, portanto, diferente de
(1) ter bens (e as correspondentes características), que é posterior, e (2) ter utilidade
(na forma de resultado satisfatório daquele funcionamento), que é, um importante
objetivo, prioridade.
As liberdades substantivas são referências fundamentais para a avaliação das
condições de bem-estar de uma pessoa e do conjunto da sociedade, assim como da
legitimidade moral de sua organização. Uma sociedade que nega as liberdades substantivas
aos seus membros compromete negativamente os fundamentos da justiça e justifica, do ponto
de vista da estrutura jurídica procedimental e das condições de influir sobre as condições reais
da existência, concepções, instituições e práticas moralmente ilegítimas
2
. É importante
distinguir o valor moral substantivo da liberdade das condições e dos meios para atingir tal
objetivo. Especificamente, nessa concepção, a liberdade tem valor próprio e, “como expansão
das capabilidades do ser humano, tem uma relevância direta (intrínseca) e outra indireta
(extrínseca, instrumental) para o desenvolvimento” (SANCHO, 2004, p. 173). Sem liberdade
não existe desenvolvimento moralmente justificado, e as necessárias e indispensáveis
condições de bem-estar individual e social se realizam a partir da expansão das liberdades
substantivas.
A busca pelos bens e outras riquezas não representa o objetivo primordial para a
avaliação e a estruturação da qualidade de vida das pessoas e do equilíbrio social, mas são as
liberdades substantivas que atestam a legitimidade moral da conquista das condições materiais
2
O afastamento do valor moral substantivo da liberdade das condições de sobrevivência das pessoas, da
formação plural e das instituições sociais, particularmente aquelas que são responsáveis por viabilizar a
justiça, foi contextualizado por Höffe (1991, p.13): “Se desacredita quem apenas fala de direitos à liberdade e
de direitos democráticos de cooperação, mas não os converte em realidade. Ainda se desacredita quem age
contra o princípio fundamental da justiça política procedimental, quem, portanto, em vez da divisão dos
poderes e de um pluralismo político, cultiva uma concentração sem igual de força. E, por fim, se desacredita,
e novamente por razões de justiça, quem atribui aos dominadores, portanto, a si mesmo, privilégios extremos,
Não em ultima instância, reagimos hoje contra uma economia planificada e sob comando, pois não somos
determinados apenas por considerações econômicas”.
33
necessárias para a convivência humana e social. Nesse sentido, pode-se afirmar que o valor e
a importância das liberdades substantivas são anteriores aos bens porque dão condições para
que as pessoas realizem as suas escolhas, as quais ocorrem segundo os objetivos, necessidades
e preferências de cada um, no que está incluída a opção de escolha entre diferentes bens, mais
ou menos importantes.
A afirmação e a expansão das liberdades substantivas têm repercussão imediata sobre
as diferentes dimensões da vida humana e do relacionamento que as pessoas estabelecem com
os demais, com a organização social, com a administração dos recursos ambientais e com as
necessidades para a sobrevivência das futuras gerações. A restrição da liberdade diminui o
crescimento, as potencialidades e a responsabilidade individual e em relação ao conjunto dos
acontecimentos sociais. Muitos dos problemas sociais que estão em evidência na atual
conjuntura têm suas causas relacionadas à negação, limitação ou desconsideração do valor
moral substantivo da liberdade. O debate público, a expressão clara das preocupações, a
publicidade dos conflitos e acontecimentos sociais, a apresentação dos limites para a execução
das demandas e necessidades das pessoas, entre outras, legitimam e fortalecem a prioridade e
o valor da liberdade. Essas afirmações justificam e fortalecem a convicção de que mais
liberdade é sempre mais vantajoso do que a sua restrição.
1.3 AS LIBERDADES INSTRUMENTAIS
As liberdades instrumentais são meios importantes que se fortalecem mutuamente e
auxiliam decisivamente na implementação de políticas que, de forma interdependente, são
decisivas para o exercício da liberdade global. O exercício das liberdades substantivas é
mediado empiricamente por um conjunto de instrumentos que possibilitam às pessoas
realizarem as suas escolhas e organizarem a sua vida de forma a viverem como desejariam.
Sen (2000) destaca cinco liberdades instrumentais: liberdades políticas, facilidades
econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora. O papel
instrumental da liberdade se relaciona com os diversos tipos de direitos, oportunidades e
habilitações que contribuem para o aumento da liberdade humana em geral e, dessa forma,
são essenciais para as capabilidades das pessoas e do desenvolvimento social. A avaliação das
condições de justiça numa sociedade pluralista necessita de um significativo número de
instrumentos com o objetivo de mediar e capazes de realizar, concretamente, na vida das
34
pessoas os ideais presentes nos planejamentos e objetivos dos diferentes espaços e instituições
sociais. Essa interação possibilita uma relação complementar e interativa entre aqueles que
têm a responsabilidade de planejar, gerir e dirigir uma sociedade e os demais. Nesse sentido, a
participação em diferentes níveis e por meio de múltiplos mecanismos e instrumentos
empreende uma dinâmica estrutural caracterizada pela expressão da liberdade individual e sua
integração ativa com as demais instâncias da organização social.
Cada uma das liberdades instrumentais tem valor próprio, mas é pela intensidade
com que acontecem a integração e a complementaridade que o desenvolvimento se fortalece.
Em determinadas situações e contextos, a prioridade ou promoção de um tipo de liberdade
pode ser decisiva para o aprimoramento e a garantia do conjunto das liberdades. A fim de que
as liberdades instrumentais possam se efetivar como integrantes das relações entre as pessoas
e na estruturação do desenvolvimento da sociedade, faz-se necessária a inclusão de diversos
mecanismos e instrumentos que sustentem, fortaleçam e contribuam para o crescimento da
liberdade humana. A inter-relação entre as liberdades instrumentais é necessária, percebida e
sedimentada nos encadeamentos empíricos que se processam no interior das relações sociais,
que, sem se subordinar umas às outras, reforçam-se mutuamente, aperfeiçoando a relação
conjunta em vista do objetivo primordial.
As características específicas e a importância das liberdades instrumentais expressam
o seu vigor na medida de sua integração com a garantia e a promoção das liberdades
substantivas.
1 As liberdades políticas: referem-se aos campos de ação e participação relativas
ao governo e às suas instituições, instâncias e canais que possibilitam ao
conjunto da sociedade o exercício da cidadania. Têm especial importância as
eleições livres (incluindo o direito de votar e ser votado), a liberdade de
escolha dos partidos políticos, a atuação livre da imprensa, a escolha e a
fiscalização dos governantes, entre outros.
2 As facilidades econômicas: referem-se ao acesso aos recursos econômicos de
que as pessoas necessitam e estão disponíveis no mercado ou na natureza. As
facilidades econômicas incluem as condições necessárias e suficientes para a
participação nas relações do mercado, a distribuição da renda e da riqueza, os
programas de crédito, a renda nacional e os intitulamentos da população.
3 Oportunidades sociais: referem-se, especificamente, às oportunidades que a
estrutura da sociedade oferece para que as pessoas vivam melhor. As
condições de acesso à saúde e à educação e às áreas correlacionadas
35
contribuem decisivamente para a melhoria da qualidade de vida e para uma
participação de mais intensa nas instâncias da sociedade. A erradicação do
analfabetismo (especialmente entre as mulheres naquelas sociedades em que a
discriminação entre os sexos ainda é expressiva) e os programas de saúde com
alcance universal são importantes instrumentos para o exercício das liberdades.
4 As garantias de transparência: referem-se à clareza das relações entre as
pessoas e, destas, com a sociedade, assim como aos mecanismos que regulam e
garantem a confiança dos relacionamentos institucionais. A transparência é um
princípio que garante o “segredo” e a clareza das atuações e decisões que
ocorrem nas diversas estruturas sociais. Amparadas por instrumentos jurídicos
e por instituições eficazes, essas garantias têm papel determinante no combate
e inibição da corrupção, da irresponsabilidade financeira e das transações
ilícitas.
5 Segurança protetora: refere-se àqueles mecanismos institucionais, permanentes
ou emergenciais, cujo objetivo é impedir que a população (ou parte dela) tenha
sua vida inviabilizada ou reduzida a condições de pobreza extrema. As
medidas institucionais à disposição da população são de seguridade social,
porque beneficiam a população quando em situação de risco, por exemplo,
quando ocorrem períodos de grande carência de recursos ou em razão de
desastres ambientais, como enchentes, períodos prolongados de seca, entre
outros; também preventivas, quando têm como objetivo a prevenção de
situações específicas, por exemplo, programas de apoio às vítimas do
desemprego, vacinação em massa ou destinação de grande volume de recursos
para a solução ou minimização de certas deficiências sociais, como moradia ou
infraestrutura.
As liberdades instrumentais têm incidência direta sobre a capacidade das pessoas de
forma a se caracterizarem como interdependentes e, com isso, reforçarem umas às outras. As
políticas de desenvolvimento são fortalecidas a partir da garantia e da operacionalidade das
liberdades instrumentais. A partir disso, o crescimento econômico, de forma inter-relacionada,
aumenta a renda e o acesso aos bens e condições ao Estado para investir nos programas de
seguridade social da população. O fortalecimento dessas relações condiciona, direta e
indiretamente, o surgimento de oportunidades sociais que melhoram, significativamente, as
condições de vida das pessoas, aprimoram e sedimentam o ordenamento social e institucional
da sociedade. Os investimentos em programas de educação básica (especialmente das
36
mulheres), saúde, liberdade de imprensa, entre outros, são instrumentos determinantes para o
crescimento econômico (SEN, 1988).
As liberdades instrumentais sustentam a arquitetura de uma sociedade por meio de
variados mecanismos intermediários, que respaldam as ações empreendidas pelo Estado e por
outras organizações públicas ou privadas. Nas sociedades democráticas existem maiores
possibilidades de o desenvolvimento ocorrer com maior segurança em razão das múltiplas
oportunidades de expressão das liberdades, dos mecanismos que garantem a estabilidade das
instituições e, especialmente, porque as ações públicas e os detentores de cargos são
submetidos ao julgamento dos cidadãos por meio de eleições periódicas. O Estado, em
conjunto com a sociedade, tem a responsabilidade de promover e garantir as liberdades em
vista da proteção das capabilidades, da garantia para o exercício da liberdade econômica e das
condições necessárias à sobrevivência.
1.4 AS LIBERDADES E A CONDIÇÃO DE AGENTE
A condição de agente imprime uma característica peculiar na identidade e no agir do
ser humano como membro de uma sociedade e responsável pelos seus destinos. o que o
qualifica como impulsionador do processo de organização e de desenvolvimento do ambiente
onde se encontra. O ordenamento seguro de uma sociedade tem como referencial e critério de
avaliação a ação livre das pessoas e a sua capacidade de estabelecer e fortalecer as relações
que contribuem para a realização pessoal, a integração na dinâmica sociocultural, assim como
lhe dá condições para influenciar ativamente na sua estruturação e no seu desenvolvimento.
Os variados espaços que constituem a dinâmica da organização de uma sociedade
possibilitam, ao mesmo tempo, o exercício da condição de agente e o aprofundamento dessa
característica de forma a constantemente aprimorar a atuação social da pessoa. Ocorre uma
relação de mão dupla, que primeiro identifica a pessoa como sujeito com as condições de
influenciar a organização segura da sociedade e, ao mesmo tempo, aprimora o seu agir num
contínuo exercício pedagógico, confrontando as concepções que a sustentam com os avanços
e os limites oriundos do contexto onde está inserida. A ação das pessoas na estruturação de
uma sociedade ocorre na perspectiva das variadas dimensões, relações e expectativas que
compõem a existência humana, das quais se originam as tensões e as possibilidades de ação
individual e coletiva. A condição de agente é uma dimensão essencial e decisiva para a
37
realização pessoal, o fortalecimento das potencialidades humanas e o desenvolvimento da
sociedade (SEN, 1993).
A condição de agente, expressão que caracteriza a pessoa nesse contexto e nessa
reflexão, está relacionada com diversos instrumentos e particularidades oriundos da sua
formação e dos interesses individuais, assim como das condições estruturais e políticas que
uma sociedade precisa oferecer para o bem-estar e o desenvolvimento do conjunto de
aspirações dos seus membros. Uma estrutura de relações sociais ordenada de maneira
equilibrada, considerando o limite de seus recursos humanos, políticos, ambientais e
materiais, alcança uma ampla variedade de espaços onde se desenvolvem os relacionamentos
entre as pessoas e a organização institucional de uma sociedade, contribuindo diretamente
para a efetivação das metas que as pessoas, livremente, consideram importantes.
Considerando o valor moral substantivo da liberdade, a condição de agente não está
restrita às condições de bem-estar ou às determinações de interesses institucionais ou
corporativos, mas busca a realização dos objetivos que são relevantes e decisivos para a
existência de uma pessoa. Nesse sentido, o valor das pessoas não está limitado à satisfação de
metas previamente definidas ou dependente dos modelos determinados por pré-compreensões
de ordem cultural, religiosa, econômica ou outras que condicionam as opções de escolha, os
padrões de comportamento e os critérios de realização, com base em concepções
antecipadamente determinadas, que suponham uma postura de adaptação e de conformação
restrita aos espaços anteriormente definidos (SEN, 1976).
Caracterizar a pessoa como agente possibilita uma abordagem que compreende os
múltiplos horizontes que envolvem a realização humana à luz dos objetivos que ela se propõe
alcançar por diferentes razões, que podem coincidir ou não em determinado momento da sua
existência, da mesma forma que em outros contextos ou situações, até mesmo similares,
podem ser divergentes ou contraditórios. As considerações sobre a ação livre das pessoas
precisam contemplar, além do natural desejo de bem-estar, o conjunto de objetivos almejados
e as possibilidades de sua efetivação, conforme destaca Sen (2001, p. 103):
A condição de agente de uma pessoa refere-se à realização de objetivos e valores
que ela tem razão para buscar, estejam eles conectados ou não ao seu próprio bem
estar. Uma pessoa como agente não necessita ser guiada somente por seu próprio
bem estar, e a realização da condição de agente, refere-se ao seu êxito na busca da
totalidade de seus objetivos e finalidades ponderados (considered).
38
A condição de agente é um conceito amplo que influencia os variados aspectos da
vida de uma pessoa e as relações que decorrem do contexto onde ela está inserida. Por isso,
em situações peculiares, a busca do bem-estar e a própria compreensão da condição de agente
adquirem diferentes prioridades. O ato de escolher é sempre relevante para a pessoa,
independentemente de quais forem as motivações e os resultados que alcançará, e isso não
invalida nem desmerece as demais escolhas realizadas em situações similares ou por outros
em conjunturas diferentes. Nesse sentido, a afirmação do valor moral substantivo da liberdade
como fundamento de uma organização social justa caracteriza o ato de escolha individual
como decisivo e referência para a compreensão da ideia geral de liberdade.
A busca do bem-estar de uma pessoa ou de um grupo integra parte das necessidades
básicas de sobrevivência e de participação na vida social. Especialmente em situações de
graves desigualdades sociais ou de discriminação de ordem cultural ou religiosa, que
prejudicam, normalmente, os mais pobres e as mulheres, a condição de bem-estar é um
componente essencial para o exercício da condição de agente. A possibilidade de acesso ao
mercado de trabalho, especialmente para as mulheres, a oportunidade de interação por meio
das relações comerciais e dos sistemas de educação e saúde bem organizados apresentam-se
como referências decisivas para o equilíbrio de uma sociedade. As desigualdades excessivas
nas condições de bem-estar geram graves problemas de injustiça entre as pessoas e dificultam
a implantação de políticas públicas eficazes; adulteram o exercício do poder; comprometem o
conceito de Estado e reduzem a pessoa a um papel passivo e com condições mínimas ou nulas
de realização. Essa disparidade impede que parte significativa das pessoas tenha a liberdade
de buscar diferentes formas de realização do seu bem-estar (SEN, 1990).
A busca de uma organização social justa precisa considerar que a satisfação das
condições de bem-estar é um critério fundamental com condições de influenciar nas demais
relações humanas, sociais e ambientais. Especificamente, nas situações ou sociedades que
discriminam e subjugam as mulheres, culturas e raças minoritárias ou grupos tradicionalmente
diminuídos pelo sistema de castas ou pré-conceitos historicamente arraigados, a condição de
bem-estar é um critério determinante para a construção do equilíbrio entre os diferentes
espaços e pessoas, contemplando, dessa forma, os variados fatores que caracterizam um
determinado ambiente social.
Especial atenção deve ser dada às condições de bem-estar da mulher pela relevante e
peculiar influência que exerce na família e nas demais instituições, assim como nos espaços
intermediários da sociedade. Podem-se destacar, entre outros, a educação e a formação dos
valores sociais, políticos e culturais, o cuidado da saúde e com as condições de vida e de
39
relacionamento das pessoas na família e na comunidade. O mesmo destaque ocorre por
ocasião do exercício de tarefas políticas, ao mesmo tempo decisivo e simbólico, e quando
ocupa posições destacadas na condução da organização do conjunto da sociedade,
desempenhando cargos de responsabilidade pública (SEN, 2001).
A busca da igualdade entre homens e mulheres não é um tema secundário que pode
ser protelado considerando necessidades sociais mais urgentes. Existem privações e
sofrimentos sem qualquer justificativa de ordem moral ou outra, em diferentes graus e
contextos, que não legitimam o abrandamento ou a desconsideração dessa problemática por
qualquer abordagem. A negligência em relação a problemáticas de tal relevância, na busca de
uma convivência justa entre as pessoas, compromete negativamente o equilíbrio e a
estabilidade política da estrutura social, conforme destaca Sen (2000, p. 222):
Também indícios muito difusos de necessidades femininas negligenciadas em
todo o mundo. Existem razões excelentes para trazer à luz essas privações e manter
firmemente a eliminação dessas iniquidades na ordem do dia.
Mas também ocorre que o papel limitado da condição de agente ativa das mulheres
afeta gravemente a vida de todas as pessoas homens e mulheres, crianças e
adultos. Ainda que haja razões de sobra para não abrandar a preocupação com o
bem-estar e o mal-estar das mulheres e para que se continue a atentar para as
privações e sofrimentos femininos, existe também uma necessidade urgente e básica,
particularmente nesse momento, de adotar uma abordagem voltada para a condição
de agente na pauta feminina.
Talvez o argumento mais imediato para que haja um enfoque sobre a condição de
agente das mulheres possa ser precisamente o papel que essa condição pode ter na
remoção das iniquidades que restringem o bem-estar feminino.
A condição de agente é uma característica fundamental para a superação de situações
que ameaçam o bem-estar das pessoas. Especificamente em relação à situação das mulheres,
iniciativas que fortalecem o desenvolvimento das potencialidades individuais e a participação
ativa nas esferas públicas, mediadas por ações que permitem o acesso à alfabetização e a um
sistema educacional mais qualificado, investimentos em políticas de saúde, direito à
propriedade e ao trabalho fora de casa, participação no sistema eleitoral com voz ativa e
direito de votar e ser votada, entre outros, têm impacto imediato e duradouro sobre a avaliação
do bem-estar e, por consequência, sobre o conjunto da sociedade. As políticas de promoção
humana e dos direitos sociais têm poder de incentivar e influenciar a superação de graves
deficiências que muitas sociedades enfrentam, integrando as pessoas, especialmente aquelas
40
vítimas de estruturas políticas injustas, incluindo-as na busca de condições para uma
convivência cada vez mais justa e equitativa.
Esse nível de intervenção por parte do Estado ou de outras instituições ou iniciativas
sociais identifica-se com as políticas de segurança protetora que buscam o resgate da condição
de não agente a que estão submetidas muitas pessoas, especialmente as mulheres e os que lhes
são mais próximos, com os quais têm uma relação de responsabilidade ou vínculos familiares.
Ao mesmo tempo, sua implementação tem um caráter preventivo, seja para evitar o
aprofundamento das gritantes desigualdades, seja para a legitimação de outras
impulsionadas por interesses de origem econômica, cultural ou religiosa (SEN, 1986, p. 167).
Inúmeras experiências empíricas confirmam o resgate da condição de agente,
especialmente do bem-estar e da atuação política das mulheres, por meio de ações conjugadas
que possibilitam aos beneficiados um processo de reconstrução da autoestima e da identidade
individual, acompanhada da efetiva participação política na condução dos destinos da
sociedade. Podem ser destacadas as políticas de alfabetização, a implantação de programas de
saúde com grande alcance social e as políticas de financiamento público visando ao
desenvolvimento das iniciativas populares.
Focalizar as condições de bem-estar como um critério único de avaliação da
realização das pessoas e da organização de uma sociedade compromete negativamente o
conceito de pessoa, tornando-a dependente de um referencial exterior, que muitas vezes pode
lhe ser estranho. Entretanto, quando integrado com as necessidades e as amplas relações que
compõem a vida humana, o bem-estar tem ampla e decisiva contribuição nas possibilidades
de as pessoas influenciarem na mudança da realidade social e na construção de relações justas
com os demais, com a organização das instituições e com o uso adequado dos recursos
ambientais.
Entre a condição de bem-estar e a condição de agente ocorre uma relação de
dependência e complementaridade. O bem-estar contribui decisivamente para a mudança das
condições de vida material das pessoas, tendo incidência direta sobre as outras dimensões que
caracterizam a convivência humana e a estruturação da sociedade. Por sua vez, a condição de
agente é uma característica que torna a pessoa sujeito ativo de mudanças, não limitado a
interesses ou concepções restritivos. Entre as duas características aprofunda-se a
interdependência, pois a ação do agente visa, entre outros objetivos, à realização do seu bem-
estar, cujo êxito está relacionado com a efetivação das metas propostas e dos valores que a
pessoa busca realizar de acordo com o contexto onde está inserida. Na condição de agente,
além da busca do seu bem-estar, a pessoa participa ativamente da organização da sociedade
(SEN, 1999).
41
A atuação livre de uma pessoa é uma dimensão indispensável para a garantia de uma
organização justa e equilibrada da sociedade e isso inclui, especialmente, os direitos políticos
e a livre expressão. Nas situações nas quais as pessoas são privadas dessas prerrogativas,
juntamente com o bem-estar, ocorre o que se pode chamar de “condição de não agente”, que
afeta o equilíbrio do ordenamento social, priva a possibilidade de escolha das pessoas e
confunde a compreensão e o processo de desenvolvimento.
A condição de agente confere às pessoas as qualidades necessárias para uma atuação
autônoma por meio de diversos mecanismos e de instrumentos, dos quais se podem destacar:
realizar as suas escolhas pessoais sem abusivas dependências de terceiros; organizar as suas
vidas livremente; escolher entre diferentes alternativas os governantes; expressar sua forma de
pensar e organizar ou participar de associações segundo seu livre-arbítrio; ter iniciativas de
ordem econômica, entre outras. Esse conjunto de opções é decisivo para a avaliação da
dignidade humana. O valor moral substantivo da liberdade caracteriza-se como fator
imprescindível para o desenvolvimento das capabilidades e das iniciativas individuais, assim
como é condição vital para o vigor e a eficácia dos empreendimentos e das políticas sociais
(SEN, 1993).
A expansão das liberdades é um critério fundamental para que a pessoa desenvolva a
sua condição de agente, pois engloba as diversas relações e perspectivas que integram a
existência humana. Na condição de agente, a pessoa não apenas amplia as suas capabilidades
ou contribui com o processo de desenvolvimento social, mas também age de maneira
autônoma. A autonomia é fundamental para a identidade individual de uma pessoa, para a
definição do seu papel e sua importância no conjunto da sociedade, até influenciar no
processo de mudança, de organização e de desenvolvimento social. A pessoa, na condição de
agente, participa de maneira autônoma e ativa, contribuindo com a transformação e o
equilíbrio das relações sociais e ambientais, agindo para a melhoria das condições de vida de
todos.
1.5 AS LIBERDADES E AS RELAÇÕES DE MERCADO
A oportunidade que as pessoas têm de participar das relações de mercado está
implícita no valor moral substantivo da liberdade. O intercâmbio econômico, representado
pelas transações comerciais, integra a identidade das ações humanas, as suas necessidades e a
42
própria estruturação da convivência em sociedade, que evolui e se complexifica conforme as
demandas da arquitetura social. Além de possibilitar as escolhas individuais importantes para
a vida das pessoas, as relações de mercado possibilitam-lhes fazerem as escolhas que
consideram importantes para o seu bem-estar, a sua realização pessoal e a sua participação e
integração na dinâmica das relações sociais (SEN, 2000).
A negação da liberdade de atuação do mercado se expressa não restritamente à
interferência excessiva ou exclusiva do Estado na organização da economia, mas também
quando uma sociedade nega as condições e os mecanismos para que as pessoas exerçam e
desenvolvam aquelas características que lhes são específicas, que são uma melhor
participação social e os mecanismos para influenciar no processo de desenvolvimento. Essa
negação se revela no impedimento de escolha entre diferentes tipos de trabalhos ou
profissões; no domínio de governos tirânicos; na negação do direito de trabalhar fora de casa,
especialmente para as mulheres; na exclusão de acesso às atividades comerciais para pessoas
ou grupos, ou, mesmo, de determinados produtos pelos interesses do Estado ou por grupos
monopolistas; nas ainda persistentes situações de analfabetismo, escravidão e trabalho
infantil, entre outras.
A não participação das pessoas na estruturação e nos benefícios da vida econômica
de uma sociedade determina outras formas de privação de ordem individual e coletiva, entre
as quais se podem destacar a violação das demais liberdades, a limitação do exercício dos
direitos fundamentais de uma sociedade democrática e a diminuição da autoestima. Da mesma
forma, esse contexto de privações impede, significativamente, a evolução da concepção de
mundo, pois limita o universo de relacionamentos a um espaço predeterminado e com
limitadas possibilidades de integração com outras maneiras de compreender e avaliar as suas
formas de pensar e de agir.
A liberdade de participação no mercado competitivo está entre as variadas
perspectivas para o exercício das liberdades substantivas, as quais podem ser sintetizadas nas
oportunidades que uma pessoa deve ter para buscar os objetivos que considera importantes
para o seu bem-estar. O valor moral substantivo da liberdade destaca a necessidade de as
pessoas poderem fazer as suas próprias escolhas e, em decorrência desse entendimento,
ninguém pode ser forçado a viver segundo uma forma ou estilo de vida previamente
determinado, por maiores que sejam as vantagens que possa desfrutar (SEN, 2002).
A condição de agente pressupõe a capacidade e as condições de a pessoa participar
das instituições da maneira criativa e autônoma. Especialmente, a atuação nas relações de
mercado de forma integrada tem um papel relevante para o desenvolvimento social e para a
43
liberdade de escolha das pessoas. Quando essa oportunidade é negligenciada, ocorre o
estreitamento das opções para a organização do tipo de vida que uma pessoa considera
importante e a diminuição das oportunidades de diversos tipos, seja das condições de bem-
estar, seja das convicções individuais, por exemplo, a seleção de valores e a convivência com
diferentes concepções de mundo (SEN, 2001).
A necessária consideração sobre o direito de participação nas relações de mercado
precisa ser entendida com base uma abordagem múltipla e integrada, considerando as
diversificadas maneiras de que as sociedades dispõem para a sua estruturação. As instituições
e outras iniciativas possuem características específicas, que respondem a interesses e
objetivos diferentes e podem, em certas situações, se organizar de forma complementar e
interdependente e, em outras, atuar segundo perspectivas bastante distintas e com metas
diferenciadas. A ação não integrada das diferentes instituições, interesses e pessoas,
consequência de distanciamentos provenientes de metas normalmente limitadas por objetivos
imediatos, compromete a estruturação justa das relações sociais e das suas instituições, porque
distancia a atuação concreta dos valores morais. A arquitetura econômica moderna reflete essa
dicotomia, conforme afirma Sen (1999, p. 18): “Outra característica surpreendente é o
contraste entre o caráter conscientemente „não-ético‟ da economia moderna e sua evolução
histórica, em grande medida, como um ramo da ética.”
Especificamente sobre a relação do Estado e do mercado, é preciso ressaltar que essa
atuação, ao mesmo tempo tensa e inter-relacionada, possibilita, pela liberdade de ação e de
suas características próprias, o desenvolvimento de dimensões importantes e decisivas para a
melhoria das condições de vida das pessoas. O mercado tem sua base de organização e suas
prioridades voltadas para a produção e administração de bens privados; de outra parte, o
Estado tem seus objetivos e interesses voltados para os bens públicos que beneficiam o
conjunto dos membros de uma comunidade. Contudo, em determinados contextos e
necessidades o desempenho de ambos pode contemplar as metas públicas e privadas.
As condições de atuação do mercado e de outras instituições, particularmente do
Estado, quando exclusivas ou com mecanismos e interesses corporativos, impedem o
desenvolvimento equilibrado da sociedade. Sendo a liberdade um referencial fundamental, é
preciso que as diferentes formas de manifestação possam coexistir e, de forma equitativa,
contribuir para uma organização social justa. Particularmente, a existência livre das relações
de mercado, com suas especificidades voltadas para a eficiência e a produção de bens, de
maneira inter-relacionada com outras instituições, pode ser decisiva para a organização segura
de uma sociedade, como destaca Sen (2000, p. 169):
44
Não se pode duvidar das contribuições do mecanismo de mercado para a eficiência,
e os resultados econômicos tradicionais, nos quais a eficiência é julgada segundo a
prosperidade, a opulência e a utilidade, podem ser estendidos também para a
eficiência no que se refere as liberdades individuais. Mas esses resultados de
eficiência não podem sozinhos, garantir a equidade distributiva. O problema pode
ser particularmente grande no contexto das liberdades substantivas, quando existe
um acoplamento das desvantagens (como por exemplo, a dificuldade de uma pessoa
incapacitada ou sem preparo profissional para aferir uma renda sendo reforçada pela
sua dificuldade de fazer uso da renda para a capacidade de viver bem). Os
abrangentes poderes do mecanismo de mercado têm de ser suplementados com a
criação de oportunidades sociais básicas para a equidade e a justiça social.
A legitimidade moral da atuação do Estado e do mercado precisa ser avaliada
considerando a melhoria das condições de vida das pessoas, juntamente com as outras
dimensões que caracterizam o ordenamento social, dentre as quais se podem destacar o uso
equilibrado dos recursos ambientais, o desenvolvimento sustentável e a responsabilidade
moral com as futuras gerações. Considerando que por meio dos recursos oferecidos pelo
mercado as pessoas podem interagir de diferentes formas e alcançar objetivos variados, que
satisfaçam aos seus planos, metas e necessidades, os quais beneficiem a todos, faz-se
necessário que a sua estruturação e seu funcionamento sejam acompanhados por condições
sociais e políticas adequadas e por um claro ordenamento jurídico, que contenha as
necessárias garantias para a sua atuação, ao mesmo tempo em que previna possíveis
desequilíbrios que venham a dificultar a estruturação e manutenção equitativa do conjunto da
sociedade.
O fortalecimento dos mecanismos do mercado representa uma opção política pelo
reconhecimento do valor moral substantivo da liberdade e a oportunidade de que as pessoas
busquem a realização e o desenvolvimento daquelas dimensões que consideram importantes
para a sua vida pessoal, sua inserção no ordenamento social e que lhes deem condições de
atuar em benefício do seu bem-estar. As condições sociais, políticas e legais precisam estar
integradas, sustentadas e legitimadas por uma ampla rede de instituições, de organizações e de
disposições nacionais e internacionais, com objetivos explícitos para oferecer oportunidades e
recursos que todos possam compartilhar.
A atuação do mercado de forma equilibrada, ao mesmo tempo em que preserva a sua
dimensão competitiva e livre, está diretamente relacionada com as condições políticas e
sociais para o seu desenvolvimento. Por isso, especialmente o Estado, mas também as demais
instituições públicas e privadas, precisam ter especial interesse na expansão de iniciativas que
deem oportunidades às pessoas de participarem ativamente e de usufruírem dos benefícios
que venham a ser oferecidos. Entre outras, podem-se destacar o exercício dos direitos
45
políticos e civis, o acesso e a organização de um sistema educacional com qualidade, a
disposição de condições de assistência à saúde e segurança, o gerenciamento responsável dos
recursos públicos e a distribuição equilibrada dos bens disponíveis (KOLM, 2000).
A liberdade de atuação do mercado, numa conjuntura caracterizada por contradições
e grandes demandas sociais, precisa perceber a íntima relação que se estabelece entre os
direitos individuais e coletivos e a busca de soluções para as desigualdades, especialmente das
econômicas. As dificuldades e interesses que dinamizam o conjunto das relações sociais
precisam ser integrados e corretamente equacionados segundo o do valor moral substantivo da
liberdade, de tal forma que não impeçam o relacionamento e o fortalecimento interdependente
entre as diferentes formas de organização e relacionamento da sociedade. Nesse sentido,
afirma Sen (1994, p. 36):
Eu argumentei que a importância de tais direitos vai além das vantagens pessoais
que os portadores desses direitos derivam deles, que uma assimetria entre os
direitos políticos e os outros tipos de vantagens, incluindo as econômicas. Mas há,
além disso, uma conexão mais profunda. A compreensão e a conceituação de que as
próprias necessidades econômicas podem requerer do exercício dos direitos políticos
e civis, discussões abertas e mudanças públicas. As vidas humanas sofrem com os
vários tipos de miséria e privações, algumas mais amenas para se aliviar do que
outras. A totalidade do sofrimento humano estaria numa base indiscriminada para a
análise social das necessidades. Há muitas coisas que nós poderíamos ter boas
razões para valorizar se elas fossem possíveis, talvez, até mesmo a imortalidade;
mesmo assim nós não as vemos como necessidades. A nossa concepção de
necessidades reflete nossa análise da natureza das privações, e também nosso
entendimento do que pode ser feito em relação a elas. Os direitos políticos,
incluindo a liberdade de expressão e discussão, não são apenas essenciais na indução
das respostas políticas para com as necessidades econômicas, eles são também
centrais para com a conceituação das próprias necessidades econômicas.
Considerando as transformações ocorridas nas últimas décadas nas relações
internacionais, caracterizadas pelo acelerado processo de globalização, as ainda intrincadas
relações entre as nações e culturas e o debate que ocorre em muitos ambientes sobre a
identidade e a atuação do mercado, é esclarecedora a manifestação de Cardoso (2008, p. 53):
“Os mercados contam, mas os mercados, principalmente os de países populosos, não
dispensam estados que os apoiem.”
Uma estrutura social que, com base na compreensão do valor moral substantivo da
liberdade, garante a atuação do mercado precisa ter entre suas prerrogativas a garantia da
estabilidade política e jurídica para oferecer às pessoas e às instituições as condições
46
necessárias de manifestação das diferentes formas de organização e de expressão do
pensamento e possibilitar ao conjunto dos membros da sociedade opções de escolha que
preencham as motivações e os interesses individuais; o desenvolvimento dos diferentes
talentos; o atendimento das necessidades familiares, sociais e culturais e, finalmente, a efetiva
contribuição com o funcionamento equitativo da sociedade. Nesse sentido, a democracia é o
sistema que conta com um amplo conjunto de instituições e de estruturas com mecanismos
capazes de equilibrar as diferenças que constituem o interior de uma sociedade, de atender
equitativamente às necessidades dos seus membros e ordenar os interesses individuais e
coletivos.
Sabendo da importância da ação livre das pessoas e das organizações sociais, a
relação que se estabelece entre, de um lado, a liberdade de organização e atuação do mercado
e, de outro, a ação do Estado como mediador e impulsionador das diferentes formas de
estruturação da sociedade, ambos precisam ter seu horizonte de objetivos voltado para as
pessoas, entendidas na condição de agentes, com o objetivo primordial de organizar a
arquitetura da sociedade e dos amplos e necessários cenários onde ocorre todo o processo de
estruturação dos valores, princípios, leis e práticas que determinam o processo de
desenvolvimento econômico e social. A legitimidade moral da ação dos mecanismos de
mercado e da intervenção do Estado está diretamente relacionada com a concepção de pessoa
que justifica e define os parâmetros da sua atuação. Essa caracterização justifica o agir
socialmente integrado e organizado do mercado, assim como afirma a autonomia da pessoa
por ocasião do ato de escolha, conforme sublinha Sen (1976, p. 219): “A eventual garantia
para a liberdade individual não pode ser encontrada no mecanismo da escolha coletiva, mas
no desenvolvimento de valores e preferências que respeitam a privacidade de cada um e as
escolhas pessoais.”
O atual estágio de organização das sociedades e, particularmente, o processo de
produção têm se caracterizado pelo crescente distanciamento entre a estrutura de relações
econômico-financeiras e a reflexão ética (SEN, 1999). Essa dicotomia ocorre porque a
economia se organizou prioritariamente, e muitas vezes exclusivamente, buscando atingir os
fins previamente determinados, especificamente o aumento do bem-estar e dos ganhos
individuais e corporativos, não se importando com as possíveis consequências sobre,
especialmente, os recursos naturais, as futuras gerações e o equilíbrio das relações entre as
pessoas, as nações e as culturas. Esse distanciamento pode ser percebido pelo aumento dos
níveis de produção de bens de consumo, acompanhado pelo crescimento dos níveis de
pobreza e das desigualdades internas e entre os países (CAPRA, 1996).
47
A aproximação entre a ética e a estrutura econômica das sociedades oferece as
condições necessárias para a avaliação e o julgamento da relação entre os objetivos traçados,
os meios para a sua viabilidade e as consequências que isso acarreta para os diferentes atores
envolvidos nesse processo, conforme alerta Sen (1993, p. 204) ao analisar a atuação do
mercado financeiro, a responsabilidade e as suas consequências: “No contexto atual, que é,
analisando a ética e a economia das finanças, a conexão pode ser particularmente crucial. A
inter-relação entre responsabilidade e conseqüências é, de fato, profundamente relevante para
a ética financeira, e é importante examinar como as conexões operam.”
A dicotomia entre esses campos não apenas prioriza a dimensão econômico-
financeira, como também a vida concreta das pessoas e a estruturação social são orientadas
segundo as regras e os interesses exclusivos da engenharia econômica e dos modelos de
eficiência. O distanciamento entre esses aspectos fundamentais da economia tem como
implicação uma avaliação limitada dos objetivos, dos acontecimentos e das consequências,
assim como das conexões internas e externas que conduzem a resultados contraditórios e
prejudiciais ao equilíbrio social.
O valor moral substantivo da liberdade, considerado como critério de atuação e de
avaliação do agir humano e da organização social, permite uma compreensão mais integrada e
global não apenas dos acontecimentos vistos individualmente, mas também dos diferentes
aspectos, em seu conjunto, que formatam a identidade e o funcionamento de uma sociedade.
Então, as contradições internas e suas manifestações públicas, além de uma análise segundo
as orientações e critérios provenientes dos incontestáveis recursos da engenharia econômica,
são explicitadas e evoluem integrando a riqueza e a crítica provenientes da reflexão ética.
As inúmeras deficiências que caracterizam o ordenamento das relações econômicas
contemporâneas, quando investigadas e compreendidas considerando a necessidade do
equilíbrio geral das ações humanas e sociais, de um lado, denunciam as contradições internas,
a dicotomia e a sobreposição dos interesses que as legitimam e, de outro, sustentam que a
estruturação das relações econômicas “pode tornar-se mais produtiva se der uma atenção
maior e mais explícita às considerações éticas que moldam o comportamento e o juízo
humanos”. (SEN, 1999, p. 25).
Emergem desse contexto questões que abrangem diferentes espaços da vida das
pessoas, assim como a administração, a utilização e a disponibilidade dos bens públicos e
privados, tais como: É possível organizar uma estrutura econômica ética, considerando os
múltiplos interesses presentes no seu interior? O equilíbrio das relações entre a atuação do
Estado e do mercado pode ser pautado por interesses não restritos àqueles marcadamente
48
individualistas ou corporativos? A economia ética pode beneficiar o conjunto das
necessidades e das aspirações humanas? São possíveis princípios ou critérios de distribuição
de bens e recursos que sejam comuns ao Estado e ao mercado? O desenvolvimento
econômico e social tem condições de atender às necessidades das atuais e das futuras gerações
e, ao mesmo tempo, utilizar de forma equilibrada os recursos ambientais? O que diferencia
um ordenamento socioeconômico ético de uma estrutura não ética? Que consequências
justificam a atuação de pessoas na busca por relações econômicas, políticas e sociais
caracterizadas por sérias preocupações éticas?
3
A atenção para com a ética na economia e na estruturação das relações econômicas
com base no valor moral substantivo da liberdade oferece referências de valor incontestável
para uma compreensão ampla do horizonte de investigação, de avaliação e de proposição de
estruturas que respondam ao atual estágio de desenvolvimento da sociedade, particularmente
ao acelerado processo de globalização, às crises econômicas, às deficiências encontradas em
grande parcela das democracias contemporâneas, assim como à necessidade de buscar o seu
fortalecimento e a sua estabilidade, aos desafios do multiculturalismo e às ainda persistentes
desigualdades presentes em diferentes níveis.
A organização das relações econômicas, caracterizadas pela prioridade dada aos
mecanismos de mercado, garantiu que a realização da utopia do Estado de bem-estar social
seria capaz de preencher as demandas da realização humana, o que conduziu, entre outras
situações, a um estreitamento do conceito de pessoa, à instrumentalização da compreensão do
valor moral substantivo da liberdade, do equilíbrio das relações entre os membros das
sociedades e as instituições, além de imprimir um modelo de vida baseado na satisfação de
interesses e motivações imediatos, normalmente condicionados à utilidade e ao consumo dos
bens. Isso ocorre porque a compreensão da organização social subjacente tem como referência
básica a necessidade de fomentar a atuação do mercado como principal responsável pelo
desenvolvimento social, com o objetivo alcançar o que se convencionou chamar “Estado de
bem-estar social”, o qual submeteu a estrutura social, política e econômica moderna,
conforme esclarece Sen (1993, p. 520):
3
Na afirmação a seguir Sen (1993, p. 51) expressa parte das deficiências para uma abordagem ética nas
relações econômicas: “É difícil, nesse contexto, desvincular o argumento para encorajar negócios éticos, indo
além dos tradicionais valores de honestidade e confiabilidade e também levar em consideração a
responsabilidade social (por exemplo, em temas como degradação ambiental e poluição).”
49
A avaliação básica do mecanismo de mercado na economia moderna está baseado,
em grande parte, no assim chamado „teorema fundamental da economia do bem-
estar‟. Isto tem relação somente com mercados que são perfeitamente competitivos e
concentra-se no que acontece quando os mercados estão em equilíbrio e não nos que
estão em estado de desequilíbrio.
A economia do bem-estar, de matriz utilitarista
4
, dominou a economia moderna
fomentando um comportamento autointeressado segundo critérios baseados na utilidade. A
referência a partir do que se poderia julgar o êxito das realizações é a soma total das
utilidades, as quais possuem valor intrínseco e são critério para a avaliação das ações
empreendidas e para a normatização da organização da sociedade e das relações entre os
diferentes atores sociais. O critério de decisão das ações ocorre considerando o conjunto total
das realizações empreendidas. (SEN, 1999).
O domínio da concepção utilitarista na reflexão filosófica e na organização da
sociedade foi criticado por Rawls (2000a, p. 24) por ocasião da publicação da obra Uma
4
Sen (2000, p. 77) sintetiza os principais fundamentos que compõem a tradicional reflexão utilitarista,
destacando as características, os representantes e os critérios para a avaliação da justiça: “O utilitarismo tem
sido a teoria dominante e inter-adia, a teoria da justiça mais influente mais de meio século. A
tradicional economia do bem-estar e das políticas públicas foi durante muito tempo dominada por essa
abordagem, iniciada em sua forma moderna por Jeremy Bentham e adotada por economistas como John
Stuart Mill, Willian Stanley Jevons, Henry Sidgwick, Francis Edgeworth, Alfred Marshall e A. C. Pigou.
Os requisitos para a avaliação utilitarista podem ser divididos em três componentes distintos. O primeiro
deles é o „consequencialismo‟ [consequencialism] um termo nada simpático -, segundo o qual todas as
escolhas (de ações, regras, instituições etc.) devem ser julgadas pelas consequências, ou seja, pelos resultados
que geram. Esse enfoque sobre o estado de coisas consequente rejeita particularmente a tendência de algumas
teorias normativas a considerar acertados determinados princípios independentemente de seus resultados. Na
verdade, o enfoque vai além de exigir apenas a sensibilidade para as consequências, pois determina que, em
ultima análise, nada a não ser as consequências pode ter importância. O grau de restrição imposto pelo
consequencialismo terá de ser julgado mais adiante, mas vale a pena mencionar agora que isso deve em parte
depender do que é ou não incluído na lista de consequências (por exemplo, se uma ação executada pode ou
não ser vista como uma das „consequências‟ dessa ação, o que - em sentido óbvio - ela claramente é).
Outro componente do utilitarismo é o „welfarismo‟ [welfarismo], que restringe os juízos sobre os estados de
coisas à utilidades nos respectivos Estados (sem atentar diretamente para coisas como a fruição ou a violação
de direitos, deveres, etc.). Quando o welfarismo é combinado com o consequencialismo, temos o requisito
que toda escolha deve ser julgada em conformidade com as respectivas utilidades que ela gera. Por exemplo,
qualquer ação é julgada segundo o estado de coisas consequente (devido ao consequencialismo), e o estado
de coisas consequente é julgado de acordo com as utilidades desse estado (devido ao welfarismo).
O terceiro componente é o ranking pela soma” [sum-ranking], pelo qual se quer que as utilidades de
diferentes pessoas sejam simplesmente somadas conjuntamente para se obter seu mérito agregado, sem
atentar para a distribuição desse total pelos indivíduos (ou seja, a soma das utilidades deve ser maximizada
sem levar em consideração o grau de desigualdade na distribuição das utilidades). Os três componentes
juntos oferecem a fórmula utilitarista clássica de julgar cada escolha a partir da soma total de utilidades
geradas por meio dessa escolha.
Nessa visão utilitarista, define-se injustiça como uma perda agregada de utilidade em comparação com o que
poderia ter sido obtido. Uma sociedade injusta, nessa perspectiva, é aquela na qual as pessoas são
significativamente menos felizes, consideradas conjuntamente, do que precisariam ser. A concentração sobre
a felicidade ou prazer foi removida em algumas formas modernas de utilitarismo. Em uma dessas variações,
define-se utilidade como realização de desejo. Nessa visão, o que é relevante é a intensidade do desejo que
está sendo realizado, e não a intensidade da felicidade que é gerada.”
50
Teoria da Justiça, porque considera como critérios de ação da pessoa e da estruturação das
relações sociais, entre outros, a valoração da ação das instituições pela maximização do bem-
estar do grupo e busca atingir o mais alto grau de satisfação dos desejos individuais como
condição para uma sociedade adequadamente ordenada. A alternativa apresentada pelo autor é
destacada na seguinte afirmação:
muitas formas de utilitarismo, e o desenvolvimento dessa teoria tem continuado
nos últimos anos. Não farei aqui um levantamento de suas formas nem levarei em
conta os numerosos aperfeiçoamentos encontrados em discussões contemporâneas.
Meu objetivo é elaborar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao
pensamento utilitarista em geral e consequentemente a todas as suas diferentes
versões. Acredito que o contraste entre a visão contratualista e o utilitarismo
permanece essencialmente a mesma em todos esses casos. Portanto, compararei a
justiça como equidade com as conhecidas variantes do intuicionismo, do
perfeccionismo e do utilitarismo a fim de mostrar as diferenças subjacentes da
maneira mais simples. Tendo em mente esse objetivo o tipo de utilitarismo que
descreverei aqui é a rigorosa doutrina clássica que em Sidgwick tem talvez sua
formulação mais clara e acessível. A idéia principal é a de que a sociedade está
ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas instituições mais
importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de
satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus
membros.
Os argumentos de Rawls em sua crítica ao utilitarismo referem-se, especificamente,
ao distanciamento entre os conceitos de justo e de bem, de modo que não existe dependência
do justo para definir o que é o bem. Ocorre, nesse sentido, a prioridade na busca do bem como
objetivo final do agir individual e da estruturação da sociedade, em detrimento do justo. Não
interessam ao utilitarismo as diferenças entre as pessoas; as comparações interpessoais
perdem sua importância e a vontade de uma pessoa pode ser estendida para toda a sociedade.
A realização da justiça depende da soma das satisfações; logo, é justo que uma pessoa
maximize o seu sistema de desejos, assim como que a sociedade queira obter o máximo de
satisfação em relação a todos os seus membros. As pontuações de Rawls condenam a não
observação das diferenças entre as pessoas e a redução das decisões justas a cálculos de
eficiência. A conduta moral de uma pessoa e da sociedade está relacionada e depende da
maximização do bem, conforme afirma Rawls (2000a, p. 26):
51
Ora, parece que a maneira mais simples de relacioná-las é a praticada pelas teorias
teleológicas: o bem se define independentemente do justo, e então o justo se define
como aquilo que maximiza o bem. [...] É natural pensar que a racionalidade consiste
em maximizar algo e que, em questões morais o que deve ser maximizado é o bem.
De fato, é tentador imaginar como evidente a afirmação de que as coisas deveriam
ser planejadas de modo a conduzir ao bem maior.
A concepção utilitarista de justiça limita características decisivas da vida das pessoas
e da organização social ao critério da utilidade, na medida em que proporciona maior prazer,
felicidade e a soma de um maior número de satisfações para o conjunto dos seus membros.
Assim, pode-se concluir que “tudo isso proporciona uma base informacional muito restrita, e
essa insensibilidade generalizada constitui uma limitação da ética utilitarista”. (SEN, 2000, p.
75).
A proposição que tem como um dos seus objetivos ampliar o conjunto de referências
que integra os indicativos para a avaliação das condições de justiça agrega dimensões que
transcendem a distribuição e a valoração limitadas às utilidades, às realizações mentais
restritas ao prazer, à felicidade ou a satisfações imediatas, assim como ao acesso aos bens e à
riqueza.
Diferentemente do utilitarismo, existem outros aspectos que precisam ser
considerados, particularmente as liberdades substantivas, porque incluem elementos
importantes para a existência humana e relevantes para a constituição das relações pessoais,
sociais e ambientais. Estes permitem que indicativos sejam prioritários para uma pessoa,
grupo ou realidade específica com determinadas características, mas, em outro contexto,
serem menos importantes e, até mesmo, sem qualquer significado, integrando a base de
referências para a avaliação das condições de justiça.
A maximização do prazer, do bem-estar e da busca da felicidade defronta-se com
outras restrições de caráter cultural e econômico, especificamente representadas pelas
desigualdades econômicas, as quais geram privações que, em determinados contextos, são de
tal forma persistentes que constituem para a concepção de mundo das pessoas e são
legitimadas por estruturas sociais ou tradições culturais e religiosas que geram e justificam
uma ordem determinista da sociedade e um comportamento passivo diante da realidade. As
desigualdades, quando arraigadas na concepção de mundo, impedem as condições e as
possibilidades de projetar perspectivas de realização, desejo, prazer e bem-estar. Quando
vítimas de grandes privações, as pessoas não raras vezes limitam seu horizonte de realização à
resignação silenciosa àquilo que se apresenta diante de si.
52
Ocorre, nesse sentido, um claro distanciamento que caracteriza a organização da
economia moderna entre o predomínio dos objetivos representados pela arquitetura dos
interesses econômicos que se sobrepõem às pessoas e o equilíbrio das relações internas e dos
recursos ambientais. Primeiramente, a contradição se evidencia quando a estrutura
socioeconômica tem suas prioridades voltadas à satisfação dos interesses individuais ou de
grupos corporativos, simbolizados na atuação prioritária, quando não única, da economia de
mercado como base da estruturação e da organização social segundo critérios que satisfaçam
às expectativas estabelecidas pela engenharia econômica, centrados, exclusivamente, na
racionalidade e na objetividade dos seus planejamentos e das suas decisões. As consequências
disso podem ser percebidas na instrumentalização das pessoas, das instituições e dos recursos
disponíveis, o que gera desde a instabilidade político-institucional até o aumento das
desigualdades, que conduzem parte dos países e parcelas significativas das populações à
condição de instrumentos e meios para a satisfação de metas previamente definidas (WHEEN,
2007).
As relações de mercado, ao mesmo tempo em que contribuem decisivamente para o
progresso econômico e seguro da sociedade, precisam ter sua ação sustentada e avaliada por
parâmetros éticos que garantam uma atuação integrada com as necessidades e expectativas do
conjunto da sociedade, assim como contribuam, decisivamente, para a superação dos graves
dilemas que ameaçam o equilíbrio das suas relações, sem, com isso, renunciar a sua
identidade original. A avaliação da atuação dos mecanismos de mercado justifica-se em razão
da necessidade de garantir o valor da liberdade individual como um dos parâmetros, não o
único, para a realização pessoal e a inserção da pessoa no contexto social, da sua importância
para o desenvolvimento, das consequências sobre os diversos campos da organização
socioeconômica e dos conflitos e limites verificados no decorrer do seu agir.
A afirmação de Sancho (2006, p. 144) evidencia a necessidade de se compreenderem
as relações de mercado considerando os seus diferentes mecanismos e instituições, por meio
da revisão dos pressupostos que sustentam e justificam a organização da economia moderna,
objetivando uma atuação eficaz e orientada para uma nova ordem moral, que busque
fortalecer e ordenar as sociedades democráticas, superar o racionalismo econômico e as
graves ameaças que comprometem o equilíbrio das relações sociais, econômicas, políticas e
ambientais.
53
Em minha avaliação, esta renovação intelectual e moral permitem revisar novamente
os pressupostos da economia moderna, de suas instituições e mecanismos, pois
assim se poderá repensar uma transformação da racionalidade econômica
dominante, que por sua vez reoriente eficazmente os projetos social-democratas,
mas além dos limites do liberalismo neutralizador. O mercado necessita de uma
ordem moral e os mecanismos baseados em incentivos egoístas nem sempre
produzem os melhores resultados, nem é o mesmo, negociar baseando-se na coerção
dos grupos de poder fático, que argumentam baseando-se nos princípios da justiça e,
sobretudo não é possível nenhuma mudança significativa nessa direção, se não se
considera (portanto, se não houve preocupação em considerar) com pessoas que
vivem uma cidadania integral, que formam parte essencial da cidadania econômica,
pois não haverá uma renovada social-democracia, sem um desenvolvimento
profundo e global da justiça socioeconômica, sem a reinvenção das instituições
mundiais que reanimem e possibilitem, eficazmente, este processo libertador da
pobreza e das tiranias.
A proposição de uma nova ordem de organização socioeconômica, considerando os
mecanismos de mercado como um dos atores fundamentais da estrutura das sociedades, que
inclui o processo de integração numa ampla rede de relações globalizadas e da busca por um
diferenciado modelo de desenvolvimento sustentável, inclui a renovação dos fundamentos da
economia, destacando parâmetros alternativos àqueles encontrados na economia tradicional
de orientação utilitarista.
Trata-se de buscar um novo horizonte para as políticas econômicas, que considere
outras fontes de informação que integram decisivamente o processo de organização e
equilíbrio das relações humanas, sociais e ambientais (KESSELRING, 2007, p. 184). Nesse
sentido, faz-se necessário compreender, valorizar e fundamentar a identidade dos mecanismos
de mercado, destacando suas características num contínuo processo de integração e
transformação segundo o valor moral substantivo da liberdade.
O que se busca construir é um modelo de organização do mercado caracterizado pela
preocupação com a qualidade de vida das pessoas, com o equilíbrio das relações entre as
instituições e membros da sociedade interna e externamente com os recursos ambientais e
com as futuras gerações. É importante compreender o amplo espectro de expectativas,
necessidades, limites, perspectivas humanas, e não restringir a avaliação à realização do bem-
estar
5
. Novos vetores de avaliação e julgamento emergem a partir da evolução da sociedade,
5
As observações relativas aos limites da abordagem utilitarista não desmerecem certos aspectos que são
essenciais para uma correta compreensão e avaliação de campos específicos e indispensáveis para a
estruturação de uma sociedade, particularmente aqueles que demandam planejamento detalhado, onde uma
ação irresponsável, compromete o funcionamento de setores e de instituições decisivos para o equilíbrio
social, entre as quais se pode destacar a noção de cálculo para a organização da política econômica de um
país. Por isso, Sen (1993, p. 226) especifica: “A avaliação cuidadosa das consequências é primordial para a
54
envolvendo as múltiplas necessidades que compõem a realização humana, as ameaças que
pairam em diferentes lugares e contextos, a escassez de meios e recursos para o
desenvolvimento das capabilidades e dos funcionamentos que integram e caracterizam o agir
humano nas suas diferentes dimensões, impulsionados também por outros atores que
dinamizam o ordenamento social (KESSELRING, 1997).
A ação do mercado, quando independente do contexto onde está inserido, isto é, sem
um claro compromisso com as necessidades das pessoas, com a atuação do Estado e das
demais instituições, com o modelo de desenvolvimento, com a utilização dos recursos
ambientais e com as futuras gerações, entre outras, opera segundo interesses que visam
alcançar objetivos, em grande parte, sem legitimidade moral, porque está desintegrado da
ampla rede de relacionamentos que arquiteta as necessidades, a utilização, a disponibilidade e
a escassez de recursos humanos e ambientais. Logo, a sua atuação do mercado é limitada a
alcançar os seus próprios objetivos.
Por sua vez, a organização da sociedade que integra as relações de mercado com a
ampla rede de interesses presentes em seu interior e orientada pela preocupação com a justiça
envolve a construção de uma fundamentação com base em parâmetros diferenciados e com a
disposição de contemplar o conjunto de atores e de metas na busca de uma estruturação
equitativa, que considere, primeiramente, o valor moral substantivo da liberdade como
fundamento e característica da identidade e das relações humanas, desde as tradicionais
operações de troca até as sofisticadas relações econômicas contemporâneas. Nesse sentido, a
atuação do mercado compõe e caracteriza a evolução da organização econômica e comercial
dos povos; assim, seriam inconsequentes, tanto do ponto de vista da reflexão quanto da
atuação política, ações que visam a sua aniquilação por meio de mecanismos e instrumentos
arbitrários ou estabelecer formas de controle que impeçam sua atuação legítima (SEN, 1993).
A participação livre das pessoas nas relações econômicas faz parte do exercício da
liberdade e é determinante para a realização pessoal e para a justiça social. Dar prioridade ao
valor da liberdade para a construção da identidade de uma pessoa como membro ativo de uma
sociedade é reconhecer a sua característica de sujeito moral e, nesse contexto, não submetida
apenas aos interesses das relações de mercado. Em oposição, a não participação de uma
pessoa nas relações econômicas tem inúmeras consequências pessoais, sociais e para o
ética financeira e não pode ser substituída segundo apelos e interesses independentes das conseqüências. Eu
argumentei, citando exemplos específicos, que as regras e os regulamentos, assim como os códigos de
conduta podem ser seriamente mal direcionados pela tentativa de basear as decisões públicas ou os
comportamentos privados numa deontologia simples das obrigações e preocupações imediatas. Em assuntos
financeiros, não menos do que em outros campos da economia, o significado vai muito além da
proximidade.”
55
processo de desenvolvimento. A ação dos mecanismos de mercado sem uma séria
regulamentação e controle sociais submete a pessoa, as instituições e os recursos disponíveis,
justificando sua utilização na medida da satisfação dos seus interesses. O relacionamento
entre pessoas, mecanismos de mercado e a sociedade, particularmente o Estado, precisa
evoluir num constante processo de integração e complementaridade, conforme esclarece Sen
(2000, p. 22):
É difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa
prescindir do uso muito amplo de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio
social, da regulamentação pública ou da boa condução dos negócios do Estado
quando eles podem enriquecer - ao invés de empobrecer a vida humana. [...] A
privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim
como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a
privação de liberdade econômica.
O ordenamento ético das relações de mercado com base no valor moral substantivo
da liberdade configura-se como uma das dimensões essenciais para um equilibrado processo
de desenvolvimento e organização justa de uma estrutura social, o que supõe a criteriosa
observação das inadequações das relações comerciais internas e entre os países, das condições
necessárias à organização e ao funcionamento de instituições reguladoras e da formação das
convicções, principalmente morais, necessárias para o cumprimento de acordos firmados
entre as partes envolvidas nas diferentes transações, entre outras.
A complexidade existente nas relações de mercado, simbolizadas pela extensão e
pela diversidade dos arranjos comerciais e dos negócios, supõe que as regras que regulam os
seus procedimentos tenham um papel central, a fim de contribuir para que os objetivos
pretendidos sejam exitosos e moralmente legítimos. As relações comerciais são especialmente
exigentes porque estão diretamente relacionadas com a distribuição dos bens; por isso, fazem-
se necessárias regras explícitas e claras para ordenar e legitimar os seus mecanismos e meios
de atuação.
Essa intrincada rede de interesses, por envolver objetivos diferenciados e problemas
que precisam ser tratados, em diferentes graus, pelo conjunto da sociedade, especialmente
pelos seus dirigentes, entre os quais o destino de parcela significativa de pessoas, o equilíbrio
das relações entre os países, os limitados recursos ambientais e as condições de vida para as
56
gerações futuras, evidencia a necessidade de estabelecer uma estrutura legal e de valores e
princípios éticos para a estruturação e funcionamento das relações comerciais.
Conforme Sen (1993), a distribuição dos bens (cake) segundo bases éticas melhora as
condições de vida e de relacionamento entre as pessoas e o próprio equilíbrio social, o que
deve atingir também as iniciativas de filantropia, caridade e outras formas que visam ao
melhoramento das situações sociais. Da quantia de bens e recursos disponíveis depende a
ralação que se estabelece entre as políticas de produção e de distribuição, que estão
diretamente relacionadas com os múltiplos incentivos e necessidades existentes na sociedade,
mas precisam de um especial cuidado, considerando os interesses que estão envolvidos e seus
protagonistas: trabalhadores, associações, consumidores, entre outros, para quem a ética
precisa ser uma característica primordial.
Da reflexão sobre a questão Does business ethics make economic sense? (SEN,
1993) dependem a forma como é definida a organização da economia e as escolhas que têm
como objetivo uma melhor organização social. Existem muitos contrastes entre os diferentes
caminhos que visam a uma sociedade justa e equitativa e a um comportamento ético no
mundo dos negócios, dentre os quais se podem destacar uma inadequada atenção à situação de
muitos trabalhadores, o que resulta em efeitos danosos para o equilíbrio social.
A legitimidade moral para a atuação e para o desenvolvimento das relações de
mercado está diretamente relacionada ao seu comprometimento com a geração de
oportunidades sociais, que são negadas em muitas situações nas quais o crescimento
econômico é vertiginoso. A prioridade e os consequentes limites das relações de mercado
centrados na eficiência em detrimento das preocupações com as necessidades e os conflitos
sociais decorrentes dessa dicotomia, particularmente com as graves desigualdades que
caracterizam grande contingente de pessoas em várias partes do mundo, incluindo países
considerados desenvolvidos, são destacados criticamente por Sen (1993, p. 536):
A discussão das liberdades de oportunidade tem sido limitada até agora em somente
alcançar a eficiência (de fato, uma eficiência limitada). Os problemas de
desigualdade de oportunidades e de liberdades não foram mencionados. O “teorema
direto”, que se estende de forma tênue, está realmente despreocupado com assuntos
distributivos, e a justificação parcial para o mecanismo de mercado que ele provê
está baseado inteiramente nas considerações de eficiência.
57
As diferentes oportunidades sociais enfatizadas como determinantes para o bem-estar
das pessoas e para o equilíbrio das relações sociais e institucionais estão inseridas na
prioridade alcançada pelo valor moral substantivo da liberdade, que se expressa em conquistas
fundamentais, dentre as quais se podem destacar os direitos e liberdades democráticas, as
oportunidades de participação e decisão social, a proteção relativa à segurança individual e
coletiva, a livre associação e expressão do pensamento, entre outras. As relações de mercado
sem essa prerrogativa de integração e cooperação com a sociedade legitimam uma estrutura
social que se preocupa, prioritariamente, quando não exclusivamente, com o aumento da
produção dos bens segundo interesses individuais ou de grupos de interesse restritos.
A integração das relações de mercado com a estrutura social possibilita a construção
de uma estrutura compartilhada de benefícios públicos e privados, que, não isenta de árduos
conflitos, contribui, conforme suas especificidades, para o desenvolvimento integrado da
sociedade. Investimentos em programas de promoção humana, especialmente nas áreas de
educação e saúde, são instrumentos decisivos para a melhoria da capacidade de integração
social e para o progresso econômico.
A avaliação ética das relações de mercado busca a superação de um entendimento
limitado das relações humanas e sociais centrada no acesso aos bens e na satisfação das
expectativas de bem-estar. Assim, considera a pessoa, seus objetivos e necessidades,
juntamente com as demais dimensões que integram a sua existência, pelo desenvolvimento do
conjunto de funcionamentos que contribuem para a realização pessoal e a sua integração na
sociedade. Os mecanismos de mercado avaliados com base no valor moral substantivo da
liberdade têm suas características e sua atuação relacionados com a promoção da liberdade
individual e coletiva, isto é com aquelas dimensões que beneficiam o conjunto das relações e
organizações da sociedade, assim como a promoção e o fortalecimento da atuação livre da
pessoa.
A compreensão das relações vitais da pessoa e da sociedade não mais se limita aos
resultados restritos ao planejamento centralizado, que priorizam a eficiência do crescimento
econômico. Ao contrário, uma concepção integrada é decisiva para avaliar o
desenvolvimento, especificamente o funcionamento e a contribuição do mercado para as
condições de justiça, porque o critério de atuação das instituições, mecanismos e pessoas,
assim como os seus interesses, é entendido de forma não restritiva, mas de acordo com uma
visão unificada do processo de organização social, que compreende, conjuntamente e de
forma equitativa, os objetivos, os meios e os resultados.
58
1.6 AS LIBERDADES E AS CAPABILIDADES (CAPABILITIES)
O valor moral substantivo da liberdade imprime na organização da sociedade um
conjunto de características e referências básicas indispensáveis para avaliar a sua estrutura e o
seu desenvolvimento, a participação da pessoa nos seus diferentes espaços e o equilíbrio das
relações que ocorrem no seu interior, sem desconsiderar o progresso econômico e a
necessidade de buscar determinados resultados previamente planejados, assim como é seu
objetivo contemplar o conjunto de valores e expectativas globais que são decisivos para a
realização humana, a satisfação de seus desejos pessoais, da sua atividade profissional e da
sua inserção efetiva na vida social.
As capabilidades
6
(capabilities) são um referencial decisivo para a avaliação do
desenvolvimento de uma sociedade e para o processo de integração da pessoa, não
6
A opção pela utilização da palavra capabilidades, a partir do vocábulo inglês capability, capabilities, na
elaboração da presente tese (exceto quando ocorrem citações diretas), ao invés de capacidade ou capacitações
como em diversas traduções, deriva da preocupação de entender a importância e o alcance dessa expressão
no pensamento de Sen, que opera não considerando as incontestáveis contribuições oriundas da tradição
filosófica, mas também a reflexão das ciências econômicas e da sociologia. Nesse sentido, capabilidades
amplia o sentido de capacidade e capacitação, que pode ser entendido em alguns contextos como algo
concedido ou nato (o que poderia conduzir a uma compreensão paternalista ou conformista) para uma
compreensão a partir do conceito de pessoa como sujeito com condições e poder de decisão, capacidade de
conduzir o seu destino considerando as diversas possibilidades e limites de que dispõe ou pode construir, da
mesma forma que expressa o poder de que dispõe (poder de) para interferir e influenciar criticamente nas
instituições e no espaço social e cultural onde vive e realiza suas demais atividades (trabalho, lazer,
educação, cuidado com a saúde, pratica religiosa, etc.), culminando com a opção de influenciar politicamente
na organização da sociedade, através dos diferentes mecanismos, especificamente exercendo o direito de
votar e ser votado, de contribuir com o aperfeiçoamento e a solidez da democracia e da justiça.
Sen reconhece os limites da utilização e compreensão dessa expressão no texto intitulado “Capacidad e
bienestar”, apontando seu caráter tecnocrático ou relacionado a estratégias nucleares e mesmo à condições de
produtividade de glebas de terra. Contudo, afirma: “Se elegeu esta expressão para representar as combinações
alternativas de que uma pessoa pode fazer e ser: os funcionamentos distintos que pode alcançar. Quando se
aplica o enfoque sobre a capabilidade em relação à vantagem de uma pessoa, é avaliá-la em termos de sua
real habilidade para alcançar funcionamentos valiosos como parte de sua vida. O enfoque correspondente no
caso da vantagem social para a avaliação totalizadora, assim como para a escolha das instituições e da
política considera os conjuntos das capabilidades individuais como se constituíssem uma parte
indispensável e central da base de informação pertinente de tal avaliação.”
No intuito de fundamentar e esclarecer a amplitude do termo capabilidades” se destaca o comentário de
Jesús C. Sancho (2006, p. 192): “O ponto decisivo é a noção de „capabilidade‟. Se é certo, como afirmam de
modo diverso, contudo convergente, Nussbaum e Sen, que constitui o „equivalente moderno do termo
aristotélico dynamis’ e que vem a significar, em geral, algo como „aquela condição em virtude da qual se
pode fazer algo‟, portanto se compreende também que a noção de „capacidade‟ significa, primeiramente, para
referir-se ao grau de liberdade que o ser humano tem para buscar atividades valiosas ou funcionamentos
valiosos. Por conseqüência a capabilidade significa, num sentido profundo, e mais especificamente no
contexto moderno, liberdade de condições, liberdade real (poder efetivo). Com isso, embasar o conceito
meramente „liberal‟ de liberdade (que sempre tende a entender-se como „não-interferência‟), e poder salientar
o lado positivo, empoderador, realizador da liberdade, que requer condições de igualdade e de justiça. Abre-
se assim um horizonte mais favorável à liberdade socialmente acondicionada com a justiça, também na vida
econômica”.
59
dependente apenas do acesso aos bens ou da maximização das expectativas de bem-estar, a
fim de que, por meio das suas escolhas, tenha condições de realizar suas metas. A
compreensão do bem-estar, nesse contexto, é uma das dimensões que constituem a identidade
de uma pessoa no exercício da sua liberdade, que se podem chamar de “funcionamentos”. Na
afirmação de Sen (2001, p. 79), “a realização de uma pessoa pode ser concebida, sob esse
aspecto, como o vetor de seus funcionamentos”, os quais atingem as diferentes dimensões da
vida das pessoas, as suas necessidades, expectativas e planos.
O desenvolvimento de um conjunto de capabilidades caracteriza a pessoa no
exercício da sua liberdade, estritamente relacionada com as liberdades substantivas, a partir
do que tem condições de efetivar as suas escolhas, constituir a sua identidade individual e as
relações que considera indispensáveis para a sua realização e as suas condições de vida,
incluindo a sua filiação cultural e religiosa, assim como os bens necessários à sobrevivência.
Da mesma forma, o espaço das capabilidades oferece as condições necessárias para que a
pessoa participe livremente, pelas opções que realiza, dos diferentes espaços existentes na
sociedade sem qualquer tipo de constrangimento ou de discriminação.
Considerando as diferenças que constituem uma sociedade em seus múltiplos
aspectos, é indispensável que uma pessoa possa agir livremente nos diversos espaços e tenha a
oportunidade de fazer as opções que considera importantes. As capabilidades estão
diretamente relacionadas com o conjunto das condições sociais, políticas, econômicas e
culturais nas quais vive. Nesse sentido, uma estrutura social organizada de forma justa precisa
oferecer aos seus membros as alternativas necessárias para que desenvolvam as suas
potencialidades e realizem as escolhas que melhor preenchem as suas expectativas. O valor
moral substantivo da liberdade toma uma dimensão constitutiva da identidade humana e
perpassa toda a sua existência. Por isso, a sociedade, por meio de seus recursos, dos
instrumentos e das instituições, tem a responsabilidade de expandir o acesso às liberdades e,
assim, torná-las reais (substantivas) para os seus membros (SEN, 2000).
Assim entendida, a liberdade caracteriza e identifica uma sociedade, sendo o
referencial para a avaliação da dinâmica de todo o ordenamento social. O funcionamento de
uma sociedade não depende, exclusivamente, da eficiência da sua estrutura e das suas
Thomas Kesselring (2007, p. 111) também destaca a limitação do vocábulo „„capacidade‟‟ para expressar o
entendimento de Sen e destaca a abrangência do termo em relação às condições e necessidades materiais e às
oportunidades. Afirma: “Uma capability pode ser determinada como combinação de atividades ou condições
vitais [combination of functionings], que alguém está em condições de satisfazer ou vivenciar sob
determinadas circunstâncias. Às capacitações pertencem, portanto, também circunstâncias exteriores: a
oferta de mercadorias e as prestações de serviços, p. ex., às quais uma pessoa tem acesso ou a influência
social que ela exerce. As capabilities são em parte independentes uma da outra. Não é possível contabilizá-
las uma em confronto com a outra, nem enumerar as desvantagens que resultam da falta de uma determinada
capacitação.”
60
instituições ou da correta operacionalização dos seus planos, mas do valor e da efetivação das
liberdades. Por isso, as capabilidades constituem a dinâmica da estruturação social e tornam-
se um poder dinamizador do conjunto de suas relações e um referencial de valorização da
pessoa como objetivo último, nunca, apenas, como meio para outros fins.
Considerando a pluralidade que constitui as habilidades, expectativas e preferências
individuais de cada pessoa, a sua diversidade cultural e as gritantes desigualdades presentes
no interior das sociedades, assim como os demais espaços que compõem os diversos níveis de
relacionamento que as pessoas estabelecem entre si e dos grupos sociais e Estados, as
capabilidades adquirem uma importância especial, entre outras razões, como referência para a
avaliação da realização dos objetivos que cada um considera importante para a sua vida, para
a efetivação das escolhas que contribuem efetivamente para a sua integração e participação
nos espaços sociais, para a estruturação justa das relações entre as pessoas e como critério de
averiguação do desenvolvimento e correção de outras distorções que caracterizam e
comprometem negativamente o equilíbrio social.
O conceito de capabilidades, inserido no contexto das desigualdades políticas,
econômicas e sociais, é um critério essencial para a avaliação dos temas relacionados às
condições de pobreza e bem-estar, questões de gênero e de discriminação sexual e relativos ao
desenvolvimento social, entre outros. Dessa forma, as capabilidades se relacionam
diretamente com as condições reais que uma pessoa ou grupo social possuem para fazer as
escolhas que possibilitam a realização pessoal ou coletiva (SEN, 1999).
Para a avaliação do desenvolvimento de uma sociedade e de seus membros,
especificamente, torna-se indispensável considerar as opções de escolha que uma pessoa ou
um grupo tem para alcançar os objetivos que são importantes na sua realização. Por isso, no
ordenamento social as capabilidades são um modo privilegiado de exercício da liberdade e,
nesse contexto, representam as diferentes alternativas de funcionamentos entre os quais se
podem realizar as escolhas e, assim, exercer a condição de agente ativo
7
.
7
Considerando as variações que compõem a dinâmica da organização social, especificamente os seus
membros, e as necessidades específicas de cada um individualmente e do contexto onde está inserido, o
conjunto de funcionamentos não pode ser limitado pela vontade dos seus dirigentes ou pelos interesses
restritivos de outra ordem. Por isso, afirma Sen (1993, p. 32): “As escolhas têm que ser enfrentadas
delineando os funcionamentos relevantes. A estrutura sempre permite „realizações‟ adicionais que são
definidas e incluídas. Muitos funcionamentos não são de grande interesse para a pessoa (por exemplo, usar
um sabão em especial muito parecido com outros). Não como evitar o problema da avaliação ao
selecionar uma classe de funcionamentos na descrição e na valorização das capabilidades. O objetivo precisa
estar relacionado com a importância dos valores e preocupações, em termos do que alguns funcionamentos
definidos podem ser necessários e outros menos importantes ou negligenciados. A necessidade de seleção e
de discriminação não é nem constrangedora e nem uma dificuldade única, para conceituar o funcionamento e
a capabilidade.”
61
A importância do ato de escolha é fundamental para a estruturação da justiça numa
sociedade caracterizada pelo pluralismo, porque cada um tem diante de si diferentes
alternativas, entre as quais fará as suas opções. As alternativas de escolha possibilitam que a
pessoa eleja aquelas combinações que são valiosas por diversos motivos, de ordem pessoal,
social, cultural ou outros. A liberdade diante das diversas possibilidades retrata o alcance e o
desenvolvimento das capabilidades de uma pessoa e a própria evolução da organização social,
que pode proporcionar aos seus membros variadas opções para a concretização dos seus
objetivos pessoais, considerando os talentos pessoais e as características socioculturais onde
está inserida. A escolha está relacionada com a realização pessoal e sua efetiva participação
social, porque integra o exercício das liberdades com a estruturação e o funcionamento da
sociedade, conforme define Sen (2000, p. 95):
A capacidade [capability] de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de
funcionamentos cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo
de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de
funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade de ter estilos de vida
diversos). Por exemplo, uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma
realização de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída,
forçada a passar fome extrema, mas a primeira pessoa possui um „conjunto
capacitário‟ diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem
nutrida de um modo impossível para a segunda).
A opção de poder escolher é um elemento valioso para uma pessoa como membro de
uma sociedade, ou seja, ter condições de participar efetivamente dos seus destinos e contribuir
para o seu desenvolvimento. Por isso, “ter condições de escolher” é uma dimensão dessa
abordagem que torna o agir humano mais abrangente, que enriquece a sua identidade,
diferencia a sua atuação em face dos demais e privilegia a sua posição em relação à estrutura
social. Uma sociedade que se preocupa com a justiça tem como um dos seus objetivos
oferecer aos seus membros os instrumentos e as condições para poderem realizar as escolhas
que consideram importantes. O fortalecimento do exercício das liberdades depende,
substancialmente, da ampla rede de organizações, mais ou menos influentes, que incentivam,
sedimentam e fortalecem o aprimoramento das capabilidades. Com a sua efetivação, a pessoa
tem um variado panorama de opções, cujos funcionamentos tornam possível buscar aquilo
que entende ser importante fazer ou ser.
62
Não dispor das necessárias condições de escolha está diretamente relacionado com a
privação das capabilidades básicas necessárias para a integração da pessoa na vida da
sociedade. A pobreza e as tiranias que ainda assolam muitas sociedades contemporâneas
simbolizam a negação de dimensões importantes para a realização humana e diminuem
substancialmente a efetiva participação na vida social. O desenvolvimento dos
funcionamentos está diretamente relacionado com o fato de haver oportunidades sociais que
ofereçam o suporte necessário e possibilitem o ato de escolha. Nesse sentido, a falta das
capabilidades corresponde à privação da liberdade
8
.
Numa sociedade organizada a partir do acesso às liberdades, toda a sua estruturação
é construída e aprimorada com o objetivo de fortalecê-las. Particularmente, o crescimento
econômico, que integra as prioridades dos governos e de grande parte das instituições sociais,
está pontualmente relacionado com as oportunidades sociais que representam as condições
necessárias para a escolha dos funcionamentos que uma pessoa considera relevantes para a
organização da sua vida pessoal e para a sua inserção na sociedade.
Para isso, é preciso considerar o necessário e sadio aumento das rendas privadas,
que, entre outros aspectos, fornece condições para a participação social sem constrangimento
e para a satisfação de desejos individuais que são importantes. Por outro lado, dota o Estado
de recursos para a expansão dos serviços sociais que aprimoram a qualidade de vida e a
convivência social, dentre os quais merecem destaque as políticas de alfabetização, a
facilidade de acesso aos serviços de saúde, as iniciativas que visam à seguridade social, assim
como o desenvolvimento de redes de comunicação que, especialmente, por meio de uma
imprensa livre e ativa, fortalecem e sedimentam o exercício das liberdades. Numa sociedade
em que as pessoas têm acesso às liberdades, o desenvolvimento econômico está estritamente
interligado com as oportunidades sociais.
O poder de escolha é decisivo para o bem-estar da pessoa e da sociedade.
Considerando as diferenças que constituem a convivência social nos mais diferentes níveis e
espaços, os funcionamentos dependem das condições de que a pessoa dispõe para a sua
realização. As capabilidades representam a liberdade que a pessoa tem para, de acordo com
8
Esta temática é caracterizada por Martha Nussbaum (2008, p. 216), sublinhando o valor insubstituível da
pessoa com um fim e a conexão com as capabilidades. “Eu argumentei que todas as capabilidades, incluindo
a razão prática, e o controle sobre o nosso ambiente material e político, são importantes objetivos humanos e
políticos. Além do mais, a minha abordagem sobre a versão de capabilidades atingiu muito tempo um
„princípio básico de cada pessoa como um fim‟: em outras palavras, a pessoa, não o grupo, é o sujeito
primordial da justiça política, e o conjunto de idéias que aprimoram a condição de um grupo são rejeitados, a
menos que eles concedam as capabilidades centrais para „cada e todas as pessoas‟.”
63
suas características individuais e as aspirações sociais, conduzir as suas escolhas diante de
cenários diversificados para, assim, construir a sua identidade e poder influenciar na
organização de uma boa estrutura social. A relação entre os espaços para a efetivação das
escolhas e as capabilidades é esclarecida por Sen (1993, p. 33):
A liberdade de conduzir diferentes tipos de vida é refletida na capabilidade da
pessoa. A capabilidade de uma pessoa depende de uma variedade de fatores,
incluindo características pessoais e ordenamentos sociais. Uma compreensão total da
liberdade individual deve, obviamente, ter um alcance além das capabilidades de
uma pessoa viver e dar atenção aos objetivos de outra pessoa (por exemplo,
objetivos sociais não diretamente relacionados com a nossa própria vida), contudo as
capabilidades humanas constituem uma parte importante da liberdade individual.
Entre as vantagens dessa concepção está a caracterização das capabilidades inseridas
no espaço da pluralidade que compõe a realização humana e a constituição social, o que as
torna não dependentes de bens, recursos ou outros meios previamente determinados. As
capabilidades, nesse sentido, concentram todo o conjunto de funcionamentos que identificam
e impulsionam a realização das escolhas; assim, a pessoa pode optar livremente entre
determinados modelos de vida.
Diferente é a compreensão de Rawls na construção da influente Teoria da Justiça
como Equidade ao vincular o valor da liberdade ao acesso e à distribuição dos bens primários.
Essas são exigências para os cidadãos, caracterizados como livres e iguais, desenvolverem
suas capabilidades. Ocorre uma dependência do acesso aos bens primários para o exercício da
liberdade. As expectativas de uma pessoa têm como referencial os bens primários, que,
juntamente com os dois princípios
9
da justiça corretamente ordenados, são a base
informacional privilegiada para a avaliação das condições de justiça numa sociedade,
conforme afirma Rawls (2000, p. 97):
9
Os princípios apresentados por Rawls (2000b, p. 47) como fundamento para a estruturação e funcionamento
de uma sociedade justa são: “a) Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de
direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto esse compatível com todos os demais; e, nesse projeto,
as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. b) As desigualdades
sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos
abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o
maior benefício para os membros menos privilegiados da sociedade.”
64
Os bens primários, como já observei, são coisas que se supõe que um homem
racional deseja, não importa o que mais deseje. Independente de quais sejam em
detalhes os planos racionais de um indivíduo, supõe-se que várias coisas das
quais ele preferiria ter mais ou ter menos. Tendo uma maior quantidade desses bens,
os homens podem geralmente estar seguros de obter um maior sucesso na realização
de suas intenções e na promoção de seus objetivos, quaisquer que sejam eles. Os
bens sociais primários, para representá-los em categorias amplas, são direitos,
liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza. (Um bem primário muito
importante é um senso do próprio valor [...]) Parece evidente que, em geral, essas
coisas correspondem à descrição de bens primários. São bens sociais em vista da
ligação com a estrutura básica; as liberdades e oportunidades são definidas pelas
regras das instituições mais importantes, e a distribuição da renda e riqueza é por
elas regulada.
Essa concepção limita o valor moral da liberdade porque condiciona a avaliação das
condições de justiça numa sociedade caracterizada por diferenças e por gritantes
desigualdades que comprometem a legitimidade moral de sua estrutura, ao acesso aos bens
primários. Embora Rawls admita as diferenças como constitutivas das sociedades e também
as compreenda e as caracterize por meio de uma profunda diversidade de concepções
filosóficas, religiosas e morais, profundamente divergentes e irreconciliáveis, ao dar
prioridade aos bens primários, desconsidera dimensões importantes da identidade das pessoas,
entre as quais se podem destacar as preferências individuais, a sua formação cultural, a
tradição religiosa e os planos profissionais. Em relação à sociedade, existem referenciais que
ultrapassam a quantificação ou uma concepção limitada aos bens, que abrangem as condições
e as dificuldades para a interação entre as diversificadas tradições culturais e religiosas, os
conflitos oriundos da formação dos valores políticos e das desigualdades econômicas, entre
outras.
Tendo como referência básica o valor moral substantivo da liberdade, os bens
primários são meios ou recursos essenciais para que uma pessoa ou uma sociedade procure
realizar a sua concepção de bem. Existe, nesse sentido, uma clara relação entre a liberdade e o
acesso aos bens primários, entretanto sua importância não depende unicamente deles
10
.
A escolha dos funcionamentos para o desenvolvimento das capabilidades representa
uma forma privilegiada de efetivação da liberdade, conforme afirma Sen (2001, p. 140): “A
capacidade representa a liberdade, ao passo que os bens primários nos falam somente dos
meios para a liberdade, com uma relação interpessoalmente variável entre os meios e a
10
A convicção de Sen (2001, p. 137) sobre as capabilidades e a sua não-dependência dos bens primários
expressa o valor incondicional da liberdade: “Nem os bens primários, nem os recursos, definidos de modo
abrangente, podem representar a capacidade que uma pessoa realmente desfruta.”
65
liberdade efetiva para realizar.” Essa compreensão, sem se distanciar ou limitar o sentido da
liberdade aos meios e objetivos que uma pessoa busca, afirma a sua característica moral e
substantiva e reafirma a sua importância fundamental como referencial para a avaliação das
condições de justiça numa sociedade plural.
A prioridade do valor moral substantivo da liberdade sobre os bens primários para a
construção da justiça, dinamiza todo o ordenamento de uma sociedade em vista da construção
da igualdade, que é um dos principais objetivos da busca por uma estrutura social justa, não
dependente do acesso ou do acúmulo de bens, mas orientada pela igualdade de liberdade, para
que cada pessoa alcance as metas que considera importantes para sua vida e sua convivência
social. Assim entendida, a liberdade possibilita um conjunto amplo de opções de escolha que
contemplam as variações sociais e interpessoais e transformam os bens primários em
capabilidades, não o contrário, fortalecendo a dependência das capabilidades para o acesso
aos bens e aos outros objetivos e necessidades humanas e sociais (SEN, 1994).
As capabilidades são uma forma de liberdade que se relaciona tanto com os bens
primários e seus resultados quanto com as demais perspectivas da existência humana, contudo
não são dependentes ou coincidentes com nenhuma. Essa característica ultrapassa uma
concepção restritiva de organização social justa, caracterizando-se como uma visão ampla,
que contempla e dinamiza as diferenças. Por isso, pode-se afirmar que “bens primários são,
portanto, meios para qualquer propósito ou recursos úteis para a busca de diferentes
concepções de bem que os indivíduos podem ter.” (SEN, 2001, p. 136).
A avaliação de justiça considerando o espaço das capabilidades é uma concepção
peculiar e alternativa aos tradicionais critérios dependentes da maximização do bem-estar e do
acesso aos bens e riquezas, entre outros. As capabilidades representam esse conjunto de
alternativas que identificam as opções de uma pessoa para eleger um conjunto de
funcionamentos que constituem as condições indispensáveis para o exercício da liberdade e,
então, poder escolher entre vários estilos de vida possíveis (SEN, 2000).
Nesse sentido, as capabilidades são o referencial seguro e decisivo para uma
organização social justa. Ter as necessárias opções para escolher entre diferentes alternativas
é uma dimensão importante para o enriquecimento da vida humana, assim como para as
condições de bem-estar. Entretanto, o que se torna relevante e característico na contribuição
de Sen é compreender as várias formas de avaliar a realização de uma pessoa e da
organização de uma sociedade, particularmente as condições de bem-estar, tendo como
referência fundamental a liberdade (capabilidades) de realizar funcionamentos, conforme
sublinha (2001, p. 81):
66
A abordagem da capacidade difere claramente e de modo crucial das abordagens
mais tradicionais da avaliação individual e social, baseada em variáveis tais como
bens primários (como nos sistemas de avaliação rawlsianos), recursos (como na
análise social de Dworkin), ou renda real (como nas análises que focalizam o PIB,
PNB, vetores de bens nomeados). Estas variáveis tratam todas de instrumentos para
realizar bem-estar ou outros objetivos, e podem também ser vistas como meios para
a liberdade.
Na proposição de Sen ocorre uma relação peculiar entre as capabilidades e as
condições de justiça social, visto que, quanto mais a organização da sociedade possibilita o
acesso às liberdades (substantivas), mais justas serão as relações entre as pessoas, as
instituições, os recursos disponíveis e as demais necessidades e expectativas humanas e
sociais. Por isso, a forma de estruturação das relações no interior da sociedade é fundamental
para o desenvolvimento das capabilidades. A escolha de determinados funcionamentos, não
de outros, tem uma relação direta com os interesses sociais, visto que a pessoa precisa ser
agente ativo e interagir de múltiplas formas e com diferentes perspectivas de realização
individual e coletiva.
As sociedades cuja estrutura é caracterizada por gritantes desigualdades sociais
negam aquelas dimensões básicas para um ordenamento equilibrado. Nesse sentido, são
decisivas para os seus membros as condições de participação, da mesma forma que possam
usufruir dos direitos essenciais para a convivência social, entre os quais se pode destacar o
„„direito de ir e vir‟‟. Os diferentes espaços, especificamente a discussão social, o poder de
escolha e a aceitação pública, estão claramente relacionados com as capabilidades, porque são
mecanismos importantes para a participação social e, também, porque por meio deles as
pessoas podem, efetivamente, tomar parte da vida da comunidade (SEN, 2001).
As capabilidades são abordadas no contexto de privações que caracterizam a
realidade contemporânea por Nussbaum, que, diferentemente de Sen, prioriza a reflexão em
torno dos aspectos mínimos necessários para a dignidade humana que os governos, em todas
as sociedades, deveriam respeitar e implementar.
As capabilidades estão implícitas na compreensão da dignidade da pessoa como um
valor essencial que todos deveriam buscar com base na convicção de que precisam sempre ser
tratados com um fim. Considerando a necessidade de superação das desigualdades que
ameaçam as relações entre as pessoas (sexo, classe, raça, e outras) e os desequilíbrios entre os
países, as capabilidades fundamentam a necessidade de buscar maior qualidade de vida nos
diversos âmbitos, conforme destaca Nussbaum (2008, p. 70):
67
As capabilidades são então apresentadas como a fonte dos princípios políticos para
uma sociedade pluralista, elas são condição no contexto de um tipo de liberalismo
político que formula especificamente os objetivos políticos e os apresenta de uma
maneira livre de qualquer base metafísica específica. Apresentadas e justificadas por
argumentos dessa maneira, as capabilidades, eu entendo, podem tornar-se objeto de
um consenso sobreposto entre as pessoas que, por outro lado, tem concepções de
compreensão muito diferentes do que é o bem.
Nussbaum apresenta um conjunto de capabilidades que sintetizam aquelas dimensões
que melhor se combinam com a riqueza da dignidade humana e o mínimo de funcionamentos
que integram e garantem a justiça social. A avaliação e as medidas básicas para uma
organização social justa são mais amplas e dependem de outros fatores e valores,
especialmente políticos, que dinamizam e estruturam a convivência humana.
Considerando a constituição plural das sociedades, as capabilidades apresentadas por
Nussbaum (2006, p. 76) compreendem a possibilidade de esses indicativos alcançarem as
diferentes realidades. A dignidade humana é dependente da sua efetivação. Portanto, na
ausência dessas, a vida humana tem sua riqueza limitada. As capabilidades humanas centrais
obedecem à disposição que segue:
1 Vida. ser capaz de viver até o término da vida humana em condições normais, não
morrer prematuramente, ou antes que tenhamos a vida reduzida por não valer a pena
viver.
2 Qualidade de vida. Ser capaz de ter uma vida saudável, incluindo a saúde
reprodutiva, ser adequadamente nutrido, ter proteção adequada.
3 Integridade física. Ser capaz de ir e vir livremente de um lugar a outro, estar
seguro contra assaltos violentos, incluindo violência sexual e doméstica, ter
oportunidades de satisfação sexual e escolha dos meios de reprodução.
4 Sentidos, imaginação e pensamentos. ser capaz de usar os sentidos, a imaginação,
o pensamento e a razão e realizar essas ações de uma maneira “verdadeiramente
humana”, uma trajetória informada e cultivada por uma educação adequada,
incluindo a não-limitação dos meios para o aprendizado e bases para o treinamento
matemático e científico. Ser capaz de usar a imaginação e o pensamento em conexão
com os trabalhos de experiência e produção e dimensões da própria escolha,
religião, literatura, música, e outras. Ser capaz de usar sua própria concepção para a
garantia da liberdade de expressão com respeito às expressões políticas e artísticas e,
a liberdade religiosa. Ser capaz de ter experiências satisfatórias e evitar sentimentos
prejudiciais.
5 Emoções. Ser capaz de relacionar-se com coisas e pessoas diferentes, amar aquelas
que amam e cuidam de nós, sofrer a sua ausência; em geral, amar, sofrer,
experimentar a ausência, sentir-se gratificado e a justificada revolta. Não
desenvolver um desejo emocional para o perigo ou preocupação. (Apoiar essa
capabilidade significa apoiar as formas de associação humana que podem se mostrar
cruciais para o seu desenvolvimento).
68
6 Razão prática. Ser capaz de formar uma concepção de bem e engajar-se na
reflexão crítica sobre o planejamento da nossa vida. (Isso envolve a liberdade de
consciência e de observância religiosa).
7 Filiação.
a. Ser capaz de viver com e em relação aos outros, reconhecer e mostrar
preocupação com os demais seres humanos, engajar-se em várias formas de
interação social, ser capaz de imaginar a situação do outro. (Proteger esta capacidade
significa proteger as instituições que constituem e nutrem tais formas de filiação, e
também proteger a liberdade de manifestação e expressão política).
b. Ter bases sociais de auto-respeito e não-humilhação; ser capaz de ser tratado
como um ser com dignidade cujo valor é igual aos dos outros. Isso contribui para
provisões de não-discriminação com base racial, sexual, orientação sexual, etnia,
casta, religião e nacionalidade.
8 Outras espécies. Ser capaz de viver preocupando-se em relação aos animais,
plantas e o mundo da natureza.
9 Lazer: Ser capaz de divertir-se, brincar, e apreciar as atividades recreativas.
10 Controle sobre o seu próprio meio ambiente
a. Político. Ser capaz de participar efetivamente em escolhas políticas que governam
as nossas vidas; ter o direito de participação política, proteção da liberdade de
expressão e associação.
b. Material. Ser capaz de manter a propriedade (terra e bens imóveis), e ter direito de
propriedade sobre uma base equitativa com os outros, ter o direito de procurar
emprego sobre uma base equitativa com os outros, ter a liberdade para procurar o
lazer desnecessário. No trabalho, ser capaz de trabalhar como um ser humano,
exercitar a razão prática e interagir para alcançar relações de mútuo reconhecimento
com outros trabalhadores.
A dignidade humana deve ser buscada individualmente, por todas as sociedades e em
todos os lugares (países), considerando o seu valor universal, isto é, como um fim. Por causa
disso, é importante fundamentar, constantemente, a necessidade de construir valores
correlatos e normas que contribuam para uma arquitetura social que respeite e valorize o
pluralismo e contribua, juntamente com as relações diplomáticas e comerciais entre os países,
para a afirmação do valor universal da pessoa. Esse grupo de capabilidades, com o objetivo de
responder às exigências das relações sociais, está sujeito a frequentes acréscimos,
suplementações e revisões, inclusive extinguindo certos pontos à medida que evolui a
dinâmica dos interesses sociais.
O conjunto de capabilidades proposto tem como preocupação central proteger o
pluralismo que constitui as relações sociais. Procede-se assim com as liberdades,
especialmente com a liberdade de expressão, associação e consciência, que, juntamente com o
valor universal da dignidade humana, são inegociáveis e, por isso, não sujeitas à manipulação
por influência de interesses corporativos ou individualistas. Decorrente disso, a compreensão
do valor da dignidade humana se estrutura a partir da pluralidade de elementos, não de uma
singularidade, e o conjunto de intitulamentos também é diverso. (NUSSBAUM, 2008).
69
A afirmação do valor universal da dignidade humana é central na compreensão e na
elaboração do conjunto de capabilidades, as quais possuem elementos que as aproximam de
uma concepção de contrato social. Isso permite a afirmação de que as concepções de
dignidade humana e de capabilidades têm uma relação de interdependência e
complementaridade, conforme destaca Nussbaum (2008, p. 161): “As capabilidades não são
entendidas como instrumentais para uma vida com dignidade humana: elas são entendidas, ao
invés, como metas para realizar uma vida com dignidade humana, nas diferentes áreas da vida
com as quais os seres humanos tipicamente participam.”
Na compreensão de Sen a lista de capabilidades é insuficiente para a avaliação das
condições de justiça social e de realização humana. A complexidade da formação das
sociedades, as exigências da pluralidade de interesses pessoais e coletivos, as variadas
relações que configuram o ordenamento internacional, entre outras, acrescidas do dinamismo
que identifica a teia de relacionamentos sociais, não podem depender de um conjunto de
proposições previamente determinadas, que figurem como um cronograma de respostas para
conflitos e demandas localizadas e com a pretensão de se tornarem referência para um
ordenamento justo da sociedade.
Essa compreensão é fundamental para afirmar o valor moral substantivo da liberdade
e a autonomia de escolha das pessoas, assim como o dinamismo que a democracia, por meio
dos seus mecanismos, tem condições de implementar objetivando o melhor funcionamento da
estrutura social e a construção da justiça. Nesse sentido esclarece Sen (2004, p. 77):
O problema não é listar as capabilidades importantes, mas com o insistir numa lista
canônica predeterminada de capabilidades, escolhida por teóricos sem qualquer
discussão geral ou razão pública. Ter uma lista fixa, oriunda inteiramente de uma
teoria pura, é negar a possibilidade da participação pública eficaz no que deveria ser
incluído e por que. [...] O que eu sou contra é a fixação de uma lista de capabilidades
cimentadas, que é absolutamente completa (nada poderia ser adicionado a ela) e
totalmente fixa (não poderia responder à razão pública e à formação dos valores
sociais). Eu sou um grande entusiasta da teoria. A teoria da avaliação e julgamento,
eu acredito, tem a tarefa precisa de apontar a relevância da nossa liberdade de fazer e
ser (as capabilidades em geral), em oposição aos bens materiais que nós temos e os
bens que nós podemos comandar. Mas a teoria pura não pode “congelar” uma lista
de capabilidades para todas as sociedades e para todas as épocas que virão, contrário
ao que os cidadãos entendam e valorizem. A qual não seria apenas uma recusa do
alcance da democracia, mas também um mau entendimento do que a teoria pura
pode fazer, completamente divorciada de uma realidade social específica que
qualquer face da sociedade particular pode mostrar.
70
As capabilidades são referências indispensáveis para a avaliação das condições de
justiça social nas sociedades contemporâneas porque refletem a liberdade que uma pessoa tem
para realizar os funcionamentos que considera importantes para a sua realização individual e o
seu bem-estar. Nesse sentido, os critérios de avaliação não dependem somente do acesso aos
bens primários, de um conjunto de indicativos previamente elaborados ou da maximização do
bem-estar ou da liberdade individual, mas da liberdade de uma pessoa para fazer as escolhas
segundo diferentes opções.
Sendo as capabilidades o critério fundamental para a avaliação do desenvolvimento
da sociedade, as condições de escolha de um conjunto de funcionamentos representa a
liberdade da pessoa diante de opções diferentes que preenchem as suas expectativas, as quais
diferem em razão da sua formação e dos interesses individuais, até se inserir e influenciar na
organização estrutural da sociedade.
O valor moral substantivo da liberdade, além das condições de bem-estar e da
realização individual, tem importância decisiva para a organização da sociedade. Com essa
afirmação pode-se concluir que uma sociedade bem organizada, que prima, entre outras
dimensões, pela construção da justiça, pela democracia, por uma estruturação equilibrada das
instituições, pela utilização segura e planejada dos recursos naturais, pelo desenvolvimento
sustentável e pelo compromisso com as futuras gerações, identifica-se com uma sociedade de
liberdade. Nesse sentido, as capabilidades representam um amplo espaço de avaliação, seja
pela sua importância específica, seja pelas suas condições de contribuir decisivamente para o
equilíbrio e o enriquecimento da vida humana e das relações sociais.
71
2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A LIBERDADE
A compreensão do processo de desenvolvimento de uma sociedade envolve
diferentes perspectivas e interesses provenientes dos seus dirigentes, das instituições, do
Estado, das organizações internas e das relações internacionais, das necessidades sociais,
econômicas e culturais, das organizações de classe e dos interesses particulares, entre outros.
O “desenvolvimento” tem seu significado estritamente relacionado com essa variedade de
motivações que compõem as relações de uma sociedade e os objetivos que esta se propõe
alcançar durante o processo de estruturação.
Etimologicamente, o termo “desenvolvimento” tem sua origem na conexão entre
des+envolver, cujo objetivo é tirar o que está oculto ou libertar o que está envolto. Disso
decorre uma compreensão de desenvolvimento como a ação que visa tornar conhecido aquilo
que até o presente está obscuro, escondido ou desconhecido. Considerando as mudanças que
ocorrem no contexto social, a concepção e a estruturação do desenvolvimento adquirem
diferentes significados, conforme as necessidades, os interesses, as preocupações, as ameaças
e os objetivos que uma sociedade almeja.
De acordo com as necessidades e os interesses presentes nas sociedades, o tema
adquiriu diferentes conotações, que podem ser sintetizadas em de dois significados. Primeiro,
o desenvolvimento é um processo que supõe a ação do homem sobre os bens da natureza e,
por meio de diferentes mecanismos que estão à sua disposição, busca a satisfação dos seus
interesses imediatos. Assim, as suas necessidades e daqueles que estão próximos e, tomando
como sua a responsabilidade de organização da sociedade, o homem submete os recursos que
tem à disposição, de tal forma que possa satisfazer aos objetivos que busca. Esse modelo
requer uma ação firme e determinada, antecipada por um rigoroso planejamento e pela
disponibilidade dos meios necessários para a sua efetivação. A necessidade de apropriação
cada vez maior de bens, a geração de produtos para satisfazer a novas expectativas de
consumo e o acúmulo das reservas necessárias para barganhar vantagens comerciais ou
aumentar o lucro caracterizam o desenvolvimento como progresso material e a concepção de
um futuro promissor dependente da capacidade de implementar um ritmo de crescimento cada
vez mais vigoroso pelo aumento da produção. Esse processo de desenvolvimento supõe a
execução de uma eficiente e austera disciplina, que leve à efetivação dos objetivos
pretendidos (KOLM, 2000).
72
Esse modelo de desenvolvimento se sustenta na clareza de suas metas e no rigor na
utilização dos meios que conduzem à sua realização. A organização da sociedade,
especialmente a atuação do Estado e das instituições mais importantes, precisa oferecer as
condições para que esse planejamento seja executado conforme o fim previamente concebido.
O homem é o sujeito principal, quando não o único, para compreender e orientar a condução
desse processo, porque, dotado de racionalidade e de capacidade de organização, tem
condições de gerenciar e de definir da melhor forma os destinos da sociedade e, assim,
alcançar o seu bem-estar.
Nozick, um dos grandes defensores dessa concepção de desenvolvimento,
compreende a missão do Estado [mínimo] como responsável pela segurança dos direitos e das
decisões individuais. As garantias, especialmente de propriedade (adquirir, trocar, vender,
etc.) e das transações econômicas, representadas pelo chamado “liberalismo econômico”, que
considera a concorrência, as relações de mercado e de troca como as regras básicas das
relações humanas e sociais, simbolizam as referências dessa concepção de justiça. Afirma
Nozick (1994, p. 172):
Se o mundo fosse inteiramente justo, a definição indutiva seguinte cobriria
exaustivamente a questão da justiça na propriedade. 1. A pessoa que adquire uma
propriedade de acordo com o princípio da justiça na aquisição tem direito a essa
propriedade. 2. A pessoa que adquire uma propriedade de acordo com o princípio de
justiça em transferências, de alguém mais com direito à propriedade, tem direito à
propriedade. 3. Ninguém tem direito a uma propriedade exceto por aplicações
(repetidas) de 1 e 2. O princípio completo de justiça distributiva diria simplesmente
que uma distribuição é justa se todos têm direito às propriedades que possuem
segundo a distribuição. Uma distribuição é justa se, por meios legítimos, surge de
outra distribuição justa.
As relações de mercado são, nessa concepção, moralmente legítimas porque
preservam a autonomia e a liberdade das pessoas e m uma função de distribuição justa dos
bens, especialmente considerando a propriedade: “Se alguém [...] passa um bem a outra
pessoa, então essa é proprietária desse bem, pressupondo que na transmissão não se fez
injustiça a ninguém, e a distribuição anterior de bens não se deve a ações injustas.”
(KESSELRING, 2007, p. 62). A relação injusta ocorre quando existe uma distribuição
forçada ou são negados os direitos à propriedade; por isso, impedem a livre transação
econômica.
73
Quanto à satisfação das necessidades básicas dos seus membros, sintetizadas nas
condições de educação, saúde e segurança, essa finalidade é alcançada à medida que o
desenvolvimento atingir as metas anteriormente definidas. Não existe uma preocupação
central com o acesso universal a um determinado nível de bem-estar, com as condições de
vida e de sobrevivência das futuras gerações e com a detecção dos possíveis limites dos
recursos ambientais.
Na mesma perspectiva se pode conceber a atuação do Estado na promoção das
condições de vida dos mais pobres e na estruturação das instituições sociais que garantem a
sua estabilidade. A organização da sociedade precisa fomentar e equacionar os objetivos
propostos de tal forma a não impedir a sua efetivação. A democracia não é um valor
primordial nem referência básica para o gerenciamento dos interesses divergentes que estão
no interior de uma sociedade ou um sistema que possui mecanismos de representação e
organização capazes de ordenar e corrigir as diferenças e desigualdades que ora caracterizam,
ora ameaçam um ordenamento social seguro (SEN, 2000).
Especificamente em relação às condições de bem-estar e justiça social, o Estado
estrutura redes de assistência social com o intuito de proteger os mais pobres e prover serviços
sociais que minimizem as carências ou sofrimentos da população. O benefício em favor do
conjunto da sociedade ocorre no momento em que o desenvolvimento atingir os seus
objetivos. Enquanto isso não ocorre, são necessários uma rigorosa disciplina e um
planejamento eficiente, aos quais todos precisam se submeter.
A segunda concepção considera o desenvolvimento como um processo que
estabelece relações equilibradas do homem com os seus semelhantes, com a estrutura social,
com os recursos tecnológicos e ambientais, e tem uma preocupação especial com a segurança
e as condições de vida das futuras gerações, identificadas como sujeitos de direito. A ação do
homem caracteriza-se como o gerenciador de um processo dinâmico e eficiente, que dispõe
dos recursos ambientais e técnicos e, de forma equitativa e sensata, administra-os para o
benefício do conjunto da sociedade (PIZZI, 2008).
Os recursos ambientais são indispensáveis para o desenvolvimento e, nessa
concepção, adquirem um status especial em razão da sua importância, da sua complexidade e
do equilíbrio da sua organização, da sua capacidade de regeneração e de adaptação às
mudanças e, especialmente, considerando a sua finitude. Nesse sentido, os bens presentes na
natureza são caracterizados como uma rede de relações complexa, equilibrada e dinâmica, que
oferece inúmeros recursos para o bem-estar humano e para a satisfação das suas necessidades.
Diante disso, o homem estabelece uma relação que pode ser sintetizada por um duplo olhar:
74
ao mesmo tempo em que justamente utiliza esses recursos como meios importantes e
indispensáveis para alcançar seus objetivos, tem em relação a eles uma atitude que pode ser
caracterizada como de contemplação e de preservação, que o impede de reduzi-los a simples
meios para a satisfação dos seus interesses imediatos. Em face dessa organização dinâmica,
em constante processo de evolução e dotada de incontáveis possibilidades, adquire uma
qualidade sagrada diante da qual se supõe uma postura de respeito e de admiração antes de
usufruir seu potencial. Logo, o uso dos seus recursos deve obedecer a balizamentos éticos
que, de forma inter-relacionada, atendam aos interesses dos atores envolvidos e contribuam
para o desenvolvimento (SACKS, 2004).
Os recursos tecnológicos são um componente indispensável para as políticas de
desenvolvimento não apenas por ampliarem a capacidade para a apropriação e a
transformação dos bens disponíveis, mas, especialmente, por permitirem melhores condições
para a vida humana e a organização interna e externa das sociedades, entre outras. A ação do
homem por meio do uso da tecnologia tem se revelado bastante contraditória, porque é
motivada por interesses individualistas ou corporativos; assim, de forma indiscriminada, ele
se apossou dos recursos ambientais e aprimorou as formas de domínio, comprometendo o agir
individual, o conjunto das relações sociais, a convivência entre os povos, as condições de vida
das futuras gerações, a própria possibilidade da continuação da vida humana e o equilíbrio
ambiental.
Essa perspectiva de desenvolvimento considera a tecnologia como um importante
meio que auxilia o homem na viabilização dos seus planos e na dinamização e ordenamento
das sociedades, assim como na melhoria das condições de vida e da busca de formas mais
aprimoradas de sobrevivência, por meio das novas invenções e da racionalização do uso dos
recursos disponíveis no meio ambiente.
Sabendo das possíveis consequências do mau uso da tecnologia, simbolizadas na
fabricação e lançamento das bombas atômicas, pode-se afirmar que os recursos tecnológicos
não podem ser manipulados, especialmente aqueles que, pelas suas características, oferecem
maior risco ou comprometem o equilíbrio sociopolítico-econômico-cultural e ambiental, sem
uma rigorosa estrutura de valores éticos compatíveis com o poder que lhe é inerente e com o
potencial de comprometimento ou destruição do homem, das suas diferentes relações e dos
recursos naturais. Se a tecnologia aponta para o risco de um domínio ilimitado e com
consequências imprevisíveis, o homem não pode dispor de todos os mecanismos ao seu
alcance nem utilizá-los de forma indiscriminada ou movido por interesses sem legitimidade
moral (OLIVEIRA, 2000).
75
Uma estrutura social que dinamize e contribua, por meio de diferentes organismos e
instituições, para o bom funcionamento da sociedade é uma característica que compõe essa
forma de conceber o desenvolvimento sustentável. A democracia, dotada de variados
instrumentos, é o sistema que tem as condições e os recursos para ordenar a multiplicidade de
interesses, desejos, potencialidades e conflitos presentes no interior das sociedades. As
diferenças distinguem a formação de um grupo social e, no seu interior, são responsáveis por
uma realidade ao mesmo tempo conflitiva e dinâmica. Essas constantes tensões não
prejudicam o desenvolvimento; ao contrário, quando corretamente ordenadas, são
responsáveis pelo seu vigor e fortalecimento.
O Estado não é subserviente aos objetivos previamente definidos especialmente por
grupos corporativos ou movidos por metas duvidosas ou limitado por forças arbitrárias. Nessa
concepção, o Estado é democrático, aglutina e tem especial responsabilidade na organização
do conjunto da sociedade; para isso dispõe de diferentes instituições e aparatos que lhe dão
condições de atender e administrar os diferentes interesses e as forças internas de forma
harmônica. Em relação àqueles desprovidos das condições mínimas, que se encontram em
situação de pobreza ou abandono, e a outras vítimas de ocorrências indesejadas ou
imprevistas, organizam-se redes de segurança social de forma a atender, prioritariamente, as
situações mais urgentes e ameaçadoras e, assim, garantir, ao mesmo tempo, as liberdades
fundamentais e os direitos próprios de uma sociedade democrática (SEN, 2002).
Diferentemente da concepção anteriormente abordada, os variados entendimentos
que compartilham deste modelo, ao invés de uma ação direta, preconcebida e indiscriminada
do homem sobre os bens que disponibiliza, particularmente os ambientais, entendem o
desenvolvimento como um processo que engloba as pessoas, os seus interesses, os recursos
tecnológicos e outros, as instituições e as demais formas de organização social, com uma
especial responsabilidade em relação às futuras gerações e à sua sobrevivência.
A ação do homem acontece na condição de agente que atua e tem a missão de
ordenar a estrutura da sociedade democrática, fortalecendo os instrumentos e as instituições
que a sustentam e legitimam, prevenindo eventuais ameaças a sua estabilidade. Esse modelo
busca, por diferentes meios de atuação, a integração das pessoas, das suas expressões e dos
seus interesses na dinâmica de sua organização. O vigor dessa concepção de desenvolvimento
manifesta a necessidade de garantir a sua sustentabilidade por meio do comprometimento e da
ação responsável dos seus membros.
A busca por um modelo de desenvolvimento alternativo tem sua justificativa quando
se percebe que o modelo em curso esgotou suas possibilidades de, efetivamente, contribuir
76
com a organização justa da sociedade
11
e, mais, sua manutenção acarreta variadas
consequências negativas sobre os seus habitantes, as instituições, as relações internas e com as
outras sociedades, o equilíbrio dos recursos naturais e a própria possibilidade de continuação
da vida humana (SEN/SUDNIR, 1994).
A proposta para um ordenamento alternativo do desenvolvimento supõe a construção
de uma nova “epistemologia do desenvolvimento”, que justifique e fundamente com razões
suficientes as estruturas da sua organização, integrando-as, desse modo, com os objetivos a
serem alcançados, os recursos disponíveis e os meios utilizados. A sustentação desse modelo
está diretamente relacionada com a capacidade de compreender e integrar interesses
divergentes, e muitas vezes contraditórios, com a riqueza encontrada nos limitados recursos
ambientais e nas necessidades específicas das pessoas e das suas organizações, como, por
exemplo, aquelas originadas da formação cultural, das exigências profissionais e do contexto
geográfico
12
.
O valor moral substantivo da liberdade fundamenta a proposição de Sen para que
uma concepção de desenvolvimento tenha legitimidade, no qual estão incluídos não apenas o
crescimento econômico, mas as diversas áreas das relações humanas, a estruturação e o
funcionamento de uma sociedade democrática, os recursos disponíveis, entre outros.
Na afirmação de Sen (2000, p. 25) de que “as liberdades não são apenas os fins
primordiais do desenvolvimento, mas também os meios principais” se encontra a síntese de
uma concepção ampla de desenvolvimento, não dependente, exclusivamente, dos objetivos e
dos interesses previamente definidos. Ocorre, nesse sentido, uma mudança significativa com o
objetivo de promover e garantir o seu valor moral substantivo, o que concentra as
11
Os graves problemas, especialmente relacionados às gritantes desigualdades, são claramente destacados por
Sen (2000, p. 18) e são representativos da crise em que se encontra o atual modelo de desenvolvimento:
“pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos
serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. A despeito do aumento
sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de
pessoas talvez até mesmo à maioria.”
12
O acelerado processo de globalização evidencia a necessidade de integrar e fortalecer as políticas de
desenvolvimento sustentável, especialmente com a atuação do Estado, o fortalecimento da democracia e dos
múltiplos instrumentos que contribuem para efetivar os seus objetivos, juntamente com a ação livre das
pessoas, nas sociedades onde persistem graves desigualdades sociais e a sua estabilidade é frequentemente
ameaçada. Os desafios que emergem desse contexto são refletidos por Bresser-Pereira (2009): “[...] a
qualidade da democracia e a capacidade do Estado dependem, de um lado, da garantia das liberdades, do
Estado de direito, do sufrágio universal e de eleições livres com alternância de poder, e, de outro, de que a
nação reduza seu grau de fragmentação e a sociedade civil, seu nível de desigualdade. Quanto mais pobre ou
menos desenvolvido for um país, menos capaz e menos democrático será seu Estado, porque mais frouxa e
mais conflutiosa será a nação e mais autoritária será a sociedade civil. Na medida, porém, em que se logre
unir a nação em torno da idéia do desenvolvimento econômico e a sociedade civil em torno da justiça social,
proteção do ambiente, e consolidação da própria democracia, o Estado poderá ser forte, terá mais
legitimidade, e a democracia poderá se tornar melhor. Por isso, não basta aperfeiçoar as instituições, é preciso
também promover o desenvolvimento econômico e a capacidade de organização das sociedades.”
77
preocupações na expansão das liberdades substantivas e na atenção aos fins que a tornam
importante. A liberdade é compreendida, nesse contexto, como o fundamento mais importante
da estrutura de desenvolvimento social e para os demais campos da ação humana, sem a qual
a organização social, em suas diferentes estruturas e metas, não tem legitimidade moral.
O desenvolvimento não está restrito às determinações exclusivas do mercado, do
crescimento econômico ou de interesses individuais e corporativos, mas se constrói e se
solidifica considerando as necessidades humanas, sociais, ambientais, culturais e outras.
Nesse contexto, pode-se falar de desenvolvimento social, desenvolvimento humano e
desenvolvimento ambiental, porque são qualificações que caracterizam um modelo que se
edifica com apoio numa ampla base de relações, que contempla os diferentes atores
envolvidos num contínuo processo de cooperação e integração.
A afirmação de Kesselring (2007, p. 23), de que “a pergunta sobre qual é o
desenvolvimento que realmente „queremos‟ é hoje mais atual do que nunca”, demonstra a
certeza de que o modelo em curso é insuficiente e que sua continuidade ameaça a
sobrevivência humana, o equilíbrio ambiental e a estabilidade política, econômica e
institucional do conjunto da sociedade. Quando se amplia significativamente a capacidade de
planejamento e produção de bens, porém estes permanecem concentrados por interesses
particulares ou públicos, acarretando graves desigualdades entre pessoas e países, faz-se
necessário uma rigorosa análise dos fundamentos epistemológicos que arquitetam tal sistema.
A afirmação do valor moral substantivo da liberdade, considerando as gritantes
desigualdades que assolam as sociedades contemporâneas, particularmente as pessoas
relegadas a graves ameaças e sofrimentos, sintetizadas na expressão „„situações de pobreza e
tirania‟‟, e sua relação com o desenvolvimento desafiam à reflexão político-filosófica.
A compreensão desse contexto, com suas relações plurais e interdependentes, e a
afirmação da legitimidade moral de uma reflexão diante dessa problemática dependem da
capacidade de integração e de cooperação das pessoas, das instituições, dos interesses e de
outros. Sen caracteriza essa concepção como “universalista”, porque engloba, além dos
interesses relacionados ao crescimento econômico, a sustentabilidade dos recursos ambientais,
as relações humanas, o equilíbrio social e cultural, incluindo os direitos à existência das
futuras gerações (SEN, 1983).
A concepção universalista reconhece a importância dos recursos e bens disponíveis
para a estruturação do desenvolvimento, entretanto seu valor está condicionado à promoção
das capabilidades humanas e à sustentabilidade política, econômica, social, ambiental e das
gerações futuras, conforme destacam Sen/Sudnir (1994):
78
A demanda por “sustentabilidade‟‟ é, de fato, uma reflexão particular do clamor pela
universalidade, aplicado às futuras gerações em relação à nossa. Mas este
universalismo também requer que por causa da nossa preocupação em proteger as
futuras gerações, nós não devemos desconsiderar o clamor das demandas dos menos
privilegiados atualmente. A abordagem universalista não pode ignorar as
necessidades das pessoas atualmente para prevenir as privações no futuro. O
reconhecimento dessas necessidades para a integração é muito mais no intuito de
uma „„abordagem do desenvolvimento humano‟‟ e para o progresso econômico e
social. O foco desta abordagem é sobre o tipo de vida que todas as pessoas,
independente de nacionalidade, classe, raça, gênero ou comunidade, podem levar, e
este não-sectarismo deve aplicar-se também às diferentes gerações. A prospecção
em relação às pessoas futuras, de algum modo, respeita as possibilidades de ação da
geração presente. O universalismo ao reconhecer que o clamor da vida de todos é a
uma união das demandas pelo desenvolvimento humano atualmente com as
exigências de preservação ambiental para o futuro.
As diferentes compreensões de desenvolvimento, com suas pretensões e deficiências,
representam a diversidade e a dinâmica presentes na formação e no funcionamento interno das
sociedades e a abrangência das motivações, dos interesses e das expectativas dos seus
membros. O atual estágio de complexidade em que se encontram as relações sociais,
representado especialmente pelo acelerado processo de globalização e pelo avanço
tecnológico sem precedentes, exige uma reflexão que aborde os modelos de estruturação das
sociedades considerando, entre outros fatores, os limites dos recursos ambientais, as
necessidades de bem-estar e a realização dos seus membros, as desigualdades entre as pessoas
e os povos e as condições de vida para as futuras gerações. O equilíbrio da estruturação e do
ordenamento de uma sociedade precisa contemplar, de forma criteriosa, os espaços de sua
organização e funcionamento, principalmente as instituições que garantem a estabilidade
política, econômica e das relações sociais e culturais e a utilização dos recursos disponíveis,
especialmente dos ambientais e tecnológicos.
2.1 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O modelo de desenvolvimento que caracteriza o ordenamento das sociedades
contemporâneas, alicerçado, como destacado anteriormente, prioritariamente, sobre o
aumento do Produto Nacional Bruto, o acesso às novas tecnologias, o processo de
industrialização e o aprimoramento das relações de mercado, não tem legitimidade moral.
79
Considerem-se, entre outros fatores, os objetivos que fundamentam o seu agir, os critérios que
utiliza para a administração dos bens, as gritantes desigualdades presentes no interior das
sociedades e nas relações externas, a redução da pessoa à condição de meio para a busca e
satisfação de fins individuais ou corporativos, a negligência diante dos limitados recursos
ambientais disponíveis e com as condições de existência das futuras gerações.
A manutenção desse modelo implica uma opção por uma organização social que
justifica e prioriza o desenvolvimento econômico em detrimento da dimensão humana, social
e ambiental. Outros aspectos também são indispensáveis para a existência humana, como a
liberdade de escolha de um determinado estilo de vida, de organização familiar, de
convivência social e de um padrão cultural. Essa concepção, centrada na matriz definida por
esse conjunto de princípios e interesses, limita as condições de escolha, a realização pessoal e
o equilíbrio das relações sociais e institucionais.
A necessidade de um modelo de desenvolvimento alternativo, caracterizado como
sustentável, impõe-se diante da necessidade de contemplar a pluralidade de interesses,
preocupações e aspirações das sociedades. Têm-se como referência os limitados recursos
naturais e a necessidade de sua utilização equilibrada, de modo a garantir a satisfação das
necessidades, especialmente dos menos favorecidos, da atual e das futuras gerações, conforme
destacam Sen/Sudnir (1994):
A ideia de desenvolvimento sustentável surgiu essencialmente da preocupação
relacionada à excessiva exploração dos recursos naturais e ambientais. no seu
inicio, a discussão sublinhou os limites da atividade econômica imposta pelo
ambiente físico, e concluiu que espécies e ecossistemas deveriam ser utilizados de
maneira que lhes permitisse uma renovação indefinida.
Considerando os conflitos, os limites e as deficiências que emergem do atual modelo
e da necessidade de construir uma outra forma para a sua organização, eticamente justificada
e tecnicamente possível, impõe-se uma pergunta fundamental: A quem cabe a
responsabilidade de sustentar e viabilizar esse modelo de desenvolvimento sustentável?
Ocorre uma mudança de ordem epistemológica, relacionada com outras concepções
político-metodológicas de desenvolvimento, elegendo, em primeiro plano, as prioridades
relacionadas com as necessidades humanas, sociais, ambientais e culturais e, também, com os
demais aspectos que envolvem esse panorama. Esse novo paradigma não restringe a evolução
80
da sociedade às determinações do progresso econômico, mas submete toda essa rede de
relações que constitui a estruturação e a organização da sociedade a uma avaliação,
considerando, prioritariamente, o critério de sustentabilidade (CAPRA, 1996).
O progresso econômico se estrutura como uma das referências decisivas para as
políticas de desenvolvimento sustentável, contudo não exclusivo ou excludente, mas em
contínua avaliação com os demais espaços que formatam a organização dos interesses da
sociedade. A organização da arquitetura da sociedade, composta por interesses conflitivos e
contraditórios, necessita superar concepções e práticas que dificultam ou desprezam as
variadas formas de cooperação.
Eleger um conjunto limitado ou exclusivo de fatores como decisivos para as
condições de bem-estar das pessoas, para o equilíbrio social ou, mesmo, para as condições de
justiça, diante de uma realidade complexa e plural, restringe a escolha dos funcionamentos e o
desenvolvimento das capabilidades que uma pessoa considera importantes e, como
consequência, as próprias liberdades substantivas. O acelerado processo de globalização que
caracteriza as relações entre os povos atualmente pode se tornar uma oportunidade de
integração e de construção conjunta das condições sociais justas.
A superação de concepções restritas de desenvolvimento por um entendimento
integrado e global supõe, primeiro, a consideração dos variados fatores que integram os
anseios, as necessidades, as expectativas e as condições para a realização das pessoas,
conforme afirma Kesselring (2007, p. 115):
Para apurar o nível de bem-estar de uma sociedade, é preciso evitar duas formas de
unilateralidade: de um lado, não se pode atribuir peso exagerado aos pressupostos
econômicos, como ocorre, p. ex., no utilitarismo e em grande parte da literatura
econômica, porque a qualidade de vida também depende de outros fatores. [...] O
crescimento econômico não é, por conseguinte, nenhuma condição suficiente para
uma melhora da qualidade de vida.
A negação do valor, da necessidade e dos fatores de ordem econômica para as
políticas de desenvolvimento seria uma deficiência tão grave quanto lhe conceder uma
dimensão exclusiva. A questão que se impõe é: Nesse contexto, que importância adquire a
compreensão de desenvolvimento sustentável? Surge a necessidade de conceber a base
epistemológica sobre a qual se estabelece uma concepção em condições de amparar a sua
implementação política de forma integrada e segura para todos os agentes envolvidos.
81
A segunda dimensão que fundamenta o desenvolvimento sustentável decorre da
necessidade de uma abordagem imparcial, que inclua, além das demandas particulares ou de
grupos de interesse específico, a preocupação com as gerações futuras, o equilíbrio dos
recursos ambientais e as necessidades dos países, especialmente dos mais pobres, entre outros.
Emergem desse universo de preocupações um compromisso moral substantivo
fundamental que contempla a abordagem de uma composição social plural em constante
transformação e a urgência de superação das contradições que ainda estão presentes e
ameaçam o equilíbrio das relações sociais. Por isso, afirmam Sen/Sudnir (1994): “O valor
moral da sustentabilidade do qual nós dependemos para a qualidade do que temos, e a correta
aproximação do desenvolvimento sustentável nos direciona do presente em direção ao
futuro.”
O desenvolvimento econômico opera, nessa nova perspectiva, como um meio
importante para o desenvolvimento humano sustentável. Essa afirmação é decisiva para a
formatação de uma concepção alternativa, porque existem outros meios, tão importantes
quanto este, que efetivamente contribuem para o desenvolvimento global. Sua importância
deriva da capacidade de legitimar o valor moral da sustentabilidade. Sendo o crescimento
econômico insuficiente para a superação das excessivas desigualdades, especialmente das
situações de pobreza, sua integração com os demais mecanismos, quando respaldado por uma
abordagem universalista, imprime as condições de superação das contradições e deficiências
internas, com especial atenção às vítimas de maior exclusão e das desigualdades que
ameaçam o equilíbrio social, conforme afirmam Sen/Sudnir (1994):
Ao mesmo tempo, o tema central resulta na necessidade da atenção universalista em
valorizar o enaltecimento das capabilidades humanas, contrário ao interesse injusto
em promover o crescimento agregado enquanto desprezando como os frutos são
distribuídos e o que é feito para fazer com que esses frutos sirvam ao interesses dos
menos privilegiados. A disciplina do universalismo direciona o foco da nossa
atenção sobre aquelas necessidades que são maiores e aquelas privações que são
mais ameaçadoras, e essa atenção pode ser extremamente efetiva quando ela é
transportada para a prática política.
O valor moral substantivo do adjetivo da “sustentabilidade” afirma-se com base na
concepção universalista, pois, especificamente em relação às futuras gerações, não é possível
saber, por exemplo: quais necessidades deverão ser satisfeitas, que estrutura social responderá
às suas aspirações, qual a capacidade de geração de bens e quais existirão, que número de
82
pessoas habitará o mundo, quais serão seus gostos, sonhos, preferências e valores, entre
outros aspectos. O que se pode afirmar é que houve uma significativa mudança na vida das
pessoas se comparada às gerações anteriores, o que não significa que, em relação ao futuro, se
possa afirmar com segurança a manutenção ou melhoria das atuais condições de existência.
A qualidade sustentável é um ideal de desenvolvimento. No seu interior está um
conjunto de princípios e convicções que orientam as ações pessoais, as políticas públicas, as
iniciativas empresariais ou de outras organizações e das instituições, com maior ou menor
abrangência e condições de influência. Ao mesmo tempo, essa estrutura conceitual oferece
critérios de avaliação e julgamento de projetos e iniciativas que visam beneficiar ou fortalecer
a organização das diferentes áreas do desenvolvimento (SACKS, 2002).
Um modelo de desenvolvimento que prima pela sustentabilidade está integrado com
uma concepção de justiça que orienta a organização social. Uma estrutura social cuja meta é
alcançar as condições justas para a convivência humana e social tem especial preocupação
com o equilíbrio das relações entre os seus membros e, destes, com os demais interesses e
recursos disponíveis, assim como com os mecanismos que garantem o funcionamento da
sociedade.
O esforço para a superação das injustiças presentes no interior de uma sociedade
está claramente relacionado com os valores e os princípios que fundamentam a opção dos
seus dirigentes e dos demais membros por um modelo de desenvolvimento. Por isso, existe
uma relação de complementaridade entre justiça e desenvolvimento sustentável capaz de
impulsionar a ação social responsável, tendo como referência as necessidades de uma
estruturação social justa, que permita no presente e no futuro as condições para a
sobrevivência humana, o progresso econômico e o uso equilibrado dos recursos ambientais
(NUSSBAUM, 2007).
A preocupação prioritária com a utilização dos recursos naturais disponíveis deve-se,
além das necessidades de bem-estar para todos, à evidência da sua esgotabilidade e dos
limites impostos pelas distintas condições sociais, físicas, geográficas, econômicas,
ambientais e culturais. Essa constatação empírica supõe a necessidade de um planejamento
rigoroso e compatível com as aspirações humanas, mas também com a capacidade
regenerativa do meio ambiente e a absorção dos impactos provocados pelo desenvolvimento.
O conjunto da organização social, especialmente as pessoas, precisa redimensionar
as suas concepções e o seu agir com base no referencial da sustentabilidade, com o objetivo
de fortalecer e aprimorar o conjunto de seus relacionamentos, permitindo que as ações
ocorram de forma interdependente e bem ordenada. O desenvolvimento sustentável traz
83
implícita a necessidade de escolha de um padrão de vida compatível com os princípios que o
fundamentam, juntamente com as necessidades, as demandas, incluídas aquelas das futuras
gerações, e os bens disponíveis. Cabe, nesse sentido, reafirmar novamente os limites
específicos de cada instituição para uma estruturação justa e segura das sociedades. A
imposição da vontade exclusiva de uma instituição ou de um grupo, sobrepondo seus
mecanismos e interesses, por mais sensatos e bem intencionados que possam ser, afronta a
condição de sustentabilidade na sua origem.
A compatibilidade ou não entre as ações do Estado e do mercado volta à cena com as
suas especificidades e seus objetivos próprios, anteriormente mencionados. Nesse contexto
da reflexão cabe ressaltar que não integra os interesses dos mecanismos do mercado uma clara
preocupação moral com o futuro da humanidade; por isso, pode-se reafirmar com Sen/Sudnir
(1994) que “a obrigação de sustentabilidade não pode ser confiada inteiramente ao mercado.
O futuro não é adequadamente representado pelo mercado, nem mesmo o futuro distante, e
não razão que ordene o comportamento do mercado com a obrigação de cuidar do futuro
como nós cuidamos.”
O Estado, por sua vez, por meio do seu aparato institucional, tem como
responsabilidade implícita a busca de soluções para as necessidades presentes e futuras. Para
isso, dispõe de uma ampla estrutura, particularmente legislativa, que tem a missão de
organizar, limitar e permitir a utilização equilibrada dos recursos de forma a garantir a
qualidade de vida da geração atual, mas sem comprometer a existência das futuras.
A ênfase nos critérios de utilização dos recursos ambientais, nas condições de
existência das futuras gerações e no equilíbrio das relações sociais sobressai-se porque são os
problemas enfrentados atualmente que melhor demonstram os limites e as ameaças do atual
modelo de desenvolvimento, centrado, prioritariamente, no crescimento econômico.
Entretanto, uma compreensão não restritiva, considerando o valor moral substantivo
da liberdade, também é pertinente à concepção do desenvolvimento sustentável. A evolução
dessa temática integra os diferentes espaços relacionados com as condições de vida e as
atividades humanas, porque são interdependentes, e uma abordagem não equitativa
compromete negativamente a arquitetura do desenvolvimento.
A pluralidade de espaços que envolve uma compreensão ampla e os desafios para
uma organização equilibrada não permitem apresentá-los segundo uma relação quantificada
numericamente, pois a própria concepção de desenvolvimento se tornaria restrita. Contudo, é
importante destacar as diversas áreas com as quais se relaciona o critério de sustentabilidade
apresentado por Sachs (2002, p. 71):
84
- a sustentabilidade vem na frente, por se destacar como a própria finalidade do
desenvolvimento, sem contar com a probabilidade de que um colapso social ocorra
antes da catástrofe ambiental;
- um corolário: a sustentabilidade cultural;
- a sustentabilidade do meio ambiente vem em decorrência;
- outro corolário: distribuição territorial equilibrada de assentamentos humanos e
atividades;
- a sustentabilidade econômica aparece como uma necessidade, mas em hipótese
alguma é condição prévia para as anteriores, uma vez que um transtorno econômico
traz consigo um transtorno social, que, por seu lado, obstrui a sustentabilidade
ambiental;
- o mesmo pode ser dito quanto à falta de governabilidade política, e por esta razão é
soberana a importância da sustentabilidade política na pilotagem do processo de
reconciliação do desenvolvimento com a conservação da biodiversidade;
- novamente um corolário se introduz: a sustentabilidade do sistema internacional
para manter a paz as guerras modernas não são apenas genocidas, mas também
ecocidas e para estabelecer um sistema de administração para o patrimônio comum
da humanidade.
O compromisso com a sustentabilidade desvinculado do rigor que exige a produção
de resultados econômicos supõe outros parâmetros, não menos exigentes, para orientar todo o
processo de desenvolvimento. Fundado numa compreensão sistêmica
13
de sociedade e de
gerenciamento dos recursos disponíveis entre os quais devem ser destacados os humanos, os
ambientais e os tecnológicos, esse entendimento fundamenta uma relação na qual não existe
uma sobreposição de interesses e de vontades, exceto por graves motivos, mas a ação
integrada, solidária e cooperativa entre os envolvidos num processo dinâmico e viável na sua
estruturação teórica e operacional.
Considerando a dinâmica que impulsiona a organização e a evolução da sociedade e
sabendo que a sua estruturação é estimulada pelo conjunto de tensões que ocorrem no seu
interior, torna-se importante compreender o desenvolvimento como um processo incompleto e
em permanente construção, adaptação e evolução.
13
Essa abordagem se origina tendo como indicativo as relações que ocorrem na natureza, caracterizadas pela
capacidade de integração dos múltiplos organismos e sistemas vivos. A hierarquia da natureza se organiza a
partir de diversos níveis de integração e superação ou eliminação das anomalias naturais. As hierarquias
humanas e sociais não espelham as mesmas características. O desenvolvimento sustentável tem como
referencial a natureza, cuja complexidade contempla uma rede de relacionamentos com suas diferenças e
contradições, que se organizam de forma unificada e interdependente, conforme justifica Fritjof Capra (1996,
p. 41): “O grande impacto que adveio com a ciência do século XX foi a percepção de que os sistemas não
podem ser entendidos pela análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas
podem ser entendidas dentro do contexto do todo mais amplo. Desse modo, a relação entre as partes e o todo
foi revertida. Na abordagem sistêmica, as propriedades das partes podem ser entendidas apenas a partir da
organização do todo. Em consequência disso, o pensamento sistêmico concentra-se, não em blocos de
construção básicos, mas em princípios de organização básicos. O pensamento sistêmico é „contextual‟, o que
é oposto do pensamento analítico. A análise significa isolar alguma coisa a fim de entendê-la; o pensamento
sistêmico significa colocá-la no contexto de um todo mais amplo.”
85
O horizonte da sustentabilidade supõe a capacidade e as condições políticas para um
aprimoramento constante dos projetos de interesse social, conforme destaca Sen (1988, p. 21):
“É, portanto, particularmente importante construir no conceito de desenvolvimento a
possibilidade de uma contínua consideração incompleta. Ver que a posição aceita como a
intersecção das funções valorativas divergentes das partes deve, se necessário, ali constar”. As
divergências não constituem empecilho para o desenvolvimento social; pelo contrário, são
características indispensáveis para tal intento e para o contínuo aprimoramento das relações
sociais.
O confinamento da reflexão sobre uma única dimensão do desenvolvimento, por
exemplo, a apropriação tecnológica em que pese à existência de uma exigente ou ameaçadora
realidade, não se justifica diante da compreensão representada pelo adjetivo sustentável. Essa
convicção tem entre seus referenciais a estrutura democrática da sociedade, respaldada por
instrumentos e instituições que contemplam a diversidade de expectativas e limitações
existentes na dinâmica de sua organização. A clareza de objetivos e a publicidade das ações,
acompanhadas da constante exposição dos conflitos e preocupações sociais, imprimem uma
construção tensa e, ao mesmo tempo, segura que caracteriza e dinamiza esse modelo.
A avaliação dos investimentos sociais, sejam públicos, sejam privados, embora
envolva a necessidade de utilização de expressiva soma de recursos financeiros, não pode ser
limitada à quantificação dos gastos ou ao retorno que podem oferecer, especialmente pela
redução ao binômio custo e benefício. O planejamento das diversas áreas do desenvolvimento
inclui certas dimensões difíceis de mensurar e avaliar quando a sua viabilidade depende de
resultados previamente estabelecidos, por exemplo, gastos com políticas de saúde e de
educação. O princípio da sustentabilidade alcança também essa área do desenvolvimento, que
precisa representar a capacidade técnica de gerenciamento integrada aos ideais
protagonizados por esse modelo (SEN, 1983).
Os diferentes interesses, mecanismos e sujeitos envolvidos na estruturação das
políticas de desenvolvimento sustentável têm uma relação equitativa, isto é, não ocorre a
imposição de metas ou de demandas, ou, mesmo, a exclusão de outras por qualquer
motivação, exceto se representam graves ameaças, especialmente quando motivadas por
desejos individualistas ou corporativos. Contudo, faz-se necessário ressaltar a necessidade de
uma compreensão clara com relação ao conceito de pessoa e sua contribuição específica para
a formulação e implementação dos objetivos.
Em relação ao homem, cabe ressaltar, recai a grave responsabilidade de arquitetar,
conduzir e viabilizar o processo de desenvolvimento sustentável. Dele dependem a
86
estruturação, as condições e, especialmente, o compromisso de justificar moralmente as suas
opções e as decorrentes consequências (SEN, 2000).
O modelo em curso, com suas prioridades centralizadas na produção de bens e no
progresso econômico, é resultado de opções políticas que reduziram a pessoa a um papel
secundário ou coadjuvante, descaracterizando a sua identidade e submetendo-a a um processo
de estranhamento
14
em relação ao ambiente em que se encontra. A imparcialidade, concebida
como um critério fundamental, inerente à concepção universalista de desenvolvimento
sustentável, é negada na sua origem, pois as decisões precisam responder a fins previamente
definidos e com objetivos claros que devem ser atingidos. As pessoas não conseguem
interagir livremente com as demais e com o processo de organização e estruturação da
sociedade.
Nesse sentido, é moralmente legítima a determinação social que busca a superação
daquelas situações que ameaçam a sobrevivência de parcela significativa de pessoas que estão
submetidas a condições degradantes de tirania, pobreza e insegurança. Entender a importância
da pessoa para o desenvolvimento sustentável é oferecer as oportunidades necessárias para
que, na condição de agente, desenvolva as suas capabilidades e faça as escolhas que
contribuem para a sua realização individual e social.
A busca pela qualidade de vida, que deve ser considerada como um dos pilares de
avaliação das políticas de desenvolvimento implementadas por qualquer sociedade, avaliada
com base em critérios oferecidos pela chamada “linha de pobreza”
15
, merece atenção especial.
14
O processo de estranhamento evidencia o distanciamento entre aqueles que detêm o poder e a
responsabilidade de conduzir o atual modelo de desenvolvimento e os demais que precisam efetuar as tarefas
necessárias e administrar os recursos existentes, principalmente tecnológicos, para alcançar as metas
desejadas. O principal protagonista, quando não exclusivo, detém o monopólio dos interesses e dele depende
a execução das determinações, que em muitos casos podem ser desconhecidas, embora indispensáveis para
atingir os objetivos desejados. As pessoas, nesse contexto, não se reconhecem como integrantes da dinâmica
metodológica que justifica esse processo de desenvolvimento e se tornam apenas cumpridores passivos das
atividades necessárias e predeterminadas pela estrutura de produção, às quais precisam se adaptar. A
arquitetura desse modelo independe da participação ativa e consciente das pessoas. Quando a pessoa não se
identifica, seja com o produto do seu trabalho, seja com processo que está em andamento ou com a
metodologia que inspira o desenvolvimento, configura-se a negação do valor moral substantivo da liberdade.
15
A definição e os critérios de avaliação social a partir da linha de pobreza são expostos por Sen (2001, p. 165):
“A abordagem dominante de identificação da pobreza especifica uma „linha de pobreza‟ divisória, definida
como o nível de renda abaixo da qual as pessoas são diagnosticadas como pobres. A medida convencional de
pobreza, ainda largamente empregada, parte desse ponto para a contagem do número de pessoas abaixo da
linha de pobreza a assim chamada „incidência‟ [head count] – e define o índice de pobreza como a
proporção do total da população que resulta estar a baixo da linha de pobreza (quer dizer, a fração da
população identificada como pobre). Isso fornece uma medida nítida e bem definida, e não é fácil ver porque
ela tem sido usada tão amplamente na literatura empírica sobre pobreza e privação.
A medição da pobreza pode ser vista como consistindo em dois exercícios distintos porém inter-relacionados:
(1) a identificação dos pobres, e (2) a agregação dos parâmetros estatísticos com respeito aos identificados
como pobres para derivar um índice global de pobreza. Na abordagem tradicional da „incidência‟, o exercício
de identificação é feito usando a renda relativa à „linha de pobreza‟ [the „poverty line‟ income] como uma
87
Entretanto, quando se atenta para as necessidades básicas da sobrevivência, a participação
individual na vida da sociedade e as limitações provenientes das diferenças que caracterizam
as pessoas e o contexto social onde estão inseridas, uma medida estatística não expressa
suficientemente as condições de vida
16
. Prioridade especial deve ser dada à qualidade de vida
das pessoas, especialmente das mais pobres, para a estruturação do desenvolvimento
sustentável, conforme avalizam Sen/Sudnir (1994): “Nesse sentido, o desenvolvimento
humano deveria ser visto como a maior contribuição para a realização da sustentabilidade,”
porque da atuação humana depende a quase totalidade dos demais mecanismos que
efetivamente contribuem para o progresso e o equilíbrio de uma sociedade.
A importância da qualidade da vida humana é central para o processo de
desenvolvimento sustentável, tanto pela sua razão instrumental, que tem como objetivo a
transformação do modelo vigente, quanto pelo valor intrínseco da pessoa. Uma sociedade que
se preocupa em efetivar, pela da prioridade de investimentos, a promoção das condições de
vida de seus habitantes, melhorando a qualidade e o acesso ao sistema educacional, o
aprimoramento das condições dos programas de saúde e a implementação de outros
programas de promoção humana, por exemplo, o incentivo à geração de emprego e renda, tem
clareza sobre a importância do capital humano para o processo de desenvolvimento como um
todo (SLAVIN, 1998).
Quando as pessoas são reconhecidas em suas características e valores mais
importantes e têm a oportunidade de influenciar nos destinos da sociedade na condição de
divisão. A agregação é feita simplesmente através da contagem do número de pobres e do cálculo da
proporção H a „taxa de incidência‟ [head-count ratio] de pessoas abaixo da linha de pobreza. Ambos os
exercícios são, nesta abordagem, completamente dependentes da consideração da privação em termos de
baixa renda como tal.”
A „medida de pobreza‟ é um conceito importante para medir as desigualdades especialmente relacionadas à
renda e serve para a comparação numérica entre pessoas pobres e destas com outros níveis de renda. Kolm
(2000, p. 407) focaliza o seu uso mais expressivo após a II Guerra Mundial, decorrente da ideologia do
desenvolvimento e conclui: “A medida mais simples é o número de pessoas cujos proventos estão abaixo de
uma „linha de pobreza‟, isto é, o número de pobres ou contagem de cabeças não ponderada (às vezes usada
como proporção da população total. Isso mede a extensão da pobreza (mais do que a sua profundidade). É
uma medida relevante quando os pobres constituem uma categoria razoavelmente distinta, em particular
quando todos têm o mesmo nível de renda [...]. Isso, então, é uma estatística de pobreza suficiente quando
esse nível é conhecido. Esse nível é muitas vezes um „nível de subsistência‟ (mais ou menos qualificado por
razões culturais). Quando os pobres em vários níveis de renda, essa medida é refinada de maneira
padronizada, quando necessário, pelo fornecimento do número de pessoas (em proporção) para vários níveis
da linha de pobreza (ou, de modo equivalente, as linhas de pobreza que correspondem aos vários números).
Contudo, isso não é mais uma medida única.”
16
A principal limitação desse critério de avaliação é apontada por Sen (2001, p. 166): “Pode-se agora perguntar
se juntas as duas forneceriam uma base informacional adequada para a medição da pobreza (continuando-se
aceitar a ideia de que a pobreza é melhor concebida como baixa renda). Dita de forma breve, a resposta é
não. H e I juntas não podem ser adequadas, pois nenhuma presta qualquer atenção à distribuição de renda
entre os pobres. [...] Por isso necessitamos algum outro parâmetro estatístico, supostamente alguma medida
da desigualdade na distribuição de renda entre os pobres.”
88
agente ativo, isto é, fazendo as escolhas que consideram importantes para a sua realização,
ocorre uma mudança significativa no conjunto das estruturas sociais e nas perspectivas de
existência individual. Entre os muitos campos nos quais se pode perceber essa transformação
das relações humanas e sociais, com base nesses valores, cabe destacar: o aprimoramento da
estabilidade social, política e institucional, o crescimento econômico maior e mais bem
distribuído, a recuperação da autoestima das pessoas, a atenção a uma estruturação mais
segura da convivência familiar e do controle da natalidade e a distribuição de renda mais
equilibrada.
As condições básicas para que as pessoas organizem a sua existência são decisivas e
comprometem positiva ou negativamente a organização social. A concepção de
desenvolvimento sustentável tendo como princípio norteador o valor moral substantivo da
liberdade tem preocupação especial com aqueles que estão à margem da organização social.
As privações, simbolizadas nos altos índices de analfabetismo e desemprego, morte
prematura, violência contra minorias, pobres e mulheres, políticas de segregação, instituições
que legitimam as desigualdades gritantes, entre outras, precisam ser compreendidas, além das
deficiências de renda e da falta de recursos, como a negação das liberdades substantivas, sem
as quais o conceito de pessoa é limitado em seu sentido moral mais profundo.
O desenvolvimento sustentável tem sua prioridade voltada, especialmente, para as
condições de justiça social, sobretudo naquelas sociedades onde as desigualdades são mais
acentuadas. As pessoas que se encontram em condições de vida degradantes ou próximas
disso têm suas ações guiadas para a satisfação de necessidades imediatas, o que pode gerar
reações, atitudes e comportamentos não compatíveis com as tradições e os princípios
normalmente aceitos e justificados. Como exemplo, especialmente quando as mulheres, por
causa da ausência de recursos, arriscam a sua segurança, correndo graves riscos para obter
pequenas somas de dinheiro para alimentar seus filhos. Da mesma forma, princípios e
preocupações que primam pelo uso equitativo dos recursos naturais e pelas condições de
existência das futuras gerações não encontram ressonância em contextos caracterizados por
graves desigualdades e injustiças (SEN, 1998).
O desenvolvimento sustentável adquire uma importância decisiva porque engloba as
diversificadas necessidades, expectativas e recursos com os quais se relaciona o ser humano,
particularmente a correta e criteriosa utilização dos recursos ambientais, as relações familiares
e culturais, a organização e as expectativas de ordem econômica, a complexa arquitetura
política interna e externa e o cuidado especial para com as necessidades e as condições para as
futuras gerações.
89
2.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A JUSTIÇA
As políticas de desenvolvimento cuja preocupação central está na satisfação das
necessidades das pessoas e na qualidade de vida
17
, especificamente representadas pelas
condições de sobrevivência que possibilitam a realização das expectativas de cada pessoa,
contribuem decisivamente para o equilíbrio social e ambiental. A construção de um modelo
de desenvolvimento sustentável tem sua justificativa não apenas na alteração e na
fundamentação de novos conceitos, mas também na necessidade de as instituições e as
estruturas sociais, econômicas e ambientais contribuírem para a superação das desigualdades
responsáveis pela ameaça ao equilíbrio das relações que ocorrem no interior e entre as
diversas sociedades.
A sustentabilidade é uma condição indispensável para a estruturação e a viabilidade
operacional e moral de um modelo de desenvolvimento inserido num contexto injusto, por
causa das contradições existentes na produção e na distribuição dos bens, nas excessivas
desigualdades entre as pessoas, nas relações entre as sociedades e no uso dos recursos
ambientais, entre outros espaços.
Injusto é um modelo de desenvolvimento unilateral que prima pela satisfação de
objetivos individualistas ou corporativos, que tem sua organização concentrada
preferencialmente no progresso econômico-financeiro, assim como submete as pessoas e
outros recursos aos mesmos fins. Especialmente, perde sua legitimidade quando, no decorrer
do processo de sua estruturação e funcionamento, gera graves desigualdades, fomenta ou
legitima estruturas de opressão política e cultural, exclui parte significativa das pessoas do
acesso aos bens e serviços e coloca em risco a existência das futuras gerações (SEN/
SUDNIR, 1993).
17
A importância de uma compreensão clara do conceito e do alcance da “qualidade de vida”, especificamente
para as sociedades que convivem com graves exclusões, é decisiva e não pode ser limitada a interesses
restritos. Sen (1988, p. 13) afirma essa convicção: “A expectativa de vida é, evidentemente, uma medida
muito limitada do que tem sido chamado „a qualidade de vida.‟” Existem outras dimensões que são decisivas,
seja para a satisfação das necessidades humanas, seja para o equilíbrio das relações sociais, e não podem ser
desconsideradas por ocasião da avaliação e da construção de relações sociais justas e sustentáveis, entre as
quais se podem destacar as condições de saúde e educação, particularmente a superação do analfabetismo
endêmico, a legitimidade e a força das estruturas democráticas, os índices de mortalidade e nutrição infanto-
juvenil e as condições para o controle da natalidade, entre outras. A afirmação da “qualidade de vida”, nesse
contexto, não se limita à quantificação do tempo de existência ou de bens necessários para uma pessoa, mas
amplia o seu alcance, a partir das necessidades, para o conjunto das condições que integram e caracterizam a
vida com qualidade.
90
O valor moral substantivo da liberdade é uma referência segura e determinante para a
estruturação justa do modelo de desenvolvimento sustentável porque tem suas preocupações
voltadas, prioritariamente, para a “condição de agente” da pessoa em relação à qual devem ser
promovidos os diferentes tipos de liberdades, especialmente as substantivas. Essa condição
entende a pessoa como agente político e público que “age e ocasiona mudanças e cujas
realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos,
independentemente de as avaliarmos ou não também segundo algum critério externo”. (SEN,
2000, p. 33). A pessoa é um membro ativo e atua integrada com o conjunto da estrutura
político-institucional da sociedade, influenciando na estruturação da organização econômica
e, como agente público, está diretamente envolvida e preocupada com o processo de
desenvolvimento socioeconômico e com as consequências que dele podem advir.
A fim de estruturar as relações sociais de forma justa, as pessoas interagem de forma
corresponsável com as demais e com os recursos ambientais disponíveis, de forma a garantir
as condições de vida para a sobrevivência atual sem prejudicar as futuras gerações. Da mesma
forma, preocupam-se com a situação dos mais pobres e daqueles com deficiências, ou que
possuem necessidades especiais, e com as vítimas de tragédias sociais e ambientais, das quais
se podem destacar aqueles atingidos pela fome e pelo analfabetismo, por períodos
prolongados de seca ou enchentes, povos que enfrentam conflitos internos violentos,
dominação externa, ou sociedades vitimadas pela opressão de seus dirigentes (SEN, 2006).
A estruturação do modelo de desenvolvimento sustentável, caracterizado pela
preocupação com a construção da justiça, tem uma atenção especial para com as contradições
que denunciam situações incompatíveis e injustificadas. O atual modelo de desenvolvimento,
que priorizou o crescimento econômico baseado na produção e no consumo de bens, gerou
uma situação incompatível com os objetivos, a dinâmica e as condições de sustentabilidade.
Primeiro, houve um aumento, sem precedentes, da capacidade de apropriação e produção de
bens, o que acarretou uma importante mudança das condições de vida para uma parcela
significativa das sociedades pela possibilidade de aquisição de produtos com melhor
qualidade, acesso às tecnologias e informações com maior rapidez e um sistema de produção
mais eficiente, entre outros aspectos.
Entretanto, como consequência dessa opção ocorreram a instrumentalização das
pessoas, a segmentação e a exclusão de parte daqueles que podem ser beneficiados pelo
sistema de produção e pela distribuição dos bens, assim como a utilização indiscriminada dos
recursos ambientais, o que acarretou o desequilíbrio do ecossistema e das condições de
91
existência para as futuras gerações
18
. Essa contradição é moralmente injusta e socialmente
insustentável, porque desvirtua a identidade humana, as condições de convivência e
organização social; aprofunda as desigualdades e desconsidera os valores essenciais do ser
humano e de suas relações.
A preocupação com a estruturação justa das relações humanas e sociais integra a
identidade humana e as diferentes formas de organização social. Disso emerge uma pergunta
fundamental: Quais são as condições para caracterizar um modelo de desenvolvimento
sustentável justo? Essa perspectiva de abordagem se apresenta como um referencial norteador
das opções políticas e dos instrumentos que justificam, entre diferentes variáveis, arquitetar
um projeto de desenvolvimento eficaz que integre as necessidades humanas, os recursos
disponíveis e a sua própria sustentabilidade no presente e em relação ao futuro (HÖFFE,
2003).
A contradição entre, de uma parte, a opulência de poucos e, de outra, as deficiências
de muitos denuncia uma estruturação social injusta na sua fundamentação, nas suas
consequências e na sua justificação moral. A preocupação com a justiça, que torna mais
explícito o próprio adjetivo “sustentabilidade”, identifica a escolha de um conjunto de
objetivos ideais para um modelo de desenvolvimento. Nele estão implícitos valores que
caracterizam e direcionam as preocupações e as ações humanas e sociais, seja na superação
das gritantes deficiências e desigualdades sociais, seja na afirmação do valor moral
substantivo da liberdade como meio e fim do desenvolvimento humano e social, conforme
destaca Sen (2000, p.18):
O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de
liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição
social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência
excessiva de Estados repressivos. A despeito do aumento sem precedentes da
opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número
de pessoas talvez até mesmo a maioria.
18
A crise do atual modelo de desenvolvimento e a sua incapacidade de responder aos desafios suscitados pelo
contexto contemporâneo foram evidenciadas por Manfredo A. de Oliveira (2001, p. 7), que também
denunciou a carência de uma sólida justificação da ação humana: Desde os anos 70, a crise ecológica, o
perigo da proliferação de novas guerras no planeta, o problema do reconhecimento dos direitos das minorias
e das relações internacionais, da fome e da miséria no mundo, manifestaram a urgência de uma reflexão ética
abrangente. A nova reestruturação das relações globais e da crise ecológica, determinada pelos problemas
oriundos da sociedade industrial e da crise do tipo de racionalidade cientificista, que tornou-se hegemônica
no mundo moderno, fez surgir o problema da justificação das normas fundamentais da ação humana. Se
algo que caracteriza de forma incisiva o mundo atual é, sem dúvida, a desproporção entre a velocidade
absurda do progresso científico-tecnológico e o vácuo ético que se formou a partir da negação dos sistemas
tradicionais de valores.”
92
Sendo a justiça um valor comum a todas as culturas e objetivo das agremiações
políticas, econômicas, institucionais e sociais, o seu significado pode servir muitas vezes,
erroneamente, para justificar ou legitimar concepções ou práticas individualistas, corporativas
ou de duvidosa validade moral, como, por exemplo, a existência e o funcionamento de
estruturas autoritárias e violentas com o objetivo de alcançar o bem-estar futuro. Por isso, é
importante a afirmação da justiça independentemente de interesses exclusivos, inclusive a
tendência de reduzir à tutela do direito a sua importância e a sua operacionalização.
Uma compreensão mais ampla da justiça adquire valor moral substantivo, isto é,
integra o sentido e o desejo profundo da existência humana; agrega sentido e objetivo ao
direito e unifica as diferentes instituições e finalidades sociais, entre outras dimensões. A
necessidade da justiça se faz sentir mais fortemente nas situações de crise, de carências ou
ameaças, como aquelas sentidas em relação às futuras gerações. Em oposição, quando há uma
maior disponibilidade de bens ou as necessidades são menos prementes, as exigências da
justiça se tornam menos evidentes, como, por exemplo, em períodos de razoável crescimento
econômico ou de grande produção de bens de consumo. Isso afirma que a justiça precisa
atingir, senão todas as áreas, pelo menos as mais importantes e decisivas da existência
humana e da estruturação social
19
.
A explicitação da reflexão sobre o conjunto das relações que as pessoas estabelecem
entre si e com os demais, juntamente com outras necessidades e preocupações, demonstra a
necessidade de ampliação dos espaços para a efetivação da justiça. Os direitos dos animais
não humanos, das futuras gerações e o equilíbrio ambiental simbolizam os atores que
integram uma abordagem mais ampla das exigências de justiça para o desenvolvimento
sustentável.
19
O debate sobre a relação da justiça com a satisfação das necessidades mínimas das pessoas, o alcance da sua
compreensão nas demais áreas da convivência humana e da estrutura social demonstra a necessidade de uma
contínua fundamentação e explicitação do seu valor e do seu alcance, conforme destaca Höffe (2003, p. 30)
“Porém, onde domina a abundância, por parte da natureza, a justiça se torna apenas em grande escala, mas
não integralmente, desempregada. Pois, por um lado, existe uma escassez independente da natureza, que o
ser humano não carece apenas do que a natureza lhe poderia oferecer dos bens em plenitude (na suposição de
a insaciabilidade se manter dentro de limites). O ser humano necessita também do que somente seus
semelhantes podem providenciar: serviços, começando pela assistência da qual necessitam os lactentes. Por
outro lado, nem todas as tarefas da justiça estão referidas à escassez: nem a igualdade perante a lei, nem a
competente imparcialidade do judiciário e da administração pública, relativo a isso, nem os direitos humanos
liberais, nem a soberania popular ou ainda a divisão dos poderes. Existe, e não em último lugar, uma luta
pelo reconhecimento, acompanhada pelos sentimentos de inveja e ciúme. [...]
Busca-se justiça em todo o âmbito das relações humanas, tanto nas de cooperação quanto também nas de
concorrência, no caso de aqui surgirem interesses, pretensões e deveres conflitantes. A condição objetiva de
aplicação cifra-se no litígio ou conflito. Como estes, existem, tanto no trato pessoal quanto nas relações
comerciais, bem como nas instituições e nos sistemas sociais, nomeadamente no direito e no Estado, além
disso também entre os Estados e, não em último lugar, por igual na relação entre as diferentes gerações, a
justiça está em jogo em todas as áreas.”
93
Entre as várias preocupações que compõem as condições e a justificativa para a
implementação de um modelo de desenvolvimento sustentável justo está a necessidade de
uma especial atenção para com as possíveis consequências advindas dessa escolha. O padrão
atualmente em curso representa a opção por um sistema de valores, justificativas e ações
insensível diante do valor moral da pessoa e das suas necessidades, da constituição plural da
sociedade, da esgotabilidade dos recursos naturais e das possíveis ameaças decorrentes de um
planejamento que não considera as repercussões e as ameaças que pairam sobre as pessoas e
as suas condições de sobrevivência, o equilíbrio social e ambiental e com outras dimensões
(SEN, 1990).
A concepção de desenvolvimento que não tem compromisso com a sustentabilidade
e com a justiça compromete-se com metas limitadas, independentemente de sua justificativa e
avaliação moral mais ampla, pois precisam atender aos objetivos postos em primeiro plano e a
eles submeter os demais, incluindo as pessoas e suas necessidades. Essa é uma matriz de
compreensão utilitarista, que, conforme anteriormente destacado, tem sua validade na medida
de suas consequências. Para a abordagem que entende a justiça como um valor indispensável
para justificar a opção pelo modelo fundamentado no princípio da sustentabilidade é
esclarecedora a afirmação de Höffe (2003, p. 32): “O utilitarismo é indiferente quanto à
„distribuição‟ do bem comum”.
A consideração das consequências é indispensável para a avaliação do
desenvolvimento sustentável. Entretanto, a arquitetura desse modelo é avaliada tendo como
referência o valor universal da justiça, compreendido como um valor superior e um
patrimônio comum da humanidade, ao qual estão submetidas também as consequências para
as pessoas, as sociedades, o meio ambiente e as futuras gerações (SEN, 1993).
A estrutura do modelo de desenvolvimento sustentável preocupa-se com a
organização justa de toda a rede de sustentação que o envolve, desde as suas motivações
iniciais, passando pelas ações intermediárias e, também, pelas consequências no término do
processo empreendido, que possam comprometer negativamente sua compreensão ou
viabilidade. Ocorre uma inversão substancial em relação ao modelo anteriormente em
questão. O objetivo final que deve ser buscado é a justiça, não mais aquelas metas
previamente estipuladas, especialmente se comprometidas com interesses que possam aviltar
ou instrumentalizar as pessoas, os bens ou outras dimensões decisivas para o equilíbrio
humano, social e ambiental no presente ou no futuro.
Tendo como referencial o valor moral substantivo da liberdade, o processo de
desenvolvimento sustentável tem uma relação de dependência e complementaridade com a
94
garantia, a expansão e a promoção das liberdades. Nesse sentido, uma sociedade justa e
sustentável está comprometida com a liberdade e com a superação daquelas situações que
impedem, dificultam ou negam o seu exercício.
A superação das desigualdades gritantes é uma exigência moral substantiva para a
caracterização do desenvolvimento e, entre outras, supõe a compreensão das variadas relações
que ocorrem no interior das diferentes sociedades e dos desejos e expectativas humanas,
sociais e ambientais que se materializam na opção por critérios e objetivos que priorizam as
condições de vida das pessoas e o equilíbrio social e ambiental, não limitados à produção de
bens e ao crescimento econômico ilimitados, conforme sintetiza Sen (1988, p. 13):
A importância do “crescimento” deve depender da natureza das variáveis da
expansão do que é considerado e visto como “crescimento”. O tema crucial, por esta
razão, não é o foco dimensional do crescimento, mas a importância e o alcance do
Produto Nacional Bruto e as variáveis relacionadas nas quais as medidas de
crescimento usuais se concentram. [...] Focar neste contraste não é, nesse sentido, a
mesma coisa que chegar-se a uma conclusão política imediata sobre o que deveria
ser feito, mas a natureza do contraste tem que surgir na mente ao recusar identificar
o desenvolvimento econômico como mero crescimento. Mesmo que o Produto
Nacional Bruto, entre outras coisas, devesse melhorar as condições de vida das
pessoas, e tipicamente expandir a expectativa de vida das pessoas naquele país,
existem muitas outras variantes que também influenciam as condições de vida, e o
conceito de desenvolvimento não pode ignorar as regras dessas outras variáveis.
A preocupação com a justiça na estruturação e compreensão do desenvolvimento
sustentável contempla a consideração das capabilidades de uma pessoa para que possa fazer
as escolhas que melhor correspondem às suas necessidades e aos seus objetivos, assim como
para eleger o conjunto de funcionamentos que considera importante. Por isso, os bens e os
recursos são meios que contribuem em muitos campos da existência humana e, em grande
medida, são decisivos e caracterizam as condições de vida e a participação ativa na sociedade,
assim como as referências básicas para uma política justa de desenvolvimento sustentável.
Entretanto, seja para a realização individual de uma pessoa, como foi afirmado, seja
para a avaliação e ordenamento de um modelo de desenvolvimento sustentável justo, os bens
e recursos são um critério insuficiente e restrito, entre outras justificativas, porque
condicionam as escolhas e expectativas das pessoas; reduzem significativamente o horizonte
de organização da estrutura social; desconsideram as diferenças pessoais e a formação cultural
e geográfica e, finalmente, limitam o valor moral substantivo da liberdade a aspectos
95
quantitativos, o que compromete substancialmente a sua própria concepção e a sua efetivação
(SEN, 1981).
Nessa perspectiva de afirmação do valor moral substantivo da liberdade, o seu
exercício é indispensável para a estruturação de uma opção de desenvolvimento justo e
sustentável. Essa caracterização abrange os diversos campos de uma organização: método,
interesses e recursos, entre outros. Esse é um modelo não linear e não restrito, porque procura
ordenar equitativamente as diferenças que integram e caracterizam uma sociedade pluralista;
da mesma forma, tem como objetivo a diminuição ou eliminação daquelas desigualdades que
prejudicam o equilíbrio das relações sociais, culturais, ambientais e entre as gerações.
Essa concepção de desenvolvimento, não restrita ou dependente de referências e
interesses individualistas ou corporativos, entende que as diferenças não podem ser relegadas
a um plano secundário, mas integram efetivamente a existência e a estrutura social. O critério
de justiça não elimina as diferenças, mas as integra no processo de desenvolvimento,
concebendo como sua identidade uma permanente tensão entre formas de pensar e agir
conflitivas e, não raras vezes, contraditórias. (SEN, 2001).
A busca pela justiça é um valor essencial presente em todas as sociedades e tem uma
posição proeminente, isto é, um ideal permanente que precisa ser conquistado. As condições
de vida e os demais espaços com os quais as pessoas estabelecem as suas relações dependem,
para o seu equilíbrio e organização, de uma clara compreensão do valor da justiça.
Especialmente, torna-se mais evidente quando existem situações que ameaçam a vida e a
dignidade humana, ou a própria existência de certas estruturas sociais, por exemplo, de países
e culturas. A afirmação da justiça como referência indispensável para o ordenamento social,
assim como para o equilíbrio dos demais espaços das relações humanas e sua dignidade, é
definida por Kölm (2000, p. 592): “Paz sem justiça é opressão, espoliação e violação da
dignidade. A dignidade sem justiça promove guerras pelo que é devido por direito e pela
liberdade. Somente a justiça permite o reino da paz e da dignidade.”
O modelo do desenvolvimento tem uma preocupação central com as condições de
justiça, estritamente comprometido com a garantia e a promoção da liberdade, valor este
essencial para a convivência humana, a organização e o funcionamento das sociedades e das
suas relações e exigência sem a qual não se pode afirmar a justiça social. Nessa compreensão,
as condições de bem-estar ou a qualidade de vida de uma pessoa ou dos membros de uma
sociedade não estão submetidas à dependência do progresso econômico ou restritas ao acesso
a uma quantia determinada de bens, ou, mesmo, dos programas e iniciativas do Estado. A
96
liberdade humana, especialmente representada pelas capabilidades, integra a ideia básica do
desenvolvimento e critério para a caracterização de sustentabilidade e da justiça.
Salientando a importância do crescimento econômico para a organização da
sociedade, por exemplo, para se prevenir e combater a carência de alimentos, a liberdade tem
importância indireta, porque as oportunidades econômicas são estruturadas e legitimadas com
base no valor moral substantivo da liberdade e, especialmente, as liberdades políticas, com
suas diferentes formas de expressão, reforçam e avaliam substancialmente o ordenamento
econômico. Essa é uma relação tensa, que expõe as divergências e as convergências para a
aprovação ou correção, tendo como valor norteador a liberdade substantiva (SEN, 2000).
A discussão pública, elemento fundamental e estruturante das sociedades
democráticas, opera, nesse contexto, como um importante mecanismo para a mudança social e
para o progresso econômico. Esse dinamismo possibilita afirmar, além da necessidade de um
modelo alternativo de desenvolvimento, as condições que o tornam justo e sustentável.
2.3 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E OS RECURSOS AMBIENTAIS
A implementação ou a adoção de um determinado modelo de desenvolvimento
defronta-se com a necessidade de utilização dos recursos naturais disponíveis, essenciais para
a satisfação das necessidades humanas e as diversificadas demandas emanadas do conjunto da
sociedade. A preocupação com a sustentabilidade se evidencia especialmente quando as
pessoas percebem que, sendo os recursos ambientais, utilizados de forma indiscriminada e
sem um rigoroso planejamento, comprometem-se as condições de vida, o necessário
equilíbrio da organização da sociedade e suas instituições e a sobrevivência segura das futuras
gerações.
A necessidade de princípios que orientem a utilização dos recursos naturais é uma
dimensão do desenvolvimento que há pouco tempo integra a reflexão sobre as condições para
a satisfação das necessidades humanas e sociais. A opção em vigor tem suas prioridades
dirigidas para satisfazer, prioritariamente, ao binômio produção e consumo. Essa estrutura de
organização submete os recursos naturais extraindo seu potencial na medida de seus
interesses, seus objetivos e suas ambições. Alcançar esses fins torna-se o critério de avaliação
da viabilidade e da sustentabilidade desse modelo.
97
Os recursos naturais, que até um passado recente eram considerados bens
inesgotáveis e, por isso, plenamente disponíveis, tornaram-se limitados por causa do uso
indiscriminado e pela ausência de um planejamento seguro, comprometendo o ritmo, as
condições e a legitimidade moral desse modelo de desenvolvimento, que privilegiou a
satisfação exclusiva de suas finalidades econômicas e de consumo, em detrimento das
implicações humanas, sociais, ambientais e culturais.
A percepção desses limites, juntamente com grande parte das suas consequências,
gerou a necessidade de considerar um aspecto até então poucas vezes imaginado, qual seja, o
crescimento não pode ter continuidade ilimitada. O contexto que origina esse debate é
destacado por Kesselring (2007, p. 223):
Ainda nos anos 70, quando a expressão-chave limites do crescimento ocupava as
mentes, a ideia de que poderia ser preciso lidar com limites do crescimento não fazia
parte dos conceitos dominantes sobre desenvolvimento, por mais progressistas que
elas pudessem ser. Desenvolvimento significava esclarecimento e emancipação. O
envolvimento com os limites do crescimento só se intensificou nos anos 80 e
conduziu a uma primeira discussão de conceitos sobre desenvolvimento sustentável
[sustainable development].
A abordagem sobre os limites dos recursos é um tema necessário, instigante e
indispensável, sem o qual não se pode propor e executar um planejamento seguro da
sociedade e dos demais campos das necessidades humanas. Acrescem-se, a partir disso, dois
critérios determinantes para a fundamentação e a justificação da escolha de um modelo de
desenvolvimento, quais sejam, as condições de existência para as futuras gerações e a
necessidade de planejar a utilização dos [finitos] recursos naturais. Nesse cenário ocorre uma
nova estrutura de relações, que define o desenvolvimento sustentável considerando como
parâmetro a necessidade de preservar, planejar e manter os bens da natureza, tendo como
objetivo a garantia de sobrevivência da geração atual e o equilíbrio das relações sociais e
ambientais, sem prejudicar as gerações futuras.
A condição de sustentabilidade caracteriza-se por uma relação interdependente entre
a necessidade do desenvolvimento para a satisfação das necessidades humanas e sociais e a
98
garantia dos meios para alcançar tal objetivo, no que os recursos naturais são decisivos e
indispensáveis
20
.
A pluralidade de relações e mecanismos que constituem a vida humana e suas
necessidades e a organização social identificam-se com a estrutura e o funcionamento da
natureza. A compreensão do modelo de desenvolvimento sustentável que busca integrar entre
suas preocupações fundamentais os recursos ambientais tem entre seus objetivos estabelecer
uma relação de reciprocidade e responsabilidade entre o homem, os mecanismos que
estruturam o tipo de desenvolvimento pretendido e os recursos, especialmente naturais, com
as condições necessárias e suficientes para a sua legitimidade e segurança, sintetizadas por
Sen (2000, p. 29) para justificar a necessidade de fundamentar um padrão alternativo a partir
de outras referências: “O desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a melhora
da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos.”
Para a efetivação desse modelo de desenvolvimento é indispensável o compromisso
com a garantia das liberdades substantivas, que são decisivas para a realização humana e para
a satisfação das suas necessidades. Na condição de agente, o homem estrutura sua relação
com o meio ambiente. Por meio das capabilidades, as pessoas realizam as escolhas que
consideram importantes e na condução do processo de desenvolvimento incluem os recursos
naturais e a sustentabilidade como referenciais importantes e seguros, porém não exclusivos,
para a sua organização (SEN, 1995).
A atuação humana estrutura-se numa identidade relacional, não dependente de pré-
condições limitadas a necessidades ou interesses de ordem econômica ou de produção de
bens, mas integrada a um amplo sistema de relações complexas e, ao mesmo tempo
dinâmicas, que caracterizam a estrutura da natureza e a organização da sociedade. As suas
escolhas adquirem valor e legitimidade na medida em que contemplam os objetivos das
pessoas, o equilíbrio das relações sociais, a utilização sustentável dos recursos naturais, a
satisfação das necessidades humanas e o compromisso com a existência das gerações futuras.
A concepção sistêmica de desenvolvimento sustentável, em virtude da preocupação
com os recursos naturais, considera prioritárias e relevantes, além da condição de bem-estar
das pessoas e do necessário crescimento econômico, as diferentes e constantes variáveis que
compõem a complexidade social e ambiental, assim como a necessidade de não prejudicar a
20
A negação de uma relação sustentável e suas consequências está simbolizada na metáfora de Van Dieren
(apud KESSELRING, 2007, p. 224) “Entrementes, a „quantidade de peixes‟ [...] é limitada, e não a de barcos.
Os limites da indústria madeireira são estabelecidos pela falta de florestas, não por falta de serrarias; a
utilização do petróleo é delimitada pela restrita capacidade da atmosfera absorver o CO2, e não por falta de
capacidade de refino.”
99
existência de vida humana no futuro e a administração equilibrada dos recursos naturais
(CAPRA, 1996).
A responsabilidade moral, inerente ao próprio homem, traz consigo as condições e a
capacidade de reordenar o processo de desenvolvimento em curso e de restabelecer com a
natureza uma relação de respeito, admiração e cultivo, ao invés da exploração ilimitada; de
parceria, em substituição à mera apropriação, e de participação interativa em lugar da
submissão.
Quando a ação humana, diante dos recursos naturais, desconsidera a sua
esgotabilidade e os seus limites, a prudência e a precaução necessárias diante da
complexidade e da fragilidade do sistema, a importância de uma criteriosa avaliação e de um
planejamento que contempla os bens disponíveis, as necessidades humanas e sociais e as
condições e as garantias de compensação, de regeneração ou de substituição dos bens
disponíveis, gera não apenas um desequilíbrio interno na estrutura da natureza, mas também
na organização e funcionamento da sociedade, especialmente na dimensão político-
administrativa, das instituições e do exercício das liberdades.
A instrumentalização das instituições e de outros espaços fundamentais da sociedade
e a utilização sem o cuidado e a responsabilidade necessários dos recursos ambientais
representam a privação do exercício das liberdades substantivas, conforme destaca Sen (2000,
p. 29):
Um número imenso de pessoas em todo mundo é vitima de várias formas de
privação de liberdade. Fomes coletivas continuam a ocorrer em determinadas
regiões, negando a milhões a liberdade básica de sobreviver. Mesmo nos países que
não são esporadicamente devastados por fomes coletivas, a subnutrição pode
afetar numerosos seres humanos vulneráveis. Além disso, muitas pessoas têm pouco
acesso a serviços de saúde, saneamento básico ou água tratada, e passam a vida
lutando contra a morbidez desnecessária, com frequência sucumbindo à morte
prematura.
As formas como as pessoas agem em relação aos recursos naturais têm repercussões
no conjunto das relações pessoais e familiares, no equilíbrio da sociedade e do ecossistema,
assim como na disponibilidade e quantidade de bens encontrados na natureza que oferecem as
condições necessárias e suficientes para a efetivação do modelo de desenvolvimento
sustentável.
100
Especificamente sobre os recursos naturais, faz-se necessário uma compreensão não
limitada à utilidade, mas que inclua as justificativas essenciais, com base nas quais se constrói
a legitimidade para a utilização dos bens disponíveis. O espaço de avaliação do modelo de
desenvolvimento considera, além da necessidade dos recursos naturais para a qualidade da
vida humana, o equilíbrio social e as exigências para as futuras gerações, os benefícios e as
consequências para o conjunto dos envolvidos.
A prioridade dada à utilidade legitima as diferentes ações, benéficas ou não, tendo
como princípio de atuação e de organização a satisfação de interesses e objetivos, geralmente,
sem a necessária avaliação, das reais motivações, das necessidades e das consequências sobre
as pessoas, a sociedade, o meio ambiente e o futuro
21
.
A não limitação do espaço de avaliação do desenvolvimento, especificamente a
utilização dos recursos naturais segundo critérios e interesses restritos, tem como objetivo
introduzir outros valores e referências importantes para a construção de relações equitativas
entre os diversos protagonistas e, especialmente, entre os responsáveis pelo processo de
sustentação e de condução. Entre esses podem ser evidenciados: 1) a sustentabilidade como
um valor fundamental, conforme destacado anteriormente, e horizonte, como base no qual se
podem ordenar seus objetivos, mecanismos, recursos e preocupações por meio de um
processo não excludente; 2) a solidariedade, que caracteriza uma relação entre os diferentes
envolvidos que prioriza a entreajuda, o respeito e a complementaridade, superando uma
concepção de dominação e de submissão; 3) a justiça, objetivo genuíno da organização de
uma sociedade, que busca aquilatar e aprimorar o conjunto das diversas concepções e práticas
sociais, complementares e, às vezes, contraditórias que estruturam a organização e o
funcionamento de uma sociedade e, especificamente, as políticas de desenvolvimento
(HÖFFE, 2003; NUSSBAUM, 2007; SEN, 2000).
A administração dos recursos naturais que são responsáveis pelo crescimento
econômico e pelo desenvolvimento de uma sociedade tem entre suas prerrogativas
fundamentais a preocupação com as consequências de suas práticas para toda a cadeia de
21
Tendo como referência o valor moral substantivo da liberdade, a utilização dos recursos naturais não é
limitada à satisfação dos interesses representados por grupos com forte poder político ou econômico. O
desenvolvimento econômico pode-se articular com o princípio da sustentabilidade, tendo como indicativo
para a sua organização e critério de avaliação a liberdade. A contínua separação de aspectos essenciais para o
desenvolvimento aprofunda as desigualdades, contribuindo para o desequilíbrio das relações humanas e
sociais. A conjugação em vista da sustentabilidade supõe “colocar o valor da liberdade acima das utilidades”
(SANCHO, 2006, p. 194). A opção pelo utilitarismo restringe a responsabilidade moral para com os demais e
com as futuras gerações, conforme afirmam Sen/Sudnir (1994): “Esta estrutura é baseada essencialmente no
critério utilitarista da maximização da soma total do bem-estar das diferentes gerações. Isso permite que o
bem-estar de uma geração seja tratado de um por um, comparado à seguinte geração.”
101
relacionamentos e para os interesses que estão envolvidos, especialmente para com a própria
natureza e as pessoas.
Nesse sentido, é necessário caracterizar o desenvolvimento sustentável,
particularmente no que se refere aos recursos naturais, como um processo duradouro, eficaz e
seguro para todos. Primeiro, quanto à natureza, porque é entendida como portadora dos meios
necessários para a sobrevivência humana e das demais espécies e, também, porque o processo
de transformação de seus recursos proporciona a melhoria das condições de vida das pessoas
e o progresso humano e social. Segundo, o homem tem a importante missão de gerir, por
meio de diferentes mecanismos, os bens da natureza e a estruturação da sociedade e deve
fazê-lo com uma atitude de responsabilidade e respeito para com as demais pessoas, os bens e
a dinâmica da natureza; a disposição e a utilização dos bens naturais justificam-se na medida
em que, de maneira quantitativa e qualitativa, o homem se beneficia, permitindo a
recomposição ou a compensação, evitando a limitação das condições de vida no presente e no
futuro. Terceiro, a sociedade precisa ter, no interior de sua organização, as condições e a
capacidade de existir e de satisfazer às necessidades e demandas dos seus membros por meio
de suas estruturas e instituições democráticas, cujos instrumentos não estão a serviço de
interesses ou de pessoas num período de tempo reduzido ou coincidir com a sua realização
imediata; ao contrário, a estabilidade político-institucional adapta-se aos constantes desafios
que emergem do seu interior a fim de assegurar o equilíbrio no presente e no futuro. Quarto, o
futuro, embora ainda não exista, tem sua possibilidade e concretização dependentes da
atuação no presente; por essa razão, a administração segura e responsavelmente planejada dos
recursos naturais, assim como da estrutura da sociedade, permite as necessárias condições de
existência no futuro, especialmente a sobrevivência das pessoas e a existência de meios para
tanto.
A opção por um modelo duradouro constrói uma relação equilibrada e responsável
com os mais variados espaços da atividade humana, especialmente com os recursos
disponíveis, considerando seu potencial, mas também os seus limites, e em relação ao futuro,
um sentimento permeado de valores morais de grave responsabilidade e compromisso com as
condições para a sua existência. A sustentabilidade precisa ser constantemente avaliada,
destacando-se as necessidades e os objetivos de longo prazo, sem os quais florescem o
individualismo e a relação de uso sem limites do que está disponível no momento. Na mesma
perspectiva, sem a devida atenção, estruturam-se sistemas econômicos e políticos mediados
por instituições ou organizações normalmente autoritárias e respaldadas por uma arquitetura
jurídica que atende e legitima os mesmos interesses.
102
A dinâmica da natureza, evidenciando as características e peculiaridades específicas
e as ameaças provenientes do atual modelo de desenvolvimento, com suas práticas e
interesses imediatistas, é destacada por Capra (1996, p. 232):
A natureza cíclica dos processos ecológicos é um importante princípio da ecologia.
Os laços de realimentação dos ecossistemas são as vias ao longo das quais os
nutrientes são continuamente reciclados. Sendo sistemas abertos, todos os
organismos de um ecossistema produzem resíduos, mas o que é resíduo para uma
espécie é alimento para outra, de tal modo que o ecossistema como um todo
permanece livre de resíduos. As comunidades de organismo têm evoluído dessa
maneira ao longo de bilhões de anos, usando e reciclando continuamente as mesmas
moléculas de minerais, de água e de ar. Aqui a lição para as comunidades humanas é
óbvia. Um dos principais desacordos entre a economia e a ecologia deriva do fato de
que a natureza é cíclica, enquanto que nossos sistemas industriais são lineares.
Nossas atividades comerciais extraem recursos, transformam-nos em produtos e em
resíduos, e vendem os produtos a consumidores, que descartam ainda mais resíduos
depois de ter consumido os produtos. Os padrões sustentáveis de produção e de
consumo precisam ser cíclicos, imitando os processos cíclicos da natureza. Para
conseguir esses padrões cíclicos, precisamos planejar num nível fundamental nossas
atividades comerciais e nossa economia. [...] Os economistas corporativos tratam
como bens gratuitos não somente o ar, a água e o solo mas também a delicada rede
de relações sociais, que é seriamente afetada pela expansão econômica continua. Os
lucros privados estão sendo obtidos com os custos públicos em detrimento do meio
ambiente e da qualidade geral da vida, e às expensas das gerações futuras. O
mercado, simplesmente, nos a informação errada. uma falta de realimentação,
e a alfabetização ecológica básica nos ensina que esse sistema não é sustentável.
A sustentabilidade dos recursos naturais não está limitada às decisões técnicas ou
políticas, mas, sobretudo, envolve a vinculação de um convencimento individual e coletivo
que contemple, em relação à natureza, uma atitude de respeito e reverência, que se expressa
por meio dos princípios da moderação, do limite, do cuidado e austeridade, entre outros,
materializados numa estrutura jurídica consistente, que destaque e fomente a preservação, a
reposição e a utilização responsável dos bens disponíveis.
O valor moral substantivo da liberdade fundamenta essa concepção na medida em
que a pessoa realiza as suas escolhas de maneira responsável e, desse modo, atua para
melhorar as condições de vida dos membros da sociedade. O ser humano, independentemente
do qual não existe desenvolvimento, está no centro das preocupações e tem as condições para
influenciar permanentemente na condução da sociedade e no processo de desenvolvimento
sustentável, por meio de diferentes ações que caracterizam a sua atuação, dentre os quais se
podem destacar a educação para a liberdade, conforme acentua Sen (2000, p. 332): “A
103
perspectiva da capacidade humana, por sua vez, concentra-se no potencial a liberdade
substantiva das pessoas para levar a vida que elas têm razão para valorizar e para melhorar
as escolhas reais que elas possuem.”
Existe uma dinâmica específica que caracteriza o gerenciamento dos recursos
ambientais, assim como as demais áreas, que pode ser transmitida e impressa pela ação
humana no exercício das liberdades substantivas. Só o homem tem as condições para avaliar a
sua atuação, e o faz reafirmando suas opções, revendo as justificativas, reorientando suas
ações e atualizando seu agir em resposta àquilo que emerge da realidade.
O exercício das liberdades substantivas não restringe nem limita a ação humana, mas
orienta o modelo de desenvolvimento sustentável considerando as diferentes necessidades, os
recursos tecnológicos e ambientais disponíveis e a responsabilidade com as futuras gerações.
O valor moral substantivo da liberdade preserva a autonomia do homem, da mesma forma que
fundamenta e orienta a sua ação na condução e na organização do desenvolvimento, que faz
de maneira complementar e integrada. A atuação autônoma das pessoas acontece de maneira
cooperativa em relação aos demais, aos recursos disponíveis e às futuras gerações.
Entretanto, na atuação humana as referências se concentram, prioritariamente, na
autonomia individual, facilmente ocorre a imposição de vontades e interesses individualistas,
sem preocupação com os limites dos recursos naturais, as necessidades humanas, o equilíbrio
das relações sociais e o futuro da humanidade. Essa posição é referendada por Nozick (1994,
p. 185) quando afirma:
Uma concepção mais apropriada dos direitos individuais seria a seguinte: eles são
co-possíveis, podendo cada pessoa exercer seus direitos como quiser. O exercício
desses direitos estabelece alguns aspectos no mundo. Dentro das limitações desses
aspectos fixos, a escolha pode ser feita por um mecanismo de escolha social baseado
em uma ordenação social. Se sobrarem quaisquer escolhas a fazer! Os direitos não
determinam a ordenação social, mas sim um conjunto de limitações, dentro das
quais a escolha social deve ser feita por exclusão de certas alternativas, a fixação de
outras, e assim por diante. [...] Mesmo que todas as possíveis alternativas fossem
ordenadas previamente, à parte os direitos de todos, a situação não seria mudada;
isso porque, neste caso, a alternativa mais altamente classificada que não é excluída
pelo exercício de seus direitos por alguém é instituída. Direitos não determinam a
posição de uma alternativa, ou a posição relativa de duas alternativas em um
ordenamento social: operam sobre o ordenamento a fim de limitar a opção que ele
pode produzir. Se os direitos de propriedade são os direitos de dispor dela, como se
quer, então a opção social tem que ocorrer dentro das limitações de como as pessoas
resolvem exercer esses direitos. Se alguma padronização é legítima, ela se inclui no
domínio da opção social e, por isso mesmo, é limitada pelos direitos das pessoas.
104
A opção pela autonomia da ação humana centralizada e legitimada pela prioridade
dada ao exercício da vontade individual submete “o outro” à vontade e aos interesses da parte
que tem melhores condições, poder ou recursos de se apresentar como proponente. A
preocupação, amplamente defendida nesta tese, com os mais pobres, as vítimas de sistemas
políticos autoritários ou excludentes, os modelos de desenvolvimento, as garantias de
sobrevivência futura e os limites dos recursos atualmente disponíveis, segundo esse
entendimento, não constitui um interesse prioritário para a construção da justiça social. Nesse
sentido conclui Álvaro de Vita (2000, p. 57): “Um agente libertariano diria algo do gênero:
Para mim, somente importa fazer valer meus próprios interesses e realizar a minha concepção
de boa vida, desde que para isso eu não cause danos a outros.”
A preocupação com a sustentabilidade considerando os limites dos recursos naturais
não pode ser concebida de forma unilateral, evidenciando a ação ilimitada do homem, assim
como a busca do crescimento econômico como meta máxima da organização social.
Centralizar a avaliação do desenvolvimento sustentável considerando o valor moral
substantivo da liberdade caracteriza o homem como protagonista dessa concepção, que, ao
invés de se apresentar com as capacidades e as condições de se impor pela legitimidade dos
direitos individuais, atua de forma solidária e corresponsável em relação aos demais. Dessa
forma, seu agir, não restrito ao bem-estar individual, contribui para a qualidade de vida das
pessoas, para o crescimento econômico e desenvolvimento social, o equilíbrio da organização
social e a segurança das condições de existência futura (NUSSBAUM, 2007).
A atuação livre e responsável do homem diante das possibilidades proporcionadas
pelos recursos naturais e da evidente constatação de seus limites precisa considerar a
necessidade de avaliação dos fundamentos e das consequências do atual modelo de
desenvolvimento e a sua responsabilidade moral por ter originado não apenas uma crise
estrutural, mas, especialmente, por ter usado o seu poder de forma ilegítima. A convicção de
que as capacidades de que dispõe não legitimam nem justificam a sua atuação ilimitada
possibilita a retomada do seu agir fundamentado em valores e princípios que orientem a sua
ação, não restrita ao bem-estar individual, mas comprometida com a busca da qualidade de
vida das pessoas, o equilíbrio das relações sociais, a utilização responsável dos recursos
naturais e as condições de existência das futuras gerações.
Os princípios que são estranhos a uma concepção restrita e individualista tornam-se
iminentes quando inseridos num contexto no qual afloram limitações e desigualdades
injustificadas. O protagonismo da sustentabilidade em relação aos recursos naturais
compreende como decisivos os valores de solidariedade, cooperação, responsabilidade,
105
preservação, ternura, cuidado e equidade, entre outros, porque aprimoram a convivência e a
ação humanas, juntamente com as políticas de desenvolvimento para as diferentes áreas da
estrutura social.
2.4 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, AS RELAÇÕES DE TRABALHO E A
QUALIDADE DE VIDA
As formas como as relações de trabalho se estruturam é uma referência indispensável
para a arquitetura do modelo de desenvolvimento sustentável, seja pelo valor intrínseco do
trabalho, seja pelas consequências que sua organização acarreta para as diferentes áreas da
atuação humana e da organização da sociedade, assim como pelas graves limitações
ocasionadas, especialmente, pelas más condições de trabalho, que prejudicam particularmente
os mais pobres, as vítimas da escravidão, da discriminação, do trabalho infanto-juvenil e do
desemprego.
As relações de trabalho, além das preocupações relativas às pessoas e à política
interna em cada país, têm repercussão na política externa, especialmente em questões ligadas
à diplomacia, à estrutura legislativa, ao comércio internacional e à estabilidade política, sobre
as quais são estabelecidos acordos, contratos e compromissos que contribuem para o
progresso econômico e para o desenvolvimento social.
A organização das relações de trabalho é fundamental para a realização individual
das pessoas porque integra a construção da identidade pessoal; a organização e a viabilidade
do seu projeto de vida; as condições mínimas necessárias para a obtenção dos bens que
consideram importantes; a oportunidade de participar, na condição de agente, das decisões
sociais e do espaço público sem constrangimento; a emancipação e a superação das
persistentes exclusões ou discriminações, assim como busca a realização daqueles objetivos
íntimos que são decisivos para a sua realização e a integração social (SEN, 2000). Uma
sociedade preocupada em bem organizar a qualidade de vida dos seus membros tem especial
interesse que o mundo do trabalho opere de forma eficiente e contribua para a melhoria das
condições de vida de seus habitantes e para o desenvolvimento social.
Especialmente sobre a estruturação e o funcionamento da estrutura de uma
sociedade, uma criteriosa organização do trabalho contribui, substancialmente, para a
estabilidade econômica e política e para o equilíbrio das instituições. Entre as diversas áreas
106
se podem destacar a significativa melhoria da qualidade de vida das pessoas, a diminuição das
desigualdades econômicas, o acesso a melhores serviços, a melhor integração e participação
no sistema de mercado, o crescimento econômico, o aumento do aporte de recursos para a
organização dos serviços públicos, especialmente o contingente destinado às políticas de
assistência social, que aumentam as oportunidades de promoção humana e o desenvolvimento
das capabilidades.
A organização da vida de uma pessoa no decorrer da sua existência é nitidamente
identificada com a sua atividade laboral, da qual depende grande parte da sua realização
pessoal, da sua família e sua integração social. Determinado trabalho ou profissão contribuem
para que uma pessoa integre aos seus objetivos, além de outros planos, atividades e
possibilidades de realização semelhantes aos demais, um conjunto de metas que são
dependentes dos rendimentos da atividade e outros que se propõe realizar num período
posterior.
O acesso ao mercado de trabalho pela oportunidade de escolha de uma determinada
atividade amplia as condições para o exercício da liberdade. Por isso, a pessoa precisa ter a
oportunidade de poder trabalhar e escolher a atividade que melhor atende aos seus objetivos,
que condiz com as suas aptidões e possibilita a sua efetiva participação na sociedade
22
.
O tipo de trabalho que uma pessoa escolhe não pode ser reduzido a um meio para
obter determinados fins, o que significaria limitar o seu valor à satisfação de interesses
imediatos, individualistas ou ligados ao bem-estar e, também, sentenciar a sua importância
pelas consequências. A discussão sobre o objetivo do trabalho está relacionada com as
motivações e aptidões de cada um, assim como com a tradição cultural e o ambiente social
onde está inserido. O debate sobre o trabalho e a tentativa de reduzir sua importância a uma
compreensão dependente dos ganhos econômicos são explicadas por Sen (1975, p. 81),
A maneira de sair desse dilema seria dizer: as pessoas preferem estar empregadas
porque elas ganham uma renda dessa maneira, mas o emprego não é avaliado por ele
mesmo, e ninguém quereria trabalhar se não fosse compensado por isso. Esta linha
de raciocínio concentra-se no que tem sido chamado de “a abordagem da renda” e
ela é uma justificativa de emprego não sem sentido, com o objetivo de ganhar uma
renda. Mas não está evidenciado, que as pessoas prefiram ter um trabalho somente
porque ele lhes traga compensação financeira. Um trabalho pode ser uma fonte de
satisfação por ele mesmo, que seria chamado de “abordagem do reconhecimento”.
22
O desemprego é um claro indicativo de que as pessoas estão privadas das suas capabilidades. A contribuição
que uma pessoa pode oferecer com o seu trabalho é indispensável para o aumento da produtividade,
juntamente com o aumento da renda. As opções de trabalho têm repercussão direta e indireta no aumento das
capabilidades e, ao diminuir as privações, enriquecem a vida humana (SEN , 2000, p. 114).
107
A estruturação das políticas de desenvolvimento sustentável preocupa-se também
com a necessidade de uma maior produção de bens e com a melhoria das condições
econômicas para satisfazer às necessidades de consumo. Por ser um tema relacionado com a
questão da sobrevivência e da condição de vida das pessoas, a abordagem do trabalho que
concentra suas atenções unicamente nos aspectos econômicos pode, facilmente, limitar o seu
universo aos cálculos de custo e benefício, tanto em relação às razões e ao sentido do
emprego, quanto ao significado do rendimento salarial.
As políticas de emprego precisam estar integradas com todo o sistema de
estruturação da sociedade, que se organiza de forma sistêmica e interdependente, o que
possibilita a percepção e a emergência de outras dimensões que compõem o desenvolvimento
sustentável, além do sentido e da importância do trabalho, da sua razão ontológica e do seu
potencial para a realização de cada pessoa e para as condições de sustentabilidade do conjunto
da organização social e ambiental no presente e também no futuro.
O tratamento que precisa ser dispensado a um tema dessa relevância, com suas
diversificadas manifestações e peculiaridades, segundo o modelo de desenvolvimento
sustentável, tem como requisito a garantia dos direitos e das condições específicas presentes
nas sociedades democráticas, porque dispõe dos instrumentos suficientes para conviver com
as diferentes compreensões que estão no seu interior, integrando-as com as demais
necessidades, especialmente as econômicas, os recursos disponíveis e as condições
ambientais, políticas e técnicas necessárias para a implementação dos objetivos pretendidos.
A importância de uma reflexão conjunta sobre as necessidades econômicas e as dimensões
políticas e institucionais é destacada por Sen (2000, p.180):
Os papéis instrumentais das liberdades políticas e dos direitos civis podem ser muito
substanciais, mas a relação entre necessidades econômicas e liberdades políticas
pode ter também um aspecto construtivo. O exercício dos direitos políticos básicos
torna mais provável não que haja uma resposta política a necessidades
econômicas, como também que a própria conceituação incluindo a compreensão
de “necessidades econômicas” possa requerer o exercício desses direitos. De fato,
pode-se afirmar que uma compreensão adequada de quais são as necessidades
econômicas seu conteúdo e sua força requer discussão e diálogo. Os direitos
políticos e civis, especialmente relacionados à garantia de discussão, debate, crítica e
dissensão abertos, são centrais para o processo de escolhas bem fundamentadas e
refletidas. Esses processos são cruciais para a formação de valores e, não podemos,
em geral, tomar as preferências como dadas independentemente de discussão
pública, ou seja, sem levar em conta se são ou não permitidos debates e diálogos.
108
O acesso ao trabalho é uma dimensão decisiva para o desenvolvimento das
capabilidades humanas, que representam as liberdades substantivas e estão diretamente
relacionadas com a participação nas relações de mercado, na estrutura política e na
oportunidade de influenciar nos destinos da sociedade, entre outras. A ausência das liberdades
substantivas acarreta graves problemas relativos à participação das pessoas nas diferentes
esferas da vida econômica, particularmente quanto à possibilidade de escolher entre diversos
tipos de trabalho.
Especialmente quando existe uma preocupação com o mercado de trabalho, o
emprego possibilita que as pessoas contribuam com suas habilidades e sua força de trabalho
para um modelo de desenvolvimento que tem compromissos com a sua sobrevivência, sua
realização pessoal e com as futuras gerações
23
, com o equilíbrio das relações sociais, com a
correta utilização dos recursos naturais e com as demais sociedades, especialmente aquelas
onde o desenvolvimento é precário ou inexistente.
Importa notar que naquelas sociedades onde persistem graves violações das
condições de trabalho, especificamente em virtude da manutenção de tradições
discriminatórias que atingem raças, mulheres e estrangeiros, de situações subumanas, da
restrição das opções de trabalho por interesses políticos e econômicos, da imposição de regras
que inibem e impossibilitam a convivência entre as pessoas, do uso indiscriminado dos
recursos naturais, entre outros aspectos, tipifica-se a evidente negação das liberdades
substantivas, o que compromete negativamente, na sua origem, as condições para a
estruturação do modelo de desenvolvimento sustentável.
O compromisso com suficientes oportunidades de trabalho, aliado às condições para
exercê-lo, representa a responsabilidade dos dirigentes e deres para com uma estruturação
justa da sociedade e o equilíbrio das relações sociais. As graves desigualdades, especialmente
23
O compromisso com as futuras gerações, sendo uma exigência fundamental para a estruturação do
desenvolvimento sustentável, ultrapassa uma compreensão limitada aos interesses e objetivos imediatos, para
alcançar uma dimensão de cooperação e integração com todos, incluindo os ainda não existentes. Isso supõe
uma concepção moral e política orientada por critérios de justiça que considerem os membros da sociedade
ainda não existentes na condição de sujeitos de direito e merecedores das condições necessárias para a
sobrevivência. Para sua efetivação, além do uso equilibrado dos recursos atualmente disponíveis, são
necessárias “reservas” para que esse objetivo possa ser alcançado, chamado por Rawls (2000b, p. 63; 327) de
poupança justa: “Assim, temos o problema de estender o conceito de justiça como equidade de forma a
abranger nossos deveres para com as gerações futuras, entre os quais se encontra o problema da poupança
justa. [...] Considere o caso da poupança justa: como a sociedade é um sistema de cooperação entre as
gerações ao longo do tempo, um princípio de poupança faz-se necessário. Em vez de imaginar um acordo
direto (hipotético e não histórico) entre todas as gerações, as partes podem ser chamadas a concordar com um
princípio de poupança sujeito a mais uma condição: a de que todas as gerações anteriores o tenham
obedecido. Desse modo, o princípio correto é aquele que os membros de qualquer geração (de todas,
portanto) adotariam como aquele que sua geração deve respeitar, e como o princípio que gostariam que as
gerações anteriores tivessem respeitado (e que as próximas respeitem), por maior que seja a distância no
tempo, para trás ou para frente.”
109
de rendas entre os mais ricos e os pobres, constituem uma forte ameaça à organização da
sociedade e a todos os seus membros. Quanto aos mais ricos, a impossibilidade de usufruir
certas oportunidades importantes por causa das limitações impostas pelo acúmulo de bens e
riquezas representa a ausência de liberdades importantes, especialmente da liberdade política.
Por sua vez, os mais pobres são as vítimas das mazelas originadas pelo desequilíbrio na
distribuição dos recursos econômicos, o que também lhes impossibilita o exercício das
liberdades básicas (SEN, 1994).
Com a afirmação do valor moral substantivo da liberdade, o crescimento econômico
e o acesso a certa quantia de recursos, em maior ou menor quantidade, têm sentido na medida
em que promovem as liberdades substantivas. A diminuição das desigualdades econômicas
tem como contrapartida o aumento das liberdades. Grandes contrastes na distribuição ou
acesso aos bens manifestam outras debilidades da sociedade, com consequências nas relações
pessoais, familiares, políticas, religiosas e culturais. Por isso, a privação de acesso aos bens
motivados por interesses políticos ou de outra ordem não encontra justificativa moral em
qualquer concepção de justiça importante. Da mesma forma, o progresso econômico de um
país, de uma região, ou mesmo individual não tem legitimidade moral quando ocasiona altos
índices de desigualdade ou ocorre à custa disso.
Entre as situações que refletem o desequilíbrio das relações de trabalho e emprego
numa sociedade estão os altos níveis de desemprego, que impedem a estabilidade política e
social, além de ocasionar outras graves privações individuais e sociais, conforme atesta Sen
(2000, p. 117):
provas abundantes de que o desemprego tem efeitos abrangentes além da perda
de renda, como dano psicológico, perda de motivação para o trabalho, perda de
habilidade e autoconfiança, aumento de doenças e morbidez (e até mesmo as taxas
de mortalidade), perturbação das relações familiares e da vida social, intensificação
da exclusão social e acentuação de tensões raciais e de assimetria entre os sexos.
O desemprego representa um claro empecilho para a realização de grande parte das
aspirações pessoais e sociais das pessoas, na medida em que exige do Estado gastos
expressivos para amenizar os problemas derivados, compromete significativamente transações
comerciais e provoca grande instabilidade política e institucional. Uma estrutura social
instável atinge todos os níveis de relacionamento das pessoas e das instituições, exigindo, não
110
raras vezes, a necessidade de impor medidas de controle às pessoas, às organizações e aos
movimentos sociais, o que contradiz frontalmente o valor primordial da liberdade. As pessoas,
quando atingidas pelo desemprego, distanciam-se da condição de agente, perdendo
referenciais importantes para a sua existência, conforme anteriormente afirmado, o que as
impede de atuar com autonomia nas diferentes instâncias da sociedade.
Os altos índices de desemprego condicionam as iniciativas do Estado, especialmente
por meio dos programas de assistência social, que normalmente têm como objetivo o
enfrentamento de situações emergenciais ou para a superação de casos localizados e
específicos em vista de um objetivo maior, de médio ou longo prazo. Os recursos existentes
precisam ser canalizados para finalidades restritas ao atendimento de problemas imediatos e
de alcance limitado (KESSELRING, 2007).
Os orçamentos, que normalmente são insuficientes, especialmente nos países com
baixo nível de desenvolvimento e, com maior intensidade, quando aumenta o número de
emergências, acarretam um acréscimo significativo de gastos para os governos, que pouco ou
nada contribuem para solucionar as causas que os originaram, da mesma forma que não
garantem o retorno normalmente almejado pelos investimentos públicos. Nesse contexto, as
pessoas estão na condição de não agentes porque dependem da ação de terceiros, do Estado
ou de outras instituições, que precisam limitar sua atuação a políticas assistencialistas, as
quais resultam numa relação de dependência, comprometendo gravemente a identidade
humana e o exercício das liberdades.
Quando as políticas de desenvolvimento dispõem de recursos que permitem
investimentos significativos, ao invés de apenas aumento de gastos, seja pelo Estado, seja
pelas iniciativas do mercado, o interesse prioritário volta-se para a busca de soluções aos
diferentes problemas sociais. Com perspectivas mais amplas, suas ações são respaldadas por
objetivos de duração mais extensa e pela oportunidade de diminuir ou erradicar as causas que
prejudicam a vida das pessoas, grupos ou países. Nesse sentido, acontecem a inversão das
desigualdades em vista de relações mais equitativas nos diversos níveis sociais, o resgate da
condição de agente das pessoas e o retorno dos investimentos, especialmente pelo Estado, em
razão do aumento da arrecadação de impostos e da diminuição da necessidade de maiores
gastos assistenciais.
A estruturação de um modelo de desenvolvimento sustentável, tendo como
preocupação as relações de trabalho, compreende o funcionamento da sociedade de forma
cooperativa e integrada com os objetivos de médio e longo prazo. De maneira responsável,
busca a solução daquelas ameaças que impedem a qualidade de vida das pessoas e o
111
ordenamento seguro das relações sociais. O princípio da sustentabilidade imprime uma
dinâmica de reconstrução interior das pessoas e da sociedade, na qual a oportunidade de
trabalhar tem uma relevância especial. O trabalho, aliado à expansão das políticas de
alfabetização e atendimento da saúde, programas sociais, criação e ampliação de programas
de crédito e de qualificação técnica, entre outras, possibilita e incentiva a participação nas
decisões políticas, a reconstituição do tecido social, o resgate da autoestima e de inúmeras
outras dimensões essenciais para a realização e as garantias do desenvolvimento (SEN, 1975).
O crescimento econômico, desse modo, torna-se um objetivo importante para os
diferentes campos do desenvolvimento, pois aumenta as oportunidades de participação social,
contribuindo diretamente para o aprimoramento e o acréscimo da produção e do consumo de
bens. O Estado tem especial interesse porque aumentam os recursos para as políticas de
investimento dos programas sociais, infraestrutura e outros. Entretanto, todo o processo de
crescimento econômico e de desenvolvimento social precisa estar subordinado ao princípio de
sustentabilidade, que rege a organização e o funcionamento da sociedade.
A importância do trabalho para a melhoria das capabilidades humanas é um fator que
tem destaque para a avaliação das condições e para a efetivação do desenvolvimento
sustentável, alcançando também outros espaços decisivos para uma equilibrada relação social,
entre os quais se podem citar o aumento da liberdade de escolha, a melhoria da participação
política, particularmente das mulheres nas sociedades onde persiste a discriminação por
razões culturais ou religiosas, melhores condições para o planejamento familiar, entre outros.
O desemprego, que tem como consequência imediata a diminuição da renda, é uma das
principais causas da pobreza, a qual, contudo, não pode ser avaliada apenas como produto das
deficiências econômicas, pois isso seria restringir a ação humana às necessidades e demandas
econômicas (SEN, 1981).
A convicção do valor moral substantivo da liberdade, amplamente abordado por Sen,
reafirma que a pobreza é, primeiramente, a privação das capabilidades
24
de uma pessoa, o que
impede que haja as opções entre diferentes alternativas e a escolha do tipo de vida que melhor
preenche suas expectativas e funcionamentos para a sua realização. O cuidado com as
políticas de emprego precisa refletir os fundamentos e as condições para a justiça social,
24
A justificativa para a compreensão da pobreza, não restrita à ausência de renda, é destacada por Sen (2000, p.
109): “1) A pobreza pode sensatamente ser identificada em termos de privação das capacidades; a abordagem
concentra-se em privações que são intrinsecamente importantes (em contraste com a renda baixa, que é
importante apenas instrumentalmente). 2) Existem outras influências sobre a privação de capacidades além
do baixo nível de renda (a renda não é o único instrumento de geração de capacidades). 3) A relação
instrumental entre baixa renda e baixa capacidade é variável entre comunidades e até mesmo entre famílias e
indivíduos (o impacto da renda sobre as capacidades é contingente e condicional).”
112
englobando o aumento da renda, mas também, e especialmente, a preocupação irrenunciável
com a não privação das capabilidades.
O crescimento econômico preocupado com o atendimento das demandas sociais é
integrado, entre outros objetivos, pelo conjunto de aspirações da sociedade, pela preocupação
com a sustentabilidade, pela responsabilidade com as futuras gerações e pelo compromisso
com a justiça social. O que torna possível a realização dessas finalidades é a construção de
uma ampla e sólida base social, que ofereça as condições necessárias para o desenvolvimento
sustentável ao longo do tempo, representado por realizações “como altos níveis de
alfabetização e educação básica, bons serviços gerais de saúde, reformas agrárias concluídas,
etc.” (SEN, 2000, p. 113). A importância de um crescimento respaldado pela qualidade de
vida e pelas condições de participação efetiva dos membros da sociedade legitima as opções
políticas, aprimora o funcionamento das instituições e mantém a dinâmica de estruturação das
relações sociais em constante avaliação, desafiando permanentemente o seu aprimoramento.
O desenvolvimento que tradicionalmente priorizou a produção e o consumo de bens
tem entre as suas principais deficiências a redução da pessoa a um papel secundário, a fim de
alcançar as metas previamente planejadas. O alto nível de desemprego muitas vezes é
necessário e justificado para a efetivação dos objetivos previstos. Diferentemente disso, na
concepção respaldada pela sustentabilidade o desemprego é um fator que fere o equilíbrio da
organização social, prejudicando, além do crescimento econômico, os demais espaços da vida
social e, especialmente, a qualidade de vida das pessoas, conforme esclarece Nussbaum
(2007, p. 160): “Produtividade é necessária, e até mesmo boa, mas não é o principal fim da
vida social.”
A avaliação das condições e critérios do desenvolvimento sustentável, considerando
o valor moral substantivo da liberdade, tem como meta a valorização dos variados aspectos
que compõem os seus fundamentos, a sua estrutura e a sua organização, conforme assinala
Sen (2000, p. 49) ao sublinhar os limites de concepções que procuram organizar todas as áreas
que englobam o desenvolvimento de uma sociedade segundo um entendimento único.
Considerar os interesses particulares, as políticas de Estado, os recursos disponíveis, as
preocupações com o futuro, o crescimento econômico, assim como os meios e a maneira
como é conduzido, significa romper o enquadramento em determinados interesses ou
objetivos restritos, privilegiando outros aspectos que podem ser importantes e contribuir
decisivamente para um ordenamento social justo. Negligenciar anseios ou preocupações
sociais, embora possa parecer pouco relevante, é uma atitude prejudicial diante da
113
constituição plural do ambiente social, além de ferir um dos princípios básicos da democracia,
que é a participação livre de todos, expressando suas divergências, seus desejos e seus planos.
A análise do desenvolvimento, quando fundamentada numa compreensão unilateral,
facilmente conduz ao atendimento prioritário das preferências pessoais, à satisfação de
interesses individuais ou de grupos, à falta de sensibilidade para com as situações de
sofrimento e de pobreza, à perda da capacidade de diálogo e da convivência com as
diferenças, entre outros. Do ponto de vista político, as consequências se manifestam pela
submissão do Estado e das instituições aos interesses econômicos, de pessoas ou dos grupos
mais influentes, pela instrumentalização da democracia, pela preferência à maximização da
eficiência e do autointeresse, entre outras. Com base no valor moral substantivo da liberdade,
é necessário compreender as múltiplas relações que ocorrem no interior da sociedade, de cujo
ordenamento depende a estruturação de um modelo de desenvolvimento.
A liberdade de agir de uma pessoa não pode se confundir com uma atuação
individual ilimitada, seja para satisfazer apenas aos seus interesses, seja àqueles que,
porventura, representam na esfera do mercado ou do Estado. Assinala Nozick (1974, p. 170):
“O Estado mínimo é o mais extenso que se pode justificar. Qualquer outro mais amplo viola
direitos da pessoa. Ainda assim muitas delas apresentaram razões que alegadamente
justificam o Estado mais amplo.” O autor acrescenta a condição fundamental para a justiça:
“O resultado total é produto de muitas decisões individuais que os indivíduos envolvidos têm
o direito de tomar.” (p. 171).
Os limites da maximização do exercício da liberdade são destacados por Sen (1999,
p. 72) ao comentar a ênfase de Nozick na liberdade e nos direitos individuais e suas
consequências para o agir da pessoa nas relações econômicas:
O indivíduo é livre para empenhar-se por seus interesses (sujeito a essas restrições),
sem nenhum impedimento. Contudo é preciso reconhecer que a existência desses
direitos não indica que seria eticamente apropriado exercê-los por meio do
comportamento autointeressado. A existência de um direito como esse serve de
restrição para que outras pessoas não impeçam esse indivíduo caso ele decida buscar
a maximização de seu autointeresse.
A preocupação de que as relações de trabalho ocorram de maneira integrada com a
compreensão do desenvolvimento sustentável inclui a afirmação sobre o valor peculiar do
trabalho, não limitado aos interesses exclusivos do crescimento econômico, mas relacionado
114
com as outras dimensões que buscam um modelo equitativo de estruturação da sociedade. O
desemprego é um problema social que pode causar, além de dificuldades individuais, o
desequilíbrio social e das instituições, comprometendo a identidade e a atuação do Estado. O
exercício da liberdade identifica a pessoa na condição de agente que tem responsabilidade em
relação aos demais, aos recursos humanos, técnicos e naturais disponíveis, assim como às
futuras gerações.
2.5 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E OS RECURSOS TECNOLÓGICOS
A criteriosa utilização da tecnologia integra os indicativos para a efetivação das
políticas que contribuem e proporcionam melhores condições para a estruturação e o
funcionamento das múltiplas áreas da atuação humana e da organização social. Considerando,
especialmente, o princípio da sustentabilidade, os recursos tecnológicos estão integrados com
a ampla rede de objetivos, preocupações e necessidades que tornam possível esse modelo de
desenvolvimento.
O modelo tradicional de desenvolvimento compreende os recursos tecnológicos
como a ferramenta decisiva, quando não a mais importante, para possibilitar melhores
condições para o aproveitamento dos recursos, especialmente naturais, com o objetivo de
aumentar a produção de bens, melhorar a sua qualidade e, com uma logística cada vez mais
aprimorada, atingir os objetivos almejados. Nesse sentido, ocorre o distanciamento entre os
interesses normalmente centrados no crescimento econômico e nas metas do mercado e as
necessidades sociais e humanas, os bens disponíveis, a qualidade de vida das pessoas, o
equilíbrio institucional e a preocupação com a existência das gerações futuras.
Os recursos tecnológicos são meios indispensáveis e decisivos que viabilizam, entre
outros aspectos, a melhoria das condições sociais; destacam-se também o aprimoramento dos
produtos disponíveis, a evolução das condições de comunicação tornando-as mais rápidas e
seguras, o melhor funcionamento das instituições e a maior aproximação entre os povos.
Especialmente, para as políticas de desenvolvimento, cabe destacar a importância da
tecnologia como uma estratégia que proporciona o acesso e a evolução do conhecimento
(SEN, 1975).
115
A inovação tecnológica ocorre, em grande medida, a partir dos investimentos
financeiros provenientes da iniciativa privada, que tem entre seus principais objetivos
melhorar as condições de produção e de funcionamento das relações econômicas. Entretanto,
se o aprimoramento dos recursos tecnológicos estiver vinculado exclusivamente à satisfação
dos interesses relacionados à produção de bens ou às necessidades do progresso econômico e
financeiro, comprometem-se negativamente as relações equitativas entre as pessoas, as
instituições sociais e os países.
A estrutura do modelo de desenvolvimento sustentável integra os recursos
tecnológicos com o funcionamento do conjunto das relações sociais. Os investimentos
oriundos da iniciativa privada se organizam de forma complementar e interdependente em
relação à atuação do Estado, que, por meio de variadas ações em diferentes áreas,
especialmente na promoção da qualidade de vida, contribui e favorece o relacionamento entre
as pessoas e os seus interesses, juntamente com as instituições, tendo como referencial o
princípio da sustentabilidade (SEN, 1981).
A avaliação dos benefícios da evolução dos recursos tecnológicos quando restrita às
metas do progresso econômico, torna-se limitada e muitas vezes legitimadora de interesses
corporativos e, prioritariamente, comprometidos com a busca da eficiência, em detrimento do
favorecimento de uma organização social mais justa. O acesso aos modernos recursos
tecnológicos possibilita aos países, especialmente aos mais pobres, condições de
aperfeiçoamento do seu sistema de produção, assim como dos demais campos de sua
organização, sejam públicos, sejam privados.
Nesse sentido, a apropriação, o desenvolvimento e a opção por quem será
beneficiado pela tecnologia são uma decisão política com implicações nas diversas atividades
humanas, na organização das políticas sociais e no uso dos recursos disponíveis, nas
oportunidades de trabalho, na capacidade de gerenciamento da produção, na distribuição dos
bens, nos investimentos destinados à educação em vista da qualificação para a utilização das
tecnologias disponíveis, nas relações internacionais, entre outros.
Especificamente em relação aos recursos destinados à educação, existem
características específicas que oneram os investimentos para a capacitação tecnológica que
não podem ser desconsiderados. Entretanto, a tecnologia é um instrumento valioso para o
desenvolvimento, que justifica, quando necessário, gastos expressivos, conforme destaca Sen
(1975, p. 48):
116
Uma terceira diferença surge do investimento na educação. A atividade formativa
envolve investimento em capital e contribui para a intensificação do capital.
Frequentemente é a situação que mais onera a mecanização, quanto mais cara for a
mecanização mais onerosa será o tipo de habilidade que é necessária para trabalhar
com ela (pilotos são caros, como os aviões), isso pode ser pensado que
acrescentando-se no valor do „capital humano‟ simplesmente reforçará a alta
intensidade do capital para a técnica mais mecanizada. Mas esta correspondência
nem sempre ocorre, e algumas vezes o alto grau de habilidade pode combinar
relativamente com menos uso da mecanização (por exemplo, na música e na dança)
O nível de investimento projetado em termos da intensidade do capital pode mudar
substancialmente se o capital humano é introduzido no cálculo final.
O princípio da sustentabilidade não compactua com decisões políticas que legitimam
desigualdades sociais nas diferentes áreas da ação humana e da estrutura social, especialmente
quando originadas pela imposição de interesses e práticas que desvirtuam a identidade e o
valor das pessoas, reduzindo-as a meios para a satisfação de interesses que lhes são estranhos,
assim como quando descaracteriza as formas de relacionamento, comprometendo a condição
de agente de cada um. A evolução dos recursos tecnológicos, nessa concepção, precisa
contribuir para a ampliação e a integração das relações que ocorrem no interior da sociedade,
auxiliando as pessoas para que possam interagir melhor com os demais; aprimorando as
formas de utilização dos recursos disponíveis com o objetivo de qualificar a produção e a
distribuição; beneficiando, primeiramente, os mais pobres e equilibrando o uso dos recursos
naturais, a fim de aperfeiçoar o seu aproveitamento e a sua preservação em vista das
necessidades futuras (SEN/SUDNIR, 1994).
A evolução dos recursos tecnológicos comprometida com um modelo de
desenvolvimento sustentável precisa interessar a todos, porque é uma missão do conjunto da
sociedade a construção integrada e equitativa da sua organização. Uma concepção de
sustentabilidade tecnológica limitada à atuação dos governos ou de certas instituições impede
a compreensão desde a sua origem e legitima a imposição e o domínio de interesses
individuais, assim como as consequências, entre as quais se podem destacar o desemprego
originado pelo aprimoramento tecnológico sem uma opção correspondente.
O aprimoramento tecnológico contribui significativamente para a mudança da
qualidade de vida das pessoas e para a qualificação profissional, assim como dos recursos
disponíveis. Particularmente, os investimentos tecnológicos em educação são responsáveis
pela maior integração e fortalecimento das práticas pedagógicas, pelo acesso a variadas
formas de conhecimento e de integração entre diferentes culturas e para melhor capacitação
para o mercado de trabalho. A tecnologia é um meio privilegiado para a emancipação e a
117
promoção humana, visto que, nesta concepção, “os trabalhadores não podem ser um
excedente” (SEN, 1975)
A avaliação do significado ou dos benefícios tecnológicos não depende
exclusivamente das vantagens originadas para o crescimento econômico ou da invenção de
técnicas cada vez mais aprimoradas, mas das condições que possibilitam a estruturação de um
modelo de desenvolvimento sustentável que contribua para a qualidade de vida das pessoas.
Nesse contexto, o crescimento econômico é necessário, mas não suficiente; sua importância
está relacionada com as demais políticas implementadas pela efetiva atuação do Estado,
integradas com a ação do mercado, com as necessidades demandadas pelo conjunto da
sociedade e com a utilização cuidadosa e responsável dos recursos disponíveis.
O uso da tecnologia representa uma das dimensões importantes para o
desenvolvimento, que adquire sentido quando integrado com os objetivos e demandas sociais,
conforme destaca Sachs (2004, p. 55): “O acesso a tecnologias apropriadas é um dos
ingredientes do pacote de políticas de desenvolvimento. Para ser efetivo, ele tem que
caminhar lado a lado com o acesso à terra, à capacitação, ao crédito e aos mercados.”
O distanciamento entre a evolução tecnológica e os parâmetros representados pelo
ideal de sustentabilidade favorece a concepção e a estruturação limitada do desenvolvimento,
restringe o conceito de pessoa e desconsidera a necessária preocupação com os recursos
naturais e as gerações futuras, resultando em sérias consequências à organização das relações
sociais. A afirmação do valor moral substantivo da liberdade é uma dimensão indispensável
para o desenvolvimento porque resgata a centralidade da pessoa, que, na condição de agente,
não está submetida apenas às determinações dos interesses econômicos e tecnológicos, mas
tem a responsabilidade e as condições de gerir o ordenamento da sociedade.
A evolução e o aprimoramento dos recursos tecnológicos encontram seu sentido na
medida em que contribuem para a superação da compreensão da pessoa limitada ao que se
pode chamar de “homem econômico”
25
e concebem as relações humanas e sociais além dos
mecanismos e técnicas a serviço da engenharia econômica, envolvidas, entre outros aspectos,
na organização das relações de trabalho decentes e dos meios necessários para a sua
existência. A descoberta de novas tecnologias precisa ser tecnicamente viável e moralmente
justificada. A capacidade humana não justifica a descoberta, fabricação e utilização de
25
A expressão “homem econômico” destaca a busca pela maximização do autointeresse como o objetivo
principal da ação humana. Assim caracterizado, o homem organiza suas opções de vida e sua inserção social
considerando a realização dos seus anseios individuais, especialmente conexos com o progresso econômico,
como a motivação essencial da sua existência. (SEN, 2001, p. 31-38).
118
técnicas que prejudiquem ou contribuam para a destruição do próprio homem, especialmente
dos mais pobres, dos recursos ambientais e das condições de existência futura.
2.6 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E AS CULTURAS
A cultura de uma pessoa ou de um grupo tem especial importância para a
estruturação do modelo de desenvolvimento caracterizado pelo princípio da sustentabilidade,
porque representa a maneira pela qual cada um participa da organização da sociedade com
suas tradições, hábitos, costumes e princípios, que são decisivos para a sua concepção de
mundo e para fazer as escolhas que considera importantes para a sua vida.
A estruturação de uma sociedade reflete os elementos presentes na cultura dos seus
membros, composta por um mosaico de particularidades originadas da formação individual,
familiar, social e religiosa, da inserção num determinado grupo, da integração e do
relacionamento com outras manifestações, da influência de fatores geográficos, econômicos,
políticos e tecnológicos que são decisivos para o acesso a diferentes recursos e oportunidades,
entre outros (SEN, 1998).
O modelo de desenvolvimento que tem seus interesses prioritariamente voltados para
o progresso econômico e tecnológico não considera a relação com as culturas uma dimensão
importante para a organização e a legitimação moral da sua forma de atuação. O
relacionamento com as pessoas e suas organizações, a utilização dos recursos disponíveis, o
respeito pelas tradições e pelos costumes (em determinados contextos têm caráter sagrado)
que sustentam e determinam a identidade pessoal e social, a imposição de padrões culturais,
por meio de diferentes mecanismos e objetivos, especialmente políticos e financeiros, são
responsáveis pela geração e ampliação de conflitos que ferem os valores e as opções
fundamentais das pessoas e dos grupos sociais, os quais estão na origem de graves situações
de violência e massacres que ocorrem atualmente em diversas partes do mundo, conforme
destaca Sen (2006, p. 2). O autor afirma a importância das relações integradas entre as
culturas, convicto de que contribuem para o fortalecimento e para a ampliação dos horizontes
de convivência:
119
A violência é fomentada pela imposição de uma identidade singular e beligerante
sobre pessoas crentes, acompanhados por eficientes artistas do terror. O sentido da
identidade pode significar uma importante contribuição para o vigor e a cordialidade
de nossas relações com os outros, tais como os vizinhos, ou membros de alguma
comunidade, ou cidadãos comuns, ou seguidores da mesma religião. Nossa atenção
sobre a identidade particular pode enriquecer nossas relações e oportunizar fazermos
muitas coisas pelos outros e nos ajudar a compreender além de nosso interesse
singular. [...] A violência fomentada, quando associada com conflitos de identidade
parece se repetir ao redor do mundo com persistência aumentada.
As formas de organização interna e o relacionamento das sociedades com grandes
desigualdades econômicas, sistemas políticos autoritários ou frágeis, falta de uma efetiva
participação política, altos níveis de analfabetismo, acesso limitado aos sistemas de saúde,
discriminação racial ou sexual, entre outros, têm graves consequências sobre o equilíbrio das
relações sociais. Particularmente, esse contexto dificulta a reflexão sobre a preservação de
valores cultuais importantes que contribuem e fortalecem a formação, a manutenção e o
aprimoramento do tecido social.
A dominação cultural acarreta a fragilização da identidade individual e da estrutura
familiar e comunitária, o enfraquecimento das instituições responsáveis pelo ordenamento
social seguro, a insegurança em relação ao futuro, juntamente com a aceitação passiva, ou
mesmo, a emergência de práticas e atitudes de intolerância, de violência e o aprofundamento
da discriminação contra grupos minoritários ou tradicionalmente desrespeitados. Quando esse
contexto é relacionado com a dimensão antropológica, ocorre a desconstrução da sua
identidade cultural, o que impossibilita a convivência com as diferenças, que constituem um
fator fundamental para a percepção dos limites e potencialidades humanas, assim como para o
exercício da tolerância e do diálogo (BENHABIB, 2002).
O desaparecimento total ou parcial de uma cultura tem sérias consequências para a
estruturação da política de desenvolvimento sustentável e constitui uma grave ameaça para a
sua efetivação
26
. O aniquilamento cultural pode ocorrer de várias formas e motivado por
diferentes interesses, especialmente, econômicos, tecnológicos, religiosos e outros com o
26
Importa destacar a diferença entre a superação ou substituição de objetos ou máquinas por tecnologias mais
eficientes e aprimoradas e o desaparecimento de culturas. Uma cultura não opera apenas respondendo a
fórmulas técnicas ou ajustes logísticos ou financeiros, mas sua extinção repercute contra as formas de vida e
as razões que dão sentido à existência humana e a sua missão na sociedade, conforme destaca Sen (2000, p.
276): “No caso da cultura, porém, as tradições perdidas podem fazer muita falta. A extinção de antigos
modos de vida pode causar angústia e um profundo senso de perda. É um pouco como a extinção de espécies
de animais mais antigas. A eliminação de velhas espécies em favor de espécie „mais aptas‟ com condições
„melhores‟ para sobreviver e multiplicar-se pode ser lamentada, e o fato das novas espécies serem „melhores‟
no sistema de comparação darwiniano não necessariamente será visto como suficientemente consolador.”
120
objetivo de imposição de planos individuais ou de Estados expansionistas ou imperialistas. O
poder econômico e tecnológico, especialmente quando representa o domínio de grupos ou de
Estados totalitários, adota múltiplos métodos para a efetivação de sua vontade, subjugando as
partes mais frágeis e desprovidas de mecanismos de defesa suficientes para resistir às forças
que se impõem, geralmente por meio de sua estrutura militar e outros recursos sofisticados.
Considerando a afirmação do valor moral substantivo da liberdade, a organização das
políticas de desenvolvimento se estrutura por meio de uma interação pautada pelo diálogo,
pelo respeito e valorização das diferentes formas de manifestação cultural, o que implica a
opção por um modelo de relacionamento equitativo com os diferentes interesses e
perspectivas que compõem o ordenamento social. Conforme sublinha Sen (2000, p. 279), o
direito de expressão das culturas é soberano e demonstra o seu vigor e as suas diferentes
potencialidades, assim como a importância da opção por um relacionamento pautado na
partilha de valores e convicções, na medida em que contribui para que sejam estabelecidos
compromissos que podem ser realizados tendo em vista objetivos comuns.
O princípio da sustentabilidade contempla a preservação das culturas, não no sentido
de conservar intacta a pureza das tradições e as suas características específicas, mas pela
convicção de que lhe é inerente buscar a interação entre concepções e manifestações
diferenciadas, o que demonstra a capacidade de constantemente aprimorar, sejam as
convicções pessoais, seja a própria organização da sociedade. A integração cultural oferece
condições para que os povos compreendam uns aos outros, afirmando as suas características,
assim como aprimorem o exercício da tolerância como um valor essencial, não exclusivo, de
uma cultura, mas que deve estar presente em todas a fim de permitir uma organização
equilibrada do desenvolvimento e das demais relações sociais (SEN, 2009).
O princípio da sustentabilidade, para ser efetivado no contexto da diversidade
cultural, supõe um permanente exercício da tolerância, porque se relaciona com os valores
que sustentam e legitimam as convicções, os interesses e as formas de atuação das pessoas e
das suas organizações. Especialmente, os interesses econômicos, que determinam em grande
medida as políticas de estruturação do desenvolvimento, incluindo o modelo sustentável,
precisam ser integrados de forma permanente ao processo de construção e avaliação. Este
compreende a necessidade de fortalecer o pluralismo que constitui a sociedade, com as
condições para a convivência entre formas de pensar e de agir diferentes e, não raras vezes,
contraditórias, da mesma forma que precisa superar as convicções e práticas que prejudicam
as relações equitativas.
121
A imposição de um padrão cultural, normalmente legitimado pelo progresso
econômico e pela expansão tecnológica, é uma ameaça que compromete negativamente a
compreensão e a efetivação da sustentabilidade. Entretanto, para preservar a formação e a
tradição cultural não se pode justificar a continuidade de determinadas formas de
relacionamento, manutenção de instituições ou outras organizações que são incompatíveis
com o valor moral substantivo da liberdade e com o princípio da sustentabilidade, cuja meta é
o equilíbrio dos interesses sociais (SEN, 2000).
Os programas sociais que buscam melhorar a qualidade de vida das pessoas são
instrumentos importantes para a melhor integração entre as culturas, assim como para a
superação daqueles mecanismos que contribuem para a manutenção e a legitimidade de
práticas contraditórias ao princípio da sustentabilidade. Por exemplo, em muitas sociedades
onde permanecem, entre outras situações, o sistema de castas, a negação do acesso à educação
e ao mercado de trabalho às mulheres e a discriminação de minorias étnicas, justificadas por
concepções religiosas, políticas e econômicas, a intervenção do Estado e de outras instituições
é um fator fundamental e moralmente legítimo para a mudança da concepção cultural (SEN,
1996).
A estruturação do relacionamento entre as culturas é um processo característico da
existência humana, que abrange as diferentes formas de organização pessoal, familiar e social,
assim como a satisfação das necessidades econômicas e comerciais, de convivência, de
reprodução, de enfrentamento das fatalidades e mudanças ambientais, entre outras.
O acelerado processo de globalização que caracteriza o atual estágio de organização
e desenvolvimento das sociedades cria as condições para que se aprimorem as formas de
manifestação e de integração dos valores culturais, políticos, econômicos, religiosos e outros,
assim como para a expressão das diferentes maneiras de pensar, particularmente das
dissidentes, da mesma forma que aparecem mais explicitamente e com maior intensidade os
interesses que contribuem para a sua estruturação. Esse aprimoramento das relações pode
explicitar os limites, os avanços, as potencialidades representadas pelo agir humano, os
recursos disponíveis e a capacidade de planejamento e solução das demandas que se
apresentam (KESSELRING, 2007).
Considerando a pluralidade cultural, a opção por uma estrutura de desenvolvimento
restrita a interesses que visam apenas ao progresso econômico ou à vontade da parcela mais
influente da sociedade compromete negativamente o valor moral substantivo da liberdade. Ao
contrário, a opção por um modelo de desenvolvimento sustentável contempla o conjunto de
122
expressões, manifestações e interesses que precisam ser entendidos como uma característica
fundamental do processo de organização social justa.
Nesse contexto se processam, em relação às culturas, as condições para o que se
pode chamar de “sustentabilidade cultural”. Esta é uma opção que compreende a necessidade
de respeito, valorização e diálogo permanentes com a diversidade de manifestações,
expressões e valores num processo constante de avaliação e integração. A complexidade dessa
temática supõe a capacidade de estabelecer uma forma de compreensão e avaliação não
marcada por motivações preconceituosas ou provenientes somente das manifestações mais
influentes (SEN, 2006).
Muitas vezes a estruturação das relações políticas ocorre com base em p-
compreensões apresentadas publicamente por deres políticos, porta-vozes de interesses
econômicos, personalidades religiosas ou dos seus representantes, o que, além de
desconsiderar outras referências importantes, condiciona a avaliação social aos interesses e à
linguagem oficial. A compreensão universalista da liberdade considera as condições para a
manifestação da diversidade de pensamento, com especial atenção aos dissidentes e às
particularidades que emergem do interior das culturas, porque representam concepções não
dependentes exclusivamente de compromissos oficiais e institucionais.
O reconhecimento da diversidade cultural como uma característica específica do
contexto contemporâneo é essencial para as políticas de desenvolvimento sustentável,
conforme expressa Sen (2000, p. 283):
Uma abordagem adequada do desenvolvimento não pode realmente concentrar-se
tanto apenas nos detentores do poder. É preciso mais abrangência, e a necessidade
da participação popular não é uma bobagem farisaica. A idéia de desenvolvimento
não pode, com efeito, ser dissociada dessa participação.
A abordagem do princípio da sustentabilidade relacionado à estrutura das políticas de
desenvolvimento tem um compromisso moral substantivo com a consideração dos valores e
das tradições culturais como condição para uma organização social justa. Entretanto, quando a
avaliação é unívoca, originam-se estruturas sociais autoritárias e discriminatórias, que,
utilizando-se de múltiplos mecanismos, subjugam as vozes dissidentes em favor de interesses
previamente concebidos, os quais oficialmente visam justificar as políticas voltadas para o
bem-estar e a felicidade de todos.
123
A reação no interior das culturas opera-se de formas diferentes, o que inclui, entre
outras, a adaptação ou a aparente submissão silenciosa a valores dominantes, à violência
organizada, a resignação e a autopunição diante do que lhes é estranho e ameaçador e, dada a
impossibilidade de expressão pública, não raras vezes, originam-se ações caracterizadas pelo
fanatismo, que facilmente conduzem a atos de terrorismo
27
.
Os temas relacionados com a arquitetura das relações culturais supõem a superação
de concepções reducionistas que desconsiderem as diferenças que caracterizam não apenas a
formação das sociedades, mas cada pessoa. Isso porque uma pessoa pode pertencer,
simultaneamente, a diferentes grupos culturais, considerando a sua hereditariedade,
constituição familiar, interesses profissionais, opções individuais e outras oportunidades.
A necessidade de uma concepção abrangente das relações sociais é uma preocupação
importante de Rawls (2000a, p. 4), o qual ressalta a diversidade de concepções e interesses
que caracterizam o interior das sociedades: “Então, embora uma sociedade seja um
empreendimento cooperativo visando vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada por um
conflito bem como por uma identidade de interesses”. Ao mesmo tempo, destaca a
insuficiência do utilitarismo para uma avaliação das condições de justiça numa sociedade
caracterizada por diferenças de ordem moral, filosófica e religiosa: “O utilitarismo não leva a
sério as diferenças entre as pessoas” (2000a, p. 30). Nesse sentido, uma avaliação que
concentra sua atenção nas consequências restringe a compreensão e o alcance do princípio da
sustentabilidade cultural a estruturas de administração eficientes e voltadas à promoção da
maior felicidade e às condições de bem-estar
28
.
Para a reflexão em torno do relacionamento entre as culturas é fundamental o
reconhecimento da diversidade. As muitas semelhanças que existem entre as pessoas, as suas
necessidades, os seus interesses e as formas de comportamento evidenciam a possibilidade de
27
A opressão cultural origina-se de muitos interesses e tem diferentes formas de manifestação, com diversas
consequências. Entretanto, tem outras expressões quando aliada às desigualdades econômicas, conforme
exemplifica Sen (2006, p. 144): “Negligenciar pode ser a razão suficiente para o ressentimento, mas um
senso de controle, degradação e humilhação pode ser mais fácil de mobilizar para a rebelião e a revolta. [...]
Pobreza e desigualdade econômica podem não instantaneamente criar o terrorismo ou influenciar os líderes
de organizações terroristas, mas, todavia, elas podem criar bases para soldados de campos terroristas”.
28
A formação cultural de uma sociedade é caracterizada por múltiplas diferenças, com suas tradições, valores e
objetivos. A integração desse complexo de diversidades na estruturação das relações sociais sustentáveis pelo
critério da maior felicidade e de outras dimensões do utilitarismo e, até mesmo, do acesso aos bens é
insuficiente. Por isso, a análise das diferenças entre as culturas tendo como referência as capabilidades é mais
completa, conforme avalia Sen (2001, p. 40) “A perspectiva da capacidade é mais sensível que as abordagens
baseadas na utilidade aos problemas de privação enraizada, que pode levar à adaptação defensiva de desejos
e expectativas (distorcendo por esta razão a métrica das utilidades). Pode também ser mais razoavelmente
justa ao lidar diretamente com liberdades em vez de concentrar-se nos meios de liberdades. Estas diferenças
são significativas na avaliação da desigualdade e injustiça que atravessam barreiras de classe, sexo e outras
divisões sociais.”
124
uma organização social de forma cooperativa e complementar, ao mesmo tempo, marcada por
conflitos e diferenças. Reafirma-se, nesse contexto, a existência das condições indispensáveis
para o diálogo e o desenvolvimento sustentável (SEN, 2001).
O modelo de desenvolvimento sustentável que tem entre suas preocupações a
diversidade cultural precisa ter como prerrogativas a consideração equitativa de todas as
culturas. Tal procedimento não avaliza a declaração por certas preferências que possam
originar a sobreposição de concepções, valores ou interesses que facilmente conduzem à
marginalização e à eliminação parcial ou total de culturas. A admissão da diversidade supõe o
reconhecimento da identidade, inerente a cada manifestação, e a construção das condições
para a comunicação entre todos.
A estruturação do desenvolvimento sustentável organiza-se, entre outras referências,
com base na formação das diversas culturas. Nesse sentido, a atuação as pessoas não pode ter
como referência apenas um ou mais fatores que originam a identidade cultural, seja pela
filiação religiosa, seja por interesses econômicos ou de outra ordem. Por isso, afirma Sen
(2006): “As prioridades e ações das pessoas são influenciadas por todas as suas filiações e
associações, não exclusivamente pela religião.”
A importância da reflexão sobre a formação cultural e as suas características,
juntamente com a sua integração às políticas de sustentabilidade, visa a um processo de
valorização e aprimoramento dos valores essenciais que contribuem para a cooperação social,
entre os quais se destacam a tolerância, o respeito e a liberdade. A estrutura de uma sociedade
depende das condições que as pessoas possuem para que a sua organização seja conduzida
com base na reflexão constante em face das deficiências, dos limites, das necessidades e dos
recursos disponíveis, além de uma clara concepção de pessoa, não dependente de motivações
ou convencimentos sentimentais, conforme acentua Sen (2006): “O tema crucial não é se
sentimentos e atitudes são vistos como importantes (eles foram claramente reconhecidos por
muitos escritores que nós tendemos a pensar como parte do entendimento), mas se, e em que
extensão, estes sentimentos e atitudes podem ser influenciados ou cultivados através da
razão.” Uma compreensão refletida possibilita não apenas o aprofundamento e o sentido das
convicções e valores, mas também a investigação e a contextualização dos princípios que
justificam uma cultura.
A importância do valor moral substantivo da liberdade no contexto da avaliação
cultural é mediada pela afirmação e promoção das liberdades substantivas, a partir do que as
pessoas realizam as suas escolhas e participam efetivamente da sociedade. Isso conduz a que a
organização social ocorra de maneira não atrelada às convicções individualistas, ou gerida por
125
interesses pessoais, econômicos, ideológicos, ou por concepções com tendência dominante,
ou, mesmo, por compreensões de superioridade em relação às demais. Por isso, destaca Sen
(2006, p. 99):
Um entendimento apropriado do mundo das identidades culturais requer clareza de
compreensão sobre o reconhecimento de nossos múltiplos compromissos e relações,
mesmo que estas tendam a ser sufocadas por uma defesa unifocal de uma
perspectiva ou outra. A descolonização da mente exige um afastamento da tentação
de identidades e prioridades solitárias.
A imposição de um padrão cultural exclusivo aprofunda as dificuldades de reflexão e
avaliação do relacionamento humano e de responsabilização com relação aos variados campos
das relações pessoais e sociais, dos recursos naturais e das futuras gerações. De culturas com
concepções de mundo restritivas emergem situações de constrangimento, de discriminação e
de exclusão, com repercussões sobre as condições de vida individual, de grupos e de toda a
sociedade, além de um evidente comprometimento do que se pode caracterizar como a perda
de sentido da existência. É necessário destacar que as capabilidades, que têm status primordial
para as políticas de desenvolvimento sustentável, têm sua importância limitada pelos
interesses representados pelas forças que impõem uma concepção unilateral.
A não sustentabilidade de um modelo de desenvolvimento, dependendo do seu
contexto, expressa-se em variadas práticas políticas e econômicas, além de em outras áreas da
vida social, o que pode acarretar graves consequências para parcelas significativas de pessoas
ou para os recursos disponíveis. Entre essas podem ser destacadas as políticas sexistas, de
imposição do controle da natalidade, de discriminação de grupos e, até mesmo, a extinção de
recursos disponíveis por interesses de mercado, ou com o objetivo de afirmar a imposição de
metas específicas.
Existem inúmeras situações que expõem a gravidade das consequências originadas
de políticas com essas características, como, por exemplo, a negação do acesso à educação e
ao mercado de trabalho às mulheres, a extinção de grupos minoritários indígenas e de outros
com expressão e poder limitados, os abortos seletivos que levam à nítida preferência pelos
fetos de sexo masculino e ao fenômeno chamado de “mulheres faltantes” (missing women)
que comprometem negativamente a imagem da mulher, a formação de governos autoritários e
populistas, a concentração de renda e a perda do valor e da identidade da pessoa como sujeito
(SEN, 1992, p. 587-588).
126
Com base no valor moral substantivo da liberdade, a pessoa é compreendida na
condição de agente e sujeito primordial para a justificação e efetivação do modelo de
desenvolvimento sustentável. A evolução de um modelo de desenvolvimento não sustentável
para outro, comprometido com o princípio da sustentabilidade, exige o resgate do conceito de
pessoa, da concepção de sociedade, do ambiente cultural e dos recursos dos quais dependem
os sistemas vivos e em relação aos quais as pessoas têm responsabilidade. Esse exercício
supõe a busca pelo sentido do agir humano, integrado a um processo de relacionamento
plural, no qual, com um constante exercício pedagógico, são reconstruídos o sentido e as
relações fundamentais da ação humana
29
.
O aumento da integração entre os povos, fomentado por diversos fatores, entre os
quais se podem destacar o avanço das tecnologias da informação e os recursos da informática,
amplia as possibilidades de relacionamento entre as culturas. A aproximação torna mais
conhecidas as suas características e mais próximas as potencialidades e os anseios de cada
grupo, assim como expõe com maior nitidez as limitações, as divergências e as ameaças que
dificultam e, em muitas situações, impedem a construção de relações sustentáveis. A
afirmação de Sen (2006) de que “a demanda pelo multiculturalismo é premente no mundo
contemporâneo” expressa a necessidade da construção de uma geografia de relacionamentos
caracterizados pela cooperação entre os diferentes grupos humanos, não limitados aos
interesses econômicos aos quais as concepções culturais, normalmente, devem se adaptar.
O multiculturalismo supõe as condições para a organização de um modelo de
relacionamento que contempla as pessoas, com as suas características, interesses,
necessidades, os limites dos recursos disponíveis e o compromisso com as condições de
29
A transformação de uma compreensão de desenvolvimento indica a necessidade de observar,
prioritariamente, as situações peculiares que, de um lado, são consequência de um modelo que impede o
equilíbrio das relações entre pessoas, culturas e sociedades, gerando desigualdades em diversos níveis que
desestabilizam a estrutura social, a distribuição dos bens, a participação política e as condições para o
necessário compromisso com as futuras gerações. De outro modo, o resgate das dimensões essenciais para a
sustentabilidade cultural depende de opções políticas específicas e com potencial de influenciar o resgate do
valor das pessoas e o sentido das suas atividades, da sua atuação política e da sua própria existência. Nesse
sentido, a mudança da concepção e da atuação das mulheres, da importância das suas capabilidades e do seu
potencial transformador, a partir da condição de “agente” ao invés de paciente” indica uma perspectiva de
atuação integrada e cooperativa entre as diferentes culturas. Sen (1992, p. 588) esclarece essa dinâmica de
compreensão: “O que causa a relativa negligência das mulheres, e como isso pode ser mudado? Porém alguns
indicativos econômicos também têm surgido, e algumas conexões entre economia, status e padrão social têm
sido identificadas. Por exemplo, a habilidade de ganhar uma renda extra através do emprego parece realçar o
padrão social da mulher (como é o caso da África Sub-Saariana). Isso faz sua contribuição para a
prosperidade da família mais visível. Também, sendo menos dependente dos outros, ela tem mais voz. O
status mais elevado da mulher também influencia sobre a expectativa em relação às crianças do sexo
feminino. Segundo, a educação, especialmente a alfabetização das mulheres, poderia fazer uma substancial
diferença. Terceiro, os direitos econômicos das mulheres (por exemplo, a propriedade da terra e a herança)
poderiam ser importantes. A política pública pode influenciar tudo isso.”
127
existência das futuras gerações. A diversidade que caracteriza a constituição das sociedades é
a referência fundamental para a estruturação de um modelo de desenvolvimento sustentável
que integra as diferenças e corrige as desigualdades que ameaçam o equilíbrio social.
2.7 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A DEMOCRACIA
Entre os desafios que precisam ser apreciados pelo modelo de desenvolvimento
sustentável está a organização das relações políticas e administrativas da sociedade com o
objetivo de diminuir ou eliminar as gritantes desigualdades que persistem no seu interior e nas
relações internacionais, a administração dos recursos disponíveis e o compromisso com as
futuras gerações.
Considerando as diferenças que integram a formação das sociedades, a democracia é
o sistema que apresenta as melhores condições para uma organização social segura e
sustentável, porque dispõe de mecanismos, instituições e recursos capazes: de ordenar as
demandas provenientes do seu interior; a atender de forma equilibrada às necessidades das
pessoas, dos grupos e dos países; a administrar eficazmente os interesses dos seus membros;
organizar, por intermédio dos partidos políticos e outras agremiações, um sistema de
representação política com as múltiplas forças e interesses que a compõe; administrar as
necessidades específicas; solucionar os conflitos oriundos dos diversos campos da sua
organização e estruturar um conjunto de instituições que garantam a estabilidade política e
social, as relações externas e a satisfação das necessidades futuras (SEN, 2001).
A conexão entre o modelo de desenvolvimento sustentável e a organização
democrática da sociedade é de interdependência e complementaridade. Nesse sentido, a
solidificação da democracia, com o seu crescente aprimoramento, contribui eficazmente para
a diminuição e, em muitas situações, a eliminação de graves deficiências existentes na
sociedade. A opção pela democracia como o melhor sistema de organização social não
depende de exigências específicas ou de pré-condições, pois ela mesma possui os mecanismos
necessários para enfrentar as deficiências sociais e contribuir eficazmente para a efetivação de
relações mais justas.
A importância da democracia e sua relação com o desenvolvimento sustentável e
com as demais exigências da organização social não são limitadas por interesses, instituições
ou condições sociais específicas. Nesse sentido, a democracia não pode ter seu valor ou seus
128
mecanismos reduzidos a meios que justifiquem ou legitimem os objetivos de grupos
influentes e detentores de poder econômico ou outros similares, ou, mesmo, para alcançar
determinadas metas, por mais nobres que possam parecer.
Uma avaliação segura da organização social supõe a afirmação do valor da
democracia, independentemente de pré-condições e indispensável para a estruturação do
modelo de desenvolvimento baseado no princípio da sustentabilidade, porque permite uma
ampla rede de relações e debates públicos, da mesma forma que possui um conjunto de
instrumentos para auxiliar a organização equitativa das relações sociais internas e externas.
Sen (2000, p. 185) esclarece essa conexão e a sua importância para a estrutura do
desenvolvimento:
Desenvolver e fortalecer um sistema democrático é um componente essencial do
processo de desenvolvimento. A importância da democracia reside, como
procuramos mostrar, em três virtudes distintas: (1) sua importância intrínseca, (2)
suas contribuições instrumentais e (3) seu papel construtivo na criação de valores e
normas. Nenhuma avaliação da forma de governo democrático pode ser completa
sem considerar cada uma dessas virtudes.
Orientada pelo valor moral substantivo da liberdade, a democracia adquire um
significado peculiar pela sua característica fundamental de garantir a livre expressão do
pensamento das pessoas e das escolhas que consideram importantes para a sua realização, da
mesma forma que contribui para a implementação de diversas ações para a efetivação das
opções realizadas. Por meio da discussão pública, da liberdade de organização e manifestação,
do exercício constante da crítica, entre outros, as pessoas atuam na condição de agentes e
aprimoram a sua identidade, participando dos destinos da sociedade na condição de sujeitos
ativos.
O modelo de desenvolvimento sustentável supõe a existência das condições de
participação e de discussão públicas que tornam possível evidenciar os interesses, as
preocupações, os limites e as necessidades que compõem a complexidade da arquitetura
social, das aspirações humanas atuais e futuras. Especificamente, a democracia é o sistema
que possui as melhores estruturas e os meios necessários e suficientes para contemplar a
realização das dimensões importantes da existência humana e, por isso, justificam um modelo
de desenvolvimento não limitado aos critérios tradicionais, representados, especialmente, pelo
129
aumento do Produto Nacional Bruto, acesso às novas tecnologias e ampliação do comércio
internacional
30
.
As diferentes áreas do desenvolvimento (econômico, social, humano e outras) não
possuem legitimidade moral quando estruturadas pelos interesses de governos autoritários, de
Estados repressivos ou por instituições que sustentam seus interesses. As políticas de
desenvolvimento sustentável têm consistência e legitimidade quando justificadas segundo os
princípios e as estruturas da democracia. É de fundamental importância que as decisões
políticas e econômicas, por terem repercussões e consequências em diferentes aspectos da
vida das pessoas e da organização social, sejam constantemente submetidas à avaliação e ao
julgamento da população (HÖFFE, 2007).
A estrutura de um Estado democrático é integrada por um sistema de regras e normas
que ordenam os diferentes espaços da atuação humana de forma dinâmica e em permanente
evolução, sem o que não é possível uma organização social equilibrada. Essa convicção
afirma a certeza de que um Estado democrático é sustentado por um sólido ordenamento
legal, sem o qual não subsiste. Entretanto, apenas um arranjo legal, por mais completo e
eficaz, não é suficiente diante da complexidade de exigências e necessidades que
constantemente se apresentam.
A democracia possibilita para o conjunto da sociedade uma dinâmica especial que
garante o exercício da liberdade, simbolizada na discussão pública, como condição
indispensável para todo o seu processo de organização e, especialmente, para as necessárias
opções que caracterizam um modelo de desenvolvimento sustentável. O debate público
envolve as pessoas, avalia interesses, torna explícitas as escolhas e, de forma integrada,
dinamiza o conjunto das relações sociais. A livre manifestação dos valores, dos objetivos e
das concepções de uma sociedade forma a sua razão pública porque expressa as características
fundamentais de uma sociedade democrática
31
. A razão pública é uma exigência inegociável
para a legitimidade e o funcionamento da democracia, como é explicado por Sen (2003):
30
A estrutura democrática precisa ser respaldada pelo convencimento e adesão dos membros da sociedade e
dos demais instrumentos que a democracia dispõe, dos quais se destaca a disposição legal e institucional,
conforme sublinha Bresser-Pereira (2008, p. 19): “Para que um Estado democrático seja realmente forte é
necessário que sua ordem jurídica seja estável e dotada de legitimidade, ou seja, apoiada na nação. Nas
sociedades modernas essa estabilidade e essa legitimidade dependem de uma razoável homogeneidade da
sociedade nacional, e de instituições que reflitam o estágio de desenvolvimento e os objetivos da sociedade.”
31
As características e a importância da razão pública, segundo explica Rawls (2000b, p. 261-306), são a razão
de ser da democracia; são os motivos que identificam os cidadãos como membros de uma sociedade e com
condições de organizar seus planos, justificar as razões de suas opções, ordenar racionalmente suas
prioridades e tomar as decisões de acordo com esses procedimentos. A partir da razão pública o conjunto da
sociedade é identificado com a ordem democrática, com a qual estão de acordo a concepção de justiça, os
objetivos e os fins almejados; o que justifica que as pessoas pertençam a uma determinada sociedade é a sua
130
Ignorar a centralidade da razão pública na idéia de democracia não apenas distorce e
diminui a história das idéias democráticas, mas também do processo interativo
através do qual a democracia funciona e em relação ao qual depende seu sucesso. A
não consideração das raízes globais da razão pública que é uma grande perda para
ela mesma, conduz a diminuição de um entendimento adequado do lugar e das
regras da democracia no mundo contemporâneo. Mesmo com a expansão do direito
de votar livre e sem censura, é importante para as pessoas determinarem o que elas
necessitam.
É indispensável, continuamente, reafirmar o valor intrínseco da democracia para a
estruturação das políticas de desenvolvimento sustentável, mas também precisa ser destacada
a sua importância instrumental porque possibilita que os seus valores tenham impacto sobre a
vida das pessoas, influenciem suas escolhas e seus objetivos e dinamizem a organização
social no presente e em relação ao futuro. Para a participação pública são indispensáveis os
instrumentos e as condições que possibilitam o exercício da liberdade política, entre os quais
se podem destacar: o direito de votar, de ser votado, de criticar e protestar, a garantia plena do
direito de ir e vir, a liberdade de acesso à informação por meio da imprensa livre, o direito de
associação e as garantias de proteção jurídica e institucional.
Para as condições de efetivação do princípio da sustentabilidade nas políticas de
desenvolvimento, fazem-se necessárias, entre outras posições, a publicidade dos objetivos que
justificam as decisões, a constante preocupação com a utilização equilibrada dos recursos
naturais, a estruturação de ações para o atendimento das necessidades básicas, especialmente
dos mais pobres, a transparência dos contratos mediados pelo Estado ou por outros, a
responsabilidade com a administração dos bens a fim de garantir as condições de existência
das futuras gerações.
Para a sustentabilidade das relações sociais é necessário que o desenvolvimento da
sociedade reduza as graves desigualdades que ameaçam a convivência entre as pessoas e a
razão pública, porque expressa as convicções políticas, os princípios e os ideais sociais. A razão pública é de
natureza pública, pois seu conteúdo é partilhado por todos aqueles que integram o corpo social e a ela aderem
com convicção. Concebida como um conjunto de princípios que fundamentam a opção pela estrutura
democrática de sociedade, a razão pública tem poder de coerção sobre as instituições com o objetivo de
resolver os problemas sociais mais importantes e assegurar os direitos fundamentais, entre os quais se podem
destacar: o direito de votar e ser votado, a organização equitativa do acesso às oportunidades e o direito à
propriedade, assim como o ordenamento, a sustentação e o funcionamento das instituições. A legislação de
uma sociedade democrática e as políticas que são adotadas precisam estar em consonância com a razão
pública. Nesse sentido, a razão pública é o ideal de sociedade democrática com a qual se conforma toda a
ação social. O conteúdo da razão pública é a concepção política de justiça que especifica direitos, liberdades
e oportunidades fundamentais, atribui prioridade a certos direitos, liberdades e oportunidades e oportuniza
aos seus membros medidas que garantem a todos os meios para utilizarem os direitos, liberdades e
oportunidades. A razão pública não depende de concepções religiosas, filosóficas ou morais para a sua
legitimidade porque é uma concepção política comprometida com os princípios democráticos e com a
realização da justiça para sociedades formadas por cidadãos livres e iguais.
131
estabilidade política e social, entre outras, pela superação dos altos níveis de analfabetismo e
da falta de acesso a bons sistemas de saúde, das ainda persistentes situações de fome e
abandono de grandes parcelas da população mundial, dos altos níveis de corrupção, da
instabilidade política em muitas nações e dos Estados autoritários e imperialistas (SEN/
SUDNIR, 1994).
A compreensão do modelo de desenvolvimento sustentável, na ótica da democracia
permite uma reflexão ampla dos compromissos e das condições para a realização das pessoas,
integrada aos diferentes aspectos da existência humana, das condições sociais e ambientais e
dos objetivos e mecanismos que determinam a arquitetura da sociedade. A democracia tem
um valor proeminente que não pode ser ofuscado pela instrumentalização dos seus princípios
e das suas instituições. Segundo o princípio da sustentabilidade, é indispensável que as
múltiplas formas de expressão e organização social manifestem o vigor de uma estrutura
política equilibrada e com as condições para contemplar as diferentes concepções presentes
no seu interior. (SEN, 1996).
A fim de afirmar essa dinâmica, sem a qual a democracia perde a sua razão de ser, é
necessário que os direitos políticos e civis sejam garantidos e sua manifestação seja
fortalecida por diferentes meios e instituições. A importância da expressão dos direitos e sua
contribuição para a formação social são afirmadas por Sen (2000, p. 180):
Os direitos políticos e civis, especialmente relacionados à garantia de discussão,
debate, crítica e dissensão abertos, são centrais para os processos de geração de
escolhas bem fundamentadas e refletidas. Esses processos são cruciais para a
formação de valores e prioridades, e não podemos, em geral, tomar as preferências
como dadas independentemente da discussão pública, ou seja, sem levar em conta se
são ou não permitidos debates e diálogos.
As condições sociais que possibilitam o debate livre oferecem uma dinâmica especial
para justificar a opção pelos princípios que orientam as políticas de desenvolvimento
sustentável. Considerando, especialmente, a complexidade dos interesses que constituem a
arquitetura das relações econômicas, entre os quais as razões que justificam as escolhas por
um modelo de desenvolvimento, os procedimentos a serem adotados, a utilização dos recursos
naturais, a seleção de determinadas técnicas, o volume de investimentos financeiros, a
formação histórico-cultural e geográfica de um determinado espaço, as exigências
132
institucionais e legais, juntamente com os objetivos desejados e as pessoas que irão usufruir
direta e indiretamente do resultado final, esses precisam ser avaliados constantemente.
A diversificada constituição que caracteriza as atuações que ocorrem no interior de
uma sociedade, consequência de uma expressiva variedade de culturas, interesses, desejos,
opções pessoais e sociais, com influência substantiva na formação dos valores, das
necessidades e dos interesses econômicos, oferece uma dupla oportunidade para escolher e
fundamentar, de acordo com o valor da democracia, a formação dos princípios que devem
orientar as políticas de desenvolvimento sustentável
32
. Primeiro, a expressiva manifestação de
costumes, tradições, hábitos e valores que emergem do interior das sociedades possibilita a
formação de uma ampla rede de concepções de mundo e formas de relacionamento que
enriquecem as relações entre as pessoas e as suas escolhas, assim como as estimulam para
conviverem de forma integrada e interdependente, com suas múltiplas formas de pensar e de
agir. Segundo, essa diversidade que caracteriza a dinâmica da formação e do funcionamento
das sociedades oferece as condições para que, pelo debate público, as pessoas afirmem as suas
convicções e aprimorem constantemente os princípios, de tal maneira que sejam superados
aqueles que impossibilitam o desenvolvimento sustentável seguro e integrado. (SEN, 2006).
Considerando a dinâmica que envolve o interior das sociedades democráticas e a
estruturação do desenvolvimento sustentável, a formação de novos valores é fundamental para
a sua estabilidade e para o seu constante aprimoramento. O debate público é indispensável
para o fortalecimento das relações democráticas e, particularmente, para a evolução da
concepção política. Em diferentes contextos a democracia é qualificada como o governo dos
debates. O aprimoramento constante da discussão retrata a importância das liberdades
substantivas, isto é, as capabilidades, para que as pessoas possam fazer as opções que
consideram importantes e escolham os funcionamentos que refletem as condições necessárias
para conduzir a sua vida integrada aos princípios da sustentabilidade.
O desenvolvimento sustentável integrado à dinâmica e ao vigor de uma sociedade
democrática precisa ser avaliado também como um amplo sistema, que gera múltiplas
oportunidades, individuais e sociais, as quais beneficiam e integram as pessoas, aprimoram o
funcionamento das instituições, corrigem e direcionam as ações do Estado, entre outras. A
32
A partir de uma formação diversificada dos valores, dos relacionamentos e das instituições humanas, a opção
pelo desenvolvimento sustentável está integrada com uma ampla rede de necessidades e aspirações que
envolvem prioritariamente os seres humanos e seus clamores por justiça. A estruturação das relações
econômicas sustentáveis não pode submeter seus princípios e realizações à satisfação de interesses que
possam instrumentalizar as pessoas em benefício de objetivos que lhes são estranhos. O valor da pessoa no
exercício de suas liberdades é um parâmetro fundamental para a organização interna e externa das
sociedades, conforme afirma Sen (2000, p. 28): “O mundo não é apenas uma coleção de nações, ele é
também uma coleção de pessoas; e a justiça internacional não pode desprezar o clamor por justiça global.”
133
omissão em relação ao debate público, seja por negligência, seja por interesses particulares ou
por ações motivadas por políticas repressivas, justifica e aprofunda as desigualdades sociais
(SEN, 2003).
A ausência da crítica, conjugada com a limitação dos direitos civis e políticos
básicos, com a carência de estruturas econômicas e a deficiência das condições de
sobrevivência material, constitui-se num espaço privilegiado para o surgimento e a expansão,
entre outros, de grupos e pessoas com práticas sectárias, de comportamentos e de ações de
expressão fundamentalista legitimadas por concepções culturais e religiosas; de valores que
impedem a convivência entre as diferenças e o exercício da tolerância, a depredação do
patrimônio que representa os valores humanos e culturais, a perda de referências em relação
ao valor da pessoa e da sua capacidade de relacionamento; a omissão quanto à
responsabilidade de preservar e utilizar equilibradamente os recursos ambientais e a falta de
sensibilidade em relação às necessidades das futuras gerações.
A organização das relações democráticas como uma dimensão indispensável para o
desenvolvimento sustentável pressupõe a aceitação da razão pública pelo conjunto dos
membros da sociedade, o que implica, dada a sua diversidade constitutiva, aceitar a tolerância
como um valor primordial (RAWLS, 2000b).
Inúmeras constatações empíricas confirmam a evolução das sociedades a partir da
opção pela estrutura democrática. Os instrumentos de que as pessoas dispõem para manifestar
a sua vontade, seu descontentamento, suas necessidades e seu apoio reafirmam o valor
intrínseco da democracia. Entretanto, é necessário sublinhar que muitos países e, nestes,
muitas pessoas, especialmente as mais pobres, permanecem excluídos dos benefícios da
democracia. Esse é um dos principais desafios que as democracias contemporâneas precisam
enfrentar
33
.
Diante disso, as sociedades democráticas não podem limitar a sua atuação à
satisfação da vontade da maioria, embora este seja um critério de decisão universalmente
33
Existem fenômenos que ocorrem, preferencialmente, em sociedades dominadas por governos autoritários e
sistemas econômicos fechados que evidenciam a multiplicação das dificuldades para a solução de problemas
elementares. Conforme exemplifica Sen (1992), o fenômeno chamado “mulheres faltantes” é uma clara
manifestação da persistência de concepções e práticas tradicionais e restritivas que ocorrem em sociedades
não democráticas com sérias deficiências políticas, econômicas e institucionais. Em outras, onde a
organização social ocorre a partir dos valores e mecanismos democráticos, logo se evidencia uma
significativa mudança cultural com repercussão imediata na estruturação dos valores e nas demais relações
que se estabelecem entre as pessoas e com as instituições. No Estado de Kerala, na Índia, onde o
aprimoramento das experiências democráticas, juntamente com investimentos públicos em programas
sociais, é expressivo, a taxa de nascimentos masculinos e femininos é equivalente aos encontrados na Europa
e na América. Isso destaca o valor e a eficiência da democracia, que com seus múltiplos mecanismos e
instituições, tem condições necessárias para enfrentar realidades complexas e peculiares com o objetivo de
alcançar um ordenamento social equitativo.
134
reconhecido. A estruturação do desenvolvimento de uma sociedade comprometida com o
princípio da sustentabilidade precisa ter um planejamento inclusivo das pessoas e dos recursos
disponíveis. A adoção exclusiva do critério da maioria como norteador da ação social do
Estado ou das instituições pode ser tão ou mais restrita quanto um sistema que tem seus
objetivos limitados ao progresso econômico e tecnológico. A estrutura e o funcionamento de
uma sociedade são compostos por manifestações explícitas e por peculiaridades que nem
sempre se expressam publicamente ou por meio de seus representantes. A fim de contemplar a
multiplicidade de concepções, interesses, objetivos e necessidades são necessários diversos
mecanismos, que possibilitem o aparecimento da sua composição e dos seus anseios.
A importância da democracia e da sua capacidade de contribuir com a efetivação das
políticas planejadas segundo o modelo de desenvolvimento sustentável revela-se em muitas
evidências empíricas nas diferentes áreas da estrutura social. No delicado campo da satisfação
das necessidades básicas, os governos democráticos responsáveis adotam mecanismos e
condições para evitar graves deficiências, conforme afirma Rawls (2001, p. 11): Contudo,
períodos de fome muitas vezes são causados, em grande parte, por omissões políticas e pela
ausência de governo decente.” Esse destaque reflete a necessidade de amadurecimento e de
maior transparência das democracias contemporâneas.
O vigor que caracteriza uma sociedade democrática perde sua força quando permite
que as instituições sejam instrumetalizadas pela imposição de interesses que representam
objetivos individuais ou de grupos com grande poder político ou econômico. Isso conduz ao
aprofundamento das desigualdades, à descaracterização da pessoa, do Estado e das
instituições sociais, das políticas de sustentabilidade e à utilização dos recursos ambientais,
comprometendo, entre outras dimensões, o compromisso com as futuras gerações. A
afirmação de Nagel (1996, p. 112) elucida como a dinâmica das desigualdades pode
prejudicar a estabilidade da democracia:
Uma sociedade que permite desigualdades significativas entre seus membros, em
forma de vantagens e inconveniências que não são de responsabilidade pessoal, será
percebida como uma sociedade que não busca satisfazer a condição de tratamento
igual: distingue em seu tratamento seguindo linhas moralmente arbitrárias. [...] O
que se quer dizer é que a desigualdade, apesar de não prejudicar ninguém, se
caracteriza como um mal em si mesmo.
135
A democracia tem as condições para atuar na prevenção de graves crises que possam
ocorrer tanto na área das relações econômicas, representadas pela satisfação das necessidades
básicas de sobrevivência, quanto na diplomacia internacional, especificamente na prevenção
de conflitos armados ou pela imposição de interesses corporativos. Essa convicção é expressa
por Sen (2000, p. 208): “Certamente é verdade que nunca houve uma fome coletiva em uma
democracia multipartidária efetiva”. Uma estruturação democrática das relações econômicas,
políticas e ambientais é sustentável e tem repercussão nas áreas mais importantes e decisivas
da sociedade, garantindo uma funcionalidade equilibrada e a estabilidade de suas instituições.
As desigualdades econômicas e políticas são fatores determinantes para o
desequilíbrio em muitas áreas da convivência humana e do desenvolvimento sustentável,
especialmente quando legitimadas por concepções culturais. Importa destacar, nesse contexto,
o poder dos investimentos em programas sociais com o objetivo de resgatar pessoas ou grupos
de uma situação de exclusão social. Com ações que contribuam para o acesso ao sistema
educacional e de saúde, a proliferação dos programas de microcrédito, possibilidades efetivas
de participação nas decisões sociais, entre outras, é possível perceber benefícios importantes
para a qualidade de vida das pessoas e o fortalecimento das relações democráticas e das
políticas de desenvolvimento sustentável
34
.
O princípio da sustentabilidade, cuja preocupação inclui a não discriminação, tem
entre seus objetivos resgatar pessoas e grupos que se encontram em situação de
vulnerabilidade social ou são vítimas de realidades peculiares que prejudicam o equilíbrio das
relações sociais. A recuperação da autoestima, do tecido familiar e da aptidão para a
participação no convívio social representa uma contribuição importante para a estabilidade de
uma sociedade democrática e para as políticas de desenvolvimento sustentável.
Nas sociedades onde existem graves desigualdades, especialmente econômicas, e nos
países cujas estruturas são dominadas por governos ditatoriais, as situações de vulnerabilidade
social estão presentes com maior intensidade. A existência de situações com essas dimensões
34
Quando uma sociedade nega ou dificulta aos seus membros a oportunidade de participação nas instâncias que
definem os seus destinos, a sua estrutura organizacional perde a legitimidade política porque sacrifica o valor
moral substantivo da liberdade. A liberdade de expressão e o direito de participação integram as liberdades
substantivas, sem as quais as políticas de desenvolvimento carecem de uma justificativa suficiente,
priorizando interesses setoriais, normalmente em vista apenas do crescimento econômico e do progresso
tecnológico, em prejuízo do valor da pessoa. Os valores centrais da democracia são indispensáveis para a
organização econômica de uma sociedade, conforme esclarece Sen (2000, p. 134). A questão da discussão
pública e participação social é, portanto, central para a elaboração de políticas em uma estrutura democrática.
O uso de prerrogativas democráticas tanto as liberdades políticas como os direitos civis é parte crucial do
exercício da própria elaboração de políticas econômicas, em adição a outros papéis que essas prerrogativas
possam ter. Em uma abordagem orientada para a liberdade, as liberdades participativas não podem deixar de
ser centrais para a análise de políticas públicas”.
136
não tem justificativa moral, seja em qual contexto ocorra. As discriminações por motivos
raciais, religiosos e sexuais, que se convencionou caracterizar como “questões de gênero”,
precisam ser abordadas com base nas contribuições oferecidas pelas sociedades democráticas,
integradas ao princípio da sustentabilidade (KESSELRING, 2007).
Realidades similares são menos frequentes em sociedades com estruturas
democráticas abrangentes que funcionam e beneficiam as pessoas nos seus mais diversos
contextos e situações, e especificamente, onde o debate público ocorre por meio da imprensa
livre e da ocorrência de eleições periódicas com plena liberdade de escolha. Os governos
democráticos são constantemente expostos ao julgamento público das suas ações, seja porque
precisam se submeter ao processo eleitoral, seja porque as suas ações são constantemente
publicizadas pelos meios de comunicação, que destacam os benefícios e as mudanças
positivas que acontecem na sociedade, ao mesmo tempo em que evidenciam as deficiências
que persistem ou os planos que não são executados. Sabendo, pragmaticamente, que os
governos querem se manter no poder, a democracia é um mecanismo que estimula as políticas
de desenvolvimento social.
O investimento em políticas de bem-estar, por meio de eficientes programas sociais,
é um instrumento decisivo e eficaz para a mudança social. Existe uma conexão importante
entre as chamadas “políticas sociais”, a evolução da qualidade de vida das pessoas e sua
contribuição para o desenvolvimento. Especificamente, sobre a condição de vulnerabilidade
em que se encontram muitas mulheres por razões culturais, religiosas e econômicas, a ação
conjunta das políticas sociais integradas e bem articuladas, referendadas por mecanismos de
participação, tem condições de obter, em espaços de tempo relativamente curtos, resultados
significativos e com perspectivas de longa duração (SEN, 2006).
A preocupação com a efetivação das políticas de bem-estar é um claro exemplo de
como a democracia pode chegar a todas as pessoas, especialmente às mais pobres, e resgatar
desde a autoestima até expressivos meios de participação social. Especialmente quanto às
situações de discriminação ou preconceito em relação à mulher e às minorias, as melhorias no
sistema de acesso ao sistema de saúde, programas de alfabetização, direito à propriedade, e
estímulo à participação política por meio de associações e disputa por cargos eletivos, entre
outros, são importantes meios de atuação, especialmente do Estado, que resgatam a condição
de agente e, por seu importante papel social, têm o poder de influenciar outras áreas da
organização da sociedade, conforme esclarece Sen (2000, p. 221; 227):
137
Ver os indivíduos como entidades que sentem e têm bem-estar é um reconhecimento
importante, mas ficar só nisso implica uma concepção muito restrita da mulher
como pessoa. Portanto, compreender o papel da condição de agente é essencial para
reconhecer os indivíduos como pessoas responsáveis: nós não estamos apenas sãos
ou enfermos, mas também agimos ou nos recusamos a agir, e podemos optar por
agir de um modo ou de outro. Assim, nós - mulheres e homens temos de assumir a
responsabilidade por fazer ou não fazer as coisas. Isso faz a diferença, e precisamos
atentar para essa diferença. Esse reconhecimento elementar, embora suficientemente
simples em princípio, pode ter implicações rigorosas, seja para a análise social, seja
para o raciocínio e ação práticos. [...] provas consideráveis que a educação e a
alfabetização das mulheres tende a reduzir as taxas de mortalidade das crianças.
As melhorias na condição de vida das pessoas, com maior ou menor expressão, são
um componente importante das liberdades substantivas, porque resgatam a condição de
agente social, contribuindo para a diminuição das desigualdades. Entretanto, apenas políticas
que têm como objetivo a melhoria do bem-estar são limitadas e insuficientes para a realização
individual de uma pessoa e para o equilíbrio das relações sociais. Considerando o valor moral
substantivo da liberdade, o aprimoramento constante de uma sociedade democrática supõe
que uma pessoa atue na condição de agente, o que não restringe sua participação social, seja
ao acesso a certa quantia de bens, seja ao preenchimento de objetivos individuais.
A construção de um modelo de desenvolvimento sustentável com uma clara
vinculação com a estruturação e o funcionamento da democracia é objetivo em permanente
construção e avaliação, que se expressa, de modo especial, nas diferentes formas de atuação e
participação das pessoas, no vigor e na estabilidade institucionais e nas condições de bem-
estar dos seus membros.
A democracia, diferentemente de outras formas de organização política, assegura o
vigor e o dinamismo de sua atuação na capacidade de contemplar as variadas formas de
manifestação dos interesses que integram a dinâmica da sociedade; preocupa-se com o
atendimento das necessidades imediatas; aprimora e solidifica o corpo institucional, a
administração dos recursos disponíveis e a preocupação com as futuras gerações. Nesse
sentido, pode-se concluir que a democracia em profunda conexão com o princípio da
sustentabilidade, de forma equitativa, atende às necessidades econômicas, ao mesmo tempo
em que garante o desenvolvimento das liberdades substantivas.
138
3 FUNDAMENTOS PARA UMA TEORIA DA JUSTIÇA
Ao longo da sua história, por meio de múltiplas formas e em diferentes períodos, o
homem organizou as suas relações, as instituições, a satisfação das suas necessidades e a
distribuição dos recursos disponíveis tendo como objetivo principal a realização do ideal de
justiça. A existência das sociedades, com toda a sua estrutura de relacionamentos e de
instituições, tem entre suas justificativas o desejo e a necessidade de construir entre os seus
membros relações justas. Nesse sentido, pode-se afirmar que a justiça não apenas é uma
referência importante, mas é a própria razão de ser da sociedade e orienta a formação dos
valores e dos princípios culturais da humanidade. Essa identidade entre a justiça e a estrutura
social é destacada por Höffe (2003, p. 11): “Nenhuma cultura e nenhuma época quer abrir
mão da justiça. Um dos objetivos orientadores da humanidade, desde os seus primórdios, é
que o mundo se inspire na justiça.”
A necessidade de, constantemente, fundamentar a concepção de justiça é decorrente
da dinâmica que envolve as relações sociais, em constante evolução, caracterizadas por
inúmeros interesses e conflitos que se complementam, mas em muitas circunstâncias são
contraditórios. O atual estágio de organização das sociedades tem como uma importante
referência o acelerado processo de globalização, impulsionado, especialmente, pela expansão
dos recursos tecnológicos e pelo progresso dos sistemas de informação, representados pela
informática
35
. Essas transformações, juntamente com inúmeras outras facilidades e
oportunidades, contribuem para que melhorem as condições de vida das pessoas e para que a
35
O contexto e as condições para que esse processo ocorresse, as consequências para o desenvolvimento, a
modernização das sociedades e a influência sobre a vida das pessoas são analisados por Cardoso (2008, p.
14): “A partir do momento em que as invenções incorporadas ao processo produtivo se aceleraram bastante e
afetaram mais diretamente o modo de vida das pessoas (TV, internet, telefonia digitalizada, avião a jato,
BlackBerry, e assim por diante), diferentemente dos inventos do passado (desde o uso da máquina a vapor até
a utilização da energia nuclear e mesmo do rádio ou do telégrafo), que atingiam o cotidiano das pessoas de
maneira mais limitada e com absorção mais lenta, mudou radicalmente a relação entre o sistema produtivo e
as formas de sociabilidade e de cultura. [...] Desse ponto de vista, o início da globalização contemporânea
não ocorreu com a vitória sobre o Eixo e nem esperou a queda do muro de Berlim para ser comemorado. Ele
se deu quando a revolução dos meios de transporte , com seu enorme barateamento e, sobretudo, quando as
comunicações instantâneas por intermédio dos meios eletrônicos quebraram a diferença radical entre tempo e
espaço. Por mais que a robotização e as técnicas microeletrônicas tenham transformado os sistemas
produtivos e tenham potenciado o processo de acumulação, foram as novas técnicas de informação e sua
disponibilidade prática (as informations technologies, IT, ao estilo de Silicon Valley) que permitiram a
incorporação desses avanços à vida cotidiana. Além disso, elas deram margem à multiplicação dos fluxos de
capital e a criação de novos „produtos financeiros‟ (hedge founds, derivativos, mercados a futuro, etc.), todos
viabilizados graças às redes globais de comunicação, vinculados pela Web”.
139
organização das sociedades se torne mais integrada, assim como aflorem as deficiências, as
potencialidades e as contradições internas e externas.
Considerando que a busca pela justiça é a razão fundamental para a existência de
uma sociedade, a efetivação desse objetivo é condição para a sua legitimidade moral. A sua
atual arquitetura precisa contemplar uma ampla rede de relações humanas e sociais, que
inclui, entre outros aspectos, a garantia das liberdades, a administração dos recursos
disponíveis, a preocupação com as futuras gerações e as manifestações dos valores culturais.
Assim, a justiça não está atrelada a interesses e metas econômicas, aos objetivos dos Estados
nacionais, aos valores tradicionais, à distribuição dos bens, ou, mesmo, à chamada “justiça
formal”, que inclui a aplicação das normas jurídicas sob responsabilidade do Poder Judiciário
(HÖFFE, 1991).
As excessivas desigualdades que, contemporaneamente, persistem nas relações
internas e entre os países, normalmente legitimadas por tradições culturais e religiosas ou por
interesses que visam à dominação política e econômica, em face do aumento vertiginoso da
produção de bens e do progresso tecnológico, denunciam uma grave contradição entre o ideal
de justiça e a sua efetivação. Da mesma forma, o cerceamento do exercício da liberdade em
muitos países, as disputas originadas por conflitos entre culturas, a concentração dos bens e
das riquezas, as crises que ameaçam as democracias e o conceito de Estado, a escassez de
recursos vitais para a existência humana e o equilíbrio social, o desequilíbrio das relações
internacionais, as necessidades das futuras gerações, entre outros, são temas que desafiam a
construção de estruturas que viabilizem a realização da justiça (NAGEL, 1996).
Uma concepção de justiça tem como objetivo principal ser um ponto de referência
fundamental a partir do qual se estruturam as relações que ocorrem na sociedade, assim como
oferecer elementos que contribuam para a superação das deficiências que estão presentes no
seu interior, especialmente as situações de injustiça. A busca pela justificação dos diferentes
indicativos ocorre a partir da inserção da temática e de quem a propõe no contexto de onde
provêm as demandas por uma ordem social justa, juntamente com a busca pela legitimação
das proposições segundo razões válidas, isto é, racionalmente fundamentadas.
A efetivação da justiça é uma necessidade para a garantia do equilíbrio de uma
sociedade e abrange as diferentes áreas da organização humana, a preservação e a
administração dos recursos e o cumprimento dos compromissos institucionais. Pode-se, então,
afirmar que a justiça influencia nas diferentes áreas da atuação humana e tem consequências
140
sobre as demais pessoas, a natureza, o conjunto da sociedade e o futuro. A busca pela
fundamentação da compreensão do conceito de justiça recoloca as questões que
tradicionalmente preocupam a humanidade: O que é a justiça? Quando uma sociedade é justa?
Como administrar os bens e recursos com justiça? Que importância têm as leis para a
realização da justiça? Quem é responsável pela justiça? Entretanto, apesar de inscritas na
tradição, essas são dimensões que precisam ser pensadas considerando novos contextos,
desafios e sujeitos que integram a formação da sociedade.
Considerando o valor moral substantivo da liberdade, apresentado por Sen como uma
referência indispensável para a realização individual e a estruturação equitativa das relações
sociais, as condições para a justiça estão relacionadas com a garantia, a promoção e o
exercício das liberdades. As liberdades substantivas, especificamente representadas pelas
capabilidades, são o espaço para a avaliação das condições de justiça existentes numa
sociedade (SEN, 2000).
A opção por uma ampla base informacional
36
, alternativa aos métodos de avaliação
tradicionais, contempla também a realização dos objetivos individuais e sociais, pois inclui as
diferentes relações que as pessoas estabelecem entre si e com os demais, a satisfação das
necessidades individuais e sociais, as possibilidades de escolha entre os funcionamentos que
uma pessoa considera valiosos, a formação dos valores culturais, a administração dos recursos
disponíveis (naturais e outros) e as garantias necessárias para a sobrevivência das futuras
gerações.
A avaliação da justiça tendo como referência as liberdades substantivas tem como
ponto de apoio o fato de ser um mecanismo pluralista, isto é, não restritivo, o que oferece as
condições para que a construção dos argumentos e das proposições não dependa de pré-
compreensões homogêneas e, por isso, limitadas a referências globais, sem contemplar as
características individuais ou comuns a certos grupos ou contextos. A alternativa em favor da
liberdade é evidenciada por Sen (2000, p. 94), que explica como uma abordagem mais ampla
pode ser decisiva para uma avaliação real da justiça:
36
A estruturação de uma ampla base de informações tem condições de contemplar aspectos gerais e também
destacar as dimensões específicas para a realização humana e a organização de uma sociedade justa,
superando compreensões restritivas ou dependentes de critérios e interesses individualistas ou corporativos e,
mesmo, de concepções que privilegiam aspectos gerais em detrimento de outros que podem se tornar um
referencial decisivo no processo de avaliação, conforme assinala Sen (2000, p. 76): “De fato, a verdadeira
„essência‟ de uma teoria de justiça pode, em grande medida, ser compreendida a partir de sua base
informacional: que informações são - ou não são - consideradas diretamente relevantes.”
141
Venho procurando demonstrar já há algum tempo que, para muitas finalidades
avaliatórias, o “espaço” apropriado não é o das utilidades (como querem os
“welfaristas”) nem dos bens primários (como exigido por Rawls), mas o das
liberdades substantivas as capabilidades de escolher uma vida que se tem razão
para valorizar. Se o objetivo é concentrar-se na oportunidade real de o indivíduo
promover seus objetivos (como Rawls recomenda explicitamente) , então será
preciso levar em conta não apenas os bens primários que as pessoas possuem, mas
também as características pessoais relevantes que governam a conversão de bens
primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos. Por exemplo, uma
pessoa fisicamente incapacitada pode possuir uma cesta de bens primários maior e
ainda assim ter menos chance de levar uma vida normal (ou de promover seus
objetivos) do que um indivíduo fisicamente capaz possuidor de uma cesta menor de
bens primários. Analogamente, uma pessoa idosa ou mais propensa a doenças pode
ser mais desfavorecida em um sentido geralmente aceito, mesmo possuindo um
pacote de bens primários maior.
A busca pela fundamentação dos marcos essenciais de uma concepção de justiça está
inserida na dinâmica evidenciada pelo contexto contemporâneo, considerando o valor moral
substantivo da liberdade como a referência indispensável com base na qual se estruturam as
justificativas e os meios para a organização justa da sociedade. A opção por alguns temas
prioritários representa os limites e a complexidade inerentes a uma abordagem dessa natureza,
ao mesmo tempo em que desafia para uma compreensão que contempla e legitima um ideal
social e os mecanismos para sua efetivação.
A democracia é o sistema político com as melhores razões e com as estruturas
suficientes para garantir a estabilidade e um ordenamento seguro e equitativo das relações
sociais, ao qual todas as sociedades têm direito, independentemente de suas características. As
diferenças que caracterizam a arquitetura das sociedades demandam as condições para a sua
manifestação, da mesma forma que desafiam para a tolerância e a superação daqueles valores
ou práticas contrários às condições de justiça.
O multiculturalismo, que representa a multiplicidade de culturas, com seus hábitos,
costumes, valores e princípios, não raras vezes divergentes, expressa a formação plural de
uma sociedade e precisa das condições para expressar as suas concepções, entretanto não
pode legitimar ou desenvolver práticas ou instituições injustas (SEN, 2009).
A privação dos direitos fundamentais e dos bens essenciais para a sobrevivência
humana desafia as condições para a estruturação de uma organização social justa, que atenda
às necessidades básicas em conformidade com os recursos disponíveis e a sua administração,
além de considerar aquelas das gerações futuras. A sustentabilidade é um princípio
fundamental para uma organização social justa, porque envolve a utilização dos limitados
142
recursos naturais responsáveis por grande parte da satisfação das necessidades humanas, de
cuja correta disposição dependem as condições de vida no futuro, acrescida da estabilidade
social, econômica, política e cultural das sociedades e do equilíbrio ambiental. A formação da
identidade individual e a necessidade do relacionamento com a coletividade são dimensões
fundamentais para a justiça, o que desafia as pessoas para o desenvolvimento de uma estrutura
de convicções e valores que as identificam num contexto determinado, ao mesmo tempo em
que convivem diferentes concepções sem renunciar aos seus valores (SEN, 1983).
A organização e a arquitetura das relações internacionais são decisivas para o ideal
de justiça entre as nações, não apenas com o objetivo de evitar as guerras, mas,
particularmente, para o aprimoramento comercial, as garantias de integração e troca de
informações, a expressão da liberdade e da democracia, o fortalecimento de acordos de
cooperação e entreajuda e o cumprimento dos contratos formalmente estabelecidos, entre
outras. Ainda, expressam a necessidade e o desejo de fortalecer formas de relacionamento,
não dependentes apenas dos interesses econômicos e comerciais, mas interligados aos
múltiplos espaços que podem contribuir para o aprimoramento das relações entre os países.
3.1 A JUSTIÇA E A DEMOCRACIA
A afirmação da democracia como um sistema de organização das relações sociais é,
se não a maior, uma das mais expressivas conquistas da humanidade. Na Grécia antiga se
encontram as primeiras experiências de participação e de exercício do poder, não limitado a
uma razão única ou a interesses monopolistas
37
. No decorrer da história, a democracia se
afirmou como um sistema de governo e de organização social possível para todas as
sociedades, independentemente de pré-condições para a sua aceitação e organização. Essa
37
Juntamente com o reconhecimento das raízes gregas da democracia, especialmente representada pela sua
contribuição para o debate público e o direito de voto, apesar da exclusão dos escravos e das mulheres da
condição de cidadania, houve, em outras sociedades, importantes expressões das ideias democráticas que não
podem ser desconsideradas, conforme afirma Sen (2003): “As referências ao pluralismo, diversidades e
liberdades básicas podem ser encontradas na história de muitas sociedades. As longas tradições de
encorajamento e proteção aos debates públicos nos assuntos políticos, sociais, e culturais na Índia, China,
Japão, Coreia, Iran, Turquia, e no Mundo Árabe, e em muitas partes da África, exige muito mais
conhecimento da história das idéias democráticas. Esta herança global é uma questão frequentemente
reiterada que a democracia é apenas uma idéia ocidental, e que a democracia é, portanto, apenas uma forma
de ocidentalização. O reconhecimento dessa história tem relevância direta em política contemporânea ao
mostrar o legado global de proteger e promover a deliberação social e as interações pluralistas, as quais não
podem ser menos importantes hoje do que foram no passado quando elas foram anunciadas.”
143
opção é uma demonstração da evolução das sociedades, da sua capacidade de organizar uma
estrutura política com o objetivo de contemplar, entre outras dimensões, o conjunto de
aspirações dos seus membros, o ordenamento das relações internas e externas, a garantia de
manifestação política das forças que a compõem e o equilíbrio das instituições.
A escolha da democracia imprime no corpo de uma sociedade um conjunto de
características com base nas quais ela adquire uma identidade específica e determina um
conjunto de condições para que estabeleça os seus relacionamentos em igualdade de
condições com as demais. Nos diferentes campos de suas relações, interno ou externo, ocorre
uma mudança radical, pela qual se pode compreender toda a dinâmica social, especialmente, a
evolução do conceito de pessoa, o acesso e o exercício do poder, os diferentes níveis de
participação, a administração dos bens e dos recursos, a estrutura econômica, os valores que
orientam as relações humanas e do Estado e os diferentes compromissos inerentes a sua
estrutura social, especialmente os programas políticos, os contratos internacionais e a
responsabilidade com as futuras gerações (SEN, 2002).
A linguagem da democracia é universalmente reconhecida porque não está restrita à
decisão de uma pessoa ou à prévia autorização de grupos ou instituições que, com base em
interesses externos, e normalmente estranhos à maioria, impõe de forma unilateral o
ordenamento social que deve ser seguido pelos demais.
O marco evolutivo está na passagem de uma identidade social dependente de
referências e interesses individuais para um modelo que tem como objetivo construir uma
arquitetura de relações sociais cuja referência está na inclusão das manifestações, dos desejos,
dos interesses e dos objetivos da totalidade dos seus membros, seja para a tomada das
decisões políticas mais importantes seja para a administração e o gerenciamento das demais
áreas.
Para a efetivação de tal intento, a democracia possui mecanismos que garantem as
condições de manifestação da vontade individual e coletiva, dos quais se podem destacar:
diversas formas de representação e participação, instituições que legitimam e auxiliam a
organização equilibrada dos interesses particulares e coletivos e o atendimento das demandas
internas e as relações externas (SEN, 2003).
Os princípios que legitimam uma sociedade democrática precisam ter a adesão da
ampla maioria dos seus membros para, assim, constituir uma identidade coletiva, isto é, na
arquitetura social e nas formas de organização interna se expressa a sintonia necessária da
sociedade com a democracia. Sabe-se que é difícil alcançar a adesão incondicional da
totalidade das pessoas para todos os valores da democracia, porém isso não a inviabiliza nem
144
diminui a sua importância. Importa que a razão pública, isto é, a compreensão da estrutura
política da sociedade, contenha os elementos fundamentais que justifiquem a opção por esse
sistema. A não adesão de uma parte dos seus membros, ou mesmo de alguns dos seus líderes,
não impede nem desmerece as suas características.
É necessário, entretanto, que a maioria da população e seus dirigentes explicitem a
sua opção em favor da estrutura de princípios e valores democráticos que garantam a
expressão dos objetivos individuais e dos interesses coletivos, incluindo a manifestação da
vontade pessoal e das discordâncias, por mais contraditórias que possam parecer. Essa
caracterização do valor universal da democracia e a sua não dependência da unanimidade são
destacadas por Sen (2002, p. 44): “Eu argumentaria que a aceitação universal não é um
requisito para que algo seja considerado valor universal. Ao invés disso, o argumento de um
valor universal é que as pessoas, em qualquer lugar, tenham razão de vê-lo como valioso.”
O ideal de igualdade entre as pessoas no atendimento das suas necessidades e
desejos, na distribuição de bens e serviços, nas posições sociais e profissionais, entre outros, é
o objetivo central da justiça. Contudo, a formação e a constituição da sociedade são desiguais,
o que, em princípio, impediria a justiça. As diferenças, nesse contexto, caracterizam as
relações sociais e constituem a sua identidade
38
. Por isso, pode-se destacar a constituição
plural como um tema fundamental para a abordagem dos assuntos relacionados à justiça.
O valor da democracia não está restrito aos meios de que ela dispõe para o
ordenamento justo de uma sociedade, mas abrange também os valores que a sustentam, assim
como o conjunto de princípios que a legitimam. A referência fundamental relaciona-se,
primeiramente, à afirmação do seu valor próprio, isto é, na sua essência se encontra um
conjunto de indicativos cuja existência e validade não são derivadas de qualquer condição ou
ajustamentos prévios ou dependentes dos resultados anteriormente planejados.
Sendo a justiça o objetivo maior de uma sociedade, a democracia, nessa perspectiva,
adquire uma função instrumental. A estrutura democrática, incluindo o seu valor próprio, os
seus princípios e os seus mecanismos (especialmente as instituições), representa um conjunto
de recursos indispensáveis para a sua efetivação. A convicção sobre a importância desses
meios não limita o seu funcionamento, nem impede a busca pela realização das metas
38
O pluralismo, que identifica as sociedades contemporâneas, do qual depende a efetivação da justiça, foi
afirmado por Rawls (2000b, p. 24): “A gravidade do problema reside no fato de que uma sociedade
democrática moderna não se caracteriza apenas por um pluralismo de doutrinas religiosas, filosóficas e
morais abrangentes. Nem se deve esperar que, num futuro previsível, uma ou outra doutrina razoável chegue
a ser professada algum dia por todos os cidadãos, ou por quase todos. O liberalismo político propõe que, para
propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e, ainda assim, incompatíveis,
seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro de uma estrutura de instituições livres de um
regime democrático constitucional.”
145
essenciais e mais abrangentes. Uma sociedade democrática não se organiza de forma
mecânica; pelo contrário, o que existe é a afirmação e o fortalecimento dos seus princípios e
instituições, juntamente com o aprimoramento constante daquelas dimensões que contribuem
para seu ordenamento e a sua estabilidade (SEN, 2003).
Integra também as características da democracia a capacidade de uma sociedade
admitir e conviver com uma ampla variedade de valores e concepções que se complementam,
mas em determinadas situações podem conflitar. A pujança de uma sociedade democrática
está na afirmação daqueles valores que são indispensáveis para a sua existência, da mesma
forma que, dadas as mudanças que constantemente ocorrem no seu interior, tem condições de
criar outros valores, normas e instituições com o objetivo de impulsionar e fortalecer a busca
pela justiça social.
A afirmação da democracia como condição para a estruturação da justiça implica o
reconhecimento dos seus valores e princípios e a sua efetivação em benefício do conjunto da
sociedade. Os ideais de justiça precisam integrar o cotidiano da vida das pessoas e a ação das
instituições, especialmente pela mudança das condições de vida, conforme afirma Benhabib
(2002, p. 104):
A democracia, em vinha visão, é melhor entendida como um modelo para organizar
a coletividade e o exercício público do poder das maiores instituições da sociedade
como a base dos princípios cujas decisões afetam o bem-estar de uma coletividade
pode ser visto como resultado de um procedimento da liberdade e baseado sobre a
deliberação entre indivíduos considerados como moral e politicamente iguais.
Certamente nenhuma definição de conceitos essenciais contestados como a
democracia, liberdade e justiça nunca é uma mera definição.
Quando numa sociedade ocorre o que se convencionou chamar de “retrocesso
político”, isto é, a conquista e o exercício do poder por pessoas ou grupos por vias não
democráticas, normalmente pelo uso da força, instala-se um processo de desvirtuamento da
estrutura social, gerando graves injustiças, que podem ser percebidas na esfera política e no
desenvolvimento econômico, assim como nas demais áreas. Isso porque as virtudes próprias
da democracia imprimem tal vigor no conjunto da sociedade que, por mais deficientes e
limitadas que possam parecer as suas condições, existem inúmeras constatações empíricas que
demonstram a sua capacidade e os mecanismos que possui para a superação das deficiências
em favor de uma estrutura social mais justa (NAGEL, 1996).
146
Com base no valor moral substantivo da liberdade, pode-se afirmar que a ausência
da democracia tem como consequência a efervescência da injustiça social. Por isso, por mais
graves que sejam as situações de desigualdade e fragilidade das estruturas sociais, a opção por
soluções não democráticas, mesmo que temporárias, não possui legitimidade moral. A
democracia é uma opção vital para a justiça social e seu valor moral se amplia, se aprofunda e
se fortalece quanto mais seus valores e princípios se integram na vida das pessoas, nas
relações que cada uma constrói e no aprimoramento das respectivas instituições.
As liberdades substantivas estão representadas, nesse contexto, nos amplos espaços e
instituições democráticos que possibilitam às pessoas, contempladas as suas diferenças,
expressar a sua vontade, participar na condição de sujeitos dos espaços de organização e
tomada de decisão, da mesma forma que desenvolvem as suas capabilidades e contribuem
para a realização da justiça. Quando a abordagem é estendida para espaços sociais mais
amplos, as liberdades substantivas caracterizam as relações que definem a legitimidade e a
existência das instituições, as estruturas de participação política e de desenvolvimento
sustentável, a distribuição e administração dos bens e recursos, as relações comerciais e a
política internacional, entre outras (SEN/ SUDNIR, 1994).
A instrumentalização da democracia está entre as consequências representadas pelo
retrocesso político, o que implica a subserviência das instituições aos interesses representados
pelo poder econômico ou político, internos ou externos, comprometendo, negativamente, na
sua essência o valor moral substantivo da liberdade. Da mesma forma, em nome da liberdade
é legitimada a utilização das instituições para beneficiar a vontade e os objetivos provenientes
de razões individualistas e sem compromisso com a coletividade, especialmente com as
ameaças e as deficiências que recaem sobre os mais pobres.
Entretanto, a estruturação das relações sociais conforme o valor moral substantivo da
liberdade supõe que as manifestações e demandas da sociedade precisam ser tratadas de forma
equitativa, considerando a multiplicidade de fatores que a compõem e os mecanismos
específicos que formam a riqueza de uma sociedade democrática.
A ordem democrática, ao se afastar do valor moral substantivo da liberdade,
descaracteriza a diversidade que constitui o seu interior, privilegiando comportamentos
autointeressados, com sérias consequências sobre o agir moral e as instituições sociais. A
atuação humana, especialmente as condições de escolha dos funcionamentos para o
desenvolvimento das capabilidades, não pode ser refém de uma vontade ou de um objetivo
único. Esse conflito é destacado por Sen (1999, p. 35): “A verdadeira questão é se existe ou
não uma pluralidade de motivações ou se unicamente o autointeresse rege os seres humanos.”
147
A democracia tem como um valor essencial o direito de participação de todos nos
destinos da sociedade, o que ocorre, especialmente, por meio do direito de votar e ser votado.
Uma sociedade que, na sua organização, desconsidera, por qualquer motivo, a importância
dessa dimensão descaracteriza uma das marcas fundamentais da ordem democrática. O
exercício de participação simboliza a efetivação do valor moral substantivo da liberdade e a
afirmação da pessoa na plena condição de agente, caracterizada como membro ativo e
influente nos destinos da sociedade.
A manifestação da vontade por meio do direito de votar e ser votado é, ao mesmo
tempo, efetiva e simbólica, porque representa as condições que as pessoas têm para
influenciar a estruturação da arquitetura das relações sociais, particularmente o fortalecimento
dos direitos civis e políticos que têm especial significado para a melhoria da qualidade de vida
das pessoas e para o surgimento de novos valores. Da mesma forma, pelo exercício dos
direitos políticos e civis, o exercício da democracia supõe a liberdade de associação,
especialmente expressa na criação e no fortalecimento dos partidos políticos. A dinâmica
representada pela política multipartidária representa o vigor das forças sociais organizadas
para a conquista dos seus objetivos e a maturidade da sociedade, que, por meio das
instituições, integra e ordena as diferentes manifestações. A existência de associações e
partidos possibilita a alternância do poder e a renovação dos dirigentes, o que significa um
importante mecanismo de ampliação das condições para a justiça social (SEN, 2000).
A existência de vigorosos grupos de oposição é indispensável para evitar o retrocesso
político e para o aprimoramento das instituições, da mesma forma que estes são um
instrumento de pressão para a ampliação das conquistas sociais e políticas e para o melhor
funcionamento do Estado. As eleições periódicas oferecem as condições necessárias para a
disputa entre forças muitas vezes contraditórias submetidas às regras legais e aos valores
democráticos. A consagração do critério da maioria como um instrumento privilegiado para a
legitimação da vontade da sociedade representa o ideal de decisão quando as pessoas têm
condições efetivas de participação social, entre as quais se podem destacar: garantia de
liberdade para expressar suas convicções, respeito ao resultado das eleições, um rigoroso
aparato legal e conhecimento do processo a ser executado (PUTN, 2008).
Entretanto, a democracia não pode ter sua compreensão limitada à realização de
eleições ou à aceitação e à legitimação dos governos de maioria. A complexidade de uma
sociedade, representada pela multiplicidade de interesses e pelas necessidades que estão
148
presentes no seu interior, com facilidade pode instrumentalizar as instituições e as formas de
representação, impondo sua vontade individual sobre os interesses coletivos
39
.
Contradições dessa natureza podem ser constatadas com mais frequência nas
sociedades em que persistem graves desigualdades sociais. Pode ocorrer, então, a ascensão de
governos autoritários ou a utilização do aparato democrático, com destaque para os meios de
comunicação e os partidos políticos, para a imposição de interesses individuais ou
corporativos, legitimados legalmente.
As múltiplas formas de participação que ocorrem nas sociedades democráticas são
decisivas para afirmar a importância da democracia na ação individual e coletiva das pessoas.
As formas de incentivo e a oportunidade de exercer “os direitos políticos e civis,
especialmente relacionados à garantia de discussão, debate, crítica e dissensão abertos, são
centrais para o processo de geração de escolhas bem fundamentadas e refletidas” (SEN, 2000,
p. 180). Nesse sentido, é importante observar a determinação de uma sociedade democrática
na prevenção de calamidades que comprometem o seu equilíbrio, como, por exemplo, as
fomes coletivas ou as graves epidemias.
A afirmação da liberdade como condição sem a qual não existe democracia tem
como objetivo a construção e o equilíbrio, seja das ações sociais, seja das relações entre os
seus respectivos atores, particularmente aqueles que, pela relevância da sua responsabilidade,
têm o dever de conduzi-la a partir da efetivação dos direitos, representados pela busca da
superação das gritantes desigualdades presentes nas sociedades contemporâneas.
A elevada valorização da liberdade individual na teoria da justiça de Nozick é uma
demonstração de como a pessoa, as instituições, os valores, assim como as ações humanas e a
atuação política, especialmente as liberdades substantivas, podem ser instrumentalizados, seja
39
As exigências do critério da maioria para representar a manifestação das demandas sociais e a necessidade de
uma estrutura moral e legal para a sua efetivação e para o fortalecimento da democracia são explicadas por
Höffe (1991, p. 360): “Na organização concreta da coletividade, as coisas são diferentes. Aqui entram em
cena aspectos da delegação e da representação, das instâncias intermediárias, como os partidos e, não em
último lugar, os procedimentos. Nos procedimentos, por sua vez, se decide no fim, segundo a regra da
maioria, que com boas razões vale como um princípio democrático. Mas então a democracia é entendida
como um princípio de organização e deve ser distinguida rigorosamente do ponto de vista conceitual da
democracia como princípio de legitimação. se trata da origem normativa, aqui, da organização política
dos poderes públicos. Enquanto sem regras determinadas de resolução como o princípio da maioria nenhuma
coletividade é capaz de funcionar, a autorização de uma coletividade, suas resoluções oriundas de resoluções
por maioria, podem se impor eventualmente por coerção, mas não legitimar, por sua vez, por resoluções de
maioria. Como princípio de organização, a democracia nunca é senão uma razão derivada de justificação;
primordialmente vale apenas a livre concordância de cada um individualmente, o consenso universal,
respectivamente, o acordo de cada um com cada um. Na linguagem da teoria social contemporânea, podemos
denominar este princípio de consenso como um direito de veto que compete a cada um individualmente. No
entanto, não se pode considerar nem o consenso nem o direito de veto como fenômenos empíricos. Por isso
dizemos mais claramente: o dever de obediência a uma entidade do estado somente é fundado moralmente na
medida em que pode ser pensado como auto-obrigação de cada um individualmente.”
149
para garantia da legalidade dos direitos, seja pela prioridade às consequências. Na afirmação
de Nozick (1994, p. 66):
O Estado é intrinsecamente imoral. O Estado admite que em certas circunstâncias é
legítimo punir pessoas que violam os direitos de outras, ele mesmo faz isso. Como,
então, pode arrogar-se o direito de proibir que façam justiça outros indivíduos não-
agressivos cujos direitos foram violados? Que direito o executor privado viola que
não seja também violado pelo Estado quando pune? Quando um grupo de pessoas se
constitui em Estado e começa punir, e proíbe outros de agir da mesma maneira,
algum direito que essas pessoas violariam e que o próprio Estado não viola? Com
que direito, então, podem o Estado e seus servidores reclamar um direito exclusivo
(não um privilégio) com relação à força e impor esse monopólio? Se o executor
privado da justiça não viola os direitos de ninguém, então puni-lo por seus atos (atos
que os servidores do Estado tamm praticam) viola-lhes os direitos e, por
conseguinte, as restrições morais indiretas. O monopólio do uso da força, então, de
acordo com essa opinião, é em si mesmo imoral, como também a redistribuição
através da máquina estatal compulsória do Estado. Indivíduos pacíficos que cuidam
de sua própria vida não estão violando os direitos dos demais. [...] Por isso mesmo,
continua o argumento, quando o Estado ameaça alguém com punição se ele não
contribuir para a proteção de outrem, ele viola (e seus servidores violam) os seus
direitos. Ao ameaçá-lo com algo que seria uma violação de seus direitos, se
praticada por um cidadão privado, o Estado viola as restrições morais.
Ao chegar a algo reconhecível como Estado, temos que demonstrar: 1) como um
Estado ultramínimo surge do sistema de associações privadas de proteção; e 2) como
o Estado ultramínimo é transformado em Estado mínimo, de que modo se dá origem
àquela “redistribuição” de fornecimento geral de serviços de proteção que o constitui
como Estado mínimo. A fim de demonstrar que o Estado mínimo é moralmente
legítimo, e que não é imoral em si, temos que provar que essas transações em (1) e
(2), cada uma delas, são moralmente legítimas.
A base informacional a partir da qual ocorre o processo de avaliação da justiça numa
sociedade democrática compreende uma ampla rede de informações e condições, que incluem
desde os princípios, o funcionamento equitativo e seguro das instituições, até as condições
básicas para a qualidade de vida das pessoas e a preocupação com as futuras gerações. Por
isso, considerar as condições para a justiça dependentes seja do acesso aos bens, seja da
valorização da liberdade restrita à garantia incondicional dos direitos individuais
especificamente de propriedade, limita o alcance e o valor moral substantivo da liberdade.
Para a avaliação da justiça numa sociedade democrática é necessário uma base de
informações abrangente
40
, em condições de contemplar as complexas relações e a sua
40
A afirmação de Sen (2000, p. 107) esclarece como uma base de informações que privilegia as capabilidades é
um critério não restritivo e tem condições de compreender uma ampla área de relações sociais; destaca
150
constituição, com especial atenção à satisfação das necessidades básicas que contribuem para
uma boa qualidade de vida, a utilização e a preservação dos recursos ambientais para esta e as
futuras gerações, as relações externas que um país estabelece e em que condições e com quais
objetivos, entre outros.
3.2 A JUSTIÇA E AS DESIGUALDADES
A existência de graves desigualdades sociais, especialmente econômicas e de
participação política, é um fator que denuncia a ocorrência de injustiças, especialmente, nos
espaços das relações humanas, na organização da estrutura social, na administração
equilibrada dos recursos disponíveis e no compromisso com as condições de sobrevivência
das futuras gerações, que impossibilitam a estabilidade das diferentes instâncias da sociedade,
especialmente as instituições democráticas, que com facilidade podem ser instrumentalizadas.
Entretanto, um contexto marcado por contradições como essas desafia, aprimora e fortalece a
busca pela construção da justiça.
A existência de gritantes desigualdades sociais interpela, mais fortemente, a reflexão
e impulsiona o Estado, expõe os governos e compromete as organizações sociais para uma
atuação mais expressiva em busca da superação das dicotomias e para um ordenamento social
que evidencie o vigor da democracia, a atuação das instituições, o fortalecimento do sistema
jurídico e as políticas de desenvolvimento orientadas pelo princípio da sustentabilidade.
Assim como a concepção do desenvolvimento de uma sociedade pode estar atrelada,
prioritariamente, ao progresso econômico, em detrimento de outras áreas importantes para as
pessoas e para o conjunto da sociedade, também a abordagem da justiça, quando ocorre de
maneira restrita, pode limitar sua compreensão e avaliação aos rendimentos econômicos, à
busca do bem-estar, à satisfação das necessidades básicas para a sobrevivência e à realização
e satisfação dos desejos individuais. Da mesma forma, pode restringir o seu alcance à
congruência entre o que está disposto na legislação e a sua aplicabilidade para a solução de
também os limites desse referencial em determinados contextos: “Nesse sentido, a abordagem da capacidade
possui uma amplitude e sensibilidade que lhe conferem grande abrangência, permitindo atentar com
finalidades avaliatórias para diversas considerações importantes, algumas das quais omitidas, de um modo ou
de outro, nas abordagens alternativas. Essa grande abrangência é possível porque as liberdades das pessoas
podem ser julgadas por meio da referência explícita a resultados e processos que elas com razão valorizam e
buscam. [...] Em muitos problemas práticos, a possibilidade de empregar uma abordagem explicitamente
baseada na liberdade pode ser relativamente limitada.”
151
conflitos interpessoais, grupais ou que afetam o bem-estar social. Considerando as
desigualdades sociais e as contradições daí decorrentes, a concepção de justiça é um
referencial imprescindível e seguro para a avaliação e a organização da sociedade (SEN,
2001).
As complexas relações, interesses e necessidades presentes no interior da
organização social demandam uma compreensão das condições para a justiça não limitada aos
objetivos individualistas e corporativos, ou que priorizem a maximização de desejos
particulares. A prudência e a ousadia necessárias para o aprofundamento de um tema
abrangente que envolve as condições para a justiça, considerando as desigualdades que
ameaçam constantemente o equilíbrio social, o conceito de pessoa e o compromisso com o
futuro, ao mesmo tempo em que evidencia a sua formação plural, estão representadas na
afirmação de Höffe (2003, p. 11): “A justiça tem de muito um significado mais abrangente
e mais fortemente moral.”
Em geral, a proposição para a construção da justiça social supõe a existência de
espaços onde se pode falar em igualdade, atendendo, dessa forma, ao anseio central da justiça,
que pode ser simbolizado nas afirmações: “todos são iguais perante a lei” ou “todos nascem
iguais”. Entretanto, ocorre uma constatação que impossibilita a realização dessa meta na
quase totalidade das esferas que se possa desejar.
As diferenças estão presentes na formação da natureza, nas características das
pessoas, na organização política das sociedades, na identidade cultural, entre outros aspectos.
O debate em torno da justiça se defronta som a seguinte questão: Como construir uma
proposta de sociedade justa, onde as diferenças integram a sua identidade e sem as quais não
se pode caracterizá-la?
Atualmente, essa contradição se manifesta com mais evidência, considerando, entre
outras dimensões relevantes, a evolução dos mecanismos de comunicação, a emergência de
grupos sociais e minorias até então sem oportunidades, a expansão da democracia em muitas
sociedades antes dominadas por governos ditatoriais e melhor organização de setores
importantes em grupos de expressão ou de contestação e denúncia, proporcionados,
especialmente pelo acelerado processo de globalização e pelos recursos da informática que
compõem a atual conjuntura social (NUSSBAUM, 2007).
O interesse pela igualdade precisa considerar a ocorrência de diferenças como uma
questão central e, com base nisso, estruturar formas de organização social que respondam aos
anseios presentes no seu interior, das suas organizações, e que contribuam para a superação
das graves desigualdades, cuja existência não encontra justificativa na reflexão moral atual. A
152
igualdade precisa ser entendida como um ideal social que impulsiona a busca pela superação
das situações que ameaçam as pessoas, a estabilidade social e o equilíbrio ambiental.
Moralmente injusta é “uma sociedade que permite desigualdades significativas entre seus
membros, em forma de vantagens e inconvenientes que não são responsabilidade pessoal, será
percebida como uma sociedade que não busca satisfazer as condições de trato igual: distingue
no seu tratamento seguindo linhas moralmente arbitrárias”. (NAGEL, 1996, p.112).
A busca pela superação das graves desigualdades inicia pela constatação das
diferenças que caracterizam as pessoas. Existe uma ampla variedade de raças, culturas, formas
de organização, entre outras, que definem as relações externas entre as pessoas e a sua
estrutura de relacionamento interno. Essa constatação é decisiva porque é em razão da
qualidade de vida das pessoas e do equilíbrio de suas relações que se evidencia a preocupação
com a justiça e se organiza a vida da sociedade.
As diferenças que caracterizam as pessoas, o ambiente onde vivem e o contexto
social têm larga influência sobre a formação da sociedade e os compromissos que esta
estabelece em seus diferentes estágios de organização, com as pessoas, o Estado e com outros
atores sociais. Esse contexto de diversidades e a tensão para a construção da igualdade são
destacados por Sen (2001, p. 23):
Somos profundamente diversos em nossas características internas (tais como idade,
sexo, habilidades gerais, talentos particulares, propensão à doenças e, assim por
diante) bem como nas circunstâncias externas (tais como patrimônios disponíveis,
ambientes sociais, problemas graves do meio ambiente, e assim por diante). É
precisamente por tal diversidade que a ênfase no igualitarismo em um campo exije
rejeição do igualitarismo em outro.
Considerando a amplitude da formação humana e as diferenças que emergem desses
contextos, as características, as necessidades individuais e sociais, as expectativas pessoais e
em relação aos demais são diversificadas e refletem essa pluralidade, as condições sociais e
ambientais, juntamente com a dinâmica dos relacionamentos que ocorrem no interior do
tecido social.
Para a avaliação das desigualdades essa diversidade tem sérias consequências
conforme o espaço onde ocorrem e o que representam, seja do ponto de vista simbólico, seja
da satisfação das necessidades humanas e, mesmo, das condições para a convivência social.
Por exemplo, a ocorrência de uma catástrofe natural que ocasiona a destruição da parte dos
153
meios de sobrevivência, com consequências de longo prazo, representa grandes dificuldades
para o restabelecimento da igualdade, além de aprofundar mais ainda as desigualdades
existentes. De outra perspectiva, e numa outra realidade, a falta de recursos, mesmo que
pouco expressivos, pode representar uma grave ameaça para a integração social numa
sociedade onde se impõe um determinado padrão de comportamento, com exigências que
condicionam a pertença a um determinado grupo segundo regras previamente definidas (SEN,
2001).
O ideal de justiça, além das desigualdades provocadas pelos interesses econômicos
ou por outras formas de dominação, precisa considerar aquelas situações que Martha
Nussbaum chamou de “problemas sem solução”
41
, que, dadas as suas características
peculiares, podem ficar à margem da reflexão, limitando a coerência e o alcance do seu
conteúdo.
Além dos problemas que envolvem as pessoas com deficiências, o alcance universal
da justiça e o tratamento dos animais não humanos, cabe destacar aquelas situações
justificadas por concepções culturais e religiosas que legitimam a submissão e a negação da
liberdade a segmentos significativos da sociedade, com graves consequências para a
construção da justiça. O fenômeno das mulheres faltantes, o persistente sistema de castas, a
41
A síntese dessa temática é exposta pela autora na introdução do livro “As fronteiras da justiça” e detalhado no
decorrer da exposição. Afirma Nussbaum (2008, p. 1) Hoje existem três problemas de justiça social sem
solução, cuja negligência nas teorias existentes parece particularmente problemático. (Não duvido que existam
ainda outros problemas, os quais nós ainda não podemos notar.) Primeiro, existe o problema de fazer justiça para
as pessoas com deficiência física e mental. Estas pessoas são pessoas, mas elas não foram incluídas ainda nas
sociedades existentes como cidadãos com uma base de igualdade com os demais. O problema estende-se para a
educação, cuidado com a saúde, direitos políticos e liberdade e cidadania igual mas geralmente para estas
pessoas parece ser um problema urgente de justiça. Porque a solução deste problema requer uma nova forma de
pensar com relação a quem o cidadão é e uma nova análise das propostas de cooperação social (não focada sobre
a vantagem mútua), e porque requer também enfatizar a importância do cuidado com os bens sociais primários,
parece provável que sua consideração requeira não simplesmente uma nova aplicação de velhas teorias, mas uma
reorganização das próprias estruturas teoréticas.
Segundo, é um problema urgente estender a justiça para todos os cidadãos do mundo, mostrando teoreticamente
como poderíamos conceber um mundo que seja completo, no qual acidentes de nascimento e origem social o
dificultem as condições de vida das pessoas presentes desde o seu inicio. Porque todas as maiores teorias
ocidentais da justiça social iniciam a partir do Estado-nação como a sua unidade básica, é provável que
estruturas teoréticas novas serão exigidas para se pensar bem sobre este problema.
Finalmente, nós precisamos enfrentar os assuntos da justiça que envolvem o nosso tratamento dos animais não-
humanos. Que os animais sofrem dor e indignidade por parte dos humanos tem frequentemente sido considerado
ser um tema ético; tem sido raramente reconhecido ser um tema de justiça social. Se nós o reconhecemos [...], é
claro, mais uma vez, que este novo problema exigirá uma mudança teorética. As imagens de cooperação e de
reciprocidade social que requerem racionalidade de todas as áreas, por exemplo, precisarão ser reexaminadas e
novas concepções de um tipo de cooperação forjadas.”
154
dominação sexual e racial, a utilização de mão de obra escrava, entre outras, não encontram
justificativa em qualquer concepção de justiça contemporânea. Sua manutenção, além de
configurar a existência de gritantes desigualdades, contribui significativamente para o seu
aprofundamento, como atesta Kesselring (2007, p. 15): “A desigualdade social no decurso do
século XX aumentou constantemente em nível mundial e isso em três dimensões: na
perspectiva econômica, naquela das chances de desenvolvimento e, finalmente, naquela da
distribuição de poder.”
A retórica em torno da igualdade precisa considerar a existência dessa contradição
para poder fundamentar uma concepção de justiça que responda ao contexto contemporâneo.
Sendo a igualdade um objetivo central da construção da justiça, é necessário que se construam
determinados espaços onde ela seja possível e possa contribuir para a estruturação de relações
sociais justas. A abordagem dessa temática se depara com questões decisivas como: De que
igualdade se fala? Em que espaços a igualdade é possível? Por que a igualdade é essencial?
Que desigualdades podem ser toleradas? Essa preocupação é destacada por Sen (1996, p. 398)
quando reafirma a conexão entre a justiça e a igualdade.
Como uma proposição substantiva, a exigência de igualdade de um tipo particular
(de renda, de utilidades, de liberdades, etc.) não pode ser logicamente parte
necessária da justiça sobre todas as possíveis concepções. Até mesmo a necessidade
de demanda por igualdade de „alguma coisa que é considerada particularmente
importante‟ na respectiva da teoria da justiça não pode ser completamente analítica.
[...] As questões realmente engajadas no „status da igualdade‟ envolvem (a) a
escolha do espaço e a forma na qual a igualdade é buscada (igualdade de que?), e (b)
os conflitos entre a demanda por alguns tipos particulares de igualdade e outras
considerações, incluindo outros tipos de igualdade (Que significância relativa
ligar?). O status da igualdade é um tema substantivo ao invés de um tema formal.
A escolha de espaços onde a igualdade é possível ou necessária precisa contemplar a
existência de desigualdade em outros. Uma solução igual para todos os espaços seria,
hipoteticamente, possível se entre as pessoas e em todas as suas relações existissem as
mesmas condições. O ponto fundamental para essa arquitetura é a constatação da existência
de uma ampla desigualdade que precisa ser admitida como condição para a justiça. A
“igualdade basal” é o espaço onde a construção da igualdade é possível e se torna a “base
informacional” que contém os elementos para a avaliação das condições de justiça numa
sociedade com muitas desigualdades, que exercem influência sobre as relações humanas, a
155
estruturação da vida social, o estabelecimento dos diversos tipos de contrato, os interesses
econômicos e políticos, a forma de compreender e valorizar os recursos disponíveis e a sua
utilização, assim como as manifestações culturais e as exigências para um relacionamento
entre os povos (SEN, 2001).
A afirmação da liberdade como um valor moral substantivo é fundamental para a
construção da igualdade nesse contexto multifacetado. A liberdade é o espaço da “igualdade
basal” que, sem deixar de considerar a diversidade generalizada que caracteriza os seres
humanos, com consequências na organização social e em outros campos, possibilita a
construção da igualdade por meio de um conjunto alternativo de realizações.
As liberdades substantivas que as pessoas têm, não dependentes do acesso aos bens
ou da consequência das suas ações, representam as condições de que as pessoas precisam para
efetivar um amplo conjunto de objetivos que são decisivos para a sua realização pessoal, para
o seu engajamento na sociedade e para buscar a satisfação daqueles planos e desejos que
consideram importantes para a sua qualidade de vida. A liberdade, nesse sentido, tem uma
posição essencial para as políticas de igualdade não dependentes de interesses previamente
definidos ou dos recursos (SEN, 1991).
A liberdade adquire uma posição central para a existência humana. A avaliação da
igualdade é orientada segundo um referencial mais amplo do que o acesso aos bens ou,
mesmo, da maximização da liberdade individual como condição para que possam ser
alcançados. Uma pessoa tem determinados objetivos, que não podem ser limitados ao seu
alcance imediato, à satisfação das necessidades básicas, ou, mesmo, à busca do seu bem-
estar
42
. Uma pessoa pode ter, considerando suas necessidades, convicções e valores,
determinados objetivos ou planos pessoais, que não dependem das condições citadas, mas ela
tem justificativas suficientes para buscá-los
43
. Trata-se de, sem desprezar ou colocar em
segundo plano a necessidade dos bens, afirmar o caráter decisivo da liberdade para a
avaliação da igualdade e da realização humana, conforme observa Sen (2001, p. 175):
“Recursos são importantes para a liberdade, e a renda é crucial para evitar a pobreza. Mas se
42
O valor da justiça não é dependente das consequências que produz, nem mesmo a importância da liberdade
está relacionada ao seu resultado. Nisso se distancia da concepção utilitarista, conforme expõe De Vita (2000,
p.34): “O utilitarismo [...], propõe que se avaliem as consequências, seja do que for ações, práticas ou
instituições em termos de níveis de utilidade produzidos pelo Estado de coisas resultante.”
43
A desatenção com a pluralidade humana, que constitui a formação humana e suas relações, para a avaliação
da igualdade conduz à maximização do acesso aos bens, o que compromete a construção da justiça, conforme
destaca Sen (2001, p. 152): “A economia do bem-estar que trata da desigualdade comumente ignorou as
diversidades humanas e tendeu a considerar todas as pessoas como exatamente similares (incluindo as inter
alia como possuidoras dos mesmos potenciais máximos).”
156
nosso interesse diz respeito, em última instância, à liberdade, não podemos dada a
diversidade humana tratar os recursos e a liberdade como sendo a mesma coisa”.
O valor moral substantivo da liberdade, nesse contexto, alcança uma importância
singular, com as condições de oferecer os elementos fundamentais para a diminuição ou a
superação das desigualdades que comprometem o funcionamento equilibrado de uma
sociedade, especialmente as instituições públicas, as organizações sociais e as relações entre
as pessoas.
A instrumentalização da liberdade gera o aprofundamento das desigualdades e o
desenvolvimento de formas de pensar que se legitimam, inclusive por meio de errôneas
concepções morais, de situações de grave injustiça, entre as quais podem ser referidos
governos autoritários e modelos econômicos a serviço de interesses individualistas ou
corporativos. Essa distorção da compreensão do valor moral substantivo da liberdade adultera
profundamente a compreensão do conceito de justiça e de igualdade, assim como gera
interpretações errôneas e preconceituosas, conforme sublinha Sen (2002, p. 95): “Não poderia
ser possível discutir sobre injustiça e desigualdade, sem ter que enfrentar a acusação de que o
problema deve ser arbitrário ou intelectualmente despótico”.
As liberdades substantivas possibilitam às pessoas as condições de escolha de um
conjunto de funcionamentos que correspondem aos seus objetivos individuais; por isso,
mesmo em contextos bastante semelhantes, as opções podem ser bastante diferentes, ou,
mesmo com escolhas iguais, as consequências poderão ser diversificadas.
O desenvolvimento das capabilidades não pode ser limitado ou dependente de bens,
recursos ou outros meios similares. Esse é um convencimento fundamental para que questões
de justiça e igualdade, ou seja, a organização justa de uma sociedade, não dependa dos meios
para a liberdade. As capabilidades precisam nortear as escolhas do conjunto de
funcionamentos que uma pessoa considera decisivos para a sua realização.
A liberdade substantiva não é limitada, dependente ou confundida com os meios e os
fins para a realização da justiça, mas situa-se numa posição, simultaneamente, central e
equidistante, o que possibilita às pessoas as condições para estruturarem a sua existência
pessoal e influenciarem uma organização social justa. As capabilidades representam a
liberdade que as pessoas realmente possuem para atuar de maneira autônoma no contexto
social onde estão inseridas.
A avaliação da justiça com base na liberdade não se limita a um cálculo segundo
parâmetros preconcebidos ou à satisfação de interesses definidos por quaisquer motivações ou
interesses. Da mesma forma, as desigualdades não possuem justificativas plausíveis ou são
157
toleradas porque sempre existiram. O critério da liberdade (capabilidades) considera as
diferenças como características que integram a constituição humana, social e da natureza
(SEN, 1976).
Considerando a necessidade de instituir uma organização social justa e, por outro
lado, a existência de gritantes desigualdades, a liberdade introduz uma dinâmica específica
que ordena com justiça a estruturação da sociedade, ao mesmo tempo em que garante a
realização das pessoas de forma compatível com os seus objetivos individuais e integrados
com a estrutura social, os seus compromissos e responsabilidades específicas. Nesse sentido,
uma sociedade formada por incontáveis diferenças tem condições de se estruturar com justiça
e, simultaneamente, existirem certos níveis de desigualdade. Injusta é uma sociedade que, na
sua estruturação, nega as liberdades substantivas e origina ou tolera as desigualdades que
prejudicam substancialmente, a realização pessoal, a qualidade de vida, o equilíbrio das
relações sociais, a utilização dos recursos disponíveis e as condições de existência das futuras
gerações.
3.3 A JUSTIÇA E O MULTICULTURALISMO
As relações entre as culturas é um dos temas fundamentais para a estruturação
equilibrada das sociedades contemporâneas e, especificamente, critério de avaliação das
condições de justiça. As variadas formas de manifestação cultural, com seus valores,
princípios, costumes e interesses, compõem uma complexa estrutura de relações internas que
definem a concepção de mundo das pessoas, a formação familiar, os laços religiosos, a
participação social e os demais vínculos importantes da existência humana e da organização
social.
A multiplicidade de relações que ocorrem no interior de uma sociedade e as
possibilidades de interação entre formas de pensar e agir bastante diferentes, proporcionadas,
especialmente, pela evolução tecnológica e pelos sistemas de comunicação, contribuem para
que a cultura de uma pessoa não dependa unicamente do seu vínculo familiar, geográfico ou
social (SEN, 2006).
O multiculturalismo representa essa ampla rede de relacionamentos que as pessoas
estabelecem entre si e com uma variedade de situações que contribuem, decisivamente, para a
formação da sua identidade individual e social, a partir da qual podem influenciar o ambiente
158
onde vivem e os demais campos de sua atuação. A atenção ao multiculturalismo é uma
condição indispensável para a avaliação das questões de justiça nas sociedades
contemporâneas. É necessário, primeiramente, o reconhecimento da importância da formação
cultural das pessoas e suas implicações nos diferentes espaços onde elas convivem e ao qual
podem influenciar. Uma pessoa sem sua cultura perde suas referências mais importantes, o
que resulta em graves consequências para a sua realização individual e para a sua integração
social. Nesse contexto, merecem destaque os inúmeros relatos das vítimas de perseguição
política exiladas em outros países, distantes de sua família e da vivência social e profissional,
assim como dos hábitos cotidianos, para esclarecer quão importantes são os laços culturais
(SEN, 2000).
As mudanças que acontecem no âmbito das culturas, atualmente, imprimem um
conjunto de características específicas ao modo de organização e desenvolvimento das
sociedades. Ocorre um processo de integração entre as pessoas, os grupos, as religiões e os
interesses que possibilitam a formação de laços interdependentes e complementares. Quando
existe a dependência apenas da afirmação de convicções individuais, com base nas quais se
estabelecem as relações com os demais, normalmente se verifica a imposição da vontade e
dos interesses de um sobre os outros.
Essa conjuntura supõe a capacidade e as condições para o reconhecimento da
existência de uma variedade de culturas, com suas distinções específicas, que precisam ser
percebidas segundo seus princípios e valores, ao mesmo tempo em que cada pessoa precisa se
reconhecer, de acordo com sua formação individual, como membro de uma ampla rede de
identidades culturais que têm implicações no seu agir social e individual. As pessoas vivem
num ambiente de pluralidade cultural. Logo, a opção por um conjunto de valores culturais
supõe, além do respeito e da tolerância para com os demais, a disposição para um
relacionamento integrado e interdependente, que, ao mesmo tempo, confirma as convicções
particulares e, criticamente, aprimora e corrige eventuais distorções que dificultam ou
prejudicam a estruturação da justiça social (SEN, 2009).
A complexidade que caracteriza as relações culturais nas sociedades
contemporâneas, a partir do que se constroem as condições para a convivência social, é
destacada por Sen (2006, p. 4):
159
Em nossas vidas normais, nós nos vemos como membros de uma variedade de
grupos nós pertencemos a todos. A cidadania de uma pessoa, residência, origem
geográfica, gênero, classe, política, profissão, emprego, hábitos alimentares,
interesses esportivos, gosto musical, comprometimento social, etc., nos faz membros
de uma variedade de grupos. Cada uma destas coletividades, a todas as quais essa
pessoa pertence, constitui sua identidade particular. Nenhuma dessas pode ser
considerada como a única identidade da pessoa ou membro singular de uma
categoria.
As formas de relacionamento entre as culturas ocorrem, historicamente, por
diferentes razões, entre as quais se podem destacar a busca pela satisfação das necessidades,
as relações comerciais, a formação das famílias, os acordos políticos, a expansão das
religiões, a troca de informações, entre outras. Contudo, o acelerado processo de globalização
possibilita a percepção de outros aspectos importantes, dos quais se podem destacar: primeiro,
a emergência da manifestação de diferentes valores culturais, até então sem expressão, seja
por se encontrarem numa situação de isolamento e sem condições de comunicação, por
interesses econômicos ou políticos, seja, por imposição de outra cultura dominante; segundo,
a afirmação das diferenças explicita conflitos e contradições responsáveis por divisões
históricas que dificultam a convivência entre os povos e, não raras vezes, são geradores de
outros de maior intensidade, como, por exemplo, as guerras legitimadas por motivações
religiosas; terceiro, as diferentes manifestações culturais também possibilitam o
desenvolvimento de novas formas de integração e aprimoramento das relações internas e
externas, tendo como objetivo alcançar os objetivos e os interesses de cada grupo, assim como
a mudança dos valores e práticas que dificultam a convivência entre as pessoas e os povos.
Considerando o valor moral substantivo da liberdade, pode-se construir um
ordenamento social caracterizado pelo reconhecimento mútuo dos valores culturais e pela
interdependência entre as pessoas, grupos e nações, não restritos, como muitas vezes ocorre,
aos objetivos econômicos, à satisfação da vontade de um líder ou da estrutura diplomática dos
Estados, por exemplo. Dada a afirmação da importância da identidade cultural, sua
abordagem não pode ser limitada a opiniões, tratados ou reflexões provenientes de
autoridades, de representantes de instituições ou de reflexões acadêmicas (SEN, 1996).
As relações sociais se estruturam e se integram a partir da identidade de cada pessoa
ou grupo, que precisa ser fortalecida na medida do reconhecimento do outro naquilo que lhe é
específico. A construção da identidade cultural, seja individual, seja coletiva, nessa
perspectiva, contempla as possibilidades e as interpelações apresentadas por outras culturas,
ambas na condição de sujeito. Essa é uma relação pedagógica tensa, que provoca um debate
160
permanente de concepções e de práticas diferentes e, às vezes, contraditórias
44
, mediado pelo
valor moral substantivo da liberdade, compartilhado pelas partes com o objetivo de afirmar as
características de cada um, num contínuo processo de crescimento, que, normalmente, supõe
admitir a mesma importância para a afirmação do outro.
Essa abordagem não tem como objetivo a defesa de uma identidade única, pois seria
a negação de uma das características mais importantes das sociedades desde as suas origens,
qual seja, a existência das diferenças como sua dimensão constitutiva. A existência da
pluralidade e o exercício do reconhecimento adquirem uma importância peculiar na
estruturação das relações entre as pessoas e com os demais atores sociais, em razão do
convencimento de que “nós somos fortemente influenciados pelos outros, mesmo através de
tácitas conexões que poderiam frequentemente exercer influências menos transparentes”.
(SEN, 2000, p. 23).
Um ordenamento social legitimado pelo princípio do reconhecimento caracteriza o
debate sobre o multiculturalismo numa relação equitativa entre as distintas identidades
culturais
45
. As diferenças compõem a estética da arquitetura e das relações sociais, e a
superação das desigualdades que ameaçam a estabilidade e a construção da justiça se insere
como o objetivo prioritário e norteador da organização das sociedades.
Uma postura que despreza o significado do princípio do reconhecimento e da
construção de estruturas caracterizadas pela inter-relação entre as diferentes manifestações
culturais e pela necessidade de um diálogo permanente com o objetivo de construir relações
justas favorece o isolamento e legitima a imposição de valores e interesses conformes àqueles
representados por pessoas, grupos ou corporações que detêm maior poder econômico e
político, dos quais se originam os recursos e os mecanismos para ações discriminatórias,
segregacionistas e opressoras
46
.
44
A afirmação de Benhabib (2002, p. 35) retrata a origem das dificuldades para uma avaliação mais abrangente
da origem dos conflitos e dos possíveis encaminhamentos para a solução das tensões que ocorrem no interior
das relações culturais: “O confronto real entre culturas diferentes está produzindo não apenas uma
comunidade de conversação, mas também uma comunidade de interdependência. Não apenas o que nós
falamos e pensamos, mas também o que nós comemos, consumimos, produzimos, e desperdiçamos tem
consequências para os outros que nós sequer poderíamos saber, mas cujas vidas são afetadas pelas nossas
ações”.
45
A compreensão do valor e os elementos que contribuem para a formação de uma cultura e a complexidade de
relações que decorrem das suas características são destacados por Benhabib (2002, p. IX): “Filosoficamente,
eu não acredito numa pureza de culturas, ou mesmo na possibilidade de identificá-las como
significativamente discretas. Eu penso nas culturas como uma das práticas humanas complexas de
significação e de representação, de organização e de atribuição que são internamente divididas por narrativas
conflitivas. As culturas são formadas através de complexos diálogos com outras culturas. Em muitas culturas
que alcançaram algum grau de diferenciação interna, o diálogo com outras é interno ao invés de extrínseco à
cultura”.
46
As manifestações dessa concepção de cultura levadas a termo por representantes de ideologias unívocas, que
não reconhecem a importância de outras expressões, e as consequências para a convivência e o equilíbrio
social, especialmente o tratamento dispensado às características dissonantes da cultura dominante, são
161
A concentração dos recursos financeiros e do exercício do poder político está na
origem das muitas formas de discriminação cultural. Nas sociedades onde imperam governos
autoritários, a má administração dos recursos econômicos e financeiros, a negação do acesso à
educação e aos sistemas de saúde, os altos índices de analfabetismo, a ausência do debate
público e da participação política, representados pela imprensa livre, liberdade de associação
e eleições livres, ocorre com maior facilidade e, normalmente, com legitimidade legal e
política, a exclusão das culturas minoritárias, subalternas
47
e com pouca ou nenhuma condição
de organização e representação. A pobreza, desse modo, está na origem de muitos dramas
enfrentados pelas sociedades contemporâneas, com graves consequências sobre as culturas
menos expressivas, conforme esclarece Sen (2006, p. 143; 144; 145):
Esta é particularmente uma preocupação séria, uma vez que a pobreza e as massivas
desigualdades que são terríveis por si só, e merecem prioridade mesmo se não
houver qualquer conexão com a violência. Apenas como virtude a pobreza é pelo
menos a sua própria penalidade. Isso não é negar que a pobreza e a desigualdade
podem- e fazem - ter conexões de longo alcance com conflitos e violências, mas
estas conexões precisam ser examinadas e investigadas com cuidado apropriado e
referências empíricas, ao invés de serem casualmente mencionados em favor de uma
boa causa‟. [...] Nós precisamos entender mais claramente como a pobreza, a
privação, e a negligência, e a humilhação associadas à assimetria da pobreza,
relaciona longos períodos de propensão à violência, relacionados com confrontos
que contrariam os „the top dogs‟ num mundo com identidades divididas. A
negligência pode ser a razão suficiente para ressentimentos, mas o senso de invasão,
degradação, e humilhação podem ser muito mais facilitadores na mobilização para
revoltas e rebeliões. [...] A pobreza e a desigualdade econômica podem não
instantaneamente criar terrorismo ou influenciar líderes de organizações terroristas,
todavia, elas podem ajudar a criar um rico ambiente para recrutamento de soldados
dos campos terroristas.
sublinhadas por Benhabib (2002, p. 8): “As ideologias e os movimentos nacionalistas rejeitam a diferença
como fonte de toda cultura, mais frequentemente do que nunca elas buscam „purificar‟ a cultura de seus
elementos impuros ou dos elementos estrangeiros, e deste modo dominar novamente a todos. Ironicamente, o
nacionalismo muda a perspectiva do participante/observador, em que os aderentes e os ideólogos dos
movimentos nacionalistas buscam criar uma unidade forçada na diversidade, coerência na inconsistência e a
homogeneidade na narrativa dissonante”.
47
A condição de subalternidade é imposta por múltiplos fatores e justificada, normalmente, pela sua formação
moral e religiosa. O dominado desenvolve uma concepção da existência fatalista e subserviente. A ordem do
mundo e, por consequência, da sociedade, é predeterminada por agentes externos: Deus, governo, destino,
patrão e outros. A pessoa desenvolve uma atitude de conformidade e dá seu consentimento às ações e atitudes
que emanam de quem está numa condição superior, não raras vezes o como seu protetor e aquele que lhe
segurança no presente e garantias de um futuro seguro. Esse comportamento de resignação conduz a
pessoa a compreender o ordenamento social de forma mecânica, tendo como única opção a adaptação à
realidade que se apresenta. No dizer de Benincá (2002, p. 151): “O subalterno resignado tudo aceita em nome
da fatalidade do seu destino, nem consegue imaginar-se diferente: „o destino o fez pobre e pobre sempre
será‟”. O exercício da liberdade se limita à aceitação do contexto onde se encontra, conforme destaca
novamente Benincá (2002, p, 151): “Ser escravo era a „liberdade‟ com que o destino o presenteava”.
162
O acelerado processo de globalização, se dominado por interesses econômico-
financeiros ou por Estados imperialistas e conduzido sem um referencial de princípios seguro,
pode facilitar a aprofundamento das expressivas desigualdades sociais, assim como
acarretar graves consequências para o patrimônio cultural de um país, desestruturando os
valores fundamentais que o identificam e o solidificam desde as relações primárias até as suas
instituições mais importantes.
Considerando o aspecto representativo, a eliminação da estrutura física, ambiental ou
geográfica representa, entre outras dimensões, o fim de tradições importantes e de recursos
que expressam os valores, os costumes, os símbolos e os rituais. Ações como a depredação de
museus, a imposição de hábitos alimentares, o extermínio de recursos ambientais e o combate
ou desprezo pelas práticas religiosas demonstram a imposição de uma cultura dominante
sobre um amplo espaço político e geográfico sem a necessária avaliação moral das
motivações e dos objetivos que justificam tais procedimentos na sua origem ou das
consequências para as pessoas, para a estrutura social, os recursos naturais e outros e para as
futuras gerações.
A reflexão que envolve as relações entre as culturas e as condições para a justiça nas
sociedades caracterizadas pelo pluralismo é um tema exigente e delicado, seja pela ampla
diversidade de manifestações e interesses que comportam no seu interior, seja, especialmente,
porque representam as convicções pessoais, familiares, comunitárias, religiosas e sociais mais
importantes de uma pessoa ou de um grupo social, cujas manifestações públicas ou externas,
normalmente, não expressam a totalidade das concepções, valores e princípios interiores que
legitimam e mantêm a sua existência. A negligência, o desprezo ou a eliminação total ou
parcial de uma cultura simbolizam o fim de um referencial profundo e um fosso que
impossibilita o diálogo como uma estrutura de relacionamento com características peculiares
(SEN, 2000).
Com base nessa afirmação emergem diversas indagações estreitamente relacionadas
com a construção da justiça e com outros campos da organização social, entre as quais podem
ser destacadas: Todas as culturas têm o mesmo status e devem ser preservadas? Existe uma ou
um grupo de culturas mais evoluídas que merecem considerações especiais? Os valores
culturais têm a mesma importância? Como conciliar valores culturais contraditórios presentes
num mesmo espaço geográfico? A ordem política de uma sociedade contempla as
manifestações culturais? E as culturas que legitimam a estratificação social, a condição
subalterna da mulher e a supremacia de uma ou várias raças? Qual é a legitimidade das
religiões? Como ordenar os interesses culturais, religiosos e do Estado na busca da justiça?
163
A afirmação de Sen (1996, p. 28) expressa a complexidade desse tema: “As
dificuldades para o entendimento das particularidades em torno dos limites das culturas é
inegavelmente grande.” Entretanto, a dinâmica das relações sociais evolui e aprimora os
valores e as compreensões culturais por meio de múltiplos mecanismos, especialmente pelas
variadas formas de comunicação que as sociedades desenvolveram ao longo da história. Essa
constatação permite afirmar que não existe justificativa para a manutenção de valores
culturais e práticas tradicionais a qualquer custo.
A afirmação do valor moral substantivo da liberdade possibiliza às pessoas as
condições de escolha dos valores e princípios que são decisivos para a sua realização pessoal
e para a sua inserção na sociedade. As condições de escolha integram as liberdades
substantivas; logo, as pessoas têm direito a desenvolver as capabilidades, isto é, o conjunto de
funcionamentos importantes para a realização dos seus objetivos. Isso implica a opção por um
conjunto de valores e tradições, o que pode incluir a integração de alguns ou a superação de
outros, ou como justifica Sen (2000, p. 26): “Não existem razões suficientes para reduzir em
si mesma, nos limites de uma identidade limitada ou voluntariamente estar restringida numa
contradição imaginada entre a riqueza do passado e a liberdade do presente.”
A identidade cultural de uma pessoa precisa ser afirmada como uma dimensão
importante para a integração e a participação plena nas diferentes instâncias sociais, isto é, na
medida de seus objetivos. A filiação a uma tradição cultural ou a assimilação de
características de outras culturas não pode impedir ou causar qualquer tipo de
constrangimento diante dos demais e das próprias instituições, da mesma forma que não se
pode legitimar a existência ou o fortalecimento de barreiras, por qualquer motivo, que
impeçam a liberdade de escolha e a manifestação pública de uma cultura
48
.
As opções de escolha podem conduzir a conclusões errôneas, como à afirmação de
que todos os elementos, valores, princípios, hábitos e costumes que integram as principais
características de uma cultura precisam ser igualmente reconhecidos e, assim, gozar da
mesma legitimidade. Concepções que ofuscam ou negligenciam o valor da pessoa
(especialmente presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos), a democracia como
um valor essencial para a organização social, a utilização equilibrada dos recursos naturais, a
preocupação com as futuras gerações, entre outras, não têm legitimidade moral.
48
As amplas condições de escolha legitimadas pelo valor moral substantivo da liberdade não estão restritas a
uma ou outra cultura, mas englobam a possibilidade de optar por valores de diferentes culturas, conforme
destaca Sen (2000, p. 26): “O ponto não é se alguma identidade, qualquer que seja, pode ser escolhida (que seria
uma demanda absurda), mas se nós podemos ter escolhas entre identidades alternativas ou combinações de
identidades e, talvez mais importante, se nós temos a liberdade substantiva sobre qual prioridade dar às várias
identidades que nós simultaneamente poderíamos ter.”
164
A estruturação das relações entre as culturas, que se convencionou chamar de
“multiculturalismo”, nesse contexto, tem legitimidade considerando a afirmação do valor
moral substantivo da liberdade e a construção da justiça. A busca pela qualidade de vida e
pela realização pessoal, num processo de inclusão social, ultrapassa os limites da identidade
cultural de uma pessoa, grupo ou nação
49
.
A instrumentalização das culturas acarreta a sobreposição de valores que podem
legitimar ações que eliminam ou impedem uma relação equitativa entre os objetivos
almejados, a preservação das convicções ou do patrimônio cultural de uma pessoa ou de uma
sociedade e a realização, mesmo que parcial, dos ideais de justiça.
O utilitarismo, ao priorizar a busca da maior felicidade como critério da ação moral,
pode justificar práticas que comprometem aspectos importantes das concepções e das
manifestações culturais, conforme destaca De Vita (2000, p. 34): “O utilitarismo [...] propõe
que se avaliem as consequências, seja do que for ações, práticas ou instituições em
termos de níveis de utilidade produzidos pelo estado de coisas resultantes.” A fixação de
ideais de felicidade que precisam ser alcançados instrumentaliza instituições, particularmente
o Estado, e avilta o conceito de pessoa, reduzindo-a a um simples meio para a obtenção de
fins previamente concebidos, desprezando o seu caráter único e seu valor primordial. Na
afirmação do mesmo autor (2000, p. 49): “A preocupação com o caráter único da vida de cada
indivíduo certamente não é a preocupação mais preeminente da ética utilitarista.”
O libertarismo representado por Nozick, na medida em que condiciona o valor da
liberdade à realização da vontade individual, especialmente na proteção dos interesses
econômicos, impõe um agente externo, qual seja, a proteção da propriedade
50
, como o fator
determinante para a estruturação correta das relações sociais, ao qual estão submetidos o
Estado e as demais instituições. O reconhecimento do outro ocorre na medida da realização
dos interesses individuais. Afirma (1994, p. 356) o autor:
49
A diversidade cultural não impede a construção da justiça. As manifestações culturais, respaldadas pela
solidez da democracia, com seus mecanismos e recursos, respeitando as diferenças, aprimora e fortalece as
estruturas que contribuem para o ordenamento social justo, conforme destaca Benhabib (2002, p. X) “A
justiça multicultural emerge dos interstícios dos conflitos e paradoxos, não é fácil caminhar em direção à
reconciliação, também na teoria ou nos direitos práticos das liberdades individuais com os direitos de auto-
expressão cultural coletiva. Considerando os conflitos culturais contemporâneos relacionados aos direitos das
crianças e das mulheres, eu sugiro como uma sociedade democrática deliberativa vibrante poderia ser bem
sucedida em criar oportunidades para maximizar a própria expressão cultural e a justiça inter-grupal
coletiva”.
50
Segundo entende Kesselring (2006, p. 65), para os libertaristas “a única questão eticamente relevante que
ainda pode surgir se refere à transferência de propriedade.”
165
Vivemos em comunidades particulares. É nela que nossa visão não imperialista da
sociedade ideal ou boa deve ser proposta e realizada. Para permitir que isso aconteça
é que existe a estrutura. Sem essas visões impelindo e animando a criação de
comunidades particulares, com desejadas características particulares, a estrutura
carecerá de vida. Associada às visões particulares de muitas pessoas, ela nos
permitirá obter o melhor de todos os mundos possíveis. [...] O Estado mínimo trata-
nos como indivíduos invioláveis, que não podem ser usados de certas maneiras por
outros como meios, ferramentas, instrumentos ou recursos. Trata-nos como pessoas
que têm direitos individuais, com a dignidade que isso pressupõe. Tratando-nos com
respeito ao acatar nossos direitos, ele nos permite, individualmente ou em conjunto
com aqueles que escolhemos, determinar nosso tipo de vida, atingir nossos fins e
nossas concepções de nós mesmos, na medida em que sejamos capazes disso,
auxiliados pela cooperação voluntária de outros indivíduos possuidores da mesma
dignidade. Como ousaria qualquer Estado ou grupo de indivíduos fazer mais, ou
menos?
Atualmente, a reflexão em torno dos temas relacionados ao multiculturalismo é
inevitável, considerando, entre outras razões, os interesses individuais ou acadêmicos, as
transformações que ocorrem a partir da emergência, do reconhecimento e da integração das
culturas, as oportunidades econômicas e políticas, as influências que determinados valores e
comportamentos exercem sobre as pessoas e o meio ambiente.
É necessário evitar uma compreensão reducionista do tema e da sua abrangência.
Primeiro, as culturas não são dependentes da legitimação por concepções religiosas.
Entretanto, é necessário reconhecer a importância da pertença a uma religião como um fator
decisivo para a definição da identidade cultural de uma pessoa, embora existam outros fatores
que também são preponderantes. Segundo, o espaço geográfico de uma sociedade permite a
construção de um conjunto de referências com os valores essenciais para a estruturação das
características mais importantes de uma pessoa ou de um grupo. Contudo, este é também um
ambiente de reconhecimento e integração das diferenças com o objetivo de construir uma
identidade cultural não limitada a um espaço, mas que estabelece relações universais. Nesse
sentido, define Sen (2006, p. 150):
Existem, eu argumentaria, duas abordagens basicamente distintas para o
multiculturalismo, uma das quais se concentra na promoção da diversidade como um
valor próprio, a outra dirige sua atenção na liberdade de refletir e tomar decisões, e
celebrar a diversidade cultural até a extensão da escolha livre como possível para as
pessoas envolvidas.
166
Os conflitos relacionados aos temas do multiculturalismo são evidentes nos múltiplos
campos de interesse das pessoas e das instituições, mas particularmente afloram nas relações
entre os países, especialmente considerando o fenômeno das migrações internas e daquelas
que ocorrem das nações pobres para as mais desenvolvidas. Também estão presentes nos
conflitos étnicos, nas diferentes formas de comportamento, nas manifestações religiosas, na
formação e na transmissão dos valores, entre outros. Cabe destacar a importância de uma
clara compreensão do valor da pessoa como uma referência fundamental para a construção de
relações de reconhecimento, de integração e de diálogo em sociedades caracterizadas por
inúmeras diferenças, conforme afirma Sen (1996): “Um dos temas centrais envolve como o
ser humano é visto.”
Os temas relacionados ao multiculturalismo têm uma ligação imprescindível com o
processo de globalização, especialmente promovido pelo progresso tecnológico e pela
modernização das relações comerciais, levando a que as diferentes culturas, muitas das quais
eram segregadas ou simplesmente sem condições de manifestar a sua identidade, estejam
presentes nos diferentes espaços sociais. Ao contrário, a dominação cultural imposta,
especialmente por interesses econômicos e por Estados que concentram expressivo poder
militar e influência política, apresenta-se como um impasse para a estruturação de
oportunidades econômicas, políticas e culturais equilibradas, que garantam, ao menos
parcialmente, as mínimas condições de justiça. Um processo de globalização que legitima ou
amplia as desigualdades não possui legitimidade moral, especialmente considerando o valor
moral substantivo da liberdade e os ideais de justiça.
A multiplicidade de valores, princípios, hábitos e tradições que se complementam e,
em certas situações, são contraditórios está em contínuo processo de integração,
possibilitados, pelas incontáveis formas de relacionamento que ocorrem entre as pessoas e os
países. Nesse sentido, é compreensível que muitos desses se sobressaiam e outros sejam
integrados aos demais, assim como alguns desapareçam. O que não tem legitimidade é a
destruição ou o aniquilamento de referenciais importantes para pessoas, grupos, associações
ou povos. A preservação de culturas e tradições, mesmo que minoritárias e tradicionais, não é
uma decisão simples ou que pode ser tomada aleatoriamente, mas cabe, especialmente, aos
que partilham desses valores (BENHABIB, 2002).
Entre as condições indispensáveis para a efetivação do valor moral da liberdade no
contexto das relações multiculturais está a importância das liberdades substantivas, isto é, das
capabilidades, que possibilitam a todos, sem distinção, as condições de escolha dos
167
funcionamentos em vista da realização dos seus objetivos, sejam individuais, sejam coletivos,
de forma integrada e refletida.
Os valores culturais não podem ser desconsiderados na construção da justiça social e,
não poucas vezes, são a condição primordial para que as pessoas participem das decisões
sociais. A condição de agente ativo está relacionada com o desenvolvimento das
capabilidades, o que não dispensa a afirmação dos valores e uma sólida formação educacional
para uma participação crítica e autônoma (SEN, 2006; SLAVIN, 1998).
Finalmente, a democracia é indispensável para a o reconhecimento e a cooperação
entre as diferentes culturas; por isso, precisa integrar a identidade cultural das sociedades
como um valor primordial e inegociável, seja pelos múltiplos mecanismos e recursos de que
dispõe, seja pela estrutura de princípios que a sustentam e legitimam. Comprometida com a
efetivação dos direitos humanos fundamentais, a democracia, valoriza e aprimora o valor e o
exercício da liberdade; fortalece as instituições e, por meio de uma ampla rede de associações,
partidos e outras formas de organização, efetiva espaços de ampla participação das forças
vivas da sociedade, num processo de alternância do poder e constante evolução da estrutura
social com o objetivo de efetivar a justiça. Especificamente, para a convivência entre as
diferentes manifestações culturais, a democracia prima pelo princípio da tolerância como uma
dimensão central da liberdade de cada pessoa expressar suas convicções e conviver
pacificamente com as demais, mesmo que não concorde com estas e, até mesmo, se oponha a
elas.
3.4 A JUSTIÇA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
As inúmeras diferenças existentes nas sociedades contemporâneas expressam a
multiplicidade de fatores que contribuíram para a sua organização, cuja origem pode ser
encontrada em fatores como a sua formação geográfica, política, cultural e histórica, a
existência ou não de determinados recursos naturais, e, também, de outros que contribuíram,
direta ou indiretamente, para a sua estruturação. Da mesma forma que a organização humana
e da natureza expressa inúmeras características e particularidades que as diferenciam e podem
ser contraditórias, em outras, essas são complementares, a arquitetura do ordenamento
internacional tem uma composição que expressa as necessidades, as potencialidades, os
objetivos e os limites presentes no seu interior.
168
Essa multiplicidade de elementos evidencia a importância de fundamentar a busca
pela justiça considerando o fato do pluralismo internacional
51
. Admitir essa característica
constituinte é uma condição primordial para justificar as condições de justiça, ao passo que a
sua negação descaracteriza a legitimidade do debate e as possíveis proposições (RAWLS,
2001).
A configuração das relações internacionais tem como principais referências e
preocupações, atualmente, além do acelerado processo de globalização, que aprimora
constantemente as formas de relacionamento e a organização das pessoas e das sociedades,
inúmeras contradições de natureza social, política, econômica, religiosa, tecnológica e
cultural, representadas pelas gritantes desigualdades existentes no interior de grande parte dos
países e, especialmente, nas relações que estabelecem entre si.
Esse contexto tem inúmeras implicações sobre a estruturação de um processo de
desenvolvimento social global, porque impede a organização de um modelo integrado e
sustentável, da mesma forma que inviabiliza o equilíbrio das relações entre os países. No seu
interior se configuram reações e comportamentos diferenciados, por exemplo, o surgimento
de movimentos de contestação de maior ou menor expressão. Essa dinâmica é descrita por
Sen (2006, p.120), que também destaca as dificuldades para a efetivação da justiça:
O mundo é, ao mesmo tempo, rico e perigosamente empobrecido. Existe uma
opulência sem precedentes no mundo contemporâneo, e uma expressiva parte com
muitos recursos, tecnologia que nós atualmente dispomos que teria sido impossível
para os nossos antepassados imaginar. Mas é também um mundo profundamente
empobrecido e com demasiadas privações. É um número surpreendente de crianças
famintas, maltrapilhas, maltratadas, e também analfabetas e sem acesso à saúde.
Milhões morrem semanalmente por doenças que poderiam ser completamente
eliminadas, ou até mesmo prevenidas para eliminar o abandono. Dependendo de
onde elas nascem, as crianças, podem ter os meios e as facilidades para uma grande
prosperidade ou as oportunidades de diminuir as privações da vida. Massivas
51
A obra de Rawls (2001, p. 82) destaca a formação diversificada das sociedades contemporâneas ao propor a
estruturação da justiça considerando a organização das relações internacionais a partir da existência de cinco
tipos de sociedades nacionais. “[...] no mundo político e social que considero, cinco tipos de sociedades
nacionais: a primeira delas são os povos liberais e a segunda são os povos decentes. A estrutura básica de um
tipo de povo decente tem o que chamo „uma hierarquia de consulta decente‟, e chamo esses povos „povos
hierárquicos decentes‟; outro tipo de povo decente é simplesmente uma categoria que deixo de reserva,
supondo que pode haver outros povos decentes cuja estrutura básica não se ajusta à minha descrição de
hierarquia de consulta, mas que são dignos de tornarem-se membros de uma Sociedade dos Povos. Não tento
descrever essas sociedades possíveis. (Refiro-me conjuntamente aos povos liberais e aos povos decentes
como „povos bem-ordenados‟) Além disso, há, em terceiro lugar, Estados fora da lei e, em quarto,
sociedades oneradas por condições desfavoráveis. Finalmente, em quinto, temos sociedades que são
absolutismos benevolentes: elas honram a maior parte dos direito humanos mas, como negam aos seus
membros um papel significativo nas decisões políticas, não são bem-ordenadas.”
169
desigualdades nas diferentes oportunidades que as pessoas têm encorajam o
ceticismo sobre a capacidade de a globalização servir aos interesses dos mais pobres.
Certamente, um forte sentimento de frustração é bem refletido nas frases de protesto
dos movimentos sociais chamados antiglobalização. Movidos pela tese que as
relações globais são primeiramente antagônicas e contrárias, ao invés de mútua
ajuda, os manifestantes querem ajudar os mais pobres do mundo para que percebam
os objetivos da globalização. [...] Alguns veem nessas desigualdades uma total
fraqueza, também alguma força moral que uma identidade moral poderia formar.
A existência de gritantes desigualdades, que, em muitos aspectos, refletem aquelas
existentes no interior de cada país, tem graves consequências sobre os diferentes campos do
ordenamento das relações internacionais, dos quais se podem destacar, especialmente, a
estabilidade política e econômica, as relações comerciais, a utilização dos bens e dos recursos
naturais, o funcionamento das instituições e a divisão da riqueza produzida. A extensão e o
aprofundamento das desigualdades estão na origem de muitas ameaças que enfrentam as
sociedades contemporâneas, geradoras da exclusão de pessoas, de culturas e de países
52
.
Contradições dessa natureza impossibilitam um ordenamento internacional justo, seguro e
equitativo.
As relações internacionais têm sua identidade arquitetada de acordo com uma
variedade de referências intrincadas. Constitui-se num dos espaços mais exigentes e
desafiadores para a efetivação da justiça, considerando, além das diferenças específicas, a
complexidade dos interesses envolvidos e a necessidade de contemplar de forma equilibrada a
realização dos objetivos e das necessidades de cada país, articulados com as demandas dos
outros.
A persistência ou o agravamento das desigualdades representam a negação do valor
moral substantivo da liberdade, indispensável para a estruturação da justiça no contexto
internacional. A dinâmica das desigualdades acarreta inúmeras consequências para os países
mais pobres e se agrava tanto mais quanto maiores forem as deficiências. Isso pode ser
evidenciado na submissão daqueles em pior situação quando comparados àqueles com
52
A afirmação de Sen (2000, p. 5) destaca as deficiências presentes nas sociedades contemporâneas que
denunciam formas de exclusão ameaçadoras para a estabilidade internacional. Esse é um problema que não
interessa apenas a um líder ou a um país em particular, mas a sua superação precisa ser uma das
preocupações centrais de todos os seus membros. A implementação das condições de justiça é decisiva para a
estabilidade política internacional, além da superação das deficiências sociais. “Injustiça, desigualdade,
pobreza, fome, tirania, ignorância, exclusão, exploração: existem muitas situações que preocupam o mundo
moderno. Nós temos razões suficientes de estarmos determinados e decididos em combatê-los. As pessoas
não podem evitar estar, em muitas situações, preocupadas, porque poderosas barreiras as impedem de agir. O
descaso de muitos grupos também relata o fato de que nós temos que combater, insistentemente, as forças
que podem ser amplamente opostas às necessidades de mudança que podem erradicar este fenômeno
intolerável”.
170
maiores recursos. Ocorre um relacionamento a partir da vontade do ente que domina, seja pela
influência política, seja pelos interesses econômicos representados por corporações, ou,
mesmo, pelo poder militar sobre um país que está numa situação de dependência.
A afirmação do valor moral substantivo da liberdade no âmbito do ordenamento dos
interesses e relações internacionais é uma referência fundamental para a avaliação das
condições de justiça. Isso permite o reconhecimento da pluralidade como uma das exigências
que caracterizam a formação e a dinâmica das sociedades. Ocorre, nesse sentido, uma tensão
permanente e construtiva entre as diferentes concepções de justiça, os métodos para a sua
efetivação e as demais exigências inerentes a cada uma.
As compreensões normalmente se concentram, segundo Sen (2006), numa concepção
universalista ou particularista como orientações básicas para organização das políticas
internacionais. O universalismo, representado especialmente por Rawls, prioriza as regras e
princípios de justiça válidos para todos, sem distinção de nacionalidades ou outras
classificações. Por sua vez, o particularismo entende que as relações dependem de cada país;
os princípios e os objetivos são aplicados separadamente pelos governos e as relações
internacionais ocorrem entre os países conforme o equilíbrio existente entre eles. Ambas,
segundo o autor, são insuficientes diante das demandas verificadas; por isso, propõe uma
concepção de justiça global que tenha como referência “a filiação plural”, que identifica as
sociedades de acordo com suas múltiplas identidades, as quais, por sua vez, têm condições de
inspirar e fortalecer proposições que podem se complementar e/ou competir entre si ou com
outras, dependendo de sua identidade.
Importa destacar que os limites para a abordagem dos graves problemas
internacionais, entre os quais se sobressaem a fome e as tiranias, não são suficientemente
contemplados pelo utilitarismo. Ao julgar a ação moral pelo maior prazer e pela maior
felicidade, concede uma importância prioritária às decisões particulares, em detrimento das
preocupações coletivas. Isso se evidencia no enfraquecimento de instituições com objetivos
de alcance universal, por exemplo, as Nações Unidas, e, por outro lado, no fortalecimento
daquelas que promovem ou representam interesses individuais, seja do Estado, seja do
sistema financeiro, como, por exemplo, a economia de mercado. As deficiências apresentadas
pelo utilitarismo em temas de justiça internacional também atingem o valor da pessoa, cuja
importância depende da satisfação dos objetivos previamente traçados. Em face dessa
deficiência, Kesselring (2007, p. 32) afirma:
171
Os utilitaristas avaliam as ações e as medidas (políticas) exclusivamente a partir de
seus resultados e efeitos, independentemente da questão, até que ponto elas também
são intencionadas. Se uma ação ou uma medida política desenvolvimentista é boa ou
ruim, depende daquilo que ela produz em termos de prazer ou dor, felicidade ou
infelicidade, interesses individuais satisfeitos e não satisfeitos ou, mais
genericamente, em vantagens e prejuízos.
Considerações em relação aos problemas ambientais e outros que precisam de
solução ou de compreensões globais não encontram guarda segura no utilitarismo. A
utilização dos recursos ambientais, a efetivação dos direitos humanos e a construção da paz
não podem depender de objetivos ou interesses fixados previamente, mesmo que isso
responda a ideais de elevado valor moral, beneficie um grande número de pessoas ou satisfaça
aos interesses da maioria. O julgamento da ação moral com base na realização dos objetivos
incorre no erro de desconsiderar referências importantes para a justiça, entre as quais se
podem destacar as contribuições que podem advir de uma maior participação das pessoas na
condição de sujeitos universais ativos.
A proposta de Nozick, de marcada característica utilitarista, quando avalia a justiça
com base no direito à propriedade e de seu uso conforme os interesses do seu proprietário,
legitima as ações mediadas pela realização dos interesses econômicos e do mercado, em
prejuízo das pessoas e dos países com menores recursos e poder nas instituições e organismos
internacionais. A satisfação dos interesses e do progresso econômicos não é critério prioritário
e suficiente para julgar as relações entre os países
53
.
O contexto internacional, que permite ultrapassar, constantemente, por meio de
diferentes recursos, mecanismos e interesses, as fronteiras territoriais, simbolizado pela
atuação das empresas transnacionais, supõe a necessidade e a capacidade de, constantemente,
refazer e atualizar as formas de abordagem das questões que envolvem as condições de
justiça. As mudanças que, permanentemente, ocorrem na conjuntura global desafiam a
capacidade humana, os Estados, as instituições e os mecanismos de representação para
construir um ordenamento social seguro. (NUSSBAUM, 2006). Uma compreensão de justiça
53
Kesselring (2007, p. 62) destaca a característica essencial desse modelo de abordagem: “Os defensores do
liberalismo econômico consideram a concorrência e a troca como formas básicas da convivência humana e,
correspondentemente, consideram como mais importantes aqueles direitos que devemos pretender para
subsistir exitosamente na luta concorrencial da economia. O defensor mais proeminente dessa direção é
Robert Nozick.”
172
internacional limitada às fronteiras geográficas não possui justificação, legitimidade ou
viabilidade moral, política, econômica ou cultural
54
.
Na estruturação das relações internacionais o valor moral substantivo da liberdade se
expressa na busca constante da justiça nos diferentes campos da atuação humana, seja na
satisfação das necessidades básicas, seja no equilíbrio entre os países, seja nas relações
comerciais e diplomáticas e nas demais áreas que representam as preocupações comuns às
pessoas e às sociedades. As instituições representam um amplo espaço para o debate das
possibilidades e das condições de efetivação da justiça nos múltiplos arranjos mundiais. Por
isso, precisam ser estimuladas para que sua influência contribua para o aprimoramento e a
condução da arquitetura internacional. Suas diversificadas formas de atuação ampliam os
limites geográficos e contribuem, decisivamente, para a promoção das liberdades. Essa é uma
condição essencial para a avaliação das instituições e da sua capacidade de influenciar em
favor da realização da justiça.
As instituições, sejam públicas, por exemplo, aquelas identificadas com o sistema
democrático, sejam outras com interesses mais específicos, por exemplo, o sistema de
mercado, têm um compromisso com o valor moral substantivo da liberdade. Essa
característica se expressa na promoção e na garantia das liberdades substantivas, ou seja, nas
capabilidades das pessoas, isto é, em todos os espaços, independentemente da filiação
cultural, da nacionalidade ou outra característica, as pessoas precisam das condições para o
desenvolvimento do conjunto de funcionamentos que possibilitam a sua participação na
organização das relações globais. As gritantes desigualdades verificadas entre os países,
especialmente nos âmbitos político e econômico, representam a negação, parcial ou total, da
liberdade.
As capabilidades englobam, além das dimensões pessoais e do desenvolvimento
econômico e social sustentável, a opção pela avaliação da justiça internacional, considerando
54
A conjuntura que desafia a construção de relações justas e a origem das tensões existentes no mundo,
atualmente, é destacada por Cardoso (2008, p. 4;5): “Por trás dessas reviravoltas, rápidas se avaliadas na
perspectiva da história mundial, encontram-se dois processos, não necessariamente dependentes um do outro,
mas interconectados, um no plano econômico, outro no político. Ao primeiro costumamos qualificar,
genérica e inespecificamente, de „globalização econômica‟; ao segundo, menos discutido, poderíamos
qualificar de „quebra das hegemonias mundiais‟ ou, mais especificamente, desarticulação das formas globais
de dominação, dificultando a vigência de uma ordem mundial estável. Estamos, portanto, vivendo um
momento no qual a economia corre para um lado no plano mundial o de estabelecer regras universais e a
política vai para outro, o da impossibilidade de aceitação de regras para definir o convívio entre as nações,
sem ser possível, outrossim, impor uma hegemonia unilateralmente. Esse é o miolo de tanto desencontro e de
tanta surpresa. [...] Os estados nacionais tampouco tem a capacidade que tinham de controlar as sociedades
locais e de exercerem plenamente o monopólio legitimo da força. [...] Mas em cada circunstância em cada
período, diriam os historiadores é preciso reconstruir as contingências, as circunstâncias específicas, em
que esses arranjos são feitos, bem como identificar os sentimentos, os valores as ideologias e os sonhos
(os projetos) que moveram as pessoas.”
173
a expansão das liberdades para que as pessoas façam as escolhas que consideram importantes
e, dessa forma, possam agir de forma integrada com as demandas e os objetivos globais. Um
ordenamento internacional fundamentado no valor moral substantivo da liberdade torna as
relações entre os países mais completas, previne conflitos e disputas pelo aprimoramento do
diálogo e das ações diplomáticas e fortalece a estabilidade política e o equilíbrio dos
interesses econômicos (KESSELRING, 2007; SEN, 2002).
A promoção e o fortalecimento das liberdades substantivas contribuem eficazmente
para o ordenamento das desigualdades, o que implica o exercício de escolha permanente por
todas as partes envolvidas. As desigualdades limitam o sentido das condições de vida
coletiva; desestimulam a construção da identidade grupal e nacional; comprometem
negativamente a identificação com os ideais da humanidade; geram governos tirânicos;
incentivam a corrupção pública e privada, o que interfere nas relações comerciais e também
no cumprimento dos contratos firmados legal e publicamente, enfim, tornam o mundo mais
perigoso de se viver
55
.
O sistema democrático, nesse contexto, possui os mecanismos, recursos e instituições
necessários para a garantia e a promoção das liberdades, assim como a necessária estabilidade
das relações internacionais. Essa é uma dimensão irrenunciável para as condições de justiça,
que pode ser simbolizada no compromisso com a valorização e a promoção da paz e dos
direitos humanos como valores que formam um patrimônio comum a todas as nações.
Somente numa democracia efetiva pode situar a pessoa como preocupação central e objetivo
da estrutura social, das instituições e das políticas de desenvolvimento.
55
A análise das desigualdades que ameaçam as relações internacionais e o compromisso com a sua superação,
cuja responsabilidade é devida especialmente às instituições, orientou Nussbaum, (2007, p. 315) na
elaboração de dez princípios para a promoção das capabilidades num mundo de desigualdades:
“1- Autodeterminação e responsabilidade: o nível doméstico nunca escapa disso,
2- A Soberania nacional deve ser respeitada, desde que se promovam as capabilidades,
3- As nações mais prósperas têm a responsabilidade de dar uma porção substancial de seu PNB para as
nações pobres,
4- As corporações multinacionais têm a responsabilidade de promover as capabilidades humanas nas regiões
onde atuam,
5- As principais estruturas da ordem econômica global precisam ser organizadas para serem justas com os
países pobres e em desenvolvimento,
6- Nós precisamos cultivar uma transparência descentralizada e, também, enérgica na esfera pública global,
7- Todas as instituições e (a maioria) dos indivíduos precisam priorizar os problemas das desvantagens de
cada região ou nação,
8- O cuidado da saúde, da velhice, das crianças e dos deficientes precisa ser uma demanda prioritária da
comunidade mundial,
9- A família precisa ser tratada como uma esfera que é preciosa, mas não „privada‟,
10- Todas as instituições e indivíduos têm a responsabilidade de incentivar a educação, como a chave da
emancipação das pessoas frequentemente em desvantagem”.
174
Da mesma forma, os acordos, tratados e outras iniciativas legais cuja meta é a
garantia das condições para a paz e a estabilidade das nações, o que inclui ações preventivas e
a preocupação com as futuras gerações, têm as condições para a sua realização nos sistemas
democráticos. As afirmações de Rawls (2001), de que “o fato crucial para o problema da
guerra é que as sociedades democráticas constitucionais não vão à guerra entre si” e, ainda, de
que “nenhuma das guerras famosas da história ocorreu entre povos democráticos
estabelecidos” representam a maturidade política no campo das relações internacionais, que
tem como sua referência moral a dinâmica representada pela efetivação da liberdade.
A justiça nas relações internacionais precisa ser construída considerando esse amplo
espectro de tradições, mudanças, contradições e interesses que compõem a arquitetura
contemporânea. O valor moral substantivo da liberdade é o princípio norteador das ações das
pessoas entre si e, especificamente, das relações entre os países. A promoção das liberdades
substantivas é uma dimensão básica para as políticas de desenvolvimento e da ação
diplomática dos Estados, porque estimula o reconhecimento do outro além dos limites e
fronteiras geográficas, econômicas, políticas ou culturais. A identidade das pessoas e dos
países se organiza, nesse contexto, com base na convicção de que integrar uma sociedade, ou
pertencer a uma cultura, ou residir num espaço físico determinado, é apenas uma referência,
porque as relações ocorrem por meio de diferentes mecanismos, interesses e circunstâncias
que caracterizam as pessoas e as sociedades “filiadas” a uma multiplicidade de fatores, com
base nos quais se estruturam as identidades individuais e sociais.
A organização das relações internacionais não mais depende da implementação ou da
execução da vontade de um país ou de interesses corporativos, ou da vontade de governos e
seus representantes. A justiça nas relações internacionais está relacionada com o valor moral
substantivo da liberdade, que contempla a promoção das capabilidades para que as pessoas e
os países façam as escolhas que contribuem para a realização dos seus objetivos de forma
integrada e solidária com os demais. Nesse sentido, pode-se afirmar que sem liberdade não
existe justiça internacional. Portanto, é indispensável que haja a sua constante promoção,
garantia e efetivação para se poder propor formas de estruturar a justiça entre os países.
175
CONCLUSÃO
A reflexão sobre o ideal de justiça é um tema permanente nas diferentes esferas da
organização das sociedades. O aprofundamento dessa temática adquire especial relevância
considerando a necessidade de, constantemente, reafirmar o seu valor em face da dinâmica
que caracteriza as relações sociais, em permanente transformação, e, sobretudo, diante da
constatação das inúmeras formas de injustiça responsáveis pela subjugação de pessoas, grupos
sociais, culturas e países. Essa contradição que aprofunda as desigualdades e, entre outras
consequências, impede a organização equilibrada da ordem econômica prejudica a
estabilidade política, enfraquecendo as instituições e os valores da democracia; desestrutura as
culturas com seus valores e princípios; desvirtua as relações internacionais, impondo aos
países mais pobres os interesses daqueles que detêm mais recursos políticos, econômicos,
militares e tecnológicos; limita a estruturação de um modelo de desenvolvimento sustentável
que tem seus objetivos, prioritariamente, direcionados para a qualidade de vida das pessoas, a
utilização equitativa dos recursos naturais, além de preocupações voltadas para as condições
de existência das futuras gerações.
A complexidade do ordenamento das sociedades contemporâneas desafia a
abordagem dos temas que envolvem as condições para se efetivar a justiça de forma integrada
e interdependente. Essa característica se encontra na natureza, na formação das culturas e nas
relações humanas, sociais, econômicas e políticas, entre outras, que têm influência decisiva na
construção da identidade social de uma pessoa, de um grupo ou de um país.
A realização do ideal de justiça é um compromisso permanente das sociedades e a
sua razão de existir, o que justifica os esforços para a sua viabilidade. Nesse objetivo se
expressa a sua identidade política, que destaca, entre os aspectos mais importantes, como os
seus membros concebem a existência e o funcionamento das instituições, as diferentes formas
de participação, o exercício das liberdades e outras, a distribuição da renda e da riqueza, a
identificação com a democracia, a opção pelo compromisso com o desenvolvimento
sustentável e com as condições de existência das futuras gerações. Essa dimensão demonstra a
maneira como os membros da sociedade veem a estrutura social e como nela se situam na
condição de sujeitos ativos.
A construção da justiça está, especialmente, relacionada com a realização da
igualdade, que é uma característica fundamental com base na qual se pode avaliar toda a
organização social. Diante disso, quando ocorrem desigualdades gritantes uma clara
176
negação dos valores essenciais da justiça, assim como a conivência ou tolerância com as
causas e a existência de graves situações de injustiça. Tal contradição representa a perda das
referências indispensáveis para a legitimidade moral da organização social.
O distanciamento do ideal de justiça é consequência de inúmeros fatores, entre os
quais se podem destacar a preferência pela realização pessoal, que tem como objetivo
principal a busca prioritária do autointeresse; a eleição de um modelo de desenvolvimento
comprometido com o progresso econômico, o aprimoramento tecnológico e a geração de
bens; a maximização da liberdade individual; a prioridade à economia de mercado como
mecanismo capaz de se autogerir e de atender às demandas sociais; a instrumentalização do
Estado e das instituições pelos interesses econômico-financeiros; a utilização desordenada dos
recursos ambientais sem a necessária preocupação com a preservação e a reposição do seu
potencial.
Esse panorama reflete o distanciamento entre a busca pela justiça e os diferentes
campos da atuação humana e da estrutura das sociedades. A permanência desse vácuo
compromete a realização e a qualidade da vida humana, a segurança política e institucional
das sociedades, a efetivação e o aprimoramento dos valores e da estrutura democrática, o
ordenamento seguro das relações econômicas, a busca por um modelo de desenvolvimento
comprometido com a sustentabilidade, a utilização criteriosa dos recursos naturais e o
amadurecimento da necessidade de um compromisso real com as futuras gerações.
As sociedades estão, permanentemente, diante de um duplo desafio: primeiro, a
necessidade de construir um modelo de organização social que conduza à efetivação da
justiça; segundo, a opção pela manutenção da atual estrutura que inevitavelmente conduzirá
ao aprofundamento dos níveis de desigualdade. Esse debate é representativo dos interesses e
conflitos presentes no interior das sociedades, das quais emerge o clamor por um
ordenamento, tanto em nível interno quanto no externo, pautado pelo compromisso com a
ética.
A ética imprime uma dinâmica específica para a melhor estruturação e
desenvolvimento dos diversos campos da atuação humana e das estruturas mediadoras do
ideal de justiça. A ausência de princípios seguros empobrece a convivência humana, a
qualidade de vida, a ação política individual e coletiva, com repercussões em toda a
organização social no presente e em relação aos compromissos com o futuro.
O acelerado processo de globalização que caracteriza o atual estágio de
desenvolvimento das sociedades, ao mesmo tempo em que aprimora e fortalece as relações
entre as pessoas e as organizações sociais, expõe as deficiências que dificultam e, em muitas
177
ocasiões, impedem uma organização mais justa, especificamente, das políticas de integração,
do equilíbrio econômico, das relações entre as culturas, dos contratos e tratados
internacionais, da preservação e da integração culturais, entre outras.
O fato de querer a realização da justiça nas sociedades tem como motivação básica a
busca pela sua legitimidade. Isso implica a afirmação de que uma sociedade que tolera ou
permite o aumento das desigualdades é injusta, embora possa ser estável e até possuir
estruturas comuns a outras comprometidas com a realização dos ideais de justiça. Como
exemplo, ter um Estado amparado por instituições cujo funcionamento possibilite certas
realizações significativas.
Entre as teorias da justiça contemporâneas merece especial consideração a
proposição de Amartya Sen como uma referência indispensável para a superação dos graves
problemas que afligem as sociedades, dos quais se podem destacar a fome, as tiranias e o
analfabetismo endêmico; as desigualdades gritantes nas relações entre as pessoas, os países e
as culturas; o modelo de desenvolvimento em curso; os dilemas ocasionados pelo desemprego
e pela discrepância nas relações de trabalho; o mau uso dos recursos naturais e o descaso,
presente em muitos contextos, com as futuras gerações.
A fundamentação filosófica é indispensável para uma estrutura social que prima pela
ética e pela superação das gritantes desigualdades que ameaçam a legitimidade moral e a
própria existência das sociedades, com consequências nas diferentes áreas que envolvem a
atuação das pessoas, a presença das instituições, a organização comercial interna e entre os
países, a distribuição da renda e da riqueza, entre outras.
Entretanto, as condições de justiça em sociedades desiguais não são dependentes,
apenas, dos mecanismos estruturais ou da realização dos interesses e acordos políticos, ou dos
mecanismos oferecidos pela engenharia econômica. Se assim fosse, a organização social
poderia ser reduzida a instrumentos que garantissem e justificassem o funcionamento de sua
estrutura conforme um rigoroso planejamento técnico.
O valor moral substantivo da liberdade com base no qual se estruturou a presente
argumentação caracteriza a pessoa na condição de agente ativo e imprime uma dinâmica
específica na organização das relações sociais e na condução das políticas de
desenvolvimento social, com as referências fundamentais pelas quais se podem avaliar e
aprimorar as condições de justiça.
A importância da liberdade, considerando essa compreensão, não depende de pré-
condições que podem ser quantificadas. O valor moral substantivo distingue a liberdade como
uma condição sem a qual não são possíveis o planejamento e a efetivação da justiça. Da
178
mesma forma, caracteriza a sociedade e imprime-lhe uma dinâmica tal que o seu conjunto se
compromete com a sua promoção e efetivação. As pessoas têm condições de exercer a
liberdade pela sua participação nas diferentes instâncias e instituições sociais nas quais
expõem sua vontade e exercem a sua condição de sujeito ativo, influenciando nos seus
destinos, especialmente simbolizado no direito de votar, de ser votado e participar de
associações e partidos que considerem importantes.
O destaque substantivo denota a sua característica específica de não dependência de
determinadas condições previamente estabelecidas, especialmente dos interesses econômicos
e dos acordos políticos. A liberdade substantiva demarca um espaço e tem importância tal que
as pessoas, as instituições e os demais espaços, ao mesmo tempo em que são beneficiados
pelas suas garantias, tornam-se seus promotores e defensores. O relacionamento social e
institucional é sedimentado com base no valor moral substantivo da liberdade, que não se
confunde com os meios ou com os fins, mas promove, fortalece, dinamiza e corrige a todos.
Torna-se decisiva para a avaliação e a efetivação das condições de justiça a
afirmação da liberdade em seu valor moral substantivo. Decorre dessa compreensão que, uma
sociedade justa está especialmente comprometida com as diferentes formas de liberdade. Em
oposição, as situações onde ocorrem graves desigualdades e outras, amplamente
destacadas, reveladoras da existência de injustiça denunciam a negação da liberdade.
A pessoa exerce a sua liberdade na condição de agente ativo. Essa afirmação
caracteriza a ação humana integrada aos demais campos da sociedade, com as condições de
influenciar decisivamente nos seus destinos. O ato de escolha é essencial para a identidade de
uma pessoa livre, por lhe permitir optar por um estilo de vida que preencha as suas
expectativas e contribua para a sua realização pessoal e a sua integração nos múltiplos
espaços sociais.
Poder escolher fortalece a autonomia da pessoa em relação a si mesma, aos demais e
a participação social. Cabe destacar que todas as pessoas, independentemente de suas opções,
precisam ter as condições necessárias para participar dos espaços e instituições sociais sem
constrangimento. Uma sociedade comprometida com a liberdade possibilita a realização de tal
objetivo, especial atenção às liberdades individuais, fortalece as liberdades substantivas e,
por meio das liberdades instrumentais, oferece os meios indispensáveis para a sua realização.
Entre as áreas de expressão concreta das liberdades substantivas está o
desenvolvimento das capabilidades de uma pessoa. Essa afirmação está diretamente
relacionada com o agir humano na condição de agente ativo para a efetivação das condições
de justiça, especialmente nas sociedades vítimas de graves desigualdades. O desenvolvimento
179
das capabilidades é uma dimensão importante para a existência humana porque representa o
acesso às condições necessárias para a garantia do poder de escolha. A participação de uma
pessoa na construção da justiça social ocorre especialmente pela oportunidade de escolher
entre diferentes dimensões que considera importantes para a sua existência e para o
aprimoramento das condições sociais.
Quando a pessoa perde a oportunidade de optar, é-lhe negada a liberdade. Por essa
razão, as capabilidades representam o espaço privilegiado para o exercício das liberdades e,
por consequência, as condições de justiça. Diante da diversidade que constitui a identidade de
uma sociedade, é indispensável que as pessoas tenham a opção de escolher um conjunto de
funcionamentos que consideram importantes para a sua vida pessoal e para o
desenvolvimento social. Nesse sentido, a sociedade precisa oferecer os instrumentos para que
uma pessoa possa escolher os funcionamentos para o desenvolvimento das capabilidades, as
quais são a garantia para o exercício da condição de agente e referência básica para a
avaliação da justiça social.
As capabilidades não dependem do acesso aos bens e riquezas ou a um conjunto de
condições predeterminadas, ou, mesmo, da maximização da liberdade individual. Contudo, é
necessário que as sociedades ofereçam os meios necessários para que as pessoas as
desenvolvam, visto que, se estão presentes gritantes desigualdades, não se pode falar em
exercício das liberdades substantivas. A afirmação do valor moral substantivo da liberdade
como uma condição sem a qual não é possível uma organização social justa fundamenta os
objetivos para a formação das políticas de desenvolvimento, especialmente identificadas com
o princípio da sustentabilidade. O entendimento de Sen identifica a promoção da liberdade
como uma dimensão essencial do desenvolvimento. Nesse sentido, um modelo de
desenvolvimento adquire legitimidade quando combate as formas de privação da liberdade, ao
mesmo tempo em que as expande e, assim, beneficia, fortalece e dinamiza os interesses e os
objetivos que o sustentam.
As políticas tradicionais tiveram sua preocupação centrada no progresso econômico
como objetivo principal do desenvolvimento. Uma sociedade desenvolvida estava
comprometida com a produção de bens, o aprimoramento tecnológico, o aumento do Produto
Nacional Bruto e a expansão das relações comerciais. Essa lógica gera, entre outras
consequências, a concentração de bens e riquezas, a instrumentalização do Estado e das
instituições; reduz a pessoa à condição de meio para a obtenção dos fins desejados e utiliza na
medida de seus interesses os recursos naturais. Caracteriza-se, pois, uma dinâmica
180
responsável pelas gritantes desigualdades que, constantemente, ameaçam a estabilidade das
sociedades contemporâneas.
O modelo de desenvolvimento proposto não depende, exclusivamente, das condições
impostas pelas metas representadas pelos grupos de interesses, especialmente econômicos e
políticos, normalmente identificados com a atuação do mercado, que maximiza o exercício da
liberdade individual em detrimento das necessidades e aspirações da coletividade. O valor
moral substantivo da liberdade, como fundamento das políticas de desenvolvimento, oferece
os elementos para a estruturação de um modelo comprometido prioritariamente, com a
sustentabilidade. Esse é um adjetivo decisivo porque representa um ideal a ser buscado
constantemente por todas as sociedades e, por isso, tem dimensão universalista. Uma
concepção com essas características representa um compromisso moral global e a construção
de relações interdependentes e complementares, seja no âmbito nacional, seja no das relações
internacionais.
As políticas de desenvolvimento caracterizadas pelo vigor do princípio da
sustentabilidade não estão restritas às preocupações exclusivas do crescimento econômico,
mas ampliam os seus objetivos de forma a congregar equitativamente as variadas dimensões
humanas, sociais e ambientais, além de uma especial preocupação com as futuras gerações.
É necessário destacar, entre outras dimensões, o reconhecimento da pessoa na sua
característica de agente e com as condições de exercer as suas liberdades e contribuir para a
construção da justiça como protagonista principal; a preocupação com a qualidade de vida de
todas as pessoas; a afirmação da democracia como o melhor sistema de organização das
sociedades; a utilização equilibrada dos recursos ambientais, considerando a esgotabilidade de
seu potencial, com a renovação e a preservação sem prejuízo no presente e ou
comprometimento do futuro; a relação entre a atuação do mercado e do Estado, garantindo a
sua autonomia, da mesma forma que evita a instrumentalização ou a sobreposição de valores e
interesses que ameacem o equilíbrio social; a opção de escolher o tipo de trabalho que
contribui para a realização das pessoas, ao mesmo tempo em que as condições de trabalho
sejam dignas de homens livres; da mesma forma, que os recursos tecnológicos contribuam
para o desenvolvimento social e o seu aprimoramento para a melhoria da qualidade de vida
das pessoas e do acesso ao desenvolvimento, especialmente dos países mais pobres.
Uma sociedade que prima pelo valor moral substantivo da liberdade tem entre suas
características o compromisso com a democracia. Esse é o sistema que possui a razão pública,
respaldada por mecanismos e instituições com as condições de garantir, ao mesmo tempo, a
estabilidade e a legitimidade de um ordenamento social justo e sustentável. Uma constituição
181
social plural possui inúmeros interesses que se complementam, mas, também, em muitas
situações, são contraditórios. Essa dinâmica integra a identidade das sociedades; logo, a busca
por um ordenamento justo precisa contemplar as aspirações, os interesses, a formação
cultural, os recursos disponíveis, entre outras dimensões, de tal forma que possibilite uma
organização equilibrada e sustentável no presente e em relação às condições futuras.
A democracia é um valor universal possível a todas as sociedades, sem pré-
condições, por isso não dependente de interesses políticos ou econômicos e da efetivação de
certo número de pré-requisitos para a sua implantação. Com seus múltiplos mecanismos de
representação, possibilita a manifestação da vontade individual e coletiva de forma a
contemplar equitativamente as demandas e administrar os interesses num todo orgânico. Da
mesma forma, corrige as distorções presentes no seu interior e aprimora constantemente o seu
funcionamento pela afirmação dos valores que a sustentam, dos mecanismos e das
instituições. A dinâmica da democracia possibilita a formação de novos valores e também de
instituições que acompanham a evolução e as demandas sociais.
Em relação às desigualdades, o fortalecimento da democracia não apenas impede o
aumento destas, mas contribui eficazmente para corrigir as distorções em vista de uma
organização equilibrada e sustentável das relações sociais. A fundamentação de uma
concepção de justiça que responda aos desafios apresentados pelas sociedades em acelerado
processo de globalização tem como referencial seguro o valor moral substantivo da liberdade.
Este imprime uma identidade própria e um compromisso com as condições para a efetivação
das condições de justiça nas sociedades caracterizadas por múltiplas diferenças, ao mesmo
tempo em que são vítimas de gritantes desigualdades.
A prioridade aos temas democracia, desigualdades, multiculturalismo e relações
internacionais representa as áreas que são decisivas e impulsionam a construção de relações
sociais justas, assim como as políticas de sustentabilidade. A existência de injustiças e, em
muitas situações, não apenas o aumento, mas, especialmente, a sua justificação pela formação
cultural e religiosa mostram-se como graves ameaças à estabilidade política e institucional,
assim como à sua legitimidade moral. Uma sociedade justa está comprometida com o valor
moral substantivo da liberdade, com a efetivação da democracia como o sistema de
organização das relações sociais, com o desenvolvimento sustentável, com a preservação e
integração das culturas, o ordenamento seguro do ponto de vista moral, legal e político das
relações internacionais e com a diminuição dos níveis de desigualdade que ameaçam a
estabilidade e a legitimidade moral de uma sociedade.
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