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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LUCAS DOMINGUES GUIMARÃES
A SOCIABILIDADE E SEUS ESPAÇOS:
Um estudo histórico a partir de seus intérpretes
RIO DE JANEIRO
2008
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Lucas Domingues Guimarães
A SOCIABILIDADE E SEUS ESPAÇOS: um estudo histórico a
partir de seus intérpretes
1V.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Urbanismo
Orientadora: Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira
Rio de Janeiro
2008
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G963
Guimarães, Lucas Domingues,
A sociabilidade e seus espaços: um estudo histórico a
partir de seus intérpretes./ Lucas Domingues Guimarães.
Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2008.
160f. : il., 30 cm.
Orientadora: Margareth Aparecida Campos da Silva
Pereira.
Dissertação (Mestrado) UFRJ/PROURB/Programa de
Pós-Graduação em Urbanismo, 2008.
Referências bibliográficas: p. 146-148.
1. Evolução urbana. 2. Sociabilidade. 3. Cidades
antigas. 4. Cidades medievais. I. Pereira, Margareth
Aparecida Campos da Silva. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. III. Título.
CDD 711
Lucas Domingues Guimarães
A SOCIABILIDADE E SEUS ESPAÇOS: um estudo histórico a
partir de seus intérpretes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Urbanismo
Aprovada em 19 de dezembro de 2008.
__________________________________________
Margareth da Silva Pereira, Ph.D., Prourb/FAU/UFRJ
__________________________________________
Flavio de Oliveira Ferreira, D.Sc., Prourb/ FAU/UFRJ
__________________________________________
Gustavo Rocha-Peixoto, D.Sc., Proarq/ FAU/UFRJ
RESUMO
GUIMARÃES, Lucas Domingues. A sociabilidade e seus espaços: um estudo histórico a partir de seus
intérpretes. Rio de Janeiro: 2008. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) - Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Espaços de sociabilidade: uma definição; suas origens e transformações na sociedade
ocidental, até o Renascimento; estudo elaborado a partir de obras de historiadores e
sociólogos do século XX. Segundo Jacques Le Goff, “é a sociabilidade, o prazer de estar com
o outro, que estabelece em definitivo a diferença urbana, a urbanidade”. o obstante sua
importância, a sociabilidade é tema pouco discutido entre urbanistas, mais dedicados a um
exame formal da cidade. A sociabilidade fica restrita ao campo da sociologia, que, por sua
vez, não se aprofunda na relação entre essa prática social e a forma urbana. Este trabalho
tem como objetivo criar uma ponte entre os dois campos, analisando a sociabilidade em seu
contexto espacial em sua situação em relação às cidades. Os espaços de sociabilidade são
estudados, aqui, segundo uma perspectiva histórica para que se possa acompanhar suas
transformações através dos tempos. O recorte espaço-temporal abrange: as origens da
sociabilidade na pré-história e os espaços de sociabilidade nas primeiras cidades da
Mesopotâmia, nas pólis gregas, em Roma e seus domínios, e nas cidades da Europa medieval
até a Renascença. A pesquisa se apoiou em obras de autores que tratam da sociabilidade no
período citado, entre os quais: Lewis Mumford, Georges Duby, Jacques Le Goff, Paul Veyne e
Richard Sennett. A partir de suas descrições das práticas de sociabilidade e em confronto
com as análises da forma urbana, como as de Leonardo Benevolo e Edmund Bacon foi
possível delinear a evolução (origens, transformações, interrupções e ressurgimentos) dos
espaços de sociabilidade nos territórios da civilização ocidental até o século XVI. Constatou-
se a “persistência” da sociabilidade através dos tempos: as práticas e os espaços de
sociabilidade sofrem mutações quando o contexto ao seu redor se altera, sem desaparecer
por completo. A sociabilidade é fluida encontra novos nichos sempre que seu abrigo
anterior se desmantela. E é nas cidades, onde concentração, diversidade e grande
número de pessoas, mas também lugares (“nichos”) para tomar como abrigo, que a
sociabilidade melhor se desenvolve.
Palavras-chave: Sociabilidade. Evolução Urbana. Cidade Antiga. Cidade Medieval.
ABSTRACT
GUIMARÃES, Lucas Domingues. A sociabilidade e seus espaços: um estudo histórico a partir de seus
intérpretes. Rio de Janeiro: 2008. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) - Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Spaces of sociability: definition, origins and transformations in Western society up to the
Renaissance; a study based on twentieth century historians’ and sociologists’ works.
According to Jacques Le Goff, “it is sociability, the pleasure of being with the other, which
definitively establishes the urban difference, the urbanity”. In spite of its importance,
sociability is a theme poorly debated among urban planners, as they are more concerned
with the formal aspects of the city. Sociability is restricted to sociology, which, on its turn,
does not provide an in-depth analysis of the relationship between the social practice and the
urban form. This work intends to establish a link between those two fields by analyzing
sociability in its spatial context. Spaces of sociability are herein studied through a historical
perspective so that one can follow their transformations through the ages: from their origins
in prehistory to their manifestations in the first cities in Mesopotamia, followed by their
appearance in the Greek polis, in Rome and its domains, and in the medieval European cities
up to the Renaissance. The research was based on authors whose works somehow approach
the subject and period mentioned to name a few: Lewis Mumford, Georges Duby, Jacques
Le Goff, Paul Veyne and Richard Sennett. From their descriptions of social practices, and in
conjunction with the analysis of urban form by authors such as Leonardo Benevolo and
Edmund Bacon, it was possible to depict the evolution (with births, changes, breaks, and
revivals) of the spaces of sociability in the Western civilization up to the sixteenth century.
The endurance of sociability through time becomes evident: its practices and spaces
transmute whenever the context changes, without disappearing completely. Sociability is
fluid: it always finds a niche after its anterior shelter dismantles. And it is in the cities with
their density, diversity and number of people, as well as the variety of places (niches) to be
used as shelter that sociability finds its most prolific field.
Keywords: Sociability. Urban Evolution. Ancient City. Medieval City.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 7
Objetivos ............................................................................................................................ 9
Relevância e justificativa .................................................................................................... 9
Objeto de estudo .............................................................................................................. 10
Pressupostos teóricos ....................................................................................................... 10
Metodologia ..................................................................................................................... 13
Estrutura da dissertação ................................................................................................... 16
Nota sobre as ilustrações.................................................................................................. 18
CAPÍTULO I: Nômades, aldeões e citadinos .......................................................................... 19
Uma aptidão humana ....................................................................................................... 20
Centros cerimoniais paleolíticos ....................................................................................... 22
As aldeias neolíticas.......................................................................................................... 24
As primeiras cidades ......................................................................................................... 27
CAPÍTULO II: O mundo grego................................................................................................ 35
Olímpia, Delfos e Cós ........................................................................................................ 37
A ágora ............................................................................................................................. 40
O ginásio .......................................................................................................................... 46
O symposium.................................................................................................................... 49
A adonia ........................................................................................................................... 50
CAPÍTULO III: O Império Romano ......................................................................................... 54
O fórum ............................................................................................................................ 55
Vias e colunatas ................................................................................................................ 58
Os banhos ........................................................................................................................ 62
Os espetáculos ................................................................................................................. 65
O banquete ...................................................................................................................... 70
A taberna ......................................................................................................................... 74
As confrarias..................................................................................................................... 76
O culto a Baco .................................................................................................................. 79
A sociabilidade na ascensão do cristianismo ..................................................................... 82
CAPÍTULO IV: A formação de uma sociedade rural na Alta Idade Média ............................... 88
Castelos e cortesãos ......................................................................................................... 90
O monasticismo .............................................................................................................. 102
CAPÍTULO V: O renascimento urbano na Baixa Idade Média .............................................. 109
Das feiras às praças de mercado e ruas de comércio ...................................................... 110
Guildas e Paço da Cidade ................................................................................................ 116
Igrejas, catedrais, cemitérios e procissões ...................................................................... 120
A vizinhança e seus equipamentos ................................................................................. 125
Jardins, parques e bosques ............................................................................................. 137
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 141
Sociabilidade primária x Sociabilidade secundária .......................................................... 142
Sociabilidade formal x Sociabilidade informal ................................................................. 142
Locais de sociabilidade x Eventos de sociabilidade ......................................................... 143
Sociabilidade associada a outras práticas ....................................................................... 143
Sociabilidade x introspecção ........................................................................................... 144
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 146
ANEXO A PLANTAS E MAPAS ........................................................................................... 149
ANEXO B ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO .......................................................................... 159
7
INTRODUÇÃO
“É a sociabilidade, o prazer de estar com o outro, que estabelece
em definitivo a diferença urbana, a urbanidade.”
1
A sociabilidade, se concordarmos com a afirmação extraída do livro do historiador Jacques
Le Goff, é questão de primeira importância para a cidade. A essência da cidade, a
urbanidade, passa pela sociabilidade.
Não obstante essa importância, o urbanista, profissional que estuda e propõe ações sobre a
cidade, a tem em muito pouca conta, pelo que podemos constatar em seus discursos.
Poucos são os que fazem menção a ela. Mais raros ainda são aqueles que utilizam a palavra
de maneira precisa.
A palavra sociabilidade por vezes é usada como sinônimo de qualquer espécie de interação
social. Conseqüência disso é a ausência de uma palavra específica, no vocabulário desses
urbanistas, para designar a interação motivada pelo prazer da própria interação, pelo prazer
do contato com o outro. Não seria a ausência de tal palavra um indício de que não tal
preocupação?
Mas esse descuido para com o homem e suas práticas parece ser resultado de uma
educação excessivamente formalista. Os próprios livros de história do urbanismo mais
utilizados nas escolas tratam exclusivamente da forma física da cidade. Abrangem, assim, a
cidade em todos seus aspectos materiais, sua arquitetura, seu traçado viário, sua topografia,
seus diversos elementos construídos. Entretanto, o homem, seus hábitos, suas práticas
dentre as quais, a sociabilidade são renegados.
2
Por outro lado, os urbanistas se deparam constantemente com pressões por resultados
práticos que acabam os conduzindo a exacerbado cientificismo, na esfera acadêmica, e
1
LE GOFF, 1998, p.124.
2
Pior, quando o urbanista pensa estar apresentando uma alternativa a esse formalismo estrito, apela para um
funcionalismo. Fala em funções da cidade acreditando, com isso, dar conta daquilo que é humano na cidade.
Mas a abstração do homem se verifica igualmente. Ele reduz diversas práticas a uma função. Ocorre uma
substituição: em vez de homens e suas práticas, a cidade e suas funções.
8
comercialismo, na atuação profissional. Em ambos os casos, a sociabilidade é a última coisa
com que os urbanistas vão se preocupar.
É possível imaginar o mal para as nossas cidades que essa inobservância representa: senão
uma redução, uma pulverização dos espaços de sociabilidade pelo território.
3
Não que os
urbanistas sejam os grandes responsáveis por isso através de sua atuação o que seria dar
uma importância indevida a eles , mas seu descuido para com a sociabilidade é sinal de um
desaparecimento, silencioso, do prazer de levar a vida em comum, entre todos nós.
O quanto da tão anunciada “morte da cidade” o está relacionada a uma desatenção para
com as práticas de sociabilidade? Não seria essa decadência urbana uma expressão direta da
perda talvez por falta de alternativa do prazer pelo convívio com o outro?
Ainda que, como projetista, o urbanista seja um tanto quanto impotente, muitas vezes
reduzido a um mero desenhista, como especialista da cidade lhe caberia ao menos conhecer
melhor a história de seu objeto de estudo em todas as suas faces se necessário,
recorrendo a historiadores como Le Goff.
Com o intuito de iluminar um tema ainda indevidamente obscuro, sobretudo em meio a
urbanistas, pretendemos estudar os lugares da sociabilidade na cidade, sob uma perspectiva
histórica. Tentaremos esboçar uma história dos lugares de sociabilidade nas cidades
ocidentais. O que se segue é tanto um estudo, quanto um manifesto.
Por amor às cidades é o nome do livro de onde a frase em epígrafe foi extraída. O presente
trabalho partilha desse sentimento e dele é fruto. Por amor às cidades, falaremos da
sociabilidade.
3
A fragmentação em si não deve ser visto como algo negativo. Ao contrário, poderia sinalizar uma adequação à
diversidade da qual cidades são compostas. No entanto, o que se verifica é um isolamento dos grupos sociais,
uma “guetificação”. E a ausência de espaços centrais de sociabilidade, onde grupos diversos poderiam interagir
ocasionalmente, intensifica o problema.
9
Objetivos
Pretendemos estudar na dissertação a evolução das práticas e dos locais de sociabilidade, ao
longo de narrativas sobre a história das cidades ocidentais, buscando compreender sua
diversidade e complexidade.
Tentaremos, de nossa parte, construir uma narrativa onde analisaremos o modo como as
práticas de sociabilidade acompanham as demais transformações da sociedade e do
ambiente urbano se essas práticas se deslocam no espaço urbano ou se seus locais sofrem
alterações.
É nossa intenção reunir informações e idéias dispersas sobre o tema da sociabilidade,
articulando-as de maneira sistemática.
Por fim, a dissertação busca, em linhas gerais, responder à seguinte pergunta: a partir de
uma perspectiva histórica, o que é possível pensar hoje sobre a sociabilidade e seus
espaços?
Relevância e justificativa
Enquanto uma profusão de livros de história da cidade que trata da sua forma física,
verificamos uma carência de livros que examinem a relação entre a cidade em seu aspecto
material e a vida das pessoas que nela habitam. Os habitantes da cidade com seus hábitos e
suas práticas dentre as quais as de sociabilidade não recebem a devida atenção dentro
da bibliografia destinada aos urbanistas.
Por outro lado, os livros de história da sociedade que, de fato, tratam da sociabilidade, em
geral, o se ocupam em detalhar sua relação com o lugar que lhe serve de suporte. Além
disso, a sociabilidade se apresenta nesses livros de maneira dispersa, em meio a outros
assuntos, nunca destacada.
4
4
Como veremos, a seguir, é o caso da série História da Vida Privada, onde a sociabilidade é abordada
incidentalmente, em diversos momentos.
10
Cumprindo os objetivos a que se propõe, o trabalho podecomeçar a ocupar uma lacuna
que existe entre esses dois gêneros de textos, construindo uma ponte entre os livros que
tratam da sociedade e aqueles que tratam da cidade em sua materialidade.
Como resultado mais visível do trabalho, pode-se apontar a reunião de escritos sobre as
práticas de sociabilidade, sua organização segundo uma ordem cronológica inexistente
pelo que pesquisamos , a subseqüente análise desses dados e a tentativa de formar uma
narrativa articulada.
Objeto de estudo
A dissertação tem como objeto de estudo as práticas de sociabilidade e os lugares em que
ocorrem, tal como aparecem em narrativas historiográficas selecionadas.
Pressupostos teóricos
Desenvolver melhor a noção de sociabilidade faz parte dos objetivos deste trabalho. Porém,
partimos já de certo entendimento desse conceito.
Por sociabilidade, acatamos a definição mencionada de Le Goff: “o prazer de estar com o
outro”. O Dicionário Houaiss a define de maneira semelhante: “prazer de levar a vida em
comum”
5
.
Há, decerto, uma diferença quanto à abrangência dessas definições. Le Goff aponta para um
momento, uma situação em que se está com o outro. Houaiss, por sua vez, sugere a
preferência por um modo de vida, em que se tem a companhia de outros. Ambas, contudo,
falam em uma relação prazerosa com o outro.
A sociabilidade é, portanto, uma interação social positiva para aqueles que dela participam
por essa definição.
O sentimento de prazer que se tem a partir de uma experiência de interação social é a chave
para identificar uma situação de sociabilidade.
5
HOUAISS, 2001, “Sociabilidade”.
11
Uma analogia com a teoria da beleza de Kant, elaborada na Analítica do Belo
6
, nos ajuda a
pensar a sociabilidade. Ambas têm como base o sentimento de prazer a partir de certo tipo
de experiência. É possível transportar a estrutura da análise da experiência da beleza para a
experiência da sociabilidade, fazendo os ajustes necessários.
A seguir faremos uma breve exposição dessa analogia, para que fique mais claro o
entendimento do qual partimos na elaboração do trabalho. A descrição que segue da
experiência da beleza, deve-se ressalvar, é uma interpretação da teoria kantiana.
7
A sensação de beleza se verifica em um sujeito quando a experiência estética de um objeto
resulta, no sujeito, em prazer.
Por experiência estética, entendemos a exposição de um objeto aos sentidos da visão,
audição, paladar, tato e olfato de um sujeito.
8
O objeto de sensação pode ser qualquer coisa
perceptível aos sentidos: uma obra-de-arte, um elemento extraído da natureza, um
utensílio, uma paisagem, uma outra pessoa.
Uma situação de sociabilidade se verifica quando uma interação social resulta, para os
sujeitos que dela participam, em prazer.
Por interação social, entendemos “aquilo que acontece quando duas pessoas ou mais
entram em contato e ocorre uma modificação de comportamento”
9
. É uma influência
recíproca entre sujeitos, através de seus atos. A conversação e a troca de olhares são
exemplos mais comuns de interação, mas não os únicos.
Em nossa analogia, substituímos a experiência estética de um objeto por um sujeito, pela
interação social entre dois ou mais sujeitos. Na experiência da sociabilidade, deve haver uma
correspondência no sentimento de prazer entre os sujeitos que dela participam. Caso
contrário, a sociabilidade não se configura.
6
Primeiro livro da Crítica do Juízo, obra de 1790.
7
Essa interpretação aparece, desenvolvida, na monografia “A beleza a partir de Kant”, apresentada pelo autor
ao programa de pós-graduação em filosofia da PUC-Rio como requisito para obtenção do título de especialista
em arte e filosofia, em 2005.
8
Kant, acompanhando um preconceito de seu tempo e contrariando sua própria argumentação, concentra-se
nos dois primeiros sentidos (visão e audição), classificando o prazer decorrente da experiência envolvendo os
demais como “meramente agradável”.
9
FGV, 1987, “Interação social”.
12
Essa é uma característica da sociabilidade: ela depende da reciprocidade entre os atores
sociais. No caso da beleza, a experiência, por sua vez, pode ser absolutamente solitária e
única, independente da concordância do outro.
Há, contudo, um outro aspecto em que as experiências de sociabilidade e beleza parecem
convergir. Como ambas correspondem a prazeres diretamente decorrentes de experiências
vividas pelo sujeito não de algo para além da experiência dizemos, para usar uma
expressão kantiana, que se tratam de prazeres desinteressados.
Na experiência da beleza, nos diz Kant, a satisfação decorrente de um objeto nada tem a ver
com o seu valor (seja ele moral, comercial, utilitário, afetivo, etc.). O prazer deve estar na
fruição estética do objeto, livre de qualquer outro interesse que possa haver em relação a
ele.
De modo semelhante, para que uma determinada interação social se constitua em situação
de sociabilidade, deve haver um prazer decorrente da interação em si não das vantagens
que ela possa representar para seus participantes. Voltando a nossa definição inicial, é o
prazer do contato, da presença, que define a sociabilidade.
casos, entretanto, em que é impossível discernir se o prazer advém da interação
momentânea ou de uma longa relação entre os sujeitos: os convívios entre pais e filhos,
entre irmãos, entre amantes, estão por demais carregados de emoções e vínculos práticos
para que possam ser julgados desinteressados. Não há, portanto, sociabilidade dentro do
núcleo familiar.
Na sociabilidade, o outro não é alguém cuja história de vida, a personalidade, os hábitos me
são conhecidos. É simplesmente alguém diferente de mim com o qual, porém, de algum
modo, em algum momento, eu me identifico ou, ao menos, posso compartilhar algo: um
instante, um olhar, um comentário, um espaço, a cidade, a existência. Em última análise, a
sociabilidade é oposto e antídoto ao isolamento, à solidão existencial.
Na sociabilidade, o reconhecimento de uma alteridade e uma legitimação recíproca: de
pertencimento a algum grupo social, sim, mas, em última instância, de uma suposta essência
humana, de nossa humanidade. A sociabilidade, talvez mais do que a beleza ou a arte como
acreditou Kant, aponta para uma universalidade possível.
13
Metodologia
Acompanhar a evolução dos espaços de sociabilidade em paralelo ao desenvolvimento das
cidades do mundo ocidental, estamos cientes disso, representa um enorme arco espaço-
temporal. Reduzir esse arco foi inevitável para que o estudo coubesse, com um mínimo de
profundidade, em uma dissertação de mestrado.
Uma história, mesmo um esboço, deve começar pela origem de seu objeto de estudo, por
mais obscuro que seja. Acreditando nisso, fixamos nosso início nos primeiros
estabelecimentos humanos e, esticando o arco temporal ao máximo, conduzimos nossa
análise até o limiar da Idade Moderna, no século XVI.
Para viabilizar tal empreitada, optamos por eleger obras historiográficas sobre as sociedades
ocidentais ou suas cidades que cobrem esse período. Essas obras forneceram a matéria
sobre a qual trabalhamos para elaborar nossa própria análise do tema de estudo.
Deste modo, em vez de reduzirmos o âmbito de nossa pesquisa a um recorte espaço-
temporal ainda mais justo o que iria de encontro, obviamente, à nossa intenção de
identificar movimentos na história , o fizemos através de um “recorte bibliográfico”.
O primeiro passo, nesse sentido, foi a eleição das obras historiográficas que nos serviriam de
suporte. O pré-requisito para suas escolhas além de contemplar o período desejado era
que, de alguma maneira, abordassem situações de sociabilidade, tal como a definimos
anteriormente.
Muitas das obras que tratam da história da cidade, dissemos, consideram apenas seus
aspectos materiais, ignorando a vida que ela abriga e que lhe determina. Essas obras, que
figuram com freqüência entre as bibliografias de cursos de arquitetura e urbanismo, seriam
inúteis para nossos propósitos e tiveram de ser descartadas. É o caso da História da Cidade,
de Leonardo Benevolo, de Design of Cities, de Edmund Bacon, History of Urban Form, de A.
E. J. Morris, ou Morfologia Urbana e Desenho das Cidades, de José Lamas embora a
abrangência histórica atenda à nossa expectativa.
Tampouco poderíamos tirar proveito do uso de obras que cobrem a história do pensamento
urbanístico, como O Urbanismo: utopias e realidades, de Françoise Choay. O livro se ocupa
14
de teorias sobre a cidade, de projetos e de seus autores mas não do conjunto de homens
que a habita.
O que procurávamos era uma terceira maneira de olhar para a cidade, que não mirasse
exclusivamente na sua forma construída, nem na produção intelectual que lhe acompanha.
Precisávamos aqui de obras que tratassem dos homens e suas ações no ambiente urbano
pois a sociabilidade constitui uma situação, envolvendo homens, suas expectativas e
práticas, em um dado lugar.
Dentre as histórias da cidade e do urbanismo, a única obra encontrada que atendia às nossas
expectativas era A cidade na história, de Lewis Mumford, publicado em 1961. O livro cobre
um período que vai paleolítico à década de 1950. Tanto quanto a evolução das cidades, o
autor acompanha o desenvolvimento do homem em seu habitat. Basta citar o título de um
de seus capítulos para ilustrar como a abordagem de Mumford difere de todas as outras
obras mencionadas acima: “O cidadão contra a cidade ideal”.
Tendo esgotado os livros da área do urbanismo, fomos levados a recorrer às disciplinas da
história e da sociologia. As outras obras selecionadas combinam essas duas áreas do
conhecimento.
Foram elas: História da vida privada, coleção dirigida pelos historiadores franceses Philippe
Ariès e George Duby, publicado entre 1985
a 1987, e Carne e pedra, do sociólogo americano
Richard Sennett, de 1994, centrado no estudo da “relação entre corpo e espaço urbano”. A
primeira cobre o período que vai do Império Romano à década de 1970, enquanto a obra de
Sennett, da Atenas de Péricles aos anos 1980.
Embora combinando as mesmas disciplinas, essas obras são, em alguns aspectos, mais
distantes entre si do que cada uma em relação à obra de Mumford. A coleção de Duby e
Ariès é a que mais se aprofunda nos temas que aborda e, por muito, a mais extensa.
Carne e pedra é, das três, a mais superficial e a mais breve.
Porém, mais do que apontar incoerências na escolha, essa diferença permite tirar proveito
de seus tratamentos opostos: coisas que se percebe melhor observando de perto,
enquanto outras apenas quando se consegue ver o todo de uma vez.
15
Em cada uma das três obras, o tema da sociabilidade emerge de páginas em páginas nem
sempre sob esse ou qualquer outro título específico, mas em descrições que se encaixam em
nossa definição. O que buscamos em nosso estudo foi justamente extraí-la, colocá-la em
evidência, e examinar o que é dito por cada autor a seu respeito.
Ao inventariar as diferentes maneiras como a sociabilidade surge no discurso dos autores,
tentamos mostrar a diversidade de espaços em que a sociabilização pode ocorrer.
Pretendíamos com esse trabalho expandir e enriquecer a própria noção de espaço de
sociabilidade que vem sendo usada topicamente em muitos discursos contemporâneos.
Estivemos atentos às articulações entre sociabilidade e outras práticas que se desenvolvem
no mesmo local. Procuramos observar também como espaços de sociabilidade variam de
acordo com situações, culturas, épocas sempre com base na bibliografia pesquisada.
A estrutura do trabalho obedece à ordem cronológica de suas fontes, em vez de tratá-las
separadamente. Com isso, acompanhamos, na narrativa dos autores, cada uma sob ótica
própria, as transformações dos espaços de sociabilidade até o fim do período estipulado.
As três narrativas combinadas compõe um esboço para uma história geral dos espaços de
sociabilidade”. Dentro do trançado que é a "história geral” da sociabilidade foi possível
separar vários fios de histórias particulares.
Pudemos acompanhar, por exemplo, a evolução de um elemento urbano formal como a
ágora e suas mutações em períodos posteriores; ou observar os diferentes espaços de
sociabilidade adotados ao longo do tempo por determinados grupos sociais, como as
mulheres; ou ainda perceber o deslocamento de certas práticas de sociabilidade por
diferentes partes da cidade.
Neste trabalho, olhamos para esses fios apenas como parte da urdidura. Talvez por faltar
confiança, por ora, na resistência de cada fio isoladamente, buscamos sustentação no
trançado cheio. A “história dos espaços de sociabilidade” amplo assim foi a corda que
utilizamos para fazer nossa travessia, do início ao fim do texto. Contudo, olhando de perto,
vemos que ela não existe como um corpo único, mas como um emaranhado de frágeis fios
de histórias menores.
16
Estrutura da dissertação
A dissertação está organizada em capítulos que tentam acompanhar as periodizações
estabelecidas nas obras estudadas. Entretanto, por não haver uma uniformidade completa
entre elas nessa questão, tivemos certa liberdade para instituir nossas próprias seções
históricas, conforme os interesses deste trabalho. O Anexo B apresenta um quadro com as
correspondências entre a nossa periodização e as estabelecidas por Mumford, Sennett e
Duby e Ariès, através da comparação dos respectivos índices.
Em nossas subdivisões tentamos contemplar momentos distintos, dentro dos quais seria
possível identificar certa uniformidade do ponto de vista social e urbano. Como cidade e
sociedade são organizações dinâmicas, essas seções não correspondem a momentos
realmente estáticos e homogêneos, mas têm a função de ilustrar uma ordem identificável
com seu tempo. Os limites desses momentos não são precisos, o que nos obrigou a sermos
arbitrários em alguns recortes.
O primeiro capítulo, antes de tudo uma introdução ao tema, tenta apontar uma origem para
a sociabilidade e suas primeiras manifestações. Abrange da p-história aos impérios do
Oriente Médio Antigo, antes de suas cidades caírem sob domínio helênico. Trataremos,
sobretudo, da região mesopotâmica. Nossa divisão é, não apenas temporal, mais também
espacial acompanharemos as regiões ocupadas pelas civilizações ocidentais e sua
ascendência.
O segundo capítulo trata da Grécia e suas colônias, desde o estabelecimento ali das
primeiras tribos, que dariam origem às cidades-estados, até sua captura por Roma. Embora,
esse enunciado abarque mais de um milênio de história e toda a região costeira do
Mediterrâneo e Mar Negro, nos deteremos principalmente às polis gregas dos períodos
chamados de Arcaico (séculos VIII, VII e VI a.C.) e Clássico (século V a.C.) e no período de
domínio macedônico (século IV a.C.). A cultura helênica é nosso alvo.
O terceiro capítulo é dedicado a Roma e suas conquistas. Aqui podemos enquadrar nosso
estudo entre duas datas simbólicas: a suposta fundação da cidade de Roma em 753 a.C. e a
17
queda do último imperador romano em 476 d.C.
10
. Concentramos nossa atenção em dois
momentos: no auge do poder romano, entre os últimos séculos da República e os primeiros
do Império, e na ascensão do cristianismo à religião oficial do Estado romano, então em fase
decadente. A sociedade romana é vista, portanto, em suas fases pagã e cristã.
O quarto capítulo começa com o vácuo deixado na Europa pela queda do Império Romano.
Esse início da era medieval geralmente referido em língua portuguesa como Alta Idade
Média é marcado pelas invasões bárbaras, pelo esvaziamento das antigas cidades romanas
e pelo papel militante da Igreja na conversão dos povos invasores. Podemos observar a
formação de uma nova sociedade européia em bases rurais que se prolonga até fins do
período medieval.
O quinto capítulo trata das cidades em seu lento renascimento cujo início alguns autores,
como Georges Duby, estabelecem simbolicamente por volta do ano 1000. A organização
social e cultural que então se configura perdura até o século XVI. Aqui ocorre uma outra
sobreposição temporal: enquanto o capítulo anterior acompanha a “Idade Média ruraldo
século VI ao XVI, este analisa a “Idade Média urbana” do século XI ao XVI. Julgamos
necessário fazer tal separação por razões didáticas.
Nossa narrativa se interrompe cinco séculos atrás. Os cinco séculos que lhe faltam, contudo,
não representam para nosso estudo a ausência de um fechamento. Pois nossa narrativa não
caminha em direção a hoje, nem busca um encerramento. Passado e futuro são extensões
do pensamento presente e o pensamento para eles se desliza, seja pesquisando, seja
projetando. O presente trabalho recorre ao passado em busca de um melhor entendimento
das práticas de sociabilidade e o modo como elas se relacionam com os diferentes lugares
em que se desenvolvem. O período estudado nos permite isso. Os cinco séculos ausentes
corresponderiam a mais alguns capítulos de análises, mas não conduziriam nem ao final da
história, nem ao esgotamento de interpretações do tema.
10
Note-se aqui uma aparente sobreposição: o século VI a.C., por exemplo, pode ser contemplado pelos três
primeiros capítulos, conforme tratemos das sociedades mesopotâmicas, grega ou romana. Isso ocorre porque
nossa divisão corresponde mais a recortes espaço-temporais do que simplesmente temporais.
18
Nota sobre as ilustrações
Paralelamente à nossa narrativa, apresentamos uma série de imagens com objetivo de
enriquecer nosso trabalho, ora ilustrando, ora complementando o discurso escrito.
Em nossa pesquisa iconográfica, procuramos obter representações das situações de
sociabilidade descritas. Optamos por dar preferência a obras cujas eram contemporâneas ao
artista descartamos quaisquer reconstituições a posteriori.
Tal atitude gerou uma grande dificuldade: períodos (Alta Idade Média, por exemplo) cuja
iconografia é pobre em termos de representações da sociedade contemporânea. Trata-se,
contudo, de um dado da época contra o qual seria inútil lutar.
casos também em que a arte figurativa do local cobria plenamente uma parte da sua vida
social, mas se omitia completamente em relação a outras. Notamos isso na Grécia: enquanto
inúmeras representações da sociabilidade dos ginásios ou dos symposiums, não
encontramos uma sequer da ágora. Podemos dizer o mesmo sobre o fórum romano.
Os resultados da nossa pesquisa estavam condicionados tanto à escolha dos temas artísticos
de cada época, quanto à durabilidade dos meios utilizados para executá-los. São poucas as
pinturas (em paredes, painéis ou objetos) que sobreviveram até s. Da Grécia, nos
beneficiamos sobretudo das cerâmicas; de Roma, dos mosaicos, relevos em mármore e das
pinturas de Pompéia, conservadas pele lava do Vesúvio; na Idade Média das iluminuras e ,
tardiamente, pinturas a óleo.
11
Uma dificuldade final diz respeito à pesquisa em si, a obtenção das imagens. Nossas
principais fontes de pesquisa foram os sites das bibliotecas e museus proprietários das
obras. Algumas instituições disponibilizam seu vasto acervo na internet (Louvre,
Metropolitan, Museu e Biblioteca Britânicos, Hermitage) enquanto outras, infelizmente, não
o fazem (especialmente os italianos e gregos).
No Anexo A, incluímos plantas com a localização de alguns espaços de sociabilidade citados,
bem como mapas (políticos, religiosos, comerciais) da Europa em diferentes momentos.
11
Nosso recorte espaço-temporal se encerra justamente quando as representações do homem e suas
atividades cotidianas como a sociabilidade tornam-se mais explícitas e abundantes.
19
CAPÍTULO I: Nômades, aldeões e citadinos
“O sepultamento cerimonioso dos mortos em covas marcadas
por uma pilha de pedras, uma árvore, uma pedra alta, talvez
tenha dado origem ao primeiro ponto permanente de
encontro dos vivos: a morada dos espíritos ancestrais, o
templo de um deus, o embrião de uma cidade.”
12
Nesse capítulo, trataremos das primeiras manifestações da sociabilidade, começando pelo
período Paleolítico, com o homem ainda nômade; passaremos pelos primeiros
estabelecimentos humanos, a aldeia Neolítica; e finalmente analisaremos a sociabilidade nas
primeiras cidades conhecidas, no Oriente Médio.
Essa primeira divisão do trabalho, introdutória, temporal e geograficamente a mais extensa,
é certamente também a mais imprecisa. As informações disponíveis são mais escassas do
que em relação a períodos posteriores boa parte do que tratamos aqui se refere à pré-
história. Há, portanto, menos certeza e mais especulações.
E, dificuldade extra, dentre nossos autores, apenas Lewis Mumford se propôs a tarefa de
cobrir tal época. O que nos deixa, de saída, com apenas um ponto de vista, uma versão
histórica, contribuindo para tornar este, um capítulo ainda mais atípico. Construiremos
nossas hipóteses, a partir daquelas levantadas por esse autor, exclusivamente.
É necessário fazer aqui um alerta: Mumford raramente cita suas fontes. Isso nos deixa sem
saber ao certo os graus de certeza científica e de especulação que por trás de suas
palavras. Em todo caso, para efeito desse capítulo, adotaremos A Cidade na História como
“nosso horizonte de verdade”. Basearemos-nos sempre no discurso mumfordiano o que
não nos impedirá de estabelecer conjecturas diferentes.
As seções desse capítulo acompanham os diferentes modos de agrupamentos humanos: o
bando nômade, estabelecido em aldeias ou em cidades. E a primeira seção, nosso primeiro
passo, é uma tentativa de estabelecer as origens da sociabilidade.
12
MUMFORD, 1965, Seção Ilustrada I: “Cerimônias e monumentos”.
20
Uma aptidão humana
“Antes da cidade, houve a pequena povoação, o santuário e a aldeia; antes da aldeia, o
acampamento, o esconderijo, a caverna, o montão de pedras; e antes de tudo isso, houve
certa predisposição para a vida social que o homem compartilha, evidentemente, com diversas
outras espécies animais.”
13
Com poucas palavras, uma seqüência regressiva de imagens do habitat humano, Mumford
nos faz voltar dezenas de milhares de anos e coloca o homem no limiar de sua existência
antes, um animal com potencial para se tornar humano. Em seguida, nos diz que esse
animal, como tantos outros, apresenta uma predisposição para a vida social. Com essa
afirmação, ele parece responder a perguntas inaugurais óbvias: de onde vem a sociabilidade;
como surge; quando começa?
Entretanto, predisposição para a vida social não pressupõe prazer: a formiga, a abelha, o
lobo, o chipanzé vivem juntos entre os seus, organizadamente, por instinto de sobrevivência.
O animal em vias de se tornar humano, certamente, também o fez por esse instinto. Caso
contrário, teria sucumbido às adversidades do meio em que vivia. Precisamos descartar a
sociabilidade como uma predisposição, uma herança ancestral, como sugere Mumford, e
buscar outro indício da existência de um prazer pela companhia de seus semelhantes.
Ainda que devamos admitir que levar uma vida em sociedade por instinto de sobrevivência
não seja o mesmo que levá-la por prazer, poderíamos apontar o momento em que o prazer
passa a acompanhar (ou mesmo suceder) o instinto? Mumford não nos deixa pista alguma.
Aqui, logo de saída, nos deparamos com uma questão que revela, ao mesmo tempo, a
dificuldade e a relevância do presente estudo. Por vezes, os autores pesquisados passarão
bem próximos de nosso objeto de estudo, a sociabilidade, sem no entanto realmente
abordá-lo. Em outros momentos, o farão com clareza, mas ainda assim deixarão lacunas a
serem preenchidas. A razão disso é simples: eles não miram na sociabilidade; ela surge
ocasionalmente em seus textos, de acordo com sua relevância para seus verdadeiros objetos
de estudo.
13
MUMFORD, 1965, p.13
21
Cabe a nós, aqui, tentarmos completar essas lacunas,
especulando a partir dos dados que temos. E a lacuna a ser
preenchida agora passa pela resposta à seguinte questão:
podemos identificar uma primeira manifestação da
sociabilidade, um primeiro sinal do prazer pela vida em
comum?
Talvez o sentimento de prazer com a presença do outro
tenha surgido junto com o sentimento de dor pela perda do
outro. A dor da ausência indicaria um prévio prazer pela
presença.
Quando o homem e talvez agora possamos chamá-lo
dessa maneira passa a estabelecer uma relação com os
mortos, estaria ele prestando uma homenagem ou tentando
permanecer em contato com ex companheiros de existência
sobre a Terra?
Seja qual for a resposta, possivelmente ambas, é sinal de
que havia uma relação com o outro digna de lembrança. O
outro não seria apenas um agente substituível de uma
organização social da qual todos fariam parte como uma
formiga num formigueiro ou um lobo na matilha. Para além
das relações utilitárias, o homem e seu outro estariam
unidos agora por relações afetivas. O homem estaria apto a
experimentar o contato com o outro como algo prazeroso.
Por esse raciocínio, poderíamos dizer que o culto aos
mortos é o maior indício de uma apreciação pelo outro, pela
relação com o outro. É sinal da existência de uma
sociabilidade, ainda incipiente.
Figura 1. 6500 a.C. Çatalhöyük
(Turquia) Pintura rupestre. Cena
de caçada. (Çatalhöyük Research
Project)
Figura 2. Mesolítico Zaraut-
Kamar (Uzbequistão) Pintura
rupestre. Cena de caçada.
(Kemerovo State University)
22
Centros cerimoniais paleolíticos
Se o culto aos mortos é a primeira evidência da existência de uma sociabilidade, é também o
primeiro espaço fixo de sociabilidade. O túmulo era não apenas o local onde os vivos
mantinham contato com os mortos, mas também onde mantinham contatos entre si.
“O respeito daquele homem antigo pelos mortos, *...+, teve talvez um papel maior ainda que as
necessidades de ordem mais prática, ao fazer com que procurasse um local fixo de encontro e
afinal um ponto contínuo de fixação. Em meio às andanças inquietas do homem paleolítico, os
mortos foram os primeiros a ter morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por
um monte de pedras, um túmulo coletivo. Constituíam marcos aos quais provavelmente
retornavam os vivos, a intervalos, a fim de comungar com os espíritos ancestrais ou de aplacá-
los.”
14
Até então, os homens, nômades ainda, podiam se confraternizar em longas caminhadas lado
a lado pelas estepes ou ao redor do fogo onde dividiam a caça, talvez sob o abrigo de uma
caverna. Essas devem ter sido as primeiras situações em que o prazer da sociabilidade se
manifestou “em meio às inquietas andanças do homem paleolítico”.
Talvez tenham sido esses companheiros de cotidiano os primeiros a receber homenagens
fúnebres. Mumford, no entanto, se refere a “espíritos ancestrais”. Há muito mais solenidade
e distância nessa expressão, até mesmo temor, pois haveria necessidade de "aplacá-los”. É
possível que o culto aos mortos tenha se revestido de um misticismo em que a lembrança
dos mortos, fenômenos da natureza e figuras da imaginação tenham se combinado.
Com isso os próprios locais de culto adquiriram dimensões maiores e outros significados
não mais um túmulo para um morto ser homenageado por seus conhecidos, assinalado por
um pequeno monte de pedras, mas “veneráveis santuários que “personificavam
propriedades e poderes sagrados e atraiam aos seus recintos homens de muito longe:
grandes pedras, bosques sagrados, árvores monumentais, fontes santificadas”
15
.
14
MUMFORD, 1965, p.15
15
MUMFORD, 1965, p.18
23
Além da mudança de escala e de raio de influência, houve outra mudança importante: o que
reunia os homens não era mais a homenagem a um companheiro ou antepassado comum,
mas uma crença:
“Tais marcos fixos e pontos sagrados de encontro, periódica ou permanentemente, ajuntavam
aqueles que compartilhavam as mesmas práticas mágicas ou crenças religiosas.”
16
Essas práticas e crenças religiosas significam a existência de elos muito mais abrangentes.
Era possível agora se socializar, nesses locais sagrados, com pessoas que não pertenciam ao
mesmo grupo nômade.
Uma crença religiosa é algo compartilhável; ela representa uma universalidade possível. Ela
permite reconhecer algo em comum em outro homem que não tenha qualquer vínculo
consigo, um completo desconhecido.
Se em um primeiro momento, estaria disponível ao homem paleolítico o prazer de
compartilhar a existência, os mesmos medos e alegrias, com um companheiro de errâncias,
tornou-se possível agora comprazer-se com a descoberta e o convívio intermitente de
companheiros de crença, em tudo o mais estranhos a ele. Era possível, sobretudo, sentir-se
menos solitário, tomando parte em algo mais amplo do que seu grupo de caça.
Aqui a percepção do outro parece denotar um desenvolvimento conceitual complexo: o
outro deixou de ser necessariamente identificado apenas com um ente concreto, específico
e apartado, para se tornar uma figura abstrata, genérica na qual parte de mim também se
reconhece.
No trecho a seguir, Mumford usa duas expressões bastante significativas, “prazer social” e
“visão comum de uma vida melhor”:
“Nesses antigos santuários paleolíticos, como nos primeiros túmulos e montes sepulcrais,
encontramos, se existem, os primeiros indícios de vida cívica, provavelmente, muito antes de
poder sequer suspeitar-se de qualquer agrupamento permanente em aldeias. Não se tratava
de um mero ajuntamento por ocasião do acasalamento, ou de um regresso provocado pela
fome a uma fonte segura de água ou alimento, ou de um ocasional escambo, em determinado
ponto convenientemente protegido por um tabu, de âmbar, sal, jade ou mesmo, talvez, de
16
MUMFORD, 1965, p.18
24
instrumentos prontos. Ali no centro cerimonial verificava-se uma associação dedicada a uma
vida mais abundante; não simplesmente um aumento de alimentos, mas um aumento do
prazer social, graças a uma utilização mais completa da fantasia e da arte, com uma visão
comum de uma vida melhor e mais significativa ao mesmo tempo que esteticamente atraente,
uma boa vida em embrião, como a que Aristóteles um dia iria descrever na Política: o primeiro
vislumbre de Eutópia.”
17
Não nos parece claro nessa passagem a razão pela qual “se verifica” ali, no centro
cerimonial, uma associação com vista a uma vida melhor. Como então poderíamos
responder à pergunta: porque a perspectiva de uma vida melhor em comunidade?
Talvez tenha sido justamente o “prazer social”, o prazer da vida em comum, aquilo que
chamamos de sociabilidade, verificado pelo homem paleolítico nesses centros cerimoniais
que propiciou a “visão comum de uma vida melhor”.
E estaríamos errados se, ao acompanharmos Mumford em sua associação entre centro
cerimonial e um embrião seja de “uma boa vida”, seja mais especificamente da cidade
18
imaginássemos que foi justamente a sociabilidade que o nutriu durante todo seu
desenvolvimento?
As aldeias neolíticas
Para que os vivos pudessem, tal como os mortos, se estabelecer permanentemente em um
local, foi necessário encontrar uma fonte de alimentos que substituísse as práticas
paleolíticas da caça e da coleta, que, segundo Mumford, alimentavam menos de quatro
pessoas por quilômetro quadrado.
19
A primeira resposta, a aldeia mesotica, dependia de condições geográficas bastante
peculiares, já que era baseada no consumo de peixes e crustáceos em localidades onde eram
abundantes.
17
MUMFORD, 1965, p.17
18
Ver epígrafe deste capítulo.
19
Este e os dois parágrafos seguintes resumem a seção A domesticação e a aldeiada Cidade na História de
Mumford, pp.20-26.
25
Passaram-se milhares de anos até que o homem ou a
mulher, mais provavelmente dominasse o plantio de
sementes e a domesticação de plantas. A aldeia neolítica
nasce com essa revolução agrícola.
A aldeia representa, obviamente, um novo modo de vida,
inteiramente diferente do modo de vida nômade.
“Por toda a parte, aldeia é um pequeno agrupamento de
famílias, variando talvez entre meia dúzia e três vintenas,
cada qual com seu próprio lar, seu próprio deus doméstico,
seu próprio oratório, seu próprio cemitério, dentro da casa
ou em algum campo comum de sepultamento. Falando a
mesma língua, encontrando-se sob a mesma árvore ou à
sombra da mesma pedra empinada, andando ao longo do
mesmo campo batido pelo seu gado, cada família segue o
mesmo modo de vida e participa dos mesmos trabalhos.
[...] quem olha no rosto do vizinho enxerga a própria
imagem.”
20
Das “andanças inquietas”, o homem passou a uma
“sonolenta” fixação ao solo.
“Antes que se desenvolvesse bem o transporte pela água,
cada aldeia era, com efeito, em si mesma, um mundo:
isolada tanto por certo narcisismo e por uma sonolenta
absorção em si mesma, talvez, quanto pelas meras
barreiras físicas.”
21
Enquanto grupos de caçadores podiam entrar em contato
com outros e ter, nos centros cerimoniais, um ponto
permanente de encontro aos quais podiam recorrer, os
20
MUMFORD, 1965, p.30
21
MUMFORD, 1965, p.31
Figura 3. 9000-4000 a.C.
Gobustan (Afeganistão) Pintura
rupestre. Cena envolvendo
homens e mulheres. (Kemerovo
State University)
Figura 4. 6000-4000 a.C. Tassili-
n-Ajjer (Argélia) Pintura
rupestre. Cena de dança.
A dança seria, talvez, uma das
primeiras manifestações de
sociabilidade: uma celebração
coletiva
26
aldeões permaneciam a vida inteira em contato apenas com seus vizinhos de aldeia.
“O ideal dos aldeões continuou sendo aquele retratado muito mais tarde por Lao-Tsé: ‘*...+
podiam eles estar ao alcance da vista de uma aldeia vizinha, ao alcance dos ouvidos dos galos e
cães, e ainda assim envelhecer e morrer antes de visitarem uns aos outros’.”
22
Mumford chama atenção também para a co-existência das culturas paleolítica e neotica.
Enquanto alguns grupos permaneceram nômades, outros que detinham o conhecimento da
agricultura fixaram-se em algum ponto. Ele fala mesmo numa cooperação entre caçadores e
aldeões na qual os primeiros mantinham afastados animais perigosos à aldeia.
“Mas, com o tempo, talvez os confortos e sociabilidades da pequena povoação tenham
produzido certa insatisfação e inveja, por mais desdenhosamente que pudesse o caçador
rejeitar a rotina repetitiva, a segurança sem riscos, que a agricultura bem sucedida trouxera
consigo.”
23
Quando o grupo de caçadores passa a integrar a aldeia, nos diz Mumford, ele provoca uma
mudança profunda em sua organização pois passa a constituir uma casta a parte. Em breve,
ela submete à força os demais aldeões, se convertendo numa aristocracia dominante e o
antigo chefe do bando, em seu rei. Esse poder centralizado concentrará forças suficientes
para empreender a revolução que, na concepção de Mumford, dará origem à cidade, como
veremos a seguir.
Por ora, nos concentraremos nas sociabilidades da aldeia que causaram “insatisfação e
inveja ao então caçador.
Enquanto o caçador tinha que estar em constante movimentação em busca de alimentos
um pouco menos frenética após ter descoberto maneiras de conservar a carne os
enraizados aldeões, amparados ainda pela certeza de sua agricultura, dispunham de mais
tempo livre para conversas e diversões.
Se práticas como rodas para conversações ou conto de histórias eram conhecidas dos
caçadores, talvez ao redor do fogo onde devoravam sua caça, agora elas podiam ser mais
22
MUMFORD, 1965, p.31
23
MUMFORD, 1965, p.31
27
freqüentes e ter seus lugares próprios, permanentes: junto à fonte, sob determinada árvore,
atrás de tal pedra, no centro da aldeia. O hábito os estabelecia.
Mumford não nos fornece descrições ricas, mas cita o conselho de anciãos e os ritos de
fertilidade, duas instituições características da aldeia que poderíamos imaginar como
situações especiais de sociabilidade e ambas reaparecerão sob novas formas nas cidades.
Antes de passarmos finalmente para as primeiras cidades, é preciso lembrar que a aldeia e
seu modo de vida persistiu até tempos bem recentes, se é que podemos dizer que ela não
exista mais. Nos capítulos seguintes, tratando de épocas posteriores, seremos ainda
obrigados a voltar à aldeia algumas vezes, o que nos possibilitará lançar mais luz sobre suas
formas de sociabilidade características.
As primeiras cidades
Se a aldeia representa um modo de vida inteiramente diferente do modo de vida nômade,
também é nitidamente diferente daquele da cidade. Mumford utiliza o termo cidade para
Ur, Mênfis, Atenas, Roma, Paris, Londres, Nova York. Mas seja na Antigüidade, seja na Idade
Média ou Moderna, ele mantém a distinção entre aldeia e cidade.
Isso significa que, para ele, a Roma imperial, por exemplo, estaria mais próxima da Londres
vitoriana do que de uma aldeia do norte da Itália do tempo de Augusto. Aldeia e cidade são
categorias diferentes de estabelecimento humano.
Aqui se percebe claramente a influência da Escola de Chicago no pensamento de Mumford.
Louis Wirth, para distinguir as cidades de núcleos rurais e aldeias, definiu-as como “um
núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente
heterogêneos.”
24
Seu argumento é de que nessas condições uma mudança, não apenas
quantitativa, mas qualitativa das relações sociais, que se tornariam muito mais complexas. E
essa mudança qualitativa configurava um modo de vida, como diríamos hoje,
essencialmente urbano, com características próprias.
24
WIRTH, 1976, p.104
28
A diferença entre cidade e aldeia vai, portanto, além de um mero aumento numérico ou de
um estatuto jurídico. Mumford nos mostra como elas possuem diferentes relações com o
tempo, seu passado e futuro, e com o espaço ao seu redor.
A comunidade da aldeia vive para sua nutrição e reprodução ad infinitum, para sua
sobrevivência apenas. Seu passado e futuro são como que idênticos ao presente a noção
de história está completamente ausente. Mudanças, quando ocorrem, são acidentais. E seu
já citado isolamento só contribui para acentuar sua inércia.
25
Não especialização entre os aldeões e as atividades são distribuídas de acordo com a
idade e o sexo. As decisões importantes são tomadas pelo conselho de anciãos e baseadas
na tradição. A estrutura econômica, social e política da aldeia é voltada para a manutenção
de seu modo de vida.
Não houvesse a interferência de um elemento externo que desestabilizasse essa estrutura,
aldeia alguma teria se convertido em cidade. E esse elemento, como antecipamos, foi, para
Mumford, a ascensão do rei, o estabelecimento de um poder centralizado e hierarquizado.
Não é nosso objetivo aqui descrever como ocorreu essa transformação. Mumford dedica o
final do primeiro e começo do segundo capítulo de A Cidade na História à narração desse
processo. O que nos interessa é seu resultado: as primeiras cidades de que se tem registro
na Mesopotâmia, e suas características.
26
A cidade, ao contrário da aldeia, possui um rei que lhe governa com poucos compromissos
com a tradição ou o bem estar geral. Dotado de atributos divinos e apoiado pela classe
sacerdotal
27
, ele demanda tributos, arregimenta trabalhadores, direciona esforços.
Sobretudo, rompe com o isolamento e a inércia típicas da aldeia: explora riquezas e modifica
25
MUMFORD, 1965, p.31
26
Registremos apenas que Mumford aponta a cidade, não obstante os aspectos positivos que introduziu na
vida humana, como fruto de um desejo de poder: que, em um primeiro momento, levou o caçador ao controle
da aldeia; e que, em seguida, levou o rei a exigir o desenvolvimento e expansão de seus domínios como forma
de expandir sua própria potência. As primeiras cidades, Mumford não hesita em dizer, são decorrências da
ambição e da agressividade humanas.
27
Sobre a união realeza-clero, afirma Mumford: “A realeza aumentou as funções do clero e deu à classe
sacerdotal uma posição dominante na comunidade. [...] Em troca de seu apoio os antigos reis davam a esses
representantes do ‘poder espiritualsegurança, ócio, posição e moradias coletivas de grande magnificência.”
MUMFORD, 1965, p.57
29
o território ao seu redor; entra em contato com outras cidades, através do comércio ou da
guerra; exige maior produtividade dos seus súditos; interessa-se por inovações tecnológicas;
busca o crescimento de sua força de trabalho e de seu exército.
A cidade é um centro dinâmico, composto por uma sociedade complexa. As novas exigências
a que a antiga aldeia e sua população são submetidas dão origem a novas ocupações: ao
caçador, ao camponês e ao pastor, juntam-se o mineiro, o lenhador, o pescador, o
construtor, o marinheiro, o soldado, o mercador, o sacerdote, o burocrata.
A calma e segurança do aldeão foram substituídas por sentimentos ambíguos, ao se tornar
citadino:
“*...+ a arcaica cultura da aldeia cedeu lugar à ‘civilização’ urbana, essa peculiar combinação de
criatividade e controle, de expressão e repressão, de tensão e libertação, cuja manifestação
exterior foi a cidade histórica.”
28
Não havia na relação entre os habitantes da cidade uma noção implícita de cooperação,
como na aldeia. Ao contrário, a competição era estimulada na medida em que a
proximidade com o poder real, expressa pela introdução de uma hierarquia social,
apresentava vantagens claras.
“Os vizinhos de aldeia passavam agora a se manter à distância: não sendo mais familiares e
iguais, viram-se reduzidos a súditos, cujas vidas eram supervisionadas e dirigidas por
funcionários militares e civis, governadores, vizires, coletores de impostos, soldados,
diretamente responsáveis perante o rei”.
29
Contudo, do ponto de vista das práticas de sociabilidade, ao contrário do que se poderia
supor, houve mais ganhos do que perdas. Se por um lado, perdeu-se o sentimento de
comunidade, onde todos se conhecem e administram suas próprias vidas, por outro,
multiplicaram-se os contatos, a diversidade das relações, os locais de encontro.
“Arnold J. Toynbee, em seu Estudo de História, deu à nossa geração uma visão nova do papel
que os “encontros” e “desafios” desempenham no desenvolvimento de uma civilização não
menos do que de um indivíduo. [...] é na cidade e apenas nela, numa escala efetiva, com
28
MUMFORD, 1965, p.47
29
MUMFORD, 1965, p.46
30
suficiente continuidade que essas interações e transações, essas proposições e respostas,
têm lugar.”
30
A cidade é um centro de atração e concentração de pessoas. No interior de sua muralha
outra diferença para a aldeia neolítica , reúne atividades pré-existentes mas dispersas:
cultos religiosos, festividades, produção e troca de mercadorias, defesa, governo.
“*...+ a cidade não é meramente um recipiente: antes que tenha algo a conter, deve ela atrair
as pessoas e as instituições que dão seguimento à sua vida.”
31
Em que residiria, então, o poder de atração da cidade? O que haveria nela que fizesse com
que aldeões abandonassem a vida tranqüila de sua aldeia e se submetessem às privações e
exigências da cidade e seu governante? Ou, por outro lado, porque os citadinos não
abandonavam sua cidade e se estabeleciam em aldeias longe do domínio dela?
As conjecturas de Mumford apontam para um deslumbramento semelhante ao que, talvez,
as grandes cidades de sua época pudessem produzir no habitante de uma pequena cidade
do interior
32
. Pautando-se em um texto antigo dedicado a Ur, ele escreve:
“Na cidade, até o mais humilde poderia, indiretamente, tomar parte na grandeza e considerá-
la como sua: havia um lazer cerimonioso e um jovial retiro, aberto a todos, graças aos novos
órgãos que a municipalidade comandava. Volto mais uma vez ao antigo texto acadiano, em
busca de confirmação:
Vinde, pois, Enkidu, à Uruk de baluartes,
Onde as gentes são resplandecentes em seu trajes festivos,
Onde cada dia é com um dia de festa.’
Isso talvez fosse um exagero semelhante àqueles que hoje poderíamos encontrar num guia
turístico; no fundo, porém, revela um senso de esplendor e alegria, expresso na música, no
cântico e no traje, bem como na arquitetura, que os homens começavam a associar às cidades.
Sem aqueles deuses, suas muitas realidades sórdidas e opressivas dificilmente teriam sido
suportadas.”
33
30
MUMFORD, 1965, p.132
31
MUMFORD, 1965, p.114
32
Uma versão contemporânea da aldeia neolítica?
33
MUMFORD, 1965, pp.96, 97
31
Poderíamos especular sobre o papel que uma nova
sociabilidade, tipicamente urbana, teve como parte dos
atrativos da cidade. O antigo texto acadiano não parece
estar muito longe dela quando menciona dias de festa e
gentes resplandecentes. Tomar parte de festividades não é
uma maneira de regozijar-se, não apenas na, mas com a
companhia dos outros?
Até tratarmos da pólis grega, Mumford não nos fornecerá
nenhuma descrição mais detalhada de um festival urbano
para analisarmos. Até lá, serão realmente parcas as
menções a locais de sociabilidade específicos. Em
determinado momento, num capítulo onde ainda tratava da
cidade mesopotâmica, mas parecendo ter em mente a
instituição cidade de maneira mais ampla, o autor enumera
uma série de espaços de sociabilidade.
“*...+ a cidade, à medida que se desenvolve, passa a ser o
centro de uma rede de comunicações; os mexericos junto
do poço ou da bomba da aldeia, a conversa na taberna ou
no lavadouro, as proclamações dos mensageiros e dos
arautos, as confidências dos amigos, os rumores da bolsa e
do mercado, o intercurso guardado dos eruditos, o
intercâmbio de cartas e informações, notas, contas, a
multiplicação dos livros tudo isso são atividades centrais
da cidade.”
34
Generalizações como a dessa passagem são comuns no
texto de Mumford. Mesmo tratando de um período
específico, ele o extrapola para falar em cidades de modo
genérico. Isso nos desautoriza a utilizá-la como uma
34
MUMFORD, 1965, p.90
Figura 5. 575 a.C. Babilônia
(Iraque) Foto geral e um detalhe
do Portão de Isthar. (Museu
Pergamon)
Além de assegurar a defesa de
uma cidade, o portão a medida
de sua grandeza. Pode transmitir
também um “senso de esplendor
e alegria”. Ademais, é junto dos
seus portões, pontos de entrada e
saída da cidade, que muitos
encontros têm lugar.
32
descrição das sociabilidades nas cidades da Mesopotâmia. Entretanto, não porque
descartarmos “os mexericos junto ao poço”, “a conversa na tabernaou no mercado como
práticas de sociabilidade ocorrentes nessas cidades.
uma passagem de A Cidade na História onde Mumford descreve explicitamente locais de
sociabilidade nas cidades sumerianas: o maior deles a avenida principal ou “Rua Larga”
35
,
bem como outras secundárias junto às entradas da cidade ou aquelas onde se realizavam
festividades.
“O que os estudiosos da Suméria às vezes traduzem como ‘bulevar’ *...+ era antes, uma Rua
Larga, suficientemente larga para as multidões, onde era possível dar-se um passeio ao
anoitecer, ver as plantas, ouvir músicas, ou encontrar-se para os mexericos, como revela um
antigo documento: em suma, servia como a clássicaRua Central’. A atividade gregária da
promenade na verdade se desenvolveu cedo na cidade, não apenas na Rua Larga, ‘onde as
festas eram celebradas’, mas nos muros, ‘junto dos portões’, e nos ‘lugares onde as
festividades tinham lugar’. Se no recinto do templo, viam-se os remotos deuses, na
35
Mumford utiliza a expressão Broad Way, assim, com iniciais maiúsculas. Broad significa tanto “largo”,
como “extenso”, o que, em se tratando de uma via, passa imagens diferentes. O tradutor para ngua
portuguesa optou pela primeira opção. Talvez, a melhor tradução para o adjetivo fosse “amploou “principal”,
ambos de acordo com o significado de broad”. “Via Principal soa melhor do que “Rua Larga”. No entanto,
ficaremos com a tradução original, mantendo as iniciais maiúsculas, sempre que nos referirmos a Broad Way
de Mumford.
Figura 6. 1100 a.C. Susa (Irã) Modelo de um local de culto urbano, com cena da “Cerimônia do sol
nascente”. (Museu do Louvre)
A cidade, ao incorporar o centro cerimonial, herdou sua capacidade de atração: Surgindo como um local
sagrado, aonde grupos destacados retornavam periodicamente para cerimônias e ritos, a cidade antiga foi,
antes de tudo, um ponto de encontro permanente.” (MUMFORD, 1961, p.130)
33
promenade quotidiana via-se a própria cidade multiforme,
refletida nas faces dos transeuntes. Assim, a promenade
retribuía com uma sensação de grande intimidade física e
identificação com os vizinhos próximos, que a cidade,
passando além, da escala da aldeia de agricultores, em
grande parte perdera.”
36
Além de lugares, Mumford faz menção a uma prática de
sociabilidade tipicamente urbana: a promenade ou o
passeio o um mero deslocamento pela cidade, mas uma
caminhada prazerosa para observar suas construções e seus
habitantes. Acompanhado ou solitário, o caminhante podia
encontrar conhecidos ou interagir com desconhecidos,
habitantes ou de passagem pela cidade.
Salvo exceções
37
, a promenade era uma das práticas mais
democráticas de sociabilidade. Como veremos diversas
vezes nos capítulos subseqüentes, muitas das práticas de
sociabilidade verificadas se restringem a grupos específicos
da sociedade.
Por ora, podemos antever nas antigas cidades do Oriente
Médio, um espaço onde uma sociabilidade bastante restrita
tinha abrigo:
“*...+ era no recinto do palácio, numa época em que o resto
da cidade tinha se tornado uma compacta massa de casas,
36
MUMFORD, 1965, pp.103, 104
37
Há casos em que é vetado a determinados grupos a livre circulação pela cidade. Podemos citar, como
exemplo, o que aconteceu aos judeus em pelo menos dois momentos distintos: na Veneza do século XVI, onde
eles eram obrigados a retornar para uma área da cidade cercada conhecida como gheto, após certa hora da
tarde podendo dali sair na manhã seguinte; e em Varvia, durante a ocupação nazista no século XX, onde
eles simplesmente não podiam deixar hora alguma o bairro onde tradicionalmente moravam então cercado,
vigiado e denominado de gueto, em referência ao anterior.
Quanto à escravidão, é certo que, em Roma e na Grécia, os escravos circulavam normalmente pelas ruas da
cidade, pois disso dependiam muito de seus afazeres (tal como no Brasil ainda escravocrata).
Figura 7. 2700-2650 a.C.
Suméria (Irã) Baixo-relevo com
cena de banquete. (Museu do
Louvre)
O banquete é a situação de
sociabilidade mais documentada
nas primeiras cidades do Oriente
Médio.
Figura 8. 2600-2400 a.C. Ur
(Iraque) “O Jogo Real de Ur”.
(Museu Britânico)
Jogado a dois, é um antigo
exemplo de divertimento para ser
compartilhado com o outro.
34
densamente ocupadas, que o rei e sua corte gozavam do que ainda é o maior e mais
aristocrático dos luxos urbanos uma amplitude de espaços abertos a se estender além da
própria moradia, em jardins e lugares de prazer, algumas vezes constituindo todo um
quarteirão de vilas destinado aos nobres e altos funcionários.
38
Foi na chamada cidadela, espécie de cidade dentro da cidade, restrita ao rei e sua corte,
sede do poder político, militar e religioso, que surge pela primeira vez um espaço urbano
vasto e aberto, ajardinado, dedicado exclusivamente ao lazer. Levaria ainda muitos séculos
para que, em Roma, um espaço desse gênero fosse colocado a disposição da população em
geral. E uns dois milênios para que os habitantes da maioria das grandes cidades mundo
afora pudessem usufruir do mesmo bem que as aristocracias do oriente antigo.
38
MUMFORD, 1965, p.138
Figura 9. 645 a.C. Nineveh (Iraque) Baixo-relevo do Palácio de Assurbanípal II, conhecido como “A festa do
jardim”. (Museu Britânico)
Trata-se de uma cena de banquete onde podemos notar tanto a vegetação do jardim quanto as colunas de
uma edificação, provavelmente do próprio palácio a que pertencia.
35
CAPÍTULO II: O mundo grego
“As grandes pólis gregas, nos seus melhores dias, não
possuíam excedentes de bens: o que possuíam era um excesso
de tempo, isto é, lazer, livre e sem peias, não comprometido
[...] com o excessivo consumo materialístico, mas podendo ser
usado para a conversa, para a paixão sexual, para a reflexão
intelectual e para o deleite estético.”
39
O mundo grego, a época e a região em que se desenvolveu e predominou a cultura helênica,
abrange quase dois milênios e uma área tão vasta quanto as zonas costeiras dos mares
Mediterrâneo e Negro. Esses limites levam em conta o período de germinação do idioma
grego e a extensão xima de colonização grega. Incluiríamos, dessa forma, as culturas
minóica (em Creta, de 2000 a 1450 a.C.) e micênica (no continente, entre 1600 e 1200 a.C.),
importantes para a fomentação da cultura helênica.
Entretanto, o momento que mais nos interessa e pelo qual os gregos passaram a ser
lembrados em épocas posteriores, em regiões muito além de suas fronteiras começa por
volta de 800 a.C.. Essa data marca o fim da chamada Idade das Trevas, que cobre o declínio
do poder micênico e as invasões dóricas no século XI a.C.. É também a data em torno da qual
Homero teria composto a Ilíada e a Odisséia, que se tornariam base da educação grega. Por
volta de 750 a.C., se verifica a escrita na Ática. Significativo também é a realização dos
primeiros Jogos Olímpicos em 776 a.C. que, como veremos a seguir, representa uma nova
forma de intercâmbio entre estabelecimentos humanos.
Os três séculos seguintes (VIII, VII e VI a.C.) correspondem ao desenvolvimento
extremamente rápido da Grécia nos planos artístico, literário, filosófico e político,
culminando no Século de Ouro de Atenas, o século V a.C. local e período em que se
concentrou o maior número de grandes homens dessa cultura. Encontram-se circunscritos
apenas a Atenas do quinto século a.C.: Sócrates, Platão, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes,
Aristófanes, Tucídides, Xenofonte, Fídias.
39
MUMFORD, 1965, p.169
36
Em relação aos sistemas de governo, os gregos evoluíram bem cedo de uma monarquia,
onde nem sempre o rei chegou a ter caráter divino como nos impérios contemporâneos do
Oriente Médio, para uma aristocracia, seguido pela tirania e, finalmente, a variadas formas
de democracia. Como se sabe, em 1045 a.C., morre o último rei de Atenas. Em 508 a.C.,
Clístenes introduz o sistema democrático na cidade.
O desenvolvimento urbano grego difere também daquele observado no oriente. As futuras
cidades-estados gregas surgiram ao redor do que restou das antigas cidades micênicas: a
cidadela.
40
Os aldeões de uma região (um vale, uma zona costeira), no período ao qual nos
referimos como Idade das Trevas, podiam se refugiar dentro das muralhas da cidadela mais
próxima durante uma incursão bárbara ou mesmo durante o inverno. Aos poucos, foram se
estabelecendo definitivamente ao redor dela, na medida em que a cidadela voltava a ser o
centro político regional com a presença da aristocracia, até então dispersa no campo.
Por volta do ano 600 a.C., em diversas localidades, verifica-se a existência de uma segunda
muralha protegendo agora também as casas e demais construções. Nesse momento, com a
presença intramuros da maior parte da população regional e sua incontestável ascendência
sobre todo o território ao seu redor, estavam constituídas as cidades-estados, ou polis.
uma diferença fundamental entre essas cidades gregas e aquelas encontradas até então
na Mesopotâmia e parece estar relacionada diretamente a geografia das duas regiões.
Enquanto as cidades do oriente encontravam-se em vastas planícies férteis, as gregas
espremiam-se entre terrenos montanhosos e o mar Egeu a terra fértil limitava-se a alguns
vales.
Essa condição geográfica, se de um lado assegurava uma maior proteção contra possíveis
invasores, por outro, limitou severamente o aumento populacional das cidades gregas em
seu próprio território. A incapacidade de alimentar um grande número de habitantes, como
nas cidades mesopotâmicas, conduziu os gregos à fundação de colônias em terras costeiras
desabitadas para além do mar Egeu.
40
Se é que podemos chamar tais povoamentos de cidades. Gordon Childe acredita que não (CHILDE, 1961).
Talvez estivessem a meio caminho entre cidade e aldeia quando as invasões dóricas interromperam sua
evolução.
37
A estratégia da colonização assegurou dois fatores que, como analisaremos a seguir, são
responsáveis pela peculiaridade da cidade grega: o intercâmbio entre cidades e a
manutenção de uma escala de interação social mais próxima a da aldeia. Esses dois fatores
são importantes para a compreensão, não só da polis, mas das suas práticas e espaços de
sociabilidade.
Para tal compreensão, contaremos a partir desse capítulo com a contribuição do sociólogo
americano Richard Sennett, que se soma à de Mumford. Sennett começa sua narrativa na
Atenas da época de Péricles, o que acaba fazendo com que nosso foco também se concentre
mais ali. Um dos maiores benefícios que o sociólogo traz para nosso estudo é que, ao tratar
das relações entre a cidade material e o homem (a “pedra” e a “carne”), ele é mais atento às
situações sociais, às cenas urbanas, do que Mumford. E com isso, de agora em diante,
teremos quadros mais ricos das práticas de sociabilidade nas suas relações com os locais em
que ocorrem.
Olímpia, Delfos e Cós
Antes de penetrarmos nas cidades gregas, voltemos nossa atenção para uma inovação
helênica: o estabelecimento de uma rede social interurbana. Essa rede, motivada por
algumas cidades especiais, é apontada por Mumford como o catalisador das grandes
realizações dessa cultura.
“Para encontrar o segredo especial da cidade grega, é necessário procurar fora dos centros
maiores. E, se quisermos resumir em três palavras o que, de maneira suprema, distinguia a
cultura urbana grega da de suas predecessoras, poderíamos dizer simplesmente: Olímpia,
Delfos, Cós. Foi a contribuição desses centros que tão alto elevou o teto dos feitos
humanos.”
41
A prática da colonização favoreceu o intercâmbio, tanto comercial quanto cultural, entre
cidades gregas. Algumas delas tornaram-se “especializadas”, ou seja, passaram a
desempenhar alguma função específica, que atraía gregos de outras cidades. Olímpia, Delfos
e Cós desempenhavam, cada, um papel específico no mundo grego.
41
MUMFORD, 1965, pp.179,180
38
“O que o transporte e intercâmbios de bens tinha feito para estimular a vida quotidiana da
cidade mesopotâmica, as visitas pessoais a Olímpia, Delfos e Cós fizeram pelo
desenvolvimento político, literário e atlético dos gregos. A primeira foi a sede dos jogos
olímpicos; a segunda contava com o principal santuário e com o sagrado oráculo de Apolo, a
única grande influência unificadora cívica e religiosa que se poderia comparar à do Vaticano,
nos países católicos romanos; enquanto que a terceira foi um dos grandes lugares de
tratamento de saúde e sanatórios, onde um novo grupo de médicos, antecessores e
seguidores de Hipócrates (460-375 a.C.), procuravam, por meio de um entendimento racional
da natureza, curar a doença e promover a saúde.”
42
Para além de suas ”vocações” particulares, contudo, as três possuíam uma qualidade em
comum: a de congregar os gregos. É justamente por essa característica, mais do que por
suas especialidades em si, que Mumford lhes atribui tamanha importância.
As interações sociais, dentre as quais obviamente a sociabilidade, atingiram ali intensidade e
variedade inéditas até então:
“Os subprodutos espirituais dessa nova instituição [Mumford está falando aqui
especificamente dos jogos olímpicos] revelaram-se o importantes como seus benefícios para
a saúde, pois, aqui, os jovens e velhos se viram em constante companhia, não como pais e
filhos, ou como professores e estudantes, mas como parceiros na discussão, encaminhada
pelos membros mais velhos, e ainda mais estimulante por causa das diferenças de idade e da
fuga à autoridade puramente paternal.”
43
Se as cidades, todas elas desde o início, funcionavam como ponto de encontro
permanente de todos os habitantes de sua região (além dos grupos nômades por ofício:
mercadores e marinheiros), essas três cidades gregas representavam uma nova espécie de
ímã. Não apenas aqueles que estavam diretamente sobre seu campo de influência política
eram atraídos a elas, mas também membros independentes de outras polis. “Em Olímpia”
mas também em Cós e Delfos “as cidades, por assim dizer, se encontravam
pessoalmente.”
44
42
MUMFORD, 1965, p.180
43
MUMFORD, 1965, pp.184,185
44
MUMFORD, 1965, p.183
39
“Graças à influência destas instituições *os jogos olímpicos, o oráculo de Apolo e o sanatório
de Cós], os membros mais aventurosos da pólis entraram em contato direto com outras
cidades, outros povos, outros hábitos; e os participantes experimentavam aquele processo de
‘afastamento e retorno’ que tanto Patrick Geddes como Arnold Toynbee demonstraram
historicamente constituir um modo essencial do crescimento humano. Esses festivais e
congregações desafiavam o paroquialismo enraizado da pólis.
45
Se a polis grega tem, por sua escala reduzida e sua breve história, uma forte ligação com a
aldeia e compartilha até certo ponto daquela desconfiança que o aldeão tinha em relação ao
forasteiro essas instituições induziam, ao contrário, a um espírito cosmopolita. Nessas três
cidades, atenienses, tebanos e coríntios, por exemplo, se freqüentavam e, sendo todos
igualmente estrangeiros, reconheciam-se como gregos simplesmente.
“As pessoas que se aventuravam seguir, em pequenos grupos ou grandes correntes, para
Olímpia, Delfos e Cós, e suas cidades irmãs haviam-se temporariamente retirado do mundo
contido em si mesmo da pólis. Tornaram-se membros de uma unidade maior, que era
produzida não pelo isolamento e fechamento, mas por uma vívida atração. No ponto de
encontro, superavam os particularismos de sua cidade nativa e podiam divisar um horizonte
mais amplo.“
46
Essa “unidade maior” a que Mumford se refere é precisamente aquilo a que estamos
chamando de mundo grego. Olímpia, Delfos e Cós e suas “cidades-irmãs”, ou seja, aquelas
que desempenhavam funções semelhantes embora menos importantes contribuíram para
a uniformidade cultural grega dentro de um quadro político tão fragmentado. Aquilo que a
colonização fez em um primeiro momento, nos século VIII e VII a.C., ao estabelecer contato
entre cidadãos de polis independentes, essas instituições deram continuidade, de maneira
mais ampla e intensificada.
45
MUMFORD, 1965, p.180
46
MUMFORD, 1965, p.189
40
A ágora
Tratamos até o momento de cidades especiais que fomentavam a sociabilidade entre os
cidadãos de diversas polis gregas. Passaremos, agora, a olhar para o interior das cidades
gregas, começando pelo seu principal espaço de sociabilidade: a ágora. Sua importância
nesse quesito, entretanto, extrapola o mundo grego. Como veremos nos próximos capítulos,
ela funda uma linhagem de locais abertos, centros da vida urbana, presentes na maioria das
cidades ocidentais a partir de então, do fórum romano, às plazas, piazzas, grand-places
todos espaços preeminentes da sociabilidade nas respectivas culturas.
A origem da ágora, nos diz Mumford, remonta ao antigo ponto de encontro da aldeia, centro
de sua vida social:
“Semelhante lugar de encontro, possivelmente sob uma árvore sagrada ou junto de uma
fonte, deve ter existido por muito tempo na aldeia: uma área suficientemente grande para que
as danças ou jogos de aldeia pudessem ser ali realizados.”
47
Em outra passagem, o autor reforça essa genealogia:
“Que é a assembléia de magistrados, no Pritaneu ou Paço Municipal, senão a forma do antigo
Conselho de Anciãos, provavelmente a mais antiga das instituições políticas seculares? Que é a
praça formal do mercado (ágora) senão o mesmo conveniente espaço aberto onde os anciãos
se reuniam, suficientemente grande para que toda a aldeia ali se juntasse, onde os vizinhos,
podiam, vez por outra, espalhar para a troca seus produtos excedentes?”
48
Quando a aldeia grega se deslocou para a base da montanha nas proximidades da cidadela
micênica, estabeleceu-se então a oposição entre os dois principais espaços da vida da polis,
ainda embrionária: no alto, a cidadela ou acrópole, antiga fortaleza real convertida no “altivo
ponto de encontro dedicado ao sacrifício e à oração aos deuses”; na parte baixa, “o humilde
ponto de encontro das transações seculares”.
49
A ágora, também desde o início, se converte no centro da vida cívica da polis. Todas as
funções seculares têm ali seu principal espaço: a economia, a política, a justiça. Citando a
47
MUMFORD, 1965, p.197
48
MUMFORD, 1965, p.178
49
MUMFORD, 1965, p.196
41
Ilíada, portanto, século IX a.C., Mumford menciona uma reunião na ágora para um
julgamento, tal como seriam realizados nos centros de aldeia:
“A ágora é ali *na Ilíada+ um ‘local de assembléia’, aonde ‘a gente da cidade ia-se reunir’, e a
finalidade da reunião, nesse contexto, era decidir se um assassino pagara uma adequada multa
de sangue aos parentes do homem assassinado.”
50
Quanto à sua função mercantil, embora a ágora seja normalmente associada a ela, Mumford
esclarece que o mercado é conseqüência, não a causa, da reunião dos habitantes naquele
espaço.
“Se, na economia do quinto século, a ágora pode ser apropriadamente chamada uma praça de
mercado, sua função mais antiga e mais persistente foi a de ponto de encontro comunal.
Como de hábito, o mercado era subproduto do ajuntamento de consumidores, que tinham
outras razões pra se reunirem, além de fazerem negócios.”
51
No entanto, com a introdução da moeda no VII século a.C., a função econômica se intensifica
de tal modo, que em Atenas a assembléia dos cidadãos precisou trocar a ágora pelo Pnix, em
busca de espaço para suas atividades: “Ainda assim, mesmo no tempo de Sólon, a ágora de
Cerâmica foi demarcada deliberadamente para servir também como mercado, local de
assembléia e centro festivo”
52
. Em outras cidades, onde a atividade mercantil era menos
desenvolvida, a assembléia permaneceu convivendo com as demais funções tradicionais da
ágora.
Sejam quais forem as atividades que abrigue, Mumford afirma que “a ágora era, acima de
tudo, um lugar destinado à palavra e que, é importante registrar, “provavelmente, não
existe sequer um espaço urbano em que a troca de notícias e opiniões, pelo menos no
passado, não desempenhou um papel quase tão importante quanto a troca de
mercadorias.”
53
Como local destinado à palavra, à troca de notícias e opiniões, a ágora se configura,
também, como local de sociabilidade por excelência: “a ágora serviu como uma espécie de
50
MUMFORD, 1965, p.197
51
MUMFORD, 1965, p.197
52
MUMFORD, 1965, p.198
53
MUMFORD, 1965, p.197
42
clube informal onde, caso se esperasse o tempo suficiente, encontrar-se-iam os amigos e
companheiros.”
54
Um lugar aonde se vai esperando encontrar amigos e companheiros, sem que seja
necessária uma combinação prévia, descreve bem o que entendemos por espaço de
sociabilidade. A Rua Larga, os mercados, as tabernas, os templos provavelmente
desempenharam esse papel nas cidades do Oriente Médio, antes do surgimento da ágora. A
novidade dessa última talvez esteja no fato de sociabilidade e demais funções urbanas terem
seus pontos mais importantes combinados em um único lugar um verdadeiro centro
cívico.
55
Havia mesmo uma correspondência entre aqueles que tinham participação na democracia
ateniense homens livres, nascidos na polis e no dia-a-dia da ágora: “embora uma parte
dela fosse muitas vezes reservada às donas de casa, a ágora era preeminentemente um
recinto destinado aos homens.”
56
Ainda assim, o espaço urbano era menos excludente que
o sistema de governo, pois mulheres, estrangeiros e escravos, embora coadjuvantes,
participavam do seu cotidiano.
Sennet reforça, em sua descrição, o papel da conversação na ágora. E, destacando a
circulação dos corpos e das palavras por aquele espaço, revela o caráter dinâmico da
interação ocorrente ali.
“Na ágora, múltiplas atividades transcorriam simultaneamente, enquanto as pessoas se
movimentavam, conversando em pequenos grupos sobre diferentes assuntos ao mesmo
tempo.”
57
E ainda: “Transitando entre diversos grupos, podia-se tomar conhecimento do que
acontecia na cidade e trocar idéia sobre os mais variados assuntos.”
58
Quanto às características espaciais da ágora, estas variavam de uma cidade para outra. Não
havia uma forma consagrada a essa parte da cidade. Em cada caso, ela se desenvolveu de
acordo com as circunstâncias históricas e as condições topográficas.
54
MUMFORD, 1965, pp.198,199
55
Nas cidades dos impérios mesopotâmicos, o centro político-administrativo estava ainda na cidadela.
56
MUMFORD, 1965, p.198
57
SENNETT, 2006, p.47
58
SENNETT, 2006, p.48
43
“A antiga ágora tinha uma forma amorfa e irregular. Se era algumas vezes situada numa praça
aberta, numa cidade como Tera poderia ser um pouco mais que o alargamento da rua
principal, uma Rua Larga, [...]. Antes de mais nada, a ágora é um espaço aberto de propriedade
pública, que pode ser ocupado para finalidades públicas, mas não necessariamente fechado.
Muitas vezes, os edifícios adjacentes são lançados ao redor numa ordem irregular, aqui um
templo, ali uma estátua de um herói ou uma fonte; ou, talvez, numa fileira, um grupo de
oficina de artífices, abertas para o transeunte; enquanto que, no meio, as barracas ou cobertas
temporárias indicariam talvez o dia da feira, quando o camponês levava seu alho, suas
verduras ou azeitonas para a cidade e comprava um pote ou mandava consertar seus sapatos
pelo remendão.”
59
s
Chama a atenção nesse quadro, o caráter transformável da ágora, tanto em um curto espaço
de tempo (as barracas em dias de feira) quanto na longa duração (a justaposição de edifícios
conforme a necessidade, sem uma ordem pré-definida).
Mumford identifica nas formas das ágoras, na amplidão de seus espaços abertos e
descobertos, um gosto dos gregos pela vida ao ar livre e que mais tarde seria substituído
pelo gosto helenístico pelo luxo e conforto.
“As atividades cotidianas de uma cidade grega eram desempenhadas ao ar livre, muitas vezes
sob um sol radiante, algumas vezes sob as condições soturnas de um outono chuvoso ou de
um inverno enevascado. Esse amor entranhado à vida ao ar livre compensava algumas das
constrições dos aposentos domésticos de moradia, especialmente para os membros
masculinos da comunidade. O fechamento parcial surgiu como um dos novos luxos do período
helenístico: quando os cidadãos perderam sua liberdade, consolaram-se com os confortos
físicos, assim como os povos de nossa própria sociedade quase totalitária fazem hoje em
dia.”
60
Escrevendo especificamente sobre a ágora de Atenas, Sennett traça um quadro vivo do
lugar. O autor descreve uma série diversificada de atividades, dentre as quais, situações de
sociabilidade algumas explícitas, outras implícitas.
59
MUMFORD, 1965, p.198
60
MUMFORD, 1965, p.192
44
“Na ágora, criadas pelos que estavam em condições de participar, realizavam-se inúmeras e
diversificadas atividades concorrentes, num caos quase completo. Havia danças religiosas no
terreno descoberto e regular, chamado orkhestra; atividades financeiras transcorriam em
mesas postas ao sol, onde os banqueiros sentavam-se de frente para seus clientes. Os ritos
religiosos eram celebrados ao ar livre e em uma espécie de santuário, ou recinto sagrado,
chamado ‘Doze Deuses’, ao norte do lugar das danças. Os pórticos [ou stoas] eram palcos para
comer e negociar, tecer mexericos e cumprir obrigações religiosas; alinhadas do oeste em
direção ao norte da ágora, protegidas do vento pelas paredes dos fundos, e com suas
colunatas, à frente, abertas ao sol, elas eram freqüentadas mesmo durante o inverno.
Poikile, o pórtico ‘pintado’, tornou-se famoso; construído por volta de 460 a.C., ao norte da
ágora, voltava-se, através da Via das Panatenéias, para a Acrópole. John Camp assinalou que
‘ao contrário da maioria dos outros, ela não foi erguida com algum propósito particular, para
qualquer atividade especifica ou para uso de um único grupo de profissionais. Parece ter
servido às necessidades da massa da população, garantindo abrigo e ponto de encontro bem
perto do quadrado da praça’. Lá, as multidões deparavam com ‘engolidores de espada,
saltimbancos, pedintes, parasitas e peixeiros (...) e filósofos’. Mais tarde, nesse mesmo lugar,
Zeno fundaria o estoicismo; estranhamente, a suspensão do engajamento mundano advogado
por esse movimento filosófico teve origem num espaço de futilidade e diversão.”
61
Estão presentes nessa descrição da ágora a dança, o comércio, o rito religioso, o jogo, a
refeição, todas atividades que costumam acompanhar a sociabilidade. Sejam tais atividades
indutoras ou induzidas por ela, representam oportunidades para que se tenha o prazer da
presença e da interação.
A citação a seguir, em que Mumford comenta essa “função social do espaço aberto”, é uma
das contribuições mais valiosas para o presente trabalho. Nela, o autor: estabelece uma
genealogia entre alguns dos espaços urbanos mais importantes para a sociabilidade, da
Grécia antiga até, pelo menos, a Idade Moderna; apresenta exemplos de como a
sociabilidade se manifesta nesses lugares; e, finalmente, elenca a sociabilidade entre as
“funções urbanas importantes”.
61
SENNETT, 2006, p.48
45
“Essa função social do espaço aberto persistiu nos países latinos: plaza, campo, piazza, grand-
place, descendem diretamente da ágora; pois é no espaço aberto, com seus cafés e
restaurantes em volta, que os encontros, conversas, discussões face a face, bem como os
encontros fortuitos têm lugar, não formalizados, mesmo quando habituais. Até os próprios
esportes e funções dramáticas da ágora jamais desapareceram por completo: torneios de
cavalaria ainda eram realizados no mercado, ao fim da Idade Média, na Europa Setentrional, e
foram seguidos, no século XVII por exibições militares. Em Élida, a ágora era, na verdade,
chamado Hipódromo; e corridas de cavalo, semelhantes àquelas que outrora tiveram lugar ali,
ainda se realizam anualmente no famoso Pálio, de Siena, tendo seu ponto culminante na
piazza, diante do Paço Municipal. Como a ágora combinava tantas funções urbanas
importantes direito, governo, comércio, religião, sociabilidade quase não será de admirar,
como observa Wycherley, que continuasse a ganhar às expensas da acrópole, até que, no fim,
tornou-se o elemento mais vital e distintivo da cidade. Na verdade, na cidade helenística,
chegou mesmo a capturar, no novo templo ou no teatro de vizinhança, alguns dos antigos
ocupantes da acrópole.”
62
Não obstante esse crescimento contínuo da importância da ágora na cidade grega, Sennett
observa que a palavra, na época democrática de Atenas, deixa de ficar restrita a esse lugar,
espalhando-se pela cidade:
Em 510 a.C., no fim do reinado da tirania, quase todos os diálogos poderiam ser travados na
ágora. Por volta de 400 a.C., quando a democracia tinha se estabelecido em Atenas [...], os
espaços de falar se dispersaram pela cidade. [...] Tudo isso não significou a decadência da
ágora, que permaneceu movimentada com pórticos e templos. A assembléia dos cidadãos
continuava no mesmo lugar [...]; os tribunais transbordavam de pessoas; as ruas em torno
expandiam-se com o comércio. Ela deixou apenas de ser o espaço dominante da voz; sua
diversidade tornou-a incontrolável pela voz do poder.”
63
Veremos no capítulo seguinte que o fórum romano, originalmente semelhante à ágora,
também deixaria de ser o lugar preeminente dos diálogos na cidade após a transição de
República para Império. As conseqüências dessa mudança, no entanto, seriam
diametralmente opostas àquelas observadas na ágora bem como, de fato, suas causas.
62
MUMFORD, 1965, p.199
63
SENNETT, 2006, p.51
46
O ginásio
Enquanto a ágora era o espaço de sociabilidade da pólis tão universal quanto possível, o
ginásio funcionava como uma espécie de clube social restrito além, é claro, de local onde
se podia cultivar o corpo e o espírito. o havendo propriamente uma côrte e seu palácio,
aqueles que podiam, descendentes da antiga aristocracia, pagavam por um espaço de
sociabilidade exclusivo: “mesmo no quinto século, como Aristófanes notou em As Nuvens, os
fidalgos territoriais preferiam deixar-se ficar no ginásio, onde apenas encontrariam os da sua
espécie.”
64
A origem do ginásio, no entanto, es na prática de exercícios físicos, motivados pela
realização dos jogos olímpicos. Esse espaço especializado, nos conta Mumford, foi
desenvolvido para atividades que faziam parte da rotina do aldeão e ainda estavam
facilmente ao alcance dos primeiros citadinos. Contudo, com o crescimento da cidade os
espaços livres para prática de atividades físicas voluntárias escasseavam.
“Sob o ímpeto desses jogos [olímpicos], uma nova instituição se introduziu na cidade helênica,
e um novo lugar teve de ser encontrado para ela; a palestra ou campo de luta. Com o tempo,
veio ela a se transformar no ginásio, um campo de esporte fechado, muitas vezes edificado
num bosque de plátanos, destinado a todos tipos de competição ou exibição atlética. Tal
centro era equipado com banheiros, vestiários e mais tarde, salas de aula, pois, seguindo o
precedente olímpico, o espírito não era deixado apático e vazio pelo exercício físico por demais
violento. É ali o lugar onde os jovens e os velhos se vão juntar para encontros amistosos de
luta ou pugilato, para corridas, para lançamento do disco ou do dardo. De três desses bosques
sagrados, já existentes no sexto século, surgiram três escolas famosas de pensamento, o Liceu,
a Academia, e o Cinosargo.
Se o mercado tinha sido, talvez, um centro improvisado para tais atividades, antes do sexto
século, não sobrava lugar ali, quando a cidade começou a crescer. Assim encontramos o
ginásio nos arrabaldes da cidade, onde existiam terras sem construções, suficientes para as
atividades ao ar livre.”
65
64
MUMFORD, 1965, p.199
65
MUMFORD, 1965, p.183
47
É significativo que escolas filosóficas tenham se
desenvolvido nos três ginásios de Atenas citados.
Confirmam esses lugares como centros de conversação e de
intercâmbio de idéias. Além disso, nos permite pensar na
sociabilidade como um potencializador dessa interação
intelectual. A combinação de intensas e diversificadas
formas de sociabilidade e a presença de salas de aula e
biblioteca produz melhores resultados no desenvolvimento
mental do que apenas o aprendizado estrito ou o diálogo
fortuito.
De qualquer modo, nos ginásios atenienses, a contribuição
da sociabilidade no enriquecimento espiritual é bastante
claro. Mas isso que parece ser um caso excepcional não
seria apenas um caso mais explícito? Uma resposta
afirmativa a essa pergunta indicaria um papel importante da
sociabilidade no desenvolvimento intelectual e cultural das
sociedades. Deveremos ficar atentos, nos períodos
posteriores que trataremos adiante, a outros indícios que
sustentem essa hipótese.
Por ora, passaremos a uma imagem de um desses espaços
de sociabilidade nos arredores de Atenas, nas palavras de
Sennett:
“*...+ o mais importante [dos ginásios de Atenas] era a
Academia, que poucas gerações depois de Péricles abrigou
a escola de Platão. Em nosso passeio imaginário,
chegaríamos lá retornando ao Portão Triassiano, e depois
de atravessá-lo, seguindo pelas calçadas de uma avenida
arborizada, cerca de um quilômetro e meio a noroeste.
Localizada no antigo sítio sagrado, que na era democrática
foi transformado em ‘uma espécie de parque, distante da
Figura 10. 515 a.C. Atenas
(Grécia) Cerâmica. Cena em um
ginásio. (Museu do Louvre)
Figura 11. 450 a.C. Atenas
(Grécia) Cerâmica. Cena em um
ginásio. (Museu Hermitage)
48
cidade’, os estudantes tinham de fazer essa caminhada, diariamente. Nessa altura situava-se a
palestra, construção retangular sustentada por colunatas, com espaços para disputas
esportivas, salas de exercício e lazer. Alguns ginásios dispunham de prédios especialmente
destinados à escola de torneios. Aristófanes descreveu, em As Nuvens, uma imagem idílica dos
dias passados nos ginásios: numa moderna paráfrase, ‘toda essa atividade saudável de rapazes
em boa forma contrasta com a inteligente eloqüência dos pálidos, fracos e sofisticados
habitués da ágora’.”
66
Local de sociabilidade e aprendizado, freqüentado por um grupo restrito e privilegiado, o
ginásio ajudava a cultivar uma elite, mesmo em tempos democráticos. E os benefícios dessa
formação para a pólis eram reconhecidos:
“O ginásio ateniense ensinava que o corpo era parte de uma coletividade maior, a pólis, e que
pertencia à cidade. Um rapaz forte, obviamente, tornava-se um bom guerreiro; uma voz
educada garantia sua participação nos negócios públicos.”
67
Na frase de Aristófanes acima, não é perceptível através da ironia uma certa vaidade de
quem teve essa formação e um desdém pelos que não a tiveram?
66
SENNETT, 2006, p.41
67
SENNETT, 2006, p.42
Figura 12. 500-475 a.C. Atenas (Grécia) Cerâmica. Cena de um ginásio, com jovens praticando boxe e luta
livre. (Museu Britânico)
49
O symposium
O simpósio, ou banquete, era uma das principais práticas de sociabilidade entre os gregos
mais abastados, ao lado do ginásio. Contudo, enquanto esse último achava-se fora dos
muros da cidade e era freqüentado durante o dia, os banquetes eram realizados a noite e
dentro de residências urbanas e, por isso, ainda mais seletivos.
Nas casas ricas, havia um aposento destinado exclusivamente a esse tipo de reunião: o
andron. Além de comer e beber, ali discutiam política, filosofia, recitavam poesia, cantavam
e flertavam tudo aquilo que se poderia esperar de um espaço de sociabilidade.
“Nas residências de famílias mais ou menos prósperas, esse aposento, geralmente quadrado,
poderia ter três divãs encostados às paredes, e mais outro, no fundo do cômodo; ali, catorze
convivas poderiam reclinar-se, comendo e bebendo, acariciando prostitutas ou prostitutos.
Nesses banquetes, os homens relaxavam, absorvidos em diversões joviais, ‘fundamentalmente
opostas às (convenções decorosas) que se realizavam na pólis’. Conforme escreveu L. E. Rossi,
os simpósios eram ‘um espetáculo em si mesmo’: os homens embriagavam-se, flertavam,
conversavam contando vantagens, respeitando, todavia, uma convenção de comportamento
corporal predominante no exterior. Tal como nos ginásios, a competição fazia parte do
compromisso masculino do festim. Os homens recitavam poemas, contavam anedotas e
fanfarronices, de um repertório adrede preparado, para exibir suas habilidades durante o
banquete. Embora as reuniões transcorressem num clima de camaradagem, às vezes as
disputas degeneravam em violentas discussões.”
68
A maior parte da população masculina, contudo, não dispunha de um andron em suas
residências. Seria de se esperar que eles repetissem essa forma de sociabilidade em locais
públicos. Curiosamente, não temos passagens citando tabernas na Grécia entre nossos
autores, embora as tenhamos tanto em relação à Roma quanto à Mesopotâmia.
Por outro lado, Sennett mostra como os pórticos, ou arcadas, da ágora eram usados para
“comer e negociar, tecer mexericos”. Eram locais de almoço, em parte para negócios, em
parte para sociabilização, realizados enquanto os descendentes da aristocracia estavam nos
68
SENNETT, 2006, p.68/69
50
ginásios. Podemos supor que, à noite, a grande maioria dos cidadãos permanecesse em suas
casas para uma ceia privada.
Por se desenvolver, não no espaço urbano público, mas no interior de residências, o
banquete bem como seu equivalente mais popular não é tema abordado por Mumford. E
como a coleção sobre a vida privada de Duby e Ariès não começa senão em Roma,
estaremos privados de maiores informações a respeito dessa prática na Grécia, além da
descrição de Sennett acima.
No capítulo seguinte retornaremos ao banquete. Porém, as práticas do comissatio romano
não correspondem exatamente ao do symposium grego. Entre outras diferenças, ele deixará
de ser uma prática exclusivamente masculina as mulheres tomarão parte nos banquetes
lado a lado com os homens. Na Grécia, contudo, tendo elas muito pouca liberdade, será
necessário recorrer a eventos de caráter excepcional - como o festival da Adonia para que
possam se expressar e interagir mais livremente.
A adonia
As mulheres gregas as esposas e filhas dos cidadãos das polis participavam muito pouco
da vida pública. Elas passavam a maior parte de suas vidas confinadas em casa, primeiro as
de seus pais, depois as de seus maridos. Sua tarefa era administrar a casa: dar ordem aos
escravos, cuidar das provisões, fiar e tecer.
Suas aparições em blico se resumiam ao trajeto de suas casas a de amigas, para lhes
prestar visitas, e à participação nos festivais cívicos não está claro se a compra das
Figura 13. 480-470 a.C. Pesto (Itália) Afresco encontrado na “Tumba do Mergulhador”. Cena de um
symposium. (Museu de Pesto)
51
mercadorias necessárias a casa ficava a cargo delas.
Escravas e estrangeiras transitavam pelas ruas com maior
freqüência, pois não se aplicava a elas recomendações como
a de Péricles de que a maior glória de uma mulher está em
evitar comentário por parte dos homens, seja de crítica ou
elogio
69
.
A própria forma da casa grega acentuava o isolamento a que
estavam submetidas. Mesmo ali, havia setores vetados a
elas:
Na Grécia antiga, a residência possuía paredes altas e
poucas janelas; nas mais ricas, os cômodos eram dispostos
em torno de um pátio interno. Algo parecido com o clássico
sistema mulçumano de purdah permitia que as mulheres
circulassem pelo interior sem serem vistas por estranhos.
As casadas nunca apareciam no andron dependência
reservada aos convidados. Das festas em que se serviam
bebidas participavam as escravas, prostitutas e
estrangeiras. Esposas e filhas permaneciam nos aposentos
conhecidos como gunaikeion; nas casas mais prósperas,
elas ocupavam o segundo andar, ainda mais longe das
intrusões cotidianas da rua, que atingiam o pátio."
70
Quanto à presença delas nos festivais, isso se dava de duas
maneiras distintas: nos principais festivais da cidade, elas
tomavam parte (na Panathenaia, até desempenhavam
papel importante); na Tesmoforia e na Adonia, mais do
que isso, a organização e a celebração eram tarefas
femininas homens eram excluídos.
69
SENNETT, 2006, p.61
70
SENNETT, 2006, p.66
Figura 14. 550-530 a.C. Ática
(Grécia) Cerâmica. Cena de um
gineceu: mulheres tecendo.
(Museu Metropolitan)
Figura 15. 520 a.C. Ática
(Grécia) Cerâmica. Mulheres
reunidas junto a uma fonte.
(Museu Hermitage)
52
Sobre esses festivais, Sennett afirmava que enquanto “a Adonia era uma celebração de
desejos femininos insatisfeitos”
71
, a Tesmoforia “ligava-as umas às outras”
72
. Ao contrário do
que poderia se supor a partir desses comentários, é a Adonia que, em sua realização, mais se
aproximava de uma situação de sociabilidade efetiva. A Tesmoforia onde as ações seguiam
rituais rígidos afirmava laços de sociabilidade, mais do que situações de sociabilidade.
a Adonia, “um rito informal na sua organização, fruto de sentimentos espontâneos”
73
,
assegurava às mulheres oportunidades para se expressarem e estabelecerem as interações
que desejassem. Sennett mostra que o gênero de sociabilidade que os cidadãos gregos
praticavam no simpósio assemelhava-se ao que suas mulheres praticavam nesse festival
havia conversação, dança, bebida e “apetite sexual” envolvidos. No entanto, enquanto os
homens podiam usufruir do banquete com freqüência semanal (ou superior), a Adonia
acontecia uma vez ao ano.
O espaço em que a Adonia se realizava era bastante “peculiar e incomum”: os telhados das
casa atenienses. E era também sintomático: tendo lhes sido vetada a livre circulação pelo
espaço público e mesmo em parte das próprias residências, não restava às mulheres outro
lugar senão a cobertura das casas para a prática da sociabilidade. De certo modo, era como
estar “fora” da pólis sem, de fato, deixá-la.
Em cima dos telhados, durante a Adonia, também havia luxúria, mas as mulheres não
rivalizavam entre si nem faziam pilhérias. Sem a privacidade e exclusividade que marcavam o
simpósio, elas vagavam pela vizinhança, ouvindo vozes que as chamavam da escuridão,
trepando em escadas para subir nos telhados, indo ao encontro de estranhos. Na cidade
antiga, os tetos da casa estavam sempre vazios. Além disso, o festival ocorria à noite, em áreas
residenciais, com nenhuma iluminação. Nos espaços predominantes ágora, Acrópole, ginásio
e Pnice as pessoas se expunham à luz do dia. As poucas velas acesas em cima dos prédios,
durante a Adonia, limitavam a visibilidade de quem estivesse próximo, sentado, ou andando
pelas ruas; assim, lançava-se um manto de escuridão que encobria as alterações realizadas no
71
SENNETT, 2006, p.68
72
SENNETT, 2006, p.64
73
SENNETT, 2006, p.70
53
interior das casas, sobre as quais criava-se um território anônimo e amistoso, cheio de risos.
Num espaço assim, as mulheres recuperavam seus poderes de falar.
74
A Adonia é um exemplo antigo o primeiro a aparecer com detalhes em nossa bibliografia
de uma forma de sociabilidade desenvolvida por um grupo social oprimido. Mostra como é
possível subverter a noção de espaço público, extrapolando suas aparentes limitações, ao
adotar áreas “desperdiçadas” para a realização de práticas sociais não contempladas na
conformação da cidade. E aponta a recorrência à sociabilidade como uma maneira positiva
(diferente de uma lamentação inútil ou uma revolta suicida) de amenizar uma existência
pobre, limitada, destituída de muito que seu tempo teria a lhe proporcionar.
Sennett, tendo em mente mais os rituais do que especificamente a sociabilidade, faz uma
análise semelhante do papel da Tesmoforia e da Adonia na vida das mulheres gregas:
Esses dois antigos festivais ilustram uma verdade simples e amplamente aceita: rituais
cicatrizam. Modo dos oprimidos de ambos os sexos responderem à pouca importância que
lhes é atribuída e ao desprezo de que são alvo, em geral, eles tornam mais suportáveis as
dores de viver e morrer, constituindo-se na forma social que permite aos seres humanos
comportarem-se como agentes ativos, mais do que como vítimas passivas, diante da
exclusão.
75
74
SENNETT, 2006, p.69
75
SENNETT, 2006, p.72
Figura 16. 430-420 a.C. Ática (Grécia) Fragmentos de cerâmica. Cena do festival da Adonia. (Museu do
Louvre)
54
CAPÍTULO III: O Império Romano
“Os homens só são plenamente eles mesmos na cidade, e
uma cidade não se compõe de ruas familiares e multidões
calorosas ou anônimas, e sim de comodidades materiais
(commoda), como os banhos públicos, e edifícios que a
enalteçam no espírito de seus moradores e dos viajantes e a
tornem bem mais que um vulgar conjunto de habitações.”
76
Os romanos são considerados os sucessores dos gregos na árvore genealógica da civilização
ocidental. Em muitos campos ficaram aquém das realizações gregas (onde a inteligência
abstrata era importante: filosofia, matemática, artes plásticas, dramaturgia); em outros,
promoveram grandes avanços (onde uma inteligência de ordem mais prática era necessária:
engenharia, direito, organização militar). Combinando suas próprias aptidões com aquilo
que souberam aproveitar dos gregos, os romanos conquistaram um vasto e duradouro
império, relativamente homogêneo, que estabeleceu as bases para o futuro
desenvolvimento do mundo ocidental.
A herança que os romanos deixaram para as gerações posteriores, uma lembrança de um
passado comum a grande parte da Europa, é resultado direto do espírito prático e de um
amor, bem próprio, pela mundanalidade: seus anfiteatros, palácios, aquedutos, banhos,
basílicas, pontes, estradas, colunatas, etc. Se os gregos deixaram suas obras de arte, textos
filosóficos, peças teatrais, os romanos deixaram suas grandes construções suas
comodidades materiais de que fala Paul Veyne na epígrafe desse capítulo.
O historiador francês, especialista em antigüidade romana, abre a participação dos autores
da História da Vida Privada colocando em evidência a relação entre o espírito romano e a
conformação de suas cidades, bem como de suas práticas sociais. Provavelmente, se a
coleção organizada por Duby e Ariès partisse dos gregos e não apenas dos romanos,
poderíamos estabelecer comparações entre ambos que enriqueceriam mais nosso estudo.
Podemos, no entanto, tomando emprestada a metáfora de Sennett, dizer que para os gregos
76
VEYNE, 1990, p.181
55
a cidade era composta, sobretudo, do corpo dos cidadãos, enquanto para os romanos a
cidade era associada inequivocamente às pedras de suas edificações.
Essa diferença de mentalidade levou a muitas diferenças entre as cidades gregas e as
romanas e não menos às situações de sociabilidade, como veremos a seguir.
O fórum
A cidade de Roma teria sido constituída pela união de diversas tribos estabelecidas em
colinas próximas umas das outras. O símbolo dessa união foi a fundação de um mercado
comum que funcionava também como local de assembléia e de disputas atléticas e
gladiatórias: o fórum.
Parece haver assim uma diferença sutil entre a origem da ágora e do fórum. Vimos que a
ágora surgiu quando várias aldeias espalhadas se reuniram na base de uma cidadela,
formando uma aldeia maior onde reproduziram, em seu centro, o ponto de encontro
comunal. O fórum, por sua vez, teria sido criado deliberadamente como um espaço “inter-
tribal destinado a estimular a integração de aldeias que até então permaneciam
fisicamente separadas.
Inicialmente, o fórum se configurava como um espaço vazio amplo rodeado de alguns
santuários e edifícios públicos, com aberturas em seu perímetro, semelhante à ágora grega.
Desde cedo, porém, tais aberturas foram sendo fechadas na medida em que novos templos
e basílicas iam sendo acrescentados ao seu redor. O fórum adquiriu o caráter de um recinto
cercado por “majestosas colunatas” no centro do qual “oradores podiam dirigir-se a grandes
multidões”
77
.
“O velho Forum Romanum correspondia ao centro da cidade, assemelhando-se à ágora, do
tempo de Péricles, em virtude da mistura que ali havia de política, economia, religião e vida
social. No meio da multidão em movimento, grupos específicos ocupavam cada qual o seu
77
MUMFORD, 1965, p.290
56
reduto. [...] A diferença mais marcante em relação à ágora estava justamente no agrupamento
dessa multidão diversificada em um espaço retangular, enquadrado por outros prédios.”
78
Assim como o amor grego pela vida ao ar livre contribui para modelar a forma da ágora,
vasta e descoberta em sua quase totalidade, o amor romano pelo conforto fez com que o
fórum fosse dotado de um número de recintos, amplos e cobertos: as basílicas. Esses
enormes auditórios destinados à justiça tinham também como finalidade abrigar muitas das
atividades que se desenvolviam na área descoberta do fórum durante um mau tempo, como
negócios, assembléias públicas e situações típicas de sociabilidade “uma basílica nada mais
era que um salão de encontros”.
79
A mistura de atividades do fórum era comparável àquela da ágora. Contudo os dois lugares
provavelmente diferiam quanto ao número de pessoas que os utilizavam. Enquanto Atenas
em seu ápice, calcula-se, tenha abrigado 230 mil habitantes, Roma não parou de crescer até
atingir a marca de um milhão.
80
As constantes expansões do fórum atestam a necessidade
de absorver esse crescimento a ágora ateniense, por sua vez, jamais teve sua área
expandida, apesar das transformações sofridas.
“À medida que sucessivos imperadores faziam acréscimos diretos ao fórum, ou, como Júlio
César, fundavam um novo na vizinhança, multidões ainda maiores eram atraídas para o centro,
a fim de comprar, de fazer o culto, de trocar boatos, de tomar parte, como espectadores ou
atores, em negócios públicos ou em processos privados.”
81
Sennett afirma que o fórum romano correspondia ao centro da cidade. Mumford vai mais
além, colocando-o como verdadeiro centro de todo o império comandado por Roma.
“Ali no Forum Romanum, ficava o centro da vida pública, não apenas da própria Roma, mas do
Império embora, naturalmente, houvesse centros semelhantes mas subordinados, noutras
partes da cidade. Ali, entre a Colina Capitolina e o sítio do Palácio de Ouro de Nero ou do
posterior Coliseu, ficava o grande local de assembléia. Ali, vastas multidões iam reunir-se para
assistir à passagem dos seus chefes militares, em carros de combate, ostentando seus troféus
78
SENNETT, 2006, p.100
79
SENNETT, 2006, p.101
80
Valores apresentados por Mumford.
81
MUMFORD, 1965, p.291
57
ou seus cativos reais, presos às rodas de seus carros, passando sob arcos triunfais [...]. A escala
monumental e a ordem espacial ali predominavam, tendo apenas aquele toque adicional de
vida que os acidentes do tempo e da topografia pudessem introduzir.”
82
A monumentalidade, que o fórum foi adquirindo com o tempo, era condizente, o apenas
com a extensão e população da cidade de Roma, mas com sua condição de capital do maior
império que o mundo ocidental conhecera. Ela estava ausente na ágora até pelo menos o
período helenístico, mas, na polis grega, podia ser encontrada na acrópole, na época de
Péricles. Mumford escreve:
“Como o Fórum romano era, na realidade, uma combinação de ágora e acrópole, não
apresentava quaisquer características radicalmente novas que não se conseguiam identificar
em seu protótipo helenístico. O que se encontra, talvez, é uma concentração maior de
atividades variadas, um grau mais elevado de ordem formal, uma expansão e magnificação dos
temas já presentes noutros lugares, na cidade helenística.”
83
Entretanto, deve-se ressaltar, como o faz Sennett, que o desejo romano de ordem no fórum
expresso na disposição dos edifícios, mas também na regulamentação das práticas sociais
acaba por prejudicar justamente a concentração de atividades variadas a que Mumford se
refere acima. Sennett resume:
“Como nas cidades provincianas, a geometria do poder, no centro de Roma, imbui a exposição
das diversidades. À medida que regras foram se impondo no Forum Romanum, ao final do
período republicano, os mercadores, açougueiros, verdureiros e peixeiros mudaram-se para
bairros distantes, deixando a zona totalmente livre para os advogados e burocratas. [...]
Reduzida a diversidade, o antigo centro de Roma passou a ser um lugar dedicado ao
cerimonial.”
84
82
MUMFORD, 1965, pp.291,292
83
MUMFORD, 1965, p.292
84
SENNETT, 2006, p.103
58
As atividades que deixaram o fórum devem ter sido dirigido
aos “centros semelhantes mas subordinados, noutras partes
da cidade”, mencionados por Mumford. As situações de
sociabilidade, em sua maior parte, devem ter igualmente
abandonado o centro romano, espalhando-se por outros
bairros.
“Com a expulsão dos negócios, do sexo clandestino e de
outras atividades sem maiores compromissos, o velho
centro urbano assumiu um aspecto formal, dignificado,
porém sem vida.”
85
Na ágora ateniense, houve também um movimento de
dispersão pela cidade de práticas que inicialmente se
concentravam ali. Mas enquanto, no caso grego, os rituais
de exercício do poder público cederam lugar às pequenas
atividades dos cidadãos, em Roma ocorreu o oposto: o
fórum se esvaziou de tudo que não se relacionasse com o
funcionamento e o cerimonial do aparelho estatal.
Conseqüentemente, enquanto a ágora permaneceu como
lugar efervescente de sociabilidade, o Forum Romanum foi
palco para sua longa decadência e desparecimento.
Vias e colunatas
Ao final da República, as cidades conquistadas pelos
romanos no Oriente, sobretudo na ria e Ásia Menor
86
,
possuíam séculos de existência. Desse modo, embora os
governantes romanos realizassem modificações freqüentes,
essas cidades apresentavam conformações próprias
85
SENNETT, 2006, p.104
86
A Mesopotâmia foi conquistada tardiamente pelos romanos e sua ocupação durou pouco tempo.
Figura 17. Século II d.C. Roma
(Itália) Baixo-relevo. Imagem do
imperador romano Marco Aurélio
iniciando um sacrifício cerimonial.
(Museu dos Conservadores)
Ao fundo, vemos uma rara
representação de edifícios do
fórum de Roma.
59
bem como práticas sociais próprias.
Se em Roma e suas colônias, o centro da atividade urbana, como vimos, era o fórum, nessas
antigas cidades o espaço urbano principal tomava a forma de uma larga e comprida avenida.
A atividade comercial que a essa altura de nosso trabalho já podemos considerar um
indicador confiável da presença de uma interação social mais ampla tem nessas ruas seu
principal eixo.
“o amplo distrito de compras, estendendo-se indefinidamente no sentido do horizonte, com
sua extensão muitas vezes acentuada por colunatas, foi uma característica típica dessas
cidades [da ria e da Ásia Menor]. Toma mesmo o lugar do mercado aberto concentrado [...]
Essas avenidas de comércio existiam em Damasco [...] e Jerusalém; e podem mesmo remontar
à ‘Rua Larga’, algumas vezes traduzida como bulevar nos textos sumerianos.”
87
Mumford aponta, nessas cidades orientais, a influência da antiga Rua Larga, ao passo que,
na parte ocidental do império, era a ágora o paradigma de espaço urbano preeminente.
Curiosamente, muitas dessas cidades orientais foram fundadas por Alexandre, grande
propagador do helenismo, e seus oficiais e as que existiam anteriormente ao império
macedônico, foram por ele conquistadas e reformadas.
Não obstante toda a admiração de Alexandre pela cultura grega, o modelo urbano adotado
pelo imperador tinha forte influência das cidades mesopotâmicas, como atesta sua capital
Alexandria. Se de um lado, o traçado viário ortogonal remetia diretamente a cidades como
Mileto, a preponderância da larga avenida em detrimento do espaço retangular cercado
indica a origem híbrida do urbanismo alexandrino.
A adoção da Rua Larga, durante o helenismo, é explicável pela adoção do absolutismo como
regime político. Tal como os monarcas mesopotâmicos, Alexandre se beneficiava dessas
largas avenidas para desfiles militares onde afirmava seu poder: a Via Canópica em
Alexandria, com seus 30 metros de largura e seis quilômetros e meio de extensão, é o maior
exemplo desse gênero. O aspecto monumental dessas vias era acentuado ainda, como
ressaltou Mumford, pelo uso de colunata em toda sua extensão.
87
MUMFORD, 1965, p.278
60
A colunata, como vimos, foi introduzida na ágora grega, não para lhe conferir
monumentalidade, mas conforto e abrigo aos seus usuários tarefa que, obviamente,
continuou exercendo quando aplicada às avenidas. Com efeito, conforto e
monumentalidade eram preocupações centrais do urbanismo helenístico, bem como o luxo
e a ordem.
88
Os romanos, cujo espírito se aproximava do helenístico nessas questões, usaram a colunata
para exprimir e reforçar um pouco cada uma dessas tendências. Ela foi, por conseguinte,
amplamente utilizada no urbanismo romano, seja na sua capital, seja nas colônias. Em
Roma, “ao tempo de Augusto, conforme se calculou, a extensão total de ruas e colunatas
chegava a mais de 20 quilômetros
89
.
No capítulo anterior, já demonstramos, através de uma passagem de Sennett, como as
colunatas, ou stoas para usar o termo grego, favoreciam a sociabilidade na ágora. Veremos
agora como a sociabilidade se desenvolvia em uma avenida dotada de colunatas. A descrição
a seguir, reportada por Mumford, data de 360 d.C. e foi feita pelo filósofo sofista Libânio
sobre as avenidas de sua cidade natal, Antióquia:
“ ‘Quando se caminha ao longo delas encontra-se uma sucessão de casas privadas com
edifícios públicos distribuído entre elas a intervalos, aqui um templo, ali uma casa de banhos, a
distâncias tais que estejam ao alcance de cada quarteirão, e em cada caso a entrada é uma
88
Vale lembrar aqui o comentário de Mumford sobre a transformação no espírito grego a propósito da
dissolução da democracia na Grécia: “quando os cidadãos perderam sua liberdade, consolaram-se com os
confortos físicos” (MUMFORD, 1965, p.192).
89
MUMFORD, 1965, p.279
Figura 18. Século I d.C. Roma (Itália) Baixo-relevo. Cena de mercadores e clientes em uma loja, encerrada
por duas colunas. (Museu Uffizi)
61
colunata. Que significa isso e qual é a importância dessa prolongada descrição? Bem, parece-
me que o lado mais agradável e, sem dúvida, mais proveitoso da vida da cidade é a sociedade
e o contato humano, e que, por Zeus, é verdadeira uma cidade onde tais coisas são mais
freqüentemente encontradas. É bom falar e melhor que tudo dar conselhos, simpatizar com as
experiências de nossos amigos, compartilhando suas alegrias e tristezas e deles recebendo
igual simpatia e essas e outras bênçãos incontáveis decorrem dos encontros do homem com
seus semelhantes. O povo de outras cidades que não têm colunatas diante de suas casas é
mantido afastado pelo mau tempo; nominalmente, vive na mesma cidade mas, na verdade,
acham-se tão remotos os seus membros como se vivessem em diferentes cidades. ... Ao passo
que o povo das cidades perde o hábito da intimidade quanto mais apartado vive, entre nós,
por outro lado, o hábito da amizade é amadurecido pelo constante contato que aqui se
desenvolve tanto quanto ali diminui.’ ”
90
Esse depoimento nos é duplamente valioso: de um lado, Libânio descreve uma cidade em
seus aspectos físicos e suas práticas sociais com a autoridade de quem a vive; de outro,
demonstra a existência na Antigüidade de uma preocupação inequívoca com aquilo que
definimos aqui como sociabilidade. Libânio aponta mesmo para o elemento arquitetônico
que acredita favorecer o contato humano, as colunatas.
Em outra passagem, o filósofo identifica ainda um dispositivo tecnológico que permite aos
habitantes de Antióquia prolongar seus momentos de sociabilidade e lazer:
“Libânio completa o testemunho: gaba-se de que os cidadãos de Antióquia ‘sacudiam a tirania
do sono; aqui a lâmpada do sol é sucedida por outras lâmpadas, ultrapassando a iluminação
dos egípcios; entre nós, a noite é diferente do dia apenas pela espécie de iluminação. Os
ofícios prosseguem como antes; alguns dedicam-se às suas artes, enquanto outro se entregam
aos risos e cânticos’.”
91
90
MUMFORD, 1965, p.279
91
MUMFORD, 1965, p.279
62
Os banhos
Talvez tenha sido o banho público, não o fórum, o principal espaço de sociabilidade romano.
Ao menos durante o Império (ou seja, após 27 a.C.), isso parece ser verdadeiro: enquanto os
fóruns declinavam como centros sociais, as termas ganhavam cada vez mais prestígio.
Inicialmente, no tempo em que Roma era ainda uma “nação de duros agricultores”, o banho
era apenas “um tanque de água num lugar abrigado, onde o fazendeiro molhado de suor ia
limpar-se”
92
. Já no século II a.C., porém, o banho público fazia parte do cotidiano dos
romanos, com seu acesso tornado gratuito em 33 a.C..
Paul Veyne resume a ascensão dos banhos romanos da seguinte maneira: “a princípio
modestos edifícios funcionais em que se encontravam uma piscina fria, banheiras ordinárias
para banhos quentes e um banho de vapor, as ‘termas’ acabaram tornando-se
estabelecimentos de prazer; segundo uma expressão conhecida, são, como os anfiteatros, as
catedrais do paganismo.”
93
Nesse estágio, por volta do século I d.C., seu aspecto estava consolidado como “um vasto
recinto fechado, capaz de conter grande quantidade de pessoas, um salão monumental
contíguo a outro, com banhos quentes, banhos tépidos, banhos frios, salas para massagem e
salas para passar tempo e dividir os alimentos, anexo aos ginásios e campos de esportes,
para servir àqueles que procuravam exercícios ativos, e também bibliotecas, para os mais
reflexivos ou mais indolentes
94
. Mumford coloca esses edifícios entre os “feitos supremos
de Roma” na arquitetura, sendo rivalizado apenas pelo Panteão.
Um levantamento oficial da cidade de Roma, realizado entre 312 e 315 d.C., dá a medida da
importância que essa instituição adquiriu nessa sociedade: ali estavam contabilizados 11
banhos públicos e 926 banhos de propriedade particular. Segundo esses números, Mumford
apresenta estimativa de que 62.800 cidadãos podiam banhar-se simultaneamente.
92
MUMFORD, 1965, p.296
93
VEYNE, 1990, p.194
94
MUMFORD, 1965, p.296
63
Embora existissem banhos públicos na Grécia
95
provavelmente rudimentares como os
primeiros exemplares romanos o ginásio era o equivalente grego mais próximo, não pela
forma arquitetônica ou posição na cidade, mas pelas variadas opções de atividades
oferecidas aos seus usuários. A palavra ginásio, aliás, passou a designar os banhos
construídos pelos romanos em terras de língua grega. No entanto, enquanto o ginásio grego
original era um reduto aristocrático, o banho romano era realmente público: homens livres,
escravos, mulheres, crianças e estrangeiros podiam utilizá-lo e, de fato, o faziam.
Para transmitir uma idéia do gênero de lugar de sociabilidade que o banho romano era, os
autores das três obras estudadas recorrem a analogias com espaços públicos de suas
próprias épocas: Sennett o compara a um “moderno parque aquático”; Veyne, à “praia entre
nós”; e Mumford, ao “moderno shopping center americano”. Nenhuma delas, contudo, nos
passa uma noção exata, como a própria variedade entre elas demonstra. É melhor, portanto,
buscarmos nas descrições desses autores uma imagem mais completa da vida nesses locais.
É novamente de Sennett o quadro mais vivo a exibir a associação entre pessoas e as práticas
sociais de um lugar:
“Os banhos aconteciam à tarde, depois das visitas do dia e findos o expediente de trabalho. As
pessoas muito ricas, dispondo de suas próprias termas, freqüentavam os locais públicos
quando precisavam conquistar favores ou agradar a população em geral. O próprio Adriano
freqüentemente banhava-se em público expondo-se à imensa admiração com que seus súditos
o recompensavam. Os pobres circulavam por esses estabelecimentos até que se fechassem, ao
pôr-do-sol, buscando um refúgio contra a precariedade de suas habitações.
[...] Descansava-se como num moderno parque aquático, conversando, flertando-se ou apenas
se expondo. Sêneca desprezava a terma como um cenário de auto-exibição barulhenta,
reclamando que ‘os depiladores mantinham conversações constantes, chamando ainda mais
atenção por sua voz fina e estridente, não silenciando nunca, exceto quando faziam seu cliente
gritar, em vez deles próprios’; também o incomodavam ‘os gritos dos vendedores de salsicha e
95
A única menção feita por um de nossos autores à existência de banhos na Grécia é de Mumford: “Ainda que
os banhos privados tivessem sido comuns, o desejo grego de sociabilidade bastaria para fazer surgirem os
banhos públicos que existiam em Atenas.” (MUMFORD, 1965, p.217) Não dispondo, em seu tempo, de
confirmação arqueológica para banhos públicos em Atenas (embora a encontrasse em Olinto), Mumford se
baseia no “desejo grego de sociabilidade para tal suposição. Assim, ao mesmo tempo em que confirma os
banhos como locais de sociabilidade, demonstra não ter dúvidas quanto à vocação grega para a sociabilidade.
64
doceiros, além dos ambulantes, espalhando comida e toda a sorte de mercadorias’. Aliciadores
de rapazes e garotas prostitutas trabalhavam no mesmo local, o que contribui para criar um
clima que libertava as pessoas da severidade da vida exterior. Como dizia um ditado romano,
‘os banhos, vinho e mulheres corrompem nossos corpos, mas dão inspiração à vida’.”
96
As “visitas do dia” referidas por Sennett é uma menção à prática de clientelismo tão
impregnada na sociedade romana a ponto de transformar, nas palavras de Mumford, os
outrora “duros agricultores”, “abstêmios, laboriosos”, em “ociosos, parasitas”.
“A maioria das pessoas dependia de uma intrincada teia de relações de clientelismo com
indivíduos mais bem situados, através do qual o espólio era distribuído, mas que
freqüentemente se rompia durante os tremores do império. [...] O dia-a-dia da cidade estava
repleto de visitas, deferências, agrados pessoais misturados a favores, gorjetas e pequenos
negócios entre todos aqueles que permaneciam ligados por esses laços de mútua
dependência.”
97
Os banhos, ao lado dos espetáculos que trataremos a seguir, vinham justamente preencher
o vazio, na rotina e no espírito, de uma parcela enorme da população que vivia de favores do
Estado ou de patronos poderosos.
“O que começou como a necessidade de higiene de um agricultor passou a ser um ritual
cerimonioso para preencher o vazio de um dia de ócio. [...] o ritual do banho ocupava um
segmento desproporcionado do dia e dirigia uma quantidade demasiadamente grande de
energia humana para o serviço do corpo, tratado como um fim em si mesmo.”
98
Estar a serviço do corpo, o banho sempre esteve. O que se verificou foi uma mudança de
finalidade, de um mero hábito higiênico, para a busca do prazer estético a ponto de Veyne
afirmar, a certa altura, que “o banho não era *mais+ uma prática de higiene, e sim um prazer
complexo, como a praia entre nós”.
99
96
SENNETT, 2006, pp.122,123
97
SENNETT, 2006, p.88
98
MUMFORD, 1965, pp.296,297
99
VEYNE, 1990, p.193
65
A importância desse prazer para os romanos pode ser medida pela afirmação de Mumford
de que “o único deus supremo que realmente adoravam era o corpo” e “o banho público era
seu templo.”
100
Veyne nota, entretanto, a existência de contemporâneos que enxergavam nesse culto ao
corpo tal como Mumford, talvez um sinal de decadência moral: “os pensadores e os
cristãos recusavam tal prazer; não tinham a fraqueza de ser limpos e se banhavam uma
ou duas vezes por mês.”
101
E, para entendermos essa censura, não devemos nos esquecer da
“relação do banho com a vida sexual de Roma”, seja através da atuação ali de prostitutas,
seja simplesmente pelo estímulo provocado pela co-presença de homens e mulheres.
No entanto, tal como na “nossa praia”, o prazer romano em freqüentar os banhos não pode
ser reduzido a um cuidado com o próprio corpo ou a um desejo pelo corpo alheio. Não resta
dúvida de que ali tinha lugar uma sociabilidade legítima como demonstra Veyne com todas
as letras:
Desde a época helenística sua função é não apenas permitir a higiene, mas realizar um modo
de vida desejável a todos. [...] Nessa vida de praia artificial, o maior prazer era o de estar em
multidão, gritar, encontrar pessoas, escutar conversas, saber de casos curiosos que seriam
objeto de anedotas e exibir-se.
102
Os espetáculos
Ao lado dos banhos, os espetáculos se estabeleceram como a grande fonte de prazer e
alegria que a cidade romana oferecia aos seus habitantes. Se os banhos eram espaços de
sociabilidade e de mimos para com o corpo, o teatro, o circo e a arena eram espaços de
entretenimento e excitação dos instintos. E não seria muito exagero afirmar que a realização
de ambos tornou-se a finalidade maior de Roma, como cidade e como império, se
consideramos a importância que adquiriram e o esforço que demandavam. Ambos
acabaram ocupando a maior parcela da vida dos romanos.
100
MUMFORD, 1965, p.296
101
VEYNE, 1990, p.193
102
VEYNE, 1990, p.194
66
“Não estar presente ao espetáculo era ficar privado da
vida, da liberdade e da felicidade. [...] dezenas de milhares
de romanos se reuniam para assistir aos espetáculos,
alguns ali passando o dia inteiro.”
103
“Homens livres, escravos, mulheres, crianças, todo mundo
tinha acesso aos espetáculos e aos banhos, inclusive os
estrangeiros; vinha gente de longe para ver os gladiadores
numa cidade. A melhor parte da vida privada transcorria
em estabelecimentos públicos.”
104
Tal como os banhos, os espetáculos sofreram enormes
transformações ao longo do período republicano até
atingirem os ápices de popularidade e grandiosidade no
segundo século do Império. O teatro foi copiado dos gregos,
embora os romanos o tenham desenvolvido ao seu gosto:
“o antigo drama de estilo grego cedeu lugar a uma forma de
ópera que dependia de efeito espetaculares, e a ópera
evolui para a pantomima”
105
. As corridas de carros e os
combates entre gladiadores parecem ser de origem etrusca
(onde possuíam uma conotação religiosa) e, como tantos
outros elementos culturais, teriam sido assimilados pelos
romanos ao conquistarem esses vizinhos do norte.
“Os jogos gladiatórios foram introduzidos em Roma pela
primeira vez em 264 a.C., pelo cônsul Décimo Júnio Bruto,
por ocasião do enterro de seu pai; mas os romanos deram-
lhes um encaminhamento mais utilitário, empregando as
competições mortais como meios populares de castigo
público de criminosos a princípio, presumivelmente,
tanto um exemplo admonitório quanto uma diversão.
103
MUMFORD, 1965, pp.303, 304
104
VEYNE, 1990, p.193
105
MUMFORD, 1965, p.304
Figura 19. Século I d.C. Pompéia
(Itália) Mosaico. Cena de peça
teatral.
A imagem acima retrata uma
apresentação teatral romana
guardando, ainda, características
do teatro grego.
67
Muito em breve, infelizmente, a tortura do prisioneiro tornou-se a benvinda diversão do
espectador.”
106
À crescente violência que os espetáculos foram adquirindo, Mumford associa o referido
sistema de cliente-patrono, que teria transformado a plebe em verdadeiros parasitas sem
ocupação outra que estar presente ao anfiteatro ou ao circo. Desempregada pelo crescente
uso de trabalho escravo, a plebe dependia inteiramente da “generosidade” do Estado ou dos
patrícios romanos.
107
A própria classe dirigente de Roma dependia dos espólios e tributos que afluíam dos
vizinhos. Nas palavras de Mumford, os romanos passaram de “povo mais vigoroso da
Antigüidade” a “assaltantes e parasitas”, tendo sua capital se tornado um “gigantesco
estômago e boca, que sugava alimentos, despojos, obras de arte, escravos, religiões, deuses,
fragmentos de saber”.
108
Em Roma, com patrícios e plebeus vivendo às custas da exploração de um vasto império, a
produtividade declinava. O grande número de feriados atesta isso: 159 dias na época de
Cláudio (41-54 d.C.), dos quais 93 dedicados aos jogos públicos; em 354 d.C., o número de
feriados passava de 200, sendo 175 os dias de jogos. A diversão de massa tornou-se uma
106
MUMFORD, 1965, p.304
107
Veyne menciona uma prática bastante comum entre os romanos, o “evergetismo”. Era um misto de
generosidade ostentatória e obrigação pública, segundo a qual os ricos nomeados a cargos públicos
importantes patrocinavam espetáculos ou mesmo a construção de um edifício. Demonstra a indistinção entre
fundos públicos e patrimônios privados que havia, tanto em relação aos ganhos, quanto às despesas.
108
MUMFORD, 1965, p.295
Figura 20. Século II d.C. Nennig (Alemanha) Mosaico de uma vila romana. Combate entre gladiadores.
Figura 21. Século III d.C. Zliten (Líbia) Mosaico. Combates entre gladiadores. (Museu de Trípoli)
Como suas muitas representações atestam, os jogos gladiatórios eram populares de um extremo ao outro do
império.
68
necessidade para preencher a inutilidade da existência de parte considerável da população.
E a violência se tornou seu principal combustível.
“Na procura de sensações suficientemente agudas para encobrir momentânea-mente a
vacuidade e insignificância de sua existência parasitária, os romanos aderiram a prática de
promover corrida de carros, espetaculares batalhas navais travadas num lago artificial,
pantomimas teatrais nas quais o strip-tease e os atos sexuais mais mesquinhos eram
desempenhados em público. Todavia, as sensações precisam de constante incentivo, à medida
que as pessoas se tornam entediadas com elas: assim, o esforço todo alcançou o pináculo nos
espetáculos gladiatórios, onde os agentes desse regime aplicavam uma diabólica capacidade
inventiva à tortura humana e ao extermínio.”
109
É verdade que, tal como em relação aos banhos, os espetáculos tinham seus críticos
contemporâneos, como registra Veyne:
“No espetáculo, o prazer torna-se uma paixão cujo excesso os sábios reprovam, como também
o farão os cristãos: ‘o teatro é lascívia, o Circo é excitação, e a arena, crueldade’.”
110
Entretanto, trata-se novamente de uma minoria, de uma exceção. Caso ainda não estivesse
suficientemente demonstrado o quanto os espetáculos eram caros aos romanos, bastaria
observarmos o tamanho e o requinte dos edifícios que lhe eram dedicados. Para Mumford,
109
MUMFORD, 1965, p.301
110
VEYNE, 1990, p.195
Figura 22. Século I d.C. Roma (Itália) Baixo-relevo. Gladiadores enfrentando animais selvagens na arena.
(Museu das Termas)
Figura 23. Século III d.C. Roma (Itália) Baixo-relevo. Corrida de carros no Circo. (Museu do Vaticano)
Podemos notar, no canto superior direito, a excitação dos espectadores na tribuna do oficial responsável pela
organização dos jogos.
69
foi no anfiteatro “que o domínio romano dos problemas de engenharia atingiu, talvez, seu
ponto culminante”, tanto do ponto de vista estrutural, quanto de gerência do fluxo de
multidões.
O Coliseu, o maior dos anfiteatros, atendia a um público de 45.000 espectadores. Em muitas
cidades do império, embora menores, o anfiteatro era capaz de abrigar parte considerável
da população em Pompéia, por exemplo, sua capacidade era de 20.000 indivíduos, mais da
metade da população adulta. Os números do Circus Maximus em Roma são ainda mais
impressionantes: algo entre 150.000 e 380.000 espectadores, dependendo da fonte
(250.000 é o número mais citado).
Não obstante a paixão que os romanos lhes tinham, as horas e dias que lhes eram
dedicados, o número de pessoas que reuniam, corresponderiam os espetáculos a situações
de sociabilidade? Seriam seus edifícios o teatro, o circo, o anfiteatro lugares de
sociabilidade?
Para respondermos a essas perguntas, realmente não nos interessa saber o quanto os
romanos se excitavam vendo um gladiador esquartejar o outro, uma biga descarrilhada
chocar-se contra o muro, ou atores praticando sexo em pleno palco.
111
O que devemos
examinar é o modo como espectadores interagiam (se é que interagiam) e o sentimento que
essa interação lhes causava.
Eram lugares que congregavam multidões, que passavam o dia todo lá e, ao que tudo indica,
obtinham disso grande prazer. Mas o quanto desse prazer era provocado pela presença de
outros espectadores ao seu lado? Seria o prazer resultado inteiramente do que viam na
arena, na pista e no palco?
Aqui aparece uma questão chave para nosso trabalho que é distingüir entre sociabilidade e
entretenimento. Se na sociabilidade o prazer advém da interação com o outro, no
entretenimento o prazer está na contemplação do evento.
112
111
Tampouco cabe um julgamento moral de seus gostos.
112
Contemplação, essa, que é, necessariamente, superficial, imediata, irreflexiva pois o entretenimento
também difere de contemplação artística.
70
Que os espetáculos romanos eram entretenimento, não resta dúvida, como o próprio nome
denota. Se representam também situações de sociabilidade, podemos apenas especular,
que a bibliografia analisada não acrescenta muito a respeito.
É provável que, tal como a monumentalidade dos edifícios, a vibração da multidão fizesse
parte do espetáculo. Desse modo, a presença do outro, em certo sentido, faria parte do
prazer que o evento, em sua totalidade, proporcionava. Haveria assim uma interação entre
os espectadores, tanto quanto entre eles e os protagonistas do espetáculo (gladiadores,
atores, condutores). O limite entre sociabilidade e entretenimento ficaria, nesse caso,
menos nítido.
Situação semelhante ocorreria em um festival como a Panathenaia grega ou as procissões
medievais onde o povo participa ativamente, mesmo como espectador. Por outro lado,
não parece ser o caso, por exemplo, do teatro grego ou de um concerto de música barroca,
onde a platéia assiste passivamente. Mesmo uma parada militar poderia se configurar ou
não como uma situação de sociabilidade entre os habitantes de uma cidade, dependendo do
significado e da relação que eles mantivessem com o evento.
Mais significativo no caso dos espetáculos romanos parece ser o fato dos seus
freqüentadores passarem a maior parte do dia ali, um local aberto a todos, em uma atitude
alegre, dispostos a passar bons momentos. Anfiteatros, teatros e circos deviam ser lugares
onde se podia encontrar os amigos, fazer contatos, exibir-se e observar os outros, sobretudo
nos intervalos dos jogos e nos espaços de acesso.
Talvez a relação entre sociabilidade e entretenimento não difira muito daquela entre
sociabilidade e atividade comercial independentes, mas freqüentemente associadas, uma
estimulando a outra e ambas dividindo o mesmo espaço simultaneamente.
O banquete
O banquete romano guarda muitas semelhanças em relação ao grego, mas não está claro se
essas eram influências ou coincidências. uma tendência em se pensar a cultura romana
71
como mera continuidade da grega, o que despreza a herança etrusca “pura” e mesmo os
traços originais do povo romano.
113
De fato, existem muitas práticas sociais presentes em culturas distantes, seja por uma
origem tão antiga que remonte a ancestrais comuns, seja pelo surgimento independente a
antropologia mostra que os dois casos são plausíveis. O banquete é uma dessas práticas que
podemos encontrar em culturas aparentemente não conectadas. Estava, como vimos,
presente no Oriente Médio muito antes da formação do povo grego.
É possível que o banquete romano tenha sofrido influência grega a partir da anexação, em
168 a.C., da Macedônia e da Grécia por Roma. Por volta dessa época, as casas romanas mais
sofisticadas passaram a contar com um cômodo especial para as refeições, o triclinium, tal
como o andron grego. A prática social que se desenvolvia ali, entretanto, era diferente.
“Homens e mulheres comiam juntos; nos tempos mais antigos, eles se reclinavam nos divãs,
enquanto elas permaneciam de pé, mas na época de Adriano os casais se recostavam juntos
algo inconcebível no tempo de Péricles.”
114
113
Paul Veyne pensa a cultura romana dessa maneira. E usa isso como argumento para iniciar a História da Vida
Privada por Roma, não pelos gregos: “os gregos estão em Roma, são o essencial de Roma; o Império Romano é
a civilização helenística em mãos brutais [...] de um aparelho de Estado de origem italiana. Em Roma, a
civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião provieram quase inteiramente dos gregos ao longo
de meio milênio de aculturação; desde sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era menos
helenizada que outras cidades da Etrúria.” (VEYNE, 1990, p.14) Essa opinião categórica de Veyne é
constantemente refutada nas páginas de Mumford e Sennett, que não se esquivam de apontar as muitas
divergências entre gregos e romanos.
Figura 24. 180 a.C. Tessalônica (Grécia) Sarcófago. Casal reclinado em um divã, como num banquete.
(Museu do Louvre).
O tema do banquete aparece repetidamente em objetos funerários, como lembrança de uma vida afortunada.
72
Também em relação às camadas sociais, a prática do
banquete entre os romanos era muito mais abrangente. Se
na Grécia não tínhamos nenhum testemunho sobre a
realização de banquetes fora residências mais ricas, em
Roma isso não nos falta: “até os pobres (hoipenêtes) ou
seja, nove décimos da população tinham suas noites de
festim”
115
. A razão disso era a mesma que permitia aos
romanos freqüentarem os banhos e os espetáculos
gratuitamente: “Lembramos que nas cidades o evergetismo
dava à população oportunidades de comer e beber à larga
escala.”
116
Tal como os banhos e os espetáculos, o banquete indicava a
paixão dos romanos pela festividade e pelos prazeres
mundanos mais elementares: “mais de uma lousa sepulcral
dá testemunho, com suas frases orgulhosas, do comer e
beber glutônico do ocupante do túmulo, como principal
desejo seu de ser piedosamente relembrado pelos seus
igualmente dignos sucessores”
117
.
O banquete celebrava o prazer de comer e beber
fartamente, mas também o prazer de fazê-lo na companhia
de outros:
“Era importante encontrar-se todos juntos; importante
reunir-se para se banquetear, o que ritualizava a
sociabilidade e o prazer de beber; importante reunir-se em
114
SENNETT, 2006, p.105
115
VEYNE, 1990, p.181
116
VEYNE, 1990, p.187
117
MUMFORD, 1965, p.296
Figura 25. Século I d.C. Pompéia
(Itália) Afresco. Cena de um
banquete.
Figura 26. Século I d.C. - Pompéia
(Itália) Afresco da “Casa dos
Amantes Castos”. Cena de um
banquete.
73
data estabelecida ou em ocasiões raras, o que criava uma espera e solenizava o prazer.”
118
Além de ritualizar a sociabilidade, o banquete tornava-a mais seletiva: “caída a noite”, os
imperadores deixavam suas obrigações públicas e “jantavam com seus convidados, que
eram senadores e simples cidadãos cuja companhia apreciavam”
119
. O mesmo acontecia
hierarquia abaixo.
120
Estar entre aqueles que se deseja estar era uma das vantagens do
banquete. O fato de decorrer em ambiente privado torna isso possível.
Por outro lado, faz parte também do seu apelo congregar, reunir em caráter excepcional
aqueles que de outro modo encontrar-se-iam separados. Não se banqueteia apenas com a
família imediata ou os amigos do cotidiano, pois o número de participantes é uma medida
do sucesso do festim. Além dos seus pares, um romano rico convidava para um banquete
também seus clientes. Um cidadão com menos posses, convidaria para uma celebração
especial tantos de sua rede social quanto pudesse bancar.
Quanto ao ritual do banquete, Veyne o descreve da seguinte forma:
“O banquete constituía uma arte. A etiqueta parece menos elaborada e rigorosa que a nossa.
Em compensação, jantava-se com clientes e amigos de toda a posição, tanto que a ordem de
precedência era rigorosamente observada na distribuição dos leitos e ao redor da mesa onde
ficavam os pratos. Não havia verdadeiro festim sem leito, mesmo entre os pobres: só se comia
sentado nas refeições comuns. [...] a melhor parte do jantar, a mais longa, é aquela em que se
bebe; durante a primeira metade do jantar nada se faz senão comer sem beber; a segunda
parte, em que se bebe sem comer, constitui o banquete propriamente dito (comissatio). É
mais que um festim: uma pequena festa, onde cada qual deve manter seu personagem. Em
sinal de festa, os convivas portam chapéus de flores ou ‘coroas’ e usam perfumes, *...+: os
banquetes eram untuosos e brilhantes, assim como as noites de amor.
O banquete era muito mais que um banquete e esperavam-se considerações gerais, temas
elevados, recapitulações de atos pessoais; se o dono da casa tem um filósofo doméstico ou um
preceptor dos filhos, ordena-lhe que tome a palavra; os interlúdios musicais (com danças e
118
VEYNE, 1990, p.187
119
VEYNE, 1990, p.181
120
Os imperadores viviam no Palatino, como os nobres viviam em suas mansões com seus serviçais, sem
corte. Alias, os banquetes eram, em Roma, as situações que mais se aproximavam à corte. Veyne lembra que
“o banquete tinha tanta importância como a vida dos salões no século XVIII e mesmo como a corte no Ancien
Régime.” (VEYNE, 1990, p.181)
74
cantos), executados por profissionais contratados para a ocasião, podem dar mais vida à festa.
O banquete constitui uma manifestação social equivalente ao prazer de beber ou até maior
e por isso inspirou um gênero literário, o do ‘banquete’, em que os homens de cultura,
filósofos ou eruditos (grammatici), abordam temas elevados. Quando a sala de festim oferece
deste modo mais o espetáculo de um salão que de um refeitório, o ideal do banquete se
realiza e a confusão com um festejo popular já não é possível. ‘Beber’ designava os prazeres da
mundanalidade, da cultura, e às vezes os encantos da amizade; pensadores e poetas podiam
também filosofar sobre o vinho.”
121
A segunda parte desse trecho lembra bastante o symposium grego, com a mistura de
bebida, música, erudição e amizade. Nessa passagem, Veyne faz, pela primeira vez, uma
distinção entre essa forma ideal de banquete (com as características do simpósio) e o festejo
popular. O que sugere que na versão dos pobres o prazer de comer tinha,
compreensivelmente, maior importância.
E onde seriam realizados os banquetes populares, uma vez que suas casas não tinham a
mínima condição de comportar tais eventos? Em alguns casos, nas confrarias das quais
trataremos adiante. Nossa bibliografia não nos fornece outras informações a respeito.
Podemos apenas supor que a maioria das celebrações teria lugar nos espaços de uso
coletivo dos bairros populares (ruas, largos, pátios), tal como acontecia ainda no século XX
em cidades italianas. Talvez os campos gramados, parques imperiais e jardins de origem
privada abertos ao público fossem usados para esse fim.
A taberna
Os banquetes eram práticas sociais comuns entre os ricos e excepcionais entre os pobres.
Em seu cotidiano, o povo conhecia com menos ostentação o prazer de estar junto; havia a
taberna e os ‘colégios’, ou confrarias.”
122
Enquanto as confrarias eram associações que
buscavam deliberadamente o contato entre seus membros, as tabernas funcionavam como
pontos de encontro informais. Locais onde podia beber e comer (ou simplesmente usar o
121
VEYNE, 1990, pp.183, 184
122
VEYNE, 1990, p.184 Estranhamente, Veyne não considera aqui os banhos, talvez por ter tratado deles
anteriormente. Ainda assim, eram espaços de reunião abertos diariamente e acessíveis a todos.
75
forno), eram freqüentados tanto pela vizinhança popular
quanto por estrangeiros mas não pelas classes altas.
“Como hoje em dia num país muçulmano, as pessoas
encontravam seus semelhantes no barbeiro, nas termas e
na taberna. Em Pompéia as tabernas (cauponae) são muito
numerosas; ali se encontravam viajantes de passagem,
pede-se para aquecer as refeições (nem todos os pobres
têm fogão em casa) e cortejam-se as taberneiras enfeitadas
com jóias rutilantes; os desafios são escritos nas paredes.
Essas práticas populares eram de mau tom, e um notável
perdia a reputação se o viam jantando numa taberna; não
era sério viver na rua (citava-se um filósofo de antanho tão
desregrado que nunca saía sem dinheiro; queria poder
comprar todo o prazer que lhe aparecesse). O poder
imperial moveu uma guerrinha de quatro séculos às
tabernas para impedir que servissem também de
restaurante (thermopolium), pois era mais moral comer na
própria casa.”
123
As tabernas são os típicos espaços de sociabilidade de
constituição informal e dispersos pela cidade, que fazem
parte do dia-a-dia de grande parte da população nas
culturas em que estão presentes. Elas representavam na
escala de “uma unidade de vizinhança”, por assim dizer,
aquilo que o fórum (ou a ágora ou a Rua Larga)
representava na escala da cidade: aquele local onde se
podia marcar uma encontro ou, caso se esperasse tempo
suficiente, esbarrar com amigos e conhecidos.
123
VEYNE, 1990, pp.184,185
Figura 27. Século I d.C. Pompéia
(Itália) Afresco da Casa do
Padeiro”. Vendedor atendendo
clientes.
Figura 28. Pompéia (Itália)
Ruínas de um thermopolium.
Século I d.C. Pompéia (Ilia)
Pintura em parede de uma
taverna na Via di Mercurio.
Homens jogando dado.
76
As confrarias
As confrarias, ou colégios, eram, antes de tudo, associações que visavam a sociabilidade.
Novamente, temos aqui um precedente grego, ainda que tardio:
“Quando a vida comum da pólis *...+ tornava-se mais vazia [...] uma nova vida brotou, privada,
oculta, em clubes, sociedades de amigos, grupos de sepultamento, fraternidades: acima de
tudo, naquelas congregações secretas que se reuniram para o culto de Baco, deus do trigo e
do vinho, e Orfeu, deus da Lira, ou, ainda mais tarde, da deusa frígia mais antiga, do sexo e da
fertilidade, a própria Grande Mãe, remanescente dos dias matriarcais. [...] Com a pólis em
dissolução, esses clubes formavam, por assim dizer, uma pólis privada, que servia às
necessidades dos estrangeiros excluídos e, algumas vezes, mesmo dos escravos.”
124
Quanto ao culto de Baco, deixaremos isso para a seção seguinte, pois em Roma ele tinha
características bem particulares. O que as confrarias tiveram realmente como equivalente na
Grécia ao menos em seu estágio inicial foram as sociedades de amigos, os grupos de
sepultamento, as fraternidades. Tal como seus similares gregos, as confrarias romanas, até
certo momento, funcionaram clandestinamente.
“Na verdade, embora os grupos que se reuniam regularmente, especialmente em segredo,
fossem encarados com fria suspeição por parte das autoridades, tornou-se necessário, no
segundo século de nossa era, licenciar colégios como instituições sociais que incentivavam a
obrigação de dar um enterro decente a seus membros falecidos e de prover um banquete
mensal para os que viviam.”
125
A suspeição das autoridades romanas não eram de todo infundadas. Veyne fala das
confrarias como “equivalentes antigos dos bares onde falamos de política”, acrescentando a
ressalva: “os bares aonde vamos apenas pra beber com os amigos são, porém, mais
numerosos“
126
. Na maioria dos casos, a política devia ser um assunto incidental nas
confrarias.
124
MUMFORD, 1965, pp.265,266
125
MUMFORD, 1965, p.311
126
VEYNE, 1990, p.186
77
Não resta dúvida de quais as motivações dessas sociedades: "O banquete e a sepultura,
escreve São Cipriano, são os dois objetivos das confrarias”
127
. Ambos, banquete e funeral,
são práticas que associamos anteriormente à sociabilidade. Nas confrarias, elas parecem
se prestar novamente a promover o encontro festivo, prazeroso, entre seus participantes o
sepultamento não menos que o festim: porque não se despedir desse mundo do modo
como sempre se desejou ter estado nele?
Se a forma que a sociabilidade tomava nas confrarias não era novidade, a criação de
instituições com essa finalidade era. Em geral, as confrarias se formavam sob algum
pretexto, profissional ou religioso, mas “às vezes o gosto pelo banquete não se disfarça sob
nenhum pretexto, e em Fano, no Adriático, existia uma confraria ‘de bons vivants que
jantam juntos’”
128
o que explicita sua verdadeira vocação.
Sobre a constituição das confrarias e sua função fomentadora de sociabilidade, a seguinte
passagem de Veyne é relevante:
“Em princípio, os ‘colégios’ eram livres associações privadas as quais aderiam, se o desejassem,
homens livres e escravos que exerciam a mesma profissão ou queriam venerar o mesmo deus.
Praticamente em todas as cidades havia um ou vários colégios: aqui se formara uma
associação de tecelões e outra de adoradores de Hércules; na cidade vizinha havia uma
confraria de ferreiros e uma associação de comerciantes de roupas adoradores de Mercúrio.
Pois cada uma dessas confrarias estabelecia numa cidade: compunha-se visivelmente de
pessoas do local e que se conheciam. E essas pessoas eram exclusivamente homens: nada de
mulheres nos colégios.
Porque esse fenômeno associativo? Que necessidades sentiam os carpinteiros de tal cidade,
ou os adoradores de Hércules de outra para se reunir dessa forma? Uma coisa é certa: os
colégios em nada se parecem com os sindicatos modernos e nem chegam a ser sociedades
operárias de ajuda mútua; são um lugar onde os homens se encontram, sem as mulheres, e
encontram também um pouco de calor humano. Se o colégio for religioso, o deus a venerar
será pretexto para um banquete; se for profissional, pessoas do mesmo ofício se encontrarão
com prazer, pois o remendão gosta de freqüentar o remendão e o carpinteiro tem o que dizer
127
VEYNE, 1990, p.186
128
VEYNE, 1990, p.186
78
ao carpinteiro. Cada novo membro pagava pelo direito de ingresso; somados os recursos do
evergetismo, essas rendas da confraria permitiam-lhe banquetear-se alegremente e garantir a
seus membros funerais decentes, seguidos também de um banquete.”
129
Como se vê, as confrarias estabeleciam um novo espaço vetado às mulheres. Se elas eram
compostas de pessoas do mesmo local e que se conheciam, é de se supor que alguns se
freqüentassem fora dali ou antes de sua criação. As confrarias lhes davam a oportunidade de
fazê-lo sem a presença feminina, que em Roma (diferentemente da Grécia) estava por toda
parte, inclusive nos banquetes.
havíamos estudado casos, como o do ginásio grego, em que o desejo de sociabilidade
estava vinculado ao convívio com pessoas da mesma classe social. O que o symposium
sugeria e as confrarias confirmam é que existe também uma necessidade de se estar apenas
com pessoas do mesmo sexo sem que haja qualquer conotação homossexual nisso. Ambas
as constatações apontam para uma tese que as confrarias “temáticas” reforçam: de que
na sociabilidade um gosto pelo convívio com seu semelhante e quanto mais
compartilhável for a experiência, melhor.
Contra essa tese pesam os espaços de sociabilidade que têm justamente como característica
a diversidade social: a Rua Larga, o fórum, a ágora. Talvez as pessoas tenham necessidade
exatamente dessas opções: de um lado, um espaço central, agregador, heterogêneo, que as
façam sentir parte de uma associação maior, de uma cidade, um império; de outro, um
espaço mais circunscrito, selecionando outros com os quais têm realmente coisas em
comum, de modo a ser possível uma interação menos superficial.
As confrarias viriam suprir essa segunda necessidade. Mumford associa seu surgimento ao
crescimento descontrolado das cidades, à exigüidade dos espaços de moradia e à
conseqüente quebra dos vínculos familiares (ao menos de um circulo familiar estendido) e
suas práticas. A presença comum de escravos, desgarrados por infortúnios mais do que
qualquer outra camada da população, corrobora essa hipótese.
“Os escravos tiveram permissão para ingressar nesses colégios: assim, proporcionavam um
laço de camaradagem que superava o anonimato e a anomia, isto é, o desenraizamento e a
129
VEYNE, 1990, p.185
79
solidão espiritual da cidade supercrescida. Aqueles grupos, por assim dizer, conservavam os
antigos cerimoniais de família, cuja simples possibilidade havia sido eliminada pelo
supercongestionamento da habitação.”
130
De todas as práticas de sociabilidade essencialmente urbanas estudadas até aqui, a confraria
é a primeira a corresponder a uma compensação pelas perdas, bem observadas por
Mumford, que o modo de vida da cidade impunha a seus habitantes.
131
Até então,
verificamos a configuração de situações que tiravam partido do que melhor a cidade podia
oferecer: contato ininterrupto, diversidade social, instalações amplas e confortáveis.
O fato da sociabilidade estar nas duas pontas ora celebrando a existência (urbana), ora
tornando-a suportável só mostra o quanto sua necessidade tem de universal.
O culto a Baco
Baco, deus romano do vinho, tinha como equivalente grego Dionísio, “deus do vinho que
alivia as preocupações e inspira o homem para a música e a poesia”
132
. Acredita-se que sua
origem seja trácia e sua incorporação pela religião grega acrescentou a ela elementos de
êxtase e misticismo. À época de Homero era uma divindade menor. No século VI a.C., com a
disseminação do orfismo, esteve em evidência na Grécia, mas já no século seguinte seu culto
passou a ser desdenhado como crendice popular.
Inicialmente, tal como figurava no culto órfico, Dionísio estava associado à purificação, à
libertação da culpa, ao renascimento ele mesmo “um deus sofredor que morre e
ressuscita”
133
. Em Roma, nos diz Veyne, Dionísio, ou melhor, Baco não carrega qualquer
conotação trágica. Ao contrário, representa apenas os aspectos agradáveis da vida, motivo
pelo qual é tão popular.
Nenhuma imagem se difundiu tanto, nem mesmo a de Vênus. Suas imagens adequavam-se a
todo lugar, pois evocava apenas idéias agradáveis. Deus do prazer e da sociabilidade, Baco está
130
MUMFORD, 1965, p.311
131
Festivais como a Adonia representavam compensações sim, mas contra uma forma de opressão que nada
tinha a ver com o modo de vida urbano.
132
HARVEY, 1987, p.169
133
HARVEY, 1987, p.169
80
sempre acompanhado do cortejo de seus familiares
bêbados e suas admiradoras extasiadas: os amáveis
excessos de todo tipo lhe são prometidos; deus benfazejo,
civilizador, que acalma os espíritos.
134
O culto a Baco, ou bacchanalia, parece ter entrado em voga
na Itália no início do século II a.C., mas seus excessos
levaram a sua proibição por um decreto do Senado em 186
a.C. Ao que tudo indica, o culto prosseguiu na
clandestinidade tal como as confrarias ou os
thermopolium mas a adoração, não sofrendo qualquer
proibição, se disseminou cada vez mais.
E a persistência de sua popularidade tem menos a ver com
fervor religioso do que com um símbolo daquilo que se
desejava que a vida provesse: “as imagens báquicas
certamente não tinham sentido religioso místico, mas
também não eram decorativas: afirmavam a importância da
sociabilidade e do prazer e conferiam-lhe uma garantia
sobrenatural; era uma ideologia, uma afirmação de
princípio
135
.
Baco representa Veyne o afirma mais de uma vez o
gosto romano pelo prazer e pela sociabilidade. Coloca,
literalmente, a sociabilidade em um pedestal ou altar. E, o
que é relevante para nosso trabalho, a associa
definitivamente a um dos prazeres da vida.
Esse amor romano pelos prazeres mundanos era tão
enraizado que se manifestava em todas as esferas da
sociedade. Para o povo, Baco era um deus do qual não se
134
VEYNE, 1990, p.188
135
VEYNE, 1990, p.188
Figura 29. 200 a.C. Grécia
Máscara de bronze. Dionísio ou
Baco. (Museu Britânico)
81
duvidava: pretexto suficiente para que se formassem
confrarias populares de adoradores de Baco, onde a
principal preocupação (atestam-no seus regulamentos)
consistia em beber a essa amável divindade
136
.
Mesmo entre a classe culta, propensa a herdar o
preconceito dos eruditos gregos contra essa “crendice
popular”, formavam-se certas seitas, pequenos grupos
isolados onde se encontravam lado a lado devoção refinada,
gosto pela mundanalidade e, em alguns membros, autêntico
fervor religioso”. Havia nessas seitas báquicas ritos
secretos, uma iniciação (ou ‘mistérios’) e uma hierarquia da
qual as mulheres não estavam excluídas
137
,
diferentemente do que acontecia nas confrarias em geral.
Com a ascensão do cristianismo, as cerimônias religiosas
adquiriram um caráter bem diferente, como veremos a
seguir. Os excessos deviam ser evitados. A realização do
prazer o faria mais parte das celebrações. Na nova
religião, a celebração da sociabilidade cedeu lugar a
celebração da solidariedade. Com isso, a festa e a devoção
separaram-se. Nas seitas ou confrarias, ambas podiam
coexistir porque o paganismo era uma religião de festas: o
culto o passava de uma festa, com a qual os deuses se
divertiam pois nela encontravam o mesmo prazer que os
homens”
138
.
Curiosamente, o cristianismo estava mais próximo do mito
bárbaro originário de Dionísio, onde a culpa e a punição
136
VEYNE, 1990, p.188. Veyne mostra ainda como, mesmo após a cristianização da Europa, de algum modo
essa celebração permaneceu: “na Idade Média veneravam-se não menos alegremente determinados santos”.
137
VEYNE, 1990, p.188
138
VEYNE, 1990, p.189
Figura 30. culo IV d.C.
Antióquia (Turquia) Mosaico.
Dionísio, bêbado, apoiado a um
sátiro. (Museu de Antióquia)
Figura 31. Século I d.C. Pompéia
(Itália) Afresco da “Vila dos
Mistérios”. Rito de iniciação de
uma mulher nos mistérios
dionisíacos.
82
eram temas centrais, do que com a imagem tardia de Dionísio e Baco. O fato desse
personagem ter se convertido em deus do prazer e da sociabilidade, sobretudo na Itália, diz
muito a respeito da cultura do povo que o recebeu dessa maneira.
Veyne, igualmente, vê a necessidade de ressaltar o papel da sociabilidade entre os romanos,
que encontraram no culto de Baco uma maneira de induzí-la.
É excepcionalmente raro a picareta de arqueólogos cavar no local autêntico de uma dessas
seitas de mistérios (isso aconteceu uma ou duas vezes); e no entanto devia-se dizer algo a
respeito, pois o fenômeno das seitas, populares ou o, constitui outro traço dessa época, e o
fervor nelas bebia nada menos que a sociabilidade.
139
A sociabilidade na ascensão do cristianismo
O cristianismo, inicialmente uma seita dentro do judaísmo (daqueles que viam em Jesus
Cristo o messias), começou a se disseminar entre comunidades judaicas dentro do império.
Logo, porém, sobretudo pelo trabalho missionário do grego Paulo, um judeu helenizado, o
cristianismo passou a cativar adeptos também entre pagãos. Essa estratégia de Paulo se, de
um lado, afastou ainda mais a nascente religião de suas origens judaicas e aumentou em
muito a aversão por parte de judeus ortodoxos , por outro, foi fundamental para seu
enorme crescimento até se tornar a religião oficial do império três séculos depois.
140
139
VEYNE, 1990, pp.188,189
140
Esse parágrafo e os três seguintes se baseiam no livro The early Church (CHADWICK, 1976).
Figura 32. Século I d.C. Roma (Itália) Afresco. Dança báquica. (Villa Pamfili)
83
Em alguns aspectos, sobretudo para quem o via de fora, o cristianismo em sua fase inicial se
assemelhava a uma confraria: reuniões reservadas em locais privados, ritos de iniciação, o
banquete e a preocupação com o sepultamento. As semelhanças, contudo, eram superficiais
as reuniões privadas expressavam menos uma vontade de isolamento do que a
necessidade de proteção devido às perseguições que, de tempos em tempos, sofriam. O
próprio banquete tinha um caráter completamente diferente: enquanto as confrarias tinham
por objetivo primeiro a festa, os cristãos se reuniam para ler sobre a vida de Jesus e
apreender suas lições e a refeição em conjunto reproduzia uma importante passagem de sua
vida, a última ceia com os apóstolos.
As perseguições por parte das autoridades romanas (instigadas ou não por lideranças
judaicas) determinaram a forma inicial da sociabilidade cristã. Do lado romano, a
desconfiança em relação aos cristãos se dava, em parte, por incompreensão e preconceito
a expressão “amor universal” remetia a orgias e incesto, enquanto a eucaristia, a atos de
canibalismo. A repressão, no entanto, estava vinculada a situações locais, à atitude de
governadores de províncias.
A acusação mais grave, e freqüentemente verdadeira, que pesava contra os cristãos era a
recusa de celebrar o culto ao imperador. Os romanos eram, em geral, bastante tolerantes
quanto às diversas religiões existentes em seus domínios, a única exceção sendo a imposição
de se cultuar o imperador que funcionava mais como um juramento de lealdade. Os
judeus, graças a um histórico de fortes rebeliões na Palestina, obtiveram um status especial
que lhes dispensava dessa obrigatoriedade. Na medida em que os cristãos passavam a ser
vistos como uma religião autônoma, esse direito não lhes foi estendido. E a recusa de
prestar o culto ao imperador levou o cristianismo a ser visto como movimento subversivo.
Nesse ambiente, teve início o desenvolvimento de uma nova forma de sociabilidade, fruto
em parte da situação política da época, mas também de uma nova visão de mundo
propriamente cristã. Sennett escreve:
Desde uma geração após a morte de Jesus e até meados do século II, a casa serviu à
comunidade cristã; depois, os fiéis transferiram o culto para outros tipos de edificações. Sob
Adriano [117-138 d.C.], o cristianismo manteve-se confinado ao espaço doméstico; entre
84
quatro paredes, os crentes sentiam-se protegidos contra as agressões do Estado que proibia a
prática pública da religião. [...]
Ao abrigo do teto, sua jornada de começava na sala de jantar. Na pequena célula cristã
dividia-se a refeição, e durante elas os crentes conversavam, rezavam e liam cartas de
correligionários em locais diferentes do Império. [...] segundo as palavras de um moderno
historiador da Igreja, ‘essas refeições domésticas eram fundamentais, (porque) o próprio ato
de comer sinalizava as relações sociais. A extensão da hospitalidade fazia transparecer o
apreço à comunidade’. *...+ O encontro nas refeições era chamado de ágape, palavra que pode
ser traduzida por “celebração de companheiros” koionia, segundo a blia. [...] Essas
reuniões apontavam para a quebra do modelo pagão de sociabilidade, tal como foi descrita
por Petrônio, no Satyricon.
141
Por todo o Império, ao que parece, o poder de sedução dos ideais cristãos, bem como o
caráter comunitário da igreja em formação, pesou mais do que o temor das perseguições.
Aliás, a visão e os relatos dos martírios chamavam a atenção para a força da nova fé,
despertando curiosidade em pessoas de diferentes camadas sociais. Assim, o cristianismo foi
penetrando nas famílias romanas, inclusive o que foi fundamental para a virada em sua
história nas famílias aristocráticas.
Em 303 d.C., o cristianismo era grande o suficiente para que o imperador Diocleciano
empreendesse uma grande campanha de perseguição aos cristãos (devido, ainda, à recusa
de se cultuar o imperador). Duas décadas mais tarde, o próprio imperador Constantino havia
se convertido ao cristianismo, favorecendo a religião de diversas maneiras. Em 380 d.C., o
imperador Teodósio proibiu o culto aos antigos deuses pagãos.
141
SENNETT, 2006, pp.119,120
Figura 33 e Figura 34. Século II d.C. Roma (Itália) Cenas de banquete cristão, ou ágape. (Catacumbas dos
Santos Marcelino e Pedro)
85
O novo estatuto do cristianismo operou a mudança na forma de sociabilidade a que Sennett
se referiu, passando da “sala de jantar” para a basílica. Como vimos anteriormente, as
basílicas comportavam uma vasta audiência. E quando, enfim, os cristãos puderam reunir-se
publicamente, foi necessário encontrar um local amplo.
Peter Brown descreve essa nova forma de sociabilidade, decorrente do novo status da
religião cristã:
“Apesar da nova importância do clero, apesar da cuidadosa segregação de homens e mulheres
o mais das vezes apartados de um lado e outro das grandes naves da basílica , apesar da
consumada habilidade dos poderosos para destacarem-se da massa obscura dos inferiores
com suas espetaculares vestes domingueiras bordadas com cenas dos Evangelhos, as basílicas
cristãs permanecem uma reunião de homens e mulheres e pessoas de todas as classes,
igualmente expostos, sob a tribuna do bispo na abside, ao olhar inquisidor de Deus.”
142
A basílica passou a ser o principal palco da sociabilidade, não apenas cristã, mas romana, na
medida em que ser romano passava a significar ser cristão. O fórum, tendo perdido a sua
preeminência do ponto de vista social, se enfraquecia também no âmbito político.
Os potentes [aristocratas, ligados ao imperador, portanto ao poder] aparecem no foro com
menor freqüência. Tendem a dominar ‘sua’ cidade de seus palácios opulentos e de suas villas,
um pouco afastadas do centro tradicional da vida pública. Palácios e villas não são lugares de
retiro, mas, antes, o foro que se tornou privado. As peças reservadas dos apartamentos das
mulheres m ao lado grandes salas para recepções de cerimônia, e muitas vezes possuem
numa extremidade uma abside para os pequenos banquetes. Assembléias solenes do grupo de
iniciados que dirige a cidade, essas recepções diferem muito dos magníficos banquetes cívicos
abertos sem discriminação aos clientes, aos libertos, aos amigos e concidadãos, como aqueles
em cujo decorrer Plínio, o Jovem, três séculos antes, prodigalizava aos amigos e libertos suas
reservas de vinho medíocre.
143
Na conjunção entre cristianismo e sociedade romana, muitos dos costumes cristãos dos
tempos iniciais permaneceram, como as reuniões reservadas, seletivas. Um depoimento de
142
BROWN, 1990, p.265
143
BROWN, 1990, p.264
86
João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla na virada do século V para VI, citado por
Brown, alude às transformações na cidade de Antióquia nesse período.
Não é mais uma cidade helenística; a conduta de seus cidadãos dirigentes já não é sutilmente
moldada pelos códigos derivados da vida em seus antigos centros públicos. Os antigos espaços
públicos são ignorados, o teatro e o foro estão ausentes. Vias estreitas e tortuosas levam da
basílica cristã, que abriga as grandes reuniões religiosas, a pátios retirados; ali, numa
intimidade protegida, o pai crente transmite aos filhos a arte religiosa do temor a Deus. Trata-
se de um esboço da futura cidade islâmica.
144
Brown, entretanto, contrapõe essa visão de Crisóstomo a outros registros de seus
contemporâneos leigos. O historiador escreve:
Mas, claro, o esboço [de Cristótomo] é enganador. Se passarmos dos sermões de João
Crisóstomo aos epitáfios gregos e latinos de seus contemporâneos, apreendemos uma visão
muito diferente do cristão citadino. Até o fim ele permaneceu o homem do espaço público. Se
não é mais ‘apaixonado por sua cidade’, é ‘apaixonado pelo povo de Deus’ ou ‘apaixonado
pelos pobres’. *...+ O leigo cristão continuou sendo um homem de outrora, cujo orgulho
permanece visível nos antigos adjetivos que lhe elogiam as relações com seus iguais.”
145
A divergência entre os dois testemunhos não significa que um deles esteja errado. O que
parece haver aqui é a sobreposição de dois modos de ser que marcariam épocas distintas:
um modo nascente, cristão, mais introspectivo, que se tornaria predominante na Idade
Média, sobretudo no Ocidente (ainda que viesse a ser assimilado pelo islamismo no
Oriente); outro, clássico (romano, helenístico), citadino, em declínio, reminiscente dos
grandes dias do império ainda pagão, mas que sobreviveu entre os patrícios convertidos.
Essas duas passagens, de fato, servem para mostrar a transição entre o mundo clássico e o
medieval. De certo modo, o mundo clássico sobreviveu de duas maneiras diferentes. No
Ocidente, deixou vestígios materiais e imateriais. No Oriente, prosseguiu vivamente, ainda
que cristianizado, dentro das fronteiras do Império Bizantino. Este perduraria por todo o
período medieval, embora sua influência sobre a Europa tenha declinado lentamente. Do
ponto de vista do mundo ocidental, essa continuação do Império Romano no oriente passou
144
BROWN, 1990, p.283
145
BROWN, 1990, p.283
87
a representar isso uma influência externa. O destino entre a porção leste do Mediterrâneo
(como sua costa africana) separou-se do restante da Europa.
Cem anos após a proibição dos cultos pagãos, a máquina administrativa romana já estava
ausente da porção ocidental do império, sobrevivendo apenas na Grécia, Ásia Menor, Síria e
Egito. O vasto império romano, suficientemente ordenado, uniforme e pacífico para que,
durante alguns séculos, permitisse a disseminação do cristianismo, havia desmoronado, não
mais lhe servindo de suporte. Em todo o lado ocidental do antigo império, os cristãos
estavam jogados à própria sorte, contra hordas de invasores bárbaros, pagãos.
No entanto, o cristianismo estava suficientemente enraizado em alguns centros para que
dali partissem novas ondas missionárias, convertendo pagãos por entre as ruínas do império,
apesar da dificuldade da diferença entre as línguas. O sucesso dessas campanhas elevou
novamente o cristianismo ao centro do poder europeu. Aliás, foi o cristianismo que
estabeleceu uma nova ordem, uma nova unidade na Europa, como outrora fizera o Império
Romano.
88
CAPÍTULO IV: A formação de uma sociedade rural na Alta Idade Média
“... o eclipse da cidade diante do campo. Antes a alegria de
viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos;
agora se refugia nas casas e nas cabanas.”
146
Os cincos primeiros séculos da Idade Média na Europa foram marcados por uma grande
instabilidade em todos os campos da vida humana. Foi um período em que a cidade perdeu
por completo sua preeminência como centro vital, seguindo tendência iniciada ainda sob
Roma.
Com o desmantelamento do Império Romano do Ocidente, povos germânicos, em ondas
sucessivas, penetraram em seu antigo território, ora em campanhas militares, ora em
migrações pacíficas. Mal haviam os germanos se assentado e convertido ao cristianismo, a
Europa foi submetida novamente a hordas invasoras: árabes ao sul, vikings a noroeste e
húngaros ao leste. Somente após a diminuição dessas novas pressões externas, por volta do
ano 1000, a Europa cristã (que por essa data excluiria as conquistas árabes no sul, mas
incluiria os recém convertidos estados vikings no norte) conheceria um período de relativa
estabilidade e uniformidade sob o sistema feudal.
O período que trataremos a seguir, a Alta Idade Média, é de reorganização da Europa até
então romanizada e cristianizada em bases rurais e sob influências de culturas
estrangeiras.
Determinar o peso que a cultura de um povo invasor tem sobre o povo dominado ou sobre a
sociedade nascente dessa fusão é certamente uma dificuldade. Não é possível, por exemplo,
quantificar o percentual de germânicos na população total das antigas províncias ocidentais
romanas ao fim de suas incursões.
A propósito do impacto demográfico das invasões bárbaras na Europa romana, há uma
metáfora bastante esclarecedora do historiador J. M. Roberts: as invasões surgiriam como
marés violentas inundando todo o continente; ao cessarem, porém, deixariam pequenas
146
ROUCHE, 1990, p.403
89
poças pelo território. Apesar do grande vigor inicial, das incursões ficaram apenas grupos de
guerreiros invasores no lugar dos senhores romanos. Os recém chegados ocuparam o topo
da pirâmide social; mas daí até sua base, ela era composta de nativos romanizados e
romanos. Não houve uma substituição da população em geral nas regiões que caíram sob
domínio bárbaro os germânicos (e seus sucessores), embora dominantes, tiveram de
conviver com os antigos habitantes.
Essa imagem nos ajuda a pensar as mudanças na Europa, no início da era medieval. A
princípio, poderia nos levar a minimizar a influência de novas culturas e deduzir que essas
mudanças seriam, antes, resultado das alterações no contexto político-administrativo
(supressão da maquina administrativa romana e o conseqüente colapso das redes de poder,
proteção, econômica).
Entretanto, um ponto importante a ser observado: os invasores germânicos (tal como os
nórdicos, eslavos e magiares em um segundo momento) não possuíam uma cultura urbana,
habitando aldeias ou estabelecimentos rurais isolados em suas terras de origem. Talvez por
isso, ao conquistarem as antigas províncias romanas, seus deres não estabeleceram os
centros de controle nas cidades, mas no campo.
O “eclipse da cidade diante do campo” foi resultado da decadência do Império Romano, em
um primeiro momento. Mas sua persistência durante alguns séculos foi facilitada pela
ausência de uma cultura urbana da nova classe dominante.
Figura 35. 860880 d.C. Corte carolíngia (França) Placa com baixo-relevo em marfim. A ceia em Emaús.
(Museu Metropolitan)
Para o artista carolíngio, a fortaleza é o local seguro para a ceia, longe dos perigos da estrada.
90
Diante disso, a “alegria de viver” não poderia mesmo ter permanecido nas ruas e grandes
monumentos urbanos, vazios e abandonados. Foi necessário buscar refúgio em casas e
cabanas. Aos poucos, porém, ressurgiram, fora das cidades, espaços onde era possível
reviver o prazer da vida em comum.
A questão que colocamos no presente capítulo é: como os homens encontraram meios para
a prática da sociabilidade quando as cidades os locais onde ela melhor havia se
desenvolvido não mais se apresentavam como alternativa?
Veremos que a resposta aponta para duas instituições o castelo e o mosteiro gerados na
Alta Idade Média, mas cuja existência se prolongou até muitos séculos após o fim do
período. Aliás, dada a eficiência dessas instituições em abrigar a vida social, foi ao redor
delas e sob sua proteção que muitas cidades haveriam de surgir mais adiante, na Baixa Idade
Média.
Castelos e cortesãos
No colapso do Império Romano, a fome, doenças e as incursões bárbaras dizimaram parte
considerável da população européia. As cidades foram particularmente atingidas por esses
males e muitos sobreviventes procuraram refúgio no campo. Somou-se a isso a introdução
de uma cultura não-urbana: foi no meio rural, também, que a nova classe dominante de
origem germânica se estabeleceu.
Em meio ao ocaso urbano do início da Idade Média, algumas das funções da cidade
passaram a ser desempenhadas por novos equipamentos, dispersos pelo campo. Mumford
mostra, por exemplo, que no momento em que as cidades deixaram de ser centros de
governo, justiça e controle militar, as fortalezas da nova aristocracia assumiram esses papéis.
“A vida desceu a um nível de subsistência; por nada mais que a segurança do corpo, o homem
dava-se por satisfeito em se colocar sob a proteção de algum chefe bárbaro; aliás, quando se
desintegrou a cidade, suas várias partes originais reapareceram separadamente; assim, o
91
antigo chefe, com seu bando, em sua fortaleza, governando uma rede de aldeias, torna a
aparecer.”
147
A introdução da prática da vassalagem, a que se refere Mumford, representou uma nova
hierarquia de poder. Significou também a fragmentação política do continente e reforçou a
transferência dos centros de governo das cidades para o campo, para as propriedades
senhoriais fortificadas.
148
Essas novas fortalezas rurais serviram como um dos primeiros locais onde a sociabilidade
encontrou abrigo durante a Alta Idade Média. Eram, afinal, um dos poucos locais seguros
para a vida coletiva. E a prática da vassalagem agiu ali como indutor e conformador dessa
nova sociabilidade.
Michel Rouche explica que “primitivamente, a vassalagem equivalia a um viveiro de amigos,
um falanstério de jovens dedicados ao velho [senior: ancião, senhor] ou uma tropa de
147
MUMFORD, 1965, p.326. Mumford retoma aqui, com relação à Idade Média, sua hipótese para a formação
da cidade antiga, de que o acampamento guerreiro, embrião da cidadela, passa a dominar as aldeias próximas
tornando-se centro de controle de toda a região e pólo de atração populacional: “Fenômenos urbanos sob os
quais se pode especular com cautelosa reserva, na Palestina e Mesopotâmia, podem agora ser
documentados in situ, em toda a Europa.”
148
A estrutura de poder no Império Romano mantinha os cidadãos de todas as províncias relativamente ligados
ao imperador, tendo como intermediários os administradores públicos, escolhidos entre cidadãos ricos e
influentes (os notáveis). Na nova estrutura de poder, mais complexa, a prática da vassalagem formava uma
rede de deveres e direitos recíprocos em forma de pirâmide. E os elos uniam cada membro inferior àquele
imediatamente acima, não ao topo da pirâmide, ao rei daí a existência de muitas fortalezas, centros de
poder, dispersos pelo território.
Figura 36. 1066-1082 d.C. Bayeux (França) Trecho de tapeçaria. Cena de banquete presidido pelo então
duque normando Guilherme e sua corte. (Museu de Bayeux)
92
choque”
149
. no século VIII, “quando esses grupos de guerreiros domésticos alimentados
sob o mesmo teto” contribuíram para que os carolíngios tomassem o poder, a vassalagem
adquiriu novo estatuto
150
.
Os antigos guerreiros abandonaram o nomadismo das incursões
militares, ganhando títulos de nobreza e pedaços de terra. A tropa de choque se converteu,
desse modo, em corte.
Ao descrever um “viveiro de amigos”, todos “alimentados sob o mesmo teto”, Rouche
havia fornecido indícios da espécie de sociabilidade que encontraríamos no interior das
fortalezas da Alta Idade Média. Em vez do chefe e seus guerreiros, veremos a reunião do rei
e seus condes e duques. Houve uma evolução da sociabilidade própria dos grupos guerreiros
bárbaros para as cortes feudais. E se a tropa se transformava em corte, a fortaleza ganhava
ares de palácio.
Numa fase posterior, quando a alta nobreza reproduziu, com seus barões e cavaleiros, cortes
menores em suas próprias residências, esses núcleos de sociabilidade se espalharam pela
Europa. O que permaneceu constante foi a estrutura, com o senhor presidindo seus
vassalos:
149
ROUCHE, 1990, p.416
150
ROUCHE, 1990, p.415
Figura 37. 1066-1082 d.C. Bayeux (França) Trecho de tapeçaria. Cena de caçada do rei inglês Harold e seu
séquito. (Museu de Bayeux)
93
“*...+ se o palácio tendia a parecer uma casa particular, a casa de todo homem que detinha
uma parcela de poder de regalia devia tomar o aspecto de um palácio, portanto abrir-se,
revelar seu interior, e especialmente pela instituição de um cerimonial em torno do senhor. É
o que se produziu desde o século IX na altíssima aristocracia, entre os condes.”
151
Para Duby, “a casa nobre tinha necessariamente algo da fortaleza e do palácio”
152
. Dessa
dupla ambição se desenvolveram os principais símbolos do castelo medieval: o torreão e a
aula a elevada torre em pedra e o grande salão, por vezes fundidos em uma única
construção.
Durante a Alta Idade Média, as fortalezas aristocráticas eram constituídas de edificações
baixas, de madeira, cercadas por uma paliçada e localizadas no alto de uma elevação
(natural ou artificial) rodeada por um fosso. Entre as edificações encontraríamos “uma corte
propriamente dita (aula), a saber, uma peça de recepção, um hall, que repousa sobre um
151
DUBY, 1990a, p.31
152
DUBY, 1990b, p.69
Figura 38 e Figura 39. 1410 d.C. França Paul e Jean de Limbourg. Iluminuras “Janeiro” e “Maio do livro Les
très riches heures du Duc de Berry. (Museu Condé)
A primeira imagem retrata um banquete e o segundo, uma expedição de caça mesmos temas representados
nas tapeçarias de Bayeux reproduzidas nas páginas anteriores.
94
celeiro semi-enterrado, flanqueado por aquilo que os comentadores, com ou sem razão,
chamam de ‘apartamentos’, e comunicando-se com uma capela”
153
.
Os torreões surgem a partir do século X, seja em meio a esses conjuntos existentes (como
resultado da progressiva elevação e fortificação da aula), seja em sítios novos dos quais
podiam constituir elemento único (abrigando todos os outros ambientes) ou principal
(dominando as outras construções no interior de uma muralha).
O torreão simbolizava o poder militar do castelo e o salão, seu poder de justiça. Este último
era ainda o local onde “se exibia todo o festivo da existência senhorial, os ritos ostensivos da
união, da comunhão fraterna, a dança e o festim”
154
portanto, o local próprio da
sociabilidade no castelo.
A essa altura, em meados da era medieval, as incursões bárbaras constituíam um passado
longínquo, esquecido. Contudo, algumas práticas da época persistiram entre a nobreza.
Embora o salão do castelo tenha se tornado núcleo da sociabilidade, vez por outra, era
deixado para que os nobres retomassem hábitos de reunião externa.
“Esse grupo (nômade, mobilizado a cada primavera para a expedição militar e, no intervalo,
para as caçadas nas zonas incultas) era, em torno do edifício palaciano ou então nos tios
efêmeros dos acampamentos, reunido em primeiro lugar pela comensalidade: comer, comer
todos juntos, na companhia do senhor [...] A cada primavera, a assembléia que reunia em
torno do rei carolíngio tudo que contava no Estado era vivida, assim, como uma reunião de
família, com trocas de presentes e banquete.”
155
Vemos também que as refeições mais uma vez têm papel central. Rouche comprova sua
importância já entre os francos:
153
BARTHÉLEMY, 1990b, p.398. Domeniqui Barthélemy utiliza a palavra “corte” nessa passagem para designar
um local: o salão de um castelo ou aula. Utilizamos nos demais casos, contudo, a palavra para designar um
conjunto de pessoas de origem nobre unido em torno do rei ou de outro nobre mais poderoso.
154
DUBY, 1990b, pp.74,75
155
DUBY, 1990a, p.31
95
“As refeições sendo a da noite mais importante que a do meio-dia constituem verdadeiros
rituais religiosos. [...] Participar dos banquetes une a comunidade e coloca-a em comunicação
com os deuses, pois eles são regeneração e fonte de vida.”
156
E Danielle Régnier-Bohler lembra ainda o conselho que Robert de Ho, autor anglo-normando
do século XII dava aos leitores de sua obra Enseigments: “a refeição, sabei-o, funda a
amizade”.
157
Há, na passagem anterior, de Rouche, uma menção importante no que diz respeito à
sociabilidade na Idade Média: “a comunidade”, um grupo mais amplo do que os membros
da corte. O salão do castelo não teria a importância para uma história da sociabilidade se sua
abrangência se resumisse à nobreza. A vida coletiva, que habitara outrora a cidade e seus
espaços públicos, buscou refúgio nos espaços fechados e protegidos das propriedades
senhoriais. Com efeito, o salão do castelo serviu de espaço de reunião da coletividade, de
espaço de sociabilidade para toda a região sob seu controle:
“*...+ as preces que se recitavam na capela do senhor beneficiavam a toda a senhoria, e sua
morada era uma fortaleza de onde a paz e a justiça se irradiavam para o território vizinho. Em
conseqüência, aos guerreiros propriamente domésticos vinham juntar-se periodicamente
todos os homens residentes nas cercanias em casas próprias e que tinham vocação de
combater; durante esse estágio, eles entravam no privado do senhor do castelo, dele recebiam
sua ração e seu arreamento, tornavam por um tempo seus privados e, quando voltavam para
suas casas, permaneciam seus amigos, ligados pela homenagem que fazia deles parentes
suplementares.”
158
Duby encontra em versos do Roman de Renart, coleção de textos franceses dos séculos XII e
XIII, menções a “três categorias de comensais que freqüentavam as grandes casas
aristocráticas: “privados ou estranhos ou amigos”. Os “privados” teriam a casa como
moradia titular. Os “estranhos” seriam “aqueles que nenhuma relação afetiva particular
ligava ao dono da casa”. Os “amigos”, por fim, seriam aqueles que “se tinham livre acesso a
156
CONTAMINE, 1990, p.428. O autor identifica nos banquetes um caráter religioso de fundo pagão, o que
demonstra a persistência desse culto entre os francos, em um momento de transição cultural. A mesma
ambigüidade religiosa veremos adiante nas primeiras guildas medievais.
157
RÉGNIER-BOHLER, 1990, p.315
158
DUBY, 1990b, p.77
96
casa e a seu chefe, ali não tinham residência. Estavam de passagem como os ocupantes da
hospedaria monástica.”
159
A comparação das relações de sociabilidade das casas aristocráticas com o mosteiro aparece
abaixo de maneira mais ampla. Além da hospitalidade para com seus pares, ambos
ofereciam (cada qual ao seu modo) educação aos jovens e caridade aos pobres.
A exemplo do mosteiro, a morada aristocrática assumia uma função de acolhida que se pode
dizer estrutural. Também ela se abria aos pobres, admitidos, como na casa de Lázaro, a
recolher o que caía da mesa senhorial, e era uma benção para o senhor e para toda a casa ver-
se assim espoliados por esse parasitismo necessário e ritual. Como o mosteiro, a casa nobre
acolhia jovens, para formá-los. Era uma escola que ensinava aos rapazes bem-nascidos os usos
das cortesias e da valentia, em que os filhos das irmãs do senhor, os filhos de seus vassalos
vinham normalmente fazer seu aprendizado. Ela acolhia enfim, os passantes, ‘amigos’ ou
‘estranhos’, parasitas também eles necessários, desde que fossem de boa condição, e um dos
gestos essenciais, no simbolismo do poder patronal, era convidá-los a sentar-se à mesa, na
sala, para ali saciar-se, ali beber até a embriaguez, e ali estender-se, à noite, para dormir. Em
certos dias, a casa não acolhia apenas hóspedes casuais, atraía a seu âmbito privado todas as
casas satélites. Assim, por ocasião das cortes solenes, nas grandes festas da cristandade, Natal,
Páscoa ou Pentecostes: nesses momentos, a sala, na morada principesca, reencontrava sua
função primitiva, basilical, de regalia, dissolvendo o privado inteiramente no público. E em
todas as casas, grandes ou pequenas, a hospitalidade alcançava seu paroxismo por ocasião das
festas de núpcias.”
160
Temos, acima, um bom retrato da situação de sociabilidade que encontraríamos no salão
nobre de um castelo, reunindo aquilo que chamamos, a pouco, de “comunidade”. Se o salão
não estava aberto a todos o tempo todo isso ocorria em datas especiais , a vida como
um todo permanecia mesmo mais reservada. Ainda assim, regularmente, reuniam-se ali o
senhor do castelo, seus cavaleiros, hóspedes provenientes da mesma classe desses, jovens
da região em fase de aprendizagem e até mesmo pobres que possibilitavam ao senhor
exercer sua generosidade para com os necessitados participavam ainda da cena todos os
serviçais encarregados de servir e entreter essa gente.
159
DUBY, 1990b, p.73
160
DUBY, 1990b, pp.77,78
97
O entretenimento, providenciado pelo senhor, visava
estimular a sociabilidade. E a sociabilidade, observou Duby,
podia ter uma finalidade bem específica. Já falamos dos
banquetes como fonte de regeneração da vida. Mas o
historiador aponta banquetes e festas promovidos pelo
senhor feudal como promotores de nova vida. A
sociabilidade, na corte da Idade Média, teria como função
também o estímulo à reprodução de uma casa, de uma
casta. Estimular a sociabilidade significaria estimular essa
reprodução, de modo que o senhor gastava boa parte de
suas riquezas com esse objetivo:
“*...+ o que saía da fecundidade do pater familias não
bastava, e o primeiro dever do senhor, após o de
engendrar e de casar, sua preocupação maior, era a de
levar a família a crescer mais, atraindo, ‘conservando’
comensais. Esse projeto governava a economia doméstica:
[...] não era senão na previsão das festas em que as
riquezas da casa seriam alegremente esbanjadas. [...] Nos
tempos feudais, a vida privada não estava de modo algum
friorentamente curvada sobre a poupança; ela se
derramava em generosidades expansivas a fim de
multiplicar amigos a verdadeira riqueza, como repetiam à
saciedade as obras da literatura profana.”
161
Na provisão de entretenimento, todo esforço era feito. O
senhor empregava ainda os clérigos domésticos “de bom
grado”, para além de suas funções religiosas, “também em
compor divertimentos, textos falados, cantados, em ngua
161
DUBY, 1990b, p.81. O autor registra a existência de uma “necessária ostentaçãopor parte do rei carolíngio
na promoção de banquetes e na distribuição de presentes aos seus convidados. (DUBY, 1990a, p.31)
Figura 40. 1450-1470 d.C.
França Ilustração do manuscrito
Histoire d'Olivier de Castille et
d'Artus d'Algarbe. Cena de um
banquete de núpcias. (Biblioteca
Nacional da França)
Figura 41. 1475-1480 d.C.
Bruges (Bélgica) Ilustração do
manuscrito Factorum ac dictorum
memorabilium. Cena de banquete.
(Museu Getty)
A imagem, que curiosamente
ilustra um texto romano usado
para ensinar retórica, mostra um
típico banquete medieval: a
nobreza em mesa sobre um
tablado divide o salão com
camponeses abaixo.
98
vulgar, encenações, que sabia lhe valeriam, mais que os sermões edificantes, o
reconhecimento dos ‘amigos’”.
162
“Para agradar, com efeito, *o senhor+ se esforçava em vencer o tédio que espreitava esses
guerreiros, esses caçadores, durante as inevitáveis interrupções das suas atividades esportivas.
Mas bem sabia que os agradaria mais, que seria tanto mais obedecido, servido e amado se
satisfizesse os desejos de seus corpos. Aplicava-se então em conduzir os seus, tão
freqüentemente quanto possível, à perseguição da caça, ao encontro de protagonistas, na
batalha ou no torneio. Zelava para que sua morada estivesse bem provida de mulheres para
todos os serviços, seu guarda-roupa fornido de ‘vestes’, como se dizia, suficientes para as
distribuições rituais nas grandes festas. Sem esses presentes, esses ‘benefícios’ periódicos,
como governar a família, como, sobretudo, cumprir honrosamente o ofício patronal?”
163
Aqui a sociabilidade é induzida e o entretenimento é empregado quase como espécie de
suborno em troca de reconhecimento e legitimação. De fato, as festas eram promovidas
pelo senhor, para quem a sociabilidade, decerto, não era totalmente desinteressada. Para os
demais participantes, contudo, o prazer em companhia dos seus pares era tudo o que
desejavam. Diferentemente da relação cliente-patrono em Roma, a descrição acima não é a
de cavaleiros bajulando seu senhor em reuniões sociais em troca de dinheiro ou terras.
Devemos concluir que a sociabilidade na corte feudal era, portanto, legítima.
162
DUBY, 1990b, p.81
163
DUBY, 1990b, p.82
Figura 42 e Figura 43. 1462-1470 d.C. Bruges (Bélgica) Ilustrações do manuscrito Renaud de Montauban.
(Biblioteca do Arsenal)
Nelas estão presentes os três espaços de sociabilidade da casa aristocrática: o salão, o quarto e o jardim.
99
Consideramos, até agora, apenas o grande salão como o lugar da sociabilidade na morada
aristocrática. Sem dúvida, era o mais importante, o mais “público”. Régnier-Bohler é
categórica quanto a isso:
“A sala, por certo, é o lugar reservado à vida coletiva; [...], é o lugar usual das reuniões, o lugar
por excelência da sociabilidade. Se se examina o espaço destinado a um personagem mítico tal
como Artur, ver-se-á que a grande sala é de uso quase exclusivamente social.”
164
Se havia um centro da vida social no castelo, ele certamente era seu grande salão. Contudo,
encontraríamos nessa propriedade pelo menos dois outros espaços de convivência
apreciados pelos seus moradores e visitantes: o jardim e o quarto.
Como área dos atos públicos, “a sala é principalmente masculina”. As “mulheres da
parentela” eram ali introduzidas apenas para “a dança de roda e o banquete”, em ocasiões
especiais. No cotidiano, contudo, eram o quarto e o jardim os locais destinados, ainda que
não exclusivamente, a convivência feminina.
O quarto reunia corriqueiramente os “privados” e “amigos” do senhor e da senhora. Servia
também para recepcionar mais distintivamente, caso se desejasse, seus convidados
especiais. Pois se à sala eram “reservados os grandes momentos da acolhida”, o quarto
podia “oferecer-se a formas de sociabilidade e de divertimentos mais refinados”, tais como
“música íntima, narrativas, jogos”.
165
164
RÉGNIER-BOHLER, 1990, p.323
165
RÉGNIER-BOHLER, 1990, p.325
Figura 44. 1370-1380 d.C. Paris (França) Iluminura de Guiron le Courtois. Um rei, o mitológico Artur,
enfrenta um nobre em jogo de xadrez, em seu quarto. (Biblioteca Nacional da França)
100
A situação do quarto na edificação podia favorecer sua utilização como local de recepção.
Em alguns casos, sobretudo nos castelos mais antigos o quarto era contíguo ao salão.
Rouche nos mostra “em Troyes, no palácio dos condes de Champagne, esta disposição
atestada em 1177: de um lado, encontra-se a parede de separação de onde o príncipe
preside os banquetes, dominando os convivas sentados a duas grandes mesas sentados no
eixo longitudinal da peça; do outro lado, o thalamus comitis, ‘leito’ ou ‘quarto’ conjugal”.
166
Posteriormente, com a evolução da arquitetura dos castelos, a separação entre as duas
peças se tornou mais marcada. Elas podiam, então, ocupar níveis diferentes o quarto logo
acima do salão ou mesmo blocos distintos. no século XIV, Mumford nota que o
distanciamento dos aposentos se refletia no afastamento dos senhores do convívio com os
demais membros de sua castelania.
“Em 1362, *o poeta inglês William+ Langland, em Piers Plowman, escarnecia da tendência do
Lorde e da Lady, de se afastarem do salão comum para as refeições privadas e para o
entretenimento privado. Deve ter ele antevisto o fim daquela relação social recíproca entre as
166
BARTHÉLEMY, 1990b, p.417
Os dois locais da casa aristocrática destinados à convivência feminina o quarto e o jardim.
Figura 45. 1405-1415 d.C. Paris (França) Iluminura de Christine de Pizan, Oeuvres: Christine de Pizan
apresenta suas obras a Isabel da Bavária”. A rainha da França recebe a poetisa em seus aposentos, na presença
de suas damas de companhia. (Biblioteca Britânica)
Figura 46. 1490-1500 d.C. Bruges (Bélgica) Ilustração do manuscrito Roman de la Rose. Um jardim cercado
por muralhas abriga em seu interior damas da corte sendo entretidas por um músico ao redor de uma fonte e
cercadas por árvores frutíferas. (Biblioteca Britânica)
101
camadas estáveis superior e inferior do regime feudal; uma relação que abrandara suas
opressões, já que eles compartilhavam os mesmos aposentos.”
167
Esse seria o momento de desintegração dessa sociabilidade, um tanto quanto includente,
que havia até então nos salões das fortalezas feudais. Era uma forma de sociabilidade bem
diferente daquela que encontraríamos na corte durante a Idade Moderna, exclusivamente
aristocrática. Mumford parece apontar para um dos primeiros sinais dessa transformação.
Quanto ao jardim, lembra Régnier-Bohler, ele “sabe também ser um lugar de
sociabilidade”
168
. Sua importância durante a Idade Média é atestada pela presença
constante nos principais programas arquitetônicos do período: encontramo-lo em castelos,
mosteiros e cidades.
Rouche afirma que entre os francos “o espaço fechado mais querido era evidentemente o
jardim”. A razão disso é facilmente compreensível, pois “as delícias da sobremesa e os
remédios para trazer a alegria de viver saíam desses jardins tão carinhosamente cultivados”.
169
O jardim aparece sempre como um local confortável, alegre e protegido, intra-muros, em
oposição ao exterior violento a antítese da floresta, lugar da bandidagem. Como tal, é
especialmente utilizado pelas mulheres como uma alternativa à clausura do quarto. É o lugar
da sociabilidade ao ar livre de que elas dispõem.
Philippe Contamine mostra que até o final do período medieval, nos séculos XIV e XV, o
jardim manteve inalterado seu prestígio entre a nobreza. E nos fornece a melhor descrição
desse espaço de sociabilidade:
“Nenhuma morada nobre sem ‘jardim de recreio’ (a expressão é atestada no final do século
XV), o que não quer dizer que as plantas comestíveis e as árvores frutíferas ali não
predominassem. O pomar bem fechado, hortus conclusus, com seu muro por vezes bataillé
(ameado), sua fonte decorada, suas parreiras, suas cabanas, seus coignarts (recantos) de
árvores, sua natureza domesticada, amansada, recortada em pequenos quadrados, seus
167
MUMFORD, 1965, p.370
168
RONCIÈRE, 1990, p.321
169
ROUCHE, 1990, pp.423,425
102
bancos e suas galerias: pelo testemunho da literatura e da iconografia, lugar por excelência do
repouso, da alegria, das canções e das danças de roda, dos amores abertos ou discretos, dos
debates e dos folguedos, mas também símbolo da Virgem Maria e da virgindade, figura do
paraíso perdido, ao abrigo dos tumultos e dos perigos que incessantemente vêm perturbar o
mundo exterior.”
170
Veremos adiante que a morada nobre não era o único lugar onde encontraríamos jardins tão
valorizados e cuidados, durante a Idade Média. Também nos mosteiros e, um pouco mais
tarde, nas cidades novas, eles estariam presentes.
Tendo examinado o castelo e seus espaços de sociabilidade o salão, o quarto de senhorial
e o jardim passemos ao outro refúgio da vida coletiva formado durante a Alta Idade Média:
o mosteiro.
O monasticismo
Os mosteiros, assim como as moradas senhoriais, organizavam todo o território ao seu
redor, sob seu domínio. No longo período da Baixa Idade Média em que as cidades
perderam sua relevância como centros econômicos, administrativos e sociais, foram os
mosteiros e castelos que ocuparam essa lacuna.
171
A preeminência dessas duas instituições medievais deveu-se, sobretudo, à possibilidade de
oferecer segurança em um tempo em que o medo prevalecia. Em épocas de invasões
estrangeiras, eram aos seus muros que a população do campo próximo recorria em busca
de abrigo. E, dos mosteiros e castelos, monges e cavaleiros combatiam, cada qual à sua
maneira, as fontes do medo (real ou imaginário), seja orando, seja empunhando armas. Até
as cidades começarem a recobrar sua antiga importância, do século XI em diante, quando as
invasões de não-cristãos de fato cessam, a vida medieval gira em torno desses dois centros.
170
CONTAMINE, 1990, p.431
171
Peter Brown: “No paradigma monástico a cidade perde sua preeminência quanto unidade social e cultural
distinta.” (BROWN, 1990, p.279)
103
Mosteiros eram associações formadas para a prática perpétua e exclusiva da vida religiosa,
segundo determinadas normas.
172
Embora autônomos do ponto de vista de seu sustento
material, espiritualmente eram ligados entre si através de uma Ordem que pretendia manter
um padrão entre seus mosteiros espalhados pela Cristandade. Até o século X, existia uma
única Ordem monástica: a dos beneditinos, vivendo sob a Regra de São Bento, escrita em
meados do século VI. A Regra prescrevia um modo de vida comunitário, baseado na ordem e
na disciplina, e descrevia em detalhes como deveria ser o funcionamento da comunidade. O
objetivo central da obediência à Regra (e ao monge superior) era a autonegação para melhor
servir a Deus.
O historiador britânico R. W. Southern aponta três funções principais dos mosteiros
beneditinos na sociedade medieval no período em que detinham o “monopólio” do
monasticismo. A primeira e mais importante delas ao menos inicialmente, sua razão de ser
mencionamos: rezar pela salvação de todos os cristãos. A segunda era mais específica:
pagar as penitências (através de orações, jejuns, etc. por parte dos monges) para redimir os
pecados de outros homens. Morrer com uma pena incompleta era temido acima de tudo e,
caso a pena fosse pesada o suficiente, podia levar ao pagamento em dinheiro, à doação de
terras e até mesmo à fundação de mosteiros. A terceira função tinha um caráter social:
receber e proporcionar uma vida honrável aos filhos não primogênitos das famílias
aristocráticas, com o objetivo de evitar a divisão das propriedades familiares.
173
Esse
costume também contribuía para doações que aumentavam o patrimônio dos mosteiros e
explica os laços estreitos que havia entre monges e nobreza.
No século XI, os mosteiros beneditinos mostravam sinais claros de decadência, como o
decréscimo acentuado do número de monges. As razões para essa decadência eram tanto
de ordem espiritual, quanto econômica. muito, a preocupação com uma vida simples e
devotada exclusivamente à religião havia ficado em segundo plano. Angariar doações e
administrar os bens recebidos acabavam sendo as principais tarefas. Enquanto as doações
eram fartas, os monges podiam manter um padrão de vida aristocrático e em acordo com
172
Podemos encontrar associações com os mesmo propósitos em outras religiões além do cristianismo.
173
As filhas dessas mesmas famílias para as quais não fossem arranjados um bom casamento podiam
igualmente receber uma vida digna em um convento.
104
a proveniência da maioria. A insatisfação com essa fraqueza moral levou às dissidências que
dariam origem a novas ordens religiosas a partir de meados do século XI. Do ponto de vista
econômico, os mosteiros viram-se em posse de tantas propriedades e fontes de renda
dispersas que tinham dificuldade para administrar seus bens. Além disso, novas doações
tornavam-se escassas após séculos de subdivisões, as famílias nobres já não dispunham de
tantas riquezas quanto os primeiros benfeitores.
As primeiras ordens a romper com o monopólio dos beneditinos estavam preocupadas em
se precaver contra esses males. Não obstante, seguiram caminhos opostos. Foram elas, a
ordem cisterciense e a dos agostinianos.
Os agostinianos buscaram numa autoridade ainda mais antiga que São Bento as bases para
um modo de vida cristão: Santo Agostinho. O documento em que se basearam, uma
correspondência do santo, não prescrevia uma regra, mas continha sugestões para tanto.
Em relação aos beneditinos, essas sugestões estabeleciam normas menos rígidas aos
agostinianos, o que lhes possibilitou um pragmatismo maior em suas ações. A sua Ordem
ficou caracterizada sobretudo pelo contato mais próximo com a mundanidade, pelos
serviços prestados à comunidade cristã, especialmente aos mais necessitados espiritual e
materialmente. Foram grandes recuperadores de paróquias em decadência. Estabeleciam-se
também nas proximidades de uma cidade ou de um castelo, sempre em pequenos grupos.
Figura 47. Século XII d.C. Cluny (França) Cerimônia de consagração da Abadia de Cluny III pelo papa Urbano
II. (Biblioteca Nacional da França)
105
Por seu tamanho e pela sua simplicidade, eram associações fáceis de se manter, o que
possibilitou à baixa nobreza nascente exercer seu papel de benfeitores.
Os cistercienses, por sua vez, não abandonaram a Regra de São Bento. Ao contrário,
buscaram restabelecê-la integralmente. Eram puritanos que criticavam asperamente a
corrupção beneditina. Evitavam a todo custo o contato com o mundo, indo se estabelecer
nas fronteiras da cristandade, geralmente em áreas ainda não colonizadas. Tinham a
austeridade como princípio de existência, como atesta sua arquitetura. Disciplina e
hierarquia eram observadas rigorosamente. Seus mosteiros eram primores de organização e,
como empresas agcolas, eram exemplos de eficiência. Os senhores de terras ainda pouco
habitadas viam nos cistercienses uma alternativa colonizadora segura e prática e eram seus
grandes benfeitores. No entanto, ao contrário dos beneditinos, os cistercienses eram de
difícil manipulação pois todos os abades respondiam uns aos outros perante o Capítulo
Geral.
No que concerne à sociabilidade, os mosteiros tiveram um duplo papel: um de caráter
estritamente interno, outro referente ao mundo exterior. Internamente, o mosteiro
funcionava como uma associação (quase) independente de pessoas a analogia com
“cidade” é bastante comum
174
, convivendo sob determinadas regras, constituindo
situações de sociabilidades próprias. No seu contato com o exterior, através da prática da
hospitalidade, os mosteiros criavam também uma situação de sociabilidade bem
característica, onde pessoas de diversas regiões podiam se encontrar, entre os muros e sob
as regras monásticas.
Para entendermos aquele primeiro papel, referente à sociabilidade interna, devemos
examinar o que levava um homem a se juntar a uma ordem e ir viver em um mosteiro.
Podemos pensar em duas intenções distintas: de um lado, o desejo de servir a Deus
plenamente; de outro, dispor da melhor alternativa que lhe foi apresentada para viver uma
vida confortável, tendo ainda a possibilidade de adquirir poder e prestígio na carreira
monástica.
174
Pierre Abelard, filósofo parisiense do século XII citado por Sennett, afirma que “as cidades são conventos
para pessoas casadas. [...+ Cidades são *...+ unidas pela caridade. Cada uma delas é uma fraternidade”.
(SENNETT, 2006, pp.148,149)
106
Se acreditarmos nas boas intenções, na devoção, na piedade dos monges, podemos pensar o
mosteiro como uma fraternidade voltada para o serviço divino uma comunidade ideal,
pura, em contraste com o mundo e todos os seus pecados. Mumford segue por esse
caminho:
“Na realidade o mosteiro era uma nova espécie de pólis: uma associação, ou melhor, uma
íntima fraternidade de pessoas que pensavam da mesma forma, não reunidas apenas para
cerimônias ocasionais, mas para permanente co-habitação, num esforço para conseguir na
terra uma vida cristã, dirigida exclusivamente, com unicidade de espírito, para o serviço de
Deus.”
175
Poderíamos supor, além da satisfação por cumprir a tarefa nobre de servir a Deus, uma
felicidade legítima dos monges por fazer parte de um lugar e de uma associação de pessoas
privilegiadas. Haveria uma felicidade por aquela vida em comunidade.
Michel Rouche, para quem os mosteiros eram “autênticos microorganismos sociais, utopias
fraternas vivascomprova que o contato humano, nessas comunidades, era valorizado. Ele
menciona uma importante recomendação de Adalhard, abade de Corbie, em 822: mosteiros
“não devem ultrapassar quatrocentas pessoas, servidores leigos inclusive, senão caem no
anonimato e na deterioração das relações humanas”.
176
Se, por outro lado, formos céticos a ponto de duvidar da vocação sincera dos monges e
pensarmos neles como aristocratas que viam no mosteiro uma alternativa de vida nobre,
com confortos e poderes, ainda assim poderíamos encontrar ali pessoas satisfeitas por
viverem numa associação privilegiada. Aspirações religiosas e mundanas à parte, mosteiros
eram comunidades para as quais se entrava espontaneamente (salvo interesses familiares).
E a expectativa que se tinha ali era de uma vida essencialmente comunitária. A sociabilidade
monástica era inerente à carreira.
Um nobre poderia seguir uma carreira militar ou religiosa. Mas qualquer que fosse seu
caminho, não faltaria ao nobre um espaço de convivência com seus pares. Se pensarmos nos
momentos típicos da sociabilidade de cada carreira, veremos uma equivalência entre os
175
MUMFORD, 1965, p.322
176
ROUCHE, 1990, p.419
107
monges ao redor do abade no refeitório do mosteiro e os cavaleiros ao redor do rei ou do
conde no salão do castelo. Havia uma diferença fundamental quanto ao ritual da
sociabilidade, mas em ambos os casos ela estava presente.
A evidência de que, nos mosteiros, essa convivência era tida como algo valioso é de que “a
solidão era concebida como um exílio. Uma prova. Uma punição.” Duby escreve que “o
caráter fundamental do convívio monástico era bem o estreito ‘gregarismo’, toda
intimidade, todo segredo inelutavelmente partilhado, e a solidão considerada ao mesmo
tempo como um perigo e um castigo”.
177
A outra situação de sociabilidade encontrada nos mosteiros, que envolvia pessoas de fora da
comunidade, se constituía a partir da hospitalidade. É preciso, antes, distinguir entre
hospitalidade e caridade, como deixa claro Duby. A caridade obrigava os mosteiros à
acolhida dos pobres de passagem. A hospitalidade é nitidamente distinta dela: os passantes
de qualidade, que saem do mesmo meio dos monges, que estes recebem como amigos e
essas pessoas são reconhecidas pelo fato de que não andam a pé mas a cavalo , são
hospedados em outro local administrado pelo hoteleiro.
178
A hospitalidade, não era apenas um dever moral; representava, para os monges, uma
oportunidade de contato amistoso com pessoas novas, de fora do seu cotidiano, mas de
origem semelhante. Aos hóspedes, além da confraternização com os monges, havia ainda a
possibilidade do contato com outros viajantes.
Essa sociabilidade encontrava abrigo no refeitório e, especialmente, nos jardins do mosteiro,
o lugar da “coexistência” como observa Sennett
179
. A descrição que vimos dos jardins do
castelo, com o pomar e o herbário “carinhosamente cultivados”, de onde saíam os remédios
e as “delícias” da culinária, igualmente se aplicava aos do mosteiro. E estavam à disposição
dos hóspedes tanto quanto dos monges. As fadigas e os perigos que ameaçavam o viajante,
177
DUBY, 1990b, p.68
178
DUBY, 1990b, pp.61,62
179
SENNETT, 2006, p.164. Sennett menciona que o jardim do mosteiro foi um lugar criado para o trabalho
comunitário, um modo elementar de estimular o convívio entre os monges fora dos momentos de obrigações
religiosas.
108
os bandidos e os pântanos”, escreve Rouche, eram logo
esquecidos no caloroso convívio da hospedaria
monástica”.
180
Os mosteiros foram, durante boa parte da Idade Média,
fortalezas para a sociabilidade, mais especificamente para
um modelo cristão ideal de sociabilidade, obtido através de
normas rígidas e da separação entre homens e mulheres
modelo que jamais se concretizou fora dali. Assim, durante
longos séculos quando e onde o acesso e a acolhida em
cidades não eram opção disponível, os mosteiros
contemplaram a necessidade por alguma forma de
sociabilidade. Porém, quando a vida coletiva se restabeleceu
firmemente em uma rede de cidades com toda a liberdade
que essas lhe asseguravam os mosteiros perderam
qualquer atratividade que não fosse diretamente ligada à
religiosidade. A cidade, então, retomou seu posto de centro
da vida social na civilização ocidental.
180
ROUCHE, 1990, p.425
1316 d.C. Florença (Itália)
Pietro Lorenzetti. Cena de A vida
dos abençoados”. (Galeria Uffizi)
109
CAPÍTULO V: O renascimento urbano na Baixa Idade Média
“O movimento das cidades, a partir do século X, é uma
história de velhas colônias urbanas a se transformarem em
cidades mais ou menos autogovernadas e de novas colônias a
se constituírem sob os auspícios do senhor feudal, dotadas de
privilégios e direitos que serviam pra atrair grupos
permanentes de artífices e mercadores.”
181
uma mudança de rumo, por assim dizer, na história medieval européia por volta do
século XI. Duby identifica transformações sociais gerais e estabelece, de maneira
assumidamente arbitrária, o ano 1000 como marco. Southern menciona o ano 1050 como o
ponto inicial na renovação monástica, que faz surgir um número crescente de ordens, até
então limitada aos beneditinos. E Barthélemy observa ainda em meados do século X a
grande mudança ocorrida na vida aristocrática medieval, a saber, a multiplicação das
pequenas casas senhoriais em decorrência da saída da baixa nobreza das cortes da alta
nobreza. A separação geralmente aceita entre Alta e Baixa Idade Média é estabelecida em
torno dessa época.
transformações importantes observadas por volta do século XI. Novas formas de
organização social surgiram, enquanto as existentes passam por modificações. Contudo, é a
velocidade das transformações a partir de então o que mais diferencia a época vindoura da
anterior. A sociedade medieval se tornou mais complexa e dinâmica isso está presente em
todos os autores estudados. E o que permitiu que a sociedade adquirisse tais características
foi a segurança possibilitada pela diminuição das pressões externas à Cristandade e ao
amadurecimento das instituições desenvolvidas no período anterior.
De todas as transformações verificadas a partir do século X, a que mais nos interessa é
aquela a qual Duby chamou de “renascimento urbano”. Ainda que a sociabilidade não se
restrinja apenas a cidades, fica claro pelos exemplos que vimos até essa altura de nossa
história, o quanto a cidade favorece a sociabilidade. Se em aldeias e estabelecimentos rurais,
181
MUMFORD, 1965, p.341
110
a sociabilidade se apresentava apenas sob formas elementares e com poucas variações
através dos tempos, nas cidades, ela adquiria formas mais sofisticadas e mais características
de sua época. Os castelos e mosteiros medievais tampouco eram capazes de apresentar a
mesma variedade e dinamismo. As cidades, com sua combinação de concentração e
liberdade ao menos nas dimensões e condições em que se encontravam até fins da Idade
Média potencializam a sociabilidade, como nenhuma outra organização social.
Veremos, a seguir, que formas tomou a sociabilidade na sua volta ao meio urbano e quais os
lugares em que ela melhor se desenvolveu.
Das feiras às praças de mercado e ruas de comércio
Mumford afirma insistentemente, colocando-se contra “estudiosos eminentes”, que a
construção de novas cidades não foi conseqüência direta do ressurgimento do comércio. Ao
contrário: teria sido necessário, antes, a existência de excedentes de produtos agcolas e
populacional que proporcionassem bens e fregueses para a constituição de mercados. Esse
crescimento populacional e agrícola só foi possível devido ao aumento da segurança na
Europa com o fim das invasões e conversão dos últimos bárbaros.
182
Senhores feudais e ordens monásticas pacificaram e organizaram o campo. Nas antigas
cidades, esse papel coube aos bispos, sua principal autoridade. O ressurgimento de
mercados se beneficiou dessa nova situação de paz, de aumento da população e da
produção agrícola. O início da fundação de cidades antecede esse momento. Muitas foram
construídas, justamente, como medidas defensivas, para controlar uma região recém
conquistada ou desabitada. Eram parte, portanto, do processo de pacificação que beneficiou
o comércio. Apenas mais tarde, quando o comércio estava restabelecido no continente,
cidades foram fundadas por proprietários de terra visando a arrecadação de tributos de seus
produtores e comerciantes.
Os mercados, em um primeiro momento, tinham alcance apenas regional. Eram locais onde
artesãos (que constituíam, em geral, quatro quintos da população urbana, contra menos de
182
MUMFORD, 1965, pp.330,331
111
um quinto dos mercadores
183
) e camponeses trocavam seus produtos. Mas, aos poucos,
também o comércio de longa distância se beneficiou da paz e do aumento da produção de
bens. Ao fim da Idade Média, uma vasta rede de rotas comerciais cruzava a Europa, de
cidade em cidade, do Mediterrâneo aos mares Báltico e do Norte.
Se o renascimento do comércio não foi o responsável pela “revivescência das cidades” mas
o contrário, como o quer Mumford , é inegável sua contribuição para o crescimento e a
constituição de um modo de vida urbano durante a Baixa Idade Média. A quase totalidade
da população urbana, composta de artesãos, vivia da comercialização de seus produtos ou
da prestação de serviços; havia uma parcela, ainda, de mercadores; apenas o clero não
participava de atividades comerciais, embora dependesse do dízimo pago pelos demais.
Em comparação com cidades dos períodos anteriores, estão ausentes na cidade medieval
tanto a imensa camada de escravos, quanto a aristocracia proprietária de terras. Somente
no final da era medieval, quando o próprio rei se fixou de modo mais permanente em uma
cidade, a velha nobreza rural ali estabeleceu sua morada. Seja no Império Romano, na Grécia
ou no Oriente Médio, cidade alguma teve parcela tão grande da população diretamente
envolvida em atividades comerciais.
É válido, portanto, começarmos nosso estudo sobre cidades na Idade Média pelas feiras,
praças de mercado e ruas de comércio. E, como veremos mais uma vez, a atividade
comercial e a sociabilidade encontram-se misturadas, uma beneficiando-se da outra.
A forma elementar de comércio durante a Alta Idade Média era a feira. Na ausência de
cidades, feiras podiam ser realizadas junto ao muro de um mosteiro, de um castelo, em
frente a uma igreja sob a proteção de alguma autoridade que lhes assegurasse a “paz de
mercado”. À medida que ressurgiam, também as cidades realizavam feiras em suas praças. A
freqüência variava desde semanal a anual. As mais freqüentes reuniam apenas os
produtores da região, enquanto as anuais geralmente atreladas a algum evento religioso
reuniam mercadores de distâncias maiores. Nesses casos, uma cidade podia ver sua
população multiplicar temporariamente.
183
MUMFORD, 1965, p.333
112
Sennett comenta a situação das feiras em um período em que as cidades estavam mais
consolidadas. Ali, elas chegaram a ocupar edifícios especializados, deixando o descampado
da praça.
“*Por volta do século XII+, a exposição dos artigos tornara-se uma verdadeira festa. As grandes
feiras não se organizavam mais a céu aberto, mas em ‘salões especialmente destinados ao
comércio de diversos ramos ou especialidades, pátios cobertos e aléias arcadas’, informa
Robert Lopez, historiador de economia. Flâmulas e outros ornamentos pendiam dos
quiosques; em compridas mesas espalhadas pelos corredores, comia-se, bebia-se e negociava-
se, tudo ao mesmo tempo. Sua época coincidia com celebrações e feriados religiosos, o que
aumentava mais ainda a clientela em potencial, estimulando a adoração de cada vez maior
número de santos, aliciados como protetores dos perfumes, perfumarias, vinhos etc.”
184
Esse clima festivo das feiras foi, aos poucos, sendo substituído pela sociabilidade cotidiana
do mercado permanente nas cidades maiores. Pois, como observou Sennett, se o
crescimento das cidades significou, em princípio, o enriquecimento das feiras, acabou por
forçar sua substituição pelo mercado fixo.
Voltamos, portanto, no decorrer da Baixa Idade Média, a uma situação semelhante àquela
encontrada nas cidades da antigüidade, a de uma atividade comercial diária concentrada em
uma determinada área urbana. Mumford, de fato, observa nas praças de mercado medieval,
em particular nas italianas, uma herança do fórum romano (e conseqüentemente da ágora
grega), embora as diferenças fossem marcadas.
“As praças, campos e ruas em arcadas da cidade italiana mais recente foram resultado direto
do planejamento romano: e, embora os mercados medievais diferissem funcional e
arquitetonicamente do fórum romano, seria tolo pensar neles como uma inovação totalmente
184
SENNETT, 2006, p.168. Sennett usa aqui a expressão “Alta Idade Média”. Como a maioria dos autores de
língua inglesa, ele divide o período medieval em três: Early Middle Ages, High Middle Ages e Late Middle Ages.
Correspondem, grosseiramente, aos períodos 500-1000 d.C., 1000-1300 d.C. e 1300-1500 d.C.,
respectivamente. Na passagem, o autor de fato está se referindo mais especificamente ao século XII. Alteramos
o texto para evitar a confusão entre a periodização de Sennett e a adotado em todo o presente trabalho que,
seguindo a tradição entre autores de língua portuguesa (e francesa), estabelece dois períodos: Alta Idade
Média (séculos VI a X) e Baixa Idade Média (séculos XI a XV).
113
independente. Os espaços abertos na cidade, na verdade, não assumiram uma forma
radicalmente nova até o século XVII.”
185
Le Goff é mais categórico quanto à diferenciação entre praça medieval e fórum romano: na
Idade Média, “a praça blica muda de estatuto. Nada mais de fórum! Não temos mais o
lugar central em que cidadãos se encontram”.
186
A praça de mercado medieval não tinha a primazia do fórum ou da ágora, pois sua função
era primordialmente comercial. O centro civil, baseado no paço da cidade, muitas vezes
estava localizado em outra praça. O centro religioso, por sua vez, estava em geral apartado:
a catedral ou o palácio episcopal tinha sua própria praça. As cidades na Idade Média eram
policêntricas, contendo uma multiplicidade de praças que muitas vezes, eram simples
alargamentos das vias.
A forma espacial irregular das praças medievais as distinguiam ainda mais dos fóruns
romanos embora, como vimos, nem tanto das ágoras. Ainda assim, acredita Mumford,
quando suas características permitiam, as praças de mercado podiam, sim, recuperar outras
funções presentes nesses espaços urbanos da antigüidade.
185
MUMFORD, 1965, p.277
186
LE GOFF, 1998, p.10
Figura 48. Século XIV Itália Iluminura de manuscrito italiano. Cena do mercado medieval da Porta de
Ravena, em Bolonha. (Museu Cívico Medieval de Bolonha)
Figura 49. 1400-1405 d.C. França Iluminura de Le Chevalier Errant. Uma praça de mercado. (Biblioteca
Nacional da França)
114
“Quanto às praças abertas da cidade medieval, até mesmo as grandes praças de mercado e
catedrais, podiam ser tudo, menos praças formais. Mais freqüentemente do que nunca, em
cidades de crescimento orgânico, o mercado seria uma figura irregular, algumas vezes em
forma de triângulo, algumas vezes com muitos lados ou oval, ora denteada, ora recurvada,
aparentemente de forma arbitrária, porque as necessidades das edificações próximas tinham
primazia e determinavam a disposição do espaço aberto. Embora, algumas vezes, o mercado
possa ser apenas uma rua alargada, existem outros exemplos, como em Bruxelas ou em
Bremen, em Perúgia ou Siena, onde as proporções da praça são amplas: suficientemente
grandes não apenas para conter muitas tendas, mas para reuniões e cerimônias públicas. A
praça do mercado, então, reinvestia as funções do antigo fórum ou agora.”
187
Mumford menciona a possibilidade do mercado se concentrar em uma rua alargada, talvez
encerrada por colunadas, tal como em cidades romanas. Sennett, ao observar Paris,
descreve um fenômeno diferente: a disseminação da atividade comercial pelas demais ruas
da cidade, junto às oficinas (que eram também residências) dos produtores, dos artesãos. O
tecido urbano boa parte dele transformou-se ali num grande mercado. Com isso, as
características da sociabilidade, que encontraríamos concentrada na praça de mercado, se
repetem nas demais ruas da cidade.
Além disso, “a economia urbana medieval”, afirma Sennett, “tornou permeáveis” os edifícios
e quadras dos distritos residenciais:
“No distrito parisiense reservado ao comércio de couro, por exemplo, as janelas de cada
oficina exibiam mercadorias, graça a uma inovação arquitetônica: painéis de madeira que se
abriam para servir de balcões. A primeira construção de que se tem notícia, com aberturas
projetadas dessa maneira, data do início de 1100. Usando as paredes dessa forma, os
mercadores expunham as melhores opções do estoque da loja. Aos olhos do comprador
potencial, suas superfícies transformavam-se em zonas econômicas ativas.
O pátio medieval também acabou sendo atraído pela atividade econômica da rua.
Funcionando como um local de exposição e oficina, seu acesso foi aos poucos sendo alargado,
a fim de que se pudesse ver o que acontecia dentro dele. A planta dos distritos de Marais, no
século XVI, previa a ocupação do recinto descoberto no interior do edifício por uma colméia de
187
MUMFORD, 1965, p.398
115
lojas fornecedoras da família nobre ali residente, mas
produzindo e vendendo inclusive para o público em geral.
Essa mudança alterou o tempo da rua. Na cidade antiga,
dependia-se da luz do dia; o comércio, na Paris medieval,
ampliou seu horário, da aurora ao cair da tarde, de tal sorte
que os consumidores podiam ir às compras depois de
concluírem seus próprios afazeres. A freguesia do padeiro
procurava-o ao nascer do sol, enquanto o açougueiro
atendia à noite, depois de ter comprado, preparado e
assado as carnes, durante o dia. O balcão permanecia
montado e o pátio aberto, desde que houvesse movimento
nas ruas.”
188
Graças ao comércio, a rua, com suas atividades e seus
hábitos, aumentou seu alcance no espaço espraiando-se
por quadras e edificações e no tempo varando a noite.
A propósito dessa interpenetração entre rua e propriedade
particular, o historiador Philippe Contamine classifica os
habitantes das “boas cidades do Ocidente no final da Idade
Média” como “membros de uma sociedade urbana
extrovertida”. Pois, para eles, “por mais estreita, ruidosa e
mesmo malcheirosa que fosse, a rua conservava sua força
de atração. Ela representava a comunicação, em todos os
sentidos da palavra, a distração e a ação “a vida. Não a
toa, as casas usualmente voltavam “a abertura de suas
oficinas” e “suas tabuletas” para a rua, assim como sua
fachada mais cuidada, a mais ornada de ‘amabilidades’, suas
aberturas mais amplas.
189
188
SENNETT, 2006, p.165
189
CONTAMINE, 1990, p.440
Figura 50. Início do século XV
França Iluminura do Livre du
gouvernement des princes. Uma
rua comercial, com as oficinas
expondo suas mercadorias sobre
bancadas e revelando o interior
aos transeuntes. (Biblioteca do
Arsenal)
Figura 51. Século XV França
Iluminura de Politiques et
économiques: “O dia da feira”.
(Biblioteca Nacional da França)
Em cidades menores, a prática das
feiras permaneceu durante toda a
Idade dia como local de troca
entre camponeses e artesãos da
região.
116
Veremos mais sobre a imbricação entre espaço público e privado nas cidades da Europa
Medieval ao tratarmos mais detalhadamente das vizinhanças e moradias.
Guildas e Paço da Cidade
As primeiras notícias que temos das guildas medievais datam do século IX.
190
Antecedem,
portanto, o início do renascimento urbano, o que nos leva a crer que elas deviam se localizar
em aldeias ou nas antigas cidades que subsistiam por essa época. As guildas seriam
herdeiras das “antigas corporações romanas” que “não desapareceram em sua totalidade”.
Segundo Michel Rouche, “é muito provável que, por exemplo, as dos talhadores de pedra ou
dos vidreiros se perpetuaram guardando cuidadosamente seus segredos e técnicas de
fabricação”.
191
Lewis Mumford compartilha essa opinião sobre a origem das guildas. Os dois autores
observam que havia nelas a mesma mistura de religiosidade e sociabilidade que
encontraríamos nas confrarias romanas. Também na nova instituição medieval, as atividades
comerciais, ao menos inicialmente, não se sobrepunham às outras.
Rouche e Mumford descrevem as guildas de maneira bastante semelhante, divergindo
apenas quanto à religião ali celebrada. Notemos, nas seguintes passagens, que ambas se
referem à Europa Setentrional do século IX. Comecemos por Rouche:
“*...+ essas comunidades marginais que o clero denuncia sob o nome de ‘conjurações’ e outros
chamam de ‘guildas. Homens de toda espécie camponeses, artesãos e sobretudo
negociantes juravam um ao outro, de igual para igual, manter-se juntos, custasse o que
custasse. Tais juramentos ocorriam em 26 de dezembro, dia da festa do deus pagão Jul,
quando podiam aliar-se com os espíritos dos mortos e com os demônios que subiam à
superfície. Os futuros confrades preparavam então gigantescos banquetes onde todos se
empanturravam até vomitar e bebiam até alcançar o estado no qual, mediante a perturbação
de todos os sentidos, podiam entrar em comunhão com as forças sobrenaturais.”
192
190
ROUCHE, 1990, p.417 e MUMFORD, 1965, p.351
191
ROUCHE, 1990, p.416
192
ROUCHE, 1990, p.417
117
Vejamos, agora, a versão de Mumford para as guildas em seu estágio inicial:
“Quando se encontra a guilda pela primeira vez na Inglaterra, no período anglo-saxônico é ela
principalmente uma fraternidade religiosa, sob o patrocínio de um santo, que se reúne para
dar fraternal conforto e ânimo, assegurando aos seus membros a defesa contra os temíveis
acidentes da vida e garantindo um sepultamento decente. Assim, incorporava características
espantosamente iguais às de seu antecessor, senão seu antepassado linear, o colégio funerário
romano, e em muitos casos, passou essas características a instituições similares recentes, [...],
com sua mistura de sociabilidade e segurança. [...] Os irmãos comiam e bebiam juntos em
ocasiões regulares; formavam regulamentos para o desempenho de seus ofícios; planejavam,
pagavam e representavam seus autos de mistério, a bem da edificação de seus
concidadãos.”
193
Como vimos anteriormente, a mesma ambigüidade na adoção de uma religião ocorria nas
confrarias romanas algumas celebrando deuses pagãos, outras homenageando santos
cristãos. Não devemos, no entanto, nos surpreender com tal ambivalência: para ganhar
novos adeptos, a própria Igreja se beneficiou da possível correspondência entre os poderes
mágicos e milagres, entre locais sagrados pagãos e aqueles associados a vida de santos
cristãos. O paganismo sobreviveu um longo tempo sob uma roupagem cristã.
194
E, devemos
lembrar, o século IX é um momento ainda de formação da Europa cristã, sobretudo no
norte.
Por isso mesmo, é notável que as guildas tenham começado a se organizar tão cedo, antes
mesmo da recuperação mais generalizada das antigas cidades ou do início das fundações de
novas o que talvez reforce a tese de serem elas sucessoras diretas das confrarias romanas.
A forte semelhança é, de fato, inegável. Estão novamente presentes: sociabilidade,
religiosidade e associação profissional essa última característica, possivelmente, mais
acentuada no caso medieval. E no centro da sociabilidade, como sua celebração máxima,
está mais uma vez o ato de comer e beber em companhia: o banquete, sempre ele.
193
MUMFORD, 1965, pp.351,352
194
“A conversão de um rei *bárbaro+ não significava a adesão imediata de seu povo, mesmo formalmente, ao
cristianismo; muitos poderiam ser ainda pagãos, gerações mais tarde. (ROBERTS, 1997, p.100)
118
Essas associações passaram por transformações que alteraram algumas de suas
características ao longo da Idade Média. No entanto, afirma Mumford, “a guilda jamais
perdeu sua coloração religiosa. Continuou sendo uma irmandade de convivência, adaptada a
tarefas econômicas específicas e a responsabilidades de comércio, mas não inteiramente
absorvidas por elas”
195
. A situação mudou apenas quando “as dissensões religiosas do século
XVI quebraram a própria fraternidade religiosa”
196
.
Quanto ao papel das guildas de regulamentar a atividade profissional, houve, segundo
Sennett, um momento de ápice (talvez entre os séculos XI e XII) seguido por declínio. Nos
últimos séculos da Idade Média, a concorrência reduziu o controle delas sobre seus
membros, transformando-as em “instituições veneráveis, ritualizadas e ostentatórias”,
porém sem importância. Nessa época, “ser membro de uma guilda não conferia outro
privilégio senão comparecer ricamente vestido a jantares que reuniam pessoas cobertas de
anéis e insígnias, mas que eram vistas como ameaça à sobrevivência do comércio”.
197
Ao
final da era medieval, as guildas haviam se transformado em um “patriciado de prósperos
mestres”, excluindo os artífices mais pobres através de altas taxas de admissão.
198
Ao excluir os artesãos mais pobres, a guilda rompeu os laços de solidariedade que
desempenharam papel importante em relação ao bem-estar de parte considerável da
população. Mumford explica que “a pessoa sem ligações, durante a Idade Média, estava
condenada à excomunhão ou ao exílio: quase à morte”. Para viver, era necessário pertencer
a algum tipo de associação, seja ela uma casa aristocrática, um mosteiro ou uma guilda: “não
havia segurança senão na proteção do grupo”. E fora da Igreja, “o representante mais
universal da vida corporativa foi a guilda: as duas bases da camaradagem, a do trabalho em
comum e de uma fé comum, uniram-se na cidade medieval”.
199
195
MUMFORD, 1965, p.352
196
MUMFORD, 1965, p.355
197
SENNETT, 2006, pp. 171,172
198
MUMFORD, 1965, p.355
199
MUMFORD, 1965, p.351. Charles de la Roncière, historiador francês, chega à mesma conclusão de Munford,
utilizando as seguintes palavras: “Deixar o lar, a morada, a família é descobrir um mundo estranho considerado
muitas vezes perigoso demais para ser enfrentados a sós. As confrarias, as corporações, todos os corpos
estruturados estão ali para oferecer um enquadramento substituto.” (RONCIÈRE, 1990, p.171)
119
Outra importante função desempenhada pelas guildas nas cidades, durante a Idade Média,
foi a condução da administração pública, a partir do paço municipal. Tal era o vínculo entre a
administração da cidade e as guildas, que o paço chegava, às vezes, a desempenhar também
a função de salão de comércio, localizando-se na praça de mercado.
O edifício do paço, como o da catedral, era geralmente a obra arquitetônica mais
significativa da cidade. A descrição que Mumford faz do palácio de Bruges mostra que ali se
constituía também tal como nos edifícios das guildas um espaço de sociabilidade: “O
salão superior do paço municipal era usado para as reuniões do prefeito e do conselho, para
a administração da justiça, para a recepção dos embaixadores e para periódicos banquetes e
bebedeiras
200
.
O paço municipal era uma espécie de sede de todas as guildas e freqüentado pelos membros
mais importantes de cada uma. Constituía, portanto, um espaço voltado para uma elite de
produtores e mercadores, o que se acentuou quando as próprias guildas tornaram-se mais
fechadas.
“No paço municipal, perto do fim da Idade Média, as famílias de destaque, oriundas
principalmente do círculo mais rico de mercadores em grosso, podiam para inveja do resto
da população , realizar seus bailes e saraus. Transformou-se o paço, na realidade, numa
espécie de palácio coletivo para o patriciado.”
201
200
MUMFORD, 1965, p.356
201
MUMFORD, 1965, p.356
Figura 52. Final do século XV Aachen (Alemanha) Albrecht Dürer. Desenho do paço da cidade de Aachen.
(Museu Condé)
120
As feiras, as praças de mercado, as ruas de comércio, as guildas e o paço municipal eram
locais onde sociabilidade e atividade econômica estavam ligadas. Passaremos agora à
associação entre sociabilidade e religiosidade nas cidades da Idade Média.
Igrejas, catedrais, cemitérios e procissões
Os mosteiros eram postos avançados da Igreja no campo, em áreas desabitadas,
funcionando como comunidades cristãs ideais para quem se associasse a uma ordem
religiosa. Mas, desde bem cedo na Idade Média, a Igreja estava presente também em
qualquer estabelecimento populacional, cidade ou aldeia, onde houvesse cristãos.
Em um primeiro momento, na Alta Idade Média, com a exceção talvez das sedes de
bispados, as igrejas “urbanas” dificilmente rivalizariam com os mosteiros em importância na
sociedade medieval, como a arquitetura da época demonstra. Apenas com o crescimento
das cidades, em população e riqueza, é que se transfere para suas igrejas e não mais
apenas para os mosteiros rurais a maior parte dos recursos da cristandade medieval.
As grandes catedrais são símbolo dessa nova confluência de investimentos para novas e
velhas cidades. As datas de construção das catedrais coincidem com o período de
desaceleração de fundações de novos mosteiros, e isso num momento em que a Europa
registra acentuado crescimento demográfico.
A vida urbana medieval, que se intensifica do século XII em diante, era em muitos aspectos
determinada pela Igreja. As divisões políticas fundamentais eram a paróquia e a diocese que
compreendiam uma área identificável da cidade, tendo ao seu centro um edifício coletivo de
culto e uma autoridade representante do Papa (“muitas vezes, como em Veneza, a unidade
de vizinhança era identificada com a paróquia e recebia seu nome da igreja paroquial”
202
). O
dízimo era a forma de tributo universal. Parte considerável da comunidade urbana era
constituída de membros da Igreja: acólitos, subdiáconos, diáconos e sacerdotes.
202
MUMFORD, 1965, p.402
121
Mumford chega a afirmar que “a principal atividade dessa comunidade não era o comércio,
mas sim “o culto e a glorificação de Deus”. Certamente permeava não apenas a vida na
cidade, mas toda a existência medieval. Especificamente sobre o papel da Igreja no meio
urbano, Mumford comenta:
“A Igreja era uma instituição multilateral; e o edifício da Igreja desempenhou muitas funções
que mais tarde foram separadas e atribuídas a instituições seculares especializadas. Mas,
mesmo em seu nível mais humilde, na paróquia da cidade, a igreja era um centro de
vizinhança, um foco da vida diária da comunidade; nenhuma comunidade era tão pobre que
não possuísse tal igreja, muito embora, no centro da cidade, pudesse existir uma vasta
catedral, suficientemente grande para conter todos seus cidadãos em ocasiões solenes ou
festivas.”
203
A igreja paroquial seria, portanto, o núcleo de sociabilidade de uma vizinhança, em seu
cotidiano. A catedral, por sua vez, seria o centro de sociabilidade da cidade como um todo,
nas ocasiões especiais.
Diante disso, Le Goff defende que, em certo sentido, as sedes da Igreja, mais do que as
praças, desempenhavam um papel equivalente ao fórum na cidade antiga: “quando há
203
MUMFORD, 1965, p.348
Figura 53. 1410 d.C. França Paul e Jean de Limbourg. Detalhe da iluminura “Junhodo livro Les très riches
heures du Duc de Berry. (Museu Condé)
A cidade de Paris aparece representada aqui com a Sainte-Chapelle, a direita, sobressaindo na paisagem.
122
encontros e discussões, isso se com mais freqüência nas
igrejas, sobretudo na sua parte anterior, o átrio”
204
. Uma
comparação mais precisa, talvez, seria entre o átrio da
catedral e a basílica do fórum. A propósito, como vimos, a
basílica romana dá origem ao templo cristão.
Como locais de sociabilidade, igrejas e catedrais
demonstram que, aos olhos dos cristãos medievais, podiam
ser locais de uso o exclusivamente religioso. Mumford,
aliás, aponta, pelo contrário, para sua versatilidade:
Em verdade, deve-se pensar na igreja como hoje se
pensaria num ‘centro de comunidade’: não demasiado
sagrada para servir de sala de refeições para uma grande
festa, de teatro para uma festa religiosa, de fórum onde os
estudiosos das escolas das igrejas podiam encenar
competições oratórias e disputas eruditas, num dia santo,
ou mesmo, nos primeiros tempos, de depósito de bens
valiosos, por trás de cujo altar-mor títulos ou tesouros
podiam ser resguardados, a salvo de todos exceto os
incorrigivelmente perversos.
205
Tal como a igreja, o cemitério era também, na Idade Média,
“um lugar de sociabilidade, alheio a todo respeito religioso”,
afirma Le Goff. “Ele somente terá um estatuto
exclusivamente religioso tardiamente, a partir do século XIII.
Até então, é um lugar de encontro e mesmo de diversão”.
206
A presença do cemitério na cidade é uma inovação
medieval. Gregos e romanos “impeliam o morto impuro
204
LE GOFF, 1998, p.10
205
MUMFORD, 1965, p.397
206
LE GOFF, 1998, p.11
Figura 54. 1485-1490 d.C. França
Jean Columbe. Iluminura Missa
de Natal do manuscrito Les très
riches heures du Duc de Berry.
(Museu Condé)
Figura 55. 1312-1317 d.C. Assis
(Itália) Simone Martini. Afresco.
Velório de São Martim. (Basílica
de Assis)
123
para fora da cidade”
207
. Sennett menciona o temor dos atenienses da proximidade dos
mortos, ao passo que, na Idade Média, o sentimento era oposto, a ponto da câmara
mortuária se tornar “um espaço cerimonial público”: “junto a leitos de morte, muitos
dramas reúnem multidões de pessoas conversando, bebendo, comendo e rezando fazendo
companhia ao morto”.
208
Além da sociabilidade que tinha lugar em igrejas, catedrais e cemitérios, da religiosidade
medieval provinha ainda uma outra forma de sociabilização bem característica: a procissão.
Associada mais a datas do que a lugares, era, talvez, o ponto culminante de toda a vida
social urbana. A própria cidade servia de palco, através de suas principais praças e vias, e
contava com a participação ativa da maioria de seus habitantes, com todas as suas
instituições ali representadas.
Mumford transcreve um relato do artista alemão Albrecht Dürer sobre uma tradicional
procissão em Antuérpia, no início do século XVI. O autor americano faz questão de afirmar
que, fora das páginas de John Stow, historiador inglês também do século XVI, não conhece
descrição que um senso mais vivo da cidade medieval
209
. Dadas as suas credenciais,
reproduzimos as palavras de Dürer na íntegra:
No domingo depois da Assunção de Nossa Querida Senhora, eu vi a grande procissão da Igreja
de Nossa Senhora de Antuérpia, quando a cidade inteira, de todos os ofícios e de todas as
condições, achava-se reunida, cada qual a usar as suas melhores roupas, conforme a sua
posição. E todas as ordens e corporações ostentavam as suas insígnias, pelas quais podiam ser
reconhecidas. Nos intervalos, eram conduzidos grandes e caros círios e três compridas e
antigas trombetas francas de prata. Havia também à moda alemã muitos pífaros e tambores.
Todos os instrumentos eram forte e estrepitosamente soprados e batidos.
Vi a procissão passar ao longo da rua, o povo alinhado em fileiras, cada homem a certa
distância do vizinho, mas as fileiras muito próximas umas das outras. Estavam ali os ourives, os
pintores, os pedreiros, os bordadores, os escultores, os marceneiros, os carpinteiros, os
marinheiros, os pescadores, os alfaiates, os sapateiros enfim, trabalhadores de todas as
207
LE GOFF, 1998, p.11
208
SENNETT, 2006, p.148
209
MUMFORD, 1965, p.363. Vê-se que, para Mumford, a “cidade medieval” prolonga-se século XVI adentro.
124
espécies, e muitos artesãos e negociantes que trabalhavam para ganhar a vida. Da mesma
forma, os comerciantes mercadores e os seus assistentes de todos os tipos ali se encontravam.
Depois deles vinham os arqueiros com fundas, arcos e bestas, e também os cavaleiros e os
infantes. Depois a guarda dos Magistrados do Senhor. Em seguida, uma tropa requintada, toda
de vermelho, nobre e esplendidamente vestida. Precedendo-os, entretanto, seguiam todas as
ordens religiosas e os membros de algumas fundações, muito devotadamente, todos com as
suas diferentes vestimentas.
Uma companhia bem grande de viúvas também participava da procissão. Sustentavam-se com
o trabalho de suas próprias mãos e observavam uma regra especial. Estavam todas vestidas da
cabeça aos pés, em roupagem de linho branco, feita expressamente para a ocasião, muito
tristes de se verem. Entre elas observei algumas de grande dignidade. Depois de tudo, vinha o
Capítulo da Igreja de Nossa Senhora, com todo o seu clero, escolásticos e tesoureiros. Vinte
pessoas conduziam a imagem da Virgem Maria com o Senhor Jesus, adormecida de maneira
custosa, em horas do Senhor Deus.
Nessa procissão, numerosas coisas deliciosas foram mostradas, que produziam grande efeito.
Carroças eram arrastadas, levando em cima efígies de navios e outras estruturas. Por trás delas
vinham as Companhias dos Profetas, na sua ordem, e cenas do Novo Testamento, tais como a
Anunciação, os Três Reis Magos montados em grandes camelos e em outros animais raros,
muito bem arranjados... Do princípio ao fim, a procissão durou mais de duas horas, antes de
ter acabado de passar pela nossa casa.
210
Mumford se impressiona com o vasto número de pessoas que tomam parte ativamente na
procissão:
Como na própria igreja, os espectadores eram também comungantes e participantes:
introduziam-se no espetáculo, olhando-o de dentro, não apenas de fora; ou antes, sentindo-o
de dentro, agindo em uníssono, não como seres esquecidos, reduzido a um papel
especializado.
211
A procissão medieval tornava explícita a unidade existente na cidade em torno do
cristianismo. A religião comum conferia o sentido de comunidade entre a população, apesar
das eventuais diferenças pessoais, familiares ou corporativas. Havia, contudo, um outro lado
210
MUMFORD, 1965, pp. 363,364
211
MUMFORD, 1965, p.364
125
desse sentimento de unicidade religiosa: a aversão a todos os não-cristãos, habitantes ou de
passagem por suas cidades. Sennett lembra o caso do Gueto, o bairro judaico em Veneza,
onde os judeus ficavam confinados, tendo sua circulação rigidamente controlada. De
qualquer modo, ao término da era medieval, em boa parte da Europa, a divisão dentro do
próprio cristianismo abalaria definitivamente a pretensa associação entre cidade e
comunidade religiosa.
Nos espaços religiosos, assim como nos comerciais, a sociabilidade acompanhava as
atividades principais desempenhadas. A seguir, ao estudarmos a sociabilidade nas áreas
das cidades predominantemente residenciais, poderemos observá-la em seu estado mais
puro, livre de amarras institucionais.
A vizinhança e seus equipamentos
As grandes transformações sociais ocorridas na Idade Média ficam patentes se compararmos
a epígrafe do capítulo anterior com a seguinte passagem do historiador francês Charles de la
Roncière:
“O homem não foi feito pra viver salvo vocação particular, eremita ou bandido , é um
animal social ou, para retomar a esse respeito a opinião do franciscano veneziano Fra Paolino
Figura 56. Gentille Bellini. Procissão na Piazza San Marco, com a catedral ao fundo. (Galeria da Academia)
A praça apresenta uma configuração ainda diferente da atual, com o campanário contíguo a uma antiga loggia,
demolida posteriormente.
126
(1314): Fagli mestiere a vivere con molti. Con molti, com muitos outros, mas sem
desordem.”
212
Não distância maior na Europa medieval, em termos sociais, do que a que separa a Itália
dos séculos XIV e XV e as antigas províncias romanas dos séculos VI e VII, sobretudo as do
norte. São os dois extremos daquilo que costuma ser agrupado como Idade Média tão
divergentes que obrigam os historiadores a separá-los através de sub periodização. No
entanto, são situações representativas do que ocorreu em maior ou menor grau por todo o
continente ao longo dos mil anos que encerram a era medieval, dando inclusive uma noção
de movimento (que, embora não uniforme, é facilmente verificável), partindo de um modo
de vida exclusivamente rural para outro urbano.
Roncière, compartilhando da opinião de Mumford mencionada no primeiro capítulo, e
corroborada aqui por Fra Paolino, considera a vida em sociedade como uma tendência, fruto
de uma necessidade do homem... Homem em geral, medieval, italiano? Ao contrário de
Mumford, Roncière tem o cuidado de ser mais específico:
“Ao longo de sua existência, cada um, nessa Itália altamente urbanizada e sociabilizada, tem a
oportunidade, a obrigação ou o desejo (como substituto ou derivativo) de integrar-se
duradouramente ou não em diferentes meios de sociabilidade coletiva”
213
.
Essa sociedade medieval urbana descrita pelo frei veneziano apresenta três níveis aos quais
poderíamos associar três formas distintas de sociabilidade.
“Viver em sociedade é participar, sempre segundo Paolino, em três meios imbricados: a
grande comunidade política, cidade ou reino (ou outro distrito), o grupo de vizinhos (vicinato),
a casa. Nessa ótica, amplamente partilhada, grupos particulares se recortam no interior da
esfera pública (cidade ou reino), grupos dotados de autonomia e que se podem qualificar de
privados. A casa (casa, ostau etc.) representa seu centro, mas não encerra toda a existência
privada. Esta ultrapassa a família e a morada, e impregna um meio mais aberto, o vicinato de
nosso franciscano. Falar de vizinhança é insistir na solidariedade de vizinhos, de pessoas
levadas a ladear-se cotidianamente, mas essas antenas privadas que prolongam a simples
212
RONCIÈRE, 1990, p.163
213
RONCIÈRE, 1990, p.173
127
existência doméstica se estendem mais adiante, e de maneira multiforme, na vasta
comunidade (cidade, cantão) que alberga cada um.”
214
Cidade, vizinhança, casa: cada uma dessas esferas conta com seus lugares de sociabilidade
típicos. Os da cidade são a praça de mercado e a catedral, acessíveis a todos, onde é possível
permanecer anônimo. A vizinhança, ou bairro, tem como locais de encontro os largos e
praças menores, a paróquia, as tabernas e demais comércios, as loggias, as fontes, os
banhos públicos (onde são permitidos). O anonimato é mais improvável aliás, freqüenta-se
esses lugares para encontrar conhecidos. Por fim, a casa pode contar com um pátio interno,
uma sala de jantar e, às vezes, um comércio próprio no andar térreo. Na casa, recebe-se os
amigos. Dos locais de sociabilidade da cidade, tratamos anteriormente. Passaremos agora
à vizinhança e, a seguir, à moradia citadina.
Roncière referindo-se sempre à Toscana, “no limiar da Renascença” aborda a diferença
entre os espaços de sociabilidade da vizinhança e os da cidade como um todo, revelando a
preferência dos habitantes pelo primeiro:
“Os espaços previstos para esse fim loggie de consorterie, bancos construídos nas praças etc.
são freqüentemente para os homens um lugar tácito de encontro vesperal ou matinal, para
onde cada um se dirige quando faz bom tempo. Aos mais famosos (Mercato Nuovo, Santo
Apolinario em Florença) as pessoas se dirigem de toda parte, e a companhia numerosa aí
forma um círculo. Mas as pessoas preferem muitas vezes as intimidades muito simples das
banquetas que flanqueiam sua casa, e é geralmente ali que se reúnem à noite entre vizinhos,
come è d’usanza. Os velhos evocam seu passado, suas viagens, o estrangeiro etc. (Boccaccio).
As pessoas riem ruidosamente dicendosi novelle (Sacchetti). Mas adora-se sobretudo falar das
mulheres; uma noite, cada um escarnece a esposa do vizinho, uma outra noite, uma
conversação mais picante se organiza em torno do tema: como, em suas relações íntimas com
a esposa, o homem sempre acaba por ceder (Sacchetti). As conversas vão no mesmo
214
RONCIÈRE, 1990, pp.163,164. No campo, essa sociabilidade coletiva ocorria em ocasiões especiais (“na
festa, no jogo dominical”), não no cotidiano. Segundo Roncière, “poder-se-ia aplicar a muitas aldeias
camponesas a descrição de uma noite de festa na hospedaria de Pontassieve (Toscana): ‘Umas boas três
dezenas de camponeses se haviam reunido, segundo o hábito das noites de festa, para ali beber, jogar, contar
suas inépcias’ (fim do século XV)”. (RONCIÈRE, 1990, p.172)
128
andamento nas loggie aristocráticas, e isso desde a manhã, entre os homens que ali se
encontram a cerchio.”
215
“Um lugar tácito de encontros” define de modo sucinto o que entendemos por “espaço de
sociabilidade”. Notemos que Roncière aplica a expressão tanto aos locais onde se
encontraria desconhecidos (nos principais centros urbanos), como conhecidos (na
vizinhança). Encontrar-se é ver e ser visto forma de interação mais elementar pelo outro,
conhecido ou não.
Roncière refere-se sempre a Itália, mas, consultando Mumford, descobrimos que “a divisão
da cidade em bairros era um traço característicotambém das demais cidades da Europa na
Idade Média.
Em cidades italianas, o estabelecimento de laços privados entre lares, de uma mesma
linhagem ou não, era favorecido pela configuração do espaço urbano. Essa, por sua vez, era
determinada pelo enraizamento de grupos familiares em certas áreas específicas: no início
215
RONCIÈRE, 1990, p.248
Figura 57. 1338-1340 d.C. Siena (Itália) Ambrogio Lorenzetti. Trecho do afresco Alegoria do Bom Governo,
do Palácio Público de Siena.
A pintura retrata uma cidade e diversas situações de sociabilidade discutidas nesse capítulo: os encontros e
trocas na rua, no largo, sob a loggia, diante de um comércio...
129
do renascimento urbano, na Itália, grandes famílias construíram suas torres, depois suas
casas, em um espaço restrito que cada uma delas colonizou e muitas vezes fortificou.
216
Essa “recolonização” urbana se verifica em diversas cidades, cada qual à sua maneira: em
Florença, as casas de uma linhagem se reuniam bem próximas, ao redor de uma praça, de
uma torre, de uma igreja, de uma loggia; em Pisa e Siena, em blocos de edifícios fortificados,
ao redor de um palácio; em Gênova, eram agrupadas em bairros estreitos. A solidariedade
entre vizinhos, resultante dessa conformação, não foi rompida durante o restante do
período medieval.
217
Tal solidariedade, feita de familiaridade, de convivências, de alianças e de interesses
comuns, unia os habitantes desses bairros membros da consorteria ou linhagem, seus
clientes, seus amigos, ou simplesmente seus locatários e alimentava a sociabilidade.
218
Esses vínculos geravam muito normalmente encontros, discussões, tagarelices”, os quais
eram por vezes enquadrados em estruturas públicas (diversas assembléias de paróquia, de
gonfalões etc.)”, mas permaneciam no mais das vezes privados por suas ocasiões, sua
espontaneidade, os assuntos informais de sua conversação”.
219
O estudo de Mumford sobre a Idade Média, por contemplar mais a Europa Setentrional em
contraponto a Roncière que analisa especificamente a Itália, oferece ainda uma outra visão
(complementar, talvez) sobre a conformação das áreas residenciais nas cidades.
Mumford acrescenta que “a integração em unidades residenciais primárias, composta de
famílias e vizinhos,” o vicinato “foi complementada por outra espécie de divisão, em
distritos, baseada na vocação e no interesse”. Seus exemplos são todos do norte da Europa:
216
RONCIÈRE, 1990, pp.241,242
217
RONCIÈRE, 1990, pp.241,242. Roncière acrescenta que “famílias camponesas imitam os nobres: podem-se
localizar em certas aldeias toscanas verdadeiros burgos ou bairros aldeões pouco a pouco construídos no
século XIV, pelas linhagens que se ampliavam, para permitir-lhes permanecer agrupadas.”
218
RONCIÈRE, 1990, p.242. A clientela, comum na Roma Antiga, reaparece na Itália da Idade Média. Em sua
nova versão, porém, ela assume uma conotação amistosa que, pelas fontes estudadas, não observamos na
anterior: “Recobrindo a amizade e a vizinhança, os poderosos (nobres, burgueses, homens de negócios)
aparecem amplamente rodeados, segundo as fontes, de amici e seguaci, em outras palavras, a clientela.”
(RONCIÈRE, 1990, p.171)
219
RONCIÈRE, 1990, pp.241,242
130
“Em Regensburgo, já no século XI, a cidade foi dividida num distrito clerical, num distrito real e
num distrito de mercadores, correspondo assim às principais vocações, ao passo que os
artífices e camponeses devem ter ocupado o resto da cidade. A essa constelação, cidades
universitárias como Toulouse ou Oxford acrescentavam também o distrito de seus colégios [...]
a propagação dos distritos conventuais, diferentes dos distritos da catedral, igualmente se
sucedia, adicionando seus jardins e espaços abertos, ainda que privados, à soma dos espaços
abertos da cidade.”
220
Segundo Mumford, “o grupo vocacional especializado suplementava, num novo conjunto de
relações e deveres, a família primária e os grupos de vizinhança”. Desse modo, “todos
tinham lugar na nova cidade”, nas cidades que surgiram ou ressurgiram no decorrer do
período medieval.
221
Ao que parece, agrupamentos urbanos (vizinhanças, bairros, distritos) podiam apresentar
origens distintas, mas não se formavam ao acaso. Havia laços comuns de alguma espécie
familiar, ocupacional que atraíam os moradores. Possivelmente, eram esses laços comuns
que facilitavam, durante a Idade Média, o desenvolvimento de uma sociabilidade intensa
nas áreas urbanas residenciais.
222
Sobre os locais de sociabilidade próprios dos bairros, Mumford fornece indícios de quais
esses poderiam ser ao afirmar que, usualmente, contava “cada qual com sua igreja ou
igrejas, muitas vezes com um mercado local de provisões, sempre com seu próprio
suprimento local de água, um poço ou uma fonte”.
223
Roncière, por sua vez, conta como, nos bairros italianos, “equipamentos por vezes simples
eram instalados dentro e fora das casas para permitir encontros entre vizinhos
224
. Na
medida em que a sociabilidade se ampliava de um grupo mais privado a outro mais amplo,
as adaptações arquitetônicas feitas por moradores ganhavam o espaço exterior das
residências. Assim, a cidade vai sendo moldada, mesmo na menor escala de intervenção, às
práticas de sociabilidade:
220
MUMFORD, 1965, p.403
221
MUMFORD, 1965, p.342
222
Sociabilidade ali era intensa, especialmente, se comparada às nossas cidades atuais.
223
MUMFORD, 1965, p.402
224
RONCIÈRE, 1990, p.242
131
Nas moradas abastadas onde o andar térreo se interpõe entre a rua o privado estrito da
família, a sala que é aí freqüentemente arranjada parece destinada precisamente a esses
encontros do privado ampliado. O inventário de Piero Mostardi (Florença, cerca de 1390) ali
enumera bancos, tamboretes (de quinze a vinte lugares, no total), mesas, cântaros, garrafas,
copos, material evidentemente destinado a refrescar as brigate, tanto mais facilmente quanto
a sala dá para a volta onde seiscentos litros de vinho branco e tinto esperam ser bebidos.
225
Parte da casa podia, portanto, funcionar como uma extensão da vizinhança, se o morador
assim o desejasse. Retornando ao exterior:
Para os belos dias em que se gosta de tomar a fresca fora, bancos de alvenaria foram
preparados ao longo dos imóveis. Cada um pode ali sentar ao abrigo de uma sacada. As
pracinhas dos castellari de Siena e dos blocos formados pelas linhagens florentinas o
freqüentemente rodeada por eles, como umas tantas ágoras em miniaturas abertas a todas as
parlamentações.
226
As vizinhanças contavam ainda com “os claustros, o poço comum, a loja do ferreiro, o átrio
das igrejas, o cabaré (para os homens), locais que proporcionavam ocasiões para que os
vizinhos trocassem algumas conversas, algumas tiradas ou algumas palavras.
Mumford lembra que, nas cidades da Itália e da Suíça, “a fonte pública” um poço comum
mais elaborado era muitas vezes uma obra de arte, agradável à vista, ao mesmo tempo
que capaz de matar a sede”. E concorda que a fonte era, ademais, um foco de
sociabilidade, dando ocasião para encontro e troca de mexericos, que o chafariz, não
menos que o salão de barris da taberna, fazia as vezes do jornal falado de um distrito.
227
Mas, de acordo com Roncière, os dois locais mais típicos da sociabilidade da linhagem, sua
clientela e seus vizinhos eram: a igreja paroquial alternadamente centro sacro (durante as
cerimônias) e profano (nos intervalos) e a loggia.
228
Esse último, um elemento arquitetônico tipicamente italiano, é descrito por Roncière como
um vasto local aberto no mesmo nível da rua por arcadas onde os homens da linhagem e
225
RONCIÈRE, 1990, p.242
226
RONCIÈRE, 1990, p.242
227
MUMFORD, 1965, p.383
228
RONCIÈRE, 1990, p.243
132
do clã (mais raramente os outros) se reúnem para tagarelar, discutir, arbitrar suas
contestações, gerir seus bens (recebendo vassalos e arrendatários) e exibir-se. Eram
freqüentadas “mesmo na noite escura”.
229
A loggia é a versão medieval das colunatas
romanas e das stoas gregas, que, não mais limitadas aos locais preeminentes da cidade, se
difundiu pelas vias menores de bairros residenciais.
Outro equipamento urbano da Idade Média que merece destaque, embora sua existência
não abrangesse toda a Europa, é a casa de banho, versão mais modesta do banho público
romano. Segundo Mumford, eram instituições características em todas as cidades do norte e
podiam ser encontradas em todos os bairros. Podiam ser dirigidas por particulares, embora,
mais usualmente, o fossem pela municipalidade.
230
Até certa altura, as casas de banho cumpriam apenas sua dupla função de prover a higiene e
Mumford menciona explicitamente a sociabilidade:
O banhar-se era uma diversão de família. [...] O próprio ato de reunir-se numa casa de banho
promovia a sociabilidade, sem qualquer embaraço a respeito da exibição do corpo, como
Dürer mostra claramente numa das suas gravuras. O banho era o lugar onde a gente trocava
mexericos e comia; aliás, às vezes, uma pessoa mergulhava na banheira com um companheiro
do sexo oposto.
231
No entanto, tardiamente na Idade Média, o programa familiar cedeu lugar ao programa
sexual nas casas de banho. Mumford aponta uma possível causa: com a multiplicação do
número de solteiros, talvez também com a deterioração da própria vida familiar, as casas de
banho tornaram-se lugares freqüentados por mulheres perdidas, à procura de vítimas, e por
homens luxuriosos em busca do prazer sexual.
232
Os bairros perderam, com isso, em
229
RONCIÈRE, 1990, p.243
230
“Tão difundido era o banho na Idade Média que o costume se propagou até para os distritos rurais afirma
Mumford, para quem o banho medieval, em sua essência, perdurou até o século XX no meio rural russo e
finlandês.
231
MUMFORD, 1965, p.381
232
MUMFORD, 1965, p.381
133
alternativas de sociabilidade e condições de saúde e higiene
conseqüências, como o quer Mumford, de sua decadência
moral.
233
O estudo mais detalhado das áreas residenciais, se
comparado ao dos principais núcleos da cidade, tem a
vantagem de revelar as atividades de grupos sociais de
menor visibilidade. As páginas da História da Vida Privada
que tratam das relações de vizinhança nas cidades italianas,
ao final da Idade Média, são ricas em informações acerca da
sociabilidade entre a juventude tema até então ausente
em nosso estudo.
234
A seguir, observamos como os jovens
se reuniam e se divertiam.
A “amistosa familiaridade que distingue o privado ampliado
na Itália nasce, segundo Roncière, na infância,
desabrochando nas brincadeiras. As crianças de um bairro
formavam bandos as brigates os quais misturavam
meninos e meninas, sem nenhuma preocupação com os
meios sociais: “o filho de um rico comerciante pode formar
233
A prostituição remete a outro gênero de encontro mal visto pelas autoridades municipais: o jogo. Roncière
aborda essa paixão que beirava o vício e reunia pessoas de diversas partes da cidade. Muito embora os
jogadores se reunissem pelo prazer do jogo, não do contato com outros jogadores, essa prática merece ser
citada:
“Há em primeiro lugar o jogo, o jogo por excelência, o jogo de azar (ad zurdum) que é um jogo de dados.
As pessoas se entregam a eles por toda parte, com paixão, de dia ou sobretudo à noite, em casa (e
reencontramos o privado doméstico), em certos lugares tolerados (feiras, mercados), porém ainda mais
de maneira clandestina em toda parte onde um espaço, mesmo restrito, pode abrigar e dissimular
alguns jogadores e um toco de vela: mercados desertos, loggie, desvãos de portas, soleiras de palácios,
ruelas, cantos de praça, ribanceiras de um rio etc. Grupos se aglomeram, em meio às vociferações
surdas, reunindo ao acaso dos encontros desconhecidos originários dos mais diversos bairros,
inteiramente fora dessa sociabilidade normal que une duas pessoas dos mesmos bairros ou das mesmas
paróquias. E, no entanto, essa fauna do jogo (como aquela mais evanescente, episódica e dispersa dos
homossexuais), a despeito do desconforto, do frio, das rondas policiais (que a dão a conhecer), agarra-
se com paixão àquilo que reúne. Excrescência particular, secreta, exigente mas corrente da sociabilidade
privada, ela tem seu lugar nesse percurso panorâmico do privado.” (RONCIÈRE, 1990, p.173)
234
Não foi possível tratar separadamente da juventude em relação aos períodos anteriores, ela aparece
ocasionalmente. Na Grécia, por exemplo, os rapazes estavam presentes com certo destaque no ginásio,
enquanto as moças e crianças participavam do gineceu junto às mulheres adultas.
Figura 58. 1496 d.C. Alemanha
Albrecht Dürer. Xilogravura. “A
casa de banho”. (Museu de Arte
de Cleveland)
134
par coma a filha de um simples alfaiate sem que essa boa camaradagem abale ninguém”. As
brincadeiras, que transcorriam pelas ruas do bairro, uniam essas crianças “em uma mesma
convivência”.
235
Essa convivência prosseguia na adolescência, “com mais força e autonomia”. O “pequeno
mundo formado na infância era ampliado, expandindo-se pela cidade e alterando suas
atividades. Nessa fase, em lugar dos jogos infantis, via-se “amigos escoltando um galante em
aventura amorosa” ou “grupos alegres reunidos regularmente por bairro com o único
objetivo de banquetear-se e divertir-se”.
236
Novas preocupações surgiam na medida em que cresciam: “sair, vestir-se bem, estar na
moda”. Afirma Roncière: “como em toda parte, o grande assunto dos jovens são as moças,
as estratégias de sedução, as exibições diante das casas, as brigate em expedição amorosa,
as serenatas, as vitórias saboreadas e comentadas entre si”.
237
Na adolescência, a diferença de atitude em relação aos jovens dos sexos masculino e
feminino fica mais nítidas, especialmente entre os mais ricos. Os rapazes tinham mais
liberdade para circular pela cidade e seus arredores (“os magníficos parques dos arrabaldes
para isso oferecem mil ocasiões aos filhos mimados da aristocracia nobre, comercial e
burguesa, tão bem representados pelos jovens dândis civilizados do Decameron
238
).
Na cidade ou no campo, entre moças e rapazes, a dança e o canto eram passa-tempos
universais. Para os jovens da aristocracia, havia ainda, após os dezoito anos, as caçadas e
expedições militares. “no clima mais pacífico e mais plebeu das cidades e das aldeias,
conta Roncière, os rapazes seguem o costume universal da convivência juvenil, com sua
235
RONCIÈRE, 1990, p.244. Brigate era o nome dado aos grupos de jovens urbanos. Contudo, Roncière observa,
igualmente no campo, a existência de uma sociabilidade regular entre jovens: “em Val d’Elsa, por exemplo,
vêem-se as jovens companheiras de santa Verdiana, pastoras de seis a catorze anos, todas dispersas nos
campos, reunir-se quando há ocasião. À sombra de uma árvore ou capela, tagarelam longamente”.
236
RONCIÈRE, 1990, p.171
237
RONCIÈRE, 1990, p.246. “Como em toda parte” é uma expressão usada freqüentemente por Roncière
quando trata da juventude. Embora seu estudo tenha uma abrangência bastante restrita “a Toscana no limiar
da Renascença” , isso não o impede de emitir comentários generalizantes. Ele parecia estender suas
conclusões a respeito da juventude daquele período a outras épocas.
238
RONCIÈRE, 1990, p.245
135
gíria e suas histórias libertinas que só as famílias exigentes e
estruturadas podem vitoriosamente combater em seus
filhos.
239
O grande momento da sociabilidade entre os jovens “ricos
ou menos ricos eram as festas que se organizavam
“constantemente em toda a parte, na Toscana, em Gênova
e mais ainda talvez no Vêneto”. Segundo Roncière, a
juventude era o pavio que se acendia imediatamente à
perspectiva das festas que, sobretudo em Veneza,
alegravam durante quase todo o ano.
240
Da vizinhança, nos resta falar sobre a casa burguesa e em
que medida ela se constituía em espaço de sociabilidade.
Vimos que muitas vezes o andar térreo de uma residência
era usado para fins comerciais. Citamos também um
exemplo em que o térreo funcionava quase como o
prolongamento da rua, da área de convívio da vizinhança.
Havia casos, porém, em que ele era utilizado como local de
transição entre o privado restrito e o espaço público. “O uso
privado do térreo”, diz Roncière, se acentuou quando seu
antigo papel comercial diminui”, promovendo a
valorização do pátio como centro estético e festivo da
morada”.
241
O papel social do térreo fica claro na seguinte
passagem:
“Para chegar talvez ao essencial, beber, comer junto, umas
tantas ocasiões de manifestar e de manter estreitamente
as solidariedades do privado ampliado. Um simples copo,
239
RONCIÈRE, 1990, p.245,246
240
RONCIÈRE, 1990, p.246
241
RONCIÈRE, 1990, p.180
Figura 59. 1338-1340 d.C. Siena
(Itália) Ambrogio Lorenzetti.
Detalhe do afresco Alegoria do
Bom Governo, do Palácio Público
de Siena.
“Francesco di Barberino
reconhece às jovens salvo as de
alta posição, filhas de príncipe ou
de rei a liberdade de encontrar-
se com as companheiras de sua
idade ou de seu bairro. Os
afrescos (Bom governo, Siena,
1338) mostram-nas dançando e
cantando com acompanhamentos
de tamborins ali onde os
regulamentos de polícia não o
proíbem.” (HVP2, p.245)
Figura 60. 1462-1470 d.C.
Bruges (Bélgica) Ilustração do
manuscrito Renaud de
Montauban. Um banquete sendo
realizado no salão de uma
residência urbana. (Biblioteca do
Arsenal)
136
oferecido no andar térreo, não compromete muito, e tem-se freqüentemente a oportunidade
de beber perto de casa para festejar, por exemplo, a chegada do vinho novo à casa do vizinho
(Sacchettti), e nada impede de trazer desconhecidos. Subir ao primeiro andar para uma
verdadeira refeição é um sinal maior de familiaridade, e essa hospitalidade, muitas vezes
oferecida aos parentes, amigos, vizinhos do privado ampliado mas não a todos, dada a
intimidade que comporta lhes é mais estreitamente reservada (salvo a ostentação dos
banquetes).”
242
a sala, localizada geralmente no plano superior, constituía um espaço mais restrito de
sociabilidade: “a grande sala das casas burguesas abre-se sobretudo ao mundo mais vasto
do grupo de parentesco e de convívio, ao mesmo tempo que o filtra, para só permitir a
alguns eleitos o acesso aos quartos”.
243
Ao final da Idade Média, também a nobreza optou por instalar residências nas cidades:
“nesse período, as moradias urbanas dos nobres lembravam suas propriedades no campo;
242
RONCIÈRE, 1990, pp.249,250
243
RONCIÈRE, 1990, p.208
Figura 61. 1410 d.C. França Paul e Jean de Limbourg. Detalhe da iluminura “Outubro” do livro Les très
riches heures du Duc de Berry. A muralha da cidade de Paris e o castelo do Louvre, um “palácio urbano”.
(Museu Condé)
137
os jardins, por exemplo, convertiam-se em vinhedos, pomares e hortas, evidentemente,
muito mais decorativas do que agrícolas”.
244
Sennett cita o caso de Paris, onde o rei francês Carlos V (século XIV) inicia a edificação do
Louvre: “o prédio compunha-se de uma torre principal, um imenso salão de cerimônias e as
salas de reuniões da corte”. Muitos nobres de sua corte o acompanham, construindo seus
palácios lado a lado dando origem a uma vizinhança aristocrática:
Circundando o Louvre, bem próximos uns dos outros, ao longo da rue de Rivolie, eles
instalaram seus próprios salões de recepção, em castelo de cuja torre podiam avistar, não as
tropas inimigas que avançassem, mas o vizinho que, eventualmente, acenasse, convidando-os
para jantar. Assim, a corte constituiu-se numa comunidade, [...] formando uma colméia de
intrigas.
245
Jardins, parques e bosques
tratamos, em passagens anteriores, das praças medievais. Vimos que eram alargamentos
inseridos no sistema viário urbano diante da catedral, do paço da cidade, de um palácio
particular. Podiam contar com uma fonte, uma estátua, mas eram geralmente destituídas de
vegetação.
Ainda assim, durante o período medieval, poderíamos encontrar áreas verdes nas cidades,
seja no interior de suas muralhas (jardins, parques), seja em suas proximidades no exterior
(campos, bosques). Em geral, a extensão dessas áreas era considerável. Mumford chega a
afirmar que a população da cidade medieval típicatinha melhor acesso a “espaços abertos
utilizáveis” do que a de qualquer cidade posterior, até os primeiros subúrbios românticos
do século XIX”.
246
Se as praças eram utilizadas como locais de mercado, feiras, procissões, encontros casuais,
os campos com vegetação rasteira junto às muralhas eram aproveitados para prática de
atividades físicas, dentro de um “espírito de diversão cordial e informal”. O povo medieval”,
244
SENNETT, 2006, p.150
245
SENNETT, 2006, p.150
246
MUMFORD, 1965, p.375
138
prossegue Mumford, estava acostumado à vida ao ar livre:
tinha campos de tiro e campos de péla; jogavam bola,
promoviam corrida e praticavam o manejo do arco; todas
essas oportunidades eram proporcionadas por espaços
vazios bem próximos.
Muitos desses campos, com a
expansão das cidades, tornar-se-iam parques públicos em
períodos posteriores.
247
Ainda nas cercanias das cidades, bosques se prestavam às
caçadas por parte da aristocracia. Essa prática, que remonta
à nobreza da Alta Idade Média, se manteve mesmo quando
as grandes famílias feudais tornaram-se “partidárias da
residência na cidade”, ao final da era medieval, juntando-se
à aristocracia local (de ofício, comércio e bancária).
248
Aliás, muitas dessas novas moradas aristocráticas contavam,
tal como nos castelos do período anterior, com jardins de
recreio “espaços inteiramente adequados, e às vezes
deliciosos, para amplas reuniões privadas”:
“Os Peruzzi, ilustres banqueiros florentinos, arrumam em
1310-1320 uma morada campestre recentemente
comprada por eles às portas de Florença, ali criam um
jardim de recreio, alegrado por tanques e fontes, e fechado
por muros. No final do século, a propriedade dos Alberti é
tão famosa por seu encanto que a apelidam de il Paradiso.
Bosquesinhos de resinosas perfumadas (pinheiros,
ciprestes) foram plantados nas proximidades de fontes e,
nos prados onde elas são esparsas, pastam animais
‘estranhos e maravilhosos’. É que se reúnem as brigate
florentinas (il Paradiso fica às portas de Florença), como o
247
MUMFORD, 1965, p.375
248
CONTAMINE, 1990, p.474
Figura 62. Século XV Bruges
(Bélgica) Uma ilustração do
manuscrito Antiquités judaiques.
Jovens aprendem a nadar no fosso
de uma cidade, sendo observados
por alguns moradores sobre as
muralhas. (Biblioteca Nacional da
França)
Figura 63. 1475-1500 d.C. Bruges
(Bélgica) Ilustração “Le potager”,
do manuscrito Le livre des
prouffitz champestres. Um jardim
urbano da Baixa Idade Média.
(Biblioteca do Arsenal)
139
fazem nos jardins igualmente perfumados dos campos napolitanos, genoveses ou
venezianos.”
249
Ao contrário dos jardins particulares, os das igrejas e catedrais não constituíam espaços de
sociabilidade, embora pudessem ser freqüentados por todos. Tinham, na realidade, uma
função oposta nas cidades maiores: ofereciam um local sossegado em contraste com a
agitação das ruas. Sennett lembra, ainda, que nas residências medievais “não havia um
aposento sequer que permitisse recolhimento individual” e que “a noção de privacidade era
totalmente ignorada”. Por isso, a área ajardinada ao redor de da Notre-Dame de Paris era
apreciada: “se não assegurava a solidão, pelo menos permitia alguma calma e
tranqüilidade”.
250
Sennett explica a organização e o funcionamento desse tipo de jardim:
O projeto paisagista que pretendia criar condições para encorajar a introspecção baseava-se
em três elementos: o caramanchão, o labirinto e o espelho d’água. O primeiro era
simplesmente um local ao abrigo do sol, construído pelos antigos jardineiros com telhado de
madeira, ou simples treliça de galhos, enfeitados de rosa e madressilvas; sob essa tênue
cobertura de flores e plantas, podia-se sentar e ficar escondido de olhares curiosos. [...] No
início da forma medieval, os labirintos simbolizavam a batalha da alma em busca do encontro
com Deus, mas nas cidades o objetivo que se tinha em vista era puramente secular; aquele
que encontrasse o rumo certo, poderia recuar até o ponto central e ali permanecer, livre de
encontros importunos.”
251
Esses lugares, propícios à introspecção, escreve Sennett, constituíam-se num espaço de
melancolia, pleno de sofrimento e, ao mesmo tempo, contemplativo.
252
Aqui aparece uma noção importante ao nosso estudo: a introspecção como uma
necessidade oposta e, ao mesmo tempo, complementar à sociabilidade. O desejo de estar
com o outro, de interagir, se alternaria ao desejo de estar só, recolhido aos próprios
249
RONCIÈRE, 1990, pp.243,244
250
SENNETT, 2006, p.156
251
SENNETT, 2006, p.156
252
SENNETT, 2006, p.155
140
pensamentos. Uma cidade deveria oferecer as duas opções
aos habitantes: de um lado, a segurança e o calor do co-
presença; de outro, a liberdade da solidão.
Talvez os jardins religiosos como os de Notre-Dame, os
“espaços da melancolia”, fossem a solução possível na Idade
Média para a ausência de privacidade e anonimato. Essa
falta fica evidente na observação de Mumford sobre o
tamanho das cidades e seu limitado crescimento:
Mesmo no caso das maiores, nenhuma cidade medieval
usualmente se expandia por mais de 800 metros a partir do
centro; isto é, cada instituição necessária, cada amigo,
parente, parceiro, era na realidade um vizinho próximo,
dentro de uma distância que se podia facilmente cobrir a
pé. Assim, todos os dias se encontravam, por coincidência,
muitas pessoas que não poderiam se encontrar, a não ser
por combinação prévia e esforço, numa cidade maior.
253
Se o tamanho reduzido favorecia a sociabilidade, dificultava
a possibilidade de se passar desapercebido, de não ser
encontrado, de ficar só. Os campos e bosques próximos
ofereciam oportunidades para tanto, é verdade. Mas os
jardins urbanos possibilitavam um escape semelhante,
porém de acesso mais fácil e com maior segurança.
Quando a população das principais cidades européias se
multiplicou na Idade Moderna, sobretudo após a Revolução
Industrial, bairros tornaram-se superpovoados, muitos
vazios urbanos desapareceram e o campo ficou distante
demais. Ganhou-se o anonimato, mas sem qualquer espaço
para a introspecção.
253
MUMFORD, 1965, p.406
Figura 64. 1473 d.C. França
Ilustração do manuscrito Les
heures de Anne de France. Um
“jardim da melancolia”. (Biblioteca
Pierpont Morgan)
141
CONCLUSÃO
O objetivo da presente dissertação, como foi exposto na introdução, é pensar a
sociabilidade, segundo uma perspectiva histórica. Procuramos produzir tal pensamento ao
longo dos capítulos precedentes na medida em que agrupávamos e comparávamos
informações retiradas da bibliografia pesquisada.
Nosso objetivo se realiza, portanto, em cada trecho de nosso estudo; ou, por outro: o
desenvolvimento desse trabalho é sua realização plena, não uma preparação para, ou
busca de, um determinado fim. Ao término, o que pretendíamos obter não era uma
proposição fechando um raciocínio, mas um acúmulo de idéias a respeito do tema.
Essa abordagem não implica, contudo, na mera justaposição de insights autônomos. Ao
contrário, requer coerência e o trabalho constante de auto-confrontação e revisão do
próprio pensamento.
A medida que caminhávamos, cada nova análise era influenciada pelo estado do
pensamento formado até então. E, eventualmente, novas análises nos conduziam à revisão
de idéias elaboradas anteriormente.
Diante dessa estratégia, o título desse capítulo final “conclusão” pode criar falsas
expectativas no leitor. Não há um ensinamento único a ser extraído do texto e exposto aqui,
em poucas linhas.
254
Podemos, entretanto, enumerar, sistematizar, uma série de pequenas conclusões
observadas de maneira recorrente em nosso estudo, em períodos distintos. O que se segue
é um resumo dessas observações. Devemos, antes, alertar: tratam-se de generalizações e,
portanto, devem ser encaradas com inevitáveis reservas.
254
Há, decerto, a confirmação de nossa premissa: a sociabilidade, tal como a entendemos uma interação
social motivada pelo prazer do convívio , está presente na obra dos autores pesquisados e está presente
através do olhar desses autores nos períodos estudados. Tomar isso como conclusão, no entanto, seria tratar
o trabalho como uma tautologia.
142
Sociabilidade primária x Sociabilidade secundária
A sociabilidade é uma relação interpessoal de certo tipo. O sociólogo americano Charles
Horton Cooley classifica as relações interpessoais em: primárias, quando a interação se
entre sujeitos com alguma afinidade pessoal reconhecida (família, amigos, vizinhos), e
secundárias, quando a interação se dá entre anônimos.
255
Por essa definição, seriam locais de sociabilidade primária todos os equipamentos de uma
vizinhança (a igreja paroquial, a casa de banho, a taberna, o poço comunitário, as loggias, as
pequenas praças de bairros) bem como as associações que tinham como finalidade
promover a confraternização entre seus membros (caso das confrarias e guildas). Devemos,
é claro, considerar também todos os espaços residenciais utilizados como local de reunião (o
andron, o triclinium, a aula, o gineceu, o pátio e salão das casas medievais).
Como locais de sociabilidade secundária, podemos citar a rua larga, a ágora, o fórum, os
banhos públicos, circos e anfiteatros romanos, a praça de mercado medieval, a catedral, as
ruas de comércio locais onde predominava a interação entre desconhecidos.
Notemos que, em geral, os espaços de sociabilidade secundária correspondem a pontos
centrais das cidades em edificações ou vazios de destaque na paisagem, enquanto os de
sociabilidade primária encontram-se pulverizados pelo tecido urbano, em abrigos mais
modestos.
256
Poderíamos, talvez, usar os termos “grande sociabilidade” e “pequena
sociabilidade”, em vez de secundária e primária, respectivamente.
Sociabilidade formal x Sociabilidade informal
É possível proceder também a uma classificação dos espaços de sociabilidade de acordo com
o grau de formalidade da sua práxis. Vimos locais onde os encontros transcorriam em clima
255
LE BRETON, 2004, p.17.
256
A exceção fica por conta justamente dos exemplos do meio rural: o salão do castelo ou do mosteiro (ambos
de sociabilidade primária) são construções que dominam a paisagem ao redor. Aliás, numa época de
insegurança como a Alta Idade Média, parece não haver qualquer disposição para a sociabilidade secundária.
143
de plena informalidade, livres de quaisquer regimentos
257
. Em outros, a sociabilidade estava
sujeita a normas próprias caso menos freqüente.
Pertenciam ao primeiro grupo: todas as áreas públicas (fórum, ágora, praças, etc.) tabernas
e demais estabelecimentos comerciais, banhos, circos e anfiteatros.
Como exemplos do segundo grupo, teríamos os espaços de sociabilidade institucionais: o
ginásio, as confrarias, a guilda, o mosteiro cada qual possuindo seu próprio estatuto.
Locais de sociabilidade x Eventos de sociabilidade
Na maioria dos casos, a prática de sociabilidade estava associada a um lugar específico e
tinha ocorrência mais ou menos regular. Podia ser ininterrupta (como no fórum ou na
ágora), possuir horários específicos (antes e depois da missa na igreja paroquial, durante os
espetáculos no circo ou anfiteatro) ou intermitentes (o movimento na taberna ou na praça
da vizinhança).
Havia casos, porém, em que a prática de sociabilidade estava mais associada a uma data ou
época do ano do que a um lugar. Nessa categoria estariam eventos, tais como: os festivais
pagãos gregos e romanos, as procissões medievais, as feiras, as celebrações regionais, as
excursões de caça ou banquetes comemorativos. Alguns desses exemplos sequer tinham
locais fixos para sua realização, variando a cada reunião.
Sociabilidade associada a outras práticas
A sociabilidade independe de qualquer outra atividade humana para sua realização,
podendo ser a causa única de uma reunião de pessoas. Isso fica claro nos encontros
espontâneos nas ruas e praças residenciais e, mais ainda, nas situações em que a
sociabilidade era institucionalizada, como nas confrarias.
257
Estavam, é claro, sujeitos às leis gerais em vigor e aos costumes locais o que não havia, bem entendido,
eram regras específicas a respeito da sociabilidade nesses lugares.
144
Muitas vezes, contudo, ela aparecia associada a outras práticas, beneficiando-se de uma
congregação prévia para outros fins. Vimos a sociabilidade ora acompanhando atividades
comerciais (na ágora, nas praças de mercado, nas vias de comércio), ora tirando proveito de
reuniões religiosas (nos centros cerimoniais, nas catedrais e paróquias, em diversos tipos de
associações religiosas), ora em meio a entretenimentos (nos circos e anfiteatros, nos campos
e parques).
Podemos citar ainda muitas outras atividades que, eventualmente, ofereciam ocasiões para
a sociabilidade, como a formação e treinamento de jovens (ginásios, mosteiros), os cuidados
com saúde e higiene (casas de banho, termas, sanatórios), ou as de caráter utilitário do
cotidiano (buscar água junto a fonte ou levar o pão para assar na taberna). Praticamente
todas as práticas que reuniam pessoas podiam acabar se convertendo também em situações
de sociabilidade.
Se a sociabilidade se beneficiava de outras práticas, a recíproca podia ser verdadeira. O caso
mais evidente é da atividade comercial que, como sugere Mumford, se estabeleceu na ágora
quando ela já havia se caracterizado como local de encontros.
Sociabilidade x introspecção
Anteriormente, listamos uma série de predicados atribuíveis aos espaços ou situações de
sociabilidade que pudemos identificar ao longo de nosso estudo. No entanto, uma outra
maneira de delinear um conceito é examinar sua antítese. E em certos momentos de nossas
análises, em certas situações, se revelava a existência de um impulso em sentido contrário à
sociabilidade.
Vimos que algumas vezes a sociabilidade a propensão ao convívio, ao contato com o outro
é contraposta a uma tendência ao isolamento, à busca por um certo grau de solidão.
Identificamos uma necessidade de introspecção.
Sociabilidade e introspecção seriam impulsos contrários, porém complementares. O desejo
de interagir com o outro, de se integrar, de se sentir parte de uma coletividade, se alternaria
ao desejo de ficar só, de se retirar (ao menos por um tempo) de seu meio social, de ficar sob
a presença apenas de seus próprios pensamentos.
145
Se a cidade é o local por excelência da sociabilidade, o campo é um refúgio para a
introspecção. É para que fogem os heremitas: para a floresta, para o deserto, para as
montanhas. O caso deles, contudo, é extremo à maioria das pessoas, a possibilidade de
fácil acesso ao campo bastaria.
No peodo estudado, a maioria das cidades oferecia aos habitantes equilíbrio: dentro de
suas muralhas, a segurança e o calor do convívio; dos portões para fora, a possibilidade de
solidão. A busca por esse equilíbrio fica ainda mais clara se comparamos alguns dos
equipamentos encontrados em cidades: de um lado, as praças e ruas de sociabilidade; de
outro, os parques e “jardins de melancolia”.
Resta-nos dizer, ainda, algumas palavras sobre a “persistência” da sociabilidade através dos
tempos. Vimos, em nosso estudo, que ela constitui um prazer do qual os homens jamais se
esqueceram e jamais deixaram de buscar, seja na cidade, seja no campo. Desse modo, as
práticas e os espaços de sociabilidade sofrem mutações quando o contexto ao seu redor se
altera. A sociabilidade é fluida. Como uma massa de modelar que escapa por entre os dedos
se esmagada pelas mãos, a sociabilidade encontra novos nichos sempre que seu abrigo
anterior se desmantela. E nosso estudo histórico nos permite dizer é nas cidades, onde
concentração, diversidade e grande número de pessoas, mas também lugares (“nichos”)
para tomar como abrigo, que a sociabilidade melhor se desenvolve.
146
REFERÊNCIAS
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ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Original de 1985)
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Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Original de 1985)
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DUBY, Georges (Org.) História da vida privada, Vol.2: Da Europa feudal à Renascença. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Original de 1985)
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philipe; DUBY, Georges (Org.)
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Letras, 1990. (Original de 1985)
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DUBY, Georges. A solidão nos séculos XI-XIII. In: ARIÈS, Philipe; DUBY, Georges (Org.) História
da vida privada, Vol.2: Da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. (Original de 1985)
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Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. (Original de 1986)
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HOUAISS, Antônio / VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objectiva, 2001.
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LE BRETON, David. L’interactionnisme symbolique. Paris: Presses Universitaires de France,
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MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. (Original de 1961)
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RONCIÈRE, Charles de La. A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença. In:
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Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Original de 1985)
ROUCHE, Michel. Alta Idade Média ocidental. In: ARIÈS, Philipe; DUBY, Georges (Org.)
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SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de janeiro: Record, 2006. (Orignal de 1994)
SOUTHERN, R. W. Western society and Church in the middle ages. Londres: Penguin Books,
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VEYNE, Paul. O Império Romano. In: ARIÈS, Philipe; DUBY, Georges (Org.) História da vida
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(Original de 1985)
WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O
fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1976. (Orignal de 1938)
149
ANEXO A PLANTAS E MAPAS
Fonte: BACON, 1976. (Modificado pelo autor)
Fonte: BACON, 1976. (Modificado pelo autor)
150
Fonte: BACON, 1976.
Fonte: BACON, 1976. (Modificado pelo autor)
151
Fonte: BENEVOLO, 2005. (Modificado pelo autor)
Fonte: BENEVOLO, 2005. (Modificado pelo autor)
152
Fonte: MCEVEDY, 1979.
Fonte: BENEVOLO, 2005.
153
Fonte: BENEVOLO, 2005. (Modificado pelo autor)
Fonte: BACON, 1976. (Modificado pelo autor)
154
Fonte: BACON, 1976. (Modificado pelo autor)
Fonte: PEVSNER, 1970.
155
Fonte: BENEVOLO, 2005. (Modificado pelo autor)
Fonte: BENEVOLO, 2005.
156
Fonte: BENEVOLO, 2005. (Modificado pelo autor)
Fonte: BENEVOLO, 2005. (Modificado pelo autor)
157
Fonte: MCEVEDY, 1979.
Fonte: MCEVEDY, 1979.
158
Fonte: BACON, 1976. (Modificado pelo autor)
Fonte: BACON, 1976.
159
ANEXO B ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO
Volume 1
Capítulo I: Santuário, aldei a e for taleza
Uma aptidão humana 1. A cidade na história
2. Instigações e antevisões animais
3. Cemirios e templ os
As aldeias neolíticas 4. A domesticação e aldeia
As primeiras cidades 5. Cerâmica, hidulica e geocnica
6. A contribuição da al deia
7. O novo papelo do caçador
8. A união neolítico-paleolítica
Capítulo II: A cristalização da cidade
1. A primeira transformação urbana
2. A primeira implosão urbana
3. Ansiedade, sacrifício e agressividade
4. Lei e ordem urbana
5. Da "proteção" à destruição
Capítulo III: Formas e modelos ancestrais
1. Cidades na planície
2. O enigma das ruínas urbanas
3. Urbanismo e monumentalidade
4. Rio, estrada e mercado
5. Inovações e deficiências técnicas
6. Visões contemponeas da cidade
7. O Egito e a cidade aberta
9. Arquétipos ou genes?
Capítulo IV: A natureza da ci dade antiga
1. Desenvolvimento das fuões urbanas
2. Monopólio da criatividade
3. Exsudações culturais
4. Divisão urbana do trabalho
5. Propriedade e posperidade
6. Ritmo de desenvolvimento
7. O drama urbano
Capítulo V: Emergência da Pólis Primeira Parte: Os poderes da voz e dos olhos
Olímpia, Delfos e Cós 1. Fortalezas de Minos
A ágora 2. A voz da al deia
O ginásio 3. Olímpia, Delfos e Cós 1. O corpo do cidadão
O symposium 4. O antigo templo e o novo deus A Atenas de Péricles
A Adonia 5. Paço muni cipal e praça de mercado O calor do corpo
2. A voz do cidadão
1. Cidade e Cidadão Espaços de falar
2. A forma da cidade helênica O calor das palavras
3. A pólis encarnada
4. Regressão à utopia
5. O desafio da diatica grega 1. Os poderes dos corpos frios
A tesmoforia
1. A transição aristolica A adonia
Logos e mythos
2. O corpo sofrido
3. Por baixo da superfície urbana
Capítulo VIII: De Megalópolis a Necr ópolis Volume 1: Do Império Romano ao ano mil
O fórum 1. A herança estrangeira de Roma 1. O Império Romano (Paul Veyne)
Vias e colunatas 2. Cloaca e aqueduto 1. Olhar e crença Do vent re materno ao testamento
Os banhos 3. Fórum, vomitório e banho Os medos de um imperador O casamento
Os espet[aculos 4. Morte na tarde Adriano assassina Apolodro Os escravos
O banquete 5. Invent ário urbano do quinto século Teatrum mundi A casa e seus libertos
A taberna 6. Limites do crescimento urbano 2. Olhar e obedecer Onde a vida públi ca era privada
As confrairas A geometria do corpo "Trabalho" e ócio
O culto a Baco A criação de uma cidade romana Patrimônio
O forum romano Censuras e utopias
A casa romana Prazeres e excessos
3. A obsessão imposvel Tranqüilizações
Capítulo III: O império romano
Capítulo VII: Absolutismo e urbani dade
helênica
2. Da flexível "desordem" à
arregimentada elencia
Carne e Pedra (Richard Sennett)
Capítulo Um : Nudez - O corpo do cidadão na
Atenas de Péricl es
Capítulo Três: A Imagem Obsessiva - Lugar e
tem po na Roma de Adriano
História da vida privada
(org. Philippe Ariès e Georges Duby)
Capítulo Dois: O Manto da Escuri dão - A
proteção do ritual em Atenas
Capítulo VI: O cidadão contra a cidade ideal
A cidade na história (Lewis Mumford)
Dissertação
Capítulo II: O mundo grego
8. De centro cerimonial a centro de
controle
Os centros cerimoniais
paleolíticos
Capítulo I: Nômades, aldeões e
citadinos
A sociabilidade na ascensão do
cristianismo
160
1. O corpo alheio de Cristo
Antínoo e Cristo
Logos é luz
2. Espaços cristãos
A casa cristã
Funcionamento da domus
As primeiras igrejas 2. Antigüidade tardia (Peter Brown)
3. Gaviões e cordeiros de Nietzsche O eletismo pagão
A nova antropologia
A Igreja
O monast icismo
Oriente e Ocidente: a carne
Capítulo IX: Claustr o e comunidade
4. Alta Idade Média Ocidental (Michel Rouche)
1. A cidade celestial
Castelos e cortesãos 2. Necessidade de proteção
O monasticismo O cor po e o coração
A violência e a morte
Sagrado e segredos
Volume 2: Da Europa feudal à Renascença
1. Abertura (Georges Duby)
Poder privado, poder público
Partir das palvras
O privado no direito
Feudalidade e poder privado
Convívio
Parentesco
3. O aumento da população e da riqueza Segunda Parte: Movimentos do coração
4. Cidades licenciadas, fortalezas
col oniais
5. O domínio da Igreja
6. Os serviços da Guilda
1. "Stadt Luft macht frei "
Guildas e paço da cidade 7. Peregrinação, Cortejo e Procissão 2. O corpo compassivo A casa
Capítulo X: Vida dostica urbana medieval
A ars m edica de Galeno Como viver junto
1. O cenário doméstico Henri de Mondeville descobre a síncope O privado pessoal no privado famíliar
A vizinhança e seus
equipamentos
2. Ar, espaço, sani tação 3. A comunidade cris As outras solidariedades privadas
Jardins, parques e bosques 3. Purificação e os cinco sentidos Palácio, catedral e abadia A solidariedade privada posta à prova
4. Princípi os do urbanism o medieval Confessor, esmoler e jardineiro A célula privada matriz da vida interior
5.cleo cívico e vizinhança Trabalho cristão
6. Controle de crescimento e expansão
Volume 2 3. Ficções (Daniellegnier-Bohler)
1. Espaço econômico Explosão de uma literatura
Cité , bourg e commune Espaço e imaginário
1. Cristianópolis - sombra e substância A rua A sociabilidade
2. Veneza versus Utopia Feiras e mercados O corpo
3. Sobr evivências e mutações medi evais 2. Tempo econômico O indivíduo
4. Desm or onamento e fossilização Guilda e corporação
Tempo econômico e tempo cristão
Homo economicus Os arranjos do espaço privado
3. A morte de Ícaro Séculos XI-XIII
Séculos XIV-XV
A emergência do indivíduo
1. Veneza como um ímã A solidão nos séculos XI-XIII
2. Os muros do guet o
Corpos impuros
O preservativo urbano
Judeus e cortesãs
3. Um escudo, não uma espada
Qadosh
O peso do lugar
4. A prodigiosa leveza da liberdade
Abordagem da intimidade nos séculos
XIV-XV
Capítulo XI: Desmoronamentos medievais,
antecipações modernas
Os meios privados, inventário e
descrição
A intimidade privada diante do mundo
exterior
4. Problemas (Dominique Barthélemy,
Philippe Cont amine, Georges Duby, Philippe
Braunstein)
Natureza da arquitetura doméstica das
classes dirigentes
A vida privada nas casas aristocráticas da
França mediev al
A vida privada na conqui sta do estado e
da sociedade
3. Vida privada e arquitetura doméstica na
África romana (Yvon Thébert)
2. Quadros (Georges Duby, Dominique
Barthélemy, Charles de la Roncière)
A vida privada dos noveis toscanos no limiar
da Renascença
Capítulo Cinco: Comunidade - A Paris de Jehan
de Chelles
Capítulo Sete: O Medo do Contato - O gueto
judeu na Veneza renascentista
Espaços "privados" e "públicos": os
compontes da domus
Capítulo Seis: "Cada homem é o seu próprio
demônio" - A Paris de Humbert de Romans
Capítulo Quatro: Tempo no corpo - Os primeiros
crisos em Roma
Capítulo V: O renascimento urbano
na Baixa Idade Média
Das feiras às praças de mercado
e às ruas de comércio
Igrejas, catedrais, cemirios e
procissões
Capítulo IV: A formaçã de uma
soci edade rural na Alta Idade Média
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