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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
José Assunção Fernandes Leite
A República de Platão: relação entre os livros I, II, III, IV e VIII
DOUTORADO EM FILOSOFIA
São Paulo
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
José Assunção Fernandes Leite
A República de Platão: relação entre os livros I, II, III, IV e VIII
Teses apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Doutor
em Filosofia sob a orientação da
Profa. Doutora Rachel Gazolla de
Andrade.
São Paulo
2009
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BANCA EXAMINADORA
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Aos meus Mestres pela confiança, respeito
e dedicação.
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AGRADECIMENTO
Quando atingimos a finalização de uma tese, chega o momento de
pensarmos sobre tudo o que nos foi possibilitado para sua conclusão. Isso
me faz lembrar da conversa entre Céfalo e Sócrates em que o ancião
reclama da falta do amigo, que não o procurou devido às suas condições
físicas e pede para Sócrates que não deixe de ficar, também, com os mais
velhos, pois nessa idade o prazer da conversa aflora. Sócrates, então,
responde ao ancião (328 d e) que é para ele um prazer conversar com
pessoas de idade avançada para que possa se informar, junto deles, como
pessoas que foram à frente num caminho que, talvez, tenhamos de
percorrer, sobre as suas características, se é áspero e difícil, ou fácil e
transitável.
Essa é uma forma de olhar para todo o processo da elaboração de
uma tese e pensar que o caminho não é muito cil de ser trilhado, mas, se
olharmos para as coisas positivas e ouvirmos os mais velhos e os amigos, o
caminho torna-se prazeroso.
Depois do caminho trilhado, tenho de agradecer a Deus por ter sido o
meu porto seguro nos momentos difíceis. À professora Dra. Rachel Gazolla
pela segurança e determinação quanto à forma de orientar, e por deixar
reviver o oráculo nos momentos necessários. Meu muito obrigado sempre.
À valiosa contribuição da Profa. Dra. Gilda Naécia e o Prof. Dr.
Henrique Murachco durante o exame de qualificação.
A CAPES, via programa PQI, sem a qual não teria condição
econômica para realizar os estudos.
À UFMA pelo incentivo aos seus professores do DEFIL em suas
qualificações, em especial à Dona Batista pelo carinho e atenção.
A minha família, Carlos, Carlos William e Mauricio, pela aceitação de
minha ausência durante o percurso da elaboração da tese.
À família Leal, em especial ao Sr. Roque Leal e Dona Rachel Leal,
por me terem acolhido como um filho, minha eterna gratidão.
À Nildinha e Aline pelos momentos de alegria com os corações
sempre acolhedores, o meu eterno respeito a vocês. A minha querida irmã
6
Elizete Gavazzone e ao Prof. Adelino da Rosa, meu respeito sempre. A
meus dois anjos da guarda, Ivanete Pereira e Marcos, meus irmãos, amigos,
porto seguro de amor e de acolhimento, vocês fizeram com que eu
fortalecesse a minha fé que o bem e a bondade valem a pena ser vividos. Ao
meu amado Mestre Rolland e Ana Paula Garrido, pelos corações sempre
abertos para me acolherem e por me terem dado uma boa e grande família
NEFRU, fonte de minha força e do meu caminho. Aos meus amigos e irmãos
da UFMA: Zilmara, Hamilton, Luciano Façanha, pela eterna alegria na
convivência e por acreditarmos que podemos ser cada dia melhores. A
Sônia Rangel (PUC-SP) e a Profa. Márcia Manir (UFMA) pela atenção e
cuidado na correção do texto. Aos meus amigos de estudos platônicos da
PUC-SP, pelas conversas e apoio. E a todos os meus amigos que torceram
por mim, mas, no fundo do coração, respeitaram minha ausência,
esperando o retorno. Por tudo o que tenho de agradecer, volto à fala de
Sócrates para dizer que o percurso foi longo, mas com certeza sinto-me um
homem melhor. Meu muito obrigado sempre a todos vocês.
7
Resumo
Uma das críticas feitas ao Livro I de A República é o fato de ele ser
um livro desvinculado do restante da obra por apresentar uma aporia no
final, característica dos diálogos considerados da juventude de Platão,
conhecidos também como socráticos por lidarem com questões
compreendidas como éticas. Esse modelo de diálogo produzido por Platão
na juventude e suas semelhanças com o Livro I eferido levam alguns
comentadores a acreditarem que ele seja anterior aos demais e a
descontextualizado da obra. Sabemos da complexidade dessa obra e, por
isso, fomos verificar se realmente esse primeiro livro é ou não desvinculado
do restante. Para tanto, tivemos que escolher um caminho, que,
dependendo do objetivo, A República se pode trilhar por percursos distintos.
Nesse caso, recolhemos as teses dos personagens do Livro I e II para
verificarmos se Platão abandona ou não o que é apresentado por Céfalo,
Polemarco, Trasímaco, Glauco e Adimanto. Dadas essas teses,
constatamos, logo ao início, as diferenças “metodológicas” nos diálogos
entre os personagens. Em seguida, detectamos uma relação entre as três
primeiras teses do Livro I com os estamentos, as três potências da alma e o
mito das raças. Por fim, dada a cidade justa e seus fundamentos, fomos
verificar a relação das teses dos primeiros personagens com os modelos de
constituições consideradas decadentes no Livro VIII, se estão ou não
presentes quer na totalidade, quer parcialmente. Nesse processo de
observação das constituições, verificamos a educação adotada em cada um
dos modelos das poleis. Nossa reflexão, no presente trabalho, foi a de
demonstrar que o Livro I de A República se encontra vinculado ao restante
8
dos outros livros, tanto que as primeiras teses reaparecem de algum modo
no Livro VIII.
9
Abstract
One of the criticisms that have been made to the Book I of the Republic is
the fact that it is disconnected from the remaining of the work, since there is
an aporia at the end of the dialogue, a characteristic of dialogues from Plato’s
youth, also known as Socratic for dealing with questions deemed as ethical.
The model of dialogue written by Plato in his youth, and its similarities with
the Book I have lead some commentators to believe that this book may
precede the others, and even be out of the context of the work. Being aware
of the complexity of this piece of work from Plato, we proceeded to verify
whether in fact this first book does not belong with the others. To this end it
was necessary to choose a proper approach, since depending on one’s
purpose different paths can be followed in the Republic. We collected the
theses of the characters from Book I and II to check whether or not the
aforementioned philosopher will abandon the ideas presented by Cephalus,
Polemarchus, Thrasymachus, Glaucus and Adeimantus. Given their theses,
we noticed firstly the “methodological” differences in the dialogues between
the characters. Secondly, we detected a relationship between the three
theses and the three sectors, and between the three powers of the soul and
the myth of the races in the Book III. Finally, given the just city and its
fundaments, we studied the relationship between the character’s theses and
the constitution models regarded as decadent in the Book VIII, analysing
whether such theses are present or not, partially or integrally. In this process
of analysing the constitutions, we also paid attention to the education
adopted in each one of the pólis models. Our reflection in the present work
consisted in demonstrating that the Book I of the Republic is not
10
disconnected from the remaining of the work, since the earlier theses
reappear in some form in the Book VIII.
11
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................
12
Cap. I - Os livros I e II da República e a questão dos
personagens....................................................................................
18
1 - As vertentes de uma interpretação dos diálogos................ 19
2 - Os personagens do livro I e II .............................................
28
3 - Livro I: quem é Céfalo?....................................................... 31
4 - A lógica do discurso de Céfalo............................................ 45
5 - Quem é Polemarco..............................................................
46
6 - O discurso de Polemarco e sua arete.................................
50
7 - Quem é Trasímaco .............................................................
57
8 - A tese de Trasímaco........................................................... 60
9 - A lógica do discurso de Trasímaco: os dissoi logoi.............
64
10 - Glauco e Adimanto............................................................ 72
Cap. II – A relação do Livro I com os três estamentos,
as três
potências da alma e o Mito das Raças..........................................
78
1 - A cidade justa “primária”................................................... 79
2 - A introdução do estamento dos guardiões e a educação
(Livros II, III ao IV)....................................................................
85
3 - As três potências da alma................................................... 87
4 - A educação dos três estamentos........................................ 94
5 - As teses do Livro I acomodadas na cidade justa................ 99
6 - A justiça e o modelo educativo............................................
113
Cap. III – O Livro VIII e as teses sobre a justiça dos livros I e II:
relações ...........................................................................................
124
1 - A decadência das formas de governo................................. 125
2 - As mudanças educacionais nas formas de governo........... 136
3 - Democracia e Liberdade..................................................... 142
IV - Considerações finais................................................................
155
V – Referência Bibliográfica...........................................................
158
12
INTRODUÇÃO
Princípio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde
a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se
gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e
deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do
tempo. (Anaximando de Mileto. Frag. 1, recolhimento por Diels-
Kranz)
1
Platão tem algo de fascinante nos seus diálogos: ao expor suas reflexões,
apresenta personagens que m um simbolismo muito específico para a época e
para o próprio diálogo e que o leitor moderno deve investigar. Tais personagens
são figuras significantes para a cultura grega de então, quer por suas funções,
quer por seu modo de vida ou pelos acontecimentos que viveram. Ao dialogarem
com Sócrates, deixam-nos um campo rico que une a filosofia platônica e a história
da época, fato que não podemos marginalizar.
A obra A República
2
é, entre tantos escritos de Platão, uma das que mais
chamam a atenção pela diversidade de problemas apresentados nos seus dez
livros. Trata do que é a justiça e de como seria uma cidade justa a ser pensada
mantendo-se a relação corpo-alma, de modo a estabelecer os modos de a alma
ser e as formas de governo possíveis, bem como o valor do conhecimento e seus
graus, levando em conta o tipo de alma que se tem. A partir disso, como se sabe,
Platão pensa na educação dessa cidade justa e na educação do filósofo, seu
1
Fragmentos. Simplício, Física, 24,31.Trad. J. Cavalcante de Souza, Abril Cultural. Essa
concepção de ordem e desordem existente no cosmos enquanto movimento, possibilita a justiça
para as coisas serem e a injustiça para deixarem de ser no eterno ciclo de geração e corrupção;
essa idéia de Anaximandro nos parece muito próxima da idéia de justiça de Platão em A Repúblic,
ao tratar das formas políticas, como veremos.
2
Para nosso trabalho, tomaremos como referência as seguintes traduções de A República: a
edição bilíngüe da Belles Lettres; a tradução da Fundação Calouste Gulbenkian, de Maria Helena
da Rocha Pereira; a tradução da EDUFPA, de Carlos Alberto Nunes; a publicação da Editora
Martins Fontes, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado; a tradução mexicana de Antonio
Gómez Robledo, da Universidad Nacional Autónoma de México. Algumas pequenas mudanças de
tradução devem-se a sugestões da Prof. Dr. Rachel Gazolla, orientadora.
13
governante principal o filósofo-rei -, bem como na injustiça e seu reflexo na
alma, ações e na organização política. Dos dez livros, os que mais nos
interessam, primeiramente, são os três primeiros sobre os quais nos deteremos.
Após o seu estudo, investigaremos o Livro IV em parte e as relações com o livro
VIII, quanto às formas de governo, à educação dos cidadãos, à alma e educação
de cada um e à destruição dessas sociedades elencadas por Platão.
Uma vez que o Livro I, segundo comentários de I. M. Crombie, estaria
descontextualizado dos restantes por apresentar características próprias dos
primeiros diálogos, ditos socráticos, nossa pretensão consistirá em demonstrar o
contrário, ou seja, que o Livro I, longe de encontrar-se “destacado” dos demais,
constitui nosso ponto de ligação com os outros livros, pois nele está contida a
“matéria-prima” cuja moldagem dar-se-á em tal grau de sutileza, que muitos
leitores deixarão de reconhecê-la no restante da obra.
Inicialmente, no Livro I, a nossa atenção se volta para os personagens e
suas teses quanto à noção de justiça. Primeiro, perguntamos por que Platão
escolhe esses personagens específicos para refletir sobre o que é a justiça? Com
certeza, não são eles aleatórios; não coloca nas suas falas algo insignificante
para sua reflexão filosófica posterior. Nas leituras dos intérpretes, registramos que
diversos comentários são tecidos sobre os dez livros, mas, em geral, o primeiro
livro é lido como somente propedêutico, sem grande importância, o que nos deixa
intrigados, que não é o que vemos. Platão sempre tem um porquê ao colocar,
em suas obras, certos personagens, certa cenografia ao diálogo, possíveis
alegorias, metáforas, e mitos, como se sabe. Este começo de A República
sustenta, a nosso ver, três importantes teses sobre o que é a justiça à época e
14
que Platão, por algum motivo que tentaremos explicitar, quer recolhê-las para
melhor pensá-las.
Em certo momento da orientação, foi chamada nossa atenção para os
enunciados do Livro I relacionados às teses apresentadas pelos personagens
Céfalo, Polemarco e Trasímaco, que poderiam ser resgatadas por Platão para a
sua cidade criada em lógos em livros posteriores. Essas teses, após receberem a
devida investigação, mostram que, realmente, suportam a ordem e a forma de
ação de cada estamento da cidade justa e ajudam a compreender melhor o
estudo do Livro VIII. O problema maior, para nós, foi o de perceber que essa
perspectiva não tem significativa contribuição dos intérpretes, isto é, a relação
entre o Livro I e os Livros II, III e IV, bem como o Livro VIII não costuma ser
estudada. Essa dificuldade refere-se ao fato de essa tradição afirmar que o Livro I
é um texto anterior aos outros nove e, ademais, não costuma ligar os primeiros
livros aos últimos, como foi dito, e mostraremos que é possível faze-lo e se deve
fazê-lo.
Demonstraremos que as teses de Céfalo, Polemarco e Trasímaco e os
valores da tradição política grega que elas carregam, têm aspectos que serão
necessários a Platão e ele os aglutinará em suas reflexões sobre a cidade. A
nosso ver, no Livro I, é preciso expor a forma como Platão se utiliza de uma
estratégia metodológica entre os personagens e sua evolutiva superação destes.
Inicia com a maieutica socrática - utilizada para com os dois primeiros
personagens, Céfalo e Polemarco -, vai à eristica no diálogo com o sofista
Trasímaco e, com Glauco e Adimanto, introduz a sua dialética propriamente, e a
pontuação da questão a ser desenvolvida no restante da obra: a origem da justiça
15
e da injustiça solicitada pelos dois dialogadores. Isso fica bem delimitado quando
analisamos a estrutura lógica das falas entre Sócrates e seus debatedores.
Nessa perspectiva, entendemos que o Livro I esteja bem contextualizado no
restante da obra, mas falta perceber a relação existente entre os significados da
dikaiosyne, exposta no Livro I, e a ordem dos estamentos da cidade justa. Quanto
à diferença do Livro I para o Livro II, a nosso ver, é apenas metodológica. Platão,
num primeiro momento, utiliza-se da maieutica para dialogar com personagens
aparentemente mais elementares em suas colocações, e quando dizemos isso
significa que estão menos acostumados com a filosofia; em seguida, usa da
eristica para enfrentar um sofista e, por fim, pensa poder usar a dialética com
Glauco e Adimanto por serem mais afoitos às perguntas, o que o conduzirá ao
logos que pretende, mais complexo, para explicitar o que é a justiça nos Livros II,
III, IV. Ele sabe que o caminho utilizado no Livro I não o fundamento da
dikaiosyne, uma vez que recolhia as opiniões vigentes e debatia maieuticamente
com os personagens. Mostrava apenas a força do questionamento do próprio
logos, sem expor totalmente sua força argumentativa e investigativa até onde se
pudesse levar.
Assim, num primeiro momento, mostraremos as teses do Livro I e suas
implicações mais diretas. Num segundo momento, faremos uma relação entre as
três teses, com os estamentos, apresentados por Sócrates na sua cidade justa e
a relação com o que ele chamará de “as três potências da alma”, após o que nos
deteremos no nomeado Mito das Raças.
Com a cidade criada, encontramos a justiça enquanto virtude e, na alma,
enquanto o equilíbrio das três potências que sustentam as diferenças, entre os
homens e o modo de divisão da cidade em estamentos, servindo de base para o
16
exercício das funções de cada estamento da cidade. Para que os cidadãos
aceitem exercitar-se nas suas respectivas funções, Platão critica o conteúdo
pedagógico da educação grega e censura, em parte, os poetas tradicionais,
Homero e Hesíodo, base da paidéia, como será apontado. Resgata, ainda, da
tradição mítica poética o Mito das Raças que, em suas mãos, modifica-se para
ser um instrumento educativo, diferenciado, uma nobre mentira capaz de criar,
entre os habitantes dessa cidade, o sentimento de philia e a aceitação das
diferenças, sem o que nada se sustentará.
Num terceiro e último momento, dado o modelo da cidade justa e do homem
justo e virtuoso dessa cidade, é necessário verificar o Livro VIII e suas formas de
governo, discuti-las e entender por que Platão cria esse livro. Apontaremos alguns
caminhos possíveis para um estudo do referido livro. Dos caminhos indicados
acolhemos a tese de Jaeger que afirma ser, esse livro uma parte que trata da
stasis na alma humana. Com essa suposição acreditamos que o que Platão faz é
uma experiência investigativa sobre o ser humano, observando o reflexo da
educação na alma de cada um, fazendo corresponder cada potência anímica a
uma forma de governo. Seguindo seus passos, estudaremos outras formas de
governo apresentadas no Livro VIII: Timocracia, Oligarquia e Democracia que se
modificarão ou em virtude da ação da própria physis, ou em função do tipo de
educação que as crianças recebem, quer no lar, quer na cidade. É o caso da
passagem da Aristocracia para a Timocracia, desta para a Oligarquia, depois para
a Democracia, obtendo uma série de paradigmas educativos que nos parecem
fundamentais para esta investigação. Por fim, procuraremos entender a ideia de
liberdade presente na obra. Deixaremos à margem de nosso estudo a tirania
exposta no Livro IX.
17
Neste processo, da decadência das formas de governo, a desintegração
pela via da geração e educação adotada pela cidade e de sua necessária
corrupção será estudada com cuidado, pois nisso está, também, a disposição da
alma de cada um. A Mimesis como forma de educação transforma os homens na
medida do possível, logo transforma também os governos. Com isto,
concluiremos nosso estudo.
18
Capitulo I – Os Livros I e II da República e a questão dos personagens
19
1. As vertentes de uma interpretação dos diálogos
O acervo de Platão, organizado ao longo dos séculos, deixa entrever, muita
discussão quanto à ordem dos diálogos. Segundo Robin,
3
essa organização é a
seguinte: primeiros escritos ou escritos de juventude, intermediários ou escritos
de maturidade e os tardios ou da velhice. Além dos diálogos, existem também as
cartas e os diálogos suspeitos e os considerados apócrifos. A discussão é vasta e
sempre são apresentadas novas observações com relação. Há outra corrente que
considera a questão cronológica secundária. Entre os interpretes que seguem
essa via está Szlezák
4
e Vegetti,
5
que usam, a elaem parte, o pensamento de
Friedrich Schleiermacher que considera a questão cronológica dos diálogos
desprovida de significação profunda, e o que mais importa para esses intérpretes
é a questão orgânica de cada diálogo.
Quanto à questão interna dos diálogos, Szlezak
6
, ao fazer sua análise das
questões orgânicas das obras de Platão, afirma que elas se aproximam das
convicções do próprio filósofo, e que os diálogos retratam sempre uma
conversação e, muitas vezes, longos discursos monológicos. Essas conversas se
dão sempre em certertos lugares e com certas pessoas de características muito
próximas às do cotidiano grego. Platão elege os participantes da conversa, sendo
esta conduzida por um mestre. Expõe o comentador que:
O líder da conversa pode responder a todas as objeções. Em
conversação de caráter agonístico, pode refutar todos os
participantes; ele mesmo nunca é refutado. Todos os elementos da
conversação que realmente a fazem avançar o introduzidos por
3
ROBIN, Léon. Platon. Paris : Presses Universitaire de France, 1968.p.29-35.
4
SZLEZAK, Thomas A. Ler Platão. trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
5
VEGETTI, Mario. La Repubblica. Vol. I. Pavia: Bibliopolis, 1998.
6
Idem. Ib. p. 37 a39.
20
ele (às vezes, de fato, de maneira ‘maieutica’: trazendo à luz
pensamentos ‘alheios’).
7
Além disso, considera que as conversas não progridem de maneira linear,
mas vão sofrendo impulsos para degraus qualitativamente superiores, de acordo
com a forma como se desenvolve. Quando chega o final da obra, o líder da
conversa não encerra de forma orgânica o diálogo, mas aponta para questões
futuras. Esse é um dos modos como podemos nos aproximar de Platão, levando
em conta essas características, mas pode-se levar em conta também a questão
cronológica, sem ignorar a forma como está constituído inteiramente o diálogo.
Isso exposto, voltemos à classificação dos primeiros diálogos pelo estilo de
dialogar, os que o chamados de socráticos ou aporéticos por apresentarem
uma proposta de definição de uma virtude e, como ocorre na maieutica, Sócrates
demonstra a insuficiência dos seus dialogadores em responderem, sendo que, se
conclui sem a definição pretendida. Goldschmidt,
8
ao tratar dos diálogos
aporéticos, comenta que Sócrates quer despertar a reflexão do ouvinte, e essa é
a função de um diálogo aporético, pois a discussão não traz nenhuma clareza
finalizadora, e não se preocupa com tal pretensão.
Vejamos o diálogo Lisis, como exemplo de obra considerada de juventude e
aporético. Platão apresenta um local determinado: Sócrates faz um caminho ao
lado da muralha de Atenas, quando encontra o primeiro personagem, Hipótales,
que direciona o condutor do diálogo até o recinto próximo à muralha, onde se
reúnem belos jovens para aulas de formação, que são enviados pelas famílias
para os pedagogos. Percebendo que o jovem Hipótales se encontra apaixonado,
7
Idem. Ib.
8
GOLDSCHMIDT, Victor. Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético. Trad. Dion Davi
Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2002. pp. 23 a 30.
21
Sócrates quer conversar sobre Eros e como ele se reflete no comportamento do
apaixonado diante do seu escolhido (205b). A conversa ocorre entre todos os
jovens que ali se encontram e, entre eles, estão Menexeno e Lisis.
Primeiro crates (207c) afirma que os amigos em nada são desiguais, mas
a pergunta feita por Sócrates a Menexeno (212 a - b) é como alguém que se torna
amigo de outrem (ama), e quando alguém ama outro qual é o que se torna amigo
qual o que ama e qual é o amado ou o que se ama no amado. Para sabermos
que haver essa relação entre iguais, entre homens bons, e até a passagem 215c,
é lembrado que, para Hesíodo, o igual é maior inimigo do igual. Assim o oleiro
tem ódio do outro oleiro e o aedo do outro, semelhante tem inveja de semelhante.
Essa posição Platão não pode aceitar. Quando chegam a certo ponto da conversa
(221d), Sócrates descobre que a causa da amizade é o desejo, mas daquilo que
não se tem, como também é dito no Banquete. crates é levado a concluir, ao
final, (223 b), que não foram capazes de descobrir no diálogo o que era a
amizade e não a procuraram por ela mesma.
O que vemos neste texto e em outros do mesmo tipo, ditos aporéticos ou
socráticos é exatamente essa organicidade sem uma definição ao final. No
entanto, se lembrarmos do Banquete, uma finalização e o assunto é o mesmo,
além de dizer-se que este é um diálogo, quem sabe, de juventude ou
intermediário. De qualquer modo, do ponto de vista temático, é um diálogo
complexo, tanto o Lisis quanto o Banquete e mesmo a República que necessitam
da noção de Eros em diversos de seus aspectos.
Quanto aos diálogos do período intermediário, estaria A República, por
apresentar um predomínio da Ética e pela Metafísica, o que nos parece também
discutível. Os diálogos intermediários são considerados portadores da maieutica,
22
mas apresentam características próprias: a elaboração do caminho dialético (isto
é, do complexo desenvolvimento platônico dos argumentos).
A República, no primeiro livro, seria desse tipo. Platão apresenta um local
determinado, o porto do Pireu, uma situação específica, o festejo para a deusa
Bêndis. Sócrates foi ao festejo com Glauco e por é convidado por um amigo,
Polemarco, para se juntar a outros amigos em sua casa, para o final do festejo
que se prolongaria pela noite. Sócrates aceita o convite e se encontra por com
vários convidados e com o anfitrião da casa: Céfalo, pai de Polemarco, e entre os
amigos estão mais dois que serão importantes para o diálogo: Trasímaco e
Adimanto.
Sócrates trava uma conversa primeiramente com o ancião Céfalo, que
expõe o que ele, com o tempo e forma de vida que levou, acredita ser a justiça
(331 c): dizer a verdade e restituir o que se toma de alguém. Havendo
necessidade de continuar as libações ao deus protetor da casa, Céfalo se afasta
do diálogo e deixa seu filho Polemarco como herdeiro da conversa. Veremos que,
num primeiro momento, o herdeiro segue a afirmação da justiça deixada pelo pai,
mas Sócrates vai estimulá-lo, segundo o dito do poeta Simónides (332a), quanto
à compreensão do ser justo é restituir o que se deve, até que ele diga ser a justiça
(332d) “dar ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos”. Polemarco o consegue
diferenciar amigos de inimigos para que possa agir da forma como ele propõe,
pois está habituado, conforme vai expondo, com a aparência do significado “ser
amigo e inimigo”. Isso dificulta, segundo Sócrates, uma ação justa, que não se
sabe quem é verdadeiramente amigo e inimigo em certas situações. De forma
impetuosa, adentra depois na conversa Trasímaco e quer dar sua definição de
justiça: (338c): não é outra coisa senão a conveniência do mais forte, uma
23
afirmação a ser provada, pois o restante do Livro I procura saber se realmente é
essa a noção de justiça. Por fim, e após muitos embates entre crates e o
sofista, este chega à seguinte conclusão:
(...) também eu, antes de descobrir o que procurávamos primeiro – o
que é a justiça largando esse assunto, precipitei-me para
examinar, a esse propósito, se ela era um vício e ignorância, ou
sabedoria e virtude; depois, como surgisse novo argumento que é
mais vantajosa a injustiça do que a justiça não me abstive de
passar daquele assunto para este; de tal maneira que dresultou
agora para mim que nada fiquei a saber com esta discussão. Desde
que não sei o que é a justiça, menos ainda saberei se se o caso
de ela ser uma virtude ou não, e se quem a possui é ou não feliz.
(354b-c)
9
Sócrates fecha o Livro I em aporia, tal como ocorre no Lisis. Ora, a
exposição classificatória dos diálogos serve de base para que alguns intérpretes
os comparem e indiquem possíveis problemas ou semelhanças existentes entre
os textos de Platão. M. H. da R. Pereira
10
, na sua introdução à tradução de A
República, pergunta se o Livro I seria independente dos outros, e que talvez,
mais tarde, teria sido retocado para servir de proêmio da República. A tradutora
tem como suporte a classificação cronológica dos diálogos e observa a diferença
de estilo e de vocabulário do Livro I em comparação com os demais livros. Nos
seus recolhimentos, aponta alguns pesquisadores, entre eles, Dümmler que notou
a relação do Livro I com os primeiros diálogos e, por isso, denominou-o
9
καί έγώ µοι δοκω ούτω, πρίν δ τό πρωτον έσκοπουµεν εύρειν, τό δίκαιον ό τι ποτ έστίν,
άφέµεος έκείνου όρµησαι έπί τό σκέψασθαι περί αύτου είτε κακία έστίν καί άµαθία, είτε σοφία
καί άρετή, καί έµπεσόντος αύ ύστερον λόγου, ότι λυσιτελέστερον ή άδικία της δικαιοσύης, ούκ
άπεσχόµην τό µή ούκ έπί τουτο έλθειν άπ’ έκείνου, ώστε µοι | νυνί γέγονεν έκ του διαλόγου
µηδέν ειδέναι· όπότε γάρ τό τίκαιον µή οιδα ό έστιν, σχολη εισοµαι είτε άρετή τις ουσα
τυγχάνει είτε καί ού, καί πότερον ό έχων αύτό ούκ εύδαίµων έστίν ή εύδαίµων. (354 b – c)
10
PEREIRA. M. H. da Rocha. Introdução. In República. 8ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1972, p.18.
24
Trasímaco, por ser o principal dialogador de Sócrates no desenvolvimento. Se
tomado em separado, pode ser considerado um livro socrático, mas, se for
analisado no conjunto, perde o sentido a separação, pois ali se encontra a matéria
necessária para a reflexão do restante da obra, tese que demonstraremos. No
mais concordamos com o Szlezák
11
quando afirma que:
Se nos diálogos aporéticos, depois de uma ampla investigação que
resulta vã, também não se alcança uma solução na última tentativa,
o leitor, a quem permanece oculto o sentido da singular
perambulação, fica facilmente com a impressão de que o conjunto é
trabalho perdido ou, em todo caso, um proêmio demasiadamente
extenso para o filosofar fecundo que, todavia, ainda fica por vir.
Essa é a impressão que nos deixam alguns interpretes quando se trata de A
República. I. M. Crombie,
12
por seu lado, deixa de observar que Platão apresenta
recolhimentos históricos do que seja a justiça para, depois, retomá-los na sua
reflexão. Para nós, o Livro I abre para um leque de questões que serão ampliadas
nos outros livros que seguem.
Os personagens que expõem sobre o que é a justiça, no início, são
representativos dos valores da cidade de Atenas, e o investigador tem que
considerá-los por esse viés, e devemos atentar para o que expõe Vidal-Naquet
13
ao analisar as formas de pensamento na Grécia. Ele afirma que se deve atentar
para o conjunto que compõe a sociedade grega, suas representações
institucionais, políticas e sociais recolhidas nos textos literários, históricos,
filosóficos, bem como nos relatos míticos e nas análises descritivas, se se quiser
11
Ob. Cit. pp.25-26.
12
CROMBIE, I. M. Análisis de lãs doctrinas de Platón: el hombre y la sociedad. Trad. Española de Ana
Torán y Julio César Armero. Madrid: Alianza Editorial, 1990, pp. 85 a 97.
13
NAQUET-VIDAL, Pierre. Formas de pensamiento y formas de sociedad en el mundo griego.
Trad. Marco-Aurelio Galmarini. Barcelona: Ediciones Península, 1983, p. 12.
25
compreender melhor o pensamento dessa época. Esse ângulo metodológico é
acolhido na nossa investigação ao lermos o Livro I e ao apreciarmos seus
personagens. Afirma o intérprete:
Dificilmente escapa à história da civilização um duplo problema.
Uma primeira concepção faz dela uma sorte de anexos que
compreenderiam, por sua vez, a arte, os costumes, os usos
funerários, a cozinha, em uma palavra, tudo o que não pertence à
história política nem à história econômica e social, nem à história
das idéias. Uma segunda concepção deriva de uma tentativa
inversa, ao postular que todos os feitos religiosos, artísticos, sociais,
econômicos e mentais que se situam em uma mesma época, em um
mesmo grupo humano, m entre eles nculos especiais para
construir um conjunto dotado de unidade e estrutura próprias, mais
ou menos similares a um organismo vivo
14
.
O autor crê que a primeira concepção dificulta a leitura e a interpretação de
um texto quando recortado da época e neutro à interferência dos acontecimentos
que o rodeiam. Além disso, se olharmos para os escritos como resultado de
vários fatores de uma época - artístico, econômico, político e ideológico -, eles
terão uma riqueza de informações quanto ao ideário no qual está mergulhado.
Nesse sentido, a afirmação de Naquet considera que Platão, tendo vivido em uma
época politicamente conflituosa, quando Atenas se encontrava envolvida na
guerra do Peloponeso e com problemas não só políticos, mas éticos e
econômicos, registrados por logógrafos, poetas e “cronistas” de então -, foi
fortemente influenciado por ela ao criar personagens em situações diferentes das
que realmente viveram, conforme faz nos primeiros livros de A República. Ele
faría “teatro” nos diálogos, com algumas intenções que cabem a nós descobrir,
14
Ibid., p.19.
26
ligando, na medida do possível, a pergunta que é feita a cada personagem e o
que este responde, com o que de fato ocorreu historicamente.
Devemos, pois, pensar Platão contextualizado, representante de sua época
e herdeiro de toda tradição cultural de Atenas dos culos anteriores. Não é por
acaso que seu modo de pensar e de escrever é dialógico: como poeta trágico
conheceu o teatro do século V a. C., quer as comédias, quer as tragédias que
inauguraram um modo de escrita dialógica que, de algum modo, o inspirarou. Os
textos de Sófocles ou Aristófanes,
15
por exemplo, e a forma como apresentam
seus personagens, que são figuras importantes para a cultura grega arcaica,
demonstram um modo de expor semelhante ao usado por Platão: os poetas
trágicos recolhem e discutem o ethos dos heróis em diálogo usando a própria
narração dos poetas, o filósofo faz o mesmo com a Atenas de seu tempo, ao
dialogar com Sócrates e outros personagens. Estes não são os conselheiros e
coreutas do teatro trágico, mas algo deles quando expõem seus valores nas
falas, e podemos dizer que fazem a intermediação necessária para o
desenvolvimento do fio condutor que o filósofo pretende elaborar sobre uma
pergunta inicial. Essa observação é meramente exterior e formal, pois a forma
dialógica platônica pretende algo bem diferente do que “aconselhar”, por isso é
tão complexa.
No texto trágico, por exemplo, um Agamêmnon ou uma Medéia personificam
conflitos humanos enquanto heróis e mantêm suas identidades míticas. Ora,
Platão recolhe, na história de sua época, figuras importantes que guardam
relação com o que desenvolve no tema de um diálogo, como se quisesse revolver
15
Platão aproxima-se também de características da comédia de Aristófanes, que se utiliza de
figuras ainda vivas no contexto social de Atenas para expor suas ideias. Por exemplo, em As
Nuvens, quando Aristófanes se utiliza da imagem de Sócrates, que era seu contemporâneo, para
criticá-lo.
27
o que se pensa na época, à maneira da tragédia. É esse o argumento de
Nettleship,
16
para quem o filósofo escolhe vários personagens reais, alguns
contemporâneos, outros não, e alguns homens públicos ou amigos, e faz deles
expositores de opiniões sobre o contexto grego e as idéias filosóficas que se
sustentam na cultura grega. Esses personagens realmente expõem certos
valores, que Platão precisa ressaltar e aprofundar ou modificar. Esse aspecto é
apontado por Scolnicov
17
, quando liga o personagem àquilo que ele fala, ou seja,
quem fala e como fala é algo a ser apreciado com cuidado:
Portanto, Sócrates nunca examinaria proposições em si sós,
desligadas de quem as propôs. “Deixemos Górgias de lado”, ele diz
a Mênon, pois que não está aqui; diz-me, em vez, o que pensas tu
que é a virtude. Assim também, no Eutidemo, Sócrates não
responderá antes que entenda qual seja o sentido que seu
interlocutor dá à pergunta que faz. Nisso ele concorda, pelo menos à
primeira vista, com os dois sofistas, que palavras em si não têm
sentido. São pessoas que dão sentido às palavras, por meio de suas
almas.
A exposição de Scolnicov obriga-nos a alguns cuidados na leitura dos
diálogos, ricos em personagens envolvidos na história ateniense e, cada um, ao
tentar definir para Sócrates algo do tema proposto, mostra valores que constituem
formas de viver ou percepções de mundo em acordo com a educação grega
recebida desde o nascimento. É desse modo que nos aproximaremos do texto
platônico e seus personagens: com a determinação de verificar o que foi dito, por
quem, em que local.
16
NETTLESHIP, Richard Lewis. Lectures on the Republic of plato. New York: University Press of
the Pacific, 1961, p.7.
17
SCOLNICOV, Samuel. Como ler um diálogo platônico. Hypnos, São Paulo: Edições Loyola, vol.
11, 2003, p 51.
28
2. Os personagens do livro I e II
No Livro I, Céfalo, o primeiro personagem a ser apresentado, apresenta uma
forma de vida baseada nos valores religiosos (ritos e mitos vigentes) e sua
definição de justiça segue a dos poetas aceitos por Atenas como educadores;
Polemarco, o segundo, ao definir a justiça como “fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos,” também apresenta uma tese da época, proveniente da cultura grega
mais próxima ao século IV a. C. e suas guerras; e Trasímaco que, segundo
Platão, é representante dos sofistas, defende a justiça como “a conveniência do
mais forte” e indica a prática usada nos debates cívicos, característica das
assembléias públicas e dos tribunais, em que o poder de persuasão prevalece
para a vitória. no Livro II, Glauco e Adimanto, co-irmãos de Platão, questionam
sobre a melhor forma de vida para o homem, se é a do homem justo ou do
injusto, em função das discussões anteriores, pois ser injusto parece mais
interessante do que ser justo.
O que teriam de tão importante esses personagens e suas definições de
justiça para o corpo teórico de A República? Cremos que eles servem como
inspiração e suporte para Platão desenvolver sua cidade justa e pensar sua
Paideia à margem da vida histórica de então, bem como para pensar que tipo de
cidade tem potencial para educar de modo justo seus cidadãos. É e não é, para
ele, Atenas. Cada uma das teses apresentadas traz consigo certo modelo de
sociedade e educação que Platão resgata, em parte, para a sua cidade em logos,
para auxiliá-lo em alguns aspectos.
Se estivermos certos em nossas expectativas, consideramos que não é
mero acaso o local onde se o início do diálogo e a apresentação dos primeiros
29
personagens e seus pontos de vista: o Porto do Pireu que, além de sua
simbologia política que quer evidenciar Platão como lugar de conflitos
enfrentados pela cidade de Atenas em várias ocasiões –, é o local em que
habitam diversas etnias formadoras dos nomeados metecos, isto é, estrangeiros
que fazem parte da sociedade ateniense quanto aos deveres e não quanto aos
direitos, como se sabe. Platão não poderia ter escolhido melhor lugar para pensar
a justiça, uma vez que, no Pireu, encontram-se homens diferentes que se
fixaram e aceitaram as leis gregas, havendo uma mistura de raças. Mais ainda, é
um porto de ida e vinda de gregos e não-gregos, de miscigenação de culturas e
valores. Não se trata, aqui, da amizade entre iguais, mas entre diferentes, ponto
ao qual voltaremos mais adiante.
Para Jaeger
18
, Platão pode, de um lado, dispensar o histórico ao edificar sua
A República; de outro lado, quer expandir sua cidade a todos os homens,
negando as fronteiras em que vive. No entanto, se a cidade platônica o nasce
de uma construção dada historicamente, o filósofo precisa das experiências
históricas de governo para melhor desenvolver a sua lis, mesmo que esta se
afaste muito de outras já conhecidas. Então, “Platão não parte de um povo
histórico existente, como Atenas ou Esparta. Ainda quando se refere
conscientemente às condições vigentes na Grécia, não se sente vinculado a um
determinado torrão nem a uma cidade determinada”.
19
Os personagens do diálogo representam, portanto, ideais de vida e de
justiça que Platão não pode desprezar totalmente, mas que serão confrontados
em nova estrutura após debater com eles sobre a justiça. Não é sem razão que
Sócrates afirma para seu companheiro de diálogo, Adimanto (377b), que, ao
18
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. 3 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1994.
19
Op. Cit. p. 750.
30
investigar sobre o que é a justiça e o que é uma cidade justa, é preciso saber
como educar, pois a Grécia tem o governo conforme educou seus cidadãos:
Então não sabes que, em todo o trabalho, o mais importante é o
começo, principalmente quando se trata de jovens e de crianças de
tenra idade? É, sobretudo nesse momento que, na cidade, se é
modelado e se enterra (na alma) a marca (typos) que alguém queira
assinalar em cada um deles?
20
Assim, educação e justiça estão juntas, não se educa nem se governa sem
saber sobre o justo. Cada homem tem em si o registro de um modelo político e a
concepção de justiça que aprendeu durante a vida, desde cedo. A alma fica
marcada pelo que lhe é ensinado de modo que (367a):
Se, portanto, todos vós falásseis assim desde o começo, e nos
persuadissem desde novos, não andaríamos a guardar-nos uns aos
outros para não praticarmos injustiças, mas cada um seria o melhor
guardião de si mesmo, com receio de coabitar com o maior dos
males, se praticasse a injustiça.
21
Lembremos que o filósofo, no Críton, demonstra a força que as leis têm na
formação dos homens. A preocupação é a mesma. Descreve Sócrates seguidor
das normas da cidade e, nem por isso, internalizadas como sua própria verdade e
virtude, porque nele o que Platão quer evidenciar e que não nos cidadãos
atenienses: o cuidado de si como conhecimento de sua alma. Quando ele se
nega a fugir da sentença de morte do tribunal de Atenas, aceitando a lei externa
como bom cidadão, ressalta a tensão entre o que se entende como arete exterior
e a sua própria interior, a de seu daimon, no caso. A arete “interna” fica bem
20
Оύκοϋν οισθ΄ οτι άρχή παντός έργου µέγιστον, άλλως τε καί νέω καί άπαλώ / ότωοϋν; µάλιστα
γάρ δή τότε πλάττεται, καί ένδύεται τύπος δν άν τις βούληται ένσηµήναθαι έκάστω. (377b)
21
Εί || γάρ οϋτως έλέγετο έξ άρχης ύπό πάντων ύµων και έκ νέων ήµας έπείθετε, ούκ άν
άλλήλους έφυλάττοµεν µή άδικειν, άλλ΄ αύτου ήν έκαστος φύλαξ, δεδιώς µή άδικων τω
µεγίστω κακω ξύνοικος η. (367a)
31
marcada na Apologia, e, após os juízes terem votado, lembremos que Sócrates
chama aqueles que votaram a seu favor e expõe o momento vivido por ele no
tribunal. Diz a eles:
Passou-se hoje comigo, juízes o nome de juízes pertence-vos de
pleno direito, uma coisa bem extraordinária. A minha voz profética
habitual, a voz da divindade, tem sido muito freqüente em mim até
ao presente, marcando a sua oposição, mesmo em pequenas
coisas, sempre que me dispus a fazer o que não era bem. Agora,
porém, que como vedes, me acontece o que se poderá considerar e
normalmente se considerar o maior dos males, nem ao sair de casa
pela manhã, nem quando subi a este tribunal, nem enquanto estive
no uso da palavra, a voz divina me deteve. E no entanto, em muitas
circunstâncias, muitas vezes me interrompeu no meio dos meus
discursos. Mas hoje, no decurso deste processo, não esboçou a
mínima oposição às minhas ações ou às minhas palavras. (40 b)
Mesmo seguindo as leis, e as tradições que aprendeu em sua vida, como
cidadão grego educado, fica claro que algo de novo em Sócrates e que
regras novas para Platão refletir quanto às ações.
3. Livro I: quem é Céfalo?
Quem é Céfalo, quem é esse ancião? Para responder a esta pergunta,
dois problemas: a existência de dois Céfalos, um histórico e outro personagem de
Platão. O que sabemos de Céfalo histórico é que nasceu em Siracusa e viveu no
Pireu como estrangeiro; morreu provavelmente em torno dos anos 420 a 415 a.C.
32
Esses são informes do famoso orador de Atenas em seus discursos, Lísias
22
, seu
filho e irmão de Polemarco, conforme as historiadoras C. Mossé
23
e Nails.
24
Segundo C. Mossé,
25
com a expansão comercial de Atenas e a construção
do porto do Pireu,
26
Péricles, na segunda metade do século V a.C., abertura
aos comerciantes que ali se instalaram como metecos, recebendo em troca a
proteção da cidade, e Céfalo teria chegado nessa época. Complementando esses
informes, Rocha Pereira
27
comenta que ele foi convidado por Péricles para viver
no porto e, pelas datas apontadas e comparando-as com a fase do governo de
Péricles (460 a. C a 428 a.C.), Céfalo deve ter vivido de 30
a 35 anos no referido
porto. Vivenciou parte da Guerra do Peloponeso (431 a.C. - 404 a.C.) e a morte
de Péricles (428 a.C.). Com base no suposto ano de sua morte, não viveu ao
final dessa guerra e, consequentemente, não presenciou a instalação do governo
dos Trinta Tiranos,
28
que marcou sua família pela morte do seu filho Polemarco e
pelo exílio de seu outro filho, Lísias, o orador. Esses fatos são importantes, uma
vez que Platão escolheu o pai e um dos filhos (Polemarco) como personagens do
Livro I, exatamente para falarem sobre o que é a justiça.
22
LYSIAS. Discours XII. Trad. Louis Genet, Paris : Belles Lettres,1955.
23
MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. João Batista da Costa. Brasília:
UnB, 1982.
24
NAILS, Debra. The people of Plato: a prosopography of platô and other Socratics, Cambrige: Ed.
Hackett l’publishing Company.2002.
25
Op. cit., pp. 38 – 39.
26
Conforme Tucídides (séc. V. a.C.), na História da Guerra do Peloponeso, Livro I, 90,
Temístocles foi o idealizador e autor do porto do Pireu. Complementando esse informe, Yvon
Garlan, Guerra e economia na Grécia antiga, p. 122, comenta que o Porto do Pireu foi um dos
primeiros trabalhos de fortificação na Ática, decidido no momento das Guerras Médicas, instigado
por Temístocles, seu autor. Com a construção do porto, Atenas, em 482-481, desenvolve um
vasto programa de construção naval que devia garantir o domínio dos mares no Mediterrâneo
oriental.
27
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Introdução. In: República. 8 ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1972, p.12.
28
Segundo o nosso recolhimento, Céfalo morre entre 420 a 415 a.C. Sobre a sua família, logo
após a sua morte, ocorre a execução do seu filho Polemarco, em 404 a.C, no governo dos Trinta
Tiranos, assim como o exílio do seu filho Lísias.
33
Homens ricos existiam muitos no Pireu, mas Céfalo foi um meteco
perseguido politicamente, perdeu toda a fortuna que ali fez e teve família
execrada, vindo a refazer-se mais tarde, com dificuldade. Foi, portanto, um
homem seguidor das leis gregas, trabalhador, dono de fábrica de escudos que
chegou a possuir cem escravos em sua propriedade instalada no porto do Pireu.
Foi um bem sucedido meteco, portanto, e estes são dados úteis para
compreendermos o pensamento de Céfalo sobre o que é a justiça.
Se Platão nasce em Atenas por volta de 427 a.C., e comparando sua data
de nascimento com o tempo vivido por Céfalo no Pireu, o filósofo teria
provavelmente entre 7 a 12 anos quando o meteco era ancião em Atenas e,
claro, não se encontrou com ele para dialogar. Essa é uma característica de
Platão: usar personagens que julga importantes quanto a certos valores, levar em
conta suas virtudes e ações e acrescentar o que necessita para o
desenvolvimento da temática proposta, teatralizando, como nas tragédias e
comédias, independente de o personagem estar ou não vivo, ter existido ou não.
Quanto ao início do diálogo, sabemos que Sócrates e Glauco estão nas
comemorações da deusa Bêndis e vão até a casa de Céfalo a convite de
Polemarco, como adiantamos inicialmente. O próprio Céfalo está, e Sócrates
o considera muito envelhecido (328c). Acabara ele de fazer um ritual de sacrifício
e estava com uma coroa de louros na cabeça. Ora, o Céfalo de A República, pai
de Lísias, de Polemarco e de Eutidemo (330b), é neto do primeiro Céfalo e filho
de Lisânias. No Pireu, o ancião recebe Sócrates como um velho amigo (328d) e
íntimo da família, o que leva os comentadores a não separarem o personagem
platônico do Céfalo histórico. Vegetti,
29
quando descreve esse Céfalo enquanto
29
VEGETTI, Mario. In: Platone. La Republica. Napolis: Bibliopolis, Vol. I, Livro I. 1998, p.134.
34
personagem, o expõe como um rico meteco que teve os bens confiscados por
Erastóstenes:
Céfalo também é rico e dono de uma fábrica de escudos e tais são
seus herdeiros, como mostra Lísias, fazendo um amargo relato dos
bens subtraídos a ele e Polemarco pelos emissários dos Trinta
Tiranos. Estes tinham de fato lhe confiscado setecentos escudos,
prata e ouro em abundância, cobre, jóias, utensílios, vestes
femininas muita mais de quanto esperariam um dia possuir e,
sobretudo cento e vinte escravos, dos quais tinham ficado para si os
melhores, deixando o restante para o tesouro.
O que observamos é a não preocupação em distinguir o ancião personagem
do histórico em nenhum momento da interpretação do Livro I, mas seria bom
fazê-lo porque o importante é saber o contexto em que o filósofo o coloca para
que responda o que é a justiça. E a resposta de Céfalo, espantosamente, não
deixa de ser, logo no início de A República, uma primeira “mentira nobre” do
filósofo, pois é o próprio Platão quem coloca na boca do Céfalo-personagem o
que ele talvez jamais tenha dito em vida, ou seja:
[...] na medida em que vão definhando para mim os prazeres do
corpo, nessa mesma medida aumentam os desejos e os prazeres da
conversa. Não deixes de estar na companhia destes jovens, mas
vem também aqui à nossa casa, como a casa de amigos, e de
amigos muito íntimos (328 d).
30
Essa fala terá ressonância na colocação platônica sobre a justiça no
decorrer da obra. Ele marcará, nitidamente, a importância da amizade (philia) na
vida dos homens, noção que é o fundamento para uma cidade justa.
30
“ώς εϋ ϊσθι ότι έµοιγε όσον αί άλλαι αί κατά τό σωµα ήδοναί άποµαραίνονται, τοσοϋτον αύξονται
αί περί τούς λόγους έπιθυµίαι τε καί ήδοναί. Μή ούν άλλως ποίει, άλλά τοίσδέ τε τοίς νεανίαις
ξύνισθι, καί δεύρο παρ´ ήµάς φοίτα, ώς παρά φίλους τε καί πάνυ οίκείους. (328d)
35
Na sequência da conversa, Céfalo trata de situações aparentemente
corriqueiras do dia-a-dia e, no seu caso específico, da velhice e do caráter que
cada um apresenta durante sua vida. Ao expressar algo sobre a velhice e a
amizade, que diz ser importante a todas as pessoas, aponta duas questões: a dos
desejos físicos que tomam conta, na juventude, e a do desejo de conversas, mais
presente conforme o homem vai envelhecendo. Como é um homem vivido, sabe
bem disso. Nesta colocação de Platão pela voz de Céfalo, temos uma tese em
nada desprezível, que será retomada em livros posteriores de A República,
principalmente no Livro VIII. Sabe-se, ainda, que Sócrates procura estar sempre
junto aos jovens para dialogar, sinal de que algo prazeroso para a filosofia
nesse contato com os poucos experientes na vida, porém a conversa entre os
mais velhos, quando os desejos imediatos estão arrefecidos, interessa a Platão
principalmente também no Livro IX, ao tratar da tirania e da força dos prazeres
para o transtorno da alma, o que, em Céfalo, não ocorre. Desejos exacerbados e
tirania estão próximos, de modo que o fato de Céfalo ter prazer nas conversas e
tranquilidade nos desejos é um valor de suma importância. Sócrates afirma na
conversa que:
Eu também me comprazo bastante, Céfalo, respondi, em dialogar
com pessoas de idade avançada. Sempre achei que me podem
dizer como é o caminho por eles percorrido e que nós também talvez
tenhamos de vencer; irregular e penoso, ou fácil e de boa saída para
partilhar? (328e).
31
Por tal condição, cremos o ser ingênua a colocação de Céfalo e sua tese,
que costuma ser apontada como excessivamente simplória (talvez porque não
31
Καί µήν, ήν δ´ έγώ, ώ Κέφαλε, χαίρω διαλεγόµενος τοις σφόδρα πρεσβύταις· δοκει γάρ | µοι
χρηναι παρ’ αύτών πυνθάνεσθαι, ώσπερ τινά όδόν προεληλυθότων ήν καί ήµας ίσως δεήσει
πορεύεσθαι, ποία τίς έστιν, τραχεια καί χαλεπή, ή ραδία καί εϋπορος. (328e)
36
seja argumentativa), e no entanto, não é de forma alguma idesprezível. N.
Pappas,
32
ao analisá-la, e apesar de considerá-la muito ampla, diz que não se
deve esperar um discernimento apurado de Céfalo sobre a justiça, pois ele
apenas apresenta o que absorveu do contexto social como forma de agir
corretamente, mas é incapaz de responder ao porquê da sua ação. Não nos
parece pouco o que diz Céfalo, e achamos esse dizer do ancião uma boa forma
de viver a partir de toda a tradição educadora mítico-poética, que fundamenta os
valores da aristocracia arcaica ainda vigente no ethos grego e que não desgosta a
Platão. Considerar irrelevante a fala de Céfalo é não inseri-lo no conjunto de A
República, pois a vivência da diferença entre os desejos e o caráter (ethos)
seria um bom motivo para não tomá-lo por simplório.
Várias características de Céfalo são apontadas nesse primeiro momento:
sua debilidade física, sua impossibilidade de locomoção para lugares que exijam
grande esforço, o arrefecimento dos prazeres físicos e o aumento do prazer de
conversar, como foi dito. Tudo isso é uma imposição da própria natureza aos
homens ou, melhor dizendo, de forma mítico-poética, é o que a Moira aos
homens. Lembremo-nos da narração de Hesíodo,
33
de que a velhice seria mais
uma das mazelas da Raça de ferro. No entanto, é a velhice que recolhe a
sabedoria acumulada com o passar do tempo, e se, de um lado, a juventude tem
a força física e os desejos abundantes, a velhice pode ter a sabedoria que o
tempo lhe e a tranquilidade do ímpeto, algo que interessa à filosofia e à regra
do “nada em excesso”.
É interessante apontar que esse “despreendimento” dos prazeres do corpo,
que o naturais na velhice, é um dos requisitos da ascese filosófica platônica,
32
PAPPAS, Nickolas. A República de Platão. Trad. Abílio Queiroz. Lisboa: Edições 70, 1995.
33
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras,
1996, vv170- 200.
37
como revela o próprio filósofo, no Fédon, ao tratar da imagem da alma e sua
queda na ânsia para vislumbrar as verdades (248b-c): “A causa que atrai as
almas para a contemplação da Verdade consiste em que ali encontram o
alimento que as pode satisfazer inteiramente, desenvolver as asas, esse alimento
que, enfim, liberta as almas das terrenas paixões”.
No entanto, e quanto à idade avançada dos homens e suas possibilidades
de virtude dentro da perspectiva filosófica, a tradição homérica não pensa assim e
se abre para duas leituras possíveis dos intérpretes: uma positiva, quando aponta
para a velhice como um momento em que os homens acumularam sabedoria
com o tempo; e outra negativa, quando se refere à perda da arete guerreira.
Comenta Mossé
34
:
Com efeito, os anciãos, àqueles que, por força da idade, não
participam no combate, têm um outro papel a desempenhar. Tendo
escapado à morte gloriosa, eles passam a colocar a sua sabedoria a
serviço da comunidade. Não obstante, mesmo entre os guerreiros,
dá-se também o caso de haver alguns que se destacam mais pelo
sua clarividência que pelo valor no campo de batalha.
Ao superarem as várias batalhas, muitos passavam a fazer parte dos
conselhos estabelecidos nas cidades e muitos eram grandes líderes nos
combates. No campo de batalha, o exemplo de Nestor, rei de Pilos, que serve de
grande conselheiro, é apresentado como velho sábio, participante de vários
combates, por isso pode aconselhar os novos guerreiros que estão contra Tróia.
Ao conversar com Agamenon, no canto IV (Ilíada. VV. 310 a 321), este canta
sobre a valentia e a sabedoria adquirida com o tempo de Nestor, mas reconhece
o peso da velhice:
34
MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero à Esquilo. Lisboa : Edições 70, 1987, p.49.
38
Tira (Nestor) da antiga experiência o saber com que inflama os seus
homens. Vendo-o, exultante se mostra Agamenon, rei poderoso, e,
aproximando-se dele, lhe diz as palavras aladas: Se conservasses, ó
velho, nos membros a antiga energia e agilidade dos joelhos, tal
como a coragem conserva! Mas a velhice, que a todos oprime, em ti
pesa. Quem dera que passasses para outro, deixando-te moço de
novo! Disse-lhe, então, o gerênio Nestor, condutor de cavalos: Eu
próprio, ó filho de Atreu, desejara de novo encontrar-me com o vigor
daquela época, quando privei da existência Ereutalião. Mas os
deuses nem tudo aos humanos concedem. Era, então moço; mas
ora a velhice nos ombros me pesa.
Nem tudo os deuses permitem aos homens e, quando possibilitam a força
para a guerra, retiram a experiência que vem com a idade. Essa é uma
notoriedade da velhice, é ter o poder para evocar o passado, tal como faz Nestor,
para legitimar um pouco o “ser velho”. Além dos sábios com estirpe guerreira,
existem outros velhos sábios que não se utilizam desse tipo de sabedoria bélica,
mas, por terem uma linhagem divina, sabem falar de fatos presentes, passados e
futuros. É o caso dos adivinhos Tirésias e Calcas, cuja velhice lhes deu respeito
e reverências que a idade dá. Além dessas duas funções, os conselhos das
cidades eram formados por anciãos ouvidos nos momentos mais difíceis, quando
da deliberação sobre problemas que envolvessem a segurança da cidade. Ainda
mais, cabiam aos anciãos os rituais familiares e públicos. Essa idéia de que a
idade certas capacidades importantes não é abandonada por Platão. Tanto
que ele cria uma escola crescente para a formação dos homens na cidade justa
de acordo com a idade, e seu processo pedagógico, quando da formação
estamentos da sua A República, levará em conta o amadurecimento de cada um.
Somente lembramos, por agora, que um filósofo não poderá ser jovem, questão
que é abordada nos livros VI e VII que não analizaremos.
39
Perseguindo um pouco mais a questão da velhice do ângulo dos valores
arcaicos, vemos que o núcleo está no desgaste do corpo, algo muito negativo
para quem tem arete guerreira. As interpretações sugerem
35
que, na poesia de
Homero - cujos valores educam o cidadão grego e estruturam a “memória de sua
raça” , o modelo de virtude está nos deuses, e a relação mundo humano e
mortal com o mundo divino e imortal é inalcançável. A velhice aparece, segundo
Vernant,
36
de modo negativo, porque o corpo velho não tem vitalidade, não tem
areté guerreira. Na Ilíada (XXII – v. 60, 65), quando Príamo, rei de Tróia, sente-se
sem força física para defender o filho Heitor -que trava combate com Aquiles, e
sabendo o rei que o Pelida desejava vingar a morte do seu melhor amigo,
Pátroclo (executado em batalha pelo príncipe troiano -, vê-se sem o impulso da
juventude, lhe restando o desespero. a ira e o vigor guerreiro do filho de
Tétis, que se abate sobre Heitor, e o corpo envelhecido do rei e pai, sem força
física para agir a favor do filho. Virilidade de um lado; decrepitude, de outro.
Diante de tal situação, lamenta-se Príamo a Zeus:
Na extrema velhice quer Zeus que eu morra de uma sorte
amarga, após ter visto muitíssimas maldades: filhos trucidados,
filhas raptadas, tálamos vilipendiados, crianças, na turbamulta,
esmagadas na terra; noras, por mãos aquéias, funestas
seqüestradas. (XXII –v. 60, 65)
37
Príamo expõe a dor da perda dos filhos em consequência da idade, pois não
mais é portador da arete guerreira e do vigor para gerar filhos, seu lamento vai
dirigido a Zeus como pai de tantas divindades. O poeta também faz referência à
35
Ver : VERNANT, Jean-Pierre. Mortal and Immortals. LORAUX, Nicole. L’invention d’Athènes:
Histoire de l’oraison fúnebre dans la “cité classique”. Paris : Civilisations et Sociétés 65, 1981.
GAZOLLA, Rachel. Bela morte, boa morte. I
º Curso livre de humanidades. Abril, DvD, 2002.
36
Op. Cit.
37
όν ρα πατηρ Κρονίδης έπί γήραος ούδω αίση έν άργαλέη φθίσει, χαχά πόλλ’ έπιδόντα,
υίάς τ’ όλλυµένους έλχηθεισας τε θύγατρας, χαί θαλάµους χεραϊζοµένους, χαί νήπια τέχνα
βαλλόµενα προτί γαίη έν αίνη δηϊτητι,
40
velhice na Ilíada (Canto XXIV), logo após a morte de Heitor. Morto o príncipe
troiano, Aquiles, tomado pela cólera, arrasta seu corpo e nega-se a entregar o
cadáver para a execução dos ritos fúnebres. Essa atitude causa problemas entre
as divindades, sendo necessário a Zeus solicitar a presença de Tétis, mãe do
semidivino Pelida, para aconselhá-lo a devolver o cadáver a Príamo e para que se
realize o ritual de passagem ao Hades. Ao entrar na tenda do semidivino, Príamo
causa espanto a todos que se encontram ao fazer sua lamentação ao filho da
divina Tétis. Suplica Príamo a Aquiles:
Lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venerável da
mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim, velho. É
bem possível que estejas cercado por fortes vizinhos, cheios de
angústia, sem ter quem lhe sirva de amparo e defesa; mas, de
ouvir que estás vivo alegria indizível lhe invade o coração, dia a dia
esperando poder ante os olhos ter a figura do filho glorioso, de volta
de Tróia. (XXIV - vv. 486 a 495)
38
Com a idade, perde-se a força física e, junto com isso, chegam o medo e a
insegurança, de modo que os inimigos se tornam mais fortes e, de alguma forma,
os anciãos necessitarão de proteção. Isso é o que se passa com o rei de Tróia
com a perda do filho: fica vulnerável. Para uma sociedade guerreira, a velhice é
problemática por isso.
Ora, a mudança de postura apresentada com o personagem Céfalo é digna
de nota e por isso interessa a leitura do Livro I para o restante da obra. Platão
está longe dessa sociedade homérica, mas esses valores arcaicos impregnam os
habitantes de Atenas, provenientes que são dos poetas educadores, são
paradigmas da formação grega. O filósofo recolhe esses valores tradicionais, quer
38
θεοις έπιείχελ’ ‘Αχιλλευ, τηλίχου ώς περ έγών, όλοω έπί γήραος ούδω· χαί µέν που χεινον
περιναιέται άµφίς έόντες τείρουσ’, ούδέ τίς έστιν άρήν χαί λοιγόν άµυναι. Άλλ’ ήτοι χεινός γε
σέθεν ζώοντος άχούων χαρει τέν θυµω, έπί τ’ έλπεται ήµατα πάντα όψεσθαι φίλον υίόν άπό
Τροίηθεν ίόντ·
41
lhes dando sentido positivo, quer o negativo, para usá-los em sua nova polis justa
de outro modo que, como veremos, terá parcialmente fundamento em valores
guerreiros no seu segundo estamento, porém remodelado.
A guerra pode dar-se em palavras ou em efetivo campo de batalha, sabe
bem Platão, e Céfalo é a amostra da necessidade do prazer da conversa entre
outros prazeres a manter, sem stasis. Quanto à figura do guardião-guerreiro
(phylakos), é a reestruturação do ideal dos guerreiros arcaicos. Como se sabe,
Esparta, por ser uma cidade guerreira, organizada militarmente, é com certeza, o
modelo de organização inspirou Platão para sua cidade justa, o segundo
estamento como veremos. Entre as características da sociedade espartana,
estava a de formar um “Conselho de anciãos”, conhecido como Gerúsia. Esses
conselheiros resultavam de um processo de vida militar, e com a idade, adquiriam
experiências necessárias para deliberarem sobre assuntos internos e externos da
comunidade. Esse era um conhecimento construído com o tempo. Seus
membros, por sua vez, eram os dois reis e mais vinte e oito cidadãos com mais
de sessenta anos, liberados das obrigações militares. Eram vitalícios e eleitos de
forma a preencherem as qualidades determinadas pelo conselho: seriam os
melhores e os mais bios entre os seus compatriotas militares. Essa era a
exigência para que pudessem exercer a função de conselheiros, na preparação
dos projetos de lei a serem votados pela assembléia, que funcionava como
tribunal para a justiça criminal. Esse modelo não se afasta muito daquele pensado
por Platão, o que muda é o fundamento de cada cidade quanto ao que se define
como justiça.
Platão, ao nos colocar diante de um ancião, quer nos lembrar que devemos
ouvi-los. Com a idade a força é tomada do homem pelos deuses, mas, para não
42
deixá-los desamparados, deixam com eles a sabedoria. Esse mesmo percurso o
filósofo faz ao formar as classes do governo justo. Antes, os governantes servem
na classe dos guerreiros e depois, ao demonstrarem sua sabedoria através da
sua formação específica, já estabelecidos no processo pedagógico da cidade
justa e mais envelhecidos, poderão exercer a função de governantes se educados
como filósofos. Quanto a educação mais antiga dos gregos, parece unanimidade
entre os comentadores que Céfalo é seu o herdeiro na afirmação de pagar o que
se deve e ter tranquilidade ao final da vida com receios quanto ao Hades.
Para Strauss,
39
Céfalo aponta o problema da velhice e, ao mesmo tempo, é
um modelo de decência ao seguir as regras da cidade. Quando Sócrates (328e) o
questiona quanto ao que sente “no limiar da velhice”, se o percurso foi custoso e o
que ele teria a dizer a seus iguais (329a-c), Céfalo afirma (329d) que não é a
idade que faz a pessoa infeliz, mas a disposição do caráter de cada um, tanto na
juventude quanto na velhice. Ora, a disposição do caráter será nuclear em uma
sociedade organizada de acordo com as potencialidades da alma de cada um,
como quer Platão: educar pessoas com desejos diferentes e tendências diversas
que têm que viver de forma harmônica numa cidade, apesar de as condições
físico-psíquicas serem tão diversas.
Na visão de Crombie,
40
Céfalo é feliz. De tempos em tempos, surgem
homens de temperamento feliz como ele, que são sóbrios, poucos e livres da
tentação de tratar injustamente os demais. Esse é o momento em que Platão,
segundo o intérprete, usa o personagem para apontar a satisfação e o domínio
dos desejos, uma vez que é na busca dos prazeres sem limites que se encontra a
causa das rivalidades e da injustiça. Considera Crombie que os escrúpulos morais
39
STRAUSS, Leo et alli. History of Political Philosophy. 3 ed. London: The University Chicago
Press,1987.
40
CROMBIE, I. M. Análisis de las doctrinas de Platón. Madrid: Alianza editorial, 1999, p.86.
43
não são suficientes para impedir os homens de buscarem a realização dos seus
interesses, sem se submeterem à disciplina necessária, e as leis devem servir
para isso. Ademais, uma das possibilidades para se pensar o bom governante é
que homens maduros, que percorreram a vida aprendendo firmemente certas
regras, podem fazer bons governos, modelo que de algum modo está sinalizado,
em parte, em Céfalo: uma espécie de oligarquia por idade e sabedoria, como
pretende ser o Conselho dos Anciãos arcaicamente, conforme explicitamos
acima.
Ademais, Céfalo propicia a pergunta sobre o que estimula tanto os homens a
desejarem coisas oferecidas na cidade, e sabe-se que o primeiro modelo da
cidade platônica dispensa as riquezas (369 a – 372 d), o que abordaremos
adiante. Os cidadãos não deverão produzir apenas para o gasto, mas tudo será
em quantidade e variedade suficientes para atender aqueles a quem se deve
suprir as necessidades (371 a).
41
Em 329 e, Céfalo diz que seus haveres ajudam a suportar a velhice, já que é
um homem rico, mas não são os bens a causa, mas sim, e principalmente, o
caráter (ethos). O que ele possui dependeu de sua atitude diante da herança
deixada por seu pai, que a tinha herdado também do pai. O pai de Céfalo perdeu
sua herança em boa parte, mas a atitude do filho provocou novamente o seu
crescimento, possibilitando tranqüilidade ao seguir o valor familiar e atingir o que
a família necessita para o sustento e velhice confortável. O fio que Platão semeia
nessa fala reaparecerá no Livro VIII, como apontamos, quando é mostrada a
marca originária que os pais deixam nos filhos ao educarem e as consequências
para o futuro da própria cidade.
41
“∆ει δη τά οϊκοι µή µόνον έαυτοίς ποιειν ίκανά, άλλά καί οία καί όσα έκείνοις ών άν δέωνται.” (371
a)
44
Sabendo que, para o homem grego, é grande honra conservar ou ampliar o
que é herdado, os bens acumulados não refletem o bem-estar da família, mas
o da própria cidade e Céfalo é excelente nesse aspecto. Lembremos que
Tucídides,
42
ao recolher o discurso de Péricles aos mortos quando do combate do
Peloponeso, conta que o general recordou os antepassados e suas honras,
corroborando a importância da família e do passado na educação grega de então.
Diz Tucídides:
Se eles (os antepassados) são dignos de elogios, nossos pais o são
ainda mais, pois aumentaram a herança recebida, construíram o
império que agora possuímos e a duras penas nos deixaram este
legado, a nós que estamos aqui e temos.
No entanto, J. Annas,
43
em seus comentários sobre A República, olha de
forma desprezível a figura de Céfalo, pelo fato de ser ele um homem rico que
dedicou a vida ao ganho de dinheiro no porto do Pireu. Afirma a intérprete:
Céfalo é um homem que escolheu consagrar sua vida ao ganho do
dinheiro vivendo em uma cidade estrangeira, renunciando a todos os
direitos, deveres e atividades de um cidadão, coisas de importância
vital aos olhos dos gregos e para o respeito de si mesmo.
É necessário reavaliar tal colocação, talvez ideológica e projetiva quanto ao
desprezo dos bens crematísticos, pois, mesmo sendo um homem rico, o que não
é negativo em si, Céfalo tem valor importante como pretendido por Platão ao
colocá-lo no início do livro I. Afinal, ele é parte do suporte da cidade para a
realização de desejos básicos como a alimentação, a habitação e vestimentas,
quando é necessário a moeda, e seguindo as exigências do Livro II quando de
uma cidade mais complexa, a pedido de Glauco, o ethos de Céfalo pode ser bem
42
TUCÍDIDES. História da guerra do peloponeso. Trad. Mário da Gama Curi. 3ª ed. Brasília: UnB,
1999, Livro II. 36.
43
ANNAS, Julia. Introduction à la Republique de Platon. Paris: PUF. 1981. p. 28.
45
recebido. Talvez Annas esteja em ângulo anacrônico para tal afirmação. Se, para
Céfalo, a qualidade da justiça consiste (331 c) na verdade e em restituir aquilo
que recebemos”,
44
isso não é em nada desprezível, e notemos que essa fala é de
um meteco, mas poderia ser de um grego. A riqueza é secundária nesse
contexto; o caráter é primário; a sophrosyne subjaz como seu modelo.
4. A lógica do discurso de Céfalo
Com mais detalhe o diálogo entre Sócrates e Céfalo, ele se organiza da
seguinte forma: num primeiro momento, é descrito o espaço onde vai se dar o
diálogo, no porto do Pireu, mais precisamente na casa de Céfalo; para, em
seguida, notar que Sócrates o anfitrião envelhecido, libando ao deus protetor
da casa e, finalmente, apresenta-se o gosto da conversa entre amigos. Em 329 a-
d, Céfalo coloca o que alguns anciãos pensam das vantagens e desvantagens da
velhice e, desejoso de ouvi-lo, Sócrates sutilmente pergunta: (329e) “receio que a
maioria dos homens não concorde com o que acabaste de dizer” (quanto ao uso
da riqueza, que não é tão vantajoso quanto se pensa). Para o ancião, não
importam ricos ou pobres, pois todos se lamentam, ao final, por terem levado uma
vida desregrada, e ele, no caso, homem moderado, fez desse final um fardo
suportável. Se muitos forem os homens com caráter não excessivo, podemos
imaginar uma cidade organizada do mesmo modo. Seria uma cidade justa? É
possível, numa resposta à margem dos argumentos, pois é a moderação que
impulsiona tal cidade.
Sócrates quer, ainda, saber como os indivíduos se relacionam com a riqueza
de acordo com a forma como a adquiriram, uns por esforço próprio e outros por
44
πότερα τήν άλήθειαν αύτό φήσοµεν ειναι άπλως ούτως καί τό άποδιδόναι, (331 c)
46
doações, o que muda o modo de atuar. Céfalo é, ao mesmo tempo, herdeiro e
trabalhador, recebeu com facilidade, perdeu e trabalhou para obter. Para
Sócrates, de acordo com a aquisição dos bens, os que têm de construir fortuna
são duplamente afeiçoados à riqueza, fato que leva a perguntar (330d): “...No teu
modo de pensar, qual foi a maior vantagem que te proporcionou a riqueza?”
Céfalo responde que alguns homens, quando chegam à idade avançada, pensam
na vida que levaram e a consciência os atormenta pelos atos cometidos, por
medo do Hades. Para ele, a vantagem é deixar a vida sem receio de ter mentido,
mesmo involuntariamente, e por não dever sacrifícios aos deuses nem dinheiro a
ninguém. Essa é a forma de ser justo (331d): falar a verdade e restituir o que se
recebe, como foi dito. Alongando as perguntas, Sócrates quer saber de alguma
circunstância em que se pode restituir algo devido a alguém de acordo com
situações específicas, pois isso pode ser um ato justo ou injusto, por exemplo, se
devemos dinheiro a uma pessoa que quer usá-lo para matar alguém. Céfalo se
afasta sem prolongar a conversa, para terminar seu ritual a Zeus, e seu herdeiro,
Polemarco, segue na conversa.
5. Quem é Polemarco?
Sócrates parteiro conduz, agora, Polemarco à reflexão sobre o que é a
justiça, não como seu pai lhe ensinou, mas o que ele mesmo pensa a respeito.
Polemarco carrega a duplicidade de ser um modelo dramático e uma figura
histórica: filho de Céfalo e irmão de Lísias,
45
como foi dito. Não temos a data de
45
LYSIAS. Discours XII. Trad. Louis Gernet et Marcel Bizos. Paris : Les Belles Lettres.
47
seu nascimento, e, segundo levantamento de Nails,
46
provavelmente nasceu em
Siracusa. Como filho mais velho, era o guardião temporário dos seus irmãos,
Lísias e Eutidemo. O problema central que o envolve é narrado por seu irmão
Lísias,
47
considerado excelente logógrafo ateniense: Polemarco foi morto logo
após a guerra do Peloponeso, quando da derrota de Atenas em 404 a.C, e sua
submissão ao poderio espartano pelo governo composto de trinta dirigentes
escolhidos entre representantes da oligarquia grega, a nomeada “Tirania dos
Trinta”. Crombie
48
expõe que esse momento político marca profundamente a vida
de Platão, que teve nele dois parentes envolvidos: Cármides e Crítias, ambos
discípulos de Sócrates. Nessa época, Platão, provavelmente, teria vinte anos e,
apesar de convidado a participar desse governo, o aceitou, por não concordar
com a forma utilizada pela aristocracia dirigente, a qual usava do poder para
perseguir os dissidentes.
Mossé
49
indica que o Governo dos Trinta, que exilou Lisias e confiscou os
bens de Céfalo, foi responsável pela instalação do terror em Atenas. Seus
participantes não tinham escrúpulos: matavam cidadãos atenienses para adquirir
seus bens e, até mesmo, para eliminar os que tivessem algum prestígio perante a
população. Entre os cidadãos perseguidos e mortos está exatamente Polemarco.
A ocorrência de sua morte encontra-se no discurso XII, de Lísias, intitulado
“Contra Erastóstenes”, em que ele apresenta o processo de perseguição e aponta
Erastóstenes como aquele que prendeu seu irmão. Platão coloca tal cenografia e
46
NAILS, Debra. The people of Plato. A prosopography of plato and other Socratics. Cambridge:
Hackett l’publishing Company.
47
LYSIAS. Discours XII.
48
CROMBIE, I. M. Análise de lás doctrinas de Platón: el hombre y la sociedad. Madrid, Alianza
Universidad, 1990, pp. 13 a 20.
49
MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. João B. da Costa, Brasília: UnB,
1982, p. 54.
48
inserie Polemarco como personagem não sem razão num diálogo que estrutura
uma cidade justa e pergunta sobre a justiça.
Polemarco aparece no passo 327b do Livro I, apresentado como “herdeiro”
familiar (kleronomos), primogênito, também para seguir com as perguntas e
respostas a Sócrates (331 d). Herdeiro de fato de Céfalo, das riquezas materiais e
dos valores educacionais que recebeu de seu pai, é agora, herdeiro na
coversação. Algumas colocações destas passagens serão reapresentadas no
livro IV, quando Sócrates faz referência aos filhos gerados pelos governantes,
guardiões ou artesãos e indica que eles não serão “herdeiros” por geração, mas
serão filhos da cidade, o que comentaremos. Pela via das potências anímicas o
ângulo se modifica do Livro I ao IV, de modo que a paternidade e a herança
paterna não estão em jogo pelo sangue, ou leis civis, mas pela alma. Em (423 c -
d):
Menos importante, ainda, lhe disse, é a de que falamos há pouco, ao
afirmar que seria preciso transferir para outras classes os filhos dos
guardas que por ventura se revelassem inferiores, e o inverso
passar para a classe dos guardas os filhos bem gerados das outras
duas. Com isso tinha em mira demonstrar que também com
referência aos demais cidadãos será preciso que cada um exerça
uma única atividade, aquela para que for naturalmente indicado; é
dessa maneira que o cidadão pertence único, não múltiplo, com o
que lucra a própria cidade, que não se multiplica, porém, se mantém
indivisa.
50
50
Καί τούτου γε, ην δ έγώ, έτι φαυλότερον τόδε, ου καί έν τω πρόσθεν έπεµνήσθηµεν
λέγοντες ώς δέοι, έάντε των φυλάκων τις φαυλος έκγονος γένηται, εις τούς άλλους αύτόν
άποπέµπεσθαι, έάντ’ / έκ των άλλων σπουδαιος, είς τούς φύλακας. Τουτο δ’ έβούλετο δηλουν
ότι καί τούς άλλους πολίτας, πρός ό τις πέφυκεν, πρός τουτο ένα πρός έν έκαστον έργον δει
κοµίζειν, όπως άν έν τό αύτου έπιτηδεύων έκαστος µή πολλοί, άλλ’ εις γίγνηται, καί ούτω δή
ξύµπασα ή πόλις µία φύηται, άλλά µή πολλαί. (423c-d)
49
Platão afasta-se, assim, dos problemas históricos pelos quais Atenas passou
durante o conflito com Esparta - quando houve a peste que matou muitos
atenienses, entre eles Péricles -, para focalizar outro solo, o propriamente
reflexivo, no Livro IV. Lembremos que, naquele período da peste, alguns dormiam
pobres e amanheciam ricos devido às mortes pela doença, o que levou a
população a um estado desenfreado de desejos de realização dos prazeres
imediatos, pois não se sabia até quando uma pessoa continuaria viva. Ora, como
abordaremos, na cidade criada em logos, os bens são da própria cidade e devem
ser utilizados em benefício de todos, e para que isso ocorra, é necessário que
cada um exerça uma função, de acordo com a potência existente na alma que
mais lhe respeite por natureza (423d) e que foi aperfeiçoada por educação. É de
se estranhar, portanto, que os comentadores tenham dificuldades em apresentar
as relações entre o Livro I e o restante de A República. Como a colocação de
Céfalo, também de Polemarco será retornada de modo sutil por Platão nos livros
que se seguirão.
Platão vivenciou esses conflitos históricos e tinha em mente que a riqueza e
a pobreza são causas de grandes males (421d 422a), tanto para os homens
quanto para a cidade, de modo que buscará a solução desse tipo de conflito ao
estruturar a cidade justa, dispondo dos bens produzidos para que todos deles
usufruam e não se deixem arrastar para o desejo de acumulação pessoal. Se
Céfalo serve como bom modelo num primeiro momento, por ser portador da
virtude produtiva e familiar, qual será o valor da tese de Polemarco?
Ao expor a sua tese (332d), de que a justiça é fazer bem aos amigos e mal
aos inimigos,
51
Polemarco apresenta exatamente a visão e função do guardião da
cidade justa, do segundo estamento da cidade justa, como veremos no segundo
51
Τό τούς φίλους άρα εύ ποιειν καί τούς έχθρούς κακως δικαιοσύνην λέγει; (332d)
50
capítulo da nossa investigação. De forma bem mais elaborada, essa função exige
do guardião o saber sobre a distinção entre opostos: amigos e inimigos e, para
isso, Platão acrescenta às qualidades psíquicas desse segundo estamento
também a disposição filosófica. Assim, poderá o guardião atuar tanto dentro da
cidade quanto fora dela. Desse modo, a cidade justa acolhe a tese de Polemarco,
como veremos no momento em que demonstrarmos seu o resgate um pouco
mais à frente.
6. O discurso de Polemarco e sua arete
Ao assumir a conversa, Polemarco defenderá o que foi ensinado por
Simônides (331e), que “é justo restituir a cada um o que se deve”.
52
Sócrates
questiona-o se sua colocação é realmente a mesma do poeta, e ressalva que os
poetas se expressam de forma enigmática (332c):
Por conseguinte, disse eu, Simónides falou ao que nos parece,
enigmaticamente, à maneira dos poetas, ao dizer o que era a justiça.
O pensamento dele era, aparentemente, que a justiça consistia em
restituir a cada um o que lhe convém, e a isso chamou ele restituir o
que é devido.
53
O problema da afirmação de Polemarco, respaldado no ensinamento do
poeta, é com relação à restituição (apodidonai) se a justiça é o ato de restituir o
que é devido, deve ser feita no momento em que, aquele é ressarcido, goze de
harmonia racional, caso contrário não se deve fazer tal ação, pois o ato de ser
ressarcido tem implicações éticas que devem ser levadas em conta. Ser justo não
52
İτι, η δ’ ος, τό τά όφειλόµενα έκάστω, άποδιδόναι δίκαιόν έστι˙ (331e)
53
Ήινίξατο άρα, ήν δ’ έγώ, ώς έοικεν, ό Σιµωνίδης ποιητικως τό δικαιον δ’ εϊη˙ διενοειτο µέν
γάρ, ώς / φαίνεται, ότι τουτ’ είη δίκαιον, τό προσηκον έκάστω άποδιδόναι, τουτο δέ ώνόµασεν
όφειλόµενον. (332c)
51
é um ato aleatório, ou mecânico, mas um ato educativo para o correto, na medida
que leve a ação a ser a mais bela possível. Nessa lógica de dar o que é devido
numa justa medida e da forma correta, Sócrates conduz o diálogo com o filho de
Céfalo para o uso da técnica, para demonstrar que o ato de restituir deve ser
sempre visando ao bem.
Poderíamos continuar a expor a lógica, da conversa, a maieutica socrática,
entre esses dois personagens, mas Platão aponta para um problema que, a
nosso ver, retomará no Livro VIII: qual é o homem que age no governo privado da
própria razão, ou que a tenha em desarmonia? Pelo que é exposto, parece-nos
que é essa a marca psíquica da decadência da cidadadnia e a construção da
figura dodo tirano: por estar privado do uso da razão principalmente o democrata
e o tirano quer tudo em tudo para a realização de seus desejos desmedidos. Aqui,
apontamos para o problema que desenvolveremos no último capítulo, quando
falarmos da Democracia. Retornamos à tese de Polemarco, que necessitará de
explicação sobre a quem se deve restituir e como.
Segundo o uso das técnicas, Sócrates (33e c) cria um diálogo imaginário
com Simónides para perguntar ao poeta se o ato da medicina, enquanto uma
techne (de dar o que é devido e conveniente ao doente) não seria dar os
remédios, a comida e a bebida devida a cada corpo, do mesmo modo para a
culinária, dar aos alimentos os temperos necessários. Isto aceito, fica difícil para
Polemarco, ao tratar da justiça e da injustiça enquanto técnica, de débito e
crédito, pois ser justo não pode ser fazer bem aos amigos e mal aos inimigos,
pois toda técnica o que é devido a quem é devido, e a justiça não comportaria
essa dualidade sem a explicação do que é ser amigo e inimigo. Tudo isso serve
para Sócrates mostrar que o ato de devolver o que é devido (das technai nelas
52
mesmas), é sempre o bem de quem delas necessita: o bom sapato do sapateiro
ao que compra o sapato, por exemplo. Essa deve ser a ética de quem é portador
desse saber: visar ao bem do outro.
que estão em busca do que seja a justiça, em 335c, Sócrates faz
Polemarco entender que ela enquanto exteriorização na ação, visa à perfeição
dos homens, tal qual a medicina que busca a saúde do corpo, a culinária para o
alimento. Dessa forma, um homem justo jamais seria mal para quem quer que
seja, pois um ato contrário ao bem, levaria à construção de um homem defeituoso
e, portanto, injusto. Esse é o motivo que leva crates a refletir sobre o ato de
restituir e restituir para quem, quando e como.
O que Sócrates percebe é que Polemarco se encontra inserido nos valores
mais óbvios da cidade. O ideal de fazer bem aos amigos e mal aos inimigos é
algo ouvido com frequência nos tribunais gregos da época. Os oradores
buscavam como suporte de seus discursos uma figura, Sólon. Esse legislador do
século VI a. C. escreveu poemas e, no fragmento 13, um dos mais longos que
nos restaram, denominado “Sobre a Justiça,”
54
expõe:
Filhas esplendorosas de Mnemósine e de Zeus Olímpico,
Musas Piérides, atendei a minha prece.
Bens da parte dos deuses bem-aventurados me dai e que junto de
todos
os homens de boa fama sempre goze;
ser, assim, doce aos amigos e aos inimigos amargo, (5)
àqueles respeitável e a estes temível parecer.
Riquezas desejo possuir, mas adquiri-las injustamente
não pretendo: sempre, a seguir, vem a justiça.
A fortuna que os deuses dão fica ao lado do homem,
firme, desde os alicerces à cumeeira. (10)
54
Tradução feita por LEÃO, Delfin Ferreira. lon: ética e política. Coimbra: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001, p.427.
53
Porém, a que os homens honram, com insolência, a ordem devida
Não segue, mas, levada por injustas ações,
contrafeita vem atrás e, lesta, se lhe junta a perdição.
Pequeno o seu começo é, como fogo,
primeiro sem valor, mas em aflição acaba, (15)
já que, para os mortais, as obras da insolência não perduram.
Ser doce com os amigos e amargo com os inimigos é uma ação não dos
homens justos, mas dos deuses com os homens, dependendo de suas atitudes, e
a tese de Polemarco parece aí assentar-se. Sobre o poema, comenta Jaeger:
55
Sólon foi uma coluna fundamental do edifício da formação ática. Os
seus versos imprimiram-se na alma da juventude e eram evocados
pelos oradores nos tribunais de justiça e nas assembléias públicas,
como expressão clássica do espírito da cidadania ática. A sua viva
influência persistiu até o tempo em que, com a decadência do poder
e do esplendor do império ático, despertou a saudade da grandeza
passada e os gramáticos e historiadores de uma nova era se
consagraram à conservação dos seus restos.
Se tão forte foi a sua influencia sobre os gregos, Platão não poderia deixar
de expô-la. lon foi um homem de ideal político muito distinto dos demais, que
não usou do poder para benefício próprio, mas procurou criar condições para que
todos tivessem possibilidades dignas de realização na polis. Não é isso o que
procura Platão ao seu modo? Quanto à ação injusta, Sólon espera de Zeus o
castigo para cada um que cometer a desmedida. Platão terá que demonstrar
que a injustiça é um mal em si mesma, que adoece a alma e os injustos serão
infelizes, o que é mais difícil de explicar.
56
Platão recolhe as estruturas do
55
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 1995, p.173
56
Não é sem razão que Platão termina A República com o mito de Er e tem que usar de mitos
para buscar a transformação interna dos cidadãos, questão difícil e profunda que não
analisaremos nesta investigação.
54
pensamento de sua época e, como sempre, o transforma. Neste caso, ser doce
com amigos e azedo com os inimigos será aceito, com as suas devidas
modificações, na arete guerreira do segundo estamento de A República, como
veremos, além de ajudar o caminho de questionamento de Polemarco.
De 331 d em diante, é retomada a tese de Céfalo é proposto a Polemarco
que, se devemos restituir algo a um reclamante, por exemplo, uma arma, e se
este não se encontra em seu juízo perfeito, não é certo que se deva restituir sem
mais o que se deve. Polemarco dirá que aos amigos devemos fazer o
bem”...nunca o mal..., e ao inimigo se faz o que convém, a saber, algum mal”. A
justiça seria, assim, um tipo de reciprocidade entre amigos, o que parece ser
comum nas sociedades. Mas, para Sócrates, a justiça não carrega tal oposição
fazer bem e fazer mal-, e quando o poeta Simónides diz que “o justo é restituir a
cada um o que se deve (331d), talvez tenha que se entender melhor tal sentença,
um tanto enigmática.
Para Sócrates, Simónides quis dizer que é dar a cada um o que lhe convém,
mas Polemarco não compreende e Sócrates busca uma outra via para verificar o
que convém restituir se pensarmos nas technai, por exemplo, como a medicina, a
culinária e a pilotagem, que restituem suas excelências a quem necessita delas.
O que é demonstrado é que cada technai possui uma medida para cada
coisa que fabrica, para a saúde do corpo, para o tempero dos alimentos, para
conduzir uma embarcação, etc. No caso específico de beneficiar amigo e
prejudicar inimigo, não é algo que diga respeito a elas, mas um ato referido a
quem as pratica, ao técnico e não à sua técnica. O que Sócrates procura mostrar
é a ação de quem se utiliza das cnicas com relação a outro homem e não ao
objeto ou arte exercida. Na arte médica, que pode curar ou matar o corpo, é o
55
médico que usa de sua arte para curar se souber fazê-lo, mas poderá, não o
médico, mas o homem, matar um doente se quiser usar mal sua arte de
propósito. Para o bem a techne sempre estará junto à boa ordem e medida e,
para o mal, não.
Se a justiça pode aparecer na techne, Sócrates tem que saber (332a)
quando a justiça tem utilidade nela mesma. Para Polemarco nos casos de
parcerias do dinheiro, mais precisamente nos depósitos, e nos demais casos
onde se exercer qualquer função, é melhor usar do conhecimento daqueles
que possuem uma técnica especifica. Então, Sócrates passa a inverter a função
das techne ao afirmar que (334 a seg.) aqueles que logram a melhor forma de
curar são os melhores para matar. Assim como o hábil, para guardar, é também o
melhor para roubar, dando assim a entender que o justo, para guardar, é injusto
ao roubar. Polemarco aceita exatamente essa posição, o que para Sócrates é
impossível. Para ele, a desmedida é uma característica da imperfeição humana e
a medida, sua perfeição.
Sendo a justiça medida, perfeição na execução de uma techne, ela não pode
ser o contrário, pois perde a sua essência de ser o que é. Com boa ordem, ela
funciona tal qual a arte da música, que visa tornar aquele que se dedica a ela
cada vez melhor. Aquilo que ela é, a justiça, não pode ser confundida com seu
contrário, a injustiça, ela é uma força que proporciona ordem e medida, que o
aperfeiçoamento de cada um; o ato de restituição (de Dike) jamais poderia fazer o
mal a quem quer que fosse.
Como para Sócrates tudo possui uma medida para ser e para exercer a sua
função e para mostrar a contradição do pensamento de Polemarco, a pergunta é
se a justiça é um ato deliberativo de fazer o bem e o mal a alguém, e então quem
56
seria mais capaz da ação do mal? No caso, (332d) quem é mais capaz de fazer
bem a um amigo doente e mal a um inimigo seria um médico e, assim,
sucessivamente com as outras técnicas, como já indicamos.
O modo como Polemarco pensa a justiça leva os comentadores M. Vegetti
57
e M. Crombie
58
a afirmarem que esse hábito de fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos é um costume entre os gregos, e eles apontam que Platão os recolhe.
Assim, Polemarco terá de resolver (334c e ss): quemo os verdadeiros amigos?
Aqui, Sócrates indica o real problema: o que é, afinal, a amizade e a aparência da
amizade, pois a verdadeira amizade manterá a unidade da cidade justa.
A amizade (philia) norteará as ações dos guardiões e dos artesãos da
cidade, daí ser necessário educar todos os cidadãos para ela e, especificamente
no caso do guardião, para reconhecer os amigos e os inimigos, tanto na guerra
quanto na paz. A falta de discernimento pode acarretar a destruição, pela força,
da cidade que se pretenda justa e do cidadão dito justo. Então, fazer bem aos
amigos e mal aos inimigos não é algo de fácil conhecimento, o que coloca
Polemarco novamente em dificuldade, e a mera opinião que pode ser arbitrária e
mutável o fundamentará tal discernimento. Como veremos adiante, o caminho
seguro para superar tal dificuldade é trazer o conhecimento, ao menos para um
grupo dos cidadãos, da diferenciação de opostos deste tipo, e com tal proposta
Platão um passo além da sua época ao tentar fundar a sua cidade em novas
relações ético-políticas.
Polemarco logo percebe, então, que sua tese é exposta de maneira muito
simples e que nada sabe do que falou. Pede para corrigir a sua definição de
amigo e de inimigo, pois lidava com a aparência de amigo, o que leva qualquer
57
VEGETTI, Mario. La Repubblica. Vol. I, pp. 178 – 179.
58
CROMBIE, I. M. Análisis de las doctrinas de Platón, p. 91 - 92.
57
pessoa a seguir um certo caminho que pode torná-la perversa e até injusta, se
fosse justa. Se o amigo for considerado um homem de bem e o inimigo um
malvado, de nada adianta a reflexão, e Polemarco não vai adiante deste ponto.
Sócrates propõe, então, verificar se a justiça implica um ato perfeito (335b-c).
Uma vez que o homem justo faça mal a qualquer outro homem, ele perde
sua natureza “justa” e vem a ser “injusto”, modo gico usado também no
processo de qualquer técnico que queira ser um bom técnico no que faz (e, se for
um mau técnico, não faa coisa bem feita e não atingirá seu fim). A conclusão
(335d) é a de que, primeiro, Simónides não parece pensar assim e, segundo,
fazer o mal não é ação de alguém justo, quer seja a amigos ou inimigos, mas de
um injusto, e, se alguém afirmar que essa é uma atitude de um justo, não esta
dizendo a verdade e será ignorante. Dessa forma, Sócrates tira a força da tese de
Polemarco. Ao finalizarem, o dialogante nada sabe sobre o que antes dissera,
como se espera da maieutica.
59
Assim como falo tinha suas falas respaldadas
nos poetas míticos, Polemarco respalda-se em Simônides, sem pensar muito
sobre o que disse o poeta e não pode aprofundar e sustentar o que inicialmente
afirmou.
7. Quem é Trasímaco?
O novo personagem entra no diálogo de forma impetuosa, como um animal
feroz (336b), e deixa os presentes perplexos. É Trasímaco, que apresenta duas
características marcantes: é impetuoso no modo de expor e está preocupado em
59
Platão atribui esse pensamento (336a) a Periandro, Perdicas, Xerxes, Ismenias de Tebas e,
conforme nos informa M. H. Pereira, nas suas notas, foram todos eles homens que estavam
ligados a governos tirânicos. Talvez seja possível fazer uma relação entre a tese de Polemarco e a
tirania no Livro VIII, posteriormente.
58
debater argumentos, ao modo da assembleia e tribunais. O Trasímaco
60
é da
Calcedônia, no Bósforo, colônia de Mégara, um importante porto comercial
próximo ao Mar Negro. Não se sabe ao certo sua data de nascimento, apenas
suposições que levam em conta as referências feitas a ele em textos de seu
tempo, como Simposiastas (Aristófanes), de 427 a.C., A República (Platão), 375
ou 374 a.C., e alguns fragmentos considerados de sua autoria (Trasímaco): (“Da
Constituição”, Discursos deliberativos, Tratado de Retórica
61
), de 413 - 399 a.C.
Para M. Untersteiner,
62
seu nascimento ocorreu em 459 a.C. e sobre sua morte,
Guthrie
63
insinua um possível suicídio, possibilidade não considerada por
Untersteiner. Segundo Nails,
64
Trasímaco teria ido a Atenas como diplomata no
interesse da Calcedônia. Guthrie,
65
ecentua que ele foi um bom retórico ao
escrever seus manuais, com grande atenção nos detalhes técnicos da arte dos
discursos, tanto é que Platão, no diálogo Fedro (267c-d),
66
também faz referência
à sua habilidade na articulação de discurso. Uma outra informação recolhida por
Nails é que ele teria sido amigo do logógrafo Lísias, filho de Céfalo; um dado
interessante, pois Platão inseriu no Livro I não personagens de uma só família,
mas amigos dela.
M. H. R. Pereira, em nota de rodapé à sua tradução para A República,
afirma que “Trasímaco era um dos maiores sofistas, e a ele cabe a honra,
60
Ver NAILS, Debra. The people of Plato: a prosopography of plato and other Socratics.
Cambridge: Hackett I’publishing Company, pp. 288 a 290.
61
UNTERSTEINER, Mário utiliza-se dessa metodologia comparativa das publicações para ter um
período aproximado do ciclo de vida do retor, que é o final do século V a. C.
62
Op. cit, p. 63.
63
GUTHIE, W.K.C. Os sofistas. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus,1995. p. 272.
64
Op. cit. p. 2.
65
Op. cit, p. 272.
66
(...) mas, quanto à arte de fazer discurso para excitar a piedade pelos velhos e pelos pobres,
ninguém conseguiu ainda ultrapassar o eloqüente Calcedônio! Só ele sabia como enfurecer um
auditório e, logo a seguir, sossegá-lo com as suas forças mágicas! (Fed. 267c-d).
59
juntamente com Górgias, de ser considerado o criador da prosa artística”.
67
Diz,
ainda, sobre a sua presença no diálogo, ser provável que estivesse como
convidado de Lísias, que à época era ainda um jovem estudante de retórica,
segundo as datações estabelecidas, mas esquece que Platão teatraliza e não
historiciza tal panorama. Trasímaco era conhecido como um retor e, por suas
inovações nas técnicas dos discursos - o uso de ritmo na prosa e o apelo às
emoções do auditório -, pergunta-se se era ou o um sofista. Parece
incontestável que Platão deseja caracterizá-lo como tal e mostrar que ele cobra
por seu ensinamentos (337d), quando afirma a Sócrates: “Mas além de aprender,
terás de pagar também em dinheiro” algo dessa corrente. Platão retrata-o muito
firme desde o início de sua fala, sempre pronta a derrotar Sócrates em seus
argumentos, até de forma hostil. Também no Fedro, ao contrapor a Dialética à
Retórica (266b,c), lembremos que Platão figura negativamente Trasímaco, pois
ensina mediante pagamento:
Quanto aos que seguem os teus ensinamentos e os de Lísias, diz-
me, que nome se lhes deve dar? Será ela por acaso a arte da
palavra de que Trasímaco e tantos outros se serviram, e pela qual
eles mesmos se tornaram hábeis no falar e transmitem, agora, esse
dom a quantos queiram trazer-lhes presentes, como se fossem reis?
(Fedr. 266 b, c)
Uma outra informação, segundo Romeyer-Dherbey,
68
é que ele
reivindicaria para si o título de sofista; lê-se no seu túmulo: “Saber é a minha
profissão”, e a própria tradição utilizou-se do seguinte silogismo: “que todo sofista
é retórico, e Trasímaco é retórico, logo, é um sofista”. Sendo um sofista, vejamos
a tese que apresenta.
67
Op. cit., p. 3.
68
DHERBEY- Romeyer, Gilbert. Os sofistas.Trad. João Amado.Lisboa: Edições 70,1999, p.69.
60
8. A tese de Trasímaco
Trasímaco praticamente se impõe de forma segura aos presentes, como o
retrata Platão em 336 b-c: concentrando-se, à maneira de um animal de rapina,
saltou para cima de nós com se fosse dilacerar-nos”; em seguida, dirige-se a
Sócrates e exorta os outros: “Que estais para aí a palrar tanto tempo, ó
Sócrates? Por que vos mostrais tão simplórios, cedendo alternadamente o lugar
um ao outro?”
Sua tese, sem meias palavras, está em 338c: “o que afirmo é que o justo
não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte”.
69
Essa tese tem duas
possibilidades de leitura: (1) o justo é a vantagem do mais forte, quando faz
referência ao lado guerreiro das poleis gregas, ou (2) quando se refere ao lado
combativo do logos, quer nos combates entre discursos, quer na própria potência
do pensar-argumentar. Nesses dois casos, o justo está, para Trasímaco, no poder
do mais forte (guerreiro, instituição que discursa ou o próprio logos).
Guthrie considera que o sofista tem tal colocação porque, na verdade, ele é
um homem revoltado, que quer um ideal de justiça e, amargamente, constata, na
prática de sua época, que ela é exercida para beneficiar o mais forte, mas que ele
não acredita nisso, pois diz o interprete: “... Justiça é a mesma em todos os
Estados, ou seja, o que beneficia o governo estabelecido. Uma vez que o governo
detém o poder, a justiça em toda parte é o que beneficia o mais forte”.
70
Longe de
expor uma justificativa para o uso da justiça em benefício próprio, crê Guthrie que
Trasímaco afigura-se um desiludido e acaba por qualificar como simplórios todos
69
φηµι γάρ έγώ είναι τό δίκαιον ούκ άλλο τι ή τό τού κρείττονος ξυµφέρον (338c).
70
GUTHIE, W.K.C, op. cit, p. 86.
61
os que esperam outras práticas que não a da “conveniência do mais forte”. De
fato, em 344 a-b, Trasímaco manifesta que:
[...] a maneira mais fácil de aprenderes [que a justiça é a vantagem
ou conveniência do mais forte], é se pensares na mais completa
injustiça, aquela que o máximo de felicidade ao homem injusto, e
a maior das desditas aos que foram vítimas de injustiças [...] Trata-
se da tirania, que arrebata os bens alheios às ocultas e pela
violência, quer sejam sagrados ou profanos, particulares ou públicos,
e isso não aos poucos, mas de uma só vez.
71
O retor sabe muito bem, e o diz na sequência (344b-c), que, se um cidadão
comum comete “qualquer dessas injustiças”, “qualquer desses malefícios”, é
punido e execrado. Porém, se é um governante, no caso o mais injusto entre os
governantes, o tirano será “qualificado de feliz e bem-aventuroso”. Como
“moralista desiludido,” Guthrie evidencia no fragmento de Trasímaco, que
(Hérmias, Trasímaco, Fragmento 8, DK): “Os deuses não vêem o que se passa
entre os homens. Se vissem, não descuidariam do maior dos bens dos humanos,
a saber, a justiça e, no entanto, vemos homens que não fazem nenhum uso
dela”.
72
Considerando todos esses elementos do personagem, o intérprete parece
ter razão ao afirmar que “a força motriz” de Trasímaco é o sentimento
apaixonado, amargo e revoltado que quer um ideal de justiça melhor e que não
isso ocorrer. Diz, ainda, o intérprete:
Sob a tensão de poderosa emoção, Trasímaco lança seu desafio
em forma deliberada e amargamente paradoxal: ‘Justiça? Não passa
do interesse do mais forte!’ Isso não precisa significar literalmente o
71
Πάντων δέ ραστα µαθήσει, έάν έπι τήν τελεωτάτην άδικίαν έλθης, η τόν µέν άδικήσαντα
εύδαιµονέστατον ποιει, τούς δέ άδικηθέντας καί άδικησαι ούκ άν έθέλοντας άθλιωτάτους.
˝Εστιν δέ τουτο τυραννις, η ού κατά σµικρόν τάλλότρια καί λάθρα καί βία άφαιρειται, καί ίερά
καί όσια καί ϊδια καί δηµόσια, άλλά ξυλλήβδην. (344a-b)
72
GUTHRIE, W.C.K. op. cit., p. 94.
62
que diz, mais do que o homem faz quando, espantado pelo sucesso
da maldade e da iniqüidade, exclama: ‘Não existe justiça!’ O que
quer dizer, com efeito, é que existe a coisa chamada justiça e que
sabe perfeitamente o que é, mas que nesta vida esperou por ela em
vão.
73
Trata-se do justo pensado como utilidade do mais forte que Sócrates não
tem que criticar como provar que assim não é: que a justiça é um Bem em si e
todos a desejam, o que não será fácil. Para deixar mais claro o porquê de
Trasímaco ter tal postura, analisaremos a idéia do mais forte governar para si
mesmo. No período arcaico, Dike e Kratos (Justiça como distribuição e Poder
como força) são pensadas juntas. Até que ponto essa tradição ainda vige entre os
gregos quando Platão escreve?
Na Teogonia, de Hesíodo, Dike é uma das filhas de Zeus com Themis,
74
uma das deusas primordiais, filha da divina Gaia (Terra) e do divino Ouranos
(Céu).
75
M. Detienne,
76
em sua obra Os mestres da Verdade na Grécia Arcaica,
explica que a “potência da deusa Themis compreende tanto o campo da mântica
como o campo da justiça e da vida política”. Ora, na época arcaica, os basileus
têm o poder de dizer themistes dizer e fazer decretos, juízos, leis. O vínculo
entre themistes e justiça dá-se, justamente, na geração divina de Dike, fruto da
união entre Themis e Zeus. Cabe a Zeus dar aos basileus o cetro e Themis a
legitimidade do poder de legislar.
73
GUTHRIE, W.K.C, op. cit, p. 89.
74
Thémis é a divindade que, segundo A. Bailly e Beveniste, preside a ordem de todas as coisas,
as que estão no Céu, por parte do pai, e as que estão na Terra, por parte da mãe. Ela é a justa
medida das coisas que o enquanto são, solidária de Díke pois a engendra. Thémis e Zeus
são, portanto, miticamente falando, o fundamento da justiça na ordem mais íntima dos seres
existentes.
75
Ver Hesíodo em sua Teogonia. V. 116 ss.
76
DETIENNE, M. Los maestros de verdad em la Grécia arcaica. Trad. Juan José Herrera. 3ª ed.
Madrid:Taurus, 1981.
63
Nessa perspectiva, as divindades arcaicas não sustentam a legitimidade do
mais forte em benefício próprio, pois a sociedade de então é das fratrias, tal não
caberia. Os basileus m ascendência divina e pensam nos seus governados.
Ora, não sendo esse sentido mais arcaico de Trasímaco, trata-se de uma noção
nova das poleis que formaram leis estabelecidas (nomoi) para gerenciar a forma
de vida de seus cidadãos e suas relações com outras cidades, principalmente no
período da tirania (final do séc. VI a. C.), período que deixou profundas marcas
que estão, também, na fala de Trasímaco. Segundo J. J. Chevallier,
77
a
democracia, por sua própria natureza, alimenta-se do debate, do confronto
oratório e público das ideias, dado o fato de usar como fundamento para suas leis
exatamente a discussão entre valores novos e antigos. O que teria, então, essa
democracia em proximidade com a tese de Trasímaco? Quer nos parecer que,
nas assembleias e tribunais, o combate discursivo, o enfrentamento entre
posições, o campo jurídico (acusado e acusador), ou seja, em todas as situações
de debate constantemente vividas na polis, está presente a ideia de que vence
aquele que for capaz de melhor persuadir, que tem mais “força”, nesse caso, o
poder entre um logos argumentativo. A tese de Trasímaco é, portanto, dúbia (e
assim quer Platão): força do logos e força física. Se um governante tiver a força
física e do logos seu poder será invencível. É este o ponto que parece interessar
Platão ao colocar Trasímaco e sua tese no início de A República.
Sabe bem Platão do perigo do mau uso desse instrumento de persuasão, o
logos, que tanto leva uma cidade inteira para a boa ordem como para a
destruição. O logos tem plasticidade para adaptar-se às circunstâncias diversas e
apresenta muitos rostos. No contexto democrático, o homem deve ser dotado de
77
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político: da cidade-Estado ao apogeu do
Estado-Nação monárquico. Trad. Robero Cortes de Lacerda, tomo I. Rio de Janeiro: Guanabara,
1982, p. 24.
64
uma nova competência ou talento para exercer a sua cidadania: saber usar da
palavra nos debates. É ela que vai auxiliar os cidadãos a praticarem ações que
construirão sua vida. No entanto, o problema maior que Platão enfrenta é saber
da relação entre ouvir e seguir o que se aprende e ouvir e realmente educar-se.
Como se pode notar, a democracia acolhe perfeitamente a tese de
Trasímaco. Se essa realidade política não agrada a Platão, ele procura dar outra
referência para a ação ético-política que não seja fundada no combate
argumentativo quando da edificação da cidade justa. Essa nova forma de governo
não podem aceitar os dissoi logoi sofísticos, nem o cotidiano jurídico das poleis,
mas haverá uma persuasão sui generis que, veremos, partirá de um mito (uma
crença), o Mito das Raças, e terá um governo real (filósofo-rei). Terá que ser uma
cidade eivada de harmonia e philia, que esvaziará o poder em nome do dever,
questão que somente adiantamos aqui.
Mas, neste primeiro livro de A República, crates debaterá com
Trasímaco na forma sofística e não maieutica, pois este não a aceitará. Vejamos
então a lógica do discurso dos dois debatedores.
9. A lógica do discurso de Trasímaco: os dissoi logoi
Segundo Reale,
78
o modelo de discussão apresentado por Sócrates e
Trasímaco é particular aos sofistas, conhecidos como erísticos, e fundamenta-se
no fato de que toda resposta pode ser refutável. A técnica erística é conhecida
como a arte de vencer uma discussão a partir de razões contrárias: é a arte de
78
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga.Trad. Marcelo Perine. 2 ed. São Paulo:
Loyola, vol. I, 1993, p. 234.
65
contradizer. O termo eristica vem de eris, que significa controvérsia. Segundo
esse comentador:
O relativismo e o método antilógico de Protágoras, por obra dos
sofistas da geração mais jovem, produziu a erística. Se não existe
uma verdade absoluta e se toda proposição é possível contrapor a
sua contrária (e se é possível tornar mais forte o discurso mais
fraco), então é possível refutar qualquer asserção...; dilemas que,
embora resolvidos, seja em sentido afirmativo, seja em sentido
negativo, levavam a respostas sempre possíveis de serem
contraditas; hábeis jogos de conceitos construídos com termos que,
explorando a sua polivalência semântica, enredavam o ouvinte e
punham-no em posição de xeque-mate....
79
Isso leva Platão no Livro VII, ao tratar da educação (538 a e seguintes), a
restringir aos jovens o ensino e uso da dialética dada sua falta de
amadurecimento quanto aos conteúdos a serem desenvolvidos. O possível
relativismo dos conteúdos pela erística torna os discursos uma simples técnica, a
que Platão vai se opor. Mas lembremos que a oposição de Platão é feita ao grupo
de sofistas ditos erísticos. Ele vai criticá-los pelo uso abusivo dos jogos de
linguagem como forma de oposição nos debates. Esses sofistas, considerados
menores, ficaram conhecidos historicamente como sofistas políticos ou políticos
erísticos, utilizadores de uma arte de contenda com palavras para superar os
adversários. Eles são encontrados em dois outros grupos de sofistas: uns
considerados naturalistas, que procuraram entender o problema entre a physis e
o nomos e um outro grupo conhecido como sofistas políticos.
80
Trasímaco se
utiliza da erística ao modificar o sentido da justiça e da injustiça. Vejamos como
isso acontece no diálogo a partir de 348 e – 349a:
79
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Trad. Marcelo Perine, São Paulo, Loyola,
vol. I, 1993, p.234.
80
Ver Reale. Op. Cit.
66
Sócrates Quer parecer-me, respondi, que não deixei de apanhar o
sentido do que disseste; porém fico admirado de classificares a
injustiça como virtude e sabedoria, e a justiça como oposto disso.
Trasímaco – Exatamente; é desse modo que as classifico.
Sócrates Nesses termos, companheiro, lhe repliquei, a proposição
é muito dura; não é fácil levantar contra ela objeção alguma. Se
tivesses afirmado que a injustiça é vantajosa, mas admitisses, como
o fazem muitos, que é vício ou algo vergonhoso, saberíamos como
rebater-te, de acordo com princípios de aceitação geral. Porém,
estou vendo que vais denominá-la bela e forte e atribuir-lhe os
qualificativos que de regra aplicamos à justiça,uma vez que não
hesitaste em emparelhá-la com a virtude e a sabedoria.
Trasímaco – Adivinhaste, respondeu, com bastante aproximação.
81
Usando abusivamente da linguagem ao colocar o significado de uma
palavra que não é a sua referência para convencer que esse o seu significado
original, tem-se que a prática da injustiça, aparentemente, é vantajosa e a justiça,
um ato de fraqueza. Da mesma forma que tratam os argumentos enquanto fortes
e fracos, não importando o mecanismo utilizado, os sofistas-políticos entendiam
que da mesma forma é a natureza ao produzir homens fracos e fortes diferentes
por natureza, o que não deixa de ser verdade, da qual Platão não discorda. Assim
seria “natural” que os mais fortes governassem os mais fracos. Essa posição dos
sofistas-políticos mistura-se com a força dos argumentos.
82
81
Τουτο µέντοι, έφην, ούκ άγνοω ό τι βούλει λέγειν, άλλά τόδε έθαύµασα, εί έν άρετης καί
σοφίας τίθης µέρει τήν άδικίαν, την δέ δικαιοσύνην έν τοις έναντίοις.
Άλλά πάνυ ούτω τίθηµι.
Τουτο, ην δ’ έγώ, ήδη στερεώτερον, ώ έταιρε, καί ούκέτι ράδιον έχειν ό τι τις είπη. Εί γάρ
λυσιτελειν µέν την άδικίαν έτίθεσο, κακίαν µέντοι η αίσχρόν αύτό ώµολόγεις ειναι ώσπερ
άλλοι τινές, είχοµεν άν τι λγειν κατά τά νοµιζόµενα λέγονες˙ νυν δέ δηλος ει ότι φήσεις
αύτό καί καλον καί ισχυρον ειναι και ταλλα αύτω πάντα προσθήσεις // α ήµεις τω δκαίω
προσετίθεµεν, έπειδή γε καί έν άρετη αυτο καί σοφία έτόλµησας θειναι.
Άληθέστατα, έφη, µαντεύει. (348 e – 349 a)
82
Esse problema interessa mais adiante, quando Platão trata, nos Livros III ao VII, dos
fundamentos da educação para a cidade justa ou para qualquer cidade.
67
Esse modelo de Trasímaco é típico da polis democrática, como foi
apontado antes, uma vez que, dependente de votação e de processos jurídicos
depende de convencimento, persuasão, se não pela força física, pela palavra.
Munido de uma boa oratória, parece difícil combater a ideia de Sócrates de que a
justiça é um Bem em si. Sócrates tenta impor seu caminho (342 c- 350 d- 354 b) e
seu companheiro parece concordar para “agradá-lo” (350 e), sem estar
convencido.
Ao aceitarem, num primeiro momento, que a lei das cidades é que
expressa o justo e o injusto, será preciso saber por que a injustiça é melhor que a
justiça, sendo que a arete na alma é o que se busca (353 354a). Para tanto,
Trasímaco inicia, em 338d, de forma clara: cada governo, seja ele democracia,
tirania ou outras formas, proclama por meio de leis o que é o justo e o injusto e a
todos impõe o que deve ser seguido. Esse é um princípio básico e vantajoso para
qualquer governo e, se o justo é vantajoso, na perspectiva de Trasímaco, assim é
vantajoso para os fortes que são governantes e ditam as leis. Sócrates tem
dúvidas se é realmente assim, e leva Tramaco a um primeiro paradoxo, ao
demonstrar que os governantes podem errar ao formularem as leis, o que os
levaria a agir contra si mesmos.
Essa situação possível cria um mal-estar, em 340 d, e Trasímaco considera
que Sócrates usa de má-fé no argumento, mas é evidente que, ao errarem, e
achando o justo em si mesmo o que fazem é injustos. crates solicita, em 341a,
que Trasímaco explique melhor sua tese diante de tal problema, e o sofista, em
343b-c, inverte o dialogo e passa a perguntar a Sócrates sobre por que ser injusto
pode ser mais vantajoso que ser justo, ao comparar o dirigente da cidade a um
pastor que cuida de ovelhas, não em benefício delas, mas do seu próprio, em
68
busca de vantagens, por exemplo, se são suas, preservá-las; se o de outrem,
preservar seu emprego
83
. Nesse caso, sempre um que manda ( o patrão ou o
pastor em relação às ovelhas) e outros que obedecem; lógica também entre
governo e governados.
O que ele expõe é experiência da época com relação ao justo e injusto: o
injusto leva sempre mais vantagem que o justo, porque pode obrigá-lo a fazer o
que quiser para seu benefício próprio. uma relação paralela de força entre o
forte e o fraco, o injusto e o justo, mas, para Sócrates, não, pois para ele todo
governo (345d-e), como governo, não tem a finalidade de velar pelo bem de mais
ninguém que não seja dos súditos. Por isso, na percepção do condutor do
diálogo, o poder não é em benefício dos mais fortes, e sim dos mais fracos. O que
se pode observar são ângulos diferentes do uso do poder: para o sofista é sempre
de quem o detém, principalmente se a referencia for o político, mas, pelo que se
lê na obra, Platão se opõe a essa tradição.
À época, Trasímaco pôde verificar que aos injustos e poderosos parece
que o ganho de seus bens materiais eram abundantes, e, em 344c, ele chama a
atenção para o outro lado, o dos justos, mostrando que talvez Guthrie tenha razão
ao apontá-lo como um homem revoltado e desiludido: “os que censuram a
injustiça não o fazem com o propósito de não praticá-la, mas por medo de virem a
ser vítimas dela”. Se os que censuram a injustiça são os fracos e prisioneiros do
medo, essa fraqueza se reflete no modo como se expressam diante de uma
possível reação dos injustos e mais fortes para com eles, o que vale não do
ângulo da força física, mas do ângulo dos argumentos em assembleia. Por isso, a
única possibilidade que têm os “fracos e justos” ( ou que querem ser justos e não
83
Não será a primeira vez que Platão se utiliza da metáfora do pastor. Em O Político, ao explicar o
que é político e seu saber, comenta em 267d que: “Entre as muitas formas de arte de pastorear
encontra-se uma, a política”. (Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa – Ed. Abril cultural - 1972)
69
conseguem) é se reunirem e fazerem um pacto, assim pensa Trasímaco, para
não serem vitimados pelos fortes. Comenta o sofista em 344c que “aqueles que
criticam a injustiça não a criticam por recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-
la”. É desse medo que nascem as leis, crê assim o sofista.
A posição de Trasímaco, dificulta ainda mais a tese de Sócrates, a de que
a justiça é um bem em si e portanto, desejável. De 345d a 347c, Sócrates
apresenta um segundo paradoxo ao seu companheiro de diálogo: se ser injusto é
mais vantajoso que ser justo, é preciso analisar o que é a técnica. M. Spinelli,
84
ao
tratar do conhecimento na Grécia, considera:
No interior da polis, a techne designava, de modo próprio, as artes
produtivas (trabalho dos artesãos, dos construtores, dos pedreiros,
dos carpinteiros, dos tecelões etc.), de modo mais sofisticado, a
“artimanha” dos políticos, aos quais vieram aos poucos se juntar os
sofistas e os filósofos. Os artesãos eram os serviçais da techne, os
outros os seus cultores, sendo que cabia ao filósofo a promoção e o
cultivo da techne e da episteme.
Ora, Trasímaco, no seu debate, utiliza-se do significado popular do
contexto da polis, inclusive da “artimanha”.
85
Para Platão, cada técnica em si visa
exercer o melhor possível aquilo que ela fabrica, quer referente à arte do
Pastoreio ou da Medicina e do Governo ou da Culinária. Cada arte pensa no
seu objeto de realização, mas a ela foi atrelada a remuneração ou salário,
segundo Sócrates. Assim sendo, não se deve perder de vista que a técnica,
enquanto processo, não visa lucro, apenas atinge o seu fim como, por exemplo, a
84
SPINELLI, Miguel. Questões fundamentais da filosofia grega. São Paulo: Edições Loyola, 2006,
p. 189.
85
É importante apontarmos a distinção que os dois m do conceito de téchne, elaborado por A.
Macintyre (Justiça de Quem? Qual Racionalidade Ed. Loyola, p.85), que afirma ser para
Trasímaco uma habilidade ou um conjunto de habilidades igualmente disponível para servir aos
interesses de qualquer pessoa inteligente e experiente o suficiente para empregá-la. Para
Sócrates, a téchne é uma habilidade ou conjunto de habilidades dirigidas, em seu exercício, ao
serviço de um bem do qual o agente tem de ter conhecimento e compreensão genuínos.
70
Medicina, que visa à saúde. Portanto, a vantagem que o injusto busca na técnica
como lucro não é inerente à arte, e, no caso do governar, na sua essência e como
técnica, não visa bens, mas realizar bem seus fins. Mesmo assim, Trasímaco não
se convence e continua com a tese de que a injustiça é mais útil do que a justiça.
Dessa forma, eles encerram o primeiro momento do debate.
Em 348c-d, passam para o segundo momento do diálogo, para verificar
qual das duas (a justiça e a injustiça) é vício ou virtude. Ora, nesse passo,
Trasímaco inverte todos os sinais anteriores ao dizer que a injustiça passa a ser
virtude e discrição, e a justiça um vício e uma generosa ingenuidade, de modo
que os indivíduos injustos passam a ser prudentes e sábios e os indivíduos justos,
viciosos e ingênuos. Trasímaco se dá a permissão de inverter os sinais, que
está em um debate e não pretende perder na argumentação. O próprio uso da
erística permite que ele faça tal intervenção. A partir desse ponto, Trasímaco e
Sócrates adentram nos dissoi logoi a cnica de debate sofistico que usam de
argumentos duplos, em que vence o argumento mais forte e os dois se afastam
do caminho anterior.
Aqui, Platão talvez queira apresentar uma forma de discussão que mostre
como o tema perseguido se perde e os dialogadores não chegam a nada,
esquecidos de seu propósito em meio às tramas refutatórias. Com os sinais da
justiça e da injustiça invertidos, em 349c, Sócrates apresenta um terceiro
paradoxo considerando que os indivíduos justos não desejam, nem consideram
legítimo alcançar alguma vantagem sobre outros indivíduos justos, relação que
não ocorre entre injustos. Formula, então, a seguinte proposição:
a) o homem justo não quer obter vantagem sobre seu semelhante;
71
b) o homem injusto quer obtê-la, tanto sobre os injustos quanto sobre os
justos.
A discussão gira em torno de que o homem injusto está em luta para
superar a todos, justos e injustos e Sócrates passa a propor um novo modelo para
pensar o problema: quem é mais sábio? o que sabe sobre sica ou o que não
sabe? O que sabe é considerado sábio e o que não sabe, ignorante, de modo que
(349e): se um bom músico encordoar sua lira, não pretenderá “...ultrapassar outro
músico ou alcançar sobre ele alguma vantagem no que respeita à tensão ou
relaxamento das cordas”. Diante desse arrazoado, chega-se ao seguinte: o
homem bom e sábio não quer se exceder em nada, e o mau e ignorante se
excederá, e a mesma lógica serve para pensar o injusto porque ele é excessivo
na luta para superar a todos. Ao aceitar a assertiva de Sócrates, Trasímaco se
perde, uma vez que aceita para a justiça características que não cabem na
injustiça. Então, a injustiça ser virtude e a justiça, vício, não está certo, pois
aquela é excesso sobre tudo, característica que deve estar no vício. Ademais,
sabe-se que o injusto é odioso aos deuses, e, até 353d, Trasímaco parece
cansado e se deixa levar sem resistência, quando é introduzido o tema da alma.
Afirma Sócrates, um pouco antes, que cada coisa tem uma arete por natureza.
Por exemplo, os olhos têm a função da visão, os ouvidos a função da audição e,
seguindo essa lógica, cada coisa tem sua excelência, o que lhe permite
aproximar-se do tema da alma (353d):
A alma tem uma função, que não pode ser desempenhada por toda
e qualquer outra coisa que exista, que é a seguinte: superintender,
governar, deliberar e todos os demais atos da mesma espécie. Será
justo atribuir essas funções a qualquer outra coisa que não seja a
alma, ou deveremos dizer que são específicas dela?
72
A alma, e a nenhuma outra coisa.
86
Como núcleo unificador das ações, a alma é exposta nesta passagem com
sua arete. Essa exposição serve para Sócrates demonstrar que cada coisa exerce
uma função específica, Assim, em 353e, ele coloca a justiça como o suporte para
o bom exercício de cada coisa, sendo seu contrário, ou vício, a injustiça.
Seguindo o mesmo sentido, o homem justo será feliz, e o injusto, desgraçado,
não havendo vantagem em ser desgraçado, mas sim em ser feliz. A injustiça não
pode ser mais vantajosa do que a justiça, porque a justiça possibilita unidade,
equilíbrio, harmonia e a injustiça o contrário. A introdução da alma nesse
momento em que Trasímaco parece arrefecer e que Sócrates está saindo da
ideia de justiça vinculada à lei externa, introduzindo a noção da própria physis e
da arete da alma de cada um, não parece aleatória. Falta explicar, porém, o que é
uma alma com arete e como ela se comporta numa cidade e vice-versa.
No entanto, o tema principal que os dois dialogadores iniciaram, perdeu-se,
principalmente a demonstração de que a justiça é um bem em si mesma e
Trasímaco abandona o local.
10. Glauco e Adimanto
Por intermédio de Glauco e Adimanto, o tema deixado no Livro I, com a
saída de Trasímaco, volta a ser discutido. Irmãos de Platão, filhos de Ariston e
Perictione, possuem um meio irmão por parte de mãe, Antiphon II, segundo
86
Ψυχης έστιν τι έργον ο άλλω των όντων ούδ΄ άν ένί πράξαις, οιον τό τοιόνδε˙ τό
έπιµελεισθαι καί άρχειν καί βουλεύεσθαι καί τά τοιαυτα πάντα, έσθ’ ότω άλλω ή ψυχη δικαίως
άν αύτά άποδοιµεν καί φαιµεν ίδια έκείνης ειναι;....Τί δ’ αύ τό ζην; ψυχης φήσοµεν έργον
ειναι; (353d)
73
recolhimentos de Nails.
87
Esses dois personagens não se deram por satisfeitos
com as respostas dos antecessores e têm o desejo de ouvir de Sócrates elogios
sobre a justiça enquanto um bem em si. Glauco, então, inicia a conversa dizendo
que o Bem tem três modos de aparecer nas coisas que almejamos: a) as que
apreciamos em si mesmos, tal como a alegria; b) as que nos agradamos por elas
mesmas e por suas consequências, tal como a vista, a saúde; c) e aquelas que
trazem consigo alguma utilidade e as queremos pelas vantagens que
proporcionam. Entre os três modos, a justiça encontra-se no segundo, considera
Glauco. O que pretende Glauco com essa colocação? M. Crombie
88
revela que
essa tese é importante para se perceber como as pessoas comuns lidam com as
coisas que consideram boas em função das consequências que trazem, mas não
perguntamos sobre os princípios pelos quais são boas. Nesse caso, Trasímaco
estaria correto, pois valeria apena ser injusto se se evitassem as consequências
desagradáveis da injustiça.
Glauco, na verdade, chama a atenção para o fato de que, geralmente, nos
movemos pelas consequências, e, para inverter essa posição, é que Sócrates
terá que mostrar que os resultados vêm dos princípios do que é a justiça e
injustiça. Platão aponta para uma questão fundamental: o movimento de cada um
em busca da realização de um desejo e a consequência desse movimento para o
contexto social e político de uma cidade, uma vez que entre o objeto do desejo e
a realização dele existe um espaço que precisa ser pensado, que uma
organização social bem formada deve educar seus cidadãos para essa ação, tal
qual ele vai propor na sua cidade justa. Uma cidade ou um homem que não pensa
87
Op. cit., p. 2-3.
88
Op. cit.., p. 97.
74
sobre sua ação para a realização de desejos pode ser o caminho para um homem
e uma forma de governo tirânico.
Se a justiça é um bem que se encontra nos dizeres do segundo item acima,
Glauco passa à segunda parte da sua fala quando vai retomar a tese de
Trasímaco, de que a injustiça é mais vantajosa que a justiça. Parece-nos que
essa tese é sempre vista de um ângulo histórico, pois chama a atenção de que
esses são os discursos ouvidos na cidade e dificilmente alguém convence quanto
à defesa da justiça. Glauco divide o seu depoimento em três partes, expondo o
que se ouve, segundo ele, pela cidade: a) que a opinião geral diz sobre o que seja
a justiça e onde ela tem sua origem; b) como todas as pessoas que praticam a
justiça o fazem a contragosto e por obrigação, como se ela não dissesse respeito
a algum bem, mas a um mal necessário; c) que a vida do homem injusto é melhor
que a do justo.
O primeiro ponto abordado é sobre a origem da justiça e ela tem sua origem
na injustiça (358e). Por natureza, praticar a injustiça é um bem e ser vítima dela é
um mal, porém o mal maior é ser vítima da injustiça e não do ato de praticá-la.
Como não são todos os homens capazes de tal ação, alguns resolveram criar as
leis e os contratos, que passaram a determinar o que se chama legalidade e
justiça. Dessa forma, temos a origem e a essência da justiça como uma espécie
de compromisso intermediário, dos considerados mais fracos com os mais fortes.
Assim, se tem, em um extremo, o maior bem, que é o ato de injustiça como
impunidade para as malfeitorias, no outro extremo, o maior mal, que é ser
impotente para vingar a vítima da injustiça. Então, a origem da justiça está no
medo dos mais fracos de serem vítimas da injustiça.
75
Isso exposto, passa ao segundo ponto: que os que praticam a justiça
praticam-na a contragosto. Nesse sentido, ele apresenta dois exemplos para
mostrar que os homens buscam realizar as coisas que almejam
independentemente de serem justos ou injustos. Inicia com o mito de Giges
89
(359d - 360d) para demonstrar que, se temos poder, vamos em busca da
realização dos nossos desejos, como no exemplo de um anel de Giges que
possibilita a invisibilidade para a prática do que se quiser em benefício próprio.
Claro que o caminho para essa realização pressupõe a perda do limite do desejo
e os meios para alcançá-lo. Glauco passa a verificar, então (360e - 361b), se a
vida de um injusto é melhor que a do justo e propõe isolar cada um para verificar
sua vida específica. ao injusto, no seu grau mais elevado, o que é necessário
para que se realize, isto é, para ser o mais consumado injusto, deve parecer ser
justo sem -lo, ter dotes de oratória para justificar-se e usar da violência sempre
que for necessário. Finalmente usar dos recursos materiais para influenciar os
amigos, de modo que alguém muito bem preparado para lidar com as mais
diversificadas situações da vida sem sofrer penalidades verá na injustiça um bem
em si mesmo.
Ao lado do homem injusto, o justo colhe também vantagens de ser
verdadeira mente justo, mas não resistiria à reputação de ser injusto. Por sua vez,
o injusto tira vantagem com a aparência do justo, por isso o injusto logra de
benefícios da aparência do justo, recolhe mais vantagens e, por isso, segundo
Glauco, é mais feliz, já que se beneficia tanto por ser injusto e por aparentar ser
justo. Dessa forma ele encerra a sua exposição extremamente bem
89
A narrativa conta sobre um pastor que prestava serviço ao rei da Lídia e por certa ocasião
encontra um anel que o possibilita ficar invisível, com tal poder, ele entra no reino, toma a rainha
para si e mata o rei, assumindo assim o poder. Com essa história Glauco quer mostrar que as
pessoas, na sua maioria, aproveitariam de um anel que possibilitasse a invisibilidade para agirem
justamente na ausência de sanções sociais.
76
proporcionada, deixando crates espantado com tamanha clareza de discurso.
Ao encerrá-la, ainda será ouvido Adimanto (362d), que apresenta uma tese
contrária à do seu irmão: exalta a justiça e censura a injustiça.
Para realizar seu objetivo, divide em três momentos a sua explanação:
primeiro (363a), fala sobre os conselhos que os pais dão aos filhos em relação ao
ato de ser justo (tese retomada no Livro VIII); segundo (363c-d), sobre os justos e
bem-aventurados no Hades (tese iniciada por Céfalo no Livro I); terceiro (364a),
sobre a justiça e a injustiça ao gosto dos poetas e do povo (tese que Platão
criticará no Livro III) e finaliza solicitando a Sócrates que argumente sobre ser a
justiça superior à injustiça e como cada uma delas atua na alma dos homens.
No seu ponto de vista sobre a justiça, Adimanto deixa explícito que, se
procuramos ser justos, é porque o ato da justiça aos que a praticam certo tipo
de bem. Por isso, os pais aconselham seus filhos a serem justos, pois sabem da
importância de um bom nome entre os cidadãos, por possibilitar bons
casamentos, além das dádivas divinas que, segundo Homero e Hesíodo,
ofertadas aos piedosos. Quando cada um se mantém na vida de forma justa, no
pós-mortem, é acolhido por Museu e seu filho, condutores dos mortos, levados
para junto dos bem-aventurados com muitas regalias; os ímpios e injustos, eles
os enterram na lama do Hades e os condenam a carregar água num crivo. As
teses são tradicionais, e, além disso, existe o que corre na cidade sobre a justiça
e a injustiça, segundo alguns poetas e pessoas do povo, que contam o seguinte:
todos entoam hinos sobre a temperança e a justiça para exaltarem que são belas,
mas, ao mesmo tempo, que são penosas e difíceis, enquanto a injustiça é doce,
de fácil acesso, e apenas a lei e a opinião consideram-na censurável.
77
Se assim for, a injustiça é mais vantajosa, conclui Adimanto, pois todos
acatam em público aquele que é mau, porém rico e poderoso, e os justos, que se
admite serem melhores, são obscuros e pobres e mesmo as divindades
apresentam a estes uma vida cheia de dissabores. Aos primeiros concedem
venturas, desde que façam libações, oferendas e orações fervorosas para admitir
seus erros.
Adimanto então deseja saber como é possível que a justiça seja um Bem em
si mesma e como se processará na alma de cada um. Espera que Sócrates o
ensine com bons argumentos, pois, até aqui, tudo leva a crer que a injustiça é o
que se deve procurar. Para satisfazer o desejo dos dois irmãos, Sócrates, tendo
consciência de que o que foi exposto é o que se recolhe empiricamente, precisa
mudar o modelo de discurso e propõe pensar uma cidade em lógos para ver os
sinais da justiça primeiro nela e, depois, na alma de cada um, o que é aceito.
78
Cap. II – A relação do Livro I com os três estamentos, as três
potências da alma e o Mito das Raças
79
1. A cidade justa “primária
Até o final do diálogo sobre o que é a justiça e se é um bem em si, Sócrates
tentou mostrar que o homem justo não aprecia a injustiça. Ele comenta, em 352c,
que os justos mostram ser sábios ao atuarem, ao passo que os injustos não
conseguem atuar em conjunto, de modo que:
... se dissemos (serem) injustos aqueles que alguma vez levaram a
cabo solidamente uma empresa em comum, estamos a fazer uma
afirmação que de modo algum é verdadeira; pois não se poupariam
uns aos outros, se fossem totalmente injustos; pelo contrário, as
suas vítimas, e graças à qual faziam o que faziam; (352 c)
90
Nos injustos, a prática da injustiça uns com os outros é a norma. Sendo a
justiça uma ordem nas coisas e a injustiça uma desordem (352a), Sócrates
demonstra que a justiça possui nela mesma uma força que possibilita a unidade,
e a injustiça, o contrário. Para exemplificar, introduz a alma no diálogo dizendo ser
algo que possui em si uma virtude própria e que, atuando virtuosamente, é a
própria justiça que se dá. Se a dikaiosyne e a adikia dependem de atos da alma
na sua excelência ou não, é necessário que se saiba o que elas são para
reconhecer o modo de agir do homem. Essa procura inicia-se em 369b e segue
até 434c. Sócrates dirá que esse percurso exige “perspicácia de visão” e que, não
sendo esse o seu caso (usando de ironia, evidentemente), conduzirá o diálogo
como se fosse alguém de vista fraca que criasse imagens da justiça com letras
maiúsculas ao procurá-la na cidade e, com minúsculas, ao procurá-la em cada
um. Para os de “visão fraca” seria um grande achado se, primeiramente, ao terem
90
Ότι µέν γάρ καί σοφώτεροι καί άµείνους καί δυνατώτερροι πράττειν οί δίκαιοιι φαίνονται, οί
δέ άδικοι ούδέν πράττειν µετ άλλήλων οιοί τε, άλλά δή καί ούς | φαµεν έρρωµένως πώποτέ τι
µετ’ άλλήλων κοινη πραξαι άδίκους όντας, τουτο ού παντάπασιν άληθές λέγοµεν˙ ού γάρ άν
άπείχοντο άλλήλων κοµιδη όντες άδικοι, άλλά δηλον ότι ένην τις αύτοις δικαιοσύνη, η αύτούς
έποίει µήτοι και άλλήλους γε καί έφ’ ούς ησαν, αµα άδικειν, (352c)
80
lido as letras maiúsculas, pudessem, depois, ler as minúsculas e verificarem que
se trata da mesma justiça. Sobre essa imagem, Seth Bernardete
91
considera que
Platão tem uma “teoria da inversão”, ou seja, usa a imagem da ordem existente
nos estamentos para lançá-la na alma de cada um enquanto equilíbrio das suas
potências. A justiça que se estabelece na pólis enquanto ordem e medida,
exposta na convivência pacífica entre os estamentos, nada mais que o modo
como cada um tem nele mesmo seu próprio equilíbrio e que, necessariamente,
será externalizado onde vive. Essa leitura demonstra exatamente que havia uma
só justiça, da alma e da cidade, pois há um só caminho.
Glauco, Adimanto e Sócrates concordam com esse começo (368e) e, em
369a,
92
crates pede que contemplem en logon seu processo de nascimento da
dikaiosyne nela, bem como da adikia. Convite feito, ele passa a apresentar, em
369b, a primeira e indiscutível afirmação: de que nenhum homem basta a si
mesmo e todos têm necessidades de muitas coisas que não podem suprir por si.
Essas necessidades levam à formação de um grupo, num mesmo local, que se
auxiliam mutuamente para a sobrevivência e origem a uma polisse agrupando
em um mesmo local, dando assim, a origem da ada um.a que se refere a uma
nas. ____________________________________. Notemos essa primeira
concepção, bastante simples, que considera que polis é qualquer agrupamento
humano em determinado lugar, que se proponha à sobrevivência, trocando
trabalhos entre si. Na origem, diz Sócrates, existem três necessidades básicas: os
alimentos imprescindíveis à manutenção da vida, a moradia como local de
proteção e as vestimentas e coisas semelhantes. Para satisfazê-las, a cidade
91
BERNARDETE, S. SocratesSecond Sailing: On Plato’s Republic.1 ed. Chicago: The University
Chicago Press, 1989, p. 46.
92
Αρ’ οΰν, ήν δ’ έγώ, εί γιγνοµένην πόλιν θεασαίµεθα λόγω, καί τήν δικαιοσύνην αύτης ϊδοιµεν
άν γιγνοµένην καί τήν άδικίαν; (369a)
81
dependerá de um número mínimo de pessoas que coloquem à disposição das
demais o resultado do seu trabalho. Após essa afirmação, ele anuncia o segundo
principio (370b): “que cada um de nós não nasceu igual a outro, mas com
naturezas diferentes (diapheron ten physis)
93
, cada um para a execução de sua
tarefa”. Havendo disposições diferentes, Sócrates afirma que que haver boa
medida entre todos, pois (370c): “... o resultado é mais rico, mais belo e mais
fácil, quando cada pessoa fizer uma coisa, de acordo com a sua natureza e na
ocasião própria, deixando em paz as outras.” Esses são os dois princípios que
nortearão o funcionamento também de uma cidade mais complexa a ser
apresentada nos livros seguintes.
Passemos, agora, à construção da cidade, buscando o ângulo da sua
divisão tripartida. Marquemos, porém, a importante questão levantada de
passagem por Sócrates quanto à diferença de natureza entre os homens e a
necessidade de especialização no trabalho, fato que, como veremos, liga-se à
noção de arete na cidade justa como o filósofo a pensou. Num primeiro
momento, ao fundar essa cidade muito simples, na qual todas as funções voltam-
se para a produção que é direcionada exclusivamente à conservação da vida,
o problema da produção excedente e não foi pensado o excedente. Durante toda
a vida que tiverem seus habitantes (372b), diz Sócrates, passarão trabalhando e
cantando hinos em louvor aos deuses, em convívio amigável; e a quantidade de
filhos também será regulada segundo os recursos que se tiver e por medo da
pobreza e da guerra. Desse modo, em 372d, é dito que seus habitantes terão
uma existência em paz, com saúde e, ao chegarem à velhice, transmitirão o
mesmo modo de vida aos seus descendentes. Então, temos a primeira cidade
93
διαφέρων τήν φύσιν (370b)
82
fundada “naturalmente”, se podemos dizer assim, segundo as necessidades
primárias.
Como o objetivo é encontrar a justiça e a injustiça, ele instiga Adimanto e
pergunta (371e) em que lugar ele “... encontraria a dikaiosyne e a adikia nessa
primeira tentativa? E em quais das coisas examinadas elas poderiam surgir?”
Adimanto responde (372a) que ainda não as percebe muito bem, a menos que
tenham nascido das relações recíprocas entre os cidadãos. Ora, devemos
entender que justiça, enquanto ordem e proporção fundada nos dois princípios
apresentados, é a potência que atua na vida interna e externa dos seus
habitantes. Quanto à injustiça, se por acaso viesse a surgir, presume-se que seja
a desproporção no trabalho e na sua divisão. Se a justiça é fazer o que é devido a
cada um segundo a sua natureza, é dar e receber o que lhe cabe; então, a
injustiça seria a quebra deste princípio.
Este primeiro esboço de cidade é pouco interpretado pelos comentadores,
pois que o consideram muito pouco estruturado. Levando em conta o pequeno
número de cidadãos que a cidade teria, Monique Dixsaut
94
não a considera uma
cidade, apenas uma associação de pessoas para satisfazerem suas
necessidades básicas, apesar de não ser o que se lê no texto. Já Nickolas
Pappas
95
sente falta das instituições, além das relações de poder que, de alguma
forma, tornam complexas as organizações políticas que levariam o nome de
cidade. Em razão dessa ausência de instituições e de poderes, Dixsaut e Pappas
negam o estatuto de polis a tal associação, como também fará Glauco. Outro
comentário é que ela jamais poderia ser a polis desejada por Platão, pois lhe falta
espaço para a filosofia, o que seria inadmissível. Como se trata de um primeiro
94
DIXSAUT, Monique. Platon: Le désir de comprendre. Paris : J. Vrin, 2003, p. 218
95
PAPPAS, Nicolas. A República de Platão. Lisboa: Edições 70, 1995, p.79
83
momento, que tem como objetivo encontrar algo sobre a justiça e a injustiça, essa
pequena organização serve como primeiro degrau de desenvolvimento para
ampliar o que Platão pensa da polis e da alma humana, pontos que lhe são
indispensáveis, como veremos. Ao criar sua cidade justa, o filósofo fará o que
pede Dixsaut e Pappas.
Mas Glauco exige mais de Sócrates e quer ampliá-la, chamando-a de cidade
de porcos (372e), inserindo nela delícias (tryphosan) e outras variedades não
básicas. Então, essa nova cidade vem da exigência de Glauco, pois a primeira
definição de justiça já está dada e não poderá ser mudada, mesmo com a
ampliação exigida pelo dialogante. Se não se quer viver de forma rústica, mas
com luxo e conforto, deixa-se a primeira cidade, que Sócrates considera sadia, e
expandem-se os desejos secundários.
Este é um problema que toca a possibilidade de a alma multiplicar-se em
desejos, o que leva à desmedida. Rachel Gazolla,
96
ao tratar dos desejos
epitimeticos da alma, isto é, daqueles ligados à imediatez das coisas que
queremos e que são, muitas vezes,coisas necessárias, afirma que desejar em si
mesmo não é a questão platônica, pois todos os homens desejam e assim deve
ser, mas que adequá-los a uma organização política específica que venha a
bem medi-los, organização essa que espelhará a própria alma de cada um. Para
Janine Chanteur,
97
ao tratar da natureza humana, da cidade e suas necessidades,
afirma que a cidade é o campo onde se desdobra o cumprimento desses desejos
humanos, por isso Platão pensa em três estamentos, levando em conta três
largas funções exigidas na cidade, dando a ela uma especificidade fundamental:
ele pensa uma estrutura para a alma também tripartida, de modo que todos os
96
ANDRADE, Rachel Gazolla. Platão: o cosmo, o homem e a cidade, um estudo sobre a alma.
Petrópolis: Vozes, 1994, pp.92-93
97
CHANTEUR. Janine. Platon, Le désir et la cité. Paris: Sirey Craig, 1980, p.11
84
tipos de desejos, e não os epitimeticos, possam emergir de um modo justo. Os
intérpretes estão em acordo, em geral, nessa leitura. Mas, como Platão
conseguirá tal façanha?
Se o projeto é expandir a cidade e seus desejos segundo uma boa medida,
consequentemente, deve-se aumentar o número de pessoas e auxiliares em
todos os níveis, tanto quanto as mercadorias exigidas pelos desejos. Surge,
justamente em 373d-e, a necessidade de ampliar o território da cidade para que
possa haver alimentos para todos, tanto relativamente às necessidades básicas,
quanto à aquisição dos bens supérfluos que os cidadãos venham a desejar. Para
isso, ela terá, também, de comercialização com seus vizinhos, diz Sócrates,
quanto ao que não possui e que se quer. Ora, sabe-se que nenhuma cidade é
auto-suficiente em tudo, e terá que possuir mais terras ou comercializar com
outras regiões, daí pensar em guerras não é arbitrário.
Se assim for, é preciso um estamento especializado para guerras e relações
internacionais que não pode misturar-se com o produtivo: serão os guardiães.
Essa segunda “classe”, juntamente com a dos produtores, técnicos,
intermediários, será constituída por pessoas que tenham predisposição para o
combate por natureza, e seu trabalho terá como foco proteger a cidade, interna e
externamente, dos inimigos. Quanto à proteção interna, devem os guardiões
vigiar a ordem e o funcionamento do todo para que cada cidadão exerça apenas
aquilo que for de sua competência e não queira mais do que necessita segundo
sua natureza. Ademais, que não cobice coisas além do que a cidade pode e deve
dar. O próprio estamento dos guardiões deve atentar a si mesmo para que não se
desvie, por excesso, de suas obrigações, pois, sendo guerreiros e fortes, é fácil
se excederem na força contra outras e a favor de si mesmo.
85
Quanto à proteção externa, uma vez que produção de riquezas, nada
impede que outra cidade venha a desejar os bens que produz, e os guardiões
serão treinados para o combate e proteção da sua própria. Essa será a diferença
para com os technikoi: os guardiões não produzem nada, apenas protegem e
guerreiam, por isso terão uma predisposição anímica diferente daqueles que
lidam com a produção. O que se espera de sua natureza são qualidades muito
específicas e baseadas no que Platão chamará de “natureza filosófica” (376b).
.
2. A introdução do estamento dos guardiãos e a educação (livros II, III e
IV)
Treinar um guardião suscita um novo problema: se antes fora anunciado que
os homens nascem com naturezas diferentes, isso se reflete em suas habilidades
para as mais diversas funções. Então, quem pode ser guardião? Como saber das
disposições da alma de cada um? Ao expor, em 374b, que a competição bélica é
uma “arte” (techne), os escolhidos apresentam, primeiramente, tendências que se
manifestam na educação que terão na cidade justa. Diz Platão que tais
disposições são como a de um cão de boa raça, o melhor paradigma para esse
homem que será guardião porque o cão é um animal que agrega duas qualidades
essenciais: ser manso com os conhecidos e o contrário com os estranhos.
Notemos que essa é uma característica familiar a um jovem bem nascido à
época: incisivos para descobrir coisas não claras, velozes para perseguir os
inimigos, fortes e corajosos para lutar, o que significa ter certo tipo de ímpeto
(thymos) de alma (375b). Então, o que aparece na educação é algo invisível: o
sinais da alma de cada um. A potência guerreira de um homem diz de seu thymos
86
e os guerreiros de Platão têm a forma de alma impetuosa
98
, são corajosos, têm
natureza filosófica. Em 375 e Platão afirma que: “...Ora, não te parece que o
futuro guardião precisará ainda de acrescentar ao seu temperamento fogoso uma
natureza de filósofo...?
99
Esse filósofo”é o homem capaz de distinguir entre
contrários ( amigo e inimigo no caso).
Considera W. Jaeger,
100
ao tratar da reforma da antiga Paidéia grega, que,
no processo seletivo, Platão revela o seu claro sentido aristocrático ao formar a
classe dos guardiões, mas deveríamos acrescentar que, se uma aristocracia
pensada por Platão, ela é bem diferente daquela vivenciada pelos gregos, que a
tinham “de origem” e não como potência anímica, o que transforma todo o sentido
da aristocracia que se pretende. A aristocracia guerreira, até neste momento de A
República, é de alma, e o ângulo de interpretação terá necessariamente que se
modificar.
Depois de apresentar os phylakoi
101
, Sócrates indica que a educação na
Atenas histórica, é discutível. Isso porque, se na cidade justa os que podem
discernir amigos e inimigos dependem da natureza e da educação, em Atenas o
discernimento dos contrários vem ao acaso pelos versos dos poetas e dos
argumentos criados nas assembléias; argumentos duplos que persuadem ou
sentimentos que se fixam nas opiniões, de modo que um amigo e um inimigo
constantemente mudam de “lugar” para um cidadão ateniense. Ora, os mitólogos
(os poetas) são os grandes educadores gregos e criam sentimentos contrários
98
A parte dela θυµοειδής ou traduzida por timocrática seria um movimento que tem origem no
coração, no peito, referente ao ímpeto, ao fogoso, ao ânimo, à vontade, ao que dilacera o peito, o
que chega a ser cruel.
99
Aρ΄ ουν σοι δοκει έτι τουδε προσδεισθαι ό φυλακικός έσόµενος, πρός τώ θυµοειδει έτι
προσγενέσθαι φιλόσοφος τήν φύσιν; (375e)
100
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes,1995, pp. 763 a 765.
101
O φυλακής, significa aquele que guarda e que vigia, o que protege, é uma classe, um gênero
muito específico, são aqueles ligados pela philía.
87
nos homens quando usam de imagens as mais variáveis, desde doces imagens e
imagens cruéis, sem atentarem à natureza de cada um ao nascer, de suas
tendências anímicas. Para Platão, essa é a verdadeira função de um educador.
Então, quem poderá ser o educador da cidade justa? o governante
102
(arkousin), aquele que emerge entre os guardiões e que, por natureza, é filósofo-
governante: são os educadores-filósofos-governantes que levam em conta o
conhecimento da natureza da alma, na delicada tarefa de imprimir matrizes nessa
alma (processo educativo), visando à amizade (philia). Esses dados, o poeta
grego não podia nem pensava em ter. A função de crates será, então, a de
apresentar um caminho que possibilite ver a justiça e a philia, e explicará nos
próximos passos (até o Livro VI) como educar os cidadãos para a justiça, de
modo a preservar a ordem do todo e a tendência natural de cada um.
3. As três potências da alma
Platão apresenta os primeiros passos para a educação em sua cidade,
usando da mesma exigência da tradicional paideia grega (367e): ginástica para o
corpo (somasi gymnastike) e música para a alma (psyche mousike). No entanto,
dispensando o modelo da sociedade ateniense, censura os mitos da tradição
homérica, hesiódica e lírica no que se referem à educação das virtudes. Como o
modo de educar na justiça está atrelado à tese das três dynameis da alma,
Sócrates, em 427e, anuncia que a cidade deve ter cidadãos bios (ser sábia =
sophia), corajosos e animosos (andreia) e equilibrados (sophrosyne) para que
102
Na verdade, o temo grego que aparece no texto é άρχουσιν, que se traduz por governante” e,
por ser aquele que guia, é a pessoa principal, o primeiro derivado de archonta que são os
chefes.
88
seja justa. São excelências que estarão nos estamentos segundo a necessidade
do todo e as tendências de cada cidadão.
A procura da ordem indica quatro aretai para essa cidade: ser justa significa
ter coragem, ter equilíbrio, ter sabedoria, portanto a análise, que se inicia em 428a
e segue até 435b, apresenta virtudes e estamentos em reciprocidade: sabedoria
aos governantes, coragem aos guerreiros, equilíbrio aos técnicos, sendo que tal
modo de ser é a própria ordem justa. Sem sophrosyne para todos, essa ordem
não persiste. Espalhada em todos os estamentos estará, assim, a sophrosyne
(428b em diante). A excelência dos governantes está em ter a visão do todo e de
si mesmos, enquanto que a dos phylakoi, o ânimo e discernimento entre amigo e
inimigo quer para si mesmos, quer para o todo, interna e externamente. I. M.
Crombie
103
nota que o segundo estamento protege a cidade e a preserva das
tentações e crenças impostas pelas leis referentes ao que se deve temer ou não.
a temperança ou equilíbrio (sophrosyne, 430d 432b) que, segundo crates,
é uma espécie de ordem e domínio também sobre os prazeres (que não
analisaremos neste momento) pressupõe o domínio de si mesmo,
particularmente.
Em 433 b, Sócrates pode afirmar que a justiça é o desempenho de cada um
quanto à sua tarefa e consigo mesmo, sendo a excelência a dynamis específica
que cada estamento precisa. Em seguida, sabendo que a alma humana tem três
potências (dynameis), diferentes estados e atividades da psyche são
pressupostos:
104
uma pela qual aprendemos (mantanomen), outra pela qual nos
103
I. M. Crombie (ob. cit. p. 105 e 106) chama a atenção para esse termo, sophrosýne, que
traduzimos por temperança, da qual não existe uma equivalência precisa. Por se tratar de uma
virtude, significa uma espécie de conhecimento das próprias limitações e fraquezas, à luz da qual
o homem se faz modesto, moderado e sóbrio. Segundo ele, isso abre para um amplo campo de
qualidades e dificilmente admitiremos que todas elas possuem a mesma origem.
104
Como se sabe, a psyché é um dos conceitos mais complexos existentes na filosofia de Platão
(cf. Timeu, Fédon, Fedro e Leis). Neste caso específico, como o próprio tema exige, ficaremos
89
irritamos (thymoimeta) e pela qual somos impulsionados à coragem, à vaidade, às
ações desse tipo. Há, ainda, uma terceira pela qual desejamos (edonon) coisas,
no sentido mais imediato, e que todos os homens têm em grande número. Assim,
é preciso explicar que essa espécie de “teoria tripartidaapresentada por Platão
vale para todos os homens, mas que cada alma tem um modo de expressão de
tais potências. Portanto, não podemos dizer que o estamento dos técnicos use a
parte epitimética quando na verdade eles usam as três, e assim por diante. R.
Gazolla,
105
ao tratar das potências da alma, em específico da parte epitimetica,
informa que essa é a uma parte receptora do turbilhão de impressões ou afecções
provenientes da exterioridade. Enquanto potência, essa é sua função específica,
mas, como se sabe também, ela é o fundamento da classe dos artesãos. que
o exercício da artesania vai além de receber impressões, ela precisa de medida
para exercer a produção e realizar os desejos naturais humanos. Cabe à parte
logística dar a ela a medida para o seu exercício. Pelo que expõe a comentadora,
as partes epitimetica e timocrática são receptoras das afecções e a logistica é a
intermediadora, é a que procura abrandar as impressões recebidas, usando boas
palavras, dando harmonia e ritmo a cada uma delas. Por isso não podemos dizer
que cada estamento se utiliza apenas de uma parte, mas as três estão atreladas;
apenas cada uma das partes tem um modo maior de se expressar.
Ainda sobre as três potências da alma, T. M. Robinson
106
faz a seguinte
pergunta: se haveria evidência da gênese e do desenvolvimento de uma doutrina
da tripartição em diálogos que precedem A República, porque, talvez, essa teoria
centrados em A República. Caso seja necessário ampliarmos a compreensão sobre a alma, nos
utilizaremos dos outros diálogos. Existem intérpretes que fazem estudos mais específicos: R.
Gazolla. O cosmo, o homem e a cidade; Erwin Rohde. Psique; Thomas Robson. A psicologia de
Platão.
105
Ob. cit. pp.85 a 126.
106
ROBINSON, T. M. A psicologia de Platão. Trad. Marcelo Marques. São Paulo: Loyola, 2007.
pp. 73-98.
90
tenha sido usada por Platão somente para A República por uma necessidade
lógica do diálogo. Revela Robinson que o comum é encontrar nos diálogos
anteriores sobre a alma uma distinção “popular” entre a razão e os impulsos, mas
nada que fosse parecido com o que Platão elaborou em A República. O filósofo
teria usado, portanto, de motivos técnicos: três estamentos, três potências, três
virtudes básicas para cada um. I. M. Crombie
107
afirma que essa doutrina é
tradicional, pitagórica e que se refere às três formas de vida: a sábia, a honrada e
a dos bens materiais. Para Robinson, essa é uma suposição que se abre para
debates acadêmicos, mas não como concluir que a colocação pitagórica seja
alusiva às três partes da alma platônica. R. Gazolla
108
considera que Platão
realmente pensa a alma como três potências, conforme deixa sugerido no diálogo
Timeu. O assunto é interessante, mas não cabe desenvolvê-lo em nossa
investigação, porém é digno de ser marcado.
Lembremos que, nos textos de Hesíodo
109
e Homero,
110
é apresentada a
necessidade de equilíbrio das forças divinas nas cosmogonias, havendo uma
divisão em três lotes destinais (Moira) para as seguintes divindades: Zeus,
Poseidon e Hades. Três regiões, três potestades, três modos de exercer
poderes. Apesar de não haver reciprocidade entre os modos de exercer o poder
na cidade e as três potências da alma de Platão por se tratarem de deuses -,
essas divindades ordenavam os limites, criavam ordem, justiça:
111
Não me sujeito, por isso, a fazer-lhe as vontades, contente-se.
107
Ob. cit., pp. 108-112.
108
Ver: GAZOLLA, Rachel. As duas almas do homem no Timeu de Platão. Hypnos, São Paulo:
Palas Atenas, n. 7, 2001.
109
HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.
110
HOMERO. Ilíada, canto XX, VV.180 a 200.
111
Zeus é responsável pelo Céu, Poseidon pelo Oceano e Hades pelas profundezas onde os
mortos habitam. Pôr limite a cada lote coube a Zeus como pai dos deuses e dos homens. As
interferências entre eles criavam situações difíceis, como se sabe pelos textos de Homero, como
não o é manter a ordem na cidade ou em si mesmo. (HOMERO. Ilíada. Canto XV, VV 180 a 200.
Trad. Carlos Alberto Nunes).
91
Foi dividido em três partes o mundo; cada um teve a sua.
Postas em sorte, me coube morar para sempre no reino
Do mar espúmeo; a Hades foram as trevas sombrias entregue;
O vasto Céu, pelas nuvens cercado e pelo éter, a Zeus
A terra imensa e o alto Olimpo, em comum para todos ficaram.
Como, então, manter a unidade ordenada de partes diferentes? Para
Terence Irwin,
112
Platão precisa criar o “princípio dos contrários”, que tecomo
função demonstrar que a alma possui partes com características específicas e
contrárias, de modo que as ações anímicas se expressem enquanto tal e
diversas. Ele pergunta se a mesma coisa não pode fazer e padecer sob o mesmo
aspecto em certas ações, o que significa que o mesmo sujeito não pode (ou
pode), ao mesmo tempo, realizar e sofrer efeitos na mesma parte da alma relativa
à mesma coisa. E considera que:
a) A aceitação e a busca de X o contrárias à recusa e ao repelir de X. Por
exemplo, saber que se tem fome e se busca algo para comer e que não posso
negar a fome e nem repelir a comida.
b) Os apetites (por exemplo, a fome e a sede), as vontades e os desejos de
X equivalem à aceitação e busca de X. Isto é, se quero comer, vou em
busca do alimento e não o recuso.
c) A negação, a falta de vontade e a inapetência equivalem a desprezar e
evitar X.
d) Em ocasiões, sentimos às vezes vontade de beber e desprezo pela
bebida.
112
Ob. cit., pp. 340-342.
92
e) Como esses estados são contrários pelo estabelecido desde (b) a(d)
e, portanto, não podem pertencer ao mesmo aspecto da alma –, pelo
estabelecido em (a), devem pertencer a aspectos distintos dela.
Assim, conclui Irwin, a forma como sentimos e agimos, ao desejarmos ou
repudiarmos certas coisas, demonstra que a alma possui modos que respondem
às três ações diversas: compreender, irritar-se e desejar. Por exemplo, posso ter
fome e compreender que devo comer ou não porque estou enfermo, ou irritar-me
ou não porque não posso comer ou não encontrei comida, etc. Ora, Sócrates
destaca em 439d que:
Não sem razão, disse eu, que consideraríamos que eles são dois
elementos distintos um do outro; a um deles, aquele com que ela
raciocina, chamaríamos elemento racional da alma (logistikon), e ao
outro, aquele com que ela ama, sente fome e sede e se agita em
torno dos outros desejos, chamaríamos de elemento irreflexivo
(alogiston) e concupiscente, companheiro de certas satisfações e
prazeres.
113
No Fédon, Sócrates manifesta que, quando se sente prazer ao coçar a
perna também se sente dor se for demasiada a busca do prazer de coçar (60c),
indicando que são duas sensações contrárias em uma e podem ser simultâneas,
o que, neste caso, diz respeito a partes da alma que podem estar em contradição:
compreendo que quero prazer, por exemplo, mas sinto dor ao procurá-lo.
Por natureza, todos os homens pensam, se irritam e desejam coisas
imediatas às sensações, mas não existe uma topografia da alma, apenas uma
113
δή άλόγως, ήν δ έγώ, άξιώσοµεν αύτά διττά τε καί έτερα άλλήλων είναι, τό µέν ώ
λογίζεται λογιστικόν προσαγορεύοντες της ψυχης, τό δέ ω έρα τε πεινη καί διψη καί περί τάς
άλλας έπιθυµίας έπτόηται άλόγιστόν τε καί έπιθυµητικόν, πληρώσεών τινων καί ήδονων
έταιρον. (439 d)
93
imagem de uma topografia para a paidêutica socrática
114
. Há interferência de uma
potência sobre outra, como se nota. Pelas interpretações de Monique Dixsaut
115
e
Terence Irwin,
116
ao analisarem esse relacionamento entre as três partes da
alma, é afirmado que, por serem potências, cada uma exerce sua função: pelo
que se nomeia epitimetico (ou de desejante), timocrático ou animoso, o logístico
ou racional. A dificuldade está na medida das dynameis, que sua força
necessita de ordem e proporção na polis. Caberá, nesse caso, à parte logistica
cuidar de tal ordem e proporcionalidade usando certos modelos para que as
outras duas potências tenham bom desempenho e se subordinem a ela. Uma vez
que a potência logística deva governar as outras duas e a si mesma, nada mais
propício que o filósofo governe e estabeleça a ordem anímica e política.
No contexto psíquico de cada um, a justiça se expressa na forma como o
logos ordena a parte desejante (epitimetica) e a parte animosa (timocratica),
dadas as relações mútuas. Sendo a timocrática uma espécie de “auxiliar próxima”
da logistica (pois o filósofo-rei emerge dos phylakoi) e, se não forem corrompidas
por uma educação viciosa, a justiça estará nelas para que o logistico cuide da
alma toda, vigiando a parte timocratica e a epitimetica, necessariamente bem
medidas segundo os propósitos da justiça. No caso da produção de bens
primários, por exemplo, ou da ação amiga entre cidadãos, todos os desejos serão
satisfeitos na medida do possível, medida esta determinada pela ordenação do
todo e sua amizade. Quanto à injustiça, seria a rebelião, entre essas três
potências, o que se projetaria na rebelião dos estamentos políticos. A rebelião
114
No Timeu, Platão faz uma topografia da alma no corpo humano, colocando a parte imortal com
sede na cabeça e do pescoço para baixo espalhou a parte mortal da alma (69a-71e).
115
Op. cit., pp.191-201.
116
Op. cit., pp. 405-431.
94
surge da indisciplina (akolasia, 444b), da covardia (deilia) e da ignorância
(amatia), bem como de toda a maldade (kakia).
4. A educação dos três estamentos
Jaeger
117
afirma sobre o assunto que:
[...] todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento sente-se
naturalmente inclinado à prática da educação (paidéia)... e uma
educação consciente pode até mudar a natureza física do Homem e
suas qualidades, elevando a sua capacidade a um nível superior.
Esse comentário parece muito cabível ao que Platão pretende. Todo o
esforço do filósofo é para elevar as condições dos cidadãos para saberem de si e
da própria cidade onde habitam. A cidade tem um modo para estimular as
potências da alma, aguçando seus desejos quanto ao que Platão indicará como
justo ou injusto, por isso a educação é instrumento de contenção para a possível
desmedida no âmbito dos desejos de cada um e do todo
118
. Educar os cidadãos
desde a infância e com finalidade bem definida é o único modo de incutir neles o
que o filósofo crê ser a justiça (377b):
Tu sabes que em qualquer empreendimento, o mais trabalhosos é o
começo, sobretudo para quem for novo e tenro? Pois é, sobretudo
nessa altura que se é moldado, e se enterra a marca que alguém
queira imprimir em cada um.
119
117
Ob. cit., p. 3.
118
Platão indicará, no Livro VIII, a decadência das cidades devido ao modelo educativo adotado e
que vem a corrompê-la.
119
Ούκυν οισθ’ ότι άρχή παντός έργου µέγιστον, άλλως τε καί νέω καί άπαλω / ότωουν;
µάλιστα γάρ δή τότε πλάττεται, καί ένδύεται τύπος όν άν τις βούληται ένσηµήνασθαι έκάστω.
(377b)
95
A comentadora G. Maciel de Barros
120
insere este assunto ao tratar dos
jogos e educação na Grécia clássica. Considera que o grego não via, então, a
“criança”, mas o ponto de partida para o adulto. Com relação a Platão, seu ângulo
é bem pontual: se não se educar na mais plena infância, objetivando o bem
comum, poderemos falhar quanto ao adulto com o perfil de uma cidade
democrática, mas, no caso de Platão, a democracia não é o que lhe interessa.
Então, o que hoje é aparentemente pouco, com o próprio movimento da vida, será
muito. Ao descartar o modelo existente, mantém algo dele: ginástica para o corpo
e música para a alma. É criado um novo projeto educativo, no qual, mantidas a
música e a harmonia com outros objetivos, há a grave crítica aos poetas e
músicos tradicionais quanto às suas “pedagogias”.
A educação correta não será cil sem que haja um mito para acreditarem
desde o princípio, que venha a desenvolver em cada um a imagem de que a
cidade seja uma grande família unida pelos mesmos laços de philia. Platão cria,
então, o nomeado Mito das Raças, relatando que todos devem saber de seu
nascimento quanto ao mesmo pai e mesma mãe, como se visto. Como nos
relatos homéricos, os deuses opõem-se uns aos outros, guerreiam, têm inveja,
ciúmes. Essas imagens são perigosas para o começo de uma educação, pois
estimulam à desmedida, o excesso, a falta do que Sócrates mais preza, isto é, a
philia. Há, portanto, uma inversão: inicia-se pela Música,
121
para formar a alma
com bons arithmos e a ginástica para o cuidado do corpo pelo mesmo motivo.
120
BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Platão, Rousseau e o Estado total. São Paulo: T. A. Queiroz,
1996, p. 127.
121
Mousiké significa arte das Musas, é o que hoje chamamos de belas artes, música, poesia,
literatura e as artes plásticas e cênicas. Hesíodo, em sua Teogonia (v.77,78 e 79) , informa que as
Musas são nove: Glória (Κλειώ), Alegria (Εύτέρπη), Festa (Θάλειά), Dançarina (Μελποµένη),
Alegra-coro (Τερψιχόρη), Amorosa ( Έράτω), Hinária (Πολύµνιά), Celeste (Ούρανίη) e Belavoz
(Καλλιόπη).
96
O Mito das raças (415a-c) conta que todos são filhos de uma mesma origem,
mas que a divindade misturou na sua criação três metais: ouro nos que serão
aptos para governar, prata nos auxiliares e ferro e bronze nos lavradores e
demais artífices. Dessa forma, é apresentado o fundamento para as diferenças e,
ao mesmo tempo, é criada pela mesma natureza, ao menos parcialmente, por
serem todos irmãos. Esse mito tem seus sinais no Livro I, quando crates
dialoga com Céfalo (330d - 331a) sobre a vantagem da sua fortuna, e ele
responde que é não ter dívidas nem como seus próximos e nem com os deuses.
Os valores da educação mítico-poética de Céfalo deu-lhe uma medida que,
apesar de ter vindo externamente, ele a assimilou internamente. O Mito das
Raças pretende tal assimilação: que cada um tenha razões de nascença para
exercer uma função de acordo com sua constituição, de modo que o mito possa
fundar a divisão de poderes e funções sem inimizade.
Se assim for, não haverá a idéia do “poder do mais forte” como pensara
Trasímaco. A diferença nas habilidades é algo que, segundo o mito, transcende a
vontade dos homens, e a justiça se expressa, assim, como ordem dos
estamentos em suas habilidades e ações, as potências anímicas exercidas em
harmonia e fundadas no sentimento de philia (timocrático) e na sabedoria sobre a
philia (logístico), que a todos diz respeito pelo modelo de educação recebido.
Esse mito não é muito explorado pelos comentadores. Isso leva-nos a
buscar certa verticalidade na obra de Jean-Pierre Vernant,
122
Mito e pensamento
entre os gregos, que nos auxiliará quando de sua análise mítica do pensar. Sabe-
se que o Mito das Raças platônico tem semelhança com o mito de Hesíodo, na
obra Os trabalhos e os dias, quando ele apresenta o seguinte (v.106 a 201): que
122
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. São
Paulo: Difusão Européia de Livros/Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.
97
os imortais criaram primeiro entre os mortais a raça de ouro; uma raça que não
preocupava, pois a terra os nutria, viviam longe das penas e das misérias. Por
desígnio de Zeus, essa raça cobriu a terra e foi transformada em gênios e
curadores dos homens. Zeus criou, então, uma segunda raça, a de prata,
considerada inferior à primeira, uma geração que vivia cem anos como filhos junto
das mães e, quando cresciam, padeciam de dores por insensatez, pois não
podiam conter o excesso. Zeus, encolerizado, escondeu-os por não honrarem os
deuses e cria, então, a terceira raça: a de bronze. Essa raça terrível e forte,
guerreira, que por si só se destrói e vai ao Hades. A quarta, a dos Heróis
(chamados de semideuses), é considerada mais justa e mais corajosa. Ora, a
essa raça Zeus acolheu na Ilha dos Bem-Aventurados. Finalmente, a quinta é a
de ferro, cujo destino é a labuta do dia e o penar da noite, além das angústias que
os deuses lhe dão. É uma raça de homens desmedidos e que Zeus destruirá um
dia.
Ao reelaborar o mito, em 414d, Platão ensina a sua cidade que todos são
filhos da terra, convicção que, segundo M. H. R. Pereira,
123
a raça grega teve
na sua memória por o ter sido expulsa do território na invasão dórica. Platão
resgata esse ponto: ter a certeza sobre a origem na forma de viver, lembrada
sempre pela educação, ajuda no saber e sentir philia. Quanto às
dessemelhanças? Sócrates diz em 415a,b:
Vós sois efetivamente todos irmãos... mas o deus que vos modelou,
àqueles dentre vós que eram aptos para governar, misturou junto
(syemeixen) ouro (krison) na sua composição, motivo por que são
mais preciosos; aos auxiliares (epikouroi), prata (argyron); ferro
123
In. PLATÃO. A República, referência 88. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
98
(sideron) e bronze (chalkon) aos lavradores (geurgois) e demais
artífices (demiourgois).
124
Como o ouro caracteriza aquele que traz maior disposição para o uso
logístico e terá, necessariamente, sophrosyne, este será o que pode ser justo e
governar justamente. Presume-se que os de prata serão os phylakoi e os de
bronze os technikos. Há, portanto, certa reciprocidade com o mito hesiódico.
Enquanto o mito de A República tem função paidêutica, o de Hesíodo canta o que
as Musas lhe disseram e serve para alertar os homens, mas não transformá-
los.
125
O cuidado pedagógico parte da origem e, “em qualquer empreendimento, o
mais trabalhoso é o começo, sobretudo para quem for novo e tenro...”, como
dissemos antes. A empreitada para a construção de uma cidade saudável terá
que explicar a tendência humana aos excessos, e tudo vale para obter isso,
inclusive censurar a poesia para purificar as sementes internalizadas desde
outras gerações.
No entanto, se Platão dispensa a educação poética tradicional, não
dispensa os deuses que os poetas cantam em seus versos. Analisará, por
argumentos, o que é divino e esse divino não pode estar sob os ventos da
discórdia, da inveja, e intolerância, pois é divino Por ser divino, é um ser simples
(380c 383c) e, por isso, não se modifica, logo, não pode ser mau nem ser
origem do mal se eu afirmo que, em sendo divino, é bom. Platão dá, assim, por
argumentos, um novo estatuto ontológico ao divino, deslocando-o do mito. A
124
Έστέ µέν γάρ δή πάντες οί έν τη πόλει άδελφοί,...άλλ’ ό θεός πλάττων, όσοι µέν ύµων
ίκανοί άρχειν, χρυσόν έν τη γενέσει συνέµειξεν αύτοις, διό τιµιώτατοί είσιν˙ οσοι δ’ έπίκουροι,
άργυρον˙ σίδηρον δέ καί χαλκόν τοις τε γεωργοις καί τοις άλλοις δηµιουργοις. (415a-b)
125
K. Jareski, em processo de elaboração de tese sob orientação de Rachel Gazolla (PUC-SP), ao
fazer um estudo sobre a função do mito em Platão, comenta que este é um recurso que tem
função específica: primeiro o mito serve de mediador ao lembrar” a alma, na conversa de Céfalo,
do Hades, local de expiação das injustiças cometidas, e “redirecionando-a” para aquilo que
indiretamente se apresenta como essencial, a justiça em si mesma. Segunda função é promover
uma série de disposições anímicas, de afecções, pelos recursos às inúmeras potencialidades da
alma.
99
diferença entre cidadãs é considerada, portanto, por natureza ou, pelo mito, por
origem familiar, conforme a divindade.
5. As teses do Livro I acomodadas na cidade justa
A tese do primeiro personagem do Livro I, Céfalo, parece-nos relacionada
aos valores do estamento dos artesãos na cidade justa. No tocante ao desejo
mais controlado que possui, já em idade avançada (328d), e seu gosto pela
conversa, são pontos privilegiados na visão platônica. Os prazeres que mais
facilmente levam à desmedida amores, bebidas, comida -, sobre estes ele não
se deixa mais levar e, ao contrário das mazelas da velhice, não parecem afetá-lo
como afetam os gregos arcaicos, conforme apontamos no início. Ao apresentar-
se como um ancião (330b), um homem de negócios e rico, que leva em conta as
divindades, além de restituir suas dívidas, tais qualidades poderiam estar,
também, entre os technikoi. Que Céfalo é um technikos está claro, que construiu
sua vida para satisfazer as necessidades básicas e algumas mais, não dúvida.
A vida do primeiro estamento da cidade justa aparece respaldada nesse tipo de
vida.
Tal especificidade - viver de acordo com os mitos, produzir, ter bens e
família é a mesma de Céfalo. A base produtiva, segundo Platão (369c), tem a
convicção de que o que faz é o melhor para todos, recebendo e restituindo aquilo
que é necessário para cada um, usando do que pode fazer e deve fazer,
usufruindo da cidade para tudo o que precisar também, e sem eles a cidade
sequer pode existir. A cada um o que ele pode fazer, e fazer bem para todos,
como diz Platão (374b-c) :
100
Não deixemos o sapateiro trabalhar ao mesmo tempo como
lavrador, tecelão ou pedreiro, mas apenas como sapateiro, para que
seu trabalho nos forneça produtos belamente nascidos; da mesma
forma procedemos com os outros, indicando para todos uma única
atividade e mais de acordo com sua natureza, com inteiro ócio dos
demais, a que deveriam se dedicar toda a vida, para não perderem a
oportunidade de trabalhar belamente. (374b-c)
126
Não era isso que acontecia em Atenas: muitos eram proprietários de terras,
produtores, comerciantes e pela posse se tornavam governantes sem se
dedicarem a qualquer função específica, criando gregos e não gregos
assalariados para isso. Uma cidade com tais diferenças conhecidas, mas com
outras de ângulo diverso (por natureza e educação) não tolerará tal prática. Os
fabricantes, de acordo com as inclinações, podem ser tanto sapateiro, carpinteiro,
fabricantes de mantas, agricultores e tantas outras funções necessárias a uma
cidade, e a restituição que Platão pretende o é aquela que a cidade empírica
coloca a dívida de um para um -, mas a dívida de um para todos. Essa parece
ser a grande mudança de perspectiva aplicada à tese de Céfalo. O sentido é,
agora, profundo, pois se pergunta o porquê dessa ação e em que ela contribui
para a manutenção da cidade justa.
Sócrates havia alertado Polemarco, filho de Céfalo (331c), sobre a
necessidade de pensar essa reciprocidade, pois não se restitui alguém pelo
simples fato de estar devendo (regra externa), mas devemos levar em conta a
condição da pessoa ao receber o devido, se está em circunstâncias adequadas
para receber (análise interna). Acreditamos que Céfalo serve, em parte, como
126
‘Αλλ άρα τόν µέν σκυτοτόµον διεκωλύοµεν µήτε γεωργόν έπιχειρειν εϊναι άµα µήτε ύφάντην
µήτε οίκοδόµον, άλλά σκυτοτόµον, ϊνα δή ήµιν τό της σκυτικης έργον καλως γίγνοιτο, καί τών
άλλων ένί έκάστω ώσαύτως έν άπεδίδοµεν, πρός ο έπεφύκει έκαστος καί έφ’ ώ έµελλε των άλλων
σχολήν άγων| διά βίου αύτό έργαζόµενος ού παριείς τούς καιρούς καλώς άπεργάζεσθαι”(374b-c).
101
modelo de valor para o primeiro estamento, e, ao apresentar a natureza dos
artesãos - no Mito das raças como a raça de ferro e bronze -, narra que todos os
homens possuem na alma, além da potência logística e timocrática, disposição
para o epithymetikon, isto é, para a força do desejar. No caso das necessidades
básicas, não só sua satisfação, mas como procurar fazer para tal, depende,
primariamente, do epithymetikon, aliado às outras potências. Quanto ao modo de
produzir, Platão um significado novo para as técnicas, uma vez que cada um
educado para ter a visão de onde está uma cidade justa -, deve exercer seu
trabalho preocupado com a sua boa finalização. Esta é a chamada excelência da
técnica. Todo artesão deve ter arete. Isto significa que estará em busca do
melhor, quer no fazer, quer no ser; logo, será justo.
A produção, portanto, acompanha o campo ético e o político, não é um
processo de atos mecânicos. Essa visão da arete, ligada ao modo de agir e ser,
servirá para todos os outros estamentos porque, na verdade, trata-se de uma
“reforma interna”, como será explicado na investigação do Livro VIII.
*
Na segunda tese, a de Polemarco (332 d - aos amigos paga-se com o bem e
aos inimigos com o mal), nela uma ideia de reciprocidade que é conhecida por
Platão: no estamento dos guardiões, ao distinguir amigos de inimigos, aí está
implícito que aos amigos o bem e aos inimigos o mal. Se investigarmos a História
da Grécia, as Confederações e Ligas formadas, os constantes combates entre os
opositores, com novas Ligas e novas Confederações dependendo das
circunstâncias do s-guerra, essa reciprocidade será evidenciada. Heródoto e
Tucídides têm exemplos de combates baseados em relações mutantes entre os
102
que são amigos e inimigos.
127
O que crates procura demonstrar a Polemarco
(333e -334b) é a sua falta de clareza sobre o ato de fazer o bem e de fazer o mal,
mesmo quem é amigo e quem é o inimigo, como no caso de um médico e de seu
paciente, por exemplo. A tese de Polemarco coloca a questão do combate não
mais entre logoi, mas entre guerreiros, como são os phylakoi do segundo
estamento. Não se trata de produzir, mas de guerrear, e para isso que
discernir bem, ter a “natureza filosófica”, como apontamos antes. O que Platão
espera é que seu guardião seja um cão de boa raça, capaz de diferenciar o amigo
e o inimigo em qualquer circunstância, tanto dentro da cidade como fora dela. Ele
quer discernimento que Polemarco não teve.
Assim, guerrear teuma arete muito específica: a coragem, discernimento
entre opostos, visão de um bom fim. Não mais uma aparência de justiça, mas a
justiça mesma que impregna o modo de ser de cada guardião e de toda a cidade
que, além de produtora, é guerreira, quando necessário. assim a philia pode
emergir, como emerge no estamento produtivo. Notemos, ainda, que a
sophrosyne é também virtude para os guardiões como para os artesãos.
No Livro V, Platão fala dos amigos externos e aponta a necessidade de os
guardiãos saberem se portar diante dos inimigos num combate (469b e seg.), o
que implica, primeiramente, saber a diferença entre guerra (polemos) e sedição
(stasis). A guerra é um combate com estrangeiros, a sedição é a discórdia
política, uma doença da cidade. A forma de o guardião lidar com os dois conflitos
são diferentes, pois a guerra é uma batalha entre pessoas diferentes, porque não
cidadãos, e, quando submetidos ao poder, tornam-se escravos. numa sedição
127
Ver: HERÓDOTO. História: o relato clássico da guerra entre os gregos e persas. TUCÍDIDES.
História da guerra do Peloponeso.
103
ou conflito entre iguais, os helenos abstém-se de escravizar seus semelhantes,
impondo-lhes certas condições limitantes de vida por um tempo.
Esse parâmetro serve aos phylakoi. Platão completa e aprofunda o dizer de
Polemarco. Os guardiões têm as potências da alma combinadas como também
os artesãos de modo justo, harmonioso e usam das três (logistico, timocratico,
epitimetico) na medida de sua função e natureza.
*
Quanto à tese de Trasímaco (338c), de que a justiça é a conveniência do
mais forte, é preciso mudar o foco. O valor “forte” terá, então, outro sentido para o
governante justo. Ora, qual é mesmo a função do governante? É legislar visando
ao bem comum da cidade. Para isso, ele tem como referência o ideal do Bem,
que Trasímaco não tem, mas aceita que “o mais forte” deva governar porque tem
mais força persuasiva, mais uso da capacidade logística. Então, Platão expande a
noção de logos como linguagem de argumentos. Não se trata somente de
argumentos, de modo a dizer, mas de pensar.
128
Essa forma expandida do logos,
enquanto força persuasiva, se expressa no Mito das Raças e na pedagogia
estabelecida na cidade justa para a educação dos estamentos.
Ora, mas o que possui o governante filósofo que o diferencia dos demais e
o que possibilita, a ele, o exercício do poder para governar? Para responder a
essa pergunta, poderemos seguir dois vieses possíveis: um seria o Timeu
129
128
No final do Livro V e nos Livros VI e VII, são explicadas a competência e a formação do
governante-filósofo. Não é aquele que lida com as aparências das coisas, mas é aquele que é
amante do saber do que realmente é. Não entraremos na epistemologia de Platão. Basta saber
que aquele que sabe da ordenação de todas as coisas, da busca das essências e da incidência
desse saber e nasões é aquele que pode governar porque tem larga visão. Veja-se CROMBIE,
I. M. Análises de las doctrinas de Platón. PAPPAS, Nickolas. A República de Platão. JAEGER,
Werner. Paidéia.
129
Ver. GAZOLLA, Rachel. As duas almas do homem no Timeu de Platão; também: O cosmo o
homem e a cidade. ROBINSON, T. M. A psicologia de Platão. Ob. Cit.
104
quando Platão trata da origem da alma, na sua cosmologia, mostrando as duas
almas humanas e suas respectivas funções. O outro é a própria A República com
o Mito das Raças e as partes da alma por ele apresentado. Seguiremos A
República, mas em algum caso, se necessário for, apontaremos passagens do
Timeu como suporte da nossa investigação, uma vez que a alma, na sua origem e
nas suas partes, é um pouco difícil ser apanhada.
A primeira semelhança entre A República e o Timeu relaciona-se à origem
da alma que é sempre de origem divina. Na cosmologia da referida obra, ela
nasce do trabalho de um demiurgo criador (Tim. 30b, c) e n’A República, no Mito
das Raças (Rep. 415a), ele faz referência ao deus que modelou os homens
agregando, unindo (synemeizen) certos elementos que vão diferenciá-los na
forma de agir. Na alma dos governantes, agregou ouro na sua composição, por
isso o mais preciosos. Esse recurso de linguagem, a mítica, Platão às vezes
lança mão dela para expor sobre coisas difíceis, por exemplo, sobre a alma.
Em outro momento, em A República, depois de ter exposto nos Livros II
e III sobre os estamentos, vai verificar se, da mesma forma como a cidade está
organizada com funções específicas, se os homens exercem funções exclusivas
de acordo com partes da alma, cumprindo tarefas determinadas. Em 439 d - e,
ele observa primeiramente dois elementos característicos da alma: um pelo qual
raciocinamos (logistikon), um outro pelo qual desejamos de forma irreflexiva
(epithymetikon) e, em 441a, encontra a terceira parte, a atimocrática (thymoeide)
ou impetuosa, colérica. Dadas as partes constituintes da alma, resta saber das
funções de cada uma. Em 439 a, b, afirma o seguinte:
- Portanto, se uma certa bebida, também um certa sede...
Então, a sede propriamente não é nem de muita nem de pouca, nem
de boa nem de má, nem numa palavra, de uma certa bebida, mas,
105
por sua natureza, propriamente é sede?... A Alma do sedento, na
medida em que ele tem sede, o quer senão beber... É isso que
deseja e busca.... se um dia algo a retém quando essedenta, nela
haveria algo que não é o próprio do sedento e que a leva, como se
fosse um animal, para que beba? É que, afirmamos nós, a mesma
coisa, com a mesma parte de si mesma, não pode causar, em
relação à mesma coisa e ao mesmo tempo, efeitos contrários.
130
Ao fazer essa afirmação, Platão nos aponta para uma parte da alma que dá
medida para a parte desejante dela, a logística. Pelo o que é exposto por Platão,
um certo “movimento” entre as partes da alma que possibilita a algumas das
três partes serem bem mais perceptíveis que outras, mas, ao se observar que
existe uma das partes que limite estabelece limite para a parte desejante, ela é
que o equilíbrio para as demais partes se manifestarem; caso contrário, não
teríamos homens, mas animais levados pelos desejos naturais da fome, sede etc.
Essa parte que concede aos homens harmonia na ação e é a
preponderante nos governantes filósofos, nos leva a observar que a primeira
forma de poder concentrada em alguns homens está nessa natureza de ser de
cada um, e, no caso do filósofo, o logístico é essa potência. Se ele tem essa
potencialidade e percebe nele mesmo o controle que exerce sobre as demais
partes, equilibrando a forma de ser, essa deve ser a mesma função que se espera
para uma cidade que pretenda ser justa.
É da harmonia do interno de cada um, das partes da alma, que se espera
externalizar o funcionamento da cidade, onde todos exerçam funções específicas
de acordo com a potência mais acentuada da sua alma, em benefício de todos.
130
Ούκουν ποιου µέν τινος πώµατος ποιόν τι καί δίψος, δίψος δ’ ουν αύτο ούτε πολλου ουτε
όλίγου, ούτε άγαθου ούτε κακου, ούδ’ ένί λόγω ποιου τινος, άλλ’ αύτου πώµατος µόνον αύτό
δίψος πέφυκεν;....Του διψωντος άρα ή ψυχή, καθ’ όσον διψη, ουκ άλλο τι βούλεται ή πιειν, καί
τούτου /...Ούκουν εί ποτέ τι αύτήν άνθέλκει διψωσαν, έτερον άν τι έν αύτη ειη αύτου του
διψωντος καί άγοντος ώσπερ θηρίον έπί τό πιειν; ού γάρ δή, φαµέν, τό γε αύτό τω αύτω
έαυτου περί τό αύτό άµ’ ά τάναντία πράττοι. (439 a-b)
106
Nesse caso, a justiça é sim o poder do mais forte, tanto internamente, na alma,
quando o logos a medida de cada potência, como externamente na cidade,
dando a possibilidade de cada um exercer aquilo que mais tem disposição para
fazer, visando ao Bem de todos.
Sabendo-se então que o governo na cidade justa será exercido pelo mais
forte no uso da sua potência logística, isso demonstra certa semelhança às
cidades históricas com relação à concentração do poder nas mãos dos dirigentes
políticos. Exerce o poder aquele que de alguma forma tem a concentração de
algum tipo de poder. O que se tem empiricamente no curso da história, quanto ao
poder político, é a sua concentração em grupos, o que é aceitável, mas esse
exercício do poder político se abre para a seguinte questão: como é que esse
grupo vai exercer o poder e em benefício de quem? Esse ângulo do exercício do
poder, em A República, não é mais em benefício ou conveniência do mais forte
em seu benefício particular, mas em benefício de todos. Mas, para que se tenha
um governo que legisle em beneficio de todos, é preciso saber o que a cidade
deve fazer para que siga nessa direção do bem comum; caso contrário, é
necessário se perguntar o seguinte: o que impossibilitaria o governante, que
nele está centrado o poder, de ser corrompido e que não venha a legislar em sua
própria conveniência tal como pensou Trasímaco? Para responder a essa
questão, Platão primeiro deve expor sobre o que realmente corrompe os filósofos,
por serem eles os governantes da cidade justa, e depois deverá demonstrar como
se forma um filósofo governante, de tal forma que se possa evitar, dentro de um
certo limite, a sua corrupção.
Essa explicação é exposta no Livro VI (391 a seg.) onde o filósofo trata logo
de lembrar os ouvintes que são poucos os que nascem com a natureza para um
107
filósofo perfeito e que as mesmas qualidades naturais, que foram elogiadas de
forma positiva na cidade como a coragem, a temperança, a beleza, a riqueza e a
força física, são elas também boas para corromper e afastar aqueles com
disposição anímica para a filosofia. Sobre isso comenta Sócrates que:
... afirmaremos que também as almas mais bem dotadas, se lhes
couber uma educação má, virão a ser excepcionalmente más? Ou
pensas que as grandes injustiças e a maldade pura e simples vêm
de uma natureza medíocre e não de natureza vigorosa mas
corrompida pela educação, e que uma natureza fraca jamais virá a
ser causa de grandes bens e grandes males? (491e)
131
A referência feita por Platão à educação remete aos sofistas que,
segundo ele, são apenas conhecedores das reações dos homens e as utilizam
nos tribunais como manobras para atingirem seus objetivos. São conhecedores
de opiniões sobre as coisas sem saber dos seus fundamentos. Com isso, eles
levam a grande maioria a acreditar na multiplicidade do belo, sem se perguntarem
por ele em si mesmos, deixando dessa forma os homens atrelados apenas às
coisas opináveis. Esse modelo de formadores para uma cidade que pretenda ser
justa é terrível, principalmente para alguém com disposição para a filosofia por
receber na alma discursos superficiais com objetivos e interesses singulares,
tornando-se possuidor de uma técnica que visa ao benefício próprio e superficial.
Além dessa educação corrente da cidade de Atenas, a crítica de Platão se
dirige aos chamados bajuladores, ou seja, quando em uma família ou cidade se
sabe de um cidadão com tal disposição para a filosofia, logo surgem aqueles que
querem tirar proveito desse saber para benefícios comerciais, políticos e
131
καί τάς ψυχάς ούτω φωµεν τάς εύφυεστάτας κακης παδαγωγίας τυχούσας διαφερόντως
κακάς γίγνεσθαι; ή οίει τά µεγάλα άδικήµατα καί τήν άκρατον πονηρίαν έκ φαύλης, άλλ’ ούκ
έκ νεανικης φύσεως τροφη διολοµένης γιγνεσθαι, άσθενη δέ φύσιν µεγάλων ούτε άγαθων ούτε
κακων αίτίαν ποτέ έσεσθαι; (491 e)
108
começam, assim, as bajulações. Esse procedimento desenvolve nos referidos
filósofos uma natureza mesquinha, arrogante e outras mazelas que os levam a
perderem o foco principal da natureza da filosofia: a busca dos princípios e o ideal
do Bem.
Para que se tenha uma cidade sadia e filósofos bem formados para
governá-las, é necessário modificar os discursos correntes da cidade e
apresentar, de acordo com a faixa etária, um programa de formação. Esse é o
motivo que leva Platão, logo no Livro III, a censurar o conteúdo dos poetas
Homero e Hesíodo e apresentar um novo mito para a população da cidade criada
em lógos. Mas, devemos lembrar que a educação é algo complementar à
formação do filósofo. O que realmente define o perfil de cada um para seu
exercício nos estamentos é a potência anímica que cada um traz de nascimento e
essa disposição transcende a educação. Quanto ao programa usado na cidade,
seguirá a seguinte disposição:
a) Na infância se inicia a educação com o Mito das Raças para
desenvolver o sentimento de philía e lembrar a todos da origem (Livro III
413 d e seg.);
b) A ginástica vai se ocupar em educar o que se altera e perece: o corpo
(521e);
c) A Geometria, que tem como finalidade atrair a alma para as verdades e
produzir pensamento filosófico;
d) A Astronomia é a ciência que força todas as almas a olharem para cima
e as conduz das coisas terrenas às celestes (529a);
e) E, por fim, a dialética, que é o método que busca, em todos os casos,
apreender, por um processo científico relativo a cada objeto, a essência
109
de cada um (533b). Nessa fase, a formação é permitida depois dos
trinta anos, após seleção feita entre os guardiões, evitando que se torne
um mero instrumento de brincadeira entre os jovens.
A cidade deverá seguir esse programa para formar bons cidadãos e o
filósofo governante é o que vai levar a formação até a última instância do saber.
Nele vai ficar centrado o conhecimento dos princípios de todas as coisas, é o que
sabe das coisas da terra e das coisas divinas. Por saber das coisas divinas,
saberá da alma de cada um e de suas disposições, por isso será o melhor para
governar, pois o seguirá o que é temporal e passageiro, mas seguirá as leis
que são eternas e por isso é o que vai melhor saber educar uma cidade.
*
Resta-nos as teses de Glauco e Adimanto: que afirmam ser muito mais
vantajosa a vida de um injusto que a de um justo (Glauco, 360 d) e que a vida dos
que honram a justiça e censuram a injustiça é melhor (Adimanto 363 a). Em
433 b-c, a justiça é exposta por Sócrates como força que sustenta as aretai. Ora,
o que lemos empiricamente na democracia ateniense é uma forma política que
desenvolve nos seus cidadãos o sentimento de competição e não possibilita a
todos condições semelhantes de formação e funções segundo o que cada um
pode fazer. Assim sendo, nessa cidade que tem a justiça como aparência, aquele
que terá vantagens é o que possui bens. Consideram a maioria, que, assim
sendo, são felizes. Mas, ter vantagens, ser rico, é ser feliz? E se aquele que não
tem riquezas e não sabe competir pode ser feliz? Não será assim considerado,
entretanto. A justiça, nessa cidade justa de aparência, desenvolve sentimentos
aparentes e ações sem fins últimos, mas imediatos. É o que Platão quer
110
marginalizar de sua cidade. No entanto, como mostrar que o homem justo é feliz?
Isso não será possível na própria cidade empírica, mas fora dela. Platão aponta
agora para um dos problemas centrais da obra: a felicidade (makariotes).
O que ele faz no início de A República? Ele recolhe, entre seus
dialogadores, as ideias de justiça correntes que não são apresentadas ao acaso e
demonstra que, o resultado de cada uma das teses levada ao extremo, redundará
na condição de infelicidade para a cidade como um todo. O que deseja Platão,
pelo que nos parece, é criar uma polis, onde o grau de satisfação entre todos leve
à felicidade. Vejamos então como ele vai demonstrar essa relação de satisfação
da maioria com as teses apresentadas.
A tese de Céfalo (331d) é dizer a verdade e restituir o que se tomou. Essa
tese ao extremo levaria os homens a atos injustos, uma vez que restituir e dizer a
verdade depende de vários fatores que, se não forem refletidos, levam à injustiça.
Para mostrar que ela precisa de um meio termo, Platão mostra que uma pessoa
jamais pode ser restituída fora do seu estado psíquico considerado normal. Além
da restituição do que se toma emprestado de alguém, temos também a relação de
restituição ou de satisfação dos nossos desejos. Isso Platão demonstra ao tratar
dos desejos não mais realizados pelos anciãos, companheiros de Céfalo. Essa
passagem (329 a-b) serve de suporte para demonstrar que nem sempre a
restituição é devida, como também nem sempre os homens podem satisfazer
desejos, quer pela idade, quer pela falta de condições materiais. Logo, uma
cidade dessa não pode ter um grau de satisfação elevado já que faltam condições
de restituir.
Se isso não fosse suficiente para apontar que uma cidade com esse
parâmetro de justiça é levada à destruição, Platão aponta também que uma boa
111
ordem nem sempre está assentada na verdade, mas também em mentiras. A
questão é: como será usada a mentira? Se for com nobreza, tem sua contribuição
para a felicidade de um e de todos na cidade. Parece que falta alguma coisa para
a tese de Céfalo que Platão vai apresentar ao construir a cidade justa. Logo, a
felicidade como satisfação da maioria nessa cidade não existe.
Quanto à tese de Polemarco (334b), de que a justiça é auxiliar os amigos e
prejudicar os inimigos seguidos ao extremo, conduzem os homens à tirania. Isso
se deve ao fato de os homens serem capazes de camuflarem seus interesses e
agirem aparentando serem amigos sem ser. Se uma cidade toma essa tese de
Polemarco como referência educativa, sem saber da distinção entre amigos e
inimigos, teremos uma cidade de loucos, tal qual um tirano na sua forma de ser.
Platão demonstra o que acontece com uma cidade se assim fosse capaz de
seguir essa tese. Os melhores técnicos existentes nela seriam os maiores
criminosos que a cidade poderia criar, pois seriam os portadores do saber tanto
para fazer bem aos “amigos” quanto mal aos “inimigos”. Essa seria uma cidade
onde o excesso escolheria como morada e, com certeza, não seria capaz de
satisfazer a todos e, portanto, a felicidade não habitaria entre a maioria.
Por fim, a tese de Trasímaco (338c) de que a justiça é a conveniência do
mais forte. Se esse mais forte for o uso do gos no seu extremo, isso conduzirá o
governo à demagogia, tal como Platão presencia em Atenas de seu tempo.
Quanto ao mais forte, tanto no uso da força física, quanto no uso de sua potência
logística de forma desmedida, são extremos que levam sempre uma maioria de
desfavorecidos a ficarem à margem dos benefícios econômicos e políticos das
cidades. Um governo que legisle em seu próprio benefício sem levar em conta
que a sua finalidade é a realização de todos que o constituem, vai deixar uma
112
maioria de desfavorecidos de fora dele. Ora, como encontrar a felicidade em um
governo que despreza uma maioria em benefício de uma minoria? Platão
demonstra que essas teses recolhidas, por não serem bem elaboradas e por
serem frutos de opiniões, conduzem muitos homens ao excesso; coisa que ele
quer evitar no seu modelo apresentado. O que elas terminam criando são
diferenças, inferiorizando sempre uma maioria que, às vezes, passam a ser
escravizados pelos mais fortes. Então, como construir a cidade onde todos,
mesmo nas suas diferenças, possam participar produzindo, defendendo,
educando e governando? Para isso Platão tem de deixar o que ele tem
empiricamente para demonstrar que existe sim outra possibilidade de os homens
viverem que possibilite a felicidade de todos. Para tanto, ele toma como referência
exatamente as potências anímicas de cada um e faz da cidade uma grande
escola, capaz de educar a todos de tal forma que a satisfação esteja presente em
cada estamento, que eles representam a satisfação de cada um. Mas lembra
que, sem qualquer sabedoria, sobre a própria cidade e sobre si mesmos não
condição mínima de reflexão sobre as próprias ações, portanto criar tais
condições é a função da educação platônica: música para alma, ginástica para o
corpo, primeiramente. Mas o aperfeiçoamento humano – saber de si, de sua
alma, de suas potências e de sua atualização é algo para as gerações futuras,
dirá crates: tais gerações saberão que ser justo é saber de si mesmo, que ser
excelente assim é porque a natureza está atuando conforme ela mesma, no
particular e no todo. Essa é a proposta que Platão vai apresentar para aqueles
que desejam uma possibilidade de vida feliz.
113
6. A justiça e modelo educativo
Ao se estabelecer o que é dikaiosyne e como se expressa na sua cidade
que é, na sua própria ordenação, o sinal da presença da justiça como ele a
entende, Platão explicita que os homens internalizam o modelo do que serão na
vida a partir da educação que recebem, ao menos parcialmente, porque, de outro
lado, há também a própria natureza de cada um, até então algo não pensado pela
empiricidade grega.
Ao recolher as teses de Céfalo, Polemarco e Trasímaco, por mais sensatas
que venham a ser, não estão entranhadas em cada um (na alma, no caso), mas
são opiniões aprendidas e acreditadas. Ora, não é fácil saber o que é a justiça
que eduque os homens nela sem uma teoria da alma que a prepare. Em 354c,
Sócrates diz que “Desde que não sei o que é a justiça, menos ainda saberei se se
o caso de ela ser uma arete ou não, e se quem a possui é ou não feliz.”
132
Assim, sendo a justiça uma excelência, como conclui Sócrates, o que retira a
ideia de que seja qualquer regra da cidade a ser devidamente seguida, é preciso
saber o que é excelência como força, como virtude, como arete, pois usamos esta
palavra e talvez não a compreendemos muito bem.
Para Platão, a justiça é uma arete, uma força, logo, não faz parte de um
catálogo de qualidades e de seus contrários como geralmente se pensa,
133
e que
se pode alcançar como se fosse um ponto ao final de uma corrida. Se uma força
atua de certa forma, ela produz sentimento, palavras, ações diversas. Essa força
132
όπότε γάρ τό δίκαιον µή οϊδα ό έστιν, σχολη είσοµαι είτε άρετή τις οϋσα τυγχάνει είτε και ού,
και πότερον ό έχων αύτό ούκ εύδαίµων έστίν ή εύδαίµων. (354c)
133
Quando se escreve livros sobre “As virtudes”, por exemplo, e se coloca a justiça entre elas,
uma substancialização que não permite vê-la como potência, mas como algo que podemos
alcançar como se alcança uma fruta, o que não é o caso.
114
enquanto uma arete, como informa A. Bally,
134
é percebida como virilidade,
enquanto vigor e energia que se manifesta nos homens. Essas características da
arete enquanto vigor, virilidade são partes constituintes dos homens e que, na
época arcaica, se encontra exposta nas epopeias de Homero, sem que seja
demonstrada a sua localização, mas vista como uma disposição dos homens.
Ao verificarmos as obras poéticas do aedo acima referido, observamos o
ideal de homem desejado pela cultura grega dos séculos anteriores a Platão e
suas aretai. É precisamente na Ilíada que fica mais claro o uso dessa força
enquanto uma arete guerreira, enquanto um brio, bravura, valentia dos heróis. Ao
observarmos os semidivinos que compõem a trama da guerra de Tróia, vamos
identificando suas características expostas. Aquiles, entre os primeiros a ser
apresentado (cant. I. v. 1-8), é portador de uma força colérica, além de ser um
descendente dos deuses; Agamenon, o Atrida, filho de Atreu, senhor de
guerreiros e guerreiro (cant. I, 7, 11); o velho Nestor, um guerreiro e orador, como
canta o aedo, de cuja boca saem deliciosas palavras mais doces que mel (cant. I,
248, 249); Odisseu, o guerreiro rei de Ítaca, como o descreve a deusa Atenas
(cant. II, 173 ), filho de Laertes, de origem divina e engenhoso; Menelau (cant. III,
v. 21) o guerreiro discípulo de Ares; Heitor, filho do rei de Tróia, Priamo, é um
grande guerreiro que chega a ser considerado (cant. VIII, v.473) o terrível pela
sua valentia.
Pelo exposto, existe, no ideário grego arcaico, a imagem do herói guerreiro,
forte, valente, varonil, bélico. Isso se deve à organização da sociedade belicosa
dos antigos genos na Grécia. Esse ideal era o que dava suporte para a educação
desse povo, onde se verificavam as características bélicas tão desejadas pelos
jovens que tomavam os heróis como referência de formação. O que constatamos
134
A. Bailly. Abrégé Du dictionnaire Grec Français. Paris : Hachette,1.901, p.115.
115
também é que algumas características são peculiares de alguns heróis e que, por
sua vez, o aceitas como um presente da divindade para o seu escolhido. Por
exemplo, a astúcia de Odisseu deve-se à proteção da deusa da sabedoria
Atenas, como a própria beleza de Helena se deve a sua origem divina, ser
descendente de Zeus. Essas aretai: astúcia, força e beleza que transcendem a
vontade dos humanos dependiam exclusivamente da graça de uma divindade,
mas era desejada pelos demais como referência de formação. Nesse caso, o que
é percebido é o reflexo de algo se dando em forma de beleza, agilidade bélica e
astúcia, e se sabe que é divino, é um presente dos deuses aos heróis.
Por sua vez, a arete personificada nos heróis era desejada pelos mortais
que buscam a qualquer custo, através de uma bela morte,
135
ficar na memória de
seu povo como um grande guerreiro. O problema percebido é a falta de medida
para atingir esse fim, que a busca por uma bela morte os conduz aos
frequentes combates, logo os conflitos serão constantes para que se possa atingir
o grande feito heróico: a bela morte. Tem-se uma cultura assentada nesse ideário
em que termina prevalecendo o poder dos mais fortes, onde os bravos lutam pelo
bem do seu genos e isso vai servindo de modelo para os demais. A questão é
que o poeta não faz distinção entre a natureza interna de cada um e o modelo
que é colocado para os jovens seguirem. Dada a referência no ideal do herói,
qualquer um teria condição interna para atingir o ponto desejado.
É exatamente aqui que Platão terá de avaliar o caráter da educação grega,
levando em conta a natureza interna de cada um e o modelo a ser seguido pela
cidade justa. Além disso, precisará dar uma finalidade para a vida dos homens e
demonstrar que a justiça nela mesma é uma força que atua, dando equilíbrio a
135
Ver. VERNANT, Jean-Pierre. Mortal and Immortals. e LORAUX, Nicole. L’invention d’Athènes:
Histoire de l’oraison fúnebre dans la “cité classiuque”.
116
alma de cada um. Para isso, vai ter também de demonstrar que é a alma, pois, se
sabendo do interno de cada um, se saberá qual a forma justa para se adequar ao
externo, isto é, a cidade.
Sobre a areté na República, ela aparece logo no Livro I, no debate de
Sócrates com Trasímaco, quando o condutor do diálogo expõe as qualidades do
homem sábio e do ignorante, para refutar o sofista que afirmou ser a justiça um
vício e a injustiça uma virtude para manter o debate, invertendo o significado de
cada uma. Para resgatar novamente às aretai nos seus significados tradicionais,
Platão procurou demonstrar a excelência do sábio, do ignorante e assim como de
cada coisa, por exemplo: os olhos têm a função de ver, os ouvidos de ouvir e
assim cada coisa exercendo aquilo que por natureza ela executa da melhor
forma possível. Logo, o sábio é aquele que possui a excelência que visa à medida
e a proporção na sua forma de ser e de agir; o ignorante é o que é excessivo
nas suas ações. O referido filósofo, após apresentar uma gama de funções
exercida por partes do corpo, afirma (353 d) que a alma tem uma ação específica
a ser desempenhada que são as seguintes: dirigir (epimleistai), comandar (arkein)
e deliberar (bouleuestai). Dito então que a alma é essa parte do homem que
produz essas ações, resta-nos perguntar o seguinte: o que é que nela que a
possibilita exercer tal função de deliberar e dirigir.
Pelo demonstrado, Platão coloca no corpo excelências para recolher
sensações exteriores: ver, ouvir, sentir frio, calor etc., mas ele à alma a função
de organizar tudo o que ela recebe. No entanto, como já foi demonstrado, a alma,
como ser que possui a potência para decidir, possui ao lado dessa parte, duas
dynamis que correspondem ao todo às três ações diversas existentes nos
homens: compreender, irritar-se e desejar (439d). Logo, ela não julga, mas
117
exerce outras funções, que são três dynamis se dando em um único ser e que
são diferentes entre si. Quanto a sua expressão, uma coisa é surgir o desejo da
fome, outra é mover-se para satisfazer a fome e por fim é ter consciência do que
se come e a quantidade específica para satisfazê-la de forma saudável. Essa
parte que raciocina sobre a ação é a logística (logistikon). Cabe a ela dar a
medida para as demais potências existentes e para si mesma. Ora, nos
perguntaríamos agora: mas o que mesmo estamos procurando? É pela justiça
nela mesma. Se for pela dikaiosine que estamos em busca, então Platão vai
demonstrar quem é ela e onde ela se encontra.
Depois de ter exposto sobre a alma e suas potências e a relação existente
entre elas, ele afirma o seguinte (443 b – d):
E a causa de tudo isso (das relações das partes da alma) não é que
cada uma das apartes que nele há cumpre o que é tarefa sua, tanto
no comandar quanto no obedecer?... Ainda pretendes que a justiça
seja algo que não essa força que aos homens e às cidades tais
qualidades?... Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste
gênero, ao que parece, exceto que não diz respeito à atividade
externa do homem, mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele
e o que lhe pertence, sem consentir que qualquer das partes da
alma se dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas nas
outras, mas depois de ter posto a casa em ordem no verdadeiro
sentido, de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de
si mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos
diferentes, exatamente como se fossem três termos numa proporção
musical...
136
136
Ούκουν τούτων \ πάντων αίτιον ότι αύτου των έν αύτω έκαστον τά αύτου πράττει άρχης
τε πέρι καί του άρχεσθαι; ...Έτι τι ούν έτερον ζητεις δικαιοσύνην είναι ή ταύτην τήν δύναµιν
ή τούς τούς τοιούτους άνδρας τε παρέχεται καί πόλεις;...Τό δέ γε άληθές, τοιουτόν µέν τι ήν,
ώς έοικεν, ή δικαοσύνη, άλλ’ ού περί τήν / έξω πραξιν των αύτου, άλλά περί τήν έντός, ώς
άληθως περί έαυτόν καί τά έαυτου, µή έάσαντα τάλλότρια πράττειν έκαστον έν αύτω µηδέ
πολυπραγµονειν πρός άλληλα τά έν τη ψυχη γενη, άλλά τω όντι τά οίκεια ευ θέµενον καί
άρξαντα αύτόν καί κοσµήσαντα καί φίλον γενόµενον έαυτω καί ξυναρµόσαντα τρία όντα,
ώσπερ όρους τρεις άρµονίας άτεχνως, νεάτης τε καί ύπάτης καί µέσης, καί εί / (443 b – d)
118
Ao saber que a justiça é uma força que suporte às coisas e aos homens
serem enquanto uma ordem, isso nos leva a verificar o significado mais antigo de
justiça de que Platão se vale. Nesse caso, ela é uma força divina, ela é Themis, a
divina ordem de tudo, uma força que possibilita as coisas terem uma medida para
serem o que são. Assim, Platão é herdeiro não dos poetas, mas de
Anaximandro
137
ao expor a justiça como uma força que gera e a injustiça como
força que desconstrói. Para que se tenha um ser, é necessário que ele tenha uma
ordem para ser, tal qual a alma, o corpo, os olhos, as árvores e assim por diante,
e essa ordem ou essa força que os possibilita a existência se chama justiça.
Quanto à injustiça, ele expõe que (352 a):
Então, parece que ela (injustiça) tem uma capacidade tal que, se
vem a existir, seja numa cidade, seja numa estirpe, seja num
exército, seja em outro grupo social qualquer, em primeiro lugar, faz
que ela seja incapaz de agir de acordo consigo mesmo, por causa
das discórdias e divergências e, ainda, ser hostil a si mesmo e a
todo adversário, e também ao homem justo... E existindo no íntimo
de uma única pessoa, creio, produzirá tudo que, por sua natureza,
produz. Fará, em primeiro lugar, que ela seja incapaz de agir, por
estar em rebelião e discórdia consigo mesma, e depois hostil a si
mesma e aos homens justos.
138
Sabendo que a injustiça e a justiça são duas forças contrárias que se dão,
uma é a força que possibilita a desordem interna em cada homem, dificultando o
exercício de suas funções e a outra é o contrário, é a ordem se dando. Então,
encontrada a justiça e a injustiça nelas mesmas, Platão vai ter de demonstrar o
137
Ver fragmento citado na introdução.
138
Έάν δέ δή, ω θαυµάσιε, έν ένί έγγένηται άδικία, µων µή άπολει τήν αύτης δύναµιν, ή
ούδέν ήττον εξει; - Ούκουν τοιάνδε τινά φαίνεται έχουσα τήν δύναµιν, οϊαν, ώ άν έγγένηται, εϊτε
πόλει τινί εϊτε γένει εϊτε στρατοπέδω εϊτε άλλω ότωουν, πρωτον µέν άδύνατον// νύτό ποιειν
πράττειν µεθ’ αύτου διά τό στασιάζειν καί διαφέρεσται, έτι δ’ έχθρόν ειναι έαυτω τε καί τω
έναντίω παντί καί τω δικαίω; ούχ οϋτως; (351e-352a)
119
seu reflexo nos homens e na cidade, que a maioria de seus ouvintes está
habituada a lidar com as coisas sensíveis. Inicia a sua reflexão mostrando,
primeiro, a força da justiça na ordem da cidade e, depois, na alma de cada um e,
paralelamente, como se deve educar a todos de forma que a justiça, na sua
plenitude, possibilite uma boa ordem interna (na alma) de cada um e, externa, na
cidade. Esse nos parece ser o projeto do referido filósofo num primeiro momento.
Então, como educar uma cidade que sabe da justiça nela mesma? Primeiro
é criando uma referência comum, o ideal do bem. E depois é possibilitar a cada
um exercer apenas uma função específica da melhor forma possível, para que se
tenha uma unidade, que se sabe que a justiça é uma força que mantém a
harmonia. Esse deve ser o primeiro passo a ser dado em uma cidade que queira
ser justa. Mas, onde encontrar um fundamento para que os homens ajam dessa
forma? É demonstrando que, por natureza, todos são portadores de desejos
diferentes, considerados sicos para manterem a vida. São os desejos para se
alimentar, para se vestir e protegerem-se em suas habitações. Para que possam
satisfazer tais necessidades, é preciso que se eduquem cada um em uma tarefa
específica, de acordo com a característica psíquica predisposta em cada um,
conforme interesses para produção que deverá ser empregada para o benefício
particular e dos demais.
Ao serem educados para exercitarem apenas uma função da melhor forma
possível, visando ao bem particular e ao coletivo, apura-se dessa forma e, ao
mesmo tempo, o produto e o caráter desses artesãos, que o seu exercício
externo, no ato de produzir, os leva a certa reflexão também no seu interno, na
alma. Então, esses homens são formados para produzir com vistas ao o bem de
todos, ao bem do grupo. Ao fazerem o melhor para si e para o outro, isso cria um
120
modelo de reciprocidade visando sempre o bem de cada um e, como
conseqüência, teremos um todo visando o bem. Nesse caso, educam-se homens
em harmonia em todos os sentidos.
Uma cidade que possui uma base bem formada terá condição de criar uma
outra classe para protegê-la seguindo os mesmos fundamentos, apesar de ser
constituída de potências diferentes, levando-se em conta as diferenças expressas
nas partes predominantes de cada um. Ao serem escolhidos os guardiões para a
cidade justa, eles terão como referência o primeiro estamento, onde cada um
exerce apenas uma função e procura ser o melhor possível, visando o seu bem e
o dos demais. um processo imitativo ou mimetico
139
de educação enquanto
modelos a serem seguidos nos estamentos. Então, um bom artesão é modelo
para os demais, da mesma forma que um bom guardião deverá ser para o seu
estamento.
Constituída de partes harmonicamente equilibradas, a cidade precisará de
educadores para internalizar nos seus habitantes essa forma de vida considerada
justa. Para exercer essa função, aparecem os dirigentes educadores, que serão
capazes de conhecer cada um, com suas características específicas para o
exercício de suas devidas funções. Essa cidade que preza a justiça como seu
principal fundamento vai ter de levar em conta as diferenças e procurar manter a
unidade em cada estamento no conjunto. Esse vai ser o desafio daquele ou
daqueles que venham a exercer o governo da cidade.
Para que o governante atinja o objetivo da cidade, a unidade das diferenças,
para que possa ser justa, criará um programa pedagógico que vai da infância até
a fase adulta, respeitando a faixa etária e a potencialidade de cada um. Inicia o
139
Usamos aqui essa categoria no sentido de imitação de um comportamento. Para maior
informação, ver. HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Trad. Enid Areu Dobránzsky, São Paulo:
Papirus, 1996.
121
programa pedagógico com a narração do mito, contando para todos em comum
que são por natureza irmãos, mas que, ao nascerem, trazem potências diferentes
para exercer individualmente uma função. Essa diferença não é criação dos
homens, mas foi disposta pelo próprio deus que criou os homens para que
possam auxiliar uns aos outros com suas diferenças. Essas diferenças, por sua
vez, vão se expressar através dos desejos naturais a serem satisfeitos.
Segundo o que conta o mito, um traz na sua constituição o elemento ouro,
outra prata e também os que possuem ferro e bronze como elementos
preponderantes que vai diferenciá-los entre si. Esses metais simbolicamente
representam as potências existentes na alma. Quando o elemento ouro for
dominante na alma, significará que esse homem, por natureza, é portador de uma
capacidade logística maior que os demais, mas ele não nega a presença dos
outros elementos, uma vez que a alma é uma composição de diferentes
elementos. Os que possuem ouro como característica predominante serão os que
se utilizarão com mais intensidade da parte logística da alma, isso significa que,
ao se exercitarem nessa potência, serão os que mais se aproximarão do
conhecimento das formas ou das ideias nelas mesmas. Portanto, esse homem é
portador de uma alma considerada mais nobre, é o único que tem nele o registro
da ideia de justiça com mais clareza, que ele, no uso de sua potência, saberá
mover, enquanto potência logística, do sensível ao inteligível em busca do
princípio de cada coisa, entre elas da justiça enquanto ordem da polis. Ao
visualizar na ordem interna de cada coisa a dikaiosine, esse homem se identifica
com essa força, pois saberá da sua própria constituição. Logo ser justo, nada
mais é do que a expressão de algo que é parte da sua própria natureza. Por
serem de uma raça muito nobre, isso os torna raros entre a maioria. Quanto aos
122
demais, que vão constituir os estamentos dos artesãos e guardiãos, serão
educados para que possam entender o que seja a justiça na ordem da cidade. A
diferença está nessa condição de nascimento. Quanto à ordenação da cidade, vai
depender da educação que vai ser oferecida pelo governante de forma
convincente a todos, mas todo projeto vai depender da ordenação das partes da
alma, que vai seguir o projeto pedagógico estabelecido na cidade justa, pois o
reflexo da cidade deve ser o da ordem da alma.
Encontrada a justiça nela mesma, Platão se preocupa com o que se deve
ouvir na cidade para não comprometer o modelo desejado. Na cidade de Glauco
e Adimanto, o que se ouve é que ser injusto é mais vantajoso que ser justo, o que
Platão vai refutar ao demonstrar que não é bem assim quando se sabe da justiça
nela mesma. Para isso o governante deve cuidar dos conteúdos míticos, músicas
e todo o demais conteúdo formador da cidade. A cidade justa deve ressaltar
sempre as qualidades positivas dos componentes dos estamentos, isso
possibilitará aos outros buscarem a perfeição no que vão exercer. Então, o
referido filósofo olha para o homem como uma árvore que necessita de um bom
solo para que possa gerar bons frutos; para tanto deverá podar as ervas
daninhas.
No final do Livro IV, depois de ter tratado sobre os guardiãos, as
excelências ou virtudes da cidade justa e, por fim, das partes da alma, Platão
afirma (444d-e) que a justiça na alma consiste num acordo entre suas três
potências e a injustiça seria um movimento contrário. Dessa forma, a justiça se
reflete como uma virtude positiva enquanto saúde, beleza e bem-estar da alma;
a injustiça, enfermidade, feiúra e debilidade dela também. Quanto à virtude, é
exposto, em 445e, que existe uma, mas os vícios são infinitos. Entre eles
123
existem quatro que são dignos de serem recordados e que tantas formas
específicas de constituições quantas as de almas. No todo, são cinco formas de
constituições e cinco de almas. Entre as cinco, uma é considerada virtuosa e
quatro viciosas.
Com disposição para verificar se realmente é assim que se dão as formas
de governo com relação aos tipos de alma, Adimanto e Polemarco interrompem a
continuidade do diálogo que vinha acontecendo no Livro IV e, no início do Livro V,
mudam a questão das formas de governo para saberem da relação das mulheres
e dos filhos nessa cidade, o que se prolonga no Livro V e é retomado no Livro
VIII. Em 544b, crates anuncia que deseja saber quais são essas quatro formas
de governo, que tinha exposto antes uma considerada virtuosa e, portanto,
justa: agora sobram quatro que são constituídas em sua grande parte pelo vício e
pela injustiça.
Tendo o modelo primeiro fundado e ordenado de forma justa, na qual o
governante sabe da origem e fundamento da dikaiosyne, resta a Platão
demonstrar o que acontece com as cidades que tomam outras referências para o
governo, que não seja o ideal da justiça como seu Bem fundamental.
124
Capitulo III – O Livro VIII e as teses sobre a justiça dos livros I e II:
relações
125
1. A decadência das formas de governo
Com o quadro que temos até aqui, faremos um estudo do Livro VIII em
comparação com o modelo da Politeia em logos, desenvolvido anteriormente por
Platão. Muitos são os modos possíveis de nos aproximarmos desse livro. Dentre
as várias possibilidades para sua abordagem, optamos por apontar as referências
dos intérpretes e verificar no próprio texto os sentidos indicados pelos
pesquisadores, seguindo as direções propícias ao nosso tema.
Vegetti
140
pensa que ele serve como resposta à questão levantada por
Trasímaco no Livro I e às de Glauco e Adimanto no Livro II, sobre que tipo de
homem seria o mais feliz: o justo ou o injusto. Expõe o comentador ainda que:
Na complexa arquitetura compositiva de A República, os livros VIII e
IX o apresentados explicitamente como uma retomada do
programa formulado ao final do Livro IV e no início do V, e, portanto,
conduz o diálogo para segunda conclusão (a primeira, relativamente
à questão da justiça, foi alcançada justamente no Livro IV). Uma vez
delineada a estrutura da cidade justa e da alma que lhe
corresponde, Sócrates havia de fato anunciado a sua intenção de
discutir as formas (tropoi) do mal, seja a nível político, seja a nível
psíquico, e como já havia dito, quer tratá-la “do alto” para tipos
essenciais (eide), sem discutir sobre a sua infinita variabilidade
empírica (IV 445 c d), um programa pontualmente estabelecido
nos conteúdos e nos métodos, no começo do Livro VIII por Glauco e
por Sócrates (544 a – e).
Qual foi à questão formulada no final do Livro IV e início do V a que o
comentador faz referência? Platão, depois de ter exposto sobre o que seria a
justiça nela mesma (443 b), no final do Livro IV, comenta ainda em seguida que
140
VEGETTI, Mario. In: Platon. La Repubblica. Vol. VI, Libri VIII-IX. Bibliopolis. pp. 14 a 16.
126
são tantas as formas de constituição como são as de almas, e que cinco são as
formas de constituição como também são cinco as de alma. Dito isso, passa ao
Livro V, informando, logo no início, que uma das formas é boa e correta, mas as
demais são más e incorretas. Mas Adimanto interfere na exposição de Sócrates
querendo saber da relação das mulheres e dos filhos na cidade (449 c), e nesse
momento o problema apontado no Livro IV fica esquecido até a chegada do Livro
VIII, como chama a atenção o comentador supracitado. Esse é um caminho
possível de ser seguido no corpo teórico da obra.
Além dessa possível trilha, Vegetti percebe muito bem a complexa
arquitetura de A República e expõe que esse não é o único caminho que pode ser
trilhado na obra, é um dos possíveis para quem vai se dirigir ao Livro VIII. Para o
comentador, a obra pode ser dividida em blocos de estudo: um primeiro pode
tratar sobre a justiça (dikaiosyne) nos Livros I ao V; um segundo percurso pode
ser feito nos Livros I V e VIII e IX, sobre a justiça e a injustiça; um terceiro pode
ser os Livros VI e VII, que trataria do Filósofo; um quarto, do Livro I ao IX, que
discorre sobre a unificação da filosofia e o poder político e por fim o Livro X que
se apresenta como um apêndice da obra. Esses são caminhos trilháveis dentro
da estrutura arquitetônica de A República, o que não significa serem somente
esses os caminhos.
Bravo,
141
em sua análise sobre o prazer na filosofia de Platão, aceitando
a tese de I. M. Crombie
142
de que o prazer está relacionado ao tema unificador de
A República, vai ler o Livro I como um primeiro momento em que o filósofo, ao
demonstrar o diálogo de Céfalo, faz a separação entre os desejos corpóreos e os
da conversa e depois retoma o problema no Livro VIII e continua no IX. Essa é
141
BRAVO, Francisco. As ambigüidades do prazer. Trad. Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2009. P
389 a 409.
142
Op. Cit.p. 86.
127
uma outra porta de entrada para o diálogo: a questão do prazer e suas
perturbações.
Bravo delineia três momentos em que essa questão é apresentada na obra.
Explana o comentador que:
O receio com relação aos prazeres do corpo mantém-se no livro
primeiro, embora este seja expresso por Céfalo, um representante
da moral tradicional. Numa conversa sobre a relação entre prazer e
velhice, esse personagem ancião distingue entre os prazeres dos
sentidos, enfraquecidos nele, e os prazeres da conversação, que
sente aumentar na velhice... O problema da avaliação do prazer na
vida do homem reaparece brevemente no livro VI, no momento em
que Platão tenta uma análise da forma do bem... Porém, embora o
problema da avaliação do prazer esteja sempre presente na
República, apenas no livro IX ele se torna realmente dominante.
Esse livro é, por outro lado, ‘o único lugar do diálogo em que o
hedonismo é tópico direto da discussão’.
O que ele se pergunta é se Platão pode ou não ser considerado um
hedonista, levando em conta o exposto em A República. Pelo que podemos
verificar na obra aceitado-se a tese de Crombie, de que o prazer é o seu tema
unificador, cremos que Platão, consciente de que o prazer é parte constituinte do
homem, procura trabalha-lo de forma a ser harmonizado, quer na cidade, quer em
cada um. É um caminho a ser seguido e que abre, ainda, novas possibilidades de
interpretação da obra.
Um outro comentador que nos chama a atenção é Jaeger
143
ao tratar das
formas de Estado do Livro VIII como patologia da alma humana. Para ele, como
é sabido, o estudo da polis em Platão é sempre a relação entre cidade e alma
humana. Valendo-se, para tanto, de linguagem figurada para expor essa relação,
143
Op. Cit. pp. 924 a 964.
128
descreve a polis como sendo um suporte ou uma folha em branco onde as formas
se apresentam enquanto modelos de constituições, e são na verdade os
contornos feitos pela alma de cada um dos habitantes. Poderíamos dizer, de
forma bem mais simplificada, que a cidade é a superfície onde se projeta a
imagem do homem particular. Nessa relação cidade e homem, a cidade platônica
tem uma única e verdadeira missão segundo o comentador: a de educar os seus
cidadãos. Então, para Jaeger, se há alguma deformidade na cidade, deve-se
verificar o problema na educação estabelecida nessa polis. Comenta que:
Mas o fato de ser possível, como a experiência histórica ensina, sair
deste círculo estritamente delimitado e passar a outra forma de
Estado, quer dizer que a causa disto não se deve procurar em
nenhum tipo de circunstâncias exteriores, mas antes no interior do
Homem, que muda a sua ‘estrutura anímica’. Encarada por este
prisma, a teoria platônica das formas de Estado representa uma
patologia da personalidade humana. Quem vir na hexis normal do
Homem um imputar à educação a culpa que lhe cabe em cada um
dos desvios surgidos em relação à norma. Mesmo que todos os
habitantes de um Estado se desviem da norma num sentido
determinado, não é na natureza, que por si pende para o bem, mas
na educação, que se deverá procurar a causa do mal. Por
conseguinte, a teoria das formas do Estado deve ser considerada ao
mesmo tempo uma patologia da educação.
144
Se o problema da mudança das formas de governo se encontra na
educação, então poderemos percorrer A República como um tratado de
educação. Esse é um caminho a ser trilhado também.
Além das deficiências na educação que também contribuem para a
degeneração das cidades, existe outro fator para essa mudança nas formas de
governo. Com relação a esse outro fator, o comentador expõe que a totalidade da
144
Op. Cit. p. 929.
129
teoria de Platão sobre a mudança das formas de governo é também uma teoria
sobre a stasis
145
e que a causa da degenerescência da natureza humana e,
consequentemente, da cidade, é a mesma para os animais e as plantas. Segundo
indica Jaeger, é a dos fatores conhecidos como phora e aphoria,
146
termos
utilizados para falar “das boas e das más colheitas”, diz ele - como é feito em A
República –, cujo sentido pode ser melhor apreendido ao sabermos que tais
termos faziam parte da vida dos agricultores, agora aplicados à vida dos
cidadãos.
Jaeger parece ter razão, e a referência aos termos phora e aphoria
encontra-se em 546 a, quando Platão trata do início da degeneração dos
governos, do que é ou não é bem plantado e colhido, nesse caso:
... não só para as plantas da terra, mas também para os animais que
sobre ela vivem, período de fecundidade e de esterilidade de
alma e de corpo,quando uma revolução completa fecha para espécie
os limites dos seus círculos, que o curtos para os que têm a vida
breve, e longos para os que têm dilatada.
147
O que percebemos é que, de acordo com o interesse ou ângulo de
interpretação, cada comentador segue um caminho distinto na República, o que é
sempre possível devido à própria complexidade da obra. Assim, consideramos
possíveis todas as informações até aqui levantadas pelos comentadores, não
obstante ser a informação de Jaeger a que no momento mais nos interessa, uma
vez que, ao aceitar os significados dos termos phora e aphoria como pertencentes
ao contexto dos agricultores gregos entendemos ser necessário considerar tais
145
Segundo Bailly, στάσις, significa revolta, divisão e estar em discórdia, nesse caso específico é a alma em
conflito de suas partes.
146
Φορά quer dizer, fertilidade, fecundidade, produção abundante; άφορία seria a infecundidade, esterilidade,
perdas.
147
ού µόνον φυτοις έγγείοις, άλλά καί έν έπιγείοις ζώοις φορά καί άφορία ψυχης τε καί σωµάτων
γίγνονται, όταν περιτροπαί έκάστοις κύκλων περιφοράς ξυνάπτωσι, βραχυδίοις µέν βραχυπόρους,
έναντίοις δέ έναντίας. (546 a).
130
saberes para melhor apreendermos o sentido que Platão confere à passagem 546
a - c.
Os saberes sobre boas e más colheitas certamente decorrem da observação
dos ciclos das safras, tipos de solo e resultado dos plantios. Platão transpõe isso,
sob a forma de metáfora, para a alma humana como o solo e sua semeadura feita
pela educação, de um lado, e pela natureza do solo, clima, estações, para o que
não depende do educar, ou seja, do que determinam as Musas ou a Natureza
(ainda 546 a c). Notemos que Platão faz experimentos com o homem e formas
possíveis de viver em koinonia e lembremos que, no Livro II (376 a e seg.), ao
tratar da natureza do filósofo guardião, ele pergunta: “... de que maneira eles
serão criados e educados?”
148
, pergunta que, na sequência, deve indicar o modo
como educar esse guardião ou, dizendo de uma forma figurativa, como plantar
uma árvore para que dela se possa colher bons frutos. Bons frutos, nesse caso,
diz respeito aos homens justos, assim como maus frutos correspondem a homens
injustos.
em 377 b, no diálogo entre Sócrates e Adimanto, encontramos a seguinte
passagem:
Tu sabes que em qualquer empreendimento, o mais trabalhoso é o
começo, sobretudo para quem for novo e tenro? Pois é, sobretudo
nessa altura que se é moldado, e se enterra a marca que alguém
queira imprimir em cada um.
149
Nessa metáfora, a alma não deixa de ser um tipo de solo primeiro onde
podem ser cultivadas certas sementes, ou desenhados certos esquemas.
148
Θρέψονται δέ δή ήµιν ουτοι καί παιδευθήσονται τίνα τρόπον; (376 d)
149
Ούκυν οισθ’ ότι άρχή παντός έργου µέγιστον, άλλως τε καί νέω καί άπαλω / ότωουν;
µάλιστα γάρ δή τότε πλάττεται, καί ένδύεται τύπος όν άν τις βούληται ένσηµήνασθαι έκάστω.
(377b)
131
Construir, assim, uma Politeia ou formar uma alma é possível se houver a clareza
de um solo primeiro como o agricultor ou o escultor têm um terreno onde exercem
sua boa técnica ou o mármore para esculpir. Em se tratando da alma e da paideia
humana, claro que não será uma técnica somente que deverá moldá-la. Trata-se,
de uma paideia como plantio, o que Jaeger reforça.
No estudo do Livro VIII, portanto, além desse percurso platônico
experimental, que trilhamos sob indicação de Jaeger, terá que ser investigado
onde e como reencontrar, integral ou parcialmente, as teses e opiniões expostas
pelos personagens do Livro I ( Céfalo, Polemarco, Trasímaco, Glauco e
Adimanto), nas formas de governos.
Em 544 d e, é dito que o cinco as formas de governo e são cinco as
disposições da alma de cada um. Entre as cinco, Platão, havia examinado a
boa e justa: a Aristocracia. Agora, avalia as quatro formas consideradas como
decadentes com relação à melhor e as apresenta como viciosas: a constituição
cretense e dos lacedemônios, nomeada Timocracia ou Timarchia, seguida da
Oligarquia, depois Democracia e, por fim, da Tirania.
A forma de Politeia aristocrática é, como já foi dito, a considerada boa e justa
por levar em conta as diferenças entre as potências da alma de cada um, além de
ter o Justo, o Belo e o Bem como finalidade. É ela a melhor porque a justiça como
harmonia (boa proporção e medida) está presente, o que serve de parâmetro para
pensar as outras formas de governo e sua educação. Então, o desafio para a
reflexão será mostrar por que na cidade justa transformação para uma cidade
injusta (ou menos justa). Voltando à importante passagem antes apontada 546
a-, os termos phora e aphoria são assim articulados:
Difícil é, por certo, que possa alterar-se uma cidade de tal maneira
organizada; porém como tudo o que nasce está sujeito à corrupção,
132
nem uma constituição como essa permanecerá para sempre, mas
de dissolver-se. A sua dissolução será do seguinte modo: não
para as plantas da terra, mas também para os animais que sobre ela
vivem, períodos de fecundidade e de esterilidade de alma e de
corpo, quando uma revolução completa fecha para cada espécie os
limites dos seus círculos, que são curtos para os que têm a vida
breve, e longa para os que a têm longa.
150
Vemos que Platão traça o plano da physis que também diz respeito à alma
humana (que é physis) e, em consequência, a physis incide primeiramente nas
formas das ações humanas (cada um e governos): “Tudo que nasce está sujeito à
corrupção” é uma fórmula inexorável. Em outro plano, essa passagem nos leva a
pensar no Mito do Político
151
(268 e e seg.), no qual Platão utiliza certos recursos
de linguagem para expor sobre a revolução cíclica do cosmo e de seus seres.
Pelo mito, a revolução dos astros, ou melhor, dos movimentos, depende da
vontade divina, sendo que eles os astros - estão submetidos a um ciclo de
temporalidade maior de duração, o que não acontece com os outros seres. Entre
os “outros seres” estão os homens que, igualmente em função da vontade divina,
também cumprem seus ciclos, desde a primeira geração, da chamada raça de
ouro, quando ainda nasciam da terra e por ela eram nutridos em abundância, até
chegar ao que são hoje: mesma espécie, submetidos às transformações do corpo
e tendo que providenciar o próprio sustento. A única raça que não muda,
permanecendo sempre a mesma, é a raça dos deuses, e todas as demais estão
sujeitas à corrupção do tempo.
150
Χαλεπον µέν κινηθηναι πόλιν οϋτω ξυστασαν˙ άλλ’ έπεί γενοµένω παντι φθορά έστιν, ούδ’ ή
τοιαύτη ξύστασις τόν άπαντα µενει χρόνον, άλλά λυθήσεται. Λύσις δέ ήδε˙ ού µόνον φυτοις έγγείοις,
άλλά καί έν έπιγείοις ζώοις φορά καί άφορία ψυχης τε καί σωµάτων γίγνονται, όταν περιτροπαί
έκάστοις κύκλων περιφοράς ξυνάπτωσι, βραχυδιοις µέν βραχυπόρους, έναντίοις δέ έναντίας. (546a)
151
PLATÃO. Político. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Ed. Abril Cultural. 1972. Coleção
os pensadores.
133
Sem querer explicar o mito do Político, bastante complexo, vemos que
uma relação com a República quando, em 546 a do Livro VIII, as Musas revelam:
tudo cumpre ciclos de geração e corrupção: as plantas, os animais, os homens e
as formas de organização engendradas pelos últimos, porém o que é bem
calculado permanece mais no seu ser, e o que é mal calculado degenera
rapidamente.
Ouvindo as Musas, em 546 b-c, dizem elas que:
Quanto aos ciclos de fertilidade e infecundidade da vossa raça,
mesmo que sejam sábios os que formastes como chefe da cidade,
eles não conseguirão discerni-los, ainda que combinem razão e
sensibilidade. Deixarão, ao contrário, que eles passem a gerar filhos
em momentos em que não deveriam. Para os de geração divina é
um número perfeito que delimita o período, mas para os de geração
humana é o primeiro número em que as multiplicações dominantes e
dominadas, apresentando três termos e quatro limites, tornando-se
iguais ou desiguais, aumentando ou diminuindo, fazendo ver que
todas as coisas são correspondentes e racionais uma em relação às
outras.
152
Platão fala em cidade dentro da physis, diferente de como hoje pensamos
“cidade” como construção puramente humana, histórica, afastada da natureza. Na
verdade, a physis é para Platão a própria alma cósmica, de modo que, ao falar
sobre governos ou sobre a formação das almas dos cidadãos e de cada um, está
152
Γένους δέ ύµετέρου εύγονίας τε καί άφορίας, καίπερ| οντες σοφοι, ους ηγεµονας πολεως
επαιδεύσασθε, ούδέν µαλλον λογισµω µετ’ αίσθήσεως τεύξονται, άλλά πάρεισιν αύτούς καί γεννήσουσι
παιδάς ποτε ού δέον. Έστι δέ θείω µέν γεννητω περίοδος ήν άριθµός περιλαµβάνει τέλειος,
άνθρωπείω δέ έν ω πρώτω αύξήσεις δυνάµεναί τε καί δυναστευόµεναι, τρεις άποστάσεις, τέτταρας δέ
όρους λαβαυσαι όµοιούντων τε καί άνοµοιούντων καί αύξόντων καί φθινόντων, πάντα προσήγορα καί
/ ρητά πρός άλληλα άπέφηναν˙ (546b-c)
134
indicando que tudo obedece ao modo de ser do cosmos que é zoo empsychon,
153
como uma ordem vivente e inteligente.
Como Platão dissera em 545 d, toda constituição muda por virtude daquele
que detém o poder, quando, em seu próprio seio, origina-se a sedição (stasis).
Como salienta sobre a stasis, em 491 b-c, elementos corruptores da alma e a
excelência não permanece, conforme a referência acima apontada: da coragem
se vai à força física contra os demais, da temperança à intemperança e assim por
diante, em função das transformações do tempo, da educação da natureza da
cidade e dos homens.
No modelo justo, considerado em parentesco com o divino, quando Platão
evoca as Musas (como vimos em 545e) para mostrar que no cosmos cálculos
que são perfeitos e, no entanto, outros que podem degener, aponta para o fato de
que um ocorre, na cidade, primeiro na alma dos governantes e se prolonga na
educação das crianças nas famílias. É interessante notar que, para explicar a
difícil passagem do melhor para o pior, ele tenha que recorrer às Musas, usando
do mito, pois, ao que tudo indica, não explicação possível pelo logos
argumentativo para tal degeneração inexorável.
A primeira transformação é indicada por Platão pela via da geração em
discursos míticos: os governantes gerarão filhos fora do tempo determinado, o
que cria a primeira perda do melhor modelo educativo, isto é, a desobediência do
que foi estabelecido na cidade justa como lei de geração, os melhores sempre
gerem filhos entre si. Quebrada tal regra, nada há a fazer quanto à degeneração.
Mas, o que querem dizer as Musas com a ideia de que um tempo determinado
153
Ver. GAZOLLA, Rachel. Do olhar, do Amor e da Beleza: um estudo sobre o estético em Platão Fedro e
Timeu. In: Estudos Platônicos, Org. Marcelo Perine,São Paulo: Ed. Loyola, 2009.
135
para gênese dos melhores? Aqui lembramos, ainda, da colocação feita no Político
e a roda de geração e degeneração.
No Livro V de A República, este assunto está presente. Platão discorre
sobre o ciclo de procriação ao expor sobre as mulheres e a geração dos filhos da
cidade (459a- 461461e), e estabelece regras para os casamentos: entre as regras
aquela que submete os homens ditos nobres a buscarem as mulheres da
mesma estirpe, de modo que se unam semelhantes com semelhantes e não seja
quebrada a linhagem nobre para uma cidade. Segundo Jaeger,
154
essa idéia de
seleção dos melhores era corrente entre os gregos que descendiam da antiga
nobreza e das suas concepções; porém, por outro lado, os que conheciam o
trabalho agrícola (e os fatores imponderáveis da phora e da aphoria),
compreendiam os ciclos naturais e necessidades de uma boa fertilização para
melhor colheita, mesmo que houvesse parte do trabalho submetido à natureza.
Se focalizarmos os guardiãos este ângulo, sem dúvida, Platão pensa na
sociedade de estilo espartano, onde homens e mulheres mais nobres podiam
gerar filhos saudáveis e fortes para a cidade, mantendo-os semelhantes entre si.
Mas sabemos que os governantes serão filósofos e não guerreiros espartanos, e
o filósofo se afastara do modelo espartano, e apesar de não criticá-lo, colocá-o
no lugar que lhe cabe na sua cidade justa. Assim, no Livro V, 461 a-b, são dados
os porquês da degeneração da educação da aristocracia para a timocracia
exposta no Livro VIII. Aponta, ainda, que os filhos gerados fora do tempo
estabelecido pela cidade não receberão a devida proteção, nem as preces dos
sacerdotes, e os que nascem da relação ordenada no tempo estarão à margem
da possibilidade dos excessos. Não deixa de ser realmente “misteriosa” tal
154
Op. Cit. p. 924 e seg.
136
colocação sobre a ordem do tempo no Livro V, retomada no Livro VIII pelas
Musas.
Ainda sobre o processo degenerativo das raças, se a junção de noivos fora
de ocasião ou de diferentes estamentos fazem nascer crianças, por natureza, mal
constituídas ou deformadas animicamente, a pergunta que se impõe é: até onde a
educação pode mudar isso?
2. As mudanças educacionais nas formas de governo
Como se a passagem da Aristocracia para a Timocracia
155
? Platão
havia informado em 546 a, pelo discurso das Musas, das coisas que nascem, e
não permanecem eternamente, mas seguem os períodos de fecundidade (phora)
e de esterilidade (aphoria). Sinais disso emergem. Quando essa modificação tem
início, primeiramente surge na cidade o desinteresse pelas artes das Musas e
pela ginástica, o que resultará em homens menos cultos. Em seguida, ocorre a
separação (conforme 545 d - e) entre governantes e guardiões.
156
Dessa discórdia (stasis) na Aristocracia, são criados dois tipos de homens:
um formado pelo ferro e bronze, que se voltará para o lucro, posses de terras e
casas (547 b), e outro formado pelo ouro e prata. Este último tipo as Musas
dotaram de maior riqueza de alma e conservaram algo da antiga excelência. Após
o conflito, os dois tipos estabelecem entre si um acordo para que possam viver de
forma a conservarem os interesses de cada grupo, emergindo, assim, uma nova
cidade dividida em dois tipos de homens, dois grupos sociais. Assim temos uma
155
Τιµοκρατία τιµαρχίαν (nessa cidade o poder (χρατέω) é apresentado no sentido de ser forte, ser senhor,
dominar, mandar, vencer, triunfar, tudo em nome da honra. Essa é uma característica de homens belicosos.
156
Ver: CALLATAY, Godefroid de. Il numero geométrico. In. La Repubblica. Trad. Mario Vegetti. Op. Cit.
Pp. 169 a 187.
137
nova cidade dividida em dois grupos: é a Timocracia. Nela, os interesses são
duplos: uns têm avidez de riquezas (548 a) e outros, impetuosos e dominantes,
terão amor pelas disputas e honrarias (548 c). Essa constituição estimulará nos
seus cidadãos a veneração pelos seus chefes e a aversão dos guerreiros pelos
agricultores, o que se dá pela forma cindida de como são educados.
Não se deve esquecer de que o governo será dos timocratas, impetuosos e
guerreiros, mas logo tudo o que sai da confraria guerreira será visto como inferior
e de, alguma forma, subalterno a ela. Sendo treinados para a guerra, esses
timocratas terão aversão às artes manuais, pois foram educados para o combate
(548 b – c).
A Timocracia é, portanto, um governo que tem em sua forma a mistura do
bem e do mal (548 c d), e é pertinente aos que m impetuosidade como
característica dominante e desejo de guerra. Pelo que podemos observar, essa
constituição traz nela uma dualidade de valores, o que se mostrará importante
para a mudança da timocracia em oligarquia. Trata-se do grupo ligado aos bens
materiais, ao comércio, às propriedades, ao saber acumulativo de rendas e que
não guerreiam. Assim, no próprio corpo da sociedade timocrática, já está a
semente da oligarquia em desenvolvimento.
*
A passagem da Timocracia para a Oligarquia se no seguinte contexto
(549 a b): na juventude, os homens, levados pelo ímpeto guerreiro, desprezam
a riqueza, mas, na medida em que se tornam mais velhos, apreciam cada vez
mais o acúmulo dos bens, o que os leva à avareza, pois querem sempre acumular
mais e mais. Por não possuir arete, o homem timocrático perde parte de sua
capacidade de raciocínio, o que confirma não a degeneração por natureza
138
como pela educação, também neste ponto, e pela educação imitam os outros que
têm riqueza e desintegram parte de sua antiga natureza que podia dispensá-las.
Que modelo tem o jovem timocrático para seguir esse tipo de governo?
O primeiro modelo é a imagem do pai (549 c), considerado um homem de
bem e ainda comedido no gosto de riquezas e na avareza, mas que habita uma
polis corrompida quanto a tal gosto. Ao lado do pai, mas no outro polo, tem a
imagem da mãe como uma mulher ambiciosa, que demonstra desprezo pela
forma de vida do marido e mostra ao filho que se sente diminuída entre as outras
mulheres pela falta de ambição do companheiro, bem como por ele ser indiferente
à forma de vida com bens crematísticos, dos outros homens da cidade.
Ora, tal fato parece que nos reporta à necessidade de Glauco, no Livro II,
quando este pede a Sócrates uma cidade com riqueza de bens úteis. Quanto ao
fato de Platão colocar a responsabilidade dessa imagem da mulher como a
“corruptora”, não nos é possível alcançar o motivo, talvez pela experiência
empírica que se tem à época do estudo do feminino.
Além dos pais, o jovem terá os criados a inflamá-lo para que seja mais
arrojado e ambicioso que o pai, e na cidade, o jovem e escuta coisas
semelhantes (550 a) às que e ouve em sua casa. Na educação, portanto, tem-
se o jovem em conflito diante de referências diversas. Os homens assim
educados não são necessariamente maus por natureza, mas sim por terem
educação, conflituosa, com logoi diferentes, e acabam por adotarem o modo de
ser mais geral, ou seja, dos plutocratas. Assim, a imagem do pai deixa de
representar, facilmente, o modelo a seguir.
Os novos valores estabelecidos na constituição oligárquica estão, portanto,
bem calçados no modelo materno, dos servos e da maioria dos grupos da cidade
139
que têm a mesma estrutura familiar. Se pensarmos na cidade justa, como foi
exposto, (377 c), as mulheres são as responsáveis pela formação primária das
crianças, contam mitos de origem e formam o solo para os laços posteriores de
philia. Aqui, não é assim, e não podemos, como dissemos, avaliar o que Platão
pensa sobre o porquê da fácil degeneração feminina quanto à arete.
157
Explicitada essa transição, trata-se de compreender como se apresenta o
governo oligárquico. Em 550 c, d, é dito que tal governo “... tem sua base no
censo de propriedade, na qual os ricos governam, mas os pobres, não”.
158
Conservando parte da Timocracia quanto ao desejo de acúmulo de riquezas
excessivas (hiperploutos), acrescenta-se o desejo de gastar em coisas que não
são normalmente oferecidas pela cidade, não o contempladas pelas leis, o que
leva à desobediência. É uma cidade onde os homens são concorrentes entre si
com base na posse de riquezas e, quantos mais cultuam as posses, menos
exercitam as virtudes. Comenta Platão (551 a b): “De amantes das competições
e das honras que eram, por fim eles se tornam amantes do lucro e avaros;
elogiam e admiram os ricos e os conduzem ao poder, mas desprezam o pobre.”
159
Dessa reflexão sobre a oligarquia e o desejo exacerbado pela riqueza,
lembremos
160
o que acontece no período em que se instala a conhecida “Tirania
dos Trinta” em Atenas. Foi um governo de uma oligarquia sedenta de riqueza e de
poder, o que resultou em ações como o extermínio da família de Céfalo, conforme
apontamos no início desta investigação. Agem os tiranos como zangãos cheios
157
No Timeu, Platão aponta a inferioridade da raça feminina, o que também surpreende quando comparamos
sua cidade justa no Livro V e o papel das mulheres.
158
Τήν άπό τιµηµάτων, ήν δ’ έγώ, ώολιτείαν, έν ή οί µέν πλούσιοι άρχουσιν, πένητι | δέ ού µέτεστιν
άρχης.
159
Άντί δή φιλονίκων καί φιλοτίµων άνδρων φιλοχηµτισταί καί φιλοχρήµατοι τελευτωντες έγένοντο,
καί τόν µέν πλούσιον έπαινουσίν τε καί θαυµάζουσι καί είς τάς άρχάς άγουσι, τόν δέ πένητα
άτιµάζουσι. (551 a – b)
160
Ver. MOSSÉ. Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. João B. da Costa. 2ª Ed. Brasília:
UnB,1982; LÍSIAS. Discurso XII: Conta Eratóstenes.
140
de fúrias usando de seus ferrões, conforme descreve Platão sobre os homens de
posse e prestígio na tirania. Além da experiência ateniense, também é a riqueza
que deseja Giges no mito, como demonstra Platão (359 c a 360 c), pois o pastor,
aparentemente tranquilo em sua vida, tem internamente o desejo de ser o senhor,
foi criada a condição para a realização do desejo do pastor pelo anel, e ele o usou
como queria.
O que temos na democracia são, assim, homens carregando em si vários
desejos que devem ser realizados. Numa linguagem figurada, seriam sementes
que a qualquer momento podem germinar, basta que haja condição necessária
para desabrocharem. O solo, nesse caso, é a própria alma e as condições sociais
que vão criando novos tipos ou modelos de homens nela. No caso da Oligarquia,
cria dois tipos: o rico e o pobre, como dissemos. E como se originam os pobres
nessa forma de governo? Deve-se responderolhando a formação dos ricos. Qual
é a natureza predominante no homem oligárquico? É a avareza. Mais o que é a
avareza (philargiria)? É o amor pela riqueza. Esse então é o sentimento que move
os homens na cidade oligárquica. O problema é que nem todos terão condição de
acúmulo e posse dos considerados bens de riqueza, mas, para se ter legitimidade
nessa forma de relação entre ricos e pobres, a cidade estabelece lei (551 b), para
classificar os seus cidadãos de acordo com os bens acumulados e é estipulada
certa cota de bens para que se possa participar nas deliberações do governo.
Nesse caso, uma minoria manda e uma maioria fica excluída do governo por
serem considerados pobres, por não terem a quantidade de bens estipulados
para participarem do governo. Essa maioria é desprezada por não ter riquezas.
Essa é uma cidade que Platão afirma ser capaz dos maiores males
(552 a-b):
141
A possibilidade de vendas de todos os seus bens e adquirir os de
outrem, e de, depois de alienar, se habitar na cidade, sem se tomar
parte em nenhuma das suas atividades, sem ser comerciante, nem
artífice, cavaleiro ou hoplita, mas etiquetado como pobre e
indigente.
161
Dividida entre ricos e pobres, não terá harmonia, mas todos conspirarão
entre si. Por ser uma cidade onde falta instrução, criará nela malfeitores,
resultado da educação defeituosa adotada nessa constituição, pois, como se
sabe, a Oligarquia é uma politeia que cultua a riqueza excessiva e não tem
qualquer temperança, e a libertinagem passa a existir nela. Afirma Platão (555 d
e) que: “É assim que, nas oligarquias, descurando e consentindo na libertinagem,
algumas vezes reduziram à penúria homens de estofo não destituído de
nobreza.”
162
Assim, a própria oligarquia cria leis que possibilitam aos homens
insaciáveis conseguirem dinheiro e levarem, qualquer um, mesmo os ricos, a um
estado de penúria, que é possibilitada a venda de todos os bens. Desse modo,
a prática do homem oligárquico (556 a) é a de submeter outros homens ao poder
de seu dinheiro. Aos antigos ricos a situação de penúria avilta, seja por toma
emprestado dinheiro, seja por ter que vender suas propriedades. Logo, a cidade
fica plena de homens endividados, desonrados e cheios de ódios. São esses
sentimentos que acarretarão a revolução dentro da cidade e que farão surgir a
Democracia. Mais uma vez, o germe da sedição instaura-se no seio do próprio
governo.
161
Τό έξειναι πάντα τά αύτου άποδόσθαι, καί άλλω κτήσασθαι τά τούτου, καί άποδόµενον οίκειν έν
τη πόλει µηδέν όντα των της πόλεως µερων, µήτε χρηµατιστήν µήτε δηµιουργόν µήτε ίππέα µήτε
όπλίτην, άλλά πένητα καί άπορον κεκληµένον. (552 a- b)
162
Παραµελουντες δή έν ταις όλιγαρχίαις καί έφιέντες άκολασταίνειν ούκ άγεννεις ένίοτε άντρώπους
πένητας ήνάγκασαν γενέσθαι. (555 d – e)
142
Além dessa relação ditada pela posse, os jovens (555 b-c) levarão uma
vida de dissipação, de ociosidade, inativos quer fisicamente, quer espiritualmente.
Serão indolentes para resistir aos prazeres e aos desgostos, e com pais
preocupados em acumular bens, sem outra preocupação.
3. Democracia e Liberdade
Em 556 d, os pobres se aperceberão da dificuldade que têm os ricos:
Com tal preparação, quando se encontram a par uns dos outros,
governantes ou governados, ou nas viagens, e eu em quaisquer
outras funções comuns, como uma embaixada, expedição militar,
em que são companheiros de navegação ou campanha, ou quando
se observam uns aos outros no meio dos próprios perigos, nessa
luta, os pobres não são de modo algum desprezados pelos ricos,
mas muitas vezes um homem pobre, emaciado, tostado pelo sol,
postado no combate ao lado de um rico, criado à sombra, possuidor
de superabundantes carnes, se o vir com dificuldade em respirar e
cheio de embaraço, acaso não te parece que ele pensará que é
devido à covardia deles que tais pessoas prosperam, e, quando se
encontram a s, proclamarão uns para os outros: “Estes homens
estão à nossa mercê, pois que nada valem?
163
Os pobres tornar-se-ão, facilmente, conscientes de sua força física de que,
num confronto, sairão vitoriosos, pois os ricos são fracos e covardes para a luta,
dependentes da força física dos pobres porque necessitam dela para produzir
suas riquezas. Tais ideias tomarão corpo entre eles que estarão prontos para uma
163
Ούτω δή παρεσκευασµένοι όταν παραδάλλωσιν άλλήλοις οί τε άρχοντες καί οί άρχόµενοι
ή έν όδων πορείαις έν άλλαις τισί κοινωνίαις, ή κατά θεωρίας ή κατά στρατείας, ή ξύµπλοι
γγνόµενοι ή σστρατιωται, ή καί έν αύτοις τοις κινδύνοις | άλλήλους θεώµενοι µηδαµη ταύτη
καταφρονωνται οί πένητες ύπό των πλουσίων, άλλά πολλάκις ίσχνός άνήρ πένης, ήλιωµένος,
παραταχθείς έν µάχη πλουσίω έσκιατροφηκότι, πολλάς έχοντι σάρκας άλλοτρίας, ίδη άσθµατός τε καί
άπορίας µεστόν, άρ’ οίει αύτόν ούχ ήγςθαι κακία τη σφετέρα πλουτειν τούς τοιούτους, καί
άλλον άλλω παραγγέλλειν, όταν ίδία ξυγγίγνωνται, ότι “Άνδρες ήµέτεροι· | είσί γάρ ούδέν;”
(556 c – d).
143
rebelião. É desse movimento de sedição no seio da Oligarquia que surgirá (557 a)
a Democracia. Os pobres pegarão em armas e farão sua revolução. Vitoriosos,
matarão uns, expulsarão outros e partilharão igualmente dos cargos de governo,
magistraturas e daqueles que serão tirados à sorte, sem qualquer critério que leve
em conta a excelência. Assim a Democracia te duas possibilidades para se
estabelecer: ou é pela armas, ou pelo medo dos ricos em relação aos pobres.
*
Assim, o sentimento que aflora nos cidadãos com características
democráticas é a liberdade (eleutheria), no sentido de fazer o que se quer, mas
não é este o sentido propriamente platônico, como veremos adiante. Em 562 d,
ele afirma:
Creio que, quando uma cidade de governo democrático, sedenta de
liberdade, tem à sua frente maus escanções e se embriaga além da
medida com vinho sem mistura, se os governantes não são
bastantes afáveis e não lhe proporcionam grande liberdade, ela os
castiga acusando-os de impuros e oligarcas.
164
Vemos que a liberdade, aqui, está atrelada à permissividade para que os
cidadãos realizem seus desejos de forma particular. Nisso consiste o sentido da
“liberdade” exposto por Platão na polis democrática: um modo de agir onde cada
um fará o que melhor lhe aprouver. Tal permissividade fatalmente levará os
cidadãos à perda dos limites do desejar, e o uso do logos para bem escolher não
estará adequado senão a criar condições para o desfrute de tudo que a cidade
puder oferecer a cada um.
164
Όταν, οιµαι, δηµοκρατουµένη πόλις έλευθερίας δίψήσασα κακων οίνοχόων προστατούντων
τύχη, |καί πορρωτέρω του δέντος άκράτου αύτης µεθυσθη, τούς άρχοντας δή, άν µή πάνυ
πραοι ώσι καί πολλήν παρέχωσι τήν έλευθερίαν, κολάζει αίτιωµένη ώς µιαρούς τε καί
όλιγαρχικούς. (562 d)
144
No caso da cidade, as resoluções em conjunto serão problemáticas, como
percebemos. Ao demonstrar a transformação de uma forma de governo, para
outra e as perdas e manutenções que ocorrem, Platão indica que a potência
anímica que poderia cuidar de cada um e, portanto, do todo, é como uma
semente que gradualmente se modifica em sua qualidade genética e não deixa de
ser a semente. No caso da Democracia, a polis terá completado a transição
relacionada ao governo antecedente quando a alma do democrata, possuída por
desejos não necessários, cria o perfil da cidade de todos.
Platão diz, em 558 e, que desejos “necessários” e “não necessários” e
explica que os necessários o aqueles que fazem parte da nossa própria
natureza, por exemplo, alimentar-se dentro dos limites e segundo o necessário à
manutenção da saúde e bem-estar físicos, beber para mitigar a sede, satisfazer
as necessidades fisiológicas, etc. os não necessários são aqueles dos quais
podemos nos libertar, se assim quisermos (559 c), pois são, em geral, voltados
para a dissipação, por exemplo, desejos de lucro (que, em certa medida, são úteis
à produção), desejos eróticos exacerbados, pois é possível abster-se de
satisfazê-los nesse grau que não nos deixa viver.
Se a mudança de um governo para outro é exteriorizada na medida em que
os desejos da alma da cidade gradualmente mudam o foco quanto aos objetos
desejados, no homem democrático (560 a), quando do início das instituições de
uma cidade desse tipo, resta ainda certo pudor oligárquico (da forma
antecedente), mas cederá ao fixar-se a nova ordem. Permanece o democrático
destituído dos valores remanescentes e a transição se completa. Quando essa
ordem se instala na alma, ela espera o preenchimento de uma multidão de
desejos, e os hábitos melhores, a busca mínima da virtude, não tem lugar:
145
desejos numerosos e potentes, não necessários, dispersam o agir quer pela
quantidade, quer pela qualidade que possuem.
Com respeito a esse ponto, Bravo,
165
em seu estudo sobre “As
ambigüidades do prazer”, aponta que Platão, em A República, pensa os prazeres
em bons e maus, sendo que os bons, classificados como superiores, são os que
levam a virtudes e à filosofia. os “maus” vinculam-se aos prazeres do corpo,
considerados perturbadores na vida do homem reflexivo. Para o filósofo, é
preciso, portanto, buscar o que o intérprete diz serem os bons prazeres
provenientes de “bons desejos”. Ora, parte dos nomeados bons desejos também
é apontada por Céfalo no Livro I, como apresentamos no início desta
investigação. Ele fala da tranquilidade de sua alma ao não necessitar mais, como
na juventude, das delícias do amor, do vinho, da boa mesa e de outros
entretenimentos do mesmo gênero. É exatamente esse “bom senso de falo
que parece interessar Platão ao negar completamente ao democrata esse tipo de
“sabedoria” do velho falo.
Ao invés das aretai, coragem, sophrosyne, sabedoria e justiça, instalam-se
no democrático a insolência, a anarquia, a prodigalidade e a desfaçatez (560 e).
São esses modos de ser e agir que, agora, formam a Democracia e são
ironicamente elogiados como belos em 557c, tanto quanto pode ser bela a
variedade de uma colcha de retalhos. A insolência no lugar da boa educação, a
anarquia como “liberdade”, a prodigalidade como generosidade e a desfaçatez
como coragem: perde-se, assim, a noção das diferenças entre os desejos
considerados bons e perversos e os necessários e não necessários. Como expõe
o filósofo (561 c):
165
Op. Cit. pp. 389 a 397.
146
(...) Se alguém lhe diz que uns prazeres vêm de desejos belos e
bons, outros vêm dos maus e que a uns deve dedicar-se prestando-
lhes honras, a outros deve refrear e subjugar, tudo isso ele nega
com um movimento de cabeça e afirma que todos são iguais e
merecem honras iguais.
166
É assim que os homens democráticos viverão: um dia embriagando-se e
ouvindo flauta, outro bebendo água e emagrecendo, outro fazendo ginástica ou
entregue à ociosidade, sem se dedicar a nada. Trata-se de um homem que não
tem fixidez alguma, que vaga conforme os desejos afloram. É nessa forma de
governo que encontraremos as espécies mais variadas, e, como afirma Platão em
557 c, a constituição de uma tal cidade “...poderia ser a mais bela das
constituições”, mas sua liberdade emerge bem mais como licenciosidade,
permissividade, como foi dito.
Uma questão: será que esse é o “governo do mais forte”? Alguns
intérpretes pensam que sim, e, nessa linha interpretativa, aproximam, ao perfil do
democrata, Trasímaco e sua tese no Livro I. É algo discutível, certamente. Se
olharmos para a história de Atenas,
167
no seu percurso democrático, encontramos
a cidade vivendo como se estivesse submetida aos desejos epitimeticos”, em
descontrole, principalmente no período da guerra do Peloponeso, como é
recolhido por C. Mossé::
Não apenas os costumes tradicionais no que tange às sepulturas
dos mortos foram abandonadas, mas toda a vida moral achava-se
transtornada. Em vista dessas bruscas mudanças ricos que
morriam de repente, pobres que se enriqueciam subitamente com os
166
καλων τε καί άγαθων έπιθυµιων ήδοναί, αί δέ των πονηρων, καί τάς µέν χρή έπιτηδεύειν καί
τιµαν, τάς δέ κολάζειν τε καί δουλουσθαι, άλλ’ έν πασι τούτοις άνανεύει τε καί όµοίας φησίν άπάσας
ειναι καί τιµητέας έξ ίσου. (561 c)
167
Ver. MOSSÉ, Claude. Atenas. A história de uma democracia. Trad. João B. Da Costa.Brasília : UnB,
1982.
147
bens dos mortos procuram-se os lucros e os prazeres imediatos,
uma vez que a vida e as riquezas eram igualmente efêmeras.
168
Parece que os fatos históricos deram a Platão a oportunidade de criar
esse perfil empírico na sua democracia do Livro VIII. No entanto, é algo discutível
porque a justiça como poder dos mais fortes não necessariamente indica um
governo de licenciosidade, mas, como quis dizer Trasímaco que tratava do ângulo
das leis e de seu poder de constrangimento, alguns poderiam ter o perfil
democrático e querer tudo o que desejam, como ocorre com o Anel de Giges. É
uma discussão que fica em aberto.
Diante desse quadro, resta-nos investigar a noção de liberdade na filosofia
de Platão. Em se tratando de tema extremamente complexo e que extrapola A
República, apresentamos uma reflexão introdutória a respeito. Evidentemente,
está claro que a liberdade para Platão não tem o sentido de poder falar e fazer o
que se quer singularmente, dentro de um conjunto de cidadãos.
Vê-se que a liberdade na Democracia é bem mais licenciosidade. O que
pode ser eleutheria platônica? Não levemos em conta, aqui, o sentido da noção
segundo ideologias mais recentes
169
, pois seríamos anacrônicos. Com tal
cuidado, a comentadora Janine Chanteur, ao tratar dos desejos na cidade de
Platão, mais especificamente na democracia, comenta que:
É necessário nos resguardar ao estudar o pensamento de Platão, de
projetar o que no momento atual, entendemos por democracia,
quando fazemos referência aos regimes liberais da Europa ocidental
ou da América. Têm derivados, através da Revolução francesa,
correntes de pensamento muito diferentes: se podemos encontrar o
pensamento de Hobbes, Locke, Rousseau e os teóricos do século
XVIII, dos temas e dos postulados comuns, não se pode assimilar
168
Ib. Idem. p.54.
169
Ver. GAZOLLA, Rachel. Grécia Antiga : ensaios sobre o pensar mítico e filosófico. In prelo.
148
uns aos outros e a definição de nossos regimes hesitando
geralmente a se reconhecer a interpretação que nós damos de uma
ou de outro de suas fontes. (...) A abordagem da democracia
ateniense, à partir de nossa experiência de democracia moderna, é
preciso nos resguardar de ver esta à distancia original daquela, a
qual foi lembrada como um modelo equivocado pelos pensadores do
século XVIII.
170
Levando em conta esse comentário, pois corrobora nossa postura
metodológica, a primeira questão que nos colocamos é quanto ao significado
semântico de liberdade, como foi estudado por Benveniste
171
ao tratar dos
estatutos sociais, mais precisamente do homem livre na sociedade indo-européia.
Expõe o estudioso que:
Em latim e grego, o homem livre, eleudheros, se define
positivamente por sua pertença a um “crescimento”, a um “tronco”;
prova-o em latim a designação dos “filhos” (bem nascidos) como
liberi; nascer de boa cepa e ser livre é a mesma coisa.
172
O que nos chama a atenção é a ideia de que a liberdade está atrelada ao
pertencimento de alguém a um lugar, a um tronco comum. Algo dessa noção
Platão recolhe ao criar sua cidade justa. Lembremos do Mito das Raças, uma
mentira nobre que terá como função estabelecer entre os cidadãos a crença em
sua origem comum, no caso uma origem divina que os faz irmãos. Notemos que a
ideia de tronco comum legitima a cidadania ao criar laços de philia e koinonia para
todos, na cidade ideal.
Na mesma perspectiva, Fustel de Coulanges,
173
no seu estudo sobre as
cidades antigas, e ao tratar da relação entre o cidadão e o estrangeiro, comenta
170
CHANTEUR, Janine. Platon, Le désir et la cité. Paris : Sirey Craig, pp.27 – 28.
171
BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des instituicions indo-européennes, V. I, Paris : Les
Éditions de Minuit, 1969.
172
Ib. idem. p. 377.
173
COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Trad. Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
149
que as cidades antigas tinham uma forma muito particular de identificação dos
seus habitantes: uma delas era a própria cidade e sua localização; a outra, eram
os cultos e atividades da cidade, somente praticado pelos nascidos em famílias
de origem local. Nesse caso, os homens ditos “livres” o os bem-nascidos e
praticantes dos cultos de origem. Assim, o estrangeiro, como não originário, não
deixava de praticar cultos em determinada cidade, como não era considerado
livre, mas um “meteco” ou “bárbaro”. A eleutheria, portanto, está atrelada à ideia
de pertencimento, e é este que determina o modo de viver das pessoas em um
lugar, que as faz “livres” e não escravas. F. de Coulanges comenta:
A cidade havia sido fundada sobre uma religião e constituída como
uma igreja. Daí sua força; daí também a sua onipotência e império
absoluto exercidos sobre seus membros. Em sociedade organizada
sobre tais bases, a liberdade individual não podia existir. O cidadão
estava, em todas as suas coisas, submetido sem reserva alguma à
cidade; pertencia-lhe inteiramente.
174
O atrelamento polis e polites acompanha a ideia de liberdade no sentido de
pertencimento a uma raça, a grega, que formou as cidades. Bárbaros e metecos,
(e os realmente escravos de guerra) não pertenciam à raça grega, de modo que
apesar de não serem ditos escravos, não são gregos, logo, não são totalmente
“livres” com relação à cidadania, como sabemos. Apesar de não se tratar das
fratrias, mas da raça, do génos grego nas poleis, a diferença o é tão
fundamental com o período das fratrias.
Na República, vemos que uma especificidade platônica: ele não fala em
liberdade para os cidadãos justos mas da philia, pois pelo Mito das Raças a
noção de liberdade não lhe é necessária: se de um lado todos os cidadãos são
174
Ib. Idem. PP. 246 – 247.
150
irmãos, a quem reserva ele o estatuto de “ser livre”? Como veremos adiante, será
ao filósofo, daí o sentido muito particular dessa noção na doutrina platônica.
Como nota Robert Muller,
175
muitas dificuldades com relação ao
entendimento do sentido de liberdade na cultura grega. Em certos momentos,
Platão afirma a liberdade como soberania de alma que cada um deverá ter sobre
si mesmo e, em outros, pensará a liberdade próxima à philia, se se quiser, de
pertencimento a um núcleo comum, a uma irmandade. Ora, como apontamos
anteriormente, a “liberdade” na democracia (sobre a soberania de si,
propriamente platônica, exporemos um pouco mais adiante). Vejamos, agora,
alguns trechos nos quais Platão apresenta um dos sentidos apontados o de
“pertencimento”.
Sendo a liberdade, enquanto pertencimento, a indicação do nascimento a
partir de um solo comum, seguir leis nascidas da e na própria cidade é a primeira
forma de se pensar a liberdade (junto à philia). No Mito das Raças, lemos tal
possibilidade de ligação entre pertencimento – liberdade – philia.
... tinham sido moldados e criados no interior da terra, tanto eles,
como as suas armas e o restante do equipamento; e que, depois de
eles estarem completamente forjados, a terra, como sua mãe que
era, os deu à luz, e que agora devem cuidar do lugar em que se
encontram como de uma mãe e ama, e defendê-las, se alguém for
contra ela, e considerar os outros cidadãos como irmãos, nascidos
da terra. (414 d-e)
Esse é o ideal de pertencimento que tinham os helenos (raça grega). E o
mesmo à época das poleis, como dissemos. Notemos, ainda, que, no Livro V,
Platão, ao tratar da guerra entre amigos e inimigos, expõe o diálogo entre
Sócrates e Glauco (470 e):
175
MULLER, Robert. La doctrine platonicienne de la liberté. Paris : Librairieb Philosophique, 1997.p. 47.
151
- A cidade que fundas não vai ser grega?
- Deve sê-la.
- Então não serão bons e civilizados?
- Muitíssimo, sem dúvida.
- Mas não serão amigos dos Gregos? Não considerarão a Grécia
como sua e não participarão nas cerimônias religiosas dos outros.
- Sim, e em alto grau.
176
Ou seja: essa consciência de origem e localização era algo fundamental
para os gregos, e Platão recolhe esse ideal. A cidade fundada em logos aos
seus cidadãos uma origem comum ao modo grego arcaico e, ao mesmo tempo,
proclama sua notável diferença com toda a história até então: em 433 b: viver de
acordo com a potência anímica de cada um, mantendo as diferenças e ligando
tudo pela amizade que “torna” os cidadãos “semelhantes” (homoioi).
É ainda R. Muller
177
quem chama a atenção para algo importante ao nosso
tema. Para ele a noção de liberdade leva a observar, pelos estudos dos textos da
época, que a vida dos gregos atrelou também a ela o sentido de “independência”
e “autodeterminação”. Revela ele que:
... a idéia de que a éleutheria ou libertas tem a ver com a ‘vontade’, e
se caracteriza por uma espécie de soberania do individuo ou da
vontade, figura não somente em autores mais tardios como Cícero e
Epíteto, mas é um lugar comum ao tempo de Platão e
Aristóteles.
178
Aparece o segundo significado de liberdade, enquanto autarquia de si, uma
prerrogativa que Platão atribui exclusivamente ao filósofo. No Mito das Raças, por
exemplo, são os governantes-filósofos aqueles da raça de ouro, e, no Livro VII,
176
ήν σύ πόλιν οίκίζεις, ούχ Έλληνίς έσται; - ∆ει γ’ αύτήν, έφη. - Ούκουν καί άγαθοί τε καί ήµεροι
έσονται; - Σφόδρα γε. - Άλλ` ού φιλέλληνες; ούδέ οίκείαν τήν Έλλάδα ήγήσονται, ούδέ κοινωνήσουσιν
ώνπερ οί άλλοι ίερων; - Καί σφόδρα γε. ( 470 e)
177
MULLER, Robert. La doctrine platonicienne de la liberté. Paris : Librairieb Philosophique, 1997. P.47.
178
Ib. Idem. P. 46.
152
que não veremos aqui, trata-se do filósofo. A liberdade é agora voltada para a
alma, para a condição de auto-suficiência no pensar, escolher, agir, para trilhar o
caminho da virtude. Essa é a grande novidade platônica. Sócrates apontava
esse “cuidado de si” ao seguir o “Conhece-te a ti mesmo” délfico e Platão reflete
a regra de ouro e a expande nos seus diáogos.
179
Nenhum ponto de A República em suas divisões toca no núcleo que
pretende Platão ao dizer sobre a autarchéia como conhecimento de si, do cuidado
de si, de cada um e transcendendo as formas de governo apresentadas. Não
podemos dizer que o governante-filósofo seja, porque é governante, autárquico.
Mas podemos dizer que todo autárquico pode ser governante, pois será
necessariamente justo para si a para os outros. Só o filósofo é capaz de conhecer
sua própria alma e saber como se comportam suas potências
180
. Então, se for
educar o outro, também saberá guiá-lo. Essa reflexão foi feita por R. Gazolla
181
,
em escrito sobre a identidade e liberdade na antiguidade clássica. Como nota a
intérprete:
... o fundamento para pensar a liberdade de cada um não precisa ser
o grupo ou a cidade, apesar de a liberdade xercer-se no conjunto
social, mas é, agora, o anímico invisível de cada um, o saber, o
sentir, o desejar imediato ou não, e a possibilidade de a alma
equilibrar seus desejos favorecendo cada potência nas relações com
outros homens. Isso significa ser livre. Essa concepção de alma
abre-se em duas vertentes, a particular e a universal, e apesar de
formalmente tratar-se da mesma alma em todos os homens, e dado
o fato de que nascem diferentes por natureza quanto ao modo de
exercitar as potências, se pode adivinhar que os significados de
179
Por exemplo no Alcibíades.
180
De fato a alma possui essa função de deliberação, mas não é a única, pois, como expusemos, ela é
constituída de três dynámeis. Todavia, caberá à potência logística submeter as outras duas a uma “disciplina”,
criando a medida para harmonizá-las entre si. Isso é o que Platão chama de sophrosýne.
181
GAZOLLA, Rachel. Grécia antiga: ensaios sobre o pensar mítico e filosófico. In prelo.
153
liberdade e identidade expressos pela filosofia platônica (e não
por ela) estão no bom uso do logos em relação a si e ao outro, e na
posse de si mesmo, na medida do possível.
182
Lembremos, ainda, que Platão destaca sobre o governante-filósofo (443 d -
444 a) que:
Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste gênero, ao que
parece, exceto que não diz respeito à atividade externa do homem,
mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele e o que lhe
pertence, sem consentir que qualquer das partes da alma se
dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas nas outras, mas
depois de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de si
mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes,
exatamente como se fossem três termos numa proporção musical, o
mais baixo, o mais alto e o intermédio, e outros quaisquer que acaso
existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os de muitos
que eram, numa perfeita unidade, temperante e harmoniosa, -
então se ocupe ( se é que se ocupa) ou da aquisição de riquezas, ou
dos cuidados com o corpo, ou de política ou de contratos
particulares, entendendo em todos estes casos e chamando justa e
bela a ação que mantenha e aperfeiçoe estes hábitos, e apelidando
de sabedoria a ciência que preside a esta ação; ao passo que
denominará de injusta a ação que os dissolve a cada passo, e
ignorância a opinião que a ela preside.
183
182
Id. Idem.
183
Τό δέ γε άληθές, τοιουτόν µέν τι ήν, ώς έοικεν, ή δικαιοσύνη, άλλ´ ού περί τήν | έξω πραξιν των
αύτου, άλλά περί τήν έντός, ώς άληθως περί έαυτόν καί τά έαυτου, µή έάσαντα τάλλότρια πράττειν
έκαστον έν αύτω µηδέ πολυπραγµονειν πρός άλληλα τά έν τη ψυχη γένη, άλλά τω όντι τά οίκεια εύ
θέµενον καί άρξαντα αύτόν αύτου καί κοσµήσαντα καί φίλον γενόµενον έαυτω καί ξυναρµόσαντα
τρία όντα, ώσπερ όρους τρεις άρµονίας άτεχνως, νεάτης τε καί ύπάτης καί µέσης, καί εί | άλλα άττα
µεταξύ τυγχάνει όντα, πάντα ταυτα ξυνδήσαντα καί παντάπασιν ένα γενόµενον έκ πολλων, σώφρονα
καί ήρµοσµένον, ούτω δή πράττειν ήδη, έάν τι πράττη ή περί χρηµάτων κτησιν ή περί σώµατος
θεραπείαν ή καί πολιτικόν τι ή περί τά ίδια ξυµδόλαια, έν πασι τούτοις ήγούµενον καί όνοµάζοντα
δικαίαν µέν καί καλήν πραξιν ή άν ταύτην την έξιν σωζη τε καί συναπεργάζηται, σοφίαν δέ τήν
έπιστατουσαν ταύτη τη πράξει έπιστήµην, άδικον δέ πραξιν || η άν άεί ταύτην λύη, άµαθίαν δέ τήν
ταύτη αύ έπιστατουσαν δόξαν. (443 d – 444 a)
154
Evidencia-se um exercício constante para o governante que precisa ser
autárquico para ser justo: saber lidar com três potências diferentes da alma e
manter uma justa medida para todas. Ser livre, nesse sentido, é criar a condição
de auto-suficiência que vai caracterizar a vida do homem virtuoso que, por sua
vez, será sábio e feliz. Essa foi a consideração feita por Sócrates no final do Livro
I, quando, sem saber o que seria a justiça, pouco saberia informar sobre quem
seria mais feliz: o homem justo ou injusto. Sabemos, então, que com a noção de
liberdade especificamente platônica, a justiça e o cuidado de si estão juntos.
155
IV - Considerações finais
156
No percurso para compreender a justiça nela mesma e sua relação com o
homem feliz, vamos percebendo Platão detalhar a justiça em dois momentos:
primeiro enquanto uma ordem estabelecida na cidade que marca a forma de ser e
de viver de um determinado povo. Segundo, quando observa a própria natureza
(physis) do homem, a alma, e sua expressão na polis. Para que pudesse fazer tal
reflexão, parte do que ele tem empiricamente constituído na cidade sobre o ideal
de justiça para pensar sobre ela, como vimos. Quando inicia o percurso reflexivo,
depara-se imediatamente com duas situações que possibilitam ou não uma ordem
justa na cidade: uma mais imediata que podemos constatar é a educação na
criação dos modelos de governo e, mais silenciosamente, ele aponta uma
segunda que é a própria physis determinando também a ordem e a desordem nos
seres. Isso já foi exposto nos conceitos da phora e da aphoria, que vai interferindo
na ordem da cidade.
Temos, assim, esses dois fatores, educação e physis, determinando a
justiça e a injustiça, ordem e desordem. Resta-nos perguntar: até que ponto a
educação pode assegurar ou não uma ordem na cidade? Pelo que podemos
constatar neste percurso, quando Platão funda a cidade justa, automaticamente
procura interferir na physis, entendida neste caso como alma, na sua forma de
deliberação e não na sua constituição, pois isso independe dos homens. Platão,
ao que averiguamos, olha para a ordem do cosmos e verifica que existem
movimentos construíndo e destruindo, mas que mantem a medida, para cada
coisa ser e vir-a-ser. Esse movimento também faz parte da forma de ser dos
homens.
Ora, onde entra então a educação enquanto um elemento mantenedor da
medida? Nas nossas verificações, a educação, quando bem adequada, consegue
157
manter, dentro de certos limites, um modelo de governo e cidadãos considerados
justos que constituem o corpo governamental, para isso foi necessário dar um
fundamento que possibilitasse a unidade, mesmo com as diferenças existentes.
Como ele mesmo observou em 546 a, tudo que nasce está sujeito à corrupção.
Nesse caso nem mesmo a educação é capaz de barrar o movimento da physis,
pois a phora e a aphoria se dão independente da vontade dos homens, e existem
ciclos que se cumprem. O homem e suas constituições não ficam fora desse
processo, pois, uma vez a physis altera a ordem interna, o reflexo na alma
automaticamente será percebido na cidade. A educação não pode interferir, mas
auxiia o que há de melhor em cada um a percistir. Expondo isso de forma
figurativa: podemos cultivar belas flores, para que elas permaneçam mais belas
mais tempo; podemos interferir no solo e na genética da planta, para isso, mas,
mesmo assim, ela vai cumprir um ciclo: nasce, cresce e morre. Como o solo e a
semente podem esgotar seus nutrientes, as flores ficam feias e perdem a
tonalidade e tonicidade, o perfume etc. Da mesma forma é a alma humana:
cumpre ciclos que podem ser, por determinado tempo, o de criar condições
maravilhosas de vida em todos os sentidos, e a educação ajuda, como foi dito, a
melhorar o que está potencialmente nela, mas pode, também, entrar em um
ciclo de esterilidade. Isso vale para o desenvolvimento não de cada um, mas
da humanidade, para as ciências, como para qualquer outra atividade intelectiva.
Dessa forma, somos levados a afirmar que Platão, além de ser um grande
observador da physis, compreendeu profundamente esse processo silencioso que
se dá na alma humana, cujo reflexo é por nós conhecido na noção de justiça.
158
V – Referência Bibliográfica
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