Tal enunciação, embora estejamos denominando como uma expressão da
raiva, da violência, não deseja medir forças com o logos, mas tenta escapar às
trapaças que propõem a inscrição do feminino dentro da dinâmica do mesmo, do
único, do igual, maniqueisticamente. A partir desta questão, buscaremos investigar a
narrativa que deseja escapar das representações inferiorizantes (que nada fazem além
de manifestar a aceitação submissa aos padrões culturais das significações
dominantes).
Nesse sentido, o mal-estar, a raiva presente no discurso feminino, são as
passagens metafóricas da escrita feminina, tal como o bordado, que cresce ao
(re)tecer-se nos entremeios dos furos dos tecidos. Interessante pensar que, na esfera
mítica, no que concerne à relação entre a mulher e a tessitura, há mitos que se
destacam pela evidência que o fiar, o bordar, o tecer e o costurar são utilizados pelas
figuras femininas como um meio de determinar destinos de outras figuras, da
humanidade, ou do seu próprio futuro. Entre esses mitos, destacamos os de Penélope
1
,
Aracne
2
, Ariadne
3
, Parcas (ou Moiras)
4
e o de Filomela
5
. Em todos estes exemplos, a
mulher borda ou tece não apenas como distração, para ocupar um tempo livre ou
porque essa é a única opção que lhe resta. O trabalho por ela produzido é um meio que
1
Quando Ulisses parte para a guerra de Tróia, pede a Penélope que não se case enquanto ele não voltar. Durante três anos, consegue esquivar-se
aos pretendentes, afirmando que só se decidiria por um deles quando terminasse de tecer uma mortalha para Laertes, pai de Ulisses. Penélope tece
durante o dia, e à noite desmancha o trabalho, nunca terminando-o. Espera por Ulisses por vinte anos, tornando-se o símbolo da fidelidade conjugal,
no dizer de Brandão (1991, p. 256). Ver também o verbete “Penélope”, de Denise Dummith, em BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos
literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/Editora da Universidade, 2007. p. 512-518.
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Aracne também está ligada à arte de tecer e bordar, responsável por belas tapeçarias que retratam os amores dos deuses. Vangloria-se de serem
seus trabalhos superiores aos de Minerva (Atenas), por isso, audaciosa, desafia-a para uma disputa. Irritada com a superioridade da mortal, a Deusa
lhe golpeia a cabeça com a lançadeira. Aracne não quer sobreviver a esta afronta: enforca-se. Minerva a metamorfoseia em aranha, que continua a fiar
e a tecer por toda a eternidade. (BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987)
3 Apaixonada por Teseu, quando este vai a Creta para lutar contra o Minotauro, Ariadne dá ao herói ateniense um novelo de fio que lhe possibilita sair
do labirinto.
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As Parcas (nome latino das Moiras) recebem nomes que correspondem às suas funções: Cloto, a fiandeira, tece o fio da vida de todos os seres
humanos, desde o nascimento; Láquesis, a fixadora, determina-lhe o tamanho e enrola o fio, estabelecendo a qualidade de vida que cabe a cada um;
Átropos, a irremovível, corta-o, quando a vida que representa chega ao fim. Deusas do Destino, elas presidem os três momentos culminantes da vida:
o nascimento, o matrimônio e a morte. São representadas como velhas ou, mais freqüentemente, como mulheres adultas de aspecto severo.
(BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987)
5 Filomela é filha do rei de Atenas e irmã de Procne, casada com Tereu, rei da Trácia. Apaixonado por Filomela, Tereu violenta-a e, em seguida, corta-
lhe a língua, para que ela não o delate. A jovem, por meio de um bordado, revela o acontecido. Procne, revoltada, mata Ítis, o filho que nascera de sua
união com Tereu; cose-o e serve-o ao marido. Quando este toma conhecimento do crime, sai em perseguição das duas irmãs. Alcança-as em Dáulis,
na Fócida. Os deuses, invocados pelas jovens, transformam Filomela em rouxinol e Procne em andorinha. (BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia
Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987)