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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM, CONTEXTOS E APRENDIZAGEM
MARIA CRISTINA FERNANDES ROBAZKIEVICZ
AQUISIÇÃO DA ESCRITA:
O PERCURSO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
São Leopoldo
2007
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2
MARIA CRISTINA FERNANDES ROBAZKIEVICZ
AQUISIÇÃO DA ESCRITA:
O PERCURSO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Dissertação de mestrado, apresentada à banca
Examinadora, como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre em Lingüística Aplicada.
Orientadora: Prof. Dra. Ana Maria M. Guimarães
São Leopoldo
2007
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
R629a Robazkievicz, Maria Cristina Fernandes
Aquisição da escrita: o percurso entre alfabetização e letramento
/ por Maria Cristina Fernandes Robazkievcz. – 2007.
143 f. : il.; 30cm.
Dissertação (mestrado) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada, 2007.
“Orientação: Profª. Drª. Ana Maria M. Guimarães, Ciências da
Comunicação”.
1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Construção da escrita. I. Título.
CDU 372.41/.45
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MARIA CRISTINA FERNANDES ROBAZKIEVICZ
AQUISIÇÃO DA ESCRITA:
O PERCURSO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Dissertação de mestrado, apresentada à banca
Examinadora, como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre em Lingüística Aplicada.
Aprovada em março de 2007
Banca examinadora
_________________________________________________________
Profa. Dra. Ana Maria M. Guimarães
Orientadora
_________________________________________________________
Examinador
_________________________________________________________
Examinador
5
DEDICATÓRIA
A minha mãe e ao meu pai, pessoas fundamentais na minha vida, hoje guardadas na
lembrança: minha mãe, apesar de ter freqüentado a escola por pouco tempo, soube
cultivar o ambiente letrado, valorizando a escola em nossa casa e incentivando os
hábitos da leitura e da escrita; meu pai, valorizou o hábito de ler e o praticou na
varanda de nossa casa.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, e ao Espírito Santo, por ter-me iluminado na grande caminhada que foi este
mestrado, por ter possibilitado a realização de mais este sonho em minha vida.
Ao meu marido, Orlei, pelo apoio que recebi e pela compreensão nas tantas vezes
em que ouviu “preciso estudar”...
A minha cunhada Célia, pelas importantes dicas, sem as quais jamais teria chegado
aqui.
À Profa. Dra. Ana Maria Mattos Guimarães, pela sua paciência, suas leituras e sua
competência.
À minha colega de mestrado Luciana, e seus pais Edgar e Ereny, pelo carinho e
acolhida em sua casa.
A todos os colegas de mestrado, pelo companheirismo.
À minha irmã Eloíza, que nunca mediu esforços para me auxiliar.
À minha família, pelo acompanhamento, viagem a viagem, nesses dois anos e pelos
auxílios sempre presentes.
7
RESUMO
Nesta dissertação, investiga-se, a partir do acompanhamento de duas turmas de 1ª
série, e de entrevistas e conversas informais com suas docentes, o processo de construção da
língua escrita, visto sob o ângulo da alfabetização e também do letramento. Para a distinção
entre alfabetização e letramento, foram utilizados conceitos de Soares (2001,2002), Bortolotto
(1998), Matêncio (1994), Terzi (2002), Kleiman (1998), Gontijo (2002), Rojo (1998). Para
uma melhor compreensão do cenário e dos participantes, faz-se a descrição do ambiente
escolar, da formação das professoras, do grau de letramento dos pais, além da analise á
atuação das professoras em seu trabalho. Para a análise do processo de construção da escrita,
foram coletados textos resultantes de atividades realizadas pelas crianças dentro do contexto
da sala de aula, ao longo de um ano. Dessa forma, foi possível acompanhar esse processo em
cada aluno e também verificar se as atividades de sala de aula visavam ao letramento ou
somente à decodificação das palavras. Na análise dos textos produzidos pelas crianças, foram
utilizadas as hipóteses da construção da escrita desenvolvidas por Ferreiro e Teberosky
(1985). Procurou-se também realizar uma análise qualitativa dos textos desses alunos,
tomando-se como amostra os últimos textos produzidos por quatro alunos (dois de cada
turma). Para tal fim, foram utilizadas categorias de análise que permitiram verificar se, além
de alfabetizadas, essas crianças estavam sendo letradas. A análise revelou que o foco da
escola ainda é a alfabetização, em seu sentido estrito, uma vez que o uso social da escrita é
pouco valorizado.
O estudo realizado pode contribuir tanto para a área da Lingüística Aplicada, quanto
para a área da Educação: para a Lingüística Aplicada, por investigar a aquisição da língua
escrita, possibilitando assim a reflexão da importância da Lingüística para o professor
alfabetizador; para a Educação, pela abertura de caminhos para uma reflexão sobre a
importância de alfabetizar letrando.
Palavras-chave: Alfabetização, Letramento, Construção da escrita, Agir docente,
Trabalho representado.
8
ABSTRACT
This study is about the process of the written language, taken as a literacy
(alfabetização) and as a literacy (letramento)
1
process. This is done by following the work of
two groups of 1st grades, by interviews, and informal speeches with the teachers of these
groups of students. The difference between literacy (alfabetização) and literacy (letramento) is
defined by the definitions of Soares (2001), Bortolotto (1998), Matêncio (1994), Terzi (2002),
Kleiman (1998), Gontijo (2002), Rojo (1998) and Cardoso (2002). For a better understanding
of the setting and the participants, it is done a description of the educational environment, of
the teachers educational background, of the level of students parents literacy (letramento) and
also the analysis of the teachers performance on their work. There were collected texts to
analyse the way the children have constructed their writing by doing activities within the
classroom environment, throughout a year. In such case, it was possible to follow the
construction of the written language by each student and also to verify if the activities done in
the classroom had the goal of making the students literate (letrados/as) or of making them just
able to decode the words. On the analysis of the texts that were produced by the students, it
have been used the hypotheses related to the writing construction, developed by Ferreiro and
Teberovsky (1985). It was taken a sample of the last texts produced by four students (two
from each of the groups), to analyse the quality of their texts. For such analysis, there were
used categories which allowed verifying whether the students were, besides literate
(alfabetizados/as), also literate (letrados/as). This analysis revealed that the school’s target is
still literacy (alfabetização), since the social use of the writing ability is fairly valued.
This study can contribute to Applied Linguistics studies as well as to studies related to
Education: concerning to Applied Linguistics studies, by investigating the acquisition of the
written language, allowing a reflection about the importance of Linguistics for the teacher
who participates of the literacy process, and as regarding to Education, this study makes room
for a discussion about the importance of making the process of becoming literate
(alfabetizado/a).
_____________
1
In Portuguese, the process of become literate is defined by two categories: alfabetização and letramento. While
the first is related to the acquisition of the ability of reading and writing, the second is related to the social
process of using this ability for the communication purpose. Here, I use the terms literacy (alfabetização) and
literacy (letramento) to distinguish both.
9
Key-words: literacy (alfabetização), literacy (letramento), construction of the written
language, teacher’s performance, represented work.
10
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Escrita indiferenciada..............................................................................................25
Figura 2 – Diferenciação da escrita..........................................................................................27
Figura 3 – Hipótese silábica .....................................................................................................28
Figura 4 – Hipótese silábico-alfabética ....................................................................................29
Figura 5 – Hipótese alfabética.................................................................................................. 30
Figura 6 – Atividade produzida pela professora B...................................................................48
11
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Alunos participantes da pesquisa............................................................................ 36
Tabela 2 – Turma A – Acompanhamento da construção da escrita até o nível alfabético....... 59
Tabela 3 – Turma B – Acompanhamento da construção da escrita até o nível alfabético.......60
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................13
2 BASE TEÓRICA.................................................................................................................16
2.1 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO ........................................................................... 16
2.2 CONCEPÇÃO DE VYGOTSKY ...................................................................................... 20
2.3 HIPÓTESES DE FERREIRO E TEBEROSKY ................................................................22
3 CENÁRIO DA PESQUISA ................................................................................................32
3.1 AÇÕES JUNTO AOS ALUNOS ....................................................................................... 34
3.1.2 Seleção de textos ............................................................................................................35
3.2 A COLETA EFETIVADA ................................................................................................. 37
3.3 AÇÕES JUNTO AS DOCENTES .....................................................................................41
3.4 SELEÇÃO DE TEXTOS PARA ANÁLISE...................................................................... 41
4 A VISÃO DAS DOCENTES...............................................................................................46
5 O ACOMPANHAMENTO DA AQUISIÇÃO DA ESCRITA PELOS ALUNOS.........59
5.1 O PERCURSO DOS DOIS GRUPOS ...............................................................................59
5.2 O PERCURSO DE QUATRO ALUNOS ATÉ A AQUISIÇÃO DA ESCRITA
ALFABÉTICA. ........................................................................................................................ 61
5.2.1 O percurso de G.L. (Turma A).....................................................................................61
5.2.2 O percurso de J.E. (Turma A)......................................................................................62
5.2.3 O percurso de G.R. (Turma B).....................................................................................63
5.2.4 O percurso de R.S. (Turma B) .....................................................................................64
5.3 FORMULAÇÃO DE CATEGORIAS................................................................................65
5.3.1 ANÁLISE DA PRODUÇÃO TEXTUAL.......................................................................67
5.3.1.1 O percurso de G.L. .......................................................................................................68
5.3.1.2 O percurso de J.E..........................................................................................................70
5.3.1.3 O percurso de G.R. .......................................................................................................72
5.3.1.4 O percurso de R.S.........................................................................................................73
5.3.2 Alfabetizados ou letrados? Possíveis interpretações ..................................................74
6 CONCLUSÃO......................................................................................................................75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................78
ANEXOS .................................................................................................................................80
ANEXO A - ENTREVISTA COM A PROFESSORA “A” .................................................... 81
ANEXO B - ENTREVISTA COM A PROFESSORA “B”..................................................... 83
ANEXO C - ENTREVISTA COM A PROFESSORA “A2”................................................... 85
ANEXO D – AS PRODUÇÕES DE G.L.............................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
ANEXO E – AS PRODUÇÕES DE J.E. .............................E
RRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
ANEXO F – AS PRODUÇÕES DE G.R. ............................E
RRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
ANEXO G – AS PRODUÇÕES DE R.S. ............................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
ANEXO H – PESQUISA SOBRE O GRAU DE ESCOLARIDADE DOS PAIS,
PROFISSÃO E RENDA MENSAL DA FAMÍLIA ............ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
13
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem o objetivo de acompanhar o processo de construção da escrita
de duas turmas de uma escola de ensino fundamental do interior do estado do Paraná, de
forma a, dentro dos caminhos percorridos, estabelecer relações entre os sujeitos, alunos, e os
mediadores de sua inserção no mundo da escrita. O interesse pela pesquisa nasceu no início
de minha carreira no magistério, na cidade de Paula Freitas, interior do Paraná. Minha
primeira turma, de pré-escolares, sempre mostrou grande interesse para aprender a ler e a
escrever. Na época, o planejamento da escola tinha o objetivo de “preparar” o aluno para a
primeira série. Fazíamos apenas “trabalhinhos” (colagem, linhas, nome, massinhas de
modelar) em folhas soltas, sem dar oportunidades para a criança ler e escrever. Como um
período preparatório para a primeira série, o direcionamento das atividades partia da
concepção de que a criança entrava na escola sem saber nada, que o professor tinha que
começar do zero. Passei quatro anos trabalhando com o pré-escolar e, a cada ano, o cenário se
repetia, ou seja, crianças ansiosas para aprender a ler e escrever, e um trabalho desvinculado
dessa motivação.
Meu passo seguinte como professora foi com um grupo de quarta-série do Ensino
Fundamental, quando verifiquei que uma série de erros ortográficos persistia em alguns
alunos. Chamava-me a atenção que esse fenômeno se limitava a alguns alunos, pois outros já
o haviam superado. A mesma situação se repetia nas séries seguintes. Procurei sempre com os
alunos que apresentavam problemas de ortografia, observar se tinham algo em comum, se
vinham de famílias letradas ou não, se o nível socioeconômico era diverso. Em todas as
oportunidades, constatei que havia crianças de todos os níveis, o que me fez chegar à hipótese
de que a maneira como essas crianças estavam sendo alfabetizadas poderia ser a causa do
problema.
A procura de respostas a essa hipótese trouxe-me ao Programa de Pós-Graduação em
Lingüística Aplicada da UNISINOS, em que apresentei o anteprojeto de dissertação intitulado
“A escrita infantil, erro ou construção?”. Instada a refletir sobre o anteprojeto, notei que o
enfoque original do erro estava equivocado. Muitas leituras, sobretudo de Vygotsky,
ajudaram-me a entender a aquisição da leitura e da escrita como um processo, mediado por
um outro, normalmente o professor da classe, ou mesmo o próprio colega, o que me levou a
re-formulação daquele anteprojeto.
14
Optei por observar as duas turmas de primeira série da escola onde há dez anos
trabalho, escola de ensino fundamental da rede pública do estado do Paraná, da cidade de
Paula Freitas. Essa opção foi um grande desafio, pois reentrei no universo institucional da
escola para verificar, não como docente, mas como observadora-pesquisadora, como ocorre o
processo de aquisição da língua escrita e como é encaminhado o aluno no seu processo de
alfabetização e letramento.
Meu objetivo principal, no trabalho, é verificar diferenças no ensino-aprendizagem
desses alunos no que toca ao processo de aquisição de leitura e escrita. Eram dois grupos
bastante homogêneos, pois todos freqüentaram o pré-escolar da mesma escola, conviviam no
mesmo meio social, suas professoras dispunham dos mesmos materiais didáticos, preparavam
suas aulas juntas (existia comunicação entre elas). Mesmo assim o desempenho desses alunos
com relação à escrita, ao final do ano letivo, apresentou diferenças. Para concluir a respeito de
que fatores poderiam contribuir para essas diferenças, procurei verificar se as professoras se
preocupavam em abrir espaço para uma interlocução real, reconhecendo e trabalhando as
interações como momento de produção de linguagem e lugar de constituição de sujeitos
enunciadores; se utilizavam escrita nos usos reais, tendo por quem escrever e para quem
escrever; se percebiam no texto escrito a unidade básica do processo de
alfabetização/letramento.
Ao mesmo tempo, acompanhei a evolução do processo de aquisição da escrita das
crianças e a metodologia adotada pelas professoras.
Para este trabalho tomei como suporte teórico as noções de alfabetização e letramento
sob o ponto de vista de Soares (2001, 2002), Bortolotto (1998), Matêncio (1994), Terzi
(2002), Kleiman (1998), Gontijo (2002), Rojo (1998), nas áreas de aprendizagem de leitura e
escrita, utilizei a teoria de Vygotsky, e também as hipóteses da construção da escrita sob o
enfoque de Ferreiro, conforme o Capítulo 2.
No Capítulo 3 demonstro detalhadamente o cenário da pesquisa, com a descrição da
escola e da comunidade onde as crianças vivem, além da apresentação da metodologia usada e
do detalhamento da coleta de dados.
No Capítulo 4, faço uma análise das entrevistas feitas com as docentes de forma a
entender a representação que as professoras fazem de seu próprio trabalho. Também analiso
as aulas observadas, a fim de refletir sobre o trabalho real desenvolvido.
No Capítulo 5, passo a descrever a apropriação do código escrito pelas crianças, com o
detalhamento quantitativo dos dados de dez alunos de cada turma, para mostrar como ocorreu
o processo de alfabetização das crianças de acordo com os níveis de construção da escrita,
15
estabelecidos por Ferreiro. Ainda neste capítulo, a partir de uma abordagem qualitativa,
analiso a produções de quatro alunos, dois de cada turma, a fim de acompanhar o processo de
letramento desses alunos, a partir do momento em que já estavam alfabetizados.
O Capítulo 6 fecha este trabalho com considerações finais, que fazem uma reflexão
sobre a relação alfabetização e letramento no contexto das turmas acompanhadas.
16
2 BASE TEÓRICA
2.1 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
A alfabetização hoje é vista como o fator principal do fracasso escolar, cujo índice,
principalmente entre as crianças das camadas populares, evidencia uma fraca eficácia do
sistema escolar. Pesquisas recentes revelam que crianças do ensino fundamental têm
dificuldades para ler e para utilizar a escrita na produção de textos em seus usos sociais.
O SAEB (Sistema de Avaliação de Educação Básica) demonstra, em sua pesquisa de
2004, que 59% dos alunos da 4ª série do Ensino Fundamental apresentaram resultados
insatisfatórios no desenvolvimento da leitura e da escrita, mostrando que um número
expressivo de alunos não aprende a ler nem a escrever na escola. O afastamento que crianças
das classes populares têm da linguagem escrita em livros, jornais, enfim, material escrito, faz
com que essas crianças precisem de um tempo maior ou de outro tipo de investimento para
que entendam como funciona e para que serve a linguagem escrita.
Considerando-se que o atual contexto social e profissional requer um cidadão com
conhecimento sobre a língua escrita além das “primeiras letras”, os processos de alfabetização
precisam ser devidamente entendidos e trabalhados. Antes de tudo, o professor precisa refletir
sobre o que significa alfabetizar em uma sociedade letrada, uma vez que, de acordo com Val
(2004), é possível a uma pessoa passar pela escola, aprender a codificar e decodificar a
escrita, ler palavras e textos simples, mas ser incapaz de empregar a linguagem escrita em
situações sociais que requerem habilidades mais complexas de leitura e produção textual. Essa
pessoa pode ser considerada alfabetizada, mas não letrada, visto que o letramento supõe a
participação de sujeitos em ações sociais contextualizadas que acontecem nas diversas
situações de uso real da leitura e da escrita.
Alfabetização e letramento são dois processos diferentes, mas indissociáveis (SOARES,
2002). Essa diferença fica mais clara quando se entende a alfabetização como o processo de
aprendizagem do código da escrita, e o letramento como o desenvolvimento das práticas
sociais de leitura e escrita. São processos cognitivos diversos que exigem procedimentos
metodológicos diferentes. Entretanto é preciso que o aluno, no processo de alfabetização,
domine o letramento, e adquira o código praticando. Nessa perspectiva, alfabetização é
letramento.
17
Segundo Soares (2001) o emprego dos verbos integrar e articular retoma a afirmação
anterior de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado atual do
conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita, indissociáveis, simultâneos e
interdependentes: a criança alfabetiza-se, constrói seu conhecimento do sistema alfabético e
ortográfico da língua escrita, em situações de letramento, isto é, no contexto de/e por meio de
interação com material escrito real, e de sua participação em práticas sociais de leitura e de
escrita. Essa interação não pode ser construída de forma artificial, deve ser naturalmente
proposta pela escola, e expandida para os limites do contexto social em que vive a criança.
Uma maneira de enfrentar os desafios da alfabetização é respeitar o conhecimento
prévio que o aluno traz para a escola. Quando os conhecimentos prévios não são
considerados, as crianças passam a enfrentar maiores dificuldades na aprendizagem. Crianças
que vêm do meio letrado trazem muitos conhecimentos sobre leitura e escrita. Nesse caso o
que a criança já sabe e a aprendizagem da escola se completam, proporcionando uma rápida
aprendizagem do ler e escrever.
Por outro lado, a criança que vem das camadas populares traz consigo um outro
conceito sobre a atividade de leitura, uma vez que tem a sua disposição uma quantidade
menor de material escrito, não vê e não participa de atos de leitura, muitas vezes os pais são
analfabetos, e em suas casas não há revistas, livros, jornais ou outro material para leitura.
Cabe à escola mostrar a essa criança o valor social da escrita, pois não se pode esquecer que,
mesmo vindo de uma camada desfavorecida, a criança vive imersa na cultura letrada, pois só
o fato de sair à rua é suficiente para mostrar a presença constante da escrita por todos os lados.
Pesquisa realizada por Franz (2004), em uma escola da periferia de Porto Alegre (RS),
investiga alunos que não conseguiam aprender a ler e a escrever em turmas regulares e que,
em razão disso, integravam uma Turma de Progressão (TP). Diferentemente de outros
planejamentos relacionados à alfabetização, nos quais normalmente se trabalha com a história
da escrita, com o traçado das letras, com o reconhecimento do som, do nome e da forma das
letras, com a categorização gráfica das letras e com as letras dos nomes dos alunos, este
projeto pedagógico exigia que os alunos sentissem vontade de aprender as letras ou que, pelo
menos, sentissem que eram capazes de aprender. Até aquele momento considerava-se que,
como a maioria dessas crianças já havia freqüentado a escola, o desejo real de escrever e ler
estava consolidado. As atividades desenvolvidas nas duas primeiras semanas de aula
mostraram justamente o contrário: os alunos não acreditavam na capacidade que tinham para
aprender, já que haviam fracassado em outras vivências escolares. A escrita e a leitura eram
ignoradas, e, quando eram solicitados a realizar trabalhos que envolvessem o alfabeto, os
18
alunos escondiam-se atrás de desentendimentos e brigas com os colegas, havendo necessidade
de conter fisicamente alguns, com aparente comprometimento psicológico e/ou neurológico.
Além disso, os alunos conviviam com poucos materiais escritos, a escrita e a leitura não
tinham um lugar na sua vida, pois representavam um fracasso para eles. Houve, então,
necessidade de um trabalho de alfabetização para significar e/ou ressignificar a escrita e a
leitura na vida desse grupo de crianças, ou ainda para conhecer mais de perto o que as
impedia de ir adiante. O primeiro trabalho proposto, com base no interesse das crianças, foi a
escrita dos nomes das partes do corpo humano. Dessa forma a TP começou a abrir espaço
para o estudo das letras, dando início ao seu processo de alfabetização. Simultaneamente ao
trabalho desenvolvido sobre o conhecimento do corpo, os alunos foram convidados a fazer
um passeio dentro da comunidade para visitar a casa de cada um, com a finalidade de
fotografar tudo o que estivesse escrito no trajeto percorrido. O trabalho em sala de aula, com
os escritos retirados da própria comunidade, através de fotografias solicitadas pelos próprios
alunos provocou interesse em relação à escrita. Todo o trabalho centralizou-se no princípio de
que motivação da escrita é sua própria razão de ser; a decifração constitui apenas um aspecto
mecânico de seu funcionamento.
Alfabetizar letrando no processo de aprendizagem inicial da língua escrita, é, sem
dúvida o caminho da superação dos problemas, conforme constatado em levantamentos do
tipo do realizado pelo SAEB e citado anteriormente.
É importante estabelecer a distinção entre alfabetização e letramento que norteia o
presente estudo: alfabetização – compreendida como aquisição do sistema convencional da
escrita – distingue-se de letramento – entendido como o desenvolvimento de comportamentos
e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais. Essa distinção
ocorre tanto em relação aos objetos de conhecimento quanto em relação aos processos
cognitivos e lingüísticos de aprendizagem e também de ensino desses diferentes objetos. Tal
fato explica por que é conveniente a distinção entre os dois processos. Também é necessário
reconhecer que a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto de práticas
sociais de leitura e de escrita e por meio dessas práticas, ou seja, em um contexto de
letramento e por meio de atividades de letramento. O letramento, por sua vez, pensado dentro
do contexto de escolarização, só pode desenvolver-se na dependência da/e por meio da
aprendizagem do sistema de escrita. Como bem afirma Soares (2002, p. 3),
Para a alfabetização e letramento ocorrerem em sala de aula é necessária uma
proposta de um ensino de língua que tenha o objetivo de levar o aluno a adquirir um
“grau de letramento” cada vez mais elevado e desenvolver nele um conjunto de
19
habilidades e comportamentos de leitura e escrita que lhe permitam fazer o maior e
mais eficiente uso possível das capacidades técnicas do ler e escrever.
Nesse ponto, é preciso ressaltar que o conceito de letramento, de uma forma ampla,
permite ainda abrigar práticas letradas de indivíduos não alfabetizados. Um indivíduo pode
não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser letrado, porque se envolve em práticas
sociais de leitura e de escrita. Como vivemos numa sociedade em que as letras, as palavras
estão por toda parte, as pessoas que convivem com elas obrigam-se a descobrir formas de usá-
las, já que precisam tomar o ônibus, ir a dados lugares, comprar determinados produtos,
manusear dinheiro etc., o que significa que, embora não estejam alfabetizadas em nível
escolarizado, essas pessoas, do “seu jeito”, utilizam a leitura como prática social. Da mesma
forma, a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los, brinca de
escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e percebe seu uso e
função. Embora ainda “analfabeta”, já penetrou no mundo do letramento, já é letrada.
O conceito do que é ser alfabetizado também vem evoluindo, e já incorpora as noções
de letramento. Durante muito tempo, considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de
escrever o próprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à pergunta se sabe ler e escrever
um bilhete simples que define se o individuo é analfabeto ou alfabetizado. Ou seja, da
verificação apenas da habilidade da codificação do próprio nome, passou-se à verificação da
capacidade de usar a leitura e a escrita para uma prática social. Embora essa prática seja
bastante limitada, já se evidencia a busca de um “estado ou condição de quem sabe ler ou
escrever mais que a verificação da simples presença da habilidade de codificar em língua
escrita, isto é, já se evidencia a tentativa de avaliação do nível de letramento, e não apenas a
avaliação da presença ou ausência da tecnologia do ler e escrever” (SOARES, 2001, p. 37).
Do ponto de vista individual, o aprender a ler e a escrever engloba alfabetizar-se, deixar de ser
analfabeto, tornar-se alfabetizado, adquirir a “tecnologia” do ler e escrever e envolver-se nas
práticas sociais de leitura e de escrita. Essa nova prática tem conseqüências pois altera o
estado ou a condição do indivíduo em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos,
cognitivos, lingüísticos e até mesmo econômicos.
A alfabetização implica a aquisição de uma tecnologia: codificar em língua escrita
(escrever) e decodificar a língua escrita (ler). Não basta, porém ao aluno adquirir essa
tecnologia: ele precisa usá-la em práticas sociais de leitura e escrita, em práticas de
letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a
alfabetização se desenvolve no contexto de/e por meio de práticas sociais de leitura e de
escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se
20
no contexto da/e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema. Portanto, não se
trata de a escola escolher entre dois processos: a alfabetização ou o letramento. Não há opção
entre isto ou aquilo. No contexto escolar, os dois processos, como ressaltam Soares (2001,
2002), Matêncio (1994), Terzi (2002), Kleiman (1998), não podem estar separados, têm que
acontecer ao mesmo tempo. Logo, só existe uma escolha: alfabetização e letramento.
Dessa forma, a escola precisa ir além daquela visão conservadora de que a
alfabetização está restrita às habilidades de leitura e escrita; precisa ter como meta conciliar as
duas aprendizagens da língua escrita: a do letramento, por meio do convívio da criança com a
cultura escrita, da sua interação com diferentes tipos e gêneros textuais, da sua participação
em atos reais de leitura e escrita; e a da alfabetização, por meio da identificação das relações
fonema-grafema, do conhecimento do sistema de escrita, do desenvolvimento de habilidades
de codificação e decodificação. Nesse sentido, a aquisição da escrita acaba constituindo um
processo de alfabetização “sem limites ou datas marcadas”, como afirma Guimarães (2006, p.
60).
Nesse cenário de aproximação entre alfabetização e letramento, é importante relembrar
alguns pontos fundamentais da teoria vygotskiana que podem ajudar a concretizar essa
relação na escola.
2.2 CONCEPÇÃO DE VYGOTSKY
A interação da criança com um adulto, ou com pessoas mais proficientes de seu grupo,
está expressa na concepção de aprendizagem como um processo de construção de
conhecimento, na teoria de Vygotsky e seus seguidores. Dentro dessa concepção, o professor
da classe de alfabetização vê seu aluno como um sujeito que constrói ativamente saberes e
habilidades. Isto difere profundamente de quadros transmissivos nos quais os alunos são
considerados “receptores”; tábulas rasas, que aprendem por repetições ou por substituições.
Para Vygotsky os sujeitos constroem seus conhecimentos em contextos historicamente
determinados sobre a base de suas representações e de seus saberes anteriores.
A aprendizagem, segundo o autor (2001), pressupõe o envolvimento de pequenos
grupos ou pares de indivíduos em uma interação social, em uma prática comunicativa. A
relação Sujeito – Outro – Objeto faz com que o sujeito construa os saberes no quadro das
interações sociais. Essa aprendizagem, por sua vez, será resultante de internalização, ou seja,
21
certos aspectos da atividade realizadas no plano externo passam a se realizar no plano interno.
A construção do conhecimento é, pois, apresentada como um jogo constante de
conflitos, de desestruturações/reestruturações. Para essa construção, o conceito de “Zona de
Desenvolvimento Proximal” (ZDP) é fundamental (VYGOTSKY, 2001, p. 97):
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma designar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento
potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um
adulto ou em colaboração com companheiro mais capaz.
Vygotsky considera dois níveis de desenvolvimento. O primeiro, referente a
conquistas já efetivadas, representa o nível de desenvolvimento real ou efetivo, com
conquistas que já estão consolidadas, funções ou capacidades que já foram aprendidas e
dominadas de forma a serem utilizadas sozinhas. O outro, relativo ao desenvolvimento
potencial, diz respeito às capacidades em vias de serem construídas, também envolvendo
aquilo que a criança é capaz de fazer mediante a ajuda de outra pessoa. O aprendizado é
responsável por criar a zona de desenvolvimento proximal, na medida em que, em interação
com outras pessoas, a criança é capaz de colocar em movimento vários processos de
desenvolvimento que, sem a ajuda externa, seriam impossíveis. Desse modo, o que determina
a ZDP é o nível de desenvolvimento da criança e a forma de ensino aprendizagem envolvida.
A ZDP, da forma como é formulada, prevê apenas situações de sucesso na aprendizagem.
Vygotsky atribui enorme importância ao papel da interação no desenvolvimento do ser
humano, pois, segundo ele, é um processo socialmente constituído. Essa é a principal razão de
seu interesse no estudo da infância, “A mente da criança contém todos os estágios do futuro
desenvolvimento intelectual: eles existem já na sua forma completa, esperando o momento
adequado para emergir” (VYGOTSKY, 2001, p. 26). Para ele, no entanto, a maturação
biológica é um fator secundário do desenvolvimento das formas complexas do indivíduo, pois
essas dependem da interação da criança e sua cultura. O aprendizado de modo geral e o
aprendizado escolar orientam e estimulam processos de crescimento. O desenvolvimento e a
aprendizagem estão inter-relacionados desde o nascimento da criança. Através da interação
com o meio físico e social, essa criança realiza uma série de aprendizados, que lhe permitem
atingir as funções superiores.
Para compreender suas concepções sobre o desenvolvimento humano como processo
sócio-histórico é central a idéia de mediação: como sujeito do conhecimento, o homem não
tem acesso direto aos objetos, só acesso mediado, através de recortes do real, operados pelos
sistemas simbólicos de que dispõe. Vygotsky, assim, enfatiza a construção do conhecimento
22
como uma interação mediada por várias relações. A corrente sócio-histórica, presente nas
obras de Vygotsky, centraliza esse processo na atividade interativa, envolvendo uma
mediação necessária feita pelo outro adulto e parceiros de aprendizagem. Essa
aprendizagem efetivamente socializada se dá através de um mecanismo pelo qual uma
atividade externa se torna uma atividade interna (internalização), como já explicado.
A partir dessa perspectiva, o professor, o colega mais experiente na escola assume
papel fundamental no intercâmbio, regulando o funcionamento discursivo e interferindo na
aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo. Na sala de aula, convivem crianças da mesma
idade com seu professor. Nem sempre esse fato social é aproveitado pelo ensino, embora seja
fácil perceber a riqueza potencial do intercâmbio entre pares para a aprendizagem.
Outro ponto de vista importante da teoria vigotskiana é a ênfase à escrita, justificada
pela importância da linguagem escrita para o pensamento. Do ponto de vista cognitivo, a
aprendizagem da língua escrita, ao mesmo tempo em que se está associada à aprendizagem de
um novo objeto de conhecimento, também se apresenta como uma nova ferramenta para
futuras aprendizagens. A língua escrita é para o aprendiz um meio pelo qual ele irá raciocinar
e representar o mundo ao seu redor. As propriedades desse sistema simbólico vão influenciar
os processos cognitivos da criança, de modo a amplificar os seus limites naturais e seus
modos de operação.
O processo de alfabetização/letramento, em se tratando de crianças, tem seu ponto de
partida na aquisição da leitura e da escrita. Para pensar como se dá esse processo, é
importante recuperar os conceitos desenvolvidos por Ferreiro e Teberosky, apresentados a
seguir.
2.3 HIPÓTESES DE FERREIRO E TEBEROSKY
A partir dos anos 80, após a divulgação dos trabalhos de Ferreiro e Teberosky (1985)
sobre a psicogênese da língua escrita, abriram-se novas visões e conceitos na compreensão do
princípio alfabético da nossa escrita, em perspectivas que abarcam os primeiros anos de
escolarização da criança.
Os trabalhos de Emília Ferreiro (1985) sobre a conceitualização da escrita pelas
crianças centram-se, sobretudo, na compreensão do princípio alfabético da nossa escrita,
salientando a dimensão fonográfica do sistema. Conforme assinalam Ferreiro e Teberosky
23
(1985), a criança chega a desvendar como funciona a leitura e a escrita através de caminhos
que percorre antes mesmo de ingressar no ambiente institucionalizado, pois o percurso para
compreender as características, o valor e a função da escrita constitui objeto de sua atenção
desde muito cedo. É necessário esclarecer que essas autoras não tratam de uma nova
metodologia da aprendizagem, o que elas descrevem é a interpretação do processo de chegada
à escrita alfabética, demonstrando as fases da construção da aquisição da língua escrita, sob o
ponto de vista de um processo construtivista.
Emília Ferreiro iniciou suas investigações empíricas na Argentina, ao lado de Ana
Teberosky. Nas pesquisas que coordenaram existe uma clara integração de objetivos
científicos a um compromisso com a realidade social e educacional da América Latina.
Analisando essa realidade educacional, as autoras demonstraram que o fracasso nas séries
iniciais da vida escolar atinge de modo perverso apenas os setores marginalizados da
população, porque os alunos provenientes das classes menos favorecidas têm pouco contato
com materiais escritos, antes de sua chegada à escola.
Também do ponto de vista teórico, as pesquisas de Ferreiro e Teberosky trazem uma
contribuição original, pois tomam como objeto de estudo um conteúdo ao qual Piaget não se
dedicava: o resgate dos pressupostos epistemológicos centrais da teoria, aplicados à análise do
aprendizado da língua escrita. Em nota preliminar à primeira edição da Psicogênese da Língua
Escrita, as autoras escrevem (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p. 11):
[...] Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura, entendida como
questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a
escrita, inicia-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo por
insuspeitados caminhos. Que, além dos métodos, dos manuais, dos recursos
didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se propõem
problemas e trata de solucioná-los seguindo sua própria metodologia... Insistiremos
sobre o que se segue: trata-se de um sujeito que procura adquirir conhecimento, e
não simplesmente de um sujeito disposto ou mal disposto a adquirir uma técnica
particular. Um sujeito que a psicologia da lecto-escrita esqueceu [...].
A corrente construtivista defendida pelas autoras entende que o processo de
aprendizagem da leitura e da escrita não pode ser desencadeado a partir de métodos
específicos de alfabetização, mas deve ser gerado por uma atividade organizadora do sujeito,
visto como ativo. Essa atividade é estabelecida na interação sujeito/objeto do conhecimento.
A aprendizagem da leitura e da escrita então, não pode ser reduzida à aquisição de um
conjunto de técnicas percepto-motoras, como propõe o modelo associacionista, que, “tem
como fundamento a ênfase no objeto, e considera o sujeito como uma tábula rasa, uma “cera
mole” que precisa ser moldada.”. Vista como processo, essa aprendizagem corresponde a uma
aquisição conceitual. Ferreiro e Teberosky (1985) constataram, através de pesquisas, que a
24
criança, em sua caminhada de compreensão do sistema de escrita, constrói várias hipóteses
que vão do pré-silábico ao alfabético.
Nessa construção de hipóteses, a criança atravessa várias etapas: primeiro delimita a
escrita, no universo gráfico geral, por oposição ao desenho. Depois entende que, para que
alguma coisa seja escrita, deve ter as seguintes propriedades:
- linearidade - as unidades devem estar dispostas em linhas;
- descontinuidade - deve haver algum tipo de fragmentação entre as unidades ou
grupos de unidades;
- quantidade mínima - deve haver um número mínimo de unidades;
- variação interna - deve existir uma certa variedade entre as unidades;
- combinação - deve haver uma seleção nos agrupamentos, nem todas as letras
podem combinar-se com as outras.
Relacionando esses diversos elementos, as autoras chegam aos níveis da construção da
linguagem escrita, aqui exemplificados a partir de Azenha (1995), em seu livro
“Construtivismo de Piaget a Emilia Ferreiro”.
Nível 1 - Escrita Indiferenciada: uma das principais características da escrita
pertencente a este nível é a baixa diferenciação existente entre a grafia de uma palavra e outra.
Os traços são bastante semelhantes entre si e, dependendo do tipo de escrita com a qual a
criança teve maior interação, os grafismos podem ser constituídos de traços descontínuos
(cujo modelo é o traçado da letra de imprensa), ou com maior continuidade (inspirados no
traçado da letra cursiva).
Dada a semelhança que as escritas têm quando comparadas entre si, o que as
diferencia é apenas a intenção do produtor. Interpretações, portanto, só podem ser feitas pelo
próprio autor. Ainda assim, a leitura que a criança faz após a escrita de cada palavra é muito
instável e, algum tempo depois, se o próprio produtor voltar a fazer novas interpretações,
poderão ser atribuídos aos grafismos novos significados.
De uma forma não sistemática, uma estratégia utilizada pelas crianças para proceder a
alguma diferenciação entre os grafismos é reproduzir o tamanho do objetivo referido, fazendo
corresponder a ele um traço maior ou menor, na dependência do referente da palavra a ser
escrita.
25
Algumas crianças usam uma estratégia que parece demonstrar a dificuldade de
interpretar a própria produção escrita, que objetivamente não distingue um conteúdo de outro.
A necessidade de encontrar apoio que garanta o significado no momento da leitura as faz
parear desenhos e escrita. O desenho é uma clara estratégia de remissão ao conteúdo
registrado.
Os dados constantes da Psicogênese da Língua Escrita também exemplificam essa
conduta, indicando a existência de alguma indecisão momentânea das crianças para definir ou
classificar os grafismos produzidos (desenho ou escrita). Ferreiro interpreta essa indecisão
como decorrente das dificuldades de compreender a função da escrita, fato que leva algumas
crianças a responder à proposta de escrita com um desenho, classificado por elas como
escrita. Parecem estar indecisas quanto ao que a escrita representa: registro do significado ou
registro de palavras?
Neste nível, a característica mais importante é a maneira como as crianças procedem à
interpretação: a leitura é global. Elas não fazem análise entre as partes componentes e o todo,
inexistindo, portanto, tentativas de fragmentação do texto escrito durante o ato de leitura.
Figura 1 – Escrita indiferenciada (AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a Emilia
Ferreiro. São Paulo: Ática, 1993).
26
No exemplo, a palavra elefante é produzida com grafismo sensivelmente maior que os
outros da série. A conduta dessa criança, ao produzir a escrita, evidencia a sua tentativa de
reflexão. Assim, a escrita de passarinho é também facilmente percebida como menor que as
outras, ainda que a palavra passarinho seja a mais extensa, se considerada a emissão sonora. O
grafismo correspondente a ela é menor, indicando que a criança está atenta ao referente da
linguagem, ao objeto que a palavra nomeia.
Nível 2 - Diferenciação da Escrita
2
: a característica principal das escritas
categorizadas como pertencentes a este nível é a tentativa sistemática de criar diferenciações
entre os grafismos produzidos. A necessidade de diferenciar a intenção do produtor é
objetivada pela criação de totalidades gráficas distintas.
A hipótese da quantidade mínima de caracteres (que deve haver um número mínimo
de caracteres) para compor uma escrita e a necessidade de variá-los continuam como
exigências presentes. Acrescidas da intenção de objetivar as diferenças do significado das
palavras. Quando a disponibilidade de letras conhecidas é pequena, a confluência dessas
exigências acaba por criar a necessidade de gerar totalidades novas pela alteração da ordem
linear das letras. Em outras palavras, utilizando-se de um mesmo repertório, a ordem das
letras deve variar de uma escrita para outra, de forma a garantir a criação de um conjunto que
se diferencie do outro.
_____________
2
Cagliari (1998, p. 73) critica essa hipótese levantada por Ferreiro, por entender que há uma má interpretação do
que seja sílaba, ao afirmar que: “Considerar este tipo de escrita como pré-silábico é, sem dúvida muito estranho
ou equivocado. O fato de não usar letras do nosso alfabeto não é argumento para ser ‘pré-silábica’. Do ponto de
vista de nosso sistema de escrita, a criança é, simplesmente pré-letrada”. Por esse motivo, mantivemos a
classificação das autoras para esse nível.
27
Figura 2 – Diferenciação da escrita (AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a Emilia
Ferreiro. São Paulo: Ática, 1993).
No exemplo, é demonstrado como a criação de representações escritas de diversas
palavras, com o uso de apenas seis letras conhecidas, pode levar a criança a explorar ao
máximo as combinações possíveis, o que significa uma notável aquisição cognitiva.
Nível 3 - Hipótese Silábica: este nível de aquisição é caracterizado pela emergência
de um elemento crucial, ausente nos níveis anteriores: a criança inicia a tentativa de
estabelecer relações entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico do registro. A
consideração dos aspectos sonoros da linguagem representa um divisor de águas no processo
evolutivo. A estratégia utilizada pela criança é atribuir a cada letra ou marca escrita o registro
de uma sílaba falada, e isso constitui a hipótese silábica. O salto qualitativo representado por
essa estratégia leva a criança à superação global entre a forma escrita e a expressão oral,
fazendo com que, pela primeira vez, trabalhe com a hipótese de que a escrita representa partes
sonoras da fala.
O emprego de letras sem a consideração de seu valor sonoro convencional ou a
qualidade da grafia não é condição para identificação do emprego da hipótese silábica. O fato
crucial que evidencia a sua utilização pela criança é atribuição de um valor silábico a cada
marca produzida como parte de uma totalidade registrada, seja ela letra, pseudoletra, número,
letra com valor sonoro convencional ou não. A fragmentação do texto escrito para fazer
28
corresponder um segmento oral a um segmento escrito é o indicador da concepção silábica de
escrita.
Figura 3 – Hipótese silábica (AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro.
São Paulo: Ática, 1993).
No exemplo, dentro das palavras marinheiro, gigante, navio e peixe, cada uma das
letras escritas corresponde a uma sílaba oral. Embora a criança não utilize as letras com o
valor sonoro convencional, sua escrita tem a deliberada intenção de registrar o aspecto sonoro
da fala, pois, a cada segmento emitido oralmente, o texto é fragmentado para registrá-lo
(como em: VADE – MA-RI-NHEI-RO: OFT – GI-GAN-TE).
Nível 4 - Hipótese Silábico-Alfabética: este nível é caracterizado pela utilização
simultânea das hipóteses silábica e alfabética, ou mesmo o momento de passagem de uma
29
hipótese para outra. As alterações vão sendo feitas pontualmente, em alguns segmentos da
escrita, mas não em outros, dentro da mesma palavra. É um momento de transição, em que a
criança, sem abandonar a hipótese anterior, ensaia em alguns segmentos a análise da escrita
em termos dos fonemas (escrita alfabética).
Figura 4 – Hipótese silábico-alfabética (AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a
Emilia Ferreiro. São Paulo: Ática, 1993).
Nas escritas acima, pode-se observar o maior predomínio de segmentos da escrita
alfabética, e isso é precioso para o alfabetizador, pois permite a interpretação desse tipo de
escrita sob uma nova ótica. Comparados com a escrita que respeita todas as normas da
convenção, os exemplos aqui poderiam ser caracterizados como problemáticos, pela
existência de muitas omissões no registro de letras.
30
Nível 5 - Hipótese Alfabética: Este nível, vencidos todos os obstáculos conceituais
para a compreensão da escrita, mostra a correspondência entre cada um dos caracteres da
escrita e os valores sonoros menores que a sílaba. A criança, nesse nível, realiza
sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever. Atingida esta
fase de aquisição da escrita, pode-se até afirmar que uma criança está alfabetizada, embora
não signifique a superação de todos os problemas.
Há o alcance da legibilidade da escrita produzida, já que esta pode ser mais facilmente
compreendida pelos adultos, no entanto, um amplo conteúdo ainda está para ser dominado: as
regras normativas de ortografia.
Figura 5 – Hipótese alfabética (AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a Emilia
Ferreiro. São Paulo: Ática, 1993).
31
Na escrita, pode-se perceber que a criança dominou o código escrito de forma a usá-lo
como instrumento para várias funções. Curioso nessa produção é que a criança não deixa de
escrever por medo de cometer erros, como ocorre com a maioria das crianças que inicia a
escolaridade. A presença dos erros ortográficos é um indicador da forma como as crianças
chegaram a descobrir as funções da escrita, a representação realizada e a sua organização.
Na verdade, as hipóteses de Ferreiro e Teberosky sobre a compreensão do
funcionamento da aquisição do sistema de escrita pela criança abordam a alfabetização. No
entanto, as autoras (1985, p. 156) prevêem como objetivo da alfabetização a introdução da
língua em toda a sua complexidade e não unicamente como introdução do código com
correspondências grafofônicas.
Para essas autoras, o que caracteriza a complexidade da escrita é o seu
desenvolvimento, iniciado antes mesmo de a criança aprender a ler e a escrever de forma
convencional, e a continuidade do processo, que se estende mesmo após ter compreendido a
representação da escrita. Crianças ainda não alfabetizadas buscam regularidades e padrões no
sistema de escrita de forma que aquilo que escrevem possa ser aceito como uma palavra e
possa ser lido por outra pessoa (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985). Dentro dessas
regularidades, as crianças iniciam um processo de reflexão metalingüística sobre a
representação das marcas gráficas e dos sons emitidos.
Ferreiro e Teberosky (1985, p. 181), nos estudos que fizeram sobre a natureza do
sistema de representação da escrita, no caso de um sistema alfabético, como o português,
mostram a extrema importância de a criança desenvolver uma hipótese alfabética para ser
capaz de analisar as palavras em termos de fonemas, que são representados pelas letras na
palavra escrita. Importante enfatizar que essas descobertas todas não significam o final do
processo, pois a criança terá que aperfeiçoar o aprendizado com objetivo de produzir uma
escrita ortográfica apropriada ao português.
Em nosso estudo, as hipóteses apresentadas por Ferreiro e Teberosky servirão como
marcadores do desenvolvimento da escrita, nas duas turmas de alfabetização usadas.
32
3 CENÁRIO DA PESQUISA
Esta pesquisa foi realizada em uma escola pública, situada no município de Paula
Freitas, interior do Paraná, e conta com um número aproximado de 270 alunos. A maioria
desses alunos utiliza transporte escolar, pois apenas um número pequeno deles mora perto da
escola. Como a cidade é pequena, geralmente os pais não levam os filhos para a escola. O
contato dos pais com a vida escolar do filho restringe-se às reuniões bimestrais, embora
alguns nem apareçam nas reuniões, o que dá a escola a responsabilidade pela vida escolar
desses alunos.
A escola tem uma grande estrutura: no mesmo prédio funcionam as redes municipal e
estadual. No período da manhã, funcionam quinta a oitava séries e ensino médio; à tarde,
educação infantil e ensino fundamental de primeira a quarta séries; e à noite ensino médio. A
escola tem refeitório, laboratório de informática, laboratório de química, ginásio de esportes,
cantina, biblioteca (também da rede estadual), secretaria, sala de direção e quatorze salas de
aula.
No período da tarde, em que funcionam educação infantil e ensino fundamental, base
da pesquisa, há duas turmas de pré-escolares, três primeiras séries, três segundas, duas
terceiras e duas quartas séries. Nele também ocorre o programa estadual de reforço escolar de
contra turno e, por decisão da direção, somente alunos de terceira e quarta série o freqüentam,
pois, segundo a própria direção, necessitam mais, “os outros ainda têm tempo”. Ocorre ainda,
na parte da manhã, a classe especial freqüentada por alunos com dificuldades de
aprendizagem. Como a escola não possui equipe pedagógica, somente a diretora para atender
a escola em seu todo, cada professor faz seu trabalho conforme acha que dá certo, não há uma
linha de trabalho definida por uma equipe pedagógica.
O trabalho aqui desenvolvido centra-se em duas turmas desta escola, cada uma com 17
alunos, formadas por alunos de 1ª. Série.
A pesquisa foi construída com base em dois materiais analíticos: observações
sistemáticas de cada turma, complementadas com a coleta da produção do dia, e entrevistas
dirigidas, feitas com as professoras dessas turmas.
Houve um terceiro momento, relativo à análise de produção textual dos alunos.
A professora da série A tem formação em magistério e há quinze anos é
alfabetizadora. No ano da pesquisa (2005), estava cursando a Faculdade à Distância de
33
Pedagogia
3
. A professora da classe B tem formação em magistério, alfabetiza há oito anos, é
graduada em Geografia e também fez especialização na área da sua graduação. Por motivos
pessoais, no mês de junho do ano de 2005, a professora A pediu remoção dessa escola e em
seu lugar assumiu outra professora, que pelo segundo ano está alfabetizando. Sua formação
também é no magistério, e naquele momento, estava cursando a faculdade de Pedagogia-série
iniciais.
A maioria desses alunos é de classes populares; a renda da maior parte das famílias
não ultrapassa dois salários mínimos; o grau de instrução dos pais é, preponderantemente, o
ensino fundamental incompleto.
Tomando-se a escola como um todo, os pais dão bastante importância para a
escolarização dos filhos, o que é explicitado nas reuniões bimestrais. Os pais presentes
afirmam que é muito importante que as crianças aprendam a ler e a escrever, pois, se
souberem ler e escrever, conseguirão um emprego melhor do que os pais têm (a maioria
trabalha na roça). Um dos pais, por exemplo, relatou que sente vergonha de dizer que não
sabe ler nem escrever o próprio nome.
O grupo de pais que reconhece através de seus atos, a importância da escolarização,
estimula seus filhos para irem à escola para ter a chance de “melhorar de vida”. Além de
estímulo para não faltar às aulas, esses pais conversam regularmente com as professoras, e
propiciam aos filhos o contato com a cultura letrada, comprando-lhes alguns livros.
Ao lado desses pais, existe o grupo que também não reconhece o valor da escola e não
demonstra interesse pelo desempenho escolar dos filhos. Permitem que as crianças faltem ou
não se opõem quando a criança diz que naquele dia não vai à escola, e até aceitam que o
próprio irmão avise que determinada criança foi passear com a mãe. Tais pais não participam
das reuniões bimestrais e também não fazem questão de mandar os filhos para o contra turno
de reforço escolar. Em casa, não se preocupam se a lição foi feita. Até mesmo uma atitude de
machismo foi sentida, quando um desses pais procurou a escola para saber dos filhos e
comentou que o menino iria continuar a estudar, mas a menina iria parar na quarta série,
“porque mulher não precisa estudar”.
Na cidade onde a pesquisa foi realizada, existem poucos materiais escritos pela rua.
Não há outdoors, as lojas são pequenas e geralmente não têm seus nomes escritos. Há apenas
_____________
3
Esta faculdade à distância funciona da seguinte forma: os professores assistem a vídeos com aulas, em média
duas vezes semanais. Com a presença de um monitor, fazem as atividades propostas no vídeo e, em dois anos,
concluem o curso superior.
34
um pequeno banco na cidade, com uma placa sinalizadora também pequena, um posto de
saúde (não há hospital), a prefeitura municipal e suas repartições.
Nessa comunidade, há uma diferença vivel entre crianças economicamente
privilegiadas e as mais carentes: as primeiras têm muitas oportunidades de visitar uma cidade
vizinha bem maior, onde há grande exposição a fontes de escrita, como em todas as cidades
médias brasileiras; as outras, ao contrário, muitas vezes ficam imaginando e perguntando até
mesmo como é um supermercado grande. Na cidade, as fontes de escrita de entrada diária são
praticamente inexistentes, pois não há a circulação de jornal, além de poucas pessoas terem o
hábito de comprar revistas. Aquelas que têm esse hábito fazem parte do pequeno grupo que
valoriza a diversidade de materiais escritos. Uma das fontes de escrita bastante comum é
constituída por propagandas de supermercados da cidade vizinha que são distribuídas nas
casas e espalhadas nas ruas.
Dessa forma, as crianças carentes, que são a maioria da escola, têm um acesso restrito
à escrita e seus usos. O fato de a realização das tarefas escolares ser a única atividade de
escrita leva à construção do conceito de escrita como algo próprio da escola e não da vida
cotidiana. Todas essas observações mostram, portanto, uma comunidade com baixo grau de
letramento.
Para tratar especificamente das turmas pesquisadas e comprovar a sua realidade do
letramento familiar, foi realizado um levantamento sobre o grau de escolaridade dos pais. Na
classe A, três pais fizeram até a quarta série do ensino fundamental, dez pais fizeram o ensino
médio e quatro pais cursaram uma faculdade. Na classe B, todos os pais declararam não ter
concluído a quarta série do ensino fundamental. Com isso, estabelece-se uma diferença
importante entre as duas turmas com relação ao grau de escolaridade dos pais.
3.1 AÇÕES JUNTO AOS ALUNOS
A coleta de dados foi feita, no ano de 2005, de março a dezembro, nas duas turmas de
primeira série descritas na seção anterior. Como a pesquisadora não estava trabalhando em
sala de aula de alfabetização, foram tomados alguns cuidados para que as crianças não vissem
nela alguém que, de vez em quando, entrava na sala de aula, contava uma historinha, sugeria
atividades escritas, recolhia e após alguns dias voltava.
35
Além do dia da coleta de dados, a pesquisadora sempre esteve na sala das primeiras
séries, conversando com eles, brincando. As atividades foram freqüentemente trocadas,
porque contar “historinhas” o ano todo ficaria exaustivo. Também para que essa coleta fosse
mais natural, as professoras, por diversas vezes, cederam as produções que as crianças
estavam fazendo no dia. Outra maneira de ficar próxima das crianças foi permanecer no pátio
da escola na hora do recreio, conversando, brincando. Nessas ocasiões, por várias vezes, as
crianças perguntavam à pesquisadora quando iria novamente à sala deles, e sempre houve
respostas positivas por parte das crianças.
Formalmente ocorreram doze coletas, sendo que houve maior número no início do
processo. Foram três coletas no mês de abril, uma em maio, duas em junho e uma a cada mês
até dezembro de 2005. Em 2006, no mês de junho, os alunos que, então, estavam na segunda
série, fizeram novamente a atividade que eles haviam realizado em dezembro de 2005. Esta
última coleta teve o objetivo de verificar a continuidade do processo de aquisição de escrita
desses mesmos alunos.
Todos os dados coletados estão datados e identificados pelas iniciais do nome de cada
aluno. Para fins desta dissertação, as classes são identificadas por A e B, e as professoras são
assim denominadas: professora A, da classe A; professora B, da classe B; e professora A
2
que
assumiu a turma A no mês de junho.
Cada coleta foi complementada com um registro das observações mais importantes
sobre as atividades realizadas.
Foi ainda realizada uma entrevista com roteiro (Anexos A, B e C) com cada uma das
docentes das turmas. Afora esse momento formal, foram realizadas conversas informais com
as professoras, para melhor entender a representação que elas fazem de seu trabalho com a
iniciação do processo da escrita das crianças sob sua responsabilidade.
3.1.2 Seleção de textos
Para a análise dos dados, foi considerado um total de 10 alunos de cada turma. Esses
10 alunos, cujas iniciais, sexo e turma que pertenciam estão na tabela a seguir, foram
selecionados a partir do critério de maior assiduidade às aulas durante o ano escolar.
36
Tabela 1 – Alunos participantes da pesquisa
Turma A
Aluno Sexo Série
A.F. F A
D.K. M A
D.S. M A
G.L. F A
H.F. M A
J.E. M A
S.M. M A
V.G. F A
S,G. F A
V.B. M A
Turma B
Aluno Sexo Série
A.P. F B
A.S. F B
G.R. F B
H.M. M B
J.P. F B
D.A. F B
R.S. M B
W.D. M B
T.A. M B
T.J. M B
Fonte: Elaborada pela autora.
As produções textuais foram examinadas à luz das etapas da aquisição da escrita,
conforme proposição de Ferreiro e Teberosky (1985). Dessa forma, foi possível entender o
momento em que esses alunos atingiram a etapa alfabética, ou seja, o momento em que
poderiam ser considerados alfabetizados, em sentido estrito.
Para uma análise mais aprofundada do material coletado, com vistas a entender se a
questão do letramento foi também construída ao longo do 1º ano escolar, foram selecionados,
de forma aleatória, dois alunos de cada turma. Os alunos selecionados foram G.L., J.E., da
turma A, e G.R., R.S., da turma B. Suas produções textuais foram, inicialmente, analisadas de
acordo com as etapas já explicadas da aquisição da escrita. Depois de atingirem a etapa
alfabética, seus três últimos textos foram analisados sob o ponto de vista de categorias que
permitiram diferenciar quesitos tipicamente vistos como parte da alfabetização (entendida
como decodificação), de outros que encaminhariam para um processo de letramento, ou seja,
para a construção social da escrita.
37
3.2 A COLETA EFETIVADA
Desde o primeiro dia de contato com as turmas da pesquisa, fui
4
muito bem recebida.
As crianças já me conheciam, pois eu trabalhava na escola onde fizeram o pré-escolar. É regra
na escola que cada professor atenda o recreio uma vez por semana. Então, sempre estamos
com todos os grupos, principalmente os menores, para os quais se dá maior atenção.
Quando cheguei à sala, a professora me apresentou, apesar dos comentários de que já
me conheciam e eu expliquei a todos que queria levar algumas atividades deles, porque eu
também estudava e minha professora queria ver o que estavam escrevendo. Ficaram felizes e
fizeram a atividade por mim proposta. Contei-lhes uma historinha, mostrei as gravuras e pedi
que recontassem a história da maneira como achassem que se escreve. Os alunos perguntaram
se poderiam pintar para ficar mais bonito, com o que concordei. Realizei o mesmo
procedimento nas duas turmas.
Combinei com as professoras que, de quinze em quinze dias, iria à sala, por mais ou
menos meio período, para conversar com as crianças, sugerir a atividade e observar como
estava ocorrendo a construção da escrita. Assim seguiram as coletas. Percebi que os alunos
gostavam desse contato. Em função de minhas atividades como mestranda e devido aos
feriados de 2005, não foi possível concretizar a coleta quinzenal. De qualquer modo, a coleta
mensal foi realizada.
Para a análise dos dados, foram selecionados dez alunos de cada turma segundo o
critério de maior freqüência nas aulas. A maioria desses alunos encontrava-se com sete anos,
o que evidencia a relação adequada idade/série. Para proceder à caracterização dos sujeitos,
fiz um questionário dirigido aos pais (Anexo H), em que solicitei detalhes sobre a formação
dos pais, profissão e faixa de rendimentos. Os próprios alunos levaram para casa o
questionário e o retornaram no dia seguinte. Para que os pais com menos escolaridade não
ficassem impossibilitados de responder, foram feitas perguntas e alternativas para serem
marcadas.
A sala de aula A atendia à formação de grupos de quatro alunos. Desse modo, a
professora A trabalhava em grupos, estimulando os alunos para que se expressassem
oralmente. Solicitava-lhes, regularmente, que apresentassem seus trabalhos na frente de toda a
_____________
4
Como a coleta se refere às atividades desenvolvidas pela pesquisadora junto aos alunos, optou-se pelo emprego
da 1ª pessoa gramatical, como forma de melhor traduzir as ações feitas com as crianças, durante esse ano de
estudo.
38
classe, fazendo perguntas, enfim, estimulando o sujeito enunciador. Ela também estimulava a
classe toda a dar opiniões, não somente o aluno que estava fazendo a apresentação. A
professora usava, no quadro, a escrita em caixa alta ainda após o segundo semestre e não
conseguia ficar longe das famílias silábicas. Nas paredes da sala, por exemplo, estavam
estampados cartazes com todas essas famílias, de várias maneiras. Durante a aula, a
professora passava nos grupos, atendendo a todos igualmente, sem que se notasse maior
atenção aos que tinham maiores dificuldades. Também não tomava iniciativa no sentido de
fazer com que aqueles que já haviam entendido ou estavam melhor entendendo o sistema da
escrita ajudassem os coleguinhas que apresentavam mais dificuldades, ou seja, não houve
estímulos à mediação colega/colega.
Quando essa professora pediu afastamento, assumiu a classe a professora A
1
. Foi
possível perceber a tentativa de fazer de seus estudos de graduação a base de suas aulas.
Sempre comentava que muitas atividades que trazia para sala de aula eram sugestões dos
professores da faculdade. Como a professora não tinha experiência em sala de aula, nem
conhecimento de métodos de alfabetização (como ela mesma disse, nunca ouviu falar em
processos analíticos ou sintéticos), optou por continuar a linha adotada pela Professora A e
pedir ajuda das colegas mais experientes na escola, entre elas, a professora B.
Na classe B, a sala era organizada em filas, pois a professora comentava que essa
organização é a melhor para se trabalhar. Desde a organização espacial da sala, percebe-se um
modelo muito tradicional. Em uma das minhas observações, por exemplo, a professora
entregou uma folha de atividades mimeografadas, sem explicar para a classe toda do que se
tratava. Passou, então, de carteira em carteira para ‘EXPLICAR’ as atividades, enquanto o
restante da sala aguardava. Na rotina diária, em determinados momentos, recorria ao quadro
de giz para algumas explicações, mas não tinha o hábito de estimular os alunos a se
expressarem oralmente. Não demonstrou nunca uma preocupação centrada nos alunos que
apresentavam maiores dificuldades. Também não possibilitou a mediação com outros
coleguinhas.
Durante as observações nessa turma, não foi percebida nenhuma atividade que levasse
o aluno a desenvolver o letramento, ou seja, levasse ao contato com materiais escritos
diversos e com a idéia de que a leitura e a escrita fazem parte do dia-a-dia de todos. Percebi
que a alfabetização tecnicista era sua única preocupação. Comentou que, às vezes, olha as
atividades dos alunos e sabe que estão em determinadas fases da escrita, mas não as identifica
e não percebe isto como construção, apenas que estão demorando para entender o sistema.
39
Quando eu perguntei a ela porque alfabetizava dessa maneira, disse-me que sempre fizera
assim e sempre dera certo.
Nas salas de aula, as professoras não usam cartilhas por as considerarem com nível
muito elevado, e mais adequadas para alunos que já estão lendo. As cartilhas dos anos
anteriores estão no armário e são usadas para recortes. Cheguei até mesmo a questioná-las se,
mesmo não usando freqüentemente a cartilha, esta não seria um significativo material escrito
com o qual as crianças pudessem ter contato. Contudo, na concepção das docentes,
primeiramente é necessário que os alunos aprendam a ler, como relatou a professora B em
conversas informais.
A primeira atividade proposta por mim aconteceu de uma forma bastante espontânea.
Era o dia 01/04/05, eu entrei na primeira série A para levar alguns papéis para a professora e
falei para as crianças que um dia desses contaria uma historinha, e perguntei se eles escreviam
essa história para eu levar na universidade para minha professora ver como estavam
escrevendo. Disseram que sim e pediram se poderia ser naquele dia mesmo. Com o
consentimento da professora, aproveitei o momento de interesse deles e contei-lhes a história
“A princesa e o sapo” (PINTO, 2000). Ouviram concentrados, alguns até pediram que eu
escrevesse o nome da história no quadro, achei interessante que alguns deles copiaram nas
suas folhas o nome da história. Na sala B, também senti que os alunos ficaram empolgados
com a proposta de ouvir historinha, embora a participação desses alunos seja bem menor do
que da classe A.
Para a segunda coleta, na sala de aula A, a professora já tinha organizado os alunos em
grupos, que aguardavam na expectativa para saber qual seria a história desse dia. “O mágico
de Oz” (BAUM, 2002). Contei-lhes a história, mostrando as gravuras e percebi que se
mostraram interessados na história. Novamente fizeram as atividades de escrita, o que percebi
desta vez foi que, como estavam em grupos, houve muita cópia um do outro.
Na classe B, também fiz a coleta no mesmo dia. Colocados de forma enfileirada, as
crianças demonstram gostar da atividade de escrever como quiser, sem ninguém falar que não
é assim. Nesse tipo de atividade, a liberdade da escrita acontecia.
Na coleta do dia 20/04, entrei nas salas de aula e conversei com eles sobre o ambiente
escolar, principalmente a sala de aula em que estão todas as tardes. Após conversarmos, pedi
que escrevessem o que tinha dentro da sala deles, disse-lhes que escrevessem da maneira que
achavam que se escreve.
40
A atividade seguinte seria sair com a turma pela quadra, conversando sobre o que
estávamos vendo e como poderíamos depois escrever o que tínhamos visto no passeio, porém
ao chegar à sala de aula, a primeira coisa que ouvi foi: “- Ebá, hoje tem historinha!!!”.
Então falei que iríamos dar uma volta, mas as crianças insistiram na proposta de
história. Como o meu objetivo de pesquisa era o material escrito, concordei com a proposta da
turma e contei-lhes a história “A galinha choca” (Coleção Na Floresta Mágica, n. 3, 2001).
Mostrei as ilustrações do livro, ouvi alguns comentários, como os que relacionaram a
personagem ao seu mundo real, pois em suas casas também havia galinhas. Após
conversarmos, sugeri que eles escrevessem a história.
Na coleta do dia 26/06, repeti minha atividade, desta vez com a história “Vitor e o
jacaré” (MASSARINI, 1999). Novamente fui bem recebida. Nessa coleta, havia poucos
alunos em sala, pois era um dia muito chuvoso. As crianças ouviram a história atentas e
comentaram que, em suas casas, também aparecia jacaré. Disse-lhes que provavelmente seria
um lagarto, que é um animal comum na nossa região. Depois da conversa sobre a história, os
alunos produziram o texto para eu levar, e alguns até o ilustraram. Eu continuei vendo neles o
interesse de me mostrar o que estavam aprendendo.
Para a coleta do dia 29/06, conversei com a professora para aproveitar um passeio em
que a turma toda iria, em um parque ambiental localizado perto da escola. Combinamos que,
quando retornassem à escola, as crianças escreveriam sobre o passeio. As professoras se
dispuseram a fazer essa atividade, o que achei também interessante, pois, dessa maneira, teria
um material mais natural, sem sair da rotina.
Com a chegada do mês de setembro, as atenções da escola estavam centralizadas nas
atividades da semana da Pátria e, principalmente, no desfile cívico de sete de setembro. Por
esse motivo, sugeri às professoras que as crianças escrevessem sobre o dia sete de setembro.
Na coleta do dia 12/09, as crianças estavam perguntando quando seria contada a
próxima historinha. Então levei-lhes a história “Iara, a capivara” (PINTO, 2003). Fizeram
comentários e perguntaram se podiam desenhar depois que escrevessem. Percebi, na ocasião,
que as turmas estavam habituadas com as tarefas, tendo a certeza de que estava trabalhando
com materiais escritos de forma natural para os alunos.
Na coleta do dia 14/10, as professoras comentaram que estavam com material pronto
para uma produção de texto e que eu poderia acompanhar e ficar com esses textos. A
atividade era uma produção de texto relacionada aos desenhos da folha mimeografada, na
proposta de formulação de uma história.
41
No dia 15/11, a atividade, mais uma vez, se relacionava à contação de história. Contei
a história “Cachinhos Dourados” (BRYANT, 2001), e pedi que a escrevessem. Na última
coleta, do dia 01/12 levei vários folhetos de propagandas de supermercados, de lojas,
catálogos de cosméticos e analisamos o que estava escrito. Sugeri que recortassem algumas
figuras, colassem e escrevessem sobre o produto e seu preço. Na coleta do mês de julho de
2006, quando as crianças já estavam na 2ª série, fiz a mesma proposta de atividades dessa
última coleta.
3.3 AÇÕES JUNTO AS DOCENTES
A entrevista com as docentes ocorreu de forma bastante informal, fiz questão de
entrevistá-las na escola mesmo.
Um dia na semana, elas podem permanecer na sala de professores ou biblioteca para
preparar aulas, corrigir tarefas, a hora-atividade. Aproveitei um destes dias e separadamente
conversei com cada uma delas. Com roteiro definido, foram abordadas as mesmas questões
para as três docentes, para posteriormente poder analisar o discurso sobre suas práticas com o
trabalho real observado.
As entrevistas encontram-se na íntegra nos Anexos A, B e C.
Durante as entrevistas a professora A demonstrava-se calma e descontraída, foi uma
entrevista com caráter de conversa, fazia comentários sobre suas respostas, assim também foi
com a professora A1. A professora B, demonstrava-se nervosa e antes de iniciarmos
perguntou se precisava mesmo fazer esta entrevista, ficou claro que somente se ela quisesse
falar sobre suas aulas; com muita insegurança, respondeu as questões somente com respostas
curtas, sem muitos comentários.
3.4 SELEÇÃO DE TEXTOS PARA ANÁLISE
Coletados os dados, o primeiro momento de análise, foi a verificação dos níveis da
escrita das crianças, de acordo com as etapas de construção da escrita de Emília Ferreiro e
Ana Teberosky (1985). De todas as crianças acompanhadas, apenas uma não atingiu a etapa
42
alfabética durante o primeiro ano escolar. Após encaminhamento para a psicóloga do
município, foram diagnosticados problemas cognitivos, e o aluno foi encaminhado para a
classe de atendimento especial.
De acordo com a proposta de Ferreiro e Teberosky, detalhada no Capítulo 2, foram
observados os seguintes níveis da escrita, explicitados através de exemplos:
Nível 1 ou escrita indiferenciada: rabiscos com linhas curvas e retas ou combinações
entre elas.
Embora apareça o SAOP várias vezes, ela é apenas cópia da palavra SAPO que estava
no quadro. A criança fez sem a intenção de significar o personagem na história que ela tenta
narrar em 01/04/2005. Os personagens da história estão aparentes no desenho que J faz. Sua
tentativa de escrever são os rabiscos que produz, e por isso a inserção nesse nível.
Nível 2: Diferenciação da Escrita: formas de grafismos mais definidas, mais
próximas às das letras.
43
Na escrita produzida em 15 de abril, J. apresenta vários segmentos com escritas
semelhantes à da letra E (ELA, DAELA, AELFID), mas ainda estão presentes grafismos em
ILMNA.
Nível 3: Hipótese Silábica: valor sonoro para as letras, mas cada letra vale por uma
sílaba. Ex.: sp (sapo)
Em todo o corpus analisado, não foi possível detectar esta hipótese da forma como
concebida e exemplificada em sp. O texto de J., de 30/04 mostra algumas representações,
como em IBO, para pintinho ou TAUGA para tartaruga. De qualquer modo, pode-se notar o
encaminhamento para a hipótese silábico-alfabética, uma vez que sempre há, ao menos, uma
sílaba completa.
44
Nível 4: Hipótese Silábico-Alfabética: passagem da hipótese silábica para a
alfabética, algumas vezes ainda fazendo valer uma letra por sílaba. Ex.: sapto (sapato). A
mesma hipótese está presente quando a aluna escreve pao, em vez de pato.
Nível 5: Hipótese Alfabética: correspondência entre caracteres da escrita e valores
sonoros menores que as sílabas (não confundir com trocas ortográficas). Ex.: sapato, sapo.
45
Nitidamente, pode-se verificar que a criança já é capaz de produzir uma escrita com
correspondência entre grafemas e fonemas. Fica também claro que há ainda várias aquisições
a respeito da escrita a serem feitas, como, por exemplo, a separação entre preposição e nome
(cf. dejacaré; paracidade, etc).
46
4 A VISÃO DAS DOCENTES
A tradição conhecida referente ao professor é a de que ele ocupa uma posição
hierarquicamente privilegiada: a ele cabe conduzir, controlar o fazer pedagógico, ditar as
regras interacionais. Ao aluno cabe a condição de aprendiz, aquele que chega à escola para
aprender, partindo, na escala de aprendizagem, do ponto zero, ou seja, da tábula rasa, da cera
mole que pode ser modelada. Assim, cabe ao aluno ser obediente e passivo diante de seu
único interlocutor, o detentor do saber e do poder, o professor, conforme Bortolotto (1998, p.
20).
Apesar de, ainda hoje, encontrarmos muitos docentes que assim podem ser definidos,
há aqueles que conseguem romper esses paradigmas, trazendo para suas salas de aula novas
construções, fazendo um trabalho diferenciado, levando o aluno a uma aprendizagem que não
seja usada somente dentro das quatro paredes da sala, mas que lhe sirva para a vida. Nesta
pesquisa, o trabalho docente foi configurado a partir da análise das entrevistas feitas com as
docentes e das observações feitas pela pesquisadora na sala de aula.
Suas concepções sobre alfabetização e letramento são determinantes para o melhor
entendimento de como as crianças acompanhadas chegaram ao mundo da escrita, pois, como
afirma Bortolotto (1998, p. 20):
O processo que leva à produção da escrita no sistema escolar está fortemente
sustentado pelo discurso oral do professor, que concretiza uma forma de organização
própria de um modelo social de ensino, reflexo de concepções construídas ao longo
da sua história. Ele sustenta imagens do papel que pensa ter de desempenhar diante
da sociedade, da instituição escolar e dos alunos e, em função delas, vai assumindo
uma determinada forma de encaminhamento do processo, ao mesmo tempo em que
vai definindo e construindo as relações interacionais com os alunos.
Para dar conta da reflexão que as docentes faziam da própria prática, foram realizadas
entrevistas individuais, com roteiro definido (conforme Anexos A, B, e C). A escolha da
entrevista, como instrumento de pesquisa, é justificada pela posição de Coelho (2005, p. 96)
que nela vê um lugar de ditos e de não ditos:
Uma entrevista nunca é algo inusitado [...] embora daí possa emergir uma série de
propósitos e intenções, uma vez que aquela esfera de troca social que se descortina
não reconhece (por mais que se pergunte e responda) aquela situação enunciativa
como uma entrevista, o que está, certamente relacionado às vontades enunciativas ou
intenções dos interlocutores. [...] Não só na entrevista, mas também em outros
gêneros textuais, nos é permitido ver muito por meio do dito, mas se torna também
importante entrever aquilo que é não dito (grifo do autor).
47
É justamente pelos ditos e não ditos que, na entrevista com as docentes, são
contextualizadas as respostas obtidas, para criar hipóteses sobre os motivos que nortearam as
escolhas dos entrevistados. Na identificação, usou-se a seguinte codificação:
M.: Maria Cristina
P.A.: professora A
P.B.: professora B
P.A1: professora A1
A linguagem escrita como um sistema de representação impõe que se busque
compreender sua natureza. Desse modo a produção escrita não pode ser mera reprodução de
sinais, mas sim uso produtivo do seu código. A aprendizagem da língua escrita é uma
aprendizagem conceitual e não meramente uma aprendizagem de conceitos. Assim pensando,
a primeira pergunta às docentes diz respeito à forma de apresentação da escrita para os alunos.
P.A. diz: “Eu começo com as vogais, depois juntamos as vogais para ler ai, oi ui, ei, e assim
por diante, depois as consoantes e então juntamos vogais e consoantes para formar palavras,
depois frases e por último textos”. P.B. afirma: “Sempre inicio com as vogais, passando para
o alfabeto, sílabas, palavras e textos, trabalhando com rótulos, folhetos informativos,
fôlderes, textos,etc.. P.A1 responde: “Comecei com as letras (vogais), depois apresentei as
consoantes e a forma com que cada uma se juntou às vogais, pois conto uma história para
cada letra, assim já formamos as famílias silábicas, mas também vemos textos e poesias,
onde reconhecemos as sílabas”.
Ao apresentar para a entrevistadora a maneira como iniciam seu trabalho, as docentes
estão reconstruindo sua própria história de alfabetizadoras e, nesse momento, estão
reconstruindo uma outra identidade, fruto da somatória de encenações geradas que fazem
ecoar em função do papel comunicativo de entrevista. Todas as professoras, como visto,
partem de atividades de decodificação de letras/sons. Trabalham com seus alunos atividades
visomotoras, confirmadas pelas observações da pesquisadora na sala de aula, quando no início
do ano letivo, observou que as professoras A e B, no trabalho com a letra A, levaram em folha
mimeografada o desenho da arara e os modelos de A para as crianças aprenderem: A
maiúsculo e minúsculo em caixa alta, e também A maiúsculo e minúsculo em letra cursiva,
conforme a ilustração abaixo:
48
Figura 6 – Atividade produzida pela professora B.
Assim pode-se dizer que as atividades desenvolvidas eram visomotoras, já que as
crianças observavam o desenho no quadro, as letras, e depois as copiavam em suas folhas,
pintavam e deixavam na sala em exposição por alguns dias para “fixar” melhor. Esse fazer faz
lembrar Bortolotto (1998, p. 9) quando afirma:
[...] O ensino assim fundamentado define momentos precisos para introduzir
fonemas, grafemas, sílabas, palavras, frases ou textos, sempre do “mais simples” ao
“mais complexo”. [...] A aprendizagem se reduz, em todos eles, ao reconhecimento e
reprodução de sinais gráficos, em que se dá ênfase às habilidades perceptivas e
motoras, descuidando-se de aspectos mais centrais da alfabetização.
Para as professoras A, B e A1, a ênfase posta na aquisição da escrita pelos alunos é a
decodificação dos sinais alfabéticos. Ainda que professora B e a professora A1 citem folhetos,
fôlderes e poesias em suas atividades de leitura, as observações revelaram que estes materiais
eram usados, na verdade, apenas para identificação das vogais, sem um trabalho mais amplo
da escrita. Isto significa que esses fôlderes, poesias, textos não foram usados para a leitura,
serviram apenas para identificação de vogais, objeto de estudo da aula.
O trabalho das docentes, apesar dos materiais que utilizam, está centrado no código,
na escrita alfabética. Cagliari (1998, p. 75), relativamente à escrita alfabética, ou seja, aquela
49
que representa os sons da sílaba através de consoantes e vogais, diz que ela “existe apenas
como ponto de partida dos nossos sistemas de escrita, e não como ponto de chegada [...]”.
Observando o trabalho das docentes, verifica-se que, para elas, a escrita alfabética é o ponto
de chegada do trabalho de alfabetização, uma vez que elas querem que o aluno fixe a escrita
de letras ou, no máximo, de sílabas, como explicitado na fala da professora A1. É importante
ressaltar a artificialidade do emprego da sílaba como instrumento para alfabetização e,
sobretudo, a tarefa por ela sugerida de procura de sílabas em textos. Ora, sílaba até pode ser
uma unidade da fala, mas não tem um significado em si, o que dificulta certamente a tarefa
proposta. Como afirma Cagliari (1998, p. 77) “se um falante letrado do português tende a
repetir uma palavra para outro que não a entendeu escandindo as sílabas, o falante não
alfabetizado repetirá a palavra como um todo, confiando na semântica, não na fonética”. Ora,
se o aluno não é alfabetizado, a prática proposta pela docente lhe é totalmente estranha.
Por outro lado, as professoras não citaram atividades de escrita espontânea, o que
nessa fase é muito importante: escrever sem saber escrever e ler sem saber ler, ou seja,
quando o aluno ainda não está alfabetizado, a professora pode dar materiais escritos para as
crianças manusearem e dizerem o que acham que está escrito. Assim, por exemplo, pode-se
distribuir um livro de histórias em que a criança vai seguindo a seqüência dos desenhos e
contando a história, ou seja, “lendo” a história. Assim, a criança lê mesmo sem, ainda, saber
ler.
Também com a escrita, algo semelhante pode acontecer, quando a professora sugere,
por exemplo, que a criança “escreva” da maneira que imagina determinadas palavras e pede-
lhe que leia o que escreveu. Certamente só a criança vai saber ler o que escreveu, mas estará
fazendo uso da linguagem escrita, oportunizando o aparecimento de hipóteses sobre como se
escreve, antes mesmo de ocorrer a aprendizagem formal.
Ao levar a diversidade textual para suas salas, usando os textos para leitura, as
professoras estariam estimulando o desenvolvimento de competência metalingüística, ou seja,
auxiliando o desenvolvimento de capacidades de tomar a linguagem como objeto de
conhecimento e não só de expressão. Se ao levar fôlderes, poesias, rótulos, folhetos
informativos para a sala de aula, estivessem usando o material escrito para o ensino da escrita,
estariam possibilitando que os alunos tomassem a linguagem como objeto de conhecimento.
Infelizmente, as respostas das docentes e as observações feitas mostraram que isso não foi
feito. Esses materiais escritos são usados apenas para identificação de letras no meio das
palavras. Lamentavelmente, na prática das docentes entrevistadas, é importante a
decodificação sem reflexão do uso da escrita.
50
Paradoxalmente, as respostas das professoras sobre a compreensão do que é alfabetizar
revela uma visão mais próxima do que aqui foi definido como letramento:
P.A.: Alfabetizar é fazer a criança se apropriar da aprendizagem, da leitura e da
escrita.
P.B.: Alfabetizar é mostrar o caminho para o aluno chegar ao conhecimento
desejado.
P.A1: Alfabetizar é inserir o aluno na sociedade, torná-lo capaz de interagir com
tudo e com todos a sua volta, é nesse sentido que alfabetizar torna-se necessário,
pois é só a partir disto que o aluno pode decidir o quê e como fazer.
Como já citado, segundo Soares (2003, p. 13), a alfabetização implica a aquisição de
uma tecnologia, a de codificar em língua escrita (escrever) e decodificar a língua escrita (ler),
porém não basta ao aluno adquirir essa tecnologia, ele precisa usá-la em práticas sociais de
leitura e escrita, em práticas de letramento.
Observe-se que a professora A diz que alfabetizar é fazer a criança se apropriar da
aprendizagem da leitura e da escrita. O uso do vocábulo “apropriar” sugere uma relação forte
com Vygotsky (apud REGO, 1995). Parece que as professoras têm em mente a necessidade de
ir além da alfabetização no processo de construção da escrita de seus alunos, mas o trabalho
real observado não condiz com essa representação que fazem.
A partir das observações sobre a maneira como as professoras apresentam a escrita
para os alunos, primeiro as vogais, junção de vogais, palavras, frases, e, finalmente, textos, e
da análise das respostas obtidas percebe-se que algo que não acontece em sala de aula, o
letramento, quando elas estão com a tarefa de iniciar a leitura e a escrita das crianças. Talvez
se pudesse dizer que, em suas concepções, alfabetizar e letrar têm o mesmo sentido.
Em relação à diferença de alfabetizar e letrar foram obtidas as seguintes respostas:
P.A.: Sim, alfabetizar pra mim é uma coisa mais complexa, é fazer a criança se
apropriar da leitura, da escrita, de todas as atividades enfim. À medida que a
criança vai-se apropriando, que vai mostrando o seu progresso, aquilo que recebe,
ela apresenta logo em seguida uma reação. E letramento para mim é mais a
identificação, a codificação e a decodificação do código da nossa língua, a
alfabetização é mais complexa.
P.B.: Alfabetização é encaminhar, mostrar as direções a seguir para o letramento.
Já o letramento é... é o conhecimento que já possui e que vai adquirir com o passar
dos tempos.
P.A1: Pra mim é a mesma coisa, pois a pessoa adquire conhecimentos por toda a
vida, está sempre aprendendo, o que não deixa de ser alfabetizado.
Na análise das respostas, uma professora afirma que alfabetizar é uma coisa mais
complexa, é fazer a criança se apropriar da leitura e da escrita e letramento é a identificação, a
codificação e a decodificação..., ou seja, ela troca alfabetização e letramento. Não seria
51
problema ela trocar as definições, a questão mais inquietante, é que, em sala de aula, ela só
trabalha a etapa correspondente à codificação e decodificação. Assim, ela faz os alunos
memorizarem as vogais, por exemplo, ou então “acharem” as vogais e outras letras no meio
das palavras. Até mesmo quando pede para que as crianças pintem a abelha (apresentada
como símbolo da letra “a”), pede para que utilizem os modelos da letra A, como mostra o
trabalhinho recolhido na 2ª aula observada.
A resposta da professora B pressupõe as duas noções questionadas e até indica a
alfabetização como uma etapa do letramento. Sua resposta, contudo, não corresponde à
prática observada, pois a docente faz também o trabalho de identificação das vogais, procura
as sílabas no meio das palavras e propõe muitos exercícios de fixação. Os alunos, enfileirados,
vão lendo do quadro “A, E, I, O, U”.
A professora A1, por sua vez, declara a fusão das noções, o que não seria problema, se
sua prática fosse nessa direção.
Outra questão investigada diz respeito à base teórica que sustenta a ação das docentes
relativamente ao contexto, a alfabetização e ao desenvolvimento/ensino/aquisição da escrita.
A intenção é investigar o que fundamenta a prática dessas docentes, qual é o ponto de apoio
teórico que sustenta as aulas que levam seus alunos a entender como funciona o sistema do ler
e escrever, e por fim se costumam fazer leituras sobre o assunto alfabetização e letramento.
P.A.: Ultimamente tenho feito.
P.B.: Já fiz muito, e agora não o faço mais, mas sei que deveria fazer sempre.
P.A1: Sim, gosto de ler Paulo Freire, Piaget, artigos.
A professora A parece entender a importância da pergunta ao declarar que
“ultimamente tenho feito”, mas não declara o tipo de leitura feita sobre o assunto nem mesmo
o autor lido. Orlandi (1987) prevê que, “quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da
sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade.” Sua resposta parece ter
sido muito mais na certeza do que uma mestranda de Letras, afinal, esperaria ouvir.
Novamente cotejando sua resposta com as aulas observadas, pode-se concluir que suas
leituras talvez sejam sobre decodificação das letras. Embora a docente, às vezes, faça
trabalhos em grupo, e coloque crianças em formação de grupo, elas trabalham sozinhas,
durante uma das observações, em que foram montados grupos de quatro alunos, a professora
deu o desenho da baleia para pintarem, passarem o lápis em cima da palavra e depois
montarem a família do BA, BE, BI, BO, BU.
52
Referente a esse método de ensino, que é a metodologia das cartilhas (a professora não
usa a cartilha para alfabetizar, mas segue o método desenhos/famílias silábicas/repetições),
Cagliari (1998, p. 67) afirma que
A escola precisa se preocupar antes com a aquisição do processo de aprendizagem e
depois com os resultados obtidos pelas crianças. Alfabetizar pelas cartilhas (isto é,
pelo Ba, Be, Bi, Bo, Bu) é desastroso e, quando o aluno aprende e progride nos
estudos, faz isto apesar da escola. Para outros alunos, o método é catastrófico e sem
solução para os problemas, dificuldades e perplexidades trazidos pela tentativa de
busca de conhecimentos na alfabetização.
A professora B diz saber da importância das leituras, mas admite que não está lendo.
A resposta justifica outra afirmação sua, em que diz que alfabetiza dessa maneira porque fez
assim, viu que deu certo, e há oito anos aplica a mesma metodologia, sem ter uma teoria para
justificar sua prática. Há um empirismo em sua afirmação que corrobora a admissão de não
leitura de artigos teóricos.
Como a professora A1 está cursando pedagogia, relata estar lendo Paulo Freire, Piaget,
alguns artigos. Através das observações, é possível reconhecer que seu trabalho, em vários
momentos, está centrado no interacionismo. A docente, quando faz grupos, estimula que os
trabalhos sejam feitos em conjunto e estimula também o papel dos alunos como mediadores,
quando se dirige ao grupo e afirma que quem tem dúvidas pode perguntar aos coleguinhas do
grupo ou chamar a professora para ajudá-los.
Outra questão investigada está relacionada à maneira como as aulas são estruturadas,
com partes definidas, etapas, enfim como são realizados os trabalhos e em que medida são
explorados os novos programas e novos instrumentos de ensino como aparelhos que a escola
adquire (retroprojetor, DVD, livros com sugestões de atividades), quais as novas abordagens
utilizadas, e em que medida são eficazes, ou seja, se promovem desenvolvimento real nos
alunos.
P.A.: Estruturo em algumas coisas como rezar, lição de casa, leitura de pequenos
textos, mas às vezes muda conforme o interesse deles.
P.B: Através de alguns métodos aplicados em anos anteriores, melhorados com
experiências de profissionais mais antigos e alguns livros didáticos, sem seguir
etapas definidas, fazendo conforme dá certo.
P.A1: Procuro ter uma rotina para que os alunos aprendam a organizar-se.
Algumas vezes, se pulo alguma etapa eles logo reclamam. É lógico que existem
pontos que variam, mas no início é fundamental o calendário, ajudante do dia, a
oração, isto não pode faltar.
As respostas dessas docentes mencionam vários aspectos do seu agir, mas o aspecto
rotinas de alfabetização fica sem resposta. Pode-se observar que as docentes “preenchem”, de
53
algum modo as rotinas como necessárias para desenvolver a metodologia preconizada.
Quando diz mudar conforme o “interesse deles”, a professora A coloca-se como ator,
mencionando sempre determinadas possibilidades que se relacionam com as reações ou os
interesses dos alunos.
Diante dessas rotinas que as docentes relatam, tem-se algo que pode ser muito
perigoso, pois as crianças sempre esperam o novo, e, se a escola tornar-se rotineira, pode ficar
“sem graça”, e tornar-se obrigação.
Quando relata que é também através de livros didáticos que fundamenta sua prática, a
professora B apresenta o discurso do método sob a forma de um material didático, um guia
para o fazer pedagógico, mas nada que fundamente teoricamente o seu trabalho. Isso ocorre
ainda quando relata que estrutura suas aulas com métodos aplicados em anos anteriores,
melhorados com experiências de profissionais mais antigos. Para falar em método, é
necessário ter clareza sobre o que é entendido como tal. Possivelmente, o que a docente
chame de método sejam técnicas pedagógicas. Nas observações, foi possível verificar a
utilização de técnicas como montar as famílias silábicas sempre no início do ano, inclusive
guardando fichinhas com desenhos para o ano seguinte, como abelha para A, elefante para a
letra E, igreja para letra I, e assim com as demais letras.
Referente a métodos, Cagliari (1998, p. 65-66) diz que
[...] alguns alunos são submetidos a um processo de alfabetização, seguindo o
método das cartilhas (com livro ou não), são alunos que são expostos
exclusivamente ao processo de ensino [...]. O aluno, seja ele quem for, parte de um
ponto inicial zero, igual para todos, e vai progredindo, através dos elementos já
dominados de maneira lógica e ordenada [...].
Um método de alfabetização que leve em conta o processo de aprendizagem deve
deixar um espaço para que o aluno exponha suas idéias a respeito do que aprende, e não fazer
testes a toda hora (ditados, exercícios estruturais, leitura perante a classe) para ver se o aluno
“acompanha” ou ficou para trás, ocasião em que tudo é repetido de novo, para ver se o aluno,
desta vez, aprende. Parece que isto também é uma realidade no trabalho observado.
Em virtude da falta de distinção entre métodos de alfabetização e práticas, e da mistura
de atividades com o enfoque principal na decodificação, a questão seguinte está relacionada
ao conhecimento das docentes acerca dos métodos mais citados nas obras de Ferreiro e
Teberosky.
M.: Que tipo de trabalho você realiza, mais sintético ou mais analítico?
P.A.: Para ser sincera eu não tenho essa distinção no meu trabalho, não sei se
analítico ou sintético.
54
P.B.: Mais analítico.
P.A1: Procuro realizar um trabalho mais sintético, que envolva todas as formas de
conhecimento, principalmente o conhecimento das crianças, suas vivências.
Os métodos de alfabetização mais divulgados e conhecidos por docentes e
pesquisadores na área da educação são os tipos analíticos, que iniciam o processo de
alfabetização do todo para as partes, e sintéticos, das partes para o todo. Para exemplificar,
entre os analíticos, está o método de palavração e método global, e entre os sintéticos, estão os
métodos fônicos e silábicos. Ferreiro e Teberosky (1989), com relação ao método sintético,
afirmam que inicialmente se pensava que os elementos mínimos da escrita fossem as letras,
motivo pelo qual por muito tempo as crianças aprenderam a ler e a escrever pronunciando as
letras e estabelecendo regras de sonorização da escrita. Influenciado pela lingüística
desenvolveu-se o método fônico que recomenda que se parta do oral, e não da grafia do som,
como era recomendado pelo método alfabético.
Apesar desse posicionamento referente ao método alfabético, verifica-se que as
professoras ainda usam esta maneira de alfabetizar. Demonstra-se aqui, mais uma vez, o
quanto a representação que as docentes fazem da prática está distante do trabalho real de
alfabetização. Isto fica bem na resposta da professora A1, que diz que usa o método que
envolve o conhecimento das crianças, o que fica comprovado não acontecer.
Outra questão da entrevista diz respeito as justificativas que levam as docentes hoje a
usarem esse método de alfabetização. A professora A diz: “fui alfabetizando e vi que dava
certo, então sempre faço assim”; a professora B responde: “o tempo, a experiência, a
criatividade”; e a professora A1 relata o seguinte: “na verdade ainda estou construindo meus
métodos, pois leio muito a respeito de alfabetização, procuro usar atividades e técnicas que
mais se encaixem com a turma, pois cada turma tem seu ritmo e desenvolvimento próprio.
Estou sempre tentando me atualizar”.
As práticas das professoras A e B foram construídas a partir da própria experiência,
enquanto a professora A1 afirma ainda estar construindo seu “método”, a partir de leituras.
Sua atividade, entretanto, mostra um processo de construção da alfabetização em conjunto
com outras colegas da escola. Apesar de acatar as sugestões das colegas, em muitos
momentos sua prática se difere. Em uma de suas aulas, em meados do mês de outubro, foi
realizado o seguinte trabalho: a professora organizou a sala em grupos de quatro alunos e,
como estava próximo o dia da criança, levou para sala vários livrinhos, os quais distribuiu
para que as crianças conhecessem os direitos e deveres da criança. Depois disso, leu-os com
os alunos e pediu que criassem mais alguns direitos e deveres que achavam importantes e não
55
estavam ali. Os grupos conversaram e produziram. A professora foi orientando-os e, no final,
cada grupo apresentou sua produção para a sala toda. Houve grande interesse de todos os
alunos nessa atividade, até porque, naquele momento, a escrita estava sendo apresentada de
maneira significativa para eles.
Outro dado da entrevista está relacionada às dificuldades encontradas pelas
professoras nas práticas de ensino de ler e escrever.
P.A.: Eu acho que é para eles lembrarem as letras e o som assim como /b/ mais /a/,
igual a /ba/, e também muitos deles não demonstram interesse em vir para a escola,
parece que estão ali porque o pai e a mãe mandam.
P.B.: Primeiro a falta de estímulo por parte da família, e segundo a falta de
interesse do aluno.
P.A1: A falta de comprometimento dos pais, pois alguns deixam somente para a
escola esta tarefa, também o excesso de informações oferecidas pela mídia acaba
por tornar a escola chata, sem atrativos.
As três docentes colocam como problemas a falta de interesse das crianças, a falta de
comprometimento dos pais, a falta de estímulo da família, o que é verdade, mas, já que a
clientela da escola vem das camadas populares e de famílias com baixo nível de letramento, é
necessário que a escola traga, antes de qualquer procedimento, a significação da escrita para
esses alunos, a fim de que eles se interessem em aprender a ler e escrever, e saibam onde vão
usar a leitura e a escrita.
Um ponto importante que também leva ao desestímulo dessas crianças é a
metodologia das cartilhas presente na prática das professoras, o que deixa a aula
desinteressante. Em uma das aulas observadas, uma das atividades era a cópia do texto,
seguida da cópia das respostas sobre perguntas a respeito desse texto. Nessa atividade, as
crianças desenvolveram apenas a estratégia de localização de respostas, o que não exigiu a
compreensão das perguntas. Por exemplo, se o texto da cartilha fala que o sapo pula e depois
vem a pergunta: quem pula?, a criança apenas copia a palavra sapo, com o objetivo de apenas
fixar a palavra, aí ocorre simples decodificação.
Para o trabalho de alfabetização acontecer com sucesso é necessário que professores
tenham, no desenvolvimento de suas práticas, o conhecimento da realidade do aluno. Sobre
isso Cagliari (1998, p. 70) faz a seguinte afirmação:
[...] conhecer a realidade do aluno não é uma tarefa metodológica ou psicológica: é
interpretar de maneira correta os conhecimentos que o aprendiz tem a respeito do
que faz e do jeito que faz. Para isto, o professor não precisa de conselhos
pedagógicos, mas de conhecimentos técnicos específicos, detalhados e complexos, a
respeito do assunto que ensina e das coisas que o aluno está querendo aprender.
56
O posicionamento das docentes a respeito desse aspecto foi o tema de outra questão da
entrevista:
M.: As crianças chegam na escola com algum conhecimento sobre a escrita?
P.A.: Algumas sim, quando em casa os pais ou irmãos ensinam o nome de algumas
letras, o nome dos pais, mas algumas não sabem nem pegar no lápis.
P.B.: Alguns sim.
P.A1: Sim, quem freqüenta o pré já vem preparado, conhece os números e letras, já
está acostumado ao ambiente escolar.
O que as professoras afirmam tem a ver com o ambiente escolar. Novamente, não
trazem para suas reflexões aquilo que Luria em relação a vida da criança, chama de a “A
história da escrita” a qual “começa muito antes da primeira vez em que o professor coloca um
lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras”.
O momento em que uma criança começa a escrever seus primeiros exercícios
escolares no caderno de anotações não é, na realidade, o primeiro estágio do desenvolvimento
da escrita. As origens desse processo remontam a muito antes ainda, na pré-história do
desenvolvimento das formas superiores do comportamento infantil. “Pode-se até mesmo dizer
que, quando uma criança entra na escola, ela já adquiriu um patrimônio de habilidades e
destrezas que a habilitará a aprender a escrever em um tempo relativamente curto” (LURIA,
2001, p. 143-189).
Esse é mais um conhecimento que o professor alfabetizador precisa ter, pois tem
grande diferença entre olhar o aluno como um ser que nada sabe, ou alguém que já construiu
uma base para se apropriar da língua escrita, mesmo que essa base venha das palavras
encontradas nos pacotes da cesta básica, como é o caso das crianças que vêm das camadas
populares. Mas, de qualquer forma, algum contato com a escrita essas crianças certamente já
tiveram, já perceberam que entre números e letras existem diferenças, já conhecem o nome de
certos produtos, enfim, sabem que existe a escrita.
Também durante as observações, foi possível perceber que nenhuma das docentes
viam, naqueles alunos com maiores dificuldades, o sujeito que mais necessitava de um
mediador, de uma ajuda para entender o que estavam fazendo dentro daquela sala e também
como fazer as atividades solicitadas pela professora. Apesar de, durante as entrevistas, a
professora B relatar que “usa” um colega que já entendeu para ajudar, em nenhum momento
das observações ocorreu tal procedimento. Esse fato determinou uma outra questão na
entrevista:
57
M.: Como você, normalmente, intervém para ajudar as crianças com maiores
dificuldades?
P.A.: Eu as deixo mais perto de mim para poder acompanhar o que e como estão
fazendo.
P.B.: Aquelas com maior dificuldade merecem atendimento mais individualizado, e
também sentando com um colega de melhor rendimento.
P.A1: Algumas crianças sabem fazer mas, devido à superproteção recebida em casa
exigem atenção, por isso as ajudo para elevar sua auto-estima, mostrando que são
capazes de fazer sozinhas, elogiando suas iniciativas....
Em relação ao “papel do outro” na construção do conhecimento Vygotsky (1995, p.
109) afirma que “o indivíduo se constitui enquanto tal, não somente devido aos processos de
maturação orgânica mas, principalmente, através de suas interações sociais, a partir das trocas
estabelecidas com seus semelhantes”. Assim, “para que a criança possa dominar os
conhecimentos é fundamental a mediação do indivíduo, sobretudo dos mais experientes de
seu grupo cultural”.
Nas salas das aulas observadas, o professor não possibilita a mediação por parte dos
colegas, até porque o trabalho mais individualizado é pouco feito em sala de aula. A
professora trabalha no geral, com o todo do grupo.
Para poder interferir no processo de aprendizagem dos alunos é importantíssimo saber
em que fase do desenvolvimento seus alunos se encontram. Para verificar se as docentes
fazem seu trabalho levando em consideração as fases do desenvolvimento da escrita, a outra
questão formulada às docentes busca explicitar se elas percebem que há crianças em
diferentes níveis de desenvolvimento relativamente à aprendizagem da leitura e de escrita.
P.A.: Eu vejo da seguinte maneira: cada criança tem um desenvolvimento e não é
pelo fato de elas terem a mesma idade que irão acompanhar igual.
P.B.: Sim, existem diferentes níveis. Eu ainda vejo essa causa analisando a bagagem
e o estímulo que a criança traz de casa. A criança estimulada possui outro
desenvolvimento.
P.A1: Eu acho que as experiências trazidas e vividas em casa têm grande influência
em todo o desenvolvimento da criança, quanto maiores os estímulos recebidos
maior será a curiosidade de aprender, mas um ambiente pobre em estímulos acaba
por acomodar, ou até mesmo desestimular a criança em buscar o novo, pois esta
não vê perspectivas.
É evidente o desconhecimento por parte das docentes das fases da aquisição da escrita,
uma ferramenta de suma importância para que o trabalho de alfabetização ocorra de forma
natural, que leve os alunos a usarem a escrita como rotina de suas vidas, não algo
descontextualizado que só sirva para ser usado na escola.
58
O trabalho de alfabetização, tal qual transparece nas entrevistas, é facilmente
identificado em suas práticas, ratificadas nas observações feitas em sala de aula. Por um lado,
o que as professoras expressam sobre seu trabalho parece colado à ideologia presente nos
livros didáticos, a metodologia das cartilhas, referida por Cagliari, ainda que, segundo as
entrevistas, não usem cartilhas para alfabetizar, “porque são de nível muito elevado”. Por
outro lado, regularmente, assinalam a insuficiência e a inadequação de suas próprias
capacidades e, sobretudo, resistem a fazer a descrição do que efetivamente ocorre em sala de
aula, talvez para mascarar suas reais dificuldades de refletir sobre como ocorre a aquisição da
escrita por seus alunos.
59
5 O ACOMPANHAMENTO DA AQUISIÇÃO DA ESCRITA PELOS ALUNOS
5.1 O PERCURSO DOS DOIS GRUPOS
A partir dos exemplos relacionados às hipóteses da aquisição da escrita, foram
elaboradas tabelas para mostrar o percurso de cada um dos sujeitos com relação a essas
etapas.
Tabela 2 – Turma A - Acompanhamento da construção da escrita até o nível alfabético
Data 01.04 15.04 30.04 20.05 06.06 26.06 29.07 12.08 9.09 30.09 14.10 15.11 01.12
Aluno
A.F.
n-2 n-2 ----
4
n-4 n-4 n-5
S.M.
n-1 n-2 n-4 n-4 n-5
D.S.
n-3 n-4 n-4 n-5
G.L.
n-1 n-2 n-4 n-4 n-5
H.F.
?
4
----- n-4 n-4 ---- n-5
J.E.
n-1 n-4 n-4 n-4 n-4 n-5
S.M.
n-1 n-2 n-2 ---- n-4 n-5
M.S.
n-4 ---- n-4 --- n-5
S.G.
n-2 n-2 n-4 ---- n-5
V.B.
n-1 n-2 n-4 n-4 n-5
Fonte: Elaborada pela autora.
Como pode ser observado, o ponto de partida das crianças, considerando-se as etapas
previstas por Ferreiro, era bastante diversificado: 5 delas apresentavam escrita indiferenciada,
2 já mostravam escrita diferenciada, 1 estava na hipótese silábica e 1 na hipótese silábico-
alfabética. Na primeira coleta, então, 50% dos alunos da turma A apresentavam-se no nível 1.
No final do mês de abril, já se podia verificar que 80% deles estavam no nível 4, e até junho
todas as 10 crianças já estavam no nível 5, ou seja, tinham atingido a etapa alfabética.
60
Tabela 3 – Turma B - Acompanhamento da construção da escrita até o nível alfabético
Data 1.04 15.04 30.04 20.05 6.06 26.06 29.07 12.08 09.09 30.09 14.10 15.11 01.12
Aluno
A.P.
n-1 n-2 n-3 n-4 n-4 n-5
A.S.
n-1 n-2 ---- n-2 n-3 n-3 n-4 ---- ----
n-5
G.R.
n-2 n-2 n-4 n-5
H.M.
n-1 n-2 n-3 ----- n-3 n-3 n-4 n-4
n-4 n-4 n-5
J.P.
n-1 n-2 n-3 ----- n-4 n-5
D.A.
n-1 n-2 n-3 n-4 ----- n-4 n-4 ----
n-4 n-5
R.S.
n-1 n-1 n-3 n-3 n-4 n-4 n-5
W.D.
n-2 n-2 n-3 ----- n-3 n-3 n-4 n-4
n-4 n-5
T.A.
n-1 n-2 n-4 ----- n-5
T.J.
n-1 n-1 n-4 ----- n-5
Na classe B, 80% das crianças inicia seu processo de construção da escrita no nível 1.
Apenas 2 delas já mostravam escrita diferenciada nessa época. Na coleta do mês de maio,
houve um imprevisto e poucas crianças estavam na sala de aula nesse dia, o que impediu a
verificação da evolução do grupo como um todo. Já na coleta do mês de junho, embora 30%
ainda estejam no nível 3, 30% encontram-se no nível 4, 30% estão no nível 5. Fazendo um
comparativo com a classe A, em que 100% dos alunos estavam na fase alfabética nessa
mesma época, na turma B essa progressão foi mais lenta e gradual. No mês de agosto, 60%
das crianças atingiram a fase alfabética. Essa progressão continuou em setembro, quando 90%
dos alunos estavam no nível alfabético. Só em outubro, a totalidade da turma atingiu a etapa
alfabética.
Na comparação entre as duas turmas, há diferença relevante quanto ao mês em que
todas as crianças alcançam o nível alfabético, uma vez que os alunos da turma A atingem
bem mais precocemente essa etapa (no mês de junho), enquanto a totalidade da turma B só a
atinge em outubro. A diferença pode estar vinculada ao grau de letramento familiar. É bom
lembrar que, na turma B, nenhum dos pais estudou além da quarta série do Ensino
Fundamental, enquanto, na turma A, alguns dos pais concluíram um curso superior. Parece
confirmar-se, então, que crianças que vêm de ambientes letrados conseguem construir mais
rapidamente o sistema da escrita, pois chegam à escola com uma significação maior da escrita
no seu contexto social. Independentemente da rapidez da progressão de uma e outra turma, é
possível afirmar, entretanto que as docentes desses grupos tiveram sucesso na sua missão de
alfabetizar, vista como decodificação do sistema da escrita, já que todos os alunos atingiram a
hipótese alfabética. Mas até que ponto essa decodificação passou a ter valor social para essas
61
crianças? Até que ponto elas crianças que eram capazes de produzir a escrita de letras, sílabas,
palavras, eram capazes de produzir textos? Este foi o próximo desafio identificado.
5.2 O PERCURSO DE QUATRO ALUNOS ATÉ A AQUISIÇÃO DA ESCRITA
ALFABÉTICA.
Para esta análise, serão apresentados exemplos de dois alunos da turma A (G.L. e J.E.)
e dois alunos da turma B (G.R. e R.S., escolhidos aleatoriamente) entre os dez mais
freqüentes à sala de aula.
5.2.1 O percurso de G.L. (Turma A)
A aluna G.L., 7 anos, é filha de mãe solteira, empregada doméstica. Sua casa fica a
mais ou menos 20 km da escola, por isso usa o transporte escolar que a prefeitura municipal
oferece. Mora com a mãe, a avó e três irmãos mais velhos, que freqüentam a mesma escola.
Embora habite em uma vila popular, recebe ajuda familiar e sempre compra o material
indicado pela Escola. Suas produções estão disponibilizadas no Anexo D.
Por ocasião da primeira coleta de dados, encontrava-se no nível 1 de escrita
indiferenciada. Segundo Azenha (1993, p. 63), uma das principais características pertencentes
a esse nível é a baixa diferenciação existente entre a grafia de uma palavra e outra. Os traços
são bastante semelhantes entre si e, dependendo do tipo de escrita com a qual a criança teve
maior interação, os grafismos podem ser constituídos de traços descontínuos, como o modelo
de letra de imprensa, ou com maior continuidade, como o traçado da letra cursiva. Dada a
semelhança que as escritas têm quando comparadas entre si, o que as diferencia é apenas a
intenção do produtor. A interpretação, portanto, só pode ser feita pelo próprio autor.
O texto 1 de G.L. mostra esses rabiscos na sua primeira linha. Foi desconsiderada a
segunda linha, por ser constituída por uma tentativa de cópia de A princesa e o sapo, que
estavam escritos no quadro.
Na segunda coleta, a criança evidencia nível dois, de diferenciação da escrita, em que
a principal característica, de acordo com Azenha (1993, p. 66)
62
[...] é a tentativa sistemática de criar diferenciações entre os grafismos produzidos. A
necessidade de diferenciar a intenção do produtor é objetivada pela criação de
totalidades gráficas distintas. A hipótese da quantidade mínima de caracteres que
deve compor uma escrita e a necessidade de variá-los continuam como exigências
presentes. No entanto, estas exigências são agora acrescidas da intenção de objetivar
as diferenças do significado das palavras.
Também no texto 2, só a primeira linha foi considerada (OMATOCTCOI), pois as
palavras TIA, DOROTI, SAPATINHO e BRUXA foram copiadas da colega sentada a seu
lado.
Na terceira coleta de dados, feita no dia 30.04, G.L. mostra ter alcançado o nível 4. O
material coletado não mostra a passagem pelo nível 3, o da hipótese silábica. Também na
coleta de 20.05, permanece o nível 4, hipótese silábico-alfabética, “em que as alterações vão
sendo feitas pontualmente, em alguns segmentos de escrita e não em outros, dentro da mesma
palavra”. É o caso de PILI para pintinho, de TATAGA para tartaruga, ou de KAR para
carteira. “É um momento de transição, em que a criança, sem abandonar a hipótese de
estabelecer relações entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico do registro,
ensaia em alguns segmentos a análise da escrita em termos dos fonemas (escrita alfabética)”
(AZENHA, 1993, p. 82).
A partir da coleta de 06/06, aparece o nível 5, ou seja, a hipótese alfabética. “Neste
estágio a criança já venceu todos os obstáculos para a compreensão da escrita – cada um dos
caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba – e realiza
sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever. O que a
criança alcançou até aqui não significa a superação de todos os problemas. Há o alcance da
legibilidade da escrita produzida, já que esta é mais facilmente entendida pelos adultos. No
entanto um amplo conteúdo ainda está para ser dominado: as regras normativas de
ortografia.” (AZENHA, 1993, p. 85). Isto pode ser verificado quando G.L. produz: “agalinha
choco... dequem e naceu patinho”, possivelmente querendo significar: a galinha chocou o ovo
e nasceu um patinho.
5.2.2 O percurso de J.E. (Turma A)
A segunda criança a ser analisada foi J.E., que mora perto da escola e sempre está
acompanhado de sua irmã, que também estuda na escola. Mora com os pais e 4 irmãos mais
63
velhos que também estudam na mesma escola. A mãe é professora, o pai é funcionário
público. Suas produções estão disponibilizadas no Anexo E.
Na primeira coleta de dados, J.E. que estava no nível 1 da construção da escrita pela
pequena diferenciação existente entre a grafia de uma palavra e outra. Analisando sua
produção ao lado de vários outros colegas, entretanto, foi percebido que os sinais usados
parecidos com a letra M, possivelmente não significassem que, naquele momento, J.E.
estivesse em nível 1. Talvez a criança, nesse dia, tenha imitado coleguinhas e apenas
desenhado, pois, na coleta seguinte, do dia 15/04, demonstrou estar no nível 4, em que as
alterações vão sendo feitas pontualmente, em alguns segmentos de escrita e não em outros,
dentro da mesma palavra. Escreve “ONARIO.BEOZ” para significar: o mágico de Oz.
Nas coletas seguintes, permanece no nível 4, pois, em 30.04, escreve PALAO para
palhaço, PILI para pintinho, PAT para pato; no dia 20.05, escreve LAPM para
lâmpada,CDSNO para caderno, BORAXA apenas com a troca do /ch/ e, na coleta de 06.06,
para galinha escreve JALIEHA, para choca faz COQ.
Já na coleta do dia 26/06, J.E. nitidamente alcança o nível 5, pois “cada um dos
caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba” (AZENHA, 1993),
como em: “vidos e o jacaré era anos e ram anos um jacaré f aminto desasfor mas de carne
comia o jacar é e um animal muito perigoso jamais cheguei...”.
5.2.3 O percurso de G.R. (Turma B)
A aluna G.R. é uma criança que mora com os pais e os irmãos, a dois quilômetros da
escola, o que a faz também utilizar o transporte escolar. Sua família é bastante carente, seu
ambiente conta com pouco material escrito. Suas produções estão disponibilizadas no Anexo
F.
Na primeira coleta do dia 01/04, G.L. estava no nível 2, pois, além de desenhos, fez
uma seqüência de letras, do tipo AOEINKWVUR, OAKTMLOEQÇ. Foi considerado nível 2,
porque, segundo Azenha (1995, p. 66), a principal característica dessa fase “é a tentativa
sistemática de criar diferenciações entre os grafismos produzidos. A necessidade de
diferenciar a intenção do produtor é objetivada pela criação de totalidades gráficas distintas. A
hipótese da quantidade mínima de caracteres que deve compor uma escrita e a necessidade de
64
variá-los continuam como exigências presentes. No entanto, estas exigências são agora
acrescidas da intenção de objetivar as diferenças do significado das palavras”.
Na coleta do dia 15/04, G.L. continuava no nível 2, pois fez uma seqüência de letras
juntamente com alguns desenhos, escreveu: AEIABATTFAD ATEHAE OWUC
KEUVOMN. Foi desconsiderada a primeira linha em que aparece escrito SAPATO e SAPO,
pois, essas palavras estavam escritas no quadro e G.L. as copiou.
Na terceira coleta, G.L. estava no nível 4. Assim, para palhaço escreveu PASO; para
pintinho PITI, para passarinho PASRI. Como verificado, algumas sílabas aparecem
completas; em outras, uma letra pode estar representando uma sílaba.
Na coleta do dia 20/05, G.L. já havia alcançado o nível 5, como se vê em BORAXA,
AMARIO, ROZA, CADENO, PAPE, o que corresponde a borracha, armário, rosa, caderno e
papel. Ainda que a grafia não esteja de acordo com a ortografia vigente, a legibilidade é
possível e a cada segmento fônico corresponde uma representação gráfica.
5.2.4 O percurso de R.S. (Turma B)
R.S. mora em uma vila, a mais ou menos 6 quilômetros da escola, e utiliza transporte
escolar. Vive com os pais agricultores, e 4 irmãos, em um ambiente com pouco material
escrito. Suas produções estão disponibilizadas no Anexo G.
Durante a primeira e segunda coleta, feitas nos dias 01/04 e 15/04, R.S. fez apenas
desenhos e escritas indiferenciadas, característica do nível 1. Na coleta do dia 15/04, R.S.
escreve sapato, mas desconsiderei essa escrita, pois a palavra tinha sido copiada do quadro.
Na terceira coleta, do dia 30/04, R.S. estava no nível 4 da construção da escrita, que é
a hipótese silábico-alfabética. R.S. escreve PALASO para palhaço, PAO para pato, TAUGA
para tartaruga. Na coleta do dia 20/05 R.S. continua no nível 4, pois, ainda que escreva
AMARIO (para armário) ou JAMILA (para janela), usa a representação CADNA para
caderno. Esta fase se prolonga ainda nas coletas de 06/06 e 26/06, quando R.S. escreve para
galinha: HLINHA: para vizinho: VIZINO; para ganhou: GAIU.
Na coleta do dia 29/07, é possível afirmar que R.S. está no nível 5 da construção da
escrita, como mostra em “um passeio saimos de elcola por uma rua de asfaau ao çega maesqui
vim um homem trabalhaodo”.
65
5.3 Formulação de Categorias
Segundo Soares (2001, p. 9), “Ler um texto é instaurar uma situação discursiva”.
Ainda segundo esta mesma autora, “escrever um texto para certo leitor é interagir com esse
leitor”. Na escola, muitas vezes a produção de textos se dá no âmbito de somente escrever,
restrito ao processo de decifração/descrição de signos lingüísticos. Dependendo da concepção
de linguagem e de aprendizagem, o docente vai encaminhar seu aluno para a produção de
texto com a referência de um leitor, ou apenas o texto típico escolar, que consiste em
narrativas sem preocupação de conflito/resolução, ou em narrativas que visem apenas a
“escrever”, sem levar o aluno a produzir textos a respeito de fenômenos sociais que
ultrapassem os limites da escola.
Para a análise dos diferentes textos produzidos pelas crianças, foram inicialmente
formuladas algumas categorias que pudessem dirigir a análise propriamente dita. Como o
objetivo era verificar o percurso de aquisição da escrita sob dois pontos de vista: a
alfabetização e o letramento, as categorias encontradas estão divididas nesses dois níveis:
A. Presença de título semelhante ou cópia do que foi dado pelo professor:
Geralmente no texto escolar, as crianças não constroem um título que abranja globalmente o
significado do texto, limitando-se a escolher uma das palavras várias vezes no texto, ou até
mesmo o personagem principal. Segundo Costa (2000, p. 83-86) “[...] muitas vezes o título
dado ao texto escolar produzido não tem função operacional discursivo-enunciativa, ou seja,
não contempla o significado global/total do texto produzido, não há uma possível relação de
sentido global entre título e texto”. Nos textos escolares, os títulos até podem ter relações de
sentido com as frases construídas, mas, como não há uma situação real de produção de uso de
língua “viva”, cristalizada em um tipo de gênero discursivo, eles não contemplam um possível
significado global dos enunciados que seriam produzidos.
B. Repetição de palavras do texto/cópia (escolhas lingüísticas pré-determinadas):
Com objetivo de fixar como escreve determinadas palavras, é comum encontrar, nos
livros didáticos, textos construídos com repetições de palavras, com poucas informações,
visando apenas à decodificação. Costa (2000, p. 83) afirma a esse respeito que,
[...] no texto escolar, o conteúdo informacional é um modelo que deve ser seguido
por todos os alunos e deve ser escriturado por meio de estruturas repetitivas, frases e
66
expressões semelhantes, para não dizer idênticas, em um exemplo típico de prática
de produção de texto tradicional, em que predomina a concepção de que aprender a
ler e a escrever é apenas um processo de aquisição ou apropriação de uma
tecnologia.
C. Prática cartilhesca e mecanicista da linguagem:
Os textos de algumas cartilhas valorizam a fixação de sílabas e palavras em que se
objetiva o aprendizado como algo mecânico e não como uma apropriação da linguagem em
que a criança terá autonomia de escrever sem estar presa a textos repetitivos, sem conteúdo
informacional. Costa (2000, p. 82) sobre este assunto faz a seguinte colocação: “Na escola, as
práticas de leitura e escrita são, muitas vezes, arquitetadas sob formas de textos que não
‘comunicam’. Isso acontece nas séries iniciais, em que predomina uma prática cartilhesca e
mecanicista da linguagem”.
D. Estrutura canônica geral:
Muitas vezes, os textos escolares ficam presos a seqüências narrativas, ao modelo de
que toda história precisa ter começo/meio/fim ou introdução/desenvolvimento/fecho ou
conclusão. Como afirma Costa (2000, p. 84) “Essa concepção orienta a produção de muitos
textos escolares, como se as estruturas organizacionais dos gêneros fossem fixas e eles não
fossem de natureza conteudística e lingüístico-discursiva heterogênea”. Muitas vezes as
crianças ficam presas a escrever muito mas não observam o que estão escrevendo, a produção
de textos resume-se a textos que não “comunicam”.
Categorias de letramento
A. É possível identificar um gênero de texto?
Para esta categoria, será considerada não somente a identificação de um gênero
textual, mas sobretudo será visto se o aluno consegue apresentar um tipo discursivo claro.
Assim se escrever um texto narrativo e não for possível identificá-lo como um conto de fada
ou uma crônica, será verificado se o texto apresenta uma seqüência narrativa que contenha
complicação e resolução. Como afirma Costa (2000, p. 86) “Para a identificação de gêneros é
necessário observar se o aluno, na produção de um texto, adaptou as características de um
contexto e do referente (capacidades de ação) e dominou as operações psicolingüísticas e as
unidades lingüísticas necessárias (capacidades lingüístico-discursivas)”. Caso o aluno não
tenha conseguido esses objetivos, será verificado se o seu texto ao menos tem
complicação/resolução.
67
B. É possível identificar diferentes vozes presentes no texto? (discurso direto x
discurso indireto).
Segundo Bronckart (1999, p. 326), para a identificação das diferentes vozes é
necessário que se observe qual a entidade que assume a responsabilidade do que é enunciado.
Dentro dos enunciados, pode-se ter uma ou várias vozes que são infra-ordenadas em relação
ao narrador ou ao expositor, ou seja, pode-se falar de vozes de personagens, vozes de
instâncias sociais e a voz do autor empírico.
C. Título representa o conteúdo do texto, revelador de nível de criatividade da
própria criança?
Diferentemente do título nas questões do produto “alfabetização”, a instância do
letramento reconhece o título como algo criativo que dá informações globais a respeito do que
se trata o texto, Costa, (2000, p. 82) faz a seguinte colocação a respeito deste assunto: “Os
títulos dados aos textos não são meros enfeites ou meras escolhas lingüísticas aleatórias, mas
são enunciados”. Os títulos devem contemplar o significado global/total do texto produzido.
D. As palavras (ou as escolhas lingüísticas) possuem significação, revelam a
preocupação do conteúdo e são informativas contribuindo para o avanço do texto?
Através dos significados é que os sujeitos compreendem o mundo e podem fazer uso
das palavras. Para Vygotsky (1934, apud COSTA, 2000, p. 104)
Significação é o processo no qual o sujeito vai ajustando os significados aos
conceitos predominantes no grupo cultural e lingüístico a que pertence. Na escola, a
estruturação conceitual da criança e do (a) jovem se faz a partir de definições,
referências ou conceitos, mediados pelo conhecimento/saber acumulado nas
diferentes ciências, portanto consolidado na cultura.
Dessa forma as palavras, mesmo que pré-linguisticamente determinadas, só se
constituem a partir do sentido no decorrer do texto. A partir do conhecimento das palavras,
nas diversas ciências, os sujeitos delas se apropriam para construir significações.
5.3.1 Análise da produção textual
68
Serão analisados com mais profundidade, de acordo com as categorias que permitem
mostrar questões de letramento, os três últimos textos produzidos pelas quatro crianças: G.L.,
J.E., G.R. e R.S..
5.3.1.1 O percurso de G.L.
O primeiro texto em análise é de G.L., produzido no dia 14.10.2006
5
, obedeceu à
proposta de produzir uma história relacionada com desenhos de uma folha mimeografada, em
que apareciam árvores, um pássaro, montanha, sol, enfim uma paisagem.
G.L. mostra dominar a escrita alfabética. Embora não coloque o título em destaque,
escreve “O madagascar”, sem articulação com o que o texto que segue. Parece ser este o título
de seu trabalho. Relaciona, primeiramente, desenho e texto, descrevendo, inicialmente, o que
há na gravura, interpretada por ela como uma floresta. Suas primeiras frases são escritas na 3ª
pessoa, com narrador neutro. A partir da 5ª linha, introduz-se como autora empírica e passa a
usar “eu”. Começa a narrativa sem mudança de cenário, colocando-se, ao mesmo tempo,
como autora e como personagem. Descreve uma cena de brincadeira com suas colegas e relata
ainda um fato com um passarinho. A partir desse acontecimento, que poderia ter a
complicação do passarinho machucado, consegue dar um final, demonstrando a artificialidade
da sua escrita, em que várias cenas são combinadas numa tentativa de narração. Parece ter de
cumprir a tarefa de escrever muito, sem observar se o texto realmente está comunicando algo.
Não há nenhuma relação entre o título “O madagascar” e o restante do texto, a não ser o fato
de que o cenário proposto pela professora poderia lembrar o de uma floresta, cenário de um
filme com o título Madagascar.
Percebe-se, assim, que, “como não há uma situação real de produção de uso da língua
‘viva’” (COSTA, 2000, p. 83), G.L. não consegue contemplar um possível significado global
aos enunciados produzidos. Ela produz seu texto dentro dos parâmetros do que se pode
chamar de texto escolar.
Nas questões relacionadas ao letramento, é perceptível que G.L. não consegue
apresentar um tipo discursivo claro, passa de uma descrição para um relato, o que impede a
identificação de um gênero de texto. Somente é possível dizer que existe uma complicação e
_____________
5
Os textos integrais de G.L. encontram-se no Anexo D.
69
uma resolução no final de sua produção, como uma marca para poder terminar, para dar um
fim ao seu texto. Também é possível perceber que G.L. coloca diferentes vozes em seu texto,
pois começa descrevendo na 3ª pessoa e logo em seguida começa o relato do que aconteceu
com ela, ou seja, aparece a voz do narrador e a do autor empírico. O título não aparece como
algo criativo, dando informações globais a respeito do que se trata o texto. Sua escolha
aparece relacionada ao filme que os alunos assistiram dias antes, (o desenho da floresta com
os animais do filme). Este fato mostra que é através dos significados que os sujeitos
compreendem o mundo e podem empregar as palavras, fazendo uso das significações
construídas, mesmo que elas não possam ser comuns a outros leitores. Como interpretar o
madasgascar, sem o contexto de os alunos terem visto este filme? Enfim, trata-se de um texto
produzido para um único leitor: a professora, que vai, possivelmente, entender a referência
proposta por G.L..
No texto seguinte, do dia 15.11, G.L. reescreveu a história ouvida, como foi solicitado
pela professora, e colocou o título igual ao dessa história, que é o nome da personagem
principal. Nesse caso, há relações de sentido entre o título e as frases construídas, mas G.L.
não consegue reproduzir a narrativa propriamente dita, limitando-se a descrever a
personagem. A repetição da palavra “cachinhos” no texto demonstra a necessidade de
preencher os espaços do texto, Também no texto, percebe-se que G.L. tenta fazer o modelo de
narrativas, a partir do começo (“um dia”), mas acaba por produzir um texto que não
“comunica” a história que deveria recontar. G.L. não consegue repetir o gênero conto infantil,
usa a marca vazia que entende identificar uma história infantil começando com “um dia”. Na
continuidade de seu texto, demonstra novamente que seu objetivo é apenas escrever, sem
preocupar-se com a relação de sentido instaurada. O texto não apresenta
complicação/resolução. As escolhas lingüísticas não aparecem como reveladoras de
compreensão da história contada pela professora.
Na coleta do dia 01.12, foi introduzido outro gênero de texto. Para isso, foram
trazidos alguns, mostrando uma propaganda, um anúncio de venda ou um classificado de
jornal. Assim os alunos ficaram livres para criar o texto, dentro desses gêneros. G.L. fez seu
texto dentro de um padrão cartilhesco. Colocou figuras e apenas montou frases como: “o
celular e pequeno mas e bonito e o preso é 5,27”. Apesar de ser comum esse tipo de textos (os
folhetos de propagandas) na cidade onde mora, G.L. ainda não consegue relacionar suas
produções com os textos de circulação fora da escola. Mais uma vez foi possível perceber o
quanto as produções escolares estão longe da vida fora da escola: mesmo na criação de uma
situação real de produção de uso da língua “viva”, G.L. não consegue fazê-lo, pois, na escola,
70
até então, priorizava-se somente escrever por escrever, sem levar em conta outros usos da
escrita fora da escola. Novamente se manifesta, de forma clara, o produto alfabetização.
No texto produzido em 2006, as atividades de G.L. apresentam-se mais próximas ao
gênero sugerido: a propaganda, mas ainda não há clareza quanto a esse tipo de texto. Escreveu
“vende-se um champu, aluga-se um perfume”, à semelhança de anúncios classificados.
Entretanto, o fato de escrever aluga-se um perfume dá a entender que G.L. não sabe o real
significado da palavra aluga-se, confundindo com a palavra vende-se.
Considerando o produto alfabetização, G.L. esta “pronta”, mas, analisando as questões
referentes ao processo letramento, G.L. ainda tem um grande caminho a percorrer.
5.3.1.2 O percurso de J.E.
J.E., na atividade do dia 14.10.2005, colocou na primeira linha de seu texto: “Era uma
ves numa paisagem”, aparentemente como título. Na verdade, a frase é reveladora da
apropriação indevida de uma “fórmula” narrativa. J.E. parece saber que as narrativas infantis
começam por ‘era uma vez’, só que nunca encontraria um ser inanimado, um cenário na
seqüência desse ‘era uma vez’. A estrutura tem um “uso social”, marcado como introdutório
de personagens, o que revela que o título significado não foi apropriado por J.E.. Na
seqüência, o aluno coloca vários personagens em sua produção, apresenta vários conflitos,
sem conseguir desenvolvê-los apropriadamente. Seu desfecho é bastante confuso, pois as
orientações de voltar para casa e para fora são conflitantes.
É até possível identificar um gênero de texto, uma historinha infantil, pela presença de
‘era uma vez’, complicações e resolução. As escolhas lingüísticas de J.E. demonstram que ele
consegue trazer, de seus conhecimentos acumulados, palavras que incrementam seu texto,
como é o caso de “hipopótamo”, que, em nenhum momento, foi indicado pela gravura
motivadora.
No texto do dia 15.11, J.E. recusou-se a escrever sobre uma história que considerou
como sendo de “menina” (Cachinhos dourados) e solicitou permissão para escrever sobre o
dinossauro. A história é apresentada sem título, e nela é possível verificar o uso de algumas
letras espelhadas (d). Seu texto tem uma proposta de narrativa, que acaba não concluída:
apresenta o começo clássico da história infantil “era uma vez”, agora introduzindo o
personagem minidinossauro Rex, arma a complicação, mas não a resolve. De qualquer forma,
71
é possível verificar sua familiaridade com historinhas infantis, que é o tipo mais comum usado
em sala de aula. Seu desenho ilustra a produção, mas parece ainda haver mais desenho do que
palavras.
É interessante observar que J.E. usa palavras diferentes das que a professora sugere: na
coleta passada, usava hipopótamo; nesta, usa minidinossauro, dinossauro espinho. Percebe-se
que J.E. traz para sala de aula as palavras e os personagens que quer, seu saber acumulado das
diferentes ciências faz com que use palavras sem ficar preso aos modelos de sala de aula ou
da professora. A causa dessa atitude pode ser porque J.E. tem acesso a livros de histórias em
sua casa (sua mãe é diretora de escola), não fica restrito somente àqueles que a professora leva
para a sala de aula.
Na coleta do dia 01.12, J.E. não estava na aula.
No coleta de 2006, J.E. mostra ter uma noção do gênero anúncio, como se pode ver
em: “vende-se um perfume gostozo esó pra ome você vai ganeros isso por 1.000 reais”,
(vende-se um perfume gostoso, é só para homens você vai ganhar isso por 1.000 reais), ou em
“em pres ta-se um perfume para omes por 1.000 reais”. A incorporação de expressões típicas
do gênero pode ter acontecido em função de trabalho com classificados de jornais, que foram
propostos como leitura alguns dias antes. Entretanto, possivelmente pela falta de exploração
do gênero, há introdução de elementos estranhos ao conceito tradicional de anúncio. Assim,
ao mesmo tempo em que J.E. coloca “vende-se” para um produto, acrescenta “ganhar”, sem
atentar para o real significado de sua produção. O mesmo acontece com “empresta-se
perfume”, combinação não encontrada na vida real. A criança também demonstra não ter
noção de custo, pelo preço que atribui ao aluguel do perfume.
A produção de J.E. revela que, apesar de esse tipo de texto ter bastante circulação na
cidade, há uma grande dificuldade de trazê-lo para dentro da sala de aula. A dificuldade de
produzir um texto em uma situação real, de uso da língua “viva”, mesmo na 2ª série, parece
comprovar que o caminho para o letramento não está sendo cumprido, pois suas escolhas
lingüísticas estão confusas. Como se sabe que é através dos significados que os sujeitos
compreendem o mundo e podem fazer uso das palavras, verifica-se que J.E. não está
relacionando os textos de circulação fora da escola com sua produção. Ainda não percebeu ou
não lhe mostraram que a escrita que existe fora da escola pode ser usada dentro dela.
72
5.3.1.3 O percurso de G.R.
No texto produzido em 14.10, G.R. colocou título “O passarinho”, mostrando
conhecer a introdução formal de um título e sua colocação de forma centralizada, em linha
própria. O título está adequado, pois traz a personagem da história que pretende narrar. A
aluna acaba por construir um texto bem cartilhesco, pois, como nas cartilhas, palavras são
repetidas, sem avançar o sentido global. São relacionadas informações sobre o personagem,
mas não sobre a trama de história. A produção está dentro dos parâmetros do que, muitas
vezes, é chamado de texto escolar. O texto de G.L. não tem uma sucessão lógica (o passarinho
voava, caiu e depois há uma descrição de ações não relacionadas ao fato de o passarinho ter
caído) e, então, é usada a expressão “foi para casa” para marcar um fim em sua narrativa.
G.R. não estava presente na coleta de 15.11, por isso não foi possível avaliar sua
produção.
Na coleta do dia 01.12, G.R. recortou uma figura e produziu uma história, ainda que a
solicitação tivesse sido de produzir uma propaganda. Quando indagada a respeito, G.R.
informou que não produziria propagandas, porque gosta mais de histórias.
O texto produzido, entretanto, não é uma história, mas uma descrição de ações da
rotina escolar. Parece que G.R. faz o texto que convém à escola, que deve ser escrito na
escola, ou mesmo é próprio da escola. Isto é bem perceptível pelo fato de ela ter apagado o
último parágrafo do texto, que contava ações relacionadas à sua volta para casa, deixando, no
texto, apenas as ações realizadas dentro da escola.
O título “O menino e a menina” não abrange globalmente o significado do texto. Há,
inclusive, mudança nos personagens da produção, que passam de o menino Gabriel e a
menina Solange para a professora, a qual fica encarregada dos comandos.
Acaba-se com um produto típico do gênero redação escolar: um conjunto de ações
descritivas e seqüências sem complicação. O título é apenas uma escolha lingüística aleatória,
relaciona-se com a figura, não contempla o significado global/total do texto. Por outro lado,
G.R. faz escolhas lingüísticas que ajudam a incrementar sua produção: “tabuada, continhas,
texto”, fazendo uso das palavras dentro das significações construídas no dia-a-dia da sala de
aula.
No texto produzido em julho de 2006, G.R. procurou fazer anúncios, conforme o
solicitado. Sua produção está estruturada dentro do gênero anúncio classificado, inclusive
com argumentos para que a compra se realize, propondo uma intertextualidade com outros
73
gêneros de propaganda. Há a presença de um destinatário “você”, construído como alguém
que deseja conquistar um namorado. Pela primeira vez, é possível perceber que a aluna
escreve para um destinatário e tenta dar significado ao que produz.
5.3.1.4 O percurso de R.S.
Na atividade de produção de uma história de 14/10, R.S. escreveu o título “O macaco
morto”. O título, entretanto, não tem relações de sentido com o texto, que comprova um
macaco “fujão”, mas bem vivo. Aparentemente, o aluno sabe que deve ter título, mas não há
uma relação coerente com o texto produzido. Sua narrativa demonstra ter começo/meio e fim,
mas não revela a preocupação do aluno com o que está escrevendo: ele escreve para ocupar
todas as linhas. Não há adaptações de contexto e dos referentes na passagem para o
lingüístico-enunciativo. Assim, o desfecho é inesperado e, sobretudo, não explicado. Como o
macaco conseguiu a chave do Rafael para abrir sua gaiola?
A coleta do dia 15/11 ficou prejudicada pela ausência do aluno.
Na coleta do dia 01.12, R.S. recortou a figura de uma bandeja de iogurte e fez uma
narrativa pequena. Colocou como título a palavra que repete várias vezes em sua produção. O
texto é apenas um relato de um pequeno fato que tem a ver com a figura, ainda que haja uma
interpretação errônea do significado da gravura. A figura de iogurte de morangos é
interpretada como caixa de morangos. Aparece também a repetição da palavra “morango”,
uma prática cartilhesca para fixar palavras. Acima de tudo, é preciso lembrar que a proposta
do texto é na área da propaganda, gênero que o aluno mostra desconhecer.
No texto produzido em julho de 2006, a produção de R.S. já se aproxima de uma
propaganda, ou melhor, é possível identificar o gênero anúncio classificado, pela estrutura de
“Vende-se, alugo...”. Suas escolhas lingüísticas, entretanto, revelam algumas confusões de
significados: dentro do contexto do uso social, não se costuma, por exemplo, alugar perfume.
Afirma que “o shampoo deixa o cabelo mole, aluga-se um perfume, ache esse creme que eu
perdi”. Fica claro que, apesar de ter acesso a texto de propaganda, sua produção não está
relacionada com o uso social da propaganda. Também seu último anúncio “eu quero um
avon”, mostra um desejo (aí está o poder da propaganda), mas demonstra que o aluno não se
apropriou totalmente dos contextos de uso do gênero em questão. No uso da expressão
“aluga-se um perfume”, parece confundir o significado com a palavra vende-se. Novamente
74
parece trazer para suas produções apenas a escrita, sem preocupação com o que quer dizer
aquilo que escreveu. Embora alfabetizado, o aluno apenas decodifica as palavras, não usando
sua escrita para uma efetiva comunicação. O processo de letramento ainda não faz parte da
sala de aula dessas crianças.
5.3.2 Alfabetizados ou letrados? Possíveis interpretações
A aquisição da escrita pelas quatro crianças analisadas de forma qualitativa aponta um
método de alfabetização concentrado na silabação e na palavração, o que, como as próprias
docentes relataram, começa pelo ensino das vogais, depois pela junção de vogais, etc. Este
não seria o problema, se depois que as crianças tivessem atingido a fase alfabética, fossem
proporcionadas a elas atividades de significação da escrita. Os resultados mostram que isso
não acontece. Na maior parte das vezes, os textos produzidos não “comunicam”: as crianças
estão presas à idéia de que devem escrever muitas linhas, sem observar o que realmente estão
produzindo. O sentido do texto como um todo fica comprometido: sobram frases que, na
maior parte dos casos, descrevem ações cotidianas, mesmo em cenários de ficção. Assim, a
floresta vira o “quintal” da casa, onde uma das informantes brinca: Cachinhos Dourados é
uma menina como qualquer outra coleguinha da escola...
A escola tem ensinado as crianças a escrever, mas não a dizer – e sim repetir
palavras e frases pela escrita. Parece que não convém que elas digam o que pensam, que elas
escrevam o que dizem, que elas escrevam como dizem. A escola tem ensinado as crianças a
ler um sentido supostamente unívoco e literal das palavras e dos textos, sem refletir a
necessidade de que a escola seja a continuação da vida em sociedade, daquilo que existe fora
dela. Só assim é possível ter alunos interessados e motivados a aprender a ler e escrever, para
que possam usar a escrita e a leitura fora do ambiente escolar, não se restringindo à instituição
escolar.
75
6 CONCLUSÃO
Diante de tudo que foi exposto, analisado e também discutido nos capítulos anteriores,
foi possível chegar a algumas respostas ao nosso questionamento inicial. Segundo Gontijo
(2002, p. 129), “a prática educativa de alfabetização realiza um dos círculos essenciais da
atividade vital humana geradora do processo histórico: a apropriação da linguagem escrita que
possibilita, portanto, a sua recriação e a inserção da criança em esferas cada vez mais amplas
da genericidade”. Analisar o processo de alfabetização implica analisar como as crianças
estão sendo mediadas por parte do professor, que tipo de interação este professor proporciona
na socioconstrução do processo da escrita e, também, verificar como os processos de
alfabetização e letramento estão sendo apropriados pelas crianças.
Analisando uma das respostas de uma das docentes, a que fala em “Apropriar-se da
escrita” ao dizer o que é alfabetizar, poder-se-ia imaginar que estaria sendo priorizada a
socioconstrução da escrita. O conjunto das observações realizadas, ao lado das respostas
obtidas com as professoras e a própria produção das crianças levam, lamentavelmente, a um
outro caminho: o da decodificação das letras. As aulas são preparadas em cima de
experiências anteriores das docentes, sem reflexão sobre o encaminhamento que pode e deve
ser o processo de alfabetização. Ao afirmarem que os alunos que não aprendem são os não
motivados em casa, tiram a responsabilidade sua e da escola quanto ao fracasso escolar, mas
não resolvem o problema das crianças.
Associado ao fazer pedagógico, no contexto social em que a escola observada está
inserida, vem o problema de nível baixo de letramento, pois tanto a maior parte dessas
crianças como seus pais não valorizam a escrita e atribuem pouca importância para a
educação formal. Este conceito refere-se aos pais das turmas pesquisadas, que pode ser
evidenciado pelo número de ausências dos alunos que se refletiu na nossa dificuldade de obter
coletas completas.
Segundo Matêncio (1994, p. 19), “O indivíduo letrado é aquele que apresenta um
desenvolvimento da linguagem e do pensamento após o acesso às formas especializadas do
texto escrito. Nesse caso, o resultado do impacto da palavra escrita representa o próprio
desenvolvimento cognitivo do aprendiz”. Essa concepção fundamenta a definição do sujeito
letrado, e mostra que, na escola, as crianças a partir de sua alfabetização deveriam ter
autonomia em produzir uma escrita contextualizada, que permitisse a identificação de tipos
discursivos narrativos, quando assim se propusessem, ou que fizessem propaganda, se esse
76
fosse o objetivo. Nada disso foi verificado nos textos analisados com mais detalhes. Eram
textos escolares, produzidos para ocupar espaço em páginas de caderno, sem preocupação em
“comunicar”. Não houve, por exemplo, casos de narrativas mínimas, em que complicação e
resolução, ao menos, estivessem presentes. Houve esboços do narrar, mas este narrar acabou
não se efetivando.
Outro fator também digno de destaque foi que, apesar de as crianças terem feito o pré-
escolar, a construção da escrita foi iniciada na primeira série – a turma B principalmente – no
nível 1. Isto evidencia que essas crianças tinham atividades muito limitadas à escrita. Também
a participação em eventos de letramento, dentro da sala de aula, não foi valorizada ou
incentivada, o que deveria ter sido necessariamente proporcionado, uma vez que se sabe que,
em casa, a maior parte dessas crianças não tem tais estímulos.
Quanto à metodologia usada pelas docentes na alfabetização, cabe ressaltar que o
método sintético, que vai das partes para o todo (as docentes relataram começar com vogais,
consoantes, palavras, frases e depois textos), acaba trazendo prejuízos para o processo de
letramento, o qual deveria ser incentivado pela escola. Segundo Ferreiro e Teberosky (1989),
inicialmente se pensou que o elemento mínimo da escrita fosse a letra, e, por isso, durante
muito tempo, as crianças aprenderam a ler e a escrever pronunciando as letras e estabelecendo
regras de sonorização da escrita. As professoras assim alfabetizam. Apoiadas ao seu próprio
discurso, relatam um modelo de alfabetizar que sua própria experiência diz que deu certo,
mas, em nenhum momento, “olham” para os alunos nas séries seguintes, no sentido de
verificar se usam a escrita em seus diversos usos sociais, ou se continuam apenas
decodificando letras.
Como as docentes não percebem uma diferença significativa entre alfabetização e
letramento, tendem a concretizar seu trabalho da forma que estão fazendo. A pesquisa
comprovou que a alfabetização ocorre em um curto espaço de tempo (ver quadro das fases da
construção da escrita), embora o desenvolvimento da escrita, que se imaginaria a partir do
atingimento à etapa alfabética, não é buscado. O trabalho realizado com as crianças, já na 2ª
série, mostrou que as docentes continuam atribuindo pouca importância para a função da
escrita: escrever continua sendo algo próprio da escola, e não do cotidiano.
Assim, esses alunos constroem desde muito cedo, mesmo antes de chegar à escola,
segundo a visão dos pais, e depois confirmam esse conceito no trabalho desenvolvido pelas
professoras de que texto é um conjunto de palavras em que o significado não interessa, que a
leitura e a escrita são usadas somente na escola e para a escola. Tal conceito estende-se pelas
séries seguintes, sem que se note um real desenvolvimento no sentido usado por Matêncio
77
(1994, p. 19) de que “o indivíduo letrado é aquele que apresenta um desenvolvimento da
linguagem e do pensamento após o acesso às formas especializadas do texto escrito”.
Durante o trabalho realizado, foi possível reconhecer a riqueza do material coletado, o
quanto se poderia fazer na direção de uma alfabetização conjunta ao processo de letramento.
Com as respostas obtidas nesta pesquisa, inúmeras contribuições poderão ser dadas ao
processo de alfabetização e letramento, no mesmo contexto de realidade efetivada. Em
continuidade ao trabalho desenvolvido na mesma escola, com as mesmas docentes, e mais a
bagagem adquirida na pós-graduação, será possível retornar à escola e ao contato com as
docentes para propor-lhes um trabalho diferenciado que possa levá-las a acreditar que a
solução do fracasso escolar está na alfabetização e no letramento, como um único processo,
com um alfabetizar-se, letrando.
78
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______. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2002.
TEBEROSKY, Ana. Aprendendo a escrever perspectivas psicológicas e implicações
educacionais. São Paulo: Ática, 2003.
TERZI, Silvia Bueno. A construção da leitura. Campinas: Pontes, 2002.
VAL, Maria da Graça C. O que é ser alfabetizado e letrado? In: BRASIL, Ministério da
Educação e do Desporto. Alfabetização, leitura e escrita. Brasília, 2004.
VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento
aprendizagem. Tradução de Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone, 2001.
80
ANEXOS
81
ANEXO A - ENTREVISTA COM A PROFESSORA “A”
M.A. Quanto tempo você trabalha com alfabetização?
P.A. 21 anos
M.A. 21 anos? Sempre com alfabetização ou você passava para outras séries?
P.A. Muito pouco tempo. 3 ou 4 anos trabalhei com outras séries, mas a maior parte
dos 21 anos é a alfabetização.
M.A. Para você o que é alfabetizar e porque alfabetizar esses alunos?
P.A. Alfabetizar é fazer a criança se apropriar da aprendizagem, né? Da leitura e da
escrita.
M.A. Porque você acha que tem que alfabetizar essas crianças?
P.A. Ah! Prá vida né? A criança alfabetizada é criança que pode enfrentar qualquer
obstáculo né?
M.A. Você vê alguma diferença entre alfabetização e letramento?
P.A. Sim. Alfabetizar prá mim é... é uma coisa mais complexa, é fazer a criança se
apropriar da leitura, da escrita, de todas as atividades enfim, mas é a medida que a criança vai
se apropriando ela vai, como é que vou dizer...ela vai mostrando o seu progresso, aquilo que
ela recebe, cada ação ela apresenta logo em seguida uma reação. E letramento prá mim é mais
a identificação, a codificação e a decodificação do código da nossa língua, a alfabetização é
mais complexa.
M.A. Você costuma fazer leituras a respeito desses assuntos alfabetização e
letramento?
P.A. Ultimamente tenho feito.
M.A. Que fontes você procura?
P.A. Agora que eu terminei a faculdade a gente estudava bastante sobre isso né?
Livros e trabalhos também.
M.A. Como você normalmente estrutura as tuas aulas? Há partes/etapas definidas?
Você segue essas partes/etapas todos os dias?
P.A. Estruturo em algumas coisas como rezar, lição de casa, leitura de pequenos
textos, mas às vezes muda conforme o interesse deles.
M.A. Como você no início apresentou a escrita para seus alunos?Começou com letras
do alfabeto, sílabas, palavras, textos ou outro modo?
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P.A. Começo com as vogais, depois junção de vogais, consoantes, palavras com
vogais e consoantes e depois frases e então textos.
M.A. Que tipo de trabalho você realiza, sintético ou analítico?
P.A. Para ser sincera, não tenho essa distinção no meu trabalho, não sei se analítico ou
sintético.
M.A. Qual a maior dificuldade que você considera para seus alunos aprender a ler?
P.A. Eu acho que é para eles lembrarem as letras e o som, assim como b mais a igual a
ba, e também muitos deles não demonstram interesse em vir para a escola, parece que estão
ali porque o pai e a mãe mandam.
M.A. As crianças chegam na escola (primeira série) tendo algum conhecimento sobre
a escrita?
P.A. Algumas sim, quando em casa os pais ou irmãos ensinam o nome de algumas
letras, o nome dos pais, mas algumas não sabem nem pegar no lápis.
M.A. As crianças de um modo geral já revelam autonomia nas tarefas que você dá ou
ainda exigem muito a sua presença?
P.A. Algumas ainda exigem.
M.A. Na tua classe há crianças em diferentes níveis de desenvolvimento no que se
refere à aprendizagem da leitura e da escrita? Qual seria a causa disso?
P.A. Eu vejo da seguinte maneira: cada criança tem um desenvolvimento e não é pelo
fato de elas terem a mesma idade que irão acompanhar igual.
M.A. O que levou você a construir essa forma de alfabetizar?
P.A. Fui alfabetizando, então vi que dava certo, então sempre faço assim.
83
ANEXO B - ENTREVISTA COM A PROFESSORA “B”
M.A. Quanto tempo você trabalha com alfabetização?
P.B. 8 ANOS
M.A. Para você o que é alfabetizar e porque alfabetizar esses alunos?
P.B. É mostrar o caminho para o aluno chegar ao conhecimento desejado, é ensinar ou
mostra uma direção certa que cada criança deve seguir.
M.A. Porque você acha que tem que alfabetizar essas crianças?
P.B. Para possibilitar-lhes o acesso a vida, aos saberes: social,cultural,e econômico.
M.A. Você vê alguma diferença entre alfabetização e letramento?
P.B. Alfabetização é encaminhar, mostrar as direções à seguir para o letramento.
Letramento é o conhecimento que já possui e vai adquirir com o passar dos tempos.
M.A. Você costuma fazer leituras a respeito desses assuntos alfabetização e
letramento?
P.B. Já fiz muito e, que agora não o faço mais, mas sei que deveria fazer sempre.
M.A. Que fontes você procura?
P.B. ???
M.A. Como você normalmente estrutura as tuas aulas? Há partes/etapas definidas?
Você segue essas partes/etapas todos os dias?
P.B. Através de alguns métodos aplicados em anos anteriores, melhorados com
experiências de profissionais mais antigos e alguns livros didáticos. Sem seguir etapas
definidas, fazendo conforme dá certo.
M.A. Como você no início apresentou a escrita para seus alunos? Começou com
letras do alfabeto, sílabas, palavras, textos ou outro modo?
P.B. Sempre inicio com as vogais, passando para o alfabeto, sílabas, palavras e textos.
Trabalhando com rótulos, folhetos informativos, fôlderes, textos, etc.
M.A. Que tipo de trabalho você realiza, sintético ou analítico?
P.B. Mais global.
M.A. Qual a maior dificuldade que você considera para seus alunos aprender a ler?
P.B. Primeiro a falta de estímulo por parte da família, e segundo por falta de interesse
do aluno.
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M.A. As crianças chegam na escola (primeira série) tendo algum conhecimento sobre
a escrita?
P.B. Alguns sim.
M.A. As crianças de um modo geral já revelam autonomia nas tarefas que você dá ou
ainda exigem muito a sua presença?
P.B. Exigem a presença do professor ou de um colega para ajudar justamente aqueles
que não são estimulados em casa ou aqueles que não tem interesse nenhum. São poucos estes
casos.
M.A. Existem crianças que necessitam mais sua ajuda e outras menos, como você
normalmente intervém para ajudar as crianças com maiores dificuldades?
P.B. Aqueles com maior dificuldade merecem atendimento mais individualizado e,
também sentando com um colega de melhor rendimento.
M.A. Na tua classe há crianças em diferentes níveis de desenvolvimento no que se
refere à aprendizagem da leitura e da escrita? Qual seria a causa disso?
P.B.Sim existem diferentes níveis. Eu ainda vejo essa causa analisando a bagagem e o
estímulo que a criança trás de casa. A criança estimulada possui outro desenvolvimento.
M.A. O que levou você a construir essa forma de alfabetizar?
P.B. O tempo, a experiência, a criatividade.
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ANEXO C - ENTREVISTA COM A PROFESSORA “A2”
M.A. Quanto tempo você trabalha com alfabetização?
P.A2. Trabalhei 3 anos com Educação Infantil, e este ano é o segundo ano que estou
com uma primeira série.
M.A. Para você o que é alfabetizar e porque alfabetizar esses alunos?
P.A2. Para mim alfabetizar é inserir o aluno na sociedade, torná-lo capaz de interagir
com tudo e com todos a sua volta, é neste sentido que alfabetizar torna-se necessário,pois é só
a partir daí que o aluno pode decidir o que e como fazer.
M.A. Porque você acha que tem que alfabetizar essas crianças?
P.B. Para possibilitar-lhes o acesso a vida, aos saberes: social,cultural,e econômico.
M.A. Você vê alguma diferença entre alfabetização e letramento?
P.A2. Para mim é a mesma coisa, pois a pessoa adquire conhecimentos por toda a
vida, está sempre aprendendo, o que não deixa de ser alfabetizado.
M.A. Você costuma fazer leituras a respeito desses assuntos alfabetização e
letramento?
P.A2. Sim, gosto de Paulo Freire e Piaget
M.A. Que fontes você procura?
P.A2. Já li alguns livros e sempre leio artigos a respeito.
M.A. Como você normalmente estrutura as tuas aulas? Há partes/etapas definidas?
Você segue essas partes/etapas todos os dias?
P.A2. Procuro ter uma retina para que os alunos aprendam a organizar-se. Algumas
vezes, se pulo alguma etapa eles logo reclamam. É lógico que existem pontos que variam,
mas no início é fundamental o calendário, ajudante do dia, a oração, isto não pode faltar.
M.A. Como você no início apresentou a escrita para seus alunos?Começou com letras
do alfabeto, sílabas, palavras, textos ou outro modo?
P.A2. Comecei com as letras as vogais, depois as consoantes e a forma com que cada
se juntou as vogais, pois conto uma historinha para cada letra.Assim já formamos as famílias
silábicas, mas também vemos textos e poesias, onde reconhecemos as sílabas.
M.A. Que tipo de trabalho você realiza, sintético ou analítico?
P.A2. Procuro realizar um trabalho mais analítico, que envolva todas as formas de
conhecimento, principalmente o conhecimento da criança, suas vivências.
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M.A. Qual a maior dificuldade que você considera para seus alunos aprender a ler?
P.A2. A falta de comprometimento dos pais, pois alguns deixam somente para a escola
esta tarefa. Também o excesso de informações oferecidas pela mídia acaba por torna a escola
chata, sem atrativos.
M.A. As crianças chegam na escola (primeira série) tendo algum conhecimento sobre
a escrita?
P.A2. Sim, quem freqüenta o pré já vem preparado, conhece os números e letras, já
esta acostumado ao ambiente escolar.
M.A. As crianças de um modo geral já revelam autonomia nas tarefas que você dá ou
ainda exigem muito a sua presença?
PA2. A maioria consegue realizar as atividades após uma explicação no quadro, estes
sentem prazer em demonstrar sua autonomia.
M.A. Existem crianças que necessitam mais sua ajuda e outras menos, como você
normalmente intervém para ajudar as crianças com maiores dificuldades?
P.A2. Algumas crianças sabem fazer, mas devido a superproteção recebida em casa
exigem atenção, mas ajudo-as tentando elevar sua auto-estima, mostrando que são capazes de
fazer sozinhas, elogiando iniciativas.
M.A. Na tua classe há crianças em diferentes níveis de desenvolvimento no que se
refere à aprendizagem da leitura e da escrita? Qual seria a causa disso?
PA2. Eu acho que as influências trazidas e vividas em casa influem muito em todo o
desenvolvimento da criança, quanto maiores os estímulos recebidos, maior será a curiosidade
de aprender, mas um ambiente pobre em estímulos acaba por acomodar, ou até mesmo
desestimular a criança em buscar o novo, pois esta não vê perspectivas.
M.A. O que levou você a construir essa forma de alfabetizar?
P.A2. Na verdade ainda estou construindo meus métodos, pois leio muito a respeito de
alfabetização, procuro usar atividades e técnicas que mais se encaixem com a turma, pois cada
turma tem seu ritmo e desenvolvimento próprio. Estou sempre tentando me atualizar.
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