ciclos. O preto e o branco são também o início e o fim na escala das cores ou, segundo Chevalier,
“cor e contracor, as duas extremidades da gama cromática” (2001, p. 141), “o ponto de partida e o
ponto de chegada” (CHEVALIER, 2001, p. 633); entre eles situam-se todas as cores. Entre a luz e
a sombra, estão a primavera e a natureza que, ainda que férteis e renovadoras, não podem conter o
breu que se espalha pelo espaço e se apodera gradativamente dos seres. Trata-se do tempo que,
belo e tenebroso, limita as existências, dividindo-as em ciclos, dentro do que Coelho chamou de
“tempo cósmico”, repetitivo, “da condição humana de sempre” (COELHO, 1976-a, p. 222). Entre
início e fim, claro e escuro, luz e sombra, a misteriosa existência. O claro-escuro é, portanto, o
espaço-tempo, o cronótopo
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que rege o ciclo da vida: o nascimento (início, luz), a existência
(intervalo de vida em cores) e a morte (fim, breu).
Esse cromatismo tão simbólico observado em Os Pobres e n’O mistério da árvore, cabe
ressaltar, corresponde à influência simbolista inegavelmente presente na obra de Raul Brandão. O
verde aparece com duas nuances na obra: uma luminosa e uma noturna, o que se justificaria,
segundo Chevalier, pela dupla polaridade dessa cor: “o verde do broto e o verde do mofo, a vida e
a morte” (2001, p. 943). O verde luminoso, na obra, representa uma natureza arquetípica e perdida.
Já o verde noturno ou o esverdeado colore a doença, a umidade, a sujeira e a degradação.
O verde luminoso remete a uma paisagem natural e aconchegante, com um “valor mítico
dos green pastures, dos paraísos verdes dos amores infantis, da juventude do mundo”, segundo
Chevalier (2001, p. 940). Mas, esse verde associado à luz refere-se a uma natureza longínqua e
inatingível, como um sonho perdido e inalcançável, ou que não se fixa, salvo na imaginação e na
intuição que o Gabiru tem sobre a vida, a existência e o cenário fora dos limites do “enxurro”,
onde vive. Para Chevalier, isso ocorre porque, “desde que a civilização industrial ameaça a
natureza”, o verde ganha “um tom de nostalgia, como se a primavera da terra fosse desaparecer
inexoravelmente sob uma paisagem de cimento e aço” (2001, p. 942):
(...) para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde (...)
(...) Nunca me pude habituar a olhar a natureza cara a cara. Isto! que significação tem
isto? E um sonho, um grito de beleza, uma alma? Montes verdes e etéreos lá ao longe,
constelações infinitas, névoa que do mar nasce e sobre o mar vai, como um portentoso rolo,
como um giganteu fantasma...
(...) Todas as manhãs é como se pela vez primeira me achasse diante da monstruosa
natura – verde, oiro, azul, com os seus rios, florestas, o mar a bramir e árvores que são
seres, vida que pressinto extraordinária e que nunca vi ao pé!...
(...) E eis-me perdido no canto duma negra trapeira, encolhido e esguio, a sonhar em
quê? Naquele universo verde e ígneo que está para lá das pedras... (OP, p. 37-38, grifos
nossos)
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Segundo Fernandes, nos estudos de Bakhtin, o cronótopo é empregado em dois sentidos, stricto e lato, “como
unidade de análise narrativa que permite a aplicação a textos literários concretos, encarados na sua singularidade” e,
em sentido lato, como “unidade de estudo susceptível de detectar estruturas invariantes e trans-históricas”. A “dupla
operacionalidade é possível dada a natureza bifocal do cronótopo, como a maior parte dos termos característicos do
dialogismo”, podendo ser “utilizado como uma lupa reveladora do pormenor característico do texto único ou como o
óculo adequado à visão distanciada”. Assim, “tanto podemos apreender e caracterizar o cronótopo de um texto
concreto, como podemos falar do cronótopo característico de um autor ou de um gênero”. (FERNANDES, 2005)