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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
RAFAEL GODOI
Ao redor e através da prisão: cartografias do dispositivo
carcerário contemporâneo
São Paulo
2010
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Ao redor e através da prisão: cartografias do dispositivo
carcerário contemporâneo
Rafael Godoi
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação de Sociologia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a obtenção
do título de Mestre em Sociologia.
Orientadora: Profa.
Dra. Vera da Silva Telles.
São Paulo
2010
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A pai e mãe, pelo passado; a Erika, pelo presente.
3
Agradecimentos
A Vera Telles, pelo apoio, orientação e paciência. A Fernando Salla e Marcos Alvarez
pelo diálogo continuado e pelas sugestões no exame de qualificação. A Eliane Alves,
Daniel Hirata, José César Magalhães, Carlos Freire, Tatiana Maranhão, Fernanda
Matsuda, Alessandra Teixeira pelos estudos compartilhados. Por ajudas várias nas
atividades curriculares do programa de pós-graduação: Sérgio Adorno, Sylvia Garcia,
Maria Helena Oliva Augusto, Myriam Mitjavila, Ângela de Souza, Vicente Filho. Por
ajudas várias em situações várias: Rodrigo Godoi, Robert Cabanes, Gabriel Feltran,
Álvaro Gullo, Alvino Sá, Fabio Candotti, Douglas Anfra, Ana Gabriela Braga, Gislene
Souza, Bianca Briguglio. Da expedição à Barcelona: à Agência de Cooperação
Internacional do Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha, a Teresa Berteli,
Montserrat Ventura, Verena Stolcke, Alex Coello, Aurora González, Julio Zino, Gloria
Urtasun. À Oficina Social de Antropologia e Prisão, a Dario Malventi e Álvaro
Garreaud. A todos os interlocutores da pesquisa e a todos aqueles que na vida privada
fizeram comigo essa travessia.
4
Resumo
Nesse trabalho, a incidência da prisão para além de seus limites físicos e institucionais é
problematizada a partir da exploração e confrontação de dois contextos sociais distintos:
a Catalunha e São Paulo. Os vasos comunicantes que conectam a prisão a outros
territórios sociais, bem como as experiências de diversos agentes que fazem a mediação
entre o mundo prisional e a sociedade mais ampla, são questões abordadas através de
uma perspectiva analítico-descritiva, visando evidenciar a produção de um
multifacetado campo social estruturado ao redor e através das instituições prisionais.
Explorando diferentes trajetórias que se conformam nesse campo é possível
problematizar algumas das circunstâncias do processo de massificação do
encarceramento, assim como outras importantes alterações recentes no dispositivo
carcerário contemporâneo.
Palavras-chave: prisão, dispositivo carcerário, encarceramento em massa, vasos
comunicantes, mediadores, sistema penitenciário, Catalunha, São Paulo.
Abstract
This work intends to problematize the impacts of prison beyond its physical and
institutional limits. Such aim is achieved through exploration and confrontation of two
different social contexts: Catalonia and São Paulo. The communicating vessels, which
connect jail to other social territories, and the experience of several agents, that provide
mediation between prison and the rest of society, are questions treated through an
analytical-descriptive perspective, intending to show up the production of a multifaceted
social field that is structured around and through prison institutions. Exploring different
paths in this field, it is possible to problematize some circumstances of mass
imprisonment process, as well as recent changes in the penal contemporary mechanism.
Key-words: prison, penal mechanism, mass imprisonment, communicating vessels,
mediators, penitentiary system, Catalonia, São Paulo.
5
Sumário
Agradecimentos ......................................................................................................................... 3
Resumo .................................................................................................................................. 4
Abstract ................................................................................................................................. 4
Introdução ................................................................................................................................. 8
1 Hipótese produtiva ............................................................................................................ 21
1.1 - (D)efeitos .................................................................................................................... 22
1.2 - Prisionizações ............................................................................................................. 25
1.3 - A hipótese produtiva ................................................................................................... 30
1.4 - Mediações ................................................................................................................... 37
2 Massificação do encarceramento ...................................................................................... 43
2.1 - Pauta ............................................................................................................................ 43
2.2 - São Paulo, Brasil ......................................................................................................... 48
2.3 - Catalunha, Espanha ..................................................................................................... 55
3 Vasos comunicantes .......................................................................................................... 60
3.1 - Estimativas .................................................................................................................. 60
3.2 - Os vasos comunicantes ............................................................................................... 65
3.3 - Mediadores .................................................................................................................. 74
4 Percursos de campo ........................................................................................................... 77
4.1 - Em Barcelona .............................................................................................................. 77
4.2 - Em São Paulo .............................................................................................................. 86
5 Uma abordagem (im)possível ........................................................................................... 96
6 Uma cartografia do dispositivo carcerário catalão .......................................................... 101
6.1 - Marco Zero................................................................................................................ 102
6.2 - Manola ...................................................................................................................... 106
6.3 - (Re)estruturações ...................................................................................................... 108
6.4 - Rotinizações .............................................................................................................. 111
6.5 - Aurora ....................................................................................................................... 112
6.6 - (Des)ajustes ............................................................................................................... 114
6.7 - (I)migrantes ............................................................................................................... 119
6.8 - Novas peças .............................................................................................................. 123
6.9 - (I)mobilizações ......................................................................................................... 125
6.10 - (In)conclusões ......................................................................................................... 129
6
7 Uma cartografia do dispositivo carcerário paulista ......................................................... 130
7.1 - Marco Zero................................................................................................................ 130
7.2 - Pedro ......................................................................................................................... 134
7.3 - Gravitações ............................................................................................................... 138
7.4 - Amaro ....................................................................................................................... 144
7.5 - Tectônicas ................................................................................................................. 148
7.6 - (Re)ajustes................................................................................................................. 153
7.7 - (Re)ações................................................................................................................... 159
7.8 - Reverberações ........................................................................................................... 165
7.9 - Enlaces ...................................................................................................................... 172
7.10 - (In)conclusões ......................................................................................................... 176
Considerações finais .............................................................................................................. 177
Imagens ................................................................................................................................. 181
Bibliografia ........................................................................................................................... 183
Filmografia ........................................................................................................................ 201
0
Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio
da travessia.
Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas.
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Introdução
A presente pesquisa deve ser encarada como um percurso parcial, prático e teórico. Um
trecho, um caminho possível, partindo de um ponto específico sem chegar num lugar
pré-determinado. Um trecho, portanto, feito de desvios, de enganos, intuições,
bifurcações, obstáculos, contornos e atalhos. O que segue deve ser lido como o relato de
um percurso inacabado, um diário de viagem que está longe de encerrar-se. O ponto de
partida pode ser precisado, os instrumentos de orientação utilizados podem ser
enumerados, descritos, analisados. Já o ponto de chegada não passa de um entreposto
provisório, ponto de parada e reflexão sobre o trecho percorrido e ainda a percorrer, um
novo ponto de partida.
O início dessa jornada se no cruzamento de duas pistas de dois conjuntos de
evidências empíricas –– que motivaram, conduziram e determinaram os (des)caminhos
de toda a empreitada. Em primeiro lugar, a primeira pista: em diferentes bairros
periféricos da cidade de São Paulo, um grupo de pesquisadores com os quais aprendia e
colaborava encontrou a prisão. Mas não somente aquela prisão-possibilidade
onipresente para os que se atreverem a cruzar os limites da legalidade instituída, e sim
uma prisão-realidade, uma prisão-presença, e para pessoas que não necessariamente
cometem ou cometeram um delito tipificado. Uma prisão que circula de boca em boca,
de gesto em gesto, que sim ameaça em sua virtualidade, mas que, sobretudo, determina,
coage, conforma efetivamente práticas e discursos de um grande número de habitantes
daquelas localidades, estejam envolvidos ou não em negócios ilícitos.
Encontrou-se, é verdade, uma prisão-passado, a do relato de egressos do sistema
prisional, de pessoas marcadas, estigmatizadas, “excluídas da sociedade”, e que ali
circulam normalmente, misturam-se desapercebidamente nos encontros fortuitos de
bairro, que estão absolutamente incluídas em famílias extensas e nucleares, em
sociabilidades de lazer e de mercado, desde o time de futebol, passando pelo bar e
mercearia, até o ponto de tráfico de drogas.
9
Encontrou-se ainda uma prisão-presente, aquela vivida pela mãe, pela sogra, pela
mulher, pelos filhos de um encarcerado. Prisão-presente que se materializa nos fins de
semana, nos dias de visita, no trajeto ao presídio distante, na longa fila de longa espera,
na revista vexatória, na visita íntima; mas também uma prisão-presente a todo instante,
nas necessidades básicas mais dificilmente supridas, no planejamento da viagem de
visita, na produção do pacote de roupas, artigos de higiene e alimentos a levar ao
encarcerado no esperado dia pacote volumoso conhecido como “jumbo” , nas
negociações de turno de trabalho da mulher que o inflexível dia da visita impõe, na
troca de cartas e favores, no cuidado trocado de crianças vizinhas numa noite de fim de
semana, etc. A ampla circulação dessa prisão-passado-presente faz da prisão-futuro
daquela prisão-possibilidade onipresente uma possibilidade mais freqüente, mais
conhecida, esperada e esperável. Essa, uma prisão-virtualidade que não necessariamente
paralisa, aterroriza, dissuade, mas que por tanta familiaridade, entra no cálculo do
futuro, que é quase mensurável em seus efeitos com alguma antecedência, que pode ser
vista por alguns como uma etapa da vida senão necessária, ao menos inelutável, e por
muitos outros como algo naturalizado, “normal” para quem escolher seguir um
determinado caminho na vida.
Esse primeiro conjunto de evidências advém da experiência de Iniciação Científica
1
,
quando transcrevi e editei uma série de entrevistas feitas em bairros periféricos da
cidade de São Paulo, e que me fizeram perceber a importância da prisão como ponto de
entrecruzamento de trajetórias em determinados territórios urbanos periféricos. Essa
constatação aparecia sob vários registros. Em primeiro lugar, era possível entrar em
contato com um número significativo de trajetórias de vida marcadas pela experiência
penitenciária, seja de egressos do sistema prisional, seja de parentes próximos ou
amigos de presos, que passavam (ou não) pela experiência periódica da visitação. Em
segundo lugar, pelos relatos era possível verificar que a experiência carcerária
mobilizava uma complexa rede de apoio, que ora garantia itens básicos de
sobrevivência para famílias que tiveram seus provedores presos, ora viabilizava
recursos para a visitação, para pagar advogados, e para garantir a montagem e o envio
do “jumbo”. Em terceiro lugar, era possível ficar sabendo do impacto local, na forma de
tensão e preocupação com filhos, maridos, parentes e amigos, das rebeliões prisionais,
1
Desenvolvida entre 2004 e 2006, sob orientação da Profa. Dra. Vera da Silva Telles, nos quadros da
pesquisa “Cidade e trabalho: mobilidades ocupacionais e seus territórios” (CNPq, 2003-2006).
10
grandes e pequenas, que, àquela altura, eram freqüentes em São Paulo. Finalmente,
também era possível ficar sabendo da marcante presença de pessoas envolvidas no
“mundo do crime” em estreita relação com presos, e inscritas nas redes sociais que
conformavam a sociabilidade cotidiana daqueles bairros periféricos paulistanos. Foi
esse conjunto de indícios da existência de redes sociais estruturadas e mobilizadas em
torno da prisão, envolvendo um significativo número de agentes, que serviu como um
dos pontos de partida para esse trabalho.
O segundo conjunto de evidências, a segunda pista se cruza com a primeira nessa
estruturação de um “mundo do crime” que passa pela prisão e se articula com as redes
vicinais de bairros periféricos. Trata-se nomeadamente da estruturação da facção
prisional Primeiro Comando da Capital (PCC) para além dos limites prisionais, da sua
capilaridade em diferentes territórios urbanos, que se expressa espetacularmente em
eventos de grande repercussão midiática como ações de resgate, roubos milionários,
grandes esquemas de tráfico de drogas e armas, ou nos “Ataques do PCC de maio de
2006. Mas, também, um transbordamento que é perceptível no discreto financiamento
de cestas básicas a familiares de presos, no pagamento de advogados, na circulação de
uma linguagem, de um conjunto de códigos de conduta, de protocolos sociais, que vão
compondo os repertórios de um lado e outro das muralhas. Essas evidências de
diversificadas práticas externas de um grupo que se estrutura no interior da prisão,
indubitavelmente, também colocam o problema de um transbordamento da prisão para
fora de seus limites.
No cruzamento dessas duas pistas iniciou-se um percurso de investigação acerca da
presença da prisão para além dos seus limites materiais ou institucionais, e, de imediato,
uma questão se impôs. Num breve e prévio levantamento de dados foi possível perceber
que uma formulação é amplamente aceita e difundida para expressar o sentido do
transbordamento da prisão: a prisão se faz presente além de seus limites físicos sempre
desestruturando vínculos sociais, sociabilidades e formas de vida, ou seja, a presença
externa da instituição prisional é pensada nos termos de efeitos imediatos e negativos
que impõe sobre os grupos e territórios que alcança, seja sob o signo da
“desestruturação familiar”, seja sob o signo do “crime organizado”. Por um lado, diz-se
que algo de bom e desejável é destruído; por outro, que algo de nefasto é construído.
Ainda que não sejam discursos congruentes, é sob uma mesma racionalidade que se
11
formula o problema.
2
Porém, os conjuntos de evidências encontrados principalmente a
primeira pista pareciam apontar para o sentido contrário dessa visão geral: o que
chamava a atenção era exatamente a dimensão estruturante da presença prisional
naqueles territórios periféricos, os vínculos que eram criados, mantidos, reconfigurados
em torno de uma prisão-passado-presente-futuro que parecia se normalizar e se rotinizar
no bairro. Se a chegada da prisão implicava num primeiro momento ou na escala de
uma residência num impacto desestruturante do ambiente familiar e da rede vicinal,
sua presença continuada parecia implicar em processos mais amplos de reestruturação
de práticas, discursos e vínculos sociais, que não poderiam ser satisfatoriamente
descritos em termos estritamente negativos.
Por outro lado, Foucault (1996), em Vigiar e Punir, advertia para a importância de
não se analisar os efeitos de poder das instituições punitivas como meramente
negativos. Sua análise da positividade e produtividade do poder disciplinar que se
corporifica no sistema carcerário, mas que se estende por outros territórios também
me servia de referência para entrever algo sendo produzido exatamente onde de modo
reiterado se denunciava a destruição. Nestes termos, o ponto de partida da pesquisa a
evidência de que a prisão estrutura um campo de agentes, práticas e discursos muito
além de seus limites institucionais desdobra-se numa espécie de ponto cardeal que
orienta todo o percurso de investigação.
O aprofundamento da pesquisa bibliográfica permitiu-me perceber que esse tipo de
problemática não se impõe somente no contexto paulista ou brasileiro, mas entra em
ressonância com um importante debate teórico aberto acerca da redefinição do lugar da
prisão na sociedade ocidental. Debruçando-se, principalmente, sobre os contextos
britânico e estadunidense, Garland (1999, 2001, 2005) estabelece alguns marcos
referenciais inescapáveis para essa problematização. Esse autor coloca no foco de sua
reflexão os efeitos societários das mudanças recentes nas políticas de controle do delito
e justiça penal que, desde a década de 1970, são progressivamente regidas por um maior
2
É importante considerar que cada formulação tem suas próprias implicações. Por um lado, o discurso da
“desestruturação familiar” associa-se a demandas assistenciais e de promoção do bem-estar das pessoas
direta e indiretamente afetadas pelo encarceramento, enquanto o discurso do “crime organizado” vem
associado a demandas de confrontação, repressão e eliminação de uma ameaça considerada iminente.
Para além dos desdobramentos práticos e discursivos de cada formulação, o que se pretende ressaltar é
que ambas as formulações comungam uma mesma concepção negativa do transbordamento da prisão.
12
rigor punitivo, resultando no que chama de encarceramento em massa.
3
Sob essa nova
cultura punitiva cultura do controle, nos termos de Garland (2005) a prisão vai se
tornando uma instituição socializadora de amplos setores da população, de negros e
latinos nos Estados Unidos, de imigrantes estrangeiros na Europa. Melhor compreender
os significados dessa socialização penitenciária ampliada, segundo o autor, é tarefa
premente da investigação sociológica. Diversos autores corroboram essa preocupação,
muitos se dedicando a explorar as causas desse processo como Zimring e Hawkins
(1991), Christie (1993), Wacquant (2007), Mauer (2001), Tonry (1999), Kuhn (2001),
Downes (2001), entre outros ; e outros se debruçando sobre suas conseqüências entre
eles, Braman (2003), Comfort (2003, 2007), Mauer e Chesney-Lind (2002), Travis e
Waul (2003), etc.
Cunha (2002), por sua vez, trabalha com questões que apresentam outros paralelos
importantes com os conjuntos de evidências que serviram de ponto de partida para esse
percurso investigativo. Essa autora desenvolve a tese de erosão das fronteiras entre
bairros e prisões, estabelecendo alguns marcos para a reflexão acerca do redefinido
lugar social da prisão, bem como da dinâmica de estruturação de um campo de agentes,
práticas e discursos articulados num bairro em função da prisão (e também numa prisão
em função do bairro). Segundo a antropóloga portuguesa, uma recente extensão do
mercado varejista da droga em determinados bairros periféricos de Lisboa se deu
através da mobilização de redes familiares e vicinais, que muito se articulavam
ancoradas em práticas de sobrevivência, desenvolvidas nos percalços da informalidade.
A introdução do mercado da droga no repertório de práticas locais implicou numa
importante alteração na economia política dos ilegalismos populares lisboetas, bem
como, simultaneamente, no desenvolvimento de um novo perfil de políticas criminais
de repressão ao tráfico, que passa a focar a atuação policial nesses territórios. O
resultado previsível é o encarceramento progressivo de agentes de uma mesma rede
familiar e vicinal, rede que se desestrutura, mas se reestrutura e se atualiza entre o bairro
e a prisão. Nestes termos que a autora descreve o processo de erosão das fronteiras entre
bairros e prisões, e problematiza uma redefinição da experiência carcerária, que vai
3
Processo, segundo Garland, dotado de duas características básicas: 1 a guinada ascendente e sem
precedentes das taxas de encarceramento; e 2 a concentração social dos efeitos desse aumento em
determinados grupos populacionais.
13
perdendo, em grande medida, o caráter estigmatizante que sempre teve, para tornar-se
cada vez mais um expediente “normal” e previsível na vida daquelas populações.
As referências em Foucault, Garland e Cunha foram fundamentais para que delimitasse
um plano inicial de pesquisa, uma direção a tomar. Projetei uma pesquisa de caráter
exploratório, fundada na coleta de histórias de vida de pessoas que estabeleceram, em
algum momento, um contato direto ou mediado com o mundo prisional, residentes de
algum bairro periférico no qual se verificasse altos e crescentes índices de
encarceramento. O objetivo principal era prospectar os processos e dinâmicas de
estruturação de um campo de agentes, práticas e discursos pautados pela prisão nessa
localidade, estruturação que, por sua vez, era entendida como um dos efeitos difusos,
produtivos e positivos, do processo de massificação do encarceramento fenômeno
também verificável em São Paulo.
Mas isso não era tudo, a estratégia inicial desenvolvida nas primeiras etapas da pesquisa
ainda envolvia outros dois aspectos fundamentais, que visavam cuidar para que o
percurso realizado permanecesse, o mais fielmente possível, orientado pela presença da
prisão no bairro, e pelas estruturações sociais que pautava, e não pela presença do
“mundo do crime” e suas próprias estruturações um desvio, então, imaginado
existente e considerado iminente, dado o entrecruzamento contínuo dessas duas sendas,
certamente interligadas, mas não necessariamente redutíveis uma à outra.
A primeira precaução metodológica estratégica foi o estabelecimento dos vasos
comunicantes que conectam o bairro à prisão como foco primordial de prospecção de
informações no decorrer do trabalho de campo. Em outras palavras, os processos de
estruturação das visitas, dos jumbos, a troca de cartas, os procedimentos de recepção
de presos em saídas temporárias, ou de egressos do sistema ou seja, tudo o que
implicasse uma efetiva comunicabilidade entre o mundo prisional e o bairro, e ao redor
do que se estruturaria um campo de agentes, práticas e discursos eram vistos como
fatores determinantes na conformação e consolidação da presença prisional no bairro, e
a eles se deveria prestar maior atenção no decorrer da pesquisa. É sabido que esses
vasos comunicantes sempre existiram, que a prisão sempre se caracterizou por certo
grau de porosidade, mas entendia-se que os vasos comunicantes se revestiam de maior
importância analítica nesse contexto punitivo reconfigurado, no qual a prisão se torna
instituição socializadora de determinados (e amplos) grupos populacionais.
14
A segunda precaução metodológica foi o estabelecimento de uma estratégia
comparativa para melhor identificar as estruturações sociais que se dão a partir da
presença da prisão no bairro. Num contexto como o paulista, parecia insuficiente pautar
o exercício investigativo nos vasos comunicantes, uma vez que se sabia haver uma
ampla incidência da facção prisional na dinâmica estruturante desses vasos. A crescente
importância da facção prisional na gestão urbana dos negócios do crime, e suas
múltiplas intersecções com as redes vicinais de bairros periféricos pareciam misturar
demasiadamente o que poderia ser visto como efeitos estruturantes da presença prisional
e do “mundo do crime” no bairro. A saída encontrada foi procurar empreender a mesma
pesquisa em contextos sociais distintos, dotados de diferenciadas dinâmicas criminais
principalmente algum em que não se verificasse a existência de algo como o PCC ,
mas que se aproximassem sob uma mesma tendência de incremento do encarceramento.
Por contraste, imaginava-se poder melhor identificar, isolar e caracterizar o campo de
agentes, práticas e discursos que se estrutura a partir da prisão e de seu incremento
numa dada localidade, distinguindo-o das estruturações societárias próprias ao “mundo
do crime”.
Como se pode imaginar principalmente em se tratando de uma proposta sociológica
de caráter exploratório as dificuldades de um estudo comparativo se situam mais nas
possibilidades materiais do que na justificação teórica. Realizar pesquisa de campo em
contextos sociais suficientemente distantes exige recursos que são difíceis de um
pesquisador iniciante captar. Não obstante, foi-me concedido o privilégio de contar com
uma bolsa de estudos integral oferecida pelo Ministério de Assuntos Exteriores da
Espanha, para realizar atividades de pesquisa durante um ano nesse país.
4
De tal modo,
o estudo do campo de agentes, práticas e discursos, que se estrutura num bairro ao redor
dos vasos comunicantes que o conectam à prisão, inicia-se num campo distante e
desconhecido: a região metropolitana de Barcelona.
4
Simultaneamente à aprovação no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade de São Paulo (PPGSUSP), fui beneficiado pela Agência Espanhola de Cooperação
Internacional, do Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha (MAE-AECI), com uma bolsa integral
(becas-MAE) para a realização do Máster Oficial
em Investigação Etnográfica, Teoria Antropológica e
Relações Interculturais do Departamento de Antropologia Social, da Universidade Autônoma de
Barcelona (UAB). De tal modo, ainda em setembro de 2007, fui para Barcelona, onde imediatamente
iniciei as atividades discentes previstas no curso e desenvolvi um projeto de pesquisa que adaptava as
questões levantadas no projeto apresentado na USP para o contexto espanhol. Em setembro de 2008,
apresentei o relatório de pesquisa intitulado “Entre la Calle y la Cárcel: una investigación etnográfica
exploratoria sobre el flujo carcelario-urbano que pasa por Barcelona” (GODOI, 2008a) – a banca
avaliadora composta pelos professores Verena Stolcke, Montserrat Ventura e Alex Coello.
15
A despeito da manutenção de um mesmo ponto cardeal no horizonte da pesquisa e de
tantas precauções metodológicas, a viagem à Catalunha, seguramente, representou um
primeiro desvio no percurso da investigação. Nos oito meses de trabalho de campo
desenvolvido na Europa encontrei muita dificuldade para “entrar” nas redes de
sociabilidade que se conformam num bairro em função da prisão. Na tentativa de
contornar os obstáculos que se interpunham, procurei acionar o que entendia como
mediadores estratégicos entre o mundo público e prisional principalmente acadêmicos
especialistas e profissionais do sistema penitenciário imaginando que por meio deles
poderia encontrar as pistas necessárias para alcançar a projetada unidade de análise, um
bairro com altos e crescentes índices de encarceramento. A tática de exploração de
campo se mostrou proveitosa em quatro meses iniciava trabalho de campo em Sant
Ildefons, bairro popular de uma cidade satélite de Barcelona. Porém, o tempo dedicado
a contornar os obstáculos foi muito maior do que se imaginava. Mesmo no bairro, e
em contato direto com egressos e familiares de presos, todo um tempo, uma caminhada,
um contornamento foi necessário para se ganhar a confiança dos interlocutores e chegar
a abordar os problemas que estavam no foco da pesquisa, de tal modo que quando o
campo estava relativamente bem preparado, já era tempo de voltar ao Brasil.
Em São Paulo, dificuldades análogas se impuseram no percurso. Mesmo num contexto
social mais bem conhecido, os 14 meses de pesquisa de campo também se mostraram
insuficientes para a imaginada inserção num bairro com elevados índices de
encarceramento. Desse modo, também em São Paulo, a maior parte do percurso de
campo foi dedicada ao contornamento dos obstáculos que se interpunham a uma
aproximação mais efetiva dos agentes, práticas e discursos que se estruturam ao redor
da prisão num bairro.
A conclusão inescapável que se segue desses tortuosos percursos é que uma
investigação sobre a prisão é tarefa das mais delicadas e complexas, que nem um
desenho de pesquisa razoavelmente preciso, e nem as precauções metodológicas
consideradas mais estratégicas, são inteiramente suficientes quando se deixa o
planejamento e se parte para a caminhada. Em suma, é possível concluir que a pesquisa
sobre a prisão, principalmente se voltada para a sua “presença” exterior, suas
implicações societárias externas, envolve uma série de questões e dificuldades que são,
elas mesmas, dignas de um detida problematização sociológica.
16
De qualquer maneira, ainda que não se tenha alcançado o ponto imaginado, o percurso,
por si só, impõe questões para a reflexão. Na tentativa constante de chegar ao bairro,
todo um campo de agentes, práticas e discursos que se estruturam, em ambiente aberto,
ao redor e através da prisão, pôde ser explorado e mais bem conhecido, tanto em
Barcelona, quanto em São Paulo. Para abordá-lo, restava ajustar o foco da investigação
ou, seguindo na metáfora do viajante, recuperar os desvios e contornos percorridos,
pontuando-os num novo mapa, com outros marcos referenciais e outros pontos cardeais.
Em primeiro lugar, deve-se admitir que parte significativa da pesquisa o se deu junto
aos vasos comunicantes que ligam a prisão a um determinado território periférico
urbano, mas sim junto a mediadores que, pela natureza de suas atividades, ligam a
prisão a diversas outras dimensões do mundo social. Trata-se de operadores do direito,
profissionais da saúde, educação, e segurança penitenciária, de militantes de direitos
humanos, assistentes sociais, voluntários de organizações não-governamentais,
estudantes e pesquisadores de universidades e centros de pesquisa. Estes, mesclados a
egressos, familiares e amigos de presos se articulam num campo político que se
estrutura em torno das prisões, e que ultrapassa suas delimitações jurídico-
institucionais. Em outras palavras, esse conjunto de agentes estrutura ao redor da prisão
um campo de contínua problematização, no qual múltiplas práticas, discursos, saberes,
críticas, resistências, invenções políticas circulam, defrontam-se, entram em disputa
conformando o que Foucault (1980, 1987) chamaria de dispositivo carcerário. Portanto,
em segundo lugar, deve-se admitir que o foco da pesquisa transitou dos efeitos
societários territorializados do aumento do encarceramento para uma abordagem
analítico-descritiva de algumas peças, mecanismos, funções e disfunções do dispositivo
carcerário contemporâneo. Faz-se necessário, desde já, delimitar minimamente o que se
entende por esse dispositivo.
Foucault trabalha a noção de dispositivo em diferentes ocasiões sem, no entanto,
engessá-la num conceito de postulado definitivo. Em Vigiar e Punir(1996), debruça-
se sobre o dispositivo disciplinar; em Segurança, Território e População (2006),
sobre o dispositivo de segurança; e em História da Sexualidade I (1987), sobre o
dispositivo da sexualidade. Numa entrevista acerca dessa última obra publicada em
Microfísica do Poder (1980) é possível encontrar uma de suas mais claras
formulações sobre essa noção estratégica que atravessa boa parte de sua produção:
17
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em
segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir
entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode
aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como
elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece
muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe
acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos,
discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição,
modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em
terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um
determinado momento histórico, teve como função principal responder a
uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica
dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de
população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista
achava incômoda: existe ai um imperativo estratégico funcionando como
matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de
controle-dominação da loucura, da doença mental, da neurose.
(FOUCAULT, 1980, pp.137-138 grifo meu)
Na seqüência da entrevista, Foucault segue explorando os processos característicos de
um dispositivo, e para tanto recorre ao exemplo do dispositivo carcerário:
Um primeiro momento é o da predominância de um objetivo estratégico.
Em seguida, o dispositivo se constitui como tal e continua sendo dispositivo
na medida em que engloba um duplo processo: por um lado, processo de
sobredeterminação funcional, pois cada efeito, positivo ou negativo,
desejado ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição
com os outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos
heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de
18
perpétuo preenchimento estratégico. Tomemos o exemplo do
aprisionamento, dispositivo que fez com que em determinado momento as
medidas de detenção tivessem aparecido como o instrumento mais eficaz,
mais racional que se podia aplicar ao fenômeno da criminalidade. O que
isto produziu? Um efeito que não estava de modo algum previsto de
antemão, que nada tinha a ver com uma astúcia estratégica produzida por
uma figura meta ou trans-histórica que o teria percebido e desejado. Este
efeito foi a constituição de um meio delinqüente, muito diferente daquela
espécie de viveiro de práticas e indivíduos ilegalistas que se podia
encontrar na sociedade setecentista. O que aconteceu? A prisão funcionou
como filtro, concentração, profissionalização, isolamento de um meio
delinqüente. A partir mais ou menos de 1830, assiste-se a uma reutilização
imediata deste efeito involuntário e negativo em uma nova estratégia, que
de certa forma ocupou o espaço vazio ou transformou o negativo em
positivo: o meio delinqüente passou a ser reutilizado com finalidades
políticas e econômicas diversas (como a extração de um lucro do prazer,
com a organização da prostituição). É isto que chamo de preenchimento
estratégico do dispositivo.” (Idem, 1980, p.138)
O dispositivo como um conjunto complexo, diferenciado, movediço, em aberto,
desprovido de coerência interna, mas conformado por uma estratégia dominante, por
uma urgência histórica imperiosa, e por tantas outras urgências e estratégias que vão se
impondo, se justapondo, e se contrapondo.
Portanto, em terceiro lugar, é preciso deixar claro que não se quer pretender, a partir do
percurso realizado nessa pesquisa, produzir uma analítica exaustiva um mapa
completo do dispositivo carcerário contemporâneo. Trata-se, tão somente, de
apresentar uma cartografia parcial, um mapa de percursos possíveis, trilhas abertas que
passam pelo dispositivo carcerário, mas que também se conectam a outros campos de
problematização, porque guiadas pelos contornamentos da busca de um bairro, pelas
trilhas abertas pelos interlocutores que foram sendo encontrados nesse percurso, e por
uma miríade de descobertas inerentes à prática de explorar um terreno desconhecido.
Finalmente, resta pontuar que, segundo o material coletado e esse outro jogo de
referências, a proposta comparativa perde sentido. Os percursos em Barcelona e São
19
Paulo, que para serem comparáveis eram para ser bem territorializados e paralelos,
cruzaram-se num obstáculo comum, e desdobraram-se em outras questões e territórios.
De tal modo, desde a perspectiva dos traçados que atravessam o dispositivo carcerário,
as diferentes dinâmicas da criminalidade imaginadas como uma espécie de desvio
comprometedor na formulação original da pesquisa , bem como as muito variáveis
estruturações societárias prospectadas que emanam da prisão em territorialidades
difusas, acabam por ser reinscritas nessa cartografia como marcos sinalizadores
adicionais, como dados do campo de possibilidades que o dispositivo encerra (ou abre).
Isto é, a pesquisa na Catalunha, ao invés de ajudar a isolar os efeitos societários do
encarceramento em massa, acaba por ampliar o repertório de possibilidades de
estratégias, agentes, discursos, práticas, conflitos e também de resistências que são
conformáveis no dispositivo.
Eis os principais marcos do percurso geral que o presente trabalho procura expressar, e
que deverão ser mais bem situados e qualificados no decorrer das próximas páginas. De
todo modo, uma última marcação precisa ainda aqui ser feita: a despeito de tantos
desvios, contornos e reavaliações de percurso, no horizonte figura o mesmo ponto
cardeal: a indagação acerca dos processos de estruturação de um campo de agentes,
práticas e discursos ao redor e através da prisão, para muito além de seus limites físicos
ou institucionais.
Agora, resta indicar esquematicamente como essas questões se distribuem no trabalho.
No primeiro capítulo Hipótese produtiva” apresento o que chamei de ponto cardeal
da pesquisa, a perspectiva teórica e analítica adotada, suas causas e circunstâncias. No
segundo capítulo “Massificação do encarceramento” , depois de sistematizar alguns
trabalhos e problemas que pautam a discussão sobre o aumento do encarceramento,
realizo uma primeira aproximação aos contextos punitivos estudados. O terceiro
capítulo Vasos comunicantes” – visa situar a escala do problema do transbordamento
da prisão; explorar alguns dos vasos comunicantes e das estruturações societárias que
promovem; e apontar os sentidos da passagem de foco do trabalho de campo dos vasos
comunicantes para os mediadores. No quarto capítulo “Percursos de campo”
procuro explicitar o trabalho de campo realizado em Barcelona e em São Paulo, para
esclarecer ao máximo as circunstâncias empíricas que levaram ao deslocamento no eixo
da pesquisa. O quinto capítulo “Uma abordagem (im)possível” é o da realização da
20
passagem, onde se problematizam as dificuldades experimentadas e a saída encontrada.
No sexto e sétimo capítulos “Uma cartografia do dispositivo carcerário catalão” e
“Uma cartografia do dispositivo carcerário paulista” exploro as configurações e
alterações recentes no dispositivo carcerário operante em cada contexto estudado. No
capítulo final, mais do que uma conclusão, um balanço do percurso realizado, uma
sistematização dos avanços efetuados e de possíveis direções a seguir.
21
1 Hipótese produtiva
Nina
5
mora com Kátia e Marcelinho. Nina é mãe de Ronaldo, Kátia é mulher dele e
Marcelinho é filho. Ronaldo está preso há mais de dez anos. As duas se conheceram
dentro da prisão, num dia de visita. Kátia, muito jovem e ainda grávida, desesperava-se
por não ter condições de criar o filho que viria. Ronaldo igualmente, por mais que
trabalhasse na penitenciária, sabia que o dinheiro que recebia seria insuficiente para
garantir o sustento do primeiro filho. Nina, viúva e aposentada, assumiu a
responsabilidade de colaborar na criação do neto enquanto o filho estivesse preso,
chamou a nora para morar com ela. Juntas, durante a semana, as duas fazem o “jumbo”
que uma delas levará para Ronaldo no dia de visita. No “jumbo” e também no prato de
Marcelinho, arroz, feijão, macarrão que são doados por vizinhos solidários e
conhecedores das dificuldades daquela família.
Aisa, como Marcelinho, foi concebida numa visita íntima, no interior de um presídio.
Até os quinze anos de idade, cresceu tendo o pai dentro de uma prisão muito distante.
Comemorou aniversários, brincou, fez amizades dentro de uma unidade prisional desde
sempre. Cedo se acostumou a viajar para visitar o pai, a não falar sobre sua condição de
encarcerado, a ocultar como pudesse, meias, cuecas, escovas de dente para presentear o
pai dentro da prisão. Por mais que o pai estivesse preso e distante, a relação familiar era
forte e, na medida do possível, saudável; ele sabia de tudo que se passava com ela,
trocavam cartas e lembranças, viam-se freqüentemente, conversavam francamente,
amavam-se. Enquanto seu pai esteve preso, ela sonhava com uma vida normal que viria
com a sua libertação. Quando ele foi solto, o sonho não se concretizou, de modo que
aquela família carinhosa e unida a despeito da prisão, ruiu quando a prisão deixou de
agir sobre ela. Na rua, ele envolveu-se em ilegalismos diversos, ficou violento com a
mulher, ausente com a filha, sumiu, arrumou outra mulher, outros filhos, outra família,
que passou a visitá-lo quando ele voltou a ser preso.
Eis alguns fragmentos de histórias de vida que mostram famílias se estruturando a
despeito da prisão de um de seus componentes, ou mesmo a partir da prisão de um de
5
Todos os nomes são fictícios.
22
seus componentes. Famílias estruturadas ao redor da prisão, em cuja estruturação
concorrem diversas gerações e também amigos e vizinhos, que vão, como podem,
preenchendo as lacunas deixadas pela prisão do “chefe-provedor”. Nesses ambientes
familiares, a ausência do “chefe-provedor” é também a presença da prisão. A prisão
presente e circulando o tempo todo, em lembranças doloridas (ou não), em conversas
triviais, em contas (de dívidas, de dias), em sonhos feitos e refeitos a cada momento.
Foi no ambiente familiar que primeiro identifiquei indícios de estruturação de um
campo social, promovido e produzido por uma instituição prisional que se faz cada vez
mais presente. E foi a partir daí que me deparei com o problema do extravasamento da
prisão, da prisão agindo fora dela, e isso de uma maneira imprevista, porque produtiva.
1.1 - (D)efeitos
Tão logo procurei referências e estudos que me ajudassem a compreender trajetórias e
famílias como essas, deparei-me com formulações que podem ser exemplarmente
sintetizadas na seguinte frase:
cuando se encarcela a alguien, se produce un proceso de
desestructuración familiar (…) hundimiento y destrucción de la familia,
ruptura de las relaciones del hogar, ruptura de las relaciones con los
componentes de la familia, o con alguno/a de ellos/as, problemas psíquicos
graves, especialmente para la madre, o problemas de salud graves para
otros miembros de la familia. A todas estas consecuencias se tiene que
añadir, además, el rechazo social.(OSPDH, 2006, pp.137-138)
Desestruturação, ruptura e estigma têm sido as noções fundamentais para a reflexão
sobre a ação da prisão num ambiente familiar ou comunitário. Goffman (1988) lançou
as bases para esse campo de problematização em Estigma: notas sobre a
manipulação da identidade deteriorada”, originalmente publicado em 1963 , ao
discutir o efeito contaminador do estigma de uma pessoa sobre outra que lhe é próxima.
Os efeitos deletérios da ruptura de laços familiares e da estigmatização de familiares de
23
presos é discutido e desdobrado, por exemplo, no trabalho de Pueschel e Moglia (1977),
The effects of the penal environment on familial relationships”. No Brasil, ainda que
escassa a teorização sobre essa questão, é possível identificar trabalhos que
desenvolvem essa mesma perspectiva sobre o tema, como o de Miyashiro (2006),
Filhos de presidiários: um estudo sobre estigma.
no contexto estadunidense, Comfort (2003, 2007) formula a hipótese de
“prisionização secundária”, como um dos processos que afetam principalmente as mães,
esposas e namoradas de presos que continuamente passam pela experiência de visitação
em uma unidade prisional. A autora analisa a dinâmica social da visitação num presídio
de segurança máxima da Califórnia, destacando as alterações comportamentais e
simbólicas que esse processo específico de socialização introduz na vida dessas
mulheres.
Travis e Waul (2003) organizaram uma publicação dedicada ao tema dos efeitos do
encarceramento em diferentes níveis, intitulada Prisoners Once Removed: the impact
of incarceration and reentry on children, families and communities”. O livro é
composto por três partes: na primeira são discutidos os impactos do encarceramento
sobre o indivíduo que passa pela prisão; na segunda, os impactos sobre seus filhos e
suas famílias; e na terceira, os impactos sobre as comunidades locais de onde saem e
para onde voltam. Em todas as partes, segundo os editores, existe uma preocupação em
avaliar como os serviços sociais, sanitários, educacionais e correcionais podem se
integrar de uma maneira mais efetiva para melhor atender as necessidades de
indivíduos, famílias e comunidades desestruturados pelo encarceramento.
Com uma abordagem menos programática, Mauer e Chesney-Lind (2002) organizaram
o livro Invisible Punishment: the collateral consequences of mass imprisonment”, no
qual, entre tantas questões sobre os efeitos do incremento do encarceramento, aparecem
trabalhos que repõem a questão da desestruturação que o cárcere promove na
organização familiar e comunitária. Braman (in MAUER e CHESNEY-LIND, 2002,
pp.117-135), ao concluir o seu artigo intitulado Families and Incarceration, resume a
tônica mais ou menos compartilhada por esses estudos que se voltam para a questão das
conseqüências mais amplas do encarceramento e de sua intensificação:
24
The overuse of incarceration harms the families of prisoners as much as, if
not more than, the prisoners themselves. It does so not only through direct
costs that families bear, but by restructuring families and by distorting and
diminishing the relationships between family and friends. In these sense,
the incarceration of an offender is not simply the sanctioning of an
individual, but part of a broader corrosion of social bonds bonds that
sustain people, particularly people in difficult circumstances. And as these
bonds are strained, the resources available to members of the family, both
material and emotional, are also diminished. As a result, not only individual
families suffer from the overuse of incarceration, but the extended networks
of kinship and friendship that make up a community suffer as well.
(BRAMAN in MAUER e CHESNEY-LIND, 2002, p. 135 grifos meus)
A hipótese geral que subjaz nessa ordem de análises dos efeitos do encarceramento é a
de que a prisão tem a desestruturação como efeito primordial: desestruturação
individual, familiar e comunitária.
De toda forma, essa ordem de problematizações contrastava com o que mais vinha me
chamando atenção nas trajetórias e famílias que pesquisava. As famílias de Marcelinho
e Aisa seguramente enfrentavam diversos problemas, debilidades financeiras, afetivas,
preconceito. Porém, não eram famílias propriamente destruídas, eram famílias
singulares, diferentes, distantes de um padrão imaginado de família ideal, mas não
destruídas. Rechaço social seguramente existia, mas existiam também pessoas solidárias
que colaboravam no sustento da família. As relações entre mãe e filho, pai e filho(a),
marido e mulher não eram relações contínuas, diárias, mas não se pode dizer que fossem
relações rompidas.
Essa bibliografia parecia-me por demais taxativa: a prisão impõe defeitos num ambiente
familiar; enquanto os relatos como os de Nina e Aisa, levavam-me a crer que a prisão
impõe efeitos, que podem ser dolorosos, desagradáveis, mas que não são absolutamente
destruidores, podendo ser também reestruturantes, produtivos, e num sentido muito
preciso. O vínculo entre Nina e Katia foi produzido na prisão, o cotidiano delas de
manufatura de “jumbo” e visita semanal é produzido pelo encarceramento de Ronaldo;
as próprias existências de Marcelinho e Aisa, no limite, foram também produzidas na
prisão; como também o vínculo afetivo entre Aisa e seu pai foi produzido e mantido
25
enquanto ele esteve preso. São diversas as produções que a ação da prisão impõe num
círculo familiar, para descrevê-la meramente como destruição, corrosão, etc.
Suspendendo, ainda que provisoriamente, a hipótese da desestruturação familiar como
efeito primordial da prisão, esta passa a aparecer como um componente mais da
socialização de famílias como as de Marcelinho e de Aisa. E nessa ação socializadora
do cárcere para além de seus limites que procurava focar a investigação. De toda forma,
se aquela perspectiva parecia prevalecer, cabia-me aprofundar o estudo sobre o processo
de socialização que o cárcere promove, identificando e compreendendo as matrizes
analíticas que faziam ver a destruição onde estava vendo produção.
1.2 - Prisionizações
A especificidade da socialização prisional constitui um tema caro à teoria social, tanto
que se lhe atribuiu um nome próprio: prisionização. O termo prisionização aparece pela
primeira vez na obra de Clemmer (1958), The Prison Community”, publicada
originalmente em 1940. Nesse trabalho, o autor sintetiza aspectos estruturantes da
cultura prisional e atenta para os meios pelos quais essa cultura conforma atitudes nos
indivíduos que passam pela prisão. A idéia de prisionização é desenvolvida com
referência à noção de “assimilação”. A assimilação é uma variante da socialização na
medida em que supõe que um indivíduo previamente socializado num determinado
contexto pode ser assimilado a outro, se passa por um segundo processo socializante:
“(…) the term assimilation describes a slow, gradual, more or less
unconscious process during which a person learns enough of the culture of
a social unit into which he is placed to make him characteristic of it
(CLEMMER, 1958, pp.298-299).
Segundo Clemmer, da mesma forma que o processo de assimilação de imigrantes nos
Estados Unidos poderia ser chamado de “americanização”, a assimilação de indivíduos
no ambiente prisional poderia ser nomeada de prisionização. O processo de
prisionização é experimentado, em alguma medida, por todo homem que passa por uma
26
penitenciária, implicando numa reinterpretação geral da vida. Através dele, novos
significados são atribuídos a noções fundamentais que organizam a experiência humana,
como o abrigo, o vestuário, a alimentação, o trabalho, etc.; elementos fundamentais da
vida, que na prisão invariavelmente passam a ser administrados por outrem.
O autor ainda apresenta fatores universais que caracterizam o processo de prisionização,
como um catálogo dos principais efeitos do encarceramento sobre o indivíduo preso: 1
aceitação de uma posição social inferior; 2 progressiva acumulação na memória de
fatos concernentes à organização prisional; 3 desenvolvimento de novos hábitos de
alimentação, vestuário, trabalho e sono; 4 adoção da linguagem local; 5 o
reconhecimento de que necessidades fundamentais não podem ser satisfeitas no devido
ambiente; e 6 o desejo de conseguir um bom trabalho no interior do presídio. Na
medida em que se verificam esses fatores gerais nas atitudes de um preso, é possível
identificá-lo como um membro da “comunidade prisional”, que foi socializado na
cultura da prisão.
Clemmer sustenta que existem graus de prisionização, e múltiplos fatores que
determinam a velocidade e o alcance do processo para cada indivíduo como a duração
da pena, os atributos de personalidade, o grau de contato com elementos do ambiente
externo à prisão, e a integração ou não a grupos de poder no interior da unidade.
Interessava-lhe especialmente os casos de prisionização nos seus graus mais altos, pois,
segundo ele, é nesse estágio que se aprofundam as atitudes anti-sociais e se desenvolve
uma ideologia criminal no indivíduo.
Sykes (1958) é outro autor que discute a especificidade do processo de socialização no
interior da comunidade prisional. Em Society of Captives: a study of a maximum
security prison”, o autor analisa as dinâmicas formal e informal de interação dos presos
entre si, e destes com o conjunto de funcionários, num estudo que se aproxima da
análise da cultura prisional proposta por Clemmer. Mas, por sua vez, para qualificar o
processo de socialização dos internos, Sykes privilegia outros elementos e processos
estruturais. Segundo esse autor, a cultura da prisão pode ser mais bem descrita pela
enumeração e análise das privações que a vida prisional implica. Descrevendo o que
chama de “dores do encarceramento” que dão ensejo à elaboração de práticas e
significados sociais que são próprios ao ambiente Sykes apresenta os traços
característicos da cultura prisional e do processo de prisionização. Segundo esse autor,
27
as privações de liberdade, de bens e serviços, de relacionamentos heterossexuais, de
autonomia e de segurança constituiriam as bases estruturais do desenvolvimento de uma
cultura e identidade específicas à prisão.
Outro estudo que se dedica a analisar a conformação do sujeito a partir das privações
que lhe são impostas é Manicômios, Prisões e Conventos”, de Goffman (1974),
publicado pela primeira vez em 1961. Ainda que esse autor não se proponha a analisar
especificamente o processo de socialização na prisão, esse estudo estabelece
importantes marcos teóricos e analíticos que foram posteriormente mobilizados em
estudos sobre a prisionização. Goffman propõe uma análise da socialização em
“instituições totais”, que, segundo ele, se caracterizam como um local de residência e
trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da
sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
formalmente administrada.” (GOFFMAN, 1974, p.11) As instituições totais podem
compreender desde o monastério religioso, o hospital psiquiátrico até a prisão, que
em todos eles:
Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo
local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da
atividade diária é realizada na companhia imediata de um grupo
relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma
forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro
lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em
horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e
toda a seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras
formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias
atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único,
supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição.
(GOFFMAN, 1974, p.17-18)
Segundo Goffman, o ingresso numa instituição total impõe uma série de desvios na
“carreira moral” do indivíduo, que são experimentados como degradantes, e constituem
“mortificações do eu”. Por “carreira moral”, o autor faz referência ao processo geral de
socialização, que se desenvolve na constante interação do indivíduo no interior de
28
diferentes grupos sociais.
6
as “mortificações do eu” podem ser entendidas como
mutilações que são impostas numa identidade previamente constituída. Para o autor, a
primeira mutilação do eu que uma instituição total impõe é a própria barreira que separa
o interno do meio externo, impossibilitando que o individuo se mantenha atualizado
sobre o que acontece na sociedade em geral, operando uma espécie de “desculturação” e
“destreinamento” para a vida em liberdade. A segunda mutilação é a perda do nome, e
sua substituição por um número e/ou apelido, geralmente percebidos como humilhantes.
A perda absoluta de espaços e momentos de intimidade, a submissão a procedimentos
humilhantes, a perda de controle sobre as atividades são outras das mutilações
destacadas por Goffman.
A essas mutilações, no eu mortificado, sobrepõem-se uma série de ajustes secundários
que visam a adaptação do sujeito à vida na instituição, de forma que se possa conservar
um nimo de domínio sobre o meio. Sistemas informais de comunicação, estratégias
para obtenção de satisfações proibidas, ou mobilização de meios proibidos para a
obtenção de satisfações permitidas são alguns elementos que caracterizam esse sistema
de ajustes. Diferentemente de Clemmer, que diferencia o processo de prisionização em
termos de grau quantitativo e ritmo, Goffman identifica diferentes possibilidades de
desenvolvimento de ajustes secundários, conformando diferentes sujeitos adaptados ao
ambiente institucional. A adaptação pode rumar ou para uma conversão absoluta do
sujeito, que passa a se identificar com os objetivos institucionais; ou para uma
acomodação passiva e utilitária, que visa o aproveitamento máximo dos benefícios
possíveis no ambiente interno; ou para uma recusa intransigente de tudo o que a
instituição obriga e oferece; ou para uma alienação profunda, que torna o individuo
indiferente a quase tudo que não lhe toque o corpo.
Clemmer, Sykes e Goffman demarcam o campo de problematização do processo de
socialização no interior do ambiente prisional, e baseando-se neles ou se opondo a eles
que toda uma bibliografia sobre a prisionização se desenvolveu. Para citar alguns
exemplos é possível mencionar os trabalhos de Wheeler (1961), “Socialization in
correctional communities”; de Edwards (1970), Inmate adaptations and socialization
in the prison”; e de Kaminski (2003), Games Prisoners Play: allocation of social roles
in a total institution”. No Brasil, Thompson (2002) em A Questão Penitenciária”,
6
Para uma discussão mais detida sobre carreira moral, ver: GOFFMAN (1988).
29
originalmente publicado em 1976 e Ramalho (2002) com O Mundo do Crime: a
ordem pelo avesso”, publicado pela primeira vez em 1979 são pioneiros nesse debate
acerca da socialização prisional.
em Manicômios, Prisões e Conventos”, Goffman expandia o campo de
problematização sobre a socialização em instituições totais para o corpo de funcionários
da instituição, discutindo as especificidades desse tipo de trabalho sobre seres
humanos.
7
O psicólogo Zimbardo (1973, 2004), a partir do experimento que conduziu
em 1971 na Universidade de Stanford
8
, aprofunda-se na reflexão sobre a ação do meio
na constituição dos sujeitos, dando especial atenção para as transformações na
personalidade de indivíduos que ocupam posições de poder num ambiente prisional.
9
Ainda sobre a socialização dos profissionais do encarceramento podem ser citados os
trabalhos de Duffee (1974), The correctional officer subculture and organizational
change”; de Jacobs e Retsky (1975), Prison Guard”; e de Ellis (1979), The prison
guard as a carceral Luddite: a critical review of the MacGuigan Report on the
penitentiary system in Canada”.
A prisionização de funcionários de prisão, portanto, também constitui uma linhagem
dessa ampla bibliografia sobre a socialização prisional. No Brasil, Thompson
indicava a importância de a reflexão sobre as instituições penitenciárias abarcar esse
aspecto específico. A psicóloga Lopes (1998) abordou o tema em sua pesquisa de
mestrado; e Chies et. al. (2005), retomando sugestões de Thompson, desenvolveram
uma pesquisa específica sobre a prisionização de funcionários num presídio de Pelotas,
Rio Grande do Sul.
A passagem para análises da socialização prisional de familiares de presos
prisionização secundária, nos termos de Comfort é uma derivação, uma continuidade,
uma ampliação de toda essa discussão acima apontada. O privilegiar na análise os
aspectos desestruturantes da ação institucional sobre as famílias de presos deriva da
maneira de se conceber a ação da prisão sobre os próprios presos. “Dores do
encarceramento” ou “mortificações do eu” conformam um substrato de desestruturação
7
Ver: GOFFMAN (1974), pp.69-83.
8
Experimento de simulação de uma prisão, com voluntários desempenhando os papéis de presos e
vigilantes.
9
Os resultados do experimento estão disponíveis na internet, ver: http://www.prisonexp.org/ (Consulta
feita em maio de 2010).
30
de uma “carreira moral” do processo de constituição de uma individualidade à qual,
posteriormente se acresceriam “ajustes secundários”, esboços e tentativas de
reestruturação identitária. Mas esboços que são sempre insuficientes para reparar uma
identidade que é fundamentalmente desfigurada pela prisão. Assim se concebe a
socialização pela prisão, seja de internos, seja de funcionários de prisão, seja de
familiares de presos.
Sem desconsiderar a importância desse campo de problematização, é preciso ponderar
que existem outras formas de se pensar a prisão, que poderiam oferecer outras matrizes
de interpretação para a ação da instituição prisional para além de seus limites físicos.
1.3 - A hipótese produtiva
Tão relevante quanto essa literatura sobre os diversos efeitos desestruturantes da prisão
é um campo de problematização que procura indagar à prisão sobre sua especificidade
frente a outras formas de punição, sobre suas funcionalidades estratégicas, suas causas
obtusas e fundamentais. Uma tradição que se alinha à anterior ao verificar que a prisão
não é exatamente o “instituto de regeneração” que apregoa ser, mas que se afasta
daquela ao empreender outros percursos analíticos a partir dessa constatação. Nesse
outro plano de referências, questões sobre o que a prisão desestrutura, como a prisão
reprime ou distorce individualidades e grupos sociais são deslocadas, cedendo lugar a
indagações sobre o que produz a punição em forma de prisão, como a punição em forma
de prisão funciona e como ela conforma individualidades e grupos sociais. Opera-se
assim uma passagem de foco dos efeitos desestruturantes da prisão para os processos
estruturantes da punição (em forma de prisão e/ou não). De um lado, o trabalho de
Rusche e Kirchheimer (1984), de outro, o de Foucault (1996) constituem os alicerces
desse segundo campo.
Rusche e Kirchheimer em Punição e Estrutura Social”, originalmente publicado em
1939 sustentam que para analisar sociologicamente um sistema punitivo é necessário,
em primeiro lugar, suspender o nexo explicativo entre delito e pena, de modo que a
31
forma da punição numa determinada época possa ser analisada com referência às
relações positivas que mantém com as estruturas sociais e econômicas nas quais se
insere. Ou seja, ao invés de indagar sobre o que a prisão busca reprimir sobre sua
relação negativa com o delito questionar sobre o que a prisão busca operar sua
relação positiva com o sistema produtivo.
A forma específica da punição num determinado período histórico, segundo esses
autores, não seria uma função da criminalidade, de suas formas e intensidades, mas
antes, uma função do grau de desenvolvimento do sistema produtivo, das condições de
oferta e demanda de força de trabalho, e das condições de vida das classes mais pobres
de uma população. De acordo com eles, o desenvolvimento econômico de uma
sociedade e as oscilações entre oferta e demanda de mão de obra determinam variações
no valor atribuído à própria vida humana, condicionando as escolhas por métodos
punitivos mais ou menos severos. Em “Punição e Estrutura Social”, a análise da
variação das formas de punição abarca o processo de desenvolvimento econômico e
social desde a Baixa Idade Média até as tendências observáveis nos regimes totalitários
nazi-fascistas do século XX. Para explicitar as linhas gerais do argumento dos autores
de uma maneira esquemática, basta indicar que o estudo demarca três grandes períodos
no desenvolvimento da punição. Um primeiro período caracterizado por um regime de
produção feudal, no qual se verifica um excedente de mão de obra e uma conseqüente
baixa valorização da vida humana. Nesse período, aqueles criminosos que não tinham
propriedades eram punidos de um modo extremamente cruel, com variados tipos de
penas corporais e freqüentemente com a pena capital. O segundo período é o
mercantilista, da empresa colonial e dos primeiros desenvolvimentos da manufatura;
quando havia uma aguda escassez de mão de obra, e, portanto, uma maior valorização
da vida humana. Nesse contexto histórico, as penas capitais e os castigos corporais
entram em declínio, e os criminosos passam a ser punidos através de procedimentos
mais produtivos, com trabalhos forçados nas metrópoles, nas galeras e nas colônias. O
terceiro período é o do sistema produtivo capitalista industrial, no qual ainda que as
oscilações entre oferta e demanda de mão de obra sejam extremamente rápidas e
dinâmicas em linhas gerais, é possível verificar um excedente de mão de obra, e uma
conseqüente desvalorização da vida humana. Desse modo, a punição se faz menos
produtiva, e a prisão passa a ser a pena por excelência, funcionando segundo uma
32
dinâmica que estabelece que as condições de vida internas aos presídios devem sempre
ser piores do que as piores condições de vida existentes do lado de fora das instituições
penais.
Rusche e Kirchheimer realizam uma extensa reflexão sobre os motivos pelos quais a
desvalorização da vida humana no período moderno não implicou um retorno
substantivo às penas corporais e capitais. Para explicar esse aparente enigma, que
contradiria os fundamentos do argumento, os autores analisam detalhadamente o
desenvolvimento das casas de correção, as funções econômicas e sociais do trabalho
penal, os percalços do processo de industrialização em diferentes países, os avanços
políticos e ideológicos da burguesia, atentando, principalmente, para as repercussões
teóricas e práticas de todo um novo pensamento penalista que emergiu no período do
Iluminismo. É através desse minucioso trabalho analítico que os autores formulam a
hipótese da prisão dissuasiva, e identificam o princípio de less eligibility (de piores
condições de vida dentro da prisão do que as piores condições de vida fora) como
organizador da pena de prisão no sistema produtivo capitalista.
A esse princípio fundamental se submetem os programas de reforma das prisões,
desenvolvidos em diferentes países ocidentais nos últimos séculos. Esses programas que
apregoam um tratamento mais racional e humanizado do criminoso e que através da
prisão visam regenerar e reinserir o criminoso na sociedade nunca podem se realizar
plenamente, uma vez que seus avanços e recuos dependem mais das condições
exteriores do mercado de trabalho do que da capacidade administrativa dos gestores
penitenciários. Por isso, contraditoriamente, o discurso ideológico reformador é quase
sempre acompanhado de uma realidade de superpopulação carcerária, de péssimas
condições de higiene e saúde no interior dos presídios, de ócio generalizado (ou de
trabalhos meramente punitivos, sem funções econômicas relevantes), de altos índices de
mortalidade no interior dos presídios, etc.; atributos que evocam os tradicionais castigos
corporais e capitais, e fazem do nível de vida no interior da instituição penal sempre
mais baixo do que o nível mínimo fora da prisão.
Foucault em Vigiar e Punir”, originalmente publicado em 1975 vai recuperar
alguns dos preceitos estabelecidos por Rusche e Kirchheimer para desenvolver suas
análises, especialmente no que se refere às especificidades e positividades de uma forma
de punição:
33
Do grande livro de Rusche e Kirchheimer podemos guardar algumas
referências essenciais. Abandonar em primeiro lugar a ilusão de que a
penalidade é antes de tudo (se não exclusivamente) uma maneira de
reprimir os delitos e que nesse papel, de acordo com as formas sociais, os
sistemas políticos ou as crenças, ela pode ser severa ou indulgente, voltar-
se para a expiação ou procurar obter uma reparação, aplicar-se em
perseguir o indivíduo ou em atribuir responsabilidades coletivas. Analisar
antes os "sistemas punitivos concretos", estudá-los como fenômenos sociais
que não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica da
sociedade nem por suas opções éticas fundamentais; recolocá-los em seu
campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento;
mostrar que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos
"negativos" que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que
elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm
por encargo sustentar (e nesse sentido, se os castigos legais são feitos para
sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua
repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos
e suas funções).” (FOUCAULT, 1996, pp.24-25 grifo meu)
Porém, no que diz respeito a essas funções, Foucault se afasta da teoria materialista
histórica de Rusche e Kirchheimer para os quais a função primordial de qualquer
sistema punitivo seria operar uma certa regulação de oferta e demanda de mão de obra.
Para Foucault, diferentes sistemas punitivos expressam diferentes racionalidades,
diferentes relações de poder, respondem a problemas estratégicos distintos, constituem
arranjos específicos de poder-saber, que são desprovidos de uma função essencial que
os unifique e totalize. Enquanto Rusche e Kirchheimer privilegiam as determinações
econômicas de um sistema punitivo, Foucault se debruça sobre a especificidade das
relações de poder e saber que o conformam.
Vigiar e Punir começa pela contraposição de descrições de um brutal ritual de
suplício e de um sóbrio regulamento de uma casa de detenção para jovens. No contraste
gritante entre as duas formas punitivas, o autor situa o seu problema de investigação.
Compreender a passagem de uma forma punitiva a outra é sim considerar as
transformações econômicas, mas também é considerar a mudança de racionalidade, de
34
objeto, de práticas e das formas pelas quais o poder se exerce. Foucault sustenta que o
suplício era um ritual político de produção, demonstração, afirmação do poder soberano,
do poder do rei sobre a vida e a morte de seus súditos. a prisão e seu minucioso
regulamento são expressões de um poder disciplinar, de uma racionalidade que interpela
as disposições para o crime, mais do que o crime em si, de um poder que não se exerce
num episódio público e ostensivo sobre um corpo em evidência, mas sim discretamente,
continuamente, indefinidamente, e sobre a quantidade de corpos que se considere
necessária e possível.
Na passagem do suplício à prisão, o que pode aparecer como suavização, humanização,
racionalização da pena, deve ser visto, segundo Foucault, como intensificação, extensão
e maior produtividade da punição. Prender ao invés de esquartejar não é punir menos ou
mais humanamente, é punir mais com menos recursos, é punir mais eficazmente, é punir
economicamente. Para explicar essa eficácia econômica da prisão Foucault recorre a
deslocamentos que se davam no plano dos ilegalismos populares. Segundo o autor, no
Antigo Regime período de preeminência do poder soberano , existia uma ampla
tolerância entre os ilegalismos das elites e das classes populares. Os delitos que
acionavam os mecanismos punitivos do suplício eram aqueles que atentavam direta ou
simbolicamente contra o corpo do rei, contra o poder soberano. Mas, com o avanço da
industrialização, a conseqüente proliferação das mercadorias em circulação e em
estoque, a ascensão dos estratos burgueses às esferas de poder, e o aumento
pronunciado das populações urbanas, os ilegalismos populares tendem aos crimes
contra a propriedade, despertando maior atenção das novas classes dominantes. Desse
modo, fez-se necessário um tipo de sistema punitivo que deixasse menos lacunas às
práticas ilegais, que fosse mais eficiente, mais extensivo e menos custoso em termos
econômicos e políticos. A pena de prisão, defendida pelos reformadores do sistema
penal e propagada com mais humana frente aos suplícios, também atendia sub-
repticiamente essas demandas de regularidade e eficiência econômica da punição.
Poder-se-ia objetar que a prisão foi sempre ineficaz nessa pretensa tarefa de se opor e
prevenir a proliferação dos ilegalismos populares contra os interesses e os direitos de
propriedade das novas elites, na medida em que ao invés de reprimir a delinqüência, a
prisão a produzia, a profissionalizava. Ao incluir essa possível crítica no próprio
35
mecanismo de implantação da punição em forma de prisão, Foucault sofistica seu
argumento, indicando outros sentidos para a produtividade e a eficácia da prisão.
Foucault mostra como a implantação da prisão, a crítica de sua ineficácia e o
desenvolvimento de programas para sua reforma são processos sincrônicos e
articulados. A formulação das mesmas críticas
10
e dos mesmos princípios
reformadores
11
são peças que compõem e fundamentam a implantação e extensão da
pena de prisão, porque a eficácia da prisão não seria exatamente a de reprimir ou
prevenir os ilegalismos populares, mas sim de geri-los diferencialmente. Ou seja, a
prisão não fracassa absolutamente ao produzir uma delinqüência organizada e
profissionalizada, uma vez que essa mesma delinqüência pode ser utilizada, penetrada e
mobilizada para operar outros ilegalismos, isolar uns, evidenciar outros. Nas palavras
do autor:
Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o
fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a
crítica, continuamente, denuncia: manutenção da delinqüência, indução em
reincidência, transformação do infrator ocasional em delinqüência. Talvez
devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituição
penal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena, continua a
segui-los através de toda uma série de marcações (...) e que persegue assim
como „delinqüente‟ aquele que quitou sua punição como infrator? Não
podemos ver mais que uma contradição, uma conseqüência? Deveríamos
então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos,
não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, a
distribuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão
prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão
das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma
maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar
terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de
10
A prisão não reduz a criminalidade, provoca a reincidência, fabrica delinqüentes, permite a sua
organização coletiva, etc.
11
O objetivo da prisão é transformar os indivíduos, os presos devem ser separados segundo suas
especificidades, a duração da pena deve variar segundo os progressos do indivíduo, o preso deve trabalhar
e se educar, os profissionais da prisão devem ser especializados, e o egresso da prisão deve ser assistido
para não reincidir.
36
tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em
resumo, a penalidade não „reprimiria‟ pura e simplesmente as ilegalidades;
ela as „diferenciaria‟, faria sua „economia‟ geral. E se podemos falar de
uma justiça não é porque a própria lei ou a maneira de aplicá-la servem
aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das
ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de
dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia
global das ilegalidades. O „fracasso‟ da prisão pode sem vida ser
apreendido a partir daí.” (FOUCAULT, 1996, pp.226-227 grifo meu)
Portanto, a conformação da delinqüência, a estruturação de um meio delinqüente dentro
da prisão e que se estende para fora dela são elementos que permitem interpelar o
encarceramento em sua positividade, em sua produtividade estratégica. Tal hipótese
produtiva é coextensiva ao domínio do ambiente familiar do preso, uma vez que a
crítica à produção da delinqüência é também formulada nesses termos, como Foucault
indica ao enumerar as críticas que sempre se faz para denunciar o fracasso da prisão:
Enfim a prisão fabrica indiretamente delinqüentes, ao fazer cair na
miséria a família do detento: „A mesma ordem que manda para a prisão o
chefe de família reduz cada dia a mãe à penúria, os filhos ao abandono, a
família inteira à vagabundagem e à mendicância. Sob esse ponto de vista o
crime ameaça prolongar-se.‟ (FOUCAULT, 1996, p.223 citando
CHARLES LUCAS, De la réforme des prisons, 1838, p. 64.)
Foucault situa a prisão numa estratégia geral de controle social, através da gestão
diferencial dos ilegalismos que por sua vez se via a produção de uma delinqüência
domesticada, manipulável, operacionalizável, seja para viabilizar lucrativos mercados
ilícitos (como a prostituição no século XIX), seja para policiar e minar associativismos
populares (pela infiltração de informantes e agitadores), seja para eclipsar, pelo
escândalo que provocam, outros ilegalismos que são e devem ser tolerados. Assim tem-
se uma outra matriz analítica para se pensar a prisão e seus efeitos sobre indivíduos,
famílias e comunidades, que não se limita à denúncia da desestruturação que a prisão
impõe, mas que parte dessa desestruturação, que a reinsere num campo político
estratégico, que precisa ser mais bem entendido e problematizado. É nesse horizonte de
questões que se pretendeu pautar o presente trabalho. De todo modo, entre a
37
implantação da prisão nos séculos XVIII e XIX e sua atualidade muita coisa mudou, de
forma que algumas mediações se fazem necessárias.
1.4 - Mediações
As inversões e cuidados analíticos que possibilitaram a formulação do que aqui chamei
de hipótese produtiva devem ser retidas como grade geral de interpretação, como uma
perspectiva do olhar. Uma perspectiva que agora se volta para uma prisão bastante
transformada, uma prisão que desde o último terço do século XX vem aceleradamente
distanciando-se daquele “modelo” de prisão disciplinar.
Uma primeira demarcação de distância entre o que Foucault analisou e o que aqui se
pretende analisar é que atualmente não se entende que a prisão continuamente fracassa
em seus objetivos declarados. Novos objetivos se estabeleceram, de modo que se faz
possível afirmar o anteriormente impensável: a prisão funciona! Sobre essa significativa
guinada no pensar e no exercer o poder de punir, que Garland (1999, 2001, 2005) focou
boa parte de seu trabalho nos últimos anos. De acordo com esse autor, até a década de
1970, os sistemas punitivos ocidentais funcionavam sob uma configuração que ele
chama de penal-walfare (GARLAND, 2005, p.71). Pode-se conceber essa
configuração em relativa continuidade com a prisão disciplinar analisada por Foucault,
obviamente, acrescida de um conjunto de sofisticações. Tais aprimoramentos decorriam
também do jogo entre a constante crítica da ineficácia e a reafirmação de um programa
regenerador, na medida em que o objetivo declarado do complexo penal-welfare era
ainda reabilitar o delinqüente para o convívio social. A partir dos anos 1970, a
impossibilidade de se atingir esse objetivo deixa de impor sofisticações ao programa
punitivo; o próprio objetivo é reformado, passando a ser concebido como a
incapacitação, a anulação, a exclusão, a eliminação de indivíduos delinqüentes em nome
da segurança da sociedade. Nas palavras do autor:
Em claro contraste com o que era a visão convencional no período
anterior, o pressuposto dominante atualmente é que a ´prisão funciona`,
38
não mais como um mecanismo de reforma ou reabilitação, mas sim como
meio de incapacitação e castigo que satisfaz a demanda política popular de
retribuição e segurança pública. Os últimos anos testemunharam uma
destacada reviravolta na sorte da prisão. Uma instituição com uma longa
história de expectativas utópicas e tentativas periódicas de reinventar-se
(...) finalmente viu sua ambição reduzida drasticamente à incapacitação e
ao castigo retributivo. (...) No curso de poucas décadas deixou de ser uma
instituição correcional desacreditada e decadente, para se constituir em um
pilar maciço e aparentemente indispensável da ordem social
contemporânea.” (GARLAND, 2005, p.51 tradução e grifos meus)
O declínio do ideal de reabilitação é a marca atual da pena de prisão, e segundo o autor,
ele se insere num conjunto mais amplo de reconfigurações, tanto nas formas de se
conceber e se exercer a punição, quanto nas formas de se conceber o próprio Estado,
seus limites e atribuições. Nestes termos, a crise do papel social da prisão se relaciona
com a crise do Estado de Bem-Estar e da própria sociedade industrial. Impossível
recuperar aqui todo o percurso analítico de Garland, que vai desde o jogo de relações
entre grupos de poder e operadores do sistema penal-welfare nos Estados Unidos da
década de 1970, até as macro-transformações sociais, culturais, políticas e econômicas
que se dão no mundo ocidental no período pós-guerra. Trata-se de um processo por
demais complexo para ser deslindado no escopo desse trabalho. O que é possível
apresentar esquematicamente é um conjunto de alterações que, articuladas ao declínio
do ideal de reabilitação, reconfiguram o que o autor chama de campo do controle do
delito e justiça penal.
De acordo com Garland (2005), com o declínio do ideal de reabilitação, as sanções
punitivas readquirem o caráter expressivo, retributivo e vingativo que predominava nos
tempos dos suplícios. Se anteriormente as políticas penais eram pautadas por certa
confiança na razão e no progresso, agora são pautadas por uma sensação difusa de
medo, de urgência e de ameaça. A figura da vítima passa a ocupar uma posição central
no interior do campo; ela é reiteradamente evocada para justificar a necessidade de
punições mais duras, exemplares, expressivas; na sua exposição se apóia uma sensação
de insegurança generalizada, e no destaque dado à sua dor se apóia um desejo coletivo
de vingança. A figura simbolizada da vítima adere a toda a sociedade, todos os homens
39
“de bem” são vítimas potenciais, e é toda essa massa vulnerável que deve ser protegida
por uma ação pró-ativa e incessante das “forças de segurança”. A segurança emerge
como questão central na vida política, econômica e social
12
, e todos os esforços que se
fazem no sentido de promovê-la são, ao mesmo tempo, bem vistos e sempre
insuficientes. Enquanto a segurança se torna uma obsessão política, todo um conjunto
de práticas e saberes que a abordam de um modo mais indireto e processual o estudo
das causas profundas do crime, a intervenção diversificada e progressiva sobre um
criminoso passam a ser vistos como irracionalidades, indulgências, que não
desperdiçam recursos valiosos, como fomentam e promovem a ameaça.
Os agentes que mobilizam e colocam em jogo esses elementos para pensar e
desenvolver novas políticas de controle do delito e justiça penal não são, apenas, os
criminólogos, sociólogos, psicólogos e especialistas em geral, que atuavam no aparato
penal-welfarista. Os políticos dos mais diferentes matizes ideológicos, baseados num
grande consenso naquilo que julgam todos saberem e compartilharem sobre o delito e
a justiça , passam a ser cada vez mais determinantes na conformação de políticas e
programas penais. O discurso técnico e especializado é deslocado para segundo plano,
de modo que as políticas criminais e penais passam a ser formuladas num tipo de
discurso popular, populista, como respostas simples e reações diretas, proporcionais,
calcadas no real, no imediato, no evidente. São eles proclamadores fundamentais de
afirmações como: A prisão funciona! Ela incapacita o criminoso perigoso! Ela vinga a
vítima inocente! Ela protege a sociedade!
Uma vez deslocados, os saberes cnicos não ficam inertes. Eles são mobilizados para
dar sustentação às novas políticas, e nesse movimento são reformulados, assumindo
para si outros problemas e desafios. Enquanto eram orientados pelo ideal reabilitador,
os saberes especializados se voltavam para a compreensão de macro-processos sociais
de produção do delito, para as carências coletivas e privações relativas que afetam um
indivíduo e o conduzem ao crime.
13
A partir da década de 1970, emerge um novo tipo
de saber especializado que toma o infrator como um agente racional que aproveita
oportunidades delitivas que se apresentam no ambiente, de modo que as causas do
crime não são atribuídas a macro-processos sociais, mas a insuficiências nos
12
Para uma discussão sobre a crescente centralidade das questões de segurança, ver: FOUCAULT (2006)
e CASTEL (2003).
13
Para uma discussão sobre as relações entre privação e delinqüência, ver: SÁ (2000).
40
investimentos em controles situacionais, ambientais ou comportamentais. A produção
social da delinqüência e do delito deixam de ser objetos de problematização e
compreensão, tornam-se dados da realidade, processos quase naturais, frente aos quais
se deve atuar, na melhor das hipóteses, minimizando oportunidades, custos e danos; seja
intervindo no espaço aumentando controles situacionais indiretos, com câmeras de
vigilância, iluminação, muros, grades, etc. seja influenciando e conduzindo os
comportamentos (de risco) de vítimas potenciais.
O criminoso não é mais pensado como o sujeito carente, mas sim como um homem
comum, que autônoma e racionalmente opta pela vida do crime, e que o fazendo deve
assumir e se responsabilizar pelos riscos que seus investimentos implicam, entre eles o
de ser preso. Modulações compreensivas de sociologia e psicologia cedem lugar a uma
abordagem economicista do comportamento criminoso e das práticas punitivas Becker
(1968) foi um dos pioneiros em formular o delito e a prisão como variáveis econômicas,
oscilantes em função de investimentos positivos e negativos. Foucault (2008) também
abordou essa passagem cognitiva, quando a economia passa a ser a grade de
inteligibilidade dos fenômenos criminais e punitivos. Segundo ele, esse é um dos
marcos que estabelecem uma nova arte de governar as populações, um novo regime de
poder-saber heterogêneo ao arranjo disciplinar.
Desenvolve-se uma percepção generalizada de que os riscos do crime se proliferam no
ambiente, e toda uma infra-estrutura de prevenção do delito, de segurança pessoal e
comunitária se expande. A ação policial deixa de ser vista simplesmente como o
“combate ao crime”, passando a ser vista como um serviço de distribuição de segurança.
A auto-suficiência e exclusividade da ação policial contra o crime são colocadas em
questão, passando a ser incentivado todo um arranjo sinergético de diferentes atores
locais e comunitários, que por outros instrumentos, e em colaboração com a polícia,
passam a ser vistos como estratégicos para a “segurança comunitária”.
14
A sociedade
civil e a iniciativa privada são chamadas à tarefa de colaborar com o controle do delito,
de modo que as fronteiras institucionais do “Estado” se diluem, e seu monopólio sobre o
controle da violência é substituído por uma economia mista de produção da segurança.
14
Para uma discussão acerca dos recentes deslocamentos nas práticas policiais, ver: O´MALLEY, P;
HUTCHINSON, S. (2007). Sobre o crescente envolvimento da comunidade local nas políticas de
segurança, ver: ROSE (1996).
41
Nesse novo “mercado aberto” da segurança, forças policiais e empresas de segurança
privada, instituições estatais e organizações da sociedade civil compartilham uma
mesma racionalidade empresarial de prestação de serviços, focalizando recursos,
estabelecendo metas, e apoiando-se em indicadores de desempenho. Nesse sentido, a
justiça penal, que anteriormente funcionava sob a lógica da regulação moral, passa a ser
administrada segundo os princípios da boa gestão econômica.
Para finalizar esse sumário de grandes alterações, Garland ressalta a permanente
sensação de crise que prevalece no interior do campo do controle do delito e justiça
penal. Todo momento é de alta comoção popular, crimes devastadores espreitam
ininterruptamente, nunca é tempo de relaxar, sempre reformas urgentes são necessárias,
sempre há algo a mais para se fazer, e nunca as ferramentas mais adequadas são
conhecidas e estão disponíveis, de modo que sempre é preciso mobilizar todos os
recursos que se tenha à mão.
A resultante desse amplo conjunto de vetores é um cada vez mais intenso uso do
encarceramento, acompanhado de uma ampliação da duração das penas; fatores que
elevam a população penitenciária a níveis até então desconhecidos. O encarceramento
em massa, a ampliação dos parques penitenciários, o incremento nas taxas de
encarceramento são alguns dos efeitos imediatos dessa nova convicção de que a prisão
funciona.
Segundo Garland (2001), essa nova cultura punitiva cultura do controle impõe toda
uma agenda para a investigação sociológica, sendo a questão dos impactos desse
encarceramento massivo em famílias e comunidades uma das pautas mais prementes:
As Mauer and Huling (1995) and others have shown, 1 in 3 black men
aged 20 to 29 years of age is currently in penal custody or under penal
supervision. If current trends continue, 30 percent of all black males born
today will spend some of their lives in prison. (The comparative figure for
white males is 4 percent and for Hispanics 14 percent) This means that
imprisonment has become one of the social institutions that structure this
group´s experience. It becomes part of the socialization process. Every
family, every household, every individual in these neighborhoods has
direct personal knowledge of the prison - through a spouse, a child, a
42
parent, a neighbor, a friend. Imprisonment ceases to be the fate of a few
criminal individuals and becomes a shaping institution for whole sectors of
the population.
We do not currently know what ´mass imprisonment` will mean for the
society in which it develops, or for the groups who are most affected. As
Frank Zimring and Gordon Hawkins (1991) have pointed out, we do not
have a jurisprudence of imprisonment. For all of our philosophizing about
the purpose of imprisonment, we have scarcely begun to address the
question of its extent. We have libraries of criminological research about
the impact of imprisonment upon the individual offender, but scarcely
anything on its social impact upon communities and neighborhoods.
(GARLAND, 2001, p.2 grifos meus)
Portanto, questões de como a prisão se converte em instituição socializadora para
amplos setores da população, de como ela socializa agentes para além de seus limites
institucionais, pelo salto de escala, recobram importância no mundo contemporâneo. O
quê o encarceramento em massa vem produzindo nas sociedades em que se desenvolve?
Eis uma pergunta que está na ordem do dia.
Agora e retomando a hipótese produtiva foucaultiana se para o século XIX, o
segredo da produtividade da prisão estava na eficácia inversa que aparecia como
acusação de fracasso, na própria produção da delinqüência; no final do século XX e
começo do XXI, inversamente, talvez o segredo do que a prisão massificada vem
produzindo esteja no fracasso escondido sob a proclamação reiterada de que a prisão
funciona. De um lado, ambientes familiares e comunitários que se estruturam em função
de uma prisão proclamada incapacitante e segregadora; de outro, a produção de uma
delinqüência organizada que muito pouco se assemelha àquela delinqüência
domesticada, penetrável, manipulável do século XIX, são elementos que podem ser
considerados indícios de importantes deslocamentos na produtividade prisional.
Explorar deslocamentos como esses é a tarefa que se assumiu nesse trabalho.
43
2 Massificação do encarceramento
Nesse segundo capítulo pretende-se realizar uma primeira aproximação aos dois
contextos sociais que foram contemplados na pesquisa, explorando diferentes aspectos
do desenvolvimento recente do encarceramento na Catalunha e em São Paulo. Porém,
antes de passar aos dados, é importante demarcar as linhas gerais que m
caracterizando o debate sobre o encarceramento e seu processo de massificação no
mundo ocidental contemporâneo, e que pautaram a busca de informações secundárias
em cada um dos contextos estudados.
2.1 - Pauta
Um mapa inicial das principais questões e autores que incidem no debate acerca das
mudanças recentes no dispositivo prisional que resultaram no aumento pronunciado da
população carcerária pode ser encontrado no livro Mass imprisonment: social causes
and consenquences, organizado por Garland (2001). No texto introdutório à coletânea,
como ponto de partida de todo o debate, Garland destaca o aumento pronunciado da
taxa de encarceramento nos Estados Unidos durante o último quarto do século XX,
quando saltou de 110/100 mil habitantes, em 1973, para 680/100 mil, no final da década
de 1990. Esse aumento acelerado e sem precedentes levou o governo dos Estados
Unidos a contabilizar e gerir uma população prisional de mais de dois milhões de
pessoas majoritariamente negras e latinas no começo do século XXI. Segundo
Garland, esse é um fenômeno extraordinário, dificilmente comparável ao
encarceramento de qualquer outro país ocidental contemporâneo. Tamanha
excepcionalidade exigiria um nome próprio: mass imprisonment(GARLAND, 2001,
p.1).
Garland sugere que o encarceramento em massa estaria para os Estados Unidos
contemporâneo como o Arquipélago Gulag, descrito por Alexandr Solzhenitsyn
44
(1974), está para a União Soviética; e como a “Grande Internação”, descrita por
Foucault em História da Loucura na Idade Clássica(1978), estaria para a Europa do
século XVII. Singularidades históricas, portanto.
A excepcionalidade e a singularidade dos níveis de encarceramento nos Estados Unidos
da passagem do século pauta toda a reflexão sobre o aumento do encarceramento. Tonry
(1999) em artigo intitulado Why are U.S. incarceration rates so high? estabelece
alguns parâmetros para demarcar a excepcionalidade da punição contemporânea nos
Estados Unidos: taxa de encarceramento de seis a doze vezes maior que a de outros
países ocidentais; progressiva redução dos direitos dos presos; manutenção e aumento
da utilização das penas de morte, perpétua e outras sem possibilidade de parole
15
;
adoção de listas de sentenças pré-estabelecidas
16
; aumento da duração das penas;
políticas de “tolerância zero”
17
e de three strikes and you´re out
18
. Segundo o autor, a
confluência desses elementos conforma, nos Estados Unidos, um paradigma punitivo
único.
Kuhn (2001), comparando tendências nas taxas de encarceramento de diferentes países,
chega a conclusão parecida. Em Incarceration rates across the world”, afirma: the
United States is unique in its steep and continuous increase in incarceration rates since
1973. (KUHN, 2001, p.114 grifo meu) Também para Kuhn, a singularidade do
encarceramento em massa nos Estados Unidos se relaciona com as singulares políticas
que vêm sendo adotadas no campo da justiça criminal no decorrer dos últimos anos.
Mauer (2001), em “The causes and consequences of prison growth in the United States
aprofunda a análise dessas políticas e as contextualiza num movimento político mais
geral, que se orienta por um discurso de endurecimento contra o crime. Segundo esse
autor, três fatores convergem na conformação das políticas criminais de endurecimento
penal que promovem o encarceramento em massa nos Estados Unidos. Em primeiro
lugar, a politização do crime. Mauer afirma que antes da década de 1960, os problemas
relacionados à criminalidade não figuravam na agenda política nacional; mas, em 1964,
pela primeira vez, o candidato republicano à presidência, Barry Goldwater, destacou na
15
Cumprimento de parte da pena em liberdade.
16
Estabelecimento de penas determinadas para determinados delitos, sem deixar margem à interpretação
e avaliação do juiz.
17
Endurecimento das penas para delitos menos graves.
18
Endurecimento das penas para reincidentes.
45
sua plataforma política o problema do “crime nas ruas”. Em 1968, Richard Nixon
seguiu a mesma linha, clamando por “lei e ordem” contra o crime. A partir de então, o
enfrentamento do crime se impôs na agenda política nacional, tanto de republicanos
quanto de democratas. Em segundo lugar, Mauer destaca a cultura individualista norte-
americana, que cria um ambiente receptivo para políticas de endurecimento penal, na
medida em que estas visam os comportamentos individuais desviantes, mais do que os
fatores sociais que impulsionam a criminalidade. Em terceiro lugar, o autor destaca um
crescente clima político conservador, particularmente evidente a partir da eleição
presidencial do republicano Ronald Reagan, em 1980, que propunha a extensão das
políticas de endurecimento contra o crime, contra a imigração, contra beneficiários de
programas de bem-estar social, e contra outros grupos marginalizados. Nestes termos, a
particularidade das taxas de encarceramento nos Estados Unidos se relacionaria a
processos políticos e culturais também particulares.
Por sua vez, para Downes (2001) em The macho penal economy: mass incarceration
in the United States a European perspective a excepcionalidade do encarceramento
em massa nos Estados Unidos deve ser colocada em perspectiva com a
excepcionalidade do próprio sistema penal nesse país como um todo. O autor lembra
que tão excepcional quanto o encarceramento em massa contemporâneo é a constituição
da democracia liberal norte-americana de forma articulada, desde o princípio, com a
conformação de um robusto sistema penitenciário. Mais adiante, Downes relativiza essa
excepcionalidade do encarceramento em massa nos Estados Unidos, afirmando que tal
singularidade se sustenta se tomamos como plano de referência o tempo presente.
Segundo o autor, é necessário avaliar se a “receita” do encarceramento em massa
estadunidense já está presente, ainda que sob uma forma embrionária, em outros países.
Expondo e analisando políticas criminais no Reino Unido, Downes conclui que a
excepcionalidade do encarceramento em massa nos Estados Unidos não se sustenta por
muito tempo.
Wacquant (2007) vai na mesma direção, por outros meios. Em “´Enemigos
convenientes`: extranjeros e inmigrantes en las cárceles de Europa”, esse autor sustenta
que existem analogias substantivas entre o encarceramento contemporâneo nos Estados
Unidos e nos países da Europa Ocidental. Ao definir as causas fundamentais do
encarceramento em massa, parece-lhe difícil sustentar a excepcionalidade do caso
46
estadunidense. Segundo Wacquant, o encarceramento em massa é produto: 1 de uma
dualização do mercado de trabalho, com a generalização do trabalho precário, do
desemprego e do subemprego; 2 do desmantelamento dos programas de assistência
pública característicos do Estado de Bem-Estar Social; e 3 da crise do gueto como
instrumento de controle e confinamento de grupos populacionais estigmatizados. Para
Wacquant, tais processos estão em andamento tanto nos Estados Unidos quanto nos
países da Europa Ocidental, de modo que o papel de “cliente” preferencial do sistema
punitivo, desempenhado pelos negros nos Estados Unidos, é desempenhado pelos
estrangeiros e “quase-estrangeiros”
19
na Europa.
Como é possível observar, o encarceramento em massa pode ser abordado ou como um
processo singular e excepcional que tem lugar atualmente nos Estados Unidos, ou como
uma tendência geral identificável em diferentes países ocidentais. De todo modo, não
me parece que ambas as perspectivas sejam mutuamente excludentes. O próprio
Garland (1999), que afirma a singularidade histórica do encarceramento em massa nos
Estados Unidos, identifica em “As contradições da ´sociedade punitiva`: o caso
britânico uma tendência ao encarceramento em massa no Reino Unido:
Em sociedades como as do Reino Unido e dos Estados Unidos, onde
divisões sociais e raciais profundas, onde as taxas de criminalidade e os
níveis de insegurança são elevados, onde as soluções sociais foram
politicamente desacreditadas, onde poucas perspectivas de reintegração
dos antigos delinqüentes pelo trabalho ou pela família e onde, para
finalizar esse quadro deprimente, um setor comercial em expansão encoraja
e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está
provocando um encarceramento em massa em uma escala inédita em
países democráticos, e raramente encontrada na maior parte dos países
totalitários.” (GARLAND, 1999, p.71 – grifo meu).
Christie (1993) em Crime control as industry: towards Gulags, western style
articula explicitamente a análise do encarceramento em massa como caso e como
tendência. Segundo o autor, os Estados Unidos podem ser considerados o trend-setter
dos sistemas punitivos contemporâneos, isto é, ao mesmo tempo, caso singular e
19
Imigrantes de segunda geração, percebidos como estrangeiros sem necessariamente -lo.
47
modelo que indica a tendência. Christie identifica a tendência de aumento substancial da
taxa de encarceramento mesmo em países europeus que encarceram relativamente
pouco, como Holanda e Noruega. Já para os Estados Unidos, o autor desagrega os dados
do encarceramento por estado, demonstrando a variedade de situações punitivas que
compõem o caso estadunidense, de modo que permite observar a existência de estados
dentro dos Estados Unidos em que o encarceramento em massa era uma realidade no
começo da década de 1990, e outros em que era ainda uma tendência.
É possível diferenciar, portanto, abordagens do encarceramento em massa nos Estados
Unidos, que ressaltam a sua excepcionalidade e atentam para os processos particulares
que o conformam; de abordagens do encarceramento em massa como tendência geral
identificável em diferentes países ocidentais. Para diferenciar as abordagens e o campo
de questões que levantam, parece-me adequado especificar o caso estadunidense como
de encarceramento em massa, e a tendência identificável em diferentes países como
processo de massificação do encarceramento.
Nas análises do processo de massificação do encarceramento, procedimentos
comparativos são recorrentemente mobilizados. Uma constante nessas análises é que
elas se restringem à comparação de taxas de encarceramento e políticas criminais
principalmente aos efeitos de políticas de “guerra contra o crime” e “guerra contra as
drogas” – entre diversos países desenvolvidos e o caso estadunidense. Wacquant (2007)
fala da Inglaterra, Espanha, França e Holanda. Garland (1999), do Reino Unido;
Christie (1993), da Holanda, Noruega, Finlândia. Os chamados países “em vias de
desenvolvimento” por mais que apresentem taxas de encarceramento crescentes,
divisões sociais e raciais profundas, elevados níveis de criminalidade e insegurança, e
um robusto aparato privado de controle do delito não são levados em conta no debate
científico internacional, não obstante, no Brasil e em outros países subdesenvolvidos
20
essa mesma tendência seja identificável.
De todo modo, esse breve mapeamento do debate acrescido às mediações anteriormente
apresentadas as do reconfigurado campo do controle do delito e justiça penal
discutidas por Garland são suficientes para melhor qualificar uma aproximação do
encarceramento contemporâneo no Brasil e na Espanha, atentando para o aumento das
20
Para o caso mexicano, ver: BERGMAN; AZAOLA (2007); para o caso argentino, ver: PEGORARO
(2000); e para o caso chileno, ver PINCHEIRA (2008).
48
taxas de encarceramento, sua distribuição diferencial no território, a concentração de
sua incidência em determinados grupos populacionais, as políticas criminais que o
promovem e a cultura política que o sustenta.
2.2 - São Paulo, Brasil
Segundo Adorno e Salla (2007), em 1969, no Brasil havia 28.538 presos, representando
uma taxa de encarceramento de 30/100 mil habitantes. Em 1988, a população carcerária
era de 88.041 presos, e a taxa de encarceramento saltava para 65,2/100 mil. Em 19
anos a taxa de encarceramento brasileira aumentou 117,3%. Em 1997, a população
carcerária era de 170.207 presos, e a taxa de encarceramento era de 108,6/100 mil. Em
nove anos, um crescimento de 66,5% na taxa. Em 2006, a população carcerária era de
401.236 presos, e a taxa de encarceramento era de 214,8/100 mil. Mais nove anos e a
taxa de encarceramento aumentou mais 97,7%. Segundo informações do Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN, 2010), em junho de 2009, a população carcerária
brasileira já era de 469.546 presos e a taxa de encarceramento alcançava a cifra de
247,7/100 mil habitantes. Portanto, é possível afirmar que, entre 1969 e junho de 2009,
a população carcerária brasileira cresceu 1.545,3%, e a taxa de encarceramento
aumentou 725,6%.
Se se segue o exemplo de Christie e se decompõe esses dados para as diferentes
unidades da federação, é possível perceber que o incremento nas taxas de
encarceramento se distribui diferencialmente pelo território nacional. Salla (2007)
apresenta mais detalhadamente o caso paulista. Segundo esse autor, em 1976, o estado
de São Paulo contabilizava 17.192 presos, e uma taxa de encarceramento de 79,3/100
mil habitantes. Em 1986, a população carcerária paulista era de 24.091 presos, e a taxa
de encarceramento era de 85,1/100 mil. Em 1996, a população carcerária saltava para
66.278 presos, e a taxa de encarceramento, para 194,5/100 mil.
21
De 1976 a 1986, a taxa
de encarceramento subiu apenas 7,3%; mas, entre 1986 e 1996, essa taxa cresceu em
21
Taxa de encarceramento para o ano de 1996 calculada com base nos dados populacionais estaduais
encontrados em IBGE (2010).
49
128,5%. Segundo o DEPEN, em junho de 2009, a população carcerária paulista é de
158.704, e a taxa de encarceramento é de 386,9/100 mil. Entre 1996 e junho de 2009, a
taxa de encarceramento de São Paulo aumentou mais 98,9%. Num período de quase 33
anos, entre 1976 e junho de 2009, a população carcerária paulista aumentou 823,1%; e a
taxa de encarceramento cresceu em 387,8%.
Ainda segundo o DEPEN, em junho de 2009, apenas três estados apresentam taxas de
encarceramento superiores a de São Paulo: Rondônia, com 433,9/100 mil; Acre, com
463,5/100 mil; e Mato Grosso do Sul, com 527,5/100 mil. Somando a população
carcerária desses três estados chega-se ao número de 21.966 presos, o que representa
apenas 4,6% da população carcerária nacional. No mesmo período, excetuando esses
três estados e São Paulo, sete estados apresentam taxas de encarceramento superiores à
média nacional: Roraima, com 386,6/100 mil; Mato Grosso, com 374,9/100 mil;
Paraná, com 343,4/100 mil; Distrito Federal, com 319,7/100 mil; Amapá, com
314,3/100 mil; Espírito Santo, com 300,5/100 mil; Rio Grande do Sul, com 263,6/100
mil. Somando a população carcerária desses sete estados chega-se ao número de 98.145
presos, o que equivale a 20,9% de toda a população carcerária brasileira. Só o estado de
São Paulo, por sua vez, concentra 33,8% da população carcerária nacional. Ainda que o
aumento da taxa nacional de encarceramento seja resultante do aumento acumulado da
taxa mesmo naqueles estados que, em junho de 2009, apresentam taxas inferiores a
média nacional; esses elementos de distribuição da população carcerária pelos estados
com as maiores taxas de encarceramento permitem identificar o estado de São Paulo
como a principal “locomotiva” do processo de massificação do encarceramento no
Brasil.
Outro elemento que corrobora essa tese é a dimensão do parque penitenciário estadual.
Comparando São Paulo com o segundo estado brasileiro em população carcerária, a
preeminência do sistema penitenciário paulista fica evidente. O estado de Minas Gerais
contabiliza 46.926 presos, e apresenta uma taxa de encarceramento de 236,4/100 mil,
em junho de 2009. Segundo o DEPEN, Minas Gerais dispõe de um total de 84
estabelecimentos penais, sendo 19 Penitenciárias, 60 Cadeias Públicas, 3 Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico e 2 Casas de Albergados. Segundo a Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP, 2010) de São Paulo, existem no estado 147 unidades
prisionais, sendo 1 Unidade de Segurança Máxima, 74 Penitenciárias, 36 Centros de
50
Detenção Provisória, 22 Centros de Ressocialização, 7 Centros de Progressão
Penitenciária, 2 Institutos Penais Agrícolas, e 6 Hospitais.
22
Sem dúvida o sistema
carcerário paulista é o mais robusto, diversificado e complexo do Brasil.
Tendo explorado minimamente o aumento da população carcerária e da taxa de
encarceramento no Brasil e em São Paulo, resta explorar a segunda característica que,
segundo Garland (2001), define o encarceramento em massa: a concentração social dos
seus efeitos em grupos específicos da população. Se, como afirma Wacquant, facilmente
se identifica os negros e latinos como alvos preferenciais do sistema penitenciário
estadunidense, e os estrangeiros e “quase-estrangeiros” como alvos preferenciais dos
sistemas punitivos europeus; a particular estrutura de relações sociais e raciais no Brasil
exige uma maior cautela na apreciação desse fator.
23
Para explorar alguns elementos da concentração dos efeitos do encarceramento em São
Paulo, é possível recorrer ao censo penitenciário, realizado em 2002, pela Fundação Dr.
Manoel Pedro Pimentel (FUNAP, 2002), e a algumas informações fornecidas pelo
DEPEN. Segundo a FUNAP, no sistema penitenciário paulista, 70% dos presos são do
estado de São Paulo, sendo, desses, 36% da capital, 14% da Região Metropolitana de
São Paulo (RMSP) e 50% de outros municípios do interior e do litoral. Ainda que
existam estrangeiros nas prisões paulistas, o mero é reduzido e não totaliza 1% da
população prisional. Portanto, quanto à origem, é possível afirmar que 35% da
população prisional do estado residia em algum dos 39 municípios que compõem a
RMSP, e outros 35% eram de algum dos outros 606 municípios do estado.
Ainda segundo a FUNAP, 97% dos presos do estado de São Paulo são homens, 74%
não chegaram a completar o Ensino Fundamental, e menos de 1% completaram o
Ensino Superior. A média de idade da população presa é de 30 anos, sendo que 32% dos
presos têm entre 18 e 24 anos; e 44%, entre 24 e 34 anos. Quanto à cor de pele, o
22
A contabilidade da SAP não contempla as cadeias públicas que ainda são administradas pela Secretaria
de Segurança Pública (SSP), não obstante, os dados apresentados perecem suficientes para sustentar o
argumento.
23
Para uma discussão sobre as diferenças entre as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, ver:
NOGUEIRA (2007).
51
DEPEN informa que, em junho de 2008, 47,1% dos presos eram brancos, 16,5%,
negros, e 35,9%, pardos
24
, restando 0,4% na categoria “outros”.
25
Lembrando que uma porção significativa da população prisional do estado é oriunda da
capital, e a partir desse brevíssimo perfil sócio-econômico, é possível especular sobre
a origem social da grande maioria dos presos do estado. Se se compara esses dados aos
de alguns distritos da cidade de São Paulo observa-se que o perfil dos presos se
aproxima ao dos moradores de bairros periféricos: jovens, de baixa escolaridade, e mais
negros/pardos que brancos. Por exemplo, no distrito de Guaianases, no extremo da zona
leste de São Paulo, 47% da população completou o Ensino Fundamental, e apenas
5% chegaram a completar o Ensino Superior; enquanto num distrito central como o
Jardim Paulista, apenas 11% completaram o Ensino Fundamental, e 62%
completaram o Ensino Superior.
26
A média de idade em Guaianases é de 35,8 anos;
enquanto no Jardim Paulista é de 43,9. Em Guaianases, 38% da população é branca,
14%, negra, e 42%, parda. No Jardim Paulista, 80% dos habitantes são brancos, 4%
negros, e 9% pardos.
Considerando que o perfil sócio-econômico de Guaianases não pode ser muito distinto
do perfil presente em regiões periféricas dos outros 38 municípios da RMSP; e nem das
regiões periféricas dos outros 606 municípios do estado, a partir do perfil sócio-
econômico da população prisional é possível levantar a hipótese de que os clientes
preferenciais do sistema punitivo paulista são em sua maioria residentes de áreas
urbanas periféricas.
Portanto, a constatação de aumento pronunciado e sem precedentes da população
prisional e da taxa de encarceramento, articulada a esses fortes indícios de concentração
dos efeitos do encarceramento em grupos específicos da população os homens,
jovens, mais negros/pardos que brancos, de baixa escolaridade e moradores das
periferias urbanas permite a identificação de um processo de massificação do
encarceramento no Brasil, e particularmente, em São Paulo.
24
A manutenção dessa categoria obtusa de “pardo” nas pesquisas demográficas brasileiras é o principal
elemento que impossibilita que se afirme categoricamente que no Brasil, como nos Estados Unidos, os
negros são os principais alvos do sistema punitivo.
25
O censo penitenciário da FUNAP apresenta o duvidoso índice de 22% na categoria “outros”.
26
Os dados sócio-econômicos por distrito estão em DATAFOLHA (2009).
52
Para uma análise da particular evolução nas políticas criminais e penitenciárias, que
ditam o ritmo de crescimento e as linhas de desenvolvimento do encarceramento no
Brasil, é possível recorrer a alguns trabalhos que, com diferentes ênfases, discutem
essas políticas e problematizam suas circunstâncias e conseqüências.
Segundo Teixeira (2006), no sistema penitenciário brasileiro, o ideal de reabilitação foi
incorporado tardiamente e abandonado precocemente; ou seja, não chegou,
efetivamente, a orientar as práticas de diferentes agentes e instituições no interior do
campo. Na esfera nacional, na Lei de Execuções Penais (LEP) de 1984, o ideal de
reabilitação se sobrepôs às funções retributivas da pena de privação de liberdade.
Porém, segundo a autora, essas disposições legais permaneceram letra morta”,
inaplicável devido à “inércia” dos poderes executivo e judiciário, que não criaram os
dispositivos previstos para a implementação de programas de reabilitação nos presídios.
Em São Paulo, a autora demonstra que o ideal de reabilitação chegou mais perto de se
transformar em prática. Entre 1983 e 1986, o então Secretário de Justiça do Estado de
São Paulo, José Carlos Dias, promoveu o que ficou conhecido como “política de
humanização dos presídios”.
27
Além de prever a ampliação de vagas para diminuir a
superlotação, a criação de visitas íntimas para a população carcerária masculina, a
implementação de um programa de assistência jurídica; o secretário fomentava o
estabelecimento de canais democráticos de representação da população carcerária junto
à direção do presídio e outros órgãos governamentais. Os presos deveriam escolher seus
representantes por voto direto e secreto, e debater coletivamente suas reivindicações,
denúncias e propostas.
No contexto de redemocratização do país, essa ordem de propostas conferia um sentido
muito concreto para o ideal de reabilitação dos presos. Porém, a resistência institucional
dos estratos médios e inferiores do aparato estatal de justiça penal foi muito forte. As
pressões sobre Franco Montoro o primeiro governador democraticamente eleito em
São Paulo, em vinte anos fizeram-no destituir José Carlos Dias do cargo. A política de
humanização dos presídios fracassava antes mesmo de ser efetivamente implementada.
Portanto, no Brasil e em São Paulo, o abandono do ideal de reabilitação não é suficiente
para explicar o aumento do encarceramento.
27
Para uma discussão mais aprofundada acerca da política de humanização dos presídios, ver: SALLA
(2007), CALDEIRA (1991, 2003) e GÓES (2004).
53
Assim como o ideal de reabilitação que nunca orientou efetivamente as práticas
punitivas no Brasil a ênfase no caráter retributivo da pena não representa uma
alteração recente, ou um retorno atávico, mas uma constante, que se evidencia nas
condições sempre precárias, nas práticas de tortura, maus-tratos e violência institucional
que caracterizam o cotidiano do ambiente prisional, e que, desde a década de 1980, são
amplamente registrados e denunciados.
28
Também o caráter meramente incapacitante,
excludente, e segregacional da prisão já era denunciado naquela década. Fischer e
Adorno (1987) em Políticas penitenciárias, um fracasso? afirmavam que, no
Brasil, o dilema entre recuperar e punir dissolve-se, em verdade, na constatação de
que o sistema [penitenciário] constitui aparelho exemplarmente punitivo e funciona
exclusivamente como depósito de corpos e mentes. (FISCHER e ADORNO, 1987,
p.78 grifo meu).
Não obstante essa rigidez punitiva que é praticamente constitutiva do sistema carcerário
brasileiro, alterações legislativas também foram recentemente realizadas. Teixeira
discute as circunstâncias da principal reforma legislativa em âmbito penal: a aprovação
da Lei de Crimes Hediondos em 1989, que estendia a pena e revogava direitos previstos
na LEP para uma ampla gama de delitos. A aprovação da lei em caráter de urgência,
sem o devido debate parlamentar, em contexto eleitoral, sob forte pressão midiática e
apresentada como uma reação contundente e imediata a casos de seqüestro que tiveram
ampla repercussão, colocam-na em ressonância com as reformas nas políticas criminais
que vinham promovendo o endurecimento penal em outros países ocidentais. A
centralidade da figura da vítima, recorrentemente evocada para demandar e justificar
medidas de endurecimento penal, também fica evidente em casos como o da atriz
Daniella Perez cujo assassinato, em 1992, alavancou a inclusão do homicídio
qualificado na Lei de Crimes Hediondos
29
e em casos mais recentes, como o do casal
Liana Friedenbach e Felipe Caffé, e do menino João Hélio cujos homicídios
28
Os relatórios de atividades da Comissão Teotônio Vilela (CTV) são uma importante fonte desses
registros e denúncias, e estão disponíveis na internet via:
http://www.ctvdh.org/portal/atuacao/relatorios/relatoriosdevisitas/ (Consulta feita em maio de 2010).
29
cf. TEIXEIRA (2006) pp.95-100.
54
envolviam indivíduos menores de idade e fomentaram todo um movimento social e
parlamentar em prol do endurecimento penal para menores infratores.
30
Para uma discussão sobre a cultura política que conforma as condições de possibilidade
dessas práticas legislativo-judiciárias é possível recorrer aos trabalhos desenvolvidos no
Núcleo de Estudos da Violência (NEV), na década de 1990. No relatório de pesquisa
intitulado Continuidade autoritária e construção da democracia”, encontra-se uma
síntese dessa longa reflexão. Segundo Pinheiro (1999, pp.40-73), Cardia (in
PINHEIRO, 1999, pp.11-39) e Adorno (1998), no Brasil contemporâneo, o desafio
teórico e analítico não é compreender a guinada punitiva e autoritária na cultura política
de uma democracia consolidada, como nos Estados Unidos; mas, pelo contrário,
analisar a continuidade das práticas autoritárias e discricionárias, próprias do longo
período ditatorial, num contexto de abertura política e institucionalização democrática.
Segundo Pinheiro (2001) em Transição política e não-estado de direito na
República essa continuidade autoritária pode ser entendida nos termos de um
autoritarismo socialmente implantado, que rege historicamente as relações entre as
diferentes classes sociais no Brasil.
Porém, se por um lado, o autoritarismo socialmente implantado ajuda a compreender as
condições de possibilidade do endurecimento penal e do aumento do encarceramento no
Brasil, em tempos de consolidação democrática; por outro lado, sua constatação ainda é
insuficiente. Se a cultura política brasileira sempre foi autoritária, resta a indagação
sobre o que impulsiona o endurecimento penal e o aumento exponencial da taxa de
encarceramento justamente no final do século XX.
Como é possível perceber, não se compreende suficientemente o endurecimento penal e
o processo de massificação do encarceramento no Brasil atendo-se às formulações
teórico-analíticas elaboradas para outros contextos, de países desenvolvidos como
considerando o declínio do ideal de reabilitação ou a erosão de um Estado de Bem-
Estar, que aqui nunca prevaleceram. Por outro lado, tampouco será suficiente uma
análise que se detenha no contexto local sem considerar deslocamentos transversais que
se dão no campo do controle do delito, no mundo ocidental como um todo como a
30
Um exemplo de discurso público em prol do endurecimento penal que se baseia no “caso João Helio” é
MEZAN (2010). Para uma análise sociológica da mobilização do “caso Liana e Filipe” para a realização
de uma outra modulação de endurecimento penal, ver: MATSUDA (2009).
55
emergência de políticas criminais-penitenciárias de revogação de direitos e ampliação
das penas, que, embora conformadas segundo as idiossincrasias de uma cultura política
particular, entram em ressonância, são aplicadas e replicadas em diversos contextos,
seja em países desenvolvidos, seja naqueles em “vias de desenvolvimento”. Tais
considerações corroboram a perspectiva analítica que aqui se pretendeu adotar,
buscando articular a reflexão sobre esses processos desde postos de observação
suficientemente distantes.
2.3 - Catalunha, Espanha
Apesar de ser um país bastante desenvolvido, a Espanha figura na periferia do debate
internacional sobre as tendências punitivas do mundo contemporâneo. Dos autores que
pautam esse debate e que foram anteriormente citados, somente Wacquant e Christie
fazem ligeiras referências a esse país ibérico. Wacquant afirma que, entre 1983 e 1995,
a população carcerária na Espanha saltou de cerca de 14.000 presos para mais de 40.000
(WACQUANT, 2007, p.193). Christie ressalta que, em 1990, a Espanha era o sexto país
europeu com a maior taxa de encarceramento (86/100 mil), atrás do Reino Unido,
Luxemburgo, Alemanha, Turquia e Portugal (CHRISTIE, 2000, p.37). Ao chegar à
península, cabia-me atualizar essas informações, precisando a escala e o ritmo do
incremento do encarceramento no país e na região específica onde desenvolveria
trabalho de campo: a comunidade autônoma da Catalunha, que é a única do Estado
espanhol a administrar o seu próprio sistema penitenciário.
Segundo dados do Ministerio del Interior (2010a), em dezembro de 2007, a população
reclusa na Espanha era de 67.100 presos, dos quais 9.375 estavam na Catalunha. No
fim de 2009, essas cifras são de 76.079 para a Espanha e de 10.531 para a Catalunha.
Portanto, entre 1983 e 2009, a população carcerária na Espanha cresceu em 443,4%.
Segundo dados do Departament de Justícia (2010a) do governo da Catalunha, a taxa de
encarceramento do estado espanhol passou de 115,7/100 mil habitantes, em 1999, para
166,9/100 mil, em 2009; no mesmo período, a taxa de encarceramento na Catalunha
subiu de 95,8 para 140,8/100 mil habitantes. Ainda segundo o governo catalão, esses
56
índices fazem da Espanha, em 2009, o país com a mais alta taxa de encarceramento da
União Européia, e da Catalunha, a terceira maior taxa de encarceramento do bloco,
ficando atrás somente do conjunto do estado espanhol
31
e do Reino Unido. Esses
indícios fazem dos casos espanhol e catalão dois dos mais proeminentes processos de
massificação do encarceramento da Europa contemporânea.
Quanto à concentração social dos efeitos do encarceramento sobre determinados grupos
da população a segunda característica fundamental do processo de massificação do
encarceramento, segundo Garland é possível reafirmar a hipótese sustentada por
Wacquant de que estrangeiros e quase-estrangeiros constituem a clientela preferencial
dos sistemas punitivos dessas localidades. Segundo dados do Instituto Nacional de
Estadística (INE, 2010a), em 1996, 17,3% da população prisional da Espanha era
nascida em outro país; em 2007, esse percentual sobe para 34,2%. De acordo com o
governo da Catalunha, em 1999, 19,8% da população prisional da comunidade
autônoma era de estrangeiros; e em 2009 essa cifra alcança o significativo patamar de
43,3% (DJ, 2010a). O censo populacional do INE (2010b) mostra que, em 1998, apenas
1,6% da população da Espanha era estrangeira; em 2009 esse número sobe para
12,1%; para a Catalunha, os dados são de 1,9% de estrangeiros em 1998, e 15,9% em
2009. A sobre-representação da população estrangeira no sistema penitenciário
confirma a tese de concentração dos efeitos do aumento do encarceramento sobre esse
grupo populacional. O quadro ficaria ainda mais agravante se fosse possível isolar no
interior da população carcerária classificada como espanhola aqueles que são percebidos
como estrangeiros, os quase-estrangeiros, filhos e filhas de imigrantes.
Como foi indicado, o sistema penitenciário espanhol é gerido pelo Ministerio del
Interior nacional, e o catalão pelo Departament de Justícia da comunidade autônoma,
tendo estruturas operacionais e administrativas distintas, ainda que funcionando sob
uma mesma armadura jurídica. Segundo o Ministerio del Interior (2010b), atualmente
existem 104 estabelecimentos penitenciários sob sua administração; sendo 67 Centros
Penitenciários, 33 Centros de Inserção Social, 2 Unidades para Mães e 2 Hospitais
Psiquiátricos Penitenciários. Segundo o Departament de Justícia (2010b), são 15 os
estabelecimentos penitenciários da Catalunha; 9 Centros Penitenciários, 3 Centros
31
A Catalunha é a segunda região da Espanha em encarceramento, ficando atrás somente da Andaluzia.
57
Penitenciários Abertos, 1 Centro Penitenciário Feminino, 1 Centro Penitenciário de
Jovens e 1 Hospital Penitenciário.
Em linhas gerais, o processo de endurecimento penal na Espanha vem sendo
problematizado segundo o roteiro analítico formulado por Wacquant (2001): erosão do
Estado de Bem-Estar Social, correspondente recrudescimento do Estado Penal
principalmente através de reformas nas políticas criminais , e progressiva
criminalização de imigrantes estrangeiros pauperizados. Cid (2008) explora os impactos
na taxa de encarceramento da reforma penal de 1995, que ampliava a utilização e a
duração das penas de prisão para diversos delitos, e restringia o direito à redução da
pena em função de trabalho ou outras atividades de tratamento. Neto (2009), por sua
vez, aprofunda a análise do processo de desestruturação do aparato estatal de promoção
do bem-estar social, analisando a relativa redução dos gastos públicos em proteção
social, consoante à aprovação de diversas reformas penais no início dos anos 2000. E o
Observatori del Sistema Penal i els Drets Humans (OSPDH, 2008) da Universidade de
Barcelona (UB) publicou um estudo minucioso sobre cada grande e pequena reforma
legislativa em matéria penal promovida entre 1995 e 2005, explorando seus contextos
imediatos, seus objetivos declarados e os efeitos de endurecimento penal que
representaram. O estudo ainda é aberto por uma abrangente análise das principais
macro-transformações sociais, no mercado de trabalho e nos sistemas punitivos dos
países desenvolvidos, apresentando a Espanha como um exemplar mais de um amplo
processo marcado pela evolução de uma economia neoliberal, articulada ao
desenvolvimento de políticas criminais-penitenciárias de intolerância. Encerrando a
publicação, um artigo problematizando o horizonte penal baseado na exceção e na
emergência que se apresenta no mundo ocidental contemporâneo.
Entre as muitas reformas penais analisadas, destaca-se um progressivo processo de
criminalização da imigração ilegal, restringindo as possibilidades de regularização do
imigrante, ampliando o recurso à expulsão do país
32
, e lançando mão dos Centros de
Internamento de Estrangeiros (CIEs) para a reclusão administrativa de imigrantes
clandestinos. Em Barcelona são dois CIEs operando atualmente, e somando-se ao
conjunto de instituições fechadas estatais da Catalunha.
32
Inclusive prevendo a expulsão do imigrante infrator em substituição a penas inferiores a seis anos de
prisão, e após o cumprimento de ¾ de uma pena superior a seis anos.
58
Também é digna de destaque a lei de 2002 que instituiu os julgamentos rápidos, como
um imperativo legal para o processamento quase imediato (em questão de dias) de
determinadas acusações, o que implicou uma significativa expansão (reestruturação) do
aparelho de justiça estatal. A partir dessa lei, foram criados 80 novos juizados penais em
toda a Espanha e foram contratados centenas de novos funcionários para operá-los, de
tal modo que, nos cem primeiros dias de vigência do novo sistema, 45.000 julgamentos
foram realizados.
Sobre a cultura política que conforma e sustenta essas medidas é possível identificar na
bibliografia o problema de uma crescente preocupação pública com as questões de
segurança, aliado à emergência de um discurso que associa o aumento da criminalidade
ao aumento da imigração. Wagman (2002, 2003) é um dos sociólogos que identificam,
criticam e denunciam essa cultura política que se aproxima da xenofobia. Segundo o
autor, esse discurso se formula com base em pesquisas e dados oficiais que relacionam
o aumento dos delitos e da imigração a partir do ano de 2001. O seu esforço é o de
desvincular essas variáveis, mostrando que suas correlações são construídas
ideologicamente, obscurecendo certos dados e processos particulares.
Wagman questiona a própria tendência de aumento da criminalidade, diferenciando
criminalidade “real” de crimes registrados. Segundo o autor, o aumento de crimes
registrados apresentado como a mítica explosão da criminalidade de 2001 decorre
mais de uma reforma administrativa nos aparatos policiais e de segurança ocorrida em
2000, sob a alcunha de Plan 2000”. Através desse plano, imprimia-se uma nova lógica
de gestão da segurança, mediante o estabelecimento de metas de detenções, de
apreensões, de julgamentos para os diferentes agentes de controle do delito e justiça
penal, condicionando suas remunerações aos respectivos índices de “produtividade”.
Por outro lado, Wagman questiona a correlação entre delitos e imigração, explorando as
estatísticas criminais. Segundo o autor, o Ministerio del Interior afirmava que 50% dos
delitos ocorridos em 2001 haviam sido cometidos por imigrantes, resultando na
detenção de 116.139 estrangeiros a metade dos detidos no período. Fracionando o
dado pelas causas de detenção, Wagman descobriu que 50.748 estrangeiros haviam sido
detidos por instância ilegal, ou seja, eram “presos” por causas administrativas, que não
poderiam (ou não deveriam) ser identificados como delinqüentes. Ainda, dos 58.199
estrangeiros detidos por causas criminais, cerca de 40% eram turistas ou traficantes
59
internacionais que não residiam na Espanha, e a maior parte dos 60% de estrangeiros
residentes que cometeram delitos era acusada de crimes contra a saúde pública (tráfico
de drogas) e não por crimes contra a propriedade.
Com base nessas e outras informações, Wagman discute o desenvolvimento de uma
cultura política que equipara infrações administrativas, delitos de papeles”, tráfico de
drogas e crimes contra a propriedade sob o mesmo rótulo da ameaça da imigração.
Segundo o autor, essa difusa percepção social associada a um policiamento que
funciona sob a égide do produtivismo acaba por provocar uma exagerada sobre-
representação dos imigrantes estrangeiros na população carcerária espanhola.
60
3 Vasos comunicantes
No capítulo anterior buscou-se uma primeira aproximação dos sistemas punitivos e de
seus respectivos problemas e desenvolvimentos recentes, no Brasil e na Espanha. Nesse
capítulo, um segundo passo será dado, apresentando o que na introdução foi colocado
como uma precaução metodológica estratégica para uma adequada abordagem do
transbordamento da prisão e de seus efeitos societários. Trata-se de uma exploração dos
vasos comunicantes que operam a conexão da prisão com outros territórios, e de
algumas estruturações societárias que são produzidas em função dessas conexões.
33
Em primeiro lugar, procuro evidenciar as dimensões societárias do problema, através de
estimativas aproximadas do volume de agentes que acabam sendo arrebatados, direta e
indiretamente, pela prisão em seus cotidianos. Em seguida, passo a explorar algumas
modulações e características dessas conexões, bem como alguns processos de
estruturação societária pautados por elas. Para finalizar o capítulo, problematizo as
relações entre a noção de vasos comunicantes que procurei estudar, e de agentes
mediadores que acabaram se constituindo como novo foco da pesquisa.
3.1 - Estimativas
Propõe-se aqui um exercício especulativo sobre as proporções e a evolução do volume
de pessoas que encontram suas vidas afetadas direta e indiretamente pela prisão nas
últimas décadas, nos dois contextos estudados. O raciocínio é simples: partindo do
contingente da população carcerária num determinado momento, buscar-seestimar o
número de pessoas direta e indiretamente afetadas pelo sistema penitenciário.
Evidentemente, tal cálculo poderá se realizar sobre postulados hipotéticos, que cabe
agora explicitar. Considera-se diretamente afetado pelo encarceramento o preso e sua
33
Esse capítulo é um desdobramento de artigo que apresentei em maio de 2009, em seminário organizado
pelo PPGS-USP e NEV, “Crime, Violência e Cidade”, ver: GODOI (2009c).
61
família mais próxima: sua mãe, seu pai, sua esposa ou namorada, e seu(s) filho(s).
Levando em consideração que as estruturas familiares são altamente variáveis, que nem
sempre todos esses componentes se verificam, que em alguns casos eles são mais
numerosos, e em outros, praticamente inexistentes, postula-se hipoteticamente que, em
média, para cada preso, quatro pessoas vivenciariam os efeitos diretos de seu
encarceramento. Sem entrar no mérito da qualidade dos vínculos pelos quais essa
vivência de afetação é transmitida a terceiros produzindo pessoas indiretamente
afetadas pelo encarceramento postula-se hipotética e sumariamente que cada familiar
diretamente afetado transmitiria e compartilharia alguns dos efeitos do encarceramento
que lhe atinge com três diferentes pessoas de sua rede social.
34
Trata-se de vizinhos,
outros parentes, amigos de bairro, de trabalho ou de escola, que estariam desconectados
da rede social que passa pela prisão, e são por esses vínculos a ela conectados,
constituindo assim o grupo de pessoas indiretamente afetadas pelo encarceramento.
Portanto, esquematicamente, PC equivalendo à população carcerária numa determinada
unidade espaço-temporal, 4PC equivaleria ao número de familiares atingidos pela
prisão; 5PC seria o contingente de pessoas diretamente afetadas pelo encarceramento
(presos e familiares); 12PC seria o volume de pessoas indiretamente afetadas (três
contatos para cada familiar), e 17PC, o total de pessoas direta e indiretamente afetadas
pelo encarceramento.
Se se atribui alguma razoabilidade a esses postulados hipotéticos e aproximativos, a
partir dos dados da população prisional, é possível projetar as dimensões do grupo mais
afetado pelo encarceramento em diferentes momentos no Brasil e em São Paulo, na
Espanha e na Catalunha. E ainda a exemplo do que é feito com os índices de
encarceramento se se considera a população total em cada unidade espaço-temporal, é
possível projetar uma taxa de afetação direta e indireta do sistema prisional por 100 mil
habitantes.
Brasil, 1988: o total nacional da população carcerária (PC) era de 88.041 (ADORNO e
SALLA, 2007), de modo que a estimativa de familiares próximos (4PC) seria de
352.164; a estimativa de pessoas diretamente afetadas (5PC) seria então de 440.205; e a
34
O número três é intuitivo, parecendo-me reduzido o suficiente para não levantar questionamentos sobre
as intersecções das redes sociais de componentes de uma mesma família. Em todo caso, admite-se que é
altamente questionável esse postulado.
62
estimativa de pessoas indiretamente afetadas (12PC) seria de 1.056.492. Somando os
conjuntos de pessoas direta e indiretamente afetadas pelo sistema prisional (17PC)
chega-se a cifra de 1.496.697. Segundo o IBGE (2006), em 1988, a população total
brasileira era de 141.382.535, de tal modo que uma taxa nacional de afetação direta e
indireta do sistema prisional seria de 1.058,6/100 mil habitantes. Em 2000, a população
carcerária do Brasil havia saltado para 211.953; de modo que as estimativas de
familiares próximos, de pessoas diretamente, e indiretamente atingidas, seriam
respectivamente: 847.812 (4PC), 1.059.765 (5PC), e 2.543.436 (12PC); totalizando
3.603.201 (17PC) pessoas direta e indiretamente afetadas pelo turbilhão do
encarceramento o que, considerando a população recenseada em 2000
35
, representaria
uma taxa de afetação carcerária de 2.124,6/100 mil habitantes. Oito anos mais tarde, o
número de encarcerados no Brasil era de 440.013, os familiares, portanto, seriam
1.760.052, os diretamente afetados seriam 2.200.065, e os indiretamente afetados
seriam 5.280.156, somando 7.480.221 pessoas. Se como afirma o DEPEN (2010), o
total da população brasileira era de 256.385.272 pessoas, a taxa de afetação seria de
2.917,5/100 mil habitantes, em 2008.
Faço o mesmo raciocínio com os dados disponíveis para o estado de São Paulo, que em
1986, contabilizava uma população carcerária de 24.091 pessoas (SALLA, 2007, p.74).
A estimativa de familiares próximos, portanto, seria de 96.364, a de pessoas diretamente
afetadas seria de 120.455, e de pessoas indiretamente afetadas seria de 289.092,
totalizando 409.547 pessoas direta e indiretamente atingidas pelo encarceramento. O
IBGE (2006) estimava, para 1986, a população total paulista em 30.238.300, de modo
que a taxa estadual de afetação carcerária seria de 1.354,3/100 mil habitantes o que,
não obstante a diferença de dois anos nos dados disponíveis, indicaria que, no estado de
São Paulo, uma taxa de afetação direta e indireta do sistema prisional seria
significativamente maior que a nacional. Seguindo com as estimativas essa tese se
confirma. Em 1996, a população carcerária paulista era de 66.278 (SALLA, 2007,
p.83); a estimativa de familiares seria então de 265.112, a de diretamente afetados seria
de 331.390, e a de indiretamente afetados seria de 795.336, totalizando 1.126.726
pessoas direta e indiretamente afetadas pelo encarceramento. Considerando a contagem
da população estadual do IBGE (2006), 34.119.110 pessoas habitavam o estado de São
35
Total de habitantes do Brasil, segundo o Censo Populacional de 2000: 169.590.693 (IBGE, 2010).
63
Paulo nesse ano, de modo que a taxa de afetação seria de 3.302,3/100 mil habitantes.
Em 2008, a população carcerária nos presídios paulistas já era de 158.447 pessoas
(DEPEN, 2010); os familiares próximos seriam assim 633.788; os diretamente afetados
seriam 792.235; os indiretamente afetados seriam 1.901.364 pessoas; e a soma total de
pessoas direta e indiretamente afetadas pelo encarceramento seria de 2.693.599, num
estado habitado por 41.585.931 pessoas o que implicaria numa taxa de afetação
carcerária de 6.477,1/100 mil habitantes, ou seja, um índice mais que duas vezes maior
que o índice nacional. Agora, lembrando que grande parte da população carcerária
paulista é oriunda de bairros periféricos, principalmente dos grandes centros urbanos,
seria possível afirmar, sem dificuldades, que em determinadas localidades essa taxa de
afetação superaria o patamar dos 10.000/100 mil habitantes.
Espanha, 1990: segundo o Instituto Nacional de Estadística (INE, 2010a), a população
carcerária nacional era de 33.058, de modo que a estimativa de familiares afetados pelo
encarceramento seria de 132.232 pessoas; os diretamente afetados seriam 165.290, e os
indiretamente afetados seriam 396.696; totalizando 561.986 pessoas direta e
indiretamente afetadas pelo sistema prisional. Tomando por base a população
recenseada em 1991 38.872.268 habitantes
36
(INE, 2010b) seria possível afirmar
que o índice nacional de afetação prisional, no começo da década de 1990, estaria por
volta de 1.445,7/100 mil.
Quase vinte anos depois, em 2009, a população carcerária da Espanha era de 76.079
(MI, 2010a). Portanto, seria de 304.316 a estimativa do contingente de familiares de
presos; 380.395 seriam os diretamente afetados pela prisão; 912.948 seriam os
indiretamente afetados; e 1.293.343 seriam os direta e indiretamente afetados pelo
encarceramento. Considerando a estimativa do INE (2010b) para a população total de
45.983.364 habitantes o índice de pessoas direta e indiretamente afetadas pelo sistema
prisional na Espanha seria de 2.812,6/100 mil habitantes.
Na Catalunha de 1990, a população carcerária era de 4.749 (DJ, 2010a), de modo que os
familiares de presos totalizariam 18.996 pessoas; os diretamente afetados pela prisão
seriam 23.745; os indiretamente afetados seriam 56.988; e o total de afetados seria de
80.733. Se a população total da Catalunha em 1991 era de 6.059.494 (INE, 2010b), no
36
Não foi possível encontrar o dado sobre a população total na Espanha em 1990.
64
começo da década de 1990, o índice de afetação prisional estaria por volta de
1.332,3/100 mil habitantes. Em 2009, a população carcerária era de 10.531 (MI, 2010a),
os familiares seriam 42.124, os diretamente afetados seriam 52.655, os indiretamente
afetados seriam 126.372, e o total seria de 179.027 pessoas. Cruzando essa estimativa
com a do INE (2010b) para a população total da Catalunha de 7.301.953 habitantes ,
chega-se a um índice de afetação carcerária de 2.451,7/100 mil.
Porém, pela aproximação que se fez do contexto penitenciário espanhol e catalão,
sabe-se que a população total não é a referência mais adequada para se imaginar um
índice de afetação carcerária, uma vez que existe uma significativa sobre-representação
dos imigrantes estrangeiros no contingente penitenciário. Com o mesmo ânimo de
exercício especulativo, proponho então fazer os mesmos cálculos com base na
população carcerária estrangeira de 2009, na Catalunha, que era de 4.560 pessoas (DJ,
2010a). Assim, os familiares de presos estrangeiros totalizariam 18.240 pessoas, os
estrangeiros diretamente afetados pelo encarceramento seriam 22.800, os indiretamente
afetados somariam 54.720; e os direta e indiretamente afetados seriam 77.520. Se, ao
invés da população total da Catalunha, tomar-se como referência apenas a população
estrangeira que em 2009 era de 1.061.079 pessoas (IDESCAT, 2010) chega-se ao
índice de afetação carcerária de 7.305,7/100 mil habitantes estrangeiros.
Apesar de essa estimativa reproduzir a sobre-representação das populações estrangeiras
no interior do aparato penitenciário catalão deve-se reconhecer que ela tampouco
expressaria, mesmo que de forma aproximada, o campo de afetação prisional no interior
das populações estrangeiras. Em primeiro lugar, porque a estrutura familiar e as redes
sociais dos imigrantes estrangeiros são por demais diversas das que aqui se postulou
hipoteticamente, principalmente por remeterem também aos países de origem.
37
Nestes
termos, a rede de pessoas direta e indiretamente afetadas pelo encarceramento espanhol
e catalão seria uma rede transnacional, que passa por países como Marrocos, Colômbia,
Romênia, Equador, Argélia, etc.
38
Ou seja, a partir e ao redor da prisão espanhola
estrutura-se um campo internacionalizado de agentes, bastante difícil de precisar através
dessas estimativas hipotéticas.
37
Para uma discussão sobre as relações familiares e as redes sociais dos imigrantes estrangeiros na
Catalunha, ver: RODRÍGUEZ, SANS e SOLANA (2006).
38
Esses são os cincos países de origem mais freqüentes da população carcerária estrangeira na Catalunha.
Para mais informações, ver: DJ (2010a).
65
É evidente que as estimativas e estas imaginadas taxas de afetação carcerária não têm a
pretensão da precisão científica. Tanto para São Paulo, quanto para a Catalunha, trata-se
mais de aproximações iniciais que visam evidenciar a escala de um campo social no
qual um número bastante significativo (e crescente) de agentes vem sendo interpelado
pelo encarceramento, obrigados a lidar com a prisão e seus meandros, levados a vivê-la
e a dizê-la.
Se se agregasse ao escopo dessas aproximações estimativas, o contingente dos agentes
estatais que também têm a vida estruturada ao redor da prisão, os cálculos seriam
outros; o mesmo se se agregasse uma multiplicidade de agentes da sociedade civil, de
militantes dos direitos humanos, de voluntários religiosos, etc., cujas vidas também são
afetadas pelo mundo prisional. Em suma, o campo que se pretende analisar é expansivo
e indeterminável, essas estimativas vieram tão somente para indicar que ele existe e que,
cada vez mais, é por demais importante. Agora cabe explorar melhor alguns aspectos do
como ele se estrutura e do que ele produz.
3.2 - Os vasos comunicantes
Duas ressalvas devem ser feitas para iniciar uma discussão sobre os vasos comunicantes
que conectam a prisão a outros territórios, fazendo a prisão afetar direta e indiretamente
a vida de pessoas que estão em liberdade e não necessariamente cometeram um delito.
Em primeiro lugar, os vasos comunicantes sempre existiram na prisão, de tal forma que
sua atual importância não decorre da novidade. Em segundo lugar, sua importância
tampouco decorreria meramente do aumento pronunciado da população carcerária, que
intensifica os fluxos de pessoas, coisas e dizeres que gravitam ou transitam por esses
vasos.
É preciso bem reter as sugestões teórico-analíticas de Cunha (2002, 2004, 2004-2005)
sobre o processo de erosão das fronteiras entre bairros e prisões, que apontam para todo
um rearranjo no dispositivo carcerário que ressitua a prisão e sua “natural” porosidade
num novo jogo de ralações. Um rearranjo que se refere: 1 a deslocamentos
66
importantes na economia dos ilegalismos populares, principalmente com a evolução
recente do mercado de drogas e suas implantações territoriais; 2 ao respectivo
desenvolvimento de novas políticas criminais, pautadas por uma concepção de “guerra
contra as drogas”, que privilegiam o “ataque” aos espaços e agentes que
operacionalizam o varejo desse comércio ilegal; e 3 às respectivas reconfigurações de
sociabilidades locais, que requalificam, de um lado, as práticas ilegais como alternativas
mais viáveis de geração de renda, e de outro, a experiência prisional como um
expediente de socialização amplamente compartilhado, que já não isola nem estigmatiza
sujeitos classificados como desviantes. Na articulação desses fatores mais do que o
próprio perfil da população carcerária se alterar, alteram-se também as dinâmicas de
interação e relacionamento entre o dentro e o fora da prisão, os tempos sociais de dentro
e de fora se sincronizam, as posições de preso, visitante, familiar e/ou amigo se
desestabilizam, tornam-se condições provisórias, intermitentes, de modo que os
repertórios de saberes e práticas de cada lado dos muros progressivamente se
equiparam.
Não foi possível identificar pesquisas no Brasil que desenvolvam a perspectiva de
erosão das fronteiras prisionais sugerida por Cunha para o contexto português. Todavia,
Buoro (1998), ao desenvolver uma pesquisa sobre as representações acerca dos direitos
e da justiça para os familiares de presos, pelos imperativos do trabalho de campo, acaba
dialogando com o horizonte de questões que aqui se coloca. Sua investigação foi
desenvolvida a partir das filas de espera que se formam a cada fim de semana diante dos
presídios. Freqüentar as filas às portas da Casa de Detenção de São Paulo, entre 1992 e
1995, era uma estratégia para estabelecer contatos com o grupo social cujas
representações pesquisava. Não obstante, a autora faz certas reflexões que tangenciam a
problemática aqui levantada, como é possível perceber na seguinte assertiva:
Atravessar as fronteiras entre o lado de dentro e o lado de fora da
instituição é tarefa dos familiares de presos nos dias de visita. A partir da
experiência dos familiares de presos podemos constatar que a ´ordem pelo
avesso` própria a um estabelecimento prisional, transborda para fora de
seus vigiados muros.” (BUORO, 1998, p. 106)
A autora faz referência direta ao trabalho de Ramalho (2002), desenvolvido duas
décadas antes no mesmo presídio (do lado de dentro); e indica questões que coloco no
67
foco da reflexão. Em primeiro lugar, que ainda que seja “avessa” ou “invertida”, há uma
ordem que se estrutura onde se imagina encontrar não mais que desordem e
desestruturação. Em segundo lugar, aponta o familiar enquanto agente mediador, e o dia
de visita enquanto vaso comunicante fundamental, que operam e possibilitam esse
processo de estruturação societária que se estende para além dos muros da prisão. No
decorrer do trabalho, a autora ainda aponta outras questões que são de interesse
fundamental. Buoro sumaria sete tipos de redes de relações que unem presos,
familiares e funcionários e estes todos a alguns comerciantes dos arredores.
(BUORO, 1998, p.89) Redes que articulam:
a) presos-funcionários-comerciantes-familiares, b) funcionários-
comerciantes, c)ambulantes-presos-familiares, d)familiares-presos-
familiares, e)presos-cúmplices-familiares, f)familiares-familiares.”
(BUORO, 1998, pp.89-90)
Para cada uma dessas redes identificadas, a autora traz relatos de episódios vistos ou
contados, nos quais se evidencia que a prisão pontua e articula o cotidiano desses
diversos agentes. Mais do que cada episódio em particular, o que por enquanto
importaria reter é o conjunto de agentes identificados nessas diversas redes que, no
limite, articulam-se em uma só: presos, funcionários, comerciantes, ambulantes,
cúmplices e familiares. Além dos “nós” que compõem a rede, a autora ainda sugere
alguns dos suportes que produzem e atualizam os vínculos: as cartas; o “jumbo” e as
diversas mercadorias que o compõem, ajudas diversas (materiais, financeiras e afetivas),
passagens e viagens que antecedem uma visita, e “esquemas” variados (que vão desde
uma “inobservância” a certas regras da visitação até a operacionalização do comércio de
drogas na prisão e/ou no bairro).
Em torno de alguns casos conhecidos no material editado durante a Iniciação
Científica e em casos identificados no decorrer do trabalho de campo diversos
episódios também permitiam entrever a estruturação de uma rede ampliada de laços e
cumplicidades, nas quais convergiam, inclusive, pessoas que nunca chegaram a visitar
uma instituição prisional, ou nem sequer conheceram diretamente alguém que estava ou
esteve preso. Não obstante, esses agentes podiam entrar em contato com importantes
elementos que compõem o universo prisional, chegando a alterar o seu cotidiano e suas
práticas sociais em função da prisão.
68
Um grande volume de contatos é mobilizado para que um visitante chegue no horário
devido, e devidamente munido de um “jumbo”, na porta do presídio num dia de visita.
Colegas de trabalho trocam de turno para que uma delas visite o marido na prisão.
Enquanto essa mulher trabalha, uma vizinha faz a comida, outra faz um bolo, sua irmã
reúne tudo e arruma o “jumbo” que será levado, no dia seguinte, ao cunhado preso. O
preso sabe de todos esses movimentos, e ainda que não conheça pessoalmente todas as
pessoas que concorrem para viabilizar os dias menos dolorosos do cumprimento de sua
pena, ele as agradece e estabelece vínculos, diretos ou indiretos, com cada uma delas.
Vínculos são criados ainda entre essa rede, que se articula em torno da visita e do
“jumbo” do lado de fora, e a rede que se organiza em torno do preso no interior da
prisão. Os “jumbos” são sempre montados com excesso de mantimentos, justamente
para que possa ser dividido com os outros presos da cela do visitado, que por ventura
não recebam nem visitas, nem “jumbos”. Por exemplo, uma vizinha que montava o
“jumbo” para uma visitante, soube que as comidas que fazia eram muito admiradas
pelos dois companheiros de cela do visitado, que não estabeleciam contatos diretos com
pessoas de fora. Numa ocasião, ao invés de montar um, montou três “jumbos”, que
foram levados pela visitante. Tal ato de solidariedade implicou tanto no fortalecimento
dos vínculos entre o visitado e seus companheiros de cela, quanto entre o visitado e a
vizinha da visitante, como entre a vizinha da visitante e os companheiros de cela do
visitado, que a agradeceram na forma de seguidas mensagens, cartas e telefonemas.
Portanto, prospectando o processo social de produção do “jumbo”, poderíamos incluir
no sumário de nós dessa rede social a figura dos amigos e vizinhos de familiares de
presos, e assim identificar outros dois segmentos da rede que se estrutura a partir da
prisão: um segmento presos-familiares-amigos e vizinhos de familiares; e outro presos-
amigos e vizinhos de familiares.
O estabelecimento (estruturação) dessas modalidades de vínculos em torno do “jumbo”
coloca em evidência a centralidade desse artefato no dispositivo carcerário paulista. O
“jumbo” e as amplas estruturações societárias ao seu redor são mobilizados para
contornar ou amenizar as agruras de uma experiência carcerária que é absolutamente
precarizada, que se nos limiares da violência fatal, na multiplicação dos maus tratos,
na péssima alimentação, na indisponibilidade de serviços médicos e materiais de
higiene. O que está em jogo no “jumbo” que entra na prisão e nas estruturações
69
societárias que o produzem é um patamar mínimo de sanidade física e mental dos
detentos, recebam eles visitas ou não. Sem uma “instituição” social como o “jumbo”, a
vida num presídio paulista seria inviável.
Mas não a vida do preso é viabilizada pela mobilização dessas amplas redes, a vida
de seus familiares também o é. Buoro relata episódios em que mulheres se
solidarizavam com outras menos afortunadas, dando-lhes recursos para que
regressassem a casa, alimentassem os filhos durante a longa espera na fila, etc.
39
Em
campo, também pude identificar arranjos semelhantes, seja para viabilizar a ida de uma
familiar a um presídio no fim de semana, seja para viabilizar a própria alimentação da
mulher e dos filhos de um preso no decorrer da semana.
Com a construção de diversas penitenciárias em distantes cidades do interior paulista, e
o correspondente aumento do tempo necessário e das distâncias percorridas para
viabilizar as visitas, esse arranjo social que se estrutura ao seu redor se complexifica
ainda mais. Da arrecadação de dinheiro para pagar uma passagem de ônibus, e de
encontros casuais de familiares de presos numa rodoviária eventos relatados por
Buoro , passa-se à necessidade de fretamento de ônibus, e à estruturação de um
verdadeiro sistema (informal) de transporte estadual, que conecta os grandes centros
urbanos às cidades do interior. não basta às visitantes organizarem a fila e
solidarizarem-se com as menos afortunadas, passa a ser necessário promover
semanalmente verdadeiras excursões para diversas cidades. A cada fim de semana,
muitos ônibus fretados partem de pontos como o terminal rodoviário da Barra Funda, ou
como a estação Carandiru do metrô. Emerge assim a figura da “guia”, visitante que
organiza o fretamento de ônibus para algum presídio interiorano. A ela cabe distribuir
os assentos, reservar ou indicar pousadas, zelar pelos horários de partida e chegada, e
etiquetar as bagagens para que se saiba de quem é cada mala, em caso de, numa blitz
policial, encontrarem drogas e armas no interior do bagageiro. Os serviços prestados são
recompensados com a possibilidade de viajar sem pagar, por isso, muitas vezes são
escolhidas para tal função justamente aquelas, entre as mais respeitadas, que apresentam
maiores dificuldades financeiras.
40
Ademais, com a interiorização dos presídios, entram
na vasta rede social penitenciária, os motoristas e empresas de ônibus, os empresários
39
cf. BUORO (1998) p. 93-94.
40
Para uma descrição da “guia”, ver: JOZINO (2008), pp. 25-32.
70
do setor hoteleiro das pequenas e médias cidades, os comerciantes de estrada, os
policiais rodoviários, etc.; ao mesmo tempo em que se intensificam os vínculos entre as
familiares que além de compartilharem o tempo de espera na fila, passam a dividir
horas e horas na estrada e a se comunicarem continuamente para verificação das vagas
disponíveis, dos horários e pontos de partida, dos custos da viagem, etc.
Mas, as conexões entre presos, amigos e familiares não são operadas somente pelas
visitas e pelos “jumbos”. As cartas sempre foram e ainda são um vaso comunicante
fundamental. Todos os dias podem ser enviadas e recebidas; a todo momento podem ser
lidas ou escritas. Por meio delas, o preso abstrai a prisão e se coloca em relação com o
mundo para além das muralhas. Muitos são os relatos autobiográficos de ex-presidiários
que expressam a importância fundamental das cartas na vida dentro da prisão.
41
Aqueles
presos que escrevem bem, fortalecem os seus nculos com outros presos, escrevendo
cartas para parentes, amigos e vizinhos dos companheiros, promovendo os vínculos
destes com suas redes externas de apoio. Muitas relações afetivas entre presos e pessoas
livres passam por uma troca de cartas, uma troca de fotos, um convite escrito para a
visita de fim de semana. Se completamente desconectado, jornais e revistas oferecem
espaço para que o preso anuncie seu interesse em comunicar-se. A carta é também um
vaso comunicante dotado de ambigüidades, nelas poderão ocultar-se mensagens
secretas, relacionadas a ilegalismos variados. São, portanto, foco de especial atenção da
parte do corpo de funcionários. As correspondências podem ser monitoradas,
propositalmente desviadas, rasgadas ou ocultadas, com objetivos de investigação, de
castigo ou de extorsão. De todo modo, com o passar dos anos, a correspondência postal
não é o único vaso comunicante que opera a conexão entre pessoas presas e livres
através de um suporte material: os proliferantes telefones celulares m ocupando a
posição que era da carta, e superando-a em suas virtualidades assim como vem
ocorrendo na sociedade mais ampla.
Na prisão, da mesma forma que as cartas, os celulares tanto podem servir para (quase)
inocentes conversas entre amigos e familiares, quanto para os ilegalismos mais
variados, como para monitoramento e investigação policial. Trata-se, portanto, de um
importante vaso comunicante que, não obstante sua ilegalidade, conecta pessoas presas
e livres para os mais diversificados fins. Parece-me importante incluir esses aparelhos
41
Ver, por exemplo: MENDES (2001, 2005) e JOCENIR (2001).
71
no rol de vasos comunicantes, pois esses artefatos tecnológicos radicalizam a erosão das
fronteiras das prisões, impulsionando de maneira determinante o fluxo de informações
no interior das redes de pessoas direta e indiretamente afetadas pelo encarceramento; e
colocando em cheque a capacidade de os presídios funcionarem, minimamente, como
um dispositivo de contenção e incapacitação de criminosos, uma vez que, através deles,
presos podem seguir gerenciando com ampla mobilidade o cotidiano de seus
empreendimentos ilegais, e ainda desenvolver e aplicar novos golpes, como o do “falso
seqüestro”.
42
Pode-se entender o celular no ambiente prisional como um importante
vaso comunicante e um vetor do fracasso de uma prisão que pretende funcionar como
incapacitante.
É possível conceber também a própria saída de um preso do ambiente institucional, sua
volta para a localidade de origem, como o traçado de um vaso comunicante, que coloca
aquele território para onde o egresso se dirige em contato com a prisão, através da sua
mediação. Seja com um alvará de soltura, numa saída temporária ou mesmo numa fuga,
ao sair do presídio, o preso inscreve com o próprio corpo uma linha de comunicação
entre a realidade prisional e o ambiente urbano mais amplo, através da qual se difundem
importantes elementos da experiência carcerária.
Assim como quando uma pessoa está presa, quando ela sai da prisão, para viabilizar as
mínimas condições de vida, tem que buscar amparo na sua rede de relações mais
próxima. Vínculos antigos e novos são mobilizados para providenciar a sua instalação
no bairro, bem como a sua reinserção no mercado de trabalho, seja ele formal, informal
ou ilegal. Nesses contatos, compartilham-se detalhes da experiência prisional
inclusive aqueles que não convinham mencionar num dia de visita atualizam-se
vínculos sociais, fortalecendo e/ou expandindo ainda mais a rede de pessoas direta e
indiretamente afetadas pela prisão.
Para explorar as características e ambigüidades desses vasos comunicantes que se
constituem a partir do próprio corpo do preso, descrevo brevemente suas diferentes
modulações. Em primeiro lugar, a fuga, que, por princípio, é um procedimento ilegal.
Ela pode ser produto da engenhosidade de um grupo de presos, que cavam um túnel ou
42
Sobre o o golpe do “falso seqüestro”, ver: FOLHA ONLINE. Polícia flagra presos praticando o golpe
do falso seqüestro no Rio.in Cotidiano, 17 de maio de 2007, [on line] disponível na internet via:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u135524.shtml (Consulta feita em maio de 2010).
72
pulam uma muralha; ou pode ser fruto de uma negociação com determinados agentes
estatais sobre sua facilitação.
43
No decorrer das décadas de 1990 e 2000, outras
possibilidades de constituição desse vaso comunicante se desenvolveram, passando a
envolver, cada vez mais, “cúmplices” que estão do lado de fora das muralhas. Ações de
resgate, perpetradas em presídios ou em veículos de transporte de presos (conhecidos
como “bondes”), e túneis discretamente cavados de fora para dentro da prisão
aumentaram as possibilidades e dimensões das evasões nos últimos anos.
44
Ainda que o
fugitivo, geralmente, não volte para seu bairro de origem, e nem fortaleça os vínculos
sociais com as pessoas que se viram afetadas pelo seu encarceramento; seguramente,
determinados nós de sua rede social são acionados para viabilizar sua ocultação, e,
sabendo disso, as forças policiais incidem especialmente sobre essa rede para chegar a
alguma informação sobre o paradeiro do fugitivo.
A saída temporária, por sua vez, é um direito garantido pela LEP aos presos que
cumpriram boa parte de suas penas e não apresentam problemas disciplinares. Nos dias
das mães, dias dos pais, páscoas e nas épocas de Natal, principalmente, esses presos
deixam temporariamente o presídio e passam alguns dias em liberdade, entre familiares
e amigos. Nesses breves períodos, verdadeiros eventos sociais se desenrolam nos
bairros periféricos da cidade de São Paulo. Festas e reuniões são organizadas em torno
da figura do preso, de modo que lhe é possível entrar em contato direto com conhecidos
que usualmente não o visitam na prisão, ou mesmo, com pessoas que foram integradas à
sua rede de relações, mas que ele ainda não tivera oportunidade de conhecer
pessoalmente (e o que era mediado torna-se direto). Segundo relatos recolhidos em
trabalho de campo, durante o desenrolar da saída temporária, entre festas, visitas e
passeios, o preso experimenta, ambiguamente, a alegria de se ver livre, o desespero da
volta iminente ao presídio, e a tensão de ser visado pelos agentes estatais da extorsão, os
quais sabem que uma apreensão numa ocasião como essa pode implicar em significativo
atraso na conquista da liberdade definitiva.
A saída temporária, portanto, pode acabar de três maneiras: 1 como uma fuga, se o
preso decide não retornar à prisão; 2 como um novo aprisionamento, se o preso
43
Sobre facilitação de fugas através da corrupção de agentes estatais, ver, por exemplo: FOLHA
ONLINE. Delegado, carcereiro e advogado são condenados por fuga em cadeiain Cotidiano, 11 de
junho 2003, [on line] disponível na internet via:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u76598.shtml (Consulta feita em maio de 2010).
44
Para relatos jornalísticos de ações de resgate e fugas massivas, ver: SOUZA (2007) e JOZINO (2005).
73
aproveita a ocasião para empreender uma ação ilegal e é mal sucedido, ou se ele é
surpreendido pelos agentes da extorsão e não consegue negociar um “acerto”; ou 3
como um triste e, ao mesmo tempo, esperançoso retorno à unidade prisional.
Por fim, a liberdade, que também pode ser vista como uma via de comunicação e um
meio de difusão da experiência penitenciária no tecido social mais amplo. O apoio de
parentes, amigos e vizinhos é fundamental no processo de readaptação do egresso à vida
em liberdade, e nesse processo toda a rede social que se articula ao seu redor se
mobiliza e se reestrutura.
Como se sabe, a vida de um egresso do sistema prisional é bastante difícil. Por isso,
existem ex-presidiários que nem cogitam a hipótese de tentar outra carreira fora do
crime, existem aqueles que nem cogitam voltar para o crime, e existem aqueles muitos
que, com o passar do tempo, vêem os projetos de vida honesta, feitos e refeitos a cada
dia de aprisionamento, esfacelarem-se perante a realidade. O estigma de ex-presidiário
faz com que as oportunidades no mercado de trabalho formal sejam mínimas, e a
informalidade e os ilegalismos se apresentam como alternativas para aqueles que
querem reduzir a sua condição de dependência material frente à sua rede social de
apoio. De todo modo, a viabilização da vida do egresso, seja através da sua reinserção
no mercado de trabalho formal, seja no informal, seja no ilegal, depende,
invariavelmente, dessa rede social, de suas condições, possibilidades e articulações.
Invariavelmente também, e assim como acontece com aqueles que estão sob saída
temporária, policiais corruptos reconhecem, observam e perseguem os ex-presidiários
com o objetivo de extorqui-los, sob a ameaça de prendê-los por um motivo qualquer,
real ou imaginário. Esse é mais um elemento determinante (e geralmente ignorado) que
empurra o ex-presidiário para a reincidência. Em suma, se o mercado de trabalho formal
resiste a incorporar o ex-presidiário pelos seus “antecedentes criminais”; se o mercado
de trabalho informal o expõe à ão dos agentes da extorsão; se, sem conseguir
trabalhar (formal ou informalmente) o egresso vê sua rede social de apoio seguir
pagando propinas em seu nome, e no limite, garantindo as condições mínimas para a
sua existência, tal e qual acontecia enquanto estava preso; se, por outro lado, no
mercado de trabalho ilegal proliferam as oportunidades e convites tanto pela
experiência adquirida na prisão, quanto pelos inúmeros contatos ali estabelecidos
muitas vezes, ao ex-presidiário resta escolher entre um ou outro artigo do código penal.
74
Segundo relato recolhido em trabalho de campo, essa escolha perversa é feita levando
em consideração alguns critérios, como o artigo em que se tem alguma condenação
45
,
aquele que promove maiores ganhos com menores riscos, e o que amplia as
oportunidades de negociação de “acertos” com as forças policiais corruptas. Desse
modo, um egresso que foi assaltante pode tornar-se traficante, um que foi traficante
pode tornar-se receptador, um que furtava pode vir a seqüestrar, e assim por diante,
conforme os cálculos e possibilidades de cada um. É nestes termos que a experiência
prisional captura a vida de pessoas diretamente afetadas pelo encarceramento numa
trama de ilegalismos e violência, que fornece como horizonte a morte, a prisão ou a
invalidez. E, no Brasil e em São Paulo, é esse horizonte cerrado que o dispositivo
carcerário vem impondo para um número cada vez maior de pessoas.
Apenas por essa breve e esquemática exploração dos conectores de bairros a prisões em
São Paulo, e de um muito variável campo de agentes, práticas e discursos que se
estrutura ao seu redor, é possível sugerir que a erosão das fronteiras entre bairros e
prisões, a sincronização dos tempos prisional e urbano, também são verificáveis no
contexto paulista. De todo modo, mais do que esgotar o exercício prospectivo de vasos
comunicantes e estruturações societárias, o que se pretende nesse capítulo é apontar
para essa ampla circulação de repertórios, de códigos, de linguagem, de problemas que
fazem transbordar a prisão para além dos seus limites institucionais.
3.3 - Mediadores
Na Catalunha, importantes vasos comunicantes e estruturações societárias ao seu redor
também puderam ser identificados. Visitas, cartas, telefonemas, serviços de
paquetería
46
, saídas de permisos
47
e de tercer grado
48
também colocam em
ressonância os cotidianos e repertórios de pessoas presas e livres. Aisa, nascida em
45
Segundo o informante, se se é condenado duas vezes, em diferentes ocasiões, pelo mesmo artigo, a
segunda pena é agravada significativamente.
46
O equivalente ao “jumbo” brasileiro.
47
O equivalente à saída temporária brasileira.
48
O equivalente ao regime semi-aberto no Brasil.
75
1987, e concebida numa visita íntima de uma prisão madrilenha, é quem me relatou a
importância desses vasos comunicantes na sua socialização e na estruturação de sua
família.
49
Ela é filha de uma catalã e de um “quase-estrangeiro” francês, descendente de
argelinos. Como foi anteriormente indicado, sua relação com o pai e também com a
família paterna se manteve positiva e relativamente estável enquanto ele esteve
preso. A partir do momento em que a relação parental deixou de ser mediada pelos
vasos comunicantes da instituição prisional, ela se rompeu.
Apesar de ser uma trajetória bastante sugestiva para a reflexão sobre os processos de
estruturação societária pautadas pelos vasos comunicantes da prisão, não tive a
oportunidade de ir muito além do que me era relatado por Aisa. Aisa viveu o
aprisionamento de seu pai em Terrassa, na coroa periférica de Barcelona. Ele, depois de
um período preso na Espanha, foi transferido para cumprir pena na França, de onde Aisa
carrega suas primeiras recordações penitenciárias. Por isso, Aisa tinha uma espécie de
vida dupla. Em Terrassa, para evitar o estigma, ela e sua família omitiam o
encarceramento do seu pai, de modo que as estruturações societárias que eram pautadas
por esse aprisionamento, restringiam-se a arranjos familiares mais ou menos estendidos
e inter-geracionais; por outro lado, na França, os vínculos que haviam sido urdidos nas
rotineiras visitas haviam se debilitado quando entrei em contato com essa informante
privilegiada. Ou seja, os vasos comunicantes eram-me apresentados pela mediação do
relato de Aisa de um passado recente.
Essa figura do mediador foi ganhando centralidade no decorrer da pesquisa. Na
Catalunha e também em São Paulo, a prospecção dos vasos comunicantes se dava
através dos relatos desses agentes que transitavam entre o dentro e o fora da prisão. E na
busca de um bairro em que pudesse observar e etnografar as estruturações societárias
pautadas pelos vasos comunicantes em sua atualidade, cada vez mais mediadores iam se
inserindo no escopo da pesquisa. Além de egressos, familiares e amigos de presos e
com a intenção de contatar mais egressos, familiares e amigos de presos que
estruturavam uma vida social pautada pela prisão num bairro com altos índices de
encarceramento passei a buscar outros mediadores, diferentes profissionais e
operadores do sistema penitenciário, especialistas de diversas áreas, militantes
defensores dos direitos humanos, voluntários, etc. Nessa incessante busca pelos vasos
49
Para uma problematização mais detida sobre a trajetória de vida de Aisa, ver: GODOI (2008b).
76
comunicantes operando, e através do contato com diversos mediadores, foi se
ampliando a imagem do campo societário que se estruturava em ambiente aberto
pautado pela prisão. Vislumbrou-se, então, um vasto campo político em torno do
encarceramento, no qual se articulava uma miríade de agentes, práticas e discursos que
faziam a prisão transbordar, não para um bairro localizado, mas para territorialidades
difusas, para diversos pontos do tecido social. Ademais, as experiências desses agentes
mediadores além de atestar a porosidade das instituições prisionais, pareciam expressar
muito concretamente os dilemas postos pelas práticas punitivas e suas evoluções
recentes em cada contexto estudado. Em decorrência dessa progressiva centralidade que
a figura do mediador foi tomando na pesquisa, o eixo de questões que se aqui se
pretende contemplar se deslocou. Para esclarecer essa passagem, cabe uma apresentação
do trabalho de campo empreendido, com uma apreciação mais detida dos obstáculos
encontrados e dos percursos e contornamentos realizados em cada contexto. Esse é o
objeto do próximo capítulo.
77
4 Percursos de campo
4.1 - Em Barcelona
A expedição etnográfica à Espanha, e especificamente à região metropolitana de
Barcelona, de imediato, foi pensada como uma feliz contingência. Contingente pela
disponibilização dos recursos materiais necessários
50
para uma investigação que, àquela
altura, formulava-se como estrategicamente comparativa. E feliz por diversos motivos.
Em primeiro lugar, por ser identificável nesse país europeu um muito relevante processo
de massificação do encarceramento, que, portanto, possibilitaria uma reflexão fecunda
sobre os seus efeitos societários em contextos suficientemente distantes. Em segundo
lugar, feliz por nesse país não ser observável nem a sombra de algo análogo às facções
prisionais, fenômeno que, na ocasião, ainda era percebido como um elemento
perturbador da pesquisa no contexto paulista. Entendia-se que a facção era uma
estruturação societária que, apesar de certamente pautada pelos vasos comunicantes que
conectam a prisão a outros territórios urbanos, parecia misturar demasiadamente outros
elementos estruturantes irredutíveis à presença da prisão num bairro periférico,
particularmente elementos próprios ao desenvolvimento do “mundo do crime”, do
“tráfico de drogas”, da “corrupção”, do “crime organizado” estruturações e questões
sobre as quais não se pretendia focar a pesquisa. Barcelona seria, então, um bom
contexto para desenvolver trabalho de campo e formular parâmetros para,
posteriormente, identificar no Brasil estruturações societárias que fossem, de um modo
determinante, pautadas exclusivamente pela prisão e pela massificação do
encarceramento.
Em terceiro lugar, via-se na Espanha como no Brasil um caso importante de
massificação do encarceramento sobre o qual a reflexão sociológica acerca das suas
causas, conseqüências e particularidades ainda era pouco específica num
50
A bolsa de estudos incluía passagem, pagamento do curso na UAB e ajuda de custo mensal de 1200
euros.
78
levantamento bibliográfico preliminar, apenas Christie (2000) e Wacquant (2007)
mencionavam ligeiramente a Espanha como exemplar de modulação européia de
massificação do encarceramento. E finalmente, a expedição à Espanha era bem vinda
por se considerar que esse país apresentava características culturais (como o catolicismo
hegemônico), econômicas (como nação periférica no contexto europeu), sociais (como
os fortes movimentos migratórios internos dos últimos trinta anos) e políticas (como o
recente processo de redemocratização) que estabeleciam boas condições para a
realização de uma comparação reflexiva e controlada.
Ao chegar ao território catalão, ainda improvisadamente instalado, parti para o
levantamento de mais dados sobre o encarceramento na Espanha e Catalunha, melhor
dimensionando a escala e a importância do processo de massificação do encarceramento
naquela localidade.
51
Inserido num contexto completamente desconhecido, sem sequer
saber o nome de um bairro no qual pudesse iniciar a pesquisa empírica, tomei duas
medidas imediatas. Em primeiro lugar, instalei-me a apenas uma quadra e meia da
principal e mais tradicional instituição penal da Catalunha, a “Cárcel Modelo” de
Barcelona construção panóptica de 1904, localizada no bairro quadriculado do
Eixample Esquerre.
52
Em segundo lugar, procurei estabelecer contato com operadores e
pesquisadores do tema prisional das universidades de Barcelona, pedindo-lhes que me
concedessem entrevistas. Ambas as medidas se mostraram fecundas para abertura de
trabalho de campo.
Por meio de um portal de anúncios na internet
53
procurei um quarto para alugar na
região da Cárcel Modelo”, e o encontrei num amplo apartamento habitado por cinco
pessoas mais, todos jovens estrangeiros, trabalhadores e estudantes, de diversas
nacionalidades, principalmente latino-americanas.
54
A rotatividade dos habitantes da
casa era alta, de modo que pela via da moradia precária, em curto espaço de tempo,
pude desenvolver um incipiente círculo social, no qual tateava a presença de pessoas
direta ou indiretamente afetadas pelo encarceramento. Em poucos meses, uma jovem
(atipicamente) catalã passou a morar na casa, e conforme a fui conhecendo e lhe
51
Dados que são apresentados no Capítulo 2 dessa dissertação.
52
Ver Imagem 1.
53
Ver: www.loquo.com
54
Dividir apartamento com pessoas mais ou menos conhecidas é uma estratégia de moradia altamente
difundida em Barcelona, principalmente a partir dos anos 1990, quando os preços dos aluguéis e dos
imóveis aumentam muito. Para maiores informações, ver: SOTELO-BLANCO (1993).
79
pedindo ajuda para a pesquisa, ela confessou não ser filha de um preso, mas também
ter sido concebida numa prisão de Madrid. Além de amiga, Aisa tornou-se uma de
minhas informantes privilegiadas.
Sua história de vida ajudou-me a melhor realizar o campo de questões que procurava
desenvolver no trabalho: as dimensões estruturantes de uma vida social pautada pelo
encarceramento. O caso de Aisa pareceu-me especialmente revelador por ser sua
experiência bastante contraditória com o que se costuma descrever para as relações
familiares atingidas pela prisão de um de seus componentes. A ruptura familiar que
desestrutura as condições de vida de Aisa não se deu quando seu pai foi preso, mas sim
quando foi liberado. Outro aspecto importante da estrutura familiar na qual Aisa cresceu
é que ela não pode ser exatamente descrita como uma “desestrutura”, que se erigia a
partir da mediação constante e organizada dos órgãos da administração penitenciária,
isto é, a qualidade e a quantidade das relações parentais e familiares que conformaram a
primeira socialização de Aisa eram antes promovidas, concebidas e estruturadas pelo
aparato de justiça estatal, do que destruídas por ele. Mais uma vez é preciso fazer a
ressalva: não se atribui um valor positivo a esse tipo de socialização pautada pelo
encarceramento, não se quer afirmar que, ao contrário do que dizem, a socialização de
uma criança que tem o pai na prisão pode ser boa, melhor ou menos pior, se quando ela
nasce, o pai está preso; o que se quer destacar é que a análise desse caso limite e
(cada vez menos) atípico ajuda a iluminar as dimensões de efeitos estruturantes da ação
do aparato de justiça penal na conformação de ambientes familiares e de processos de
socialização. Se essa socialização é boa ou ruim, se é melhor ou pior, se deve ser
reivindicada ou denunciada, são questões que não estão em foco nesse trabalho, o que
aqui interessa é descrevê-la, é mostrar como ela se dá, como ela é possível. Acredita-se
que uma descrição que não se oriente por um certo “apriorismo negativista”, inclusive,
pode ser mais fecunda e proveitosa para a formulação da crítica.
Em paralelo aos constantes diálogos que mantinha com Aisa, uma companheira de
estudos da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) espanhola do País Basco,
mas que morava e atuava como assistente social no Eixample anos colocou-me em
contato com profissionais do setor de saúde e educação da Cárcel Modelo”, com os
quais também pude realizar entrevistas. Aurora e Filip trabalharam por décadas no
interior daquela histórica prisão, testemunhando todas as transformações recentes que
80
ali tiveram lugar. Aurora é uma auxiliar de enfermagem, casada com um dos médicos da
prisão
55
; Filip foi enfermeiro por mais de uma década e hoje exerce a função de
professor na escola do presídio, também é casado com uma enfermeira que trabalha
numa outra instituição prisional. Ambas as histórias de vida levaram-me a perceber
outras dimensões estruturantes das instituições prisionais sobre a vida de pessoas que
não necessariamente cometeram algum delito. Se é recorrente a conformação de
relações afetivas nos ambientes de trabalho, ambos os relatos demonstram que nas
instituições prisionais esse tipo de tendência é ainda mais forte. O compartilhamento
dos problemas, preocupações, tensões e dificuldades que o ambiente prisional impõe ao
trabalhador, impele a uma maior aproximação, uma vez que, segundo os informantes, é
muito difícil ou quase impossível se fazer entender a alguém que nunca esteve lá dentro,
e que não conhece aquela realidade. Outra questão relevante que esses relatos permitem
abordar é a das transformações recentes na população prisional e no tratamento
penitenciário nos últimos anos, decorrentes do aumento do encarceramento e da
transformação na composição da população prisional.
É necessário ponderar que esses avanços no trabalho de campo, ao mesmo tempo em
que representavam uma maior aproximação da realidade carcerária catalã, eram
insuficientes para inserir-me na unidade inicial de análise que havia planejado um
bairro com elevado índice de pessoas afetadas direta e indiretamente pelo
encarceramento. Aisa era nascida e criada em Terrassa, cidade satélite de Barcelona
com altos índices de imigrantes andaluzes e estrangeiros, que poderia enquadrar-se nos
critérios da investigação; porém, seu pai era francês de origem argelina, ficou preso na
França, em Toulouse, por muitos anos, de modo que a ela foi possível manter em sigilo
a condição de filha de preso. Em Terrassa, sua mãe a orientava a omitir a prisão de seu
pai; em Toulouse, suas relações com o lado paterno da família e com outras crianças
que visitavam a prisão eram tão efêmeras quanto um fim de semana. Aurora e Filip
eram moradores dos arredores do Eixample, residiam convenientemente perto do
trabalho, porém, o foco da pesquisa estava voltado para a busca de um bairro que
concentrasse amigos e familiares de presos e egressos, e não funcionários de prisão. De
fato, o Eixample é atualmente um bairro valorizado e central, habitado por uma classe
55
A partir de sua história de vida elaborei uma reflexão sobre os desenvolvimentos recentes do sistema
penitenciário catalão, ver: GODOI (2009a).
81
média bem estabelecida e que, em linhas gerais, está mais preocupada com a
desativação do presídio do que com seus habitantes.
Uma vez que o bairro no qual passei a residir não se enquadrava exatamente nos
critérios da pesquisa era necessário continuar a busca. Essa era a missão principal que
tinha em mente quando agendava entrevistas com especialistas sobre o tema.
Aproveitava a ocasião dessas entrevistas para estabelecer algumas pontes cognitivas
entre a realidade carcerária paulista e a catalã. Formulei um tipo de questionário que
permitia que o próprio diálogo fosse um exercício comparativo. Cada questão era
formulada de maneira aberta para que o entrevistado pudesse falar da realidade catalã
como quisesse, em seguida, para cada questão, introduzia as motivações que me faziam
formular a pergunta, evocando determinados aspectos da realidade carcerária paulista
para que o entrevistado comentasse semelhanças e diferenças. Pude manter esse
frutífero diálogo com cinco especialistas e operadores de diferentes setores do sistema
penitenciário catalão.
Angel Marzo
56
é especialista em educação de adultos e por muito tempo trabalhou com
projetos de alfabetização no cárcere, principalmente entre os anos 1980 e 1990, tendo
publicado artigos e livros sobre o tema.
57
Atualmente, atua coordenando projetos de
educação de adultos no centro cívico do bairro de Besòs, periferia leste de Barcelona.
Seus saberes sobre o mundo penitenciário catalão remetem a uma realidade um tanto
distante, de antes da explosão da população carcerária estrangeira, quando uma
significativa parte da população prisional era de origem gitana e envolvida com
pequenos crimes relacionados à dependência química, principalmente em heroína. Pela
entrevista, pude entrever um sistema educativo prisional (comparativamente com o
Brasil) muito bem estruturado. Quanto ao bairro em que atua, afirmou que existem
determinados núcleos fronteiriços que podem ser considerados problemáticos, onde o
aparato de justiça estatal provavelmente se faça mais presente. Porém, não lhe parecia
possível conectar-me a algum desses núcleos, pois, segundo ele, como coordenador,
encontrava-se relativamente distante do público atendido pelos cursos do centro cívico,
e ademais acreditava que os habitantes desses núcleos ainda não estavam
suficientemente sensibilizados a participar das atividades promovidas pela organização.
56
O nome dos especialistas não é fictício.
57
Ver: MARZO (1990).
82
Raquel Sala é técnica do setor de Educação, Cultura e Esportes da Secretaria de Serveis
Penitenciaris, Rehabilitació e Justícia Juvenil (SSPRJJ) do Governo da Catalunha.
Começou atuando no sistema prisional como voluntária na Cárcel Modelo”,
desenvolvendo um programa de incentivo às práticas esportivas. Segundo ela, os
aparelhos esportivos da prisão eram subutilizados porque as informações sobre sua
disponibilidade não circulavam no interior da unidade; a divulgação dos programas,
quando se dava, era feita em catalão, idioma que a maioria da população não manejava.
Seu projeto de voluntária foi criar uma rede de comunicadores que articulava presos de
diversas origens que dominavam minimamente o espanhol, e que se responsabilizavam
em repassar as informações nos seus idiomas originais aos seus companheiros
conterrâneos. O sucesso e a premiação do projeto lhe garantiram uma indicação para se
profissionalizar nos quadros da administração penitenciária. Uma vez integrada à
secretaria, seus contatos diretos com a população prisional diminuíram, de tal modo
que, na ocasião em que conversamos, ela não podia ajudar a inserir-me em algum bairro
com alta concentração de pessoas afetadas pelo encarceramento.
David Fornons é antropólogo e desenvolveu pesquisa no interior da Cárcel Modelo
sobre os programas de tratamento da dependência química em heroína, que se dão
através da administração de metadona. Segundo ele, a metadona é a principal substância
farmacológica no tratamento de heroinômanos. O início de sua aplicação data da
segunda metade da década de 1980, quando ainda era vista como uma substância que
podia promover a cura; porém, com o desenvolvimento dos tratamentos foi se
constatando que a metadona, por sua vez, também causa forte dependência, de modo
que o tratamento, progressivamente, deixa de ser visto como um procedimento de cura e
passa a ser visto como uma política de redução de riscos e danos. Fornons discute esse
movimento e mostra como ele se tanto dentro quanto fora do cárcere. Manter-se sob
tratamento do lado de fora da prisão passa a ser critério de progressão de pena. Todo um
complexo aparato público de distribuição de metadona se instala no território urbano,
anexo às instituições médicas. O auge desses programas em Barcelona se deu no início
da década de 1990 e foi progressivamente perdendo centralidade conforme o perfil da
criminalidade foi se alterando. Fornons apresentou-me um complexo arranjo
institucional que conecta prisões e instituições médicas, porém, tampouco podia levar-
me a conhecer um bairro de alta concentração de afetados pelo encarceramento.
83
Miriam Torrens também é antropóloga. No começo dos anos 2000, participou de um
grande projeto de pesquisa que visava estudar os processos de integração sócio-laboral
de mulheres que passaram pela prisão. Tratava-se de uma pesquisa comparativa entre
Espanha, Reino Unido, Hungria, Alemanha, Itália e França, que está sistematizada na
publicação Women integration and prison(CRUELLS e IGAREDA, 2005). Portanto,
os seus conhecimentos sobre o universo prisional são focados na condição da mulher
antes e depois do encarceramento. Torrens chamou minha atenção para uma dimensão
de internacionalização dos efeitos da massificação do encarceramento na Europa.
Segundo ela, um fenômeno crescente nos presídios femininos europeus é a presença das
mulas”: mulheres, majoritariamente latino-americanas, condenadas por tráfico
internacional de drogas e presas ainda no aeroporto, que, portanto, não mantém
nenhuma relação com outro território europeu. Os efeitos (re)estruturantes de seu
encarceramento se dão nos países de origem. Se essa internacionalização fica evidente
no caso limite das “mulas”, em alguma medida, ela também é verdadeira para uma parte
significativa dos estrangeiros homens que estão presos na Europa, já que muito
excepcionalmente redes familiares inteiras migram para um mesmo bairro, de uma
mesma cidade, de um mesmo país. Na ocasião em que conversamos, Torrens
pesquisava um tema bastante diverso vilas camponesas na Transilvânia de modo que
não podia ajudar-me a entrar num bairro em que pudesse conhecer, pelo menos,
fragmentos de redes familiares pautadas pelo encarceramento.
Conforme avançava nas entrevistas com os especialistas e operadores do sistema
prisional catalão ia descortinando uma série de dimensões do encarceramento na
Catalunha sem exatamente dar-me conta. A frustração de não conseguir um canal de
entrada para o que havia definido como unidade inicial de análise o bairro eclipsava
as potencialidades de reflexão sobre essas múltiplas (re)estruturações que se davam
dentro e fora das prisões catalãs, como a estruturação de um sistema educacional
penitenciário; a estruturação de uma dinâmica rede do terceiro setor que injeta
trabalhadores voluntários no interior da prisão; a estruturação de um sistema de saúde
pública acoplado à prisão e voltado para o tratamento de dependentes químicos; a
internacionalização dos efeitos da massificação do encarceramento na Europa, etc.
Embora considerasse cada um desses processos, por si só, dignos de uma pesquisa,
84
imaginava que seriam mais bem abordados a partir do momento em que pudesse
verificar como eles entram em jogo num território determinado.
Um passo significativo nessa direção foi dado a partir da entrevista com o professor de
Antropologia Social da Universidade de Barcelona (UB) e um dos coordenadores do
Serviço de Reabilitação da SSPRJJ, Julio Zino. Zino pesquisa as instituições prisionais
desde a perspectiva da análise organizacional
58
, e enquanto funcionário da
administração penitenciária conhece grande parte das organizações da sociedade civil
que dialogam com a secretaria para a viabilização de projetos de reinserção laboral. O
professor indicou-me uma dessas organizações para servir de ponto de partida para um
trabalho de campo territorializado: a Coordinadora Contra la Marginació de Cornellà.
Segundo ele, esse seria um bom início porque, além de funcionar como entidade da
sociedade civil que estabelece parcerias com a SSPRJJ, a Coordinadora é uma das mais
antigas e politizadas instituições civis que atuam na área penitenciária, apresentando um
significativo enraizamento na comunidade local.
A Coordinadora atualmente se localiza no bairro de Sant Ildefons, na cidade satélite de
Cornellà de Llobregat, a oeste de Barcelona.
59
Sant Ildefons é um bairro de blocos
populares, construído no fim da década de 1960
60
, inicialmente ocupado por uma
população de operários imigrantes da Andaluzia e de Extremadura, e que, mais
recentemente, vem recebendo populações de imigrantes estrangeiros, principalmente,
latino-americanos e magrebinos. Ao entrar em contato com a Coordinadora, fui
convidado a participar de suas assembléias ordinárias, que aconteciam todas as terças-
feiras pela noite. Acompanhando essas reuniões esperava estabelecer contatos com os
moradores do bairro para agendar entrevistas e aprofundar o trabalho de campo naquele
território, que parecia se enquadrar perfeitamente nos critérios estabelecidos para a
investigação.
Um grande número de pessoas idosas, pais e mães de presos, compareciam às reuniões,
também alguns egressos que trabalhavam na empresa de reciclagem gerida pela
organização. Ainda que a presidente da entidade fosse a mãe de um preso, as
assembléias eram dirigidas por um grupo de pessoas ligadas à Igreja Católica, que
58
Ver: ZINO (1995, 1997).
59
Ver Imagens 2 e 3.
60
Sobre a construção de Sant Ildefons, ver: GONZÁLEZ e TREMPS (1986).
85
pela organização mantinham relações diretas com a prisão. As principais atividades da
entidade eram (no começo de 2008): 1 Grupo de Mães, que se reunia quinzenalmente
e era coordenado por uma psicóloga voluntária; 2 Programa de Assistência a Pessoas
Presas e suas Famílias, que se constituía como trabalho de acompanhamento jurídico e
psicológico de 34 pessoas em diferentes situações processuais (29 homens e 5 mulheres;
5 processados em liberdade, 7 cumprindo penas alternativas, 2 em liberdade sob
tratamento da dependência química, 15 presos e 5 egressos); 3 Recibaix Empresa de
Inserción, que é uma empresa de reciclagem na qual trabalham egressos do sistema
penitenciário e que é gerida pela entidade, em parceria com a SSPRJJ, com a prefeitura
de Cornellà, com a Agència de Residus de Catalunya e com a Fundação La Caixa; 4
La Carena, que é um projeto de qualificação profissional que atendia 26 jovens com
histórico de fracasso escolar.
O grande número de pessoas do bairro envolvidas nas atividades promovidas pela
Coordinadora, e que tinham suas vidas diretamente afetadas pelo aparato de justiça
estatal, fazia da entidade o ponto de partida ideal para a realização da pesquisa. Porém,
o processo de aproximação foi lento e gradual. Num primeiro momento permitiram que
participasse das atividades abertas da entidade, como as assembléias e eventos que
promoviam, mas vetaram a realização de entrevistas. Por quatro meses acompanhei
todas as atividades abertas da organização, aproximei-me de alguns de seus quadros,
colaborei com a organização de eventos e cheguei a fazer uma apresentação sobre as
condições do sistema penitenciário brasileiro. Com o passar do tempo ia criando
relações de confiança que permitiram a realização de algumas entrevistas. Porém,
quando conhecia relativamente bem a dinâmica, os projetos e os participantes da
Coordinadora, quando tinha efetivamente aberto a possibilidade de trabalho de campo
aprofundado junto àqueles moradores de Sant Ildefons e de outras partes de Cornellà, o
tempo que tinha para a investigação tinha praticamente se esgotado; era preciso
retornar ao Brasil.
Ainda que dispusesse de um grande volume de anotações de campo, de materiais
recolhidos e de entrevistas feitas, que poderiam constituir um bom material de análise,
ao retornar, a sensação que prevalecia era de fracasso, por não ter efetivamente podido
realizar um trabalho de campo no bairro nos termos em que havia projetado. De
qualquer forma, nessa espécie de busca pelo “trabalho de campo ideal”, o percurso que
86
havia realizado desde os arredores de La Modelo”, passando pelos diálogos com os
especialistas e operadores do sistema prisional, até o acompanhamento das atividades da
Coordinadora em Sant Ildefons permitia-me entrever a estruturação e reestruturação
de um campo múltiplo de agentes, práticas e discursos, num movimento constante de
experimentação, invenção, disputa que era pautado pela dinâmica de transformação do
encarceramento e da realidade social. Ainda que não fosse como planejado, parecia-me
possível mobilizar esses tantos achados de campo no desenvolvimento da pesquisa em
São Paulo.
4.2 - Em São Paulo
Tendo retornado da Espanha, cabia-me desenvolver trabalho de campo num bairro
periférico de São Paulo, e com o desenvolvimento da pesquisa, ponderar acerca da
viabilidade de mobilizar (ou não) os materiais acumulados no velho continente. Dentre
os informantes que compunham a amostra sobre a qual trabalhei durante a Iniciação
Científica, procurei estabelecer contato com um deles em especial, para que fosse o meu
introdutor em Guaianases, zona leste de São Paulo. Amaro
61
viveu quase toda sua vida
no bairro, é conhecido e conhece muita gente, teve envolvimento político em
associações vicinais, e hoje coordena uma cooperativa de reciclagem já bem
estabelecida na localidade. Durante quinze anos trabalhou como agente penitenciário
em diversos presídios do estado de São Paulo, e sua saída do sistema se deu no contexto
de expansão da facção prisional no ambiente externo à prisão: em 2001, recebeu uma
ameaça de morte na porta de sua casa.
62
Seu profundo conhecimento sobre o mundo
prisional, seu forte enraizamento na localidade, e sua disposição em falar sem rodeios
sobre os mais delicados temas faziam-me crer que ele seria um ponto de partida ideal
61 Entrevistado em 2005 por Robert Cabanes (IRD, França), com a colaboração de Daniel Hirata e Silvia
Fonseca, que na época eram bolsistas da pesquisa coordenada em conjunto com Vera Telles (USP). Na
ocasião pude transcrever as entrevistas e conhecer a sua história de vida. Em 2009, pela intermediação de
Robert Cabanes, foi possível fazer contato com Amaro, que se dispôs a auxiliar-me na abertura do
trabalho de campo em Guaianases.
62
A partir da sua história de vida elaborei uma reflexão sobre o sistema prisional paulista e algumas de
suas alterações recentes, ver: GODOI (2009b).
87
para uma pesquisa sobre os efeitos da massificação do encarceramento num local
específico.
Porém, sua condição de ex-funcionário da administração penitenciária acabou por ser
mais determinante no desenvolvimento da pesquisa do que imaginava. Muitas daquelas
famílias de Guaianases, que ele sabia afetadas pelo encarceramento de alguns de seus
membros, também sabiam que ele havia trabalhado em presídios. Alguns egressos do
bairro um na sua própria rua passaram por presídios em que ele trabalhara. Ainda
que estivesse mais de oito anos afastado do sistema prisional, que correntemente
estabelecesse relações de vizinhança com familiares de presos e egressos, suas
conversas casuais tendiam a desviar-se do tema penitenciário, porque evocavam um
passado que colocava aqueles vizinhos de lados opostos dentro de um sistema
“fechado”, de tal modo que era difícil agendar com seus conhecidos uma entrevista
sobre a prisão.
Porém, esse viés das relações, contatos e conversas não me era de todo evidente
enquanto circulávamos pelo bairro. Parecia-me natural que as pessoas tivessem reserva
em falar de uma questão tão delicada, fonte de tantos estigmas e preconceitos sociais,
ainda mais diante de alguém de fora. Por isso insistia, seguia indo a campo, conversava
com um, com outros, pensando que, ao se acostumarem com minha presença no bairro,
esses bloqueios progressivamente cederiam.
Foi quando finalmente conseguimos agendar uma entrevista com a mãe de um rapaz
que estava preso, que aquele viés decorrente do passado de meu interlocutor
apareceu resplandecente diante de meus olhos. Esse rapaz, que ainda estava preso,
passara por grandes problemas na prisão, fora ameaçado de morte e meu interlocutor foi
quem o salvou, retirando-o do pavilhão e conseguindo-lhe uma transferência para outra
unidade. A mãe lhe atendia, concedendo-me uma entrevista, como uma forma velada de
reconhecimento e gratidão. Foi então que entendi, que se aquele passado remoto
interferia positivamente no andamento da pesquisa, seguramente também o fazia
negativamente. Depois da entrevista realizada, conversamos a respeito e ele confirmou
minhas suspeitas. Apenas não me havia advertido antes sobre essas dificuldades
intrínsecas, por estar realmente empenhado em ajudar-me.
88
A entrevista com a senhora foi bastante superficial, e não foi mais breve porque
perguntei muito sobre seu passado, sua vida profissional, sua trajetória residencial. Nina
é alagoana, nascida em 1955, casou-se muito cedo com um vizinho, teve dois filhos, um
rapaz e uma menina. Mudaram-se de Alagoas para o Sergipe, do Sergipe para o
Maranhão, e do Maranhão para São Paulo, por volta de 1988. Em meados de 1990, na
primeira viagem que fez para visitar o Maranhão, seu marido foi assassinado pelo
cunhado, por conta de algumas desavenças financeiras. Nina ficou em São Paulo, na
Vila Matilde, sozinha trabalhando para sustentar os dois filhos. Fez limpeza em “casa de
família”, foi operária e lavadora de carros. Casou-se de novo e mudou-se para
Guaianases, onde o novo marido ia construindo uma casa aos poucos. Seu filho desde
cedo começou a “dar trabalho”, andava com “más companhias”, fumava com os
meninos na rua, e aos 16 anos passou pela Fundação Estadual de Bem Estar do Menor
(FEBEM). Quando ele tinha 19 anos foi preso pela primeira vez. Entre idas e vindas da
prisão, ele se casou e teve um filho. Nina, viúva pela segunda vez, hoje vive com a
nora e o neto. Na mesma casa, um filho, um marido, um pai: uma ausência. Toda a
família se estrutura em torno dessa ausência, da espera de um retorno. O elo entre elas é
ele, e ele está na prisão. O relato de Nina sugere importantes questões sobre uma
modulação familiar promovida pela prisão, já que as duas não viveriam juntas se ele não
estivesse preso. Infelizmente, não pude aprofundar o entendimento desse processo de
estruturação familiar, e da dinâmica que encerrava. A nora e a filha de Nina não
quiseram conceder-me entrevistas, talvez não tenham a mesma imagem daquele vizinho
que me apresentou a elas.
Depois dessa entrevista fiquei duplamente convencido: 1 núcleos familiares de um
bairro periférico de São Paulo, efetivamente, podem se articular ao redor da prisão,
fazendo da experiência prisional uma experiência compartilhada e familiar; e 2
Guaianases já não era ao menos para mim o melhor lugar para estudá-los. Teria que
buscar outro campo.
Impressionava-me o como uma profissão muito abandonada por Amaro seguia
compondo a imagem que se tinha dele no bairro. Ainda que outras identidades viessem
a se sobrepor, principalmente para aqueles mais diretamente afetados pela prisão, o
passado profissional de meu interlocutor, por mais remoto que fosse, seguia uma
referência fundamental. Amaro não era evitado, nem perseguido no bairro, era uma
89
pessoa respeitada e extremamente popular, porém havia uma certa ambigüidade na
relação que estabelecia com determinadas pessoas, havia relações que eram
continuamente trabalhadas, atualizadas, que podiam ruir abruptamente, numa palavra
mal colocada, num rememorar inadvertido. Eu não percebia as sutilezas da relação
quando era apresentado a algm no bairro, a uma mãe de homem preso, a uma irmã, ou
mesmo a um egresso, mas essas sutilezas ali estavam operando. Por maior habilidade
que Amaro tivesse em tocar nos assuntos “prisão” e “pesquisador”, por mais que
aqueles potenciais interlocutores não se indispusessem com ele, nem comigo, as
entrevistas não eram de pronto agendadas, ficavam para depois, a conversa tinha que
fluir para outros assuntos, menos críticos, como se a insistência nos temas pudesse
acabar prejudicando a relação.
Assim, a figura do funcionário de prisão foi ganhando relevo na pesquisa. Foi então
que, paralelamente à busca de uma etnografia situada num bairro específico, procurei
realizar entrevistas com outros funcionários do sistema prisional, em outros pontos da
cidade, entendendo serem eles essas figuras ambíguas, também marcadas pela prisão,
circulando dos dois lados das muralhas, vivenciando de um modo particular os efeitos
do aumento exponencial do encarceramento, tanto dentro, quanto fora do cárcere.
Ademais, conforme aprofundava o diálogo com Amaro sobre sua trajetória profissional,
as trajetórias de Aurora e Filip no funcionalismo prisional da Catalunha iam ganhando
novas cores, novos contrastes, de modo que ia me convencendo de que os relatos
autobiográficos desses muito particulares trabalhadores podiam expressar passagens e
alterações específicas, concretas e fundamentais no sistema prisional e no ambiente
urbano.
Agregar elementos para aprofundar essa reflexão era a minha intenção quando propus
ao meu interlocutor que me levasse conhecer seus ex-companheiros de profissão. E
assim fomos de Guaianases para Santana, zona norte de São Paulo. Em Santana existia
todo um complexo de instituições ligadas ao sistema penitenciário, na época em que
Amaro trabalhou por lá: a Casa de Detenção, a Penitenciária do Estado, um hospital
penitenciário, as sedes do sindicato e da associação dos agentes de segurança
penitenciária. Atualmente, o Carandiru foi demolido, a penitenciária foi reformada e
transformada em Penitenciária Feminina de Santana, a sede da Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP), que ficava no centro (Av. São João) foi para a
90
região, o Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, o sindicato e a associação
continuam ali. Fui apresentado a dois pontos desse complexo: o Sindicato dos
Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (SIFUSPESP) e o perímetro
externo da Penitenciária Feminina de Santana.
No SIFUSPESP conheci o “diretor de saúde” do sindicato, que me contou que sua
principal luta atual é pelo direito à aposentadoria integral, por “acidente de trabalho”,
dos funcionários que foram feitos reféns nas muitas rebeliões que aconteceram no
último período, e que ficaram com seqüelas físicas e/ou psicológicas depois dessa
experiência traumática. O governo oferece a esses agentes um afastamento breve e
“simples”, o que implica no abatimento dos abonos salariais, que representam mais de
60% do pagamento. Ou seja, o sindicato quer que o refém de rebelião seja considerado
vítima de acidente de trabalho, e que se impossibilitado de voltar à função, seja assim
aposentado, ganhando o direito de continuar recebendo o salário integralmente. Mais de
300 funcionários estão nessa situação, passando por fortes privações materiais. O diretor
relatou-me muitos casos, colocou-me para falar com alguns acidentados” por telefone,
e assim consegui mais uma entrevista, com Raílton, que foi feito refém por 32 horas
numa rebelião no Oeste Paulista e atualmente está sob tratamento psiquiátrico.
Outras dimensões da estrutura do aparato de justiça estatal também puderam ser
identificadas, por observações e entrevistas realizadas a partir do perímetro externo da
Penitenciária Feminina de Santana. Ali foi possível conhecer um bom número de
funcionários do sistema prisional, e acompanhar o intenso movimento de “entra e sai”
que caracteriza o cotidiano de uma prisão. O perímetro externo é a área que fica entre
uma portaria na rua e o portão sob as muralhas, nele ficam um estacionamento e uma
série de setores administrativos, incluindo a “Coordenadoria da Capital e Grande São
Paulo” da SAP. Pude entrevistar mais dois antigos funcionários do sistema que hoje
atuam nessa área marginal da penitenciária.
Anísio e Gonçalo entraram no sistema penitenciário ainda na década de 1960. Passaram
por todo o período da ditadura militar trabalhando no interior do presídio, e ambos hoje
se encontram nessa zona marginal cumprindo, mais ou menos satisfeitos, funções
secundárias. Gonçalo galgou todos os cargos possíveis na Penitenciária do Estado,
chegando a ser “diretor geral”. No começo dos anos 2000 foi afastado pelo secretário da
administração penitenciária, ficou seis anos sem posto definido, migrando de uma
91
unidade a outra, de um cargo a outro. Desde meados de 2007 está lotado numa comissão
administrativa. Sua sala é uma clareira aberta num galpão de arquivos, de onde sai para
dar palestras de formação nos cursos da Escola da Administração Penitenciária (EAP) e
para acompanhar algumas ações do recém criado Grupo de Intervenção Rápida (GIR).
Segundo Gonçalo, o GIR é um grupo de elite, altamente qualificado em táticas de
contenção de massas, utiliza equipamentos como balas de borracha, bombas de efeito
moral e gás lacrimogêneo, escudos e cassetetes para “tomar” um raio, para fazer uma
blitz, uma revista.
Anísio tomou outro rumo no sistema prisional. Estudou direito e montou um escritório
de advocacia com um par de sócios para trabalhar na área de execução penal. Seus
conhecimentos e prática garantiram uma trajetória ascendente tanto na área
administrativa do presídio, quanto no ramo da advocacia penal. Pouco depois de a
penitenciária se transformar em unidade feminina, por conflitos com a direção geral,
pediu para sair da direção administrativa e ir para a portaria externa. Também estava
cansado de trabalhar com as pilhas de arquivos tanto dentro quanto fora da prisão.
Atualmente, e devido à relativa tranqüilidade de sua nova posição, vem se dedicando
ainda mais à advocacia, e não lhe falta serviço.
Na mesma proporção em que ia abrindo o leque de interlocutores no mundo dos
funcionários de prisão, preocupava-me em manter o foco original da investigação,
buscando uma entrada em algum outro bairro periférico, através de outros mediadores.
Nesse sentido, adotei a mesma estratégia que utilizei na Catalunha, buscando no
“mundo público”, especialistas e operadores do sistema prisional, imaginando que eles
teriam suas conexões com os grupos mais atingidos pelo aumento do encarceramento,
podendo indicar-me possíveis bairros em que pudesse desenvolver a pesquisa. Contatei
simultaneamente a Pastoral Carcerária, o Conselho da Comunidade da Comarca de São
Paulo e a Defensoria Pública do Estado de o Paulo, e sem grandes dificuldades
cheguei ao primeiro escalão de cada uma dessas instituições.
63
E então, um outro
horizonte se descortinou, não exatamente o esperado, mas um que ampliava ainda mais
o escopo de questões da pesquisa.
63 Agradeço enormemente à pesquisadora Alessandra Teixeira por facilitar-me os contatos.
92
Conforme realizava entrevistas temáticas com as lideranças de cada uma dessas
instituições, ia percebendo que não necessariamente, através delas, chegaria a alguma
localidade periférica na qual poderia abordar, no nível mais empírico possível, os efeitos
positivos e produtivos da massificação do encarceramento. Esses mediadores
institucionais me remetiam mais propriamente a um outro campo de disputa política que
se (re)organizava em torno da prisão e de seu incremento. E foi por isso que me
interessaram especialmente: seus agentes, discursos, configurações, dilemas e disputas
atuais e mesmo suas próprias existências incitavam-me questões sobre alguns
aspectos imprevistos do encarceramento em São Paulo, falavam-me de transformações
significativas do aparato prisional, e de todo um mundo social que se erigia ao redor e
através da prisão, que não obstante não fosse territorializado, também extravasava a
prisão para muito além de seus limites físicos e institucionais.
A Pastoral Carcerária do Brasil se organizou formalmente em 1986.
64
Desde então vem
prestando serviços religiosos e fiscalizando o funcionamento de unidades prisionais de
todo o país. Atualmente são aproximadamente 3.000 agentes pastorais
65
realizando
visitas periódicas a penitenciárias e cadeias públicas, prestando assistência religiosa e
jurídica, encaminhando denúncias de violações de direitos, organizando movimentos,
fazendo reivindicações, etc. O Conselho da Comunidade estava previsto na LEP de
1984, mas na comarca de São Paulo foi criado em 2005. Já a Defensoria Pública do
Estado de São Paulo, que foi criada em 2006, estava prevista desde a Constituição
Federal de 1988.
O Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo é constituído por representantes
de uma miríade de entidades civis e empresariais, desde a Pastoral Carcerária até o
Serviço Social da Indústria (SESI). É instituído por um juiz de execução penal e suas
principais atribuições são: 1 realizar visitas periódicas aos estabelecimentos penais da
comarca; 2 entrevistar presos; 3 elaborar relatórios para o juiz de execução e
Conselho Penitenciário; e 4 diligenciar melhorias para a assistência ao preso.
66
As
visitas são agendadas junto à SAP. No interior do presídio, os conselheiros vistoriam as
condições materiais das dependências e recolhem demandas dos presos. Em seguida,
64 Dado do site da pastoral, ver: http://www.carceraria.org.br/default2.asp?pg=sys/nucleo&cat_cod=2418
(Consulta feita em maio de 2010).
65 Dado fornecido em entrevista por um agente pastoral.
66 Dado da Portaria n. 277, de 10 de março de 2006”, apresentada por um dos conselheiros
entrevistados.
93
elaboram um relatório e encaminham para o juiz responsável. Segundo alguns
conselheiros, na maioria das vezes, não um retorno institucional sobre os relatórios.
Porém, parecia-me que mais importante do que a eficácia do Conselho era a sua
efetividade, a sua existência, aquilo que permitia que sua eficácia fosse questionada. A
articulação em torno da questão prisional de diversas entidades civis, algumas mais
diretamente vinculadas à prisão, outras historicamente alheias aos sistemas penais,
ampliava ainda mais o campo de agentes, práticas e discursos que se estruturavam, em
ambiente aberto, gravitando o sistema penitenciário estadual. Parecia-me muito
significativo que no momento de explosão do encarceramento, de transbordamento da
prisão, de múltiplas rebeliões, que empresários, juristas, defensores dos direitos
humanos, agentes pastorais, professores universitários e outros especialistas passassem
a adentrar o universo prisional, a fiscalizar as unidades, a formular discursos e práticas
sobre o encarceramento.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo é o órgão estatal responsável por prestar
assistência jurídica aos cidadãos menos favorecidos em todas as áreas do direito. Até
2006, a Procuradoria do Estado destacava uma parcela de seus quadros para o exercício
dessa função, numa espécie de arranjo institucional improvisado, que submetia os
“defensores da sociedade” aos “defensores do Estado”. Dos 400 defensores públicos
existentes até 2009, metade estava na capital e metade espalhada pelo interior, apenas
12 se dedicavam à área da execução criminal e penal. Segundo um dos diretores da
Defensoria, cerca de 95% da população carcerária recorre aos serviços públicos de
defesa, de modo que cada defensor manipula simultaneamente uma média de 6.000
casos. Em 2006, frente aos 400 defensores, existia 1.800 promotores blicos, o que
demonstra um sério desequilíbrio na capacidade de o Estado acusar e defender “a
sociedade”. A defensoria é uma potencial dinamizadora do fluxo carcerário,
inocentando, pedindo recursos ou benefícios de progressão de pena, etc.; porém sua
debilidade estrutural acaba servindo de fator de “represamento” da população
penitenciária. O diretor explica que desde os “tempos da Procuradoria”, o Estado
mantém um convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e com a FUNAP
para reduzir o déficit de defesas blicas, de modo que pela via da Defensoria Pública,
um enorme contingente de juristas e entidades também parecem se mobilizar em torno
do encarceramento.
94
Portanto, também no campo aberto junto ao que chamei de “mediadores institucionais”,
acabei por ser, novamente, conduzido para a identificação de tantos outros agentes,
práticas e discursos que gravitam a prisão, que o podem ser descritos como efeitos do
processo de massificação do encarceramento que se territorializam num determinado
bairro. Não obstante, conforme conhecia integrantes da Pastoral Carcerária, do
Conselho da Comunidade e da Defensoria Pública, pedia-lhes contatos com egressos e
familiares de presos, com o objetivo de, assim, finalmente chegar a um bairro com alta
concentração de pessoas atingidas pelo turbilhão do encarceramento. Porém, como o
exercício exploratório da pesquisa foi reiteradamente demonstrando, sempre que se
pensa estar indo numa direção, outro campo de possibilidades se apresenta.
Através de um dos integrantes do Conselho da Comunidade entrei em contato com
Paulo, que não é egresso, nem familiar, mas um preso em regime semi-aberto. Sua
própria condição se deve a essa ordem de relações estabelecidas no varejo entre pessoas
diretamente afetadas pelo encarceramento e “mediadores institucionais”. Numa visita a
um Centro de Progressão Penitenciária (CPP), o conselheiro reconheceu Paulo entre os
presos. Ambos, num passado longínquo, já haviam trabalhado num mesmo edifício. Um
reformou o escritório em que o outro trabalhava. Paulo comentou com o conselheiro
que já havia cumprido treze anos de uma pena de trinta, e que podia aceder ao benefício
de regime semi-aberto, mas que não havia possibilidades de encontrar emprego do lado
de fora das muralhas. O conselheiro prometeu ver o que podia fazer por ele. Conversou
com um amigo empresário, dono de uma fábrica de utensílios de cozinha, e conseguiu
uma vaga para Paulo na linha de produção.
Segundo o conselheiro, no CPP viviam mais de 2.000 presos, apenas cerca de 50 tinham
um emprego e permissão para sair da unidade diariamente. O que era para ser
generalizado naquela unidade, não era mais do que um privilégio. E Paulo, desde o
começo de 2009, é um dos que, por obra do acaso, têm o privilégio de exercer o seu
direito. Sai às cinco e meia da manhã do presídio, pega o trem, o metrô e deve bater o
cartão às oito horas na fábrica na zona leste de São Paulo. Deixa o trabalho às seis e
meia da tarde, e às oito da noite deve se apresentar novamente na unidade. Esse é o seu
cotidiano de segunda a sexta-feira. Aos sábados sai também, mas não trabalha. Fez um
acordo com o patrão, para que ele fizesse um documento, solicitando o seu trabalho aos
sábados à direção do presídio, de modo que ele pudesse sair e visitar sua mãe, sua
95
mulher e seus três filhos. No domingo, como ele não recebe visitas, passa o dia trancado
na cela. Pela breve descrição do cotidiano de Paulo que seria o mais adequado dos
interlocutores a me introduzir em uma localidade de alta concentração do
encarceramento já se pode deduzir que, apesar de sua disponibilidade em conceder-me
breves entrevistas antes de entrar no trabalho, apresentar-me a seus familiares e amigos,
pelo menos enquanto estiver sob regime semi-aberto, não é uma possibilidade real.
Entre tentativas e logros inesperados, o tempo de trabalho de campo em São Paulo
também foi passando sem que pudesse, efetivamente, inserir-me num bairro específico,
para etnografar relações e vínculos sociais que se erigem a partir do encarceramento,
como era previsto. Não obstante, o percurso realizado, tanto na Catalunha quanto em
São Paulo, impôs uma rie de questões para a investigação que precisam ser
problematizadas. Se a unidade básica de análise e comparação imaginada o bairro
não pôde ser alcançada, no movimento de busca, múltiplos agentes, práticas e discursos
que se estruturam ao redor e através do encarceramento se descortinaram em diferentes
planos, escalas e territórios sociais, tanto em São Paulo quanto na Catalunha.
Refletir mais detidamente sobre as dificuldades encontradas no trabalho de campo,
sobre as possíveis formas de se conceber e articular as informações levantadas serão o
foco do próximo capítulo.
96
5 Uma abordagem (im)possível
Em toda pesquisa social a abordagem, o contato, a aproximação do pesquisador ao
objeto é um processo complexo e delicado. Quando esse objeto remete a um
universo social altamente estigmatizado como é o prisional as dificuldades se
multiplicam. Contornar os tabus, os preconceitos e a desconfiança são desafios que
invariavelmente se impõem ao pesquisador da prisão. Nos estudos prisionais,
principalmente aqueles de caráter etnográfico e/ou que se referem ao tempo presente, os
desafios metodológicos da abordagem ocupam um papel fundamental na realização e
sistematização da pesquisa. para citar dois exemplos, em seu estudo pioneiro,
Ramalho (2002) dedicou todo um excerto para apresentar sua estratégia de campo, seu
percurso de entrada na Casa de Detenção de São Paulo e as implicações subseqüentes
dessa entrada na qualidade dos dados recolhidos.
67
Mais recentemente, Biondi (2009),
também abriu seu trabalho com uma detida reflexão sobre as dificuldades em viabilizar
a sua pesquisa no interior de um Centro de Detenção Provisória (CDP), envolvendo
cuidados a se tomar na relação com o corpo de funcionários, e múltiplas negociações e
mediações com diversos presos pertencentes ou não à facção prisional que era objeto de
sua pesquisa. Portanto, pesquisar as prisões sempre exige uma difícil prática de
negociação e uma apurada estratégia de abordagem, seja para abrir canais institucionais
como o fez Ramalho , seja para abrir canais informais como o fez Biondi que
possibilitem o bom desenvolvimento da pesquisa.
Mesmo quando o pesquisador não objetiva adentrar o espaço prisional para desenvolver
sua pesquisa, quando ele se volta para “objetos” externos à prisão, mas ainda
relacionados a ela, as mesmas dificuldades se desdobram. Miyashiro (2006) buscou
pesquisar os impactos da prisão na socialização e na constituição da identidade de filhos
de presidiários, e nessa tarefa encontrou uma infinidade de obstáculos. A autora relata
as muitas dificuldades que se apresentaram, as estratégias de contornamento que adotou,
e os resultados sempre insuficientes aos quais cada estratégia levou.
68
Sua pesquisa
67
Ver: RAMALHO (2002) pp.32-38.
68
Ver: MIYASHIRO (2006) pp.28-31.
97
como esta acaba por expressar essas dificuldades encontradas no decorrer do
processo.
Ainda para ilustrar essa dificuldade intrínseca à pesquisa sobre a incidência da prisão
em grupos e territórios que lhe são exteriores, é possível citar o trabalho que o Centro de
Estudos da Metrópole (CEM) vem desenvolvendo sobre redes sociais em bairros
periféricos de São Paulo alguns anos
69
, e que não identificam a prisão como um
campo de gravitação de um número significativo de vínculos sociais, não obstante os
indícios de aumento concentrado das taxas de encarceramento nessas localidades.
70
Uma proposta metodológica de pesquisa etnográfica prolongada tem o potencial de
arrefecer as barreiras e tabus que se edificam ao redor do tema prisional. Feltran (2008)
o demonstra em sua pesquisa em Sapopemba, zona leste de São Paulo. Em Fronteiras
de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo, o autor
apresenta e analisa uma série de trajetórias e experiências, pessoais e familiares,
marcadas pela atuação do aparato de justiça estatal, em especial, pela prisão. Porém,
segundo ele mesmo conta, essas informações puderam ser levantadas após anos de
lenta e gradual aproximação. Portanto, agora se faz necessário ponderar que o limitado
tempo disponível para a investigação, a opção por empreender pesquisa de campo em
dois países bastante diferentes e as dificuldades intrínsecas à abordagem do tema
prisional tornaram impossível a realização de pesquisa na imaginada unidade básica de
análise: num território determinado, num bairro específico atingido por elevados índices
de encarceramento.
Assim sendo, cabe indagar: qual seria então o estatuto das informações levantadas ao
longo dos percursos realizados no decorrer do trabalho de campo? De um lado, as
sugestões de Foucault (1980, 1987) sobre o dispositivo carcerário adiantadas na
introdução desse trabalho , e de outro, alguns aspectos da etnografia multi-situada
discutidos por Marcus (1995), ajudaram-me a requalificar os materiais de pesquisa.
Esquematicamente, Marcus diferencia a etnografia multi-situada de uma etnografia
“tradicional”, que se caracteriza pela observação intensa de um determinado lugar ou
69
Para uma apresentação da pesquisa, ver: MARQUES et. al. (2007).
70
No seminário temático de sociologia econômica, organizado pelo PPGS-USP, em 2009, tive
oportunidade de indagar ao professor doutor do Departamento de Ciências Políticas da USP e
coordenador do CEM, Eduardo Marques, sobre a incidência da prisão nas redes de sociabilidade que
vinham sendo levantadas. O professor respondeu-me que, de toda a amostragem, apenas um informante
havia abertamente afirmado ter parcela significativa da sua rede social na prisão.
98
grupo social, e cuja análise se faz de maneira articulada à enunciação de um contexto
sistêmico que é construído por outros meios, externos à observação, como grandes
teorias ou dados secundários, etc. A etnografia multi-situada, segundo esse autor, é
aquela que define para si um objeto que não poderia ser suficientemente abordado
focalizando a pesquisa num único lugar, que supõe que as circunstâncias de um local só
podem ser compreendidas através das conexões e articulações com processos em curso,
ao mesmo tempo, em outros lugares, ou em outras dimensões da vida social.
Desfazendo as clivagens entre o “mundo da vida” e o “sistema”, entre o “local” e o
“global”, uma nova construção do objeto etnográfico se torna possível, uma construção
mais condizente com as circunstâncias históricas do mundo contemporâneo, segundo o
autor.
Marcus apresenta todo um catálogo de etnografias multi-situadas que comungam um
mesmo núcleo estratégico: o procedimento sistemático de seguir as conexões, as
associações e as relações possíveis entre elementos observáveis em diferentes
localidades. Segundo ele, alguns etnógrafos seguem pessoas; outros seguem coisas;
outros seguem símbolos, discursos, metáforas; outros seguem estórias, enredos,
alegorias; outros ainda seguem biografias e trajetórias de vida; e há também aqueles que
seguem conflitos e suas partes. Dependendo do problema que se quer estudar, algo
diferente deverá ser seguido, não existindo uma fórmula pré-definida de como realizar
uma etnografia multi-situada. A definição mais geral dessa modalidade de etnografia
que o autor apresenta é a seguinte:
Multi-sited research is designed around chains, paths, threads,
conjunctions, or juxtapositions of locations in which the ethnographer
establishes some sort of literal, physical presence, with an explicit, posited
logic of association or connection among sites that in fact defines the
argument of the ethnography. Indeed, such multi-sited ethnography is a
revival of a sophisticated practice of constructivism (…). Constructivists
viewed the artist as an engineer whose task was to construct useful objects
much like a factory worker (…).(MARCUS, 1995, pp.105-106)
Não pretendo sugerir que realizei uma etnografia multi-situada sem o prever. Tão
somente pretendo indicar que a exploração de conectores e a justaposição analítica de
diferentes espaços e contextos sociais, efetivamente, pode resultar na construção de
99
argumentos e objetos relevantes. Ao buscar os vasos comunicantes e os mediadores que
me levassem a um bairro periférico com altos índices de encarceramento, acabei por
seguir experiências pessoais e trajetórias de vida marcadas pelo aparato de justiça
estatal; e através dessas experiências e estórias fui descortinando uma série de
reconfigurações no sistema prisional e no mundo social que se estrutura ao seu redor,
que não são necessariamente territorializados num local específico, e que tampouco são
passíveis de uma descrição em termos meramente negativos.
Ao seguir pessoas que, em diferentes momentos da vida e por diferentes razões,
entravam e saiam do sistema penitenciário, operando uma mediação entre esses dois
mundos, pude entrever diferentes peças, processos, linhas de força e de conflito que
constituem o dispositivo carcerário contemporâneo. Os relatos recolhidos eram como
testemunhos da (re)estruturação de um campo múltiplo de intervenções, de práticas, de
agentes, de discursos, de objetos, de poderes, de saberes e de seus constantes
deslocamentos, crises, experimentações, (re)invenções, resistências e embates que
conformam o que Foucault chama de dispositivo.
Parentes de presos que visitam seus entes queridos, funcionários de prisão que
cotidianamente atravessam as muralhas para trabalhar, voluntários que prestam algum
tipo de assistência à população prisional e que servem de “fiscais” do tratamento
penitenciário, especialistas diversos, advogados e operadores do direito, são todos
agentes articulados nesse amplo dispositivo prisional, e dão, cada qual, uma indicação,
uma pista, um atalho para entender as reconfigurações desse campo político, social e
também cognitivo, que se estrutura através e ao redor da prisão.
Entende-se que os meandros e mediadores pelos quais se desenvolveu os percursos de
campo fornecem os traços de uma cartografia possível desse dispositivo. Tanto em
Barcelona, quanto em São Paulo, a procura de uma via de entrada nas redes de
sociabilidade de bairros periféricos especialmente afetados pelo aumento do
encarceramento, mesmo se frustrada ou impossibilitada, acaba por desenhar um mapa
parcial do dispositivo, uma cartografia incompleta e em aberto, mas que tem o potencial
de demarcar alguns pontos e referências para o entendimento de recentes e importantes
transformações do dispositivo prisional. O “fracasso” de uma proposta de trabalho de
campo, na verdade, acabou por possibilitar uma exploração mais abrangente sobre o
novo lugar da prisão na vida social.
100
A partir desse exercício de composição cartográfica, é verdade, não serão os efeitos
produtivos e territorializados do aumento do encarceramento que serão deslindados. Por
outro lado, as cartografias permitirão explorar o quanto a prisão transborda e ultrapassa
os seus limites institucionais, o quanto ela vai muito além do seu aparato imediato, o
quanto ela produz e estrutura um mundo social multifacetado e em constante redefinição
de contornos, de dinâmicas internas, de agentes, práticas e discursos. Ademais, através
delas, será possível explorar algumas dimensões do dispositivo carcerário que
dificilmente são consideradas nas análises e discussões sobre o sistema prisional, e que,
não obstante, também entram em um novo jogo de relações, também são
incessantemente redefinidas e reconfiguradas, também acompanham o processo de
massificação do encarceramento e as inflexões que se observam nas práticas punitivas
em cada contexto estudado.
Tal é o deslocamento que se deu no eixo da pesquisa no decorrer do seu
desenvolvimento, e que explica a forma e conteúdo dos próximos capítulos.
101
6 Uma cartografia do dispositivo carcerário catalão
A cidade de Barcelona é conhecida no Brasil por abrigar uma das mais importantes e
caras equipes do futebol internacional. Se ser jogador de futebol é um sonho recorrente
na infância brasileira, jogar no F. C. Barcelona todos hão de concordar é o ápice do
sucesso, a realização do sonho, aquilo que só (poucos) jogadores extraordinários
alcançam. Ainda, a imagem da cidade de Barcelona, para os brasileiros, também é
associada a um dos mais lembrados jogos olímpicos da era moderna: Barcelona-92. Em
tempos de preparação para Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, o “modelo
Barcelona é recorrentemente evocado para exemplificar o potencial transformador e
modernizador da realização dos jogos olímpicos na cidade que os sedia.
71
De fato, como
foi possível averiguar no decorrer do ano vivido em Barcelona, o futebol é uma das
expressões culturais mais encarniçadas e mobilizadoras da Catalunha
72
, e resquícios das
Olimpíadas de 1992 são visíveis por toda a cidade, em edifícios residenciais, no sistema
de transporte, no parque esportivo, etc.
Outra referência do mundo catalão relativamente bem conhecida no Brasil é a
conflituosa relação que essa cultura guarda com o restante do Estado espanhol,
principalmente com o governo central (Real) de Madrid. De fato, ainda que Barcelona
seja uma cidade bastante cosmopolita, podia perceber uma espécie de indisposição com
o “espanhol” pairando no ar, perceptível nas bandeiras da Catalunha penduradas nas
sacadas, nas diversas manifestações, organizações, partidos e militantes nacionalistas
(de direita e de esquerda) que fui conhecendo nas ruas e jornais do dia-a-dia. O
“problema catalão” aparece de diversas maneiras e por toda parte, e como afirma
Montalban: “ha hecho correr ríos de tinta y sangre” (in FIGUERUELO, 1970, p.15).
71
Ver, por exemplo, as seguintes matérias jornalísticas: REDAÇÃO. Cabral: legado de Barcelona-92 é
lição para o Rio.Agência Rio de Notícias, 03 de fev. de 2010 [on line] disponível na Internet via:
http://agenciario.com.br/materia.asp?cod=74023&codEdit=41&evento=1; e AGÊNCIA EFE. “Paes se
inspira no exemplo de Barcelona-92.Lancenet, 05 de fev. de 2010 [on line] disponível na internet via:
http://www.lancenet.com.br/noticias/10-02-05/695921.stm (Consulta feita em maio de 2010).
72
A relação do povo catalão com o principal time de sua capital é tão forte que se diz que o Camp Nou
estádio do “Barça foi durante as décadas do franquismo, o único território da cidade onde se podia
falar catalão publicamente.
102
Porém, na presente cartografia, a imagem de Barcelona que se pretende esboçar passa
tão longe do palco de espetáculos futebolísticos, da bem sucedida sede das Olimpíadas,
quanto da discussão e análise do “problema catalão”. Uma outra Barcelona aqui será
dada a conhecer, nem a comumente imaginada pelos brasileiros, nem a reivindicada por
muitos catalães legitimamente orgulhosos de sua cultura. Trata-se de uma visão
conformada pelo olhar de um pesquisador latino-americano que olha para uma porção
da Europa (mais do que para a capital da Catalunha), especialmente interessado nas
características e no funcionamento de um desconhecido sistema punitivo, e que
transitou por oito meses nas sendas do dispositivo carcerário, na busca por um bairro em
que se sentisse alguns dos efeitos do aumento do encarceramento.
6.1 - Marco Zero
O ponto de partida dessa cartografia é a Cárcel Modelo” de Barcelona, ponto de
referência no qual me apoiei na busca por hospedagem.
73
O complexo panóptico
construído em 1904 abriga hoje o Centre Penitenciari d'Homes de Barcelona e o Centre
Penitenciari Obert 1 de Barcelona que juntos abrigam mais de 2.100 presos,
concentrando cerca de 20% de toda a população carcerária da Catalunha.
74
Trata-se de
todo um quarteirão delimitado pelas ruas Entença (frente), Rosselló (lado esquerdo),
Provença (lado direito) e Nicaragua (fundo). O primeiro ocupa todos os edifícios
radiais e o pavilhão de fundo; o segundo ocupa um pequeno edifício na esquina das ruas
Entença e Rosselló, ao lado esquerdo do pavilhão fronteiriço.
A história da Cárcel Modelo
75
se confunde com a própria história do sistema
penitenciário ocidental, do sistema penitenciário espanhol e com a história urbanística
de Barcelona. Antes de sua fundação, a cidade contava com prisões de forte caráter
religioso, uma para mulheres “desajustadas” e prostitutas a Cárcel de Dones ou La
Galera”– e uma destinada a todos os outros “desajustados”, nos moldes dos Hôpitaux
73
Conforme relatado no Capítulo 4 dessa dissertação.
74
Segundo funcionário da unidade, em entrevista concedida em 2007.
75
Para maiores informações, ver: PRODUÇÃO COLETIVA (2004).
103
Generaux descritos por Foucault em “A História da Loucura” (1978) eVigiar e Punir
(1996), albergando desde doentes mentais, crianças e anciãos abandonados, até
vagabundos e criminosos essa a Casa Municipal de Corrección, também conhecida
como “Cárcel Nacional”, “Presó Vella” ou “Cárcel de Amalia”.
Ambas as prisões corporificavam toda a vileza punitiva que era alvo dos reformadores
penais, no final do século XIX. No contexto da Exposição Universal de 1888, sediada
em Barcelona, foi lançada a pedra fundamental da nova Cárcel Modelo, projetada
para funcionar como prisão celular de isolamento quase absoluto; e também se
iniciaram as obras de um abrigo para menores, conhecido como Asilo Durán”. Esses
projetos bem se encaixavam tanto no esforço de racionalização do sistema punitivo
barcelonês, como nos esforços de modernização da própria cidade. Barcelona se
destacava como potência industrial da Espanha e para se ter uma idéia da atmosfera
explosiva que motivava sub-repticiamente os esforços de modernização penal, vale
destacar que no mesmo ano de 1888, no decorrer da grande exposição, o sindicato
Unión General de los Trabajadores (UGT) foi fundado, organizando diversas greves e
manifestações.
Não seria demasiado afirmar que a inauguração de La Modelo”, em 1904, se insere
perfeitamente no processo de emergência e consolidação do poder disciplinar, nos
mesmos termos descritos por Foucault em Vigiar e Punir”. Um contexto de avanço
industrial, de proliferação de mercadorias circulantes, de aumento populacional
principalmente das classes perigosas , as ameaças de sedição, etc., que vão criando o
ambiente e promovendo as condições para uma necessidade de expansão dos aparatos
de punição e de vigilância. O planejamento e a construção dos arredores da prisão
também poderiam ser vistos como expressão desse processo, que o bairro do
Eixample é quase inteiramente projetado em termos disciplinares: quadriculado, com
vias paralelas e diagonais que racionalizam a circulação e potencializam a vigilância.
76
Porém, também é importante ressaltar que a construção do bairro e da prisão sucede a
demolição da muralha que circundava a cidade, o que expressaria de uma maneira muito
concreta a passagem de um período de preeminência do poder soberano voltado para a
defesa do território para um período no qual ganha preeminência uma certa
76
Sobre o longo processo de planejamento e construção do Eixample ver: CASTELLVÍ (2002).
104
composição entre poder governamental voltado para a gestão de fluxos de bens e
populações e poder disciplinar voltado para o controle dos corpos. Foucault discute
essa passagem e essa composição de dispositivos de poder em Segurança, Território e
População (2006). Segundo o autor, a construção das instituições disciplinares
fechadas funcionava como contrapartida da abertura da cidade, que era promovida pela
emergência de uma nova arte de governar o urbano, as pessoas e as riquezas. Ou seja, os
esforços de disciplinarização dos corpos se compunham com outros de gestão
governamental dos fluxos de riquezas e populações. Desde essa perspectiva, o
Eixample, além de expressão disciplinar seria também governamentalizado, que além
da vigilância, objetivava uma mais eficiente circulação e conexão com outros territórios.
Ampliando ainda mais o foco de observação, a poucas quadras da prisão seguindo
pela Rosselló também em 1904, foi fundada a Escola Industrial, e algumas quadras
adiante, em 1906, foi inaugurado o Hospital Clinic instituições marcadamente
disciplinares que também visavam a modernização e racionalização da cidade de
Barcelona, para colocá-la no mesmo nível civilizatório das grandes capitais européias.
Portanto, uma escola, um hospital e uma prisão formam uma tríade disciplinar retilínea
no interior do bairro: uma conformação espacial tão evidente do projeto de sociedade
disciplinar-governamentalizada dificilmente se encontrará em outra cidade ocidental.
77
Não é objetivo e nem seria possível nesse trabalho reconstituir pormenorizadamente
todo o percurso e todas as alterações importantes que aplacaram a mais importante
instituição penal da Catalunha. Com os dados disponíveis, pretende-se tão somente
indicar algumas alterações que se deram no dispositivo carcerário que abarca e atravessa
essa instituição prisional nas últimas três décadas. Pelos relatos recolhidos, é possível
descrever um ambiente prisional e urbano bastante distante daquele projeto civilizatório
do começo do século XX: as práticas do tratamento penitenciário distando sobremaneira
do que foi projetado no início do funcionamento da prisão moderna; as entidades,
organizações civis e grupos profissionais que incidem no funcionamento das
instituições punitivas muito pouco se parecendo com aquelas que fomentaram a
modernização do aparato punitivo barcelonês, e a população que passa por essas
instituições punitivas se assemelhando com aquelas do começo do século na
precariedade das condições de vida.
77
Ver Imagem 4.
105
No entanto, mais do que precisar essas distâncias seculares, o que entra no foco dessa
cartografia é o registro de distâncias e alterações no dispositivo aspectos de seu jogo,
de suas redefinições estratégicas e funcionais, de suas disputas que se desenvolveram
nesses últimos trinta anos. Ou seja, a problematização alcança apenas o que pôde ser
visto, vivido e relatado pelos agentes que aturam e se (trans)formaram nesse dispositivo
e que cruzaram os seus percursos com o dessa investigação. De todo modo, como
deverá ficar evidente, entre o começo da década de 1980 e o final dos anos 2000, as
reconfigurações desse campo multifacetado de práticas, discursos, objetos e saberes que
se estrutura ao redor da prisão são de extrema relevância e oferecem importantes
elementos para a reflexão sobre a atualidade e as possibilidades do dispositivo
carcerário.
Desde já, adianto algumas (macro)demarcações que indicam os sentidos das mais
estruturantes reconfigurações do dispositivo cartografado, considerando seu jogo de
relações com outros campos da vida social. O início da década de 1980 é marcado pelo
processo de redemocratização do estado espanhol; pela crise da cidade industrial; pela
explosão do mercado de heroína; e pelas derradeiras etapas de um forte processo de
migração interna e de expansão metropolitana, através da construção de polígonos
residenciais nas cidades satélites de Barcelona. a década de 2000 é marcada por um
novo jogo político entre governo central e comunidade autônoma, no que diz respeito a
políticas criminais e administração penitenciária; pela conversão econômica da cidade
de Barcelona em território turístico e de serviços; pela redução do mercado de heroína e
correspondente diversificação do mercado das drogas; e pela intensificação da
imigração internacional e conseqüente transformação das populações residentes de
bairros periféricos, cidades satélites e prisões.
Agora, a partir desse ponto, tomo como fio condutor da exposição, as trajetórias de
personagens que vivenciaram o dispositivo e suas alterações, entendendo que seus
percursos traçam as linhas de força, os impasses, os deslocamentos, estruturações e
reestruturações que assentam as trilhas dessas (macro)demarcações acima adiantadas.
106
6.2 - Manola
No fim de 1981, Manola entra pela primeira vez na Cárcel Modelo. Seu filho mais
velho, então com 18 anos, fora preso meses antes por roubar um supermercado. 1981
havia sido um ano muito difícil para essa trabalhadora doméstica; perdera seu marido
operário num ataque do coração, e descobrira uma seringa de aplicar heroína entre as
meias de seu filho. O sofrimento que sentia ao ouvir o abrir e fechar das pesadas portas
gradeadas não era mais que uma extensão de todo o amargor experimentado no decorrer
do ano.
Manola nasceu em Tarifa, extremo sul da Andaluzia, em 1940. Seu pai era pescador e
sua mãe trabalhava numa fábrica de peixes enlatados. Todos os seus seis irmãos
trabalhavam no ramo da pescaria, ou no barco, ou no mercado ou numa das fábricas de
enlatados. Ela era a única que, desde muito cedo, trabalhava num outro segmento. Com
oito anos começou a trabalhar numa padaria, carimbando os cartões de racionamento de
alimentos, instituídos por Franco logo após vencer a Guerra Civil.
78
Por dez anos
trabalhou na mesma padaria, depois passou cinco anos trabalhando numa mesma casa
de família, até que em 1963 se casou com um vendedor de peixes e deixou de trabalhar.
Teve seus três filhos num lapso de cinco anos. A vida era dura, mas pelo emprego de
seu marido, ao menos comida nunca lhe faltava. Já seus pais e seus irmãos não tinham a
mesma sorte, as dificuldades eram imensas. Depois de sobreviver a um naufrágio, seu
pai já não queria pescar. A solução que encontraram foi a mais comum naquela época: a
migração. No final da década de 1960, sua família pouco a pouco foi se instalando
numa cidade industrial vizinha a Barcelona, Cornellà de Llobregat, onde todos muito
rapidamente encontraram empregos na indústria e no comércio. Sua mãe lhe incentivava
a também migrar para a Catalunha, fato que acabou se concretizando no ano de 1971.
Seu marido, de comerciante tornou-se operário da indústria automobilística, e Manola
passou a trabalhar numa casa de família no centro de Barcelona.
A década de 1970 foi vivida como uma década de prosperidade por toda a família, os
irmãos de Manola foram se casando e a casa onde todos viviam foi ficando mais
78
Sobre a política de racionamento do primeiro período do franquismo, ver: SÁNCHEZ (2000).
107
espaçosa. A morte de Franco em 1975, e os auspícios de democratização propagados
pelo novo Rei de Espanha, Don Juan Carlos de Borbón, e pelo ascenso do movimento
operário, estudantil, de bairro, e de anistia pareciam arejar ainda mais o ambiente na
casa de Manola.
79
Manola acompanhava o processo político de abertura pelo jornal, e
torcia para que tudo corresse bem. Para ela, de fato, as coisas iam bem até aquele
fatídico ano de 1981.
A partir de então Manola reestruturou seu cotidiano, dividindo o tempo entre trabalho,
os filhos mais novos e os vasos comunicantes que a ligavam ao filho na prisão. Com o
tempo foi se interando das diversas possibilidades de contato que o sistema lhe
proporcionava: 1 conversas de vinte minutos através de um anteparo de vidro; 2
visitas de três horas com contato corporal aos finais de semana; 3 cartas; 4
telefonemas periódicos que recebia do filho com hora marcada; 5 encaminhamento de
roupas, alimentos e objetos pessoais através dos serviços de paquetería”.
80
Esse
conjunto de eventos colocavam a sua vida e a de seu filho num mesmo plano de
temporalidade, que era, efetivamente, determinado pela instituição penitenciária. Nem
ela, nem ele tinham autonomia para agendar os telefonemas ou as visitas sem contato
físico (que podiam ocorrer durante a semana) nos horários mais adequados, quando ela
não estivesse trabalhando. Não obstante, Manola aproveitava o mais possível cada
possibilidade que os vasos comunicantes lhe proporcionavam, pois assim podia manter-
se minimamente informada da saúde e da vida do filho.
Nas primeiras visitas a La Modelo”, encontrava o seu filho muito mal, magro, com
aspecto de doente, nervoso e inquieto; não estava certa, mas intuía que ele, mesmo
preso, seguia usando heroína. Tinha a impressão de que ali estavam todos loucos; na fila
se comercializavam vagas; no pátio, ambulâncias ficavam permanentemente a postos, e
não raramente as via sair em disparada, removendo um preso assassinado, morto por
overdose, de AIDS, ou auto-lesionado
81
as mães e esposas desesperadamente acudiam
para tentar descobrir se ali estaria seu filho ou marido. No que diz respeito às práticas de
tratamento penitenciário, Manola afirma que, àquela altura, não havia nenhum tipo de
79
Sobre o processo de redemocratização da Espanha, ver: TUSSEL (1999).
80
Caberia acrescentar o vaso comunicante da visita íntima, possibilidade aberta a cônjuges e pessoas que
comprovam relação afetiva estável com o preso.
81
A prática da auto-lesão era significativa e recorrente, para um relato autobiográfico que aborda as
causas e significados dessa prática nas prisões catalãs, no começo dos anos 1980, ver: ZAMORO (2005).
108
programa específico destinado aos dependentes químicos, e que as surras e maus tratos
davam o tom do tratamento dispensado aos presos.
6.3 - (Re)estruturações
Essa história de Manola poderia ser muito bem enunciada como mais um exemplar do
unívoco processo de desestruturação familiar: a morte prematura do chefe de família, a
droga, o crime, a prisão, a violência e a ruptura dos laços familiares. Porém, seguindo o
seu percurso a partir da prisão de seu filho, é possível entrever processos de
(re)estruturação, por um lado, da vida social de Manola que destoam da imagem
catastrófica de uma família destruída ; e por outro lado, do que poderia ser visto como
a própria vida do dispositivo prisional catalão.
Desde a prisão de seu filho mais velho, Manola redobrou os cuidados e a vigilância
sobre os seus dois filhos mais novos, de modo que os laços entre eles se fortaleceram ao
invés de se debilitarem. Os dois filhos menores a apoiavam, e com eles, ela passou a
conversar de uma maneira mais aberta e franca sobre todo e qualquer tema considerado
delicado, como sexo, drogas, dinheiro, etc. Para fundamentar suas orientações sobre
questões que pouco conhecia, e para melhor lidar com a situação do filho preso, ela se
movia em busca de informações. Passou a freqüentar palestras sobre a AIDS, o crime e
a droga promovidas por diversas organizações, como a Igreja Católica, associações de
moradores, polícia, prefeitura, etc.
Através dessas palestras, Manola conheceu um grupo de mulheres que viviam a mesma
situação e tinham as mesmas angústias e necessidades; com o tempo, combinavam e
iam juntas a esses eventos e à prisão. Numa determinada palestra, foram convidadas a
participar de umas reuniões que ocorriam no Ateneo”, uma fábrica ocupada nos
arredores de Cornellà. A reunião era convocada por um grupo de egressos, professores e
militantes do movimento “Okupa
82
, e tinha o objetivo de desenvolver ações de ajuda e
assistência aos presos e egressos daquela região. De pronto, Manola se identificou com
82
Sobre o movimento “Okupa”, ver: MARTÍNEZ (2003) e COSTA (2004).
109
eles e passou a ser uma freqüentadora assídua das reuniões que ocorriam todas as terças-
feiras pela noite.
O Ateneo agregava artistas, militantes dos movimentos de moradia, e com a
consolidação do grupo de egressos, familiares de presos, alguns militantes pró-anistia e
outros abolicionistas penais, passou também a compor o campo que se estrutura ao
redor da prisão e supera os seus limites jurídico-institucionais. Por meio das reuniões
que ali tinham lugar, Manola entrou em contato com outras dimensões do dispositivo
carcerário, podendo desenvolver uma visão mais abrangente sobre o sistema prisional
espanhol, informando-se e discutindo questões prementes que se impunham em diversas
localidades. O poder de articulação daquele reduzido coletivo era bastante significativo,
e Manola provou ser peça chave de muitas das articulações. Em pouco tempo, ela
ajudou a estruturar um grupo de mães de presos (que, em separado, compartilhavam
experiências e discutiam a situação das prisões), uma empresa informal de reciclagem
(para oferecer oportunidade de trabalho para os egressos e levantar fundos para o
coletivo), manifestações em Madrid e Barcelona (para reivindicar melhorias no sistema
penitenciário), articulações com os setores mais progressistas da Igreja Católica (para
fortalecer a legitimidade do movimento), entre outras ações. Ou seja, a partir da prisão
de seu filho, Manola se inseriu num agitado ambiente político que se organizava ao
redor do problema penitenciário, que pressionava, propunha, contrapunha-se e reagia
aos deslocamentos operantes no dispositivo carcerário. Eis uma muito importante
estruturação societária que compunha, àquela altura, o campo disperso do dispositivo.
Mas, caberia perguntar: não seria essa uma experiência isolada? Seria mesmo todo um
campo político-social que se erige a partir da prisão ou se trataria de estruturações
societárias por demais dispersas e sem muita importância política? Alguns precedentes
históricos podem ajudar a aclarar essa questão e bem situar a etapa de desenvolvimento
dessas (re)estruturações do dispositivo, na primeira metade da década de 1980. Para
tanto, é possível recorrer ao artigo de Rubio (2005), intitulado La Revuelta de los
Comunes: una primera aproximación al movimiento de presos sociales durante la
transición”. Nesse artigo, o autor apresenta a trajetória da Coordinadora de Presos en
Lucha (COPEL), entre os anos de 1976 e 1979, no auge do movimento por anistia, em
tempos de redemocratização do país. A COPEL nasceu em 1977, em Carabanchel
mais emblemática prisão do período franquista, situada em Madrid e rapidamente se
110
espalhou pelas mais importantes instituições carcerárias da Espanha, entre elas,
obviamente, La Modelo barcelonesa. O movimento reivindicava a extensão das
anistias e indultos aos presos “sociais” (comuns), melhorias no tratamento penitenciário
e uma ampla reforma em todo o sistema penal. Dentro das prisões, organizavam-se por
assembléias, realizavam rebeliões, articulavam greves de fome e auto-lesões coletivas
estes últimos expedientes como táticas para colapsar os serviços médicos da unidade,
assim demonstrando sua precariedade. Do lado de fora, contavam com amplo apoio de
Coordinadoras compostas por familiares, por defensores dos direitos humanos,
intelectuais, sindicalistas, e militantes socialistas e anarquistas entre elas, é possível
citar a Asociación de Familiares y Amigos de Presos y Ex Presos (AFAPE); a
Asociación para el Estudio de los Problemas de los Presos (AEPPE), e os Comités de
Apoyo a COPEL de Madrid, Barcelona, Bilbao e Valencia.
Os anos de 1977 e 1978 foram marcados por forte mobilização popular em torno da
questão penitenciária, dentro e fora das prisões, de modo que anistias e indultos parciais
foram concedidos pelo Rei, e a reforma penitenciária ainda que bastante criticada e
insuficiente foi a primeira a ser realizada no período democrático.
83
Segundo Rubio,
no interior das prisões, o movimento da COPEL começou a se enfraquecer em 1979: 1
com o isolamento das mais eminentes lideranças num presídio de Santander; 2 com a
redução da perspectiva de indulto estendido depois da reforma; 3 com a diversificação
das práticas da COPEL em diferentes unidades, sem respeitar uma linha política clara; e
4 com a introdução do comércio de heroína no interior das prisões e com o
desenvolvimento de quadrilhas de traficantes que ou controlavam ou inviabilizavam as
assembléias nos presídios.
Do lado de fora, as associações tenderam a privilegiar outras pautas, apoiando outros
movimentos, que apresentavam maiores possibilidades de avanço. Portanto, o momento
em que o grupo de Cornellà começou a se organizar, e que Manola começou a atuar,
pode ser considerado como uma fase de refluxo e reestruturação de um campo que havia
emergido com força poucos anos antes, atravessando todo o dispositivo carcerário
espanhol.
83
Para uma reflexão sobre a reforma penitenciária, feita por Carlos García Valdés pesquisador,
idealizador e realizador da reforma enquanto Diretor Geral de Instituições Penitenciárias do governo de
transição, ver: VALDÉS (1981).
111
6.4 - Rotinizações
No final de 1986, tendo cumprido cinco anos e três meses de uma pena de seis, seu filho
foi posto em liberdade. Logo, Manola percebeu que ele seguia usando heroína, e já mais
bem informada e com um amplo leque de contatos conquistados no movimento social,
conseguiu uma internação para ele numa conceituada instituição de tratamento. Depois
de alguns meses de internamento, os médicos instruíram Manola a afastar seu filho de
Cornellà por algum tempo, para seguir tomando medicação e ficar distante da oferta da
droga. Manola então enviou seu filho para Tarifa, onde seus pais, já aposentados,
haviam voltado a viver. O que Manola não sabia é que seu filho tinha um julgamento
pendente, acusado de mplice de homicídio. Um preso fora assassinado no interior da
cela que ocupava na Cárcel Modelo; ainda que não tivessem envolvimento no caso,
pela recusa em apontar o autor do crime, todos os residentes da cela foram indiciados. O
julgamento foi marcado quando ele estava em Tarifa. Procurada pela polícia e
desinformada da acusação, Manola comunicou aos policiais que seu filho estava em
Tarifa, sob tratamento, e que logo voltaria à Catalunha. Os policiais repassaram a
informação para a polícia da Andaluzia, que o deteve ali mesmo. Depois de nove meses
preso no sul do país, em 1988, ele foi transferido de volta para “La Modelo”, e
condenado a mais sete anos de prisão.
Essa segunda prisão de seu filho foi um duro golpe na vida de Manola. Ela se sentia
culpada por ter falado a verdade aos policiais, por ter sido inocente e desinformada.
Uma questão judiciária ainda agravou a situação. Pouco tempo depois de formalizada a
acusação, o autor do crime assumiu o delito e todos os presos incluídos no processo
entraram com recursos e acabaram absolvidos. Porém, quando estava na rua, novamente
usando drogas, seu filho perdeu certos papéis e prazos para dar entrada no mesmo
recurso. Resultado: da mesma acusação de cúmplice de homicídio, ele seria o único a
cumprir pena. Manola, então, se desestruturou e se reestruturou, partindo para uma luta
judiciária cotidiana, tentando reverter aquele equívoco.
Nesse período, ela percorreu os (des)caminhos do aparato judiciário catalão, consultou
diversos advogados, fez reuniões com juízes, pressionou burocratas e arquivistas, ficou
112
conhecida nos fóruns e tribunais. Porém, uma vez condenado, já não era possível
conseguir a absolvição. Mesmo assim, Manola constantemente ia à administração
penitenciária e mesmo à prisão explicar a situação a quem quer que fosse assistentes
sociais, funcionários administrativos, diretores de segurança e até ao diretor geral da
prisão , reivindicando a aceleração da concessão dos benefícios de progressão de pena,
de modo que ele saísse o mais rápido possível. em 1994, um ano antes do
cumprimento integral da pena, ela atingiu esse objetivo. Nesse segundo período de
prisão, o filho de Manola deixara de consumir heroína, passando por tratamento a
base de fármaco opiáceo chamado metadona, administrado tanto em “La Modelo”,
como em Can Brians, onde terminou de cumprir a pena.
A essa altura, as reuniões que Manola freqüentava às terças-feiras se chamavam
Asambleas Generales de la Coordinadora Contra la Marginació de Cornellà
84
; a
empresa de reciclagem estava formalizada com o nome de Recibaix onde seu filho
chegou a trabalhar por alguns meses entre 1994 e 1995 ; o grupo de es contava
com o apoio de uma psicóloga; e existia um programa formalizado de
acompanhamento de presos da região em diferentes unidades prisionais da Catalunha.
Muito aos poucos, as rotinas iam mudando na prisão, no coletivo que freqüentava e na
vida privada de Manola. Sua mãe faleceu e ela trouxe seu pai para viver com ela; os
cuidados que aquele senhor de idade exigia fizeram com que ela deixasse a atuação na
Coordinadora. Isso no mesmo período em que seu filho era preso novamente, dessa vez
por tráfico de heroína e metadona. Então, Manola aceitava e se acostumava a ter um
filho na prisão aquela situação havia se tornado também uma rotina.
6.5 - Aurora
É exatamente no contexto de desenvolvimento de uma abordagem médica ao problema
da heroína nas ruas e prisões de Barcelona que Aurora é introduzida no sistema
penitenciário. Ela é auxiliar de enfermagem em prisões desde 1987, e atualmente
84
As mesmas que em 2008 eu pude acompanhar.
113
trabalha no setor psiquiátrico de La Modelo”. Nascida em 1965, em Barcelona, é filha
de um catalão com uma imigrante murciana. Fez estudos técnicos de secretariado e
auxiliar de enfermagem, trabalhou como secretária e fazia substituições em hospitais até
ser contratada pela administração penitenciária. Em 1986, Barcelona foi nomeada a
cidade sede das Olimpíadas de 1992, e muito provavelmente por isso, as autoridades
decidiram por intensificar e diversificar as ações contra a “epidemia” da heroína,
adotando o modelo estadunidense de tratamento a base de metadona.
85
Para que o
tratamento fosse eficiente, fazia-se necessário a sua implementação nas prisões, foco
privilegiado da “doença”, e para tanto, era necessário dispor de quadros técnicos
capazes de operar o programa.
O primeiro posto de trabalho de Aurora no sistema penitenciário foi na unidade de
Tarragona, no sul da Catalunha. Seu primeiro serviço prestado no interior da prisão foi
realizar uma sutura num preso que havia se auto-lesionado, cortando as veias do braço.
Segundo Aurora, àquela altura, a prática da auto-lesão, apesar de recorrente, era
desprovida das características de tática de protesto, que marcaram o período de atuação
da COPEL. Para ela, os presos se auto-lesionavam de maneira utilitária, por demandas
particulares, como por maiores doses de metadona, por transferência a outra unidade, ou
simplesmente para passar um período na enfermaria do presídio, onde o tratamento era
mais ameno. Além de costurar os cortes que os presos faziam em si ou nos outros, a
principal tarefa de Aurora era preparar e distribuir as doses de metadona, que, segundo
ela, eram administradas diariamente a mais de 75% da população do presídio.
Entre 1989 e 1990, novas prisões foram inauguradas na Catalunha, como a de Can
Brians onde o filho de Manola terminou de cumprir sua segunda pena e a de Quatre
Camins, em Granollers (a 30 quilômetros de Barcelona), onde Aurora foi trabalhar
logo que inaugurada a unidade. Essas novas unidades prisionais já não reproduziam a
arquitetura panóptica de La Modelo”; eram instituições modulares, que seguiam uma
nova proposta arquitetônica de vigilância, inspirada no modelo das supermax dos
Estados Unidos.
85
Para uma análise crítica dos programas de metadona nos Estados Unidos, ver: BOURGOIS (2000).
Para uma avaliação das políticas de tratamento a base de metadona em Barcelona, ver: MUNS (2003).
Para uma avaliação epidemiológica do impacto do tratamento de metadona numa prisão catalã, ver:
ARROYO et. al. (2000).
114
Essa ordem de alteração arquitetônica é considerada um importante indício de
deslocamento no dispositivo carcerário. Chantraine (2006) sustenta que o advento da
prisão modular é a expressão arquitetônica da aurora de uma era penitenciária pós-
correcionalista, pós-disciplinar quando o dispositivo carcerário passa a ser regido por
outros objetivos estratégicos.
No caso da Catalunha, as indicações de Chantraine fazem bastante sentido. Entre o final
dos anos 1980 e começo dos 1990, pelo que se percebe através dos relatos de Aurora, é
possível afirmar que um novo paradigma punitivo ou uma reconfiguração do
dispositivo carcerário se desenvolve na Catalunha. O dispositivo se volta para a
urgência da “doença epidêmica” da heroína, agregando novos operadores, reformulando
suas táticas de atuação por um viés médico-farmacológico, e reprojetando a correção
disciplinar em termos de cura pela metadona. De modo correlato, uma nova arquitetura
prisional emerge e novas prisões são construídas. De um lado, a estruturação de um
aparato médico-hospitalar de combate à heroína então vista como a grande causa da
criminalidade, e por extensão, a grande inimiga das vindouras Olimpíadas ; de outro,
uma política de expansão de vagas, com a construção de novas unidades modulares no
interior da Catalunha, que além de corporificarem uma nova proposta de vigilância e
tratamento, apresentavam a vantagem de poderem ser ampliadas segundo as
necessidades, através da agregação de novos módulos.
86
6.6 - (Des)ajustes
Se no começo dos anos 1990 o tratamento pela metadona admitia um horizonte de cura,
muito rapidamente esse horizonte se fechou. A cura da dependência química deixou de
ser objetivo do programa e outros objetivos se colocaram para justificar a manutenção
dos tratamentos principalmente o controle da epidemia de AIDS, uma vez que a
metadona é ingerida oralmente, dispensando a manipulação de seringas. A metadona
também é um derivado do ópio, que atua reduzindo a forte crise de abstinência da
86
O que de fato vai acontecer no decorrer dos anos 2000.
115
heroína fator que se supõem levar ao cometimento de crimes sem, no entanto,
apresentar os mesmos efeitos alucinógenos. Imaginava-se que substituindo a heroína
pela metadona, e progressivamente reduzindo as suas doses, seria possível livrar as
pessoas do vício. Porém, a metadona provou, de um lado, criar tanta dependência
quanto a própria heroína, e de outro, proporcionar efeitos psicoativos que podem
despertar um interesse de mercado. De tal modo, tão logo essa substância começou a ser
distribuída pelo Estado, seja nas ruas, seja no cárcere, estruturou-se um mercado
informal e ilegal de sua distribuição mercado que levou o filho de Manola de volta à
prisão.
Essa passagem é contada por Filip, professor de história de La Modelo”, que trabalhou
por uma década como enfermeiro nessa mesma instituição prisional, e que antes disso,
entre 1992 e 1994, trabalhara no Centro de Asistencia y Seguimiento para
Drogodependientes (CASD) de Barceloneta, bairro da região central de Barcelona.
Filip, nascido em 1968 e filho de pais catalães, foi recrutado para esse primeiro trabalho
ainda cursando o último ano da faculdade de enfermagem. As Olimpíadas se acercavam
e havia alta demanda de mão de obra qualificada para trabalhar nas dezenas de CASDs
que foram abertos para funcionar no período. Filip conta que os principais bairros e
cidades satélites contavam com um CASD, e que nas localidades onde não foram
construídos, um CASD móvel fazia o atendimento, distribuindo a metadona. Havia um
cadastro unificado de todos os pacientes do programa, e aqueles que ficassem um certo
período sem se apresentar passavam a constar na listagem de procurados da polícia.
Um programa de tratamento e uma nova forma de controle, portanto. Passados os jogos
olímpicos, muitos CASDs foram fechados, o CASD móvel desapareceu, mas o de
Barceloneta prosseguiu funcionando, pois era um CASD de referência, que oferecia
além da metadona, programas de tratamento diversificados, como palestras e grupos
terapêuticos. Filip gostava do trabalho, mas queria novos desafios, e por isso procurou
um posto no sistema penitenciário.
Contratado em 1994, passou a trabalhar no programa de metadona da Cárcel Modelo.
No começo, a exemplo do que fazia em Barceloneta, tentou desenvolver programas
diversificados e complementares ao tratamento, com palestras, conversas e grupos
terapêuticos; mas, as dificuldades impostas pela equipe de segurança eram imensas e
intransponíveis. Ao mesmo tempo, começava a circular nos meios médicos a nova
116
maneira de formular os objetivos do programa: ao invés da cura, a gestão de riscos e
redução de danos. Ou seja, passava-se à consideração de que um paciente sob
tratamento constante ofereceria menos riscos à sociedade e provocaria menos danos a si
próprio e aos outros tanto no que diz respeito aos riscos da criminalidade, quanto aos
riscos do HIV.
87
Para Filip, essa mudança na racionalidade do tratamento esvaziava
todo o seu interesse no trabalho, e foi para mudar de área que ele decidiu retomar os
estudos, cursando história na Universidade de Barcelona (UB).
Não obstante essa espécie de rebaixamento nos objetivos estratégicos do programa, é
importante ressaltar que a estruturação de um aparato de tratamento farmacológico da
dependência química como eixo organizador do dispositivo penitenciário, na
passagem das décadas de 1980 e 1990 envolvia a estruturação de um verdadeiro
complexo médico-hospitalar de assistência ao preso, que podia e era mobilizado para
todas as outras questões de saúde.
Aurora conta que, a partir desse período, as instituições penitenciárias disponibilizam
serviços médicos 24 horas por dia, com médicos, enfermeiras e auxiliares, que
trabalham num consultório instalado em cada pavilhão. Consultas são diariamente
realizadas, tratamentos simples são feitos e acompanhados de perto pelos profissionais.
Existem equipes de especialistas dentistas, oftalmologistas, urologistas, cardiologistas,
etc. que circulam pelas prisões, prestando atendimento. Em cada prisão ainda existe
uma enfermaria central, onde são internados presos doentes que exigem maiores
cuidados. E para aqueles casos em que nem a enfermaria da unidade é considerada um
lugar adequado para o tratamento, foi criado, em 1992, o Pavelló Hospitalari
Penitenciari de Terrassa, na coroa periférica de Barcelona, onde se disponibilizam
leitos de terapia intensiva, salas cirúrgicas, etc. Só para se ter uma idéia dos efeitos
desse processo de estruturação de um aparato médico-hospitalar no interior do sistema
penitenciário, vale destacar que a incidência de tuberculose nas prisões de Barcelona, a
partir de 1992, diminuiu em média 25,2% ao ano uma taxa de redução maior que a da
população em geral.
88
87
Para uma discussão acerca da gestão dos riscos nas políticas assistenciais, sanitárias e criminais, ver:
MITJAVILA (1999, 2002).
88
cf. SANZ (2003)
117
Ao lado desse impressionante aparato médico-hospitalar acoplado às instituições
prisionais, estruturava-se, ademais, um aparato educativo-escolar para o qual Filip
migraria depois de terminado o curso de história, e em cuja estruturação Angel Marzo
89
desempenhou um papel fundamental. Segundo Marzo, a formação educacional
oferecida nos ambientes prisionais catalães, no final dos anos 1980, reduzia-se a
programas compensatórios de alfabetização de adultos, mas no decorrer dos anos 1990
vai se reproduzindo progressivamente no interior da prisão a estrutura educacional
existente do lado de fora, com educação primária, secundária, média, profissional e até
universitária (com a implantação de cursos a distância); ainda cursos de informática,
castelhano e catalão para estrangeiros, de artes e educação física completam o quadro de
atividades educativas.
A estruturação dos serviços médicos e educativos no interior das prisões catalãs
introduziu na categoria dos servidores prisionais uma clivagem importante, entre as
equipes de segurança e de tratamento. A conflitiva dinâmica os desajustes entre os
dois coletivos é objeto das análises sociológicas de Zino (1995, 1997). Segundo esse
autor, a disputa por hegemonia entre esses diferentes grupos de funcionários expressa de
uma maneira muito concreta um dilema fundamental das instituições penitenciárias: a
prisão servirá para punir ou reabilitar? Em torno dessa questão central do dispositivo
carcerário todo um campo de disputa se arma, uma disputa discursiva pela “verdadeira”
função da prisão, mas também uma disputa prática e cotidiana, que tem a ver com quais
procedimentos serão tomados e quais demandas serão atendidas em situações muito
concretas. Zino sustenta que, não obstante os setores mais ligados à segurança aqueles
que privilegiam mais as funções punitivas da prisão sejam, na maior parte das vezes,
hegemônicos; em determinadas conjunturas e em conseqüência de determinados
acontecimentos, essa relação pode se inverter. Em “Coyunturas de cambio de una
cultura institucional(1997), o autor analisa uma dessas situações, que teve lugar em
La Modelo no final dos anos 1980. Depois de uma greve de internos que
reivindicavam o mesmo tratamento para presos sociais e aqueles pertencentes a
organizações políticas armadas
90
a represália violenta do setor de vigilância
desencadeou um crescente de conflitos entre presos e funcionários, dos quais a equipe
89
Professor e pesquisador especialista em educação de jovens e adultos, entrevistado em 2008, ver
Capítulo 4 dessa dissertação.
90
Sobre a atuação de grupos políticos armados no período democrático, ver: ROCA (1994).
118
de tratamento ficava relativamente alheia. A administração penitenciária destituiu os
principais diretores da instituição, considerando-os inábeis para solver a questão. A
nova junta diretiva nomeada, para iniciar sua gestão, quis adotar uma postura de maior
diálogo com os presos, e para tanto, apoiou-se exatamente nos funcionários do setor de
tratamento que não haviam se envolvido diretamente nos conflitos. Dessa forma, a
equipe de tratamento se fortaleceu frente ao pessoal da vigilância.
De todo modo, pelo que relata Filip, essa inversão nas relações de poder no corpo de
funcionários não se manteve por muito tempo. Como já foi apontado, quando ele
começou a trabalhar no programa de metadona da prisão buscando desenvolver
projetos terapêuticos análogos aos que vira no CASD de Barceloneta era a equipe de
vigilância que se opunha, por questão de segurança, à realização de reuniões, aos
horários das palestras, às movimentações de presos, etc. Mesmo quando Filip migrou
para o aparato educativo-escolar, as limitações impostas pelos imperativos da segurança
dificultavam a realização de seus projetos de ressocialização. Depois de alguns anos
como professor de história de ensino secundário, ele assumiu a direção do departamento
de ensino superior à distância de La Modelo”. Muito empolgado num primeiro
momento, foi incentivando os presos aos estudos universitários, conseguiu uma sala
com computadores para a realização de trabalhos, aumentou a biblioteca, etc. Porém, foi
impedida, por alegadas questões de segurança, a conexão dos computadores à internet
para que os presos realizassem pesquisas. Filip, então, travou uma luta com a equipe de
vigilância, estudou as possibilidades de acesso seletivo e controlado de conteúdos da
rede, fez um projeto detalhado que parecia provar a viabilidade desse imprescindível
recurso à pesquisa universitária, levou-o aos mais altos escalões da administração da
unidade. No final, a resposta negativa veio acompanhada de ponderações sobre como,
numa instituição punitiva como a prisão, o acesso à internet representaria demasiada
regalia. Desiludido, Filip abandonou o ensino superior e retornou para o secundário.
119
6.7 - (I)migrantes
Tanto Aurora e Filip, como Zino e Marzo, são unânimes em apontar que a população
preferencialmente encarcerada nas prisões catalãs, durante a década de 1980 e a
primeira metade dos anos 1990, dividia-se em dois grupos: os payose os gitanos”.
Payo” é a palavra caló
91
utilizada para falar do outro, do não-cigano, também significa
aldeão, camponês, ou seja, assentado na terra. “Gitano
92
é o cigano espanhol, a palavra
designa um grupo étnico, com uma história, uma língua e uma identidade, geralmente
conhecido pelo nomadismo apesar de amplos setores desse coletivo não adotarem
essa prática. Os ciganos são a minoria étnica mais numerosa da Europa, onde
sofreram uma série de perseguições, desde 1499, quando uma ordem dos Reis Católicos
determinou a sua expulsão do território espanhol, até a Alemanha nazista, onde
coletivos inteiros foram exterminados, ao lado dos judeus, nas câmaras de gás. Se
escrever sobre La Modelo remete ao desenvolvimento do poder disciplinar na
Espanha; escrever sobre a questão gitana remete ao desenvolvimento do poder
soberano na Europa. Por isso, seria impossível reconstituir aqui o percurso histórico da
marginalização do povo gitano naquele país, bem como fazer uma análise
aprofundada de suas relações sociais internas e com outros coletivos.
Assim, limito-me a pontuar nessa cartografia que, desde a década de 1950, os grupos
gitanosem Barcelona muitos provenientes do sul do país juntamente com outros
migrantes constituíam foco privilegiado de incidência do dispositivo carcerário. A
eles era associado o estigma da criminalidade, eram especialmente vigiados, viviam em
inúmeros bairros marginalizados construídos nas colinas ao redor da cidade, na zona
marítima e nos interstícios do Eixample, em casas precariamente edificadas, conhecidas
como barracasou chabolas. Era nesses espaços degradados que a epidemia da
heroína proliferava.
93
Os gitanosforam também um contingente muito significativo
nos polígonos de moradia construídos nas cidades satélites de Barcelona, entre os anos
91
Idioma dos ciganos.
92
Para maiores informações sobre os ciganos na Espanha, ver: GIMÉNEZ (1994).
93
Para uma visualização dessa realidade, ver o filme documentário intitulado “Can Tunis”, que, no
começo dos anos 2000, acompanha o desaparecimento de um bairro “gitano”, derradeiro território de
tráfico e consumo de heroína na zona portuária de Barcelona: TOLEDO e MORANDI (2007).
120
1960 e 1970
94
, como Sant Ildefons, em Cornellà; Sant Roc, em Badalona e La Mina, em
Sant Adrià del Besòs polígonos que, na tentativa de elimiar o chabolismo”, ficaram
conhecidos como expoentes de barraquismo vertical”, tanto pela composição
populacional, pela precariedade da moradia, do acesso e dos serviços disponibilizados,
como pela forte incidência do problema da droga. Seguramente, a sobre-
representatividade da população gitana nas prisões catalãs se relacionava com essa
sobre-representatividade nos territórios de marginalização social.
Uma clivagem secundária na população carcerária-marginalizada de Barcelona dos anos
1980 e começo dos 1990 e que em grande medida se comunica com a primeira foi
destacada por Manola: a divisão entre charnegos” e “catalanes”. “Charnego é a
designação depreciativa para os imigrantes sulistas (como ela e seu filho), que
compartilhavam uma imagem social híbrida ou indefinida, meio payo”, meio gitano”,
nem totalmente uma coisa, nem outra. Catalães, por sua vez, eram considerados os que
podiam manejar bem o idioma local. Tem-se assim um sistema relativamente simples de
segmentação das populações sobre as quais havia maior incidência do dispositivo
carcerário, até meados dos anos 1990: uma divisão primária entre “payos” e “gitanos”; e
entre os “payos”, uma divisão secundária entre “catalanese charnegos”.
Em cada apreciação valorativa, uma espécie de avaliação de grau de pertencimento,
feita por um cálculo do nomadismo potencial ou do passivo-migratório que uma ou
outra identidade encerra. O gitano, secular e ameaçador nômade “por natureza”, a ser
sempre e exaustivamente fixado, ocupando o centro do dispositivo; ao seu lado, o
charnego”, migrante espanhol sulista, suspeito porque desenraizado; e na periferia do
dispositivo, o catalão que circulando por enclaves gitanose charnegosencontra a
heroína e, por sua causa, perde-se nas sendas do crime. Nestes termos, é possível
perceber uma linha de continuidade subjazendo entre esse dispositivo carcerário
reformulado por uma abordagem farmacológica da criminalidade, e aquele dispositivo
disciplinar emergente nos séculos XVIII e XIX, que como demonstrou Foucault (1996)
já incluía entre seus objetivos estratégicos, a fixação de populações flutuantes.
94
Para um panorama da evolução recente do problema urbano de Barcelona, ver: DELGADO (2007).
Sobre o processo de construção de polígonos de moradia popular na coroa periférica de Barcelona, ver:
COSTA et. al. (2003); e para situar esse processo numa perspectiva histórica mais ampla, ver: TATJER
(2005).
121
Mas se nesse período os jogos de pertencimento ocupavam uma posição estratégica
no dispositivo carcerário, a partir do final da década de 1990, com a intensificação da
imigração internacional na Espanha, o problema das populações flutuantes se desdobra
numa nova escala.
No decorrer da cada de 1990, um conjunto complexo de processos sociais, políticos e
econômicos promoveu a intensificação de fluxos migratórios internacionais,
reconfigurando as fronteiras e mercados nacionais, e conformando o que ficou
conhecido como “globalização”. A emergência da imigração internacional como um
problema na Europa motivou a adoção de medidas restritivas, de controle e repressão à
imigração clandestina, principalmente naqueles países em que ela se fazia mais
presente, como França, Alemanha e Áustria. Na medida em que foi se tornando cada
vez mais difícil para imigrantes estrangeiros aportarem diretamente nos países mais
ricos do norte do continente, vias alternativas foram sendo criadas, muitas delas
passando pela Espanha. A proximidade territorial da África, a existência de territórios
espanhóis no Marrocos as cidades de Celta e Melilla e na costa do continente
africano as Ilhas Canárias transformaram a Espanha em porta de entrada do
continente.
95
Raciocínio análogo se aplica na questão da permanência: conforme ficava
mais difícil permanecer e trabalhar nos países do norte europeu, o sul principalmente
Espanha e Itália, que experimentavam um ciclo de crescimento econômico tornava-se
mais atrativo.
Só na segunda metade da década de 1990, a população imigrante estrangeira na Espanha
duplicou. Seria possível afirmar que o aumento da população imigrante estrangeira
(legal e clandestina), na Espanha, arrebatou o dispositivo carcerário, impondo todo um
conjunto de reestruturações táticas e estratégicas, bem como importantes deslocamentos
no campo de disputas que se estrutura a partir da prisão. Tal arrebatamento vai se
tornando mais e mais evidente no decorrer dos anos 2000, quando a população
imigrante estrangeira não pára de crescer dentro e fora das prisões catalãs.
Considerando que Barcelona era uma das cinco províncias que concentravam 60% da
população estrangeira do país, é possível vislumbrar o impacto que essa importante
95
Para um panorama abrangente sobre a imigração internacional na Espanha, ver: DÍAZ, MIRANDA e
ENRÍQUEZ (2001).
122
alteração demográfica teve no dispositivo carcerário que operava naquela localidade.
96
O relato da experiência profissional de Aurora, que em 1994 começou a trabalhar em
La Modelo”, é um testemunho desse arrebatamento.
No decorrer do final da década de 1990, ela testemunhou uma significativa redução de
volume de trabalho no programa de metadona. Os dependentes da heroína ou morriam
ou eram soltos, e um novo perfil de preso começava a surgir, com a chegada cada vez
maior de estrangeiros, num primeiro momento, principalmente magrebinos e latino-
americanos. Aqueles anos 1990 eram de expressivo crescimento econômico, e de
explosão do mercado imobiliário barcelonês efeito direto do sucesso das Olimpíadas
que atraía uma expressiva força de trabalho não qualificada estrangeira. Aurora conta
que com o passar do tempo, nos anos 2000, o grupo de estrangeiros da prisão foi
crescendo e se diversificando: chegaram os africanos subsaarianos; os europeus do
leste; os paquistaneses, indianos, filipinos, etc. A globalização chega a La Modelo (e
também aos bairros marginalizados da região metropolitana de Barcelona) com um
efeito imediato: o jogo de pertencimentos que organiza a incidência diferencial do
dispositivo carcerário se desdobra e se complexifica. A população prisional passa a
diferenciar-se ora entre muçulmanos e cristãos; ora entre falantes e o falantes do
espanhol; ora entre europeus comunitários e não comunitários, etc.
Nesse novo contexto, o tratamento penitenciário focado numa abordagem médica-
hospitalar do criminoso torna-se residual. A urgência da criminalidade associada à
“epidemia” de heroína lugar ao problema da criminalidade associada à imigração
clandestina, de tal modo que as práticas punitivas e de controle que conformam o
dispositivo carcerário são amplamente reconfiguradas. Aurora, por exemplo, para
seguir cumprindo suas funções de toda a vida está lotada, desde 2004, no sub-setor de
psiquiatria da enfermaria da prisão, único ponto em que permanece a mesma dinâmica
de tratamento que marcou o começo de sua experiência profissional. Filip, como foi
indicado, migrou para o setor de educação, e hoje atua como professor de história do
ensino secundário, além de dar aulas de normalização lingüística, ensinando espanhol e
catalão para estrangeiros.
96
Mais informações sobre a imigração e a população carcerária estrangeira na Catalunha estão no
Capítulo 2 dessa dissertação.
123
De fato, segundo Filip, o setor educativo da equipe de tratamento da prisão vai
ganhando cada vez maior centralidade na operacionalização das tarefas mais básicas do
cotidiano prisional, como comunicar uma transferência, requisitar uma audiência,
explicar a acusação, etc. Ou seja, não necessariamente as funções ressocializadoras da
prisão passam a prevalecer sobre sua quase sempre hegemônica função punitiva, mas
sim o aparato educativo-escolar que é reinvestido de função estratégica: viabilizar a
mínima comunicação do setor de vigilância com grande parcela dos presos. De todo
modo, a rígida estrutura escolar se mostra insuficiente para dar conta das novas
demandas que vão emergindo com a transformação da população carcerária.
6.8 - Novas peças
Frente às novas urgências, novos aparatos se estruturam no interior do dispositivo. Um
muito importante deles poderia ser chamado de voluntário-assistencial. Basta lembrar o
bem sucedido projeto voluntário de Raquel Sala em La Modelo dinamizando as
redes de comunicação por onde se divulgariam as atividades esportivas do presídio
97
,
que lhe garantiu um posto de trabalho na administração penitenciária, para dimensionar
a importância que vem sendo dada a esse tipo de atividade. Atualmente, a SSPRJJ
admite projetos de voluntários nas áreas de “assistência jurídica; animação sócio-
cultural; promoção da saúde; formação; esportiva; acompanhamento educativo;
acompanhamento na comunidade
98
, tanto para presos, egressos, como também junto
àqueles que estão cumprindo medidas penais alternativas. Desde 2001, realizam-se
periodicamente Jornadas de Voluntariado Penitenciário, nas quais as entidades e
voluntários trocam experiências, discutem os projetos e se qualificam. Desde 2004,
também são oferecidos regularmente pela secretaria cursos de formação do voluntariado
penitenciário, destinado àqueles que desenvolvem projetos ou que tem interesse em
fazê-lo. Nas últimas Jornadas, em 2009, foi divulgada a existência de 27 entidades
97
Ver Capítulo 4 dessa dissertação.
98
Texto encontrado no site da SSPRJJ, disponível na internet via:
http://www20.gencat.cat/portal/site/Justicia/menuitem.51bb51de98b3c1b6bd6b6410b0c0e1a0/?vgnextoid
=2b94f31f87203110VgnVCM1000008d0c1e0aRCRD&vgnextchannel=2b94f31f87203110VgnVCM100
0008d0c1e0aRCRD&vgnextfmt=default (Consulta feita em maio de 2010)
124
cadastradas realizando atividades junto ao sistema penal, envolvendo um total de 366
voluntários (TAULA DE PARTICIPACIÓ SOCIAL, 2009, p.2) número que supera os 258
funcionários que, no mesmo ano, trabalhavam no aparato médico-hospitalar (SSPRJJ,
2010).
Três marcações devem ser feitas a respeito desse novo aparato que se estrutura acoplado
ao sistema penitenciário: 1 ele constitui um importante campo articulador de agentes,
práticas e discursos que circulam tanto dentro, quanto fora do sistema penitenciário; 2
pela alta rotatividade dos voluntários problema reconhecido e debatido nas jornadas
99
o número de pessoas que acaba por envolver com as questões prisionais supera em
muito o contingente atual de voluntários; e 3 a Coordinadora Contra la Margináció
de Cornellà, desde que formalizou suas atividades, é uma das entidades que compõem e
estruturam esse campo.
O desenvolvimento e a ativação desse novo campo societário junto às instituições
prisionais complexifica a imagem do “Estado Penal” segregacionista e anulador ,
que, segundo alguns autores
100
, vem caracterizando o contexto punitivo espanhol nos
últimos anos. Não se pretende com tal afirmação refutar a existência desse “Estado
Penal” desde Wacquant (1998, 2001, 2007), em toda parte visto como a grande causa
do processo de massificação do encarceramento mas, tão somente, pretende-se
apontar para o fato de que, numa cartografia descritiva do dispositivo carcerário
contemporâneo, é possível identificar a emergência de aparatos que não
necessariamente seguem uma mesma racionalidade punitiva. São aparatos como o
voluntário-assistencial, o médico-hospitalar e o educativo-escolar que dão a medida da
heterogeneidade de agentes, práticas e discursos que conforma o dispositivo. A
afirmação da prevalência de uma estratégia dominante segregacionista e anuladora no
interior do dispositivo, ganha maior relevância ainda se articulada, de um lado, a uma
problematização acerca de outras possibilidades estratégicas que se apresentam num
dado momento; e de outro, a uma análise das formas pelas quais a estratégia dominante
99
cf. TAULA DE PARTICIPACIÓ SOCIAL (2009).
100
Toda uma bibliografia vem se desenvolvendo para tratar criticamente do endurecimento penal
espanhol, do aumento das taxas de encarceramento, do aumento da população prisional imigrante, e para
desfazer e denunciar um discurso que associa o aumento da criminalidade à imigração. Seguindo mais ou
menos de perto as sugestões acerca do “Estado Penal” e da gestão penal da miséria, feitas por Wacquant,
os autores denunciam o que consideram uma gestão penal da imigração, que se fundamenta na repressão e
na negação de direitos. Referências imprescindíveis dessa reflexão são: OSPDH (2005), NETO (2009),
MASÓ (2002), CALAVITA (2003) e WAGMAM (2002, 2003).
125
coloniza, reinveste, (i)mobiliza ou utiliza as forças que se articulam sob uma estratégia
subsidiária.
6.9 - (I)mobilizações
Por volta de 2002, o pai de Manola faleceu, seu filho seguia preso, e ela decidiu retomar
as atividades junto à Coordinadora. Fez os devidos contatos, e descobriu que o grupo
de mães e as assembléias gerais de todas as terças-feiras seguiam acontecendo, agora na
nova sede da instituição, no piso térreo de um bloco de moradia, em Sant Ildefons. Ela
voltava num período crítico e determinante da evolução da entidade: um conflito estava
deflagrado entre os jovens militantes que, no começo dos anos 1980 começaram a
articular as reuniões, e o setor de senhores e senhoras religiosos que se aproximou
posteriormente, em grande parte devido à própria articulação de Manola. Dois projetos
de organização da sociedade civil estavam em disputa, e o retorno de Manola só
conseguiu adiar a ruptura.
O leque de parcerias e comprometimentos da entidade com diferentes instituições
públicas e privadas havia se ampliado muito desde que Manola deixara de freqüentar as
reuniões. Recibaix, por exemplo, contava com uma equipe de gestores profissionais
financiado pela prefeitura de Cornellà; havia estabelecido um contrato com a secretaria
responsável pela limpeza urbana, recebendo caminhões e balanças; uma loja de artigos
restaurados havia sido aberta e um educador social havia sido contratado para trabalhar
junto aos egressos, ambos através de parcerias com fundações empresariais e bancárias.
Para alguns, avanços como esses representavam a profissionalização e um salto de
eficiência para os projetos da entidade um ganho de capacidade de mobilização; para
outros, tais parcerias representavam um refreamento na capacidade de denúncia e
reivindicação do coletivo imobilização. O conflito não se dava somente no nível da
concepção de entidade, tinha implicações muito concretas. Outro exemplo: numa visita
a presos de Cornellà em Can Brians, os agentes da entidade identificavam maus tratos;
um setor da entidade defendia que se fizesse uma manifestação na porta da prisão ou da
SSPRJJ, denunciando os fatos; outro setor defendia que se marcasse uma reunião com
126
os gestores da prisão e da secretaria para apurar os acontecimentos e propor soluções,
ponderando que uma manifestação pública poderia minar a credibilidade da
organização, comprometendo os contratos e parcerias possíveis e existentes.
O mesmo conflito eclodia nas mais variadas situações. Manola buscava mediar
diplomaticamente as crises, mas a polarização no interior da Coordinadora parecia-lhe
irreversível. O conflito não repercutiu numa ruptura total da entidade em duas, mas o
bloco religioso foi impondo sua hegemonia. Entre 2002 e 2005, progressivamente os
integrantes mais afeitos a uma postura de confrontação política foram abandonando
individualmente a atuação, até o ponto de que restasse somente Manola daqueles
tempos iniciais da organização.
Assim é que Manola descreve a transição da Coordinadora de um perfil originário
político-reivindicativo para o atual perfil voluntário-assistencial, que coloca a entidade
em outra relação com o restante do dispositivo. Em 2006, quando se consolidava a nova
situação da entidade, Manola foi indicada para ocupar a posição de presidente da
organização, uma vez que ela era a única que vivenciara os primórdios do coletivo. Ela
ainda ocupava essa posição quando freqüentei as assembléias e a entrevistei.
Desempenhava um papel de figura pública, compunha a mesa dos diversos debates e
dava entrevistas para jornalistas. Porém, como podia observar e como ela mesma me
confirmou, sua origem, sua história e a posição de destaque que ocupava serviam mais
como uma espécie de “avalista” para legitimar publicamente a entidade, do que lhe
garantia efetivo poder de direção. A direção política da organização ficava a cargo do
secretário geral, padre e histórico apoiador dos movimentos populares de Cornellà.
É importante fazer essa marcação: o grupo religioso que hegemonizou a Coordinadora,
não o fez como um plano maquiavélico de desmobilização, mas antes pela convicção de
que novas práticas se fazem necessárias em tempos de democracia consolidada. Conheci
muitos dos senhores e senhoras que compunham esse campo e todos eles apresentavam
trajetórias de luta anti-franquista, de apoio aos movimentos populares de moradia e
operário, e que atualmente tinham um forte comprometimento com “as causas dos
presos. Manola, sabendo disso, não os responsabiliza por um possível fracasso da
entidade; faz uma avaliação de que a entidade que conheceu está para se acabar, mas
isso a despeito do comprometimento político de seus atuais gestores. Segundo ela, não
foi a Coordinadora que se descolou de suas bases sociais por uma questão ideológica,
127
ou uma traição de princípios originários, foram as bases que se transformaram, por
questões tão concretas quanto o aumento da imigração e a transformação da população
residente em bairros periféricos de Cornellà, como San Ildefons, que de gitana e
charnegapassa a ser, majoritariamente, marroquina, paquistanesa, latino-americana,
etc.
Uma semelhante análise de conjuntura, mas com maiores detalhes informativos, é feita
por Xavi, que foi secretário administrativo da Coordinadora de 2006 até 2008. Xavi,
filho de pai catalão e mãe andaluza, nasceu em 1979, em Cornellà. Desenvolveu
atividades de militância em grupos anarquistas desde a juventude, cursava história e
estava organizando um movimento de apoio à regularização de um grupo de imigrantes
em Cornellà, quando foi convidado pelo padre e secretário geral a participar das
atividades da Coordinadora. O padre lhe disse que era preciso gente jovem e
comprometida participando da entidade, naquele exato momento em que os mais jovens
e combativos iam deixando a organização.
101
Xavi aceitou o desafio, e por essas vias
que entrou em contato com o mundo prisional. Começou realizando visitas a presos do
bairro em diferentes unidades, e logo foi convidado a trabalhar na secretaria da
organização. Como secretário, Xavi tinha acesso aos pormenores das dificuldades
enfrentadas pela entidade para se viabilizar no novo contexto do bairro, bem como das
novas estratégias que vinham sendo desenvolvidas para contornar essas dificuldades.
Segundo ele, familiares de imigrantes presos até chegavam a procurar a entidade em
busca de auxílio, porém uma série de questões se interpunham à consolidação de uma
relação de colaboração efetiva. Em primeiro lugar, os advogados que prestavam serviço
para a entidade eram financiados pela prefeitura de Cornellà, o que exigia que os
assistidos tivessem condições de comprovar documentalmente uma relação estável com
a cidade satélite requisito dificilmente cumprido pelos imigrantes clandestinos. Em
segundo lugar, muitos dos que cumpriam esse requisito chegavam à entidade
encaminhados pela própria SSPRJJ, de tal modo que viam na organização uma
prestadora de serviços ligada ao Estado, e não uma associação comunitária. Quando
descobriam que uma das contrapartidas da assistência jurídica era a participação em
assembléias e outras atividades, muitos dos demandantes desistiam. Em terceiro lugar,
101
O conflito entre membros fundadores e o grupo religioso que se somou posteriormente à organização
também pode ser visto como um conflito de gerações, sendo os fundadores mais jovens do que o grupo
ligado à Igreja Católica.
128
Xavi identificava certo preconceito dos associados com relação aos imigrantes, não
exatamente pela sua origem, mas antes pela natureza de seus delitos. Muitos daqueles
pais e mães que participavam da entidade por anos a fio tiveram seus filhos presos nos
anos 1980 e 1990 em decorrência de crimes contra a propriedade relacionados à
dependência química; os presos imigrantes dos anos 2000, majoritariamente, eram
detidos por delitos relacionados à operacionalização do tráfico de drogas. Prestar
assistência a um traficante era como ajudar aquele responsável indireto pela prisão de
um ente querido. Xavi afirma que esse conflito de fundo nunca era formulado
explicitamente, mas que podia percebê-lo em diferentes situações.
Tais elementos faziam com que, de fato, o campo de atividade da Coordinadora
relacionado à prisão se restringisse, nos anos 2000, ao mundo dos migrantes sulistas
espanhóis, isto é, à população mais antiga da cidade. Manola agrega um outro elemento
para ilustrar essa desconexão da entidade com a realidade atual da localidade: no grupo
de mães, boa parte das mulheres que participam tiveram seus filhos mortos, ou
como ela estão habituadas a tê-los na prisão, ou seja, não houve renovação, não
obstante o continuado aumento do encarceramento no bairro.
Para reverter essa difícil situação, a Coordinadora vem investindo na diversificação de
suas atividades. É nesse sentido que foi desenvolvido o projeto de qualificação
profissional para jovens com trajetória de fracasso escolar, intitulado La Carena. Esse é
o único projeto da organização em que o público alvo é majoritariamente de origem
estrangeira. O discurso de justificação do projeto, sem descolá-lo do conjunto de
atividades promovidos pela entidade, é o da prevenção do delito. O ensinamento de
ofícios ligados à construção civil e informática para jovens de origem imigrante, que
não se adaptam ao ambiente escolar, é investido de uma racionalidade preventiva,
informada pela identificação de grupos de risco e pela projeção de uma inserção social
adequada, segundo o horizonte do “possível”. Para seguir promovendo atividades como
essa, ampliando o La Carena e desenvolvendo outros projetos análogos, a junta diretiva
da Coordinadora contra la Marginació de Cornellà estuda a mudança de nome da
entidade para algo mais positivo, mais propositivo (mais preventivo), que ao invés de
remeter aos conflitos dos anos 1970, 1980, remeta a um futuro inclusivo e pacífico.
Manola e Xavi consideram válidas essas práticas e reflexões, porém as vêem destoar
sobremaneira da história e perfil da instituição. Por essas e outras questões, Xavi ao se
129
formar em história pela UB deixou o trabalho na secretaria da entidade e passou a
lecionar; e que Manola prevê, em breve, o fim da Coordinadora, pelo menos tal como
ela a conhecia.
6.10 - (In)conclusões
Essa cartografia do dispositivo carcerário que opera na Catalunha é inevitavelmente
parcial e inconclusa, porque feita seguindo um roteiro de busca por um bairro
significativamente afetado pelo aumento do encarceramento, e composta com outros
roteiros de diversos agentes que se conformam e atuam no interior do dispositivo
carcerário, tanto dentro, quanto fora das unidades prisionais. Ainda que, por um lado,
não tenha podido incluir alguns dos percursos trilhados no decorrer do trabalho de
campo, e por outro, não tenha podido ao menos identificar outras estruturações
societárias, campos de problematização e processos de transformação que são tão ou
mais importantes do que esses aqui esboçados, a cartografia que se apresentou tem o
potencial de demarcar algumas importantes regiões e passagens do dispositivo
carcerário catalão, e de demonstrar o quanto, em torno da prisão, gravitam e se
polarizam agentes, práticas e discursos, constituindo, efetivamente, um expansivo e
complexo campo que supera em muito os limites físicos da instituição prisional.
130
7 Uma cartografia do dispositivo carcerário paulista
O capítulo anterior assume um caráter fundamentalmente prospectivo na medida em que
trata da exploração de um campo desconhecido, cujos mais variados aspectos da
realidade carcerária e do mundo que se organiza a sua volta, são absolutamente novos
para o pesquisador. Impossível referir-se à realidade brasileira, e principalmente
paulista, nos mesmos termos. Ser nascido e criado no estado de São Paulo impõe um
esforço de discernimento crítico e reflexivo para bem situar os achados de campo e as
informações secundárias na elaboração de uma cartografia do dispositivo carcerário
paulista. Se na Catalunha, o esboçar percursos, pontuar marcos e referências que
compõem a cartografia se dava sobre um mapa praticamente em branco; em São Paulo,
pelo contrário, o esforço é de destacar os percursos, marcos e referências em um mapa
que é sobre-codificado, repleto de indicações cruzadas, de trilhas repisadas e
sobrepostas, que foi, em suma, construído não no decorrer da pesquisa, mas em toda
uma vida.
o obstante uma maior quantidade e melhor qualidade de referências externas ao
percurso, que puderam ser mobilizadas na sua orientação, obstáculos, desvios e atalhos
análogos aos encontrados na Espanha, também aqui se apresentaram. Também em São
Paulo, a busca dos efeitos societários territorializados do aumento do encarceramento se
desdobrou numa deambulação de meses pelas sendas do dispositivo carcerário,
resultando num parcial, provisório e inconcluso exercício cartográfico.
7.1 - Marco Zero
O ponto de partida dessa cartografia se situa na zona norte da cidade de São Paulo, no
que ficou conhecido como “Complexo do Carandiru”, um conglomerado de instituições
prisionais, que, por décadas, abrigou duas das mais importantes prisões do estado: a
Penitenciária do Estado e a Casa de Detenção. Na dinâmica de lenta estruturação desse
131
complexo se encontra uma chave para a compreensão de todo o desenvolvimento
ulterior do dispositivo carcerário paulista.
102
Desde muito antes da construção do complexo, ainda no período colonial, o sistema
penitenciário paulista era um conjunto de cadeias espalhadas por todo o território,
construídas sob sedes administrativas municipais, portanto, nos centros das principais
vilas e cidades. Na cidade de São Paulo, esse edifício que misturava funções
administrativas e repressivas se situava no Largo de São Gonçalo (atual Praça João
Mendes).
Durante o período imperial, ensaiaram-se os primeiros esforços de modernização da
punição, especializando um edifício para esse fim específico. Foi inaugurado então, em
1852, na Avenida Tiradentes, a Casa de Correção de São Paulo. Até o final do século
XIX, o foco do aparato punitivo eram os escravos fugidos, ou aqueles para a prisão
enviados pelos seus senhores, como castigo. Somavam-se a eles, crianças, mulheres,
vadios, loucos e criminosos de pequena monta. A confusão, a precariedade das
instalações, a proliferação dos vícios e doenças, os altos índices de mortalidade que
caracterizavam as antigas prisões coloniais, rapidamente se estenderam para a nova
Casa de Correção, fazendo dela também um alvo recorrente de críticas que
ressaltavam a sua incapacidade de fazer valer o código penal imperial de 1830, o qual já
incluía intenções regeneradoras em seus postulados da pena de prisão.
A permanência das críticas e intenções reformadoras frente a um também permanente
estado calamitoso de cumprimento de pena deu a tônica da estruturação do aparato
penitenciário em São Paulo. Rapidamente, a Casa de Correção ficou superlotada,
degradada, infectada, aviltante, e a necessidade de uma nova instituição se impôs.
Então, adaptaram, em 1876, o casarão em que vivia o diretor da unidade para funcionar
como cadeia. E o ciclo recomeçava.
No período republicano, as críticas e debates sobre a precariedade do sistema punitivo
paulista se intensificaram, e a necessidade de uma nova penitenciária, moderna e
adequada, novamente se impôs. Depois de um lento processo de elaboração e
construção, em 1920 foi inaugurado o marco inicial do Complexo do Carandiru, a
Penitenciária do Estado na ocasião, a Casa de Correção se tornou de detenção.
102
As informações acerca da história do sistema prisional paulista estão em: SALLA (1999, 2000).
132
A moderna arquitetura da nova penitenciária, em formato de espinha de peixe
inspirada na prisão francesa de Fresnes e um regime de cumprimento de pena bastante
avançado inspirado em prisões irlandesas a colocavam na vanguarda da punição
mundial. O contexto social em que emergia, e suas características programáticas
sintetizadas na inscrição “Instituto de Regeneração” sobre o portão principal entram
em ressonância com o processo de emergência do poder disciplinar na França dos
séculos XVIII e XIX, que foi explorado por Foucault (1996).
Nos primeiros anos do século XX, São Paulo também se industrializava e crescia
vertiginosamente, tendo sua população duplicado entre 1900 e 1920. A chegada de
escravos libertos do interior e a crescente imigração internacional multiplicavam as
“classes perigosas” circulantes na cidade. O aumento da produção e circulação de
riquezas entre, de um lado, ladrões, vadios, mendigos, e de outro, sindicalistas,
socialistas e anarquistas, organizadores de greves e protestos, criavam as condições
necessárias para a busca de expansão e racionalização do aparato punitivo.
O caráter de instituição disciplinar modelar, no entanto, resistiu por pouco tempo à
superlotação, à mistura excessiva, às doenças e à alta mortalidade, de tal modo que uma
série de ajustes foram progressivamente necessários. A exemplo do que havia
passado na Casa de Correção, em 1941, a casa do diretor da Penitenciária do Estado foi
adaptada para receber o “Presídio de Mulheres”.
103
Mais adiante, em 1956, no intuito de
(novamente) separar presos condenados de preventivos, foi inaugurado, ao lado da
Penitenciária do Estado, o primeiro pavilhão da Casa de Detenção de São Paulo. No
decorrer dos anos 1960 e 1970, a Casa de Detenção foi seguidamente ampliada e
reformulada, até chegar a abrigar mais de 6.000 presos 40% deles condenados em
sete pavilhões, a meados dos anos 1970.
Ou seja, a estruturação do Complexo do Carandiru se num secular jogo entre
pressões da superlotação e da profunda precariedade institucional, com medidas
emergenciais, e esforços de criação de instituições modelares. O Complexo do
Carandiru pode ser lido como um documento desse reiterado esforço de modernização,
rapidamente sucedido pelo atestado de seu fracasso, que leva a criação de novas
instituições, umas improvisadas, outras, novamente pensadas como modelares.
103
Para uma história do Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo, ver: ARTUR (2009).
133
Considerando que esse processo de estruturação se desenvolve em paralelo com a
existência e expansão de instituições prisionais locais, cadeias e xadrezes de delegacias
espalhados pelo território estadual e ainda mais aviltantes que as unidades que
compõem o Complexo descendentes diretos das casas administrativo-repressivas do
período colonial Salla (2000) caracteriza a evolução da política penitenciária paulista
por uma certa ambigüidade: de um lado a perpétua negligência frente os aspectos mais
básicos da vida na prisão, e de outro, a reiterada tentativa (sempre fracassada) de criar
alguns estabelecimentos (...) como modelares, como símbolos destinados a ofuscar as
mazelas da degradação das demais prisões.” (SALLA, 2000, p.215)
Nestes termos, ainda que os programas disciplinares tenham cumprido um papel
importante na estruturação do complexo na definição arquitetônica, nos regulamentos
internos eles, aqui, nunca se realizaram, que foi sempre a urgência, a precariedade,
a degradação e a violência que pautaram a estruturação do aparato punitivo paulista.
Nenhum princípio organizacional podia se manter frente à necessidade imperiosa de
receber mais presos, de aglomerar mais gente: oficinas de trabalho virando celas, celas
individuais se tornando coletivas, penitenciária se tornando casa de detenção provisória,
e esta se fazendo penitenciária, num eterno movimento de expansão e de deterioro.
Nesse ambiente prisional, as penas não decorrem pelos meandros da disciplinarização,
da docilização dos corpos, mas pelos da sobrevivência e da violência exacerbada que
episódios como o Massacre do Carandiru colocam em evidência. Assim, o dilema
fundamental do dispositivo carcerário paulista não é se o preso sairá regenerado ou
corrompido; mas sim, se sairá vivo, e se vivo, se sairá lúcido.
É importante reter essa chave de leitura do dispositivo carcerário paulista: a
precariedade do aparato punitivo constitui a marca histórica de sua existência, é a base
de sua positividade no mundo, tudo que se estrutura a partir dele será positivamente,
produtivamente condicionado por ela porque em torno da precariedade também se
estrutura um dispositivo, e é isso o que os interlocutores dessa pesquisa demonstram
com os seus percursos e relatos.
Mas, antes de passar ao que apresentam desse dispositivo e de suas reconfigurações
recentes, caberia adiantar algumas (macro)demarcações gerais que os situem em relação
a outros campos e outros processos sociais. Os percursos recolhidos em trabalho de
campo remontam, principalmente, à década de 1980, momento em que, na política
134
nacional, vivia-se o final da ditadura militar e o processo de redemocratização; na
economia, experimentava-se a abrupta passagem do “milagre econômico” à “década
perdida”; nas grandes cidades, as últimas etapas de um forte processo de inchaço urbano
por expansão de periferias; no mundo dos ilegalismos, começava a se estruturar o
mercado nacional da cocaína e suas conexões com mercado global. Na década de 1990,
um segundo momento, quando no campo político vivia-se o dilema da continuidade
autoritária e da consolidação democrática; na economia, a abertura dos mercados, a
reestruturação produtiva (com seus efeitos de desemprego e pauperização) e a
estabilização da moeda; nas regiões de fronteira das periferias de São Paulo, a explosão
do favelamento; e no mundo dos ilegalismos, as taxas de homicídio crescendo
vertiginosamente, cada vez mais associadas ao comércio varejista de drogas,
especialmente do crack. E nos anos 2000, o momento atual, quando, na política, o
Partido dos Trabalhadores (PT) assume o governo federal; na economia, inicia-se um
novo ciclo de desenvolvimento; uma porção da periferia de São Paulo se consolida (pela
implantação de serviços públicos e equipamentos de consumo), e o inchaço desregulado
se mantém nas regiões de fronteira; e quanto aos ilegalismos, é importante pontuar que
as taxas de homicídio em São Paulo reduzem drasticamente, e que o comércio da droga
parece se estruturar sobre bases mais estáveis, acarretando menos mortes.
104
Agora, a partir daqui, deixo as (macro)referências e passo aos percursos.
7.2 - Pedro
Pedro nasceu numa cidade pequena do interior do Paraná, em 1974. É o quinto dos sete
filhos de um casal de migrantes nordestinos que cruzou o país para trabalhar na lavoura
do algodão. Uma terra infértil e geadas constantes jogaram a família na miséria, a tal
ponto que se viram novamente obrigados a migrar, dessa vez em 1978 para São
Paulo, onde Pedro tinha uma tia vivendo e trabalhando. A família de Pedro foi
104
Para uma discussão acerca de importantes reconfigurações em São Paulo nessas três décadas,
relacionando alterações no mundo dos ilegalismos e algumas dessas (macro)referências aqui pontuadas,
ver: TELLES (2009c).
135
recebida por essa tia numa das muitas favelas que se espalhavam pela região da
Brasilândia, zona norte da cidade.
Em São Paulo, o pai de Pedro logo arrumou trabalho numa indústria metalúrgica, e
alugou um barraco na mesma favela. Seu pai era e sempre foi uma figura carismática.
Pedro muitas vezes ouviu dos irmãos mais velhos que, mesmo nos duros tempos do
Paraná, o seu pai doava leite para vizinhos necessitados, ajudava famílias com crianças
doentes, sempre estava disposto a colaborar, não obstante as dificuldades e doenças na
família que ele mesmo enfrentava. Uma vez aclimatado e devidamente instalado na
favela, esse aspecto de sua personalidade floresceu, e então, num contexto bastante
distinto. Aproximou-se de uma associação de moradores da favela, e rapidamente se
destacou com uma de suas lideranças, assumindo, em seguida, a presidência da
entidade. Pedro ainda se lembra de quando circulava pela favela acompanhando seu pai,
sempre parando de casa em casa, conversando com uns e com outros. Sua casa estava
sempre cheia, seu pai era muito procurado pela vizinhança. Aos domingos, o padre da
região os ia visitar, faziam novenas de encher o pequeno barraco, e em seguida todos ali
permaneciam em acaloradas discussões políticas. Olhando retrospectivamente, Pedro
hoje define aquela casa como uma verdadeira Comunidade Eclesial de Base (CEB).
A agitada vida de seu pai refletia a agitação daquele tempo e daquele lugar. Eram
tempos de redemocratização. Além de articular-se com os moradores da favela, e com
os setores mais progressistas da Igreja Católica à qual era muito devoto com o
tempo, seu pai articulou-se ainda com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), mantendo contato com deputados e vereadores, ora apresentando-lhes a favela
e suas demandas, ora apresentando-os à favela como bons candidatos. A irmã de Pedro
era operária do setor têxtil, mas inversamente ao pai, fazia política no lugar de trabalho
e não de residência ; era líder sindical na sua fábrica, e participava do processo de
construção da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores
(PT). Numa tarde de domingo, naquele início de anos 1980, na casa de Pedro reuniam-
se representantes das principais forças políticas que protagonizavam o processo de
redemocratização no Brasil.
Sader (1995) em “Quando novos personagens entram em cena”– apresenta e discute a
relevância dessa miríade de práticas e grupos sociais que, naqueles tempos, redefiniam
os horizontes da política brasileira; e que pareciam condensar-se de forma muito intensa
136
naquela casa onde Pedro vivia sua primeira infância. Pedro não compreendia os
significados históricos daquele momento, nem daqueles eventos, mas tudo lhe era muito
marcante e intrigante, desde a barba quase uniforme dos amigos de sua irmã, até um
amigo de seu pai, que num dia tomava café na sua sala, e no outro estava na televisão,
num palanque repleto de gente. Certamente, toda essa vivência foi fundamental na sua
trajetória ulterior. Porém, nem tudo eram flores naqueles anos 1980, e esses outros
aspectos da realidade da favela também lhe foram determinantes.
A favela onde crescia ficava, a cada dia, mais violenta; se a figura de seu pai remete a
toda aquela agitação política, a de sua mãe remete mais aos perigos que se corria ao
brincar na rua. O número de mortes era crescente, e a ameaça vinha de toda parte. Certa
vez, empinando pipas com um vizinho, Pedro viu um homem ser friamente assassinado
pela polícia, algum tempo depois viu a polícia invadindo casas na vizinhança,
prendendo e agredindo pessoas; mais tarde, seu amiguinho foi assassinado pela própria
mãe, transtornada pelo álcool e pelas drogas que se propagavam na favela. Motivos não
faltavam para que a mãe de Pedro o mantivesse sob rígido controle: brincadeira na rua
só se fosse ao alcance de sua vista de mãe, passeios dentro ou fora da favela só
acompanhado dos irmãos mais velhos, escola todo dia e boas notas eram obrigações
cobradas a custo de surras. Da mesma forma que lhe era normal ver de perto um
eminente político, também o era avistar gente morta ou indo presa, apanhando ou dando
tiro.
Conforme crescia, via seus amigos de bairro e de escola envolvendo-se com crime e
com drogas, alguns desapareciam de repente sem que nunca mais tivesse notícias,
outros apareciam mortos num beco, ou em comentários de porta de colégio. Naquele
ambiente adverso, além da proteção e rigidez materna, Pedro também desenvolvia suas
próprias defesas: foi formando um círculo de amigos que se identificavam pela
socialização religiosa, pelo apego à escola, e pelo rechaço radical ao mundo da droga e
do crime.
Quando tinha por volta de 10 anos, seu pai ficou desempregado, a situação financeira da
família se complicou, e Pedro começou a trabalhar com os irmãos nas feiras da região,
carregando sacolas e “olhando” os carros dos consumidores. Nessas ocasiões, viam
meninos do mesmo bairro roubando mercadorias e transeuntes, com eles, iam e
voltavam juntos, comentavam as façanhas e comparavam os ganhos os dele, sempre
137
inferiores , de modo que Pedro e seus irmãos poderiam ter enveredado desde muito
cedo pelas sendas mais lucrativas da criminalidade. Não quiseram. Com 12 anos, Pedro
deixou a feira e começou a trabalhar num supermercado, como empacotador e
entregador; com 14, por motivos de saúde, deixou de trabalhar e dedicou-se
exclusivamente aos estudos.
Nessa época, o sistema municipal de educação era administrado por Paulo Freire,
secretário da prefeita do PT, Luisa Erundina. Nas aulas de OSPB
105
, finalmente
entendeu e se encantou pelos ideais socialistas que sua irmã tanto falava, convertendo-
se ao petismo. Aproximou-se do núcleo do PT de sua região e se envolveu nas disputas
eleitorais, e de maneira especial na campanha presidencial de Lula, em 1989. Ao mesmo
tempo, tornou-se assíduo freqüentador das atividades da Igreja Católica voltadas para a
juventude, participando de retiros e de outros eventos no bairro. Seria de se pensar que
essa mudança de atitude provocasse orgulho e alegria naquela família tão afeita à
religião e à militância. Porém, não foi assim que as coisas se passaram. O engajamento
efetivo de Pedro na política e na religião se deu no exato momento em que sua família
praticamente inteira se convertia ao protestantismo, e abandonava qualquer atividade
política. O desemprego prolongado, a substituição do pároco (por um menos presente e
ativo) e o desaparecimento do PMDB do bairro magoaram sobremaneira o pai de Pedro,
afundando-o num alcoolismo do qual saiu pela conversão evangélica para a qual
levou boa parte da família. É certo que se os pais e irmãos o se entusiasmavam com
as novas atividades de Pedro, tampouco o desestimulavam, que conheciam os
meandros do catolicismo politizado e consideravam melhor aquilo do que a rendição ao
crime e à droga, que só faziam aumentar na favela.
No começo dos anos 1990, Pedro voltou a trabalhar. Tornou-se vendedor numa loja de
peças de automóveis. Também foi estudar o ensino secundário noturno numa escola que
ficava fora da favela. Ali ampliou ainda mais sua rede de contatos e de referências,
tendo despertado o sonho de cursar uma universidade pública tanto pelos incentivos
do novo patrão, quanto pelas conversas com os novos colegas e professores. Em 1992,
no campo da política nacional foi um dos “caras-pintadas” a lutar pelo impeachment do
presidente; e no da política local, envolveu-se com a Pastoral da Moradia. Aproximava-
se um momento de grandes definições na sua vida. Sentia progressiva aversão à política
105
Organização Social e Política Brasileira
138
partidária, conforme a ia conhecendo melhor; interessava-se cada vez mais pelas
atividades políticas religiosas da pastoral, de tal forma que chegava a vislumbrar a
possibilidade de integrar-se aos quadros da Igreja; e, ao mesmo tempo, almejava
alcançar o ensino superior. Como é normal a essa altura da vida, Pedro tinha muitas
dúvidas e ambições. Com esse ânimo, procurou aconselhamento com aquele padre dos
tempos de outrora, que o vira crescer nas reuniões e novenas da “CEB” daquela favela
na Brasilândia, e para quem Pedro guardava um grande apreço. O padre, muito feliz em
atendê-lo depois de tanto tempo, e mais ainda pela ordem de questões que os reuniam
novamente, foi sábio e prático: aconselhou-o a estudar direito penal, para que pudesse
ajudá-lo na Pastoral Carcerária onde então ele estava atuando ; se no decorrer do
curso universitário, o interesse na vida religiosa se confirmasse, depois tratariam do
tema. E foi o que Pedro fez. Formou-se no ensino secundário, ingressou num cursinho
popular, e estudou muito até entrar no curso de direito da Universidade Estadual
Paulista (UNESP) de Franca, em 1995.
E é nesse ponto, a meados da década de 1990, que o percurso de Pedro se cruzou com a
trajetória do sistema penitenciário paulista, pela via da Pastoral Carcerária. Mas o que
seria essa entidade gravitando o sistema prisional, naquele momento? Para melhor situá-
la cabe uma breve digressão, que remonta àquele agitado final da década de 1970.
7.3 - Gravitações
Naquele mesmo ano de 1978, em que a família de Pedro chegou a São Paulo, foram
criados os primeiros Comitês Brasileiros de Anistia em diferentes capitais do país.
106
Esses comitês agregavam além de artistas, intelectuais e estudantes opositores ao regime
militar, familiares e amigos de presos políticos e os mesmos setores do MDB e da Igreja
Católica que, àquela altura, apoiavam e aglutinavam os movimentos sociais em torno de
outras questões, nas diversas fábricas e favelas espalhadas pelos centros urbanos. Em
dezembro do mesmo ano, São Paulo sediou o Primeiro Congresso Nacional de Anistia,
106
As informações sobre o movimento de anistia estão em: COSTA (2001).
139
reunindo os comitês de todo o país e estabelecendo a reivindicação por Anistia ampla,
geral e irrestrita”. No biênio 1978-1979, várias manifestações públicas tomaram as ruas
de diferentes cidades, denunciando as injustiças correntes no sistema prisional e
reivindicando a libertação dos presos políticos. Ao mesmo tempo em que a sociedade
civil ia para as ruas, um grupo de parlamentares, principalmente do MDB, articulados
pelo senador Teotônio Vilela, percorreu o Brasil visitando presídios e presos políticos,
fazendo um levantamento das condições de tratamento penitenciário a que estavam
submetidos. A repercussão do movimento nas ruas e da atividade da Comissão
Parlamentar (dentro e fora do Congresso) foi tão grande, que o recém empossado
presidente, o General João Batista Figueiredo, admitia a possibilidade de indultar os
presos políticos. Uma proposta de Lei de Anistia parcial foi encaminhada pelo
presidente e rechaçada pelo movimento e pelos parlamentares da Comissão.
Vislumbrando a possibilidade de avanço, um grupo de presos políticos do Rio de
Janeiro, em julho de 1979, iniciou uma greve de fome pela anistia, que durou 32 dias.
107
Em agosto de 1979, o presidente encaminhou nova proposta de lei, dessa vez aprovada e
promulgada no dia 28 daquele mesmo mês.
Eis uma síntese por demais esquemática de um marco fundamental no processo de
redemocratização do Brasil. Não seria o caso de avaliar aqui se a lei correspondia às
demandas por anistia ampla, geral e irrestrita; ou se ela foi um artifício tático para
isentar os militares, os torturadores e os assassinos a serviço do estado de suas
responsabilidades criminais. Aqui interessa assinalar que esse movimento foi um
fundamental impulso de estruturação de grupos, entidades e organizações civis em torno
da questão prisional, desde o início do período ditatorial, que legou para a década
seguinte uma forte herança organizativa. No começo da década de 1980, algumas
organizações que participaram daquele movimento se converteram e outras se
estruturaram em torno da questão dos direitos humanos, que não obstante sua amplitude
de foco, contemplavam a questão do tratamento desumano dispensado nos sistemas
penitenciários do Brasil aos presos comuns.
Em janeiro de 1982, no Centro de Estudos Franciscanos e Pastorais para a América
Latina (CEFEPAL), em Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, aconteceu o Primeiro
107
Segundo Costa (2001), greves de fome eram práticas comuns e recorrentes dos presos políticos, mas
essa, em especial, teve um peso enorme, pela conjuntura que a colocava em destaque.
140
Encontro Nacional de Direitos Humanos, que reuniu 33 entidades, de 11 estados, das
regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do país.
108
Os diversos centros de defesa dos
direitos humanos, comissões “Justiça e Paz”, comissões diocesanas, comissões pastorais
de diferentes municípios brasileiros fundaram então o Movimento Nacional de Direitos
Humanos. O caráter político-religioso da formação desse movimento é evidente.
109
Ainda em 1982, alguns dos intelectuais e parlamentares protagonistas do movimento
por anistia, articulados pelo senador Severo Gomes (PMDB), uniram-se numa comissão
para investigar um incêndio no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, que vitimara
seis internos. O grupo estendeu suas atividades para outras instituições fechadas em São
Paulo e Rio de Janeiro, sendo formalizado em 1983, sob a alcunha de Comissão
Teotônio Vilela (CTV), em explícita homenagem ao parlamentar que liderou o
movimento por anistia no Congresso Nacional e que era membro fundador da
mesma.
110
Em 1986, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) fez a
primeira reunião nacional da Pastoral Carcerária, formalizando e organizando suas
atividades no território nacional.
111
Em 1988, com a chegada na coordenação da
entidade daquele pároco que atuava na Brasilândia no começo da década, a Pastoral
Carcerária tem seu primeiro grande impulso, passando a ter ampla capilaridade no
território nacional, e projeção e articulação com entidades de defesa dos direitos
humanos do exterior. Em 1987, em São Paulo, formalizou-se o Tortura Nunca Mais, um
coletivo de defensores dos direitos humanos, ex-presos políticos e familiares de mortos
e desaparecidos muitos que haviam participado da produção e publicação do histórico
documento Brasil: nunca mais (PROJETO BRASIL NUNCA MAIS, 1985) para
denunciar e combater as práticas de tortura do passado e do presente. E também em
1987, agentes da CTV, em especial, o professor de ciência política da Universidade de
São Paulo (USP), Paulo Sérgio Pinheiro, em conjunto com o professor de sociologia da
mesma faculdade, rgio Adorno, criaram o Núcleo de Estudos da Violência (NEV),
108
Ver: RELATÓRIO DO I ENCONTRO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (1982).
109
Só para exemplificar a importância de setores progressistas da Igreja Católica na estruturação do
movimento, vale a citação do seguinte excerto do relatório: Relações com a hierarquia eclesiástica
local: A quase totalidade dos grupos presentes mantém boas relações com os seus respectivos bispos.
Apesar de serem organismos autônomos (no caso dos CDDHs) são apoiados em suas lutas com grande
liberdade de atuação. As CJP estão profundamente ligadas à cúria local tendo estas a participação mais
definida dos bispos. O mesmo acontece com a IECLB. Infelizmente existem ainda exceções. (Idem, 1982,
p.1)
110
Informações disponíveis em www.nevusp.org e www.ctvdh.org (Consulta feita em maio de 2010).
111
Informação disponível em: http://www.carceraria.org.br/default2.asp?pg=sys/nucleo&cat_cod=2418
(Consulta feita em maio de 2010)
141
nos moldes do Center for the Study of Human Rights, da Universidade de Columbia. O
objetivo era desenvolver projetos de pesquisa paralelos à atuação da CTV, que
pudessem subsidiar suas intervenções, as de outras organizações, bem como políticas
públicas.
Eis não mais do que alguns marcos fundamentais da estruturação de um campo de
agentes, práticas e discursos em torno da questão prisional na década de 1980. A
enunciação de tais marcos não tem a pretensão de oferecer uma visão abrangente (ou
totalizadora) sobre esse processo de estruturação, que seguramente envolve outros
agentes, entidades e episódios de igual relevância. A sua seleção tão somente objetiva
demarcar alguns aspectos que podem ser considerados constitutivos desse campo
naquela década, quais sejam: 1 uma importantíssima presença de setores progressistas
da Igreja Católica em todos os níveis do campo; 2 uma pauta fortemente vinculada às
violações e arbitrariedades do período ditatorial (a questão da tortura, dos mortos e
desaparecidos políticos, da violência abusiva de agentes estatais, etc.); e 3 a
emergência de uma inteligentsia que sistematiza, produz e divulga conhecimento sobre
as violações e arbitrariedades, passadas e presentes, formula programas de intervenção e
se articula internacionalmente.
em 1983 primeiro ano de gestão do governador eleito Franco Montoro a
nomeação para a Secretaria da Justiça do ex-presidente da Comissão Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo, o advogado José Carlos Dias, e seus esforços de
humanização dos presídios, representam uma primeira aproximação desse campo
político às estruturas do poder estatal. Porém, como indica o fracasso da política de
humanização no sistema prisional e de forma análoga ao que se passava na mesma
década naquela favela da Brasilândia nem tudo eram flores na estruturação desse
campo.
Caldeira (1991) em Direitos humanos ou ´privilégios de bandidos`? problematiza
duas questões fundamentais para se compreender o processo de estruturação dessa rede
de agentes e entidades, principalmente, no contexto paulista. Em primeiro lugar, discute
o movimento suas causas e circunstâncias de dissociação da pauta dos direitos
humanos daquele escopo mais amplo de direitos fundamentais, consagrados pelos novos
movimentos sociais analisados por Sader (1986), e sua progressiva associação ao
universo mais restrito dos direitos civis dos presos comuns. Em segundo lugar, a partir
142
dessa nova configuração, a autora discute a resistência, a oposição e a aversão que a
pauta dos direitos humanos progressivamente passou a inspirar em amplos setores da
sociedade. Segundo a autora:
deve-se mencionar que a campanha em defesa dos direitos humanos para
prisioneiros comuns, bem como a sua contestação, articularam-se
publicamente no momento em que a cidade de São Paulo apresentou seus
maiores índices de criminalidade violenta das últimas duas décadas, ou
seja, durante o período 1983-1985. Esses foram os dois primeiros anos do
governo Montoro e, portanto, da tentativa de humanização dos presídios e
de reforma da polícia. Nesse contexto, o medo e a insegurança foram
manipulados com facilidade pelos opositores à defesa de direitos humanos,
ao mesmo tempo em que, sutilmente, a criminalidade foi sendo associada a
práticas democráticas.” (CALDEIRA, 1991, p.164)
Portanto, no decorrer da década de 1980 e na primeira metade da década de 1990, a
gravitação de agentes, práticas e discursos em torno da questão prisional, se dava no
embate de dois campos distintos, um favorável a políticas de realização de direitos
humanos nos presídios, e outro que fazia campanha contrária, afirmando: 1 a
“monstruosidade” dos criminosos; 2 que o reconhecimento dos direitos dos presos
significaria concessão de privilégios imerecidos em detrimento dos “cidadãos de bem”;
e 3 que o aumento da criminalidade exigiria medidas penais e de controle do delito
cada vez mais duras. Como se pode observar, a esse segundo campo correspondem os
agentes, práticas e discursos próprios do populismo penal brasileiro.
O populismo penal no Brasil conforma toda uma linhagem política de alto desempenho
eleitoral e, desde a redemocratização, sempre presente nas principais casas legislativas
federais, estaduais e municipais. Personagens como Erasmo Dias
112
, Afanázio
Jazadji
113
, Conte Lopes
114
e Coronel Ubiratan
115
foram diversas vezes eleitos
112
Militar articulador do golpe de 1964, foi designado secretário de Segurança Pública de São Paulo.
Entre 1978 e 2004 exerceu seguidos mandatos de deputado federal, deputado estadual e vereador.
113
Radialista reconhecido por seus programas policiais, desde 1986 exerceu cinco mandatos de deputado
estadual.
114
Policial militar das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), desde 1986 exerceu seguidos
mandatos de deputado estadual.
115
Policial militar que ganhou notoriedade por comandar a operação que resultou no Massacre do
Carandiru, desde 1997 exerceu seguidos mandatos de deputado estadual. Foi encontrado morto em sua
residência em setembro de 2006.
143
democraticamente através de um discurso calcado em críticas ferozes aos defensores de
direitos humanos, no clamor pelo endurecimento penal e pelo combate à criminalidade a
qualquer custo.
116
Esse campo de disputa política, não obstante remeta a questões mais gerais e a outros
dispositivos de poder, também compõe o dispositivo carcerário em São Paulo, e nos
seus embates práticos e discursivos, diretos e mediados, a própria estruturação desse
dispositivo entra em jogo. Um campo, favorável ao tratamento cada vez mais duro no
interior dos presídios, focava sua atuação na expansão e fortalecimento do aparato
policial (“Rota na rua”), e incidia incisivamente no arcabouço legislativo através de seus
mandatos. O outro resistindo à estigmatização que lhe era imposta tematizava os
problemas da superlotação, da precariedade institucional, e atuava mais próximo do
sistema prisional, fiscalizando e denunciando violações de direitos pontuais e concretas,
e acessando os novos expedientes jurídicos forjados no processo de redemocratização.
No primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, o conjunto de agentes
favorável aos direitos humanos começou a romper o isolamento e a se reaproximar das
mais altas esferas estatais, envolvendo-se ativamente na elaboração do primeiro
Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo governo federal em 1996. Nesse
processo, o NEV desempenhou papel estratégico, abrindo a possibilidade de intervenção
e elaboração para os outros agentes que compunham o campo.
117
A partir daí, o diálogo
entre Estado e diversas entidades defensoras dos direitos humanos se rotiniza em
conferências anuais.
É nesse contexto que Pedro começa a atuar na Pastoral Carcerária e a freqüentar os
presídios paulistas. Até aqui foram esquematicamente apresentadas a conjuntura, as
articulações e a disputa política em que atuava a entidade que o introduziu no sistema
carcerário. Antes de passar a sua experiência direta na pastoral, cabe melhor apresentar
o que encontrava quando entrava (e saía) da prisão representando a entidade, ou seja, o
que vinha se passando, não na esfera exterior gravitacional do dispositivo, mas
116
Para uma análise de seus discursos e trajetórias políticas desde os tempos da ditadura militar, até suas
atuações parlamentares, ver: SILVA (2004).
117
Paulo Sérgio Pinheiro foi o relator do primeiro e segundo programas, tendo o NEV estabelecido um
convênio de assessoria com a Coordenadoria do Plano Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da
Justiça. Para uma apresentação mais detalhada e analítica desse processo, ver: PINHEIRO e MESQUITA
NETO (1997), e MESQUITA NETO (1997).
144
nas suas dimensões interiores, subterrâneas, tectônicas. E para tanto, recorro à trajetória
de outro interlocutor da pesquisa.
7.4 - Amaro
Amaro nasceu em 1961, numa cidade do agreste pernambucano. Viveu num sítio
modesto com os pais e mais sete irmãos até os nove anos de idade, quando seu pai
arrendou as terras para um parente e todos vieram para São Paulo. O pai conseguiu
emprego rapidamente, sendo contratado pela prefeitura para abrir as valas que levariam
o saneamento básico para os crescentes bairros periféricos da cidade. A mãe arrumou
uma vaga como costureira numa fábrica do Brás. E Amaro começou a trabalhar
vendendo doces e sorvetes nas ruas do bairro. Quando ficou bastante conhecido chegava
a ganhar mais do que seu pai. aos 13 anos de idade Amaro começou a estudar numa
escola pública da região.
Os anos foram passando e o pai de Amaro virou porteiro no fórum da Praça João
Mendes, no centro. Ali conseguiu arrumar uma vaga para Amaro, que estava com 16
anos e não queria mais vender sorvetes. Em 1977, Amaro começou a trabalhar no fórum
como office boy interno, trazendo e levando papéis pelos muitos andares do prédio. Ali
se familiarizou com os trâmites da justiça, com a formalidade na apresentação e com a
estabilidade do funcionalismo público. Porém, completando 21 anos o seu desligamento
era automático. Se quisesse seguir trabalhando no fórum teria que prestar concurso.
Em 1982, um amigo que era protético convidou Amaro para trabalhar com ele. Seu
serviço era buscar e entregar encomendas, fazer cobranças, e nos períodos de menor
movimento, arriscava esculpir algumas peças. Após dois anos, Amaro pediu demissão e
resolveu montar o seu próprio laboratório de próteses, em outro canto do mesmo bairro.
Alugou uma sala em sociedade com um dentista, fez cursos no sindicato dos protéticos,
investiu suas economias em equipamento e começou a trabalhar por conta própria.
Porém, sua experiência como autônomo não durou muito tempo: o dentista que era seu
sócio lhe aplicou um golpe, roubando num final de semana todos os equipamentos mais
145
valiosos do seu laboratório e desaparecendo em seguida. Assim Amaro abandonou de
vez o ramo das próteses dentárias.
Corria o ano de 1984, e Amaro pensava na possibilidade de estudar e prestar concursos
para alcançar novamente a estabilidade do funcionalismo público. Além do fracasso no
laboratório, outro motivo o levava a pensar nessa alternativa: a gravidez de sua
namorada. Depois de muito estudar, em 1985, Amaro prestou dois concursos, um para a
Secretaria de Administração do Estado (SAE), outro para a Secretaria de Justiça (SJ), e
foi aprovado em ambos. Foi chamado primeiro pela SAE, mas dispensou a vaga,
pensando na remuneração significativamente mais alta do outro cargo, que contava com
adicionais de trabalho noturno e periculosidade. Amaro seria agente penitenciário.
Amaro foi chamado para trabalhar em 1986. No fim do ano, participou de um curso de
45 dias, que foi ministrado num anexo do presídio de Samaritá, no interior do estado. O
treinamento era todo administrado por militares e policiais civis que atuaram nos órgãos
de repressão da ditadura. Amaro rastejou na lama, dormiu no chão, passou fome, e
realizou uma série de outras atividades que considerava abusivas e despropositadas.
Além dos “exercícios” práticos, escutava palestras sobre criminalística, direito e
processo penal, direito administrativo, etc. Tinha também instruções regulares de defesa
pessoal e de “disciplina”, para aprender a como ser rígido no tratamento com os
reclusos. Porém, o curso não foi tão determinante na formação de Amaro, que logo
percebeu que uma qualificação como aquela não podia deixar de ser superficial, uma
vez que o mais importante aprendizado começa no momento em que o funcionário entra
numa unidade real e respira a atmosfera do ambiente.
Amaro trabalhou de 1987 a 1989 numa penitenciária do litoral paulista; de 1989 a 1990
na Casa de Detenção de São Paulo; no presídio do Hipódromo, de 1990 até seu
fechamento em 1995; e na Penitenciária do Estado, de 1995 a 2001. Durante toda a sua
trajetória profissional as condições de trabalho foram as piores possíveis. Se como foi
apontado no marco zero dessa cartografia a precariedade institucional é um elemento
constitutivo do aparato penitenciário paulista, ela não se restringe às péssimas condições
de vida para os detentos, atingindo também, por extensão, as condições de trabalho de
seus funcionários.
146
Num ambiente prisional extremamente deteriorado, as funções de segurança do agente
penitenciário ultrapassavam em muito o abrir e fechar das grades, o controlar as
movimentações, o vigiar os detentos. Sob essas condições, o trabalho do agente não se
fazia de uma torre de vigilância, à distância; mas sim, no próprio corredor, no pátio, em
trânsito, e tudo isso, muito perto dos detentos, em meio a eles e de seus entreveros. As
atividades cotidianas do agente penitenciário muito pouco lembravam os protocolos
estabelecidos formalmente no edital do concurso público. No edital não se mencionava
o carregar corpos inertes, perfurados dezenas de vezes; nem se falava em castigar um
preso que se declara homicida com um pedaço de pau ou de aço; nem em mobilizar
informantes estratégicos para se antecipar a tentativas de fuga, de homicídios, de
rebeliões, etc. atividades que pontuaram o cotidiano profissional de Amaro.
Não seria demasiado afirmar que, da precariedade institucional, erigia-se um mundo
social no limiar da vida e da morte. Principalmente até meados dos anos 1990, morrer e
matar eram, efetivamente, possibilidades muito concretas para qualquer detento, e ao
agente penitenciário cabia também operar a gestão dessa violência interna exacerbada,
muitas vezes por meio da própria violência, outras vezes, por meio da inteligência. A
morte violenta ocupava o centro do dispositivo, estruturava práticas de detentos e
agentes penitenciários, conformava o que poderia ser visto como protocolos informais
da gestão da prisão, uma gestão que pela mesma precariedade institucional nunca
esteve inteiramente na mão dos funcionários, sendo sempre o resultado provisório e
instável de múltiplas negociações entre os diversos agentes que compõem a instituição.
Em suma, ao invés de desenvolver programas regeneradores, enquanto Amaro trabalhou
no sistema prisional paulista, gerir uma prisão era o mesmo que gerir a violência que
imperava na prisão, e isso sem poder abrir mão de uma negociação continuada com os
detentos, seja com suas lideranças mais eminentes, com os presos mais comuns ou com
os informantes mais discretos. Pelo relato dos expedientes de trabalho de Amaro em
diferentes ocasiões, é possível vislumbrar como a iminência da morte estruturava suas
práticas.
Trabalhando na “inclusão”
118
, Amaro investigava se o recém-chegado teria inimigos na
prisão, se os tivesse a possibilidade que ele fosse assassinado logo nos primeiros dias
era realmente grande. Fazia então um interrogatório com o preso, e ainda o mantinha
118
Setor de entrada de um novo detento na unidade.
147
por alguns dias no setor de inclusão, até que corresse entre os detentos a informação
de que aquele preso estava ali. Se houvesse um desafeto dele na prisão, uma ameaça de
morte logo viria, e, portanto, Amaro o encaminharia direto para o “seguro”
119
. Se depois
de alguns dias o recém-chegado não fosse ameaçado, ou se fosse até “festejado” por
alguns presos, Amaro liberava-o para o “convívio”
120
. Quando trabalhava num pavilhão
esse tipo de gestão se desdobrava, que rivalidades e desafetos eram continuamente
produzidos no ambiente prisional. Então, Amaro continuamente fazia operações de
“trânsito”
121
, encaminhando uma vítima potencial para o “seguro”, ou quando não havia
tido tempo para evitar o homicídio, Amaro tinha que encaminhar o “laranja”
122
que
assumia o delito (quase sempre de autoria múltipla) para o “castigo”
123
. Quando ficava
no setor de revistas de “jumbo” e visitantes, Amaro tinha que prestar especial atenção
em artefatos que poderiam ser convertidos em armas brancas; e quando realizava
revistas (ou blitzes) em celas, as armas eram sempre seu objetivo prioritário. Nas blitzes,
uma equipe de funcionários removia todos os presos da cela (geralmente com um grau
de violência procedimental), as coisas deles eram todas reviradas (quando não
destruídas), e Amaro era um dos que mais faro tinha para, nessas ocasiões, descobrir
esconderijos de facas.
Cada uma dessas operações envolvia um alto grau de complexidade e destreza da parte
dos funcionários. Segundo Amaro, as habilidades necessárias ao agente penitenciário
eram irredutíveis a uma técnica que pudesse ser escolarmente transmitida; tratava-se
mais de conhecimentos práticos até difíceis de verbalizar sem fazer referência às
situações concretas em que foram exigidos.
Amaro relata uma série de casos: como descobriu uma vítima potencial, como soube
qual cela revistar e quando era o melhor momento para fazê-lo, como saber qual pacote
ou visitante tinha que receber uma revista mais rigorosa, etc. Para desencadear todas
essas práticas o mais importante era a informação que se recebia, até porque, pela
precariedade das condições de trabalho, era muito difícil que um funcionário pudesse
119
Setor para ameaçados de morte, para uma discussão mais aprofundada desse ponto estratégico do
dispositivo carcerário, ver: MARQUES (2009).
120
Setor de cumprimento de pena em condições normais, para uma discussão mais aprofundada,
também ver: MARQUES (2009)
121
Todo tipo de movimentação de internos no sistema prisional.
122
Preso que assume um delito ou falta alheia para pagar dívidas ou obter regalias. Para uma breve e
precisa descrição dessa recorrente personagem prisional, ver: VARELLA (1999) pp. 148-149.
123
Lugar de sobre-confinamento punitivo, antiga solitária, mas que também podia ser coletiva.
148
evitar um homicídio no ato, ou que revistasse todas as celas, visitantes e “jumbos” com
igual dedicação. Ao invés de protocolos racionalizados e universais de tratamento, o que
era operante nas prisões paulistas era uma espécie de arte da antecipação. Uma gestão
artesanal da informação que circulava no presídio, através da discreta manutenção de
uma rede de detentos informantes. Apesar do risco que a atividade envolvia, Amaro
conta que não faltavam presos que se prestassem ao serviço. Podiam informar por
vingança, por interesse ou por altruísmo (para preservar a tranqüilidade da prisão);
independentemente dos motivos que a impulsionavam, a informação corria. Avaliar a
qualidade da informação também era um desafio, o qual tinha de ser superado antes que
ocorresse o pior ou se prejudicasse um inocente. Por contraste de fontes e por outras
modalidades de investigação, as informações que chegavam deviam ser prontamente
checadas. Por isso, cada funcionário mantinha sua própria rede de informantes, de
variadas qualidades, inserções e níveis de confiabilidade. A transmissão da informação
se dava na maior discrição, para não expor o informante aos presos o que
inevitavelmente acarretaria a sua morte, e a perda da fonte , nem para outros
funcionários que sempre existia a possibilidade de “contra-informação” (de um
funcionário corrompido informar certas coisas a um preso).
Esse é o solo de práticas e problemas que tanto presos como funcionários tinham que
lidar. É nessa complexa trama de relações urdidas a partir da precariedade e da morte,
que Pedro, como agente pastoral, também foi se inserir na metade dos anos 1990.
Porém, nesse momento específico, esse solo vinha sofrendo alguns abalos. Alguns
deslocamentos importantes estavam em curso nas camadas tectônicas do dispositivo,
e eles também devem ser pontuados nessa cartografia.
7.5 - Tectônicas
No decorrer da década de 1990, o dispositivo carcerário paulista sofreu um processo de
profunda reestruturação, que foi pautado pela emergência e consolidação do Primeiro
Comando da Capital (PCC), dentro e fora das prisões paulistas. Fundado em 1993, no
Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, a organização de presos
149
rapidamente ganhou força, e foi impondo (pela violência ou convencimento) sua
hegemonia em diversos presídios do estado de São Paulo (e não só dele). Tão
rapidamente quanto se hegemonizava no interior do sistema prisional, o PCC ganhava
também capilaridade nas ruas.
124
Num primeiro momento de seu desenvolvimento,
ainda silenciado, organizava ações principalmente rebeliões que permaneciam
anônimas. Com o tempo, e a diversificação de suas práticas, seu nome começou a
circular, e toda uma disputa sobre a sua “verdade” entrou no foco do dispositivo: o PCC
existe ou não existe? É forte ou fraco? É o “partido dos presos” ou o “sindicato do
crime”? É o “crime organizado”, o “tráfico de drogas” ou um código moral, um
conjunto de práticas, ou mesmo, um foco de resistência? Sem condições, nem
pretensões de responder a esses questionamentos, aqui cabe tão somente apontar para a
emergência dessa nova força, chamada PCC, como peça fundamental no interior do
dispositivo. Emergência que é discursiva e também prática. No mesmo ritmo em que se
intensificava o debate sobre a sua “verdade”, seu repertório de ações seguia se
diversificando, e sua presença exterior à prisão se consolidando. O PCC representaria
um verdadeiro abalo sísmico no dispositivo, diante do qual nenhum agente, prática ou
discurso articulado nessa rede carcerária poderia ficar alheio.
Ainda no Hipódromo, Amaro ouviu boatos sobre a existência desse coletivo de presos,
mas através de sua rede de informantes não chegou a ficar sabendo da sua presença
naquele presídio. depois de duas rebeliões consecutivas, que selaram o destino do
Hipódromo a sua desativação ouviu dizer que ambos os motins haviam sido
“ordenados” (ou perpetrados) pelo PCC. Quando começou a trabalhar na Penitenciária
do Estado, no final de 1995, o PCC ali era uma realidade estabelecida, que vinha
transformando todo o solo de práticas possíveis na gestão do cotidiano (e da violência)
prisional. Para Amaro, o estabelecimento de uma rede de informantes tornava-se mais e
mais difícil, toda vez que se aproximava de um detento era evitado, as conversas se
tornavam mais distantes, formais e breves. Quase nunca se encontrava sozinho com um
preso, numa situação em que pudessem negociar informações e benefícios, os presos
se dirigiam aos funcionários acompanhados de testemunhas, e cada vez mais eram
124
Com base em pesquisa documental, elaborei uma cronologia sintética do PCC, ver: GODOI (2009d)
150
sempre os mesmos “faxinas”
125
que tomavam a tarefa de comunicar eventos, demandas
e situações para o corpo de funcionários. Nas vezes em que Amaro, a muito custo,
estava prestes a recrutar um preso insatisfeito com determinada situação ou liderança do
pavilhão, antes que o vínculo se formasse, e por razões que ele desconhecia, esse preso
aparecia ou morto numa cela, ou espancado no pátio, ou era enviado ao “seguro” a
pedido do próprio “faxina”. Amaro sentia que, diante do PCC, o seu poder de ação se
reduzia em muito, de modo que a gestão compartilhada do ambiente prisional que
sempre caracterizou o funcionamento dos presídios paulistas se dava em outra
escala. Muitas das informações que mobilizavam ações estratégicas não passavam por
ele, mas por funcionários que ocupavam posições mais altas na hierarquia, e que
mantinham conversas mais “francas” com as lideranças de um pavilhão. Anteriormente,
Amaro se apoiava na multiplicidade de conflitos e rivalidades entre os presos, para
levantar informações e assim apreender armas, drogas, evitar mortes e fugas. Na
Penitenciária do Estado, os presos pareciam agir de forma mais coordenada, e a
informação já não corria da mesma forma, nem pelas mesmas vias.
Além disso, a possibilidade de rebelião estava sempre presente. Ainda que naquele
presídio Amaro tenha tido a felicidade de não presenciar nenhuma rebelião, as rebeliões
nos cárceres paulistas tornavam-se recorrentes, e, no meio dos funcionários, as histórias
corriam como rastro de pólvora, apavorando a todos.
Dois episódios limites um dentro e outro fora da penitenciária expressam bem a
perda de poder que um funcionário como Amaro estava enfrentando no sistema
carcerário, a partir da emergência do PCC. Se antes Amaro sentia que muitas vezes a
vida de um detento dependia de sua capacidade de colher informações e encaminhar
“trânsitos” às pressas, na Penitenciária do Estado, na segunda metade da década de
1990, ao contrário, Amaro ia percebendo que era a sua vida que dependia da
intervenção rápida de presos influentes. E isso não era sem motivo. Num sábado
qualquer, o agente penitenciário caminhava sozinho por um dos pavilhões e foi
surpreendido por cinco presos armados que estavam cobertos de lama. Claramente eles
estavam cavando um túnel para fugir e pensaram que Amaro vinha para impedi-los.
Amaro tentou correr, mas não houve tempo, o agente penitenciário que cuidava da
125
Presos responsáveis por determinadas funções, como distribuição dos alimentos e limpeza dos
pavilhões. Desempenhavam um papel importante também na organização interna dos presos, para uma
bela descrição de suas características e atribuições, ver: VARELLA (1999), pp.99-103.
151
entrada do pavilhão o trancou com os presos, seguindo os protocolos determinados pela
diretoria para impedir fugas. Amaro foi feito refém e o ameaçavam de morte. Tomado
pelo medo, Amaro tentava se explicar, dizendo que não sabia de nenhuma tentativa de
fuga e que sua intenção não era e nem podia ser surpreendê-los em flagrante sozinho.
Enquanto Amaro tentava se explicar, uma das lideranças do PCC pediu para que o
agente que lacrara o pavilhão com Amaro dentro, o abrisse para que ele entrasse. O
agente abriu a porta, contrariando os protocolos da direção, mas esperançoso de que
aquela autoridade da massa carcerária pudesse intervir no sentido de preservar a vida do
colega de trabalho. E foi o que realmente aconteceu. A liderança disse aos presos
enlameados que se o plano de fuga havia sido descoberto seria pela falha de seus
próprios executores, não pela intervenção de um único agente penitenciário; disse
também que naquele dia ninguém estava autorizado a matar ninguém no presídio, pois
era véspera de dia de visita, e qualquer incidente na unidade seria suficiente para que
nenhuma visita entrasse. Desse modo, os presos jogaram as facas no chão e desistiram
de matar Amaro. O PCC lhe salvara a vida.
Porém, as relações de Amaro com a facção prisional paulista não seriam sempre tão
“positivas”. É isso que se deduz do segundo episódio limite, que efetivamente marca o
fim da trajetória de Amaro no interior do sistema prisional. Com o tempo, Amaro ia
aprimorando o seu conhecimento sobre as instalações da penitenciária, e,
conseqüentemente, aumentando o número de apreensões de drogas, facas e telefones
celulares nas revistas que realizava. Em 2000, Amaro chefiou uma revista que resultou
na apreensão de dezenas de facas, desarticulando um “acerto de contas” massivo que
vinha sendo planejado meses. Se até esse momento, Amaro conseguia manter uma
relação tênue de respeito mútuo com as lideranças da massa carcerária, depois disso,
esse tenso equilíbrio foi quebrado. Dias depois da revista, Amaro estava brincando com
seu filho caçula na porta de sua casa, quando recebeu uma mensagem vinda da prisão.
Um grupo de pessoas que Amaro nunca havia visto na vida parou dentro de um carro
diante de sua casa e lhe chamou para conversar. Ao se aproximar, Amaro viu que
estavam todos eles armados. Em tom respeitoso, o homem que estava no banco de
passageiro lhe disse que tinha um recado da penitenciária, disse que os presos estavam
descontentes e intrigados com Amaro, que encontrava muitas coisas e atrapalhava os
planos da organização, recomendaram-lhe que ficasse mais afastado dos problemas
152
entre os presos, que deixasse que eles resolvessem suas questões da forma que lhes
parecesse mais adequada e que desse modo ficaria tudo bem para todos. Amaro
entendeu o recado como uma ameaça de morte, a ele e a toda a sua família. Depois
disso, Amaro pediu férias, e nunca mais voltou para o presídio. Tanto que foi num
balcão de bar que Amaro viu, consternado, a Penitenciária do Estado servir de epicentro
da maior rebelião prisional conhecida até então.
126
Pedro, por sua vez, por estar entrando no sistema prisional, tinha menor sensibilidade
para perceber as movimentações subterrâneas do dispositivo. Assim que começou a
cursar a faculdade de direito, em 1996, Pedro integrou-se à unidade da Pastoral
Carcerária de Franca, começando a realizar visitas às unidades prisionais da região.
Acompanhava de longe os avanços na política nacional de direitos humanos, e focava
suas atividades nos presídios locais. No começo, integrado ao grupo reduzido da
pastoral, ele prestava somente assistência religiosa. Depois de 1997, quando a CNBB
promoveu uma Campanha da Fraternidade com o tema “A fraternidade e os
encarcerados”, sob o lema “Cristo liberta de todas as prisões”
127
, a Pastoral Carcerária
passou a atrair um número muito maior de interessados em todo o Brasil. Em Franca, a
expansão dos quadros pastorais permitiu que Pedro transformasse em alguns aspectos a
linha de atuação da entidade. Além da assistência religiosa e das denúncias pontuais de
casos de violações de direitos e maus-tratos, Pedro articulou, na faculdade e com alguns
novos integrantes da pastoral, um programa de alfabetização no presídio da cidade,
inspirado na metodologia de Paulo Freire. Depois de um ano de pesquisa sobre a
metodologia e a realidade carcerária, o projeto começou a funcionar e foi
institucionalizado como um programa de extensão da universidade.
Enquanto pesquisava o universo vocabular dos presos, ia captando algumas
transformações que estavam acontecendo no presídio, os presos contavam-lhe que o
crack e as mortes no interior da prisão estavam diminuindo, que o ambiente entre os
presos estava mais harmonioso. Tudo isso facilitava o novo projeto educacional da
pastoral, que além de alfabetizar muito rapidamente um número significativo de
detentos, abria espaço para discussões formidáveis entre educadores e presos, sobre os
significados profundos de palavras como “Deus”, “paz”, “justiça” e “liberdade”.
126
Sobre a primeira megarrebelião do PCC, de fevereiro de 2001, ver: SALLA (2006).
127
Informações em: http://www.cnbb.org.br (Consulta feita em maio de 2010),
153
algum tempo depois, quando mais conhecedor da realidade carcerária, Pedro pôde
associar muitas das discussões que manteve em sala de aula, e muitas das
transformações apontadas pelos detentos, à progressiva implantação do PCC também
naquela unidade.
A capacidade de trabalho e articulação de Pedro era impressionante. Além do projeto de
alfabetização no presídio, ele ajudou a estruturar um cursinho pré-vestibular popular na
cidade que também foi institucionalizado como projeto de extensão universitária e
um projeto de assistência jurídica para pessoas de baixa renda. Ademais, fazia estágio
no Ministério Público, articulava retiros e encontros da Pastoral Universitária, e seguia
na Pastoral Carcerária. Nos anos de faculdade, sua identidade com o trabalho pastoral só
cresceu, e ao se formar, no final de 2000, estava convencido de que deveria entrar no
seminário. Já completamente familiarizado com a política interna da Igreja Católica, e
estudioso da teologia da libertação, Pedro procurou aquela figura presente na sua
infância, que lhe havia aconselhado a terminar o curso universitário antes de pensar na
vida religiosa e que era uma grande liderança da Pastoral Carcerária, confirmando-lhe o
interesse em ingressar na sua ordem religiosa, os Oblatos de Maria Imaculada (OMI).
128
Em janeiro de 2001, Pedro inicia sua formação missionária, de modo que quando o PCC
explode para todo o mundo, na primeira megarrebelião, ele se encontrava como
Amaro afastado do ambiente prisional.
7.6 - (Re)ajustes
À emergência e consolidação do PCC se sucederam reajustes em diversos elementos
dispersos do dispositivo, novos debates e disputas se abriram, novas práticas se
desenvolveram. Sem a pretensão de oferecer um diagnóstico preciso e completo do
conjunto de efeitos reestruturantes da emergência da facção no interior do dispositivo,
agora pretende-se não mais do que assinalar alguns deslocamentos que puderam ser
identificados no decorrer da pesquisa.
128
Para mais informações sobre essa ordem religiosa, ver: www.omiworld.org (Consulta em maio de
2010).
154
Em primeiro lugar, a presença de telefones celulares no interior das prisões, que sempre
foi percebida como problemática, foi ganhando centralidade e mobilizando todo um
debate sobre suas virtualidades perniciosas e as responsabilidades sobre o seu controle.
É sabido que desde meados dos anos 1990, o aparelho de telefone celular vem
transformando aceleradamente a sociedade como um todo, e a prisão, obviamente, não
ficaria alheia a tais transformações. A popularização e a progressiva diminuição do
aparelho telefônico possibilitaram a sua proliferação no ambiente prisional, a ponto de,
juntamente com as drogas e as armas, ele constar na lista das mais importantes
apreensões que se pode fazer numa prisão. Exatamente a esse artefato tecnológico foi
atribuída boa parte da capacidade de articulação do PCC, quando da eclosão da primeira
megarrebelião, em 2001 e novamente em 2006. Sobre sua presença na prisão erigiu-se
todo um debate público e uma queda de braço entre operadoras de telefonia celular, a
administração penitenciária e o poder judiciário, sobre a necessidade e a
responsabilidade da instalação de bloqueadores de sinal nas unidades prisionais.
129
Portanto, o celular passa a ser visto como um grande “vilão” no interior dos presídios,
um forte aliado do chamado “crime organizado”. Porém, ainda que essa imagem seja
propagada e reforçada pela “opinião pública”, o aparelho de telefonia celular é também
aliado dos agentes estatais no combate à facção, por meio dos grampos telefônicos.
Afinal, por que investir no estabelecimento de contatos discretos entre um agente
penitenciário específico e um determinado preso, numa determinada prisão, se
atualmente é possível monitorar, desapercebidamente e em tempo real, a conversa de
centenas de presos entre si, com seus amigos e familiares, por todo o sistema
penitenciário estadual?
130
Em segundo lugar, a intensificação da ocorrência de rebeliões acarretou uma
desestabilização das relações entre a categoria dos agentes penitenciários, a
administração penitenciária e outros órgãos governamentais. De acordo com dirigentes
do SIFUSPESP sindicato dos agentes penitenciários de São Paulo a emergência do
129
Para uma visão geral sobre os principais termos em que se dá o debate, ver: BALAZINA, A. (2006)
Juiz manda bloquear celular em prisões” in Folha de São Paulo, Cotidiano, 18 de maio de 2006;
SUCURSAL DE BRASÍLIA (2001) “Governo faz pacote contra rebeliões” in Folha de São Paulo,
Cotidiano, 03 de março de 2001; e REPORTAGEM LOCAL (2001)Governo quer que a USP estude
bloqueio de ligações” in Folha de São Paulo, Cotidiano, 22 de fev. de 2001. (Consulta em maio de 2010).
130
Segundo a jornalista Fátima Souza centenas de horas de conversas telefônicas entre ela e suas fontes
no interior das prisões lhe foram apresentadas quando intimada a prestar depoimento num processo de
investigação sobre o PCC. Sobre a ampla utilização de grampos telefônicos nas investigações policiais,
ver: SOUZA (2007) e JOZINO (2006).
155
PCC representou uma ainda maior deterioração das condições de trabalho. Nesse novo
contexto, o sindicato passa a exigir que as rebeliões sejam consideradas acidentes de
trabalho, e que os problemas físicos e psicológicos que afetam muitos dos
funcionários feitos reféns recebam um tratamento diferenciado por parte do governo,
com mínimas garantias de assistência e aposentadoria, e uma regulamentação mais
precisa dos procedimentos a serem adotados nessas situações.
Raílton é um agente penitenciário que luta nessa frente de batalha. Ele trabalhava num
dos muitos presídios do Oeste Paulista, quando foi feito refém por 32 horas numa
rebelião articulada pelo PCC, no começo dos anos 2000. Viu cinco pessoas serem
mortas e decapitadas, e desde então está afastado do sistema. Ficou psicologicamente
traumatizado, não consegue por os pés numa unidade prisional e toma uma quantidade
de remédios psiquiátricos. Nascido na Bahia, foi ainda criança para o Oeste Paulista,
onde fez curso técnico de contabilidade e trabalhou em escritório. Em 1992, em busca
de estabilidade financeira, prestou concurso público e entrou no sistema prisional. Seu
relato é todo centrado na experiência da rebelião: antes ia tudo bem; depois, tudo mal.
Vem alternando férias e licenças-prêmio acumuladas, e afastamentos psiquiátricos para
manter-se distante do presídio.
Sem trabalhar, suas condições de vida pioraram muito. Estar licenciado ou
simplesmente afastado por motivos psiquiátricos fez com que seu salário se reduzisse
em mais de 60%, pela perda do direito a todos os bônus e adicionais. Por isso, o
sindicato luta para que problemas como o de Raílton sejam considerados seqüelas de
acidentes de trabalho, o que obrigaria o Estado a conceder aposentadoria integral, com
os bônus incorporados. Pressionado pelas necessidades, Raílton chegou a tentar a volta
ao trabalho, mas não pôde suportar o medo. Desistiu. Hoje sua luta é na justiça, pela
aposentadoria integral e por uma indenização do Estado, que, segundo ele, havia
falhas no sistema de segurança que foram resolvidas depois da rebelião, o que
demonstra que se poderia ter evitado o que lhe aconteceu. Munido de um dossiê sobre
seu caso, com fotos suas com uma faca no pescoço no telhado do presídio, fotos dos
mortos decapitados; reportagens de jornal, receitas médicas, a planta da prisão e uma
lista das alterações que nela foram feitas, ele espera o julgamento, acompanhando dia-a-
dia a evolução de seu processo. Sua trajetória de vida poderia ser apresentada como um
típico caso de desestruturação psicológica promovida pela prisão e pelo PCC, porém sua
156
batalha atual permite entrever a estruturação de um campo de disputa política e jurídica
entre o corpo de funcionários e o governo estadual. O processo de Raílton está abrindo
caminho na jurisprudência para mais de trezentos funcionários que se encontram em
situação semelhante. E em torno de casos como o de Raílton, o setor de saúde do
SIFUSPESP vem estruturando sua pauta de reivindicações.
Essa ordem de embates da categoria ainda se desdobra em outras esferas de governo e
para além do problema das condições de vida daqueles que foram afetados por uma
rebelião. Com o aumento dos motins e a capilarização de facções prisionais em
ambiente aberto em diversos estados da federação (principalmente Rio de Janeiro e São
Paulo), a segurança pessoal do agente penitenciário na prisão, na rua, ou mesmo em
casa, tornou-se um problema cada vez mais agudo, frente ao qual entidades
representativas de diversos estados vêm formulando outras propostas e reivindicações,
sendo a principal delas a estruturação da Polícia Penal. Esse embate vem se dando na
esfera do Congresso Nacional, em torno da aprovação da PEC-308, que procura
regulamentar os serviços penitenciários em todo o Brasil, conferindo uma estrutura mais
uniforme e poder de polícia aos trabalhadores dos sistemas penitenciários estaduais.
131
Representantes da categoria defendem que assim os funcionários estariam menos
vulneráveis à ação das facções.
Outro efeito imediato da eclosão do PCC foi a criação e institucionalização do Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD), primeiro nos presídios paulistas (em 2001), e em
seguida, o estabelecimento da possibilidade de sua replicação em todo o território
nacional (pela reforma da LEP em 2003). Teixeira (2006) pesquisou a fundo os
significados desse deslocamento, escrevendo sobre suas circunstâncias:
Assim, logo após a megarrebelião, o Secretário Nagashi, os
coordenadores e um assessor especial que ocupava o cargo de Ouvidor da
SAP, Pedro Armando Egydio de Carvalho, permaneceriam reunidos
durante dias para a elaboração da resolução que instituiria o regime
disciplinar diferenciado RDD, como principal medida anunciada para o
combate das organizações criminosas nos presídios paulistas. Segundo
Pedro Egydio, naquele momento eram intensas as pressões que se exerciam
131
Para maiores informações sobre o projeto de emenda constitucional, seus motivos e circunstâncias,
ver: FEBRASPEN (2009).
157
no sentido de “endurecer” ao máximo o tratamento aos presos envolvidos
em facções e com problemas de indisciplina.(TEIXEIRA, 2006, p.147
grifo meu)
Quase simultaneamente à institucionalização do RDD, no esforço de enfrentar a
existência da facção prisional, foi criado também o Grupo de Intervenção Rápida (GIR),
idealizado e instituído pelo diretor do CDP de Sorocaba, Márcio Coutinho, em 2002.
Segundo esse diretor, os motivos que levaram à sua criação foram: 1 a mudança de
perfil do preso paulista, segundo ele, mais jovem e problemático; 2 os entraves na
mobilização imediata da tropa de choque da Polícia Militar em situações de crise e
risco. “A solução encontrada foi criar um grupo de agentes de segurança penitenciária,
especialmente treinados e equipados para dar a pronta resposta em situações de risco
ou início de rebeliões”; afirma o diretor em entrevista divulgada pela SAP.
132
O projeto
piloto, no CDP de Sorocaba, foi viabilizado através de doações de empresas produtoras
de proteção balística (escudos, capacetes, caneleiras, coletes, etc.) e munições não letais
(bombas de efeito moral, gás de pimenta, bala de borracha, etc.); a SAP apoiou o
projeto intermediando cursos de “Entradas explosivas e táticas”, “Combate em ambiente
fechado”, e “Resgate de reféns de alto risco” na Tactical Explosive Entry School
Brazil (TEES-BR); “Gerenciamento de crises e negociação” na Polícia Militar; e
“Explosivos não convencionais” na Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL);
entre outros. Em 2003, o grupo foi regulamentado por uma resolução da SAP, e
começou a operar ações preventivas
133
em diversas outras unidades do sistema
penitenciário paulista. Com o tempo, novos pelotões foram sendo formados, até o
número de oito unidades que operam atualmente.
As “ações preventivas” são as costumeiras blitzes em pavilhões e unidades prisionais
inteiras, para encontrar armas, drogas e telefones celulares. Nas décadas de 1980 e
1990, esse tipo de prática sucedia rebeliões, e era realizada pelos quadros da Polícia
Militar. A partir da criação do GIR, a SAP não precisa requisitar a colaboração da
SSP e da polícia, podendo realizar autônoma e preventivamente suas revistas massivas.
O caráter dos cursos de formação, os artefatos empregados e a rápida expansão do GIR
indicam a tendência dos novos atributos necessários e valorizados no agente
132
Informação disponível em: http://www.sap.sp.gov.br/common/entrevistas/entr002.html (Consulta em
maio de 2010).
133
Palavras do diretor Marcio Coutinho na já citada entrevista.
158
penitenciário e da obsolescência daqueles conhecimentos práticos de funcionários
como Amaro. Como foi apontado, se a Polícia Penal ainda é uma virtualidade, em
São Paulo, sua “tropa de choque” já é uma realidade estabelecida.
Reajustes são perceptíveis também na própria materialidade do parque penitenciário
estadual e nacional. Em 2002, a Casa de Detenção de São Paulo foi finalmente
desativada e implodida; dois anos mais tarde, a Penitenciária do Estado foi desativada,
reformada e convertida na Penitenciária Feminina de Santana. Em 2006, foram
inauguradas as primeiras prisões federais de segurança máxima em Catanduvas, no
Paraná; e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul
134
para receber as principais
lideranças das principais facções prisionais do país.
135
Um último reajuste a ser destacado diz respeito ao desenvolvimento de uma estratégia
de intensificação das transferências de presos com vistas a minar a implantação da
facção nos interior dos presídios. Esse deslocamento se evidencia na trajetória de Paulo,
que atualmente cumpre pena em regime semi-aberto. Paulo nasceu em 1974, no Paraná,
e migrou para o interior de São Paulo com a mãe quando tinha menos de um ano. Aos
22, em 1996, foi preso por envolver-se num latrocínio. Ficou detido numa carceragem
de delegacia por um ano e três meses, depois de uma tentativa de fuga, foi transferido
para a Casa de Detenção de São Vicente, onde passou aproximadamente seis anos. Por
volta de 2003, Paulo era um dos presos mais antigos e respeitados da casa, e por isso
acabou sendo associado à facção e transferido para a Penitenciária de Mirandópolis. A
partir daí os seis anos seguintes de cumprimento de pena se passaram num perpétuo
remanejamento, sem ficar um ano sequer numa mesma unidade. Apesar dos muitos
convites que recebera, Paulo nunca entrou no PCC, conhecia e tinha bom
relacionamento com os integrantes mais eminentes, assumia posições importantes em
diferentes setores do presídio ao lado deles, mas nunca quis entrar formalmente na
organização. De qualquer maneira, pelo alto respeito que tinha, pela proximidade com
os integrantes da facção, e pelas posições que assumia, tornou-se freqüente objeto de
134
Segundo o Ministério da Justiça, outras duas unidades federais estão concluídas, uma em Mossoró-
RN, outra em Porto Velho-RO, e uma em Brasília-DF está em planejamento. Informações disponíveis
em:
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ887A0EF2ITEMID5AC72BD609F649AEBDB09A5A1D5A28B9P
TBRIE.htm (Consulta feita em maio de 2010)
135
É importante ressaltar que a eclosão do PCC entra em ressonância com as dificuldades encontradas
para definir um lugar de cumprimento de pena para Fernandinho Beira-Mar, considerado um dos líderes
máximos do Comando Vermelho.
159
remanejamentos, sendo submetido a uma saga pelos presídios paulistas. Em menos de
seis anos, passou pelas penitenciárias um e dois de Presidente Venceslau, um e dois de
Lavínia, um e dois de São Vicente, e uma das penitenciárias de Iaras, Campinas,
Tremembé, Iperá, Guareí até chegar ao CPP de Franco da Rocha, quando finalmente
conseguiu o benefício de regime semi-aberto. Segundo Paulo, o maior inconveniente
desse período de transferências contínuas eram as longas viagens num camburão sem
ventilação, com as mãos e os pés algemados, sem alimentação e com pouca água. A
inserção e a adaptação na unidade prisional era rápida e tranqüila, o PCC controlava
todas elas, de modo que os procedimentos e ambiente eram praticamente sempre os
mesmos. E depois de uma década no interior do sistema prisional paulista era
impossível que chegasse a uma unidade em que não houvesse nenhum conhecido para
bem acolhê-lo, oferecendo-lhe uma bermuda, um sabonete, uma toalha e um telefone
para avisar a família do novo endereço.
7.7 - (Re)ações
A cada reajuste num campo do dispositivo, reações se dão em outros campos, num
contínuo ir e vir de causas e efeitos. Às políticas de endurecimento do tratamento
penitenciário via RDD e GIR e de intensificação das transferências, o PCC reagiu,
ampliando seu repertório de práticas. Após a implantação do RDD, entre 13 e 18 de
fevereiro de 2002, três granadas explodiram diante do edifício sede da SAP, no centro
de São Paulo.
136
Em 19 de fevereiro, dispararam contra a porta principal do Fórum de
São Vicente, matando um advogado este foi a primeira vítima fatal de um atentado
atribuído ao PCC na rua. Em outubro de 2002, quando se acabavam os primeiros seis
meses de RDD previstos para aqueles considerados principais líderes da facção, a SAP
estendeu o regime por mais seis meses. Logo, o PCC voltou a atacar com bombas e
disparos, diversos edifícios do aparato judiciário e policial. A partir de então se
consolida essa possibilidade de desdobrar um conflito interno ao sistema penitenciário
no ambiente aberto. É nesse novo horizonte de possibilidades de expressão de uma das
136
As informações sobre os atentados do PCC em ambiente aberto estão em: SOUZA (2007).
160
disputas inerentes ao dispositivo carcerário que se inserem os trágicos eventos de maio
de 2006, quando o PCC, reagindo a transferência de 765 detentos para um presídio de
Presidente Venceslau, promoveu a segunda megarrebelião e mais de 200 atentados em
ambiente aberto.
137
Porém, é importante ressaltar que as reações a alguns dos reajustes não se restringem às
dimensões tectônicas do repertório de práticas da facção prisional, sendo também
observáveis nas esferas gravitacionais do dispositivo. Por exemplo, em torno do RDD
se mobilizou todo um conjunto de agentes e entidades civis contrários à medida.
Teixeira (2006) menciona abaixo-assinados promovidos pela Pastoral Carcerária, bem
como a incisiva atuação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), que
questionou publicamente a legalidade da resolução, por meio de artigos, debates e
editoriais em suas publicações.
Ademais, nesse contexto de ampla reconfiguração do dispositivo carcerário, outras
tantas ações e reações concorrem em suas esferas gravitacionais, inclusive desdobrando
sob uma nova correlação de forças alguns embates históricos em torno das perpétuas
questões da violação dos direitos dos presos, das péssimas condições de cumprimento
de pena, das nulas possibilidades de ressocialização, etc. A efetiva estruturação de dois
aparatos judiciários de promoção dos direitos dos presos que estavam previstos em lei
desde a década de 1980 exatamente no período de maior esforço de endurecimento
penal, mostram como os reajustes e reações no interior do dispositivo são múltiplos,
complexos e, às vezes, contraditórios. Só pela perspectiva de um campo complexo e
multifacetado que se articula ao redor de uma prisão sempre extremamente precária, que
se pode apreender a quase simultaneidade da estruturação de aparatos de endurecimento
punitivo como o GIR e o RDD, ao lado de aparatos de realização de direitos, como é o
caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e do Conselho da Comunidade da
Comarca de São Paulo.
Os serviços de Defensoria Pública estavam previstos desde a Constituição Federal de
1988, mas no estado de São Paulo, até 2006, eram viabilizados através de um arranjo
institucional quase informal. A Procuradoria do Estado “emprestava” alguns de seus
quadros para os serviços de defesa pública em todas as áreas do direito. No campo da
137
Sobre os eventos de maio de 2006, ver: ADORNO e SALLA (2007) e GRIMBERG (2009).
161
execução penal, o trabalho dos pouquíssimos procuradores-defensores públicos era
complementado, de um lado, por advogados da FUNAP fundação governamental
ligada à administração penitenciária ; e de outro, por advogados autônomos,
intermediados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entidade civil de
representação dos advogados que assumiam casos e recebiam remuneração por
produtividade (esses são conhecidos como “dativos”). A quase formalidade da defesa
pública era extensiva a esses dois coletivos. No âmbito informal, a assistência jurídica
gratuita era complementada ainda pela atuação de entidades como a Pastoral Carcerária,
que mobilizavam o trabalho voluntário de advogados como Pedro.
Desde 2002, na base desse aparato improvisado de defesa, foi se estruturando um novo
sistema de atendimento ao público. No Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo,
a Procuradoria e a FUNAP criaram um setor composto de três salas, nas quais
procuradores-defensores, advogados da FUNAP, e uma equipe de estagiários, faziam o
atendimento direto de egressos, sentenciados em regime aberto e familiares de presos.
Centenas de senhas passaram a ser diariamente distribuídas, para que os interessados
tivessem acesso ao andamento de seus processos, ou de seus familiares, e conforme as
circunstâncias, pudessem requerer progressão de regime, e outros benefícios legais. A
centralização desses serviços de atendimento num espaço de referência da cidade de São
Paulo representou um significativo deslocamento nesse âmbito de práticas estatais, que
anteriormente espalhavam-se num indecifrável labirinto kafkiano de comarcas, varas e
repartições.
Também em 2002, um conjunto de diversas organizações civis algumas
remanescentes, outras herdeiras das lutas e movimentos da década de 1980, e outras
novas que foram surgindo com o passar do tempo lançou o Movimento pela
Defensoria Pública em São Paulo
138
, apresentando um projeto de lei que
138
Cuja direção contava com representantes das seguintes instituições: Conselho Estadual de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE); Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (CTV);
Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do
Estado de São Paulo (SINDIPROESP); Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da
USP; Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-Brasil);
Fala Preta Organização das Mulheres Negras e Centro de Direitos Humanos do Sapopemba (CDHS).
162
regulamentasse a sua criação. Entre idas e vindas, manifestações públicas e pressão na
Assembléia Legislativa, a Defensoria foi finalmente instituída, em janeiro de 2006.
139
O complexo arranjo institucional dos serviços de defesa pública na área penitenciária
rede de defensores, advogados da FUNAP e “dativos” não se modificou
substancialmente com a criação da Defensoria Pública, mas ganhou um outro ponto de
ancoramento na estrutura estatal, com maior autonomia e maiores possibilidades de
expansão. Segundo um defensor entrevistado, a Defensoria iniciou suas atividades
contando com um quadro de 400 defensores, o que representava um grande salto frente
os cerca de 80 procuradores-defensores que atuavam na área anteriormente, e em 2009,
novo concurso foi aberto para a contratação de mais 100 profissionais. Além disso, o
mesmo defensor conta que, assim que a Defensoria iniciou suas atividades, em sua
cúpula, foram estruturados diversos núcleos especializados em diferentes áreas do
direito, com o fim de qualificar a intervenção da instituição e promover ações judiciárias
consideradas estratégicas. Um deles é o núcleo especializado em “Situação
Carcerária”
140
, que visa principalmente a formulação de intervenções judiciárias de
caráter difuso ou coletivo, como o direito ao voto dos presos preventivos. É evidente
que tais deslocamentos alteram significativamente o campo dos embates jurídicos no
interior do dispositivo carcerário paulista.
Parece-me importante situar a estruturação dos serviços de defensoria pública em São
Paulo nesse mais amplo processo de reconfiguração do dispositivo carcerário, que se
no começo dos anos 2000, também porque ela vinha a responder urgências que ficavam
cada vez mais patentes para os operadores do sistema prisional e para a sociedade em
geral. No mesmo ritmo em que aumentava a população carcerária, aquele muito
precário arranjo institucional quase informal se debilitava. Sua capacidade de fluxo
processual se reduzia, de tal modo que pessoas presas em condições de aceder a
benefícios de progressão de regime, ou à própria liberdade, ficavam retidas no sistema
prisional, e esse era um dos combustíveis mais inflamáveis que ardiam em diversas das
rebeliões articuladas e deflagradas pelo PCC. Nesse sentido, uma conquista histórica de
139
Para mais informações sobre o processo de estruturação da Defensoria Pública de São Paulo, ver:
MELO (2007), MUNIZ (2009) e SOARES (2009).
140
Ver: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=3016 (Consulta feita em maio de
2010)
163
um movimento social também histórico, é ademais uma reação urgente a uma crise
deflagrada.
No mesmo contexto de criação da Defensoria, dava-se um segundo processo de
(re)estruturação de práticas estatais bastante pautado pela pressão e intervenção, de um
lado, de históricas entidades civis de promoção de direitos, e de outro, pelas forças da
urgência decorrentes de um sistema prisional precarizado e em crise. Trata-se da
estruturação dos Conselhos da Comunidade, previstos como órgãos auxiliares de
execução penal desde a LEP de 1984, mas que só no final dos anos 1990 e começo dos
2000 foram se concretizando. Sob essa rubrica todo um mundo social de agentes e
práticas, estatais e não-estatais, vai se estruturando. Entre 2007 e 2008, o Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN) organizou um diagnóstico dos Conselhos da
Comunidade em todo o país, identificando a existência de 639 conselhos instalados em
23 estados, no ano de 2006. o estado de São Paulo concentrava 89 desses conselhos
(DEPEN, 2008).
A designação de um “mundo social” em estruturação não é arbitrária, faz referência a
imensa variabilidade da composição e da atuação que existe entre os conselhos, ou
mesmo no interior de um deles. Segundo o DEPEN, existem aqueles conselhos
instalados mas que não funcionam, aqueles que funcionam mas não cumprem
integralmente suas atribuições legais
141
, e aqueles que as cumprem. Existem ainda
conselhos compostos integralmente por funcionários do aparato penitenciário e de
justiça.
142
Quando participação de representantes da sociedade civil, esta também é
muito variada. Segundo alguns conselheiros entrevistados, existem desde conselhos de
uma pessoa como em São Vicente, cujo único conselheiro é um agente da Pastoral
Carcerária até conselhos, como o de São Paulo, de composição mais ampla e
extremamente variada, reunindo representantes da Pastoral Carcerária, Defensoria
Pública, Serviço Social da Indústria (SESI), Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo (FIESP), Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São
Paulo (FECOMERCIO), universidade, organizações não-governamentais, alguns
advogados criminalistas, ex-funcionários do poder judiciário e até um egresso. O
141
Principalmente no que diz respeito ao envio de relatórios periódicos ao juiz da Vara de Execuções
Penais da comarca.
142
Esse é o caso do Conselho da Comunidade do Espírito Santo, segundo o DEPEN (2008), e do
Conselho da Comunidade da Comarca de Guareí-SP, segundo um conselheiro de São Paulo, entrevistado
em 2009.
164
Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo que tive a oportunidade de
conhecer mais de perto foi constituído em 2005 e tem um perfil marcadamente
fiscalizador das instituições prisionais, valorizando as visitas às unidades, a elaboração e
encaminhamento de relatórios ao juiz corregedor e o acompanhamento de casos
específicos de presos mantidos sob certas condições irregulares. Ainda, os conselheiros
promovem, na medida das possibilidades e não sem dificuldades, cursos
profissionalizantes para grupos de presos da região sob sua jurisdição. Eis mais uma
peça que se agrega ao dispositivo, que impõe maior complexidade ao seu processo de
reconfiguração, e que acaba por abarcar e promover a gravitação de um conjunto maior
e mais diversificado de agentes, práticas e discursos em torno do problema
penitenciário.
Mas, no decorrer da pesquisa, foi possível ainda identificar outras ações e reações que
remetem cada vez menos aos campos gravitacionais do encarceramento que vão se
constituindo desde a década de 1980. Jozino (2006, 2008) relata que, em 2001, em
oposição ao estabelecimento do RDD, um grupo de mulheres de presos (alguns ligados
ao PCC) constituiu a Comissão de Parentes e Amigos de Detentos do Estado de São
Paulo (CEPAD), que chegou a realizar reuniões na Câmara de Vereadores da capital, a
contar com o apoio de advogados, assessores parlamentares, organizações não-
governamentais de defesa dos direitos humanos, inclusive da Pastoral Carcerária.
Porém, sem conseguir impedir a instalação do RDD, a CEPAD foi dissolvida ainda no
final de 2001. Logo, esse emergente campo político de familiares e amigos de presos,
não obstante sua conformação em um contexto democrático, vai acabar sendo mais
comumente associado à criminalidade, e em especial à facção.
Em 18 de abril de 2005, ocorreu na frente da SAP a maior manifestação pública de
familiares e amigos de presos que se tem notícia: mais de oito mil pessoas, que vieram
de todo o estado em duzentos ônibus, reuniram-se para protestar contra as alterações
promovidas pela SAP no regulamento da visita aos presídios, que acabavam com a
possibilidade de “dobradinha” a realização de visitas aos sábados e domingos.
Segundo Jozino (2006), esse movimento não contava com o apoio de entidades como
a Pastoral Carcerária e nem de outras organizações defensoras de direitos humanos. O
secretário da administração penitenciária recebeu uma comissão das familiares e ouviu
suas reivindicações. Porém, as componentes da comissão recebida pelo dirigente da
165
SAP tiveram seus telefones grampeados e foram continuamente investigadas pela
polícia, de modo que, em pouco tempo, muitas delas se encontravam presas, sob
acusações diversas. Outra manifestação análoga se deu em 2007, dessa vez em Brasília,
e organizada por uma associação de familiares de presos do Oeste Paulista. Jozino
(2008) afirma que, nessa ocasião, por volta de duas mil pessoas se reuniram diante do
Congresso Nacional, e uma pauta de reivindicações foi entregue ao presidente da CPI
do Sistema Carcerário, que se desenrolava na ocasião. Da mesma forma, investigações
foram iniciadas para apurar o envolvimento do PCC na organização da manifestação.
Desses episódios pontuais infere-se a existência de um processo de estruturação de um
campo político de familiares e amigos de presos do estado de São Paulo, que se nos
limiares da criminalização. A cada eclosão pública desse tipo de movimento, o aparato
estatal logo associa a participação do “crime organizado”, acusando a facção prisional
de financiar e planejar as atividades.
Sem a pretensão de refutar ou comprovar essas suspeitas das agências estatais, o que
interessa demarcar aqui é que no campo gravitacional do dispositivo carcerário circula
uma miríade de agentes e instituições, com diferenciados processos de estruturação,
com diversos campos de atuação, e com diferentes padrões de relacionamento com as
agências estatais, e que não obstante tanta diversidade, todos eles, direta ou
indiretamente, são solapados e obrigados a reagir a um dispositivo que se reestrutura em
todos os níveis, desde suas mais profundas camadas tectônicas.
7.8 - Reverberações
O processo de (re)estruturação do dispositivo carcerário paulista nas últimas décadas,
como se procurou demonstrar, é, efetivamente, marcado pela emergência do PCC,
representando um verdadeiro abalo sísmico em todo o campo. Porém não se deve
reduzir a (re)estruturação do dispositivo aos deslocamentos mais diretamente
relacionados ao problema da facção. No decorrer da pesquisa foram identificados outros
elementos do campo que se estrutura ao redor da prisão que, embora também reflitam
166
sinais do grande abalo, passam por outras cadeias de variáveis e são conformados por
outros processos históricos e sociais. Uma vez que se considera o dispositivo como uma
ampla rede articulada de agentes, práticas e discursos, que se desdobra para além do
domínio mais direto de um sistema prisional estadual, torna-se possível pontuar nessa
cartografia uma série de outras peças, de elementos dispersos em outros pontos e escalas
territoriais que, com mais ou menos força, também fazem da prisão uma referência
circulante para muito além de seus limites físicos e institucionais.
Refere-se aqui a uma dimensão do dispositivo que tampouco se confunde com o campo
gravitacional de agentes, práticas e discursos que desde fora da prisão disputam as
condições de cumprimento de pena, que defendem ou atacam os direitos humanos, e
que armam tantas outras disputas em torno do encarceramento. Trata-se de zonas de
reverberação nas quais a prisão também emerge como questão, também é
problematizada, e que, portanto, também compõem o dispositivo, conectando-se, de
diversas maneiras, a suas camadas tectônicas e gravitacionais, sem serem redutíveis a
elas.
A progressiva centralidade da prisão em produções recentes do jornalismo investigativo,
a especialização de jornalistas no tema prisional e o crescente volume dessa produção
no Brasil poderiam ser vistos como sinais da conformação de uma dessas importantes
zonas de reverberação. Por meio dessa produção são formulados discursos, denúncias,
críticas e apologias do sistema carcerário, por meio deles “verdades” sobre a prisão são
constituídas, seus segredos são desvendados, sua dura realidade transborda, seus
problemas afetam. Por meio desses verdadeiros vetores de expansão, o dispositivo
carcerário alcança domínios sociais imprevistos.
A enumeração de alguns agentes estratégicos desse campo pode ajudar a melhor
demarcá-lo nessa cartografia. Começaria, então, com alguns exemplos de jornalistas
especializados que “desvendaram” os meandros prisionais para o grande público. Em
primeiro lugar, o pioneiro jornalista Percival de Souza, que desde A Prisão: histórias
dos homens que vivem no maior presídio do mundo(1977), O Prisioneiro da Grade
de Ferro(1983), até o Sindicato do Crime: PCC e outros grupos(2006), publicou
mais de uma dezena de livros que abordam a realidade prisional e suas adjacências. Em
segundo lugar, o jornalista carioca Carlos Amorim, que em Comando Vermelho: a
história secreta do crime organizado (1993) foi um dos primeiros a formular
167
publicamente a hipótese de colaboração entre presos políticos e comuns, no presídio da
Ilha Grande, para explicar a origem da principal facção prisional do Rio de Janeiro
argumento que se desdobrou em seu segundo trabalho CV-PCC: a irmandade do
crime(2003). Em terceiro lugar, Caco Barcellos, jornalista que se consagrou com o
livro Rota 66: a polícia que mata(1997), e chegou à prisão contando a vida de um
traficante carioca em Abusado: o dono do morro Dona Marta (2003). Em quarto
lugar, Antonio Carlos Prado, que depois de sete anos desenvolvendo trabalhos
voluntários num presídio feminino, publicou Cela Forte Mulher(2003). A citada
Fátima Souza, autora de PCC: a facção (2007), que em 1997 foi a jornalista
responsável pelo “furo” de noticiar a existência do PCC, e o também citado Josmar
Jozino, que em Cobras e Lagartos: a vida íntima e perversa nas prisões brasileiras
(2006) e em Casadas com o Crime (2008) explora a realidade prisional paulista
contemporânea a partir de contatos com as mulheres dos presos mais influentes de São
Paulo.
Porém, não são apenas os jornalistas investigativos que se arriscam a tornarem públicos
os segredos das instituições penitenciárias. O promotor de justiça do estado de São
Paulo, e membro do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado
(GAECO), Márcio Christino, aventurou-se na literatura com Por Dentro do Crime:
corrupção, tráfico, PCC (2003), uma narrativa policial, na qual muito de sua
experiência profissional parece ser traduzida em termos ficcionais. Os advogados
criminalistas Anselmo Neves Maia e Mário Sérgio Mungioli conhecidos por
defenderem algumas lideranças do PCC
143
também se aventuraram a plasmar suas
experiências profissionais em ensaios reunidos no livro Prisioneiras da Opressão:
aspectos da vida de familiares e amigos de internos no sistema prisional (2002),
editado por AFAISCA sigla de Associação de Familiares e Amigos de Internos do
Sistema Carcerário.
A fotógrafa Maureen Bisilliat produziu e organizou o livro Aqui Dentro: páginas de
uma memória - Carandiru (2003), no qual suas fotos do interior da prisão são
mescladas a relatos e entrevistas de presos que vivenciavam o ocaso do maior presídio
da América Latina, a Casa de Detenção de São Paulo. Obviamente, não poderia excluir
143
Em diferentes ocasiões ambos foram presos, acusados de prestarem serviços ilegais ao “crime
organizado”.
168
desse sumário, o best-seller do médico Dráuzio Varella, Estação Carandiru(1999),
que por sua ampla circulação certamente foi para muitos um primeiro contato mais
intimista com a realidade do sistema prisional paulista.
Se se afasta ainda mais do campo de produção jornalística para adentrar de vez no
mundo da literatura, é preciso considerar toda uma outra linhagem de produções que se
multiplicaram nos últimos anos: a dos relatos auto-biográficos de presos e egressos, que
narram em primeira pessoa os subterrâneos do sistema prisional. Eis alguns exemplos
importantes: 1 o livro Beco Sem Saída: eu vivi no Carandiru(1999) de Neninho de
Obaluaê, histórico militante do movimento negro paulista; 2 Diário de um Detento
(2001) de Jocenir, que ganhou notoriedade por compor com Mano Brown música
homônima; 3 os livros de Luis Alberto Mendes, Memórias de um Sobrevivente
(2001) que conta sua experiência em instituições penais para menores e nos presídios
na década de 1970 e Às cegas (2005) focado em sua trajetória no decorrer da
década de 1980 e início da de 1990; 4 Quatrocentos contra um: uma história do
Comando Vermelho(2001) de William da Silva Lima, membro fundador da principal
facção prisional carioca; 5 - Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru)
(2002), uma parceria de André du Rap e Bruno Zeni; e 6 Letras de Liberdade
(VÁRIOS AUTORES, 2000), coletânea de contos premiados num concurso de
literatura desenvolvido no interior do sistema prisional paulista.
A mera enunciação desses exemplos é suficiente para fazer uma idéia da dimensão
discursiva do dispositivo carcerário, de uma verdadeira zona de reverberação onde
diferentes aspectos e momentos do dispositivo são colocados em evidência, trazidos à
tona, problematizados. Essa zona de reverberação se expande ainda mais se se
considerar que muitas dessas formulações literárias sobre a prisão foram amplamente
difundidas quando traduzidas em outros formatos, de maior alcance, como o cinema. O
momento conhecido como de retomada do cinema brasileiro (anos 2000) é pontuado
por mega-produções que colocam a prisão em primeiro plano. Carandiru(2002), de
Hector Babenco, foi um grande sucesso de bilheteria inspirado no livro de Varella.
Quase Dois Irmãos(2004), de Lucia Murat, fundamenta-se em algumas formulações
de Amorim. Salve Geral (2009), de Sergio Rezende, é uma narrativa ficcional
baseada em fatos reais que traz algumas informações sistematizadas por Fátima Souza e
Josmar Jozino. Para agosto de 2010 está previsto o lançamento nacional de 400 contra
169
1: a história do Comando Vermelho”, de Caco Souza, que traduz para o cinema os
relatos autobiográficos de Lima, o “Professor” do Comando Vermelho. Também
poderia citar o documentário quase etnográfico intitulado O Prisioneiro da Grade de
Ferro(2003), de Paulo Sacramento, que leva o nome do livro de Percival de Souza,
mas que é uma montagem de materiais produzidos pelos próprios detentos do Carandiru
durante uma oficina de cinema; e “Entre a Luz e a Sombra” (2009), de Luciana
Burlamaqui, que, entre outras histórias, acompanha a trajetória de um muito conhecido
grupo de rap, criado no interior do sistema penitenciário paulista.
144
Deixando o campo das mega-produções e explorando o universo dos curtas-metragens,
a produção cinematográfica sobre a prisão torna-se ainda mais prolixa e variada. Alguns
exemplos serão suficientes para demonstrá-lo: 1 Dia de Visita(1988), de Reinaldo
Pinheiro e Umberto Martins, é um documentário que explora a realidade das mulheres
que visitam os seus maridos presos; 2 a mesma temática foi trabalhada por Claudio
Nunes e Juliana Cristina da Penha, em Aqui Fora (2004); 3 Agna (2007), de
Márcia Machado, conta a trajetória de uma presidiária de Brasília; 4 Clarissas
(2005), de Tiago Gomes, documenta o cotidiano de um presídio feminino do Rio de
Janeiro; 5 Cuidar de Quem Cuida” (2006), de Gijs Andriessen e Rose Dalney,
apresenta e discute questões relativas ao cotidiano dos agentes penitenciários cariocas; 6
Dia do Caçador(2005), de Carlos Kleber, é uma animação que narra uma tentativa
de fuga do presídio da Ilha Grande; 7 Freqüência Hanói(2006), de Daniel Lisboa e
Diego Lisboa, realizado a partir da utilização clandestina de celulares num presídio
baiano; 8 Contatos(2000), de Rene Sampaio, é uma narrativa surrealista, na qual
detentos de um presídio de segurança máxima são abduzidos por extraterrestres.
145
Por
esse conjunto de exemplos é possível afirmar que o cinema nacional também foi
arrebatado pelo encarceramento, ampliando em muito o escopo do campo de produção
de discursos e envolvimento de agentes no interior do dispositivo carcerário.
Também se deve considerar o mundo dos saberes especializados como uma importante
zona de reverberação que estrutura o dispositivo carcerário. Existe uma vultosa
produção discursiva sobre a prisão nos campos jurídico, médico e criminológico, que
144
Seguramente o rap é também uma peça prática e discursiva que (re)estrutura o dispositivo carcerário.
Infelizmente não foi possível contemplá-la nessa cartografia.
145
Todos os curtas citados estão catalogados, e alguns deles disponíveis, em: www.portacurtas.com.br
(Consulta em maio de 2010).
170
por sua vastidão aqui não poderá ser explorada, apenas apontada. Já para o campo das
ciências sociais, é possível recorrer ao trabalho de Salla (2006b), quando discute a
evolução das pesquisas acadêmicas sobre o tema prisional nessa área do conhecimento.
Segundo esse autor, no Brasil, a prisão tardou a despertar o interesse dos cientistas
sociais, ficando, desde o século XIX até a segunda metade do século XX, mais restrita
ao leque de interesses dos juristas e criminólogos. Na década de 1970 surgem os
primeiros trabalhos que abordam as prisões brasileiras através de questões e métodos
mais próximos da sociologia e da antropologia. Os trabalhos de Thompson (2002),
publicado originalmente em 1976, e de Ramalho (2002), em 1979, podem ser
considerados marcos inaugurais desse campo de reflexão. No decorrer das décadas de
1980 e 1990, no contexto de redemocratização do país e de persistência de problemas
históricos nas prisões relacionados com a superlotação, com as graves violações de
direitos, com a violência reinante o interesse sobre o tema prisional nas ciências
sociais se consolida. Nesse período cria-se um campo de debate sobre a prisão nas
ciências sociais brasileiras que, embora relativamente reduzido, envolve um número
significativo de importantes pesquisadores e instituições. a partir dos anos 2000, a
produção acadêmica desse campo recebe um forte incremento, processo que assim é
explicado por Salla:
A regularidade na produção ao longo dos anos 1990 dos estudos
produzidos na universidade sobre questões prisionais e depois seu
considerável aumento nos anos 2000 estiveram associados a dois fatores.
Em primeiro lugar, a instável situação da área de segurança pública no
país com o aumento da criminalidade, as deficiências do aparato de
repressão, as taxas crescentes de encarceramento mantiveram em destaque
a agenda dos debates sobre as rebeliões, a superlotação, a violência, a
tortura, o papel da prisão na sociedade, sobre a sua capacidade de controle
sobre o crime e sobre as perspectivas de reintegração dos presos à
sociedade. Em segundo lugar, a produção de alguns professores entre os
anos 1980 e 1990, e sua atuação em torno do tema em fóruns acadêmicos,
revelava a disponibilidade de quadros especializados e estimulava o
aparecimento de novos estudantes interessados na área que passavam a
contar com orientadores para os seus trabalhos.” (SALLA, 2006b, p.6)
171
Salla ainda sugere que essa explosão dos saberes que se voltam para a prisão é
acompanhada de um processo de diversificação temática, com o pensamento social se
detendo em diversos aspectos do encarceramento, como a educação penitenciária, os
serviços sociais voltados para a prisão, a dinâmica das relações entre os presos, as
funções do agente penitenciário, a saúde física e mental nas instituições prisionais, o
trabalho no cárcere, o encarceramento de mulheres, a história das prisões, etc. Essa
diversificação dos temas prisionais acaba por conferir uma dimensão discursiva a
elementos do dispositivo que anteriormente se restringiam a uma existência prática (ou
muda). E o movimento inverso também parece ser realizado, quando problemas
formulados no campo acadêmico são transpostos e inscritos no dispositivo via diversos
agentes, que mobilizam esses saberes para municiar intervenções práticas.
Um interessante indicador desse trânsito é a emergência do Grupo de Diálogo
Universidade-Cárcere-Comunidade (GDUCC), projeto de extensão universitária do
Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da USP. Suas
atividades começam em 2006, sob orientação dos professores de criminologia Alvino
Augusto de Sá e Sérgio Salomão Schecaira. Nesse projeto, estudantes de diversas
disciplinas desenvolvem estudos sobre a realidade prisional e o processo de reintegração
social, e realizam um programa de atividades no interior da Penitenciária José Parada
Neto, em Guarulhos. Tive a feliz oportunidade de participar do início das atividades da
segunda edição desse projeto, em 2007. As reuniões com grupos de presos no interior
da penitenciária objetivam aproximar os estudantes da realidade carcerária e os presos
do mundo exterior, através de dinâmicas de grupo variadas. Sem deter-me numa
discussão sobre o conteúdo do projeto, o que interessa aqui apontar é o crescente
interesse que essa experiência vem despertando.
146
Desde 2008, os coordenadores
realizam seleção de candidatos para o preenchimento das trinta vagas, e para a edição de
2009, mais de cinqüenta estudantes se inscreveram. Ademais, essa modalidade de
experiência já está sendo replicada. Alguns participantes das primeiras edições do
GDUCC fundaram o Instituto de Ação Contra Cena, e em parceria com Associação dos
Advogados de São Paulo (AASP), em 2009, promoveram o “Curso transdisciplinar de
criminologia penitenciária e execução penal”, que contemplava formação teórica com
146
Para mais informações sobre o GDUCC, ver: BRAGA e BRETAN (2008).
172
especialistas alguns dos coordenadores do GDUCC e visitas regulares à
Penitenciária Feminina de Santana.
Portanto, poderia descrever as zonas de reverberação desde a literatura até a academia
como feixes discursivos que se articulam com práticas em diversos setores do
dispositivo, mas que, por sua própria discursividade, acabam também se descolando das
práticas específicas que as conformaram e circulando por todo o dispositivo,
reverberando uma situação específica, um processo situado, uma prisão determinada por
todo o campo que se articula ao redor da prisão, redefinindo os contornos e traçados
desse próprio campo. Por outro lado, do mesmo modo, discursos leigos ou
especializados também acabam por se inscrever em práticas situadas, em
intervenções, em reivindicações, em disputas. O egresso que escreve sua autobiografia,
a militante feminista que pesquisa os presídios femininos, o jornalista que recruta
informantes no interior da prisão, por exemplo, desde postos de enunciação
completamente distintos produzem, articulados, uma massa discursiva sobre o
encarceramento e suas “verdades”, e essas “verdades” são mobilizadas em outros pontos
da rede, quando um estudante vai desenvolver um programa de reinserção para
egressos, um instituto de pesquisa vai prestar assessoria a uma agência governamental,
ou um coletivo de amigos e familiares de presos se reúne para lutar por uma causa, etc.
É exatamente por essa constitutiva fluidez entre discursos e práticas, que as zonas de
reverberação não são redutíveis aos campos gravitacionais, nem às camadas tectônicas
do dispositivo, ao mesmo tempo em que refletem os movimentos e deslocamentos que
se dão em cada uma dessas dimensões que o compõem.
7.9 - Enlaces
Esferas gravitacionais, camadas tectônicas e zonas de reverberação são como três
macro-regiões do dispositivo carcerário que puderam ser cartografadas no decorrer
dessa pesquisa. Como se procurou demonstrar, dentro delas, entre elas e para além
delas, múltiplos agentes, práticas e discursos se articulam e circulam numa rede
complexa que se estrutura ao redor e através da prisão, e que se chamou de dispositivo
173
carcerário. Agora, para interromper essa cartografia, retomo as trajetórias de Pedro e
Amaro, procurando esboçar o percurso que empreenderam depois de se afastarem do
sistema penitenciário paulista naquele fatídico ano de 2001, para em seguida ressituá-los
no mapa do reconfigurado dispositivo carcerário.
Em 2001, Pedro iniciou sua formação religiosa para tornar-se um missionário da Igreja
Católica. Seu processo formativo lança luz sobre as condições de possibilidade de
tamanha presença de agentes religiosos na estruturação de múltiplas entidades e
organizações civis em torno da questão prisional, e não dela. Pedro foi formado num
verdadeiro périplo pelos problemas sociais do mundo contemporâneo: prestou
assistência jurídica a camponeses sem-terra no interior da Bahia; junto ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e à Pastoral da Terra no Pará; fez
“estágios” pastorais em favelas na Nicarágua e em prisões da Bolívia. Em seguida,
ingressou num seminário em Goiânia, onde cursou Filosofia e Teologia, enquanto
intensificava a atividade na Pastoral Carcerária. Segundo ele conta, nesse período que
efetivamente se familiarizou com os trâmites jurídicos da execução penal, prestando
assistência jurídica cotidianamente nos presídios da região.
Depois de formado missionário, a meados de 2005, Pedro veio integrar a direção da
seção estadual da Pastoral Carcerária. Este era um momento decisivo da (re)estruturação
do campo: o momento em que a Pastoral Carcerária e diversas outras entidades civis,
que se articulavam em torno da questão prisional, não dialogavam com as altas
esferas estatais, mas, efetivamente, as (re)estruturavam. Pedro retornou a São Paulo no
auge do movimento pela estruturação da Defensoria Pública, acompanhando os
episódios mais determinantes desse longo processo.
Depois de dois anos atuando na direção estadual da Pastoral Carcerária, Pedro foi
convidado a colaborar na direção nacional da entidade. Nessa nova posição ele pôde
conhecer os sistemas prisionais de todo o mundo: dos Estados Unidos à Tailândia,
passando por diversos países da Europa e América Latina. No Brasil, sua vida também
foi viajar, ministrando cursos de formação para os mais de 3.000 agentes pastorais que
visitam presídios em todo o país. Não obstante siga fazendo intervenções pontuais de
assistência jurídica e religiosa, seu foco de atuação ampliou-se sobremaneira, de tal
modo que, além de denunciar casos de violações de direitos num xadrez de delegacia,
também se articula com congressistas e assessores parlamentares para barrar algumas e
174
promover outras mudanças legislativas no campo penal, articula representantes de
diversas religiões em prol da liberdade religiosa no cárcere, participa de debates
públicos sobre a criminalização da pobreza, a funcionalidade ou não das penas
alternativas, as possibilidades do voto dos presos, etc. No final de 2009, Pedro voltou ao
ambiente universitário, ingressando no mestrado em direito na Universidade de Brasília
(UNB), para desenvolver projeto de pesquisa sobre os sistemas de monitoramento
eletrônico de sentenciados, adentrando também numa zona de reverberação de escala
internacional. Como se pode perceber, se se acompanhasse as múltiplas atividades
atuais de Pedro, mesmo que num brevíssimo lapso de uma semana, seria possível
realizar toda uma outra cartografia do dispositivo carcerário, e não paulista, mas
nacional e global, que é nessa escala que atualmente se desenrolam muitas de suas
articulações e movimentações.
Amaro, mais a contra-gosto e mais de longe, também se manteve atado ao dispositivo
carcerário. Quando deixou de trabalhar na Penitenciária do Estado, em 2001, um
problema que já se esboçava na sua vida se radicalizou: o alcoolismo. Amaro passou um
período entre o embriagar-se e as tentativas de recomeçar a vida, enquanto tirava todas
as férias e licenças-prêmio acumuladas em tantos anos de serviço. Tentou voltar ao
ramo das próteses dentárias, mas sua coordenação motora estava comprometida pelo
vício. Quando seus dias de afastamento estavam para acabar, aconselhado pela esposa,
Amaro procurou tratamento psiquiátrico para livrar-se do álcool, conseguindo assim
mais um período de vínculo com a administração penitenciária, agora sob licença
médica. Determinado a recomeçar, pediu internação numa clínica de desintoxicação,
pois sabia que essa condição de licenciado por motivos médicos não se sustentaria por
muito tempo, além de ter o problema agravante da significativa redução salarial que o
afastamento implicava. As contas se acumulavam e era imperioso que ele retomasse o
equilíbrio para conseguir um novo trabalho, a internação foi a medida radical que ele
julgou necessária.
Porém, na clínica, Amaro se deu conta de como seria difícil desvencilhar-se daquele
passado de prisão. Uma vez internado numa instituição relativamente parecida com as
que trabalhara, reviveu muito do que era o encarceramento que tão bem conhecia,
que agora não mais na posição de vigilante, mas de vigiado. A clínica era particular e
mantinha convênio com o governo estadual, de modo que abrigava pessoas de classe
175
média, dependentes de diversas drogas, e funcionários públicos licenciados, também por
motivos vários. Amaro foi alocado num quarto com outro agente penitenciário, e um
investigador de polícia, ambos sofrendo do mesmo mal que lhe afligia: o alcoolismo.
Logo, os três criaram uma boa amizade, jogavam baralho, faziam exercícios, contavam
histórias, viam televisão, sempre juntos.
Conforme ia se adaptando à rotina da instituição e conhecendo melhor o grupo de
internos, Amaro foi percebendo que havia certas coisas que não estavam “certas”
naquela clínica. Um menino rico que, na cantina, seguidamente extorquia um senhor de
idade depressivo; notícias de furtos diversos iam circulando durante um jogo de cartas;
um rapaz destratava as enfermeiras e caçoava dos pacientes psiquiátricos mais graves,
que ficavam atados à cama; outro sujeito, pelo porte avantajado, agredia a quem quer
que fosse e por qualquer motivo. Amaro ia levantando informações, identificando os
“errados”, registrando mentalmente cada falta, até que um dia resolveu tomar uma
atitude e mostrar que, naquela clínica, uma ordem deveria imperar. Conversou sobre o
assunto com seus companheiros de quarto, que sem vacilar, aderiram à causa de
moralizar o recinto através da violência.
Numa tarde, carpindo o campo da clínica, Amaro encontrou uma serra e a furtou,
levando-a para seu quarto. Com ela, serrou os estrados das camas e construiu com os
pedaços de madeira, três porretes. No dia seguinte, devidamente municiados, os três
fizeram o grande “acerto de contas”. Agrediram a socos e pauladas cada um dos
desafetos, sempre concluindo o “corretivo” com orientações para que deixassem aquela
clínica e procurassem outro lugar para se tratar, como “faxinas” que mandam desafetos
para o “seguro”. Amaro encarnava a prisão: o furto da serra, a manufatura de armas, o
formar um coletivo, o arquitetar de um plano, o “acerto de contas”; tudo Amaro
realizava numa atitude híbrida, um pouco de preso, um pouco de agente penitenciário.
Porém, a clínica não era a prisão, todos os agredidos denunciaram Amaro e seu grupo,
sem o menor temor da represália. No fim das contas, Amaro e seus colegas é que foram
expulsos da instituição; tiveram alta antecipada. Envergonhado, mas sem saber o que
poderia ter feito de diferente, Amaro deixou a clínica sentindo-se atado à prisão por
dentro, pela mente, pela alma.
Outra vez na rua, não deixou totalmente a bebida, mas conseguiu aos poucos se situar
no mercado de trabalho. Envolveu-se numa cooperativa de reciclagem do bairro, e
176
atualmente trabalha recolhendo, separando, moendo, pesando e vendendo materiais
recicláveis. O dinheiro não é muito, mas basta para uma vida sem luxúria. Do sistema
penitenciário, acabou exonerado por acúmulo de faltas, mas ainda a ele se liga através
de um processo judicial que vem movendo contra o Estado. Amaro quer a sua
aposentadoria como agente penitenciário, uma vez que considera que o Estado deveria
ter proposto soluções para o problema que ele mesmo havia lhe causado. O campo
político da disputa entre agentes penitenciários e governo estadual é o ponto de inserção
atual de Amaro no interior do dispositivo carcerário paulista.
7.10 - (In)conclusões
Os pontos atuais dos percursos de Pedro e Amaro são também o ponto de parada dessa
cartografia. Aqui interrompo o mapear de agentes, práticas e discursos, ainda que
existam elementos dispersos que foram identificados e que, por dificuldades várias, não
puderam ser aqui incluídos; e ainda que existam tantos outros trajetos possíveis,
episódios importantes, discursos imprescindíveis, agentes estratégicos, práticas
(re)estruturantes, campos, camadas, zonas compondo o dispositivo carcerário paulista,
que são tão ou mais importantes que esses que foram cartografados.
A inconclusividade é a condição dessa cartografia. Ela existe mais para prospectar
caminhos, abrir possibilidades, correlacionar dimensões disparatadas, que para oferecer
uma imagem fiel e total de uma realidade carcerária. Se os traçados, marcos, referências
e passagens que puderam aqui ser apresentados permitem vislumbrar algo do dito e do
não dito que compõem um dispositivo, pretende-se ter valido o percurso.
177
Considerações finais
Nessas considerações finais não se encontram grandes conclusões. Nessa dissertação
tampouco se pretendeu formular uma teoria geral sobre o encarceramento
contemporâneo, que agora poderia ser sinteticamente enunciada. Aqui, portanto, não
mais que algumas considerações sobre o percurso teórico e analítico efetuado e algumas
perspectivas que se abrem a partir dele.
Como foi indicado na Introdução, esse documento é expressão de um percurso
reflexivo, cognitivo e prático; cada capítulo expressando uma etapa do trajeto e
incorporando os obstáculos encontrados, também os contornamentos realizados. No
primeiro capítulo “Hipótese produtiva” , a explicitação e fundamentação da
perspectiva adotada, o ponto cardeal que orientou toda a caminhada, os estudos, as
descrições e as análises. A colocação da hipótese produtiva no horizonte da pesquisa é o
que garante a unidade do trabalho: tanto na formulação inicial do objeto os efeitos
societários territorializados da massificação do encarceramento , quanto no resultado
“final” nas cartografias analítico-descritivas do dispositivo carcerário , sempre o que
se procurou explorar e colocar em evidência foi o que produz a prisão fora de seus
limites imediatos; e isso nos dois sentidos que a frase admite: o que tal prisão produz na
sociedade mais ampla, e que sociedade produz qual prisão.
A passagem entre o primeiro e o segundo capítulos as “Mediações” sugeridas por
Garland para se conceber a prisão no mundo contemporâneo, e a “Pauta” das análises
correntes sobre o encarceramento em massa e o processo de massificação do
encarceramento pode ser vista como um passo dado no sentido de sistematizar uma
caracterização da prisão contemporânea e do campo social que a produz. É essa
caracterização prévia que pauta a primeira aproximação analítica dos diferentes
contextos penitenciários estudados no restante de “Massificação do Encarceramento”.
O terceiro capítulo “Vasos Comunicantes” explora a segunda acepção da
produtividade prisional: a prisão como sujeito da frase. As “Estimativas” das dimensões
de um grupo social, direta e indiretamente afetado pelo encarceramento, são uma
tentativa de esboçar um predicado para a oração, e a prospecção da dinâmica de alguns
178
vasos comunicantes no contexto paulista pode ser considerada um segundo passo nesse
sentido.
Se o desenrolar empírico da pesquisa seguisse o roteiro planejado, a dissertação seguiria
com um aprofundamento da análise dos vasos comunicantes e das estruturações
societárias que promovem em São Paulo, depois em Barcelona; e se finalizaria com um
exercício comparativo que buscasse isolar o que fosse exclusivamente produzido pela
prisão e pelo seu incremento. A aproximação dos grupos mais direta e indiretamente
afetados pelo aumento do encarceramento, e dos vasos comunicantes que os conectam à
prisão mostrou-se tarefa mais difícil do que o previsto, e ao invés dos vasos foram os
diversos “Mediadores” que circulam entre o dentro e o fora da prisão que acabaram por
pautar a pesquisa de campo.
Explicitar essas dificuldades empíricas foi o principal objetivo da inclusão dos
“Percursos de campo” nessa dissertação. Além disso, é verdade que eles também
funcionaram como uma segunda aproximação a cada contexto punitivo estudado e
como uma enunciação do horizonte de possibilidades analíticas que se abria a partir dos
materiais e dados recolhidos. O quinto capítulo “Uma abordagem (im)possível” é
uma breve, porém necessária, reflexão sobre as impossibilidades de efetivação da
pesquisa como se havia planejado, e das possibilidades que se abriram com a pesquisa
que efetivamente se realizou. A proposta de analisar e descrever o dispositivo
carcerário, seus conflitos e deslocamentos recentes, através de cartografias calcadas no
trabalho de campo e nas trajetórias de alguns interlocutores da pesquisa, foi a maneira
que se encontrou para seguir interpelando a incidência da prisão para além de seus
limites em sua positividade e produtividade, não obstante a difusa territorialização.
Através da noção de dispositivo carcerário parecia possível explorar, de modo
articulado, tanto elementos do que a prisão produzia num determinado contexto, quanto
em que contexto um determinado sistema prisional era produzido. Ou seja, ao invés de
explorar a produtividade prisional em termos de causas e efeitos gerais da massificação
do encarceramento, era o próprio jogo de causas e efeitos que modulava um dispositivo
carcerário situado no espaço e no tempo, que parecia emergir da composição dos relatos
recolhidos e dos percursos de pesquisa.
Nos capítulos finais, procurou-se desenvolver esse entendimento e essa proposta. Na
sistematização dos materiais de pesquisa, na elaboração das cartografias, ficava evidente
179
que ao redor e através da prisão, efetivamente, produzia-se um campo difuso e
multifacetado de agentes, práticas e discursos, que tanto reagia a transformações nas
dinâmicas prisionais, quanto operava nelas deslocamentos importantes. Ainda, sem
pretender desenvolver uma teoria geral do encarceramento contemporâneo, a
justaposição das cartografias analítico-descritivas parecia ser suficiente para levantar
elementos para a reflexão sobre a atualidade e as possibilidades de modulação do
dispositivo carcerário.
Em “Uma cartografia do dispositivo carcerário catalão”, como que guiado pelos relatos
de Manola, Aurora, Filip, podia entrever e reconstituir algumas peças, regiões,
momentos e processos que marcaram o desenvolvimento recente tanto do sistema
penitenciário da comunidade autônoma, quanto do campo social que se estrutura ao seu
redor. A exploração dos processos de estruturação dos aparatos médico-hospitalar,
educativo-escolar e voluntário-assistencial, acoplados ao sistema penitenciário e no
interior do dispositivo, permitiu complexificar a imagem do “Estado Penal”
incapacitante, identificando estratégias subsidiárias, que englobam diferenciados
saberes, que se exercem através de outros poderes, e nas quais outras subjetividades se
conformam. Sem desconsiderar a importância e o arrebatamento causado pela crescente
criminalização da imigração clandestina na Catalunha, e na Europa em geral, a
descrição e análise desses outros aparatos permitiu evidenciar como a reestruturação do
dispositivo implica numa série de conflitos, de ajustes, de disputas, de invenções e
resistências que não poderiam ser abordados em termos estritamente negativos.
Em “Uma cartografia do dispositivo carcerário paulista”, por sua vez, através de relatos
de agentes inseridos em distintos pontos do dispositivo como Pedro, Amaro ou Paulo
foi possível vislumbrar como um amplo campo social também se estrutura a partir de
uma precariedade constitutiva. A exploração das órbitas gravitacionais, das camadas
tectônicas, das zonas de reverberação que compõem o dispositivo, mostrou como ao
redor e através de uma prisão que historicamente se caracteriza pela iminência constante
da morte violenta, significativas alterações, transformações, importantes abalos, ajustes
e reações também se desenvolvem num jogo intrincado de causas e efeitos, que
tampouco seriam passíveis de descrição nos termos de uma perene desestruturação.
A partir da leitura de ambas as cartografias, observa-se a estruturação de modulações do
dispositivo carcerário que são plasmadas de história e circunstâncias locais, mas que, ao
180
mesmo tempo, expressam tendências gerais operantes no mundo ocidental de norte a sul
sejam as reformas legislativas do endurecimento penal, as políticas criminais de
“guerra contra as drogas”, a crescente incidência de setores mais ou menos organizados
da sociedade civil nas operações do dispositivo, etc. Em suma, o cartografar
dispositivos situados no tempo e no espaço é também explorar suas características
gerais e condições de desenvolvimento atuais.
As perspectivas que se abrem desse percurso teórico, prático e analítico são múltiplas.
Sendas importantes do dispositivo foram trilhadas, algumas que são geralmente
esquecidas, outras que são repetidamente repisadas, deter-se em uma, ou explorar outros
atalhos, desvios e conexões são possibilidades que estão dadas. Se alguns dos marcos e
referências aqui pontuados servirem de instrumentos táticos de orientação de outros
percursos teóricos ou práticos, se ajudarem a orientar aqueles que trilham pelo
dispositivo, seja voluntariamente para conhecê-lo ou para nele combater, seja,
involuntariamente, para a ele sobreviver, entende-se que tanto o percurso, quanto o
dissertar valeram a pena.
181
Imagens
1
Imagem 1: Cárcel Modelo de Barcelona. O círculo vermelho indica o edifício onde vivi.
(Fonte: http://maps.google.com)
2
Imagem 2: Coordinadora contra la marginació de Cornellà, bairro de Sant Ildefons, município
de Cornellà de Llobregat. (Fonte: http://maps.google.com)
182
3
Imagem 3: Sant Ildefons círculo vermelho à esquerda e centro de Barcelona círculo
vermelho à direita. (Fonte: http://maps.google.com)
4
Imagem 4: Eixample Esquerre. Da esquerda para a direita, círculos vermelhos indicam
localização da prisão, da escola industrial e do hospital. (Fonte: http://maps.google.com)
183
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