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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS
ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL
O REI DA VELA
SÃO CRISTÓVÃO
2010
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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS
ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL
O REI DA VELA
Dissertação apresentada como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestre em Letras, área de concentração:
Estudos da linguagem e ensino, linha de
pesquisa: teorias do texto, do programa
de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal de Sergipe.
Orientador: Prof. Dr Antonio Ponciano
Bezerra.
Co-orientador: Prof. Dr. Renato de
Mello.
SÃO CRISTÓVÃO
2010
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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS
ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL O REI DA
VELA
Dissertação apresentada como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestre em Letras, do programa de Pós-
graduação em Letras, do Núcleo de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal de Sergipe.
Área de concentração: Estudos da
linguagem e ensino.
Linha de pesquisa: Teorias do texto,
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Antonio Ponciano Bezerra - Orientador
Universidade Federal de Sergipe
Profª. Drª. Denise Porto Cardoso
Universidade Federal de Sergipe
Prof. Dr. Renato de Mello - Co-orientador
Universidade Federal de Minas Gerais
Suplentes:
Profª Drª Maria Leônia Garcia de Carvalho
Universidade Federal de Sergipe
Profª Drª Lêda Pires Corrêa
Universidade Federal de Sergipe
.
Aos que acreditaram na possibilidade de
realização deste trabalho, em especial à minha
mãe.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, que se mostra fortaleza e me faz fortaleza diariamente. Ensina-me
a lutar e a não desistir nunca. Obrigada!
Ao professor Dr. Antonio Ponciano, pelos ensinamentos que levarei além
academia. Obrigada pelos direcionamentos, pela paciência e pelos anos de convivência.
Ao professor Dr. Renato de Mello, pelas conversas e pelo carinho com que me
acolheu.
A Claudio, com quem compartilho as angústias diárias das escolhas que faço.
A todos que torceram por mim e confiaram na minha capacidade de chegar até
aqui.
Obrigada!
A vida não é em linha reta, nem em ordem direta se processam as histórias de
cada homem.
Oswald de Andrade
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo proceder a uma análise discursiva da peça O Rei
da Vela, de Oswald de Andrade. Pretende-se, em um primeiro momento, articular uma
análise discursiva das estratégias de construção de sentido e das estratégias de constituição
dos múltiplos sujeitos que compõem o processo de enunciação deste texto teatral. Em um
segundo momento, serão identificadas as representações sociais refletidas e refratadas na
peça, através da reconstituição do ethos do personagem Abelardo I e do desvelamento das
vozes presentes no texto. Para tanto, utilizar-sede um arcabouço teórico que abarque as
especificidades do texto teatral em sua materialidade linguístico-discursiva. O trabalho se
funda na Análise do Discurso por considerar que as análises propostas pela AD possibilitam
ultrapassar os limites do próprio texto, adentrando na confluência da língua, do sujeito, da
História e da ideologia, tudo isso no e pelo discurso.
Palavras-Chave: O Rei da Vela. Análise do Discurso. Teatro.
ABSTRACT
This work aims at proceeding a discursive analysis of the play “O Rei da Vela”
by Oswald de Andrade. Firstly, we intend to articulate a discursive analysis of the
strategies of sense construction and the strategies of multiple subjects‟ constitution that
are part of the utterer process of this theatrical text. Second, we will try to identify the
social representations reflected and refracted on the play, through the reconstruction of
the ethos of Abelardo I and from unveiling the speeches in the text. For so, we use a
theoretical framework that contain the specificities of the theatrical text in its linguistic-
discursive materiality. Our work is based upon Discourse Analysis because we believe
that the proposed analyses by DA make it possible to go beyond the limits of the text,
getting into the language, the subject, the History and the ideology confluence, all this
in and by the discourse.
Key-words: O Rei da Vela. Discourse Analysis. Theater.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9
2 O REI DA VELA .................................................................................................................. 14
2.1 AS VANGUARDAS EUROPÉIAS E O QUADRO DE INFLUÊNCIAS DA PEÇA .... 25
2.2 SOBRE A RECEPÇÃO E A ENCENAÇÃO DA PEÇA ................................................ 30
3 BREVE HISTÓRICO DA ANÁLISE DO DISCURSO ....................................................... 35
3.1 ETAPAS DE CONSOLIDAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO ............................... 42
3.2 ALGUNS CONCEITOS CHAVES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO .................... 43
3.2.1 Sujeito .................................................................................................................... 43
3.2.2 Discurso ................................................................................................................. 46
3.2.3 Formação discursiva............................................................................................... 47
3.2.4 Interdiscurso ........................................................................................................... 48
3.3 CONSTRUÇÃO TEÓRICA DE UM DISPOSITIVO DE ANÁLISE ............................ 51
3.3.1 O conceito de ethos ................................................................................................ 52
3.3.2 O conceito de Polifonia .......................................................................................... 54
3.4 O TEXTO TEATRAL E SUA ESPECIFICIDADE ........................................................ 59
4 CONSTRUÇÃO DOS BLOCOS DE ANÁLISE .................................................................. 63
4.1 ABELARDO I .................................................................................................................. 67
4.2 INSTITUIÇÃO FAMILIAR ............................................................................................ 78
4.3 LUTA DE CLASSES ....................................................................................................... 83
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 86
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 89
9
1 INTRODUÇÃO
Oswald de Andrade, em 1924, lança o Manifesto Antropofágico. Esse manifesto
surge como uma proposta artístico-intelectual que tem em sua base absorver o que há de bom
e de valoroso na cultura do outro. Não se trata, evidentemente, de copiar o outro, mas de
assimilá-lo, de interagir com ele, de tirar dele o que de melhor e fazer disso algo novo,
genuinamente nacional: um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma. O
manifesto reelabora, desse modo, o conceito eurocêntrico e negativo de antropofagia,
passando à metáfora de um processo crítico de formação da cultura brasileira. Com a
antropofagia, tenta-se deixar de ser o colonizado, ainda que sabendo o quão difícil é
abandonar tal posição. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
[...] a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
(ANDRADE, 1995, p. 72)
Assim como na metáfora antropofágica, um trabalho acadêmico exige esse constante
exercício de reelaboração do pensamento. Buscar teorias, lançar olhares, cruzar
conhecimentos são algumas das exigências ao aluno pesquisador, como o do Mestrado.
Portanto, vale-se de tal metáfora para abrir e trilhar o caminho do trabalho que agora se
apresenta, que, nele, notadamente, Linguística e Literatura, Análise do Discurso e estudos
específicos do Teatro, cruzam-se com a intenção de produzir mais um olhar sobre a obra O
Rei da vela, de Oswald de Andrade.
Ao perceber a escassez de estudos linguísticos que tratam do texto ficcional, do texto
literário e, sobretudo, do texto dramático, resolve-se assimilar o que havia enquanto produção
intelectual, escolhendo somente a parte que acredita-se ser a mais interessante para o trabalho.
Deparam-se com alguns trabalhos acadêmicos que abordam o corpus e também dalí retira-se
algo. Tudo isso foi feito com uma intenção: a de produzir um trabalho acadêmico, uma
dissertação de Mestrado que tentasse algo genuíno.
Deste modo, a proposta é a de proceder a uma análise discursiva da peça O Rei da
Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e publicada em 1937. Pretende-se, em um
primeiro momento, articular uma análise discursiva das estratégias de construção de sentido e
das estratégias de constituição dos múltiplos sujeitos que compõem o processo de enunciação
deste texto teatral. Em um segundo momento, buscar-se-á identificar as representações sociais
refletidas e refratadas na peça, através da reconstituição do ethos do personagem Abelardo I e
do desvelamento das vozes presentes no texto.
10
Para tanto, vale-se, aqui, de um arcabouço teórico que abarca as especificidades do
texto teatral em sua materialidade linguístico-discursiva. O trabalho funda-se na Análise do
Discurso (AD), por considerar que as análises propostas pela AD possibilitam ultrapassar os
limites do próprio texto, adentrando na confluência da língua, do sujeito, da história e da
ideologia, tudo isso no e pelo discurso.
Além disso, a própria Análise do Discurso se dispõe a investigar as mais diversas
práticas da linguagem, que vão desde situações linguageiras do cotidiano até as práticas
literárias. Recorre-se, portanto, a teóricos que trabalham na confluência entre Literatura e
Linguística, e, mais especificamente, Análise do Discurso, como Ubersfeld, Maingueneau,
Ryngaert, Mello, Charaudeau, entre outros.
A emergência da entidade discurso, como objeto de análise, leva à percepção do texto
literário além da instância criadora e de seu aspecto meramente estilístico, apartando-se da
visão romântica que permeava a maioria dos estudos literários até a década de 60. Desde
Bakhtin (1929), opera-se uma mudança de paradigma, que se acelera com a Teoria da
Recepção, com os novos dispositivos de leitura introduzidos por Chartier e com a sociocrítica
da década de 70. Neste meio, a Análise do Discurso, que se desenvolve independentemente
dos estudos literários, traz para o centro do debate as mais diversas práticas discursivas,
operando uma abertura nas ciências da linguagem que permitiu a confluência de áreas até
então consideradas distantes,
Em vez de julgar evidente a oposição entre o profano‟ das ciências humanas e o
„sagrado‟ da literatura, a análise do discurso explora as múltiplas dimensões da
discursividade, buscando precisamente explicar a um tempo a unidade e a
irredutível diversidade das manifestações do discurso. Ela não se contenta com a
mobilização de noções tomadas à Psicanálise, à Sociologia, à Antropologia, etc, para
aplicá-las a textos literários: não se trata de projetar um universo (as ciências
humanas) noutro (a literatura) que lhe seria estranho, mas de explorar o universo do
discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 38)
Apesar de estarem sob a mesma orientação e repousarem sob o mesmo substrato (a
linguagem), os estudos linguístico-discursivos e os estudos literários, muitas vezes não se
encontram reciprocamente, ficando reservados aos estudos da Análise do Discurso, por
exemplo, recortes a partir dos gêneros mais cotidianos, como os propostos pela publicidade; e,
reservados aos estudos literários, trabalhos com narrativas consagradas, por exemplo.
Contudo, acredita-se que [...] a AD se apresenta como mais uma possibilidade de abordar
textos literários com conceitos e ferramentas que, até, provem o contrário, servem para todo e
qualquer tipo de discurso e de texto, inclusive, evidentemente, o discurso e o texto literário.”
(MELLO, 2005, p. 14)
11
Ao articular as noções de formação discursiva, de sujeito, de ethos discursivo,
amplamente trabalhadas pela Análise do Discurso, ao texto literário, especificamente ao texto
teatral, intenciona-se conciliar dois campos da pesquisa em Letras, que se situam em espaços
diferentes: a pesquisa em Literatura, considerada pelos seus teóricos e cultores como um tipo
de discursividade sublime, e a pesquisa em Linguística, mais afeita ao estudo do
funcionamento efetivo e prático da linguagem em um contexto social.
Trata-se, portanto, de discursos que são considerados diferentes, produzidos por
sujeitos diferentes com intenções diferentes. Mas, percebe-se que essa diferença é apenas
concebida e imaginada, e uma prova disso é que as novas teorias do discurso se propõem a
desmascarar essa „aura‟ do discurso literário, considerando-o como um discurso analisável
dentro da sua concepção de discurso mesmo.
De acordo com Maingueneau (2004, p.44), [...] é surpreendente que ainda hoje, a
maior parte dos especialistas em Literatura ignore tudo o que é feito nos trabalhos sobre o
discurso e que a maior parte dos pesquisadores sobre o discurso evite levar em conta
categorizações advindas dos estudos literários.” A literatura é, assim, um campo vasto de
articulação entre as novas tendências que tomam o discurso como prática sócio-interativa.
Esta análise se firmará no texto da peça O Rei da Vela, excusando a representação
nesse momento, pois entende-se que o texto, pela sua não perecibilidade diante das mudanças
temporais e contextuais, articula, em seu aspecto de produção e produto, o discurso (ou os
discursos). Sabe-se, também, que a análise do texto teatral em sua encenação demanda
esforços teóricos e práticos não possíveis para este momento da pesquisa, uma vez que a peça
teve montagem significativa em 1968, pelo Grupo Oficina. Deste modo, entende-se o texto
teatral como discurso, de acordo com o que postula Maingueneau (2001, p.43),
De maneira mais ampla, considerar o fato literário como „discurso‟ é contestar o
caráter central desse ponto fixo, dessa origem sem comunicação com o exterior que
seria a instância criadora. Fazê-lo é renunciar ao fantasma da obra em si, em sua
dupla acepção de obra autárquica e de obra fundamental da consciência criadora; é
restituir as obras aos espaços que as tornam possíveis, onde elas são produzidas,
avaliadas, administradas. [...] A partir do momento em que não se pode separar a
instituição literária e a enunciação que configura um mundo, o discurso não se
encerra na interioridade de uma intenção, sendo em vez disso força de consolidação,
vetor de um posicionamento, construção progressiva, através do intertexto, de certa
identidade enunciativa e de um movimento de legitimação do próprio espaço de sua
enunciação.
Para proceder a análise do texto da peça, tornou-se necessário fixar a especificidade
teatral que se faz na confluência entre Literatura e prática dialogal. Para tanto, reservou-se
um momento da pesquisa no qual foi traçada a especificidade do texto e do discurso teatral. É
importante lembrar que a natureza deste objeto de pesquisa é linguístico-discursiva, pois
12
entende-se que a representação configura-se como outro texto, situado ao nível da recepção.
Por isso, a especificidade do do objeto faz ultrapassar os limites de uma área do
conhecimento.
O almejado com esta dissertação é, em última instância, lançar um olhar sobre o texto
oswaldiano sob a ótica dos estudos linguísticos. Na certeza de que é possível uma inspeção
lingüística, na medida em que esse texto assim como qualquer outro texto é a
materialização de um discurso (ou dos discursos) e como tal permite uma abordagem dos
elementos e mecanismos fundamentais de sua enunciação.
Cabe aqui lembrar que o interesse pela peça O Rei da Vela surgiu no período da
graduação quando, à época da monografia, descobriu-se o teatro oswaldiano, até certo ponto
imêmore pela crítica e desconhecido pelo grande público. Naquela ocasião, foi trabalhada a
chamada Trilogia da devoração (as três peças compostas por Oswald O rei da vela, A
morta e O homem e o cavalo) em uma análise mais interpretativa, pautada na crítica
proposta por Magaldi (2004). Tratava-se mais de uma leitura de quem acabava de descobrir o
novo, repleta de impressões e sensações.
Em um segundo momento, em um curso de especialização, adentrou-se um pouco
mais o teatro oswaldiano, agora somente com a peça O Rei da Vela, mobilizando conceitos
apreendidos no curso de teorias do texto, como vozes e polifonia em Bakhtin, na tentativa de
traçar a arena de vozes á qual se atribuía a peça. Tal embate passou a ser analisado com a
intenção de mostrar como essa peça podia ser considerada um palco múltiplo das diversas
instâncias enunciativas que ali se manifestavam.
Contudo, entende-se que o nível de aprofundamento atingido ainda não possibilitou
perceber nuanças constitutivas da peça que intrigavam e intrigam ainda, como os seguintes
pontos: como Abelardo I, personagem síntese e referente do título, mobiliza as diversas
instituições em que transita na construção de seu ethos? uma reflexão e uma refração das
representações sociais no discurso construído pelos personagens? Como as diversas vozes
representadas no texto mobilizam-se na construção do discurso (ideologicamente marcado,
como todo o discurso) da peça? Há um discurso na peça ou há uma multiplicidade de
discursos que se imbricam e se enveredam pelos meandros da linguagem?
Agora, mobilizam-se em busca de tais questionamentos, pois julga-se que a partir das
possíveis respostas será lançado um olhar diferenciado e, até certo ponto, responder-se-á
àqueles que se interessam pelo teatro oswaldiano. Será lançada, ainda que de maneira
incipiente, uma proposta de leitura sobre um texto profundamente marcado pela rejeição
13
acadêmica, à época de sua publicação, e pelo obscurecimento de sua relevância para a
constituição do teatro moderno nesses últimos anos.
Estes argumentos se consolidam no presente trabalho, organizado da seguinte forma: o
primeiro capítulo ficará reservado ao conhecimento das condições de produção e de recepção
do texto O Rei da Vela, considerando também a recepção da encenação em 1967. Será
traçada uma breve caracterização da época e do autor um percurso nas influências
oswaldianas e nas concepções de teatro vigente; o segundo capítulo será o espaço da
construção teórica do trabalho. Nele será localizada a Análise do Discurso, traçadas as
especificidades concernentes ao objeto e compostos os dispositivos de análise, com os
conceitos de sujeito, de discurso, de formação discursiva e de interdiscurso, além do conceito
de ethos e de vozes, que auxiliarão na construção dos efeitos de sentido da peça.
Em um terceiro momento, será realizada a analise da peça, compondo blocos de
análise a partir da seleção e organização metodológica proposta. Tentar-se-á, a partir da
percepção de recorrência temática (ou seja, repetição de grandes temas, a saber: instituição
familiar e luta de classes) e do personagem Abelardo I, dividir a peça em blocos analisáveis.
Este é o ponto em que a teoria será cotejada às análises, buscando discutir as indagações
formuladas anteriormente e confirmando ou não as hipóteses iniciais.
O quarto capítulo ficará reservado para a reflexão sobre as possibilidades de leitura
dessa peça a partir das análises que serão propostas no terceiro capítulo. É o momento de
relacionar a Análise do Discurso à análise do texto literário, mais detidamente do texto teatral,
com a intenção de compor um quadro de referências. Por fim, nas considerações finais, em
função da pesquisa feita, serão indicados os resultados do estudo.
Sabe-se que, pela própria natureza do trabalho, muitos ajustes podem surgir ao longo do
caminho. Ao explorar a peça, deparou-se cotidianamente com situações novas que podem
exigir de redirecionamentos, que o texto teatral é ltiplo em suas dimensões, assim como
todos os textos. Tenta-se, assim, lançar um olhar para uma das formas de leitura do texto
oswaldiano, que, diante da pesquisa, deparou-se com poucos trabalhos que ligam Análise
do Discurso e texto teatral, Linguística e Literatura.
Entendendo que a leitura de um texto e a revelação de suas especificidades, de suas
características, são uma construção progressiva. Buscar-se examinar as
condições/circunstâncias específicas que determinam a produção e a interpretação dos sujeitos
que participam do processo de enunciação, e a produção dos sentidos deles advindos.
Pretende-se, neste sentido, enriquecer os estudos sobre a peça, mas, também, sobre os sujeitos
plurais da linguagem, a partir de sua singularidade no texto dramático.
14
2 O REI DA VELA
A obra é indissociável das instituições que a
tornam possível, não existe tragédia clássica ou epopéia
medieval fora de uma certa condição dos escritores na
sociedade, fora de certos lugares, de certos modos de
elaboração ou de circulação de textos.
(MAINGUENEAU, 2001, p. 19)
Considerada como um marco na escrita do teatro e da própria cultura nacional, O Rei
da Vela (1933-1937), de Oswald de Andrade, foi produzida em meio a um momento
histórico conturbado. A crise do café (1929), a Revolução de 1930 e a Constitucionalista
(1932) marcaram profundamente a sociedade, a economia e, por conseguinte, a cultura. Neste
sentido, Oswald de Andrade produz O Rei da Vela, uma obra que, como ele mesmo
pontuou, buscava revelar minuciosamente as engrenagens do Brasil.
O primeiro triênio do século XX foi marcado pelo desenvolvimento amplo das
lavouras cafeeiras e, consequentemente, pelo aumento de imigrantes trabalhadores no país.
Segundo Fausto (1978), de 1890 a 1930 chegaram ao Brasil, aproximadamente, 3.500.591
estrangeiros buscando melhores condições de vida no pós-Guerra, atraídos por subsídios à
imigração, sobretudo concedidos pelo governo paulista.
Essa realidade modificou o panorama das cidades que, com a crise do café e a queda
da Bolsa de Nova Yorque, em 1929, constituíram-se em palco de desemprego e desordem.
Há, neste mesmo período, em virtude da crise, no estado de São Paulo, uma média de 70
greves em um ano, culminando com a formação de partidos operários e com as
movimentações de partidos de oposição.
Somam-se a essa realidade, a chamada Revolução de 30, um movimento armado,
liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, que culminou com o
golpe de Estado, o Golpe de 1930, que depôs o presidente da república Washington Luís, em
24 de outubro de 1930, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e pôs fim à
República Velha.
Interpretada como a revolução que findou com o predomínio das oligarquias no
cenário político brasileiro, a Revolução de 30 conta com uma série de fatores conjunturais
que explicam esse dado histórico. No âmbito internacional, pode-se destacar a própria crise do
sistema capitalista e a ascensão de ideias socialistas e comunistas. Em solo nacional, a
modernização das economias era imaginada com a intervenção de um Estado preocupado
em implementar um parque industrial autônomo e sustentador de sua própria economia. Em
contrapartida, o capitalismo vivia um momento de crise, provocado pelo colapso das
15
especulações financeiras que, inclusive, provocaram o crash da Bolsa de Nova Iorque, em
1929.
Além disso, há ainda um dos mais importantes acontecimentos da história política
brasileira, ocorrido no Governo Provisório de Getúlio Vargas, a Revolução Constitucionalista
de 1932, desencadeada em São Paulo. Foram três meses de combate, que colocaram frente a
frente, nos campos de batalha, forças rebeldes e forças legalistas. A revolta paulista alertou o
governo de que era chegado o momento de r um fim ao caráter revolucionário do regime.
Foi o que ocorreu em maio do ano seguinte, quando finalmente se realizaram as eleições para
a Assembléia Nacional Constituinte, que iria preparar a Constituição de 1934.
-se que a crise política e econômica do início do século XX marcou indelevelmente
a sociedade, pois suas consequências imediatas desemprego, fome, êxodo rural deixaram
profundas cicatrizes nas famílias brasileiras. Época de contradições: abundância e miséria,
superprodução e fome; milhares de sacas de café empilhadas, sem valor, sem destino;
milhares de trabalhadores desempregados, na miséria. A velha aristocracia rural entra em
decadência, e a nova burguesia industrial ascende na sociedade.
A década de 30 foi palco, também, de profundas transformações intelectuais, em que
as primeiras propostas de 22 começavam a ser amadurecidas. Apesar de não ter atingido o
rompimento total, a Semana de Arte Moderna”, em 1922, abriu inúmeras possibilidades
criativas e fez com que o Modernismo começasse a ganhar visibilidade. Com isso, as artes
foram impulsionadas e a Literatura floresceu.
A chamada geração de 22 utilizou-se das ideias de choque e agressão, importantes aos
objetivos que movimentavam a sua produção literária e teórica, para trazer uma reordenação
reflexiva sobre seu tempo. Buscou ativar a inteligência brasileira pelo escândalo e pelo
deslocamento de vozes que, ainda hoje, são responsáveis por aberturas de perspectivas
formais (como o que aconteceu na Tropicália, em 70). Como afirma Helena (1983, p. 96), “A
Semana foi um reinado-bufão, e significava um veto radical ao conservadorismo artístico-
social e uma relativação de valores. Ela foi uma prática carnavalizante instituída contra o lado
doutor de uma sociedade enferma e mergulhada num marasmo cultural petrificante.” .
Assim, o rompimento com as soluções parnasianas e românticas fomentou a luta por
um língua nacional através da quebra de padrões prévios, herdados de um discurso importado.
a busca por um novo conceito de texto literário, gerado pelo intercâmbio entre a literatura
e as artes primordialmente iconográficas, mostrando que é possível outro dizer que não mais o
linear. A Semana marca uma nova perspectiva, oriunda de um período pós-guerra, aliada a
16
estímulos culturais europeus que chegam com as imagens da máquina, da relação burguês-
proletário, da metrópole convulsa. Pode-se dizer, portant
o, que:
A ruptura de 22 não foi obra do acaso, mas ponto crítico de um longo processo de
diferenciação. A formação do grupo, a necessidade de reuniões amiudadas, a
urgência de um manifesto, o happening final, o sintomas todos do crescimento
firme de um modo de pensar que se sabe contrastado, mas que sente no ar a
possibilidade de uma definição blica. A partir de Semana, os modernistas são um
ponto de vista dentro da história da cultura nacional. (BOSI, 1978, p. 315)
Ainda segundo Bosi (1978), havia a emergência do novo, com a virada do primeiro
pós-guerra, o que abriu circunstâncias em todos os sistemas culturais que mostravam
indicativos de saturação. Dá-se, portanto, de forma aguda em centros mais desenvolvidos,
como São Paulo, a oposição província/cidade. Uma ruptura que foi possível pelo processo
social, político, econômico e cultural que fomentava uma “sede de contemporaneidade junto a
qual o resto da nação parecia ainda uma província do Parnaso.” (BOSI, 1978, p. 312)
Há, nesse período, uma intelectualidade ativa que percebe as transmutações de estilo
do período pós-naturalista e passa a incorporar, ao seu fazer literário, a desarticulação da
sintaxe, o verso desmanchado e a reinvenção do vocabulário, características de um período de
desordem e revolução.
Neste contexto criador, aliado às vanguardas oriundas da Europa (as quais serão
pontuadas mais adiante), Oswald de Andrade propõe o Movimento Antropofágico como
uma tentativa de síntese do pensamento modernista. Esse movimento, que nasce sob a égide
de um Manifesto (1928), tecia críticas à industrialização incipiente do país, ao mesmo tempo
em que buscava explicar e explorar a nacionalidade, a partir de suas raízes primeiras.
A antropofagia deve ser considerada uma linguagem literária ou estética de cunho
nacionalista. A poética antropofágica de Oswald de Andrade reivindica o
estabelecimento de um código literário específico que incorpore as categorias de
uma consciência arcaica tipicamente brasileira, surgida numa hipotética Idade de
Ouro. Essas categorias, que inspirariam a nova linguagem literária, incluem formas
do surreal e do irracional. Os escritores antropofágicos romperiam, assim, com o
discurso linear. A nova linguagem devoraria os modelos literários estrangeiros em
vez de imitá-los. Além disso, a linguagem antropofágica atacaria os sufocantes
códigos sociais, morais e literários, por meio da paródia e do sarcasmo. (GEORGE,
1985, p. 17)
É importante pontuar que a noção de antropofagia, como corrente estética, aparece na
literatura brasileira em 1928, com o projeto oswaldiano. Entretanto, como atitude estético-
cultural -se que ela percorre o próprio processo de constituição da literatura, caracterizada
pelo encontro de um projeto nativo que se viu oprimido pela cultura do colonizador, que com
17
ele foi, pouco a pouco, dialetizando, até compor os matizados contornos do perfil político-
cultural.
Essa atitude antropofágica era vista, segundo Helena (1983), em Gregório de Matos
e em Augusto dos Anjos; contudo passa a ser percebida como vertente transgressora da
cultura nas obras de Oswald de Andrade. O que se ressalta, independentemente, é a busca por
uma autonomia nacional, por um projeto literário genuinamente brasileiro, que se contrapõe à
atitude patriarcal colonizadora dominante no percurso histórico da literatura. É uma atitude de
caráter muito mais amplo, que se encontra enraizada na cultura do país, marcada pela
aceitação cultural estrangeira.
A própria dependência cultural brasileira que, assim como em todas as culturas
originadas de uma dominação, passa a reproduzir não só modelos, mas também atitudes
diante da arte, gerou uma literatura alterada e apoiada na figura do dominador e da
inferioridade nacional. Com esse quadro havia, portanto, a urgência de uma arte autônoma,
que buscasse refletir sobre as raízes primeiras.
A antropofagia configurar-se-ia, portanto, como a contrapartida abrasileirizante da
dependência cultural. A devoração da influência e do texto europeu não seria uma adaptação
mecânica e comprometedora, mas uma apropriação consciente de táticas sorvidas na própria
fonte da dominação, para, municiado de tal conhecimento, poder combatê-la e superá-la.
Como se afirma no próprio Manifesto, “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei
do antropófago.” (ANDRADE, 1983, p. 45)
Desse modo, o contato com as tendências estéticas provenientes, em sua maioria, da
Itália e da França, não leva as obras dos antropófagos (representados, sobretudo, na figura de
Oswald e Mário de Andrade) à perda de sua atitude e de seu caráter de brasilidade. Tal
contato, diferentemente, confere distanciamento crítico e autonomia importantes para que
possam redescobrir e recolocar o Brasil em seu lugar de origem.
A busca por novos procedimentos da linguagem, como a incorporação dos processos
de reduplicação verbal, de prefixação imprevista trazem a utilização de uma linguagem viva
que se coaduna com as propostas do Manifesto (“Tupi, or not tupi that is the question”.).
uma constante pesquisa que visa transformar a antropofagia em arma de
desrepressão contra um discurso conservador herdado, sobretudo, dos parnasianos e do
lirismo bem comportado. Por isso, funciona como um gesto de desmascaramento e de
deslocamento dos emblemas da cultura oficial para um signo novo, genuíno e brasileiro.
Neste movimento, Oswald de Andrade propunha uma nova linguagem literária,
rompendo com o discurso linear e agregando formas vanguardistas às novas ideias. A
18
antropofagia, já idealizada no Manifesto da poesia pau-brasil, buscava uma revolução
artística nacionalista, baseada nas raízes mais primitivas. Contudo, com o Manifesto
Antropofágico a revolução cultural e social apresentava objetivos mais concretos e
permanentes. O voltar às origens seria revelar as verdadeiras bases da cultura e da sociedade,
como uma alegoria à resistência e ao subdesenvolvimento de uma sociedade livre de culpas e
não reprimida.
Diante do panorama de insegurança e de convulsão econômica, política e social,
também se mostram anacrônicas as linhas de interpretação da realidade brasileira,
embrionariamente questionadas pelo grupo que emergia em 1922, com a Semana de
Arte Moderna. Ao bacharelismo, à cultura estagnada, começava-se a contrapor uma
poesia Pau-Brasil, valorizadora de uma atividade nacional consciente e crítica,
determinando uma volta ao passado, em perspectiva estético-cultural, numa busca
das nossas verdadeiras raízes, promovendo um balanço e um questionamento do
período colonial e da literatura comprometida com os padrões de ideário estético
europeu. Dá-se adeus ao índio de tocheiro, ao brasileiro exótico, às próprias elites
nacionais e tenta-se palmilhar, num localismo frutífero, uma nova geografia cultural
que desse conta das raízes brasileiras e as redescobrisse. (HELENA 1983, p. 109)
Alicerçada nessa liberdade inovadora, ideal estético do Modernismo, a peça O Rei da
Vela seria a primeira aplicação da antropofagia à linguagem teatral. Razão pela qual ela “é a
mais política das obras antropofágicas. Seu emprego da metáfora como arma de ataque contra
as classes que se beneficiam com a dependência constitui um poderoso elemento de
conscientização” (GEORGE, 1985, p. 33). Considera-se, assim, que a peça em estudo é, além
de um marco na escrita teatral do Brasil, um marco também na luta de classes propagada em
meados de 30 no Brasil e na consolidação de uma literatura brasileira. Seria uma espécie de
manifesto ao povo, a fim de propor uma reflexão e, por conseguinte, uma atitude de mudança.
O autor concebe O Rei da Vela fundindo consciência política e vanguarda,
desvencilhando-se da forma clássica e unilateral de concepção teatral. A peça traz, em três
atos satíricos, inovações sensíveis no quadro da dramaturgia brasileira que, até aquele
momento, estava voltada para uma captação realista naturalista dos problemas sociais. A cena
brasileira, nesse período, era marcada por algumas montagens internacionais, em sua maioria,
italianas e francesas, gerando uma espécie de lacuna na produção local. As peças aqui
produzidas reduziam-se, em grande parte, aos mesmos temas, por isso que [...] os
conhecedores da dramaturgia brasileira da década de 30 não podem entender como Oswald de
Andrade escreveu O Rei da Vela. A peça está fora de todos os padrões praticados entre nós
[...]
(MAGALDI, 1976, p. IV).
Com a início do século XX, o teatro brasileiro viveu um período de incerteza e dúvida
quanto à sua natureza. Com o início da Primeira Grande Guerra, as peças européias reduziram
suas montagens e o país vivenciou um período lacunar, tentando, pouco a pouco, preenchê-lo
19
com obras nacionais. Coelho Neto (1864-1934), por exemplo, ao observar esse fato, iniciou-
se no teatro sem muito êxito, já que suas peças pecavam pelo preciosismo vocabular e
grandiloquente, além de serem descontextualizadas da realidade brasileira, ambientado-se em
castelos escoceses, por exemplo.
Após essa tentativa de teatro nacional, figurou, nos palcos cariocas, Paulo Barreto, que
atendia pelo pseudônimo de João do Rio (1881-1921). Ele estréia trazendo peças, como
“Eva”, “Que Pena Ser só Ladrão” e “Um Chá das Cinco”, todas repletas de ambientes
decadentes, de frases de efeito e de paradoxos que traziam para o teatro um vigor intimista
que lhe assegurava um lugar de destaque na história, apesar do pouco reconhecimento no
período.
Além de João do Rio, outros tentaram renovar a cena brasileira, como Cláudio de
Souza e Armando Gonzaga. Contudo, essas tentativas não obtiveram sucesso, já que os
autores ainda se prendiam a temas estrangeiros, sem redefinir o caráter nacional de se fazer
teatro. Alguns casos, como Renato Viana (1894-1953) que contribuiu com experiências
iniciais de vanguarda no teatro nacional, indo de encontro ao atraso da época , propuseram
renovações que vinham temperadas com as ideias vanguardistas vindas da Europa. Esse autor,
juntamente com outros intelectuais da época, fundou, em 1922, a chamada “Batalha da
Quimera” que era um “grupo que pretendia apresentar um teatro de síntese, em que luz e som
fossem aplicados como valores dramáticos, explorando a importância dos silêncios, dos
planos cênicos e da direção” (CACCIAGLIA, 1986, p. 102).
Além dessas iniciativas surge, em 1927, o Teatro de Brinquedos, de Álvaro Moreyra,
trazendo uma proposta teatral mais voltada para a popularização da arte. Sua renovação deu-
se, sobretudo, pela linguagem, que começava a vislumbrar réplicas curtas e telegráficas. O
teatro assim era chamado porque os cenários simulavam caixas de brinquedos. “A intenção de
Álvaro Moreyra era tornar o teatro uma arte popular, que fizesse sorrir e ao mesmo tempo
pensar, e que no último ato abrisse um mundo de reflexões [...](CACCIAGLIA, 1986, p.
100)
É pertinente ressaltar que, fora estes casos excepcionais, o teatro brasileiro atravessava
um período complicado, com uma dramaturgia que se voltava insistentemente aos temas
europeus, mesclando comédias de costumes com valores não tão nacionais; a “cultura” de
deleite, produzida sob encomenda para uma platéia extasiada de riso e sem reflexão,
permanecia forte e parecia não querer “sucumbir” aos encantos desse teatro mais crítico e
reflexivo que despontava nos meandros modernistas.
20
Para D‟Onofrio (2000), que coloca Oswald de Andrade ao lado de Becket, Ionesco e
Arrabal, na constituição do que viria a se chamar teatro do absurdo, as idiossincrasias do
momento isolado na produção teatral identificada em Oswald, consolidam-se pela liberdade
estética não de construção da obra, mas, sobretudo, em relação aos recursos da linguagem
utilizados.
A função desses dramaturgos (trata-se do teatro do absurdo), sem pertencerem
propriamente a uma escola ou a um movimento artístico, é de representar no palco o
absurdo da existência humana, seus conflitos indissolúveis. Eles m em comum a
consciência da crise dos valores tradicionais, que atinge até a linguagem, incapaz de
expressar a angústia do homem contemporâneo [...] É o teatro que quer superar o
estágio do diálogo tradicional, recorrendo a outros meios de expressão.
(D‟ONOFRIO, 2000, p. 487)
De forma resumida, a peça gira em torno de dois eixos temáticos básicos: o
desmascaramento do nacionalismo econômico brasileiro dos anos 30, no qual o casamento
entre Abelardo I e Heloísa, com ideais apenas econômicos, é o retrato máximo; e a relação
entre as lutas de classes, com a demarcação clara da supremacia capitalista e exploradora do
estrangeiro. A partir disso, é possível verificar que a estrutura da peça relaciona-se com
acontecimentos históricos da época, em São Paulo e no Rio de Janeiro, como a crise do café e
o processo de industrialização e “apresenta um panorama caleidoscópico da sociedade e das
relações de classe brasileiras num período de transformações abruptas” (GEROGE, 1985, p.
35)
Idealizada a partir de três atos satíricos, a peça não possui, por assim dizer, um
personagem central; contudo, a presença de Abelardo I se mostra como eixo. A organização
se através dos atos que são expostos em torno do seu cotidiano, sendo o primeiro ato
reservado para mostrar como Abelardo I opera a sua vida e os seus serviços, o segundo para
mostrar como seria a diversão para este personagem e, por fim, o terceiro, para revelar o
drama da morte para ele que sucumbe, vítima da própria sociedade que ajudou a erguer.
A “primeira” peça de Oswald de Andrade (ele havia se lançado sem sucesso no
teatro com Guilherme de Almeida anos antes, mas a peça foi publicada posteriormente),
apesar de estar alicerçada na total liberdade estética e no rompimento com os padrões
conhecidos, não ostenta o título de iniciadora do teatro moderno brasileiro pelo fato de não ter
sido montada em sua época. Este título ficou para Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues,
encenada em 1943. Contudo, muitos teóricos, como Sábato Magaldi, pontuam que a
mentalidade do período aliada à própria censura do governo não permitiriam essa encenação,
nem mesmo a entenderiam, por isso ela ficou reservada para 1967, com José Celso Martinez e
o Teatro Oficina.
21
O Rei da Vela é um exemplo inaugural do teatro moderno. A partir da análise da
sociedade, o autor consegue desmistificá-la através da paródia e do blague, mostrando ao
público uma realidade conhecida, mas escondida. Como bem pontuou José Celso Martinez,
essa peça deve ter se fincado na premissa do “Esculhambo, logo existo”. De forma inovadora,
o autor insere o público na peça a fim de mantê-lo atento e pensante, sem cair no ilusionismo,
quebrando todos os paradigmas cênicos conhecidos e construindo uma teatralidade que, até
hoje, é considerada atual e inovadora.
Pode-se considerar a peça como um desfile de tipos: Abelardo I, o eixo da trama,
representa o industrial incipiente de um país subdesenvolvido e dá nome à peça; seu comércio
simboliza a fé cega de um país feudal que não enterra seus entes sem um exemplar de vela por
entre os dedos. Além disso, ele representa um agiota que sobrevive à custa dos juros alheios e
se vale das “leis, que protegem o capital. Alegoricamente, Oswald premiou este personagem
com o mesmo nome de um famoso amante do século XVII, que na peça se encarrega de fazer
a paródia do amor perfeito com Heloisa de Lesbos. Em realidade, a escolha pela paródia pode
ser considerada como uma inauguração da verve irônica da peça, que intenta revelar o amor-
dinheiro, o amor-interesse, o amor lucro realidade do capitalismo.
Em Abelardo e Heloisa, medievais, -se a impossibilidade de o amor se construir, em
razão das barreiras sociais e culturais da época. Abelardo, professor, mais velho, apaixona-se
pela tutoriada Heloisa, filha de um influente clérigo. Da impossibilidade do amor surgem as
tragédias da morte de Abelardo e da condenação de Heloisa ao claustro.
No caso oswaldiano, -se que as barreiras passam a não existir, pois o valor do
dinheiro revela-se mais forte e vencedor. Mesmo de classes sociais distintas, como o Abelardo
e a Heloisa iniciais, aqueles vêem na união interesseira a possibilidade do lucro: para ele,
burguês ascendente, há uma posição aristocrática em jogo; para ela, o retorno à sua condição
de rica.
Abelardo I pode ser considerado um anti-herói, simbolizando a burguesia ascendente
que encontra no matrimônio com uma aristocrata falida o status quo e a tradição que o
dinheiro não compra. Através das falas de Abelardo I, evidencia-se que ele detém o dinheiro,
mas não o nome necessário para ser de fato aceito em uma sociedade como a do início do
século (Para nós, homens adiantados que conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro,
comprar estes restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país medieval como o
nosso o senhor sabe que São Paulo só tem dez famílias?” (ANDRADE, 2004, p. 44)
Para contracenar com Abelardo I, um Abelardo II. Esse personagem, de mesmo nome,
desempenha um importante papel na peça, pois é a partir dele que Abelardo, o I, irá sucumbir
22
e morrer. A escolha do nome é sugestiva: na engrenagem capitalista o dinheiro passa de uma
mão para outra igual, do nome para o mesmo nome, “o dinheiro de Abelardo. O que troca de
mão individual, mas não sai da classe [...](ANDRADE, 2004, p. 100). Ou seja, ambos são
meros objetos que constituem o sistema, sem identidade e sem personalidade, a serviço da
roda viva que é o capitalismo. “Somos uma barricada de Abelardos! Um cai o outro substitui,
enquanto houver imperialismo e diferenças de classes.” (ANDRADE, 2004, p. 103)
Oswald de Andrade constrói seus quadros e pinta seus personagens sem demarcar-lhes
minuciosamente o perfil psicológico, de fato ele abandona esta caracterização romântica
construindo suas identidades através de seus próprios atos. A partir da justaposição, as cenas e
as atitudes se justificam por si mesmas, gerando um efeito cumulativo que define, aos poucos,
a personalidade de seus personagens.
Outra personagem importante para a trama é a noiva de Abelardo I, Heloísa de Lesbos.
O nome e a caracterização da moça levam a crer que o autor quis demarcar-lhe tendências
homossexuais; contudo, em nenhuma parte isso fica explícito. Heloísa é filha do Coronel
Belarmino, aristocrata falido pela crise do café e que , na mistura de classes, que é o
casamento da filha, uma saída para a família inteira. O casamento entre eles seria uma
metáfora da união entre essas classes sociais, entre o nome e o dinheiro; uma salvação para a
aristocracia frente às crises que a abalaram.
A família de Heloísa é caracterizada por inúmeros vícios e taras: Totó fruta-do-conde,
Joana ou João dos Divãs, irmã de Heloisa; Perdigoto, outro irmão de Heloisa, beberrão e
jogador, que pretende organizar uma milícia aramada dos latifundiários; D. Cesarina, mãe de
Heloisa que flerta com Abelardo I; D. Poloquinha, personagem símbolo da resistência
latifundiária, que não admite a união da sua honrada família a um alpinista social e que, às
escondidas, flerta também com Abelardo I. Através desses personagens, o autor mostra a
sordidez escondida por detrás dos panos da aristocracia, e como a aparência e o nome
repercutem, nessa sociedade que esconde suas fraquezas a todo custo.
Nesse variado quadro de personagens, o autor ainda se valeu da figura do escritor
Pinote (alguns teóricos, como Sábato Magaldi, acreditam ser este uma caricatura do escritor
Menotti Del Picchia). Esse personagem serviu para que fosse exposta a situação do intelectual
brasileiro que, para se manter, precisa se subjugar aos detentores do dinheiro, (“Imagina se
vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão total! O dinheiro
é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês escritores, artistas, precisam ser mantidos pela
sociedade na mais dura e permanente miséria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e
23
prestimosos. É a vossa função social” (ANDRADE, 2004, p. 58) sentencia Abelardo I a
Pinote.
Para completar este quadro de personagens símbolos da sociedade da época, Oswald
de Andrade ainda se vale do norte-americano Mr. Jones, que é demarcado na peça como
sendo o detentor de todo o falso poder atribuído a Abelardo I. O americano é visto como o
patrão e o dono de um país arrasado e vendido pelas dívidas, (“Também hipotecamos tudo
ao estrangeiro, até a paisagem! Era o país mais lindo do mundo. Não tem agora uma nuvem
desonerada [...] Não se esqueça que estamos num país semicolonial. Que depende do capital
estrangeiro”) (ANDRADE, 2004, p.109). Esta figura, que permanece in off durante toda a
peça, aparece ao final para proferir a sentença, “Oh! Good business!” (ANDRADE, 2004,
p.109) diante do casamento-negócio entre Heloisa e Abelardo, o II.
É interessante ressaltar que a identificação dos caracteres desses personagens não se dá
de forma explícita. Oswald repudiava qualquer psicologismo, além de ser avesso às teorias
realistas. Ao longo da peça isto fica claro pelas rubricas e pelos diálogos entre elas, já que “As
cenas se justificam por si mesmas e não estão umas em função das outras. Pela justaposição
de quadros aparentemente soltos Oswald consegue um efeito cumulativo que define aos
poucos as personalidades” (MAGALDI, 2004, p. 25)
São inúmeras as inovações que a peça trouxe para a escrita do teatro nacional, talvez,
ousa-se dizer, até hoje insuperáveis. Talvez um dos pontos importantes, que também será
visto em outras peças do autor, seja a utilização da técnica do “distanciamento” ou
“estranhamento”, proposto por Piscator, ou mais profundamente por Pirandello em sua teoria
“do teatro dentro o teatro”, e por Brecht, em 1928.
Nessa técnica, a quebra quase que total do ilusionismo cênico, ou seja, o ator se
dirige ao público a fim de quebrar a ilusão, como pontua Abelardo I “[...] esta cena basta para
nos identificar perante o público. Não preciso mais falar [...] (ANDARDE, 2004, p. 43)
mostrando à platéia que ela é parte do espetáculo e que, portanto, participa das ações, de
forma a mantê-la sempre cida, acordada, pensante e crítica. Magaldi (2004) aponta para o
fato de que Oswald possuía uma imensa intuição para os processos antiilusionistas, e que
talvez ele tivesse ouvido falar dos precursores, a exemplo de Brecht, que até então eram
pouco conhecidos na França, e, consequentemente, no Brasil.
Oswald busca desmistificar inúmeros pontos em sua obra. Sua paródia e sua crítica se
mostram na desconstrução do amor romântico, símbolo da cena brasileira, onde o mocinho e a
mocinha, inevitavelmente, acabam bem no final; no retrato de uma família aristocrata
decadente que vê no casamento uma troca mercadológica, um negócio baseado no “eu lhe dou
24
meu nome e você me dá seu dinheiro”, pintado sob o prisma da degeneração sexual; no
intelectual vendido que troca a sua pseudo-arte por uns tostões e pela proteção dos poderosos.
A primeira grande virtude de O Rei da Vela é expor a sociedade da época a seus
próprios defeitos. Como destaca Sábato Magaldi (2004): “O Rei da Vela representa a análise
furiosa feita por Oswald da realidade brasileira e das classes dominantes a que pertencia por
origem”. Ele desmascara o oportunismo e os procedimentos burgueses, sem esquecer que
estes haviam sido seus também.
Através de uma linguagem crua, sem hipocrisia ou convenção social, os personagens
expressam-se em liberdade, como se não houvesse nenhum tipo de camada repressora. Em
toda a peça, os exploradores são cientes da exploração, e por isso a fazem abertamente.
Os atos da peça são situados em três cenários diferentes. O primeiro ato, que mostra a
caracterização de Abelardo I e do seu “trabalho”, é encenado no escritório de usura dele, onde
são enumeradas relações que movem a sociedade burguesa. também é possível observar
objetos que marcam a situação, como por exemplo: a jaula onde estão presos os devedores, o
ajudante Abelardo II vestido como domador de feras, um divã futurista e diversos prontuários
contendo rótulos de definição, como, suicídios, tangas, penhoras, malandros e outros.
O segundo ato, onde é possível observar a diversão dos personagens, passa-se em uma
ilha particular de Abelardo I, na Baía de Guanabara. Essa ilha é caracterizada com diversos
adjetivos fálicos, a fim de mostrar a degeneração da família de Heloisa, que se encontra
reunida à espera do americano. no terceiro ato da peça, vê-se a agonia da morte de toda
uma sociedade, ou seja, aqueles que a construíram passam agora a ser destruídos por ela
mesma. A roda viva do capitalismo, tão amada por Abelardo I, será a mesma que esmagará
sua realidade. É nesse momento que o “cadáver gangrenado”
1
vem à tona para refletir e
sucumbir aos encantos de uma nova sociedade, que se erguia dos escombros burgueses.
Saber de onde Oswald retirou tanta originalidade é algo ainda muito discutido. O seu
filho, Nonê, em entrevista, afirmou que o pai construía suas imagens através de observações
dos diversos locais por onde esteve, mostrando certo teor auto biográfico em suas peças.
Além dessas experiências de vida, o autor também se valia de suas leituras, como por
exemplo, “Ubu Rei” de Alfred Jarry, escrita em 1896. Essa obra mostrava indícios de um
experimentalismo, que possível observar na contemporaneidade, junto com as vanguardas.
“Espanta observar que Oswald, em 1933, tivesse tamanha consciência de vanguarda, a partir
do vínculo intertextual com Ubu rei de Jarry [...]” (MAGALDI, 2004, p. 66)
1
Expressão utilizada por Oswald de Andrade em O Rei da Vela para caracterizar o Brasil. É uma tentativa de,
metaforicamente, sintetizar o estágio de atraso do Brasil.
25
As vanguardas são outra fonte de inspiração e reflexão para o autor; a montagem dos
cenários e dos figurinos, segundo as rubricas, parece sair de um quadro expressionista; os
diálogos, repletos de recursos telegráficos, rápidos e sintéticos “aparecem com frequência nas
sínteses futuristas italianas, possível modelo para Oswald” (MAGALDI, 2004, p. 83). Foi a
obra teatral de Oswald de Andrade que refletiu com maior impacto as transformações de sua
personalidade artística e sua capacidade de experimentação, exprimindo com vitalidade o
compromisso que estabelecia com o mundo e com a sociedade em que vivia.
No quadro que segue, será explorado, com mais intensidade, o quadro de influências
das vanguardas a fim de construir as condições de emergência e de produção da obra de forma
mais rica.
2.1 AS VANGUARDAS EUROPÉIAS E O QUADRO DE INFLUÊNCIAS DA PEÇA
Como já pontuado, o início do século XX, no mundo, é marcado por profundas
mudanças de ordem política, social e econômica. A 1ª Grande Guerra, a Revolução Russa e a
2ª Grande Guerra, dentre outros momentos, marcam profundamente a estrutura mundial,
instalando incerteza e revolução, deflagrando uma nova forma de pensar e agir.
Diante desses processos mundiais, o Brasil sofre influências que culminam na
Greve Geral de São Paulo e na formação de núcleos anarquistas que, impactados pela
Revolução socialista e pela Guerra, iniciam movimentos nunca antes presenciados no país.
A cidade de São Paulo integra-se à vida moderna, “e adentra no século XX não mais como
„capital dos fazendeiros‟, mas como um núcleo transformado pelos efeitos da
industrialização” (FABRIS, 1994, p. 24).
Confrontando tantas mudanças, era natural que o sentimento de dúvida penetrasse, de
todas as formas, nos espíritos e gerasse inquietações em todos os aspectos. A arte, como parte
constituinte das sociedades, exerceu seu papel de deflagradora dessas inquietações,
transpostas para um momento denominado vanguarda.
As vanguardas surgem na Europa como uma tentativa de renovação dos valores
estéticos passados, pois a partir do desenvolvimento cientifico e tecnológico, provados no
início do século, surgem novos ideais filosóficos e sociológicos, que questionam os valores
passadistas. Essas novas tendências, que procuram “ordenar” o futuro, darão origem a uma
pluralidade de investigações nas artes. “Os pioneiros da vanguarda postularam uma estética
26
revolucionária sob o signo da ruptura e da emancipação ligada ao mesmo tempo aos mais
altos valores sociais utópicos e à esperança”. (SUBIRATS, 1991, p. 25).
Diante do turbilhão da vida moderna, as vanguardas refletem as sociedades e a
instabilidade em se viver nos grandes centros. Muitas discussões sobre os valores passados e a
vida moderna permeiam esse momento, que também se preocupa em traçar os rumos do novo
nacionalismo e da nova arte.
Surge uma arte de choque, de ruptura, ávida por mudanças, que encontra berço nas
mais diversas expressões e correntes: Futurismo (1909), Expressionismo (1910),
Cubismo (1913), Dadaísmo (1916), Espiritonovismo (1918) e Surrealismo (1924),
dentre outras, mostram a desorganização do universo artístico da época, ao mesmo tempo em
que lutam pela destruição do passado, no afã de se construir algo novo. Das influências diretas
e arquivadas na obra teatral de Oswald de Andrade, destacam-se o Futurismo, o
Cubofuturismo e o Expressionismo com mais força.
O Futurismo, tendo à frente Fillipo Tommaso Marinetti (1876-1944), caracteriza-se
por ser uma corrente de forte teor de ruptura. Seus conceitos de renovação artística e literária
estão apresentados no “Manifesto do Futurismo” (Paris, 20 fev. 1909) e no “Manifesto
técnico da Literatura Futurista” em que o autor enfatiza a quebra total com os valores
tradicionais, de uma forma heróica e dinâmica, para se erguer sob os escombros do passado
uma arte genuinamente nova e livre de influências.
Essa vanguarda enfatiza o culto à máquina, que nesse momento era parte
constituinte da vida cotidiana, e a quebra da sintaxe, propondo liberdade às palavras. Como
pontua Helena (1996, p. 17), o Futurismo pretendia “Ser uma nova forma de arte e ação, uma
lei de higiene mental, um movimento que pretende ser antitradicional, renovador, otimista,
heróico, dinâmico e que se ergue sobre as ruínas do passadismo.”
Por ser uma das primeiras vanguardas de ruptura real dos padrões, o Futurismo foi
alvo de muitas críticas, contudo, é inegável seu valor para consolidação de uma nova forma de
arte. Os modernistas, sobretudo os da primeira fase ou fase heróica, são o exemplo claro desta
afirmação, que o Futurismo exerceu uma influência de ordem técnica: na valorização do
versilibrismo, da imaginação sem fios e das palavras em liberdade.
Apesar da publicação do Manifesto Futurista ter chegado ao Brasil simultaneamente à
publicação francesa, ele alcançou certa projeção e conhecimento público em 1912, quando
Oswald de Andrade retorna de sua viagem à Europa com um exemplar, literalmente, embaixo
do braço. Oswald não tomou conhecimento desse manifesto como também se utilizou dos
conceitos para a construção de suas obras e dos seus manifestos.
27
Outro fato interessante merece destaque: no Manifesto de 1924, Marinetti cita os
principais futuristas do mundo e os que mais contribuíram para a propagação das ideias e,
quando se refere à América do Sul, faz alusão a um certo Prado e a um D‟Andrade, que não
há precisão de quem se trata, mas que os estudiosos sustentam como sendo Oswald.
A influência dessa vanguarda foi sentida em vários momentos do modernismo,
sobretudo, quando se propôs o direito de pesquisa constante e a mudança de atitude cultural e
crítica. Isso significou um grande avanço para um país, que insistia em recorrer aos valores
passados, não valorizando o presente que se instalava de forma tão radical.
Acerca do Cubofuturismo (ou futurismo russo) é interessante analisar que sua
ascensão estava diretamente ligada à perda do prestígio do Simbolismo em toda a Europa, em
fins do século XIX, já que as ideias deste último estavam vinculadas ao misticismo, à
abstração e ao artificialismo. Em oposição definitiva a esse movimento, surge um grupo de
poetas russos, dentre os quais Burliuk, Kruchenik, Khlebnikov e Maiákovski, que começa a
articular as propostas do cubismo francês às propostas do futurismo italiano, formando um
novo ideário.
Em 1912, o grupo assina a autoria do polêmico manifesto “Bofetada ao gosto do
público”, tornando públicas as ideias do Cubofuturismo. Nesse importante documento, ficou
expresso todo o repúdio à literatura mística e moralizante do século XIX, e a exaltação da
palavra pura através de uma linguagem transracional, que seria a observação da palavra como
personagem e motivo em todo o seu aspecto sonoro.
Dentre as inúmeras considerações e propostas do cubofuturismo, talvez a mais
importante seja a valorização do teatro como forma de literatura mais acessível às massas.
Maiákovski será o responsável em externar este preceito. O seu teatro, sobretudo o Mistério
Bufo, revestia-se de uma forte carga de reflexão, fazendo com que a ideia de “teatro deleite”
sucumbisse à crítica reflexiva que revestia suas peças e forçava o público a pensar. É
inevitável mencionar que o teatro posterior a ele, e até mesmo o atual, são tributários diretos
desse avanço significativo da arte. Não é inverossímil afirmar que o teatro engajado
politicamente tenha vindo junto a essa vanguarda e ao futurismo italiano, já que é nessa época
que ele se torna veículo de propagação dos ideais revolucionários, instalando uma nova forma
de ver a arte.
Com a sua impaciência teórica, com a sua particular avidez do novo e da novidade,
ele (Oswald) foi, dos nossos modernistas aquele que mais intimamente comungou
do espírito inquieto das vanguardas européias. Deste ponto de vista, que interessa à
história literária, Oswald trouxe, para o nosso Modernismo, então em andamento,
uma experiência por participação de todo diferente da experiência de Mário de
Andrade no clima de atrito e desafio, na atmosfera de rebeldia e renovação.
28
Ninguém mais que Oswald acentuou, e às vezes até exageradamente, as íntimas
relações entre a atividade do grupo de 22 e as correntes renovadoras da época.
(NUNES, 1979, p. 62)
Analisando as influências sofridas por Oswald de Andrade, na produção das suas
peças (O Rei da vela, A morta, O homem e o cavalo), Lúcia Helena (1985) traça uma
construção de referências, que agora será transformada em quadro. Lembra-se que a citada
autora não se detém em nenhuma peça especificamente, mas traça um panorama geral que
pode ser considerado caracterizador do teatro oswaldiano. Dessa forma, tentar-se-á aliar as
influências elencadas por tal autora à obra O Rei da vela
2
, objeto desta análise.
INFLUÊNCIAS
CARACTERÍSTICAS
COMO PODE SER PERCEBIDO NA PEÇA O REI DA VELA
Teatro futurista
Nova concepção do espaço
cênico e contestação do teatro
burguês
O primeiro ato é ambientado em um escritório de usura em que
coexistem um divã futurista, um retrato da Gioconda, uma
secretária Luis XV e a personagem Abelardo II (alter-ego de
Abelardo I) em trajes completos de domador de circo. Tais
referências podem ser consideradas alegóricas ao suscitarem
estranheza ao público que dirige seu foco para as inúmeras
incongruências transparecidas. Além disso, observamos, em vários
momentos, o tom panfletário assumido por Oswald de Andrade
contra o teatro burguês praticado na época e considerado por ele
como “lacaio” (p.58), como revela o trecho “uma literatura
bestificante. Iludindo as coitadinhas sobre a vida. Transferindo as
soluções da existência para as soluções „no livro‟ ou „no teatro‟.”
(p.57)
Teatro
expressionista
Personagem estereotipado
Para revelar as características da sociedade burguesa e de suas
relações pessoais, Oswald atribui a alguns personagens traços de
desvios sexuais que, juntos, formam uma miscelânea de tipos “que
se compreendem e relevam em uma velha família” (p.43). Assim,
Heloísa (a noiva de Abelardo) recebe o sobrenome Lesbos”, a
irmã mais nova é conhecida por João dos Divãs e o outro irmão
como Totó Fruta-do-conde, em clara referência às posições
sexuais assumidas. Além disso, a velha tia é conhecida por D.
Poloca numa referência óbvia às prostitutas estrangeiras chamadas
de polacas.
Teatro dadaísta
Espetáculo provocação
A única fala atribuída a Mr. Jones se na morte de Abelardo I e
na assunção de Abelardo II ao posto antes ocupado pelo patrão.
Nessa troca de papéis, reveladora do continuísmo a que estava
submetida toda uma conjuntura social, Mr Jones reserva-se a
dizer: “Oh, good business!” (p.109). Este trecho pode ser encarado
como um vértice da provocação oswaldiana ao passo que
escancara a engrenagem de subjugamento e dependência que nos
liga ao capital estrangeiro. Como um toque final, Oswald traz à
tona a essência de O Rei da Vela: o continuísmo paralisante, fruto
de alianças e jogos de interesses. “Somos uma barricada de
Abelardos! Um cai, outro o substitui, enquanto houver
imperialismo e diferença de classes...” (p.103)
Continua
2
Todos os trechos e referências à obra O Rei da vela foram retirados de: ANDRADE, Oswald. O Rei da vela.
São Paulo: Globo, 2004.
29
Continuação do quadro 1
Teatro surrealista
Liberação da linguagem
O arsenal de recursos da linguagem de que dispõe Oswald o
desde o uso da ironia e da paródia, passando pela alusão e pela
intertextualidade, até a construção de personagens circenses e
farsescos, o que mostra uma rica exploração e extrapolação dos
dispositivos da própria escrita.
Maiákovski
Revolução cênica e intervenção
do público
“Mas esta cena basta para nos identificar perante o blico.”
(p.43), “Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiro.” (p.50), “Vou atear fogo às vestes (longa hesitação.
Oferece o revólver ao Ponto e fala com ele) Por favor, seu
Cirineu... vê se afasta de mim esse fósforo.” (p.99) são alguns
exemplos de como o conceito de encenação foi revisto por Oswald
ao quebrar o ilusionismo comum aos espetáculos. Ao colocar o
diálogo com o público, a quebra do pacto mágico entre público
e atores, enriquecendo a composição teatral com novos recursos
até mesmo narrativos.
Piscator
Teatro proletário
Assumidamente, Oswald faz de seu teatro um libelo em favor do
Socialismo. Toda a peça analisada traz esse tom através das
revelações que faz acerca das relações que o estabelecidas entre
as personagens, dos costumes e da nítida falência do sistema
capitalista (sobretudo internacional, representado na figura de Mr.
Jones) que mantém sob seu jugo poderosos (Abelardo I) e
trabalhadores, mas que irá sucumbir frente ao proletariado, como
revela o trecho “Será a revolução social...os que dormem nas
soleiras das portas se levantarão e virão aqui.” (p.105)
Quadro 1: Influências sofridas por Oswald de Andrade.
Fonte: Elaboração da autora a partir de Helena, 1985.
Percebe-se que a “a concepção tradicional do teatro é derrubada.” (HELENA, 1985,
p.109) e lugar a um texto repleto de experimentação. Apesar de o texto dramático não
receber grande foco durante o florescer das ideias modernistas, Oswald de Andrade
encarregou-se de preencher tal lacuna atrelando as vanguardas européias e as novas
concepções de teatro existentes a uma construção do teatro nacional.
Nesta amálgama da problemática social brasileira municiada por experimentos
vanguardistas, o teatro de Oswald veio revolucionar o painel da dramaturgia
brasileira, estagnada numa linha ora melodramática herdeira dos dramalhões
românticos, ora naturalista e voltada à patologia social [...] -se o quanto vai se
distinguir a produção oswaldiana do que encontra em derredor, o seu contexto mais
próximo, antecipando nossa modernidade cênica. (HELENA, 1985, p.113)
Dessa forma, a construção da identidade cênica oswaldiana vai se delineando na
confluência das inúmeras perspectivas artísticas que, de certo modo, chegaram até ele Assim
contornam-se as características chaves da peça O Rei da vela e das outras produções
cênicas de Oswald: um desejo de apresentar não os questionamentos das relações inter-
humanas, mas também de trazer à tona os determinantes sociais dessas relações, a fim de,
com propósitos muitas vezes didáticos, revelar ao público a necessidade de refletir e, por
conseguinte, mudar a realidade social que o cerca.
30
Contudo, é necessário lembrar que, apesar de as vanguardas instalarem um contexto
criativo na produção cultural da época, o Brasil parecia não estar completamente preparado
para as rupturas estéticas provenientes da Europa, de forma que a publicação efetiva da peça
revelará profundas resistências, como será mostrado no tópico seguinte.
2.2 SOBRE A RECEPÇÃO E A ENCENAÇÃO DA PEÇA
Apesar de passados 70 anos da publicação, a peça O Rei da vela ainda insufla
discussões, no meio acadêmico, sobre aspectos de sua produção, recepção e encenação.
Mesmo não sendo o foco do trabalho neste momento, julga-se importante entender, dentre
outros aspectos, os mecanismos que fizeram com que o texto não fosse encenado no momento
de sua publicação (1937) e ficasse à espera dos palcos por 30 anos, já que só fora montado em
1968, pelo Grupo Oficina.
Parece que um contraste entre o silêncio gerado à época da publicação da peça e a
repercussão fruto da encenação, ocorrida em São Paulo anos depois. A primeira situação pode
ser facilmente explicada pela própria conjuntura política do período em que o texto veio à
tona, que trazia críticas cáusticas à forma de composição da sociedade. Como pontua
Pereira (1995, p.170), “À primeira vista, o que impediu o texto de Oswald de Andrade de se
transformar no primeiro espetáculo reconhecidamente moderno no teatro brasileiro foi a
abrangência e o tom com que fazia a crítica política.”
Além disso, o campo intelectual brasileiro, as tradições teatrais a que estavam
submetidos e os padrões de gostos ligados, sobretudo, às montagens estrangeiras, agravaram a
dificuldade de aceitação da peça. De acordo, ainda, com o teórico citado (PEREIRA, 1995, p.
170),
A publicação de O Rei da Vela ocorreu no mesmo ano da decretação do Estado
Novo, o que tornava quase certa a censura pelos mecanismos implantados
oficialmente, caso a peça fosse encenada, e dificultava até mesmo a boa acolhida da
crítica especializada ao texto da peça. No entanto, além disso, tornava-se improvável
uma recepção favorável ao texto pela intelectualidade, porque já se delineara a
adesão clara ou velada de um contingente expressivo de produtores de cultura ao
projeto modernizador autoritário que se estava delineando como ideologia oficial
desde a Revolução de 30. Oswald de Andrade seria encarado, sem dúvida, como
uma voz discordante do regime. Uma voz que obviamente não poderia ser divulgada
por um canal de tanto poder de penetração como detinha o teatro, naquela época, na
capital do país.
Havia certa naturalidade, entre os escritores de teatro da época, em publicar as peças
ou no idioma francês ou com temas que se ligassem à Europa. Salvo alguns exemplos como
Adão, Eva e outros membros da família, de Álvaro Moreyra, escrita em 1925, que se
31
propunha a fazer uma incipiente crítica aos padrões e costumes da época. As demais peças
restringiam-se a temas menos polêmicos. Como agravante da repulsa à peça oswaldiana,
percebe-se, entre os modernistas participantes da Semana de 22, uma espécie de ojeriza ao
texto dramático. Tal situação lançou os olhos da crítica à prosa e à poesia, negligenciando as
poucas peças imbuídas com o espírito de 22, como O Rei da Vela.
Desse modo, a acolhida ao texto se pautava em um processo de silenciamento da voz,
que se levantava aos brados em uma platéia catatônica pelos processos de exploração, dos
quais, em certa medida, era vítima. Essa voz dissonante foi relegada a um plano secundário e
a peça encontrou os palcos trinta e um anos após sua publicação, através do Grupo Oficina,
liderado por José Celso Martinez. Neste sentido, Sábato Magaldi (2004, p. 170) revela que “O
teatro de Oswald estava adiantado, em relação ao estágio que atravessava o palco brasileiro.
O Rei da Vela assustava a pacata ideologia vigente e outros textos que fugiam às
possibilidades práticas das companhias. Daí a sua rica solidão em uma época sem grandes
peças nacionais.”
Somente em 1968, O Rei da Vela mereceu uma montagem digna, pelo grupo de
teatro Oficina, liderado por José Celso Martinez Corrêa. Em “O rei da vela: manifesto do
Oficina” (2004), o diretor da companhia afirma que “O Oficina procurava um texto para
inauguração de sua nova casa de espetáculos que ao mesmo tempo inaugurasse a
comunicação ao público de toda uma nova visão do teatro e da realidade brasileira [...] E o
„aqui e agora‟ foi encontrado em 1933 n‟O Rei da Vela de Oswald de Andrade” (p. 21). O
Rei da Vela ficou sendo, para o Oficina, a síntese inimaginável da realidade brasileira que,
imersa em monotonia e em falta de criatividade, desmorona o país semicolonial; as
concepções teatrais de Oswald estavam em sintonia com as do grupo, que levou, a as
últimas consequências, a montagem ousada, permitindo que obra ressurgisse ainda forte e
contundente.
Como a peça,
apresentava-se, de modo, até certo ponto esquemático, uma análise dos mecanismos
de exploração econômica no Brasil, elaborando através do texto dramático, um
modelo das relações sociais que garantiram a manutenção do país sob a tutela e o
poder decisório dos grandes centros metropolitanos. (PEREIRA, 1995, p.166)
Não foi difícil para o Grupo Oficina, ao ler a peça, encontrar consonância ao período
histórico que atravessavam.
A metáfora antropofágica é revivida em 1967 com a montagem de O Rei da Vela. A
metáfora permanece, em grande parte, intacta em seus objetivos estéticos e
nacionalistas. O diretor José Celso percebe que a linguagem da antropofagia é uma
resposta apropriada às circunstâncias culturais, políticas e econômicas de 1967, pois
32
acha que um paralelo com os anos 30. Essa convicção pretende ser em si uma
afronta aos dirigente políticos da Brasil, que renovaram a repressão do Estado Novo.
E, também, uma afronta às classes médias urbanas que achavam ter o Brasil
alcançado o progresso. A montagem de O Rei da Vela tem o nítido intento de refutar
essa idéia. O Rei constitui também uma versão atualizada da devoração
antropofágica dos mais recentes modelos teatrais estrangeiros que então
predominavam no teatro brasileiro. Finalmente, o Rei renova a metáfora
antropofágica ao intentar lançar as bases de um modo brasileiro de fazer teatro, com
a incorporação de formas culturais populares e folclóricas. (GEORGE, 1985, p.18)
A tônica da montagem centrou-se, assim, na retratação do imobilismo da história
nacional, pois, apesar de passados trinta anos de sua publicação, a sua atualidade era
espantosa, em meio a um período obscuro para a construção da nacionalidade: a ditadura
militar (e sua censura).
A montagem de O Rei da Vela surgiu em 1967 como uma assunção tropical do
Brasil um grito de revolta contra a estagnação da nossa cultura, um desabafo para
não identificar-se com o „imenso cadáver cangrenado‟ que lhe parecia ser o País. O
Oficina encenou O Rei da vela para protestar contra a realidade de um Brasil de
1967 idêntico ao de 1937. (MAGALDI, 2004, p. 177)
As peças de Oswald, apesar da enorme importância para a consolidação do teatro
moderno, no Brasil, não foram enfocadas com tanta dedicação pelas companhias teatrais da
época. Esse fato, como mencionado anteriormente, deu-se por inúmeros motivos, dentre eles:
o amadorismo de algumas companhias nacionais, que eram formadas, em sua maioria, por
atores estrangeiros, faltando o comprometimento com o próprio teatro brasileiro; o fato de os
palcos serem dominados mais por atores do que por diretores-montadores; a censura da época,
que brecava qualquer tipo de manifestação artística mais vital; e, a própria impossibilidade de
dar à montagem tudo aquilo que era exigido pelas rubricas do autor. “Tudo isso não cabia no
teatro da época, apto somente para exprimir os sentimentos brejeiros luso-brasileiros. Era
preciso reinventar o teatro. E Oswald reinventou” (CORREA, 2004, p. 3)
José Celso buscou sublinhar as orientações do texto, desde o cenário até o figurino,
entremeando as cenas com músicas de Vila-Lobos e Carlos Gomes, entre outros. Os três atos
da peça foram encenados em três diferentes estilos: o circo, a revista e a ópera, que ampliara
ao máximo a mordacidade viva do texto. A primeira apresentação se deu em meados de 1968,
causando grande impacto no público, que momentaneamente o definiu como “pornográfico e
ridículo”, diferindo daqueles que consideraram a montagem “arrojada e cheia de realidade”. O
que se sabe de fato é que ninguém permaneceu indiferente à encenação.
A companhia viajou o mundo com a peça, obtendo grande êxito. Foi à França,
Alemanha e Itália, auto-afirmando a dramaturgia brasileira como uma das mais profícuas da
época; relembrando o poder de destruição (ou reconstrução?) do modernismo de anos atrás.
33
“O humor grotesco, o sentido da paródia, o uso de formas feitas, de teatro no teatro,
literatura na literatura, faz do texto uma colagem do Brasil de 30. Que permanece
uma colagem ainda mais violenta do Brasil de trinta anos depois, pois acresce a
denúncia da permanência e da velhice destes mesmos e eternos personagens.
(CORREA, 2004, p. 25)
É imprescindível relembrar que a primeira encenação se deu nos anos de chumbo da
ditadura e que por isso a peça sofreu muitos cortes. Dessa forma, um pouco do teor corrosivo
de Oswald foi perdido, deixando muitas vezes o espectador com a sensação de lacuna entre as
ações.
Depois do Ato Institucional 5, O Rei da Velafoi interditada; contudo, mediante
um acordo com a “censura”, a apresentação foi liberada desde que fossem cortadas partes do
texto, óbvio que as alterações visavam sempre atenuar a carga política da peça, deturpando o
sentido.
O crítico Bernard Dort, em um ensaio intitulado “Uma comédia em transe” sentenciou,
após observar a encenação do Oficina, em Nancy, que O rei da vela é um espetáculo que
desconcerta, que irrita, que vocifera uma realidade que continua a viver, a reviver, até a
exaustão . Trinta anos após a escritura da peça, o Oficina não a utiliza para levantar bandeira
em favor das lutas de classes. Ao contrário, quer mostrar face a face o mesmo cadáver
gangrenado do passado, só que mais podre.
Nós somos muito subdesenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de
Oswald. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio, sem risco,
do que para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira.
[...] Sua peça está surpreendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e
da arte atual. A superteatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechitiano
através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não artes, circo, show, teatro de
revista, etc. (MAGALDI, 2003, p.25)
Sem dúvidas, a execução da peça encontrou inúmeros entraves para consolidar-se. A
própria concepção inovadora, que exigia do grupo recursos cênicos ainda não vivenciados e
aceitos pela intelectualidade, e a censura, fizeram da montagem do Oficina um marco do
teatro nacional. Assim, O Rei da Vela”, de Oswald, guardada em livro por mais de trinta de
anos, não pôde exercer a influência imediata e direta oriunda dos palcos. A espera pelo
momento de encenação faz da dramaturgia de Oswald um monumento isolado na história do
teatro brasileiro, surgida cedo demais para que formasse raízes duradouras. Seu vanguardismo
a distanciou do que se produzia e do que se produziu nos últimos anos no país.
Diante de as questões expostas, é possível afirmar que as condições de produção da
peça esboçam um período conturbado, mas, ao mesmo tempo, rico em experimentação e
tentativa. Com isso, constitui-se a revolução necessária para que Oswald projetasse uma peça
símbolo das dicotomias do primeiro vintênio do século XX.
34
Posteriormente, quando do aprofundamento da análise da peça (capítulo 03), serão
retomados alguns destes pontos, que não é possível traçar a constituição do discurso da
peça, apartada dos aspectos históricos que a envolvem. No capítulo que segue, terá início o
esboço da teoria que servirá de suporte a este trabalho, a AD, remontando sua conjuração até
chegar aos dispositivos de análise necessários à proposta.
35
3 BREVE HISTÓRICO DA ANÁLISE DO DISCURSO
“Quem vê de perto não vê.
É necessário horizonte, distância,
perspectiva” (Oswald de Andrade)
O termo Linguística foi usado pela primeira vez em meados do século XIX, para
distinguir as novas diretrizes para o estudo da linguagem, em contraposição ao enfoque
filológico mais tradicional, a Linguística Histórica, cuja preocupação principal era a evolução
histórica das línguas, tal como se manifestavam nos textos escritos e no contexto literário e
cultural associado.
Nesse novo enfoque, do final do século XIX, ao invés de se estudar a linguagem para
fazer filosofia ou para fazer crítica literária, como nos séculos anteriores, passa-se a estudar a
linguagem pensando-se um „fazer ciência‟. A área a que se deu mais atenção foi à Linguística
Comparativa, com a qual se pretendia estabelecer a relação genética entre línguas.
No entanto, apesar desse período constituir um grande avanço para a Linguística, o
início do século XX é reconhecidamente o marco da mudança de paradigmas. Atribui-se a
Saussure a instauração dos “fundamentos” da Linguística e do “corte epistemológico”
efetivado em seu interior: a emergência da autonomia de um objeto e o advento da
positividade científica de uma teoria e de um método. Sai de cena a Linguística Histórica e
com ela a diacronia; entra a Linguística Descritiva trazendo consigo a sincronia.
Quando concebe sua teoria linguística, Saussure intenta construir um pensamento
científico-experimental. Para ele, era necessário analisar a vida de um idioma constituído,
situando a natureza do signo linguístico através das conhecidas dicotomias língua/ fala,
diacronia/ sincronia, significante/ significado, paradigma/ sintagma , num plano mais
excludente do que includente. Ele concebia o signo linguístico e a própria língua como
estáticos e abstratos, de forma que não receberiam influência do sujeito, encarado como ideal.
Durante muito tempo, tal visão serviu de base para as concepções em relação à
linguagem e à língua, esta última vista como um subproduto do pensamento, existente única e
exclusivamente através dele. A apreensão da língua, como parte estruturante de um sistema
fechado em si mesmo, vigorará com o crescimento do método estruturalista.
Ao falar do Estruturalismo é necessário compreender que, dentre os inúmeros
programas de pensamentos originários da França, ele foi o que obteve maior repercussão entre
os anos 50-60. Tal desenvolvimento encontra um conjunto múltiplo de razões, dentre as quais
36
se destacam a ruptura com os modelos de concepção científica vigentes na época e a proposta
de 'englobamento' de aspectos da realidade e da cultura, que até então haviam sido renegados
pelo academicismo predominante em toda a Europa.
O programa de pensamento proposto pelo Estruturalismo é decisivo para a
constituição das ciências humanas, já que sugere uma reflexão crítica sobre o próprio modo de
se fazer ciência. Se antes a concepção histórico-comparativa predominava no meio acadêmico
e orientava a produção científica em uma tendência à temporalidade ativa. Com o advento do
pensamento estrutural houve a possibilidade de se encarar o objeto dentro das suas próprias
condições de constituição, a partir de um “método rigoroso que podia ocasionar esperanças a
respeito de certos progressos decisivos no rumo da ciência” (DOSSE, 1993, p. 13). Esse
momento se constitui pela indagação da completitude do método histórico, que se via
questionado diante das novas feições adquiridas nas ciências humanas. Assim, a ruptura com
tal modelo se vê no centro da discussão e da ascensão do Estruturalismo.
Além disso, percebe-se, na proposta estruturalista, “uma certa” dose de auto-aversão,
de rejeição à cultura ocidental tradicional, “de apetite de modernismo em busca de novos
modelos” (DOSSE, 1993, p.13), o que culminou na opção pela contra-cultura. Coube ao
Estruturalismo abarcar saberes que aentão se viam proscritos das instituições canônicas,
materializando-se pela bandeira dos modernos em sua luta contra os antigos e pela inserção
do que se considerava marginal, recalcado da cultura.
É inegável que a abertura dada pelos estruturalistas do início do século foi importante
para a constituição dos estudos linguísticos, sobretudo nas incipientes inquietações teóricas
que envolviam o discurso. No entanto, não houve uma reflexão e uma revisão de conceitos
mais ampliadas (permanece o pensamento de língua fechada em si mesma, de estrutura
isolada), fato que se dará a partir da década de 50 quando, diante da necessidade de
aprofundamento teórico e do „esgotamento‟ das conceituações vigentes, os estudiosos
começam a encarar a língua como elemento constitutivo de um processo mais amplo.
Dessa forma, percebe-se que a primeira metade do século XX foi marcada pela
aplicação, às línguas, do conceito de estrutura, o que provocou a produção de muitos trabalhos
sob variados recortes, e fatalmente a descoberta de pontos impossíveis de dar conta por esse
modelo. Assim, o Estruturalismo saussuriano acumulou “excluídos” e entreabriu vertentes
que não podia explorar. Tal acúmulo, provavelmente, levou o seu modelo à „crise‟ e a
segunda metade do século XX explodiu em “novas teorias” ou, ao menos, novas abordagens
para o estudo da língua.
37
Nesse momento, torna-se evidente que uma Linguística de cunho imanentista que se
limita a um estudo interno da língua não pode dar conta da relação desta mesma língua com o
social e o ideológico. Como revela Mussalin (2001, p.105), “Uma Linguística saussureana,
uma Linguística da língua, não seria suficiente; uma teoria do discurso, concebido como
lugar teórico para o qual convergem componentes linguísticos e socioloideológicos, poderia
acolher esse projeto.”.
Há, nesse período, condições de produção (a própria conjuntura política e cultural da
Europa da segunda metade do século XX e as discussões acadêmicas sobre os limites da
ciência no mundo) que reclamam a emergência de uma disciplina capaz de abarcar a
quantidade de produções discursivas da época, atrelando a isso um olhar analítico e, ao
mesmo tempo, interpretativo. Teóricos, envolvidos com debates que colocavam em conexão
teses marxistas, psicanalíticas e epistemológicas passam a constituir um terreno capaz de
fecundar uma teoria, uma metodologia e uma análise para os discursos.
Surgem os trabalhos de Harris (Discourse analysis, 1952), os de R. Jakobson e E.
Benveniste. Eles marcam o início de uma reflexão que passa a conceber a língua em uma
concepção discursivizada. Apesar de marcadamente diferentes, que o primeiro autor
estendeu procedimentos consolidados da Linguística Distribucional americana aos
enunciados, encarando o texto em sua forma mais redutora na busca pelo sentido em suas
unidades linguísticas; e, os segundos abarcaram uma perspectiva que deu ênfase ao sujeito
construtor de enunciados dentro da enunciação, ressaltando a relação entre o locutor, o
enunciado e o mundo exterior, tais pesquisas foram crucias e ajudaram a apontar para a
diferença de perspectiva que vai marcar uma postura teórica de uma Análise do Discurso de
linha mais americana, de outra mais européia.
A linha anglo-saxã (ou americana) se preocupava em estabelecer um contato maior
com a Sociologia, enquanto que a Análise do Discurso de linha francesa voltava-se para a
relação do discurso com a História. A primeira enfocava a intenção dos sujeitos numa
interação verbal/oral, a segunda propunha uma análise dos textos escritos sob a perspectiva
de uma relação ideológica.
O que diferencia a Análise do Discurso de origem francesa da Análise do Discurso
anglo-saxã, ou comumente chamada de americana, é que esta última considera a
intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta,
enquanto a Análise do Discurso francesa não considera como determinante essa
intenção do sujeito; considera que esses sujeitos são condicionados por uma
determinação ideológica que predetermina o que poderão ou não dizer em
determinadas conjunturas histórico-sociais. (MUSSALIN, 2001, p.113)
38
Dessa forma, o enfoque assumido pela tendência linguística, que brota na França na
década de 60, encara a língua e a linguagem como lugares de conflito, de confronto
ideológico, que não podem ser compreendidas fora da sociedade, que os processos
constituintes dessa mesma língua e dessa mesma linguagem são histórico-sociais. Esta última
vertente, em uma visão mais ampla, será intitulada de Análise do Discurso (AD) e começará a
“abrir um campo de questões no interior da própria Lingüística, operando um sensível
deslocamento de terreno na área, sobretudo nos conceitos de língua, historicidade e sujeito,
deixados à margem pelas correntes em voga na época.” (FERREIRA, 2005, p.14).
A vertente francesa buscará condições de consolidação em um tripé, formado pela
Linguística, pelo Marxismo e pela Psicanálise. Na vertente linguística, busca os conceitos de
enunciação, palmilhados por Benveniste; de discurso, por Foucault, além de propor uma
revisão ao método saussureano e ao Estruturalismo. Em Althusser, traz a questão dos
Aparelhos Ideológicos do Estado e do materialismo histórico, de vertente marxista; na
Psicanálise, busca a noção de sujeito clivado entre consciente e inconsciente.
Em outras palavras, a Linguística trouxe ao projeto de gênese da AD a materialidade
da língua para, a partir daí, construir o lugar privilegiado em que a ideologia se manifesta, o
discurso. Althusser e sua teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) postula que as
ideologias têm existência material e que, portanto, não devem ser analisadas enquanto ideias,
mas como um conjunto de práticas que reproduzem as relações de força e de produção,
constituindo o que comumente se chama de materialismo histórico. a Psicanálise, através
de Lacan, traz a ênfase na constituição do conceito de sujeito clivado, cindido, divido, mas
estruturado a partir da linguagem, interpelado por um exterior e por um inconsciente.
É difícil precisar quando se deu essa mudança de paradigma teórico na Europa (de
língua/fala para ngua/ discurso), que não há um ato fundador, especificamente, nem um
pai declarado, mas pode-se afirmar que as movimentações de maio de 68, na França, que
deram ao sujeito um lugar mais destacado, fizeram com que o excesso do formalismo
linguístico da época fosse revisto e, até mesmo, questionado.
Além disso, atribui-se a emergência da AD às práticas escolares de leitura e
interpretação de textos, consideradas como insuficientes. Diante desses argumentos, Dubois,
linguista, e Pechêux, filósofo marxista, envolvidos em movimentos sociais, política, luta de
classes, marxismo e História configuram os primeiros passos do que se chamaria AD.
Neste contexto, Pêcheux, apesar de não ter rotulado tais pesquisas, torna-se o
responsável pela elaboração teórica e pela territorialização da disciplina, sendo considerado o
39
mais representativo teórico da AD, para alguns, e o próprio iniciador da linha francesa de
Análise do Discurso, conforme afirma Maldidier (2003).
Ao propor o deslocamento dos estudos, antes focados na língua abstrata, o teórico
francês precisou definir os campos de atuação dessa disciplina e os pressupostos básicos de
uma teoria que batizou de Teoria do Discurso. Alicerçado em uma formação filosófica,
Pêcheux desenvolve questões críticas sobre a própria Linguística e postula que, para haver um
olhar crítico sobre os processos discursivos é necessário operar uma ruptura epistemológica,
que coloca o discurso em um espaço onde intervêm questões relativas à ideologia e ao
discurso.
Para tanto, recorreu aos conceitos de discurso e formação discursiva, palmilhados por
Foucault; ideologia, tributários de Althusser; além de redefinir o conceito de língua antes
considerada em transparência, agora vista sob a opacidade do discurso , e o conceito de
sujeito. Nestes pontos, as reflexões de Pêcheux se mostram de suma importância, que o
discurso, por exemplo, passa a ser encarado como um ponto de articulação entre o ideológico
e o linguístico, um mediador necessário entre o homem, a realidade e os outros homens.
Em Semântica e Discurso (1975), livro síntese das ideias iniciais e ponderações
pechetianas sobre o discurso, Pêcheux lança, através do pensamento filosófico, as bases para a
constituição da sua teoria. Focado na especificidade do discurso, o teórico proporá, nesse
livro, uma reflexão sobre os conceitos de formação discursiva, de ideologia, de sujeito (ou no
dizer de Pêcheux, de forma-sujeito e interpelação do sujeito) e, em uma primeira reflexão,
trará o conceito de interdiscurso, hoje percebido como nodal, no processo de compreensão da
Análise do Discurso.
A partir de uma „revisitação‟ às bases da Linguística (Pêcheux se revela arguto leitor
de Saussure) e ao pensamento filosófico, busca ordenar os conceitos para, enfim, propor uma
teoria materialista do discurso, que se ancorava na tese althusseriana de interpelação do
indivíduo em sujeito do discurso, através da ideologia. Para tanto, ele propõe um
redimensionamento da própria noção de língua vigente na época. Para ele,
O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o
revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento
dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode
concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a
língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos
diferenciados. (PÊCHEUX, 1997, p. 91)
As noções trazidas pela Linguística, segundo o autor, vão além de seu campo de
atuação, sendo possível aliá-las aos conceitos filosóficos e psicanalíticos, em voga na época,
40
em busca de uma teoria menos subjetiva acerca da linguagem. Criar o instrumental para isso
será o foco de Pêcheux, durante sua trajetória como filósofo-linguísta. Assim, ele repensa a
noção de sujeito encarada como „sempre--dado‟ e não reflexivo, em contraponto com a
noção de ideologia, mostrando como esse mesmo sujeito se constitui através de um processo
de autonomia ilusória, no interior de formação discursiva à qual se filia, sendo sempre
atravessado pelo discurso do outro, pelo interdiscurso que constitui o seu próprio discurso.
O estudo entre as condições de produção dos discursos e seus processos de
constituição ganhou destaque através de análises que buscavam, sobretudo, os textos políticos
da época. Caberia à AD “trabalhar seu objeto (o discurso) inscrevendo-o na relação da língua
com a história, buscando na materialidade linística as marcas de contradições ideológicas.”
(BRANDÃO, 2004, p. 50), marcando, desta forma, a linguagem como lugar de conflito, de
confronto, que não pode ser estudada nem concebida fora da sociedade, já que seus processos
de constituição são histórico-sociais.
Nesse momento, há uma retomada de alguns conceitos propostos por Bakhtin, em
meados de 30, que traziam o símbolo da ruptura. A chegada dos escritos de Bakhtin à
Europa, por questões de tradução somente foi possível muitos anos depois (no fim da década
de 60), o que, de certa forma, trouxe à tona pesquisas realizadas mais de trinta anos, mas
que continham um teor de novidade assombroso para os pesquisadores da época.
Apesar de não ser um retorno metodológico, o que o teórico russo havia proposto
alguns anos em suas obras Problemas da Poética de Dostoievski (1997) e em Marxismo e
filosofia da linguagem (1986), principalmente, parecia estar de acordo como o que as novas
perspectivas teóricas propunham: um olhar diferenciado sobre o discurso. Nesse contexto, ao
afirmar que a especificidade das ciências humanas reside no fato de ter como objeto o
discurso, muitas vezes materializado em textos, Bakhtin empreende um caminho contrário ao
dos estudos linguísticos praticados até então. Estudos que desconsideravam o caráter social e
ideológico das produções escritas, por exemplo.
Ressaltando o caráter dialógico da linguagem, que, para ele, seria princípio
constituinte do sujeito e, por conseguinte, da condição de existência do sentido e do discurso,
ele parte do pressuposto que todo discurso reside em uma relação com outro discurso. As
inúmeras contribuições que a AD foi buscar em Bakhtin (longe de afirmar que Bakhtin é AD
ou que a AD se constrói em Bakhtin) não se limitam a esse conceito. Analisando,
inicialmente, o discurso literário, ele propõe conceitos como polifonia, vozes, além de retomar
a questão do gênero sob outra ótica, a discursiva. Desta forma, o terreno aberto por Pêcheux,
41
outrora, é vastamente enriquecido, possibilitando uma feição de descoberta e elaboração
constante, dentro do campo da AD.
Buscando uma interface com as áreas afins, a AD, com todos os seus conceitos e
formulações teóricas, configura-se como uma disciplina de entremeio, que busca dar subsídios
consistentes àqueles que intentam apreender as várias nuances do texto e do discurso e suas
relações com o social e o ideológico. Ela serviu de redirecionamento a outros campos do
saber que também se debruçavam sob a linguagem, mas não a percebiam em suas
especificidades, e hoje é uma disciplina institucionalizada e abalizada pelos teóricos. Como
pontua Charaudeau (2006, p.46), a existência de uma disciplina como a AD é um fenômeno
importante que é “primeira vez na história, (que) a totalidade dos enunciados de uma
sociedade, apreendida na multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto de
estudo.”
Assim, esses novos estudos postulam que é através do discurso que o sujeito se
constitui e se revela, pois “a palavra é o signo ideológico por excelência.” (BAKHTIN, 1986,
p. 16) e é a partir dela que se pode identificar as formações ideológicas/discursivas dentro de
uma situação de enunciação. Passa-se a arquitetar o sujeito, não como um indivíduo que fala,
mas que expressa o falar de uma instituição ou de uma ideologia. Desta forma, “Todo dizer é
ideologicamente marcado. É na língua que a ideologia se materializa [...] O sentido não existe
em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-
histórico em que as palavras são produzidas.” (ORLANDI, 2006, p. 38-42)
A ideia de que nenhuma palavra é propriedade de alguém, que traz em si a
perspectiva de outra voz, abriu diversas possibilidades de entendimento, sobretudo na
Literatura, que muito conhece o poder da palavra, perfazendo uma espécie de ritual, em
que um sujeito se enuncia, partilhando com os interlocutores, um mundo de possibilidades.
Seria o que se pode chamar de ação da linguagem, com a veiculação de representações, de
conhecimentos outros, tais como os de gerações anteriores e/ou contemporâneas, em interface
com o espaço discursivo do interlocutor. Mostra-se, aí, o fato de que a compreensão é sempre
dialógica, pois é imprescindível a presença do outro para entender e interferir no sentido que
se construirá.
Através de sua preocupação com o método e de suas discussões sobre o acontecimento
e sobre o estatuto do sujeito na linguagem, Pêcheux trouxe contribuições fundamentais para a
constituição da AD. Ao conceber o discurso como uma instância histórica e social, ele rompe
com o paradigma da estrutura, demonstrando que a linguagem, enquanto discurso, não pode
42
ser compreendida como uma unidade significativa, mas como um efeito de sentido entre os
sujeitos que a utilizam.
Ao analista, cabe localizar os recursos de combinação e transmissão dos discursos,
observando de que forma a confluência significa a interpretação do discurso de outrem, a
manipulação da argumentação autoritária ou a subversão desse discurso. Buscam-se as
relações entre as condições de produção de um discurso e ele mesmo, analisando as condições
de emergência de um efeito de sentido e não de outro, no interior de um discurso e de um
interdiscurso.
Para entender como a AD chegou a tais formulações e se construiu neste constante
repensar de suas bases, cabe agora traçar o caminho de consolidação da disciplina (item 2.1) e
traçar também as características mais importantes dos conceitos básicos da AD (item 2.2).
3.1 ETAPAS DE CONSOLIDAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO
Em uma tentativa de problematizar e, ao mesmo tempo consolidar, os pressupostos
básicos da disciplina a qual aqui se filia, faz-se necessário analisar sucintamente as três fases
por que passou a Análise do Discurso. O primeiro momento, intitulado de Análise Automática
do Discurso (AAD-69) caracteriza-se pela noção de “maquinaria discursiva”, em que o sujeito
acredita ser o produtor de seu discurso, mas é apenas assujeitado às formas discursivas
circulantes e produtoras de seu dizer.
Nessa 1ª fase (AD1), os analistas exploram discursos mais estabilizados (manifestos,
por exemplo) que eram produzidos dentro de condições mais fechadas e, portanto, menos
polêmicos. Havia um grau maior de silenciamento de outros discursos e, por isso mesmo, uma
variação de sentido menor. Para se construir uma análise, nessa época, cabia ao analista seguir
etapas bem definidas, a saber: seleção de um corpus fechado (um texto pertencente a
determinado partido político, por exemplo); análise linguística das sequências; construção de
blocos de identidade a partir das relações linguísticas percebidas; e, por fim, comparação
desses resultados, tentando mostrar que são pertencentes a uma mesma estrutura (ou, uma
mesma máquina discursiva).
O segundo momento da AD é marcado pela revisão do conceito de maquinaria, a
partir da incorporação do conceito de formação discursiva e de interdiscurso (conceitos que
serão detalhados mais adiante). A partir disso, o foco de estudo passa a ser as relações
empreendidas entre as chamadas máquinas discursivas definidas na primeira fase. Na AD2 o
43
conceito de formação discursiva (FD) é responsável pela mudança na concepção do objeto da
AD; se, antes a análise, valia-se de discursos mais estabilizados (AD1), nesta fase os discursos
produzidos em situação menos homogênea eram objetos de análise (ex. debates). O papel do
analista seria descrever as regras de formação de cada FD no interior do discurso.
O terceiro momento (AD3), de retomada e reconceituação para a AD, é marcado pelas
noções de interdiscurso, cotejadas, mas não aprofundadas na segunda fase e de
heterogeneidade constitutiva do discurso, desconstruindo a noção de maquinaria fechada
inevitavelmente. Na chamada AD3, a estrutura de uma FD se concretiza a partir de um
interdiscurso. Adota-se a perspectiva segundo a qual os diversos discursos que atravessam
uma FD não se constituem independentes uns dos outros. Por isso, o procedimento por etapas,
com ordem fixa, explode definitivamente. A partir dessas pesquisas é possível afirmar que,
hoje, há o primado do interdiscurso sobre o discurso.
Nesta esteira, entende-se que um trabalho que manuseie o texto teatral encontra terreno
fecundo nas relações interdiscursivas que o movem e o constituem, enquanto objeto
discursivo, como propõe a 3ª fase da disciplina
3.2 ALGUNS CONCEITOS CHAVES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO
3.2.1 Sujeito
Algumas tendências marcaram, inicialmente, os estudos da linguagem no século XX,
bem como o conceito de sujeito. Uma primeira, que, a partir da retomada de estudos
postulados por Platão, considerava a ngua como representação. A essa noção filiava-se, por
exemplo, à escola de Saussure, considerando a língua e, por sua vez, o sujeito, como abstratos
e ideais.
Uma segunda tendência toma o domínio da subjetividade para compor a noção de
sujeito e língua. A este quadro filia-se Benveniste e seus trabalhos sobre a enunciação. Para
esse teórico, a língua seria apenas uma possibilidade que ganha corpo no ato de enunciação.
Contudo, tal noção passa a ser considerada restritiva, quando se percebe que ela se fecha ao
ato enunciativo, ou seja, sujeito seria apenas aquele que diz „eu‟. Redutor, tal postulado não
poderia abarcar muito da natureza enunciativa, que uma complexidade de discursos
produzidos por um sujeito que não se outorga o „eu‟. Para Benveniste, o sujeito seria „eu‟
44
homogêneo que interage com um „tu‟ opondo-se ambos a não pessoa (ele). Haveria assim um
equilíbrio entre o „eu‟ e o „tu‟.
Uma noção posterior e é nela que se firmará a noção de sujeito para a AD situaria
a constituição do sujeito em relação ao discurso do outro, que passa a ser situado num
tempo e orientado socialmente. É nesse ponto que se constitui a noção de interdiscurso, com
Pêcheux. Para o francês, pensar em uma teoria do discurso seria colocar a questão da
constituição do indivíduo em sujeito a partir da interpelação da ideologia e dos outros
discursos que se encontram com esse sujeito. Para ele, é a ideologia que
fornece as evidências pelas quais „todo mundo sabe‟ o que é um soldado, um
operário, [...] evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado queiram
dizer o que realmente dizem‟ e que mascarem, assim, sob „a transparência da
linguagem‟, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos
enunciados. (PÊCHEUX , 1997, p.160)
Nesse momento, a noção de sujeito ego, uno, é contraposta à noção de um sujeito que
se faz na intersecção do discurso do outro. Chega-se ao descentramento do sujeito falante.
Sujeito que tem a ilusão de ser dono do seu discurso, quando na verdade é assujeitado às
condições de surgimento do seu discurso e da sua formação discursiva (autonomia ilusória). O
sujeito seria um efeito de linguagem, já que seria atravessado pelo seu avesso, o inconsciente.
A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação
(do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é
constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do
sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma
[...] enquanto pré-construído e processo de sustentação) que constituem, no discurso
do sujeito, os traços daquilo que o determina, o re-escritos no discurso do próprio
sujeito. (op. cit. p.163)
A ideia básica da AD seria postular que o sentido e o sujeito não são dados a priori,
são constituídos no discurso. Resultado da relação com a linguagem e a história, o sujeito
do discurso não é totalmente livre, nem totalmente determinado por mecanismos exteriores. O
sujeito é constituído a partir da relação com o outro, estabelecendo, assim, uma relação ativa
no interior de uma FD.
Para a Análise do discurso, é essa concepção de sujeito que vai perdendo a
polaridade ora centrada no eu ora centrada no tu e se enriquecendo com uma relação
dinâmica entre identidade e alteridade que vai ocupar o centro de suas
preocupações atuais. Para ela, o centro não está nem no eu nem no tu, mas no espaço
discursivo criado entre ambos. O sujeito só constrói sua identidade na interação com
o outro. E o espaço dessa interação é o texto. (BRANDÃO, 2004, p. 76)
Para a AD, é um sujeito assujeitado (submetido ao esquecimento, segundo Pêcheux) à
medida em que seu discurso é predeterminado pela sua formação discursiva e pela sua
herança histórica. Tal conceito, assim, modifica-se a partir das fases da AD: fase
45
assujeitado à maquinaria, ou seja, submetido totalmente a regras específicas que determinam e
delimitam o seu discurso; 2ª fase desempenhando diferentes papéis através da posição que
ocupa, ou seja, o sujeito se constitui a partir do lugar que se enuncia; na fase o sujeito
aparece como clivado, heterogêneo, dividido, construído no espaço entre o eu e o tu. Nas três
concepções que constituíram o conceito de sujeito para a AD podemos perceber que em todas
elas o sujeito aparece como não sendo dono de seu dizer e senhor de sua vontade, e sim
construído no interior do próprio discurso.
Contudo, uma espécie de contradição no interior desse mesmo sujeito: ele não é
nem totalmente livre nem totalmente submetido, pois ao mesmo tempo em que é interpelado
pela ideologia, ele ocupa, na formação discursiva que o determina, com sua história particular,
um lugar que é essencialmente seu. Constituir-se-ia, nesse ponto, a suposta consagração da
„liberdade‟ do sujeito falante, que é interpelado pela ideologia, até certo ponto manipulado por
ela, mas tem a ilusão de ser dono de suas palavras.
A essa concepção de sujeito, Pêcheux denomina forma-sujeito, que seria o sujeito
interpelado pela ideologia. Concebe, assim, o conceito de ilusão discursiva, a partir das
postulações sobre o efeito do esquecimento que regeriam a seleção e as formas de dizer, no
interior de uma formação discursiva. Nomeia de esquecimento nº 1, o esquecimento de
natureza inconsciente e ideológica, que traria ao sujeito a ilusão de ser dono de seu dizer. Por
esse esquecimento tem-se a ilusão de ser a origem do que se diz quando na verdade retomam-
se discursos pré-existentes.
De esquecimento nº 2 designa a seleção das formas de dizer, no interior de uma
determinada FD, sendo, portanto, da ordem da enunciação e de natureza linguística-
ideológica. Esse esquecimento lança a impressão de realidade do pensamento, ou seja, há uma
ilusão referencial que faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem
e o mundo, de tal modo a pensar que o que se diz só pode ser dito com aquelas palavras e não
outras.
Em resumo,
Sob o termo de esquecimento que Michel Pêcheux arranca de sua acepção
psicológica, tenta pensar a ilusão constitutiva do efeito sujeito, isto é, a ilusão para o
sujeito em estar na fonte do sentido [...] A zona de esquecimento nº1 é por definição
inacessível ao sujeito. O esquecimento nº2 designa a zona em que o sujeito
enunciador se move, em que ele constitui seu enunciado colocando as fronteiras
entre o dito e o rejeitado, o não-dito. Enquanto o segundo esquecimento remete aos
mecanismos enunciativos analisáveis na superfície do discurso, o primeiro deve ser
posto em relação com as famílias parafrásticas constitutivas dos efeitos de sentido.
(MALDIDIER, 2003, p.42)
46
Através de tais contribuições, o sujeito para Análise do Discurso perde o seu centro e
passa a se caracterizar pela dispersão (no dizer de Foucault), por um discurso heterogêneo que
incorpora, que assume diferentes vozes sociais e que se constitui nesse jogo de força,
instalado em seu discurso, no interior de determinada FD e na relação com a história e a
ideologia.
3.2.2 Discurso
Para organizar a especificidade do termo discurso, dentro da Análise do Discurso,
parte-se do pressuposto de Maingueneau (1997): a noção de discurso não é estável e,
acrescenta-se, nem fechada.
Foucault, em A ordem do discurso, inicia seu texto afirmando que diante da palavra
discurso sempre houve certo temor de definições e que “parece que o pensamento ocidental
tomou cuidado para que o discurso ocupasse o menor lugar possível entre o pensamento e a
palavra.” (2007, p. 46). Remontando à questão do discurso, ele diz que “há uma inquietação
diante do que é discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita.” (2007, p.
8), revelando que tratar desse conjunto de conceitos imbricados é tarefa árdua. Para o filósofo,
deve-se “restituir ao discurso seu caráter de acontecimento.” (2007, p. 51), ou seja, considerá-
lo como analisa Michel Pêcheux (2006) em O discurso: estrutura ou acontecimento?
Pêcheux parte da indagação do título para traçar um caminho, na Análise do Discurso,
sobre o seu próprio objeto. Ele vai da Escolástica aristotélica à Ontologia marxista, a fim de
traçar a natureza do discurso dentro de uma teoria materialista do sentido, concluindo que
mais do que realidade estruturada, do que proposição estabilizada, o discurso é um
acontecimento localizado em um espaço. Ele parte da análise do enunciado On a gagné”,
das eleições francesas de 1981, para mostrar que no interior da AD uma tensão que
considera o discurso como realidade pronunciada, como acontecimento e como uma questão
filosófica analisada no interior da própria estrutura.
Partindo também do Dicionário de Análise do Discurso (2006, p. 170), de
Charaudeau e Maingueneau, discurso pode ser definido como uma forma de apreender a
linguagem. Tais teóricos propõem características básicas que podem ajudar no desenho desta
definição: a) “o discurso supõe uma organização transfrástica”, ou seja, ele mobiliza
estruturas de outras ordens para se constituir. Como diz Pêcheux (1997), ele é um
acontecimento muito maior do que sua própria estrutura supõe, de modo que sua constituição
47
se dá pela conjuração de situações outras, como uma experiência a cada situação que não dura
muito; b) “o discurso é orientado”, isto é, desenvolve-se no tempo; c) “o discurso é uma
forma de ação” a partir do que a teoria dos atos de fala propõe; d) “o discurso é interativo”,
ele busca o seu outro, uma instância, presente ou não, a qual se dirige e se constrói o próprio
discurso; e) “o discurso é contextualizado”, não assumindo contexto como moldura, mas
como um todo situado dentro de uma condição de produção; f) “o discurso é assumido e
regido por normas” por sua própria natureza social; e, por fim, g) “o discurso é assumido em
um interdiscurso”, ou seja, os sentidos são adquiridos em um universo de outros discursos.
Das características assumidas na obra citada, a última merece um destaque maior,
dentro do quadro da Análise do Discurso hoje. É através da noção de interdiscurso, ponto
nodal da teoria pechetiana e da constituição da Análise do Discurso, que o conceito de
discurso relaciona-se com a materialização da ideologia, da história e do sujeito. O discurso se
constituiria na interseção com outros discursos e, em uma retomada às ideias de Foucault,
pela dispersão constituinte das relações discursivas. Para compreender essa dispersão, cabe a
noção de formação discursiva que, de certa forma, regularizaria o discurso. O discurso seria o
ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e os processos ideológicos. Alicerçada
no materialismo histórico, a AD, portanto, considera o discurso como uma materialização da
ideologia.
3.2.3 Formação discursiva
De maneira mais ampla, pode-se considerar uma formação discursiva como a
manifestação, no discurso, de uma determinada formação ideológica, em uma situação de
enunciação especifica. A formação discursiva (FD) é a matriz de sentidos que regula o que o
sujeito pode e deve dizer e, também, o que não pode e não deve ser dito, definida através de
um interdiscurso. Tal noção “permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua
relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades
no funcionamento do discurso.” (ORLANDI, 2006, p.43)
Em linhas gerais, uma FD determina o que pode e deve ser dito a partir de um
determinado lugar social, assumido pelo sujeito no interior do discurso. Ela é marcada por
certas „regularidades‟, encaradas como mecanismos de controle, que determinam o que
pertence (o interno) e o que não pertence (o externo) a ela. Desta forma, a FD não se constitui
independentemente, mas no interior de uma relação com outras FDs, outros discursos e,
48
principalmente, no interior de uma formação ideológica (FI) específica. Como FI entende-se
os elementos capazes de intervir em relação ao sentido em uma posição dada em uma
conjuntura histórica dada, ou, no dizer de Pêcheux (1997, p.160),
O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, não existe em si
mesmo (isto é, em sua relação transparente com literariedade do significante), mas,
ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no
processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são
produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras,
expressões e proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em
referência a essas posições, isto é, em referências às formações ideológicas nas quais
essas posições se inscrevem.
A FD seria um dos componentes de uma FI específica. Mas tais limites se revelam
instáveis, pois o caráter ideológico que inscreve embates e posições antagônicas. Deste
modo, traçar os limites de uma FD, de maneira definitiva, torna-se tarefa complexa, que
uma FD se inscreve entre diversas outras FDs, em uma constante troca interdiscursiva, em
que a presença do Outro confere ao discurso o seu caráter heterogêneo constituinte. Uma FD,
no dizer de Maingueneau (1997), não seria, portanto, um bloco compacto e fechado, e sim um
todo constituído na incessante relação com o Outro, afirmando o primado do interdiscurso
sobre o discurso.
Desta forma, uma palavra ou expressão não possui sentido em si mesma, mas constitui
um sentido ou um efeito de sentido nas relações que estabelece com outras palavras ou
expressões, no interior da formação discursiva a que faz parte. De forma análoga, o próprio
sujeito se constituiria no interior de uma formação discursiva específica, que representa,
através da linguagem, as formações ideológicas que lhes são correspondentes. Assim, a
formação discursiva seria parte constituinte, também, do sujeito.
É através da FD, portanto, que se articula o assujeitamento e a interpelação do
indivíduo como sujeito ideológico (forma-sujeito). Há uma identificação imaginária do sujeito
com a FD que o domina, apoiada na noção de interdiscurso (articulado sob a forma de pré-
construído ou de processos de articulação e sustentação mais amplos), de forma que o
discurso do sujeito se reescreve no interior de um outro discurso.
3.2.4 Interdiscurso
A noção de interdiscurso tornou-se chave para a consolidação da AD à medida em que
se postula que hoje esta sob a égide do interdiscurso (ou na expressão de Maingueneau, no
primado do interdiscurso). Essa noção, introduzida por Pêcheux em Semântica e discurso
49
(1997), encontra ampla utilização nos trabalhos de Maingueneau, que parte dela para construir
a sua semântica global.
Em Semântica e discurso (1997), Pêcheux conceitua formação discursiva para
revelar que o interdiscurso pode ser considerado como o conjunto de FDs que se inscrevem no
nível da constituição do discurso, na medida em que trabalham com a re-significação do
sujeito sobre o que foi dito, o repetível, determinando os deslocamentos promovidos pelo
sujeito na fronteira de uma formação discursiva.
Para ele, “Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela
se constitui, sua dependência com respeito ao „todo complexo com dominante‟ das formações
discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas” (PECHEUX, 1997, p. 162),
de modo que o interdiscurso é considerado como esse todo complexo das formações
discursivas. Acrescenta ainda que essa noção se assenta no fato de que “algo fala, sempre
antes, em outro lugar, independentemente.”.
Para se compreender a interpelação do indivíduo em sujeito do seu discurso, o
conceito de interdiscurso é basilar, pois é através dele que o sujeito encontra a realidade de
coisas percebidas, aceitas, experimentadas sob a forma de um sistema de evidências e
significações confrontadas. Desta forma, o interdiscurso, sob as formas de pré-construído e de
processos de articulação/sustentação, institui no discurso do sujeito traços daquilo que o
determinam e estão, por sua vez, re-escritos no seu próprio discurso.
Assim, o interdiscurso, para Pêcheux, estaria „diluído‟ no interior do próprio discurso
(que ele chama de intradiscurso), de modo que o sujeito, afetado pelos esquecimentos 1 e 2,
não teria total conhecimento das determinações que o colocam no lugar que ele ocupa, que
o pré-construído, base do interdiscurso, “remete simultaneamente „àquilo que todo mundo
sabe‟, isto é, aos conteúdos de pensamento do „sujeito universal‟ suporte da identificação e
àquilo que todo mundo, em um „situação dada‟ pode ser e entender, sob a forma de evidências
do „contexto situacional‟”. (PECHEUX, 1997, p.171).
Como pontua Orlandi (2006, p. 54),
O interdiscurso a memória discursiva sustenta o dizer em uma estratificação de
formulações feitas, mas esquecidas e que vão construindo uma história de
sentidos. É sobre essa memória, de que o detemos o controle, que nossos sentidos
se constroem, dando-nos a impressão de sabermos do que estamos falando. Como
sabemos, ai se forma a ilusão de que somos a origem do que dizemos.
A partir dos pressupostos de Pêcheux e de um aprofundamento, através de Foucault,
Maingueneau propõe, em Gêneses dos discursos (2007), uma ampliação do conceito que
para ele subjaz à implementação da tese: o interdiscurso tem precedência sobre o discurso.
50
Essa ideia propicia, de certa forma, um deslocamento teórico à medida em que a unidade de
análise pertinente, passa do discurso para o espaço de trocas entre vários discursos, escolhidos
pelo analista convenientemente.
No capítulo Primado do interdiscurso, o autor coloca o interdiscurso como base de
qualquer processo discursivo, mesmo quando este não está marcado na superfície textual. Ele
parte da hipótese de que como no discurso a heterogeneidade constitutiva é ponto pacífico,
seria o interdiscurso que vincularia, em “uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu
Outro.” (PÊCHEUX, 2007, p.33)
Para construir a noção de interdiscurso, considerando-a como inscrita na base de
qualquer discurso, Maingueneau julga necessário entender as noções de universo discursivo,
campo discursivo e espaço discurso, que, por si , a ideia de interdiscurso é muito ampla,
sendo importante entender o seu próprio funcionamento. Denomina de universo discursivo o
conjunto das mais diversas formações discursivas que interagem em uma dada conjuntura.
Essa noção não é considerada de grande valor ao analista, que a AD busca trabalhar as
relações estabelecidas entre as mais diversas formações e as mesmas formações que se
entrecruzam, em estado de concorrência ou aproximação.
A noção de campo discursivo, desta forma, é um ponto chave para o analista, que
ela pode ser entendida como “um conjunto de formações discursivas que se encontram em
concorrência e delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo
discursivo.” (PÊCHEUX, 2007, p. 35). Estabelecer esta inter-relação entre os campos
discursivos constitui, de certa forma, o trabalho do analista, que faz escolhas individuais a
partir de questionamentos suscitados pelo próprio objeto. A partir da construção dos cortes
operados nesses campos discursivos, emerge o discurso.
No interior dos campos, isolaram-se os espaços discursivos de análise, ou seja,
subconjuntos de formações discursivas que o analista avalia importantes para os propósitos
assumidos em suas hipóteses iniciais. Nesses termos, a conjugação dos espaços discursivos
também é configurada através de seleções do próprio analista. Tendo em vista tais princípios,
é nas relações estabelecidas que emergem as posições assumidas pelo discurso no interior do
interdiscurso.
Optar por este processo de análise viabiliza a percepção das relações de polêmica que
se configuram entre os discursos no interior de uma mesma FD, que a atitude
responsiva/dialógica é condição sine qua non de qualquer enunciação. Além disso, amplia-se
a percepção do interdiscurso, em relação ao seu exterior, para a relação do interdiscurso como
constitutivo em si mesmo e no intradiscurso, sem haver a necessidade prévia de uma inscrição
51
marcada, do primeiro sobre o segundo, como queriam alguns analistas da escola francesa na
década de 60. Como todo enunciado do discurso tem o caráter essencialmente dialógico, não é
possível dissociar a interação dos discursos do próprio funcionamento intradiscursivo.
Assim,
No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, nem ma citação,
nem uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura
visível da compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre
descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser
considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. (MAINGUENEAU, 2007, p.
39)
Partindo de tais considerações, pode-se afirmar o primado do interdiscurso sobre o
discurso, à medida em que, em uma relação de concorrência, polêmica ou concordância, os
discursos se auto-delimitam e delimitam aos outros através do interdiscurso, configurando a
interdiscursividade constitutiva.
3.3 CONSTRUÇÃO TEÓRICA DE UM DISPOSITIVO DE ANÁLISE
De forma geral, a Análise do Discurso propõe-se a construir um dispositivo de
interpretação para o discurso selecionado enquanto objeto analisável. Dessa forma, cabe ao
analista, no confronto com o seu corpus, lançar um dispositivo de análise que possa abarcar as
especificidades de seus objetivos para aquele momento da pesquisa.
A partir do reconhecimento do seu objeto e dos seus objetivos momentâneos, o
analista irá cotejar o discurso que pretende analisar, aos conceitos teóricos. Trata-se de uma
seleção individual, como afirma Maingueneau (2007, p. 26), “Onde houver enunciados,
enunciados sobre esses enunciados, ad libitum, cada um tem sempre o direito de traçar os
limites de um terreno de investigação conforme seja conveniente.”
Desta forma, há uma ligação entre a descrição do corpus e a construção do arcabouço
teórico que irá ancorar os gestos de interpretação possíveis para aquele recorte. Não é
possível, desta forma, uma compreensão do analista que não seja mediada constantemente
pela intermitência entre a descrição e a teoria que constituem o processo de estudo.
Para esta pesquisa, escolheu-se apresentar os conceitos iniciais que irão constituir o
dispositivo de análise; contudo, não se pretendeu, e nem seria possível, esgotar tais elementos,
pois entende-se que, através da leitura do corpus, os conceitos ganham força e vida. Acredita-
se, porém, ser necessário um breve panorama destes conceitos, que adentrar no corpus
propriamente será aprofundá-los.
52
Assim, além dos conceitos-chave em AD, que foram elencados anteriormente
(sujeito, discurso, FD e interdiscurso), somam-se os conceitos de ethos e polifonia, que na
nossa concepção auxiliarão na identificação e análise das estratégias de construção de sentido
e de constituição dos múltiplos sujeitos na peça O Rei da vela, como proposto inicialmente.
3.3.1 O conceito de ethos
Os anos 80 marcaram uma reflexão aprofundada, em relação ao discurso, ocasião em
que Maingueneau (1997, 2001, 2006) traz a problemática do ethos retórico, empreendido por
Aristóteles, na Grécia antiga, aliada a uma perspectiva da Pragmática e da Análise do
Discurso, traçando o que se veio a conhecer por ethos discursivo. Esse empenho encontra
justificativa com o avanço das mídias visuais, sobretudo, a publicidade, que se vale dessa
elaboração de um corpo imaginário, através do discurso como estratégia, e do crescente
interesse trazido pela AD em confrontar língua, sujeito, história e ideologia, percebendo,
através do discurso, como há a constituição de uma imagem de si.
Trabalhado por Aristóteles, o ethos retórico estava ligado à enunciação do locutor em
face a um auditório, sendo a designação de uma “imagem de si que o locutor constrói em seu
discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário.” (CHARAUDEAU, 2006, p. 220).
Assim, essa construção se daria porque o auditório atribuiria certas características ao locutor,
através de seu discurso. Nesta concepção,
A prova pelo ethos consiste em causar uma boa impressão por meio do modo como
se constrói o discurso, em dar de si uma imagem capaz de convencer o auditório ao
ganhar sua confiança. O destinatário deve assim atribuir certas propriedades à
instância apresentada como fonte do evento enunciativo. (MAINGUENEAU, 2006b,
p. 267)
A fim de conseguir tal feito, na Retórica, o orador deveria articular três características
básicas: phronesis, ou prudência, areté, ou virtude, e eunóia, ou benevolência. O importante
seria a imagem que o auditório formaria de seu orador, em relação aos seus traços de caráter,
revelados no momento da enunciação.
Inúmeros estudiosos trouxeram pontos somatórios para a concepção do ethos, mas a
“integração desse termo às ciências da linguagem encontra uma primeira expressão na teoria
polifônica da enunciação de Oswald Ducrot” (AMOSSY, 2005, p. 14). Partindo da
enunciação, tal teórico expropõe que há uma distinção entre o locutor, enquanto enunciador, e
o locutor enquanto ser no mundo, que diferenciaria também o mostrar e o dizer. É o
enunciado que revela os autores da enunciação, por isso era necessário não confundir as
53
instâncias internas do discurso com o ser empírico que se situaria fora da linguagem. A
pragmático-semântica, disciplina à qual Ducrot estava vinculado, se interessava por essa
instância discursiva que se revelava através do seu discurso, formando uma imagem, no
entanto, Ducrot não aprofundou essa reflexão sobre o ethos.
Neste contexto, Maingueneau (2001) começa elaborar essa noção atrelada à
construção da imagem de si no discurso, em seus trabalhos de Pragmática e Análise do
Discurso. Ainda numa perspectiva interativa entre locutor (enunciador) e público (co-
enunciador), ele coloca que o ethos se constrói em uma imagem passada e, também,
apreendida pelo público. Deste modo,
É insuficiente ver a instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso apenas
como estatuto ou papel. Ela se manifesta também como voz, e, além disso, como
corpo enunciante, historicamente especificado e inscrito em uma situação, que sua
enunciação ao mesmo tempo pressupõe e valida progressivamente.
(MAINGUENEAU, 2005, p. 70)
Seria necessário, para tanto, a construção de uma espécie de quadro, através da
enunciação, para legitimar o discurso que se constrói nessa interação, o que Maingueneau
chamou de cena da enunciação. Para ele, enunciar não seria apenas expressar seu discurso,
mas também tentar construir e legitimar o seu dizer através deste quadro chamado de cena da
enunciação.
O locutor deve dizer construindo o quadro desse dizer, elaborar dispositivos pelos
quais o discurso encena seu próprio processo de comunicação, uma encenação que é
parte integrante do universo de sentido que o texto procura impor. A situação de
enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se constrói como
cenografia por meio da enunciação. [...] O discurso implica uma certa situação de
enunciação, um ethos, digo linguageiro através dos quais se configura um mundo
que, em retorno, os valida por seu desenvolvimento. (MAINGUENEAU, 2006b,
p.47)
Maingueneau não descarta, contudo, que essa noção é um tanto problemática, que,
por estar ligada à enunciação, por exemplo, não se pode descartar as imagens prévias que o
público tem antes mesmo de entrar em contato com o enunciador. Ele coloca em jogo a
questão do ethos discursivo e do ethos pré-discursivo, e cita exemplos específicos que
desestabilizariam as possíveis certezas, como no caso de um romance de autor desconhecido
pelo grande público. Ele coloca, também, a relação entre os neros escolhidos e os
posicionamentos ideológicos, que, por ser uma noção que interage com diversos fatores,
pode-se falar em indução. Além disso, ele traz a questão dos elementos exteriores, que podem
contribuir para esta noção, e também a ideia de que muitas vezes o ethos visado não
corresponde ao produzido.
54
Diante disso tudo, Maingueneau (2006b, p. 60) afirma que “Não é de forma alguma
possível estabilizar definitivamente uma noção desse tipo, que é mais adequado apreender
como cleo gerador de uma multiplicidade de desenvolvimentos possíveis.”, mas que é
importante se traçar as características básicas dessa noção, a saber: é uma noção discursiva,
ou seja, é construída por intermédio do discurso; é um processo interativo de influência sobre
o outro; é uma noção híbrida que não pode ser apreendido fora da situação de comunicação.
A formação de uma imagem positiva de si, através do discurso, articula-se à noção de
adesão, por meio da qual o co-enunciador se sente impelido a manter uma relação de
confiança com o locutor. Instaura-se, ai, uma noção de fiador do discurso, que seria uma
espécie de tom específico, que permitiria relacionar a uma caracterização de corpo do
enunciador (discursivo) que atesta o que é dito. Esse fiador incorporaria um caráter
comportamento em relação ao espaço social e uma corporalidade específicos, a partir do ato
enunciativo. Seria esse tom específico que tornaria possível traçar uma dimensão da
identidade e do posicionamento discursivo.
De acordo com Maingueneau (2001, p. 99),
O poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar o leitor a se
identificar com a movimentação de um corpo investido de valores socialmente
especificados. A qualidade de ethos remete, com efeito, à imagem desse fiador que,
por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo
que ele deverá construir em seu enunciado.
A opção que Maingueneau faz, portanto, é por um ethos encarnado, que se constrói na
dimensão verbal, que ganha um corpo e um caráter através da imagem desse fiador, que o
articula às representações coletivas. Essa articulação a estereótipos faz com que o leitor
ultrapasse a simples identificação a uma personagem e chegue ao mundo ético.
A construção do ethos se dá, assim, por meio de um apoio recíproco entre a cena da
enunciação (da qual o ethos participa) e do conteúdo apresentado, que se articula a fim de
montar uma imagem acerca do enunciador. A maneira de dizer, segundo Amossy (2005),
possibilita a construção de uma verdadeira imagem de si a partir do momento em que articula
a inter-relação entre o locutor e seu parceiro através de diversos índices discursivos.
3.3.2 O conceito de Polifonia
Em meados de 30, pensar a língua, a linguagem e a própria comunicação, reduzia-se,
muitas vezes, a seguir os caminhos palmilhados por Saussure e os formalistas. Em meio a
uma linguística imanente, que percebia a língua como um sistema abstrato e ideal, distante da
55
interação real da comunicação, Bakhtin (1929), pensador russo, junto a Voloshinov e
Medvedev, começou a refletir sobre a linguagem a partir de outros pressupostos: a interação e
a enunciação.
Partindo de uma ideia de que a abordagem da língua e do discurso não pode se dar de
forma interna, exclusivamente, como os tributários do chamado objetivismo abstrato
acreditavam, e nem de maneira exclusivamente externa, como pregavam os partidários do
subjetivismo idealista, Bakhtin propõe uma abordagem mediativa entre essas duas dimensões,
como uma forma de conhecer o homem e sua condição de sujeito múltiplo, bem como seu
lugar na História, na cultura e na sociedade, através da linguagem.
Em um contexto histórico conturbado, dialogando com estudiosos das áreas da
Sociologia, Antropologia e Literatura, Bakhtin começa a perceber a língua em seu aspecto
discursivo, e, desta forma, “influenciou ou antecipou as principais orientações teóricas dos
estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos, sobretudo, nos últimos trinta anos.”
(BARROS, 1997, p. 27). Ele iniciou, desse modo, uma reflexão sobre alguns conceitos da
Linguística moderna ao passar a perceber a língua como um fato social, reflexo ideológico,
bojo da interação entre os sujeitos.
É em uma percepção de alteridade, própria das ciências humanas, que o teórico russo
irá conceber que a linguagem é dialógica por natureza, que o outro é imprescindível no
processo de construção de sentido. Passa-se a uma visão da linguagem como interação, em
que o outro desempenha um papel basilar na constituição dos significados, integrando-se o ato
de enunciação individual a um contexto mais amplo, trazendo à tona as relações estreitas entre
o linguístico e o social.
Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente
organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do
signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas
condições em que a interação aparece. [...] Realizando-se no processo da relação
social, todo signo ideológico, e portanto também o signo linguístico, vê-se marcado
pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados. (BAKHTIN,
1981, p.44)
Como característica essencial da linguagem, o princípio dialógico traria a perspectiva
de que nenhuma palavra é totalmente propriedade de alguém, por trazer em si a presença de
outra voz, percebida, às vezes, de forma anônima, distante. Considera-se, assim, que o
dialogismo é a condição de existência do próprio discurso, pois ele constitui o texto como um
conjunto de muitas vozes ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam. A palavra
passa a ser o lugar privilegiado para as manifestações da ideologia, uma espécie de arena de
56
vozes, onde haveria o confronto entre aquelas vozes que querem ser ouvidas por outras e
querem demonstrar suas visões de mundo. Como afirma Brait (2003, p. 15):
Tanto as palavras quanto as ideias que m de outrem, como condição discursiva,
tecem o discurso individual de forma que as vozes elaboradas, citadas, assimiladas
ou simplesmente mascaradas interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a
ficar nas sombras autoritárias de um discurso monologizado.
Um discurso encontra o discurso de outrem e estabelece uma relação viva e intensa
com ele, constituindo o sujeito que se enuncia em sujeito do discurso. Assim, a palavra
veicula, de maneira privilegiada, a ideologia, sendo a língua a representação das relações e
das lutas sociais. A palavra seria, então, construída através de uma multidão de fios
ideológicos, que representariam as relações sociais, no processo de interação com o outro.
Deste modo, “As relações dialógicas são um fenômeno quase universal, que penetram
toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo
o que tem sentido e importância” (BAKHTIN, 1997, p. 42), sendo o ponto articulatório entre
sujeito, história e ideologia.
Apesar de muitas vezes serem usadas como sinônimas, as palavras dialogismo e
polifonia diferenciam-se no ponto em que esta última se instaura como uma estratégia
discursiva, em um texto em que é possível perceber claramente a presença de muitas vozes.
O diálogo é a condição da linguagem e do discurso, mas textos polifônicos e
monofônicos, segundo as estratégias discursivas acionadas. No primeiro caso, o dos
textos polifônicos, as vozes se mostram. No segundo, o dos monofônicos, elas se
ocultam sob aparência de uma única voz. Monofonia e polifonia de um discurso são,
dessa forma, efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se
utilizam em textos, por definição, dialógicos. Os textos são dialógicos porque
resultam do embate de muitas vozes sociais: podem, no entanto, produzir efeitos de
polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia,
quando o diálogo é mascarado, e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (BARROS, 2003, p.
6)
Trazida por Bakhtin, a partir da análise dos romances de Dostoiévski, a noção de
polifonia se liga à ideia de realidade em formação, de não acabamento, de uma natureza
multifacetada que traduz a multiplicidade social, cultural e ideológica representada. Para ele,
o autor de um romance polifônico não definiria os personagens apenas, mas deixaria que
estes, através de suas enunciações, se revelassem num processo interativo muitas vezes não
concordante com apenas uma voz. É a polifonia o ponto alto de um discurso, que se constrói
através do diálogo de muitas vozes, que se olham de posições sociais e ideológicas diferentes,
construindo o discurso no cruzamento desses pontos de vista. Como pontua Bezerra (2008, p.
198), “Polifonia é aquela multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis
57
cujas vozes não são meros objetos [...] , mas os próprios sujeitos desse discurso, do qual
participam mantendo cada uma sua individualidade caracterológica, sua imiscibilidade.”
Tal noção abre a possibilidade de encarar a linguagem como esse processo interativo
de diálogo, constante entre as diversas vozes, e suas cosmovisões em um dado momento
histórico e um dado contexto social. O discurso passa a ser percebido não como um produto
individual, mas como fruto de uma interação, antes de tudo, ideológica. A palavra seria,
então, o fenômeno ideológico por natureza, demonstrando de forma pura e sensível as
relações sociais. Por isso que,
realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico, e, portanto
também o signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte de uma época e de um
grupo social determinado [...] A palavra revela-se, no momento de sua expressão,
como produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN, 1981, p. 66)
A busca pela literatura, inicialmente com o gênero romanesco, se porque o teórico
russo acredita que esta concentra um tipo especial de linguagem, que possibilita a visão de
elementos obscurecidos por outros tipos de discurso. Buscando o texto, concebido como
tecido organizado, unidade discursiva estruturada e contextualizada sócio-historicamente, ele
percebe os diálogos que são travados entre o enunciador e o enunciatário, na interação verbal
do espaço textual e nota que o sentido é atingido através de diversas vozes que dialogam
e/ou polemizam dentro do texto.
Desta forma, nota-se que os textos são, em sua maioria, polifônicos, que, como
afirma Bronckart (1999) “nele se fazem ouvir várias vozes distintas”. As vozes aqui
mencionadas seriam entidades que tomam para si (ou às quais são atribuídas) a
responsabilidade do que é enunciado. A polifonia seria, pois, a realização mais concreta do
posicionamento ideológico, pois é nela que as vozes dialogam e polemizam entre si, olhando
de posições sociais diferentes. E é no cruzamento entre estes pontos de vista, que se delinea o
discurso. “O discurso, forma histórica e falante, faz-se ouvir através de suas inúmeras vozes,
dirige-se a um interlocutor e impõe uma atitude dialógica, a fim de que os vários sentidos,
distribuídos entre as vozes, possam aflorar.” (BRAIT, 2003, p. 15)
A ideia de que nenhuma palavra é propriedade de alguém, já que traz em si a
perspectiva de outra voz, abriu diversas possibilidades de entendimento, sobretudo na
Literatura, que há muito conhece o poder da palavra, perfazendo uma espécie de ritual, em
que um sujeito se enuncia partilhando com os interlocutores um mundo de possibilidades.
Seria o que se pode chamar de ação da linguagem, com a veiculação de representações, de
conhecimentos outros, tais como os de gerações anteriores e/ou contemporâneas, em interface
58
com o espaço mental do interlocutor. Mostra-se o fato de que a compreensão é sempre
dialógica, pois é imprescindível a presença do outro para entender e interferir no sentido.
Segundo Bronckart (1999), as vozes assumem as formas mais concretas da realização
do posicionamento e podem ser subdivididas em três categorias, quando se trata de um texto
literário: vozes de personagens, vozes de instâncias sociais e vozes do autor empírico. Dessas,
a primeira se definiria como sendo as vozes procedentes de seres humanos, ou de entidades
humanizadas, envolvidos, na qualidade de agentes, nos acontecimentos ou ações que
constituem o eixo temático de um segmento de texto. Sendo, portanto, a materialização de
discursos reais, ou pelo menos verossimilhantes, aos que se configuram no mundo não
literário.
A segunda formulação do teórico propõe as vozes sociais, que seriam as “procedentes
de personagens, grupos ou instituições sociais que não intervêm como agentes no percurso
temático de um segmento de texto, mas que são mencionadas como instâncias externas da
avaliação de alguns aspectos desse conteúdo.” (BRONCKART, 1999, p. 327)
É importante ressaltar que, em alguns textos, como o objeto deste estudo, as vozes
sociais são responsáveis por intervenções tão profundas que dissociá-las seria perder em
muito a essência da mensagem. As vozes sociais seriam os “espectros” importantes que dão
subsídios à construção dos temas, dos personagens, das falas. Como foi citado, o homem,
enquanto sujeito social carrega em si sua herança histórica e cultural; o personagem, como
personificação desse homem, também a trará, sendo, portanto, impossível não reconhecer sua
importância.
As vozes sociais, que estão dispostas no texto, dão a possibilidade ao leitor de
reconstruir um panorama histórico partindo do discurso. É no texto que se reconhecem os
embates ideológicos de uma época, que talvez se perderiam se não houvesse a preocupação
constante do autor de buscar externar essa vivência. É que se configura a última definição
de voz proposta: a voz do autor. É ela que intervém comentando e avaliando aspectos que são
enunciados e que, em muitos momentos, irá outorgar-se a responsabilidade do dizer,
quebrando o ilusionismo, como propôs Oswald de Andrade.
Através dessas vozes, que geram um compósito polifônico, o discurso se fará em luta
direta na construção do sentido. A palavra seria “a arena onde se confrontam valores sociais
contraditórios” (BAKHTIN, 1981, p. 14) e entendê-la em suas multifaces seria compreender
também um sistema social. A língua, como expressão das relações de lutas de classes, seria o
instrumento e o material para construção do sentido dentro do texto.
59
Nessa arena de vozes que é o texto, pode-se observar o caminhar das mudanças
ideológicas, analisando as relações de forças, que “cada signo ideológico é não apenas um
reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento da realidade” (BAKHTIN,
1981,, p. 33). Desta forma, para o analista do discurso localizar os recursos linguísticos e não-
linguísticos da combinação e transmissão das vozes discursivas, observando de que forma a
confluência significa a interpretação do discurso de outrem ou a manipulação da
argumentação autoritária ou a subversão desse discurso, é bastante esclarecedor.
Além de construir, através dos conceitos de ethos e polifonia, o arcabouço teórico
mais específico para esta análise, é de extrema importância traçar, também, a especificidade
do objeto sob o qual se debruça. Entender a natureza do texto teatral torna-se urgente, uma
vez que é a partir deste entendimento que os elementos estruturais e estruturantes do discurso
irão emergir, também configurando o quadro necessário ao analista. Sendo assim, escolheu-se
o tópico a seguir para compor a especificidade do texto teatral.
3.4 O TEXTO TEATRAL E SUA ESPECIFICIDADE
Alguns estudiosos consideram árdua a tarefa de ler o teatro, que em sua gênese a
representação seria um elemento necessário à completude dos sentidos, lacunar em sua
própria essência. Supõem que a chave para o entendimento do texto teatral estaria fora dele,
pois seria necessário estar familiarizado com técnicas de performance teatral ou com uma
aguçada imaginação, para ativar a leitura e a construção dos sentidos.
Entretanto, entende-se que, por ser uma prática textual muito específica, é necessário,
antes de tudo, constituir um arcabouço teórico que dê conta de um compósito de linguagem
tão particular. Dessa forma, recorre-se aos pressupostos da Linguística moderna, que
possibilitam analisar o texto teatral enquanto prática de linguagem e não como prática de
representação.
Como pontua Ubersfeld (2005, p. XIII),
A complexidade da prática teatral se situa na encruzilhada das grandes querelas
modernas que permeiam a Antropologia, a Psicanálise, a Linguística, a Semântica e
a História. [...] A Linguística é privilegiada no estudo da prática teatral, não apenas
por causa do texto, principalmente o diálogo uma vez que e a substância da
expressão verbal, evidentemente mas também por causa da representação.
Assim, ativar os sentidos do texto seria compor uma leitura que se bastasse a si
mesma, fora de qualquer representação, pois o texto em si seria o responsável por dar pistas
na construção de mundos imaginários.
60
Ler o texto de teatro é uma operação que se basta a si mesma, fora de qualquer
representação efetiva, estando entendido que ela não se realiza independentemente
da construção de um palco imaginário e da ativação de processos mentais como em
qualquer prática de leitura, mas aqui ordenados num movimento que apreende o
texto „a caminho‟ do palco. (RYNGAERT, 1995, p. 25)
Entender os mecanismos que compõem o texto dessa arte paradoxal tornou-se
necessário àqueles que, de alguma forma, se enveredam pelos caminhos do dramático. Mas,
afinal, como reconhecer a especificidade do texto de teatro? Será que reduzi-lo a um quadro
de características não seria obscurecer a complexidade que envolve a composição de uma
peça? É razoável considerar o texto teatral como uma extensão da conversação apenas?
Texto literário e objeto representável; seria ilusão conceber que o texto possui a
mesma composição que a interpretação. Em ambas, há a mobilização de diferentes linguagens
que se combinam num todo e, por isso, é necessário estabelecer o que pertence a cada
domínio. A especificidade do texto dramático passa pela combinação dos elementos de
teatralidade, matizes textuais: os diálogos (falas) e as didascálias (textos que não se destinam
a ser pronunciados nos palcos, mas que ajudam o leitor a compreender e a imaginar a ação e
as personagens).
Para distinguir esses elementos é necessário recorrer ao conceito de enunciação. Nas
didascálias, quem se enuncia, marcadamente, é o autor. Nos diálogos, marcadamente as
personagens. Desta forma, o texto teatral é passível de análise como qualquer outro objeto
linguístico, a partir das regras da Linguística e do processo de comunicação.
As didascálias, consideradas como metatexto, são responsáveis pela construção
imaginária das cenas, das personagens, das ões, enfim, da atmosfera que permeia o texto.
Na representação, são auxiliares importantes da cenografia e do figurino; na leitura,
constituem um verdadeiro texto sobre o texto.
Partindo do pressuposto de que “O teatro é antes de tudo diálogo, ou seja, nele a
palavra do autor é mascarada e partilhada entre vários emissores. Essas palavras em ação
assumidas pelas personagens constituem o essencial da ficção.” (RYNGAERT, 1995, p.12),
analisa-se, neste momento, as características do diálogo teatral. Este assume a consistência de
uma conversação orientada.
Neste simulacro da conversação, um elemento característico e fundador do texto
teatral seria a dupla enunciação, como revela Ubersfeld (2005, p.84)
Todo discurso no teatro possui dois sujeitos na enunciação, a personagem e o eu que
escreve (do mesmo modo que possui dois receptores, a outra personagem e o
público). Esta lei do duplo sujeito da enunciação é um elemento capital do texto de
teatro: é ai que se situa a fenda inevitável que separa a personagem de seu discurso e
a impede de se constituir em sujeito verdadeiro de sua fala. Uma personagem, cada
61
vez que fala, não fala sozinha, pois o autor fala ao mesmo tempo por sua boca; daí
um dialogismo constitutivo do texto de teatro.
Partindo disso, uma análise dos diálogos teatrais não pode deixar de mencionar a dupla
enunciação do seu texto, definida como a relação entre os eixos internos e externos da
composição. Quando um personagem fala, faz isso em seu estatuto de personagem, ou seja, o
faz em seu próprio nome, mas através do processo de dupla enunciação o faz porque o autor o
faz falar.
Assim,
A comunicação teatral não opera exclusivamente no eixo interno da relação entre os
indivíduos, mas também, ou principalmente, no eixo externo entre o Autor e o
Leitor/ público, através de uma cadeia de emissores. O que é chamado de dupla
enunciação no teatro. Na comunicação mais imediata, um ator fala a um ator, assim
como na vida ordinária um emissor conversa com um receptor. Mas esses atores são
apenas a expressão de uma troca situada desta vez ao nível da ficção, em que uma
personagem conversa com outra personagem. Por trás das personagens encontra-se o
verdadeiro emissor de todas essas falas, o autor, que se dirige ao blico. O blico
tem, portanto, o estatuto de destinatário indireto, pois é a ele, em última instância,
que todos os discursos são dirigidos, ainda que raramente o sejam de maneira
explícita. (RYNGAERT, 1995, p.109)
De forma esquemática, seria:
Dupla enunciação eixo interno (entre personagens) + eixo externo (entre autor/
leitor-público)
1) Comunicação imediata
Ator
Ator
Emissor
receptor
2) Ficção
Tudo o que é dito é destinado a produzir sentido e no texto teatral não é diferente. Ele
busca, na fala, seu alimento, a partir de estratégias de informação, ou seja, na seleção e
organização do autor em prol de um destinatário maior: o público. Assim, é através da
enunciação, como se concebe em Benveniste, que se estrutura uma peça que, fora da situação
de comunicação não possui sentido, só esta situação, ao permitir o estabelecimento das
condições de enunciação, confere ao enunciado seu sentido.
Personagem
Personagem (destinatário direto)
Autor
Público (destinatário indireto)
62
Deste modo, “Ler o discurso teatral é, à falta da representação, reconstruir
imaginariamente as condições de enunciação, as únicas que permitem promover sentido.”
(UBERSFELD, 2005, p. 158). Pode-se, assim, considerar que um jogo nos diálogos que
imputam a necessidade de atribuir um lugar aos parceiros da enunciação, através do
compartilhamento dos rituais de comunicação.
Na constituição do discurso teatral haveria, portanto, “duas camadas textuais distintas
(dois subconjuntos do conjunto textual): uma que tem como sujeito imediato da enunciação o
autor e que compreende a totalidade das didascálias, outra que investe o conjunto do diálogo e
que tem como sujeito mediato da enunciação uma personagem.” (UBERSFELD, 2005,
p.159), ligadas a diferentes situações de comunicação, uma concreta (a situação cênica) e
outra imaginária.
Na medida em que o discurso teatral é o discurso de um sujeito scriptor, ele é o
discurso de um sujeito imediatamente destituído de seu Eu, de um sujeito que se
nega como tal, que se afirma como quem fala pela voz de um outro, de
muitos outros, como quem fala sem ser sujeito: o discurso teatral é um discurso sem
sujeito. Discurso sem sujeito, mas que investem duas vozes, dialogando: é a
primeira forma, rudimentar, de dialogismo no interior do discurso teatral.
(UBERSFELD, 2005, p. 168)
O falar no teatro não pode ser igualado ao falar ordinário, já que este não se organiza a
partir de uma instancia maior, o autor, mas o que é possível é percebê-lo em suas nuanças
enunciativas, como um simulacro da conversação ordinária. Pode-se, portanto, afirmar que
neste processo de dupla enunciação que é o texto teatral, o discurso seria um canal
privilegiado, por onde trafegam ideologias, que o mascaramento dessa mesma ideologia se
dá apenas no plano ilusório.
É no texto teatral, através do simulacro, que é a fala do personagem e as didascálias,
que a instância enunciadora, o autor, se utiliza deste espaço privilegiado na construção do seu
dizer. O autor do discurso teatral, neste processo de dupla enunciação, se confunde com o eu
enunciador personagem.
63
4 CONSTRUÇÃO DOS BLOCOS DE ANÁLISE
Ao se trabalhar com o discurso, é necessário, antes de construir a análise, traçar os
caminhos que levaram ao objeto e que permitiram colocá-lo em seu lugar de recorte
analisável. Essa manobra consiste emr o elemento linguístico à distância e fixar os
instrumentos e os recortes de análise de acordo com um itinerário único, concernente à
formação do pensamento linguístico que se almeja. Como diz Charadeau (2008, p.15), “essa
herança passa pelo sujeito que produz a teoria ou a fala, o que significa reafirmar que
tantos percursos históricos quanto forem os sujeitos que teorizam”
Com isso claro, sabe-se que, ao propor uma análise está se produzindo um novo texto
a respeito de outro texto que depende, por sua vez, de outro texto e assim infinitamente, de
forma que a análise que se inicia é apenas uma escolha, diante de tantas possibilidades do
território-lugar-do-meu-pensamento-lugar-no-qual-eu-vou-me-construir (CHARADEAU,
2008, p. 16). Buscando Barthes, ele diz em S/Z (2003) que produzir uma análise de um texto
é entender que esse eu que se aproxima do texto, é, ele mesmo, uma pluralidade de outros
textos.
Assim, ao buscar o texto teatral, enquanto objeto de estudo, tenta-se encará-lo como
realidade discursiva, fruto de condições de produção específicas, as quais foram definidas
em capítulos anteriores. Tentar-se-á, portanto, uma nova leitura. Quando setrabalha com o
texto literário e se afasta de uma análise estritamente literária, sem excluí-la, obviamente, está
se traçando caminhos, pelos meandros da linguagem e do discurso, que auxiliarão a compor
um novo texto, um novo olhar.
Partindo dessa realidade, buscar-se-á compor os blocos de análise da peça O Rei da
Vela a partir de duas escolhas distintas, porém imbricadas: o primeiro caminho será tecer um
recorte a partir do personagem Abelardo I. Essa opção se justifica por considerar Abelardo I
como personagem síntese e também porque seu discurso, em forma de suas falas/enunciações,
podem ser considerados porta-vozes de discursos múltiplos, que trafegam no interior da peça.
Basicamente, as análises que se fincam em tal personagem terão como base o 1º ato, pois
considera-se que neste momento da peça o foco é descrevê-lo e construir sua imagem.
Como esboçado anteriormente, a peça não possui um protagonista, propriamente
(suspeita-se, inclusive, que os discursos da peça sejam o principal), mas percebe-se que, o fato
de Abelardo I circular em todos os momentos da peça e por ser ele, muitas vezes, elemento de
desestabilização, pode-se considerá-lo como nodal. Desta forma, serão recortados alguns
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trechos em que Abelardo I se enuncia, a fim esboçar as estratégias discursivas mobilizadas
para a construção desse sujeito enunciador e de seu ethos.
A composição dos outros blocos de análise se dará em torno da recorrência temática
nas falas das personagens. Este cotejamento será parte do processo de construção da
identificação das representações sociais que são refletidas e refratadas na peça. Desta forma,
serão recortados em dois grandes temas: instituição familiar e luta de classes, pois julga-se
serem representações bastante marcadas ao longo da peça. Tais análises se fincarão,
respectivamente, no 2º e no 3º atos. Como traçado no primeiro capítulo, O Rei da Vela traz,
em seu bojo, uma relação estreita com os acontecimentos da São Paulo de 30 e do mundo, de
modo que falar de revolução proletária e as novas configurações da sociedade se tornam uma
constante na obra.
Antes de iniciar a leitura de Abelardo I e dos outros pontos recortados da peça, julga-
se necessária uma breve análise de alguns elementos marcados, sobretudo, pelas didascálias.
Como já dito em tópico anterior, são as didascálias que constroem o universo ao redor da ação
dos personagens, destinadas ao público leitor. Elas tornam-se responsáveis também pelas
múltiplas leituras possíveis de O Rei da Vela. São elementos externos e sicos que
proporcionam um panorama visual de algumas relações sociais, ideológicas e artísticas, que
compreendem a criação da atmosfera e do cenário da peça.
É interessante retomar que a peça deve ser vista como parte de um processo de
desconstrução das máscaras que compõem o nacionalismo econômico dos anos 30. Chama-se
de máscaras a construção de um nacionalismo econômico, como uma ideologia voltada para o
futuro, comum na Era Vargas, em que o incremento econômico está estreitamente ligado aos
interesses de classe e não aos ideais verdadeiramente nacionais, com o se propõe a ideia de
nacionalismo. O programa de Vargas, no Estado Novo, assumiu os argumentos do
nacionalismo econômico como parte de sua política oficial, em particular, no que diz respeito
à estatização e à intervenção na economia.
Percebe-se, com estas referências, que a estrutura interna da peça relaciona-se com as
condições históricas e sócio-econômicas, mas que o fazem, principalmente, por meio de um
amplo processo de técnicas vanguardistas, como a paródia escancarada e a caricatura. Ela
trata de um tempo e de um lugar específicos São Paulo e Rio de Janeiro na década de 30 ,
mas sem esgotá-los, pois a peça não consegue ser confinada em seu tempo, uma vez que
quando ganha corpo, na década de 60, torna-se precursora de concepções próprias da teoria da
dependência, num raro processo de atualização.
65
Analisando o primeiro cenário, há o escritório de agiotagem de Abelardo I, que
constitui o primeiro extrato do que, depois, irá cristalizar-se numa hierarquia de exploração-
dominação estrangeira sobre a burguesia local, e esta sobre o proletariado local (urbano e
rural), evidenciando setores totalmente degradados pela crise. Os elementos de cena
percebidos no primeiro ato incluem, entre outros elementos, um retrato da Gioconda, um divã
futurista, uma secretária Luis XV, um telefone, um castiçal de latão e um mostruário de velas
de todos os tipos e tamanhos.
Essa perspectiva leva a ler o retrato de um Brasil que tem os olhos voltados para o
futuro (como a marcação do divã futurista, elemento representativo das novas teorias
freudianas e da conflagração da aristocracia com o novo), enquanto permanece no passado
(como mostra a secretária Luis XV). também um elemento utilizado para representar o
encarceramento do Brasil ao capitalismo externo e interno uma sala de espera em forma de
jaula, onde ficam os devedores.
o segundo ato, transcorre numa ilha tropical na Baía de Guanabara, perto do Rio de
Janeiro. pássaros exóticos, palmeiras, uma praia e “personagens que se vestem pela mais
furiosa fantasia burguesa e equatorial” (ANDRADE, 2003, p. 65). Há ainda barulho de
lanchas, móveis mecânicos e uma bandeira norte-americana hasteada. Tais elementos
constituem uma paródia dos costumes brasileiros marcados por um exotismo, atrelados a uma
tecnologia e a um pensar, muitas vezes norte-americano.
Com elementos cênicos de um hospital, o terceiro ato se desenrola no mesmo cenário
do primeiro. Este ponto simboliza a queda de um rei da vela e ascensão de outro (no caso
Abelardo II). A vela, constante nos cenários e no próprio título da peça, pode ter variados
valores simbólicos.
Inicialmente, o valor da vela é econômico. Em virtude da crise do café, a companhia
de eletricidade se viu em quase falência e a vela voltou a ser utilizada. Abelardo I abasteceu o
mercado de velas tornando-se o rei da vela. Nesta mesma análise, a vela estaria associada às
ideias de regressão ao feudalismo, ao semicolonialismo e ao subdesenvolvimento. Abelardo
representaria, neste contexto, o pequeno especulador, que se situa perto da base na hierarquia
de exploração. No vértice, estaria o imperialismo. A vela seria síntese de uma visão radical de
um período marcado por profundas crises econômicas.
Passando dessa análise, baseada no fundamento econômico, pode-se considerar a vela
como sugestivo de temas ligados às classes sociais. Abelardo I, graças ao dinheiro adquirido
em seu comércio de velas e em sua casa de usura, irá se casar com Heloisa, representante da
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aristocracia cafeeira, e é tratado, nessa mesma família, como o rei da vela. Contudo, também é
considerado arrivista, intruso.
Mais adiante, este novo rico é destruído pelo próprio sistema de exploração que ajudou
a manter. Assim, a vela torna-se símbolo de morte, velório e por fim vala, que é o destino
final de Abelardo I, no último ato:
ABELARDO II Está morrendo. A minha vida começa!
ABELARDO I A val...a..
ABELARDO II Compreendo. A vala comum... Não ficou nada. Nem para o
enterro nem para a sepultura. A casa ia mal há um tempo. Coitado!
ABELARDO I A val...a..
ABELARDO II O quê! Quer alguma coisa? Que o sinal do crime? Não, é cedo
ainda.
ABELARDO I Não... (Mostra com sinais alguma coisa que deseja)
ABELARDO II O telefone! Não. Um copo d‟água?
ABELARDO I (num esforço enorme) A vela!
ABELARDO II Ahn! Quer morrer de vela na mão? O Rei da Vela. Tem razão.
(Abre o mostruário. Tira uma velinha de sebo, a menor de todas. Acende-a) Não
quer perder a majestade. Vou pôr naquele castiçal de ouro!
A vela é o símbolo da morte individual, mas também passa a ser símbolo da morte
coletiva dos ideais de uma classe. É a vela com valores cíclicos, que com a morte do I, o
Abelardo II passa a ocupar todo o espaço deixado pelo seu antecessor, inclusive com direitos
sobre a noiva, Heloisa. Constitui-se um ciclo imutável da história dos países que vivem sob o
jugo do imperialismo e das classes arrastadas pela correnteza dessa nova conjuntura dada
pelos norte-americanos. Percebe-se, neste trecho, como há a construção do discurso a partir de
traços interdiscursivos, pois ultrapassam-se os limites do individual e passa-se a entender as
colocações como parte da marcação ideológica de um período.
Como revela o próprio Abelardo I, em diálogo com a noiva Heloisa:
ABELARDO I [...] Descobri e incentivei a regressão, a volta à vela...sob o signo
da capital americano.
HELOÍSA E ficaste o Rei da Vela!
ABELARDO I Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei
da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança, pensando nas
histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas
em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pagar o
preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu
produzo de todos os tamanhos e cores (indica o mostruário). Para o mês de Maria
das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite,
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para a hora de estudo da crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela
é a vela da agonia, aquela pequena velhinha de sebo que espalhei pelo Brasil
inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar nos umbrais da
eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional.
(2º ATO, p.63)
Ao listar as inúmeras utilizações de suas velas, Abelardo constrói uma imagem de que
o Brasil continua imerso em atraso profundo. Reforça esta ideia através das marcações
lexicais “feudal”, “interior”, “cidades caipiras”. Ele conclui com a própria constatação “Num
país medieval como o nosso” sobre o uso da vela de maneira que se formula a hipótese de
atraso.
Além disso, estabelece a relação de explorador-explorado, ao afirmar que seu negócio
se ergueu sobre a desgraça daqueles que ainda se ligam às tradições de outrora. Há, como se
pode perceber, um deslizamento do discurso do capitalista burguês para os elementos que
marcam um homem passadista. De forma análoga, Abelardo se adiante do seu tempo
(“mãos previdentes”), mas preso a um passado colonial.
4.1 ABELARDO I
Como já pontuado anteriormente, considera-se Abelardo I como elemento nodal para o
entendimento da peça. Ele, que será analisado nesse momento, é um agiota, dono de uma casa
de usura, e um novo rico, em ascensão, em meados de 30. Seu poder financeiro não lhe
concedeu acesso ao mundo aristocrático ainda predominante na São Paulo do início do século.
Para tanto, busca, através do casamento com Heloisa, filha de um latifundiário falido, uma
posição social de destaque. É um exemplo bastante representativo da busca burguesa pelo
poder do status quo no contato com os nobres depostos.
Percebe-se, e isso é um ponto constituinte da análise, que o nome de Abelardo I,
ligado ao de Heloisa, faz reconhecer uma famosa história de amor medieval do Ocidente, em
que a impossibilidade do amor faz o casal superar barreiras sociais e culturais para viver sua
história. Na famosa história de amor medieval, o casal era marcado pela tragédia de castração
e morte.
Nesta história de agora, o casal também é marcado pela tragédia, mas surge em uma
tragédia atualizada aos moldes do Brasil de 30: um novo rico, que precisa de uma posição
social, somente dada pela possibilidade de um casamento por interesse, com uma
representante da oligarquia cafeeira paulista. Um casamento sem amor, em que os cônjuges,
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abertamente, sabem fazer parte de um negócio. Ao se referir ao casamento, no momento de
sua derrocada, Abelardo I sentencia a Heloisa:
ABELARDO I Terás que procurar outro corretor... Você sabe... Nos casávamos
para você pertencer mais à vontade ao Americano [...]
A impossibilidade do amor, que é vital na primeira história, realiza-se em O Rei da
Vela pelo fato de Abelardo I morrer e deixar Heloísa, como parte de suas posses, para
Abelardo II, seu sucessor, e este, por sua vez, por conceder o „direito da pernada‟ ao
americano Mister Jones. Em um processo paródico, há a desconstrução do amor romântico da
primeira história e ascensão de um casamento fincado no interesse mútuo. Nesta relação
intertextual, ressoam as vozes da antiga história, quando Abelardo sentencia: “Heloisa sempre
pertencerá a Abelardo. É clássico!” (p. 97), este processo de ativação da memória discursiva
leva ao processo de desmoronamento dos ideais do amor.
Sabe-se que a AD introduz, por meio da noção de sujeito, a noção de ideologia e de
situação sócio-histórica como reflexões sobre as relações sociais, mostrando o discurso não só
como transmissor de informações, mas como efeito de sentido entre locutores. Desse modo,
aquilo que é dito não é resultado apenas da intenção de um indivíduo em informar o outro,
mas da relação de sentido estabelecida por eles num contexto social e histórico.
Como se adotou como referência esta linha de pensamento, entende-se como
primordial a relação da linguagem com a exterioridade, entendida como condição de produção
do discurso. A partir disso, percebe-se como a paródia, construída sob o amor romântico,
funciona como elemento de desconstrução de paradigmas arraigados no imaginário de todo
um grupo social: o casamento instituição sagrada e célula da família passa a ser concebido
como elemento de valor de troca, em negócios rentáveis para grupos distintos: a família de
Heloisa lucrará, pois mesmo diante da falência trazida pela quebra da Bolsa de 29, não
abandonará o luxo e a riqueza a que se acostumou; Abelardo I, arrivista social, lucrará
também, pois conseguirá, enfim, o brasão que tanto deseja para poder, sem receios, fazer parte
de uma elite. É a derrocada do amor romântico e a ascensão do amor dinheiro.
Maingueneau (2006, p. 266), ao destacar que “O texto não se destina à contemplação,
sendo em vez disso uma enunciação ativamente dirigida a um co-enunciador que é preciso
mobilizar a fim de fazer aderir „fisicamente‟ a um certo universo de sentido.”, traz à tona
algumas noções discursivas importantes para a construção desta análise e a busca em torno da
constituição dos múltiplos sujeitos, como ethos e adesão.
Adentrando a peça O Rei da Vela, percebe-se que a construção de Abelardo I é
tecida sobre elementos que se imbricam e se afastam mutuamente, construindo-o enquanto
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homem que se faz na confluência das divergências do seu próprio tempo. Ele é múltiplo,
apesar de considerar e se „enunciar‟ uno.
Observando trechos em análise, pode-se perceber que isso se materializa, claramente,
na enunciação de Abelardo I, quando este, ao revelar-se e construir-se identitariamente tenta,
também, mobilizar o leitor em sua visão de mundo. Partindo do pressuposto de que Também
no discurso literário o ethos desempenha um papel de primeiro plano, dado que, por natureza,
visa a instaurar mundos que ele torna sensíveis por seu próprio processo de enunciação.”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 88), é perceptível como o discurso de Abelardo I e a imagem
construída de si, na sua própria enunciaçã, alia-se à constituição da identidade de um homem
atrelado aos valores de sua época e atento ao seu tempo.
No primeiro ato, que é reservado para mostrar como esse personagem opera seus
negócios, as primeiras cenas revelam o contato com os seus credores, um cliente de nome
Manoel Pitanga de Moraes, outros marcados pelo nome de vozes, clientes representados por
suas nacionalidades (um italiano, uma francesa, um russo branco, um turco); com o seu fiel
auxiliar Abelardo II e com um padre que lhe faz uma ligação.
Na primeira cena, o cliente Manoel Pitanga recorre, novamente, aos serviços de
empréstimos oferecidos pela casa de Abelardo I. Ele pede que o usurário reconsidere a dívida
que mantém anos com o escritório. Abelardo I, por sua vez, argumenta a impossibilidade
disso. Após analisar a situação do cliente, inicia a conversa. É na confluência desse diálogo
com o cliente que se inicia o delineamento dos múltiplos sujeitos através de Abelardo I.
a) Trecho 01 (página 39/40)
ABELARDO I - Traga o dossiê desse homem
ABELARDO II - Pois não! O seu nome?
O CLIENTE (Embaraçado, o chapéu na mão, uma gravata de corda no pescoço
magro)- Manoel Pitanga de Moraes.
ABELARDO II - Profissão?
O CLIENTE - Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui
dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana. O empréstimo, o primeiro,
creio que foi para o parto. Quando nasceu a menina...
ABELARDO II - sei. Está nos IMPONTUAIS. (Entrega o dossiê reclamando e
sai)
ABELARDO I (Examina) - Veja! Isto não é comercial, seu Pitanga! O senhor fez
o primeiro empréstimo em fins de 29. Liquidou em maio de 1931. Fez outro em
70
junho de 31, estamos em 33. Reformou sempre. dois meses suspendeu o serviço
de juros... Não é comercial...
O CLIENTE - Exatamente. Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de
pagamento na Estrada, com a Revolução de 30... Foi um mau sucesso que
complicou tudo...
ABELARDO I - O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos
trabalhar com quem o paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior
falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa...
O CLIENTE - Há dois meses somente que não posso pagar juros.
ABELARDO I - Dois meses. O senhor acha que é pouco?
O CLIENTE - Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo. A fim de
não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tanta gente. É o amigo de
todo mundo... Por que não há de fazer um acordo?
ABELARDO I - Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento!
Analisando esta primeira passagem, é possível delinear duas faces que se mesclam na
constituição do ethos da Abelardo I: de um lado, alguém compreensivo apto a ajudar, que se
traveste da instituição que representa a fim de justificar seus atos; de outro, alguém pouco
amistoso, preocupado apenas com o valor do capital. São essas duas faces que, de forma
amalgamada, comportam a justificativa quase dramática (“O senhor sabe, o sistema da casa é
reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso”) e a
sentença assertiva (“Aqui não acordo, meu amigo. pagamento!”) lado a lado até o final
da cena.
Observa-se, através das marcações linguísticas, como na palavra “dossiê”, que a
relação que se estabelece entre os sujeitos é de crime, uma vez que o cliente nega-se a pagar.
uma espécie de armadilha discursiva porque quem se constrói como bom é Abelardo I,
que empresta, que serve, que negocia, e não o cliente que está ali para um golpe. O sobrenome
do cliente (Pitanga) guarda também uma significação interessante, pois dentro do nome
(Pitanga), guarda-se a palavra “tanga” que, na época, era uma gíria para indicar a situação de
quem era devedor.
Como acredita-se que “Um sujeito ao enunciar presume uma espécie de „ritual social
da linguagem‟ implícito, partilhado pelos interlocutores.” (MAINGUENEAU 1997, p.30),
percebe-se que a construção da imagem de Abelardo I se dá também através da fala do
cliente, que o julga “amigo de todo mundo”, por ser este o agiota mais procurado em toda a
cidade e ser este o mais útil, nos momentos de angústia econômica por que passaram boa
parte dos paulistas da década de 30.
71
Avançando um pouco mais na cena, o cliente solicita a Abelardo I uma pequena
redução do capital; neste momento Abelardo argumenta, trazendo uma reflexão que deixa o
cliente sem palavras. Neste pedaço da obra observa-se, inclusive, um léxico inquisitorial
(executar), mas com certo tom de modernidade (fuzile). Pode-se entender tal processo como
atualização da pena dos devedores.
b) Trecho 02 (página 42)
ABELARDO I Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu que fui procurá-lo para
assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para
pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma
redução no capital que eu lhe emprestei?
O CLIENTE (Desnorteado) - Eu já paguei duas vezes...
ABELARDO I - Suma-se daqui! (Levanta-se) Saia ou eu chamo a polícia. É só dar o
sinal de crime neste aparelho. A polícia ainda existe...
O CLIENTE - Para defender os capitalistas! E os seus crimes!
ABELARDO I Para defender o meu dinheiro! Será executado hoje mesmo. (Toca
a campainha) Abelardo! Dê ordens para executá-lo! Rua! Vamos. Fuzile-o. É o
sistema da casa.
Como o “O ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o
outro.” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 60), é através da imagem estereotipada de um agiota
que a imagem de Abelardo e de seu discurso são ancorados. Para ele, seu trabalho é digno e
limpo que não houve uma tentativa de sedução por sua parte a fim de influenciar o homem
a pedir dinheiro. Isso mostra como a construção de um mundo discursivo se apóia
substancialmente em mundos já construídos, já alicerçados socialmente.
No dizer de Foucault (2007), o discurso não é transparente nem neutro, ele é um
reflexo do momento em que foi constituído, já que
em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo mero de procedimentos que m
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2007, p. 9).
Assim, é através da instituição, que Abelardo I representa (o universo dos usurários),
que ele se enuncia e valida seu argumento. Não há possibilidade de ser diferente.
Na relação que estabelece com o capital, Abelardo I, em um processo de argumentação
sólida, vale-se do discurso da prestação de serviço e da oferta e procura, para convencer o
devedor sobre a responsabilidade que este tem em relação à sua derrocada de dívidas. Ao
72
questionar o cliente, Seu Pitanga, Abelardo I constrói seu discurso sobre o discurso do
capitalismo, que um das bases de tal forma de manutenção econômica é a lei de mercado:
se o cliente procurou, não justificativa para não aceitar as condições estabelecidas pelo
escritório de usura. Como no trecho em que questiona “Fui eu que fui procurá-lo para assinar
este papagaio?”. Isso revela como o discurso de Abelardo, em consequência a sua construção,
enquanto sujeito, está ancorado na premissa maior do discurso capitalista: a lei de mercado.
Na cena subsequente, da qual participam apenas Abelardo I e seu empregado Abelardo
II, o agiota revela como, para ele, a instituição familiar deve ser percebida e aceita e como
encara seu casamento com Heloísa de Lesbos, filha de um aristocrata falido, vítima da crise
de 29, ambos fincados nos ideais do capitalismo:
c) Trecho 03 (página 43/44)
ABELARDO I [...] Não confunda seu Abelardo! Família é uma coisa distinta.
Prole é de proletariado. A família requer a propriedade e vice-versa. Quem o tem
propriedades deve ter prole. Para trabalhar, os filhos são a fortuna do pobre [...] Seu
Abelardo, a família e a propriedade são duas garotas que frequentam a mesma
garçonnière, a mesma farra...quando o o sobra...Mas quando o pão falta, uma sai
pela porta e a outra voa pela janela [...] Para nós, homens adiantados, que só
conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão
ainda é negócio, faz vista num país colonial como o nosso! O senhor sabe que o
Paulo só tem dez famílias?
ABELARDO II - E o resto da população?
ABELARDO I - O resto é prole. O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é
deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro
do século XIX. Mas no Brasil ainda novo.
Ethos de um homem de negócios, prático e calculista, Abelardo I sabe que precisa de
uma posição social que ainda não possui, por ser um burguês ascendente, para se legitimar
socialmente. Homem difuso, tem consciência do atraso, ao passo que se revela à frente do seu
tempo, justamente por essa percepção. A metáfora do atraso anda lado a lado com uma
imagem de um homem empreendedor que compreende plenamente o papel que quer e que
deve assumir. Como se sabe, para a Análise do Discurso, “Assujeitar-se é condição
indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa antes de tudo ser alçado à condição de
sujeito” (FERREIRA, 2005, p. 18), é assim que Abelardo I se constrói sujeito.
Ao falar dos desvios sexuais atribuídos à família de Heloísa e a ela mesma, Abelardo
encontra, na própria instituição familiar e na tradição aristocrática, uma justificativa, mostra-
se, assim, tendencioso, como revela seguinte passagem:
73
d) Trecho 04 (página 43)
ABELARDO I Coisas que se compreendem e relevam numa velha família!
Heloísa, apesar dos vícios que lhe apontam. Você sabe, toda gente sabe. Heloísa de
Lesbos! Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio, para nos casarmos.
Disseram que era na Grécia. Apesar disso, ela ainda é a flor mais decente dessa
velha árvore bandeirante. Uma das famílias fundamentais do Império.
A diminuição do fato, perante a importância da tradição familiar, como mostra o
trecho, coaduna com um trecho anteriormente dito por Abelardo I, quando afirmava que uns
restos de brasões ainda faziam vista num país colonial, confirmando a construção de uma
identidade permissiva e volúvel que se faz na confluência de um jogo de interesses.
e) Trecho 05 (página 49/51)
ABELARDO II (atendendo)- Alô! É o padre! Aquele da entrevista! Está, reverendo!
Vem já...
ABELARDO I - Mas você marcou?
ABELARDO II - Não marquei nada.
ABELARDO I (toma o fone) - Bom dia, reverendo! Sou eu mesmo, Abelardo... Ah!
Com muitíssima honra... Esperarei vossa reverendíssima. Pode ser às quatro horas?
Então... sem dúvida... Beijo-lhe as mãos! Sempre às suas ordens. (Depõe o telefone)
Este padre é engraçado... Não me larga... Eu não sou eleitor... Ele o quer
dinheiro...
ABELARDO II - Quer sua alma...
ABELARDO I - Evidentemente é um caso raro. Um homem preocupar-se comigo
sem ser logo à vista... Quanto?
ABELARDO II - Ele prefere tratar desde já do seu testamento.
ABELARDO I Inútil. Eu morro ateu e casado.
ABELARDO II É isso mesmo que ele quer. A viúva cuidará bastante de sua alma
que terá ido... para o purgatório.
ABELARDO I - Diga-me uma coisa, seu Abelardo, você é socialista?
ABELARDO II - Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro Brasileiro.
ABELARDO I - E o que você quer?
ABELARDO II - Sucedê-lo nessa mesa.
ABELARDO I - Pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa logo
assim... Entrando num acordo com a propriedade...
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ABELARDO II - De fato... estamos em um país semicolonial...
ABELARDO I - Onde a gente pode ter ideias, mas não é de ferro.
ABELARDO II - Sim. Sem quebrar a tradição.
Nesta cena, a ação se passa ao telefone, entre Abelardo I e um padre, seu conhecido.
Pode-se perceber dois momentos de Abelardo neste trecho: o primeiro, ao falar com o padre,
que gira em torno de conceitos espirituais; e o segundo, que gira em torno de conceitos como
a luta de classes. Analisando o primeiro, pode-se perceber que Abelardo constrói um
prolongamento de sua visão de mundo para o padre que está ao telefone, pois, ao duvidar das
intenções do reverendo ele transpõe a imagem de capitalista, sem medida, também para o
padre. Depois da resposta de Abelardo II, a conclusão que este estava certo: o padre
também era movido pelo capital.
Esta ancoragem no discurso de outrem faz com que o ethos de Abelardo seja
confirmado, pois ele não passa de um produto dessa sociedade capitalista. Ao tecer o
comentário crítico sobre o socialismo (“o socialismo nos países atrasados começa logo
assim... Entrando num acordo com a propriedade”), Abelardo I, novamente, tenta revelar ao
interlocutor sua visão de mundo e, portanto, a imagem que quer construir de si mesmo. Ele se
coloca em uma posição estratégica, pois critica a maneira de se fazer oposição em um país
dominado pelo capital estrangeiro.
De forma visível, seu discurso trabalha em cima da desconstrução e da reconstrução de
imagens sedimentadas socialmente, como o usurário capitalista e o empregado engajado com
a luta de classes, mostrando que, independente da posição que se assuma, o resultado apontará
para o mesmo caminho: a dominação daqueles que detém o poder (o capital) sobre aqueles
que são seus subordinados.
Tomando como ponto de análise uma discussão transcorrida no ato (p. 70), entre
Abelardo I e D. Cesarina (mãe de Heloisa), pode-se perceber como Abelardo insiste em
imprimir o ethos de um homem „moderno‟, adiante de seu tempo, em contraposição à
referência aristocrática. Percebe-se que essa cena gira em torno de dois personagens que, à
primeira vista, se configuram como antitéticos, pois Abelardo I representa o poder burguês,
sem nome, e D. Cesarina é a representante mais pura da aristocracia cafeeira, que não aceita a
entrada de um alpinista social em sua classe. Contudo, em outras cenas, D. Cesarina, apesar
de negar, flerta com Abelardo, em uma simbologia clara ao fascínio que o capital burguês
exerce sobre os falidos oligarcas (mais adiante será analisado este tópico).
75
f) Trecho 6 (página 70)
D.CESARINA Me diga uma coisa, seu Abelardo, o senhor não tem ciúmes?
ABELARDO I (surpreso) Ora essa!
D.CESARINA Aquele alemão!
ABELARDO I Alemão? Americano. Americano e banqueiro!
D.CESARINA Ele anda com uns brinquedos brutos com a Heloísa!
ABELARDO I Ah! É boxe. Ela está aprendendo a jogar boxe. De vez em quando
uns golpes de luta livre... Ele é campeão de tudo isso em Nova York, Wall Street.
D.CESARINA Pois olhe, seu Abelardo. Eu ficaria roída se alguém que eu amo
tivesse aquelas liberdades com um estranho.
ABELARDO I Mas d. Cesarina! Eu me prezo de ser um homem da minha época!
A senhora quer que eu perca tempo em ter ciúmes? (Imita dramaticamente um casal
em choque) Diga, Heloísa! Quem era aquele homem? Eu fui para dar um
recado. Foste ! Confessas! Entrastes naquela casa, naquele antro! Traíste-me,
perjura! Ah, meu amor, que desconfiança também, que injustiça! Um homem feio
daquele! Eu fui lá só por causa do recado! Maldita! Pum! Pum! (Ri) Oh!Oh! Ah! É
isso? Essa ridicularia que divertiu e ensanguentou gerações de idiotas. É isso... O
ciúme!
Analisando os trechos em destaque, percebe-se que Abelardo I se auto-intitula um
homem da sua época, que acredita que os sentimentos oriundos da concepção romântica de
relacionamentos amorosos foram os responsáveis por atrasos (idiotas). Neste momento, tal
discurso ativa uma memória discursiva que retorna aos aspectos literários antecessores ao
Modernismo, como uma forma de contraposição clara, principalmente, ao Romantismo.
Isso também fica claro pelas escolhas linguísticas do próprio diálogo, forjado por
Abelardo I. Percebe-se que a escolha pela segunda pessoa (foste, traíste, entraste) traz, em seu
bojo, um tom de formalidade que não faz mais parte do universo dos modernistas. Esta
representação, até certo ponto jocosa, estabelece ainda mais o afastamento que Abelardo I
julga ter desses elementos antigos e ultrapassados.
Percebe-se que a ironia da imitação das vozes é uma ridicularização aos diálogos,
impregnados de sentimentalismo. Como forma de negação, a ironia se configura como um
ponto de conflito, que um homem moderno (lê-se, afeito aos ideais capitalistas, segundo o
discurso da obra) não pode “perder tempo com ciúmes. Em contraposição, D. Cesarina
afirma que ficaria “roída”.
A força do ideal capitalista também está presente quando Abelardo afirma ser o
americano campeão de boxe e luta livre em Wall Street e que, por esse motivo, não
76
problema em Heloisa ser treinada por ele. É mais uma referência ao que de valoroso interessa
ao homem moderno: o capital.
Em um trecho posterior, Abelardo I começa a tomar decisões acerca dos clientes que
lhe devem e tece os seguintes comentários:
g) Trecho 07 (página 46)
ABELARDO I A rua inteira sabe que penhorei porque não me pagaram 200$000.
A cidade inteira sabe. Talvez gastasse mais nisso... que importa? Dura Lex, aprendi
isso na faculdade de Direito! [...] Linche esse camarada! Ponha flite nele e ascenda o
fósforo! Pro pau com esse bandido! Lei contra a usura! Miseráveis! Por isso é que o
país se arruína. E há um miserável que quer se aproveitar dessa iniquidade.
ABELARDO II Leis sociais...
ABELARDO I Súcia de desonestos. Intervir nos juros. Cercear o sagrado direito
de emprestar o meu dinheiro à taxa que eu quiser! E que todos aceitam. Mais! Que
vem implorar aqui! Sou eu que vou buscá-los para assinar papagaios? Ou são eles
que todos os dias enchem minha sala de espera.
Abelardo I utiliza-se do argumento de “sagrado direito” para justificar suas cobranças
de juros perante o capital emprestado. Percebe-se, com isso, que ele tenta imprimir um ethos
de um homem digno e ético, pois é apenas mais um prestador de serviço, mas seu discurso
desliza para a construção de um homem impiedoso e cruel ao revelar como consegue manter
seus negócios. Ele constrói um discurso de que não gostaria de proceder dessa forma, mas que
não vê alternativa, diante da “Súcia de desonestos” que todos os dias batem a sua porta.
Este afastamento é construído, novamente, pela ativação da memória discursiva de
que, aos usurários, no caso representado por Abelardo I, não cabe nenhuma culpa, pois este
deve ser considerado como um bom homem que empresta seu dinheiro a miseráveis falidos. A
adesão é feita através da argumentação de que, na necessidade, todos aceitam sorridentes as
condições estabelecidas pelo usurário, para ele isso é o “sagrado direito”, portanto maus são
aqueles que não pagam. É como se o discurso de Abelardo I construísse uma espécie de
armadilha, capaz de trancafiar as possibilidades de contra-argumentação dos clientes. Nesta
inversão, Abelardo I assume o papel de bom homem, coadunando com a imagem
construída em trechos anteriores, quando este foi intitulado de “amigo de todos”. Mas,
percebe-se que, mais adiante, Abelardo I abandona tal ethos e se deixa perceber quando
vocifera contra os clientes, afirmando que, para eles, o melhor era a morte (trecho a seguir).
O fato de ter que agir dessa forma o afasta dos sentimentos de pena e caridade,
construídos pelas lamentações dos inúmeros clientes, no mesmo trecho:
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h) Trecho 08 (página 46)
UMA VOZ DE MULHER Meu marido bebeu estricnina.
OUTRA Minha mãe tomou Lisol.
OUTRA meu pai se jogou do viaduto.
ABELARDO I Lisol! Estricnina! Viaduto! É do que vocês precisam, canalhas!
Neste instante, o bom homem retorna para o ethos de homem frio e impiedoso, como
quando ordena que fuzile os clientes. Com isso, pode-se dizer que, da mesma forma que se
constrói na intersecção do antigo e do moderno, ele se constrói enquanto sujeito na dicotomia
bom/mal. Na página 63, diálogos depois e próximo ao término do primeiro ato, Abelardo I
retoma tal construção em conversa com sua noiva Heloisa, como se vê:
i) Trecho 09 (página p.46)
ABELARDO I Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar,
aparentemente e em mero, as pequenas lavouras. Mas nunca como potência
financeira. Dentro do capitalismo, a pequena propriedade seguirá o destino da ação
isolada nas sociedades anônimas. O possuidor de uma é um mito econômico.
Senhora minha noiva, a concentração do capital é fenômeno que eu apalpo com as
minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse
modo é que desde já os latifúndios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.
HELOISA Formidável trabalho o seu!
ABELARDO I Não faça ironia com sua própria felicidade! Nós dois sabemos que
milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a
enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa como o papa-níquel bem
colocado que se enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que
vivemos. Regímem capitalista que Deus guarde...
HELOISA E você não teme nada?
ABELARDO I Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao
destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos
palmeiras...quedas d‟água. Cardeais!
HELOISA Eu li no jornal que devemos à Inglaterra trezentos milhões de libras,
mas só chegaram até aqui trinta milhões...
ABELARDO I - É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países
inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para
os ricos. Você que acredita que Nova York teria aquelas babéis vivas de arranha-
céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall
Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um
simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio se quiserem! Mas não me queixo. É
por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você...
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Neste trecho, uma espécie de síntese do discurso sobre a visão do capitalismo que
permeia a personagem. Para Abelardo I, ele tem tanta culpa quanto a máquina de caçar
níqueis colocada no lugar correto. Essa comparação revela o quanto o personagem se percebe
engrenagem do universo da exploração, e tem consciência disso, pois é apenas o recolhedor
do dinheiro. O capital não pertence a ele, ele é apenas o “feitor” de um processo maior que é o
imperialismo norte-americano e seu capitalismo.
Como o primeiro ato, marcadamente, funciona como uma apresentação de Abelardo I,
ao fim se dá a síntese sobre a construção desse personagem enquanto sujeito, e pode-se
perceber como está bem representado, em sua ideologia, a roda viva à qual faz parte. De
modo que não é possível estabelecer qualquer espécie de contra-argumentação, nem irônica,
como faz Heloisa, diante da gica que ele constrói como necessária para se mover uma
estrutura cujas bases se assentam na mais pura exploração consentida.
E a aceitação está alicerçada na realidade de privilégios a que tem acesso. O alto custo
pago por Abelardo I para se tornar o afamado Rei da vela parece irrisório diante de tudo que
possui. Abelardo I tem uma misteriosa consciência de que joga com cartas escuras, mas não
se arrepende, pois é apenas uma parte do processo de exploração que ajuda a construir e que
será seu ponto de derrocada.
Baseando-se em Magaldi (2004, p. 70), que diz que “Abelardo I, em todos os campos
em que atua, representa uma situação-limite, um exagero lucidamente calculado para ilustrar
com didatismo uma verdade.”, pode-se perceber que o personagem Abelardo I funciona como
um elemento desencadeador de verdades obscurecidas. Ele, através da total consciência da
exploração a que faz parte traz, em seu discurso, a projeção dos sacrifícios necessários ao
avanço e a completa lucidez sobre os prejuízos de tal aceitação. Mergulhado nesses ideais,
transpõe o discurso do capitalista para seu discurso e se constrói de forma dicotômica: ele é
um bom homem mau.
4.2 INSTITUIÇÃO FAMILIAR
Oswald de Andrade, em O Rei da Vela, mostra a crise de 1929 por meio de uma
aliança despudorada entre a aristocracia rural falida, representada por Heloísa de Lesbos e o
novo rico, burguês, representado por Abelardo, agiota e dono de uma fábrica de velas. O
casamento de Abelardo e Heloísa é um negócio que interessa a ambos e, principalmente, a
Mister Jones, o americano.
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j) Trecho 10 (página 43/44)
ABELARDO I [...] Não confunda seu Abelardo! Família é uma coisa distinta.
Prole é de proletariado. A família requer a propriedade e vice-versa. Quem o tem
propriedades deve ter prole. Para trabalhar, os filhos são a fortuna do pobre [...] Seu
Abelardo, a família e a propriedade são duas garotas que frequentam a mesma
garçonnière, a mesma farra...quando o o sobra...Mas quando o pão falta, uma sai
pela porta e a outra voa pela janela [...]
ABELARDO II - E o resto da população?
ABELARDO I - O resto é prole. O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é
deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro
do século XIX. Mas no Brasil ainda novo.
Pode-se observar que Abelardo I compara, ressaltando as diferenças, família e prole.
Para tanto, vale-se da própria palavra, „prole‟, para chegar à ideia de proletariado. Em seu
discurso revela que família, por ser um conceito superior, necessita do capital (evidenciado
pela palavra „propriedade‟). Ao usar a metáfora da garçonnière evidencia ainda mais a
concepção de que os mais abastados têm privilégios que a classe e o poder lhe concebem.
Mas que, ao despertar da crise, ambos não podem coexistir.
um novo deslizamento do discurso de Abelardo, que ultrapassa os ideais de sua
classe, a ponto de perceber que a forma de manutenção econômica, encarada pela sociedade
como vital, não trará a sorte que todos acreditam. Enquanto sujeito dicotômico, vislumbra
uma realidade por muitos não aceita e deixa entrever o interdiscurso que constrói a obra:
buscando teses marxistas, só a verdadeira revolução libertará.
Mais adiante, concretiza-se a visão estabelecida acerca da família quando Abelardo I e
Abelardo II iniciam um diálogo sobre a família de Heloisa:
l) Trecho 11 (página 45)
ABELARDO I Você sabe que não há outro gênero no mercado (referindo-se a
Heloisa). Eu não ia me casar com a irmã mais moça que chamam por ai de garota da
crise e de João de Divãs. Nem com o irmão menor que todo mundo conhece por
Totó-fruta-do-conde!
ABELARDO II Um degenerado...
ABELARDO I Coisas que se compreendem e relevam numa velha família!
Heloisa, apesar dos vícios que lhe apontam...você sabe, toda a gente sabe. Heloisa
de Lesbos! Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio, para nos casarmos.
Disseram que era na Grécia. Apesar disso, ela ainda é a flor mais decente dessa
velha árvore bandeirante. Uma das famílias fundamentais do Império.
ABELARDO II O velho está de tanga, entregou tudo aos credores.
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ABELARDO I Que importa? Para nós, homens adiantados, que conhecemos
uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão ainda é negócio,
faz vista num país colonial como o nosso! O senhor sabe que São Paulo tem dez
famílias?
A degeneração sexual da família de Heloisa torna-se um pequeno detalhe, pelo fato de
pertencer a uma família aristocrática. Esse discurso reforça a ideia de que o poder concedido
pelo status quo e pelo dinheiro são fatores preponderantes à moral. Para Abelardo I, que se
considera “homem adiantado”, o casamento arranjado lhe concederá o livre acesso ao brasão
que tanto deseja, para deixar de ser prole e tornar-se família.
Com isso, há a sedimentação de uma imagem, de um ethos, de um homem que
transpõe os padrões considerados éticos socialmente para chegar a um espaço dominado pelo
poder do nome, “comprar esses restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país colonial
como o nosso!”. Ele ainda se vale da ideia de atraso para transfigurar a construção de um
sujeito adiantado e atento às necessidades do seu tempo.
Mais adiante a sedimentação deste discurso, em um tom mais irônico, quando
Abelardo I retoma a descrição da família de Heloisa:
m) Trecho 12 (página 88)
ABELARDO I Um é o Totó-Fruta-do-Conde. O outro, este bêbedo perigoso.
Virou fascista agora. Minha cunhada veio sentar de maiô em meu colo para eu
coçar-lhe as nádegas...com cheques naturalmente. A sogra caída...a outra velha...E
eu é que devo me sentir honradíssimo...por entrar em uma família digna, uma
família única.
Se no primeiro ato é possível construir a imagem de Abelardo I, em sua relação mais
direta com o capitalismo (haja vista que a cena se passa em seu escritório), o segundo ato é
um espaço cujo tema instituição familiar é recorrente. Este ato, como pontuado
anteriormente, passa-se em ilha adquirida por Abelardo. Nessa ilha estão os familiares de
Heloisa (Coronel Belarmino, pai, D. Cesarina, mãe, D. Poloca, tia, Totó, irmão, João dos
Divãs, irmã, Perdigoto, o outro irmão, e o americano.
Como revelado, Abelardo I constrói seu ethos de homem avançado relevando e
compreendendo alguns vícios da família de Heloisa. Ele constrói a imagem de que, para ele,
família significa posse e poder e que, portanto, faz parte da necessidade do homem
contemporâneo, sentir-se incluso nesse processo de degeneração sexual. Agora, no segundo
ato, Abelardo I irá reforçar este ethos na medida em que também fará parte da construção e da
representação social do conceito de instituição familiar da São Paulo, década de 30.
81
n) Trecho 13 (página 74)
ABELARDO I Por que é que a senhora de ser tão simpática quando estamos a
sós. E tão infame na frente dos outros?
D. POLOCA Mas como é que o senhor quer que eu proceda em sociedade?
ABELARDO I Quero que proceda humanamente.
D. POLOCA Desde quando que a humanidade é um pedaço de marmelada seu
Abelardo? Eu defendo o meu ponto de vista de tradição e de família?
Intransigentemente. Sou sua melhor amiga (carinhosa) em segredo. Mas não posso
dar confiança em público a um novo rico, a um arrivista, a um Rei da Vela!
ABELARDO I E se eu a fizesse Rainha do Castiçal?
D. POLOCA Prefiro ser a neta da Baronesa de Pau-Ferro. A neta pobre e inválida
que sempre viveu do pão dos irmãos e cujo resto de família foi salvo por
um...intruso!
ABELARDO I Por um intruso...
D. POLOCA Que nos tira das ruínas mas tem que reconhecer as diferenças sociais
que n os separam. Tenho sessenta e dois anos. Vi as poucas famílias que restam do
Império se degradarem com alianças menores! [...] Sei que é esse o destino da minha
gente. Mas resisto me opondo às relações fáceis e equívocas da sociedade moderna.
ABELARDO I Me diga ma coisa, D. Poloca, se não fosse esse avacalhamento,
permita-me a expressão, é de Flaubert!
D. POLOCA Diga decadência, soa melhor!
ABELARDO I Bem! Se não fosse essa decadência. É realmente, é mais
suave...Como é que vocês, permita a expressão, comiam?
D. POLOCA - Seu Abelardo, a gente não vive só de comida!
ABELARDO I Está ai um ponto em que eu discordo profundamente de Vossa
Majestade! Não podemos mais nos entender. A senhora vive de aragens...Eu de
bifes.
Basicamente neste ato, uma espécie de conflito entre os ideais da burguesia
ascendente (representada por Abelardo I) e da aristocracia falida (representada por D. Poloca,
tia de Heloisa e exemplar típico desta classe). Essa dicotomia, aparentemente insolúvel, se
constrói a partir da relação tensa que se estabelece entre essas duas personagens. Mas,
percebe-se que esta antítese é apenas imaginada, pois D. Poloca, que antes se mostrava
irredutível, se rende aos encantos do capitalismo, personificado em Abelardo.
O embate ideológico das vozes dissonantes, que se constrói em vários momentos em
que se tem a instituição familiar como foco, tece a representação de que a aristocracia
cafeeira, falida na São Paulo de 30, -se seduzida pela possibilidade de continuar poderosa
82
aliando-se à burguesia ascendente. Apesar de tentar negar, não consegue resistir, construindo,
assim, a imagem de que o valor da tradição não é válido em um momento cujo capital
estrangeiro domina. um cruzamento interdiscursivo neste trecho que remonta à ideia de
que os aristocratas constroem-se de maneira alheia à realidade, deslocados do mundo, por isso
Abelardo I afirma que vive de bifes e D. Poloca de aragens.
Na cena final do segundo ato, isso se torna bastante nítido, quando D. Poloca e
Abelardo planejam uma noite de amor:
o) Trecho 14 (página 91)
ABELARDO I (Ajoelhando-se) Deixe-lhe beijar os s! Santinha! O maiô pelo
menos! (Levanta-se). Pois olhe, há de ser comigo. Eu lhe dou uma viagem a
Petrópolis! Tomaremos s dois sozinhos a lancha. Sulcaremos baía. Jantaremos no
Rio num grande restaurante. Mas à noite... À noite...
D. POLOCA Uma noite de amor!Nesta idade!
ABELARDO I A primeira... Diga que aceita...
D. POLOCA Olhe que eu não sou de ferro.
ABELARDO I Vou mandar preparar a lancha... E uns bolinhos...
D. POLOCA Uns pés-de-moleque. A-ba-fa.
ABELARDO I Abafa! (saindo pela direita. Atira um beijo...dois...) Ao luar! Esta
noite. (TELA)
Neste trecho final, pode-se entender a noite de amor entre as personagens como uma
construção metafórica da rendição da aristocracia aos apelos da burguesia. D. Poloca, cujo
nome funciona como uma desconstrução do nome „polaca‟ alcunha dada às prostitutas da
época , que se mostrava firme aos propósitos da tradição e da moral, aceita ter sua primeira
noite com Abelardo I.
Em troca, Abelardo lhe concederá pequenos agrados (uma viagem, um jantar, doces),
mostrando como a sedução entre as classes se dá por meio de trocas. Essa cena pode ser
considerada síntese da representação social que a peça quer construir acerca da instituição
familiar em meados dos anos 30, simbolizando a degradação de um conceito de família para
ascensão de outro advindo de uma nova conjuntura econômica.
83
4.3 LUTA DE CLASSES
O terceiro ato da peça, como explanado anteriormente, gira em torno da derrocada
de Abelardo I. Em uma cena que tem como pano fundo os restos de um hospital, instalado no
escritório do usurário, Abelardo I sucumbe, vítima da própria engrenagem que ajudou a
mover. Seu alter-ego, Abelardo II, toma seu lugar, inclusive com direitos sobre sua noiva,
evidenciando o imobilismo a que estávamos submetidos: a exploração apenas passa de uma
mão a outra, que não deixa de ser a representação da mesma mão.
Neste ato, Abelardo começa a vislumbrar a luta marxista, o socialismo e os ideais de
uma revolução em que a classe operária irá tomar as ruas e promover uma mudança. Para este
personagem, uma mudança radical no último ato promoverá a transformação necessária
para os avanços de que tanto necessita o país. Contudo, como homem dicotômico que é,
morre afirmando que se pudesse continuaria a servir o imperialismo norte-americano.
Na peça O Rei da Vela, a revolução, embora nomeada e definida, também não vai
além de seu anúncio e conta apenas com a certeza de sua vinda. A revolução confunde-se com
o próprio futuro e é tratada como uma inevitabilidade. Essa inevitabilidade parece depender
muito mais da vontade, da fé, do que da práxis (como no trecho “Onde a gente pode ter ideias,
mas não é de ferro”)
p) Trecho 15 (página 50)
ABELARDO I Diga-me uma coisa, seu Abelardo, você é socialista?
ABELARDO II Sou o primeiro socialista que aparece no teatro brasileiro.
ABELARDO I E o que é que você quer?
ABELARDO II Sucedê-lo à mesa.
ABELARDO I Pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa logo
assim... Entrando num acordo com a propriedade...
ABELARDO II De fato... estamos num país semi-colonial...
ABELARDO I Onde a gente pode ter ideias, mas não é de ferro.
ABELARDO II Sim. Sem quebrar a tradição.
A afirmação de Abelardo I, de que o socialismo, nos países atrasados, inicia-se
entrando em acordo com o capitalismo, faz perceber uma espécie de descrença em relação à
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mudança de sistema político. Essa descrença pode estar alicerçada na ideia de imutabilidade
do país e na ideia de impossível liberdade. Neste diálogo, percebe-se uma espécie de
confluência de vozes, que se admitem parceiras, de modo que Abelardo II é o alter-ego do I.
Em concordância, revelam-se uma só quando o tema é luta de classes.
q) Trecho 16 (página 103)
ABELARDO II São todos assim como você, passam para o outro lado quando
estão arruinados!
ABELARDO I É um erro teu! Se todos fossem como o oportunista cínico que sou
eu, a revolução social nunca se faria! Mas existe a fidelidade à miséria! Eu estou
saindo da luta de classes. [...]
ABELARDO II Me matas?
ABELARDO I Para quê? Outro abafaria a banca. Somos...uma barricada de
Abelardos! Um cai, outro o substitui, enquanto houver imperialismo e diferença de
classes. [...] O cálculo frio é a nossa honra. O sistema da casa! Não morro como
convertido. Se sarasse ia de novo lutar pela nota. Ia ser pior do que fui. E mais
precavido. A neurose do lucro! Quem a conhece não a larga mais. É a mais bela
posição do homem sobre a terra! Nenhuma militância a ela se compara. Nenhuma
religião. Se vejo com simpatia, neste minuto da minha vida que se esgota, a massa
que sairá um dia das catacumbas das fábricas... é porque ela me vingará ...de você.
Abelardo revela, nesses momentos que antecedem a sua morte, a conclusão de que
a luta por um mundo mais igualitário poderia solucionar a situação discrepante que separa
ricos de pobres. Ele, portanto, desmascara o oportunismo, o procedimento da burguesia, que
havia sido também o seu, por uma conduta conscientemente cínica.
r) Trecho 17 (página 103)
ABELARDO I Ah! Ah! Moscou irradia no coração dos oprimidos de toda a Terra.
ABELARDO II Sujo! Demagogo!
ABELARDO I Calma! o é parecido com o Jujuba, senão no físico. Vou te
contar a história de Jujuba. Era um simples cachorro! Um cachorro de rua... Mas um
cachorro idealista! Os soldados de um cachorro adotaram-no. Ficou sendo o mascote
do batalhão. Mas o Jujuba era amigo dos seus companheiros de ruas! Na hora da
bóia, aparecia trazendo dois, três. Em pouco tempo, a cachorrada magra, suja e
miserável enchia o pátio do quartel. Um dia, o major deu o estrilo. Os soldados se
opuseram à saída do seu mascote! Tomaram o Jujuba nos braços e espingardearam
os outros... A cachorrada vadia voltou para a rua. Mas quando o Jujuba se viu solto,
recusou-se a gozar o privilégio que lhe queriam dar. Foi com os outros!
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ABELARDO II Demagogia.
ABELARDO I Não. Ele provou que não! Nunca mais voltou para o quartel.
Morreu batido e esfomeado como os outros, na rua, solidário com sua classe!
Solidário com sua fome. O soldaram ergueram um monumento ao Jujuba no pátio
do quartel. Compreenderam o que não trai. Eram seus irmãos. Os soldados o da
classe do Jujuba. Um dia também deixarão atropeladamente os quartéis. Será a
revolução social... os que dormem nas soleiras das portasse levantarão e virão aqui
procurar o usurário Abelardo! E hão de encontrá-lo...
No trecho, há o discurso narrativo que envolve o cão Jujuba que se manteve
solidário com os outros cachorros e que não aceitou as vantagens que o beneficiariam e
aponta para a seguinte tese: Abelardo I acreditava que a sociedade fosse uma cidadela, que
poderia ser tomada por dentro, quando a união daqueles que estão fora é que permitir, um
dia, a quebra dos privilégios. Os soldados são da classe de Jujuba e acabarão por deixar,
atropeladamente, os quartéis, realizando a revolução social.
Paralelamente às revelações que tece sobre a natureza da exploração imperialista, há,
na parábola do cão Jujuba, uma espécie de sugestão de alternativa. Pode-se considerar, a partir
da história contada, que há uma visão romântica da luta de classes, alicerçada na fidelidade do
proletariado e na união das classes oprimidas.
Nesta perspectiva, a burguesia urbana é tida como corrupta, voraz e cruel, sendo o
imperialismo a raiz primeira do sofrimento, do caos e da miséria. Jujuba representa, na
solidariedade com a classe, uma solução alternativa para a dependência. Analisando as
condições de emergência desse discurso e os acontecimentos subsequentes pode-se, inclusive,
admitir tratar-se de uma visão ingênua.
86
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegar a esse momento derradeiro é tentar, em certa medida, reconstruir o caminho
percorrido. Em outro momento, ficou latente nos escritos o envolvimento que com a peça.
Mas, é importante reforçar que, para poder recompor os caminhos da leitura pretendida,
precisa-se afastar de sensações e partir para a recombinação de elementos que possibilitariam
lançar a análise em solo mais seguro.
Para chegar a esse ponto, inicialmente, propôs-se a uma leitura, um olhar, dentre as
inúmeras possibilidades de olhares que possuía. Escolheu-se os olhos da Análise do Discurso.
Para tanto, recompôs-se as condições de emergência da peça e do discurso. Guardou-se um
bom tempo para isso, pois entende-se que as possibilidades de construção de sentidos se dão
por esse caminho em primeiro plano.
Ao fazer isso, ficou evidentemente claro que a peça O Rei da Vela se constrói
através dos meandros do seu próprio tempo e que as vozes que ali circulam são vozes que
trazem o discurso e a ideologia de uma época. Uma época de transformações, marcada por
profundos antagonismos: de um lado a crise e a derrocada de uma classe inteira, do outro a
entrada do capital estrangeiro e suas inúmeras explorações. Nesta simbiose das relações de
classe, os interesses, os conceitos de moral e ética passam por uma revisão, por isso conclui-
se, ao fim da análise da personagem Abelardo I, que ele era um bom homem mau.
Dentro da formação discursiva a que o personagem estava submetido (o capitalismo),
ele se impossibilitado de agir de outra forma. Constitui-se sujeito através dos indícios que
marcam sua identidade, enquanto servidor do imperialismo e do capitalismo. Suas atitudes
encontram justificativa neste pressuposto e sua argumentação, baseada na premissa maior
deste sistema econômico (lei de oferta e procura), torna-se cada vez mais sólida.
Abelardo I se constrói, enquanto sujeito, de forma tão enraizada nestas premissas de
exploração que, até no momento de sua morte, reafirma que faria tudo outra vez, apesar de ter
uma consciência cínica de que a luta de classes e a revolução proletária estão por vir. Como já
afirmado anteriormente, ele está à frente do seu tempo ao mesmo tempo em que se liga aos
valores tradicionais que reafirmam a família ser importante para a consolidação do status quo.
Dicotômico por si, conjura o discurso de uma classe social ao passo em que vazão às
inúmeras vozes dissonantes da sua realidade.
Dentro dos caminhos que a própria obra suscitou, sentiu-se a necessidade de construir
um quadro de referência dentro da AD para poder cotejar a obra. Traçou-se, para tanto, os
87
conceitos básicos que auxiliariam até este momento. Recortaram-se os blocos de análise,
também, a partir de uma recorrência temática que possibilitou lançar um olhar sobre as
estratégias de composição das representações sociais que se viam refletidas e refratadas na
peça.
Ao tentar articular uma análise discursiva das estratégias de construção de sentido da
peça, buscou-se analisar as inúmeras representações que transitavam e o ethos do personagem
Abelardo I. Como tentou-se proceder a uma inspeção linguística, analisaram-se os múltiplos
sujeitos que se locomoviam e construíam os discursos da obra a partir de marcas que levam a
universos de sentidos textuais.
Chegou-se ao tema instituição familiar e percebeu-se como este ponto também se via
ligado ao tema maior, que é a relação burguesia x aristocracia. O discurso e a representação
que se tem deste tema coadunam com a imagem de subserviência ao capital, já que, apesar de
não ser aceito totalmente pela família de Heloisa, Abelardo transita livremente nesta classe
social, por que sabe seduzi-la. A família é vista como parte de um negócio lucrativo que
garante acesso ao universo do poder do nome.
Em O Rei da Vela, percebe-se o ataque direto ao conjunto da sociedade capitalista.
O autor critica com vigor certos expedientes de classe e a exploração econômica; caracteriza
de modo burlesco o estelionatário de elite, o subserviente e o rufião. Exibe facetas amargas da
luta pela sobrevivência, situando personagens subjugadas por agiotas, banqueiros que,
desesperadas, negociam dívidas para sobreviver.
Nesta obra, o autor pôs a nu as mazelas da sociedade capitalista, movendo em muitas
camadas de sujeição e perversão. Mostrou as faces da economia, que desmoronou com a
bancarrota do café, destronando a aristocracia rural, que passa a se submeter aos interesses da
emergente burguesia urbana.
Dentro dos inúmeros conflitos indissolúveis que a peça apresenta torna-se latente o
ethos de homem frio e calculista de Abelardo, que se contrapõe aos ideais de luta de classes.
Para ele, que se considera um homem de seu tempo, ignorar o proletariado e a exploração
constróem-se como condições iniciais para a sobrevivência. Contudo, ao fim, próximo a sua
morte, como um ser reflexivo, ele se mostra mais aberto à realidade que está por vir.
Perceber-se-á, enfim, como se articulam, em uma personagem, elementos que podem ligá-
lo ao discurso de uma aristocracia falida pela crise de 29 e ao discurso de um burguês
ascendente da São Paulo dos anos 30. Através da formação de seu ethos é possível perceber
tais polaridades que se ligam, antes de tudo, ao discurso do avanço do capital estrangeiro tão
presente nesta nação.
88
Abelardo é, sem dúvida nenhuma, um homem de seu tempo, conhece o poder “da
nota” ao mesmo tempo em que reconhece o valor “de uns restos de brasões”, que tudo isso
faz vista em um país colonial como o Brasil. Cindido mas, ao mesmo tempo uno, o discurso
de Abelardo é um retrato de um período de redefinições em todos os campos de atuação do
homem; e tal possibilidade de leitura encontra concretude na imagem que ele tenta projetar de
si mesmo, através de seu discurso, através do seu ethos
Como um representante do seu tempo, a personagem central -se imerso em um
sistema voraz, que o devora, mas que, ao mesmo tempo, é desejado por ele. A sua relação
com a instituição familiar, por exemplo, é uma representação do atraso e do avanço da
sociedade paulista da década de 30, assumindo para si o papel de elemento identificador do
homem „moderno‟ em um país colonial.
O quadro que ora se apresenta não se pretende conclusivo nem totalmente abrangente.
Destacam-se apenas os elementos e as dimensões mais evidentes no interior do espaço
discursivo constituído, intentando, em primeira instância, construir uma possibilidade de
leitura de obra tão rica. Tem-se absoluta convicção que inúmeras possibilidades poderiam ter
sido construídas que não essa, mas acredita-se também ser, o trabalho que ora se encerra, uma
contribuição para a construção de sentidos de leitura de uma obra singular.
89
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