10
Não negligencies as minhas palavras, que formulam todas as leis do reino,
que te instruem para que possas governar o país. Que possas alcançar-me
(no além) sem ninguém te acusar! Não mates quem está próximo a ti, aquele
que favoreceste, (pois) o deus o conhece. Ele é um dos que tiveram ventura
na terra e os que servem na terra são deuses. Faz-te estimado por todo
mundo, um bom caráter é lembrado [quando seu tempo] passou. [...] Eis
que te disse o melhor dos meus pensamentos, age de acordo com o que está
assentado diante de ti.
11
Segundo Claude Traunecker, a dupla natureza do faraó refletia o princípio egípcio de
oposição entre pessoa e função, ideia que seria a chave para inúmeros traços da cultura
egípcia, sendo, inclusive, aplicável aos deuses, já que na religião havia distinções entre a
personalidade dos deuses e sua divina função.
12
Contudo, como salienta Silverman, a
perspectiva dual dos reis não era tão evidente nos deuses. Apesar da tendência a uma
humanização do comportamento e das atividades dos deuses ao longo do tempo, eles não
transitavam de uma esfera para a outra, ou seja, eram constantemente divinos. Já os reis
pareciam possuir aspectos que pendulavam entre o humano e o divino. Para este autor, o
entendimento da diferenciação entre pessoa e função é mais claro quando consideramos que
os antigos egípcios viam em seu regente tanto um ser quanto um cargo, o primeiro
originalmente mortal e o segundo sempre divino. Assim, mesmo humano em sua origem, ele
tinha a capacidade de atuar entre os dois mundos, enquanto os deuses pertenciam somente ao
mundo invisível.
13
Como nos mostra Ciro Cardoso, novas pesquisas apontam para o fato do
título nsw-bit(y), tradicionalmente traduzido como “Rei do Alto e Baixo Egito”, ser uma
manifestação da dualidade real: nsw remeteria ao aspecto imutável e eterno do rei, ou seja, o
monarca visto como uma expressão transitória de algo permanente, e bit(y) aludindo ao
ocupante individual do cargo, observado em sua individualidade, sendo mortal e passageiro.
14
Outro aspecto que auxilia no entendimento da dualidade existente na figura do faraó é
aquele no qual, segundo o pensamento egípcio, havia duas eternidades, uma cíclica (presidida
pelo deus Sol) e outra linear (comandada pelo deus Osíris). Assim, ao mesmo tempo em que
os ciclos faziam parte da realidade, havia uma linearidade feita de momentos que se sucediam
eternamente. O que hoje parece ser uma contradição pode não ter sido um conflito para os
antigos egípcios, assim como não eram para eles as oposições masculino e feminino, Alto
11
ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade: A literatura do Egito faraônico. Brasília-São Paulo: EdUNB-
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 291-2
12
TRAUNECKER, Claude. The Ritualist Pharaoh. The Religious Cult. In: ZIEGLER, Christiane (ed). The
pharaohs. New York: Rizzoli, 2002, 512 p. p. 145.
13
SILVERMAN, op. cit., p. 80-5.
14
CARDOSO, Ciro. Monumento e memória no antigo Egito. Comunicação inédita, 2008.