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CARLOS FREDERICO DE ALMEIDA RODRIGUES
A MORTE COMO DEFINIÇÃO DE CAMINHOS-
FUNDAMENTOS PARA ELABORAÇÃO DE UMA ÉTICA DA
ALTERIDADE NA MEDICINA PALIATIVA:
UM ENSAIO
Dissertação apresentada à coordenação
do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de
Souza
Porto Alegre
2009
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CARLOS FREDERICO DE ALMEIDA RODRIGUES
A MORTE COMO DEFINIÇÃO DE CAMINHOS-
FUNDAMENTOS PARA ELABORAÇÃO DE UMA ÉTICA DA
ALTERIDADE NA MEDICINA PALIATIVA:
UM ENSAIO
Dissertação apresentada à coordenação
do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Filosofia.
Aprovada pela Banca Examinadora em _____de _________de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza – PUCRS
_______________________________________________
Prof.Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira - PUCRS
________________________________________________
Prof.Dr. José Roberto Goldim - UFRGS
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- Pois eu estava com fome, e vocês me
deram comida; estava com sede, e me
deram água. Era estrangeiro, e me
receberam nas suas casas. Estava sem
roupa, e me vestiram; estava doente, e
cuidaram de mim. Estava na prisão, e
foram- me visitar.
- Então, os bons perguntarão: “Senhor,
quando foi que o vimos com fome e lhe
demos comida ou com sede e lhe demos
água? Quando foi que o vimos, Senhor,
como estrangeiro e o recebemos nas
nossas casas ou sem roupa e o
vestimos? Quando foi que vimos o Senhor
doente ou na prisão e fomos visitá-lo?”
- Aí, o Rei responderá: “Eu afirmo que
quando fizeram isso ao mais humilde dos
meus irmãos, de fato, foi a mim que
fizeram”.
Mateus: 25;35-40.
Nós, não é plural de eu.
Levinas
AGRADECIMENTOS
Em Filosofia, aprendemos a valorizar o sentido das palavras; sendo assim,
aqui estão os agradecimentos às pessoas que fizeram jus às palavras que
precedem seus nomes:
Aos amigos Aírton Portella, Sylvio Borella, Ricardo Bellei, Vanessa Garcia,
João Besen, Jonas Pagno, André Costa e Christian Nienov: a ajuda; sem vocês,
este trabalho não se realizaria.
Aos meus pais, Eder e Ignácia: as oportunidades doadas.
Ao professor Ricardo Timm: ter sido mestre do aluno e, sobretudo, do ser
humano.
À minha companheira Fernanda: a tolerância pelas horas subtraídas do nosso
convívio.
RESUMO
O presente trabalho possui como objetivo o de analisar, desde uma leitura
filosófico-interpretativa, o papel da medicina frente aos pacientes terminais. Para
tanto, utilizou-se do pensamento de Emmanuel Levinas, sobretudo, de três de seus
conceitos - o rosto, a deferência respeitosa e responsabilidade sem escapatória.
Munidos desses conceitos, abordamos a morte e a terminalidade, não como
indignas do ser humano, e sim como momento mesmo da afirmação de sua
alteridade e de oportunidade para construção de um sentido, ou seja, de uma
relação humana mais profunda.
Nessa senda, justificamos a criação de uma nova especialidade – a medicina
paliativa – local e momento da construção de uma nova abordagem da terminalidade
e da dignidade humana. A justificativa se faz por meio da afirmação de que a
medicina tradicional, sendo baseada no domínio racional/ontológico, não é capaz de
englobar um momento de tempo tão distinto.
ABSTRACT
This work has as objective to analyze, in a philosophical point of view, the role
of medicine to patients facing terminal. Thus, it was used the thought of Emmanuel
Levinas, particulary in three of his concepts – The Face, The Responsibility Without
Shelter and Respectful Deference.
With these concepts, discussing death and terminal, not as unworthy of
human beings, but as the same time assert its otherness and chance and opportunity
to build a sense, a deeper human connection.
In this way, justify the creation of a new specialty, palliative medicine – place
and time of construction of a new approach to the terminal and the humans dignity.
The justification is through the traditional medicine, being based on a rational
field/ontological is not able to include a moment of time so different.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................
1 ESTADO ATUAL DA MORTE COMO FENÔMENO MÉDICO, SOCIAL E
FILOSÓFICO .......................................................................................................... 13
2 MODOS DE LIDAR COM A MORTE ..................................................................... 23
3 MEDICINA PALIATIVA E ÉTICA ........................................................................... 30
3.1 O QUE É MEDICINA PALIATIVA ........................................................................ 38
3.2 QUAIS AS BASES ÉTICAS PARA A MEDICINA PALIATIVA EM LEVINAS ....... 39
3.3 A RESPONSABILIDADE SEM ESCAPATÓRIA .................................................. 46
3.4 DEFERÊNCIA RESPEITOSA ............................................................................. 50
3.5 O ROSTO ............................................................................................................ 55
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 60
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 66
INTRODUÇÃO
Na medicina como no amor, não existe o nunca, nem o sempre. (Voltaire).
O presente trabalho é fruto de uma constante e crescente inquietação ao
longo de anos de exercício da profissão médica. O próprio título, contraditório, ao
menos sob o ponto de vista da nossa moderna medicina, ao defender a utilização da
morte com sentido positivo, como uma experiência humana mais profunda, fruto
dessa inquietação com a nossa “inimiga”, exacerbada nas noites longas de plantão,
passadas em luta contra algo que nossa sociedade e os próprios profissionais de
saúde preferem ignorar: a finitude.
Ao longo do texto, desenvolve-se um trabalho de expurgação pessoal,
enquanto, ao aprofundar-me no pensamento levinasiano, debato-me com anos de
formação acadêmica, organizada racional-ontologicamente
1
, bastante distante do
pensamento do filósofo lituano. Pode-se perceber o digladiar, a tentativa de libertar-
me da armadura do tecnicismo, da medicina bélica, da filosofia voltada para o
domínio racional do ser humano e do corpo humano, quando todo o saber se
encontra sempre no interior de uma consciência que não cessa de se identificar,
sem ter de recorrer para tal a nenhum signo distintivo, e é Eu: o próprio. O saber,
neste caso, é uma relação do Próprio com o Outro, em que o Outro se reduz ao
Próprio e se despoja da sua alienidade, isto é, o pensamento se refere ao outro, mas
onde o outro já não é mais o outro enquanto tal, onde ele é já o próprio, já meu
2
. E,
contra o pensamento de Levinas, que se abre à possibilidade de valorização da
relação médico-paciente como relação ao outro, de devoção ao outro. Relação ética
que se reforça exatamente quando a medicina tradicional, e toda a sociedade, se
emudece: diante da morte.
1
“A cultura ocidental teria nascido do embate contra a natureza e contra a alteridade estranha à
identidade. [...] as relações interpessoais tornam-se dominadas pela objetividade e pela razão do
Mesmo.” ( PELIZOLLI, M.L. A relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1994. P.65.
2
LEVINAS, E. Transcendência e inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1991. p. 14.
10
Torna-se claro que esse momento da morte, esse lidar com o paciente
terminal possui implicações sociais, econômicas e institucionais (hospitalares) que
fogem do objetivo deste trabalho, porém que não devem ser esquecidas pelo fato de
não estar, a medicina, como qualquer área humana, exilada da sociedade.
Referimos aqui implicações capazes de transformar a sobrevivência ou o
tratamento de seres humanos em dados estatísticos, muitas vezes calculados de
acordo com seu valor monetário, como se pode observar nos congressos, artigos e
livros médicos e de ciências afins, algo que por si só seria motivo de uma pesquisa
mais aprofundada. Porém, o objetivo do presente texto, ressalta as questões éticas
imediatas do enfrentamento da morte e da finitude.
Torres
3
coloca que a morte é, no século XX, o sujeito ausente do discurso.
Entretanto, o silêncio começa a ser removido nas ciências humanas (história,
antropologia, filosofia, psicologia). E na medicina? Esta ainda permanece perdida
em seus devaneios de imortalidade ou no medo de lidar com a morte, que seria vista
como um fracasso.
Em um mundo onde o homem é aviltado, espoliado, utilizado como meio e
não visto como fim, comparado às máquinas, é fácil compreendermos o desespero
frente a situações que levem à diminuição ou à impossibilidade (com o término da
existência) do trabalho, da capacidade de ser “produtivo”. A pressa constante, a
necessidade de acelerar mais e mais, não esconderia a incapacidade do homem
moderno de confrontar a si mesmo, e, sobretudo, de confrontar a sua finitude?
A morte ou doença faz do indivíduo alguém alijado da competição aviltante
que existe em nossa sociedade, alguém que, no máximo, merece complacência. A
morte seria, para um ser a quem tudo acontece de acordo com projetos, um
acontecimento absoluto, absolutamente a posteriori, que não se oferece a nenhum
poder, nem mesmo à negação
4
.
Com este trabalho, pretende-se entender a finitude, com a ajuda do
pensamento levinasiano, não como fraqueza e falta de dignidade. Ao contrário,
procura-se entendê-la como a possibilidade de não-domínio, de não-racionalidade -
3
TORRES, C. W. A redescoberta da morte, In: TORRES, C. W.; GUEDES, G. W.; TORRES, C. R. A
psicologia e a morte. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983.
4
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70. 1991. p. 44.
11
caminho para uma experiência humana mais profunda, impossível de ser
apreendida em códigos, leis, decretos ou qualquer tipo de redução.
Essa experiência da busca do sentido é irredutível, pois, ao sabermos que
aqui estamos por um breve período, com um limite de tempo desconhecido e
inegociável, revestimos, ou procuramos revestir, nossas vidas de um significado
mais profundo
5
, além ou aquém do que poderíamos abarcar com nossa consciência.
Torna-se necessária uma relação ética, prévia a toda e qualquer tentativa de
domínio.
“Quando o Eu todo se torna ético, se converte em responsabilidade, chega
até ao ponto de se substituir pelo Outro
6
.”
Construir uma relação ética, no entender de Levinas, seria um pôr em
questão do mesmo, algo que se faz pelo Outro. Chamar-se-ia ética a esta
impugnação da minha espontaneidade pela presença de Outrem. A expressão de
estranheza de Outrem que a mim chega – a sua irredutibilidade a mim, aos meus
pensamentos e às minhas posses.
7
Relação construída diariamente, momento a
momento, por todo tempo que nos resta. Tempo, que como nos acena Levinas, é o
tempo do face-a-face, “tempo de relação com o invisível, com o irrecíproco trazido
pelo outro e não mais absorvido na subjetividade solitária de um eterno presente
8
.”
Pôr-se no tempo teria então o sentido de colocar-se a caminho do outro,
destinado ao outro, chamado pelo outro, como um devedor e, por isso, um tempo já
em atraso. Em atraso como a insistência de não reconhecermos a importância e
beleza de nossa vida, justamente pelo fato de que ela é finita e, por isso, preciosa.
Souza
9
nos permite indagar de outra forma: “em que sentido pode a
temporalidade não ser o âmbito de realização humana e de construção do sentido?”.
Responder à questão implícita nesta pergunta se constitui no objetivo indireto do
presente trabalho.
Ao findar esta introdução, cabe a explicação de que a lentidão do avanço e a
repetição do assunto aqui tratado não devem ser creditados apenas à falta de tempo
5
BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 119.
6
PIVATTO, P. S. A nova proposta ética de Emmanuel Levinas. Cadernos da FAFIMC, Porto Alegre,
n. 13, p. 47, 1995.
7
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1991. p. 30.
8
SUSIN, L. C. O homem messiânico. Porto Alegre/ Rio de Janeiro: EST/Vozes, 1984.
9
SOUZA, R.T. Metamorfose e extinção. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. P. 18.
12
e à aparente prostração frente à imensidão da tarefa. Existem outras razões, mais
profundas: a questão da morte como tal e a filosofia de Levinas em toda sua
complexidade. O campo da pesquisa parecia fugir, escorrer seria mais exato, entre
os dedos, cada vez que se pensava tê-lo sob domínio, cada vez que acreditava ter-
se dele aproximado. Com relação à morte e ao nosso “bloqueio natural” em
confrontá-la, não se necessita explanar aqui com mais detalhes o que se tentará
elucidar mais adiante, no trabalho. Entretanto, a filosofia levinasiana, por maiores
que fossem os esforços dos mestres (sobretudo o do Prof. Dr. Ricardo Timm de
Souza) parecia sempre estar um passo além, escapando do domínio, o que talvez
seja o seu objetivo mesmo, ou a necessidade de maior aprofundamento.
Exemplificando essa afirmação, recorre-se à citação de Thomas Wiemer:
“Aproximar-se da obra do filósofo judeu Emmanuel Levinas significa dirigir-se
a uma insegurança
10
.”
A obra levinasiana poderia ser compreendida como uma tentativa de receber
uma exterioridade desprezada pelo todo da Filosofia européia, na medida em que se
pretende perceber em uma situação de “margens” da Filosofia postando-se em um
ponto de difícil descrição, fronteira perigosa, pesada e enevoada da Filosofia,
encontro sui generis com a eternidade do infinito
11
.
Assim sendo, reforçam-se os agradecimentos aos que me orientaram e as
desculpas por eventuais incorreções e pelo eterno retorno aos mesmos temas, algo
como um Leitmotiv, do afastamento da morte e das confrontações éticas com essa
situação, em nossa sociedade tema que nos é verdadeiramente muito caro.
10
WIEMER apud SOUZA, R.T. Sujeito, Ética e História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 21.
11
SOUZA, R.T. Sujeito, Ética e História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 55.
13
1 ESTADO ATUAL DA MORTE COMO FENÔMENO MÉDICO, SOCIAL E
FILOSÓFICO
A morte só é tranqüila quando a vida foi consumada. (Nietzsche)
Não possuindo, este trabalho, a intenção de promover a formulação de um
tratado histórico sobre a morte, pretende-se, como o próprio título do capítulo
sugere, ater-se à morte como fenômeno contemporâneo. Entretanto, renegar, sem
mesmo um leve pincelar, a história da morte, poderia deixar-nos algumas lacunas
que não permitiriam a boa compreensão do que se pretende posteriormente expor e
discutir.
Inicia-se então, com uma breve revisão histórica de como passamos do que
Philippe Ariès chama de a morte domada até a segunda morte de Günther Anders e
Jonathan Schell, pois não se pretende, nem se poderia, abarcar, nesta pequena
revisão, toda a história da humanidade, mesmo que referida somente ao Ocidente.
Tomar-se-á assim, como ponto de partida, a Idade Média. Em seu livro,
Ariès
12
coloca a questão: como morriam os cavaleiros medievais? Nos romances
dessa época, sempre havia o espaço para o aviso e a morte era precedida por
signos naturais ou convicção íntima, não havendo como esconder-se dela. Segundo
Ariès
13
, até mesmo Dom Quixote, que consumiu sua vida em quimeras, ao
pressentir a chegada da morte, teria recobrado a razão ao reconhecer a proximidade
do desfecho final. Esse desfecho não era desejado, porém, não era negado,
preparando-se o moribundo a si mesmo, com gestos simples, para a espera da
morte
14
.
Conclui-se, então, que a morte era esperada no próprio leito, e era uma cerimônia
pública, repleta de rituais, organizada pelo próprio moribundo e aberta ao público,
sobretudo, amigos, parentes e, assustadoramente, ao menos para nós, também as
crianças.
12
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 27.
13
Ibidem, p. 28.
14
Ibidem, p. 31-34.
14
A morte era aceita cerimonialmente, sem caráter dramático
15
. Aqui chegamos
ao que Ariès denomina morte domada
16
, que, para nosso espanto, ao menos dos
que consideram o pensamento ocidental como uma reta em contínua evolução, é
contraposta à maneira selvagem da morte nos dias atuais.
Para clarificar essa opinião, Ariès cita o exemplo da coexistência dos vivos e
dos mortos, fato não comum na antiguidade, mas que, com a contínua domesticação
da morte, tornar-se-ia cada vez mais freqüente, inclusive, com o translado dos
cemitérios (anteriormente fora das cidades, como se exigia na antiguidade) para
dentro dos povoados, pela grande influência do culto dos mártires e pela
necessidade e vontade de postarem-se os cadáveres próximos de onde os mesmos
mártires encontravam-se enterrados
17
(os denominados enterros ad sanctos).
Promove-se, então, a não-distinção entre a Igreja e os cemitérios. Interessantes
exemplos dessa forma de comportamento podem ser encontrados no Brasil, nas
igrejas barrocas mineiras do século XVIII (início do século XIX), onde ainda hoje se
pode constatar a presença das sepulturas sob o altar e a nave das Igrejas.
Não haveria ainda a noção de cemitério como local de refúgio, e sim, como
local público, também não havendo delimitações para cada corpo, importando mais
que estivesse próximo dos santos do que os cuidados com ele
18
.
Finalmente, esse local público, começa a tornar-se proibido: em 1231 o
Concílio de Rouen proíbe as danças no cemitério. Em 1405, proíbe-se o jogo
19
. Era
só o começo do afastamento da morte. Esse movimento, é claro, não poderia ser um
movimento súbito, ao contrário, as modificações são sutis, com idas e vindas e
sobreposição de idéias em um mesmo período. Porém, parafraseando Neruda
20
,
pouco a pouco e também muito a muito, acabar-se-á por conceder um sentido
dramático e pessoal à familiaridade do homem com a morte.
15
Ibidem, p. 35.
16
Ibidem, p. 36.
17
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 38.
18
Ibidem, p. 42.
19
Ibidem, p. 44.
20
NERUDA, P. Antologia poética. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1998. p. 228. Poesia
intitulada Pleno Outubro: “Pouco a pouco e também muito a muito me aconteceu à vida, e que
insignificante é este assunto: estas veias levaram sangue meu que poucas vezes vi, respirei o ar
de tantas regiões sem guardar para mim uma amostra de nenhum e afinal de contas já o sabem
todos: ninguém leva nada de seu e a vida foi um empréstimo de ossos.” (Tradução de Olga
Savary).
15
Segundo Ariès
21
, torna-se necessário compreender que essa noção de
familiaridade ocorreu em um ser humano profunda e imediatamente socializado,
sendo tal socialização não apartada da natureza, onde o homem só intervinha por
milagre e a aceitação da ordem da morte era a aceitação da ordem natural. Essa
concepção foi-se modificando, em virtude de inúmeros fatores. Tomem-se alguns
exemplos: ainda segundo Ariès
22
, a morte deixou progressivamente de ser algo
natural, inerente ao destino coletivo da espécie, e tornou-se paulatinamente (séculos
XIV e XV) uma preocupação individual, advinda do surgimento da idéia de
julgamento, de juízo final.
Essa invenção ética de uma temporalidade orientada para um julgamento
final, em que cada ser deve prestar conta de suas ações passadas, não se constitui
objeto apenas das religiões monoteístas surgidas com Abraão. Aparece, com
freqüência, também, na Pérsia zoroastriana, à qual se deve a própria idéia de uma
doutrina da salvação, de uma soteriologia (do grego soter, “salvador”)
23
.
A morte passa, então, a revestir-se de um tom mais dramático, embora a
figura central ainda seja a do moribundo. Nos séculos XVI e XVII os tratados de
espiritualidade já não trazem como primordial a preparação dos moribundos para a
morte e sim o ensinar aos vivos uma meditação sobre ela
24
, em que o
arrependimento na hora final já não seria suficiente, tornando-se necessária a
individualização da morte, assim como da vida. Ao surgir a idéia de julgamento final,
a vida pia passa a ter importância, no lugar do arrependimento do moribundo.
Durante o fim da Idade Média e o início da formação da sociedade capitalista,
o homem, segundo Ariès
25
, teria tomado consciência da brevidade da sua vida,
justamente por ter consciência plena de sua morte. Por esse motivo, a morte tornar-
se-ia o melhor lugar para tomarmos consciência de nós mesmos. A partir de então,
vê-se desenvolver todo o percurso da individualização da morte, com o
desenvolvimento de sepulturas cada vez mais elaboradas, chegando até mesmo a
se retratar o morto em máscaras moldadas a partir de seu próprio rosto. O homem
descobre a morte, não mais como fenômeno natural, mas como morte de si mesmo.
21
ARIÈS, op. cit., p. 46.
22
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 50-55.
23
DASTUR, F. A morte – ensaios sobre a finitude. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 20.
24
ARIÈS, P. O homem perante a morte II. Portugal: Publicações Europa-América, 1988. p. 16.
25
ARIÈS, op. cit., p. 58.
16
A partir do século XVIII, o homem ocidental tenderia, segundo Ariès
26
, a
exaltar a morte, desejando-a arrebatadora. É a morte romântica que, no entanto, é
antes de tudo a morte do outro. Conjuntamente, a morte passa a ser retratada como
uma transgressão, que arrebataria o homem do seu cotidiano... uma ruptura. Essa
ocorre justamente pelo aparecimento da morte de si. Inventar-se-ia a morte como fim
e resumo de uma vida individual provocando uma descontinuidade
27
.
Essa ruptura transparece no fato de que a morte deixa de ser um ameaça
unicamente ao moribundo, pois toda a família passa a ser depositária dos seus
desejos (local de sepultura, testamento, etc.).
Essa participação institui o período oficial de luto
28
que durante a época
romântica, até o século XIX, em virtude da participação de toda a família, não como
os amigos e parentes do início da Idade Média, e sim como afetados pela morte,
algumas vezes tomaria proporções histéricas. Para Ariès, aqui se encontraria a
origem do culto moderno dos túmulos e cemitérios; não um culto pagão, e sim, uma
preocupação crescente com a localização do túmulo, com sua aparência. Os
túmulos passaram a significar uma presença para além da morte, afastados de
concepções religiosas
29
. Tornaram-se demonstrações de afeto e de repugnância em
aceitar a perda de um ente querido.
Crescia a necessidade de conservar a individualidade do morto, a vontade de
“visitá-lo” em sua nova “morada”, surgindo, então, os enterros nas propriedades das
famílias ou nos cemitérios públicos, acabando com os enterros ad sanctos.
A sepultura tornar-se-ia, então, uma certa forma de propriedade do defunto e
da sua família.
Permite-se, então, recordar o morto no local exato, concedendo-se ao mesmo
um certo patamar de imortalidade durante essa recordação
30
. Essa visitação ao
cemitério público permitiria que mesmo os descrentes praticassem seu ato religioso.
Essa mudança individual refletir-se-á na sociedade, onde os cemitérios
retomam seu lugar na cidade, como monumentos aos heróis e signos vivos da sua
26
Ibidem, p. 64.
27
ARIÈS, P. O homem perante a morte II. Portugal: Publicações Europa-América, 1988. p. 121.
28
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 72.
29
Ibidem, p. 74.
30
Ibidem, p. 74.
17
imortalidade e da própria cidade. O culto dos mortos é, então, uma forma de
patriotismo positivista; a possibilidade mesma, desde a I guerra mundial, da morte
sem rosto, sem cadáver. E, a exaltação desse combatente desconhecido, como
exemplo, temos a vitória na II Grande Guerra, que na França, é comemorada frente
ao monumento dos soldados mortos. Sem esses monumentos, não se comemora a
vitória
31
.
Desde a alta Idade Média até metade do século XIX, a atitude diante da morte
mudou muito lentamente. No entanto, há mais ou menos 150 anos
32
, houve uma
brutal revolução das idéias e sentimentos e a morte tornou-se vergonhosa e objeto
de interdição. O primeiro movimento para poupar o indivíduo do seu sofrimento
passaria a uma tentativa de poupar a própria sociedade de ter que enfrentá-lo.
Passamos a utilizar uma série de artifícios para afastar essa terrível verdade até
chegarmos ao estado da morte nos dias de hoje.
Atualmente, vivemos o que Günther Anders e Jonathan Schell denominam de
segunda morte, que seria uma tentativa de apagar a morte do cotidiano moderno.
Esse caminho teria seu início na própria desvitalização da vida. Citando
Reinhard Hesse: “de como em muitas esferas o definhamento espiritual, cultural e
emocional da humanidade já agora precede sua morte física
33
.”
Essa preparação, desvitalização da vida, é a pré-morte, uma das formas de
nos anestesiar para a realidade da nossa finitude. A outra seria a abundância da
morte física propriamente dita, disponível a qualquer hora e em qualquer lugar, nos
jornais, programas de TV e afins. Essa coincidência de tornar supérflua a existência
humana e a suberabundância de morte só se torna possível se aviltarmos o ser
humano, o sentido de humano, retirando o único fator capaz de exercer resistência a
essa tendência: o homem.
Pode-se perceber esta eliminação, esta pré-morte em quase todas as etapas
da vida. Citaremos alguns exemplos:
1. Rebatizamos o “velho” de “coroa” e, com isso, eliminamos de nossa
linguagem o processo vital de envelhecer e morrer.
31
Ibidem, p. 78.
32
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 84.
33
Original publicado nos “Frankfurter Hefte” 1984.
18
2. Ao dizermos “bebê”, ao invés de “lactente
34
”, eliminamos involuntariamente
de nossa linguagem o processo vital do querer ser alimentado.
3. O quarto onde se morre é substituído pela UTI.
4. A doença como forma aceita de vida quase não existe mais e o doente é
visto como caso para receitar remédios, constando a doença, nos
prontuários médicos, como “diminuição da capacidade de trabalho” e, a
morte passando a ser um erro da equipe médica.
5. A palavra morte, nos atestados de óbito, por si mesmos uma afirmação, ou
pretensa afirmação humana de “atestar” e “dominar” a morte, é substituída
por eufemismos como “êxito letal”, “parada cárdio-respiratória” e outros.
6. O ser humano é considerado um “caso social” quando, por doença ou
velhice, tornou-se desamparado.
7. Após a morte, o cadáver é retirado do hospital por corredores e porões até
um furgão; transladado então à casa mortuária de algum cemitério, será
maquilado e preparado para obter uma aparência mais “viva”, finalmente
indo para o jazigo. O leito familial de morte, as visitas de condolências, os
adornos na casa do falecido, o féretro indo da casa até o cemitério,
atravessando a comunidade, tudo isso desapareceu, ao ser a morte
eliminada de nossa vida. No momento, eliminamos até mesmo a
possibilidade de visitação aos túmulos, com o advento da, cada vez mais
freqüente, cremação.
8. Durante a formação médica, a morte costuma ser abolida do rol de
preocupações clínicas. Dificilmente os médicos perguntam, na
anamnese
35
, se o paciente tem medo de morrer, se pensa em morrer, em
suicídio, ou coisas assim. Sequer é perguntado se o paciente está triste,
34
A correspondência “baby” / ”bebê” é perfeita, mas não “Säugling” / “lactente”. As diferenças são que
“lactente” é termo de linguagem médica, ao passo que o correspondente alemão é termo corriqueiro, e
que a formação da palavra “lactente” refere-se apenas ao alimento (de raiz latina, significando leite), ao
passo que “Säugling” refere-se à alimentação (“saugen” significando “sugar”).
35
“Paul Ricoeur observou que os Gregos tinham duas palavras para designar a atividade da
memória: mnèmè, a imagem mnêmica, a lembrança que surge espontaneamente, sem a vontade
do sujeito, que o afeta, portanto; e anamnèsis, uma busca intelectual consciente, uma atividade do
espírito, atividade de procura e recolhimento, que se aproxima da razão e do logos, ou seja, há
pouco espaço para o que não é racional.” (GAGNEBIN, J.M. Walter Benjamin, memória, história e
narrativa. Revista Mente, Cérebro e Filosofia, São Paulo: Duetto, n. 7, p. 64, 2008). – Ricoeur ,
trabalha a questão da memória de maneira mais aprofundada na sua obra: RICOEUR, P. A
memória, a história e o esquecimento, Campinas: ed. Unicamp, 2007, Cf.
19
ou simplesmente “como está”... (talvez isto ocorra pela falta de saber o
que fazer com a resposta!).
9. Os livros médicos não possuem capítulos sobre a morte, mesmo nas
doenças mais graves, terminam com um lacônico: “Prognóstico
reservado”.
10. O exame clínico, o “tocar” no paciente, é rechaçado para segundo plano,
avaliamos o pulso e a freqüência cardíaca pelos monitores cardíacos, a
freqüência respiratória pelos aparelhos de ventilação mecânica, os sinais
de elevação da Pressão Intra-craniana (PIC) pelos respectivos monitores
de PIC. Chegamos ao ponto da “visita” médica ser realizada aos aparelhos
e não ao paciente.
11. Nas estatísticas médicas, as ações de medicina preventiva são
computadas não como vidas preservadas, e sim, como cifras milionárias
economizadas dos cofres públicos ou privados. Não bastasse a obsessão
por estatísticas, qual o valor verdadeiro de uma vida?
O estabelecimento de qualquer interdição ou proibição obedece sempre a
interesses mais profundos, pois como nos diz Heidegger: “mesmo a razão que se
mantém livre de toda a influência das paixões é, enquanto razão pré-dis-posta para
a confiança na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras.”
36
Quebra-
se o tabu da imaculada neutralidade da razão, posto que essa é sempre pré-dis-
posta, ou seja, por trás de todo conhecimento há um interesse que o guia.
Tentar-se-á estabelecer quais estariam por trás do interdito da morte.
Para uma cultura fanatizada pela capacidade de fazer e dominar
37
,
fenômenos como a doença e morte são uma constante irritação, uma penosa
provação.
Vivemos em uma sociedade onde o know-why foi substituído pelo know-how,
onde as perguntas sobre o sentido, em sua significação mais ampla, são levadas à
extinção
38
. Os indivíduos agem como meros portadores de conhecimento, e, sua
responsabilidade pessoal repousa inteiramente na representação adequada deste
36
HEIDEGGER, M. Que é isto - A Filosofia? Petrópolis: Vozes, 2006. P. 32.
37
MARCEL, G. Os homens contra o homem. Porto, Portugal: Educação Nacional, 1988.
38
SOUZA, R. T. Sobre a construção do sentido. Porto Alegre: Perspectiva, 2003.
20
conhecimento, isto é, em fazer as coisas da melhor maneira possível, da melhor
maneira que o conhecimento atual permite. Segundo Adorno e Horkheimer: não há
nenhum ser no mundo que a ciência não possa penetrar, mas o que pode ser
penetrado pela ciência não é o ser
39
. Para aqueles que não possuem Know-how, a
ação responsável resumir-se-ia em acolher o conselho dos especialistas,
dissolvendo a responsabilidade na autoridade abstrata do know-how técnico
40
. Por
esse motivo, essa mesma sociedade não está mais em condições de acolher, na
vida, a doença e a morte, nem de, seja como for, elaborá-las com sentido e
construtivamente. No mundo da técnica, nada pode ser absolutamente novo,
absolutamente outro. Esse mundo se vê sem saída, não pelo fato de tudo ser
permitido, ser possível, e sim porque nele tudo é igual. O que se desconhece logo se
torna familiar e o novo torna-se rotina
41
. Qualquer evento capaz de questionar essa
ordem redutora de “tudo ao mesmo” tem de ser imediatamente afastado. Sendo
assim, a morte passou a ser um “erro médico”, como se disse, um “não - saber” da
equipe de saúde, estando definitivamente eliminada como possível questionamento
sobre nossa existência. Esse afastamento, essa estranheza da morte, leva-nos a
não compreender que sua insistência em não se submeter ao mundo das técnicas
seria um elixir da vida. Reconhecendo a morte, abriríamos as portas para uma
percepção, em sentido mais amplo, da importância da vida, reconheceríamos a
própria vida, o que tornaria incompatível a necessidade de desvitalização do
homem, e impossível sua transformação em máquina, desde que esse homem
tivesse consciência da importância da sua vida, pela consciência da sua morte.
Passaríamos a valorizar a vida, não pela imortalidade, e sim pela mortalidade, que
torna a existência um bem finito e, conseqüentemente, mais precioso.
Infelizmente, encontram-se tão próximos de nossa geração duas de nossas
mais bem desenvolvidas técnicas de eliminar a morte, ou seja, o clímax de nosso
pretenso domínio tecnológico sobre a morte: os campos de concentração
42
e a
39
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
p. 33.
40
BAUMAN, Z. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. p. 226.
41
LEVINAS, E. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 31.
42
Para melhor entender o significado do campo de concentração ver: SOUZA, R. T. Em torno à
diferença. Rio de Janeiro: Lumen-Juris, 2008. p. 6. “O instante do horror, cuja essência do horror –
sob a forma inelutável de uma presença excessiva – consiste justamente no peso excessivo de sua
intemporalidade.”
21
bomba atômica, com o que o ser humano transformou o extermínio do seu próximo
em uma produção manufaturada.
Os campos de morte, que propiciam uma roupagem técnica e aceitável ao
fenômeno, seria a outra face da moeda da civilização moderna, que por mais que
quiséssemos, não poderíamos fingir não existir. No jogo da racionalidade ontológica
a outra face da moeda permite que a probabilidade do cara ou coroa permeie nossa
sociedade
43
; metaforicamente falando, uma sociedade tal qual um Janos
44
, que
optamos por ver apenas uma face, pois sendo incapazes de aceitar a morte
tradicional em nossa vida, inventamos e tornamos fabricável a morte total. Não
toleramos mais adornos indicativos de morte, porém nossos jardins estão retalhados
de estruturas (ogivas) que, saindo do subterrâneo psíquico e topográfico, em
minutos, produzem morte em superabundância.
A morte, como fenômeno mais importante da vida, por colocar de maneira
mais radical a questão do sentido, foi despachada para as casas mortuárias e
tornada dominável nas covas que abrigam mísseis.
O atual estágio humano necessita de um pensar a morte. Como, então, na
filosofia, vocação humana para pensar por excelência, encontramos a morte?
É interessante notar que a filosofia, na qualidade de modo de pensar
determinado, esteja ligada, de maneira íntima, desde o seu nascimento, à questão
da morte. É verdade que a uma morte singular, a de Sócrates, que Platão nos relata
no Fédon. A invenção da filosofia coincidiria com a construção de um discurso sobre
o morrer e a morte
45
.
43
O indizível horror que permeia nossa memória coletiva do Holocausto (ligado de maneira nada
fortuita ao premente desejo de não encarar essa memória de frente) é a corrosiva suspeita de que
o Holocausto possa ter sido mais do que uma aberração, mais do que um desvio no caminho de
outra forma reta do progresso, mais do que um tumor canceroso no corpo de outra forma sadio da
sociedade civilizada; a suspeita, em suma, de que o Holocausto não foi uma antítese da civilização
moderna e de tudo que ela representa (ou pensamos que representa). Suspeitamos (ainda que nos
recusemos a admiti-lo) que o Holocausto pode ter meramente revelado um reverso da mesma
sociedade moderna cujo verso, mais familiar, tanto admiramos. E que as duas faces estão presas
confortavelmente e de forma perfeita ao mesmo corpo. O que a gente talvez mais tema é que as
duas faces não possam mais existir uma sem a outra, como verso e reverso de uma moeda.
(BAUMAN, Z. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 26
).
44
Deus da mitologia que possuía duas faces.
45
DASTUR, F. A morte – ensaios sobre a finitude. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 33.
22
Para Susin
46
, a filosofia da existência – Heidegger, em particular – nos
ensinou a transitividade dos verbos ser, viver e pensar, mesmo contra as regras da
gramática.
Transitivamente, o verbo pensar, mais primitivo do que uma cogitação
cartesiana, é pensar feridas, é colocar pensos, curativos, emplastros, procurando
suavizar dores e, afinal, chegar até a maravilha da cura. A primeira reflexão seria
debruçar-se sobre as feridas e pensar. Desse ato, se passaria, ainda segundo
Susin, a pensar a existência? Teria o pensamento esse poder salvador?
Pensar seria necessariamente um ato doloroso. A felicidade não precisa de
pensamento
47
. Os pensamentos mais urgentes seriam os chamados ao tratamento
da dor. Por trás desses pensamentos estaria, em última instância, a morte, seria
realmente possível pensá-la?
Kant demonstrou que a razão deve saber quando parar para preservar sua
razoabilidade e não decair no irracional. Não se deve, então, renunciar àquilo que
não se pode salvar? Renunciar ao que escapa do nosso poder de cura, sobretudo, a
morte? Não obstante, a obsessão por ela devora todo nosso pensamento. Por trás
de toda dor, há a morte, que chama a pensar, responder à radical finitude. O
pensamento como curativo, ajuda a suportar a ferida até que a morte chegue. O
pensamento é antes de tudo terapêutico, medicina. A medicina é um a priori da
condição mortal.
Como lidamos com esta condição mortal, com esta finitude, é o que nos
propomos elucidar no próximo capítulo.
46
SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, p. 7, 2001.
47
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem. Porto Alegre, v.317. p. 7. 2001.
23
2 MODOS DE LIDAR COM A MORTE
Morrer cedo ou tarde é acaso, bem ou mal morrer, não. (Sêneca)
48
.
Cuidar de pacientes terminais corresponde a um desafio ético para a medicina e
para a sociedade moderna, desencadeando o surgimento de uma nova
especialidade: a medicina paliativa. Pretende-se aqui investigar alguns fundamentos
ético-filosóficos relevantes para essa nova especialidade, esse novo modo de lidar
com a morte! Para tanto, nos referimos, em particular, ao pensamento de Emmanuel
Levinas. Que é de difícil penetração, em virtude da forma hebraica de estruturar-se e
de sua sofisticação fenomenológica. Uma forma de pensar que não termina, não se
finda, mas torna-se vestígio de orientação. As suas afirmações possuem sentido
próprio, sendo fragmentos que integram uma direção e que somente em seu
conjunto indicam um caminho a ser seguido
49
. A utilização do pensamento
levinasiano torna necessária a elucidação do que nosso autor entende por ética.
Esta seria o único modo de relacionamento possível e sem equívocos, no drama da
transcendência: “A ética não é um momento do ser – é diferente e melhor que o ser,
a possibilidade mesma do além
50
.”
A ética, para Levinas, reúne o relacionamento social e o religioso, isentos de
ideologia e sem mito. Pensamento excepcional, em seu paradoxo, posto que, sem
comprometer a unicidade e a interioridade, coroa a subjetividade de
responsabilidade. Ela permitiria a brecha na intelectualidade, sendo que a dimensão
vertical da intelectualidade seria contraposta à dimensão horizontal da eticidade -
local onde o amor ao próximo permitiria o modo do amor de Deus.
O desafio de abordar temas como a finitude humana, em uma sociedade cada
vez mais fixada nos avanços da tecnologia e no desejo de manter-se viva e jovem a
qualquer preço - como exemplo temos a “febre” das cirurgias plásticas -, reforça a
importância desta nova resposta, deste novo modo de lidar com a morte, a medicina
48
SÊNECA. De brevitate vitae. Paris: Hatier, 1995.
49
SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 18.
50
Ibidem, p. 247.
24
paliativa, frente aos desvarios da tentativa de controlá-la a qualquer preço, mesmo
que esse controle nos leve às últimas conseqüências, como o desejo cada vez mais
formulado da eutanásia ativa.
“Vê-se logo que o mundo das técnicas assim orientado, fatalmente virá
desembocar no desespero, porque exclui por definição toda possibilidade
de recurso onde as técnicas forem ineficazes, e claro está, em primeiro
lugar na presença da morte
51
”.
O surgimento dessa nova especialidade, novo modo de lidar com a morte e
com a doença
52
, leva-nos a fundamentar sua base de atuação. Em um caso tão
específico como a medicina paliativa, que atua na região limítrofe da vida e da
morte, faz-se necessário um forte embasamento ético. Para tanto, crê-se que o
pensamento de Emmanuel Levinas, com seus atualíssimos temas da
responsabilidade para com o outro e com a vida e da aceitação de nossa
vulnerabilidade como parte de nossa dignidade, impõe-se como guia para o
desenvolvimento desse novo modo de lidar com a morte - a medicina paliativa - bem
como para o desenvolvimento de nosso atual pensamento humano, sobretudo no
que se refere à questão ética e ao lidar com o Outro. A proximidade desse filósofo
faz-nos permanecer em calorosos debates a respeito de suas inúmeras
contribuições para o atual estágio do desenvolvimento humano e dos desafios a
serem enfrentados. Desafios relacionados, sobretudo, a uma visão da medicina
como tecnomedicina, que tenderia ao domínio da vida, abordando a questão da
morte de maneira a que esta possa vir a ser eliminada do nosso cotidiano, como se
possível fosse realizar o sonho da imortalidade.
No que diz respeito às reações humanas descritas por Elizabeth Kübler-Ross,
no enfrentamento da morte, encontram-se cinco estágios de reação psíquica
relacionados a essa experiência
53
:
51
MARCEL, G. Os homens contra o homem. Porto, Portugal: Educação Nacional, 1988.
52
Segundo a definição da O.M.S., saúde é o bem estar físico, mental e social, e não apenas a
ausência de doenças. Caberia, aqui, a pergunta de como promover o bem - estar físico (ausência
de dor), mental (aceitação do quadro patológico) e social (acolhimento na sociedade) do doente, do
moribundo e não apenas dos que de patologias não padecem. Como se pudéssemos abrir mão do
sofrimento ou da nossa mortalidade, e só então termos saúde.
53
KüBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
25
1. Primeiro estágio: negação e isolamento.
A negação e o isolamento são mecanismos de defesa temporários do ego
contra a dor psíquica diante da morte. A intensidade e duração desses mecanismos
de defesa dependem de como a própria pessoa que sofre e as outras pessoas ao
seu redor são capazes de lidar com essa dor. Em geral, a negação e isolamento não
persistem por muito tempo, posto que, por mais que tentemos negar, chega o
momento de enfrentar a realidade. Assim sendo, este enfrentamento na maioria das
vezes segue o seguinte percurso:
2. Segundo estágio: raiva.
Por causa da raiva, que surge devido à impossibilidade do ego manter a
negação e o isolamento, os relacionamentos tornam-se problemáticos e todo o
ambiente é hostilizado pela revolta de quem sabe que vai morrer. Junto com a raiva,
também surgem sentimentos de revolta, inveja e ressentimento.
Nesta fase, a dor psíquica do enfrentamento da morte manifesta-se por
atitudes agressivas e de revolta: Por que comigo? A revolta pode assumir
proporções quase paranóides.
Transformar a dor psíquica em agressão é, mais ou menos, o que acontece
em crianças com depressão. É importante, nesse estágio, haver compreensão dos
demais em relação à angústia transformada em raiva na pessoa que sente
interrompidas suas atividades de vida pela doença ou pela morte.
3 Terceiro estágio: barganha.
Após perceber que a negação e a raiva não “resolveram o problema”, a
pessoa adentra o terceiro estágio: a barganha. Normalmente, a barganha é feita
com a divindade e, quase sempre, de maneira secreta.
Como dificilmente a pessoa tem algo a oferecer a Deus, além de sua vida, e
como esta já está, aparentemente, sendo tomada, a barganha assemelha-se muito
mais a súplicas.
Implora que a divindade aceite sua oferta em troca de uma nova vida,
dedicada aos pobres e à igreja, por exemplo. Nessa fase, normalmente, o paciente
26
está mais tranqüilo, já que não se pode barganhar com a divindade agredindo as
pessoas.
4 Quarto estágio: depressão.
A depressão aparece quando o paciente toma consciência de sua debilidade
física, quando não consegue mais negar sua condição de doente, quando a morte
se torna claramente presente. Não deixa de ser uma atitude evolutiva, pois negar
não adiantou, agredir não adiantou, barganhar não adiantou. Surge, então, o
sofrimento, que é relevante para a possibilidade de encontrar-se um sentido, mesmo
onde aparentemente não há sentido, como anteriormente explicitado.
5 Quinto estágio: aceitação.
Neste estágio, o paciente já não experimenta o desespero nem nega sua
realidade. Esse é um momento de repouso e serenidade, antes da impossibilidade
das possibilidades, o momento da perda do sujeito, do fim do nosso pretenso
domínio.
Essas maneiras/modos de lidar com a morte sofrem continuamente o embate
com a situação da morte na sociedade moderna, que corresponde a morte interdita
ou segunda morte. O problema é que se estaria enganado se se atribuísse essa
fuga diante da morte a uma indiferença em relação aos mortos. O contrário é que se
torna verdadeiro, sendo cada vez mais difícil lidar com esse momento.
De fato, podemos divisar dois estratagemas culturais para lidar com a morte
54
:
O primeiro, advém do fato de que o homem, sendo incapaz de lidar com a morte e
de curá-la, tenta ser feliz não mais pensando nela. Expulsamos a reflexão sobre a
morte com as atividades do cotidiano, sobretudo, as atividades que consomem
nossa atenção e não nos deixam pensar sobre as futilidades existenciais diante da
finitude. Nas palavras do escritor Robert Louis Stevenson, “viajar com esperança é
melhor do que chegar”. A morte é então rechaçada para longe da visão, o que, na
opinião de Max Scheler, é a ilusão negativa do tipo moderno de consciência
55
e que
rebaixa a morte à condição de catástrofe deplorável. Em segundo lugar, vivemos um
dia após o outro, até que, subitamente, não há o próximo. Isso leva ao outro tipo de
54
BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 122.
55
SCHELER, M. A posição do homem no cosmos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
27
enfrentamento da morte: a abordagem calculista, o acúmulo desenfreado de bens e
o culto do novo e do progresso. Assim, a eternidade, que, desde os primórdios da
humanidade, afigurava-se como guia/companhia do humano, separa-se deste, no
meio da jornada. Passamos, então, a percorrer a estrada que leva da infância à
senilidade sem termos noção do seu sentido e confiança no objetivo de tudo isto
56
.
Recalcamos a morte, e segundo Ariès
57
, citando Gorer
58
, o recalque da dor, a
interdição de sua manifestação pública e a obrigação de sofrer só e às escondidas
agravam o trauma, transformando o advento em algo insuportável. Esta atitude de
recalque da dor da perda foi imediatamente combatida pelos psicólogos, no
momento mesmo do seu surgimento. E, é notável que a sociedade, mesmo com as
advertências de pensadores como Freud e Karl Abraham, que demonstraram a
diferença entre luto e melancolia, tenha mantido o interdito da morte de maneira tão
intensa
59
, algo que não ocorreu com relação ao outro grande interdito humano; o
sexo, que passou a ser discutido cada vez mais abertamente.
A morte não pode ser francamente discutida, nem mesmo no ambiente que
escolhemos para ela. Glaser e Strauss
60
estudaram, em seis hospitais
estadunidenses, como reagia, diante da morte, o grupo interdependente constituído
do doente, da família e da equipe médica. Perguntas sobre o que acontece quando
se sabe que o doente está próximo do fim: A família deveria ser advertida? O próprio
doente? Quando? Qual o tempo de uma vida mantida artificialmente? Quando se
permitirá ao moribundo morrer?
Essas e outras questões se colocaram e se colocam para as famílias e equipe
médica, sobretudo no espaço hospitalar, onde há o surgimento desse novo poder - o
médico.
O hospital tornou-se o lugar da morte moderna. Segundo Ariès, os autores
Glaser e Strauss descobriram um ideal de morte contemporâneo, longe das pompas
56
BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 124.
57
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
58
Sociólogo inglês, que demonstrou a transformação da morte em tabu no século XX - grande tabu
do século, com a diminuição dos interditos ao sexo.
59
ARIÈS, P. O homem perante a morte II. Portugal: Publicações Europa-América, 1988. p. 333.
60
GLASER, B. G.; STRAUSS, A. L. apud ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2003.
28
teatrais românticas, isto é um novo modelo que forma um estilo “aceitável” de
morrer
61
.
A equipe médica atrasa o máximo possível o momento de avisar à família e
ao paciente do seu prognóstico, por medo de ser engajada numa cadeia de reações
sentimentais, que a faria perder, junto com o doente e a família, o autocontrole.
Ousar falar da morte é promover uma situação excepcional, além do
quotidiano, sempre dramática, sempre além do nosso domínio, algo incapaz de
encaixar-se na racionalidade.
Segundo Ariès
62
, no passado, a morte deveria ser horrenda para poder
provocar medo, já que fazia parte do cotidiano; hoje bastaria anunciá-la para
provocar uma tensão emocional incompatível com a regularidade da vida quotidiana.
As crises de desespero, lágrimas e manifestações exaltadas ameaçam
perturbar a serenidade e a ordem do hospital, que deve funcionar perfeitamente, ser
uma estrutura imaculada, uma fábrica higienizada sempre voltada para a produção e
restabelecimento de seres humanos/peças para a máquina do sistema.
No fundo, segundo Ariès
63
, importa menos se o doente saiba ou não de sua
morte, e sim que seja elegante e discreto, comportando-se para preservar o
funcionamento de todos, melhorar a qualidade da vida dos envolvidos, lubrificar as
engrenagens do funcionamento automático da vida e retirar do moribundo o direito à
própria morte.
Impressiona o exemplo utilizado por Adorno e Horkheimer
64
sobre o funeral
de primeira classe propiciado ao belo cadáver em uma funeral home norte-
americana, em que a neta da morta exclama que tudo estava perfeito: “- a pity that
daddy lost control”
65
.
É claro que deveria interessar à medicina e à sociedade melhorar a qualidade
da morte, como sempre se quis fazer em relação à qualidade de vida, o que, por
diversas razões, ainda encontra sérias resistências. Uma das possibilidades de
avançar nessa área seria a medicina paliativa, que poderia utilizar-se do
61
ARIÈS, P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
62
Ibidem.
63
Ibidem, p. 240.
64
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
p. 179.
65
“Pena que o papai perdeu o controle.”
29
pensamento levinasiano para fazer a instalação de uma relação, impossível de ser
objetivada, com a alteridade da morte, escapando do extremo de rechaçá-la ao
esquecimento.
30
3 MEDICINA PALIATIVA E ÉTICA
O amor é forte como a morte. (Ct.8,6).
Adentraremos agora no objetivo mesmo deste trabalho: discutir a ética da
alteridade nos cuidados paliativos ao paciente que aguarda a morte.
Nossa aproximação da morte segue os passos de Levinas
66
, que, segundo
Susin, sobe aos ombros de Heidegger, olhando longe, porém para trás, para a
encruzilhada de onde ele partiu
67
. Pode-se perguntar o motivo da escolha do filósofo
lituano. E a resposta segue em direção à tentativa desse filósofo de dar uma
resposta ética às questões que afligem nossa sociedade ocidental, dentre elas, a
questão da morte e do morrer. Essa resposta vem sendo reconhecida por um
sempre maior número de pensadores, que descobrem ou redescobrem a realidade
radical do outro em sua alteridade – o infinito ético
68
.
O pensamento de Levinas pode ser compreendido como uma crítica da
totalidade
69
e objetiva a “substituição” da Ontologia pela Ética, no papel de prima
philosophia, estabelecendo, com isso, a possibilidade de uma nova base filosófica
para um futuro ético da humanidade
70
. Essa possibilidade se dá em uma construção
fenomenológica
71
que se abre como consciência de ao infinito. Há uma verdadeira
66
Levinas tratou, pela primeira vez, de maneira mais ampla, a questão da morte em Le temps et
l’autre.
67
SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, p. 7, 2001. Registre-se
que a ênfase dada a essa fonte, no presente trabalho, justifica-se pela não-formação acadêmica de
origem, em filosofia, do autor, bem como pela qualidade sintética do referido texto.
68
SOUZA, R.T. Sujeito, Ética e História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
69
Na qual, muitas vezes, a Filosofia tem descambado ao longo da sua história. (PELIZOLLI, M.L. A
relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. P. 62.)
70
SOUZA, R.T. Sujeito, Ética e História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
71
“[...] Podemos perceber que o autor se envolve numa busca originariamente fenomenológica,
prosseguindo em descrições concretas e desvelantes, no sentido husserliano. Manifestação além
das aparências, além da ingenuidade dos atos vividos...- a respeito da relação do eu com o outro e
da aparição original deste como rosto (visage). A continuidade da análise, porém, mostra a
manifestação do outro como revelação, visitação, mais além da significação fenomenológica e
cultural e em direção a uma significância – anterior, encarnada e ética – que começa do exterior,
do outro.” ( PELIZOLLI, M.L. A presença ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1994. P.51.)
31
busca da exterioridade, para além da imanência intencional egológica.
72
Vemos o
próprio eu, ser questionado pelo rosto, iniciando o primado do Outro sobre o Mesmo,
uma nova noção de sentido e ipseidade, voltada para uma relação ética. E, é
embaraçante sua insistência na ética como filosofia primeira, sendo a partir dela que
as outras estruturas podem ganhar significação. Levinas proclama o primado da
ética sobre qualquer outra estrutura, seja ela estética, ontológica, teológica ou
religiosa em geral. A consciência, a liberdade e até a vontade se fundam e se
exaltam na relação com o outro. Este, em sua qualidade de outro, se situa numa
dimensão de altura, de ideal, do divino. Pela minha relação com outro, eu estou em
relação com Deus
73
. Entretanto, o outro não é Deus, e a diferença entre ambos, em
Levinas, é de difícil percepção, pois tal seria o desígnio do bem além do ser
74
.
Essa diferença é incapaz de ser abordada em termos estritamente técnicos,
só se desfazendo o equívoco na relação ética, que como já se disse, na abertura
deste capitulo, desde A ontologia é fundamental?, Levinas transforma em sentido de
humano, ou seja, afirmando ser a ética mais ampla que a ontologia: “Por ética não
entendo absolutamente um culto qualquer do bem e do mal, ordem de valores, mas
relação ao outro
75
.”
Concluindo, estamos lidando com o filósofo do primado da ética e da
alteridade, da sensibilidade e da corporeidade. Levinas não poderia, então,
escamotear o pensamento da morte. Afinal de contas, a preocupação com a origem
das coisas é certamente uma importante fonte de inquietação filosófica, mas a
preocupação com seu fim, sem dúvida, constitui um tormento para todo o nosso ser.
A morte integrar-se-ia no drama ético do viver-para-o-outro, devolveria da
angústia do nada sobre o qual repousa o próprio ser o temor pela morte e pelo ser
do outro. Temor localizável no corpo, no socorro e na justiça. Para Susin, antes de
pensar sobre, é necessário pensar por, cuidar do outro porque ele é mortal
76
.
Levinas recusa o nada pela sua impossibilidade de dar-se na vida real, que é
sempre experiência de algo; se o vazio que a luz faz no espaço de que ela afasta as
72
PELIZOLLI, M.L. A presença ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. p.
50.
73
LEVINAS, apud SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 250.
74
SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 250.
75
SUSIN L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 250.
76
SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, p. 8, 2001.
32
trevas não equivale ao nada, mesmo na ausência de todo e qualquer objeto
particular, há lá este mesmo vazio
77
, e, pela inversão do conceito heideggeriano: a
morte não é a possibilidade da impossibilidade, mas simplesmente a impossibilidade
da possibilidade.
No conceito heideggeriano, a morte revelaria, numa existência finita, que tem
no nada da morte a garantia de seu poder de liberdade, exatamente o poder de dar-
se, como sua propriedade mais própria, o paradoxo da impossibilidade. Por trás de
Heidegger, estaria a tentativa de Nietzsche e dos estóicos, o patético controle da
morte como supremo controle da vida, como potência e liberdade, na aceitação
heróica que toma sobre si a própria finitude na morte
78
.
Para Levinas, trata-se exatamente, como já se disse, do contrário:
impossibilidade da possibilidade, numa existência que, tendo seu poder totalmente
impossibilitado, sofre, em pura passividade, um poder estranho, que a conduz para
onde o seu poder, a sua liberdade ou a sua vontade não podem ir. Levinas analisa a
relação entre a vontade e a morte, além de em outros momentos de sua obra, em
Totalidade e Infinito:
“Na economia geral do ser, a vontade marca o ponto em que o definitivo de
um conhecimento se produz como não-definitivo. A força da vontade não se
desenrola como uma força mais poderosa que o obstáculo. Consiste em
abordar o obstáculo não obstinando-se contra ele, mas estabelecendo
sempre uma distância em relação a ele, observando um intervalo entre si e
a iminência do obstáculo
79
”.
Para Levinas, essa conclusão da existência de um poder estranho que nos
conduz à pura passividade, se dá pelo sofrimento, e é este, mais do que a angústia,
que articula o sentido da morte. Sofrimento corporal, que toma a pessoa
inteiramente, a angústia é febre, luta contra a morte. O sofrimento trabalha para a
morte e prepara sua chegada. Porém, é espada de dois gumes: quanto mais
77
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 170.
78
Para a interpretação que Levinas faz de Heidegger, veja-se: En découvrant l’existence avec
Husserl et Heidegger. Outras obras do autor também tratam do mesmo tema, tais como: Martin
Heidegger et l’ontologie e La théorie de l’intuition dans La phénoménologie de Husserl.
Citadas por COSTA, L. C. Levinas uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 51. Como
importantes para esclarecimento do pensamento levinasiano e sua aproximação com a
fenomenologia.
79
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 148.
33
sofremos, mais solitários estamos. O sofrimento produz solidão porque dobra e
fecha, de modo cada vez mais estreito e definitivo, o eu. Liga o eu consigo mesmo,
sobre si mesmo, impossibilitando evasão em êxtase, partilha ou angústia. O
sofrimento liga a realidade corporal à materialidade, acorrentando o eu a si mesmo,
num pensamento obsessivo pelo corpo próprio
80
.
O sofrimento extremo é presente absolutamente concentrado, é o instante
absoluto da existência, privilégio do humano, seu próprio definidor, pois a questão
do humano se dá na temporalidade.
81
Diversamente da angústia, que equivale à
expectativa de um futuro perigoso ou mal, o sofrimento cobre inteiramente o
presente, destituindo-o de todo poder e movimento. Ao mesmo tempo, não deixa
ninguém indiferente; pois quem sofre não pode ser um expectador da própria
existência. Sofre-se na passividade, não ativamente, mas não indiferentemente
82
.
Essa possibilidade é descrita por Levinas pelas lágrimas, que fariam o sujeito perder
seu controle de sujeito no sofrimento. O sofrimento é que o sujeita, que o submete à
sua ação
83
.
O sofrimento depõe a posição assumida pela hipóstase no ser. Essa
dessolidificação do sujeito é o derramamento de lágrimas, o soluçar que liquidifica o
adulto em criança que necessita ser cuidada
84
. As lágrimas fariam o ser tombar em
humanidade, retirariam toda sincronicidade do tempo e acabariam com o reinado do
mesmo.
“Passividade mais passiva que a passividade conjunta do ato, a qual aspira
ainda pelo ato, com todas as suas potências. Inversão da síntese em
paciência e, do discurso, em voz de “sutil silêncio” a fazer sinal a outrem –
ao próximo – isto é, ao não englobável. [...] Descarga do ser que se
desprende. As lágrimas talvez sejam isto
85
”.
O sofrimento é extrema exposição a outro; invertendo a solidão. A solidão
sequer deixa espaço para a evasão espiritual, fazendo tombar o sujeito
passivamente, em ruptura e liquefação, sob seu próprio peso excessivo
86
, e
80
SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
81
SOUZA, R.T. Metamorfose e Extinção. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. P. 13.
82
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
83
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
84
Idem.
85
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 15.
86
SUSIN, op. cit.
34
deixando-o exposto. O sofrimento entrega o eu à pura passividade, à passio, à
passagem devastadora por que chegará a morte
87
.
Seria, assim, errôneo pensar o sofrimento apenas em momentos
excepcionais da existência, pois cada instante de tempo é constante digladiar, sulcar
a própria pele num tempo. Paciência sem heroísmo possível
88
.
No sofrimento, a morte se anuncia e se aproxima, pelo motivo de que, por trás
do seu excesso, aproxima-se algo desconhecido, que não se desvela nem cabe no
seu presente; por isso, é desconhecido e inapreensível. A morte envolveria o futuro,
seria um advento que se aproximaria, desmontando a soberania do presente.
O sofrimento derrotaria toda ars moriendi, pois o bem-morrer supõe um
sujeito capaz de controlar o caminho da morte, e inverteria a noção do próprio
sujeito, pois seria a anunciação da morte; é, a morte mesma em nós, desfazendo
nosso pretenso domínio de sujeito, já que a morte está sempre oculta, não se
mostrando no presente e recusando-se a ser propriedade mais própria
89
.
A morte apresenta portanto uma estrutura de alteridade, tomando de assalto o
presente e invertendo a propriedade, o que nos conduziria para a solução epicurista
do sujeito versus morte
90
.
No entender da reflexão levinasiana, o sujeito não estará mais presente, não
devido à sua dissolução em nada ou porque se evadiu em metamorfose, e sim por
não mais ser sujeito ativo. O sujeito torna-se passivo, deixando a atividade para a
morte; e, em decorrência de sua total passividade, o sujeito torna-se incapaz de
lucidez ou de decisão, apenas se sujeitando a ela (morte)
91
.
Por ser a morte sempre uma aproximação nunca totalmente revelada, posto
que permanece absolutamente no futuro, mesmo no sofrimento mais agônico, o
intervalo intransponível, que não permite compreensão ou domínio, é ultrapassado,
ocorrendo apenas o pressentimento de sua aproximação. Essa afirmação tornaria
ridículas as pretensões esotéricas de conhecer a morte, que, quando presente,
escapa ao conhecer, ao domínio, justamente por transformar o sujeito em pura
87
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.
88
SUSIN, op. cit.
89
SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
90
“Enquanto a morte não está, o sujeito estará. Quando a morte estiver, o sujeito não mais estará”.
91
SUSIN, op. cit.
35
passividade. Tal situação é tão plena que não se vai até a morte, é o futuro que me
visita, é ele/ela que vem a mim
92
. O suicídio não é uma exceção, não assume nem
força a morte, é desespero em relação ao presente da vida, perda do controle, mas
a morte continua futuro.
O suicídio seria, então, a última e desesperada tentativa de domínio da
situação, quando se esquece que não podemos dar a morte, só podemos esperar
por ela. A morte não é propriedade minha, não é meu mais paradoxal poder: a
possibilidade de impossibilidade. Ocorre justamente a inversão do poder, da
propriedade: eu pertenço à minha morte, e não o contrário
93
.
“A identidade-permanência do eu em si, exige perseverança, domínio e
controle. A morte desfaz esta identidade
94
”.
Para o eu e a interioridade contida neste eu, a morte não é, nem poderia ser,
algo natural, restrito ao âmbito biológico. Ela, a morte, está ligada à própria
intimidade do eu solitário, no momento em que mantém uma estrutura de relação
com o outro: é alteridade, impõe sua vontade, chegando sem avisar a hora.
Segundo Susin
95
, a morte não é horizonte último; se assim fosse, a decisão de
morrer seria literalmente um ato heróico. Porém, a impossibilidade de lucidez e de
poder de assunção estariam ligadas ao fato de que a morte vem desde além de
qualquer horizonte, é invisível.
A morte me transpassa, é imposição violenta que vem contra mim desde o
nascimento, desde a sua imposição, ou seja, antes de mim. A liberdade do sujeito
encontra na falta de consulta para nascer sua primeira pedra de escândalo
96
.
Ao nascer, no entanto, torno-me contra a morte, assumindo uma batalha
perdida de antemão, o que seria o supremo escândalo para a liberdade do sujeito.
Onde estaria nossa liberdade se não somos nós quem decidimos o momento de
nascer, muito menos o de morrer?
92
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
93
Ibidem.
94
Cf. SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
95
Ibidem.
96
Ibidem.
36
Será esse questionamento da liberdade que tanto assombra o ser humano na
descoberta de sua finitude? O que há de sombrio nisso?
“ Ora, a descoberta da finitude, a estas alturas dos acontecimentos, só pode
ser surpresa para quem, imbuído de um eu pancósmico, pretendia refugiar-se
de si mesmo em sua própria idéia: algo que, certamente, passou pela cabeça
de uma parte ínfima dos filósofos dignos desse nome
97
”.
A morte seria a total obscuridade, seria mistério a palavra para a morte,
segundo Levinas. Continuando, pois, o raciocínio, chega-se à conclusão de que a
morte guardaria em si uma incrível ambigüidade. Diante dela, pode-se libertar da
solidão ontológica. Apesar de toda batalha contra, a morte traria, em si, a
possibilidade de libertar-se do cansaço, do esforço de ser. Por isso, a morte seria
um estranho fim da solidão, uma libertação total, embora sua visita sem hora
marcada e seu total poder de violar infundam horror, como ameaças do abismo
anônimo do simplesmente há
98
.
Ficaríamos aprisionados no entregar-se-para-a-morte, por sua horripilante e
soberana ameaça, esquecendo-nos que a morte talvez seja o primeiro indício de
uma alteridade radical e rompimento com uma totalidade fechada.
99
Sendo assim, apesar de tudo isso, da sua apresentação silenciosa e de todos
os sofrimentos que a antecedem, a morte apresentar-se-ia como ocasião de
descoberta. Descobrir-se na inverdade e, assim, poder adentrar a verdade; enfim, é
o momento da possibilidade de relação com o outro, pela alteridade, pois morte e
todo outro são cúmplices. O outro tem os mesmos atributos que até aqui analisamos
para a morte
100
.
Quando a subjetividade é deposta de sua soberania, o único modo humano
de enfrentar a situação seria a relação com o outro, isto é, ser sustentado por outro,
97
SOUZA, R.T. Metamorfose e Extinção. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. P.16.
98
Il y a levinasiano, que é explicitado por Susin da seguinte maneira: “Levinas tematiza a categoria
do Il y a invertendo a generosidade do ser neutro e sem sujeito, es gibt heideggeriano, em ser
puramente anônimo, algo como um caos pré-cósmico, ou um scheol dos mortos. Há ressonância
de sua inversão valorativa da diferença ontológica. De l’existence a l’existent, especialmente p.
93-105.” (SUSIN, L. C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001).
99
SOUZA, R.T. Metamorfose e Extinção. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. P. 16.
100
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre: v. 317, 2001.
37
o que seria mais forte que a morte, pois a relação com o Outro é doadora de um
sentido não redutível, não teorizável, muito além dos sentidos intencionais.
101
Para a estrutura biológica, a medicina é um a priori do ser-para-a-morte, pois
somente um outro pessoal pode ser a medicina para o eu pessoal que morre: o
outro pode pensar a minha morte
102
.
Somente a partir do momento em que temos a certeza de que todos, sem
qualquer exceção, morrem, é que podemos ter alguma certeza, com a morte como
certeza e origem de certeza. Essa é a fonte da angústia, que pode ser destituída
pela compreensão da alteridade.
O ser finito, mortal, uma vez chegado à sabedoria da morte e da mortalidade,
poderia, ao invés de jogar-se na angústia, aprender com o outro, enquanto mortal. O
temor, inclusive o temor de Deus, estaria representado pela responsabilidade de um
mortal por um mortal. Assim, o outro apresentar-se-ia como possibilidade de pensar
diante da morte, cuidar da morte, ou seja, da vida do outro. É a possibilidade, a
chance de bondade, que é imortal. Por meio da mortalidade, cuidando do outro,
poderíamos agir promovendo bondade imortal. Citando Susin:
“[...] pensar, assim, a condição de mortalidade do outro mais do que a
minha é a condição de minha imortalidade. Ser pensado-cuidado pelo outro,
relação de bondade face a face mais forte do que a morte, que a morte não
pode tocar
103
”.
A morte do outro homem me questiona, como se, ao menos pela indiferença,
dela me tornasse cúmplice. Eu tenho que responder pela morte do Outro e não
deixá-lo na solidão
104
.
Porém, a entrada do outro, tal como a morte, não ocorreria de maneira clara
para a consciência e para a compreensão.
Não se pode escapar dela, disso sabemos; entretanto, por ela não escaparia
de uma vocação mais forte, que englobaria a expiação do outro, do mundo.
101
PELIZOLLI, M.L. A relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
P.54.
102
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
103
Ibidem.
104
SUSIN, L.C. Pensar a morte. Jornal Mundo Jovem, Porto Alegre, v. 317, 2001.
38
Seria a ética, transcendendo a ontologia, depor-se diante do outro, para o
outro modo de se pensar a morte
105
. Esse modo de me reclamar, de me pôr em
questão, é a responsabilidade pela morte de outrem, responsabilidade por outro no
momento da terminalidade
106
.
Após esta introdução, situando brevemente a questão da morte no âmbito do
pensamento levinasiano, passaremos ao tema precípuo do trabalho: a tentativa de
construir uma relação ética, baseada na ética da alteridade de Levinas, aplicada no
trato com o paciente terminal. Para isso, começaremos por expor o que entendemos
por medicina paliativa e a seguir quais as bases éticas para seu desenvolvimento
em Levinas.
3.1 O QUE É MEDICINA PALIATIVA?
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o cuidado paliativo é:
o cuidado ativo e integral de pacientes cuja enfermidade não responde a
terapêuticas curativas. Seu fundamento é o alívio da dor e outros sintomas
concomitantes e a consideração dos problemas psicológicos, sociais e
espirituais. O objetivo é alcançar a máxima qualidade de vida possível para
o paciente e sua família. Muitos aspectos dos cuidados paliativos são
também aplicáveis, em fases prévias da enfermidade, conjuntamente com
tratamentos específicos
107
.
A história dos cuidados paliativos começa, em 1967, com a criação, por Cecily
Saunders, do Saint Christopher’s Hospice, em Londres. Lentamente, o movimento
disseminou-se pelos países europeus. Atualmente, a Associação Européia de
Cuidados Paliativos conta com vinte e nove países-membros e também, a América
do Norte, possui sua associação de cuidados paliativos. No Brasil, a fundação da
Associação Brasileira de Cuidados Paliativos ocorreu apenas em outubro de 1997,
tendo a Câmara Técnica em Controle da Dor e Cuidados Paliativos sido
105
Ibidem.
106
LEVINAS, E. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 216.
107
Informe O.M.S., n. 804.
39
reconhecida, apenas em 13/12/2006, por portaria ministerial publicada no Diário
Oficial (edição número 238).
O termo paliativo possui uma conotação leiga pejorativa que não corresponde
absolutamente à verdade. Paliativo é a qualidade de aliviar, e é o que mais interessa
à pessoa que sofre; portanto, quando se fala em medicina paliativa, não se tem
intenção alguma de atribuir algum sentido que denote menor importância.
A medicina paliativa procura fazer com que os pacientes desfrutem os dias
que lhe restam de forma mais consciente possível, livres da dor e com controle dos
seus sintomas. Estes últimos dias podem ser vividos com dignidade, não somente
no hospital, mas também na própria casa ou em algum lugar o mais parecido
possível com um lar.
Resumindo, cuidado paliativo é uma atenção médica e multiprofissional aos
pacientes cuja doença não responde aos tratamentos curativos, sendo que tais
cuidados são interdisciplinares e ocupam-se do paciente, da família e do entorno
social.
3.2 QUAIS AS BASES ÉTICAS PARA A MEDICINA PALIATIVA EM LEVINAS?
Para guiar a reflexão, formular-se-ão as seguintes questões:
1. Quais são os principais fundamentos éticos que justificam a criação de uma
especialidade médica em medicina paliativa?
2. Quais são os critérios éticos que permitem cumprir com os objetivos da
medicina paliativa, em particular, com o desejo de dar sentido ao momento tão
específico da aproximação da morte?
Tenta-se a elucidação a seguir.
1. A medicina paliativa é a expressão de uma responsabilidade social, e
também de uma responsabilidade da profissão médica, frente às necessidades dos
mais vulneráveis: os moribundos
108
tornando-se, nesse sentido um ato de gratuidade
108
Para Levinas, o pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro são modelos concretos de alteridade (a
quatríade, bíblica como categoria de alteridade, é sublinhada desde De l’existence a l’existant e,
40
social e profissional. Muitos códigos de deontologia médica mencionam o dever de
acompanhar o paciente até o final, como parte da responsabilidade profissional, mas
esbarram no problema da uniformização, inerente a todas as formas de códigos, isto
é, a tendência criticada por Levinas, de transformar o único em mais um: a tendência
ontológica de apreender o outro em um conceito, em cálculos e em estatísticas.
Recorrendo a códigos pré-fabricados, incorre-se no sério risco de mergulhar
no “Stalinismo”
109
, não havendo aqui nenhum viés ideológico, onde o bem seria uma
imposição da lei, de um código, que destruiria a alteridade. A bondade, praticada por
um homem em favor do seu próximo, estaria condenada desde o momento em que
procura ser universalidade e sistema, desde o momento em que se metamorfoseia
em doutrina, tratado político ou teologia
110
. Essa pequena bondade realizada de
homem para homem é a utopia do Bem, ou o segredo do seu além
111
. A
necessidade é de ter compaixão - termo que será mais bem explicitado adiante -
para não se cair na homogeneização do único: “É pensar que se pode dispensar a
caridade (...) e instaurar por meio de leis, para sempre, o que só um ato pessoal de
misericórdia e de amor pode trazer a cada vez”
112
.
O pensamento de Levinas aprofunda a discussão da relação ideologia x ética,
sobretudo na direção de um questionamento da prevalência de um pensamento
único, de uma homogeneização de valores. A ideologia do domínio da racionalidade
sobre todos os demais sentidos humanos.
“A ideologia usurpa as aparências da ciência [...]. A suspeita de ideologia
desfere na moral o golpe mais duro que ela jamais recebeu; ela marca,
como tal, o reconhecimento consiste em vê-los, não como iguais a mim, mas como diferentes de
mim. Esses que não sou eu, não possuem alimento, vestuário, função social ou sequer porta para
separar sua própria intimidade (SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1981. p.
205). Situação em tudo semelhante ao moribundo, o homem próximo a impossibilidade de suas
possibilidades, perdido em relação ao mundo e a si mesmo.
109
Com “Stalinismo”, queremos aproximar-nos do conceito levantado por Gabriel Marcel (MARCEL,
G. Os homens contra o homem. Porto, Portugal: Educação Nacional, 1988), que nos alerta do
perigo da imposição da igualdade pela força, que acabaria retirando do homem seu pertence mais
importante - sua identidade - nivelando-o por baixo. Um conceito em que a satisfação humana se
daria pelo fato do meu vizinho não ser melhor do que eu. Incapazes de aceitar a alteridade
reduzimos o outro ao mesmo que nós, abrindo mão de nossa própria individualidade.
110
LEVINAS, E. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 294.
111
Bela passagem, que em momento oportuno, mereceria uma profunda análise da relação médico x
paciente. Protótipo da possibilidade de realização do Bem, sem influências doutrinárias ou
julgamentos de valores.
112
POIRIÉ, F. Emmanuel Lévinas: ensaios e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
41
provavelmente, o fim de toda uma ética dos homens e, em todo caso,
desconcerta a teoria do dever e dos valores
113
”.
O compromisso de uma sociedade contemporânea em favor dos pacientes
terminais expressa sua capacidade de enfrentar concretamente a finitude humana. É
não adotar a postura maniqueísta, tão divulgada em nossa época, de que a doença
é o mal e que devemos extirpá-lo a qualquer preço. O paciente que consegue
vislumbrar a doença, não como perante ele, e sim nele, consegue colocá-la em uma
posição subordinada, abrindo portas a uma experiência humana em mais alto nível.
A doença, em certo momento pode parecer-lhe um caminho, e não obstáculo
114
.
Essa possibilidade choca-se com a tendência contemporânea de vislumbrar o
doente ou o moribundo como alguém alijado da sociedade. Alguém, que necessita a
cura para retomar sua humanidade; como se a mesma não perpassasse todo o
processo – a humanidade existia antes do processo patológico, existirá durante o
curso da doença e por todo o tempo que resta, até a impossibilidade das
possibilidades
115
.
Outro fundamento ético do desenvolvimento de uma medicina paliativa
relaciona-se com os riscos da tecnomedicina contemporânea, a medicina puramente
técnica, tecnomedicina ou medicina como ciência pura e simples: Poder-se-ia
compreender sua dificuldade em lidar com a finitude, se for feita uma analogia com o
fato de que toda ciência arvora-se em conceitos, e, estes, como poderosas armas do
intelecto
116
, necessitam desprezar a temporalidade.
Os conceitos são figurações, origem e condição de uma recriação de
referências. Necessitamos destas figurações para podermos apreendê-los (os
conceitos); eles devem ser eternos, ao contrário do real. Sem dúvida, não é para dar
o que pensar “[...] quando e onde o tempo – fator de humanização – conspira contra
o humano que, se constrói e tenta se auto-compreender ao longo da infinitude dos
instantes?”
117
113
LEVINAS, E. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 19.
114
MARCEL, G. Os homens contra o homem. Porto, Portugal: Educação Nacional, 1988.
115
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 213.
116
SOUZA, R. T. Crise, História e Temporalidade. In: Em torno à diferença. Rio de Janeiro: Lumen-
Juris, 2008.
117
SOUZA, R.T. Metamorfose e extinção. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. P. 12.
42
O tempo é característica inerente do “humano”, ou “humano é o que é
penetrado de temporalidade, não é absolutamente concebível sem ela.”
118
Uma medicina baseada exclusivamente na técnica, totalmente conceitual,
trata de um ser humano figurado, ausente da temporalidade, incapaz e impedido de
morrer.
A medicina paliativa é uma proposta alternativa entre a tentação de
encarniçar o tratamento a qualquer preço e a tentação da eutanásia ativa ou do
suicídio assistido. E, nas palavras de Levinas:
“o suicídio é trágico, porque a morte não traz solução a todos os problemas
que o nascimento fez surgir, é impotente para humilhar os valores da terra.
Daí o grito final de Macbeth, que enfrenta a morte, vencido porque o
universo não se desfaz ao mesmo tempo que sua vida
119
”.
As duas tentações podem ser consideradas como duas faces da mesma
moeda, expressões de um mesmo perigo - o sonho de que uma medicina com
poderes sem limites tenderia ao domínio da vida.
Os marcos da medicina paliativa, os princípios éticos de beneficência, e não
maleficência, concretizam-se na preocupação permanente com a qualidade de vida
da pessoa. A qualidade de vida possui vários níveis de compreensão
120
. O primeiro
seria o nível descritivo, a qualidade de vida (do latim qualis), que designa, em
primeiro lugar, a condição de vida do paciente, condição às vezes degradada pelo
processo patológico e/ou terapêutico. Sem dúvida, o que mais preocupa é o nível
moral do conceito de qualidade de vida, com que se expressa a dignidade da
pessoa e faz-se possível a construção do sentido em sua história vital.
A medicina paliativa caracteriza-se por objetivos específicos, distintos dos
objetivos da medicina curativa, pois busca benefícios que não se referem à cura de
uma enfermidade, e sim à melhora de qualidade de vida do paciente. Não busca o
prolongamento do tempo de vida, e sim sua valoração. Por ser exclusivamente
qualitativa e explicitamente orientada à pessoa, em toda sua complexidade de
necessidades e aspirações, a medicina paliativa constitui um aporte decisivo para a
118
SOUZA, R.T. Metamorfose e Extinção. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. P. 12.
119
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 130.
120
GRACIA, D. Introdución a la bioética – siete ensayos. Bogotá: El Buhó, 1991. p. 27-44.
43
medicina moderna. Se a medicina curativa luta contra o tempo, a medicina paliativa
respeita o tempo e trata de dar-lhe mais qualidade. Por seu enfoque integral,
desenvolve uma relação outra com o corpo. Já não se trata de um corpo
fragmentado e objetivizado, lutando desesperadamente contra a morte, mas do
corpo de uma pessoa. Torna-se necessário considerar tanto o sofrimento físico (dor)
quanto o sofrimento espiritual e/ou psicológico da pessoa, além da qualidade de
relações familiais do paciente, e do processo de sua reconciliação consigo mesmo e
com os outros.
No Brasil, vive-se uma mudança cultural acelerada. Nos últimos anos vem se
manifestando uma contradição entre modelos globalizados de vida (e de morte) e
antigas tradições. Pouco a pouco, encarrega-se a medicina de colocar um véu sobre
a morte, afastando-a da realidade. A dissimulação da morte poderia ser ligada a
uma crescente impossibilidade de assumir o que não se quer ver, um rechaço ao
que é intolerável e incompreensível. A morte já não é mais que o fracasso da ciência
médica. Não obstante, qualquer que seja o contexto cultural, a única experiência de
morte que podemos ter é a da morte do outro, experiência que nos afeta no mais
profundo de nossa identidade, provocando o que Levinas chama fissão do eu, pela
ruptura da relação com o outro. Essa experiência é também a colisão do presente
com o não presente, o aparecimento de uma desmedida além de toda a
compreensão. A morte do outro encontra-se muito além de ver e saber e é
seguramente isso que se torna insuportável para o homem moderno, ou seja, um
sentimento que Levinas chama a inquietude do desconhecido, despossuída de toda
intencionalidade, a morte chega num instante, sob o qual, sob nenhuma forma,
posso exercer meu poder.
Ressaltemos: “A morte – escreve Levinas – não é mais que um ponto no
horizonte, irredutível ao poder do nosso domínio, inacessível à ambição
conquistadora de nossa curiosidade
121
”.
Nossa experiência da morte do outro ensina-nos que a morte é limite, pois
sua realidade não se esgota no que experimentamos dela, e convida-nos a dar um
sentido a esse ponto de interrogação posto no horizonte da vida, deixando para trás
o moderno tabu a ela relacionado.
121
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. Cf.
44
2. Marie de Hennezel
122
diz que a ética dos cuidados paliativos descansa
sobre uma concepção muito particular do tempo (um tempo distinto). De fato, o
processo descrito inicialmente por Kübler-Ross
123
invoca muita energia psíquica e
faz dos últimos momentos um tempo verdadeiramente distinto. Nos últimos
momentos da vida, a necessidade de troca com os outros se torna intensa. O corpo
deve abandonar-se a outras mãos; entretanto, a energia psíquica busca como e
onde colocar-se: últimas palavras, últimos relacionamentos, últimos pensamentos,
últimas sensações, fazendo desse passo, um passo com tempo muito denso. Tempo
de trocas e reconciliações, no qual está presente o duelo, fixam-se recordações
compartilhadas pelo paciente e seus familiares, faz-se memória e abre-se a
possibilidade de perdão. Paul Ricoeur
124
assinala a semelhança entre o processo de
duelo e o processo de perdão, em particular, pelo trabalho de memória que ambos
requerem. O debate filosófico em que os cuidados paliativos se desenvolvem, a
partir da década de 80, na Europa, é um dilema entre, por um lado, uma tendência a
encarniçar a terapia fundamentada na defesa da vida como um bem em si, em
prejuízo da qualidade, e, por outro, uma tendência à eutanásia ou ao suicídio
assistido, fundamentada na defesa da qualidade de vida, mas em prejuízo da própria
vida. Esse dilema questiona fortemente a medicina moderna; entretanto, tem um
caráter sacrificial; pois tende a sacrificar completamente um bem em favor de outro.
Os cuidados paliativos desenvolvem-se como uma proposta alternativa,
fundamentada em uma ética não-sacrificial, ou seja, com o objetivo de conciliar
valores: o valor da vida e da qualidade de vida. Os conceitos-chave seriam a
autonomia e a dignidade do paciente, a necessidade de respeitar o tempo (nem
acelerar a morte e nem prolongar a vida) e solidarizar-se com o paciente que se
encaminha para a morte, ou seja, a capacidade de compaixão
125
. Desse objetivo
pode surgir algum sentido, evitando-se toda a conspiração de silêncio e
acompanhando-se o paciente na difícil busca de sua verdade.
122
HENNEZEL, M. de. A arte de morrer: tradições religiosas e espiritualidade humanista diante da
morte na atualidade. Petrópolis: Vozes, 1999.
123
KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
124
RICOEUR, P. O si mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 2001.
125
Em Levinas, compaixão possui o sentido de responsabilidade. Responsabilidade para com o outro,
em acompanhar o outro em sua expiação.
45
Por que parece tão difícil, então, desenvolver os cuidados paliativos, quarenta
anos depois de seu início? Deve-se reconhecer que a medicina moderna se orienta
para outras expectativas e, inclusive, chega a rechaçar a morte como parte da vida.
“Tem na mente um objetivo imaturo e fantástico: converter as pessoas em
imortais
126
”.
Como dizia Willy Rosembaum, nessa metáfora bélica de uma medicina sem
limites, cuja derrota é a morte, é bem difícil encontrar algum sentido. Ficaríamos
presos no que Levinas designa tempo da economia
127
, quando se exige um futuro,
porém as oportunidades são sempre agora. Substitui-se o gozo, adiando-o para o
futuro, e se coloca mãos à obra (maintenant
128
).
É nesse “mãos à obra” que a tomada em mão significa que a coisa mesma se
iguala àquilo que a intenção do pensamento visava. A mão verificaria o olho, tomar à
mão é submeter à prova e apreender
129
- “A mão compreenderia a coisa não porque
a toca de todos os lados ao mesmo tempo, mas porque está além do puro sentir,
puro gozo, é já domínio, dominação. É órgão de apreensão, de aquisição
130
”.
O agora no tempo da economia só é possível se entende-se um futuro pela
frente. Como aceitar esse adiamento do gozo, se o futuro traz em si a idéia
indefinida da morte?
Durante o tempo da economia, não surgiu ainda a dimensão ética; trata-se
ainda do homem ateu, que segue a energia da sua natureza, isto é o homem
biológico, econômico, cheio de dinamismos, de forças vivas espontâneas. Não
percebe que é egoísta, ignorando sua responsabilidade para com o Outro. É uma
irrupção de forças, apenas um princípio de fazer e operar sobre a realidade,
reduzindo a ciência à objetividade. A ética começaria quando esse Eu trabalhador e
caseiro entra em crise diante de um Outro
131
. E, segundo Souza
132
, talvez esse
confronto com o Outro ocorra de maneira mais radical no momento da morte.
126
ROSEMBAUM, W. apud HESSE, R. Na lógica da morte moderna. Frankfurt: Frankfurter Hefter,
1985.
127
SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 18.
128
Há aqui um jogo de palavras com a palavra francesa para agora, que é maintenant: main tenant –
ter (n)as mãos.
129
LEVINAS, E. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 207.
130
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 144.
131
PIVATTO, P. S. A nova proposta ética de Emmanuel Levinas. Cadernos da FAFIMC, Porto
Alegre, n. 13, p. 56, 1995.
46
“A morte é o primeiro modelo de Alteridade, de Exterioridade absoluta, e se
constitui na fronteira exógena do Eu totalitário, limite da filosofia e do pensamento,
primeiro e definitivo limite de toda Totalidade fática
133
”.
A única consciência da morte no tempo econômico é a do seu adiamento,
sendo possível até mesmo esquecê-la completamente e agir como ser-sem-morte –
“É o ponto onde o definitivo de um acontecimento se produz como não definitivo
134
”.
O pensamento de Levinas ajuda-nos a encontrar novas metáforas para
expressar a função social da medicina e seus fundamentos éticos, no momento de
enfrentar a morte. Far-se-á referência a três conceitos básicos de seu pensamento:
a - A responsabilidade intransferível frente ao outro (responsabilidade sem
escapatória);
b - A deferência respeitosa (paciência e compaixão); e,
c - O paradoxo da vulnerabilidade como expressão da dignidade humana (o
rosto).
3.3 A RESPONSABILIDADE SEM ESCAPATÓRIA
A responsabilidade sem escapatória pode definir um fundamento ético para a
medicina paliativa, na medida em que obriga a manter a atenção, a presença e a
busca de meios para melhorar a qualidade de vida, apesar de um prognóstico de
vida limitado em tempo (Levinas fala de destinação ao outro). O ato de perder a
batalha terapêutica não termina com a responsabilidade médica, podendo-se aludir
aqui a um outro conceito caro para nosso autor, citando uma frase de Fábio
Ciaramelli
135
, a saber, o da indiscrição do dito e o dizer do indizível. Em uma
analogia livre, considera-se o anúncio do prognóstico com o dito, sempre “já dito”,
que refere os termos e os sentidos dos verbos e condena o paciente à sua doença.
132
SOUZA, R. T. Traumatismo e infinito. Cadernos da FAFIMC, Porto Alegre: Edições 70, n. 13, p.
106, 1995.
133
Ibidem, p. 106.
134
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.
135
SOUZA, R. T. Traumatismo e infinito. Cadernos da FAFIMC, Porto Alegre: Edições 70, n. 13, p.
106, 1995.
47
O prognóstico, caracterizado como “dito”, significa realizar uma identificação e
condenação à doença, o paciente transforma-se na doença. Olvidamos que o
mundo não “é”, ele “está sendo”, portanto o diagnóstico não pode ser veredicto ou
sentença
136
. O veredicto pronunciado absolutamente, detém a linguagem e o tempo,
tudo transformar-se-ia na Totalidade realizada
137
. Porém, existe mais do que o
prognóstico dito, existe o que ficou por dizer, a linguagem do infinito, onde cabem as
palavras nunca ditas e que podem ser expressas por meio de uma responsabilidade
que não se finda na função de curar e sanar. Quando o poder técnico da medicina
chega a seus limites, a responsabilidade sem escapatória da equipe de saúde segue
enquanto função de cuidar. A relação do dizer localizar-se-ia na subjetividade do
sujeito, em sua vulnerabilidade e passividade.
“La subjectivité du sujet, c’est la vulnerabilité, exposition à l’affection,
sensibilité, passivité plus passive que toute passivité, temps irrécuperable,
dia-chronie in-assemblable de la patience, exposition toujours a exposer,
exposition a exprimer et ainsi à Dire, et ainsi à Donner
138
”.
A própria relação do dizer seria irredutível, por estabelecer-se, de fato, com o
outro homem, o qual escapa ao meu olhar e domínio
139
.
“Le dire [...] – Il est proximité de l’un à l’autre, engagement de l’approche, l’un
pour l’autre, La signifiance même de La signification
140
”.
Em seu texto “Filosofia e Transcendência”, publicado na obra L’univers
Philosophique
141
, Levinas aproxima essa responsabilidade a uma vigilância, uma
transcendência na qual a alteridade do outro, irredutível, concerne a mim, enquanto
eleito e insubstituível.
Pode-se buscar a compreensão do que esse autor entende por
responsabilidade interpretando que estar com os outros, irremovível atributo da
136
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia, São Paulo: Paz e Terra, 1996, p.77.
137
SOUZA, R.T. Kafka, a Justiça, O veredicto e a Colônia penal, Porto Alegre: EDIPUCRS, a
publicar.
138
LEVINAS, E. Autrement qu’être ou au-dela de l’essence. Paris: Brodard et Taupin, 1990. p. 85.
139
LEVINAS, E. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 106.
140
LEVINAS, op. cit., 1990, p. 17.
141
LEVINAS, E. Filosofia e Transcendência. In: Encyclopédie Philosophique Universelle, volume
dirige par André Jacob. Paris: Presses universitaires de France, 1989, p. 38-45.
48
existência humana, significa primeiro e acima de tudo responsabilidade
142
. Essa
responsabilidade seria a única forma pela qual o outro existiria para mim, de maneira
irredutível, lugar mesmo do infinito.
Essa responsabilidade é incondicional, não necessita de prognóstico nem de
uma história prévia do paciente e precede a qualquer intenção. Responsabilidade
seria assim a estrutura essencial, primária e fundamental da subjetividade
143
; não
possui qualquer obrigação contratual. Não exige benefício mútuo. Tornar-se
responsável é constituir-se como sujeito, portanto, referente somente a ele mesmo;
reciprocidade, é assunto do outro.
Não há ordem, código de força superior que me ameace com a prisão ou com
o inferno
144
. Essa responsabilidade está além e aquém das imposições legais e dos
contratos, quaisquer que sejam eles. É a impossibilidade da indiferença frente à
diferença do outro, é a impossibilidade de realizar a síntese da simultaneidade
145
.
Essa responsabilidade seria o próprio pensamento ético, que está além do
que cometi ou não em relação ao outro, e que não pode ser diminuída por álibis,
sendo anterior à minha liberdade, ao começo de mim
146
. Assim, quando o poder
técnico da medicina chega a seus limites, a responsabilidade sem escapatória da
equipe de saúde segue enquanto função de cuidar. A responsabilidade como
fundamento da ética estaria em, mesmo quando não pudéssemos mais intervir,
dizermos eis-me aqui
147
.
Como nos recorda Levinas, essa responsabilidade não é prazerosa, sequer
confortável ou satisfatória (estamos sempre em dívida para com o outro), nem
mesmo se relaciona com uma boa consciência. Essa responsabilidade para com o
outro sempre existiu:
“De outra parte pelo fato de outrem estar sempre já aí, antes da minha vinda
ao mundo, a responsabilidade para com outrem é mais antiga que o começo
148
”.
142
BAUMAN, Z. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 211.
143
Ibidem, p. 211.
144
Ibidem, p. 212.
145
LEVINAS, E. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 105.
146
Ibidem, p. 219.
147
Vigília de caridade, que é, também, provavelmente, o nascimento latente da medicina, despertada,
aquém de todo saber, pelo rosto ou mortalidade do outro homem. LEVINAS, E. Entre nós.
Petrópolis: Vozes, 2004. p. 198.
148
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 82.
49
Assim, sou refém de outrem e não posso me esquivar ou abrir mão dessa
responsabilidade (responsabilidade sem escapatória). Essa condição de refém é não
escolhida. Se houvesse escolha, o sujeito teria mantido seu quanto-a-si (quant a soi)
e as saídas de sua vida anterior a esta condição, enquanto sua subjetividade, seu
psiquismo mesmo. Entretanto, não há escapatória, pois o para-com-o-outro é
imperativo, necessitando submeter-me ao outro, ser seu refém.
A insistência da responsabilidade sem escapatória pode nos remeter à
impossibilidade de liberdade do sujeito, que seria colocado em servidão por esse
determinismo. A filosofia é a busca da verdade, mas essa verdade não tem
questionado o poder de quem a desvela, não interroga a ditadura do “eu penso”,
pois assim, poderia questionar uma pretensa liberdade do sujeito. Alcançar a
verdade seria então construir uma totalidade que aglutinaria o diverso no
identificável.
149
A idéia de responsabilidade sem escapatória, questionaria essa
liberdade do Mesmo, pois “é justiça antes da liberdade, exterioridade metafísica e
ética antes da ontologia.
150
Em sua obra Humanismo do Outro Homem
151
, Levinas
também argumenta contra essa possível ausência de liberdade, afirmando que ela
não existiria, a partir do momento em que o determinado possui as lembranças do
momento de ação do determinante. Ele, o determinado, não pode ser considerado
em servidão; e mais, se essa determinação (responsabilidade) é investida pelo
próprio Bem, não seria sequer uma questão de escolha, pois investiu-se no sujeito
antes que o sujeito tivesse tido tempo – distância – necessário à escolha.
“[...] Não há sujeição mais completa do que esta investidura pelo Bem, do
que esta eleição. Mas, o caráter servil da responsabilidade que ultrapassa a
escolha da obediência anterior à apresentação ou à representação do
mandamento que obriga à responsabilidade fica anulado pela bondade do
Bem que comanda.
Seu próprio ponto de independência consiste em permitir a existência do
outro – expiar por ele
152
”.
149
PELIZOLLI, M.L. A relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
P.64.
150
Idem. p.64.
151
LEVINAS, E. Humanismo do Outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 82-83.
152
LEVINAS, E. Humanismo do Outro Homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 82-83.
50
3.4 DEFERÊNCIA RESPEITOSA
A deferência respeitosa refere-se a uma atitude de acompanhamento
fundamentada na paciência e compaixão. A paciência é uma virtude moral
reconhecida sem maior discussão. Para Levinas, a paciência é uma modalidade de
consciência, o modo último da esperança, da consciência vigilante, e, de certa
forma, é a sua eficácia, sulcando uma abertura à significação.
“A situação em que a consciência privada de toda a liberdade de
movimentos conserva uma distância mínima em relação ao presente; a
passividade última que se transmuda, no entanto, desesperadamente, em
ato e em esperança, é a paciência
153
”.
Para Levinas, a prova suprema da liberdade não é a morte, mas o sofrimento.
Essa afirmação, encontrada na obra Totalidade e Infinito, esclarece-se pelo fato de
que o ódio tenta humilhar por meio do sofrimento, desejando a passividade no ser
eminentemente ativo (deve dar testemunho do seu sofrimento): O rancoroso causa o
sofrimento; no entanto, o ser odiado deve ser testemunha, que não é transformado,
em objeto mas, ao contrário, deve dar testemunho através de sua subjetividade.
O sujeito toma consciência da sua reificação pelo sofrimento; entretanto, é
necessário que o sujeito permaneça sujeito, consciente de sua condição. Daí, o
caráter insaciável do ódio, que só estaria satisfeito quando não pudesse mais se
satisfazer, pois, quando o outro é completamente objetivado, na morte, o sujeito
escapa e não pode dar testemunho. Sendo assim, a suprema prova de vontade não
é a morte, e sim o sofrimento, e, no limite de sua abdicação, a vontade não cai no
absurdo, exatamente pela paciência; em outras palavras significa que esta rompe
com nosso egoísmo, permitindo-nos morrer por alguém e para alguém
154
- “O ser
tombado e aberto pelo excesso de sofrimento espera no modo de paciência
155
”.
153
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 217.
154
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito, Lisboa: Edições 70, 1980. p. 218.
155
Ibidem.
51
No entanto, o debate em torno do conceito de compaixão anima discussões
filosóficas desde a antiguidade
156
. São muitos os detratores da compaixão.
Aristóteles reconhece que pode ser a representação de uma certa honestidade,
mas, sem dúvida não a reconhece como atitude moral. Nietzsche, em sua crítica ao
cristianismo, considera compaixão como sinônimo de piedade, uma atitude
condescendente. Filósofos como Tomás de Aquino, Rousseau e outros próximos a
nós, como Levinas, consideram compaixão como a máxima expressão moral do ser
humano. Para Levinas, a compaixão é a capacidade de compartilhar o sofrimento do
outro, permitindo assumir essa responsabilidade sem escapatória, frente à
vulnerabilidade radical do outro. A compaixão permitiria ser responsável por outro a
qualquer preço, em qualquer situação
157
. A compaixão equivaleria à própria
responsabilidade, sendo essa a única maneira de auxiliar o sujeito no momento da
morte. O único modo humano de enfrentar a morte será a associação a um outro,
seremos sustentados por outro. A medicina, com sua função a priori para a estrutura
biológica, não serve para o eu que morre, pois ela parece ter esquecido que em
seus primórdios e através de seus fundadores, considerava a compaixão de suma
importância para a prática de sua arte.
“ A prática desta arte repousa no coração; se teu coração é falso, o
mesmo se dará com o médico dentro de ti. Onde não existe amor, não existe
arte; portanto, o médico não deve estar imbuído de menos compaixão e
amor do que Deus direciona aos homens.”
158
(Paracelso
159
).
Sendo assim, somente um outro pode ser a medicina para esse eu, sendo
esse outro consciente da sua compaixão/responsabilidade.
Sendo o eixo do pensamento levinasiano a alteridade e a consciência da
transcendência do outro, não pode entender a compaixão como anexação do outro
em um movimento condescendente; ao contrário, é uma resposta ao grito do outro,
156
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.
157
LEVINAS, E. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 148.
158
BARROS, J.A. Repensando o processo saúde doença. Bioética como paradigma. Petrópolis:
Vozes, 2007. P. 44.
159
Paracelso (1495-1541) foi um dos fundadores do modelo biomédico, sendo autor de um conjunto
de idéias que formavam um sistema médico complexo e sincrético que reunia medicina popular,
alquimia, tradição renascentista e uma peculiar visão cristã do mundo. Entre suas contribuições está
a introdução do laudanum (tintura do ópio), do mercúrio para tratamento da sífilis, o reconhecimento
do bócio e do cretinismo como deficiência de Iodo e da silicose como doença laboral. GORDON, R. A
assustadora história da medicina. Rio de Janeiro: Agir, 2002.
52
à sua vulnerabilidade: a desnudez de seu rosto. A compaixão é, então, a capacidade
do ser humano de escapar de seu narcisismo para acolher algo que ele é incapaz
até mesmo de compreender: o sofrimento do outro. Tem a compaixão aplicações
importantes no trato com o paciente terminal, já que posso ter dificuldade de
entender sua agressividade ou sua depressão. O sofrimento é seu e o percebo
somente através de mediações que constituem um véu entre mim e ele. Se posso
manifestar meu desejo de acompanhá-lo, é um desejo nunca plenamente satisfeito.
“O ser só pode divisar sua satisfação no horizonte ontológico, que seria a
coincidência do “ser consigo mesmo” em sua autototalização
160
.
O outro, porém, deixaria desejar-se em um sentido completamente diferente.
Sem nostalgia do uno, sem objetivar uma totalidade.
Desejo, no sentido levinasiano, seria a abertura à não-integralidade do
conteúdo do Infinito no mundo das idéias
161
. Tratar-se-ia do desejo metafísico, que é
forte o bastante para dirigir-se ao desconhecido e, como nos diz Souza
162
; torna-se
uma “inclinação à estranheza”.
Desejo seria a esperança de não esperar a completude. Por saber ser
impossível a completude do meu desejo, posso desejar...
“O desejo metafísico não aspira ao retorno, porque é desejo de um país no
qual não nascemos. De um país estranho a toda natureza, que não foi
nossa pátria e ao qual nunca nos transportaremos. O desejo metafísico não
repousa sobre nenhum parentesco prévio. É desejo que não se pode
satisfazer, pois fala-se freqüentemente de desejos satisfeitos ou de
necessidades sexuais ou, ainda, de necessidades morais ou religiosas.
Mesmo o amor, é considerado a satisfação de uma fome sublime...O desejo
metafísico tem uma outra intenção – deseja para além de tudo o que pode
simplesmente completá-lo. Ele é como a bondade – o desejado não a
satisfaz, mas a aprofunda
163
”.
160
SOUZA, R.T. Sujeito, Ética e História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 125.
161
Idéia do infinitopensamento desligado, citação da consciência, não segundo o conceito negativo
do inconsciente, mas segundo o pensamento, talvez o mais profundamente pensado, o da
libertação a respeito do ser, o do dês-inter-esse: relação sem tomada de posse do ser, e sem
sujeição ao conatus essendi, contrariamente ao saber e à percepção. (LEVINAS, E.
Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1991).
162
SOUZA, R.T. Sujeito, Ética e História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 125.
163
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 21.
53
Contra tudo e todos, contra o pensamento hegemônico da pós-modernidade...
desejar, apesar disso, um tempo do Outro, jamais completado. O desejo mediria a
infinidade do infinito, constituindo a medida da impossibilidade de medida
164
.
Tão longe quanto possa ir o acompanhamento do outro, em sua morte, esta
nos escapa irremediavelmente, porque cada um, por mais assistido que esteja em
sua agonia, está inexoravelmente condenado a morrer só, e também porque,
quando choramos os mortos, é sempre por nós mesmos que choramos na
realidade
165
. A compaixão abre um conhecimento distinto do conhecimento do
domínio, representado pela tecnociência. A compaixão reconhece a dignidade da
pessoa em sua máxima vulnerabilidade, e não somente em sua força. A eutanásia
ou suicídio assistido, ao contrário, tentam prolongar o domínio da medicina sobre o
tempo e o domínio da vontade sobre a vulnerabilidade humana; pertencendo ao que
Levinas chama o tempo da conquista. Como diria Mario Vargas Llosa em um artigo
intitulado Una muerte tan dulce: “[...] Quienes tomar decisión de poner fin a sus vidas
son personas que puedem valerse por si mismas y no necesitan ser asistidos”.
A compaixão permite, ao contrário, reconhecer nossas necessidades
humanas de ser assistidos, e, por outro lado, nossa responsabilidade de atender a
essas necessidades expressadas pelo outro, fazendo-nos entrar no tempo que
Levinas chama tempo do êxodo. É um êxodo paciente e compassivo, que me retira
do meu mundo auto-referente e me joga ao outro, em sua vulnerabilidade. Esse
tempo do êxodo é um tempo capaz de permitir a construção ou a reconstrução do
sentido, nas situações limites da vida, mesmo frente ao absurdo da morte, última
fronteira posta no caminho dos seres humanos. É o tempo de reivindicação da
dignidade humana, além das limitações circunstanciais. É o tempo de afirmar que a
vulnerabilidade humana não é indigna.
Depois do difícil acesso à subjetividade fora do (Il y a) anônimo, face a
outrem, o sujeito acaba, de alguma forma, firmando-se, e encontrando uma
significação no para-com-o-outro. A morte vem implodir esse frágil edifício: “A morte
é a impossibilidade de planos
166
”.
164
Ibidem, p. 49.
165
DASTUR, F. A morte – ensaios sobre a finitude. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 68.
166
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.
54
Ter-se-ia encontrado o sentido da realidade na relação para-com-o-outro,
porém mesmo esse sentido termina por esmorecer em contato com a morte, tempo
absoluto da existência humana que dá forma à construção do eu. É o instante que
não se pode dominar. Tal obsessão com a morte deve-se a nossa tendência de
compreender o tempo sincrônicamente
167
. A morte suspende esse poder, o futuro
torna-se indiferente a minha morte. Como aceitar um futuro sem mim? “A morte seria
o romper da obviedade – o retorno à temporalidade
168
”.
A proximidade (tout proche) e, ao mesmo tempo, o absoluto incognoscível da
morte, já que nunca participarei dela – um futuro que perpassa o tempo - essa
impossibilidade de dominá-la é a ruína do porvir...
“A morte torna insensato todo o cuidado que eu gostaria de tomar acerca de
sua existência e de seu destino
169
”, e, portanto, “O que é importante com a
aproximação da morte é que, a um dado momento, nós não mais podemos poder, é
nisto precisamente que o sujeito perde seu domínio de sujeito
170
”.
Torna-se ilusória a presunção do eu de ser senhor de tudo, o que, porém, não
alivia sua responsabilidade para-com-o-outro. A paciência/compaixão ensina-me a
viver para um tempo após minha morte que é o tempo do outro.
Ser para um tempo além de mim, viver com um porvir, não com o cuidado de
si, mas para outrem. Ser para um tempo além de mim cuidando do outro, sem
sequer esperar sua gratidão, o que seria, no fim, um movimento de retorno ao
mesmo. Ser para além do meu tempo seria o momento da passagem para o tempo
do outro.
“A responsabilidade pré-original para com o outro não se compara ao ser, não
é precedida de uma decisão, e a morte não pode reduzi-la ao absurdo
171
”, pois “Na
paciência, a vontade atravessa a crosta de seu egoísmo e desloca o centro de sua
gravidade para fora dela para querer como desejo e bondade que nada a limite
172
”.
167
POIRIÉ, F. Emmanuel Levinas: ensaios e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
168
SOUZA, R. T. Sobre a construção do sentido. Porto Alegre: Perspectiva, 2003.
169
LEVINAS, op. cit., 1993.
170
Ibidem.
171
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.
172
POIRIÉ, F. Emmanuel Levinas: ensaios e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
55
3.5 O ROSTO
O rosto
173
, mais que uma imagem, é um conceito central do pensamento de
Emannuel Levinas. O rosto é o choque do divino, a ruptura da ordem imanente, da
ordem que eu posso abarcar, da ordem que eu posso ter em meu pensamento, da
ordem que pode tornar-se minha: eis o rosto de outrem
174
.
O pensamento de
Levinas nos remete à deposição da consciência, à retirada do “Eu” como centro do
mundo, um mundo auto-referente em que tudo volta ao mesmo. Essa deposição da
consciência dar-se-ia exatamente pelo surgimento do rosto.
“A presença do rosto significa assim uma ordem irrecusável – um
mandamento – que detém a disponibilidade da consciência. A consciência é
questionada pelo rosto. O questionamento não significa uma tomada de
consciência deste questionamento. O “absolutamente outro” não se reflete
na consciência. Resiste-lhe a tal ponto que mesmo sua resistência não se
converte em conteúdo de consciência. A visitação consiste em desordenar o
próprio egoísmo do Eu (Moi) que sustenta esta conversão. O rosto
desconcerta a intencionalidade que o visa
175
”.
Esse rosto é alçado à posição de um dos pilares do pensamento do filósofo
lituano, principalmente se tentarmos fazer uma aproximação desse pensamento por
meio da questão/experiência da morte, e de sua acolhida ética do próximo. Posto
que esse rosto não seja uma representação plástica, a relação com ele é uma
relação com o absolutamente fraco, ao absolutamente exposto, e com o que está só
e poderia sofrer o supremo isolamento que se chama morte
176
.
173
Segundo SOUZA, R. T., a tradução de visage por “rosto” parece imprópria no contexto específico,
no sentido de que pode sugerir uma determinada materialidade facilmente redutível à
determinação ontológica. O que não aconteceria com o “olhar, cuja presença é a subversão
mesma da noção normal de espacialidade determinável (SOUZA, R. T. Traumatismo e infinito.
Cadernos da FAFIMC, n. 13, p. 104-105, 1995).
174
Ibidem.
175
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 52.
176
LEVINAS, E. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 144.
56
O Rosto de outro, ao mesmo tempo que instiga ao assassinato, é também o
“Tu não matarás”, supremo paradoxo da vulnerabilidade humana. Não posso deixar
o outro morrer sozinho; acudi-lo e ajudá-lo é responsabilidade minha.
Levinas inaugura um humanismo do outro homem, contrário ao humanismo
que não distinguiria as pessoas, considerando-as todas como iguais e com os
mesmos direitos, o que permitiria apenas um humanismo do eu. Esse humanismo
levinasiano é expressão da dignidade do outro, em sua vulnerabilidade e em sua
necessidade de relação. Uma ética da medicina paliativa poderia inspirar-se nesse
conceito, para avaliar em que medida a atenção contribui para proteger a dignidade
das pessoas, nos últimos momentos de sua vida. O benefício dos cuidados
paliativos não se mesura somente por escalas de dor; também se avaliam com a
possibilidade do paciente dar sentido ao pouco de vida que lhe resta, isto é, a
possibilidade de afirmar sua dignidade, apesar de sua dependência e de sua
debilidade
177
.
Todo debate sobre eutanásia ou suicídio assistido, e, em se tratando da área
médica, não podemos olvidar que o rosto é a expressão original, a primeira palavra
(resistência ética), que diz: não cometerás assassinato
178
; gira em torno do conceito
de dignidade. Alguns pensam que as condições de vida definem a possibilidade de
preservar a dignidade humana e, portanto, pensam que o indivíduo faz uma decisão
responsável afirmando sua liberdade de viver ou morrer.
Outros acreditam que a dignidade significa um esforço constante da pessoa
em relação aos outros, para dar sentido a sua vida, inclusive em situações limites,
como a aproximação da morte. A dignidade de uma pessoa, reconhecida como
fundamento de toda ética, define-se sobre um horizonte universal, e é um fim em si,
que não se pode relativizar ou quantificar. Para muitos, isso constitui o fundamento
dos direitos humanos, e, tendo entre eles, os direitos dos pacientes terminais de
receber uma atenção digna.
Em síntese, uma ética da medicina paliativa poderia elaborar-se a partir de
um movimento duplo:
177
Convém salientar que reconhecer sua dependência não significa para o paciente renunciar a sua
autonomia. A dependência é resultado de um estado patológico, a autonomia é um direito do
sujeito.
178
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 178.
57
1. A responsabilidade sem escapatória frente a todo paciente e além das
possibilidades técnicas da medicina moderna curativa, isto é uma responsabilidade
que considera a integralidade das necessidades do paciente. É necessário
compreender que é impossível ignorar essa responsabilidade, pois não podemos
simplesmente fingir que ela não existe. Nas palavras de Levinas:
“[...] a impossibilidade de rescindir a responsabilidade pelo outro, a
impossibilidade mais impossível que a de deixar sua pele, ao dever
imprescritível que ultrapassa as “forças do ser”. Dever que não pediu
consentimento, que veio a mim traumaticamente, [...] sem começar. Vindo
sem propor à escolha, vindo como eleição.
Dever que se impõe para além dos limites do ser, para além da morte
179
”.
Ainda nas trilhas do dizer levinasiano: Lembrar das dores-doenças, para as
quais não há alívio algum, que se associam aos deserdados, retardados,
diminuídos, e que levantam o problema ético fundamental que somente essas dores-
doenças podem erguer: o problema ético de que a sua medicação e alívio é o meu
dever
180
.
2. A tomada de consciência do não domínio, que requer uma relação paciente
e compassiva com o outro, uma relação ética com o outro; o que introduz um
paradoxo em nossa concepção de conhecimento científico e de papel social da
medicina; pois convida-nos a passar de um conhecimento centrado no domínio da
vida, da morte e do corpo
181
a um conhecimento orientado na busca de sentido para
o ser humano, particularmente onde, aparentemente, não há sentido. A construção
deste sentido encontrar-se-ia na relação, no sair de si (evasão), no ocupar-se do
outro, da sua morte, antes da própria morte. “É a descoberta do fundo de nossa
179
LEVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 16.
180
LEVINAS, E. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 132.
181
Os cânones e as regras de convivência funcionam como a representação para o processo
cognitivo e permitem assumir a nudez domesticada do outro e gozar de sua forma sem, se revelar
uma alteridade. A nudez feia e sem medidas é enorme, brutal e vergonhosa, sendo convidada a
se retirar. O outro, informe, desajeitado, é inquietante, inassumível e sem graça. Levinas observa
que, mesmo para a medicina e o serviço militar, o corpo nu é questão de saúde, não uma
alteridade nua. SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 103.
58
humanidade (...) a responsabilidade com o outro é o bem, não é agradável, é o
bem
182
”, como nos diz Levinas
183
.
A morte como fronteira de sentido é o lugar de passagem entre o
conhecimento conquistador e o conhecimento sem domínio. O primeiro pode levar a
decisões radicais, como a eutanásia ou o suicídio assistido, que guardaria relação
com o assassinato, sendo o cúmulo do desenvolvimento do poder ontológico,
quando a violência do querer dominar a morte vai até ao absurdo e se inverte em
impotência. Mataríamos a morte, e matar não é dominar, é nadificar, renunciar
absolutamente à compreensão
184
. Levaríamos nossa necessidade de poder até
onde não poderíamos mais poder. Tentaríamos escapar da morte morrendo, sendo,
porém tarde demais para possuirmos a única maneira de escapar da morte: não
nascer
185
. O conhecimento conquistador pode explicar atitudes de encarniçamento
terapêutico, tratando de afirmar o domínio da vontade humana e do poder científico.
O conhecimento orientado à criação de sentido e, portanto, para a afirmação da
dignidade humana, como princípio absoluto, fundamenta-se na primazia da
alteridade - base da identidade humana e expressão máxima de uma liberdade
responsável. A morte pode, então, tornar-se um espaço no qual se revela a
transcendência do outro em sua vulnerabilidade. A morte é totalmente outro em
relação ao sujeito. Quando a morte chega, o sujeito não mais está, pois deixa de ser
sujeito ativo e torna-se pura passividade. E, mesmo diante desse mistério, quando
não podemos mais poder, convoca-se nossa responsabilidade humana: “A solidão
da morte não faz desaparecer o próximo (...) faz, todavia possível uma chamada ao
outro, a sua amizade, a sua medicação (...) a morte se aproxima como medo de
alguém e esperança de alguém
186
”.
A medicina técnica e tecnologizada, impregnada pela visão racional/científica,
pode questionar os resultados dessa preocupação ética, dessa doação ao outro,
verdadeiro bem além do ser.
182
“O bem, nas palavras de Levinas, é um surplus da gratuidade e da devoção, como uma
abundância sem finalidades e sem fim”. SUSIN, L. C. O homem messiânico. Petrópolis: Vozes,
1981. p. 235.
183
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. Cf.
184
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito, Lisboa: Edições 70. 1980.
185
É muito significativa a explicação de Freud em “Luto e Melancolia” que nos ensina que o “eu” não
se pode matar, a não ser quando analisado como um objeto e que volte contra si mesmo a
hostilidade com que visava o objeto.
186
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, p. 212,1980.
59
A resposta da medicina paliativa, e a justificativa para sua afirmação como
especialidade, encontra-se não em números, códigos ou leis, e sim, na qualidade
dos cuidados na relação médico-paciente, no tipo de participação do paciente na
construção de um sentido para seus últimos instantes e na aceitação de outros
métodos de validação do saber
187
. Utilizando-nos novamente da poesia: na
possibilidade de um significado mais profundo
188
187
MARTINS, P.H. O paradigma energético e os novos significados do corpo e da cura. Bioética
como paradigma. Petrópolis: Vozes, 2007. P. 13.
188
PESSOA, F. Poesias, seleção e introdução de Cleonice Berardinelli, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985, Cf. E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada. Para eles o sonho sonhado ou
vivido. Para eles a exata medida entre tudo e nada.... Para mim todo o grande e profundo...
significado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existir é suportar o peso do outro. (Levinas).
- “Lo que Pascal escribió a su hermana, quien le pedia que se cuidara:
- Tú no conoces los incovenientes de la salud y los ventajas de la
enfermedad
189
”.
A dificuldade do ser humano em geral e, em particular, do profissional de
saúde de lidar com a morte pode ser trabalhada e melhorada, promovendo-se um
acréscimo à qualidade de vida de todos os envolvidos na difícil relação com
pacientes terminais.
Inicialmente, é claro, o maior investimento deve ser para o paciente,
entretanto, o lidar com a morte só ocorre para quem fica, devendo os próprios
profissionais e familiares ser acudidos e auxiliados.
Uma das formas de auxílio a esses profissionais, familiares e o próprio
paciente é a construção de uma relação ética, uma relação de respeito para com a
alteridade daquele que vai enfrentar o desconhecido. Devemos acompanhá-lo,
responder por ele, expiar por ele, com a positivação de um desejo nunca
plenamente satisfeito, desejo transformado em responsabilidade.
Os profissionais de saúde envolvidos nessa difícil missão não se encontram
ausentes da sociedade, como muitas vezes os pacientes e os próprios
profissionais acreditam. Ao contrário, mergulhados em uma sociedade cada vez
mais preocupada em satisfazer-se materialmente e em afastar o sofrimento como
possível criador de sentido, sobretudo o maior de todos os sofrimentos: a morte, os
profissionais só conseguem lidar com a situação se impregnados pela visão
tecnicista de recompensa imediata ou de afastamento da possível frustração a
qualquer preço, para poder gozar tal recompensa, sem qualquer incômodo, no
futuro.
189
CIORAN, E.M. Conversaciones. Barcelona: Tusquets, 2001. p. 34.
61
Esta forma de enfrentamento da realidade sofre suas críticas desde
Husserl
190
, e, como ele, não se colocam em discussão os avanços tecnológicos da
ciência em geral, muito menos os da ciência médica. “O rigor do caráter científico de
todas estas disciplinas, a evidência de seus resultados teóricos e de seus êxitos
duradouramente irrefutáveis, estão fora de discussão
191
”.
Segundo Paulo Freire
192
trata-se não de “endeusar” ou “demonizar” a
tecnologia, e sim em manter nossa capacidade crítica frente à mesma, essa
afirmação segue o pensamento Heideggeriano:
É verdade que não podemos nem rejeitar o moderno universo da
técnica como obra do demônio, nem destruí-lo, caso ele mesmo disso não
se encarregue. Mas ainda menos nos é permitido perseguir a idéia de que o
universo da técnica é de tal espécie que impede absolutamente dele nos
libertarmos
193
”.
Logo, esta crítica deve percorrer outras sendas, e o próprio Husserl nos
aponta duas delas. A primeira acusaria a ciência de haver-se reduzido a mera
ciência de fatos, e a segunda, mais grave, acusa a ciência de haver perdido sua
importância e seu significado para a vida humana.
“A exclusividade com que, na segunda metade do século XIX, o
homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas em toda a
sua visão do mundo e se deixou deslumbrar pela prosperity tornada
possível por elas, significou paralelamente um desvio indiferente com
respeito às questões realmente decisivas para uma humanidade
autêntica
194
”.
Homens demasiados curtos para irem além da mediocridade dos fatos, pois
“Meras ciências de fatos fazem meros homens de fatos
195
”.
A ciência, na busca da racionalidade, se auto-justificaria em todos os níveis.
Torna-se o novo objeto de veneração humana, sem espaço para questionamentos, o
190
HUSSERL, E. A crise da humanidade européia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
191
HUSSERL apud COSTA, M. L. Levinas uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 58.
192
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
193
HEIDEGGER, M. Que é isto – a Filosofia? Petrópolis: Vozes, 2006. P. 52.
194
HUSSERL, E. A crise da humanidade européia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
195
HUSSERL, E. A crise da humanidade européia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
62
novo sagrado da humanidade e tudo que dela advém, é bom, sem necessidade de
justificativas a não ser o próprio fato de ser “científico”.
Envoltos nesse mundo técnico, torna-se difícil perceber o grau de frustração e
angústia, repetidos no ciclo diário, de ser confrontado com a própria finitude, contra
a própria vontade, com a exigência de fornecer um sentido, sem nunca ter sido
preparado para tal.
Com estas constatações da tecnicização médica, do racionalismo como novo
dogma humano, faz-se mister uma profunda reflexão; e, quando se fala em reflexão,
obrigatoriamente nos remetemos ao âmbito filosófico. Então, como estabelecer uma
relação entre medicina e filosofia?
Primeiramente, crê-se em que alguns domínios do conhecimento humano são
de interesse universal, como a Política e a Economia, em relação às quais o ser
humano é chamado a participar e opinar, mesmo sem ser um “especialista”. Em
vista disso, a reflexão sobre os caminhos e descaminhos da medicina interessa a
todas as pessoas, sendo elas da área médica ou não.
Muitas vezes, os próprios especialistas da área não possuem idéias claras
sobre o conjunto dos aspectos, sobre as escolhas e decisões, pois essas escolhas
implicam noção de valor, e valor é diferente de conhecimento objetivo. Não se afirma
com isso que conhecimentos científicos adquiridos ao longo de anos pela medicina
não sejam importantes para a humanidade, como já se deixou claro. Porém, não se
deve aceitar esses conhecimentos como dogmas irrevogáveis ou inquestionáveis.
Necessita-se para tanto, de um senso interno, para orientar esse conjunto de
informações, tomando-se o cuidado de respeitar sempre a presença do outro, a
alteridade, que estará sempre pronta para interpelar-nos.
Em vista dessas informações, chega-se ao que a medicina é: a medicina
relaciona-se com a saúde, as doenças, o mal-estar, o sofrimento, o nascimento e a
morte, o corpo e a mente. Envolve cada ser humano em suas dimensões
existenciais e estas correspondem a questões filosóficas das mais importantes na
história da Filosofia, incluídas as questões metafísicas.
63
A medicina, ao longo da história humana, sempre possuiu significações
(rituais). Hoje com o tecnicismo, parece haver perdido, ao menos conscientemente,
essa dimensão, sobretudo no que tange aos profissionais de saúde; permanecendo,
entretanto, viva, no mínimo, na demanda da maioria dos pacientes.
A reflexão sobre medicina acompanha a formação da ciência moderna, tendo,
então, por companheira a filosofia. Sendo a medicina tributária dos conhecimentos
adquiridos pelas ciências (física, química, anatomia, fisiologia), porém mais antiga
do que elas, possuía, antes do desenvolvimento dessas ciências um caráter
extremamente empírico, intercalado com conhecimentos técnicos, havendo relatos
de trepanações que advêm do antigo Egito. Há, então, na medicina, um misto de
conhecimento e técnica, mais prática do que teoria. Atualmente, a medicina pauta-se
por ambas, não sendo somente uma ciência, mas, sobretudo, uma prática baseada
nos conhecimentos científicos.
Essa característica, por si só, é extremamente interessante do ponto de vista
filosófico: Com seu “lado” científico, a medicina é hoje muito mais segura do que nos
séculos anteriores; por seu “lado” prático, ou seja, pela necessidade de que o
diagnóstico seja algo mais do que meras informações sobre o funcionamento dos
órgãos, a medicina possui grande dificuldade de avaliar o ser humano como uma
organicidade multifacetada.
A medicina, em virtude desse duplo caráter, torna-se uma arte (no sentido
mesmo de artesanato). Ela é ciência, entretanto, depende de uma intuição do
médico frente a determinadas situações complexas, não existindo espaço para
misticismo.
Em virtude do que até aqui foi exposto, o relacionamento medicina-filosofia
deve ser um diálogo, mais do que um monólogo de cada uma delas; principalmente,
na relação entre medicina e ética quando as respostas a certas questões não são
óbvias, remetendo a decisões individuais do próprio paciente e do profissional de
saúde. A filosofia serviria para embasar essas questões, para estimular o debate e
promover o questionamento e a busca de sentido, sobretudo, onde aparentemente
não há mais sentido: a morte.
64
Segundo Dastur
196
, o homem não é um animal político, conforme a famosa
definição de Aristóteles, a não ser por viver em comunidade, não somente com seus
contemporâneos, mas também com aqueles que o precederam na fundação da
polis, inscrevendo-a na profundeza de um passado mítico, que acrescenta a todo ato
político um peso histórico, ultrapassando o indivíduo que o realiza.
A filosofia poderia questionar a ditadura analítica, que toma o corpo em partes
e transforma o organismo em objeto, acarretando decisões extremas de manter a
vida custe o que custar ou a tentativa de domínio da morte pela eutanásia. Para
tanto, torna-se necessária uma reflexão filosófica que tenha a ética como prima
philosophia, e não uma filosofia pautada na ontologia, no conhecimento puro,
científico; pois este conhecimento, segundo Levinas, é:
“[...] caminho para a unidade: quer para o aparecimento, no seio de uma
multiplicidade de seres de um sistema racional em que os seres seriam
apenas objetos e nos quais encontrariam o seu ser; quer para a conquista
brutal dos seres, fora de todo sistema, pela violência. Quer seja no
pensamento científico ou no objeto da ciência, quer seja enfim na história
compreendida como manifestação da razão e em que a violência se revela
também como razão – a filosofia apresenta-se como realização do ser, isto
é, como a sua libertação pela eliminação da multiplicidade.
O conhecimento seria a supressão do Outro pela captação, pela tomada ou
pela visão que capta antes da captação
197
”.
A ética, como filosofia primeira, permitiria a busca de uma experiência
humana mais ampla, de aceitação da nossa finitude, como parte da nossa
dignidade, desde a ética da alteridade.
Finalmente, encerra-se o trabalho com o próprio Levinas que, vinte anos
antes da sua morte, exatamente no dia quatorze de Novembro de 1975, iniciava seu
segundo dia de aula na Sorbonne
198
, com a pergunta: O que sabemos sobre a
morte, o que é a morte? E, encerramos também, com Voltaire, que não perguntou o
que é o médico; apenas afirmou: “Médicos são pessoas que tratam doenças sobre
as quais pouco conhecem, com medicamentos sobre os quais conhecem menos
196
DASTUR, F. A morte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 16.
197
LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 282.
198
COSTA, M. L. Levinas uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
65
ainda e que acometem seres humanos, sobre os quais desconhecem absolutamente
tudo”.
Em virtude de poucas respostas para a pergunta de Levinas e poucos
argumentos para rebater a afirmação de Voltaire, resta-nos a responsabilidade pelo
Outro, por transformar a finitude/morte do Outro em algo com sentido.
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