Download PDF
ads:
1
INTRODUÇÃO
―A misoginia medieval como resíduo na literatura de cordel surgiu de uma
curiosidade, de uma inquietação sobre o modo de tratar a mulher na escrita do poeta
popular. Ainda na feitura do relatório de pesquisa ―O que se diz e como se pensa o sexo,
a mulher e a traição na literatura de cordel‖, vinculado ao projeto de pesquisa ―Para
além do mal em si: das fontes aos resíduos contemporâneos‖, orientada pela Pro Drª
Elizabeth Dias Martins, a leitura de vários cordéis chamou nossa atenção para o estigma
que girava em torno da personagem feminina: origem de todo o mal. Ela é considerada
culpada por todos os danos, a falha matrimonial, o desvio de conduta do marido, a
promoção da prostituão e a agressão aos preceitos sociais e religiosos.
Ao partir para a pesquisa da origem desse comportamento, fui orientada a buscá-
la na Idade Média, período do qual se herdou matrizes sociais, morais e principalmente
religiosas. Comecei minha pesquisa pela Bíblia. Pesquisei sobre a história do
matrimônio, do adultério e da mulher. Tudo convergia para a mesma resposta: a mulher
era responsável pelos males à humanidade e deveria ser submissa e vigiada. Ainda nas
fontes primárias, tive acesso ao Malleus Malleficarum, um manual para inquisidores,
cujas considerações sobre a mulher convergem para culpá-la e inferiorizá-la.
Esse pensamento pode ser identificado, com frequência, nos cordéis cujo tema
era a traição ou o adultério. Neles, impreterivelmente, o adúltero era cometido pela
mulher. A Literatura de cordel tem a sua origem no romanceiro popular português. Aqui
no Brasil, ela começou a ser divulgada nos séculos XVI e XVII, trazida pelos colonos
portugueses. A partir do século XIX, o romanceiro nordestino, num processo de
absorção brida, torna-se uma expressão literária cristalizada, ou seja, adaptada ao
novo ambiente, porém conservando traços do romanceiro português.
A herança cristã na tradição ocidental apresenta a mulher como portadora do
mal, portanto lhe são conferidos: o medo e a culpa. A cultura ocidental patriarcal que,
durante séculos, tem dado ao homem o poder sobre as suas propriedades e, entre elas, a
da mulher, considera natural a inferioridade e a fraqueza feminina.
Entretanto, a mulher tem a sua imagem ligada ao mal antes do medievo, havendo
elementos deste fenômeno já na Antiguidade Clássica. Tal concepção atingiu o seu
ápice na Idade Média, quando a Igreja Católica controlava, com severidade, a vida
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
social e religiosa dos cristãos em especial da mulher respaldada no poder da
Inquisição, principal órgão utilizado pela Igreja para perseguir e punir aqueles que iam
de encontro às suas ideias e aos seus dogmas. Essa mentalidade misógina ganhou força
e adeptos perdurando pelos séculos subsequentes, sendo residual na literatura de cordel
contemporânea e perceptível através do vocabulário e das expressões usadas pelos
cordelistas para descrever e retratar a mulher. Pode-se perceber que esse discurso
literário de caráter popular denota uma relação de poder velada, na qual a mulher é
rebaixada, vitima da repugnância.
A misoginia ou a recusa ao feminino e a tudo que venha dele não foi uma
invenção da Igreja Medieval, mas uma apropriação de ideias e modos de ser que
circulavam no mundo antigo. Ela é incorporada ao pensamento cristão e percorrerá
séculos na história humana, constituindo-se como elemento formador da suposta
inferioridade feminina.
Por isso, a partir da Teoria da Residualidade
1
, será objetivo desse trabalho
identificar, a partir da verificação de resíduos, elementos da mentalidade medieval na
cultura e na literatura do Nordeste brasileiro contemporâneo. Essa teoria diz respeito,
essencialmente, à remanescência de elementos culturais e, especificamente nesse caso,
sociais e religiosos, de uma determinada época em outra, transmitida através dos tempos
e identificada no modo de agir, de pensar e de viver de um povo. Nas palavras do
sistematizador da teoria:
O conceito ―Cultura Residualou ―Residualidade Cultural‖ é novo no
que tange aos estudos literários (história, teoria, ctica e ensaística).
Refere-se à remanescência em culturas novas de expressões, costumes
e padrões de uma cultura mais velha que a esta venha ligar-se seja
através do processo civilizatório, seja através de relações de
dominâncias econômicas, sociais e / ou culturais.
2
A referida teoria trabalha em ―terreno próprio‖, como afirma Roberto Pontes
3
,
mas encontra respaldo em vários lindes, como a História, a Sociologia, a Antropologia a
Sociologia, a Geologia e ainda a Estética e a Fenomenologia. Conta também com o
1
A referida teoria ainda o está completamente sistematizada. Por enquanto, o corpus que fundamenta a
Residualidade são estudos artigos, ensaios, entrevistas e dissertações- do professor Dr. Roberto Pontes e
de seus pesquisadores.
2
PONTES, Roberto. ―Residualidade e mentalidade trovadorescas no romance de Clara Menina‖. In: III
Encontro Internacional de Estudos Medievais da Associação Brasileira de Estudos Medievais ABREM,
2001, Rio de Janeiro. Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro : Ágora da
Ilha, 1999. p. 513-516.
3
PONTES, Roberto. Lindes disciplinares da teoria da residualidade.
ads:
3
embasamento de autores europeus como Fustel de Coulanges e Ernst Robert Curtius,
além de Segismundo Spina, Ariano Suassuna e Darcy Ribeiro.
No cerne da Residualidade está o conceito de mentalidade. Para uma melhor
compreensão da teoria, faz-se necessário entender também a nese do estudo das
mentalidades, que tiveram início a partir dos estudos de Lucien Febvre e Marc Bloch,
juntamente com Jacques Le Goff e Georges Duby com a École des Annales, a qual foi
de suma relevância para o estabelecimento da Nouvelle Histoire francesa. O que propõe
a École des Annales é um olhar mais atento e profundo acerca de certos aspectos, até
então desconsiderados por muitos estudiosos, como os hábitos, os costumes, a religião e
as crenças populares que comem as mentalidades, como confirma Duby:
De maneira mais insistente, Febvre exortava-nos a escrever a história das
―sensibilidades‖, a dos odores, dos medos, dos sistemas de valor, e seu
Rabelais demonstrava magistralmente que cada época tem sua própria visão
do mundo, que as maneiras de sentir e pensar variam com o tempo e que,
consequentemente, o historiador deve procurar defender-se tanto quanto
possível das suas, sob pena de nada compreender. Febvre propunha-nos um
novo objeto de estudo, as ―mentalidades‖. Era o termo que ele empregava.
s o retomamos
4
.
O que Lucien Febvre queria era conclamar uma nova mentalidade no exercício
de ―explicar‖ a história; advertia para que os historiadores, além dos fatores
econômicos, levassem também em conta questões de ordem da natureza e da cultura.
A história das mentalidades, segundo Michel Vovelle, em seus primórdios,
situava-se essencialmente no nível da cultura e do pensamento claro, mas houve uma
ampliação do olhar dos historiadores para uma hisria das atitudes, dos
comportamentos e das representações coletivas inconscientes. Segundo ele, a
mentalidade remete, portanto, de modo privilegiado à lembrança, à memória, às formas
de resistências. Em resumo, aponta aquilo que se tornou corrente definir como a força
da inércia das estruturas mentais‘‖
5
, ou seja, a mentalidade é depositária do que se
convencionou chamar resíduo.
4
DUBY, Georges. A história continua. Tradução de Clóvis Marques. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor,
1993, p. 87-88.
5
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. Tradução Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1987, p. 19.
4
Então, a conjuntura ideológica de determinado período histórico identificado
pelo modo de viver e de pensar de um povo é o que se entende por mentalidade, a qual
parte do individual para o coletivo, como pontuou Le Goff: Situa-se no ponto de
junção do individual e do coletivo, ao longo do tempo e do cotidiano, do inconsciente e
do intelectual, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral
6
.
Roberto Pontes esclarece e explica o conceito de mentalidade que para ele,
tem a ver não com aquilo que a pessoa de um determinado momento
pensa. Mas um indivíduo e mais outro indivíduo e mais outro indivíduo, a
soma de várias individualidades, redunda numa mentalidade coletiva. E essa
mentalidade coletiva é transmitida através da História. Por meio da
mentalidade dos indivíduos, a mentalidade coletiva se constrói. E esta última
é transmitida desde épocas remotas, e mesmo remotíssimas a épocas recentes.
[...] Atras do que podemos considerar vestígios, remanescências, resíduos
encontráveis nas obras da cultura espiritual e material dos povos. Porque é
através da cultura material que chegamos a compor um painel da cultura
espiritual dos povos. Cultura espiritual aqui no sentido de conjunto de ideias,
conjunto ideológico de um momento. É este o conceito que fazemos de
mentalidade
7
.
Para apreender o conceito de mentalidade, é preciso conhecer também a
definição de memória coletiva, que diz respeito ao mesmo pensamento compartilhado
por várias pessoas acerca de um mesmo assunto, independente de tempo e de distância,
ou seja, é a perpetuação do senso comum. Segundo Maurice Halbwachs,
memória coletiva é o processo social de reconstrução do passado vivido e
experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade. Este
passado vivido é distinto da história, a qual se refere mais a fatos e eventos
registrados, como dados e feitos, independentemente destes terem sido
sentidos e experimentados por alguém
8
.
A compreensão da teoria exige uma explanação acerca dos conceitos operativos
que a compõem. Resíduo é aquilo que permaneceu de uma época em outra, forte o
suficiente para se cristalizar em um novo momento, numa nova obra, em uma nova
cultura. Ele é dotado de extremo vigor. Não se confunde com o antigo, o arcaico na
explicação de Raymond Williams:
6
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983. Pág. 71.
7
MOREIRA, Rubenita Alves. Reflexões sobre a residualidade. Entrevista com Roberto Pontes.
Comunicação apresentada na jornada literária ―A residualidade ao alcance de todos‖. Departamento de
Literatura da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, julho de 2006.
8
HALBWACHS, Maurice. Fragmentos da la Memoria Coletctiva. Seleção e tradução de Miguel Angel
Aguilar. (texto em espanhol). Universidad Autónoma Meropolitana-Iztapalapa. Licenciatura em
Psicologia Social. Publicado originalmente em Revista de Cultura Psicológica, Año 1, Número 1,
México: UNAM- Faculdad de psicologia, 1991.
5
Por ―residual‖ quero dizer alguma coisa diferente ao ―arcaico‖, embora na
prática seja difícil, com frequência, distingui-los. [...] Eu chamaria de
―arcaico aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento do
passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente, a ser
―revivido de maneira consciente, de uma forma deliberadamente
especializante. O que entendo pelo ―residual‖ é muito diferente. O residual,
por definição, foi efetivamente formado no passado, mas como um elemento
vivo do presente
9
.
Como o resíduo está em constante transformação, ele nos remete a outro conceito:
a cristalização, procedimento pelo qual o remanescente passa, para que seja modificado
e recriado. Nas palavras de Roberto Pontes, é um processo de refinamento (como acontece
com o mel da cana ao se transformar em açúcar) de uma determinada cultura, que vai se
afastando daquilo que entendemos por popular e se aproximando do que pensamos ser
erudito
10
. [...] O nível da cristalização apropria o material gerado pelas camadas
dominantes do povo e a obra daí surgida é de nível culto, semi-clássica ou clássica,
processo pelo qual se constrói um repertório de raízes na memória coletiva nacional
[...]
11
.
Embora este termo pertença a outras áreas de estudo, na Residualidade, ela é
reconfigurada. A ocorrência da Residualidade é possível a partir do processo de
cristalização, cuja realização se com base nos resíduos, naquilo que fica de mais
relevante, mas estes são atualizados e modificados. O resultado é o surgimento de uma
obra que apresenta elementos recriados de outra época em outra. Sobre este processo
Duby esclarece que:
Com efeito, nós começávamos convencidos de que no interior de ―uma
mesma sociedade‖ não existia apenas um ―resíduo. Ou pelo menos que este
resíduo não apresenta a mesma consistência nos diversos meios ou estratos
de que se compõe uma formação social. E, sobretudo, recusávamos- nos a
aceitar como ―estável‖ este resíduo, ou antes estes resíduos (fazíamos questão
do plural). Eles se modificam ao longo das eras
12
.
Dessa forma, os resíduos, de acordo com Halbwachs, são como as lembranças,
que persistem na memória coletiva a partir do processo de cristalização, uma vez que se
9
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
editora, 1979, p. 125.
10
PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor /
Edições UFC, 1999.
11
PONTES, Roberto. ―Três modos de tratar a memória coletiva nacional‖. In: Literatura e Memória
Cultural ANAIS do Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada vol. II. Belo
Horizonte, 1991.
12
DUBY, Georges. A história continua. Tradução de Clóvis Marques. Rio de janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1993, p. 87-88.
6
adaptam ao espaço e ao tempo em que são trazidas à tona. Como se nas palavras do
estudioso:
Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas
lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao
conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se
confrontássemos vários depoimentos.
13
A miscelânea de várias mentalidades redunda na definição de hibridismo cultural,
outro elemento importante para a teoria. Segundo Peter Burke, ele se faz presente o
apenas em todo o globo como na maioria dos domínios da cultura religiões, [...] na
arquitetura, na literatura ou na música
14
‖. Roberto Pontes explica melhor esse processo ao
afirmar que
hibridação cultural é uma expressão usada para explicar que as culturas o
andam cada qual por um caminho, sem contato com as outras. Ou seja, não
percorrem veredas numa única direção. São rumos convergentes. São
caminhos que se encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam
15
.
Portanto, a residualidade, nas palavras de Elizabeth Dias Martins, caracteriza-se:
[...] por aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro,
podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no
passado próximo ou distante, como tamm diz respeito aos resíduos
indicadores de futuro. Este último é o caso de artistas que,
independente da estética a qual pertençam, incluem em suas obras
uma linguagem precursora, os quais são comumente chamados de
artistas do avant la lettre, mas a residualidade o se restringe ao fator
tempo; abrange igualmente a categoria espaço, que nos possibilita
identificar também a hibridação cultural no que toca a crenças e
costumes.
16
Quando se analisa uma obra de arte literária, é possível identificar elementos
remanescentes de uma época anterior ou posterior a essa produção, bem como os
substratos mentais perceptíveis nos cordéis. Os resquícios mentais do medievo estão
cristalizados nos livrinhos analisados, sendo possível perceber a misoginia através do
discurso e do vocabulário empregados pelo cordelista, bem como as relações de poder
que fundamentam, de acordo com o pensamento cristão medieval, a inferiorização e a
demonização da mulher.
13
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo:rtice, 1990. p.25.
14
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2006, p. 23.
15
MOREIRA, Rubenita Alves. Op. cit.
16
MARTINS, Elizabeth Dias. O caráter afrobrasiluso, residual e medieval no Auto da Compadecida.
In: IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, 2003, Belo Horizonte. Anais do IV Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2001. p. 517-522.
7
O texto literário configura-se como fonte não relevante, mas indispensável
para o estudo das mentalidades. O que fica claro nas palavras de Vovelle:
O primeiro meio é tomá-los [os textos literários] bem ingenuamente como
testemunhos elementares de uma realidade social vivida, de uma prática a
respeito da qual eles nos trazem, inocentemente ou não, dados que seria
difícil obter de outras fontes. [...] A longo prazo, que muitos concordam em
reconhecer como o tempo próprio da história das mentalidades, a literatura
veicula as imagens, os clichês, as lembranças e as heranças, as produções
sem cessar distorcidas e reutilizadas do imaginário coletivo. Não chegamos a
falar nem do conto nem da lenda, mas é evidente que toda mitologia passa
por uma expressão literária
17
.
Dessa forma, a literatura de cordel, tratada por Vovelle como testemunho,
funciona também como fonte de investigação e de preservação da cultura popular, uma
vez que registra a vivência, os usos, os costumes e as crenças de uma dada comunidade
aqui, a sociedade nordestina. Isso é possível devido à riqueza de detalhes, de
informações que as fontes literárias permitem vislumbrar, visto a importância do
registro literário.
É importante esclarecer que Residualidade é diferente de Intertextualidade
18
.
Esta acontece no plano do texto, pautada na escrita, é o dialogismo, como definiu
Mikhail Bakhtin
19
. Já a Residualidade acontece no plano da mentalidade, que se vale do
senso comum e pode acontecer inconscientemente ou não: é a assimilação, gratuita e
despretensiosa, de algo que remanesce de uma época para a outra, forte o suficiente para
dar origem a uma nova obra; a uma nova cultura.
A misoginia não é uma invenção, mas um fato histórico. Toda a simbologia que
nos fala da expulsão do homem e da mulher do paraíso traz para a humanidade a perda
da condição divina, essencialmente ligada à mulher, a nódoa do pecado, porque foi ela
que se entregou ao demônio. Pecadora, ela terá de se redimir na submissão e resignação.
Submissão e situações diabólicas nortearão a vida da mulher, construindo a sua
satanização na história, prolongando-se até os dias atuais. Será a Porta do Diabo‖
porque foi ela que tocou a árvore de Satã e quem primeiro violou a Lei Divina.
17
VOVELLE, Michel. Op. cit., p. 55-63.
18
Essa terminologia foi proposta por Julia Kristeva, em 1969, sob influência do dialogismo de Bakhtin.
Sobre este assunto ler: KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França
Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.
19
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs). Dialogismo, polifonia, intertextualidade:
Em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. (Coleção Ensaios de Cultura).
8
Desse modo, as mulheres praticamente ficaram à margem da sociedade,
marginalizadas. Para o sistema patriarcal, que tinha como uma de suas ações a
desvalorização prática e simbólica da mulher, o prestígio masculino e sua identidade
eram reconhecidos e cada vez mais valorizados.
―É a lei da natureza que a mulher deva ser mantida sob o donio do homem
(...) tal é a imbecilidade da mulher que é seu dever, em todos os aspectos, desconfiar de
si própria e obedecer ao marido‖, afirmava Confúcio (551 479 a. C).
A Bíblia constitui-se como uma fonte literária e histórica, onde é possível ter
acesso ao pensamento e a aspectos das épocas nas quais foi escrita e reescrita. Também
é documento oficial da Igreja, através do qual a doutrina da Instituição é veiculada.
Deste modo, dar relevância a elementos blicos significa evidenciar a misoginia, pois
, grosso modo, elementos essenciais que prescrevem a forma de pensar cristã sobre o
gênero feminino: o modo como o deus cristão criou a mulher e as figuras de Eva e de
Maria. A mulher conviveno desenvolvimento do cristianismo com a auréola do mal,
o retrato do negativo, o ―Portão do Diabo.
Entretanto, ela é candidata à salvação: Maria torna-se exemplo. Virgem e mãe,
pura e protetora. A mulher só supera sua natureza maligna, esforçando-se para o perdão,
com dedicação e submissão. Cipriano (208-258) louva uma mulher chamada Bona ―que
foi arrastada por seu marido ao sacrifício e que não poluiu sua consciência; mas mostrou
determinação heroica até o fim
20
‖. A redenção pode vir pelo sacrifício.
Na cultura judaico-cristã a mulher é, geralmente, apresentada como símbolo de
carne, sexo e nudez. Tais elementos condenáveis são remetidos ao pecado original‖.
Alguns Santos da Igreja Católica condenam a mulher como se ela representasse um
poderoso instrumento do diabo. Segundo São Tomás de Aquino (1225 1274): ―O
homem está acima da mulher, como Cristo esacima do homem. É um estado de coisas
imutáveis que a mulher esteja destinada a viver sob a influência do homem
21
.
Ao longo da Idade Média, houve uma metamorfose na concepção da mulher.
São Paulo (5-6), na primeira Carta aos Coríntios, diz que, "as mulheres devem calar na
20
Me Namara apud BLOCH, Howard R. Misoginia Medieval: e a invenção do amor romântico
ocidental. Tradução de Cláudia Moraes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 91.
21
Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. VOL II. São Paulo: Edições Loiola Edição bilíngue, 2002,
1.92.1 p 611.
9
assembleia, pois o lhes é permitido falar..."
22
. Na primeira Carta a Timóteo, ele repete
e amplia o seu pensamento discriminador: ―A mulher deve aprender em silêncio e ser
submissa - Não admitido que a mulher lições ou ordens ao homem. Esteja calada,
pois, Adão foi criado primeiro e Eva depois. Adão o foi seduzido pela serpente ; a
mulher foi e cometeu a transgressão‖
23
. Por isso, essa afirmação, nos séculos X e XI, é
repetida pela maioria dos religiosos. Marbode (sec. XI), bispo de Rennes, considerava a
mulher como "a pior das armadilhas preparadas pelo inimigo", "A raiz do mal, fruto de
todos os vícios‖
24
. Já Godofredo (+ 1123), Bispo de Vandoma dizia que:
Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e
pai, estrangulou João Batista, entregou o corajoso Sansão à morte. De certa
maneira, também, matou o Salvador, por que, se a sua falta o não tivesse
exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer. Desgraçado
sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de
temer quando é amado do que quando é odiado
25
.
Desde a Idade Média ao inicio da Idade Moderna, Jean Delumeau, ao trabalhar o
medo masculino da mulher, argumenta que ela, vista como agente de Satã, leva do
medo espontâneo ao medo refletido, julgada por homens de Igreja e juízes leigos. O
medo do poder feminino é exaltado na história humana e justifica a aversão para com a
mulher. O medo da mulher, afirma o teórico:
não é uma invenção dos ascetas cristãos. Mas, é verdade que o cristianismo
muito cedo o integrou e em seguida agitou esse espantalho até o limiar do
século XX [...] na história a mulher se apresenta com uma ambiguidade
fundamental, especialmente expressa pelo culto das deusas mães. A terra mãe
é o ventre nutridor, mas também o reino dos mortos sob o solo ou na água
profunda... É como essas urnas cretenses que continham as cinzas dos
defuntos [...] São daí, as múltiplas lendas e representões de monstros
meas [...] a mãe ogra (Medéia é uma delas) é um personagem o universal
e tão antigo quanto o próprio canibalismo, tão antigo quanto a humanidade
[...] a deusa hindu, Kali e do mundo (...) a destruidora e criadora (...) a
deusa perigosa à quem é preciso sacrificar todos os anos milhares de animais
[...] espalha cegamente as pestes, a fome, as guerras, a poeira e o calor
opressivo.
26
22
Coríntios 14: 34-35.
23
Timóteo 2: 11-14.
24
DALARUM, Jacques. Olhares de clérigos. In: KLAPISCH-LUBER, Christiane. História das
mulheres no ocidente: a Idade Média. Porto: Afrontamento, 1993,2v. p. 34-38.
25
Ibidem. p. 34-38.
26
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente - 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p.314.
10
É difícil determinar quando o cristianismo tornou-se dividido entre as
possibilidades da salvação e do prazer e, ao mesmo tempo, entre atitudes de igualdade
sexual versus a subordinação da mulher ao homem. Com efeito, é praticamente
impossível dizer o momento preciso em que o sexo foi ―identificado como algo
intrinsecamente mau e como o elemento controlador da moralidade‖
27
.
O ascetismo cristão não se dissocia da tradição pagã, oriental, hebraica, helênica
e romana. O Livro de Henoch, o Livro de Jubileus e o Testamento de Rubem, entre os
Testamentos dos Doze Patriarcas, associam a mulher ao adorno, luxúria, sedução,
fornicação e prostituição
28
.
diversos tipos de discurso de legitimação da desigualdade de gênero. A
mitologia é talvez o mais antigo. Por exemplo, na Grécia, os mitos contavam que,
devido à curiosidade própria de seu sexo, Pandora tinha aberto a caixa de todos os males
do mundo e, em consequência, as mulheres eram responsáveis por haver desencadeado
todo tipo de desgraça.
A religião é outro dos discursos de legitimação mais importantes. As grandes
religiões m justificado, ao longo dos tempos, os âmbitos e condutas próprios de cada
sexo. Na tradição judaico-cristã, o relato da expulsão do Paraíso tem essa função. Eva é
a Pandora judaico-cristã porque, devido ao seu pecado, a humanidade foi desterrada do
Paraíso.
Embora, muitas vezes, a mulher tenha sido desprezada na história da filosofia, o
tema ―mulher‖ foi abordado por muitos pensadores. Textos de importantes filósofos,
como Platão (428 347 a. C), Aristóteles (348 322 a. C) e Kant (1724 1804),
retratam a diferenciação entre os sexos, tentando demonstrar uma suposta inferioridade
natural da mulher. Todavia, é preciso ter presente que as abordagens sobre a mulher
encontram-se numa história da filosofia que foi escrita por homens.
Esses discursos misóginos legitimam a ordem estabelecida, justificam a
hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino em cada
sociedade determinada. São sistemas de crenças que especificam o que é característico
de um e outro sexo e, a partir daí, determinam os direitos, os espaços, as atividades e as
condutas próprias de cada sexo.
27
BLOCH, Howard R. Op. cit.. p. 93.
28
Idem.
11
Propõe-se, portanto, uma reflexão à volta da forma como estes dois modelos
cristãos da mulher m contribuído para a difusão de imagens tipificadas do gênero
feminino - através da acentuação da ligação de Eva ao pecado e de Maria ao divino -,
explorando a vertente dicomica nestes paradigmas do feminino que têm origens no
Cristianismo.
Tendo em vista essa consciente apropriação da misoginia pela Igreja no mundo
medieval e o acúmulo cultural e ideológico que esse procedimento aporta à atualidade,
torna-se relevante refletir, com base em textos da literatura de então, sobre o elemento
misógino na literatura popular em verso.
A proposta deste trabalho é identificar, a partir da leitura e da análise de cordéis, a
misoginia, a partir de resíduos dessa mentalidade herdada do medievo, presentes nessas
narrativas populares.
Tal associação foi possível a partir da percepção de semelhanças entre o
comportamento das personagens dos livrinhos e a representação da mulher medieval. A
distância cronológica foi outro fator que chamou a atenção e estimulou o estudo que se
segue.
O Trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro ―A presença da mulher na
historiografia: da Antiguidade à Idade Média‖ mostra como se deu a formação da
mentalidade antifeminina, baseada, sobretudo, no discurso e em obras de escritores
gregos, os quais influenciaram diretamente os pais da Igreja no construto e na
disseminação da imagem da mulher como gênese do mal. Registra-se ainda a chegada
dessa mentalidade ao Brasil colônia e como isso afetou a mulher nativa e como se
reconfigurou na estrangeira estigmatizada que chegou para ajudar na colonização.
Entrando no universo da literatura popular, observa-se como o imaginário masculino
acerca da dualidade entre Ave e Eva está presente nos versos do cordel como resíduo.
―A mulher como princípio do mal‖, bem como a sua diabolização são discutidos
no segundo capítulo. Nesses pontos será trabalhada a hibridação da mitologia grega, do
fabulário medieval e da etnografia brasileira, convergendo para a mulher que aparece
como devoradora e encarnando os demônios do sexo. Todos esses pontos são
exemplificados com cordéis que versam sobre as categorias menores medievais, a saber:
os homossexuais masculinos e femininos , a prostituta, os judeus, os leprosos e os
12
hereges, todas elas tendo o sexo como elemento comum. As análises dos cordéis
comprovam a cristalização dessa mentalidade, atualizada pelo cordelista.
O terceiro capítulo ―A filosofia do pensamento misógino cristão: Santo Agostinho
(354 430) e São Tomás de Aquino‖ reúne a essência da mentalidade eclesiástica
acerca da mulher e sua inferioridade através de seus discursos, os quais justificam a
misoginia retomando, refazendo e ampliando o discurso de Platão e Aristóteles. De
volta ao universo do cordel, a misoginia encontra-se presente através do vocabulário,
das associações e da maneira como a mulher é descrita pelo poeta popular.
E, centrando-se especificamente nas personagens dessas histórias, percebe-se
como a misoginia está arraigada ao pensamento do cordelista como resíduos da
mentalidade cristã medieval, os quais se cristalizaram ao longo dos tempos, sendo
passados de geração a geração. Ele, ao produzir seu texto, sempre, direta ou
indiretamente, inferioriza e desqualifica a mulher, fazendo uso de palavras, expressões e
associações pornográficas, pejorativas e ambíguas, mostrando que a literatura de cordel
é um veículo de transmissão de valores. A Idade dia serviu como principal
transmissor de arquétipos para o imaginário do Nordeste brasileiro.
A literatura de cordel nordestina é um exemplo da presença desse conjunto que
constitui a Residualidade. Gilmar de Carvalho diz que essa literatura ―vem daquele
fundo de estórias que foram sendo criadas e transmitidas de geração a geração, num
processo de circularidade da cultura
29
. Essas histórias, no entanto, vão adquirindo
novas roupagens ao entrar em contato com a cultura do Nordeste, tendo em vista seu
caráter hibrido e o processo de cristalização.
29
CARVALHO, Gilmar de. ―Vozes e letras‖ in: Revista Cult, janeiro de 2002.
13
1. A PRESENÇA DO FEMININO NA HISTORIOGRAFIA: DA
ANTIGUIDADE À IDADE MÉDIA
Está na natureza do sexo feminino tentar corromper
os homens na terra e por esta razão os sábios
jamais se abandonam em seduções das mulheres.
30
Os homens descobriram remédios contra a mordida
das serpentes; mas ninguém descobriu o remédio
contra a mulher que é pior que uma víbora (...).
Não há nada no mundo pior que uma mulher, exceto
outra.
31
Não se legou ao homem calamidade alguma maior
do que a mulher.
32
A representação do feminino, sob a perspectiva masculina, dependente do
período histórico, quase sempre esteve marcada por relações antagônicas: frágil e forte,
tima e culpada, santa e pecadora, sendo Eva e Maria os principais referenciais
simbólicos dessa oposição nas sociedades ocidentais cristã. Em várias culturas e
sociedades, a mulher é responsável pela introdução do princípio do mal no mundo
33
.
Mas nem sempre a mulher ocupou uma posão inferior e submissa. Há registros
do culto à Grande Deusa ou Grande Mãe em pinturas e estátuas datadas do Paleolítico.
O exemplar mais conhecido é o da famosa Vênus de Willendorf, escultura de pedra
calcária que data do ano de 26.000 a. C. Tais cultos também eram frequentes em
comunidades agrícolas do Neotico. Nas culturas do Médio Oriente e do Egito, a Deusa
Mãe também era cultuada. Ísis, no Egito; Ninli, na Mesopotâmia; Ishtar, na Babilônia;
Anat, em Canoa; Astarte, na Fenícia; e Nidala, na Suméria. Na Hélade, antes da invasão
dos jônios os primeiros indoeuropeus gregos a economia era agrícola e a religião
centrada no culto da Grande Mãe
34
.
No panteão minoano existiam deuses, mas estes eram meras divindades que
acompanhavam à Grande Mãe, sem significar ameaça. Nas sociedades matriarcais, ela
era venerada pela sua capacidade de dar a luz e teria perdido o lugar de prestígio em
30
Leis de Manu, Livro II regra 213 1280 a. C.
31
Eurípides 406 a.C.
32
Alcoo Cap XXIV v. 59.
33
ABREU, Maria Zina Gonçalves de. O Sagrado Feminino: da pré-história à Idadedia. Lisboa.
Edições Colibri: 2007.
34
BRANDÃO, Junito de Sousa. Mitologia Grega. Vol. I. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 1998. P. 103
341.
14
virtude das disputas de terras que evidenciavam a força sica. Mas é no século XII a. C,
com a invasão dos dórios cujo patriarcalismo era culturalmente mais arraigado e a
supremacia bélica exigia o homem como guerreiro que esse quadro começou a mudar
e a mulher perdeu o seu lugar. As sociedades passaram a sobrevalorizar a força física e
a subvalorizar a mulher. As culturas hebraica, Greco-romana, e celto-germânica
constituíram a matriz da cultura europeia com sentimentos e atitudes contrárias à
mulher, as quais serviram de base para as sociedades ocidentais
35
.
Na Antiguidade Clássica, precisamente em Atenas, no século V, também era
possível perceber matizes dessa postura antifeminina
36
, como fica claro na organização
da sociedade. As mulheres, independente da classe social a que pertenciam,
equiparavam-se aos escravos, pois ambas as categorias não tinham qualquer tipo de
direito político. Muitos filósofos gregos a exemplo de Demóstenes (384 - 322 a. C),
crates(469 399 a. C) e Xenofonte (430 355 a. C)
37
(século V a. C), corroboravam
esse pensamento ao verem a mulher de forma negativa e inferior.. Na cultura helênica,
são muitas as obras que tratam da aversão à mulher. Temos como exemplo, Hipólito, de
Eurípedes (485 406 a. C), que declarou abertamente repúdio às mulheres:
Ah! Zeus! Por que impões ao homem o flagelo de mau caráter chamado
mulher e o mostras à luz do sol? Se desejavas propagar a raça dos mortais
não seria às mulheres que deverias dar os meios para isso! Em troca de ouro
ou ferro ou do pesado bronze depositado em teus altares, deverias ter
concedido aos homens meios de comprar, segundo as tuas oferendas, o
direito de ter os próprios filhos e poder viver livres da raça feminina em suas
casas.
38
Exemplos de atitudes antifemininas podem ser encontrados também no
islamismo, no hinduísmo, no zoroastrismo ou mazdeísmo e no budismo
39
. No Alcorão,
35
BRANDÃO, Junito de Sousa. Op. cit.
36
Esse termo significa contrário ao feminino, aversão à mulher, e, embora tenha sido desenvolvido no
século XX, será utilizado em todo o primeiro capítulo, pois, nesse contexto, substitui semanticamente
misoginia que só será explicada posteriormente.
37
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Maria Lacerda de Souza. Obra de domínio público.
Disponível em < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000065.pdf> . Acesso em: 13 de
Janeiro de 2010.
38
EURÍPEDES. Teatro de Eurípedes: Hipólito, Medéia, As troianas. Tradução direta do grego.
Introdução e notas de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1997.
Pág. 54.
39
BELLO, José Luiz de Paiva. ―O poder da religião na educação da mulher‖. Pedagogia em Foco. Rio
de Janeiro, 2001. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/mulher02.htm>. Acesso em: 13
de janeiro de 2010.
15
o livro sagrado dos mulçumanos, escrito por Maomé e, de acordo com este povo,
atribuído ao profeta pelo próprio Deus, várias refencias à inferiorização da mulher
e à consequente valorização do homem: ―Não se legou ao homem calamidade alguma
maior do que a mulher
40
. Nas Leis de Manu, livro sagrado da Índia para instituições
civis e religiosas, datado de 1280 a.C., também muitas regras que fazem menção à
inferioridade feminina, como a que se a seguir, relacionada à natureza maligna e
sedutora da mulher: ―Está na natureza do sexo feminino tentar corromper os homens na
Terra, e por esta razão os sábios jamais se abandonam às seduções das mulheres‖
41
.
Zaratustra (séc. VII a. C) deixou registrado que ―A mulher deve adorar ao homem como
à divindade. Nove vezes pela manhã, de diante do marido, com os braços cruzados,
deve perguntar-lhe: Que desejais, meu senhor, que faça?
42
. E Buda (563 483)
afirmou que ―A mulher é má. Cada vez que se lhe apresente oportunidade, toda mulher
pecará‖
43
.
No judaísmo e no cristianismo, a mulher é responsabilizada pela queda da
humanidade, em virtude do pecado original transformado pelo cristianismo em pecado
sexual cometido por Eva
44
. Essa passagem foi usada pelos doutores da Igreja como
um dos principais argumentos para justificar e fomentar a condição de inferioridade a
que a mulher é submetida.
A participação e o lugar das mulheres na história foram negligenciados pelos
historiadores por muito tempo. Elas ficaram à sombra de um mundo dominado pelo
gênero masculino
45
. Ao pensarmos no papel da mulher no medievo, esse quadro de
exclusão se agrava ainda mais, pois além do silêncio que encontramos nas fontes, os
textos que deixam transparecer o mundo feminino estão impregnados de uma forte
carga antifeminina, a chamada aversão clerical
46
.
A Igreja Católica firmou-se como a mais rica e poderosa instituição do mundo
medieval na Europa Ocidental e suas doutrinas estavam impregnadas na sociedade. Nesse
40
Alcoo, Cap. XXIV, v 59.
41
Leis de Manu, apud LOI, Isidoro. A mulher. Tradução Julio E. Emöd. São Paulo. Editora Jabuti: 1988,
p. 3-4.
42
Zaratustra apud. LOI . ibidem, p. 9.
43
Buda apud LOI idem p. 9.
44
A BÍBLIA SAGRADA. São Paulo:Edições Paulinas, 2005, p. 5
45
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: editora UNESP, 2002. P. 75-79.
46
DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Escrever a História das Mulheres. In: DUBY, Georges e
PERROT, Michelle (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Média. Porto:
Edições Afrontamento/São Paulo: Ebradil,1995, p. 7-8.
16
peodo, o pecado original foi transformado pelo cristianismo em pecado sexual e a
abominação do corpo e do sexo atingia o ápice no corpo feminino. De Eva à feiticeira do
final da Idade Média, o corpo da mulher era tido como o lugar de eleição do Diabo. De
acordo com Rivair Macedo,
A inferioridade feminina provinha da fragilidade do sexo, da sua fraqueza ante
os perigos da carne. No centro da moral cristã existia uma aguda desconfiança
em relação ao prazer. Ele, segundo os moralistas, mantinha o espírito
prisioneiro do corpo, impedindo-o de se elevar em relação a Deus.
47
Desta forma, diante da fragilidade da mulher, elas seriam essencialmente
impulsionadas para o pecado. A fornicação deveria ser refreada e, nesse sentido, a Igreja via
no casamento um modo de controlar e de disciplinar a sexualidade. Transformada em
sacramento, a união conjugal tornou-se vculo de controle do comportamento social. A
Igreja Católica pregava o ascetismo para os homens e a virgindade para as mulheres e
tentava limitar o prazer a dentro do casamento
48
.
Nesse período, as mulheres estavam subordinadas legalmente aos homens:
ao marido, ao pai ou ao irmão. As mulheres camponesas estavam subordinadas ainda ao
senhor feudal, não podendo casar sem a permissão do mesmo.
Sobre a queso da valorização da virgindade (presente ainda hoje na sociedade
brasileira, embora com menores proporções) durante o peodo medieval na Europa, Pilosu
diz que as mulheres eram "convidadas" (leia-se coagidas) a desistir do pecado carnal
através de histórias nas quais a perda da virgindade ou os pensamentos nocivos (sexuais)
eram imediatamente punidos por Deus
49
.
As mulheres deveriam defender a todo custo a sua virgindade. ―Esperava-se que
fossem difíceis de se render, capazes de resistir ao assedio executado contra um bem
cultural, baluarte que garantia a identificação da mulher direita, isto é, daquela integrada
aos valores sociais
50
.
Nessa lógica de pensamento da mulher associada à tentação, faz sentido a
perseguição das mulheres durante o período inquisitorial. O escrito Malleus Maleficarum,
47
MACEDO, José Rivair. A mulher na idade Média. São Paulo: Contexto, 2002. p. 23.
48
Vale ressaltar que, num primeiro momento, a Igreja não era favovel à união conjugal entre o homem e a
mulher. Denegria a imagem desta para que os homenso gastassem seus rendimentos com ela e para que, ao
morrer, deixassem seus bens para a Igreja. Ma o casamento foi institucionalizado no século XII.
49
PILOSU, Mário. A mulher, a luria e a Igreja na Idade Média. Tradução de Maria Dolores
Figueira. Portugal: Editorial Estampa, 1995, p. 97.
50
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo Colonial. São Paulo: Paz e
Terra 2003, p. 346.
17
do período em questão, afirmava que "se hoje queimamos as mulheres é por causa de
seu sexo pois existe um defeito na formação da primeira mulher [...] ela é assim um ser
imperfeito, sempre enganador"
51
.
Foi ao longo do século XIII, período compreendido como Idade Média, que a
Igreja Católica, através da Inquisição
52
, passou a exercer um forte controle sobre a
conduta da sociedade, incluindo aí homens e mulheres que transgrediam suas leis e
recebiam, por isso, pesados castigos sobre o seu corpo: que eram, muitas vezes,
queimados, apedrejados ou mesmo enforcados em praça blica. As mulheres
encontravam-se em uma situação mais depreciada, pois foram as principais timas de
um discurso preconceituoso contra elas, produzido por homens letrados que, ―afastados
do que fosse acidental ou singular nas vidas femininas, investiam em engordar uma
mentalidade coletiva que exprimisse um profundo antifeminismo e um enorme desejo de
normatizar a mulher‖
53
.
Para Howard Bloch, essa campanha contra o feminino, desde a passagem da
criação da espécie humana no Gênesis bíblico, tem uma explicação lógica,
[...] a causa e a justificação do antifeminismo medieval é uma mera
consumação ou conclusão lógica do que está implícito na criação de Adão e
depois de Eva. Pois a mulher na criação jeovista, concebida desde o começo
como secundária, derivada, subsequente e complementar, assume o fardo de
tudo aquilo que é inferior, depreciado, escandaloso e perverso, durante a
articulação fundadora dos sexos nos primeiros séculos do cristianismo
54
.
Este discurso acabava por disseminar conceitos sobre o gênero feminino e
apontava alguns traços como característicos das mulheres os quais, em sua maioria,
denegriam a sua imagem. A mulher era considerada ―origem do mal e da infelicidade,
51
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras Malleus Maleficarum.
Tradução de Paulo Fróes. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1991. p. 116.
52
A Inquisição tem inicio em 1184 com o decreto Ad Aboledem do Papa Lúcio III. Em 1198, Inocêncio
III criou uma comissão de monges para investigar e dar continuidade as perseguições aos hereges. Com
Gregório IX, houve a ampliação do combate às heresias e a consagração da Inquisição como instrumento
do papado, quando os dominicanos passaram a ter a função de fazê-la funcionar. Em 1252, a bula Ad
Extirpanda, emitida por Alexandre IV, recomendava o uso da tortura contra os hereges. Na primeira
metade do século XV, a Inquisição começa a funcionar mal e se revigora com o Papa Sisto IV em 1478,
na Espanha. A perseguição aos heréticos em Portugal foi instituída, em 1536, pelo rei João III e os
primeiros autos de fé aconteceram a partir de 1540. LOPEZ, Luis Roberto. História da Inquisição. Porto
Alegre: Mercado Aberto 1993.
53
DEL PRIORE, Mary. ―Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil
Colônia‖. In: História das mulheres no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995, p. 17.
54
BLOCH, Howard. Op. cit., p. 34.
18
potência noturna, forças das sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno da ordem
e da razão lúcida.
55
Os autores do Malleus Maleficarum não deixaram vida quanto à sua opinião
sobre as mulheres, ―convém observar que houve uma falha na formação da primeira
mulher [...] E como, em virtude desta falha, a mulher é animal imperfeito, sempre
decepciona e mente‖.
56
George Duby, através de um estudo sobre as damas do século XII, diz que os
homens da Igreja descobrem na natureza feminina três vícios maiores, entre outros
pecados: elas desviam o curso das coisas‖ (através da vaidade), são ―hostis à tutela
masculinae possuem os maiores dos cios em sua natureza: a luxúria, desejo que as
queima por dentro, e as faz ―correr atrás dos amantes‖
57
.
A mulher, ao mesmo tempo em que despertava desejo nos homens, também
despertava medo, isto porque o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da
Igreja Católica, quanto por médicos, como um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e
o diabo se digladiavam‖
58
. A sexualidade feminina deveria ser vigiada e adestrada de
acordo com os preceitos da Igreja Católica. O sexo era sinônimo de mal, de sujo, de
perverso. A mulher deveria praticá-lo com fins de procriação. Por ser considerada
princípio do mal, ela era classificada como minoria, fazendo-se presente em todas as
categorias menores da Idade Média, segundo a concepção cristã.
A ideia do feminino ligado ao mal está presente no cristianismo desde o século
IV, quando se fortaleceu como religião
59
. Durante este período, aproximadamente três
séculos, o cristianismo passou por um processo de assimilação de várias doutrinas. A
especulação sobre a carne, diretamente relacionada à mulher, e consequentemente sobre
o prazer sexual já era discutida desde Platão que em algumas de suas obras A
República, Timeu e As leis pontuou a inferioridade da mulher diante dos homens e a
55
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 3 ed. Rio de
Janeiro:Editora Rosa dos Tempos, 1998, p. 168.
56
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. p. 116.
57
DUBY, George. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das letras, 2001. Sobre este assunto
consultar o capítulo I: Os pecados das mulheres, p. 11.
58
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. ―As normas do controle‖. In: Georges Duby e Michelle Perrot.
História das mulheres: Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 78.
59
Em 313, através do Edito de Milão, o imperador Constantino liberdade de culto aos cristãos,
colocando o cristianismo em pé de igualdade com o culto pagão. E somente no final do século V, com o
imperador Teodósio, através do Edito de Tessalônica, é que o cristianismo passou a ser a religião oficial
do império romano. De perseguidos passaram a perseguidores. HILL, Jonathan. História do Cristianismo.
Tradução de Rachel Kopit Cunha, Juliana A. Saad e Marcos Capano. São Paulo: Edições Rosari, 2008.
19
incapacidade desta de controlar sentimentos e emoções e por isso precisar ser
controlada.
Em sua obra A República, no livro IV, ele retrata as mulheres como principalmente
governadas pelos desejos, apresentando-as na classe dos indivíduos em que a pior parte
governa a melhor, ou seja, declara que: ―a multidão de variados apetites, prazeres e
sofrimentos se encontram principalmente nas mulheres e escravos
60
‖.
No Timeu, por exemplo, Platão apresenta uma versão da história da criação que
postula a superioridade masculina sobre a natureza feminina em virtude da capacidade dos
homens de controlar sensações e sentimentos. No primeiro ato da criação, na qual todas as
almas nasceram sem desvantagem, a natureza humana surgia na forma da raça superior
que devia ser chamada ―homem‖. Neste sentido, Platão relata a criação das mulheres da
seguinte maneira:
He who lived well during his appointed time was to return and dwell in his
native star, and there he would have a blessed and congenial existence. But if he
failed in attaining this, at the second birth he would pass into a woman
61
De acordo com esse relato, Platão caracteriza as mulheres como perigosamente
influenciadas pelas sensações, sentimentos e apetites e reafirma que a natureza primordial
humana é masculina, e todas as almas que dominaram as paixões corporais mantêm os
privilégios dessa estirpe superior. Portanto, as mulheres são, por definição, a
corporificação daquelas almas que sucumbiram à tentação e vivem na iniquidade. Para
ele, as mulheres em geral exibem um desvalimento emocional que os homens devem
evitar se quiserem tornar-se apropriados para a liberdade cívica. Assim, as mulheres são
identificadas com as qualidades dos piores homens.
em Leis, Platão argumenta em favor da inclusão das mulheres na instituição da
mesa blica, não porque mereçam ou sejam iguais aos homens, mas porque sua
fragilidade exige controle legislativo. Comenta-o:
And, in consequence of this neglect, many things have grown lax among you,
which might have been far better, if they had been only regulated by law; for
the neglect of regulations about women may not only be regarded as a neglect
60
PLATÃO. A República. Tradução de Eleazar Magales. Fortaleza: Edições UFC, 1986.
61
PLATÃO. Timaeus Tradução de B. Jowett. Disponível em <
http://classics.mit.edu/Plato/timaeus.html> acesso em 15 de Janeiro de 2010. (Ele que viveu bem durante
seu tempo foi nomeado para voltar e habitar em sua estrela natal, e lá ele teria uma existência abençoada e
agradável. Mas se ele falha em alcançar isso, no segundo nascimento, ele se tornaria mulher).
20
of half the entire matter (Arist. Pol.), but in proportion as woman's nature is
inferior to that of men in capacity for virtue, in that degree the consequence of
such neglect is more than twice as important
62
.
Esses pensamentos serviram de base e foram amplamente utilizados pelos pais
da Igreja para fundamentar filosoficamente a doutrina cristã que vigorou durante toda a
Idade Média. A ideia de que as mulheres eram inferiores aos homens não mudou e elas
continuaram sendo vistas pelo clero como criaturas perigosas e mais suscetíveis às
tentações do diabo e, por isso, deveriam estar sempre sob os cuidados do homem, uma
vez que era sob o jugo deste que residia a razão.
Os clérigos medievais basearam-se, sobretudo, no Gênesis bíblico
63
para
disseminar suas ideias antifemininas. Segundo Bloch, essas ideias eram apenas uma
conclusão lógica daquilo apresentado pelas escrituras sagradas, pois expõe a figura
feminina com caráter ―secundário, derivado, subsequente, complementar‖, assumindo o
fardo de tudo aquilo que é ―inferior, depreciado, escandaloso e perverso‖
64
.
De acordo com Maria Zina Gonçalves de Abreu, ―é particularmente importante
sublinhar a interpretação do acto da criação (Gênesis) que veicula a ideia, que atravessa
todo o tecido da cultura ocidental, de que o homem foi criado à ―imagem de Deus‖ e de
que a mulher é uma versão imperfeita dessa imagem
65
. Assim, a autora defende que
Através dos séculos, facto e ficção frequentemente se misturaram na interpretação da
Bíblia, nomeadamente na do Antigo Testamento e das Epístolas de São Paulo, cujas
leituras tiveram por objectivo atestar de forma sobranceira a supremacia e o donio
masculinos, enquanto veiculavam uma injuriosa visão da mulher. E seguindo o mesmo
raciocínio, o historiador Georges Duby diz que
Incontestavelmente, ela é inferior a Adão. Deus assim decidiu. Criou o
62
PLATÃO. Leis. Tradução de B. Jowett. Disponível em
<http://www.gutenberg.org/files/1750/1750.txt> Acesso em 19 de Janeiro de 2010. (E, em consequência
desta negligência, muitas coisas tornaram se ambíguas em você, o que poderia ter sido muito melhor, se
tivessem sido apenas regulamentadas por lei, para a negligência dos regulamentos das mulheres deve
apenas ser considerada como um abandono de metade do caso inteiro (Pol Arist..), mas na proporção em
que a natureza da mulher é inferior a dos homens em termos de capacidade e virtude, em consequência de
que o grau de negligência é duas vezes mais notável.).
63
―Mandou, pois, o senhor Deus um profundo sono a Adão, e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma
de suas costelas, e pôs carne no lugar dela. E da costela, que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus
uma mulher; e a levou a Adão e Adão disse; eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne da minha
carne. Ela se chamará virago porque do varão foi tomada. (Gênesis 2-18:24).
64
BLOCH, R Howard. Op. cit. p. 35.
65
ABREU, Maria Zina Gonçalves de. O Sagrado Feminino - da Pré-história à Idade Média. Lisboa:
Edições Colibri, 2007, p.75.
21
homem à sua imagem, a mulher, de uma parte mínima do corpo do homem,
como sua marca, ou melhor, seu reflexo. A mulher nunca é mais do que um
reflexo de uma imagem de Deus. Um reflexo, é sabido, não age por si. o
homem está em posição de agir. Os movimentos da mulher, passiva, são
comandados pelos do seu companheiro. É essa a ordem primordial. Eva
abalou-a ao vergar Adão ao seu poder. Mas Deus interveio, pô-la de novo no
seu lugar e agravou a sua submissão ao homem para castigo do seu pecado.
66
Heinrich Kramer (1430 1505) e James Sprenger (1435 1495), inquisidores
dominicanos, autores do livro Malleus Maleficarum
67
(O martelo das feiticeiras),
justificam a inclinação natural da mulher para a maldade, uma vez que tem sua gênese
ligada à costela, que é curva e vai contra a retidão do homem
68
. Este, criado diretamente
por Deus a sua imagem e semelhança, estaria mais próximo do Criador, bem como de
tudo o que é espiritual. Ainda sobre a mulher, quando de sua criação, Deus criou os céus
e a terra, a flora e a fauna, o homem e, por último, a mulher criada, apenas, para ser
adjutório do homem, o que a deixa em condição inferior a este, transformando-a em sua
servidora, com a obrigação de obedecê-lo, como afirma Graciano (359 383):
Não foi por nada que a mulher foi criada, nem da mesma matéria da qual foi
criado Adão, mas da costela de Adão (...). Porque Deus não criou no começo
um homem e uma mulher, nem dois homens, nem duas mulheres; mas o
primeiro homem, e então a mulher a partir dele (...). É natural que as
mulheres sirvam os homens, como os filhos os pais, por que é justo que o ser
inferior sirva o superior
69
.
Para evidenciar essa ideia de inferioridade, tem-se a narrativa do Pecado
Original. Deus proibiu Adão e Eva de comerem o fruto da Árvore do conhecimento do
Bem e do Mal, porém Eva persuadida pela serpente provou-a e convenceu Adão a
prová-la
70
. Todos foram castigados por essa desobediência: a serpente foi condenada a
rastejar, e o primeiro casal humano foi expulso do Jardim do Éden. Adão foi condenado
a cultivar o solo e retirar dele seu sustento. Eva ficou com a carga mais pesada da
culpa, foi condenada a sentir dores na gravidez e a ser dominada pelo marido
71
. Essa
66
DUBY, Georges. Eva e os Padres. Lisboa: Editorial Teorema, 1996, p.70.
67
Escrito no século XV a pedido do papa Inocêncio VIII, o Malleus Maleficarum foi considerado o mais
cruel e demoníaco guia utilizado pela Inquisição, durante quatro séculos, para aplicar castigos e punir os
hereges em nome de Deus.
68
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. p. 116.
69
BLOCH apud GRACIANO. Op. cit. 1995. p. 33.
70
Gênesis: 3: 1-7.
71
Gênesis: 3: 14-24.
22
condenação feminina também serviu como um dos argumentos usados pelos clérigos
medievais para institucionalizarem o casamento e a moral cristã
72
.
Do século III ao XIII, os registros mais notáveis sobre as mulheres saíram das
os de homens da Igreja. Muitos clérigos as consideravam misteriosas, não
compreendiam, por exemplo, como elas geravam a vida e curavam doenças utilizando
ervas
73
. Dessa forma, a maior parte das autoridades eclesiásticas desse período via a
mulher como um ser demoníaco, portadora e disseminadora do mal. Isso a tornava
por natureza e atraída pelo vício
74
. Esse desconhecimento da natureza feminina causava
medo aos homens. Os clérigos se apoiaram no Pecado Original de Eva para ligá-la à
corporeidade e inferiorizá-la. Isso porque, conforme o texto bíblico.
De acordo com Silvia Nunes
75
, a concepção de mulher que predominou da Idade
Média até o Renascimento é oriunda do Cristianismo primitivo e associa a mulher ao
carnal, ao mal e ao desregramento sexual. Essa associação da mulher com o carnal é
também abordada por H. Bloch que, a partir dos escritos dos primeiros padres da Igreja
afirma ter ocorrido uma feminização da carne ou seja, de acordo com a metáfora da
mente e do corpo, a associação do homem com mens ou ratio e da mulher com o
corporal
76
‖.
Até aqui, pode-se observar uma mentalidade disseminada, principalmente pelos
homens, acerca da inferiorização da mulher. Afim de uma contextualização mais
específica, para então chegar ao objeto de estudo do trabalho, faz-se necessário analisar
como essa imagem feminina chegou às terras brasileiras recém-descobertas e como ela
se fundiu às culturas já existentes. Para tanto, a pesquisa irá se deter, nesse momento, às
mulheres da colônia uma autóctone e uma estrangeira aquela cuja cultura foi
imposta e esta experienciadora de uma cultura antifeminina.
72
BLOCH, Howard. Op.cit. 1995. p. 25.
73
DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). História
das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento/São Paulo:
Ebradil, s/d, p. 29-63.
74
PILOSU, Mário. Op. cit. P.29-43.
75
NUNES, Silvia Alexim, O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000, p.255.
76
BLOCH, Howard. Op.cit. 1995. p. 17.
23
1.1. A mulher no Brasil colônia
Branca para casar, mulata para foder, negra
para trabalhar.
77
Em um primeiro olhar sobre as terras recém-descobertas, não se pode utilizar
levianamente o vocábulo misoginia, no sentido eurocêntrico, pois pelos vários relatos,
registrados em documentos oficiais, as atitudes dos povos autóctones em relação ao
corpo, à mulher e à sexualidade não correspondiam às ideias disseminadas na Europa.
Os relatos dos colonos redundam em apresentar uma figura feminina diferente daquela
conhecida por eles.
(...) E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e
certo era tão bem feita e o redonda, e sua vergonha tão graciosa que a
muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não
terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como
nós. (...) Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que
assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do
joelho até o quadril e a dega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o
resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim
tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta
inocência assim descobertas, que o havia nisso desvergonha nenhuma
78
Não passa despercebido que além de informar o Senhor El rei, Caminha faz observações
sobre os povos que havia encontrado e sobre seus costumes. A figura feminina apresentada é, de
imediato, comparada com aquela europeia, evidenciando que para os povos da nova terra a
nudez e o corpo não tinham relação nenhuma com o mal num primeiro momento. Mas, Logo ao
final do documento, informações que demonstram o início da imposição cultural e da moral
do colonizador que os aborígenes suportariam posteriormente
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a
qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e
puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, o se lembrava de o
estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal
que a de Adão não seria maior -- com respeito ao pudor
79
.
O pano oferecido para a habitante daquelas terras pode ser entendido também
como um elemento simbólico, que traria às comunidades autóctones os preceitos e
77
Este Adágio vem registrado por H. Handelmann na sua História do Brasil, datado de 1931.
78
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El rei D. Manuel I sobre o achamento
do Brasil. Coleção A obra prima de cada autor. São Paulo: Martin Claret, 2002.
79
CAMINHA, Pero Vaz de. Op. cit.
24
ideias de corpo, pecado e demonização do povo colonizador. A nudez indígena
apresentada na carta de Caminha como inocente, posteriormente, logo cede espaço às
ideias de luxúria, fazendo com que o corpo fosse o melhor meio de incitá-la.
As índias resistiam em vestir roupas alegando o incomodo em retirá-la na
hora dos banhos prática arraigada entre as mulheres que chegavam a tomar
doze banhos em um único dia e durante a faina diária elas preferiam enfrentar
o calor do sol, esfolar a pele na terra e nas pedras a suportar um tecido sobre
o corpo. As índias se deleitavam em andar nuas
80
.
Até o ano de 1530 pouca movimentação cultural foi evidenciada em território
brasileiro, pois até então a terra o despertava interesse no povo lusitano e os
portugueses que chegavam ao Brasil tinham o interesse apenas de resguardar a terra
para a coroa portuguesa. Nos anos subsequentes, com o repentino interesse dos colonos
pela nova terra, muitos homens e mulheres lusitanas chegariam ao novo continente,
trazendo em seus navios não só mantimentos, roupas e materiais portugueses, mas
também uma bagagem cultural europeia, produto da Idade Média.
A respeito dos colonos que aqui chegaram, sabemos que muitos vieram
acompanhados por mulheres, mas quanto a sua exatidão numérica, não há certezas. Os
documentos encontrados são as cartas de clérigos, como brega, que escrever a D.
João III solicitando o envio de mulheres brancas, pois sua presença era tão ínfima que
os luso-brasileiros recorriam às mulheres da terra, e com elas viviam em pecado (nem
todos contraíram matrimônio com elas). Mesmo com essa e outras petições, vieram um
número resumido de órfãos e degredados (lê-se prostitutas e penitenciadas pela justiça
eclesiástica e civil), muitas das quais retornaram mais tarde para a metrópole, pouco
contribuindo para o povoamento da terra.
Não vieram mulheres solteiras, exceto, ao que se sabe, uma escrava
provavelmente moura, que foi objeto de viva disputa. Consequentemente, os
recém-chegados acasalaram-se com as índias, tomando, como era uso na
terra, tantas quantas pudessem, entrando a produzir mais mamelucos. Os
jesuítas, preocupados com tamanha pouca-vergonha, deram para pedir
socorro do reino. Queriam mulheres de toda a qualidade, até meretrizes,
porque "há aqui várias qualidades de homens [...] e deste modo se evitarão
pecados e aumentará a população no serviço de Deus" (carta de 1550 in
80
RONALD, Raminelli. ―Eva Tupinambá‖ In: DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil.
8ª Edição. São Paulo: Contexto, 2006, p. 26.
25
Nóbrega 1955:79-80). Queriam, sobretudo, as órfãs Del rei, que se casariam,
aqui, com os bons e os ricos
81
.
Por volta de 1552 essas jovens começaram a ser enviadas para o Brasil para
preencher a função matrimonial, desposando os senhores de bem e, a partir daí, vieram
rias ‗cargas‘ de mulheres. Elas serviram para a colonização como complemento e
preenchimento demográfico do novo território e como defesa do catolicismo contra a
propagação da Reforma Religiosa.
[...] A condição feminina na Colônia exigia medidas que integrassem ao
processo de civilização de mores que ocorriam no Velho Mundo. Daí a
necessidade de um processo normativo às mulheres coloniais. Elas deviam
tornar-se esposas e mães, complemento do homem, ventre fecundo que
assegurasse perenidade dentro do quadro do sagrado matrimônio. Como
mães, tinham que se erguer como paladinas da difusão do catolicismo e do
povoamento ordenado da Colônia. Ao contrário de gerar desclassificados fora
das normas institucionais, que se concentrassem em parir súditos fiéis aos
bandos dos governadores e às pastorais diocesanas.
82
Como a intenção colonizatória portuguesa em território brasileiro era importante
para alicerçar as bases da coroa no terririo, não havia outra opção para os europeus a
o ser de se flexibilizarem quanto ao sexo e à mulher. A preocupação com a liberdade
sexual no inicio da história colonial pode ser encontrada nos textos de religiosos
portugueses. Essa liberdade transformou o território em um ambiente de conflitos e
contrastes, a mulher nativa, a presente antes da colonização, gozava de uma maior
liberdade, pois, como ainda não era cristã, não era considerada pecadora, mas aquela
que chegou através das embarcações, branca e minoria, sofreu sanções e estava envolta
em submissão ao senhor, a família, ou ao esposo.
O isolamento árabe em que viviam as antigas sinhás-donas, principalmente
nas casas grandes de engenho, tendo por companhia quase que
exclusivamente escravas passivas; sua submissão muçulmana diante dos
maridos, a quem se dirigiam sempre com medo, tratando-os de senhor.
83
A partir de então, durante o processo colonizatório do Brasil, o papel da mulher
brasileira perpassa por funções às vezes exóticas, ora degradantes e até desumanas. A
81
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das
Letras, 1995. p. 89.
82
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: Condição feminina, maternidades e mentalidades no
Brasil Colônia. Rio de Janeiro, RJ: José Olímpio; Brasília, DF: Edunb, 199,. p. 334.
83
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da família brasileira sobre sob o regime da
economia patriarcal. 34ª Edição, Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 338.
26
mulher nativa, a escrava e a europeia tinham funções e representações distintas para a
sociedade que se tornam evidentes no que tange às relações sejam sexuais, para
satisfazer os prazeres da carne, sejam ecomicas e religiosas através do matrimônio.
Segundo Mary Del Priore,
As relações de gênero serviram para a construção de estereótipos que
estiveram presentes no cotidiano colonial e que mais tarde estariam presentes
na historiografia determinando uma maneira de ser mulher brasileira. A
diferenciação étnica da mulher determinava sua respectiva função social no
Brasil colonial. Enquanto a nativa e, mais tarde, a negra contribuía com o
corpo e o trabalho a mulher branca trazia da metrópole o modo de viver e a
maternidade que garantia o alvor da pele.
84
O casamento, num primeiro momento, fugiu a tantas regras e mandamentos da
Igreja e os concubinatos eram visíveis. O matrimônio, então tornou a alternativa
imposta às mulheres da colônia que conviviam com a traição e submissão. Elas casavam
muito cedo ―era comum encontrar mães de treze anos‖
85
. Os casamentos consanguíneos,
principalmente entre tio e sobrinho e primos e primas, era muito comum no período em
questão. Essas relações tinham como principal objetivo a permanência do patrimônio na
família e a pureza do sangue de origem nobre ou ilustre‖
86
. O casamento consanguíneo
chegou ao fim e trouxe outra modalidade de casamento também pautada no fator
econômico. Nesse novo modelo, os maridos, que deviam ser de boa família, eram
escolhidos pelo pai, entenda-se boa família de nome ou abastada.
Abafadas sob as caricias de maridos dez, quinze, vinte anos mais velhos; e
muitas vezes inteiramente desconhecido das noivas. Maridos da escolha ou
da conveniência exclusiva dos pais. Bacharéis de bigodes lustrosos de
brilhantina, rubi no dedo, possibilidades políticas. Negociantes portugueses,
redondos e grossos; suíços enormes; grandes brilhantes no peitilho da camisa,
nos punhos e nos dedos, oficiais. Médicos. Oficiais. Senhores de Engenho.
87
Mesmo assim, distantes da metrópole, as mulheres da colônia gozavam de maior
liberdade até a chegada do Tribunal do Santo Ofício, pois como se percebe não
registros de fogueiras no Brasil. Verdadeiramente, os relatos de bruxaria ligados à
mulher na colônia, deixaram de ser estritamente femininos e passaram a compor o
imaginário sobre os povos indígenas. Entretanto, as mulheres não deixavam serem
84
DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 78.
85
FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 349.
86
FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 342.
87
Ibidem. p. 340.
27
acusadas de malefícios, principalmente referentes à sua sexualidade. Abundam casos de
mulheres em que, antes ou durante o casamento, relacionavam-se com outras, amigas ou
parentas. Essas mulheres levadas aos julgamentos dos inquisidores, que estavam nessas
terras, geralmente não sofriam penalizações severas, como tortura ou morte, pois o
relacionamento de mulher com mulher, como se verá, o é entendido pela Igreja como
ato de extremo pecado, pois como poderia haver fornicação sem um varão, mbolo da
fertilidade e potência sexual?
Segundo o estudioso Emanuel Araújo, no Brasil colonial, ―abafar‖ a sexualidade
feminina seria o objetivo de Leis do Estado, da Igreja, e o desejo dos pais, visto que ―ao
arrebentar as amarras (...) a sexualidade feminina (...) ameaçava o equilíbrio doméstico,
a segurança social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas
88
‖. Para isso,
usavam como argumento a ideia do homem superior a qual cabia o exercício da
autoridade. Todas as mulheres carregavam o peso do pecado original cometido por Eva,
e, desta forma, deveriam ser vigiadas de perto e por toda a vida.
A ideia da inferiorização da mulher era tão vigente que, na segunda visita do
Santo Ofício ao Brasil, em meados de 1617, um padre recontou o mito do Éden,
menosprezando mais ainda a criação da mulher, colocando-a como excremento.
Quando Deus tirara a costa do homem para criar Eva, viera um cão e a comera, e que
do que saíra pela parte traseira do cão fizera Deus a mulher, e que assim ficara Deus
fazendo a mulher da traseira do cão e não da costa do homem
89
‖.
A mulher desse período independente da cor, nação ou classe social era vista
também como a origem de todos os males, as portas do inferno. Elas eram tão
discriminadas pela sociedade masculina que a própria medicina desconhecia o corpo
feminino e tudo era atribuído a demônios que viviam em seus corpos fazendo-as
padecer cólicas, dores do parto, menstruação etc.
E esse desconhecimento culminou na associão do feminino com práticas
demoníacas, pois acreditavam que o diabo se manifestava nas mulheres através de
doenças. Qualquer problema físico, por mais simples e natural que fosse, de acordo com
88
ARAÚJO, Emanuel. ―A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia‖ In: DEL PRIORE, Mary.
História das Mulheres no Brasil. 8ª Edição. São Paulo: Contexto, 2006. p. 45.
89
Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil Denunciações da Bahia (1618 Marcos
Teixeira), Introdução Rodolfo Garcia. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 49, 1927.
apud SOUZA. Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa de Santa Cruz Feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 106.
28
os cnicos coloniais, tinha explicação na feitiçaria. O útero, por exemplo, era alvo
dessas associações. Ele era tido como possível espaço para vinganças mágicas. Alberto
Magno afirmava que ―a mulher menstruada carregava consigo um veneno capaz de
matar uma criança no berço
90
‖. Na literatura médica da época é possível encontra
referências sobre o assunto:
O sangue mensal é o que mais das vezes costumam usar as mulheres
depravadas para o benefício amatório e conciliar amor e afeição; sucede que
tão longe está assim de ser, antes gera gravíssimos acidentes, como de
veneno e faz as pessoas doidas e furiosas, como tem demonstrado a
experiência
91
.
A misoginia estava arraigada ao costume dos colonos, mas enquanto a mulher
foi aprisionada à família e ao convento, as práticas religiosas relacionadas ao demônio
volveram-se em grande parte para os aborígenes. Naquela época, os costumes
heterodoxos eram vistos como indícios de barbarismo e da presea demoníaca. Do
nascimento à velhice, as mulheres tupinambás recebiam tratamentos e tarefas baseadas
na selvageria e com marcas de barbarismo. Esta pode ser uma visão estrangeira das
mulheres tupinambás, mas para aquele povo, tudo era feito seguindo as determinações
de sua concepção da natureza humana.
Motivados pelo desconhecimento do povo nativo, não tardou para que
colonizadores associassem as suas práticas religiosas àquelas conhecidas na Europa, que
subvertiam a verdade disseminada de Cristo e do catolicismo. O canibalismo, a cor
escura, a nudez e os erros demoníacos representavam a segunda degeneração, a segunda
queda‖
92
, fazendo com que a vida religiosa dos índios passasse a ser alvo de
perseguições. E por essa razão os jesuítas tentavam persuadir os índios à conversão,
pois a viam como única alternativa capaz de redimi-los do pecado.
Envoltos numa atmosfera stica, os rituais ameríndios passaram a configurar,
para os portugueses, os sabás, que de acordo com Laura de Mello Sousa, ―se constituiu
a partir de trocas intensas entre universos culturais diversos e socialmente distintos‖
93
.
Ela ainda cita no seu trabalho alguns depoimentos de padres sobre os rituais indígenas,
90
DEL PRIORE, Mary. ―Magia e medicina na colônia: o corpo feminino‖. In: DEL PRIORE, Mary.
História das Mulheres no Brasil. 8ª Edição. São Paulo: Contexto, 2006. p. 102.
91
PEREIRA, Bernardo. Anacefaleose médico, teológica, mágica, judica, moral e potica. Lisboa:
Miguel Menescal da Costa, 1752. p. 9. apud DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil.
Edição. São Paulo: Contexto, 2006. p. 102.
92
RONALD, Raminelli. Op. cit. p. 41.
93
SOUZA. Laura de Mello. ―Em torno de um mito: a elipse do sabá‖. Racional ou sobrenatural? Um caso
de bruxaria. Revista Humanidades. Vol. 9 N° 1. Brasília: Editora UNB. p. 6. 1994.
29
que, muitas vezes, sem fazer alusão direta, se referiam aos sabás europeus que em muito
se assemelhavam aos rituais ameríndios. Como durante a Idade Média, não tardou para
que se associassem as religiões afrodescendentes a rituais pagãos.
Mesmo no medievo, registros do sabá são quase inexistentes e de questionável
veracidade, evidenciando que sua existência pode estar ligada ao imaginário da
Inquisição e não dos colonos. Por isso, a associação do sabá aos rituais existentes no
Brasil,
Na realidade, tratava-se de algo bem diferente, localizado na raiz da umbanda
e dos candomblés atuais: os calundus e catimbós. Se fosse de fato válida a
diferenciação entre feitiçaria e bruxaria com base no caráter individual da
primeira e coletivo da segunda, poder-se-ia dizer que a bruxaria colonial
residiu basicamente nos calundus e catims
94
.
Como sempre associavam as práticas demoníacas aos segmentos da sociedade
perseguidos e vitimas de discriminação, não tardou que no Brasil, de regime
escravagista, as religiões indígenas e, principalmente, as afro-brasileiras fossem tão logo
ligadas a elas.
Outre les eaux de lustrations & diabolique ablutions pratiquees par ces
Barbiers ils usent d´une façon particuliere à comuniquer leur esprit aux
autres: & c´est par Le moye de l´herbe de Petun, laquelle estant mise dans
une cane de Roseau, ces Sorciers em atirant la fumee, laquelles ils dégorgent
sur les assistans, ou la soufflent de la canne sur iceux, les exhortant de
receuoir leur Esprit & la vertu d´icelui. Ne diriez vo´pas que ce cauteleux
Drago vueille en ceste fausse ceremonie imiter Iesus-Christ quand Il donna
son Esprit à sés Apostres(..).
95
O francês Yves d´Évreux (1577-1632), nos dois anos que passou nas terras
brasileiras, mostra em sua obra as associações entre os rituais indígenas e os rituais
judaico-cristãos. A aglutinação entre as religiões africanas, indígenas e a europeia
tornou o território brasileiro uma região multifacetada de crenças e costumes que,
muitas vezes, eram discrepantes, e em outras se coadunavam, transformando os
elementos das religiões no que se conhece por sincretismo religioso. Esse amálgama de
94
SOUZA. Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa de Santa Cruz Feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 261.
95
YVES, d´Évreux. Voyage dans le Nord Du Brésil. Librarie A. Frank. 1864. Tradução de Kall Lyws
Sales. Além das águas de lustração e das diabólicas abluções praticadas por esses bárbaros, eles têm uma
forma particular de se comunicar com os Espíritos. Pela erva Petun, colocada em um pedaço de cana,
esses feiticeiros, lançando a fumaça sobre seus ajudantes, soprando-a neles, animam-nos para dele
receberem o Espírito e a Virtude. Não diríeis que esse cauteloso Dragão, nesta falaciosa cerinia, queria
imitar Jesus Cristo quando este oferecia seu Espírito aos Apóstolos (...).
30
religiões pode ser percebido até na contemporaneidade, pois parte das divindades
oriundas dos cultos afros são associadas ao demônio, ao mal; e grande parte dos santos
do território nacional surgiu delas.
No cotidiano da colônia, Céu e Inferno, Sagrado e Profano, práticas mágicas
primitivas e europeias, ora se aproximavam, ora se apartavam violentamente,
na realidade fluida e fugidia da vida colonial a indistinção era, entretanto,
mais caractestica do que a dicotomia. Esta quando se mostrava era quase
sempre devida ao estimulo da ideologia missionária e da ação dos nascentes
aparelhos de poder, empenhados em decantar as partes para melhor captar as
heresias. O que quase sempre sobrenadou foi o sincretismo religioso.
96
A magia na colônia girava em torno, principalmente, de mandingas e feitiços
para curar o amor e as enfermidades do corpo. Segundo Gilberto Freyre, a festa de São
João, uma das primeiras a ser comemoradas no Brasil, no formato que se conhece
hoje com fogueiras e danças, era palco para muitas simpatias.
Pois as funções desse popularíssimo santo são afrodisíacas; e ao seu culto se
ligam até práticas e cantigas sensuais. É o santo casamenteiro por excelência.
(...) As sortes que se fazem na noite ou na madrugada de São João visam a
união dos sexos, o casamento, o amor que se deseja e não se encontrou ainda.
(...) Outros interesses de amor encontram proteção em Santo Antonio. Por
exemplo: as afeições perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos.
Os amores frios ou mortos. É um dos santos que mais encontramos
associados às práticas de feitiçaria afrodisíaca no Brasil
97
.
Uma atividade muito perseguida e sua prática atribuída principalmente às
mulheres foi à feitiçaria. A elas era creditado o elo, a ligação com Satanás e a prática de
feitiços para todos os fins, em especial para resolver problemas de saúde e de
relacionamento.
Apesar de malvistas como agentes do Demônio, emblemas vivos e atuantes
da desordem, do perigo e da impureza, as feiticeiras agiram com desenvoltura
no Brasil durante o período colonial, praticando toda espécie de benzeduras,
adivinhações e curas, acusadas de infanticídio, mas não raro tentando
aproximar casais por meio de orações fortes, cartas de tocar e sortilégios,
além, esvisto, de comunicar-se com o sobrenatural em sonhos, em pactos,
metamorfoses e possessões
98
.
96
SOUZA. Laura de Mello. Op. cit. p. 149.
97
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da família brasileira sobre sob o regime da
economia patriarcal. 34ª Edição, Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 246-247.
98
ARAÚJO, Emanuel. O Teatro dos Vícios. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997, p. 208.
31
Os nativos já colonizados, de acordo com Mary Del Priori, viam as doenças
como castigos divinos, e clérigos e médicos não defendiam como difundiam a ideia
de que a doença é salutar para os desregrantes do espírito.
Em virtude do atraso dico de Portugal, se comparado a outros países
europeus, além da falta de estrutura, medicamentos e especialistas, o discurso religioso
era a base para o discurso dico, o qual associava as doenças aos pecados e
relacionava a cura às infrações cometidas pelo enfermo. ―A literatura dica da época
apoiava-se na alquimia medieval, na astrologia e no empirismo
99
e sobre tudo na
escolástica cuja crea na ação diabólica era a base dos remédios que combatiam as
mazelas que se assemelhavam mais a tratados de feitiçaria.
Lado a lado com os médicos estavam as curandeiras e as benzedeiras que, com
seus conhecimentos sobre as erva, substituíam, muitas vezes, os médicos. Por esse
conhecimento, passado de mãe para filha e necessário para manter a sobrevivência dos
costumes e das tradições, essas mulheres passaram a ser perseguidas pela Igreja que as
via como feiticeiras. A Igreja, numa tentativa de combater o curandeirismo, passou a
associar as curas das enfermidades aos poderes miraculosos dos santos. ―Para cicatrizar
feridas, devia-se invocar Santo Amaro; dores de cabeça seriam resolvidas com orações a
Santa Brígida; e partos difíceis, com preces a Santa Margarida ou a Santo Adrido
100
.
Através da imposição cultural, por meio da língua e dos costumes, os povos
europeus nas terras brasileiras elevaram o cristianismo à supremacia, relegando à
marginalização e ao demônio qualquer manifestação religiosa que se afastasse dos
preceitos blicos. Desde então, o diálogo entre as religiões é frequente, mas
predominará aquele europeu tido, agora, como verdade absoluta.
A pré-história nacional
101
se caracterizou como um período de grandes
desafios e novas experiências para todos que vinham para as terras recém-descobertas,
principalmente para as mulheres que chegaram pré-destinadas a constituir família de
acordo com as exigências da Igreja
Por meio desses primeiros contatos entre os povos colonos e os nativos, a
dispersão dos ideais europeus chegava à terra brasileira e fincava aqui os preceitos e as
99
Ibidem.. p. 81.
100
DEL PRIORE, Mary. Op. cit. p. 92.
101
Expressão criada por Azevedo Amaral. Apud FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação
da família brasileira sobre sob o regime da economia patriarcal. 34ª Edição, Rio de Janeiro: Record,
1998.
32
concepções da mulher. Não tardou que o feminino, tal qual era conhecido na Europa,
chegasse ao Brasil, disseminando aqui modelos e representações da mulher destinada ao
casamento: submissa, silenciada, branca; e da mulher destinada a fornicação: a pobre, a
de rua, a mulata.
1.2. A boa esposa e a adúltera: entre Ave e Eva
Da mulher te guarde Deus, e da boa,
desconfia.
102
A partir do século XII, com o culto mariano
103
, calcado na maternidade divina,
na virgindade, na imaculada concepção e na assunção
104
, houve um redirecionamento da
visão que se tinha da mulher. No século XIII, houve uma grande valorização da
maternidade, Maria triunfou como mãe
105
. Com base nesses dois dogmas ligados ao
culto mariano, a castidade e a maternidade divina, construiu-se o ideal de santificação
de Maria, a Imaculada Conceição, que concebeu sem pecado. Por esse estado de
santidade, após sua morte ocorreu sua Assunção corporal ao Céu, afastando-a de toda
corrupção, e, por conseguinte, da condição humana
106
.
Na iconografia ela está mais próxima da humanidade por suas vestes e seu luto
pela morte do filho, representa a virgindade, pois as virgens são consideradas mulheres
perfeitas, tendo lugar ao lado dos santos no Paraíso, exaltando a superioridade da
condição religiosa. Na terra são representadas pelas religiosas que fazem voto de
102
Refo popular.
103
O culto mariano, título de mãe de Deus, foi instituído no concílio de Éfeso em 431 pela bula Inefabilis
Deus de Pio IX.
104
DALARUN, Jacques. Op. cit. 41.
105
LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o sábio aspectos culturais e literários.
São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2007. ―Sabemos todos que o culto a virgem,
surgido na Europa ocidental, nos séculos XI e XII,sob a influencia do oriente próximo e médio, conheceu
uma verdadeira explosão no século XIII, dando origem a um numero considerável de catedrais e
santuários, de ladainhas cantadas, de ―milagres‖ representados, de coleções de milagres‖ e mistérios
narrados, todos destinados a celebrar a mãe de Deus. Essas narrativas e representações, misturavam fatos
históricos com lendas antigas, enraizadas as vezes no folclore pagão, incluindo ainda criações pessoais,
alimentadas pelo imaginário coletivo da época.‖ P 83
106
DALARUN, Jacques. Op. cit. p. 41.
33
castidade
107
. Mas como Maria era um ideal a ser seguido, inatingível pelas mulheres
comuns, surge a figura de Maria Madalena, a pecadora arrependida, demonstrando que
a salvação é possível para todos que abandonam uma vida pregressa.
Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em
adultério, fazendo-a ficar de pé no meio de todos e disseram a Jesus: Mestre,
esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. E na lei nos mandou Moisés
que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? Mas Jesus,
inclinando-se escrevia na terra com o dedo. Como insistissem na pergunta,
Jesus se levantou e lhes disse: aquele que dentre vós estiver sem pecado seja
o primeiro que lhe atire pedra. E tornando a inclinar-se, continuou a escrever
no chão. Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela própria consciência,
foram se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até os últimos,
ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava. Erguendo-se Jesus e não
vendo ninguém mais além da mulher, perguntou-lhe: mulher, onde estão teus
acusadores? Ninguém te condenou? Respondeu ela, ninguém, Senhor! Então,
lhe disse Jesus, nem Eu tampouco te condeno; vá e o peques mais
108
.
A partir daí, surge a ―teoria‖ da pecadora arrependida, demonstrando que a
salvação é possível para todos os que abandonam uma vida cheia de pecados. Com essa
imagem de mulher pecadora, que se arrepende e que segue o mestre até o Calvário,
Maria Madalena veio mostrar que todos os pecantes são capazes de chegar a Deus.
O epidio protagonizado por Madalena garantiu à mulher o direito ao
arrependimento, demonstrado pela prostração, pela humilhação e pelas lágrimas, em
oposição ao possível poder de persuasão de Eva, que levou toda a humanidade ao
pecado e, por isso, passou a ser considerada enganadora. Como consequência disso, a
pregação feminina deveria ser sem palavras, feita apenas pela mortificação do corpo.
No Ocidente, o culto a Maria Madalena surgiu na igreja de Vézelay, onde
estariam enterrados os restos mortais da Santa
109
. O abade do santuário, Geoffroi (1037-
1051), foi o difusor dessa ideia, no século XI. Em 1050 ele obteve a autorização para o
culto à Madalena no mosteiro, e uma bula papal confirmou a existência dos restos
mortais da santa naquela igreja em 1058
110
.
107
CASAGRANDE, Carla. ―A mulher sob custódia‖. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.).
História das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento/São
Paulo: Ebradil, 1995. p. 99-141.
108
João - 8: 3-11.
109
PILOSU, Mario. Op. cit, 1995.
110
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995;
34
Muitas passagens bíblicas fazem menção ao adultério, proibindo-o e
condenando-o. O timo mandamento diz: Não adulterarás
111
‖, entretanto, quando se
fala nesse assunto, o que se sobressai mesmo é o adultério feminino, que valida a ideia,
defendida pelos representantes da Igreja, de que as mulheres são mais suscetíveis ao
pecado da luxúria, pecado feminino por excelência.
Outra história blica que versa sobre a traição é a de Davi e Bete-Seba que
adulteraram e que não foram punidos, porque ele era rei. Porém Deus tirou a vida do
filho deles. Vale salientar que pela lei dos homens e da Igreja isso não era prescrito
como castigo para o adultério. A punição de Davi não atingiu diretamente o seu corpo,
mas foi de outra natureza: foi mais cruel, se levarmos em conta a relação pai e filho
(varão), que simbolizava a descendência, importante para a época.
Essas narrativas ajudam-nos a compreender o caráter econômico que havia por
trás do adultério. A diferença entre crime e pecado mostra-se, nos episódios citados,
diretamente ligada à condição social dos adúlteros. Maria Madalena seria apedrejada até
a morte, muito provavelmente por ser mulher e pobre; já o rei Davi o foi punido de
acordo com a lei da Igreja.
A traição feminina consistia na violação do contrato matrimonial; no roubo da
honra‖. A mulher era punida com a morte, a não ser que o amante fosse de uma classe
social superior à do marido. Quando isso acontecia, ela era perdoada em favor do
matrimônio e o amante, apenas degredado.
Quando o homem traía a esposa, mesmo que publicamente, estava-se diante de
uma desordem que, no entanto, o atingia a integridade do matrimônio, visto que o
adultério era um elemento de alto poder desorganizador na circulação dos patrimônios,
uma vez que as mulheres eram tidas como mercadorias, usadas para obter vantagens, e o
casamento, geralmente, visava o aumento de terras. A esse tipo de traição dava-se o
nome de ―mancebia‖, que era visto como um mal menor, o que permite perceber que a
desigualdade entre os sexos, na sociedade patriarcal, envolvia, principalmente, questões
ligadas ao poder econômico.
Desde os primórdios, o adultério constitui-se num assunto polêmico,
principalmente, no que diz respeito à imagem da mulher; da esposa. Esse tema foi
tratado, com muita rigidez, por algumas civilizações. Na antiga Babilônia, as mulheres
111
Êxodo 20:14.
35
eram privadas de um dos olhos para que só pudessem ver o seu amo e senhor. No Egito,
a mulher que traía tinha o seu nariz mutilado e a morte era reservada para o seu amante.
na Índia, a adúltera era devorada por cachorros em praça pública. Porém, na cidade
de Esparta, a traição conjugal era vista com naturalidade e praticada de forma legal, por
homens e por mulheres
112
.
A literatura medieval, geralmente, não revela com precisão a vida ou as
aspirações femininas pela intensa preocupação em fornecer um retrato de como elas
deveriam ser, visto a sociedade laica ter absorvido o discurso clerical e, principalmente,
pelo fato de muitos escritores serem religiosos ou a eles estarem estreitamente ligados
por laços de parentesco. Nesse sentido, tais aspectos pesaram imensamente na
elaboração da imagem feminina, principalmente baseados na Bíblia.
A mulher virtuosa é a coroa do seu marido, mas a que procede
vergonhosamente é como apodrecimento nos seus ossos.
113
Melhor é morar num canto de umas águas-furtadas do que com a mulher
rixosa numa casa ampla.
114
Analisando a literatura medieval sob um olhar destituído dos valores e juízos
que as espelham, verificam-se, através da análise sócio-histórica-religiosa e literária, os
modelos idealizados para a figura feminina. Segundo Georges Duby, muitos clérigos
preocupavam-se em redigir normas de comportamento para as mulheres medievais.
Alão de Lille (1128 1203), um intelectual do século XIII, frequentemente dirigia seus
sermões para as virgens, as viúvas e as mulheres casadas. Além dessas, freiras e
serventes também constituem o público dos pregadores Tiago de Vitry (+1221) e
Gilberto de Tournai (1207 1284). Vicente de Beauvais (1190 1264) e Guilherme
Peraldo (+1270) preocupam-se em orientar as meninas da corte para os futuros papéis
de mulheres, viúvas ou virgens consagradas. João de Gales, um padre franciscano,
redige um comndio moral onde se dirige às mulheres casadas, às viúvas e às virgens.
Tiago de Varazze, um dominicano, volta-se às mulheres e às es em seus
sermões e em suas crônicas de Gênova. O leigo Felipe de Novara (1605 -1665) redige
112
As grandes civilizações desaparecidas. Portugal: Edição de Selecções do Reader‘s Digest, 1981.
113
Provérbios 12:4
114
Provérbios 25:24
36
uma série de normas e condutas para as meninas, mulheres jovens, mulheres de meia
idade e para as velhas.
115
Após tantas normas, conselhos e advertências, o dominicano Humberto de
Romans (1194 -1277) afirma ser necessário dirigir-se de maneira diferente aos diversos
tipos de mulheres. Ele separava as mulheres em diversas categorias: as religiosas,
distintas entre beneditinas, cistercienses, dominicanas, franciscanas, humilhadas,
agostinianas, meninas que vêm a ser educadas nos conventos e beguinas, e as leigas,
diferenciadas em nobres, burguesas ricas, meninas, servas em casa de famílias ricas,
mulheres pobres que habitam em pequenas aldeias do campo e meretrizes.
A Igreja instituiu o sacramento do matrimônio para saciar e controlar as pulsões
femininas. No casamento a mulher estaria restrita a um parceiro, que tinha a função
de dominá-la, de educá-la e de fazer com que tivesse uma vida pura e casta. Somente
assim as mulheres poderiam alcançar a salvação, pois mesmo que homens e mulheres
estivessem inscritos nas fileiras dos agraciados com a vida eterna, alcançariam a
graça se vivessem dentro das regras cristãs. Fica claro assim que não é possível analisar
o que as mulheres pensam de si próprias: o que nos foi transmitido pelas fontes são
modelos ideais e regras de comportamento que nem sempre são positivos
116
.
Essa dualidade entre a mulher casta e a mulher adúltera perpassa os séculos e
ainda reverbera nas expressões artísticas de cunho popular. No cordel, a grande maioria
das obras apresenta a mulher de forma depreciativa, mas contrapõe esta a castidade,
único elemento que, se ligado à mulher, transforma-a de pecadora em santa.
Esse pensamento de boa esposa foi sendo disseminado ao longo dos tempos,
através da mentalidade coletiva, fruto da hibridação de vários substratos mentais, e o
poeta popular assimilando esse modelo, dissemina-o através de sua arte. No cordel A
mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia
117
, o autor traça um panorama entre as
respectivas imagens constrdas, desde o medievo à contemporaneidade, apresentando
as características e as qualidades e defeitos desta e daquela. O exame da mulher de
115
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas do culo XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
116
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. ―Masculino/feminine‖. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Tradução de Eliane Magnani. São Paulo:
EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 137-150.
117
MONTEIRO, Manoel. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. Campina Grande:
Gráfica Martins, 2006.
37
antigamente como modelo ideal, em contraste com o comportamento da mulher de hoje
em dia, mais ativa e, por isso, ameaçadora da ordem e da moral, tem como fim exibir
uma perspectiva de valoração, do ponto de vista patriarcal e conservador.
Deus após formar o mundo
Achou que era preciso
Povoá-lo, fez Adão,
Mas fez Eva sem juízo
E deixou os dois flertando
No pomar do paraíso...
(...)
No comecinho do mundo
Tudo era bem diferente,
Trabalhar não precisava
Adão vivia contente,
Só arruinou ao juntar-se
Eva, a maçã e a serpente.
Por que Deus disse a Adão:
- Coma de tudo, porém,
Não coma‖ a maçã de Eva
Adão responde: Tá bem!
Mas veio a peste da cobra
Pra estragar o xerém.
(...)
O homem foi enganado
Por Eva e por Lúcifer
Mas ele em sua bondade
Dá tanta corda a mulher
Que ela pensa que pode
Fazer o que bem quiser.
O cordelista retrata a criação do mundo da mesma forma que o Gênesis bíblico,
apresentando uma figura feminina desajuizada, propensa à maldade. Percebe-se nas
estrofes citadas a ideia da mulher ligada ao mal, pondo o homem a perder, bem como a
participação do demônio no episódio do pecado original. Os vocábulos ―maçã‖,
―mulher‖ e ―serpente‖, na estrofe citada, são construções metafóricas que simbolizam o
38
desequilíbrio, a instabilidade e o decnio do homem. Os três elementos denotam a
maldição lançada por Deus, em consequência do pecado feminino.
Contrapondo a mulher do paraíso, o poeta apresenta algumas características que,
de acordo com a moral cristã, condizem com o exemplo de boa esposa que deve ser
seguido.
Quando a mulher é honesta
Leva vida recatada,
Não anda de porta em porta,
Nem gosta de cachorrada
Ao passar na rua, as outras
Dizem: - lá vai a pirada.
(...)
Naquele tempo a mulher
Era um ser quase divino
Vivia para o marido
E pra fazer menino,
Mulher não falava grosso
Homem não falava fino.
A mulher honesta referida pelo poeta, hoje em dia, tem uma postura tão diferente
das outras mulheres que passa a ser anormal. Ele aproxima a mulher do divino,
retratando o que a Igreja orientava para as mulheres ―de bem‖, registra a submissão
feminina e evidencia a principal função da mulher: a maternidade. Através dessas
estrofes, percebe-se o imaginário cristão acerca da boa mulher arraigada ao imaginário
popular. Com a instituição do casamento pela Igreja, a partir do século XI, a
maternidade e o papel da boa esposa ganharam relevância. E mais tarde, em 1943, o
papa Pio XII reforça esses preceitos.
Ora, o ofício da mulher, sua maneira, sua inclinação inata, é a maternidade.
Toda mulher é destinada para ser mãe [...]. A este fim o Criador ordenou todo
o ser próprio da mulher, seu organismo, mas também seu espírito e,
sobretudo, sua especial sensibilidade, de modo que a mulher,
verdadeiramente tal, não pode de outro modo ver nem compreender a fundo
todos os problemas da vida humana, senão com relação à família
118
.
118
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_I-xiii_enc_15051891_rerum-
novarum_po.html
39
Como se percebeu até aqui, as representações da mulher e do feminino em solo
brasileiro, apesar da origem partilhada entre as culturas indígenas, africanas e europeias,
o escondem a supremacia dos ideais cristãos sobre a boa mulher: a mãe, a rainha do
lar, a esposa calada; e sobre a mulher má: a que tenta, a que rebola, a que fala,
cristalizada, pois o cordelista, quando descreve a mulher de hoje, ele apresenta os
problemas sociais e econômicos provocados por ela, vigentes na sociedade moderna,
atualizando os substratos mentais, oriundos do medievo.
Em toda repartição
Tem uma mulher mandando,
Elas estão assumindo
Todos os postos de mando
E enquanto isso no lar
Tem uma mulher faltando.
[...]
Hoje, a coisa é diferente
A mulher tem liberdade
Até já trabalha fora!
É uma temeridade
A continuar assim
Vai-se a nossa autoridade
Dessa forma, apenas falar do contato do povo europeu com os povos da pré-
história brasileira como formadores da imagem feminina hodierna, remanescente no
cordel, é ilusório, pois tais representações vão ter seu apogeu na Idade Média. Essa
imagem estigmatizada das personagens femininas do cordel em questão nos foi legada
pelo processo de longa duração
119
da mentalidade misógina medieval de forma
cristalizada, ratificando a circularidade cultural.
119
O conceito de longa duração é utilizado nos estudos da História das Mentalidades e foi mais bem
disseminado a partir da fundação da Revista dos Annales por Marc Bloch e Lucien Febrve em 1929.
Segundo Jacques Le Goff, ―A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria,
primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rápido dos eventos, mais
importante seria o nível mais profundo das realidades que mudam devagar [...] - trata-se do nível das
‗longas durações‘ (Braudel)‖. LE GOFF, Jacques. História e Meria. Tradução de Bernardo Leitão [et
al.]. 5ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 15.
40
2. A mulher como princípio do mal: da Idade Média à Literatura de Cordel
Sabendo, como sabemos, que Deus não se engana
nunca, é fácil advinhar quem criou a mulher.
120
O tema mulher evoca inúmeros papéis, status, modelos de comportamento, mitos,
preconceitos e tabus. Todos esses aspectos relacionados à mulher são decorrentes de
processos sociais, históricos e culturais.
Durante a Idade Média, séculos, a Igreja Católica defendeu e propagou a ideia de
que a mulher era um ser, por natureza, inferior ao homem e essa inferioridade se refletia
nos aspectos religioso e social. Este discurso foi defendido o só pela Igreja como
também pela Medicina e pela Filosofia
121
.
Grande parte das divindades femininas das sociedades ancestrais, bem como a
imagem da mulher no medievo, converge para um ponto em comum: ambas as
representações eram responsáveis por tragar a força vital do homem. Aquelas,
representadas por formas monstruosas e fabulosas, consumiam suas timas, sejam
como as sereias das diversas mitologias
122
ou como Estriges da etnografia grega. Da
mesma forma, mulher malévola representada e difundida durante a Idade Média,
sobretudo o período que compreende os séculos XI ao XIV, pelos clérigos medievais,
de modo semelhante, era responsável por consumir as almas dos homens considerados
puros
123
. Tal afirmativa pode ser comprovada na passagem: Fuja o Cavaleiro de Cristo
dos afagos da mulher que em o homem no último risco; para que com pura vida, e
segura consciência chegue a gozar de Deus para sempre. Amen
124
.
A teologia medieval, comumente, associava a mulher ao diabo, acreditando que
ela era sua companheira, sua serva e fiel seguidora. Em seu livro A Idade Média a
cavalaria e as cruzadas, Ivan Lins explica que o medo provocado pela mulher não
120
Anônimo Francês.
121
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias da Idade Média. Tradução: Marco
Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. Pág. 36.
122
BRANDÃO, Junito de Sousa. Op. cit.
123
RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. Pág.
124
LINS, Ivan. A Idade Média A cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora Brasílica
(cooperativa), 1993. Pág. 163.
41
excetuava nem mães nem irmãs dos clérigos, pois ―o diabo era sempre mais tevel
quando revestia a forma feminina
125
‖.
Essas ideias ajudaram a compor o fabulário negativo referente à figura feminina e,
dessa forma, a virago era considerada pelos teólogos da época o princípio do mal,
presente em todas as categorias menores de pecadores, segundo a concepção cristã
medieval.
Foi o argumento de ela haver cometido o pecado original que os levou a
considerarem-na dotada de alma, porquanto, si o não fosse, não poderia ter
responsabilidade tremenda transgressão de que decorreram os imensos
sofrimentos que, há milênios, torturam a humanidade
126
.
Os clérigos medievais definiram as categorias que deveriam ser perseguidas pela
Santa Inquisição por irem contra os dogmas católicos: os hereges sexuais
homossexuais, prostitutas, leprosos; e os hereges religiosos judeus, bruxos e hereges
127
.
Embora distintas num primeiro momento, todas essas minorias estavam ligadas pelo
sexo. Nos discursos cristãos havia uma associação entre a luxúria e o demônio,
responsável por demonizar os desviantes da fé. O sexo era a via mais comum para
aproximar os homens do demônio
Existe um mal, acima de todos os males, que tenho consciência de que está
sempre comigo, que dolorosa e penosa dilacera e aflige minha alma. (...) Este
mal é o desejo sexual, o deleite carnal, a tempestade de luxúria que esmagou e
demoliu minha alma infeliz, sugando dela toda a sua força e deixando-a fraca e
vazia
128
.
Este procurava dominar as mentes humanas, escravizando-as e usando-as para
subverter a ordem natural de Deus e espalhar o pecado pelo mundo.
A etimologia da palavra para designar o feminino deixa a mentalidade sobre a
mulher em evidência. Isidoro de Sevilha (560 636)
129
afirma que
a palavra para homem, vir, é função da força superior deste, enquanto a
palavra para esposa, mulier, deriva da maior suavidade desta. Tais jogos de
125
LINS, Ivan. Ibidem. P. 162.
126
LINS, Ivan. Op. cit. P. 162.
127
RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. p. 32.
128
Santo Anselmo apud RICHARDS, Jeffrey. Ibidem. p. 34.
129
Doutor da Igreja, além dex e arcebispo de Sevilha. Considerado um dos grandes eruditos e o primeiro
dos grandes compiladores medievais. A sua obra influenciou largamente toda a produção intelectual na
Espanha medieval.
42
palavras tremendamente rios continuam após e são mesmo usados para
substanciar a Queda
130
.
De acordo com Howard Bloch
131
, essas associações ―tremendamente sérias‖ são
usadas para ratificar a queda da humanidade provocada pela mulher. O Papa Inocêncio
III (1160 1216)
132
também discorreu acerca da terminologia do feminino. Escreveu:
Assim também, nascemos todos chorando para expressar a natureza da nossa
miséria. Observa-se que o menino grita ‗Ah‘ logo após o nascimento, e a
menina grita ‗E‘. Daí o verso comum: ‗Estão gritando ‗E‘ ou ‗Ah‘, /Todos
eles nascidos de E-va‘. Pois o que é o nome ‗Eva‘, quando examinado
cuidadosamente, senão Eu! mais Ah! sendo estas palavras interjeições de
pesar ou de grande dor. Por esta razão, antes da queda a mulher era chamada
‗vir-ago (‗feita do homem [vir]‘), mas depois da Queda, ela mereceu ser
chamada de ‗E-va‘ (...)‖.
133
Para os doutores da Igreja, a bruxaria e a luxúria faziam parte da atmosfera que
envolvia a mulher. Kramer e Sprenger defendiam que toda bruxaria advém do desejo
carnal, que é insaciável nas mulheres
134
‖ e creditavam tal comportamento à maior
inclinação da mulher para a prática do mal e da bruxaria, uma vez que eram mais
crédulas, volúveis e influenciáveis do que os homens.
No século VI, por exemplo, era proibido aos bispos receber qualquer mulher, a
menos que estivessem presentes dois padres ou dois diáconos. Essa lei foi revalidada e
ampliada por o Bernardo de Clavor (1090-153), no século XII, na Regra dos
Templários, artigo 72, passando a incluir na proibição mãe, irmã ou tia.
É mui perigoso e arriscado atender com curiosidade e cuidado ao rosto das
mulheres. E assim nenhum se atreva a dar ósculo a viúva, nem donzela, nem
a mulher que alguma, ainda mui chegada em parentesco, como mãe, irmã ou
tia
135
.
Ivan Lins catalogou o depoimento do monge São Nilo (910-1005) sobre o medo
que a figura feminina exercia sobre ele: ―porque se eu vir uma mulher, voltará o
demônio imediatamente a atormentar-me
136
‖. Kramer e Sprenger dedicaram dois
130
Isidoro de Sevilha apud BLOCH, R Howard. Op. cit. P. 34.
131
BLOCH, Howard. Op. cit., p. 34.
132
Papa do século XII. Foi o responsável pelo do Quarto Concílio de Latrão (1215). considerado o
concílio ecumênico mais importante da Idade Média.
133
BLOCH, Howard. Op. cit. p. 34.
134
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. P. 121.
135
LINS. Ivan. Op. cit. P. 163.
136
LINS, Ivan. Op cit. p. 162.
43
capítulos inteiros no seu tratado de demonologia à castração masculina praticada pelas
mulheres.
No tratado Adversus Jovinianum, São Jerônimo (347 420) declara total
desprezo e repulsa às mulheres, segundo Rosana Cantavella
137
. Ele defendia a ideia de
que as mulheres eram voltadas apenas para os prazeres carnais e desprezavam qualquer
virtude. Ainda de acordo com suas investigações, na obra De Contemptu Feminae
atribuída ao monge cluniacense Bernat de Morlas (+ 1145), no século XII, são
elencados inúmeros defeitos e vícios femininos ―femina sordida, femina perfida, femina
fracta [...] fossa novíssima, vipera pessima, pulcra putredo‖
138
. Para o religioso, as
mulheres eram ignóbeis, pérfidas, covardes e corrompiam o que é puro e aviltavam as
ações humanas.
Durante o período medieval, a imagem arquetípica de Eva foi exaustivamente
explorada pela sociedade cristã e serviu de inspiração para pensadores, moralistas
cristãos e escritores. Na literatura religiosa, a preocupação dos clérigos era elaborar
preceitos e normas a serem acatados pela mulher para controlar a sua sensualidade e a
sua sexualidade, pois para eles, as mulheres eram fracas, deixavam-se levar pelos
instintos e por isso eram presas fáceis do demônio. Assim, a luxúria, de acordo com o
clericato, era inerente à mulher. O medo da mulher foi disseminado e fomentado não só
pela alta cúpula do clero como também pelos leigos.
A temática da mulher, vista como um instrumento diabólico a partir de então, é
constante na literatura ocidental e no cordel não é diferente. É comum encontrar nos
―livrinhos de feira‖, principalmente naqueles que tem como tema a traição e o adultério,
a recriação de imagens de anti-heroínas; de mulheres pervertidas e falsas, as quais,
movidas pelo desejo sexual, traem.
137
CANTAVELLA, Rosanna. ―Les Donnes medievals es mereixen estudis més acurats i humils‖. In:
Revista d´história medieval publiació editada pelo Departament Història Medieval de la universitat
de València. 1992. Disponível em:
http://centros.uv.es/web/departamentos/D210/data/informacion/E125/PDF77.pdf. Acesso dia 2 de
fevereiro de 2010.
138
Idem.
44
2.1. A diabolização do feminino: sexo, luxúria e sedução
Inimiga da paz, fonte de inquietação, causa de
brigas que destroem toda a tranquilidade, a mulher
é o próprio diabo.
139
Como observado, a mulher foi divinizada nas sociedades pagãs tradicionais.
Entretanto, durante a história da humanidade que sucedeu com o patriarcalismo, a
mulher perdeu gradativamente seu aspecto divino e passou a ser associada ao mal.
Muitas são as figuras femininas que o apresentadas como flagelo da
humanidade. Lilith
140
come as etnografias da Babilônia, da Suméria e Hebraica como
sendo a primeira mulher de Adão que se rebelou no sexo e, assim, sendo expulsa do
paraíso, foi em direção ao mar para gerar com os demônios que ali existiam filhos
conhecidos pelas mitologias como os lilins. Ela é a primeira personagem das etnografias
conhecidas que é diabolizada, responsável pela sedução e queda dos homens:
Ela [Lilith] se adorna com todos os tipos de enfeite, como uma mulher
amorosa. Permanece nas entradas das ruas e vielas a fim de seduzir os
homens. Agarra o tolo que se aproxima dela, beija-o e enche-o com vinho
contendo resíduo de veneno de cobra. Tão logo bebe isto, ele começa a segui-
la. Quando ela vê que ele tem se desviado do caminho da verdade para segui-
la, ela se desfaz de tudo que originalmente havia simulado para o tolo. Seus
adornos para seduzir os homens são seus cabelos bem adornados vermelhos
como uma rosa, suas bochechas, brancas e vermelhas, suas orelhas com
correntes do Egito dependuradas em seu pescoço com todas as joias do
oriente dependuradas. Sua boca é (muito pequena) como uma pequena fresta,
um ornamento gracioso; sua língua afiada como uma espada. Suas palavras
suaves como o óleo. Seus bios são vermelhos como uma rosa, doces como
toda a doçura do mundo. Ela se veste em carmesim, adornada com todos os
tipos de joias do mundo, com 39 peças.
141
139
Petrarca, 1374.
140
Lilith é citada na epopeia de Gilgamesh (apox. 2000 a.C.), no antigo testamento (Isaías 34:14) e em
relatos da Torá assíro-babilônica e hebraica, dentre outras fontes históricas. Ela aparece no Zohar, ou
livro do Esplendor, uma obra clássica do século XIII que constitui o mais influente texto hassídico, e no
Talmud, o livro dos hebreus. Seus filhos demônios, os Lilins, são citados inclusive na versão sacerdotal
da Bíblia. Outras fontes são o Alfabeto de Ben Sira (século VII), em que se inscreve a versão mais
ingênua do mito, o Zohar (século XIII), que do mesmo a versão mais oculta, e a Cabala (por volta de
1600), onde vemos Lilith unir-se a Samael.
141
Zohar apud HURWITZ, Siegmund. Lilith a primeira Eva. Aspectos históricos e psicológicos do
lado sombrio feminino. Tradução de Daniel da Costa. São Paulo: Fonte Editorial. 2006.
45
Quando ele [Adão] viu Lilith, o mais encantador dos demônios, em sua
reluzente forma feminina (...). Filha do homem ela não é, tampouco, noiva de anjo
142
.
Além de encantadora, ela seduz, corrompe, desti, empregando artifícios luxuriantes
que, como se posteriormente na Idade Média, o utilizados pelos demônios beleza,
charme e adornos.
A cultura Greco-latina tem, na figura de Pandora
143
, a recorrência de alguns
elementos apresentados em Lilith, como a sedução, a beleza e a corrupção, excetuando,
entre outros, a rebeldia em relação ao sexo. Ela é responsável por ter trazido aos homens
todas as mazelas e fadigas. A história conta que ela foi criada por Zeus e abençoada por
todos os deuses para castigar a humanidade em virtude de uma desobediência, praticada
por Prometeu. Este enganou Zeus duas vezes para favorecer os mortais.
A raça humana vivia tranquila ao abrigo do mal, da fadiga e das doenças, mas
quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu a jarra de larga tampa, que
trouxera do Olimpo, como presente de núpcias a Epimeteu, dela evolaram
todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens
144
.
Muitas coincidências aproximam Pandora e Eva, a essência do pecado na cultura
cristã. Foram as primeiras mulheres, cada uma em seu tempo, que, movidas pela
curiosidade, marcaram a entrada do mal no mundo. Aquela quis saber o gosto da fruta
proibida e esta, conhecer o que havia na jarra. Porém, a grande diferença entre as duas é
a razão pela qual cada uma foi criada: a função de Eva era fazer companhia a Adão, ao
passo que Pandora seria um instrumento a serviço do mal.
Eva figura na tradição judaico-cristã como a responsável pela queda da
humanidade. Ficou em evidência após o episódio da desobediência do primeiro
casal‖
145
, no qual foi persuadida pela serpente a comer do fruto da árvore proibida,
convencendo Adão a fazer o mesmo, desobedecendo a uma ordem de Deus, assim
142
KOLTUV. Bárbara Black. O livro de Lilith. Tradução de Rubens Rusche. edição. São Paulo:
Cultrix, 1997. p. 31.
143
Pandora é, no mito hesiódico, a primeira mulher modelada em argila e animada por Hefesto, que, para
torná-la irresistível, teve a cooperação preciosa de todos os imortais. Do ponto de vista religioso, Pandora
é uma divindade da terra e da fecundidade. No panteão helênico não pandora aparece como figura
feminina ligada a características funestas. Outras divindades femininas representavam sentimentos
negativos como as Fúrias, a Discórdia ou Éris. BRANDÃO, Junito de Souza. Op. cit. 168.
144
BRANDÃO, Junito de Souza. Idem.
145
GÊNESIS 3:1-13
46
pondo a humanidade a perder. Esse episódio serviu como um dos principais argumentos
usados pelos Pais da Igreja para fortalecer a atitude antifeminina vigente na época.
Com a reforma gregoriana, no final da Idade Média, foi instituído o celibato dos
padres, tendo início, na Igreja, uma literatura misógina, que criou a dicotomia Eva /
Maria. Ocorre então uma diabolização da mulher, que passa a ser representada
centralmente como a descendente de Eva, que para a cultura cristã, é símbolo do pecado
e da tentação
146
. Ao mesmo tempo em que tem lugar esse processo, emerge uma
tendência, num certo sentido oposta, com o fortalecimento do culto à Virgem Maria.
Como as mulheres comuns estavam muito distantes do ideal da Virgem, criado pela
Igreja, foram consideradas as agentes de Satã, responsáveis pela desgraça do homem, e
por desviá-lo do caminho da salvação
147
.
[...] Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada
na penitência, a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao
gênero humano [...] Mulher, tu és a porta do diabo. Foste tu que tocaste a
árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violaste a lei divina.
148
Tertuliano (160 225) revela nesse texto uma profunda aversão ao sexo
feminino, comum entre os teólogos medievais. Percebemos claramente a diabolização
da mulher que, comparada à Eva, é considerada culpada por todos os males. Era
aconselhado aos homens afastar-se dela se pretendessem conseguir a salvação.
No século XII, num contexto de reforma moral da sociedade iniciada no século
anterior, homens da Igreja o falar sobre as mulheres. Para isso recorrem ao livro do
Gênesis, aquele que segundo Georges Dubyrelata a origem do gênero humano, a
fundação da ordem moral, da ordem social e fornece, em algumas frases, uma
explicação global da condição humana‖
149
. O principal deles é Santo Agostinho que faz
a análise mais profunda sobre o livro que servia para responder as perguntas: por que a
humanidade é sexuada? Por que é culpada? Por que é infeliz?
Para santo Agostinho todo ser humano possui em si o masculino e o feminino,
para ele a mulher é semelhante ao homem, no entanto ela deve submeter-se a ele, pois
146
DELUMEAU, Jean, Os agentes de Satã III: a mulher. In: DELUMEAU, História do Medo no
Ocidente: 1300-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, pp. 310-349.
147
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
148
DELUMEAU, Jean, Op. Cit pp. 316.
149
DUBY. Georges DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995; p. 45.
47
foi feita como sua ajudante. Essa hierarquia de gênero também estaria relacionada ao
fato de no homem prevalecer a razão e o espiritual, enquanto na mulher prevalece o
desejo. O homem deve dominar a mulher, pois esta é oriunda dele e não o contrário.
Para Rose Marie Muraro, através do mito do Gênesis o homem, além de culpar a
mulher por todos os males da humanidade representados pela expulsão do paraíso
supera um complexo inconsciente: na criação quando a mulher é tirada da costela do
homem, ele se convence de que pariu a primeira mulher. Ela parte da psicanálise para
analisar essa tese e como Duby, considera o mito judaico-cristão como sendo a base da
civilização ocidental: ―é o mito dos que creem e dos que não creem nele, dos antigos e
dos modernos, porque o mito o é aquilo que ele diz, mas a estrutura psíquica que ele
produz‖
150
.
Em pleno século XII, quando está sendo desenvolvida uma teologia e uma moral
do casamento, aparece uma outra interpretação. Deus fez Eva da costela de Adão para
mostrar a união monogâmica como indissolúvel. Vejamos o trecho de Robert de Liège
(+1246):
Se o homem separa-se de sua mulher por causa qualquer que não seja
fornicação, mutilado de uma costela, não é completo. Para a mulher é
bem pior: se abandona seu homem, ela não existimais para Deus, pois
não é, de início, um corpo completo nem uma carne completa, mas apenas
uma parte oriunda do homem.
151
.
Porque Deus criou a mulher? De acordo com Agostinho, a mulher foi criada
apenas para procriar, esta seria o adjutorium (a ajuda) para o homem. Não se justificaria
a criação da mulher para ser companheira do homem, pois a criação de um segundo
homem seria mais interessante para fazer companhia a Adão. Para Duby, essa ideia está
bem de acordo com o que pensavam os padres do século XII a respeito das mulheres:
conversadeiras, desobedientes e sedutoras e, portanto, seria melhor um casal de amigos
que um casal formado por marido e mulher. Assim, esta criação estaria relacionada à
vontade de Deus de ―crescer e multiplicar‖ a humanidade
152
.
Em seguida à criação da mulher, o nesis cita a passagem em que Eva é
tentada pela serpente e ocorre a Queda. Talvez esta seja a parte mais importante do
150
MURARO, Rose Marie. Op. Cit. p. 70-71.
151
DUBY. Georges.. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995;. p. 51.
152
DUBY, Georges. Ibidem. P. 54.
48
mito, onde a mulher comete o pecado original e será culpada por todos os males da
humanidade. Por que a serpente tenta Eva e não Adão? Parece-nos que Adão representa
o espaço do divino, da ordem, diferente da serpente que representa a desordem e a
contradição
153
. Neste sentido, há uma associão da mulher com a serpente e uma
dicotomia entre o homem e a mulher, estes representando perspectivas diferentes na
relação com o mundo. Adão também desobedece a Deus, mas o faz por ser tentado pela
mulher, esta é sedutora e ao mesmo tempo poderosa, pois foi capaz de convencer seu
companheiro a obedecê-la, mesmo indo contra a vontade de Deus. É interessante que
este é o argumento que Adão utiliza para se justificar com Deus: ―a mulher que me
destes por companheira deu-me do fruto da árvore e comi‖. Eva desestabilizou a relação
do homem com Deus, portanto é um ser destrutivo.
Eva desintegrou a ordem criada por Deus, criando uma nova ordem. Ela foi
criada para ser passiva, no entanto, ela subverte essa ordem ao fazer o homem pecar, e
então Deus a recoloca no seu lugar, punindo-a com a submissão ao homem.
As consequências da Queda não atingiram apenas Adão e Eva, a punição do
Senhor será para toda a humanidade. No castigo divino, o homem é condenado ao
trabalho pesado, enquanto a mulher ―darás à luz a teus filhos com dor e estarás sob o
poder do teu marido e ele te dominará‖
154
. O texto torna sagrado a dominação do
homem sobre a mulher, este é um direito divino e inquestionável que é consequência
do pecado da mulher. Mas tem ainda uma questão importante. O castigo da mulher está
relacionado à sua sexualidade, lembremos que o casal não percebia estar nu, antes que o
pecado fosse cometido, ou seja, no Paraíso o havia desejo carnal, ele passa a existir
com a transgressão feminina. Esta relação mulher / corpo / sexualidade está muito
presente nas representações fundamentadas pelos textos dos padres da Igreja,
principalmente no período medieval. Como afirma Duby ―no século IX, no mundo
monástico, a coisa é assim entendida: o pecado é a mulher, e o sexo, o fruto
proibido‖
155
.
Voltemos a Agostinho e seus seguidores. Para eles a mulher pecou por orgulho e
cobiça e o seu maior pecado foi a vontade de comandar. Ela quis ser mais que o homem
153
LEAL, Jo Carlos. A maldição da mulher. Rio de Janeiro: Achiamé, 1995 p.221.
154
GÊNESIS. 3:16
155
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995; p. 55.
49
e mais que Deus. Esse abuso feminino é intolerável. Ela pecou contra Deus e contra o
homem e por isso foi duplamente castigada.
Ao buscarem as leituras e interpretações do Gênesis, os padres medievais não
estavam preocupados apenas com os seus fiéis, eles também precisavam cuidar de si
mesmos. Estando na categoria dos homens não sexuados precisavam convencer-se de
que a mulher é um agente de satã na terra, nela existiria tentação e sedução, portanto
era preciso afastar-se para obter a salvação. Para eles ―na origem de toda transgressão
da lei divina encontra-se o sexo (...) sabem o que é ser tentado e estão cheios de
indulgência para com Adão‖
156
.
Como resistir à tentação se as mulheres estão por toda parte? Segundo os
eruditos estudados por Duby, os celibatários são os que mais correm perigo, dentre estes
os clérigos ou os cavaleiros sem mulher. O perigo está em toda parte, nas cidades, nos
campos, e também no interior da casa, onde a tentação é constante. Apropriar-se das
―mulheres da casa‖ (geralmente criadas) não é considerado adultério, já que elas estão
disponíveis, ―tomá-las ou masturbar-se, ambos os atos tem a mesma tarifa nos
penitenciais‖
157
.
Diante desse quadro, alguns padres aconselham o casamento como uma forma
de defesa para os homens. São Paulo inclusive recomenda: ―O melhor é o homem não
tocar a mulher. Todavia, para evitar a fornicação, tenha cada homem a sua mulher e
cada mulher o seu marido
158
. No século XII, as autoridades da Igreja vão torná-lo o
sétimo sacramento
159
. No entanto, uma questão a ser resolvida: como considerar o
casamento um sacramento se nele ocorre a união carnal? A resposta é mais uma vez
buscada no Gênese: o casamento foi instituído por Deus no Paraíso, e a procriação
justifica os prazeres carnais. Também de acordo com o Gênese, está claro o papel da
mulher nessa instituição: esta deve servir o homem, ser sujeita a ele, podendo sofrer
todas as humilhações, pois senão logo tradiscórdia ao leito matrimonial. Os padres
buscam os defeitos das mulheres, as veem como eternas Evas, na busca pelo prazer
sexual, na busca pela dominação do homem.
156
DUBY. Georges. Eva e os Padres. Lisboa: Editorial Teorema, 1996. p. 64.
157
DUBY. Georges. ibidem.. p. 65.
158
1 Cor. 7: 1-3
159
DUBY. Georges. Idem.
50
Contudo, esse discurso não é homoneo. uma série de textos que se opõem
complemente ao casamento, considerando que o melhor caminho para o homem é
afastar-se das mulheres, estes seres traiçoeiros. Vejamos o exemplo de Petrarca neste
texto escrito no século XIV:
A mulher (...) é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de
impaciência, uma ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se
afastado se quer gozar a tranquilidade (...) Que se casem, aqueles que
encontram atrativo na companhia de uma esposa, nos abraços noturnos, nos
ganidos das crianças e nos tormentos da insônia (...).Por s, se está em
nosso poder, perpetuamos nosso nome pelo talento e não pelo casamento,
por livros e não por filhos, com o concurso da virtude e não com o de uma
mulher
160
.
De acordo com Howard Bloch é possível encontrar escritos antifeministas em
rios momentos na sociedade ocidental, a exemplo do Roman de la rose, de Jean de
Meun (1240 1305), escrito entre 1275 e 1280:
Ah, se eu tivesse acreditado em Teoafrastos, jamais teria esposado uma
mulher. Ele não tem por sábio o homem que toma uma mulher em
casamento, seja feia ou bonita, pobre ou rica. Pois ele diz, e acredite, em
seu nobre livro Aureole, que seria bom ler na escola, que ali há uma vida
cheia demais de tormento e desgosto.
161
O texto é parte das molestiae nuptiarum, as dores do casamento, que qualificam
as esposas como briguentas, orgulhosas, exigentes, queixosas e tolas, além de
incontroláveis, instáveis e insaciáveis. O tormento e desgostoa que se refere o texto
está relacionado a uma visão da mulher como mais faladora que o homem. De acordo
com Bloch, essa ligação do feminino com as seduções e as armadilhas da fala ―já está
latente muito antes do século XIX e mesmo antes da era cristã‖
162
. Ela aparece nas
sereias de Homero, na figura de Pandora em Hesíodo, ou mesmo no Velho Testamento,
na narrativa da Queda, em que a mulher semeou discórdia entre Deus e o homem
através da fala.
De acordo com os pregadores, as mulheres falam muito, falam mal e mentem
com extrema habilidade. Trocam maledicências, discutem entre si, são insistentes,
lamentam-se demais, nunca param de falar, são cansativas, petulantes e sabem usar a
palavra de forma perversa e conduzir ao erro.
160
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 319.
161
BLOCH, R. Howard Op. cit. p. 23.
162
Ibidem. p. 24
51
Aqui também encontramos outra característica criticada nas mulheres pelos
clérigos, a tagarelice. Afinal, foi por um pedido de Eva que Adão aceitou o fruto
proibido, e por isso, ela foi considerada enganadora
163
. É nessa recriminação em ouvir o
discurso feminino que se fundamenta a proibição da pregação feminina nos altos cargos
clericais. Para Gil de Roma (1243 1316)
164
, tais desvios de comportamentos devem-se
à sua natureza débil e irracional, demonstrados pela incapacidade de parar de falar.
Falam de tudo, principalmente de coisas estúpidas e inconvenientes. Quando se deixam
levar por sua incontrolável passionalidade, não conseguem parar.
Nas cantigas dos trovadores, conhecidas como Les Fabliaux, a afirmação ―em
troca, as mulheres são sempre intrigantes, inconstantes, pouco escrupulosas, briguentas,
queixosas, lascivas e sem-vergonhas
165
mostra a mentalidade que percorria a Europa
no medievo. A mulher que fala demasiadamente é perigosa, perversa, fonte de
discórdias no seio familiar e na sociedade. A mulher loquaz é voltada para o exterior,
que constrói e destrói com palavras. Mostra-se amigável, disponível e em seguida
corruptível. Nesse sentido, de acordo com Duby, os clérigos medievais viam a
necessidade de criar novas barreiras e proibições, baseadas nas regras das taciturnitas,
em que a mulher deveria falar pouco, de forma contida e somente quando fosse
necessário, observando-se o silêncio monástico. Reverentes, reclusas no espaço
doméstico, deveriam aguardar que o seu marido ou seus genitores lhe dirigissem a
palavra para, numa postura humilde, responde-lhes o necessário. Fora isso, podiam
aconselhar ou dar avisos
166
.
A persuasão do discurso feminino, reconhecida por autores medievais, permitia-
lhe que confortasse e instruísse o marido e os filhos, principalmente as meninas. Era
preciso impedi-las de tomar decisões importantes e duradouras e sequer deveriam saber
de certos assuntos, por sua natural incapacidade de guardar segredos.
Além da inquietação com a mulher, permeava a preocupação dos religiosos com
a vida sexual dos cristãos. Tal postura fazia-se perceptível pelo conjunto de regras
criadas pela Igreja referentes aos assuntos sexuais, definindo e prescrevendo condutas
que iam desde regras gerais (fidelidade, virgindade, celibato) até os níveis da intimidade
163
Ibidem. p 30.
164
Idem.
165
LOI, Isidoro. Op. Cit. P. 21
166
Duby, G. Eva e os Padres. Lisboa: Editorial Teorema, 1996. 133 a 136.
52
dos casais através da indicação de posições sexuais consideradas incorretas e impuras.
São Paulo, com efeito, escreve aos coríntios:
É bom ao homem o tocar em mulher. Todavia, para evitar a fornicação,
tenha cada homem a sua mulher e cada mulher o seu marido. O marido
cumpra o dever conjugal para com a esposa; e a mulher faça o mesmo com
relação ao marido.
167
O prazer sico era veementemente condenado pela igreja. Com a união através
do casamento, foram estabelecidas disciplinas para as relações sexuais entre os casais. O
sexo era normatizado, pois deveria ocorrer na posição considerada natural
168
, com a
mulher por baixo do homem, inferiorizando-a. Todas as outras posições eram proibidas,
consideradas imorais e escandalosas
169
. A mulher, em hipótese alguma, deveria
demonstrar sensação de prazer. Deveria manter-se passiva e em silêncio. A relação
carnal era terminantemente proibida em dias de festas religiosas, especialmente nos dias
em que os fiéis deveriam manter-se em jejum. ―Jean Louis Flandrim calculou que na
Alta Idade Média cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relações
sexuais sem contar os dias de menstruação, gravidez e amamentação, igualmente de
abstinência
170
. O ato deveria ocorrer apenas para a procriação. Fora do período
conceptivo, deveriam abster-se de qualquer contato carnal, principalmente se a
descendência já estivesse garantida.
Uma das justificativas criadas para tentar explicar o desejo sexual e para
diminuir o peso do pecado foi a criação do mito sobre os demônios do sexo: o Íncubus
(do latim incubare, significa ‗deitado em cima de‘) e o Sucubus (do latim sucubare, quer
dizer ‗deitado em baixo de‘). O primeiro tinha como missão tentar a mulher nos desejos
e nos prazeres da carne; o segundo, a mesma função, que em relação aos homens.
Eles faziam isso assumindo o corpo de alguém sexualmente atraente, como namorados,
esposas ou alguém conhecido.
167
I Cor. 7, 1-3
168
Os teólogos reconheciam esta posição como a única natural‖, sendo todas as outras ―antinaturais‖,
porque modelavam o homem ao animal, invertiam a natureza hierárquica do homem e da mulher e porque
outras posições eram suspeitas de prevenir a concepção e, portanto, contrariarem a natureza do
casamento, sendo a contracepção o pior pecado do sexo. TANNA HILL, 1980.
169
FRANCO Júnior, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.
130.
170
FRANCO Júnior, Hilário.Op. cit.p. 130.
53
Os religiosos medievais acreditavam que esses demônios sugavam, através dos
sonhos e do pensamento, a força vital das timas, que à época representava a alma.
Sobre a gênese dessas criaturas pouco se sabe
171
.
A mitologia hebraica credita a Lilith
172
a ―maternidade‖ desses demônios.
Depois de ser expulsa do paraíso por se insubordinar a Adão, passou a copular com
anjos caídos e teve muitos ―filhos‖, os chamados Lilins, os quais seduziam os fracos
mortais no silêncio da noite.
Na Idade dia, esses seres transcenderam o universo do tico, do
maravilhoso, ganhando uma conotação real, servindo à dominação ideológica. Tal
justificativa teve boa aceitabilidade e esses demônios passaram a ser culpados pela
perda da virgindade de muitas donzelas, pelo adultério cometido por mulheres casadas,
pela negação de um filho, fruto de um adultério, e, ainda, pelo nascimento de alguma
criança defeituosa. Como consequência dessa criação, muitos fiéis foram isentados de
culpa ou penalizados de forma branda.
Muitas são as recorrências de mulheres que têm em si o aspecto do terrível, do
devorador, seja ele representado de forma objetiva ou subjetiva. É possível encontrar
registros de mulheres com esse aspecto, que nas palavras de Delumeau,
No inconsciente do homem, a mulher desperta a inquietude, não porque
ela é o juiz de sua sexualidade, mas também porque ele a imagina de bom
grado insaciável, comparável a um fogo que é preciso alimentar
incessantemente, devoradora como o louva-deus. Ele teme o canibalismo
sexual de sua parceira (...) ou ainda ele imagina Eva como um oceano no qual
seu frágil navio flutua com precariedade, como sorvedouro que o aspira, um
171
Na Antiguidade Clássica, esses demônios se faziam presentes na figura de Zeus que, transmutado,
seduziu Leda e Europa e em Lamia (metade mulher e metade serpente), que seduzia homens,
metamorfoseada. As novelas de cavalaria, uma das mais importantes manifestações da prosa medieval,
derivadas de canções de gesta francesas e de poemas épicos, expõem narrativas compostas por elementos
fantásticos e maravilhosos. Tais produções eram divididas em três ciclos: o arturiano, o clássico e o
carolíngio, e ainda quem acrescente o ciclo bizantino. As correspondentes ao ciclo arturiano que
serviram de base para as novelas de cavalaria portuguesas, estão repletas de histórias protagonizadas por
esses demônios. Nos episódios d‘A Demanda do Santo Graal, ―Tentação de Persival‖ e ―A fonte da
virgem‖, há registros da presença da sucubus e do incubus, respectivamente. No primeiro episódio,
Persival é tentado por um demônio transmutado em uma linda donzela, e, no segundo, a donzela é
atacada por um demônio metamorfoseado na figura do seu irmão. O mago Merlin, conselheiro do Rei
Arthur, é fruto da copulação entre um incubus e uma princesa. Desta forma, pode-se perceber que as
recorrentes aparições dessas criaturas, a partir da metamorfose, remontam histórias míticas da antiguidade
e tamm fazem parte do fabulário medieval. A Demanda do Santo Graal; Apresentação e tradução de
Heitor Megale. Edição resumida. São Paulo: Ateliê Editorial/Editora Imaginário, 1996.
172
Segundo a mitologia hebraica, Lilith teria sido criada antes de Eva e por ter se insubordinado foi
banida do paraíso. referências sobre ela na Bíblia no livro de Daniel, capítulo 4 e no livro de Isaias,
capítulo 34. Nestas referências ela aparece como uma coruja. SICURETI, Roberto. Lilith, a lua negra. São
Paulo: Paz e Terra,1990.
54
lago profundo, um poço sem fundo. O vazio é a manifestação mea da
perdição, assim, é preciso resistir aos turvos apelos de Circe e de Lorelei.
Pois, de qualquer maneira, o homem jamais é vencedor no duelo sexual. A
mulher lhe é ―fatal‖. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua
espiritualidade de encontrar o caminho da salvação. Esposa ou amante, é
carcereira do homem. Este deve, pelo menos, as vésperas ou no caminho de
grandes empreendimentos, resistir às seduções femininas. Assim fazem
Ulisses Quetzalcoàlt. Sucumbir ao fascínio de Circe é perder a identidade. Da
índia à América, dos poemas homéricos aos severos tratados da Reforma
Católica reencontra-se esse tema do homem perdido porque se abandonou à
mulher
173
No fabulário ibérico do século XV, a sereia portuguesa foi formada a partir da
hibridação entre Oceânides e Sirenes gregas e a Moura Encantada
174
que trazem consigo
o aspecto devorador apresentado por Delumeau.
O mito da sereia chegou ao Brasil através dos portugueses, quando da
colonização. O europeu além da língua e dos costumes trouxe também os seus valores,
crenças, mitos e lendas. Porém, já existia entre os nativos a lenda de um fantasma
marinho que matava índio, afogando-o. também nos rios outros fantasmas, a quem
chamam Igpupiara, isto é, que moram n‘água, que matam do mesmo modo aos
índios
175
‖. Não foi difícil os portugueses associarem as características dessa criatura
aquática à sua conhecida sereia que atrai os homens para a morte. Esse diagnóstico
nos faz perceber que um imaginário comum em torno do mito da criatura marinha
que mata. Concluindo, o etnógrafo potiguar aponta que bastava que um detalhe
coincidisse ou o aspecto geral lembrasse as estórias ouvidas na pátria. O episódio ficava
assimilado com as nuanças locais e se tornava um
176
‖. Desse modo, durante o
processo de construção desse mito, a herança cultural dos portugueses misturou-se à
cultura indígena, permutaram-se conhecimentos, vivências e valores, surgindo, através
do hibridismo cultural, um amálgama sui generis.
inúmeras lendas referentes à Iara (ig-água, iara-senhor), principalmente no
Norte do país. De acordo com Câmara Cascudo, mitos africanos ajudaram a compor a
lenda da Iara, destaque-se a Kianda, sereia africana dos Kimbundos e a Kiximbi dos
173
DELUMEAU, Jean. Op.cit. P. 467.
174
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. 2ª Edição. São Paulo. Global, 2002. P.
148. A Moura Encantada contribuiu para a formação dessa lenda. Temos uma mulher encantada, de
cabelos longos, de incomensuvel beleza que canta e oferece tesouros para quem dela se enamora.
175
Ibidem. p. 150.
176
ibid. p. 147.
55
mbakas, e, ainda a poderosa Osun, orixá dos lagos, todas pertencentes a teogonia
africana.
Segundo Paes Loureiro, ―a Iara Mãe d‘água vive nas encantarias do fundo dos
rios. Ela atrai os moços e os fascina, mostrando-lhes seu rosto belíssimo à flor das águas
e deixando submersa a cauda de peixe
177
‖. O historiador Vicente Salles a define como
a mais perfeita convergência cultural na tica amazônica, reunindo figuras
antológicas de vários continentes
178
‖.
A Iara, portanto, configura-se como um mito híbrido, formado a partir de resíduos
de lendas europeias e indígenas, como analisou Câmara Cascudo: ―A Iara é uma
roupagem de cultura europeia. Não lenda indígena que tenha registrado a Iara de
cabelos longos e voz maviosa. [...] A presença da Iara denuncia o branco ou a influência
assimiladora do mestiço, irradiante e plástico
179
‖.
Em cordéis do nordeste brasileiro, são recorrentes, também exemplos de mulheres
devoradoras, como a Iara e Saiona, as quais seduzem suas timas pelo canto ou pela
beleza e as matam. Essas personagens apresentam em sua natureza alguns elementos
residuais atemporais, dentre os quais foram pontuados a sedução, a luxúria e a
fatalidade.
No cordel A Lenda da Iara ou os mistérios da mãe d´água, de Evaristo Geraldo
Silva
180
como o título sugere, tem-se o relato do mito difundido na cultura brasileira da
conhecida sereia europeia com a roupagem local. Logo no inicio do relato, o autor
mostra-se consciente da influência estrangeira na referida personagem, bem como de
suas variações.
A história que vou narrar
É sobre a lenda da Iara
Que conforme a região
Muda de nome e de cara
Chamam-lhe de Alamoa,
Mãe d‘água e Ipupiara.
177
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poesia do imaginário. 1
a
Ed. Rio de
Janeiro: Escrituras, 2001. Pág. 37.
178
Idem. p. 48.
179
CASCUDO, Luis da Câmara. Op.cit. p. 153.
180
SILVA, Evaristo Geraldo. A lenda da Iara ou Os mistérios da mãe d’água. Fortaleza: Tupynanquim
Editora, 2005.
56
A origem dessa lenda
Vem da cultura europeia
Lá ela é bem conhecida
Já tornou-se uma epopeia
Fizeram livros e filmes
Para essa grande plateia.
Toda a Europa a conhece
Pelo nome de sereia
Seu olhar hipnotiza
E seu canto desnorteia
Esse ser domina o homem
Feito mosca em uma teia.
Será observada nessa narrativa a relação estreita que há entre a Iara e os
elementos ligados aos demônios do sexo e à mulher, que são a metamorfose, a sedução,
a luxúria e seu caráter maligno. A descrição da Iara no cordel em análise apresenta
muitas características que remetem à sereia portuguesa mencionada por Câmara
Cascudo, entre outras, o ―feitiço irresistível da voz‖. O canto se configura numa das
principais peculiaridades desse mito.
O vulto era uma mulher
De beleza sem igual
O jovem Jaguarari
Sente uma atração fatal
Porque ela tinha um canto
Místico e sobrenatural.
Se aproxima ela cantando
Sua canção hipnótica
Ela ainda o induzia
pelo sentido da óptica
Deixando Jaguarari
Numa situação caótica!
O jovem índio sentiu-se
Ali igualmente um mago
E o seu primeiro impulso
Foi de se atirar no lago
Para abraçar a mulher,
Beijar-lhe, fazer afago.
57
Merece atenção, na terceira estrofe, o impulso do jovem Jaguarari em pular no
lago. A atração e o desejo que sentiu por ela foram incontroláveis, não permitindo
refletir que ali, no lago, poderia ser a Iara, pois ele sendo índio deveria conhecer essa
lenda e já ter sido alertado sobre ela.
Concernente aos aspectos demoníacos, a Iara não sai do pensamento do índio
Jaguarari, deixando-o perturbado. Do mesmo modo agia a sucubus com as suas vítimas:
Outros dias se passaram,
Ele com a mesma aparência.
Sempre lhe vinha a visão
Perturbar a consciência
O jovem pagava assim
Uma grande penincia.
Por muitos dias durou
Todo aquele sofrimento.
Olhando perdidamente
Pro lago a todo momento
Sem tirar uminstante
A Iara do pensamento.
Quanto ao elemento sedutor, este es por todo o texto, caracterizado pelo
encantamento através da beleza da Iara, usado por essa criatura para atingir seu objetivo
de devorar a alma de Jaguarari: ―Numa belíssima visão/ era um vulto fascinante/ que
prendeu sua atenção‖ e ―o vulto era uma mulher/de beleza sem igual‖. E enfeitiçado
por sua beleza, o jovem guerreiro indígena tenta, mas o resiste aos encantos da Iara e
saí a sua procura por não conseguir tirá-la do pensamento.
Assim em certa manhã
Pega o índio a sua igara
E desce o rio pensando
Em encontrar cara a cara
A bela ninfa das águas
Conhecida por Iara.
Alguns índios que estavam
Às margens do ribeirão
Viram quando o jovem índio
Parou sua embarcação
E uma mulher deslumbrante
Subiu lhe estendendo a mão.
58
De acordo com a lenda, para sobreviver a essas criaturas é preciso cantar melhor
do que elas ou resistir ao seu canto. Neste cordel, a maldição da lenda se cumpre, e
Jaguarari, enfeitiçado e movido pelo desejo sexual, é seduzido e se perde‖. Na
Odisséia, de Homero, podemos citar um caso semelhante: Ulisses ou Odisseu também
foi tentado por sereias, mas resistiu ao encontro com as deidades marítimas
181
. Percebe-
se entre esses dois exemplos uma forte similitude, levando-se em conta o episódio de
Odisseu e as sereias da rapsódia XII, da narrativa homérica.
Chegarás, primeiro, à rego das Sereias, cuja voz encanta todos os homens
que delas se aproximam. Se alguém sem dar por isso delas se avizinha e as
escuta, nunca mais sua mulher nem seus filhos pequeninos se reunirão em
torno dele, pois ficará cativo do canto harmonioso das Sereias.
182
Apesar da semelhança da tentação, o desfecho foi inverso. Ulisses amarra-se ao
mastro de sua embarcação e resiste ao canto sirênico, Jaguarari, como se nas estrofes
abaixo, sucumbe aos encantos da Iara:
Aquela mulher tão bela
Era a ninfa feiticeira
Que abraçou Jaguarari
E sumiu na ribanceira
Nunca mais o jovem índio
Voltou àquela ribeira.
Por causa da obsessão
Jaguarari se perdeu.
Partiu pro fundo do rio
E jamais apareceu.
Foi ser marido da Iara
Gozar eterno himeneu!!!!
Da mesma forma, vê-se claramente que assim como o incubus e o sucubus, a Iara
apresenta a mesma essência diabólica destes, valendo-se da beleza, da sedução e da
luxúria para consumar o seu objetivo de levar a vítima à perdição.
181
HOMERO. Odisséia; Trad. de Odorico Mendes; Org. Antonio Medina Rodrigues; Prefácio de
Haroldo de Campos. São Paulo: Ars Poética / EDUSP, 2000.
182
HOMERO. Op. Cit. P. 158.
59
Assim como no exemplo anterior, no cordel Saiona A mulher dos olhos de
fogo
183
, cujo título também se mostra muito revelador acerca da temática abordada,
registra-se, do mesmo modo, elementos luxuriantes e diabólicos. Novamente a sucubus
se faz presente nesta narrativa que conta a lenda de uma mulher que tem o rosto de
caveira, olhos de fogo, usa uma longa saia e vive na floresta, atacando os homens da
região.
O episódio em questão apresenta dois caçadores que trabalhavam nas redondezas
e depois de um dia cansativo e sem capturar nada, resolvem voltar para casa, mas
observam que está muito escuro, que estão muito longe, mais exatamente no alto da
montanha, e decidem pernoitar ali e seguir o caminho de volta logo cedo. Um dos
caçadores, o mais novo, comenta que gostaria de estar em casa e ser aquecido pela sua
mulher ao invés daquele fogo, e é repreendido pelo amigo que o alerta sobre a lenda da
Saiona.
Sentados junto ao fogo
Começaram a conversar
Um falou: Ah! Meu compadre
Quem dera estar em meu lar
E ao invés dessa fogueira
Minha mulher me esquentar.
O outro, um senhor mais velho,
Tratou de o repreender:
- compadre, não fale assim!
(E começou se benzer)
Desse jeito você pede
Pra Saiona aparecer
Nossos avós já diziam:
Não fale em mulher no mato
Senão a Saiona vem‖.
Isso não é lenda, é fato...
Mal calou-se, um assobio
Rompe o silêncio no ato.
183
RINARÉ, Rouxinol do. Saiona a mulher dos olhos de fogo. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2005.
A lenda da mulher que tem rosto de caveira, olhos de fogo e veste uma grande saia é de origem
venezuelana. Domínguez, Luis Arturo. Encuentro con el folklore en Venezuela. Caracas: Editorial
Kapelusz Venezolana, 1990.
60
Logo em seguida à repreensão, eles ouvem o piar da coruja, também conhecida
como rasga mortalha, e ficam assustados, pois, de acordo com a crendice popular, esse
pássaro anuncia desgraças ou a morte ―próxima e inevivel‖ pelo seu canto lúgubre
184
.
Logo em seguida uma luz
Vem daquela direção
Olhando lhes parecia
Flutuar na escuridão
E quando chegou mais perto
Ficaram os dois semão.
Perceberam uma visão
Das mais impressionantes.
Era uma bela mulher
De olhos negros, brilhantes,
Que os dois homens ficaram
Mudos por alguns instantes.
Era alta, pele branca,
Qual capucho de algodão.
Cabelos pretos e longos
Causava grande impressão
Vestindo uma enorme túnica
Que arrastava no chão!
A mulher se aproxima, cumprimenta os caçadores e senta junto deles, mas
próxima do caçador mais novo. O homem mais velho imagina que aquela é a Saiona.
Ela ataca perturbando o espírito da sua tima, aqui, o caçador mais novo,
metamorfoseando-se numa pessoa próxima e desejada por esta, depois seduz e mata.
- Boa noite! Disse ela,
E junto ao fogo sentou
Próxima do caçador jovem
Que da mulher se lembrou.
- Só pode ser a Saiona!,
O velho balbuciou.
Ela ouviu, claro, porém
Fingiu não ter escutado
Sorridente, sedutora
Tinha o jovem enfeitiçado
E ele com olhar de bobo
184
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9ª Ed. Revista, atualizada e
ilustrada. São Paulo: Global editora, 2000.
61
Lhe fitava embasbacado.
E na hora de dormir
Levou-a sem dizer nada
Deitou com ela na rede
Que num galho estava armada
Pois via o moço em seu rosto
A face da sua amada.
O outro caçador armou a rede um pouco abaixo da do amigo e, mesmo
preocupado, foi deitar. Ele acordou no meio da noite, sobressaltado, sentindo gotas
caírem sobre a sua rede. E percebeu, de imediato, que algo estranho aconteceu.
De um impulso o caçador
Ergueu-se preocupado
Acendeu uma lanterna,
Tendo a rede iluminado
Viu seu compadre esvaído
Em sangue, desfigurado.
Pensou: Foi estraçalhado
Por uma fera tremenda!
Pela cena, horrorizado
Exclamou: Deus me defenda!
E ao virar-se deu de cara
Com uma figura horrenda.
Eram dois olhos de fogo
Em um rosto de caveira
Gritou o homem: SAIONA!!!
Controlando a tremedeira
Desesperado embrenhou-se
Pelo mato na carreira.
O caçador mais velho escapou porque clamou por Jesus e se jogou no rio, de
braços abertos em formato de cruz e isso afastou a assombração. Pois segundo J.
Rivière, ―A cruz lembra uma espécie de anzol que fisga o demônio, imobilizando-o e
impedindo que ele prossiga sua obra
185
‖.
185
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números). Colaboração de André Barbault... [et al]. Tradução de Vera da
Costa Silva... [et al]. 19ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 312.
62
Sentindo a Saiona perto
O homem invoca Jesus
Correndo a esmo, no escuro.
Mas o acaso o conduz
A um rio, onde ele se joga
Abrindo os braços em cruz.
Diante à forma de cruz
Para a Saiona, porém
Com sua voz de caveira,
Essa aparição do além,
Num som rouco, horripilante,
Assim bufava: vem, vem...
A leitura dos trechos acima aponta elementos que levam a crer que a livrou o
homem do mal e do perigo. A invocação de Cristo na hora do desespero e a presença de
elementos sagrados, como a cruz
186
, foram fundamentais para que o caçador escapasse,
assim como evidencia também a fé e a crença do poeta popular.
O pobre caçador
Ouvindo aquele bufado
Teve a impressão que a Saiona
Já tinha lhe dominado
Mas bem nessa hora os galos
cantaram no povoado.
Cessou o som cavernoso
Daquela alma penada
A sua figura horrenda
Foi em água transformada
E se transmutando em ar
Desapareceu no nada.
O cantar do galo, nesse contexto, figura como outro elemento importante que
contribuiu para a salvação do caçador. Esta ave é, universalmente, um símbolo solar,
porque seu canto anuncia o nascer do dia. ―E por anunciar o sol ele tem poderes contra
186
A cruz, ícone primordial da fé católica, foi decretada como símbolo oficial do cristianismo no
Conselho de Nicéia, em 325 d.C. por Constantino. Para o cristianismo, ela representa o Salvador, o
Verbo, a segunda pessoa na Santíssima Trindade, e ainda mistifica todo o significado da Páscoa na
ressurreição e também no sofrimento de Cristo.
63
as influências maléficas da noite
187
. Este animal ainda tem uma representação religiosa
muito forte, é também um emblema em Cristo, como a águia e o cordeiro. Mas, nele, a
ênfase recai no seu simbolismo solar: luz e ressurreição
188
.
A simbologia dos elementos religiosos, a cruz e o cantar do galo, pontuados nessa
narrativa denuncia o quão forte é a tradição cristã no cotidiano do cordelista e o quanto
os dogmas e os valores católicos estão cristalizados na nossa cultura.
No enredo do livrinho O mistério da pedra encantada
189
existem muitas
semelhanças com os cordéis analisados. A personagem principal é uma mulher e o
cordelista a apresenta como sendo muito bonita, irresistível e perigosa.
E quando o ano é propício
Aquela moça aparece
E a cada ano que passa
Mais bonita ela aparece
De forma que quem a
Seu rosto jamais esquece
Dizem que as suas vítimas
Ficam loucas de amor
Pois a moça tem um beijo
E um corpo encantador
Fazendo buscarem sempre
Dos seus braços o calor.
Dizem que a moça é loira
Por outras vezes morena
Tem a cintura afinada
E uma boca pequena
Mas pelo poder que tem
Não é criatura terrena.
Ela se metamorfoseia em pedra e fica aguardando suas timas aparecerem para
devorá-las‖. Assim como a Iara e a Saiona, ela aprisiona a alma e os pensamentos do
homem de bem, deixando-o desorientado, como aconteceu com Nestor, a tima dessa
narrativa.
187
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números). Colaboração de André Barbault... [et al]. Tradução de Vera da
Costa Silva... [et al]. 19ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 457.
188
Ibidem. p. 458.
189
OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistério da pedra encantada. Fortaleza:
Tupynanquim Editora, 2008.
64
Nestor, esse tal rapaz,
A mocidade perdeu
Passava os dias sonhando
Com a moça que conheceu
Pensando nos seus encantos
Precoce ele envelheceu.
Nestor era um belo moço
De corpo tão jovial
Envelheceu muito rápido
De forma não natural,
Pois a paixão pela moça
O deixou irracional.
E seguindo a equação mulher - luxúria mal, o fim de Nestor não podia ser outro
senão a morte. A mulher, que não tem nome nessa história, atua de forma negativa e
maléfica na vida dele. Antes de tirar a própria vida, Nestor matou um homem por
causa dela , depois de ser desprezado pela mulher por quem ele tanto esperou, o que
agrava mais ainda a atuação desse mito na vida dele.
Mostrando maior destreza
Foi Nestor quem conseguiu
Ferir o pobre rapaz
Que no chão morto caiu
Mas durante aquela luta
Nestor também se feriu.
Naquele triste momento
O seu coração doía
De tudo se arrependeu
Também medo ele sentia
E num impulso Nestor
A faca em si mesmo enfia.
Os três cordéis analisados, a título de amostragem, foram escolhidos para
evidenciar a presença de resíduos luxuriantes e malignos relativos à mulher, ratificando
o pensamento misógino medieval de que o motivo da perdição dos homens de bem, aqui
referimo-nos à Jaguarari, ao caçador da segunda narrativa e a Nestor, esdiretamente
relacionado à mulher, à sua essência, ao seu comportamento.
Tal verificação foi possível devido ao processo de hibridação cultural entre
Portugal e Brasil, que resultou na formação de um imaginário mitológico composto por
65
essas criaturas diabólicas, no qual se cristalizaram os remanescentes da metamorfose e
da luxúria, tornando possível a identificação de resíduos medievais referente à mulher,
nos quais se configuram a ocorrência da residualidade.
2.2. A mulher entre as minorias medievais, segundo a concepção cristã
Parece até ser doença
Só com corno o povo sonho
Tanto crime, tanto roubo
Tanta mulher sem vergonha
Violência e sedução
Corno, bicha e sapatão
A concorrência é medonha
190
.
O Tribunal Católico Romano, também conhecido como ―Inquisição‖ ou
Tribunal do Santo Ofíciofoi institdo em Portugal, em 1536, pelo papa João III
191
.
O principal objetivo deste instrumento era combater, sobretudo, as heresias, bem como
qualquer um que se colocasse contra os dogmas difundidos pelo catolicismo. A Igreja
Católica fez uma declaração oficial sobre a condenação da bruxaria e da antiga religião
dos pagãos como ameaças ao cristianismo, dando início, assim, ao combate às heresias.
As heresias, durante o período em questão, assumiram diversas formas. Nos
séculos IV e V, muitas propostas religiosas foram declaradas falsas, sendo classificadas
e condenadas como heresias, como o Montanismo
192
, o Arianismo
193
, o Donatismo
194
e
190
LEITE, José da Costa. Mulher doida, moça quente, corno, bicha e sapatão. Recife: Editora
Coqueiro, s/d.
191
LOPEZ, Luis Roberto. Op. cit. p. 123-124.
192
Movimento cristão fundado por Montano por volta de 156-157 (ou 172). Caracterizou-se como uma
volta ao profetismo, pretendendo revalorizar elementos esquecidos da mensagem cristã primitiva,
sobretudo a esperança escatológica. Propunha um rigoroso ascetismo, visando à preparação para o
momento final. Negavam a absolvição aos réus de pecados graves (mesmo após o batismo com confissão
e arrependimento) e recomendava-se aos fiéis que não fugissem às perseguições e que se oferecessem
voluntariamente ao martírio.
193
Visão Cristológica sustentada pelos seguidores de Arius, bispo de Alexandria nos primeiros tempos da
Igreja primitiva, sendo considerada uma heresia cristã do século IV, que negava a divindade suprema de
Jesus Cristo. Recebeu o nome de arianismo por ter sido criada pelo religioso egípcio Ário. Segundo o
arianismo, o Filho de Deus, segunda pessoa da Trindade, não tem a mesma essência do Pai, sendo uma
divindade de segunda ordem, que nascera mortal. Os ensinamentos de Ário foram condenados no
primeiro Concílio de Nicéia, em 325, na cidade de Niceia (atual İznik), durante o reinado do imperador
romano Constantino I, onde se redigiu um credo estabelecendo que o Filho de Deus foi ―concebido e não
feito‖, consubstancial ao Pai.
66
o Nestorianismo
195
, porque criticavam a Igreja devido ao seu modo de disseminar a
doutrina. Porém, quando os movimentos anti-heréticos voltaram a agir, a partir do
século XII, os castigos e as punições passaram a ser mais rigorosas. Nesse segundo
momento, as críticas dos valdenenses
196
, dos cátaros
197
e dos Irmãos do Espírito Livre
colocavam em evidência o modo de vida dos representantes da igreja. Como punição,
eles foram excomungados, perseguidos pela Santa Inquisição e exterminados
198
. Como
consequência, a partir do século XIII, as perseguições aos movimentos opositores se
intensificaram.
Na Europa medieval, os clérigos definiram as categorias que deveriam ser
perseguidas pela Santa Inquisição: os hereges sexuais homossexuais, prostitutas,
194
Foi uma seita religiosa cristã, considerada herética e cismática pelo catolicismo. O nome advém de
Donato de Casa Nigra, bispo da Nudia e posteriormente de Cartago). Surgiu nas províncias do Norte de
África na Antiguidade Tardia. Iniciou-se no icio do culo IV e foi extinta no final do século VII. Os
autores que mais influenciaram os donatistas, em termos de doutrina religiosa, foram São Cipriano,
Montano e Tertuliano. Assim como o Novacionismo, fundado pelo Antipapa Novaciano no século III, os
donatistas eram rigorosos, e sustentavam que a Igreja não devia perdoar e admitir pecadores, e que os
sacramentos, como o batismo, administrados pelos traditores (cristãos que negaram sua durante a
perseguição de Diocleciano em 303-305 e posteriormente foram perdoados e readmitidos na Igreja) eram
inválidos.
195
Doutrina herética cristã, nascida no século V, segundo a qual há em Jesus Cristo duas pessoas
distintas, uma humana e outra divina, completas de tal forma que constituem dois entes independentes. A
doutrina surgiu em Antioquia e manteve forte influência na Síria, e é sustentada ainda hoje pela Rosacruz
e outras doutrinas ligadas à gnose. O seu surgimento deu-se dentro das disputas cristológicas que
abalaram o Cristianismo nos séculos III, IV e V, sendo proposto por Nestório, monge oriundo de
Alexandria, que assumiu o bispado de Constantinopla. Isto o levou a opor-se a Cirilo de Alexandria, bispo
daquela cidade, que defendia a tese da unidade entre a pessoa humana e divina de Cristo. No Concílio de
Éfeso, no ano de 431, discutiu-se sobre o título com o qual se devia referir a Maria, se somente
cristotokos (e de Cristo, a dizer, de Jesus humano e mortal), como defendiam os nestorianos, ou de
theotokos (mãe de Deus, ou seja, também do Logos divino), como defendiam os partidários de Cirilo.
Resolveu-se adotar como verdade de fé a doutrina proposta por Cirilo, concedendo a Maria o título de
Mãe de Deus, e os nestorianos foram considerados hereges.
196
Heresia surgida no fim do século XII com Pedro Valdo, comerciante de Lion, renunciou à grande
fortuna que possuía e iniciou sua pregação dos Evangelhos. Eles defendiam que o cristão, para salvar-se,
não necessitava de sacerdotes, bastando-lhe a oração e o respeito aos ensinamentos blicos. A leitura da
Bíblia era um preceito fundamental cujo cumprimento ficava a cargo dos "pastores", homens que sem
abandonar suas atividades comuns, agiam na comunidade como conselheiros morais e comentadores da
Bíblia. Tiveram importância, sobretudo, na região do Languedoc, influenciando os albigenses. Sua
principal base doutrinária era a chamada Confissão de 1120, o documento mais antigo da Reforma
Protestante, embora não se tenha ideia das condições ou dos autores que o elaboraram, constituiu-se num
marco demarcatório para a formação de uma tradição confessional reformada.
197
Do grego "puro", foi um movimento cristão, considerado herético pela Igreja Católica, do final do
século XI até meados do século XIV. Suas ideias tem fortes paralelos com o gnosticismo do início da era
cristã. Os historiadores indicam sua formação a partir da expansão das crenças dos bogomilos (Reino dos
Búlgaros) e dos paulicianos (Oriente Médio). Os sacerdotes cátaros, que denominavam-se "bons cristãos"
ou "bons homens" e "boas mulheres", levavam vidas simples e castas. Desprovidos de quaisquer posses
materiais, buscavam afastar-se ao máximo do mundo, que consideravam corrupto. Eram considerados
bons homens a partir do momento em que recebiam o consolamentum, um rito que representava de
maneira simbólica sua morte com relação ao mundo. LOPEZ, Luis Roberto. Op. cit. p. 23-24.
67
leprosos e os hereges religiosos judeus, bruxos e hereges
199
. Embora distintos num
primeiro plano, o sexo configura-se como o elemento comum que unia estes diversos
grupos, pois segundo Elizabeth Dias Martins o pecado sexual foi associado à Lepra; e as
grandes calamidades como o Dilúvio e a Peste Negra foram consideradas consequência
da sodomia
200
.
Nos discursos cristãos havia uma associão entre a luxúria e o demônio, que era
utilizada para demonizar os desviantes da . O sexo era a via mais comum para
aproximar os homens do demônio. Este procurava dominar as mentes humanas,
escravizando-as e usando-as para subverter a ordem natural de Deus e espalhar o pecado
pelo mundo.
Nas classes populares, as mulheres desfrutavam de maior liberdade pessoal,
principalmente no que diz respeito a sua sexualidade, mas nem por isso deixavam de ser
perseguidas e punidas ao transgredir as regras impostas tanto pela Igreja, quanto pelo
Estado. as mulheres que pertenciam às classes dominantes, tinham sua sexualidade
confinada no interior da casa, podendo sair apenas com a autorização do marido, que
tinha amplos poderes sobre ela, inclusive o direito de castigá-la fisicamente ―Pode-se
bater até fazê-la sangrar, sempre que a intenção seja boa, isto é, para corrigi-la‖
201
. Elas
tinham poucas opções fora do casamento para encontrar a satisfação de desejos pessoais
muitas vezes não realizados no matrimônio. O seu papel principal era o de reprodutora.
Aliás, era através da maternidade que a mulher se afastava de Eva, a pecadora, para se
aproximar de Maria, ―a mulher que pariu virgem o salvador do mundo‖
202
.
Essa intensa preocupação dos clérigos devia-se ao perigo que o contato carnal
podia provocar: o sexo poderia despertar a paixão do marido pela esposa, fazendo com
que ele passasse a amá-la excessivamente e, como um adúltero, passasse a comportar-se
com ela como se fosse uma prostituta. A mulher jamais poderia tratar seu marido como
um amante. Apesar de ser posse de seu esposo, ela não deveria esquecer-se de que sua
alma pertencia a Deus.
199
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit.
200
MARTINS, Elizabeth Dias. Sanção e metamorfose no cordel nordestino: resíduos do imaginário
cristão medieval ibero-português‖. In: XIX Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa,
2003, Curitiba - PR. Anais do XIX Imaginário: o não espaço do real - Encontro Brasileiro de Professores
de Literatura Portuguesa. Curitiba-PR : UFPR/Mídia Curitibana, 2003. p. 304-311.
201
LOI, Isidoro. Op. Cit. Pg. 23.
202
ARAÚJO, Emanoel. ―A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia‖ In: História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p. 52.
68
Mas como os desejos do sexo não podiam ser simplesmente descartados era
preciso criar justificativas para amenizar o doloroso poder da crença mantida e exigida
pela Igreja. Alguns tratados teológicos foram escritos como forma de justificar os
incontidos desejos de homens e mulheres pelo prazer do sexo. Anterior ao século XI, já
existiam muitos textos e livros de penitência que tratavam das penas religiosas a serem
impostas para aqueles que desobedecessem as regras para a vida conjugal.
A título de contextualização faz-se necessário conhecer um pouco sobre esses
grupos e perceber como a mulher se faz presente em cada um deles, uma vez que essas
categorias não tinham o gênero como critério. Ressalta-se ainda que as categorias das
prostitutas e das bruxas têm uma relação mais estreita e direta com o feminino.
Os pecados contra a natureza, por ordem crescente de gravidade, são: a
masturbação, a relação inatural com o sexo oposto, a relação homossexual e a
bestialidade
203
. A partir do século XIV, essas práticas faziam parte das acusações de
bruxaria.
A literatura de cordel registrou alguns desses pecados. No cordel Iniciação
sexual na zona rural
204
, de uma maneira geral, exemplifica como os rapazes do interior
iniciam a prática sexual. A bestialidade ou zoofilia é descrita como sendo uma prática
comum, principalmente na zona rural.
Jovem com 18 anos
Sem conseguir namorar
Começou com os animais
De todo jeito transar
A cada dia era um
Que lhe fazia gozar.
[...]
Todavia, devo dizer
Ele não é exceção
Porém, quase uma regra
Para iniciação
Sexual dos rapazes
De todo interiorzão
203
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 145.
204
NASCIMENTO, Vanecir Santos do. Inicião sexual na zona rural. Natal: Chico Editora, 2008.
69
E embora retratado dessa maneira, o cordelista faz um alerta sobre essa conduta
e embasa seu conselho nas Escrituras Sagradas:
Vi até homem casado
Essas coisas praticando
passa a ser doença
A todos vou avisando
Segundo a Bíblia, quem age
Desse jeito está pecando.
Quem pratica, é bom deixar
Esse ato bestial
Se transava, pare logo
De transar com animal
Há outros meios melhores
Para o ato sexual.
Sobre a bestialidade, a Bíblia diz que ―Ninguém, homem ou mulher, deverá ter
relação com animal; isso é uma imoralidade e a pessoa fica impura‖
205
. E para esse
pecado a punição prevista, segundo as Sagradas Escrituras, é a morte. ―Se um homem
tiver relação com um animal, os dois deverão ser mortos‖
206
, para que não ficasse
indícios de um pecado tão detestável e repugnante.
Outro ato sexual perseguido pela igreja, no período da Idade Média,
correspondente aos séculos XIV e XV, é a relação entre pessoas do mesmo sexo e foi
alcunhada de sodomia
207
pelas normas prescritas pela Igreja Católica através da Bíblia.
Esse termo surgiu no século XII, proveniente do latim medieval e faz referência à
cidade de Sodoma, onde essa prática era amplamente difundida.
Com o advento do cristianismo e com o poderio da Igreja, esse termo passou a
ser utilizado para designar o que os clérigos denominavam de perversão sexual,
principalmente àquelas ligadas ao sexo anal, pois tais atitudes iam contra um dos
205
Levítico 18:23.
206
Levítico 20:15.
207
Pecado nefando, sensual, tem esse nome derivado da palavra Sodoma, cidade antiga da Palestina cujos
habitantes o praticavam. Bosswell, Jonh. Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality
(Cristianismo, tolerância social e homossexualidade).Oxford, 1980. P. 93. A mais influente definição de
sodomia foi a de Santo Tomás de Aquino, construída pela Escolástica, ―a união sexual de homem com
homem e de mulher com mulher, sendo que o coito anal entre machos seria a sodomia perfeita‖.
70
preceitos mais importantes para os católicos do medievo: o sexo voltado exclusivamente
para a procriação, sendo, portanto, uma atitude que ia contra naturam
208
.
A essa prática eram atribuídas todas as moléstias, como o dilúvio, a destruição
de Sodoma e Gomorra, as guerras, as pestes, as enchentes, entre outras. Com essa
associação, o homem medieval passou, então, a abominar e a temer essa prática de
sodomia, dando-lhe o caráter lascivo e pecaminoso que perdurou pelos séculos
vindouros. E essa prática era classificada como própria, praticada homem com homem
ou homem com mulher e imprópria, praticada entre duas mulheres
209
.
Ronaldo Vainfas, num estudo sobre essa prática entre mulheres, acredita que a
sodomia feminina sempre foi tratada como um tema dúbio pelos religiosos medievais. E
defende que um dos principais motivos para os inquisidores ignorarem esse pecado é a
impossibilidade da mulher ser ativa numa relação sexual, além de sua discrição nas
relações sexuais quando comparadas aos homens. Talvez os inquisidores se ativessem
mais na busca de desvios sexuais masculinos, porque uma das grandes preocupações era
o deixar que esses casos de sodomia viessem a se tornar públicos e frequentes e
também porque o homem era considerado puro em relação à mulher
210
.
No século IV, Santo Ambrósio (340 397) interpretando essa passagem,
declara: Ele testifica que, estando Deus zangado com a raça humana por causa de sua
idolatria, acontecia de uma mulher desejar outra mulher pelo hábito de vergonhosa
luxúria
211
e Pedro Abelardo interpretou assim: ―Antinatural, isto é, contra a ordem da
natureza, que criou os óros genitais das mulheres para o uso dos homens e
reciprocamente, e não para que as mulheres pudessem viver com mulheres
212
‖.
Vainfas esclarece ainda que, durante alguns séculos, o termo sodomia adquiriu
um amplo significado, indicando, além da relação entre pessoas do mesmo sexo, os
exageros sexuais, que iam desde a masturbação até a bestialidade. Quanto à prática da
sodomia, essa foi associada, sobretudo, aos desvios da genitalidade, incluindo o coito
208
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. p. 136.
209
VAINFAS, Ronaldo. ―Homoerotismo feminino e o Santo Ofício‖ In: PRIORE Del, Mary. História
das Mulheres no Brasil . São Paulo: Editora Contexto 2006, p.119-120.
210
Idem. Loc. Cit.
211
Idem. Loc. Cit..
212
Idem. Loc. Cit..
71
anal, o sexo oral e outros crimes conta a natureza, discriminados em penitenciais da Alta
Idade Média
213
.
Existem relatos que demonstram claramente o quanto essa prática era abominada
pela filosofia cristã, dentre as quais, algumas passagens bíblicas que versam sobre esse
tema. No Antigo Testamento Deus diz pela voz do profeta: ―Com homem não te
deitarás, como se fosse mulher; é abominação‖
214
. E no Novo Testamento, na Carta aos
Romanos, Paulo diz: ―...Pois até as mulheres trocam as relações naturais pelas que são
contra a natureza. E também os homens deixam as relações naturais com as mulheres e
se queimam de paixão uns pelos outros‖
215
.
Com esta ojeriza corrobora Santo Alberto Magno (1193 1280) que pensava a
sodomia como o maior pecado contra a natureza e fundamentava-se em quatro
argumentos, a saber: por subverter a natureza, por ser tão contagiosa quanto uma
doença, por se distinguir pela imundície e porque aqueles que se viciavam nessa prática
o se recuperavam
216
.
Os castigos para a sodomia variavam de acordo com a idade e com a situação do
pecador. Se solteiro, a pena era de sete anos de jejum e de abstinência; se casado, era de
dez anos; se fosse habitual, quinze anos; se fosse jovem, era punido com cem dias a pão
e água. Ainda se diferenciava a sodomia homossexual da sodomia heterossexual. Esta
era condenada a três anos, e aquela a dez. à bestialidade se comparava a sodomia
homossexual, que era o pecado sexual mais sério.
Mesmo com toda vigilância, essa prática era muito frequente na Idade Média,
principalmente entre os clérigos, como afirma Jonh Boswell
217
em seu livro
Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality (Cristianismo, tolerância social e
homossexualismo), que é o trabalho mais erudito e um dos mais completos sobre esse
assunto‖, de acordo com o estudioso Jeffrey Richards, que afirma ainda:
Na Idade Média, o meio monástico era um terreno propício para a sodomia.
A regra de São Bento previa que os monges deviam dormir cada um em uma
cama, de preferência em um mesmo local, com sacerdotes mais antigos que
cuidariam deles. Os regulamentos de Cluny proibiam que os noviços
ficassem sozinhos ou na companhia de um só professor. Se um dentre eles, à
213
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986. p. 46
214
Levítico 18:22.
215
Romanos 1: 26-27
216
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. 145.
217
Bosswell, Jonh. Op. Cit.
72
noite, tivesse que sair para satisfazer as necessidades, tinha de estar
acompanhado por um mestre e por outro jovem munido de lanterna.
218
São Pedro Damião também escreveu um livro sobre os abusos sexuais do clero,
The Liber Gomorrianus (O livro de Gomorra), elencando as formas de
homossexualidade, as circunstâncias das transgressões clericais e as medidas propostas
contra tal prática. O referido autor entendia esse comportamento como hediondo e
terrível.
Na verdade, este vício nunca deve ser comparado a qualquer outro vício, pois
ultrapassa a sordidez de todos os vícios. Sem dúvida, este vício é a morte dos
corpos, a destruição das almas. Ele polui a carne, ele extingue a luz da mente.
Expulsa o Espírito Santo do templo do coração humano; introduz o Diabo,
incita à luxúria. Ele introduz ao erro; ele remove completamente a verdade da
mente que foi ludibriada.
219
Apesar da proibição massiva à sodomia, a tradição cristã, em sua gênese, era
mais tolerante ao tratar dessa prática por duas razões: Na Alta Idade Média, percebiam-
se influências de modalidades não cristãs na aceitação desse comportamento e a
hierarquia eclesiástica ainda estava em formação. Somente a partir do século XIII, as
punições passaram a ser mais severas, principalmente para os membros do clero, o que
demonstra que mesmo sendo proibidas, as relações entre os sodomitas eram tão comuns
quanto em qualquer outro período.
Esse tema também foi registrado na poesia popular. Em O casamento do
boiola
220
, J. Borges conta a história de um rapaz, filho de um renomado político da
cidade, que assume a sua homossexualidade. O pai não aceita essa condição do filho, o
que fica claro na estrofe:
Um dia o pai lhe falou
Meu filho que hisria é essa
Meu único filho é você
Lhe considero boa peça
Só não me diga que é gay
Não faça uma coisa dessa.
A Igreja também não apoia essa situação e corrobora com a postura do pai. E
embora não concorde com esse tipo de relacionamento, a Igreja, na figura do sacristão e
218
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 143
219
Idem.
220
BORGES, José Francisco. O casamento do boiola. Pernambuco: S/D.
73
do padre, é criticada pelo cordelista, pois mesmo sendo proibido o casamento acontece
graças à propina paga pelo filho do deputado, como se percebe nos versos:
E a noite disse ao padre
Acertei um casamento
De um boiola gostoso
E o noivo é feito um jumento
E o padre disse: nem pensar
Fazer este casamento
O sacristão respondeu
Não me bote para trás
Já disse que se fazia
O casamento dos tais
E o boiola prometeu
Nos trazer 10 mil reais.
Disse o padre: assim tem jeito
Não vou deixar de fazer
Deus proíbe mas não manda
Dinheiro pranós comer
Se um quer e outro quer
Desde já vou resolver.
Conforme visto nas estrofes destacadas, verifica-se a remanesncia da
condenação desse comportamento, assim como acontecia na Idade Média, sendo
respaldada na mentalidade moralizante cristã medieval.
Inserido no mesmo contexto de pecado e luxúria d‘O casamento do boiola, está
o cordel Chica Bananinha, a sapatão barbuda de da Paraíba
221
, que conta a história
de uma moça que gostava de mulheres e que, por muitas vezes, assume o papel do
homem na relação. Durante o enredo, a personagem destrói casamentos, deflora,
desvirtua adolescentes e pratica um dos pecados mais graves contra a natureza, segundo
a ideologia clerical: a sodomia imperfeita. A linguagem usada pelo cordelista para falar
de Chica e de seu comportamento é extremamente chula e depreciativa.
O mundo tá tão mudado
que ninguém entende nada
tem mulher que está nascendo
macho e até barbada
221
K. Gay Nawara. Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984.
74
como é o caso da tal Chica
que é mulher só na fachada
A sua maior façanha
Foi acabar com um lar.
Tomou a mulher dum homem
E, com ela, foi morar.
E o marido abandonado
Bichou para se vingar
(...)
Houve até alguns casinhos
Dela deflorar com o dedo
Quando ficou maiorzinha,
De rapaz, não tinha medo.
Brigava por namorada
Quando queria um brinquedo.
Outros pecados cometidos por Chica Bananinha são a masturbação e a
molície
222
, que o pecados contra a natureza dos menos graves, se comparados à
sodomia, por exemplo. Ela ainda faz uso de instrumentos, o que agrava o pecado, de
acordo com a moral cristã.
Era difícil arranjar
Menina pra sua tara
Ela então se masturbava,
Se roçando numa vara,
No coxim da bicicleta,
Pois precheca era rara.
[...]
Levava a companhia
Para seu apartamento.
Botava uns apetrechos
De uma pica pra dentro
E outra pra embucetar,
Depois do assentamento.
Passava a vaselina
E metia em sua dama.
Ficava aquele roçado,
Chiando em cima da cama.
E todas as duas gozavam,
Fazendo a sua fama.
222
Entende-se masturbação entre pessoas do mesmo sexo.
75
Após a análise dos versos, percebe-se a existência de substratos mentais no que
se refere à sodomia feminina vista na Idade Média como um pecado menor, em virtude
da mulher não ser ativa na prática sexual, se comparada ao mesmo pecado quando
cometido por homens.
As prostitutas
223
, bem como os prostíbulos, tiveram sua presença registrada
durante a Idade Média. Ela teve a sua relevância para a época em questão, pois surgiu e
funcionou nesse cenário como um subterfúgio para diminuir a possibilidade de estupros
e violações cometidas por jovens contra mulheres honestas, para combater o
homossexualismo e também para atender aos homens que buscavam o prazer,
considerado como um ―pecado‖, quando feito sem fins de procriação. Segundo Santo
Agostinho, um dos mais rigorosos no que diz respeito a moral sexual,
Assim como o verdugo, por repugnante que seja, ocupa um posto necessário
na sociedade, assim as prostitutas e seus similares, por mercenários, vis e
imundos que pareçam, são também necessários e indispensáveis à ordem
social. Retirais as prostitutas da vida urbana e chegareis ao mundo da
luxúria
224
.
As opções para a mulher medieval eram poucas: o casamento ou o convento. E
como para ser freira era preciso pagar uma alta taxa, a alternativa mais viável era o
casamento, que vinha acompanhado de uma vida de submissão. A educação das
mulheres da época tinha como único objetivo o matrimônio.
Além de ocuparem uma posição inferior na sociedade medieval, as mulheres
ainda tinham duas grandes preocupações: a inquisição e a prostituição, que reforçavam
a importância e o desejo pelo casamento, o que não anulava e nem impedia os
acontecimentos dos eventos já citados.
As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. De
acordo com Jeffrey Richards, os motivos que levavam uma mulher a se prostituir na
Idade Média são praticamente os mesmos que levam a isso em qualquer época:
pobreza, inclinação natural, perda de status, um passado familiar perturbado, violento
223
(Mesmo fora dos grandes cinturões de pobreza, que multiplicavam por todos os caminhos o número de
mulheres que se ofereciam, moças vagabundas iam com ou sem os seus rufiões, de cidade em cidade,
reforçando aqui e ali o pequeno grupo de mulheres ―comuns a muitos‖). Elas adaptavam seu itinerário ao
calendário das feiras e mercados das peregrinações e dos grandes trabalhos agrícolas. ROSSIAUD,
Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 20.
224
Santo Agostinho. De Ordine, Livro II, cap. IV apud GASPAR, Maria Dulce. Garotas de programa
Prostituição em Copacabana e identidade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988.
76
ou incestuoso‖
225
. As prostitutas eram na sua maioria estrangeiras, provindas de
famílias pobres. Iniciavam no ocio por volta dos dezessete anos de idade e estavam
incluídas no grupo das minorias, levando consigo uma marca de infâmia que as
distinguia das ―mulheres de bem‖.
Na Idade Média, a prostituição, apesar de ser condenada veementemente pela
Igreja, era vista como um mal necessário, ideia defendida por Santo Agostinho, que
afirmou: ―Se as prostitutas forem expulsas da sociedade, tudo estará desorganizado em
função dos desejos‖
226
. Compartilham desse mesmo pensamento teólogos de destaque
como Santo Tomás de Aquino e Tomás de Chobham. Este até levantou a hipótese de
que as prostitutas deveriam ser assalariadas, pois quando alugam seus corpos estão
fornecendo mão de obra
227
. E, caso se arrependessem, com o dinheiro advindo da
prostituição poderiam fazer caridade e redimir-se da vida de pecado. Mas ressaltou
também que caso o houvesse arrependimento, e além de receber dinheiro, fizessem
sexo por prazer, isso seria considerado pecado e não trabalho.
O conceito de prostituta foi definido, no século V, por São Jerônimo: ―Uma
meretriz é aquela que se encontra disponível para atender os desejos de muitos homens
228
. Esta categoria era identificada, tal como os leprosos, por uma marca de infâmia e
pela segregação, além de vestes diferenciadas. ―A lei canônica diferencia prostituição
(envolvendo sexo com muitos homens) do concubinato (envolvendo sexo com uma
pessoa, mas fora do casamento)
229
.
Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela Igreja, que a considerou
"uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os
homens de elevar-se ao patamar do seu Deus"
230
, explica Richards. A igreja condenava
todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal
necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média,
"pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem
bordel"
231
.
225
RICHARDS, Jeffrey.Op. cit. p. 121.
226
PILOSU, Mário. p. 76.
227
Idem.
228
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 123
229
Idem.
230
Idem.
231
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. P. 224.
77
As prostitutas eram parte integrante da vida urbana na Idade Média, figuras
familiares na literatura que sobreviveu poemas, histórias, canções, crônicas
e registros de tribunais. Quase não existia uma cidade que o tivesse sua
―boa casa‖, como era às vezes conhecido o bordel.
232
.
Na Idade Média, a única forma de livrar da prostituição as mulheres pobres, era
o casamento. Com isso, no final do século XIII surgem fundações como o Le Halle,
onde homens cristãos resgatavam uma pobre pecadora e, por amor a Deus, casavam-se
com ela. Em uma tentativa de acabar com a prostituição, em 1198, Inocêncio III
declarou que seria obra benemérita se um homem ajudasse a mulher abandonar a
prostituição e, através do casamento, salvá-la da vida pecaminosa.
233
As constantes referências à sensualidade feminina e à liberação dos desejos
sexuais mostram a mulher como um ser irracional, levado pelas paixões e incapaz de
refrear seus impulsos considerados demoníacos. Elas são descritas como pecadoras,
perigosas, pois são as tentadoras prontas a atrair o homem para a satisfação de seus
desejos carnais, levando-o a cometer o pecado.
Essa minoria foi sujeito do cordel intitulado A chegada da prostituta no céu, de
José Francisco Borges. Nesse folheto, o enredo gira em torno de uma prostituta que
morre, passa pelo inferno, pelo purgatório (tendo a companhia do Diabo) e, finalmente,
chega ao céu, causando ali uma desordem ao namorar todos os santos. Na segunda
estrofe, a vida da prostituta é vista como um engano, um erro:
Sabemos que a prostituta
É também um ser humano
Quer por sua iludição
Fraqueza ou desengano
O seu viver volúvel
Sempre abraçado ao engano
Essa mentalidade remonta ao período medieval, tempo em que a prostituta era
tomada como minoria social por praticar o sexo fora do casamento, deliberadamente, e
por deixar-se ludibriar pelo Demônio, a quem sempre estava associada, como podemos
conferir na quarta estrofe, a seguir:
Assim que foi enterrada
Sua alma se destinou
232
RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. P. 121.
233
OPTIZ, Claudia. O Quotidiano da Mulher no Final da Idade Média, IN: História das Mulheres no
Ocidente - Porto: PT: Ed. Afrontamento Ltda, 1990.
78
Querendo ir para o céu
Mas primeiro ela passou
Pela porta do inferno
E o diabo lhe acompanhou
Não podemos deixar de atentar para a comparação, que fica subentendida, entre
a prostituta e uma mulher bem casada que se encontram na porta do céu. Temos nesse
instante o modelo de mulher em quem a prostituta deveria se espelhar:
Pois lá já se encontrava
Uma mulher bem casada
Arengando com o marido
Que morreu de uma virada
E queria entrar no céu
Com uma faca afiada
Observemos na estrofe seguinte que o fato de ser prostituta provoca uma reação
negativa na mulher bem casada causando-lhe ciúmes , que logo decide exterminar
esse mal:
Essa mulher também morta
Era muito ciumenta
Quando viu a prostituta
Entortou o pau da venta
E disse vou te furar
Foi uma luta cinzenta
Na décima estrofe, percebemos algo curioso, mas muito comum nos folhetos de
cordel: a violação de preceitos cristãos por parte de personalidades adeptas do
Cristianismo em tom de humor. Porém, a transgressão se devido à chegada da
prostituta. Segundo a mentalidade da Igreja, é ela a responsável por causar a desordem.
Nessa zoada, São Pedro
Se apresentou no portão
E disse não tem lugar
Pra mulher com bestalhão
Só tem pra mulher sozinha
E foi logo estirando a mão.
E foi pegando no braço
Da prostituta assanhada
79
Disse você pode entrar
Aqui não lhe falta nada
Vai dormir na minha cama
E me esquentar de madrugada
Agravando ainda mais a situação da mulher, aparece na porta do céu um homem
dizendo ser seu gigolô:
Mas atrás deles vinha
Outra cara de complô
E disse: eu entro também
Pode dar a estupor
Porque na terra eu era
Dessa mulher o gigolô
Mais adiante, precisamente na vigésima estrofe, Santo Oscar ameaça contar
todos os desvios que passaram a acontecer no céu após a chegada da Prostituta,
deixando transparecer que esta é provocadora de desordem e responsável por fazer os
santos caírem em tentação. Atentemos para o fato de que será Jesus, representante do
Bem, o responsável por levar novamente a ordem ao lugar, que se transformou num
cabaré:
Disse ele: hoje mesmo
Antes de tomar café
Eu vou contar a Jesus
Essa puta como é
Depois de sua chegada
O céu virou um cabaré
Outro pensamento medieval claramente presente no cordel em questão está no
fato de ser a prostituta um ―mal necessário‖, evitando que os homens prevaricassem
com as moças de virtude, como podemos verificar a seguir, na resposta de Jesus a Santo
Oscar:
Na terra não teve apoio
Em meio à sociedade
Levou a vida sofrendo
E fazendo caridade
Aceitando preto e branco
Que tinha necessidade
Mesmo com as prostitutas
Existe um mundo de tarados
80
Correndo atrás de mocinhas
E mulher de homem casado.
Se não houvesse prostituta
Qual seria o resultado?
Também é importante salientar a recorrente bondade de Jesus, expressa mais
uma vez nas estrofes acima, e da sanção expressa pela sociedade à prostituta, cujo
comportamento não condiz com os bons costumes cristãos. Essa representação no
cordel também dialoga com a passagem bíblica de Santa Madalena, conhecida meretriz
apanhada em adultério.
- Mestre, esta mulher foi apanhada no ato de adultério. De acordo com a lei
que Moisés nos deu, as mulheres adúlteras devem ser mortas à pedradas. Mas
o senhor, o que é que diz sobre isso.
(...) Jesus endireitou o corpo e disse: Quem de vós estiver sem pecado, que
seja o primeiro a atirar uma pedra nesta mulher!
234
A narrativa registra a presença da moral cris na condenação dessa minoria,
bem como a consciência da Igreja acerca da importância desta para o equilíbrio social
das cidades, como defendeu Santo Agostinho.
Outro grupo perseguido, durante o medievo, foram os leprosos. A Igreja
Católica perseguiu e incentivou a população a fazer o mesmo. Em virtude da falta de
informações mais específicas sobre as doenças havia, neste período, uma grande
dificuldade de se diagnosticar a lepra. Essa doença, que até então não dispunha de
tratamento, provocava deformações sicas que causavam asco e medo na população.
Por isso, ela era muitas vezes confundida com outros tipos de enfermidades,
principalmente com as de pele e as venéreas
235
.
Partindo desta premissa, a segregação dos leprosos pode ser vista também como
uma maneira, empregada pelos homens do medievo, de afastar da sociedade um símbolo
vivo da lascívia, da luxúria e da promiscuidade. Assim, a lepra era vista como uma
marca do pecado, externa e visível de uma alma corrompida pelo erro, pela transgressão
sexual. O Antigo Testamento afirma que as doenças de pele são pecados que afloram,
portanto, além do perigo do contágio sico, havia o perigo do contágio moral
236
. A lepra
234
João 8:4-8
235
RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. P. 155
236
Levítico 13: 1-46.
81
era vista pela sociedade medieva como uma punição de Deus aos pecados de natureza
sexual e acreditava-se ainda ser uma doença sexualmente transmissível
237
.
Um leproso poderia ser identificado por qualquer pessoa. Bastava que
observassem na pele de um parente ou vizinho qualquer alteração. Primeiro era feita a
denúncia, depois ele era indicado à autoridade secular ou religiosa para que um tribunal
fosse convocado. O acusado se apresentava diante de um júri formado por um
representante da Ciência, do Estado e da Igreja, respectivamente um dico, um
preboste e um padre. A pele do doente era submetida a um exame minucioso, passando
por vários testes
238
.
Para garantir a segurança da população sadia foram criadas diversas leis. Dentro
do regulamento dos leprosários, a principal regra dizia respeito a mantê-los o mais
distante possível do convívio com os outros. Tamm leis municipais foram criadas.
Carlos VI, em 1404 e 1413, por exemplo, determinou que os leprosos ficassem fora de
Paris. Estas proibições levam a crer que nem todos os doentes estavam confinados á
leprosários, e muitos andavam livremente pela cidade, para incômodo da população, da
Igreja, das autoridades municipais e da coroa. No século XIV, a perseguição aos leprosos
diminuiu. Ao que tudo indica, a Igreja voltou-se mais para perseguir judeus, bruxas e
hereges
239
.
Existiam alguns mitos envolvendo o perigo da lepra para a populão saudável e
suas formas de contágio. Uma das histórias estava relacionada à identificação do doente
e dizia que se os raios da lua batessem no rosto do leproso, este ficaria marcado por
rias cores e o homem sadio ficaria empalidecido. Outra verificação indicava misturar
à urina do suspeito cinzas de chumbo queimado. Se estas boiassem, estaria ali mais um
que deveria ser isolado, pois o normal seria que as cinzas caíssem no fundo do
recipiente. Estes doentes foram confinados a leprosários em virtude do desejo da Igreja
de mantê-los longe da sociedade e pelo medo que estes causavam na população
240
.
237
LE GOFF, O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Tradução de JoAntonio Pinto
Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1985;
238
Levítico 13: 1-10.
239
BROWNE. Stanley George. Lepra na Bíblia: estigma e realidade. Tradução de Vera Ellert
Ochsenhofer. Viçosa : Ultimato, 2003. p. 48.
240
Ibidem. p. 49-53.
82
É possível visualizar na literatura popular em verso recorrências da lepra, mas
com outra terminologia
241
. No livrinho Hanseníase no cordel
242
, o autor apresenta o
histórico dessa doença, bem como alerta as pessoas sobre seus sintomas e sua cura.
A doença hanseníase
Na rima vou colocar
Esclarecendo a população
Para juntos erradicar
Encontrando o portador
Para poder tratar
[...]
Desde antes de Cristo
A humanidade é mutilada
Por este bacilo imundo
Que sempre ganhava a parada
Pois não tinha medicamento
Para ser tratada
A lei da antiguidade
Expulsava sem compaixão
Tirava da sociedade
O portador em provação
Até os seus próprios bens
Era feito confiscação
No vale dos leprosos
Tinha que ir morar
Ou em casas abandonadas
Tinha que ir parar
Porque todos tinham medo
De a doença pegar
Como são recorrentes as minorias medievais nos textos de cordéis, o imaginário
popular permanece com inúmeros elementos do medievo. A lepra, como apresentada no
texto supra com a classificação hodierna, é analisada no intuito de advertir os leitores
sobre suas causas e sua cura. Entretanto, é notável a percepção e a erudição do autor ao
241
A lepra passou a se chamar hanseníase a partir de 1873, quando o bacilo que causa essa enfermidade
foi descoberto pelo norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen.
242
VILAR, Antonio Cristóvão de Queiroz. Hanseníase no cordel. Disponível em:
http://www.morhan.org.br/cordel.html. Acessado em 18 de março de 2010.
83
relatar em sua obra um pequeno histórico do que foi a doença para as gerações
precedentes.
No medievo, o número de pessoas consideradas leprosas era grande, em virtude
da aplicação desses métodos de investigação. Os resultados poderiam ser contestados e
os acusados podiam pedir novos peritos e também mudar de jurisdição, mas, depois de
acusados formalmente pelo tribunal, os suspeitos eram banidos da comunidade e de toda
vida social.
Para oficializar o dia da separação do leproso da sociedade, em certos lugares,
eram realizadas solenidades, consideradas macabras. Era a Separatio Leprosarum, uma
espécie de missa dos mortos. Ela tinha início com uma procissão, ao som de sinos, que
contava com a participação dos fiéis da comunidade em direção a Igreja. O padre usava
as vestes reservadas para as cerimônias nebres, um véu escuro cobria o leproso, e o
ritual era regido com o canto do Libera-me Domine. Sobre a cabeça do doente,
proferindo Sic mortuus mundo, vivus iterum Deo (Morre para o mundo, renasce em
Deus), o padre jogava terra para simbolizar que, a partir daquele momento, ele estava
morto para a sociedade
243
.
Jacques Le Goff realizou um estudo sobre a história do corpo durante o período
medieval e concluiu que ―o leproso foi engendrado por seus pais em períodos durante os
quais a copulação é proibida aos njuges. Propriamente falando, a lepra é produto do
pecado‖
244
e afirma ainda que, em certo sentido, eles seriam favorecidos pelo Criador,
pois como eles sofriam em vida, assim como Jesus Cristo, já estavam pagando os seus
pecados e quando morressem iriam direto para o céu
245
. Para sociedade medieval, então,
a lepra mostra-se como um paradoxo, pois enquanto moléstia que excluía o homem do
convívio dos outros, ou seja, morte social, dava a este a entrada ao reino celeste, pois o
leproso, como divinizado, já teria pago, nos ambientes terrenos, suas dívidas.
Os judeus foram outros a serem perseguidos pela Igreja . Essa perseguição teve
início no século IV, quando o cristianismo passou a ser a religião oficial do Império
Romano. O Concílio de Nicéia, em 325, respaldado pelo Novo Testamento, culpava os
243
CURI, Luciano Marcos. “Defender os sãos e consolar os Lázaros: lepra e isolamento no Brasil”.
Dissertão de Mestrado defendida na Universidade Federal de Uberlândia e 2002.
244
LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Tradução de
Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Pág, 107.
245
Essa segunda afirmação causa estranhamento. Se os leprosos eram condenados pela prática da luxúria,
mesmo sem relação direta, como poderiam ser comparados a Cristo?
84
judeus pela morte de Jesus (acusação retirada em 1965, no Concílio Vaticano)
246
. Os
judeus passaram então a ser difamados por pregadores cristãos, que ajudaram a
disseminar inverdades sobre eles por toda a Europa medieval, a qual viu crescer vários
mitos sobre os judeus, como por exemplo, eles serem os responsáveis pela peste negra e
de estarem envolvidos com bruxaria, usando sangue de inocentes, além de terem
semelhanças físicas com o diabo.
Como todos os olhares voltavam-se os judeus, tudo relacionado a eles tinha
grande repercussão. O Concílio de Latrão, 1215, trazia várias restrições aos judeus. O
matrimônio entre judeus e não judeus foi proibido, eles foram impedidos de ocuparem
cargos públicos e foram obrigados a usar sobre as vestes a estrela amarela imposta por
Luís IX. A perseguição aos judeus aumentava. Exemplo disso são a Inglaterra e a França
que expulsaram os semitas do seu território, respectivamente em 1290 e 1306; e a
Espanha, considerada a mais radical e antissemita, que teve em sua região, mais de
quatro mil judeus assassinados.
O batismo foi visto por muitos judeus, principalmente espanhóis, como o
caminho para escapar da morte. E dentro dos moldes medievais caminho para a salvação
mesmo, no mais restrito significado da expressão. E essa atitude teve como consequência
o surgimento de três novas categorias de judeus, a saber: os judeus que escaparam das
perseguições e que insistiram em manter a fé judaica, os criptojudeus aqueles
convertidos ao cristianismo, mas praticantes do judaísmo e os conversos que se
converteram de verdade. Estes acreditavam que com a conversão teriam os mesmos
direitos que os cristãos. Independente de suas atitudes, os judeus não foram aceitos e na
prática continuaram sendo responsabilizados pelas desgraças que aconteciam e ainda
foram apelidados de marranos (porcos)
247
.
O fator econômico também era motivação para as perseguições. Os judeus
conquistaram posições importantes nas universidades e em setores da economia. A
política antissemita proliferou em várias regiões da Europa, sobretudo na Espanha
através dos ―estatutos de pureza de sangue‖
248
. Esses estatutos asseguravam que
nenhuma descendência de judeus ou de mouros frequentaria universidades, ingressaria
em ordens religiosas e militares ou teria cargos políticos ou públicos. A ―habilitação de
246
CURI, Luciano Marcos. Op. cit.
247
FERNANDES, Neusa. Op. Cit.
248
Idem.
85
genere‖ uma árvore genealógica constando o nome de todos os antepassados era
requisito exigido para quem desejasse se candidatar a esses cargos. O discurso religioso
antissemita tinha se transformado num discurso racial contra os judeus convertidos.
Arievaldo Viana
249
, no cordel A história da rainha Esther, narra a saga do povo
judeu, tendo como mote a vida da rainha Esther
250
. Esse cordel denuncia o
conhecimento do poeta sobre a história desse povo, e serve, nesse estudo, para registrar a
presença desse grupo, considerado como minoria na Idade Média, na literatura popular
contemporânea.
Dentre as mulheres mais belas
Ester foi a escolhida
Pra ser a nova Rainha
Pelo rei foi preferida
Mardoqueu disse à sobrinha:
- Não revele a sua vida!
- Pois nosso povo é cativo
E vive na opressão
Talvez o rei não a queira
Vendo a sua condição
É melhor guardar segredo
Sobre seu povo e nação.
Gilberto Freyre, devido a sua orientação positivista, faz forte associação entre
genética e comportamento, quando o assunto são os judeus. Não se pode esquecer que o
intelectual pernambucano foi contemporâneo do processo imigratório judaico. Sendo
assim, Freyre representa, de forma aguda, o ambiente intelectual do período em que
foram constrdos fortes estereótipos sobre a comunidade judaica. Corroborando velhos
preconceitos sobre a presea comercial e financeira dos judeus em Portugal e no
Brasil, afirma:
249
VIANA, Arievaldo. A história da rainha Esther. Fortaleza: Tupynaquim editora, 2004.
250
Esther, jovem judia, foi criada pelo tio Mardoqueu por ser órfã de pai e mãe. Ela acaba se casando com
o rei Assuero sem que ele saiba que ela é judia. Com o passar do tempo, um dos ministros preferidos do
rei, Hamã, passou a perseguir Mardoqueu porque este não lhe prestara obediência. Se enfureceu e passou
a perseguir não só ele, mas também o povo judeu. Com a intenção de destruí-los, conseguiu convencer o
rei, que emitiu uma ordem para exterminá-los. Quando Esther soube do perigo que seu povo corria, ela
não hesitou e enfrentou as leis que proibiam a presença de qualquer pessoa, homem ou mulher, diante do
rei sem ter sido chamado, e cuja pena era a morte. Esther compareceu diante do rei e contou-lhe as
maldades de Hamã, sua crueldade e o ódio que tinha pelos judeus. Na ocasião, o rei ficou sabendo
também que Mardoqueu tinha salvo sua vida. Dessa forma, Hamã foi condenado e a perseguição contra
os judeus terminou.
86
Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um
processo de especialização quase biológica que lhes parece ter aguçado o
perfil no de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de
posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar. Capazes de
amealhar.
251
Evidenciando o caráter capitastico e materialista dos judeus, Gilberto Freyre
acaba por ratificar aquilo criticado e perseguido pela Igreja, a concupiscência. Até hoje,
o imaginário coletivo sobre o judeu assume algumas das caracterizações supra, surgindo
como agiota especulador e avarento.
A inquisição fundamentava-se no combate e na perseguição aos hereges e àqueles
que iam contra os dogmas impostos pela Igreja Católica. A bruxaria era uma das
principais ocorrências combatidas pela igreja. Pautava-se em pactos diabólicos que
negavam o cristianismo e envolviam ―canibalismo, orgias sexuais e paródias blasfemas
dos cultos cristãos‖ e os bruxos eram vistos como servos do diabo
252
.
O surgimento das bruxas
253
não foi espontâneo, mas resultado de um conjunto de
esforços realizado para inibir as práticas de magia negra, bem como o sexo fora do
casamento e sem fins de procriação. O pânico criado entre a populão foi tamanho, que
mesmo sem ter qualquer ligação com a bruxaria, muitas das mulheres acusadas
acreditavam que eram bruxas e que tinham um pacto com o diabo.
Por trás da bruxaria estava o sexo, visto como o elemento principal do pecado e
para o pecado, ideia defendida por Kramer e Sprenger, no Malleus Maleficarum: ―Toda
bruxaria advém do desejo carnal, que é insaciável nas mulheres‖
254
.
As mulheres eram criadas e educadas para serem boas esposas e para isso
precisavam ter conhecimento dos processos de cura e da medicina familiar, mas não
deveriam se aprofundar. Uma linha muito tênue separava esse conhecimento do que se
entendia por bruxaria.
As mulheres eram vistas como ‗bodes expiatórios‘ de todas as
falhas e males humanos. Mesmo os poetas que cantavam o amor,
251
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 35. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 1999, p. 226.
252
RICHARDS, Jeffrey. Op. Cit. P. 82.
253
A imagem de bruxa que conhecemos uma mulher feia, velha, assustadora, e rabugenta foi
divulgada primeiramente pelos Irmãos Grimm, em seus contos, por volta da primeira metade so século
XIX. Esse esteriótipo, durante o medievo, não era diferente e caracterizava-se também por mulheres de
aparência desagradável ou com alguma deficiência física, idosas ou ainda mulheres mentalmente
perturbadas. NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e história: as práticas mágica no Ocidente
cristão. São Paulo: EDUSC, 2004.
254
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Op. cit. p. 116.
87
muitas vezes cercavam esse amor de sofrimento e morte, chegando
à conclusão de que o amor e a mulher eram perigosos para o
homem
255
.
Ser mulher na Idade Média podia ser muito perigoso. Os suspeitos de praticar
bruxaria eram geralmente mulheres. Qualquer pessoa podia ser denunciada ao ―Tribunal
da Inquisição‖. Os acusados ficavam detidos e eram considerados culpados até
comprovar a sua inocência. De acordo com Kramer e Sprenger, inquisidores
dominicanos, os prováveis bruxos não podiam ser setenciados à morte sem confessar a
sua relação com o diabo. De acordo com o manual de inquisidores, a busca de
evidências que comprometessem os acusados ou da confissão da prática da bruxaria
legitimava o uso de procedimentos de tortura, tais como:
raspar os pêlos de todo o corpo em busca de marcas do diabo, que podiam ser
verrugas ou sardas; perfuração da ngua; imersão em água quente; tortura
em rodas; perfuração do corpo da vítima com agulhas, na busca de uma parte
indolor do corpo, parte esta que teria sido ―tocada pelo diabo‖; surras
violentas; estupros com objetos cortantes; decapitação dos seios
256
.
Os acusados assinavam as confissões, previamente forjadas pelos inquisidores,
depois de torturados. Aqueles que confessavam tinham direito à uma morte mais
misericordiosa, eram queimados depois de estrangulados; aqueles que insistiam na
sua inocência, eram queimados vivos.
A análise do contexto histórico da Idade Média, permite entender que também
eram consideradas bruxas as mulheres que exerciam seus conhecimentos sobre ervas
para ajudar na cura de enfermidades, as médicas por natureza, e nessa categoria ainda
entram as parteiras, as enfermeiras e as suas assistentes. Para a pesquisadora Rosângela
Angelin,
essas mulheres eram, muitas vezes, a única possibilidade de atendimento
médico para mulheres e pessoas pobres. Elas foram por um longo período
médicas sem tulo. Aprendiam o ofício umas com as outras e passavam esse
conhecimento para suas filhas, vizinhas e amigas.
257
255
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1993.p.
52.
256
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Idem.
257
ANGELIN, Rosângela. ―A ‗caça as bruxas‘: uma interpretão feminista‖. In: Revista Cons Ciência.
São Paulo. Volume 1, número 7, pág. 296 - 299. Março, 2006. ISSN: 1809-8436.
88
Segundo os pais da igreja, a prática da bruxaria está diretamente relacionada à
prostituição, mas uma prostituição diferente, com os seres do oculto, comprometendo a
alma, o espírito. Trata-se de uma ―prostituição aos demônios‖, um meio místico pelo
qual se conseguem poderes ou vantagens dos ―filhos das trevas‖ (Tl 5,5).
Em virtude do sexo ser um dos principais elos de ligação entre as bruxas e o
demônio, a Santa Inquisição Católica passou a perseguir massivamente as mulheres
principalmente aquelas mais bonitas e atraentes, pois eram consideradas uma verdadeira
tentação do demônio e os homossexuais. Esses dois grupos eram considerados
potenciais parceiros sexuais do Diabo, pois seriam mais fracos espiritualmente e mais
suscetíveis às tentações diabólicas, através dos prazeres da carne.
A teologia medieval é unânime em encarar as bruxas como companheiras do
Diabo, muitas vezes chamando-as também de ―prostitutas do Diabo‖ ou ―amantes do
Demônio‖. ―Filhos de feitiçaria (….) não sois vós que procurais a ardência do sexo?
(…) que tiravas partidos dos teus amantes, com os quais gostavas de ter relações; e (….)
multiplicavas as tuas prostituições‖
258
, ou ainda ―As obras dos instintos (…) o bem
conhecidas: fornicação, (….) libertinagem, idolatria, feitiçaria‖
259
.
No século XVIII, teve fim o período de perseguição aos pagãos, aos hereges e
sobretudo a ―caça às bruxas‖. A última fogueira foi acesa na Suiça, em 1782. No
entanto, o fim do combate às heresias não significou o fechamento dos Tribunais da
Santa Inquisição, os quais permaneceram em atividade até meados da primeira
metade do século XX.
Na segunda metade do século XVIII, A Igreja Católica viu seus dogmas serem
colocados em xeque. Os questionamentos e as dúvidas acerca do discurso da Igreja
aumentaram, e as pessoas que compartilhavam desses questionamentos contestadores da
doutrina católica oficial eram chamadas de hereges.
A palavra herege tem sua etimologia no grego hairesis e no latim haeresis,
significando doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja Católica em matéria de fé.
Em se tratando do conceito propriamente dito de heresia, foi aceito o proposto por
Marie-Dominique Chenu, de que herege ―é ‗o que escolheu‘‘, o que isolou de uma
verdade global uma verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha‖
260
.
258
Isaias 57: 3-5
259
Gálatas 5: 19-21
260
Teólogo medievalista do século XIX.
89
A heresia significa uma ruptura com o discurso dominante e ao mesmo tempo é
a aceitação de uma nova mensagem. Ela é contagiosa e em determinadas situações
prolifera facilmente na sociedade. Por isso, representa um grande perigo para a ordem
estabelecida, a qual está sempre preocupada em preservar a estrutura social e
tradicional.
Assim como os hereges eram punidos na Idade Média, presencia-se, também, no
cordel A moça que virou cobra
261
, de João José da Silva, a heresia seria castigada. O
livrinho conta a história de uma moça incrédula que colocava em xeque os preceitos
católicos e as crenças alheias. A personagem central profana o Padre Cícero, afronta à
e e zomba da de um romeiro. Como resultado, a sua transgressão aos princípios
religiosos cristãos é punida com uma metamorfose e depois de sentenciada, ela recebe o
perdão.
Na primeira estrofe, percebe-se a concepção cristã teocêntrica medieval, como
fica claro nos versos:
Leitores do Ceará
a 21 de janeiro
deu-se um exemplo assombroso
com a filha de um fazendeiro
Jesus Cristo a castigou
porque ela profanou
do padre do Juazeiro
Nas estrofes seguintes, a moça inicia o seu discurso profanador a um devoto de
Padre Cícero que pela terceira vez ia para Juazeiro:
Diga lá ao Padre Cícero
que me mande uma fartura
de mosquito e muriçoca
percevejo e tanajura
teu padrinho dando o conforto
de lagarta e gafanhoto
eu sei que a safra é segura
Diga a ele que me mande
Dez tons de dor de barriga
Mil e quinhentos de sarna
261
SILVA, João José da. A moça que virou cobra. Recife: do autor, s/d.
90
Dois e duzentos de intriga
Vai escrito no caderno
50 milis de inverno
Quarenta mil de bexiga
Na chuva basta mandar
Pingo de um tamanho de um pote
Dê trovão que queime pedra
Desabe açude e serrote
Só digo que corre risco
se vir pedra de corisco
Maior do que um garrote
Como todo bom devoto, ele aconselha a moça a pedir perdão pelas blasfêmias
que disse. Mas esse alerta a fez insultar mais ainda o Padre Cícero:
A moça disse: eu não creio
Naquele catimbozeiro
Que fazendo bruxaria
Seduziu o mundo inteiro
Lançando a humanidade
Por meio de falsidade
Conquistou o Juazeiro
Ela foi também advertida pela mãe sobre o erro que estava cometendo. E sem
dar importância as palavras de sua e, desafia o Padre Cícero. Vejamos:
Só creio no Padre cero
Quando ele me castigar
Fizer eu cair das pernas
meus braços se descolar
criar ponta e nascer dentes
correr virada em serpente
mordendo quem encontrar.
[...]
Mamãe deixe de leseira
Não mantenha isso na mente
Eu só creio em Padre Cícero
Se ele fizer de repente
Daqui pro fim de janeiro
Eu visitar Juazeiro
Virada numa serpente
91
Depois desse episódio, a moça não foi mais vista. Tiveram notícia de que surgiu,
desde então, uma cobra enorme na fazenda. O surgimento deste animal pode ser
associado à prática da peregrinação penitencial pública, muito comum na Idade Média
como castigo para os pecadores, como ressalta Elizabeth Dias Martins
262
.
No Nordeste brasileiro, a literatura de cordel também tem uma função lúdica.
Numa época em que os meios de comunicação eram pouco desenvolvidos, o cordel
passou a funcionar como um recurso para a disseminação das ideias religiosas, um
instrumento da Igreja para a divulgação de sua doutrina, seriam os folhetos um meio,
talvez mais significativo, então para divulgação religiosa
263
. Por trás das histórias há,
quase sempre, um ensinamento. No livrinho em questão, a mensagem trata do respeito
que se deve ter pelas tradições religiosas que no Nordeste são muito fortes. E de acordo
com Elizabeth Dias Martins,
A natureza exemplar da história referida pelo poeta nas estrofes iniciais nos
remete ao teatro medieval de moralidade. Assim sendo, o podemos deixar
de aludir a dois autos, o Auto da Alma e o Auto da Barca do Inferno, de Gil
Vicente, cuja moral cristã gira em torno da mesma ideia do cordel analisado,
a de que o cristão deve estar sempre atento e vigilante quanto aos seus atos,
pois o dia do juízo pode estar prestes. O evangelho de São Mateus es
referto de passagens nesse sentido.
264
Os narradores e/ ou adaptadores dessas hisrias mudam, alteram, acrescentam e
suprimem alguns detalhes, mas o mote é o mesmo: registrar o exemplo da metamorfose
como castigo para o desrespeito às tradições religiosas. No âmbito da oralidade,
episódios dessa natureza são recorrentes. Régis Lopes registrou em seus estudos que
histórias assim:
Além de obedecerem a uma ―pedagogia do medoque reafirma o poder do
sagrado e converte o incrédulo, essas narrativas nos falam, metaforicamente,
sobre a diferença entre o homem e os animais. Nesse sentido, a essência do
homem seria a sua devoção. Sem o sagrado, seria um animal. O infiel estaria
no plano dos inferiores por não possuir religião.
265
A herança medieval presente na literatura de cordel vai além da estrutura da
forma poética. Ela pode ser identificada, também, no conteúdo dos versos dos poetas
262
MARTINS, Elizabeth Dias. Op. cit.
263
Literatura Popular em Verso. Estudos Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. p. 60.
264
MARTINS, Elizabeth Dias. Idem.
265
RAMOS, Francisco Régis Lopes Ramos. O verbo encantado A construção do Pe. Cícero no
imaginário dos devotos. Ijuí: Editora Unijuí, 1998. p. 63.
92
populares, os quais apresentam os costumes e as crenças de um povo numa constante
ratificação dos costumes medievais em nossa cultura de modo cristalizado. Com efeito,
a população brasileira formou-se ―a partir da fusão de três etnias: a ameríndia, a africana
e a lusitana‖
266
; assim, a partir desta última contribuição fica clara a permanência da
cultura medieval nas nossas tradições.
266
PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro Fortaleza. Oficina do Autor-
EUFC, 1999. Pág. 163.
93
3. A FILOSOFIA DO PENSAMENTO MISÓGINO CRISTÃO: SANTO
AGOSTINHO E SÃO TOMÁS DE AQUINO
Sob o poder do homem estarás.
267
Ademais, é preciso cortar pela raiz as ocasiões de
pecado. Ora, Deus sabia de antemão que a mulher seria
uma ocasião de pecado para o homem. Logo, não
deveria ter produzido a mulher.
268
A misoginia ou a recusa ao feminino não foi uma invenção da Igreja
Medieval, mas uma apropriação de ideias e modos de ser que circulavam no mundo
antigo. Segundo as definições da Psicologia e da Antropologia, a Misoginia é a forma
de expressão do ódio classificada como Sexismo
269
, que acaba sendo confundida e
igualada ao Machismo e ao Androcentrismo. Mas, a definição de Misoginia se baseia no
ódio a mulher e a do Machismo e do Androcentrismo se baseiam na crença da
inferioridade feminina, apenas. No entanto, a misoginia nada mais é do que a nascente,
a base do que vi a seguir, isto é, todas as perseguições e violências sofridas pelas
mulheres do medievo.
Grande parte dos filósofos abordavam em suas obras a temática das mulheres na
sociedade, mas quase todos tinham um discurso inteiramente migino.
... a mulher não deve contrariar sua natureza, as que insistem em se dedicar à
ciência, deveriam usar uma barba‖, pois esta expressaria mais visivelmente a
profundidade que elas buscam.
270
Ainsi toute l‘éducation des femmes doit être relative aux hommes. Leur
plaire, leur être utiles, se faire aimer & honorer d‘eux, les élever jeunes, les
soigner grands, les conseiller, les consoler, leur rendre la vie agréable &
douce : voiles devoirs des femmes dans tous les temps, & ce qu‘on doit
leur apprendre dès leur enfance.
271
267
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. VOL II. São Paulo,Edições Loiola Edição bilíngue.
2002. 1.92.2 p 611.
268
Ibidem loc. Cit.
269
BARTKY, Sandra Lee. Femininity and domination: Studies in the Phenomenology of Oppression,
Routledge, 1990, p. 45
270
KANT. Immanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes.São Paulo: Martin Claret. P.119
271
ROUSSEAU, J.J. 1969. Émile ou de l‘education. v.V. Edição de 1782. Dispovel em
http://fr.wikisource.org/wiki/%C3%89mile,_ou_De_l%E2%80%99%C3%A9ducation/%C3%89dition_17
82/Livre_IV Acesso dia 24 de maio. ―Assim, toda educação das mulheres deve ter os homens como
referência. Agradar-lhes, ser-lhes útil, fazer-se amada e honrada por eles, cuidar deles quando pequenos,
tratar deles quando grandes, aconsel-los, consolá-los, tornar suas vidas agradáveis e doces: Eis, então, o
dever das mulheres em todos os tempos e o que deve ser aprendido desde a infância. Tradução por Kall
Lyws Sales.
94
As mulheres são criadas para a propagação da espécie, e toda sua vocação se
concentra neste ponto.
272
.
Dentre os mais expoentes escritores da história, destacamos Pitágoras, filósofo
da natureza que procurava explicar o princípio de todas as coisas. Segundo ele, ―existe
um princípio bom que gerou a ordem, a luz e o homem; um princípio mau que gerou
o caos, as trevas e a mulher‖
273
.
A ideia da mulher como ser defeituoso e gênese de muitos males foi um legado
dos gregos. Muitos filósofos justificam essa afirmação, principalmente Aristóteles, que
foi um dos primeiros a se dedicar ao estudo da relação homem - mulher.
Ao reler os clássicos gregos, fica tida a superioridade da mente sobre o corpo,
o que significa uma racionalização da cultura ocidental para justificar a superioridade do
homem sobre a mulher. Neste sentido, o discurso filofico da misoginia é assinalado
por expressões que ratificam sua inferioridade, reforçando-a como algo natural.
O século XIII encontrou na filosofia aristotélica endossamento para as
justificativas do comportamento feminino. O pensamento de Aristóteles disseminou-se
no Ocidente medieval como uma validação autorizada que veio respaldar os argumentos
clericais. Segundo Aristóteles, a mulher era um homem incompleto, portanto
imperfeito
274
. Por sua forma e compleição era mais adequado atribuir a ela debilidade e
imperfeição. Como eram privadas de razão, eram incapazes de governar seus desejos e
suas paixões em virtude de sua fragilidade, inconstância e passionalidade.
São Tomás de Aquino foi um dos principais fomentadores da concepção de
misoginia. Entre os argumentos apresentados por ele estava o da problemática da
criação da mulher, para ele curiosa, pois não faria sentido a presença de um ser tão
imperfeito no ato original da criação. Ainda de acordo com os seus preceitos, apenas a
procriação justificaria a existência da mulher, embora questionasse a necessidade desse
ser inferior para uma tarefa tão importante.
Se equiparada ao homem, a mulher mostrava-se excessivamente úmida, mole e
inconstante. Não tinha opinião própria e nem equilíbrio emocional. Para Gil de Roma,
adepto do pensamento aristotélico, ―A alma segue a constituição do corpo, as mulheres
272
SCHOPENHAUER. Fragmentos da Vida e Obra de Schopenhauer. P. 35-36. Apud. LOI.
273
Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural (algumas reedições pela Nova cultural)
274
ARISTÓTELES apud LOI, Isidoro. Op. cit. P.12
95
têm um corpo mole e instável, as mulheres são instáveis e volúveis na vontade e no
desejo
275
.
As mulheres, leigas ou religiosas, em virtude de sua curiosidade presente desde a
infância, deveriam ser mantida sob controle, sob vigilância, sob a tutela masculina. O
discurso clerical sugere um novo termo: cusdia
276
. Através dele os homens podiam
determinar regras e condutas. Estavam autorizados a vigiá-las a fim de salvá-las. O
marido poderia castigar a esposa como lhe aprouvesse para corrigir seus desvios,
inclusive com a aprovação da legislação canônica, a qual aprovava a prática dos
espancamentos
277
. Os religiosos determinaram que os pais, os maridos e todos os
homens da casa reprimissem-nas e vigiassem-nas, mas que também as protegessem e
preservassem, uma vez que elas configuram-se como um mal que parece inevitável
278
.
As camponesas eram obrigadas a uma vida penosa de trabalho doméstico e no campo,
as nobres deveriam ser confinadas a um recinto determinado, o quarto, onde deveriam
fiar, pois mantê-las no ócio poderia aumentar o seu desejo de pecar
279
.
Muitos discursos orientam as mulheres para que se cuidem para poderem salvar
sua alma. Além disso, os clérigos percebem um pudor e medo entre elas que as fazem
recear e fugir do mal. Nas explicações medievais, tal pudor devia-se a uma dádiva
Divina dada por Deus após seu pecado original, ou, a uma natural consequência de sua
imperfeita compleição. Para manterem-nas longe do pecado, pregadores e moralistas
exortam para que sejam tímidas, inseguras em suas relações sociais, amedrontadas
diante de qualquer homem, ficarem rubras diante de possíveis abordagens ou perguntas
e a se comportarem como animais selvagens, se houver necessidade. Segundo os
clérigos, a vergonha e a timidez deveriam mantê-las afastadas do convívio social,
mantendo-se protegidas no espaço doméstico ou do mosteiro.
Durante o matrimônio, cerimônia em que se transmite a tutela feminina das
os do pai para as do marido, a jovem de boa conduta demonstrava-se assustada, com
medo, insegura e insociável
280
. Para o marido, mostrava-se ignorante e selvagem diante
275
SANTOS, Luiz Felipe. A Mulher como representação do Bem e do Mal nA Demanda do Santo
Graal e n‘A Divina Comédia‖. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) Faculdade de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007.
276
Idem.
277
RICHARDS:1993, P. 36.
278
DUBY, Georges . Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
279
Idem..
280
Idem.
96
de sua aproximação. No entanto, os clérigos advertem os homens: toda a mulher, por
mais tímida e reservada que seja, em virtude de sua inconstância, torna-se excessiva,
irrequieta e com o comportamento questionável. Ao mesmo tempo que luta contra o
prazer, pode buscá-lo com a mesma animalidade em virtude de seus impulsos
irracionais e incontroláveis.
Diante disso, as mulheres não podiam manter-se sozinhas, sem a tutela
masculina. Deviam ser submissas ao homem, à Igreja e às leis de Deus. Graças a uma
provincia Divina, as mulheres nasceram submetidas à autoridade de seus pais, de
seus maridos e de seus conselheiros espirituais.
Em sua Ética
281
, bem como na Política
282
, Aristóteles, que inspirou
profundamente os clérigos e moralistas medievais, afirma que as mulheres, pela
compleição, obedecem e se submetem aos homens que, por natureza, são superiores,
fortes, racionais, virtuosos e que devem comandar e tomar todas as decisões. ―Na ordem
natural, o macho está acima da mea‖
283
. O marido ordena e a esposa executa de forma
correta e pronta as ordens recebidas.
Para completar suas teorias, os aristotélicos utilizam passagens bíblicas como
um trecho de Coríntios, na carta de São Paulo, que diz: ―Deveis saber que a cabeça de
cada homem é Cristo e a cabeça de cada mulher é o homem e a cabeça de Cristo é
Deus‖
284
, reconhecendo a submissão feminina, pois a mulher fora criada a partir da
costela de Adão. Acreditar que a mulher fosse dotada de uma alma como o homem era
uma controvérsia que perpassou e inquietou as mentalidades medievais.
Santo Agostinho e sua filosofia misógina
Recorrendo aos principais pensadores da tradão cristã, destacamos Santo
Agostinho. Nascido em 354 d.C, Agostinho foi uma das figuras mais influentes da
Igreja antiga
285
. Seu modo de encarar a sexualidade, a lascívia ou concupiscência, as
mulheres e a corporificação constituiu uma importante dimeno das doutrinas
281
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário Gama Kury. 4ªed. Brasília: UNB, 2001.
282
ARISTÓTELES. Potica. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
283
ARISTÓTELES. Op. cit. p. 33.
284
I Coríntios 11:03
285
AGOSTINHO, Santo. Confises. Coleção a obra prima de cada autor. Tradução de J. Oliveira. São
Paulo: Martin Claret, 2002.
97
cristãs.
Agostinho acreditava que levar uma vida de continência o aproximaria da
vontade de Deus. Nas Confissões, ele escreve sobre a necessidade de controlar o
desejo sexual do seguinte modo:
s [Deus] nos mandais controlar nossos desejos corporais... É
verdadeiramente pela continência que nos identificamos e readquirimos
aquela unidade do eu que perdemos ao nos desintegrarmos na busca de
variados prazeres. Porque um homem Vos ama muito menos se, além de
s, ama também algo mais que o ama por Vossa causa
286
.
A forma como Agostinho trata a sexualidade encontra-se intimamente ligada ao
seu entendimento da queda do homem, ou seja, o desejo sexual é uma das formas
mais gerais do estado do desejar a que o nosso filósofo chama concupiscência ou
lascívia. Na sua obra A Cidade de Deus
287
, Agostinho afirma que a concupiscência é
a ―palavra genérica para todos os desejos
288
. Para ele, os prazeres de todos os
sentidos, paladar, audão, olfato e visão, prontamente expõem a alma aos perigos da
tentação e do desejo. Desta maneira, o perigo em satisfazer nossos sentidos está em
que somos levados a procurar tais prazeres por si mesmos, e não por apreciá-los como
criação de Deus. Portanto, o estado geral do desejo, seja ele por satisfação sexual,
dinheiro ou poder, é por sua vez o castigo que o homem carrega por desobediência a
Deus.
Diante disso, Agostinho expõe seu pensamento sobre as mulheres afirmando
que estas aparecem, sobretudo, como objetos que incitam o desejo dos homens. O
vício no corpo das mulheres, segundo ele, reside no coito carnal e no parto. Desta
forma, ele condena o corpo provocativo e procriativo da mulher por ser uma fonte de
transgressão para o homem
289
.
Para Agostinho, a sexualidade ideal é despida de todo sentimento e desejo, e se
justifica exclusivamente para procriação. Assim, o corpo da mulher na concepção
agostiniana é, exclusivamente, um corpo para ser usado para dar a luz. Portanto, as
286
Idem
287
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, Tradução: Oscar Paes Leme. Coleção a obra prima de cada
autor. São Paulo: Martin Claret, 2004
288
Segundo o dicionário Houaiss o termo do agostinismo significa luxúria carnal, desejo libidinoso e no
tomismo medieval, desejo de prazer gerado por uma realidade física, material.
289
AGOSTINHO, idem.
98
mulheres existem para os homens. Ele apresenta o homem como feito à imagem e
semelhança de Deus porque ele tem o poder da rao e do entendimento. Com suas
palavras
E assim como na sua alma do homem há duas forças, uma que é
dominante porque delibera e outra que obedece porque es sujeita a tal
diretriz, do mesmo modo, no sentido físico, a mulher foi feita para o
homem. Em sua mente e em sua inteligência racional ela possui uma
natureza igual à do homem, mas no sexo ela es fisicamente sujeita a ele
do mesmo modo que nossos impulsos naturais precisam ser submetidos ao
poder julgador da mente, a fim de que as ações a que eles levem possam
ser inspiradas pelos princípios da boa conduta.
290
Faz-se necessário destacar que apesar de admitir a racionalidade das
mulheres, Agostinho a identifica, simbolicamente, com os usos instrumentais inferiores
da razão, ou seja, as mulheres continuam associadas com as funções da alma que
significam a dimensão da existência humana que o é feita à imagem de
Deus.
Em outras palavras, embora Agostinho reconheça a inteligência racional das
mulheres, a dominação do masculino sobre o feminino permanece numa dimensão
natural da existência humana, que é superada com a ressurreição, isto é, na ordem
da salvação. Quando a carne feminina é purificada da corrupção, a mulher pode
atingir a equivalência física com os homens, que lhes é prometida espiritualmente.
Segundo Agostinho, o corpo dos homens reflete o elemento superior da alma, ao
passo que o corpo das mulheres, não. Consequentemente, somente as mulheres
passam por uma cisão entre sua alma racional e sua existência corporificada
291
.
Assim, a ressurreição da verdadeira natureza das mulheres anula a função para
quais elas foram criadas, ou seja, a essência das mulheres, no olhar de Agostinho, é
contrária à realidade de sua existência encarnada. Em suma, na linguagem agostiniana,
o as mulheres são subordinadas aos homens na existência terrestre como são
peculiarmente divididas em si mesmas entre a função terrestre e sua ―natureza.
Nesse sentido, o pensamento de Agostinho revela uma tenncia androcêntrica
ao identificar a função das mulheres com a procriação, a qual, segundo ele, se acha
inevitavelmente impregnada de pecado. Desde que a mulher simboliza o elemento da
existência que joga o homem na luxúria, este pode identificar-se com o aspecto
290
Ibidem. p. 33.
291
Schott, Robin May. Eros e os processos cognitivos: uma crítica da objetividade em filosofia.
Tradução Nathanael C. Caixeiro.Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1996.
99
superior da racionalidade. A atribuão de naturezas diferentes a masculino e
feminino por Agostinho fornece uma argumentação teórica para a dominância dos
homens sobre as mulheres. Embora a mulher seja também racional, o corpo da
mulher aparece como representação simbólica da irracionalidade, ao passo que o
corpo do homem surge como mbolo da racionalidade.
Assim, Agostinho consti a identidade sexual dos homens na forma de
dominação e a identidade das mulheres na forma de submissão. Embora para Agostinho
tanto homens quanto mulheres possuam almas racionais, os relacionamentos sociais
entre os sexos o determinados não pela igualdade racional, mas pela desigualdade
sexual. Enquanto Agostinho se ocupava do controle da vontade sobre o corpo, Tomás
de Aquino procurava o controle exercido pela razão.
São Tomás de Aquino e a Suma Teológica
Ao se tratar do pensamento cristão, não passa despercebida a contribuição de
Santo Tomás de Aquino. Seu pensamento prenuncia o surgimento do racionalismo e
o interesse pelas ciências naturais no mundo cristão.
Na Suma Teológica
292
, no tópico em que discute a criação da mulher, ele
apresenta a questão sobre a hipótese de a mulher ter sido feita na primeira
produção das coisas. Assim, para Tos de Aquino, a existência da mulher é
problemática porque, como diz Aristóteles, ela é um macho imperfeito, porque ela
está naturalmente subjugada ao homem e também porque ela é o ensejo do pecado.
Tudo o que Deus cria é bom, segundo os escritos. Então, torna-se enigma
para Tomás um ser tão imperfeito como a mulher ser criada no ato original da
concepção da humanidade. O papel fundamental da criação da mulher é explicado por
Tomás de Aquino:
Era necessário que a mulher fosse feita, como diz a Escritura, como
auxiliar do homem; não, na verdade, como companheira em outros
trabalhos, como dizem alguns, dado que o homem pode ser mais
eficientemente ajudado por outro homem em outros trabalhos.
293
Para Tomás de Aquino, apenas a função da mulher na geração biológica
292
Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. VOL II. São Paulo,Edições Loiola Edição bilíngue. 2002.
1.92.1 p 611.
293
Idem.
100
justifica a sua criação. Entretanto, ele estende a questão, indagando por que a biologia
humana precisa da existência do sexo feminino inferior. Afinal, observa ele, existem
animais sem qualquer diferenciação sexual. Sem a diferenciação sexual,
presumivelmente, as capacidades gerativas não ficariam limitadas a simplesmente um
dos aspectos da vida da espécie, ou seja, da mulher, estariam em toda parte, o
dando ocasião a esta atividade mais nobre. Como a mulher foi criada para a função
reprodutiva, na opino de Tomás de Aquino, ela se torna virtualmente identificada com
essa atividade gerativa.
Assim, que a mulher é identificada com a reprodução, o homem, segundo
nosso filósofo, fica em condições de identificar-se principalmente com os trabalhos
mais nobres da razão. A força ativa encontrada no sexo masculino contribui não apenas
a geração, mas pode ser orientada para a operação vital da razão.
Tomás de Aquino repete as ideias de Aristóteles sobre as relações sexuais
quando assimila à razão o prinpio ativo do homem. Como é percebível nas obras
clássicas, Aristóteles associava o masculino com a força ativa e o feminino com a
passiva na obra da geração. Para Aristóteles, esses prinpios biológicos têm correlatos
mentais: a atividade, ou forma exprime-se atras da autodeterminação racional; a
passividade, ou matéria torna-se manifesta atras das emoções.
Santo Tomás de Aquino reforça essa identificação do masculino com as
operações da rao quando afirma que o homem serve como o ―princípioda existência
humana. Ele escreve:
Assim como Deus é o princípio de todo o universo, tamm o primeiro
homem, à semelhaa de Deus, foi o princípio de toda a raça humana.
Se o homem é o princípio da raça humana, as operações intelectuais
devem estar contidas nesse primeiro princípio da raça humana. Por
isso, na narrativa do Gênesis, o homem torna-se identificado com o
intelecto de um modo que não é necessário para a mulher, que foi
tirada desse primeiro homem
294
.
Portanto, as principais ideias sobre a mulher, a qual na concepção de Tomás
de Aquino é julgada menos apta que o homem para as funções mais nobres da rao,
como também, biologicamente, é inferior ao homem, pois a produção da mulher
decorre de um defeito na força ativa que o homem produz. Assim, o papel
294
AQUINO, São Tomás. Op. cit. P 611.
101
indispensável da mulher na reprodução é também um sinal de sua natureza
deficiente. A mulher é necessária para atender ao fim da natureza em geral, mas
bastarda como indivíduo. Mesmo sabendo que as contribuões do macho e da
fêmea são necessárias para a perpetuação das espécies, as mulheres são vistas por
Tos de Aquino como defeituosas quando comparadas pelo prinpio da atividade
que caracteriza os homens.
Santo Tomás de Aquino também escreve: Nas mulheres os humores são mais
abundantes, razão pela qual elas são mais propensas a serem levadas por suas
concupiscências
295
.
Em última análise, como as mulheres tendem a ser governadas mais por suas
paixões do que os homens, elas têm maior responsabilidade pelo pecado do adultério.
Tomás de Aquino escreve:
A mulher adúltera peca mais gravemente que o marido adúltero... A
mulher adúltera peca mais gravemente contra o casamento porque seu
pecado torna incerto o parentesco da prole.
296
Santo Tomás de Aquino imputa exclusivamente às mulheres essa "lesão ao
casamento", no entanto, se esquece de considerar que o adultério do homem também
torna a paternidade incerta. Mas, Tomás de Aquino insiste em afirmar que a função da
mulher no casamento serve o apenas para reproduzir a espécie em geral, mas
para reproduzir a prole para determinado homem. Em última instância, a odiosidade
do ato de adultério da mulher consiste em sua violação à lei do marido no
casamento.
Tomás de Aquino justifica sua opinião de que a mulher é naturalmente
subordinada ao homem associando o masculino com as qualidades intelectuais, ativas,
dominantes, e o feminino com as qualidades luxuriosas, passivas, subordinadas. No
entanto, reconhece que a mulher tem tamm uma alma racional, pois a natureza
intelectual é em si assexuada. Vale ressaltar que apesar de Tomás de Aquino
reconhecer a alma racional feminina, deixa claro que o exercício ptico da rao
o é o mesmo para ambos os sexos, ou seja, a natureza sexual das mulheres atua
contra o funcionamento do prinpio racional, que opera com mais êxito nos
295
AQUINO, São Tomás. Op. cit. P.611.
296
Idem.
102
homens.
Em última alise, ao propor o donio da razão sobre as paixões como
condição necessária para o conhecimento e ao afirmar a posição ascética de que as
mulheres são menos capazes de racionalidade que os homens, Tos de Aquino,
implicitamente aprova as relações hierárquicas entre os sexos como o requisito para o
florescimento da razão. Apesar das reformas da instituão do monasticismo, e
apesar de uma reavaliação do casamento, os pensadores da Reforma Protestante
mantiveram o repúdio do corpo luxurioso, tão pronunciado em Santo Agostinho e
Santo Tomás de Aquino.
Os filósofos de maior destaque para a Igreja da época foram ilustres
personalidades, que através de seus estudos e trabalhos relacionados à sociedade e à
religião, alicearam o que hoje se compreende como misoginia. Seus tratados foram
tão significativos para a história ocidental que mesmo nas colônias tropicais suas
filosofias reverberam uníssonas na literatura popular em verso contemporânea.
3.1. A MISOGINIA NO CORDEL CONTEMPORÂNEO: O DISCURSO E AS
QUESTÕES MISÓGINAS
A mulher deixa o marido
Porque já é tarimbada
Tem fama de sapatão
E o quer perder parada
Às vezes sem haver briga
Deixa o marido e se amiga
Com uma mulher casada
297
.
A literatura de cordel é uma das maiores representações da etnografia e da
cultura popular. No Brasil, desenvolveu-se, principalmente, no Nordeste, contando as
sagas e a sabedoria do povo sertanejo.
Essa literatura tem a sua origem na Península Ibérica, mas chegou até nós por
volta do século XVII, trazida pelos portugueses. A origem do nome está relacionada à
297
LEITE, Costa José. Hoje em toda parte tem corno, bicha e sapatão. Recife: Editora Coqueiro, s/d.
103
maneira como esses folhetos eram comercializados em Portugal, pendurados em
cordões (lá chamados cordéis).
A sociedade brasileira é marcada por uma estrutura patriarcal, concebida à imagem
da família nuclear burguesa, tendo o homem como provedor e a mulher como responsável
pelos afazeres dosticos, pelo cuidado com os filhos, etc. Assim, por muito tempo, à
mulher foi reservado apenas um espo: o do lar.
Dentre os temas mais polêmicos na literatura de cordel a mulher tem sido
instrumento de destaque. Na visão dos cordelistas pesquisados, manifestam em diversas
formas, destacando sempre a sensualidade, a promiscuidade, a sexualidade, astúcia,
coragem e bravura.
O cordel é espaço privilegiado para o sertanejo exprimir suas crenças, sua
integral. Muitos folhetos se baseiam num sentimento religioso; aparecem
Deus, Nossa Senhora, Jesus e os santos, de Roma ou de Juazeiro. Satanás
também é onipresente, em oposição ao Divino. A tudo isso misturam-se
superstições, feitiçarias e crendices latentes no imaginário popular. Os
animais intercambiam essas crenças, ora metamorfoseados, ora como agentes
da fantasia, da prosa e do verso. Contudo, o desfecho é moral e reconfortante,
já que a fé, a virtude e os bons hábitos são sempre recompensados.
Misturando o real e o fantástico, conseguem realizar, muitas vezes
inconscientemente, uma leitura palimpsêstica da Bíblia, das fabulas e dos
bestiários da Idade Média, modernizando-os e adaptando-os ao contexto em
que vivem. As manifestações na arte, nas danças, nas cerimônias, nas
canções, na poesia, não são simples distrações, mas representam
necessidades, desejos e anseios de um povo.
298
Os cordelistas inspiram-se em acontecimentos reais e também em boatos,
procurando sempre inserir em seus textos a presea marcante não do humor e da
ironia, mas também do drama e da tragédia.
A literatura oral é a própria mentalidade da massa coletiva, foliona, religiosa,
crédula, inimiga do parasitismo fradesco e aristoctico, da ignorância bestial,
da luxúria e simonia vulgares‖.
299
Através dos textos de cordel, podem ser evidenciados elementos que estão no
imaginário coletivo, que são partilhados pelos poetas e pelos leitores. Os textos apesar
da autoria, falam na voz do poeta aquilo que é sentido pela maioria. O Nordeste
brasileiro foi palco para o desenvolvimento dessa literatura popular. A matéria-prima
para a fomentação dessa arte o povo, os costumes, as crenças e a cultura foi nele
298
CASCUDO Luis da Câmara: Literatura Oral no Brasil. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1984,
299
CASCUDO, Luis Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. 2a ed. Rio de Janeiro: Livraria Jo
Olympio Editora, 1976, 480.
104
facilmente encontrada, como bem explicam Diegues nior e Nunes Batista,
respectivamente. Aquele valorizando o cultural e este o social.
Tudo conduziu para o Nordeste se tornar o ambiente ideal em que surgiria
forte, atraente, vasta, a literatura de cordel. Em primeiro lugar, as condições
étnicas: o encontro do português e do africano escravo ali se fez de maneira
mais estável, contínua, não esporadicamente. Houve tempo suficiente para a
fusão ou absorção de influências. Depois, o próprio ambiente social oferecia
condições que propiciavam o surgimento dessa forma de comunicação
literária, a difusão da poesia popular através de cantorias em grupo e de
forma escrita.
300
No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o
surgimento da literatura de cordel, da maneira como se tornou hoje em dia,
característica da própria fisionomia da região. Fatores de formação social
contribuíram para isso: a organização da sociedade patriarcal; o surgimento
de manifestações messiânicas; o aparecimento de bandos de cangaceiros ou
bandidos; as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos e
sociais; as lutas de famílias que deram oportunidade, entre outros fatores,
para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como
instrumento do pensamento coletivo, das manifestações da memória
popular.
301
Dessa forma, procura-se investigar como a mulher é vista segundo a ótica dos
cordelistas pesquisados, descortinando o discurso moralizador e machista que traz no
bojo a literatura de cordel, bem como discutir os padrões de comportamento que
qualificam pejorativamente à figura feminina. Os padrões de comportamento
estigmatizam certas posições atribuídas às mulheres, como se pode perceber nos textos.
Trata-se, portanto, de um relato das condições femininas para a sociedade e diante do
masculino que tenta apresentar através do cordel a visão herdada da cultura medieval da
figura feminina. A mulher acaba por ser percebida como objeto sexual deixando de
lado, frequentemente, seus sentimentos e sua condição materna.
O homem dirige-se à mulher em diversas modalidades: lamento, amor, raiva.
São estrofes que exemplificam o papel que a mulher exerce na sociedade e na vida
pessoal de muitos homens, transportadas para as hisrias da literatura de cordel, o poeta
o inventa posições para mulher, apenas retrata um estereótipo que é herdado ao longo
dos séculos.
300
LITERATURA POPULAR EM VERSOS: ESTUDOS. TOMO I. Rio de Janeiro: MEC/Fundação
Casa Rui Barbosa, 1973. p.13.
301
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. São Paulo: Fundação José Augusto,
1997.
105
Os padrões de comportamento estigmatizam certas posições atribuídas as
mulheres, como se pode perceber alguns textos. Trata-se, portanto, de um relato das
condições femininas para a sociedade e diante do masculino que tenta apresentar através
do cordel a visão generalizada da figura feminina. A mulher acaba por ser percebida
como objeto sexual deixando de lado seus sentimentos e sua condição materna. O que
ressalta a o preconceito, o machismo e a misoginia herdados das gerações passadas.
Assim, após a leitura de vários cordéis cuja temática do feminino prevalecia,
foram escolhidos aqueles que mais visivelmente refletiam os níveis de depreciação
feminina, segundo os ícones da beleza, da submissão, da sedução e da astúcia.
A título de amostragem, e para ratificar o que foi exposto até aqui,
apresentaremos a análise de quatro cordéis. São eles: A Desventura de um Corno
Ganancioso, O Corno Vingativo, O Paraibano que foi corno cinco vezes e A Ganância
do chifrudo. Esses cordéis, em geral, vão contar histórias e casos de homens que foram
traídos sempre homens trdos e nunca homens que traem outro argumento que
ratifica o caráter migino desses livrinhos de feira, pois está implícita a ideia de que
a mulher erra e adultera, retomando a mentalidade medieva. A voz predominante nestes
livrinhos é masculina, mas também temos o registro de uma voz migina feminina.
No enredo d‘ A Desventura de um Corno Ganancioso, a antagonista é descrita
da seguinte maneira:
Tinha ele quinze anos
Quando casou com Analha
Mulher bonita e pintosa
Porém bastante canalha
Essa com um mês de casada
Botou-lhe a primeira galha‖.
N‘O Corno Vingativo, o vocabulário também denigre a mulher:
O seu nome era Fernando
E a sua esposa Lorena
Uma tremenda pilantra
Dessas de pele morena
Que só lhe dava transtorno
Fazia o besta de corno
Feito uma gota serena.
106
em O Paraibano que foi corno cinco vezes, nossa anti-heroína aparece da
seguinte forma:
Margarida era uma quenga
bandida e trambiqueira
embora muito bonita
bastante interesseira
foi a pior quenga que deu
nas ruas da Cajazeira.
N‘A Ganância do chifrudo, cuja autoria é de Maria Goldelivie, a mulher
Era muito interesseira,
Vaidosa e doidivana
Só pensava em sacanagem,
Festa, gaita e carraspana,
Mas o marido, coitado
Não tinha ―fogo‖ nem grana.
Percebe, através desse cordel, além de elementos miginos difundidos na
cultura, sua autoria feminina, indicando que misoginia está tão arraigada à cultura
popular que independe de gênero: homens e mulheres a dissipam. a escolha lexical é de
suma relevância, através da observação de adjetivos e de substantivos empregados na
descrição da figura feminina, percebe-se seu majoritário caráter pejorativo, que tem
como objetivo denegrir a imagem da mulher e colo-la em posição inferior ao homem,
seguindo (propositadamente ou não) o modelo medieval.
Os termos escolhidos pelos cordelistas sempre atacam, agressivamente, a moral
e o caráter das personagens femininas de forma direta, sem uso de figuras de linguagem.
Essa falta de subjetividade pode implicar numa visão realista, e por que não dizer até
naturalista, dessas histórias, visto que o cordelista registra os causos‖ tal como
aconteceram, sem preocupar-se em atenuar as transgressões da mulher.
O emprego de termos e expressões de cunho depreciativo deixa claro que o a
postura contrária à mulher presente no cordel sofreu inflncia direta do imaginário
medieval na sua composição, retomando a essência preconceituosa contra a mulher, tão
disseminada na Idade Média pelas autoridades religiosas.
No contexto social das narrativas supracitadas, a situação da mulher é sempre de
desprestígio. Ela é tratada pelo marido como objeto, como mercadoria. A partir do
107
momento que sua traição vem à tona, seu par começa a tirar proveito disso,
desenvolvendo com ela uma relação de trabalho, uma espécie de agenciamento, como
ocorre no cordel A ganância do chifrudo: ―Corno o! Faço negócio, / vendo carne para
viver‖
302
. No medievo, a situação da mulher não era diferente. Ela era como uma
propriedade, usada, muitas vezes, pelo homem para obtenção de vantagens, a exemplo
dos casamentos que objetivavam o aumento de terras.
A primeira explicação dada pela mulher para justificar a traição é a dificuldade
financeira. Nos cordéis A ganância do chifrudo e A desventura de um corno
ganancioso, o fator econômico passa então, em certos casos, a ser o elemento causador
do adultério, principalmente se levarmos em consideração que os personagens são de
uma classe econômica menos favorecida.
Em outra situação, n‘O corno vingativo e n‘O paraibano que foi corno cinco
vezes, enquanto o homem trabalha, a mulher fica em casa. Ela não é economicamente
ativa porque o faz parte da sociedade, estando à margem dela, assim como na Idade
Média, de onde essa mentalidade remanesce. Esta visão da inferioridade da mulher era
uniformemente divulgada nos tratados teológicos, médicos e científicos, e ninguém a
questionava‖
303
.
Das narrativas analisadas, em nenhuma delas a mulher trabalha. Talvez para
ratificar a situação submissa e dependente dela em relação ao marido, ou ainda, porque
culturalmente convencionou-se que o homem é quem deve prover e manter a casa e a
família.
No medievo, a situação da mulher, mesmo aquelas de família nobre, na
sociedade à época da Idade Média, era de inferioridade e de submissão. Dentro das
famílias, essas mulheres viviam à margem. As solteiras ou viúvas não tinham direito à
herança e nem a sucessão. E ser submissa nesse período não era tarefa fácil. De acordo
com Rivair Macedo,
Ser dona-de-casa de uma família senhorial, numa época como a Idade Média,
em que a economia doméstica era bastante ampla, exigia muita habilidade e
senso de organização. O suprimento de alimentos e vestimentas da vasta
família estava sob sua responsabilidade. Tinha de administrar o trabalho dos
domésticos, acompanhar passo a passo a fabricação dos tecidos, controlar e
supervisionar o abastecimento
304
.
302
GOLDELIVIE, Maria. A ganância do chifrudo. Fortaleza: 2004, p. 9
303
RICHARDS, Jeffrey. Op. cit. P. 36.
304
MACEDO, Rivair Jo. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002. Pág. 27.
108
Vale ressaltar que, neste momento, assim como em outros períodos históricos,
havia diferença entre as atividades desenvolvidas pela mulher de acordo com sua classe
social. A mulher da nobreza era encarregada de organizar e dirigir as atividades do
castelo e das fazendas a ele vinculadas
305
. Quanto à mulher camponesa, esta não ficava
só em casa, ela trabalhava diariamente a terra e fazia os serviços domésticos tanto na sua
casa quanto nas fazendas senhoriais e nas casas de alguns mercadores. Quanto à vida e o
cotidiano destas pouco se sabe. Elas praticamente não aparecem nos documentos do
período. Contudo, o seu trabalho era importante para a economia rural. Ela deveria
acompanhar o marido e participar de todas as atividades realizadas no domínio
senhorial onde trabalhava.
A grande diferença entre a mulher do cordel e a mulher medieval aqui nos
referimos à camponesa, pois da nobre a nossa era muito distinta é que o trabalho desta
fazia parte da estrutura social e econômica, enquanto o daquela era circunstancial e,
pode-se até dizer, ilícito, uma vez que se posicionava contra os princípios religiosos,
morais e sociais.
Esse discurso contrário à mulher, assim como o lugar de desprestígio ocupado
pela mulher na sociedade, apresenta-se como resíduo da Idade Média na literatura de
cordel contemporânea. Tal verificação foi possível devido ao processo de hibridação
cultural entre Portugal e Brasil, que resultou na formação de uma mentalidade
misógina, na qual se cristalizaram os remanescentes preconceituosos concernentes à
mulher tornando possível a identificação de elementos medievais misóginos
lexicográficos e sociais nos cordéis A Desventura de um Corno Ganancioso, O Corno
Vingativo, O Paraibano que foi corno cinco vezes e A Ganância do chifrudo,
configurando a ocorrência da residualidade, a qual permite aproximar temas e tempos.
Desse modo, a figura feminina, sob a ótica do clero medieval, configura-se como
elemento indispensável para compreendermos a razão pela qual a mulher é, ainda hoje,
quase sempre, marginalizada nas narrativas dos cordéis, sob uma perspectiva de
concupiscência. Acontece que ela traz consigo o peso do pecado original cometido por
Adão e Eva à época da criação. A história da cultura ocidental se consolidou segundo a
tradição do saber masculino, do patriarcado. Em função disso, é comum encontrar entre
305
Idem.
109
as obras da literatura de cordel imagens de mulheres estereotipadas, segundo o modelo
da sociedade patriarcal, caracterizadas pela luxúria e pelo pecado.
No tocante à mulher, além das críticas, o discurso vem acompanhado de forte
ironia quando aponta a mulher que sai sozinha às ruas, que frequenta festas, ou até
mesmo as que trabalham para sustentar a família. A exemplo disso, temos as jogralesas,
as amas de leite, as tecedeiras, as mulheres velhas, as prostitutas, que, entre outras,
tornam-se o tema principal de observações e críticas.
3.2. A VIRAGO NA LITERATURA DE CORDEL
Mulher é um bicho traquino
Que nos causa inquietação
Com seu olhar sedutor
Conquista até o leão
Vamos nos precaver
Dessa obra da tentação.
306
A postura migina se afirma na cultura e no pensamento ocidental, encontrando
na literatura um veículo de disseminação ideológica eficiente, em função de sua
circulação social, que reproduz e divulga pades de comportamento, formas de
relações sociais e ideais que promovem um modelo de mulher submissa e passiva a ser
seguido.
Percebe-se, na produção da literatura de cordel, o predonio de um discurso
masculino crítico, acusador e condenatório. Segundo Brandão, "... o poeta cordelista é,
antes de tudo, um espírito eminentemente religioso; se não, profundamente impregnado
de religiosidade. Regra geral, o poeta popular nordestino é católico ortodoxo"
307
. Nos
fatos do mundo do cordel, o juízo de valores é, portanto, essencialmente religioso e de
cunho moral.
A marginalização da mulher no que diz respeito à sabedoria popular também
acontece. Nas quadras populares, nas legendas de caminhão, nos ditos, provérbios -
principalmente nos mais antigos - a mulher continua sendo vítima da maldade do
306
MEDEIROS, Elinaldo Gomes de. Boquinha de Mel. O Corno é cultura popular. Natal ,2007. P 3.
307
BRANDÃO, Adelino. Crime e castigo no cordel. Rio de Janeiro: Presença, 1991. p. 35.
110
homem que sempre procura diminuir seu valor, preferindo, na maioria das vezes, a
mulher/corpo à mulher/espírito.
A sociedade nordestina é, em grande parte, patriarcal e machista em suas raízes
culturais. Essa mentalidade é oriunda da sociedade judaico-cristã primitiva, retomada na
Idade Média, período no qual se difundiu a ideia do homem como ser superior e
perfeito, criado pelo próprio Deus à sua imagem e semelhança, portanto, reto, bom e
justo. O patriarcalismo é refletido e pode ser percebido na produção da literatura
popular em verso, quando os cordelistas constroem suas narrativas a partir de elementos
sociais, culturais e religiosos, os quais remontam, geralmente, ao pensamento da Idade
Média e ao machismo.
Variadas são as formas da presença masculina na literatura de cordel. Parece-
nos preponderante a apresentação do homem como o herói, aventuroso e
valente, seja se analisarmos os personagens inspirados directamente da
história medieval, muito cantada pelos poetas populares, seja se estudarmos o
herói nordestino, o vaqueiro, corajoso que enfrenta todos os perigos para
ficar com a sua bem amada, em geral, filha do fazendeiro rico e
importante
308
.
Num universo predominantemente masculino, um aspecto que chama a atenção
é o homem ser tima do próprio homem o sexo forte, o cabra macho, aquele que lava
a honra com sangue , sendo rechaçado e ridicularizado, em enredos miginos, ao
aparecer imbecilizado, fraco e manipulado, como um ―pobre-tipo‖, na classificação de
Tenório-Pontes, tomando como recorte os cordéis que versam sobre traição, bem
diferentes daquele estereótipo que o inconsciente coletivo e popular conhece.
(...) São seres ridicularizados e menosprezados ao máximo pela literatura
popular e mesmo pelos escritores eruditos mais próximos do cordel, como é o
caso de Ariano Suassuna com seu Auto da Compadecida. (...) Trata-se da
figura muito popular do marido enganado muito a gosto dos maios populares
pelo ridículo e pelas hilariantes situações em que os mesmos são descritos ou
colocados
309
.
Nesses cordéis, ou eles são enganados ou estão conscientes da traição e
compartilham do ―benefício do dinheiro que elas ganham da traição, mostrando-se
submissos não à mulher, mas também à cultura e à conjuntura social em que estão
inseridos, ou ainda a esse novo discurso que surge paralelo ao oficial, principalmente
em histórias cujo alvo aparente da crítica seria exclusivamente a mulher.
308
TENÓRIO-PONTES, Walter. Machismo na literatura de cordel. Lisboa: edições Rolim, s/d. p. 27.
309
Idem. p.102.
111
A mulher aparece no cordel, com mais frequência, sob duas perspectivas:
divinizadas em cordéis hagiográficos bem como enaltecidas em cordéis hisricos.
ou maculadas nas narrativas que tem como tema traição ou adultério.
A análise dos cordéis foi feita sob o viés da Teoria da Residualidade, que diz
respeito à identificação de elementos culturais de uma determinada época em outra. A
partir da verificação de uma mentalidade patriarcal em fontes primárias como a Bíblia e
do estudo de obras que tratam sobre o sexismo e a traição, observou-se a remanescência
de substratos mentais acerca do pensamento machista em contextos miginos, vistos
com mais gravidade, nestes casos, por se tratar da crítica do cordelista ao
comportamento do homem.
Assim, a imagem que se faz hoje da mulher foi construída a partir de uma
mentalidade formada principalmente de resíduos da Idade Média que se cristalizaram
em narrativas que redundam em trazer o lado negativo da mulher. Como se perceberá na
análise das estrofes seguintes.
Uma mulher traiçoeira
310
Na Literatura de Cordel, a mulher adúltera é sempre considerada ―maldita‖. O
simbolismo da serpente, que permeia as narrativas, de modo geral, envolve a mística do
instinto feminino, segundo o princípio da capacidade feminina de seduzir e depois
causar destruição.
Em Uma mulher traiçoeira em torno da narrativa uma oscilação dicotômica
que, por um lado, exalta a mulher, definindo-a enquanto ser nobre e divino e, por outro,
apresenta-lhe como perigosa.
As atribulações da personagem aparecem nas expressões ―na mais tenra idade‖,
doze ou quatorze anos‖, nomeando a mulher como um ser frágil, delicado, no período
em que vivencia a menoridade. No campo da inocência, discorrem-se ―a ingenuidade‖,
a santidade‖ ou ―divindade‖, que convergem para o campo da idade.
310
PONTUAL, José Pedro. Uma mulher traiçoeira. Editor: Edson Pinto da Silva. s.d.
112
Nesse tempo ela contava
Com 12 anos de idade
Um anjo da divindade
Nem mesmo ela sabia
De sua infelicidade
Existe, entretanto, uma linha tênue que separa as duas faces de Helena, as quais
o tempo se encarrega de definir. É ele que faz a deposição da figura casta que se faz na
substituição pelo lado da mulher ameaçadora ou perigosa, afeita aos prazeres
passageiros, carnais e materiais. Os versos seguintes remetem ao narcisismo da
personagem Helena:
E assim continuava
O seu viver de orgia
Confiada na beleza
Nada em casa fazia
Julgando que a beleza
De seu corpo não saia
O sentimento da parte da sociedade é sempre de reprovação. A estrofe a seguir
aponta claramente a indignação coletiva frente ao adultério da mulher:
Todos diziam igual
A infeliz desgraçada
Fazer uma coisa desta
Sendo tão bem casada
A expressão ―bem casada‖ é empregada para enfatizar a posição financeira e
estável da mulher, em função do matrimônio. A ênfase da reprovação do adultério
feminino está relacionada ao ponto de vista material, que, em última instância, recai
sobre a moral.
Na sociedade patriarcal nordestina, muito se tem legitimado por meio de
discurso a imagem de que o homem, para ser macho deve ser forte, enérgico, grosseiro.
A imagem de homem sentimental é banida quase por completo do perfil desses homens.
Toda vez que o masculino foge ao perfil assinalado, tratando de modo amável a sua
companheira, recebe saões negativas da parte da sociedade, que o como alguém
fraco e sem autoridade.
113
No imaginário social e coletivo, o homem que é fiel à esposa, quando ―ele não
lhe põe as rédeas‖, fica na condição de tima de uma mulher ―aproveitadora e sádica‖.
Desse modo, a relação ideal entre um casal apenas ocorre quando é o homem quem
exerce a autoridade, sendo quem tem poderes únicos e exclusivos em virtude de seu
sexo. Nesse contexto, a traição de Helena ao marido é a prova certa de que ―ela virou o
juízo‖, ou seja, que ela enlouqueceu. E vale dizer que o desequilíbrio mental de Helena
representa o fracasso do marido:
Com mais de 6 memes
Ela virou o juízo
Arrumou outro amante
Sem pensar em prejuízo
Sem o marido saber
Desse grande escandalizo
O termo ―corno‖, no aumentativo cornão‖, ressalta a característica desfavorável
do marido traído. A intenção do cordelista é demonstrar, em tom satírico e pitoresco, o
descaso que possui a mulher ao trair e furtar o próprio marido e também a
desmoralização do esposo diante da situação:
Ela mais o tal Vadinho
Na maior devassidão
Dizendo a ele eu deixei
Dormindo só o cornão
O verso dormindo o coro‖ confere o tom de passividade do homem frente
ao adultério da esposa. É a forma verbal ―dormindo‖ quem projeta a ideia de inércia do
homem. A estrofe a seguir expressa essa ideia claramente.
O velho pai dela deu-lhe
Uma surra de tabica
E disse desapareça
Você comigo não fica
Deram uma surra em Vadinho
Que quase o malandro estica
114
O verbo ―esticar‖ está na acepção de falecer, perder a vida. O Dicionário
linguístico literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste
311
registra a
acepção de ―esticar a canela‖, entre outras correlatas, usadas no sentido de ―falecer‖.
O vocábulo ―tabica‖
312
é apresentado no mesmo dicionário como brasileirismo
chibata feita com a haste do vegetal de hastes delgadas e flexíveis‖, ou ―vara de cipó
de que se servem os almocraves para tanger as bestas‖. É importante ressaltar que a
surra representa, no contexto da sociedade patriarcal, a máxima expressão de poder e o
absoluto controle dos pais sobre os filhos, muitas vezes do marido para com a própria
esposa. É pertinente lembrar, também, que no contexto da sociedade patriarcal
nordestina, a educação dos filhos, filhas, dos escravos, enfim, de grupo subordinado ao
membro da classe maior de poder, o patriarca, foi eminentemente exercida à base de
castigos.
A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa
313
O meretcio não cedeu perante a pressão de cunho moral sexual das sociedades,
nem desapareceu com as modificações no perfil das relações amorosas e sexuais dos
últimos tempos é cabível observar o papel sexual da prostituta em épocas passadas,
quanto à iniciação dos homens inexperientes no sexo e nos extravasamentos dos
maridos insatisfeitos sexualmente no casamento.
O fato de o meretrício estar literalmente relacionado aos prazeres da carne‖ e à
promiscuidade sexual, condenada pela Igreja, fez surgir uma série de mitos e medos
sobre a conduta e o desejo sexual feminino.
Não é à toa que a imagem da prostituta bela, que seduz o homem com a beleza
de seu corpo e com a volúpia desenfreada, é esboçada frequentemente por meio das
trovas. Nos cordéis, as mulheres belas frequentemente recebem o qualitativo ―deusa‖,
usado para fazer referência às mais bonitas e sedutoras. Esse qualitativo envolve uma
variedade de matizes de sentido, traz à tona elementos sticos como ―magia‖,
―natureza‖, ―sensualidade‖, ―fecundidade‖, para citar alguns.
311
PONTES, Maria das Neves de; MELLER, Vilson Brunnel. Dicionário lingüístico-literário de termos
regionais/populares (Norte/Nordeste). João Pessoa: Idéia, 2003. 1 v.
312
PONTES, Maria das Neves de; MELLER, Vilson Brunnel. Op. cit.
313
SILVA, João Severo. A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa. João Pessoa, 1985.
115
O designativo ―deusa do cabaré‖, no texto em estudo, é usado para enfatizar a
capacidade de sedução da prostituta. A ênfase nos atributos sicos da personagem, que
se faz presente desde o próprio codinome Deusa‖, fica impressa nos versos ―porque a
sua beleza‖ e ―por nenhuma era igualada‖:
Por Deusa do Cabaré
Ela foi classificada
Porque a sua beleza
Por nenhuma era igualada
Por isso entre as mulheres
Era a mais desejada
As expressões ―corpo esbelto‖,olhos negros‖, ―estátua de carne‖, ―a mais
desejada‖, ―morena da pele fina‖, ―elegante menina‖, ―boniteza", ―por ser linda e
atraente‖, ―muito cobiçada‖, ―mimosa fada‖ e ―mulher formosa‖ dirigem-se ao aspecto
da sedução feminina, retratada na figura de Deusa, a meretriz.
O termo ―morena‖ remete à sensualidade da mulher negra, essa mais ardente e
mais concupiscente no sexo
314
do que a branca. A ideia de que as prostitutas destoam
com o padrão ideal de mulher na sociedade, porque são dadas à luxúria e à lascívia e a
vaidade, é impressa a seguir:
Rosalina em Salvador
Entregou-se a vaidade
Deu expansão ao seu genio
Saciou sua vontade
Fazendo vida noturna
Nas Boites da cidade
O termo ―boite‖, no português brasileiro boate, é originário do francês ―boîte‖.
Esse termo entrou no português duas vezes, com acepções distintas e diferentes
adaptações prosódicas. A acepção clássica do português é ―bueta‖ (séc. XV), ―boceta‖,
caixa‖ e, mais modernamente (séc. XX) ―estabelecimento comercial, que funciona à
noite, e em geral, consta de pista de dança e palco de atrações artísticas‖
315
. Em
314
314
FREYRE, Gilberto. Op. cit. p. 349.
315
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
116
pequenas cidades de interior, o correlato de boate é ―cabaré‖, também de origem
francesa
316
.
Interessante observar o espaço em que se insere a prostituta - quando sai à rua é
à procura de um cliente, para depois voltar novamente ao espaço fechado do prostíbulo.
Nesse contexto, a rua equivale ao próprio ―caba‖, em termos de ausência de normas e
de preceitos morais.
Nesse contexto, a prostituta tem a oportunidade única de salvação, no amor
incondicional de seu amado, assemelhando-se a tantas personagens de contos
fantásticos e maravilhosos, que contam com a figura do ―maravilhoso príncipe‖ para
salvá-las. Mas Deusa, diferentemente das personagens infantis, não se sente feliz nos
braços do amado e nem submissa a ele:
Eu fiz a maior ansneira
Em me casar tão moderna
Pra viver prisioneira
Prefiro viver liberta
Como em tempo de solteira
A personagem, por expor o próprio corpo, oferecendo-o como mercadoria e por
querer voltar à vida de meretriz, é punida. A infração feminina é apontada, então,
enquanto heresia espiritual, juntamente com a noção do sobrenatural maléfico que tem
origem na mulher.
O rebaixamento da personagem é observado através do discurso em primeira
pessoa, nas expressões de súplica pelo perdão a Deus. O apaziguamento espiritual
assinala-se na oposição fundamental: pecado e misericórdia‖. A confissão dos pecados,
alternativa posta no plano da piedade divina, aparece como possibilidade única de
salvação e libertação do espírito maligno:
Nessa hora ajoelhou-se
Pedindo perdão a Deus
Dizendo Senhor perdoa
Os grandes pecados meus
As palavras apresentam-se as virtudes que granjeiam a salvação, tais como
compaixão‖, ―perdão‖, ―redenção‖, ―arrependimento‖, ―súplica‖ e ―clemência‖. No
316
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico nova fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
117
campo do sofrimento, inserem-se as palavras: ―aflição‖, ―dor‖,tristeza‖, pranto‖,
―infelicidade‖, ―padecimento‖, ―sofrimento‖, humilhação‖, que refletem o estado de
desengano da prostituta Deusa, em relação à doença que lhe aflige. O campo ganha mais
expressividade em: ―faces banhadas em pranto de dores‖, ―lágrimas de amargura‖,
―noites tempestuosas‖, ―xagas tão grengrenosas‖, como se pode ver a seguir:
Outrora eu me jugava
Uma rosa entre as rosas
Hoje estou vendo meu corpo
Em xagas tão grengrenosas
Que já não suporto mais
As dores tão espinhosas
A carga emotiva do desespero da prostituta Deusa eleva-se nas colocações ―um
ente tão infeliz‖, ―a minha desgraça‖, ―não suporto mais pelas sargetas dormir‖,
exposta ao relento‖, ―sem ter o que me cobrir‖ e ―prostrada nesse chão duro. O campo
do desespero e do sofrimento completa-se com o campo da culpa inserem-se os
delitos, a responsabilidade da mulher pela própria desgraça.
A minha desgraça fiz
Abandonei meu esposo
Só porque tinha inveja
Do viver de meretriz
A morte é anunciada através das expressões substantivas e verbais: ―meus
últimos dias de vida‖, encerram os dias seus‖, ―meu fim vai ser muito triste‖. Também
um número de metáforas que sentenciam a morte: ―minha matéria ta se
transformando em pus‖, ruída dos tapurus‖, ―no bico dos urubus‖, ―encerraram os dias
seus‖, ―últimos fios de vida‖. A morte pode ser interpretada como o destino das
mulheres pecadoras e infiéis, ou melhor, como o desfecho da miséria feminina:
Vejo que a minha matéria
Ta se transformando em pus
Prostrada nesse chão duro
Ruida dos tapurus
Meu fim vai ser muito triste
No bico dos urubus.
Para o homem, a ―mulher da vida‖ saudável é diferente da ―mulher da vida‖
doente. O estágio de putrefão da carne, que significa a culminância da doença, num
118
sentido metafórico, é também a culminância da ausência do desejo masculino, no
momento em que a mulher, não tendo mais um corpo pronto para servir, é repudiada.
Vale salientar que, no imaginário popular, a ―mulher da vidaé aquela a que o
mundo reserva às doenças contagiosas. Em situação análoga a de uma prostituta doente,
a mulher que corresponde aos preceitos da sociedade, a mulher virtuosa, é aquela que,
em seu estado de doente, é apenas uma enferma, digna de cuidados, exatamente o
inverso daquela para quem a sociedade só devolve o desprezo.
Por fim, a morte poderia ser entendida, como um avio, não exatamente para a
prostituta, mas para a sociedade e para o homem, que não se sente bem diante de uma
mulher doente, decaída. Quanto ao desprezo da prostituta, por parte do homem,
significa, mais especificamente, que ele não mais a quer enquanto ser feminino.
Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia
317
No texto em estudo, o destaque é a beleza e a sedução feminina. Neste, foram
listados os termos que caracterizam o modelo de mulher ideal, segundo a visão
masculina. No campo da beleza e sedução, enumeram-se os atributos femininos, tais
como a beleza, a doçura, o calor e a ternura; esses constituem os principais pré-
requisitos para que uma mulher seja aceita do ponto de vista do poeta.
A supervalorização do conceito de ‗mais beleza feminina está relacionada ao de
‗mais saciedade do homem. Daí, uma forte conotação entre os prazeres do corpo e o
prazer dos alimentos. No item beleza, o perfil feminino, que objetiva o agrado do
homem, corresponde a três ingredientes fundamentais: não basta ser bela, a mulher tem
que ser ―carinhosa‖, ―fogosa‖ e ―gostosa‖. A estrofe abaixo serve de exemplo:
Beijo de mulher bonita
Tem gosto de mascatel
É farinha de castanha
Quando é traçada com mel
A impressão de saciedade sexual do homem fica subentendida nos vocábulos
paz‖, ―amor‖, ―honra‖ e ―amizade‖. As meforas ―fome de amor e ―preenche a
317
LEITE, José Costa. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. Recife. s.d.
119
necessidade‖ deixam entrever a iia de semelhança do corpo feminino com o alimento
propriamente dito, capaz de saciar a fome de carinho, prazer, desejo, etc. Esse conjunto
de sensações insere-se no campo do desejo, o qual pode ser exemplificado através da
estrofe a seguir:
Beijo de mulher bonita
Preenche a necessidade
E a fome de amor
Com toda sinceridade
E o homem com ela sente
Paz, amor, honra e amizade
Os vocábulos ―fome‖ e ―necessidade‖ enfatizam o lado instintivo sexual
masculino e machista, colocando a mulher como alimento capaz de saciar esse instinto,
conforme foi dito. A palavra ―beijoinclui-se tanto no campo da sexualidade, enquanto
carícia trocada entre os namorados ou amantes, quanto no campo da amizade,
significando um ato comum de afeição ou cumprimento travado entre pessoas da mesma
família ou com parentesco próximo.
A ação de beijar é amplamente inserida num contexto simlico, significando,
num contexto de malícia e de suspeita, o sentido de traição - o beijo de Judas Iscariotes
em Jesus, está inserido num contexto da traição e prenúncio de morte logo após ter
traído a seu Mestre, o apóstolo se suicida. Com efeito, a relação beijo/ traição parece
provir daí.
No Nordeste, ainda é muito comum entre o povo dizer-se ―cheiro‖, no lugar de
beijo, como observa Cascudo
318
. Essa palavra é revestida de afetividade, principalmente
na fala das mães nordestinas, na troca de carícias dirigidas aos filhos menores, as quais
abusam da expressão ―Dá um cheirinho na mamãe!‖.
Mas, na verdade, o cheiro insere-se num contexto ambivalente, - é usado, ou
para registrar um maior teor de afetividade, imprimindo uma atmosfera de pureza, de
carícia angelical, ou pode apresentar um fundo de malícia e refletir uma essência
voluptuosa. Nesse caso, é importante escrever que dificilmente a frase ―dar um cheiro
no cangote‖, poderia ser inserida no primeiro contexto.
Verifica-se uma dupla ideia na expressão ―mulher boa, presente no texto, dado
que essa expressão tanto serve para designar, literalmente, uma mulher bondosa ou
318
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1963.
120
virtuosa, quanto imprime, maliciosamente, a conotação de mulher gostosa‖,
boazuda, ―de físico provocante
319
.
Não existe nada melhor
Do que uma mulher boa
Bonita e bem carinhosa
Agrada a qualquer pessoa
Quem beija ela sente
Amor, carinho e quentura
A combinação sinestésica entre a beleza feminina e os sentidos, - visão, olfato e
paladar, tem como efeito, reiterar a ideia do tesão, do prazer masculino. Assim, a
sequencia de vocábulos ―amor‖, ―carinho‖ e ―quentura‖ insere- se no campo da volúpia
feminina. De modo inverso, a ―mulher feia‖ é negativamente posta no plano da recusa e
da insatisfação masculina. Portanto, as comparações pejorativas, que remetem a esse
tipo de mulher traduzem sensações desagradáveis, tais como dor‖, ―incômodo‖,
―medo‖ e choro‖, de forma preconceituosa. Essas sensações estão expressas nos
trechos a seguir:
Carinho de mulher feia
É murro, coice e patada
Empurrão, pota-pé
Beliscão, soco e dentada
Carinho de mulher feia
Eu nem quero nem de graça
Até de longe faz medo
Os versos apresentados refletem uma analogia entre mulher feia e alguns
animais. Os vocábulos ―coice‖ e patada‖, ―baleia‖ e ―macaco‖ são mais depreciativos,
usados para reforçar as semelhanças existentes entre os humanos e os outros seres. O
designativo ―macaco‖, quando usado para referir-se ao sexo feminino, é quase sempre
com o objetivo de insultar a negra.
Carinho de mulher feia
Além de singelo fraco
Se parece uma baleia
Cada olho é um buraco
E o bafo da boca dela
Tem catinga de macaco
319
CUNHA, Antônio Geraldo da. Op. cit.
121
[...]
Beijo de mulher feia
Tem catinga de monturo
Tem gosto de café frio
[...]
O verbete ―macaca‖
320
é registrado como ―mulher que está sempre a reclamar de
tudo‖. O sentido do verbete traduz claramente o comportamento agressivo do homem
sertanejo com relação à mulher.
As expressões ―catinga de macaco‖, ―catinga de monturo‖ e ―bafo‖ são usadas,
pejorativamente, com a finalidade de atingir o negro. A alusão aos termos em relação ao
beijo da ―mulher feia‖ aparece como simples pretexto para depreciar a negra, tecendo
um paralelo entre ela e o macaco, tanto do ponto de vista da aparência sica, quanto do
odor. Essa produção de sentido fica mais evidente pela organização do campo da raça,
cujos semas mais evidentes são ―monturo‖ e ―café‖.
Enfim, o texto pretende mostrar que a mulher é aprazível na concepção do
homem, enquanto dotada de atributos físicos, quando sua única função é utilizar o corpo
para agradá-lo. Por isso, a constante vaidade da mulher com o corpo, com o cheiro e
com todos os artifícios necessários para instrumentá-lo a essa função, são, nesse
contexto, vistos como positivos.
Outro ponto que não pode deixar de ser analisado, mesmo na superfície, diz
respeito aos títulos dos cordéis, mesmo quando não abordam traição ou adultério,
trazem nas suas capas chamadas sugestivas e ambíguas referentes à mulher, as quais
inferem significados e relações pornográficas e eróticas, deixando seu comportamento
em evidencia. Nos títulos: A mulher da “coisa” grande
321
, “a moça que foi vender o
periquito em Piancó
322
”, “a mulher que deu tabaco na presença do marido
323
”, a
320
NONATO, Raimundo. Calepino potiguar: gíria norte-riograndense. Mossoró: Fundação Guimarães
Duque, 1980.
321
LEITE, José da Costa. A mulher da “coisa” grande. Pernambuco: Editora Coqueiro. s/d.
322
LEITE, José da Costa. A moça que foi vender o periquito em Piancó. Pernambuco: Editora
Coqueiro. s/d.
323
LEITE, Joda Costa. A mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia. Pernambuco: Editora
Coqueiro. s/d.
122
mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia
324
tem-se exemplos desses jogos de
palavras.
A mulher da “coisa” grande, apesar de levar o leitor a interpretações sexuais, o
cordel traz, apenas, a história de Zefa que era grande e gostava de comprar objetos
grandes. Assim como nesse cordel, os outros têm nos títulos elementos que podem levar
a um entendimento erótico, quando na verdade, é apenas uma estratégia do poeta de
chamar a atenção do leitor.
Como se percebeu nesses cordéis, o ponto elementar da descrição feminina,
como já exposto, gira em torno de elementos puramente sexuais, corporais: beleza,
prostituição, cheiros. Vocabulário, tema e elementos coadunam para reforçar ou
evidenciar a inferioridade da mulher que está relacionada, desde a antiguidade, com o
episodio da criação do mundo respectivo a cada sociedade.
Após o exposto, fica claro que a estigmatização da mulher como nese do mal
se configura como resíduo da mentalidade cristã medieval sedimentada na cultura
popular nordestina. A análise dos cordéis constata a ocorrência da Residualidade,
pautada, sobretudo, na permanência de preceitos morais, sociais e religiosos.
324
SILVA, Gonçalo Ferreira da. A mulher que deu o tabaco na presença do marido. Rio de Janeiro:
ABLC, 2006.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No transcorrer das análises, tentou-se perfilar os diversos aspectos do cordel -
linguagem, temáticas, personagens - que refletem o imaginário do povo nordestino em
relação à mulher. Observaram-se pontos concernentes a crenças, tradições,
religiosidade, sentimentos e costumes desse povo que, tomados em conjunto, serviram
de apoio à investigação dos elementos utilizados na descrição da mulher.
O presente trabalho investigou de que maneira a Literatura de Cordel deixa
entrever os aspectos da mentalidade relativos à mulher, demonstrando sua íntima
ligação com o medievo. Os três modelos femininos difundidos na Idade Média, e
encontrados nos textos dos cordelistas: Eva, Maria e Madalena deixam claro o papel
civilizador e moralizante desempenhado pela Igreja Católica ao longo de,
aproximadamente, mil anos de formação da sociedade ocidental.
A mulher, personificada em Eva, é a pecadora, a tentadora, aliada de Satanás e
culpada pela Queda. Eva concentra em si todos os vícios que trazem símbolos ligados
ao feminino, a exemplo da luxúria, da gula, da sensualidade e da sexualidade. Esse
estado de maldição foi amenizado com o culto à Virgem Maria, que trouxe consigo a
reconciliação entre a humanidade e Deus. Contudo, essa reconcilião ainda era
restritiva, pois somente aqueles que vivessem na graça divina alcançariam à salvação.
Com Maria Madalena se estende a possibilidade de salvação a todos que tinham caído
no erro, mas foram capazes de se arrepender.
Para refrear o desejo e evitar o pecado, o homem, por ser considerado superior à
mulher desde o Gênesis bíblico, é eleito para exercer um controle sobre os instintos
carnais. Por isso, é preciso ressaltar que a hierarquia entre os sexos serviu para legitimar
a supremacia masculina. Os papéis sociais são definidos e a mulher é mantida submissa
ao homem, que deve exercer a tutela e o controle sobre ela.
Como a Literatura de cordel tem a sua origem no romanceiro popular português,
no Brasil, ela começou a ser divulgada nos culos XVI e XVII, trazida pelos colonos e
a partir do século XIX, o romanceiro nordestino, num processo de absorção híbrida,
torna-se independente, com características regionais e específicas, sem perder, é claro,
os elementos primordiais da Europa medieval, os quais configuram-se como a base das
matizes morais, sociais e religiosas, vigentes no Nordeste.
124
―A mulher como princípio do mal‖ e a sua diabolização são características que
perduram ao longo dos séculos, pois são evidenciadas na literatura popular em verso.
Percebe-se que além da comunhão com Portugal, houve a hibridação de imeras
mitologias, do fabulário medieval e da etnografia brasileira, convergindo para a
construção de um imaginário híbrido e cristalizado da mulher como devoradora, palco
dos demônios, dos seres malfazejos do sexo. As análises dos cordéis comprovam a
cristalização dos resíduos mentais, atualizada pelo cordelista.
Percebeu-se que no cordel, as mulheres praticamente ficaram à margem da
sociedade, marginalizadas, evidenciando características das sociedades patriarcais. Para
o sistema patriarcal, ainda perceptível na contemporaneidade, mediante a
desvalorização, simlica ou não, da mulher, o prestígio masculino e sua identidade são
reconhecidos e ainda supervalorizados.
Os folhetos de literatura popular reúnem com excelência o cerne da mentalidade
eclesiástica acerca da mulher e sua inferioridade. Através de seus discursos, justificam a
misoginia retomando, refazendo e ampliando os discursos de personalidades da história,
que no universo do cordel, encontra-se presente através do vocabulário, das associações
e da maneira como a mulher é descrita pelo poeta popular.
Centrando-se especificamente nas personagens dessas histórias, foi possível
observar como a misoginia está arraigada ao pensamento do cordelista, como resíduos
da mentalidade cristã medieval, os quais se cristalizaram ao longo dos tempos, passados
de geração a geração. Ele, ao produzir seu texto, ordinariamente, explicita ou
implicitamente, inferioriza e desqualifica a mulher. Fazendo uso de palavras, expressões
e associações pornográficas, pejorativas e ambíguas, mostra que a literatura de cordel é
um veículo de transmissão de valores que na Idade Média serviu de base para a
construção de arquétipos femininos para o imaginário do Nordeste brasileiro. Vale
salientar que é restrito o número de mulheres cordelistas na literatura popular em verso
e que as mulheres são, em decorrência disso, mostradas, quase exclusivamente sob a
perspectiva dos homens. Esse é um dado relevante, que poderia incitar investigações e
outras pesquisas cuja abordagem dos textos cairia sobre a representação feminina nos
Cordéis escritos por mulheres.
A literatura de cordel nordestina é um exemplo da presença desse conjunto que
constitui a Residualidade. Relembrando Gilmar de Carvalho, essa literatura ―vem
125
daquele fundo de estórias que foram sendo criadas e transmitidas de geração a geração,
num processo de circularidade da cultura‖. Graças às hibridações, essas histórias
adquiriram novas aparências ao entrar em contato com a cultura do Nordeste.
De acordo com os pressupostos teóricos, os quais sedimentaram as análises e que
serviram de base à constatação das hipóteses dessa pesquisa, de-se comprovar, a
partir do corpus selecionado para a análise, que a Literatura de Cordel retrata, por meio
das expressões e marcas próprias da oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade,
fazendo uma leitura própria daquilo que foi disseminado por clérigos da igreja. Nos
folhetos, foram identificados aspectos da realidade nordestina, em face à cultura e ao
povo e, por fim, o vocabulário que revelou, mais do que os aspectos formais da ngua,
o modo como a mulher é percebida e tratada na sociedade através do discurso: ainda
maligna, sedutora e perigosa.
Quando se debate a respeito do caminho do discurso que diz respeito à mulher
nas representações sociais do feminino pelo cristianismo e da fala de mulheres que se
encontram em situações ―destinadas‖ a elas casamento, procriação, submissão
confirma-se que há uma herança misógina na vida da mulher presente no cordel, o que
naturaliza essas representações.
Através do cordel, esta herança sempre redunda em apontar a mulher como
portadora do mal, exigindo-lhe para sua salvação, o sacrifício na vida doméstica, a
resignação, a obediência e a submissão ao poder masculino, naturalizando também a
culpa feminina e a responsabilidade para a mulher da preservação da vida familiar.
Ensinamentos, carregados de significados misóginos, permanecem nessas obras
literárias nas quais a religião exerce extrema força, e acabam se situando na vida social
enquanto um disseminador de ideias antifeministas e da reprodução dos significados da
opressão contra a mulher.
Essas considerações, baseadas na teoria da residualidade, examinaram a
influência disseminadora da fisiologia de Aristóteles em alguns dos seus seguidores, os
quais se tornaram pilares fundamentais da tradição antifeminista medieval, não no
campo da filosofia religiosa (Santo Anselmo e São Tomás de Aquino), mas também no
interessante donio do conhecimento etimológico, tal qual expresso, de forma ímpar,
nas Etymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha. Assim, o fisiologismo de Aristóteles e o
etimologismo de Santo Isidoro de Sevilha, ambos sintonizados em postulados que
126
definiram o antifeminismo tradicional, e essas são duas das muitas ideias fundadoras da
convergência de atitudes discriminadoras contra a mulher no pensamento e na cultura
do homem ocidental.
As diferenças entre a boa mulher, na perspectiva medieval, e aquela perigosa e
transgressora são apontadas pelos cordelistas, sendo perceptível a consciência do autor
sobre a dualidade da representação feminina.
No cordel A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia, o autor traça um
panorama entre as respectivas imagens construídas, desde o medievo à
contemporaneidade, apresentando as características e as qualidades e defeitos desta e
daquela. O exame da mulher de antigamente como modelo ideal, em contraste com o
comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaçadora da ordem
e da moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valoração, do ponto de vista
patriarcal e conservador.
Como se percebeu durante toda pesquisa, as representações da mulher não
escondem a supremacia dos ideais cristãos sobre a boa mulher: a mãe, a rainha do lar, a
esposa calada; e sobre a mulher má: a que tenta, a que rebola, a que fala.
Representações cristalizadas, pois o cordelista, quando descreve a mulher de hoje,
apresenta os problemas sociais e ecomicos provocados por ela, atualizando os
substratos mentais, oriundos do medievo.
Nos livrinhos A lenda da Iara ou Os mistérios da Mãe d’água, Saiona a
mulher dos olhos de fogo e Os mistérios da pedra encantada ficou perceptível a
associação que os poetas fazem entre a mulher e elementos dialicos, sobretudo, a
luxúria e a sedução. Esses cordéis, a título de amostragem, foram escolhidos para
evidenciar a presença de resíduos luxuriantes e malignos relativos à mulher, ratificando
o pensamento misógino medieval de que o motivo da perdição dos homens de bem está
na mulher. Neste caso, a residualidade foi detectada a partir de resíduos remanescentes,
sobretudo, do medievo, referentes à metamorfose, à luxuria e à sedução, relacionados ao
feminino como resultado da hibridação cultural entre Portugal e Brasil no construto de
uma imagem negativa, perigosa e maligna da mulher.
Os cordéis que têm como tema as minorias medievais, segundo a concepção
cristã homossexuais, prostitutas, hereges, leprosos e judeus funcionaram como
registro da ‗perseguição‘ que algumas dessas categorias ainda sofrem, mesmo que de
127
forma velada, pois a maioria dessas abordagens parte do humor para disseminar esses
ideais, como é o caso d’O casamento do boiola. A narrativa A chegada da prostituta no
céu registra a presença da moral cris na condenação dessa minoria, bem como a
consciência da Igreja acerca da importância desta para o equilíbrio social das cidades,
como defendeu Santo Agostinho; ou ainda de maneira vulgar como Chica bananinha, a
sapatão barbuda de lá da Paraíba, no qual se percebe a existência de substratos
mentais no que se refere à sodomia feminina vista na Idade Média como um pecado
menor, em virtude da mulher não ser ativa na prática sexual, se comparada ao mesmo
pecado quando cometido por homens.
Como também se encontram minorias medievais nos textos de cordéis, o
imaginário popular permanece com inúmeros elementos do medievo. Outro livrinho que
comprovou essa afirmação foi o cordel intitulado A moça que virou cobra ao servir de
exemplo para aqueles que desrespeitam as tradições religiosas, tão fortes no Nordeste.
A função social do cordel também permitiu a abordagem dos leprosos de forma
atualizada, fazendo um alerta para os sintomas e a cura dessa doença, uma atualização,
pois na Idade Média a hanseníase, conhecida como lepra, tinha sua cura ignorada.
A responsabilidade pelo fim do casamento, a ridicularização do homem e o
desrespeito à Igreja e aos preceitos morais e sociais recaem sobre a mulher nas histórias
que abordam a traição ou o adultério O corno vingativo, O paraibano que foi corno
cinco vezes, A desventura de um corno ganancioso e A ganância do chifrudo.
Em A deuza do cabaré: a miritriz orgulhosa, Beijo de mulher bonita e carinho
de mulher feia, e A mulher traiçoeira, a figura feminina apresentou três concepções
convergentes para um único elemento, o corpo. Base nas representações, o corpo da
mulher é mostrado como objeto de sedução, meretriz, objeto de desejo, mulher bonita,
objeto de repulsa, mulher feia, e objeto de desvio, traidora.
Viu-se que não os textos, mas os títulos também sugeriam o caráter malévolo
e sedutor das mulheres A mulher da “coisa” grande, “a moça que foi vender o
periquito em Piancó”, “a mulher que deu tabaco na presença do marido”, a mulher
que perdeu a bunda no estado da Bahia. Mesmo quando as narrativas não tinham no
enredo uma temática de cunho erótico, ainda assim, os títulos remetiam a contextos
ambíguos.
128
O que se pode perceber durante a elaboração desse trabalho, fazendo jus ao que
o seu título propôs, é que o pensamento medieval, em se tratando da mulher, primou-se
exclusivamente por uma monotica postura migina. Portanto, foi a partir de
ultrajantes pronunciamentos medievais de restrição à mulher que resíduos culturais se
solidificaram e perduraram, sendo encontrados, ainda hoje, em textos literários,
literários as representações dessas atitudes.
O resultado da pesquisa acerca da misoginia na literatura de cordel indica a
remanescência de resíduos medievais no tocante às atitudes masculinas sobre mulher. O
desenvolvimento desse pensamento sexista, cristalizado nas obras do poeta popular,
levou em conta aspectos sicos, sociais, culturais, morais e, sobretudo, religiosos. Esses
elementos ratificam a misoginia a partir do discurso, do vocabulário e das situações que
o cordelista cria para se referir à mulher.
129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Edições Paulinas, 2005.
ABREU, Maria Zina Gonçalves de. O Sagrado Feminino: da Pré-história à Idade
Média. Lisboa: Edições Colibri, 2007.
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme. São Paulo:
Martin Claret, 2004. Coleção a obra prima de cada autor.
____________. Confissões. Tradução de J. Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2002.
Coleção a obra prima de cada autor.
ANGELIN, Rosângela. ―A ‗caça as bruxas‘: uma interpretação feminista‖. In: Revista
Cons Ciência. São Paulo. Volume 1, número 7, 2006.
AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica. VOL II. São Paulo,Edições Loiola Edição
bilíngue. 2002.
ARAÚJO, Emanuel. ―A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia‖ In: DEL
PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil. Edição. São Paulo: Contexto,
2006.
_________________. O Teatro dos Vícios. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário Gama Kury. 4ªed. Brasília:
UNB, 2001.
_____________. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
AS GRANDES CIVILIZAÇÕES DESAPARECIDAS. Portugal: Edição de Selecções
do Reader‘s Digest, 1981.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, JoLuiz (Orgs). Dialogismo, polifonia,
intertextualidade: Em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. (Coleção Ensaios
de Cultura).
BARTKY, Sandra Lee. Femininity and domination: Studies in the Phenomenology
of Oppression, Routledge, 1990.
130
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. São Paulo: Fundação
José Augusto, 1997.
BELLO, José Luiz de Paiva. “O poder da religião na educação da mulher”.
Pedagogia em Foco. Rio de Janeiro, 2001. Disponível em:
<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/mulher02.htm>. Acesso em: 13 de janeiro de
2010.
BLOCH, Howard R. Misoginia Medieval: e a invenção do amor romântico
ocidental. Tradução de Cláudia Moraes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
BORGES, José Francisco. O casamento do boiola. Pernambuco: s/d.
Bosswell, Jonh. Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality (Cristianismo,
tolerância social e homossexualidade). Oxford, 1980.
BRANDÃO, Adelino. Crime e castigo no cordel. Rio de Janeiro: Presença, 1991.
BRANDÃO, Junito de Sousa. Mitologia Grega. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1998.
BROWNE. Stanley George. Lepra na Bíblia: estigma e realidade. Tradução de Vera
Ellert Ochsenhofer. Viçosa: Ultimato, 2003.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: editora UNESP, 2002.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El rei D. Manuel I sobre
o achamento do Brasil. Coleção A obra prima de cada autor. São Paulo: Martin Claret,
2002.
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo Colonial. São
Paulo: Paz e Terra, 2003.
CANTAVELLA, Rosanna. ―Les Donnes medievals es mereixen estudis més acurats i
humils‖. In: Revista d´história medieval publiació editada pelo Departament
d´Hisria Medieval de la universitat de València. 1992.
CARVALHO, Gilmar de. “Vozes e letras” in: Revista Cult, janeiro de 2002.
131
CASAGRANDE, Carla. ―A mulher sob custódia‖. In: DUBY, Georges e PERROT,
Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Média. Porto:
Edições Afrontamento/São Paulo: Ebradil, 1995.
CASCUDO Luis da Câmara: Literatura Oral no Brasil. ed. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984.
_____________. Geografia dos mitos brasileiros. 2a ed. Rio de Janeiro: Livraria Jo
Olympio Editora, 1976.
_____________. Dicionário do folclore brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1963.
_____________. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9ª Ed. Revista, atualizada e
ilustrada. São Paulo: Global editora, 2000.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Colaboração de André Barbault...
[et al]. Tradução de Vera da Costa Silva... [et al]. 19ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2005.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico nova fronteira da Língua
Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
CURI, Luciano Marcos. Defender os sãos e consolar os Lázaros: lepra e isolamento no
Brasil. Dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal de Uberlândia e
2002.
DALARUN, Jacques. Olhares de crigos. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle
(dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2 A Idade Média. Porto: Edições
Afrontamento/São Paulo: Ebradil, 1995.
DEL PRIORE, Mary. ―Magia e medicina na colônia: o corpo feminino‖. In: DEL
PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil. Edição. São Paulo: Contexto,
2006.
________________. Ao Sul do Corpo: Condição feminina, maternidades e
mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro, RJ: José Olímpio; Brasília, DF: Edunb,
1993.
132
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente - 1300-1800. Tradução de Maria
Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DOMÍNGUEZ, Luis Arturo. Encuentro con el folklore en Venezuela. Caracas:
Editorial Kapelusz Venezolana, 1990.
DUBY, Georges e PERROT, Michelle. ―Escrever a História das Mulheres‖. In: DUBY,
Georges e PERROT, Michelle (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2
A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento/São Paulo: Ebradil. 1995.
DUBY, George. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
____________. Eva e os Padres. Lisboa, Editorial Teorema, 1996.
____________. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
____________. A história continua. Tradução de Clóvis Marques. Rio de janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1993.
EURÍPEDES. Teatro de Eurípedes: Hipólito, Medéia, As troianas. Tradução direta
do grego. Introdução e notas de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brasília: INL, 1997.
FRANCO Júnior, Hilário. A Idade Média - nascimento do Ocidente. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da família brasileira sobre
sob o regime da economia patriarcal. 34ª Edição, Rio de Janeiro: Record, 1998.
GASPAR, Maria Dulce. Garotas de programa Prostituição em Copacabana e
identidade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988.
GOLDELIVIE, Maria. A ganância do chifrudo. Fortaleza: 2004.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
_____________. Fragmentos da la Memoria Coletctiva. Seleção e tradução de
Miguel Angel Aguilar. (texto em espanhol). Universidad Autónoma Meropolitana-
Iztapalapa. Licenciatura em Psicologia Social. Publicado originalmente em Revista de
Cultura Psicológica, Año 1, Número 1, México: UNAM- Faculdad de psicologia, 1991.
133
HILL, Jonathan. História do Cristianismo. Tradução de Rachel Kopit Cunha, Juliana
A. Saad e Marcos Capano. São Paulo: Edições Rosari, 2008.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua
Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
HOMERO. ODISSÉIA; Tradução de Odorico Mendes; Org. Antonio Medina
Rodrigues; Prefácio de Haroldo de Campos. São Paulo: Ars Poética / EDUSP, 2000.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. ―As normas do controle‖. In: Georges Duby e
Michelle Perrot. História das mulheres: Idade Média. Porto: Edições Afrontamento,
1990.
__________________. ―Masculino/feminino‖. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT,
Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Tradução de Eliane
Magnani. São Paulo: EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002.
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras Malleus
Maleficarum. Tradução de Paulo Fes. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos,
1991.
LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média.
Tradução de Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
_______________. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983.
_______________. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão [et al.]. ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
________________. O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Tradução
de José Antonio Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1985.
LEAL, José Carlos. A maldição da mulher. Rio de Janeiro: Achiamé, 1995.
LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o sábio aspectos
culturais e literários. São Paulo: Linear B; Belo Horizante: Veredas e Cenários, 2007.
LEITE, José Costa. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. Recife. S.d.
_______________. A moça que foi vender o periquito em Piancó. Recife: Editora
Coqueiro. S/d.
134
_______________. A mulher da “coisa” grande. Pernambuco: Editora Coqueiro. s/d.
_______________. A mulher que perdeu a bunda no estado da Bahia. Recife:
Editora Coqueiro. s/d.
______________. Hoje em toda parte tem corno, bicha e sapatão. Condado: Editora
Coqueiro, s/d.
_____________. Mulher doida, moça quente, corno, bicha e sapatão. Condado:
Editora Coqueiro, s/d.
LINS, Ivan. A Idade Média A cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora
Brasílica (cooperativa), 1993.
LITERATURA POPULAR EM VERSOS: ESTUDOS. TOMO I. Rio de Janeiro:
MEC/Fundação Casa Rui Barbosa, 1973.
LOI, Isidoro. A mulher. Tradução Julio E. Emöd. São Paulo: Editora Jabuti, 1988.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poesia do imaginário. 1
a
Ed. Rio de Janeiro: Escrituras, 2001.
MACEDO, José Rivair. A mulher na idade Média. São Paulo: Contexto, 2002.
MARTINS, Elizabeth Dias. Sanção e metamorfose no cordel nordestino‖. In: XIX
Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa, 2003. Anais Curitiba,
2003, p. 304-311.
______________________. O caráter afrobrasiluso, residual e medieval no Auto da
Compadecida. In: IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, 2003, Belo
Horizonte. Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte :
PUC-Minas, 200, p. 517-522.
MEDEIROS, Elinaldo Gomes de. Boquinha de Mel. O Corno é cultura popular.
Natal, 2007.
MONTEIRO, Manoel. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia.
Campina Grande: Gráfica Martins, 2006.
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1993.
135
MOREIRA, Rubenita Alves. Reflexões sobre a residualidade. Entrevista com Roberto
Pontes‖. Comunicação apresentada na jornada literária ―A residualidade ao alcance de
todos‖. Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, julho
de 2006.
NASCIMENTO, Vanecir Santos do. Iniciação sexual na zona rural. Natal: Chico
Editora, 2008.
NAWARA, K. Gay. Chica Bananinha, a sapatão barbuda de da Paraíba. Rio de
Janeiro, 1984.
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e história: as práticas mágica no
Ocidente cristão. São Paulo: EDUSC, 2004.
NONATO, Raimundo. Calepino potiguar: gíria norte-riograndense. Mossoró:
Fundação Guimarães Duque, 1980.
NUNES, Silvia Alexim, O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistério da pedra encantada.
Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2008.
OPTIZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da Idade Média‖. In: Hisria das
Mulheres no Ocidente. Porto: Ed. Afrontamento Ltda, 1990.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 3
ed. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1998.
PILOSU, Mário. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Tradução de Maria
Dolores Figueira. Portugal: Editorial Estampa, 1995.
PLATÃO. A República. Tradução de Eleazar Magalhães. Fortaleza: Edições UFC,
1986.
_________. Apologia de Sócrates. Tradução de Maria Lacerda de Souza. Obra de
domínio público. Disponível em <
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000065.pdf>. Acesso em: 13 de
Janeiro de 2010.
__________. Leis. Tradução de B. Jowett. Disponível em
<http://www.gutenberg.org/files/1750/1750.txt> Acesso em 19 de Janeiro de 2010.
136
__________. Timaeus Tradução de B. Jowett. Disponível em <
http://classics.mit.edu/Plato/timaeus.html> acesso em 15 de Janeiro de 2010.
PONTES, Maria das Neves de; MELLER, Vilson Brunnel. Dicionário linguístico-
literário de termos regionais/populares (Norte/Nordeste). João Pessoa: Ideia, 2003.
PONTES, Roberto. Lindes disciplinares da teoria da residualidade‖.
________________. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro Fortaleza.
Oficina do Autor- EUFC, 1999.
________________. Residualidade e mentalidade trovadorescas no romance de Clara
Menina‖. In: III Encontro Internacional de Estudos Medievais da Associação Brasileira
de Estudos Medievais ABREM, 2001, Rio de Janeiro. Atas do III Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro : Ágora da Ilha, 1999. p. 513-516.
________________. ―Três modos de tratar a memória coletiva nacional‖. In: Literatura
e Memória Cultural ANAIS do Congresso da Associação Brasileira de Literatura
Comparada vol. II. Belo Horizonte, 1991.
PONTUAL, José Pedro. Uma mulher traiçoeira. Editor: Edson Pinto da Silva. s.d.
RAMOS, Francisco Régis Lopes Ramos. O verbo encantado A construção do Pe.
Cícero no imaginário dos devotos. Ijuí: Editora Unijuí, 1998.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo,
Companhia das Letras, 1995.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias da Idade Média.
Tradução: Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 1993.
RINARÉ, Rouxinol do. Saiona a mulher dos olhos de fogo. Fortaleza: Tupynanquim
Editora, 2005.
RONALD, Raminelli. Eva Tupinambá‖ In: DEL PRIORE, Mary. Hisria das
Mulheres no Brasil. 8ª Edição. São Paulo: Contexto, 2006.
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1991.
137
ROUSSEAU, J.J. 1969. Émile ou de l’education. v.V. Edição de 1782. Disponível em
http://fr.wikisource.org/wiki/%C3%89mile,_ou_De_l%E2%80%99%C3%A9ducation/
%C3%89dition_1782/Livre_IV Acesso dia 24 de maio.
SANTOS, Luiz Felipe. “A Mulher como representação do Bem e do Mal nA
Demanda do Santo Graal e n’A Divina Comédia. Dissertação (Mestrado em
Literatura Portuguesa) Faculdade de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2007.
SCHOTT, Robin May. Eros e os processos cognitivos: uma crítica da objetividade
em filosofia. Tradução Nathanael C. Caixeiro.Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos,
1996.
SICURETI, Roberto. Lilith, a lua negra. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
SILVA, Evaristo Geraldo. A lenda da Iara ou Os mistérios da mãe d’água. Fortaleza:
Tupynanquim Editora, 2005.
SILVA, Gonçalo Ferreira da. A mulher que deu o tabaco na presença do marido. Rio
de Janeiro: ABLC, 2006.
SILVA, João José da. A moça que virou cobra. Recife: do autor, s/d.
SILVA, João Severo. A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa. João Pessoa, 1985.
SOUZA. Laura de Mello.Em torno de um mito: a elipse do sabá‖. Racional ou
sobrenatural? Um caso de bruxaria. Revista Humanidades. Vol. 9 N° 1. Brasília:
Editora UNB, 1994.
SOUZA. Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa de Santa Cruz Feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
TENÓRIO-PONTES, Walter. Machismo na literatura de cordel. Lisboa: edições
Rolim, s/d.
VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício In: PRIORE Del,
Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo:
Ática, 1986.
138
VIANA, Arievaldo. A história da rainha Esther. Fortaleza: Tupynaquim editora,
2004.
VILAR, Antonio Cristóvão de Queiroz. Hanseníase no cordel. Disponível em:
http://www.morhan.org.br/cordel.html. Acessado em 18 de março de 2010.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro: Zahar editora, 1979.
YVES, Évreux. Voyage dans le Nord Du Bsil. Librarie A. Frank. 1864.
SITES CONSULTADOS
http://centros.uv.es/web/departamentos/D210/data/informacion/E125/PDF77.pdf.
Acesso dia 2 de fevereiro de 2010.
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_I-
xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html. Acesso dia 8 de novembro de 2009.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo